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PROBLEMAS ATUAIS

I. OS GUIAS DO MUNDO ......................................................................................................................................... 1

II. CHEFE – CRÍTICA DE MAQUIAVEL ............................................................................................................. 6

III. NOVO HOMEM................................................................................................................................................ 15

IV. PROBLEMA DA ESTABILIDADE MONETÁRIA ...................................................................................... 24

V. ORIENTAÇÕES TERAPÊUTICAS E PATOGÊNESE DO CANCER ........................................................ 29

VI. TEORIA DA REENCARNAÇÃO (1a Parte) ................................................................................................... 36

VII. A TEORIA DA REENCARNAÇÃO (2a Parte) .............................................................................................. 45

VIII. O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS (Técnica da Reencarnação) ......................................................... 52

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 1
róis, gênios ou santos. Sua função pode manifestar-se em várias
PROBLEMAS ATUAIS formas, de acordo com o lugar, a época e as realizações a execu-
tar. São os maiores lutadores, porque se propõem não a subjugar
as feras inimigas ou seus semelhantes, mas a superar leis e for-
I. OS GUIAS DO MUNDO mas de vida de um plano biológico, para pôr em prática leis e
formas de vida de um plano mais adiantado de evolução. Eles
Tudo é luta na vida. Esta parece querer exprimir-se sobretu- despertam em si e na humanidade qualidades latentes ainda
do em forma de luta e exercitar desta maneira a sua maior ati- adormecidas e dão uma direção à contínua transformação dos
vidade. A vida é uma contínua tensão para vencer em qualquer instintos, indicando ou impondo novos hábitos, que depois, pela
plano. Nas suas fases mais primitivas, vencer a fera inimiga; na longa repetição, através da técnica dos automatismos, fixam-se
atual fase de vida em sociedade, vencer o próximo, a fim de su- como qualidades novas. Desse modo, eles impulsionam a huma-
plantá-lo; no biótipo do super-homem, vencer para subjugar e nidade cada vez para mais longe da ferocidade, da ignorância,
superar as leis inferiores da animalidade e dar ao mundo novas do egoísmo, da materialidade, e sempre para mais próximo da
diretrizes. Luta para vencer, ou seja, para elevar-se, ascender, bondade, da inteligência, do altruísmo do homem coletivo, da
evolver. A lei suprema da evolução toma a forma de luta deses- espiritualidade. Podem assumir a forma de condutores de povos,
perada para remir-se da dor e do mal e conquistar a felicidade. de grandes pensadores, cientistas, artistas, mártires do ideal e do
Esta se encontra escrita e arde perenemente no fundo da alma dever, místicos, santos. Mas, de qualquer modo, emergem en-
humana, como um instinto, um anseio inextinguível, um sonho, sanguentados das mais duras experiências e lançam o novo grito
uma fé; como uma utopia que sabemos fugir longínqua e ina- do porvir. Como a flor, eles são o produto destilado da raça.
tingível, mas na qual o homem é obrigado a crer, contra todas Anunciam, percorrem e fazem percorrer novos caminhos, para
as aparências e dificuldades, até ao desespero. Isto porque, sem novos horizontes. São verdadeiros pastores do rebanho humano,
tal fé num futuro melhor, mesmo que pareça loucura, o homem que, de outra forma, permaneceria sempre voltado a pastar com
não mais teria conforto na fadiga de ascender, nem finalidade a cabeça inclinada para a terra, seu único anseio.
na sua caminhada, nem luz alguma de esperança no amanhã. Esses homens de exceção personificam o vértice do drama
São, por isso, importantes elementos a utopia e a fé, fazendo das deslocações evolutivas ou revoluções biológicas. Passam
parte integrante da mecânica da vida. Por mais que desprezem no ciclo da vida como um raio que ilumina dum extremo a ou-
tudo isso os céticos e os práticos positivos, se existe isto na vi- tro a terra escura, dinamizando a massa inerte da carne do vul-
da, alguma função deve ter, que é justamente antecipar o futuro. go humano. Eles são a centelha do espírito que vivifica as for-
A série das mesquinhas, ilusórias e instáveis aquisições que es- mas da matéria. São os maiores vencedores porque realizam e
tão ao nosso alcance na vida terrena não é suficiente para dar vencem a luta mais alta, que é impulsionar a humanidade para o
finalidade e justificação a todo o imenso trabalho que realiza a progresso. São os grandes da vida, que os fez mais fortes e lhes
nossa existência, como indivíduos e como sociedade. E não po- confia trabalhos de gigante. O seu trabalho é resultado de atitu-
demos dizer que vivemos para sofrer e perder tempo inutilmen- des superiores, de vontade de ferro, de irresistível paixão pelo
te. Se todo fenômeno e cada ato nosso são um caminho para bem, de fadiga ardentemente desejada, tenaz e convergente. O
uma finalidade, como poderiam o fenômeno e o ato máximo, homem normal, imerso nas batalhas do contingente cotidiano,
que são a nossa vida e o funcionamento do universo, deixar de ignora essas lutas apocalípticas, realizadas no terreno da evolu-
ter uma finalidade? Por mais escuro que seja o futuro, a utopia ção, para subir a Deus. Tremenda coragem é necessária para
e a fé são uma ponte lançada sobre essa escuridão, a fim de aventurar-se contra as forças biológicas, para arrancar o ser de
sondá-la e servir como apoio para se construir nela, à proporção um plano inferior e arrastá-lo a um superior. Mas só assim é
em que ela se torna presente pelo nosso aproximar-se. possível superar as barreiras que atrasam a ascensão e arrombar
Respondem, pois, a utopia e a fé a necessidades criadoras, as portas de um mundo mais elevado para entrar por elas.
representando verdadeiras funções biológicas de sondagem no Esses homens superiores são sempre guias do mundo, ainda
desconhecido e de preparação para o porvir. A luta pelo ideal, que não pertençam à classe dos condutores políticos dos povos.
isto é, pela superação das velhas formas de vida, a fim de pro- Não é só no terreno político que deve adiantar-se o mundo, mas
gredir, realizando outras mais evolvidas e aperfeiçoadas, é a em todos os campos do seu multiforme progresso. Tornam-se
mais elevada das formas de luta pela vida. Se, nos primeiros esses homens instrumentos da vida, por meio dos quais ela reali-
degraus da evolução biológica, tal luta consiste apenas em sal- za seus fins. Fazem-se intérpretes de seus desígnios e executores
var, por qualquer meio rude e feroz, a própria existência contra de seus planos. Têm sempre, por isso, nova mensagem a comu-
os elementos hostis e o assalto das feras, e, hoje, esta mesma lu- nicar à humanidade, e a sua função é sempre de modeladores,
ta assumiu formas de competição política e econômica, próprias qualquer que seja o seu tipo particular e a missão a executar. É
da vida social, ela pode assumir, no entanto, para alguns bióti- sempre aos mais adiantados que compete, por força da lei da vi-
pos mais adiantados, outra forma, na qual a luta se dirige ao la- da, guiar o mundo em todas as suas formas. Assim quer a vida, e
do humano mais involuído, específico do primitivo feroz, lado de fato acontece assim, mesmo que eles não tenham o poder po-
que ainda sobrevive em nossos instintos. Trata-se de luta para lítico, bélico ou econômico, e ainda que seus semelhantes os re-
superar o plano biológico do animal, de que faz parte ainda o neguem e matem. É uma realidade biológica indiscutível o fato
nosso corpo físico. Significa isto libertar-se das formas de exis- de serem eles mais evoluídos em relação à média, e isto é muito
tência inferior, para ter acesso a outras superiores, não só na importante para a vida e suas finalidades. As massas nada sa-
forma de progresso individual de quem realiza essa luta, mas bem, sendo assim levadas a desobedecê-los, porque eles são di-
também na forma de progresso coletivo para os povos, guiados ferentes e delas se distanciaram pela evolução. As massas
assim a formas mais evoluídas de convivência. acham-nos diferentes porque eles participam pouco em seus ví-
Tratando-se então de verdadeiras funções biológicas, a vida cios e defeitos, que tanto irmanam os inferiores. Por isso procu-
as confia a algumas células do organismo-humanidade, constitu- ram rejeitá-los e, às vezes, os perseguem até matá-los.
ídas por elementos especializados e selecionados, como aconte- Esta é a luta trágica dos mais evoluídos contra os menos
ce para as células nervosas do corpo humano. Produz assim a evoluídos, a fim de fazê-los progredir, justamente estes, que de-
vida, em quantidade e qualidade proporcionadas ao tempo e ao sejariam dominar e se julgam modelo de vida, biótipo exem-
trabalho a executar, alguns tipos de super-homens, particular- plar. O tipo normal, ainda hoje de valor tão duvidoso, não é
mente aptos a essas funções. Eles podem tomar a forma de he- considerado como o que todos deveriam ser? E quem não é as-
2 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
sim é anormal. Então todos se apressam a entrar nas filas da função biológica que a santidade tem em relação ao progresso
normalidade, pouco importando quanto valha ela, contanto que religioso, moral e espiritual, que é sem dúvida um aspecto im-
não fiquem isolados e, portanto, fora da lei e condenados. O pe- portantíssimo do progresso social, sobre o qual ele tem grande
so tremendo da ignorância da grande massa humana é o lastro influência. Mesmo na santidade há uma função biológica, que é
enorme que pende dos ombros do mais evoluído que tenta no- também fascínio, isto é, atração, com um apelo ao instinto, con-
vos caminhos, com riscos e perigos seus apenas, ao passo que vidando a aderir para que se cumpra a evolução. A veneração
os outros ficam a olhar, prontos para condená-lo logo que caia, pelo santo é uma atitude que existe porque corresponde aos fins
prontos para agredi-lo por inveja logo que ele triunfe. Com esse da vida, assim como a admiração que tem pelo homem a mu-
peso às costas, que representa o misoneísmo, inércia do passa- lher, um ser muito mais fraco que ele.
do, ele deve subir os íngremes degraus da evolução sozinho. A O ideal é loucura, e o mundo o sabe. Entretanto, tendo que
seu lado estão apenas as forças da vida, o pensamento da histó- evolver, o mundo tem fome do que é novo e, para conquistá-lo,
ria, a vontade de Deus, que impõe o progresso. tem necessidade de tentar também o absurdo. As grandes con-
Esse homem deve enfrentar e conseguir superar todas as re- quistas da civilização foram vitórias conseguidas constrangen-
sistências que lhe opõem os seus semelhantes, apesar de nem do o absurdo a tornar-se lógico e atual, pelas condições de vida
mesmos eles saberem porquê, mas que a vida usa como meio que se mudaram. Se não houvesse razão biológica, jamais o
de verificação do valor do escolhido, que deve dar prova de sa- subconsciente das massas tributaria homenagens ao gênio, ao
ber vencer, dado que o alto monte da evolução tem que ser es- herói, ao santo, homenagem que continua mesmo depois de ter
calado mediante esforço nosso. Quando, vencendo tudo com morrido o homem e dele já não se possa tirar mais vantagem
suas forças, o homem superior dá provas de sê-lo verdadeira- alguma. Não basta o interesse de um grupo de sequazes para
mente, então as multidões ignaras, também dessa vez sem saber explicar a sobrevivência do seu ideal, que é uma corrente cole-
porquê, o aprovam e exaltam por um instinto profundo, coman- tiva, e não um produto de grupo. E não se deixe de pensar que,
dado pela vida. Então, aquela mesma distância que antes as mesmo representando um guia, aquele ideal venerado pelas
afastava do tipo mais eleito, é o que agora as atrai, pois, neste multidões significa também uma censura contínua e uma con-
caso, distância significa justamente posição mais avançada, o denação à conduta delas. No entanto a veneração permanece.
que a vida, em seu instinto, aceita, respeita e exalta. Portanto as Então o instinto das massas sente por intuição a superioridade
multidões também aceitam, respeitam e exaltam tal ser. Tudo do super-homem e, mesmo sem saber compreender pela análi-
na vida é utilitário. Elas fazem isso porque precisam do super- se, sabe que ali está assinalada uma meta para seu porvir. Sabe
homem, e o buscam porque ele é a única antena da vida, o pio- que tal meta está longe, tanto que não sabe realizá-la hoje, con-
neiro do porvir, o único pastor que as pode guiar. As multidões siderando-a utopia. Mas ali está o farol luminoso, e aquela luz o
estão sempre à espera de chefes, de modeladores, de condutores atrai, porque, ainda que hoje pareça irrealizável utopia, repre-
em qualquer campo, para saber o que devem fazer. Necessitam senta todavia a única esperança do futuro.
e procuram um modelo para imitar, um legislador que estabele- Sabem todos muito bem que, na vida prática, não se conse-
ça a norma que devem seguir na vida, pois bem poucos sabem gue imitar um São Francisco, e bem poucos pensam em fazê-lo.
agir sozinhos. Por isso sempre estão à espera, observam e, No entanto sua figura nos enche a alma de saudade por algo de
quando o acham, ouvem, recebem, bebem e assimilam. Assim, belo, de grande e de longínquo, enche-nos a mente com a ima-
se o homem escolhido é adequado e, com a sua vitória, deu gem de um paraíso de alegrias espirituais, e nesse sonho se
prova de valor, então as multidões o constituem seu modelo aquieta nossa alma cansada. Tão dura é a realidade cotidiana,
ideal, sua bandeira e ídolo, sobre o qual projetam e concentram tão amarga é a luta pela vida e tão triste é o mundo cheio de
as suas aspirações, que a vida faz nascer em seu instinto naque- maldades e dor, que se torna alegria evadir-se em sonho e, ao
la hora, para alcançar sua finalidade, que é obter progresso. menos nele, ver realizada uma beleza irreal. Por mais que tudo
Forma-se então desse homem a lenda, o mito, a divinização, em isso nos pareça absurdo e entre no terreno do irracional, o ho-
que permanece o essencial dele, o valor biológico, o impulso mem – que o sabe, pois conhece o mundo real – não consegue,
vital. Morre o homem, mas fica sua imagem, até que tenha contudo, resistir à alegria de poder repousar da vista sufocante
cumprido a sua função biológica. E desse homem permanece das baixezas humanas, refugiando-se mais alto, num mundo
ativa, através de um símbolo ou bandeira, a ideia, até sua com- melhor. Vistas da profundeza da miséria cotidiana de uma vida
pleta atuação na vida dos povos. monótona e plana, por gente que se arrasta na estrada de desti-
Explica-se assim o fascínio exercido por tantos seres superi- nos cinzentos e insignificantes, essas figuras superiores, seja
ores diante de um mundo que, de início, os julgou loucos e que qual for o campo, aparecem como luzes ofuscantes, que reani-
julgaria louco qualquer um que tornasse a imitá-los. Mas resta o mam, provando que o progresso não é vã utopia e que o ideal é
fato de que a vida tem necessidade absoluta de renovar-se para uma força que verdadeiramente impulsiona e sustém a vida. Se
evolver. Só a evolução pode explicar-nos como é possível que tão grande parte de nós é representada pelo subconsciente, em
estes seres de exceção sejam aceitos pela multidões, absoluta- que persistem e de que ressurgem os atávicos instintos animais,
mente incapazes de compreendê-los. A admiração delas não se outra parte de nós é sem dúvida representada pelo superconsci-
pode explicar apenas como concordância passiva para imitar os ente, em que desponta, por intuição, o pressentimento da ascen-
mais cotados, que primeiramente entoaram o hino da exaltação. são e dos melhoramentos num plano mais elevado.
A concordância das multidões é própria delas e nasce por um Tudo isso parece sonho e fantasia. No entanto são estas eva-
instinto que lhes está no âmago, fazendo-as falar dessa maneira. sões do mundo positivo da realidade concreta os momentos
Além disso, ninguém saberia explicar claramente o porquê dessa mais criadores da vida. Quando a alma parece perder-se no ir-
admiração. Mas ela existe de fato. No entanto parece estranho real e no irracional, afastando-se do que parece ser a única ver-
ver como um São Francisco possa exercer um fascínio sobre o dade segura, sente-se então que algo do melhor de nós desperta
tipo normal, que está muito longe de pensar que um santo desses de um longo sono e se lança à obra de romper os limites do
possa jamais ser verdadeiramente imitado por ele. Como é que passado e transpor os velhos horizontes. São esses estranhos
podem as virtudes de renúncia desse santo – tão antivitais no impulsos do desejo ainda não manifestado que realmente lan-
plano biológico comum, tão nos antípodas dos instintos normais çam o mundo nas novas estradas da evolução, permitindo a rea-
de conquista, egoísmo e agressividade – fascinar tantas criaturas lização de um milagre que se repete sempre, pelo qual da utopia
num mundo de princípios de vida tão ferreamente utilitários, em de hoje se extrai a realidade de amanhã. Se é verdade que esta-
que perder é morrer? Só se pode explicar tudo isso pensando na mos imersos nas necessidades férreas do contingente, também é
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 3
verdade que, no fundo da alma humana, há um irrefreável e in- so se vive, por isso a insaciabilidade de subir representa o ins-
saciável anseio de subida. Daí nasce a contínua náusea do pas- tinto fundamental da vida. Indivíduos mais adiantados neste
sado e um constante e desesperado esforço para subir. Há uma caminho seguem à frente, no caminho ascensional de todos.
luta na qual a luz quer vencer as trevas. Ainda que vagamente, Inspira-os o pensamento da vida, cuja vontade os impele e os
as multidões sentem a beleza do homem superior, mas sabem ajuda. Com a técnica acima examinada, as multidões seguem,
que há muito cansaço e dificuldade em segui-lo. Apegam-se en- assimilam, avançam, e assim cumpre-se a evolução.
tão à sua memória, veneram suas relíquias, esfregam-se às pe- Neste sentido, todos os tipos de super-homem são conduto-
dras do seu túmulo, cantam-lhe hinos, para assim desafogar res de povos. No capítulo seguinte, ocupar-nos-emos sobretudo
como podem essa vaga saudade de superação que existe em ca- dos condutores políticos, fazendo a crítica do modelo que, em O
da ser humano, este anseio de infinito que nos arrasta a todos. Príncipe, nos propõe Maquiavel como exemplo. Desenvolvere-
Tudo isto é um sonho, nós sabemos. Mas sonhar é pensar e mos assim o lado sombrio e negativo do capítulo “O Chefe” de
desejar. E o pensamento e o desejo têm poder criador. Quando, A Grande Síntese, capítulo que representa o lado luz ou positi-
fortemente e durante muito tempo, pensamos em alguma coisa vo-afirmativo do problema. Só pode ser verdadeiramente Chefe
e cremos nela, no fim ela passa a existir. Assim, aqueles mode- quem pertence ao biótipo do super-homem, que acima traçamos,
los ideais que a humanidade forma com seus elementos mais ainda que não apresente os graus mais elevados. Não é necessá-
evoluídos, servem-lhe para criar correntes psicológicas que de- rio que seja um santo, um gênio ou um herói. Mas é sempre um
pois, pela longa repetição, cada vez mais são assimiladas e fi- pastor, com uma função que, embora em parte de administração,
xadas nas qualidades da estirpe. É a ideia que plasma a vida, é sobretudo de ação. Contudo é sempre a locomotiva de um trem
precedendo e antecipando suas formas futuras. Assim, a vida que arrasta atrás de si todo o comboio de um povo.
lança o pensamento no futuro ignoto, agarrando-se a ele como O Chefe é um condutor de massas dentro dos limites de seu
utopia, que é sem dúvida também esperança. Então, esperando- tempo, nação e função, atento especialmente a realizações prá-
o, saboreando-o e antecipando-o, finalmente se fixa nele como ticas e imediatas. Mas, se bem que em dimensões mais reduzi-
realização concreta. Mediante esse processo gradual de con- das que o santo, gênio ou herói, sempre deverá ser um intérpre-
quista, lentamente os ideais se tornam realidade. te da história de seu tempo e um executor da vontade dela, cujo
Morto o super-homem, permanece o seu modelo. Iniciada pensamento chegará à atuação através da técnica acima exami-
depois a corrente de psicologia coletiva, pelo consenso público nada. Um chefe deve, portanto, saber como funciona a psicolo-
das pessoas mais destacadas, reforçada pela adesão dos grupos gia coletiva. É o conhecimento dessa técnica que lhe dará a
dos sequazes e pela concordância instintiva de muitos, ela chave do domínio sobre as multidões, indicando-lhe a que im-
cresce por si, porque a imitação, meio pelo qual funcionam as pulsos elas reagem. Assim, um homem de coragem, que, com a
multidões, incumbe-se de fazer o resto. As coletividades pen- voz elevada e de maneira a ser ouvido por todos, afirme ideolo-
sam e agem por sintonia, por correntes. Vemos que cada indi- gias sãs – produto não de um só indivíduo, mas sim do pensa-
víduo olha mais ou menos em redor de si para ver como os ou- mento da vida, portanto na linha do progresso e de acordo com
tros fazem, porque acha que a verdade é decidida pelo que a as suas leis – deve forçosamente encontrar no profundo do ins-
maioria pensa e faz e que aquele que não age como a maioria tinto da coletividade, em que fala a vida, consenso geral e acei-
erra. Cada indivíduo tem, mais ou menos, em grande monta a tação. Se o condutor souber compreender bem e aceitar o pen-
opinião pública e torna-se escravo do julgamento do próximo, samento da história em relação a seu tempo, ele não poderá
tendendo sempre a mimetizar-se com a cor dominante e a se- deixar de encontrar-se com este mesmo pensamento, que apro-
guir a correnteza, pois apenas nela se sente aprovado e seguro. va e sanciona sua obra, falando-lhe não a ele diretamente, mas
Bem poucos têm autonomia de julgamento. As massas funcio- do mais fundo instinto das massas. O segredo para obter sua
nam com a psicologia do rebanho. adesão está, com efeito, em procurar o que reclama o instinto
Fizemos assim, nestas páginas, a análise racional do ideal, vital delas. E esse instinto coletivo, não é racional nem consci-
desde sua formação, desenvolvimento e função biológica, até à ente, mas sim intuição, que de maneira nenhuma é cega. O se-
sua realização, conquanto esta pareça utopia. Quem tiver com- gredo do grande condutor de povos é tornar-se fiel instrumento
preendido como esse jogo de forças opera na evolução da vida, da vontade da vida no caso particular que ele dirige, para tradu-
não achará mais utópico falar do advento de um novo tipo de zir com a ação, na realidade concreta, os imperativos da histó-
civilização no III Milênio, ou seja, a realização na Terra do rei- ria, sabendo achá-los e lê-los nos lugares que estão impressos,
no de Deus. Se este reino corresponde a um anseio da alma isto é, no pensamento dela, na linguagem dos acontecimentos,
humana, a um instinto da vida, que aspira ao melhoramento, se no subconsciente das massas. Elas sentem, mas não sabem ex-
este é o sonho de quem mais pensa e de quem mais sofre, como primir o seu pensamento com palavras, e procuram um homem
poderá tudo isso resolver-se em nada. Desde quantos milênios que o exprima e personifique para depois ajudá-las a traduzi-lo
vem o homem dilacerado invocando que a justiça triunfe? O em ato. Enquanto o condutor que age só por diretivas de seu
homem faz a guerra, mas anseia a paz; faz o mal, mas anseia o egoísmo pessoal, tentando com elas forçar a história e impô-las
bem; odeia, mas está sedento de amor. Se existe esse desejo no aos povos, tem pequena probabilidade de êxito, o condutor que
fundo da alma humana, daí fazendo pressão com tenacidade pa- se enquadra no movimento das forças que querem o progresso,
ra realizar-se, e se ele também representa uma força da vida e fazendo de sua obra uma função biológica e de sua vida uma
um poder criador, como poderá tudo isso ficar sem efeito? O missão, tem muito maior probabilidade de triunfar, avançando
exame crítico que até aqui vimos fazendo nos diz que, mesmo pelos grandes caminhos da vida.
falando apenas racionalmente, o fato de esperarmos uma nova Examinamos assim a função biológica do ideal e do super-
civilização no III Milênio não é sonho nem utopia. homem no caminho da história e na economia da vida, isto é, o
Vimos a técnica usada pela vida para atingir essas forma- lado luminoso, positivo e construtivo do problema. É assim o
ções. É toda ela o desenvolvimento de uma semente, isto é, de mundo, visto dos planos mais altos. Mas já observamos que
um estado de latência do qual podem revelar-se todas as possi- cruel e feroz realidade biológica se aninha nos planos inferiores
bilidades. A existência não é só vontade de viver. É também, e da animalidade humana, mentindo e torcendo a cada passo es-
sobretudo, vontade de evoluir. Há na vida uma lei, e esta não é sas afirmações, colocando empecilhos à sua realização. No
só o pensamento que dirige, mas também a vontade que impõe próximo capítulo enfrentaremos em cheio outro tipo de condu-
a sua atuação. A vontade fundamental desta lei é evoluir, por- tor de homens, qual nos mostra Maquiavel em seu Príncipe,
que o universo caído “deve” voltar à perfeição de Deus. Por is- que é o super-homem ao negativo, isto é, o herói do egoísmo,
4 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
da violência e da bestialidade, o super-homem das virtudes às da procura repeli-las através do instinto. É mister reconhecer
avessas, seguindo o princípio satânico, como nos mostrou Ni- que a vida é utilitária. É necessário respeitar esse seu utilitaris-
etzche. Para que o nosso estudo seja positivo, resistente aos mo defensivo e protetor. Infelizmente, os pregadores de virtude,
ataques da crítica, devemos nós mesmos prever todas objeções muitas vezes, a sustentam só em vantagem do próprio grupo e
que, partindo de indiscutíveis verificações de fato, tiradas da em dano dos demais. É natural então que o homem se rebele. A
realidade da vida, estejam bem armadas para demonstrar que o virtude deve engrandecer a vida, desenvolvê-la, e não sufocá-la;
ideal é um absurdo inaplicável no mundo de hoje, a fim de que deve transportá-la a planos mais altos, para alimentá-la e dar-
possamos comprovar que conhecemos bem essas verdades do lhe potência, fazendo-a expandir-se e desenvolver-se; deve,
mundo inferior, tomando-as como nosso ponto de partida e ele- portanto, encorajar, e não reprimir essa conquista, porque a vi-
vando as nossas construções ideais justamente sobre tal estado da só se pode mover pela conquista. Ai de quem se mantém ex-
de fato, cuja verdade é uma realidade que só os ingênuos so- clusivamente no lado negativo e renunciador da virtude. É in-
nhadores podem desconhecer ou esquecer. dispensável mostrar o lado expansionista da vida, porque é jus-
O defeito que é apontado a tantos idealistas, o qual quere- to que só este atraia, dado que o homem é feito para crescer,
mos evitar, é justamente o fato de não terem levado em conta subir, melhorar, e não para regredir. A marcha da vida é para
essa realidade. As nossas afirmações, que parecem utopias a frente, não para trás. Aceite-se a virtude da renúncia e do so-
quem fica parado na superfície das coisas, podem e devem frimento, mas no sentido utilitário que a sabedoria da vida co-
achar, numa lógica diversa, pertencente a planos mais elevados, locou em nosso instinto, isto é, em vista de uma recompensa,
baseada em pontos de referencia diferentes, a sua demonstração que consiste na conquista, em termos de felicidade, de uma vi-
positiva e as suas bases seguras. Ao homem atual, que ignora o da mais ampla num plano mais alto.
tremendo peso do imponderável, devemos mostrar a solidez Foram escritos muitos livros como este, que pregam belas
desses novos pontos de apoio, que é tão grande como aquele coisas. Mas aqui oferecemos uma coisa nova: a demonstração
em que ele tem tanta confiança, só porque está perto dele e, racional da vantagem de fazer o bem, assim como o grave dano
portanto, conhece bem, ao passo que os outros pontos lhe esca- pessoal de fazer o mal. Oferecemos, pois, ao leitor sábio, de um
pam quase por completo. A nossa posição é de fé, mas quer ser lado, a perspectiva real de uma vantagem e, do outro, de um
de uma crença férrea; é hoje de antecipação utópica, mas quer dano para si. Conhecemos o homem e sabemos que estas são as
sê-lo de forma positiva, controlada e calculada; o nosso ideal é únicas molas que o movem, os únicos impulsos a que obedece.
sonho, mas feito de olhos abertos, dando-se conta de todas as Sabemos que esses livros, que falam de belos ideais, são depois
dificuldades que se opõem à sua realização. explorados por homens camuflados de idealistas, para seus inte-
Acredita o leitor que não conhecemos nós a ilimitada velha- resses. Isto já aconteceu muitas vezes e poderá ocorrer também
caria humana? com este volume e com os demais da nossa obra. A esses, con-
E sabemos também que muitos sonhadores pouco positivos tudo, podemos advertir que nossos princípios se baseiam na
mais prejudicaram do que ajudaram o progresso humano, por presença demonstrada de uma lei para cujas reações não há dis-
serem inatingíveis os seus sonhos, mostrando com isto como o tância de tempo ou de espaço nem barreiras de força ou astúcia
ideal é muitas vezes irrealizável. Serviu assim a sua boa fé pou- que possam salvá-los, se a violarem. Nós só possuímos as ar-
ca controlada para dar razão aos céticos. mas do amor e da inteligência, próprias aos planos superiores.
Sabemos bem que os nobres apelos à virtude, à religião, ao Avisamos, porém, que, contra os transgressores da Lei, há uma
dever, ao sacrifício, à fraternidade, ao progresso, foram explo- polícia do imponderável, armada de reações fatais, das quais
rados com frequência por gente astuta, para satisfazer os seus não se escapa. Nós, que não temos poder algum e nem direito
próprios interesses e conseguir melhor lugar na vida. Conhece- de julgar quem o mereça ou não, queremos apenas mostrar aos
mos muito bem os truques de tantos pseudo-super-homens, que cegos como funciona a Lei e com que terríveis consequências
se arvoram em condutores apenas para chegar às honras e ao pode ela nos golpear se o merecermos, pouco importando se
bem-estar, abraçam os próprios companheiros e amam os pró- não cremos nela e dizemos que nada disso é verdadeiro.
prios prosélitos apenas para fazer deles um pedestal ao seu po- Os ideais fazem parte dos equilíbrios da vida, e quem os re-
der, e depois os abandonam, após havê-los explorado apenas nega ou os trai ou os explora vai de encontro à vida, e a vida irá
em sua exclusiva vantagem. Conhecemos tudo isso e não nos contra ele. Não dizemos que a triste realidade biológica da bes-
iludimos, julgando que, na vida, acharemos homens diferentes. tialidade humana não seja verdadeira. Mas sabemos que, ao la-
Esquecer os fatos e pedir o impossível é o que faz naufragar os do dessa verdade, há também a verdade mais alta dos ideais e
ideais. Não queremos, pois, construir sobre o sonho, mas no que esta faz pressão para realizar-se, lutando para vencer e so-
terreno sólido da dura, ainda que hostil, realidade da vida. brepujar a outra triste realidade biológica. Ao lado do estado
Pretendemos uma coisa mais simples e mais positiva. Não involuído do homem, em que se baseiam os negadores do ideal,
contar de jeito nenhum com a bondade dos homens, coisa muito há uma realidade igualmente positiva, que é a lei do progresso.
rara para se poder contar com ela, mas apenas com um pouco Se o homem ainda está atrasado, a evolução permanece sempre
da sua inteligência, dado que, ao praticar o mal, eles demons- como justificação para seu existir, seu lutar e seu sofrer, consti-
tram possuí-la em grau elevado. Fazendo apelo apenas a essa tuindo sua permanente meta de vida. O pensador equilibrado
inteligência, desejamos demonstrar-lhes a vantagem enorme, não deve ser apenas um idealista que perde o contato com a
mesmo no sentido utilitário e egoístico, de fazer o bem aos ou- realidade, nem um positivista negador de qualquer idealismo. A
tros, porque esse bem é também deles; demonstrar que há uma realidade e a ideia são os dois extremos de nosso caminho evo-
lei que eles ignoram, pela qual ajudar o próximo é ajudar a to- lutivo, são o hoje e o amanhã de nossa vida, são dois polos do
dos e, portanto, também a si mesmo; ensinar-lhes esse egoísmo nosso mundo, entre os quais oscilam e se realizam todos os
mais vasto, que abrange, em seu próprio eu, também o seu se- nossos movimentos. Isolar-se em qualquer dos dois significa
melhante e inclui, na vantagem própria, também a vantagem afastar-se da verdade e ficar mutilado numa visão unilateral. Só
dos outros. É um problema de lógica, é uma mecânica de for- quem se colocou no meio dos dois extremos pode vê-los e ava-
ças, fatos que, claramente explicados, não podem ser repelidos liá-los, ambos ao mesmo tempo, isto é, observar o céu em fun-
por uma inteligência normal. Se esta se rebelou até hoje a tantas ção da terra e a terra em função do céu. Só ele pode dizer aos
exortações à virtude, foi porque se fez dessa virtude uma agres- sonhadores do ideal: “Cuidado, pois a terra é bem diferente, e é
são à vida, algo que tenta sufocá-la e mutilá-la com renúncias, difícil fazer descer a ela tanta beleza”. Só ele pode dizer aos
que, por serem biologicamente contraproducentes, a própria vi- homens práticos do mundo: “Cuidado, pois acima da terra há o
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 5
céu, e sem ele a terra não pode viver; cuidado, pois além do pretender sufocar a vida, nem se deve utilizar os princípios ide-
presente há o amanhã, em cuja direção forçosamente tudo há de ais para esmagar o próximo, a fim de vencê-lo na luta pela vida
caminhar e sem o qual o presente não teria significação‟. e substituir-se a ele em posições vantajosas. Ao pedir-se duros
Sabemos bem que a realização do ideal é árdua. Mas isso sacrifícios à natureza humana em favor da evolução, é preciso
não quer dizer que ele não é coisa verdadeira. Os maiores ho- ter em conta que ela deve também viver e não pode ficar sufo-
mens da humanidade lutaram e muitas vezes morreram só por cada. Mas, infelizmente, muitas vezes se estabelece a tábua de
isso. Não o conseguiram, dir-se-á, mas a humanidade, mesmo valores só em função da própria utilidade e, com frequência, a
não os imitando, admira-os e venera-os. O homem é animal, no pregação dos ideais se faz apenas em favor próprio, para a vitó-
entanto tem fome de subir. O animal tem vergonha de sê-lo e ria dos interesses da própria casta. É indispensável recordar que
aspira a tornar-se anjo. Subir é a lei, a primeira paixão, o má- a luta pela vida invade e penetra tudo no mundo. Portanto, se
ximo impulso da vida. Dir-se-á, no entanto, que os dois milê- quisermos obter e construir com justiça – ou seja, em forma du-
nios de cristianismo também poderiam chamar-se dois milênios rável, porque equilibrada, isto é, sem as inevitáveis reações –
de exploração de Cristo, com outras finalidades, ao passo que o teremos que levar em conta o direito à vida que existe também
homem permaneceu mais ou menos o mesmo. Dir-se-á que os do lado oposto, essa vida que às vezes queremos esmagar em
ideais, na Terra, parecem servir para não serem postos em prá- nome de virtudes que, naturalmente, supomos deverem existir
tica, mas só para serem pregados e explorados em vantagem de antes nos outros que em nós. Se tantos ótimos princípios são in-
alguns homens ladinos, que os utilizam como uma bandeira felizmente sustentados no mundo, por vezes calorosamente, isto
com a qual possam cobrir melhor o próprio jogo, que é conse- acontece porque o homem conseguiu transformá-los em armas
guir um lugar melhor na vida. Parece que na Terra as verdades de ataque contra o próximo, na luta pela vida.
superiores só podem aparecer sob a forma de mentira. E se O nosso mundo assenta-se mais sobre sistemas do que sobre
houver algum idealista, os seus escritos e trabalhos servem o indivíduo. Talvez tenha decaído a tal ponto a fé no valor do
apenas para melhor enganar o próximo, cuja boa fé é mais fa- homem, que ela se reduziu a ter que prescindir dele, confiando só
cilmente conquistada quando se fala em nome de um ideal que na perfeição do sistema, que deveria sanar tudo. Talvez tenha
dê maior garantia de honestidade. chegado o orgulho humano a ponto de crer que uma organização
Estes livros também, especialmente depois de morto e colo- perfeita e um sistema de normas possam suprir a má qualidade da
cado definitivamente sob silêncio o seu autor terreno, correm es- matéria prima, que é o homem. É também verdade que o sistema
se perigo, podendo ser utilizados quem sabe por quem e quem pode ser uma escola para fazer o homem, como, por exemplo, o
sabe para que fins. Mas, justamente por isso, procuramos colo- sistema representativo pode servir para ensinar a saber votar,
car-nos em contato com a dura realidade da vida, denunciando formando, através de duras provas, uma consciência coletiva po-
todas as suas traições, demonstrando conhecê-las e trabalhando lítica. Mas é também verdade que, enquanto o homem não tiver
em seu próprio terreno. Quisemos dar-nos bem conta da grande aprendido, o sistema não poderá suprir os erros dele. Dizia Giu-
distância entre a vida real e os princípios ideais. Não quisemos seppe Mazzini, nos Deveres do Homem: “Os homens bons tor-
iludir-nos com o otimismo dos homens levianos. Quisemos dar- nam boas as más organizações, e os maus tornam más as boas”.
nos conta objetivamente de que estamos construindo sobre a la- Acredita-se hoje que se possa melhorar alegando direitos.
ma, mas para concluir, porém, que é fatal avançar, e o mundo Não! Só se pode progredir através do esforço de cada um atra-
avançará. Quisemos nós mesmos, em primeiro lugar, procurar vés dos séculos. Vê-se, assim, como é diferente da resposta de
demolir a nossa fé, para que dela permanecesse apenas o que Maquiavel aquela dada por Mazzini: “... nada conseguireis se-
tem a solidez do ferro. Quisemos reconhecer todos os vícios e não melhorando; não conquistareis o exercício de vosso direito
defeitos do homem, fazendo-nos céticos até ao fundo, para sair- senão merecendo-o com o sacrifício, com a atividade, com o
mos mais aguerridos de um tal banho de ceticismo. Aí, então, o amor. Se procurardes em nome de um dever cumprido ou a
que resta do ideal não é mais uma fantasia fácil de mente leviana cumprir, obtereis; se procurardes em nome do egoísmo, em
no terreno do imponderável, mas adquire a evidência da luz e a nome de não sei que direito ao bem-estar que vos ensinam os
solidez da pedra. Assim, e só assim, será possível conseguir con- homens do materialismo, só conseguireis triunfos de uma hora,
jugar a verdade bestial de Maquiavel com os mais altos ideais do seguidos por tremendas desilusões. Os que vos falam em nome
espírito, como dois momentos bem compreensíveis, dado que do bem-estar, da felicidade material, vos trairão. Também eles
logicamente conexos, de uma mesma verdade em evolução. procuram o seu bem-estar, confraternizam-se convosco como
Reconhece-se, assim, que o poder devia ser missão, mas um elemento de força, enquanto têm obstáculos a superar, para
também, visto hoje a vida exigir uma compensação, aceita-se conquistá-lo, e, logo que o consigam com vosso auxílio, vos
que seja natural o homem, após haver se esforçado para chegar abandonarão, para tranquilamente gozar a sua conquista. Esta
na posição conquistada, sentir-se no direito de gozar o fruto de é a história do último meio século e se chama materialismo”.
seu esforço. Ele não pode, então, ocupar-se do bem do povo, Isso escrevia Mazzini em 1860, sendo também hoje absoluta-
mas só de seu bem, dado que o povo faz o mesmo para si pró- mente verdadeiro. E conclui: “... o materialismo vos arrasta
prio e a lei de exploração é universal. Mas também se reconhe- inevitavelmente, com o culto dos interesses, ao egoísmo e à
ce que, à força de abusar e errar e, portanto, de pagar, o homem anarquia”. É assim que o materialismo ameaça levar o mundo à
tem por fim que aprender, ainda que à sua custa, e, aprendendo, destruição, com o fim da civilização europeia.
tem que evolver, isto é, caminhar para a realização do ideal. Já Nos capítulos do Apocalipse no volume Profecias, vimos
é mais do que conhecido agora o velho sistema de pregação dos como o mundo vive debaixo de grandes ameaças, numa era de
ideais com o fito de exploração. Mas, se um interesse não hou- destrucionismo. Mas é uma destruição que consiste apenas nu-
vera, quem faria alguma coisa no mundo? Não se pode preten- ma condição para reconstruir melhor. Em sua sábia economia, é
der que a vida não seja utilitária. Preciso é reconhecer-lhe esse só com essa condição que a vida destrói. Depois de nos termos
direito, que está na sua lógica e em seus equilíbrios. O que é ocupado alhures especialmente do fim do mundo velho, ocupar-
preciso é apenas passar a um utilitarismo mais inteligente e nos-emos aqui dos princípios sobre os quais terá que ser recons-
mais universal, que não constitua dano para ninguém e seja truído o novo. O contraste que o leitor encontra nesse volume,
vantagem para um número cada vez maior de pessoas. na luta entre a realidade biológica e o ideal, entre o velho que rui
Não se pode demolir o velho com agressão, para destruí-lo, e o novo que nasce, entre as trevas e a luz, que deve vencê-las, é
pois tudo que existe quer viver e, se for agredido, reage. O que apenas o espelho do que está hoje acontecendo no mundo, nesta
é preciso é transformar o velho, fazendo-o evoluir. Não se pode hora apocalíptica, em que atingimos a plenitude dos tempos.
6 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
II. CHEFE – CRÍTICA DE MAQUIAVEL lhes arrancava o nobre manto com que eles, tentando assim jus-
tificar a velhacaria humana, cobriam sua vergonhas, mas, dessa
Para todos, do chefe até ao último dos cidadãos do Estado, o forma, fez-se luz sobre a verdadeira natureza do ser humano e
que constitui seu direito particular próprio é apenas a capacida- sobre a importância preponderante da luta pela vida em todas as
de de cumprir o seu próprio dever particular. Assim qualquer suas manifestações. Apareceu assim, no condutor, a sua verda-
poder só é admissível como função social, única que dá direitos deira face de dominador, qualidade sem a qual não se podem
e poderes, e isso de acordo com o seu grau e natureza. fazer as grandes coisas. E o mundo é dirigido por condutores e
O chefe condutor de povos deveria ser um tipo biológico avança por meio deles, sejam eles escolhidos pelas revoluções,
mais evoluído que a média, emergindo, portanto, da massa do que desembocam nos absolutismos totalitários, sejam, ao invés,
povo, mas apto ao mando sobre ele, a fim de dirigi-lo para me- escolhidos pelo sistema eletivo nas livres democracias. Qual-
tas superiores. Ele deveria ser como uma ponte entre a Terra e o quer que seja a estrada pela qual cheguem ao poder, os povos,
Céu, pois deveria estar em contato com o pensamento e a von- para poderem progredir, deveriam ser sempre guiados por um
tade da história, obrando como seu intérprete e instrumento de tipo biológico mais adiantado que a média. Mas, infelizmente,
execução, ao mesmo tempo em que saberia descer ao contato os fatos até hoje, dão razão a Maquiavel e a Nietzche, porque o
com a massa do povo, para conhecer as suas necessidades e tipo biológico do condutor tem sido, com frequência, o que eles
cuidar de sua vida e progresso. descreveram. O mundo tem o instinto de ansiar como chefe um
Estes são os conceitos do capítulo precedente. Então, se estas ser superior, pertencente a planos biológicos mais elevados do
tinham que ser as características do tipo biológico do condutor que o seu atual nível animal, mas tudo permanece sonho vão
de povos, vamos agora confrontá-las com as do tipo biológico diante da dura realidade dos fatos, pelo que, para vencer e do-
que nos apresenta Maquiavel em seu Príncipe, figura de condu- minar, é indispensável a força e, para criar, mesmo no bem, é
tor traçada com um realismo impiedoso. Confrontemos, para ver mister que esse bem seja imposto.
quanto de verdade pode haver em suas afirmações tão diversas, Não queremos com isso justificar nem Nietzche nem Ma-
procurando entrar nós mesmos naquela psicologia e assumindo quiavel. Apenas queremos explicá-los. O seu erro consiste em
aquela forma mental. Só assim, partindo do biótipo do super- ter aceitado sem rebelião, até mesmo confirmando-a, essa dura
homem no negativo, tal como no-lo apresentam Maquiavel e realidade. A sua culpa é não ter procurado opor-se e libertar-se
Nietzche, poderemos construir, com inteiro conhecimento, o bi- desse mal, superando-o, em vez de havê-lo justificado como
ótipo do super-homem no positivo, substituindo o gênio maléfi- uma lei natural da vida. E isto é um consentimento tácito, uma
co da destruição pelo gênio benéfico da reconstrução. aceitação. Uma vez que o homem não deve e não pode perma-
Apresenta-nos Maquiavel, em seu Príncipe, uma figura que necer sempre no plano animal, esse reconhecimento é quase
está nos antípodas da que acima traçamos, um tipo diabólico, uma confirmação ou autorização à baixeza. Nietzche chega até
astuto e prepotente, falso e traidor, aproveitador de tudo e des- mesmo a idealizar o inferior tipo biológico apenas da força,
provido de qualquer moral. Aproximemos as duas concepções propondo-o como modelo ou tipo ideal. Tudo isto é exaltação
situadas nos antípodas. Certamente não se pode negar que, se do involuído, é reviravolta de valores, é monumento erguido ao
Maquiavel escandalizou o mundo, foi só porque mostrou des- animal. Eis em que reside o erro e a culpa desses escritores. Pa-
nudado o verdadeiro rosto de muitos chefes e a baixeza e ver- raram na realidade de superfície, sem compreender que há outra
dadeira natureza dos meios que eles usam para guiar a vida so- mais profunda, a realidade do espírito, da vontade da Lei, dos
cial. Maquiavel não nos quis dar um tipo ideal para ser imitado, impulsos da evolução, da imanência de Deus. O pensamento
porque nobre e belo, mas apenas quis verificar e mostrar-nos a humano representa uma força superior à matéria; deve dominá-
dura realidade, limitando-se, como homem positivo, ao que esta la, plasmá-la, fazê-la evoluir, e não aceitá-la tal qual é, supor-
lhe oferecia nos fatos. Os governantes da Terra, desde que exis- tando-a como seu escravo. Sente-se que a esses escritores e a
tem governos, sabiam bem as doutrinas de Maquiavel, e bem o seus afins falta algo que eles não viram, falta o sentido para
demonstra o fato de que muitas vezes as aplicaram. Mas eles ti- perceber o poder do imponderável, que, todavia, pesa muito,
nham uma moral que consistia em ocultar os seus verdadeiros mesmo na realidade histórica e social observada por eles. O seu
princípios, para dominar melhor os súditos, escondendo seu erro é o mesmo do materialismo, que parou à superfície e ago-
rosto verdadeiro de lobos sob a máscara de cordeiro. E eles só ra, quando a ciência começa a penetrar mais profundamente a
se insurgiram contra Maquiavel porque este lhes violara essa realidade, tem que repudiar muitas de sua dogmáticas afirma-
moral, expondo sinceramente a triste realidade qual ela é. Em ções. Há um mundo superior que os mais evoluídos sentem por
última análise, em seu livro O Príncipe, realiza Maquiavel um intuição e que escapa completamente a esses homens práticos
ato de grande mas de incômoda franqueza, descobrindo os se- de ação, ainda quando chegam a ser homens de estado ou filó-
gredos que movem o homem, que permaneceu lobo e ainda sofos famosos. Diante dessas superiores realidades do espírito,
funciona em cheio com as leis do plano animal, mesmo quando que eles negam porque não veem, eles se tornam crianças, inep-
sobe aos mais elevados planos de comando e às honras da gló- tos, incompetentes. Creem, em seu ceticismo, ser mais astutos e
ria de vencedor e de chefe. Esse livro foi um ato de grande bom estar mais próximos da verdade em seu sentido prático. Isto os
senso e um corajoso reconhecimento da dura realidade dos fa- faz acreditar que, ao dirigirem-se à ação, atingem a realidade.
tos. E foi também uma grande bofetada no gênero humano, No entanto são incompletos e, em certas zonas da vida, total-
descoberto em sua vergonha e ferocidade, tanto considerado na mente cegos. Assim, uma vez que lhes escapam de todo, como
hipocrisia dos governantes quanto na imbecilidade das massas. ao materialismo, os sutis valores do espírito, não podem com-
Sem falar nas leis biológicas, sem se dar conta das profun- preender nenhuma religião senão a da violência. Seu metro não
das razões pelas quais ainda hoje se comporta assim o homem, pode medir as distâncias astronômicas do sublime, que é então
sem estudar o modo de sair do pântano, Maquiavel expõe cla- repudiado e liquidado como inexistente. Sem dúvida que a luz,
ramente, sem o querer, a natureza bestial do homem, porque es- para os cegos, não existe, mas assim não ocorre ao que vê. Para
sa era a verdade que lhe caía sob os olhos. Nietzche estabelecia, eles, a tábua de valores é diferente, assim como a virtude e os
no plano filosófico, os mesmos conceitos que Maquiavel esta- meios, porque diferentes são as finalidades da vida. Savonarola,
belecera no plano político. Tiveram ambos o merecimento de entendido friamente por Maquiavel, bem diversamente reagiu
pôr a nu o que se esconde atrás da hipocrisia, corajosamente fa- às mesmas condições de seu tempo.
zendo aparecer o homem como fera que é. O mundo gritou Hoje é preciso então refazer totalmente o “príncipe” de Ma-
porque se viu descoberto. Protestaram os poderosos porque se quiavel e, embora reconhecendo a verdade desse tipo biológico,
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 7
completá-lo nas partes superiores, em que está falho. Aquele o alto, temos primeiro de analisar que dose daquela revolução
“príncipe” é um ser meio fera. Mister se torna dar-lhe a forma biológica, que é para o homem atual a verdadeira espiritualida-
humana, digna dos novos tempos. Movimentaram-se hoje ou- de, podem suportar as nossas condições atuais; temos de estu-
tras forças, e a humanidade prepara-se para enfrentar outras ex- dar antes qual é o grau de rarefação atmosférica que podem su-
periências. Estamos, é verdade, em período de destruição. Mas portar nossos pulmões ainda não habituados, sem que fiquemos
é justamente nessa fase que se prepara a reconstrução. Destrui- sufocados, sem respiração. Sem dúvida, uma grande fé e um
ção e reconstrução ao mesmo tempo, o que significa que os ve- desejo ardente são os impulsos mais adequados a nos arrancar
lhos conceitos materialistas são demolidos e um novo edifício de baixo para nos lançar para o alto. Mas os casos de seres que
se vai erguendo sobre suas ruínas. Não mais serve hoje o riso verdadeiramente os possuem são raros, ao passo que as leis bio-
sarcástico e o ateísmo cínico de um Voltaire à mesa de Frederi- lógicas são férreas para todos. Agredi-las, contra elas empe-
co, o Grande, em Sans-Souci. Hoje é mister sustentar-se uma nhando a maior batalha biológica, que é a dos santos, pode de-
crença férrea, tornada necessária pelos acontecimentos apoca- sencadear contra nós tremendas reações, pelas quais poderemos
lípticos dos tempos, tornada obrigatória por sua demonstração ser esmagados, se tivermos sido incautos e se nos empenhar-
racional, levada até à solução dos problemas últimos. mos com leviandade na luta, superestimando nossas forças. Por
Poderia parecer que, ao procurar introduzir seriamente o isso faliram tão miseravelmente tantas tentativas de superação,
elemento moral na vida política, quiséramos acrescentar uma iniciadas sem levar em conta tudo isso.
mentira inédita, de novo estilo, às antigas muito conhecidas. Falamos de política como de um momento do fenômeno
Não. É aqui introduzido o elemento moral de forma racional, social, que é um momento do fenômeno biológico, que por sua
positiva, logicamente demonstrada, não na forma de fé, mas de vez é um momento do fenômeno cósmico. A política, portanto,
evidente realidade, que corresponde a uma nova ordem de fe- é toda colocada logicamente num quadro de filosofia do uni-
nômenos objetivos, a que o mundo, em sua cegueira e posição verso. Vemos, pois, como, no atual plano humano da vida, é
involuída, deu muito pouco valor até hoje. Queremos aqui intro- verdadeiro o “príncipe” de Maquiavel e que dificuldade existe
duzir o elemento moral na política porque esta faz parte da vida, em introduzir nesse plano o elemento moral e espiritual. Na
que se baseia também nas leis morais, as quais não se relacio- vida social, o cristianismo luta em vão há dois milênios neste
nam apenas com a fé e o ideal, mas fazem parte integrante das sentido. Mas justamente quem analisa racionalmente o fenô-
leis biológicas. Queremos fazer compreender que, diante de tais meno, dando-se conta de todas as dificuldades, é que está mais
leis dominantes no campo ético, não se pode permanecer agnós- apto a orientá-lo no sentido positivo, com maior probabilidade
ticos, assim como não se pode fazê-lo diante das outras leis da de êxito. Em outros termos, queremos ver aqui, no atual grau
vida. Queremos fazer compreender que as normas da retidão de evolução humana, quanto possa a política conter de elemen-
moral não são o derivado de uma opinião pessoal, de que se pos- to moral e espiritual, sem cair na utopia. Só assim poderemos
sa prescindir, mas são uma realidade objetiva que penetra o nos- ficar no terreno prático, falando positivamente aos homens de
so contingente e pode, se não observarmos os seus princípios, ação de coisas que eles julgam fora de seu âmbito, para de-
ferir-nos com tremendas reações. Está hoje difundido o erro de monstrar-lhes quanto, ao contrário, estas lhe dizem respeito e
crer que esses problemas podem agnosticamente ser postos de como é perigoso ignorá-las, podendo custar caro descuidá-las.
lado e resolvidos prescindindo deles, como se fossem apenas Só desse modo pode falar-se de forma positiva, no terreno po-
produtos humanos desta ou daquela religião ou escola. Temos lítico, de elementos morais e espirituais.
que compreender, ao invés, que a humanidade está a milênios Biologicamente, os governantes são os pastores de um reba-
pagando com dores e sangue essa sua crassa ignorância de ver- nho que deles espera e exige guia e proteção. Despojados de to-
dades elementares, e isto porque vai usando mal, para seu dano, das as formas exteriores, as relações entre governantes e gover-
em vez de sua vantagem, as tremendas forças que hoje ameaçam nados, e vice-versa, são muito simples. São estabelecidas pelas
triturá-la. Por causa desse repetir e acumular de erros, chegamos exigências da luta pela vida. Reduzida a política a esta mais
hoje a uma era apocalíptica, quando se torna mais ameaçadora a simples expressão, os sistemas de escolha (seja mediante revo-
reação da Lei, que se apressa para chegar a uma solução, mesmo lução ou eleição) e os sistemas de governo (sejam totalitários ou
se esta tenha que ser a catástrofe do mundo atual. representativos), embora diversos na forma, equivalem-se na
No entanto não é difícil introduzir o elemento moral, per- substância. De qualquer modo, o condutor deve ter sempre as
tencente a uma ordem de ideias de um plano superior, em nosso mesmas qualidades, isto é, ser o mais hábil, o mais forte, o que
mundo, situado predominantemente ainda num plano animal. O dê melhores garantias de defesa, de prosperidade e de progresso.
novo elemento será introduzido com ponderação e medida, ou Isto é o que exigem os povos de seus governantes, ou seja, o
seja, na dose suportável pela realidade biológica atual, porque, cumprimento da função biológica de que se incumbem. Mas, no
em dose excessiva, poderia fazer-nos perder contato com ela e fundo, é a vida que, através do instinto dos povos, exige que ca-
transformar-se num impulso para uma utopia irrealizável. Se, da um cumpra a tarefa que lhe cabe. Hoje, o mundo discute mui-
no alto, o puro ideal pode ser uma esplêndida verdade, pode, no to os métodos pelos quais se pode chegar ao poder, quer por
entanto, representar em baixo um grave erro biológico. Temos eleição ou revolução: pela chamada livre escolha nas democra-
que nos dar conta, na ação, do plano em que trabalhamos, para cias ou pela imposição, com a eliminação dos rivais. Mas são
não cometer, em relação a ele, erros que teríamos que pagar. No apenas dois métodos diversos, em substância fundamentados
terreno prático, o sublime pode ser um erro contra o qual a vida igualmente na força e na astúcia. No caso da democracia, é a
reage depois em nossa perda. Não é verdade que se possam in- força do dinheiro, mais requintada que a força bruta, que elimina
verter, em nome do ideal, as leis de cada plano de vida, e ai de os pretendentes inimigos, sendo a astúcia menos policial e feroz.
quem, acreditando-se homem de grande fé, subverte a ordem De fato, porém, esses dois métodos, embora diferentemente evo-
com leviandade. Quando estamos imersos em certo tipo de luídos, reduzem-se no fundo à mesma luta pela vida, ainda que
princípios e forças, porque esse é nosso grau de evolução, é or- se manifestem em duas formas diversas.
gulho e loucura pretender evoluir fácil e rapidamente. A nossa A luta é a condição primordial da evolução, que é uma longa
fé tem que ser ponderada, consciente das forças da vida, das di- escada que temos de subir com esforço nosso. Daí o contínuo
ficuldades apresentadas pela evolução; deve evitar que se trans- esforço para emergir das condições inferiores da vida, vencendo
forme em uma loucura capaz de nos lançar em cheio em aven- a despeito do ambiente e a despeito de todos. Em nosso plano,
turas perigosas, que vemos tantos inconscientes tentarem, às significa essa luta o esmagamento de qualquer rival de nossa vi-
vezes com resultados desastrosos. Nesses arrebatamentos para da. Se, amanhã, ao evoluir, a seleção tomará uma forma mais
8 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
apurada, tendendo à produção de um tipo mais consciente e es- com a vida. A vida reprova nos exames matando seus alunos.
piritual, hoje a luta serve, no entanto, para a seleção do mais for- Esta é sua linguagem concreta. Rebelam-se então os povos e
te quase que somente em sentido animal, porque é este agora o matam ou depõe seu chefe, chamando-o de traidor. Traidor de
tipo biológico dominante na Terra. Em vista disso, a primeira quem? Da vida, que realmente se sente traída por quem assu-
coisa que os povos exigem de seus verdadeiros chefes é a força. miu um empenho vital sem o saber manter depois. Esse sistema
Para realizar o grande esforço da evolução, o mundo procura de liquidação poderá desaparecer com a evolução, mas é nor-
sempre a força. Por isso a mulher adora o homem, os pobres in- mal e considerado legítimo em nosso plano involuído, ainda no
vejam os ricos, os inferiores na escala social obedecem a seus nível animal. Esteja atento, pois, quem se entrega ao poder da
superiores. O chefe de um povo é, em última análise, o homem força, porque não lhe será deixada outra alternativa. Quem in-
pai de uma grande família. Mais que bondade e amor, qualida- gressa nesse terreno, se acaso perder, não poderá esperar pieda-
des femininas, pedem-se-lhe as qualidades viris do poder e da de, bondade ou justiça, pois ele mesmo, ao penetrar no terreno
capacidade de domínio, únicas que o autorizam ao mando. A vi- bélico, por mais que queira e possa justificar-se, colocou-se fo-
da exige no chefe que guia, o tipo melhor da raça, mas melhor ra do campo dessas forças, que não mais o sustentarão. Mas, se
em relação e em proporção a ela. É assim que cada povo, segun- vencer, demonstrando com isso ser verdadeiramente mais forte,
do seu grau de evolução, precisa, como chefe, de um tipo bioló- então tudo está para ele: glória, poder e até a bênção de Deus.
gico evoluído em proporção a ele, portanto nem muito involuí- Ele escreverá a história a seu modo, estabelecerá sua verdade e
do, para que não seja desprezado por estar muito baixo, nem tão a fixará numa nova ordem, em que todos os vencidos estarão
evoluído, que seja incompreendido, porque muito alto. Por isso sujeitos a ele. Poderá até revestir-se de justiceiro e, assim ca-
se diz que os povos têm o governo que merecem. Mas pode di- muflado, criar tribunais, encenar processos e emanar sentenças
zer-se também que os chefes têm o povo que merecem. Entre em nome da justiça contra seus inimigos, chamando-os de cri-
governantes e povos, se deve haver certa distância evolutiva pa- minosos de guerra ou coisa semelhante. Contudo não pense ele
ra estabelecer a superioridade do condutor, também deve haver que, se, ao contrário, tivesse perdido, não teria sido julgado e
certa afinidade, embora isso implique defeito, tal que permita a condenado com o mesmo sistema de justiça. E não é novidade
comunicação, necessária para estabelecer a sintonização. que, nas alternâncias das vicissitudes da vida, sejam vencidos
O chefe, homem pai de sua grande família, que é seu povo, é os vencedores e depurados os depuradores.
como a locomotiva de um trem que abre o caminho para frente, Esta é a realidade mais verdadeira que se acha escrita no
diante do comboio. É como o indivíduo escolhido que guia as fundo das leis biológicas. Diante desses, muitos problemas polí-
migrações das aves. Reis, imperadores, presidentes de república ticos são questões de forma, modalidades de superfície, luta para
etc., todos existiram e existem porque a vida precisa deles para que vença um homem ao invés de outro. Por trás de tudo está a
cumprimento de uma função biológica necessária: a de guia. Ao realidade biológica, que o sustenta, explica e justifica, sempre
chefe, todas as honras, a riqueza, a obediência. Mas a vida não pronta a vir à tona, saindo de sua profundidade. Diante dela, o
dá coisa alguma por nada, e o instinto dos povos o sabe. Essa sistema representativo, que a alguns parece hoje a panaceia para
homenagem não é gratuita para o chefe, mas apenas uma parte todos os males políticos, é questão de forma. Ao contrário, bio-
de um contrato bilateral, por isso o povo exige do lado oposto logicamente, substituir o único chefe de família, pai de seus fi-
capacidade, justiça, defesa. O povo obedece, paga as taxas, dá lhos, por uma assembleia eletiva de pais-de-família, escolhidos
seus filhos para que a pátria os sacrifique em defesa própria, pelos filhos – que deveriam, ao invés, obedecer ao pai, mais ve-
mas quer ser pago de tudo o que dá, para o bem de todos, com a lho e mais sábio – parece um erro. A vida se apega de preferên-
ordem interna (defesa contra as minorias agressivas), com a ga- cia ao princípio absolutista e totalitário, que é o princípio teocrá-
rantia da propriedade e da família, com sua liberdade nos limites tico da autoridade, do poder absoluto, concedido ao melhor, que
do que é lícito, com a defesa contra os inimigos externos. A o é pelo próprio plano de vida ao qual ele pertence. Mas a vida
propaganda pode criar uma psicologia artificial a seu modo, mas faz tudo isso apenas subordinando-se a uma função, de que, de-
apenas dentro desses limites. Por mais que se alardeie que um pois, exige o desempenho. As leis biológicas concedem poderes
povo navega na abundância, ele compreenderá sempre quando, absolutos, mas experimentam e examinam o indivíduo a cada
ao invés, o devora a miséria; por mais que se lhe queira conven- momento, retirando-os tão logo este não os utilize para os devi-
cer que ele vence, ele sempre perceberá quando perde. dos fins e traia, assim, a função para a qual aqueles poderes lhe
Quando, por exemplo, saindo do simples e normal terreno foram concedidos. O sistema representativo, despersonalizando
administrativo ou político, um chefe entra num jogo maior, da o poder, procura evitar essas sanções ferozes. Os sistemas totali-
vida ou morte da nação, empenhando-se numa guerra, o povo tários e de poder absoluto presumem um chefe relativamente
então desperta e apura o olhar. Os jornais, quase sempre cheios perfeito. Sendo isto muito raro, eles se transformam muitas ve-
de crônicas escandalosas ou criminais, de personalismos e so- zes em tirania ou, por inaptidão, em ruína. Diante dessas pers-
níferos, de interesses maus ou nulos – sendo talvez melhor, pectivas, resultantes de experiências bem duras da história, é que
portanto, nem lê-los – tornam-se nessa ocasião ardentes e vi- nasceu a justa reação contra os governos absolutos e totalitários.
tais, porque é forte a entrada para o jogo da vida, e eles regis- Mas um partido político, em pleno sistema parlamentar, se obti-
tram os grandes acontecimentos que constituem a história. Ins- ver a maioria (que, com o sistema de propaganda eleitoral e a
tintivamente desperta a mente dos povos, porque sentem que inconsciência das massas, nunca se sabe se realmente corres-
ocorre algo grave. Diante dos interesses da vida, as normais ponde a uma vontade da nação) pode exercer a mesma tirania
vicissitudes políticas e parlamentares têm valor de crônica e ou, por inaptidão, levar à mesma ruína.
boato de aldeia. E é este, ao contrário, o momento em que o Quem é, então, que verdadeiramente dirige uma nação? É o
chefe é mais controlado pela opinião pública, exigindo dele mesmo pensamento que dirige a história. Em uma colmeia de
que desempenhe sua função. O povo obedece e faz sacrifícios. abelhas ou em um ninho de térmitas não há nenhum chefe visí-
O chefe continua a mandar e pedir. Se o chefe vence, com ele vel. A rainha põe os ovos e é defendida, mas é quem menos
vence a nação, com ele triunfa e tripudia, aproveitando todos manda. Ninguém manda, e todos na coletividade estão subordi-
juntos dos despojos à custa do inimigo. E triunfam todos na vi- nados à função. Logo que não estejam mais em condições de
tória da vida. Se, ao invés, o chefe perde, é a vida que, nos ins- desempenhá-la, são liquidados. O que constitui o direito é ape-
tintos do povo, se sente derrotada. Ela então, através desse ins- nas a capacidade de desempenhar seu próprio dever particular.
tinto, revolta-se contra o chefe que teve a pretensão de saber Quem manda de fato então é o invisível pensamento da vida,
desempenhar uma função e não a desempenhou. Não se brinca que atribui os poderes em proporção à função e como meio de
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 9
desempenhá-la. É um mando anônimo, impessoal, onipresente, mo o deixa fechado numa realidade pequena, de resultados
o qual, na economia utilitária da vida, está ligado à função, que imediatos; sua análise, mesmo verdadeira, é tão exclusivamente
é a única que dá direitos e poderes. Assim ocorre na vida social presa apenas aos fatos concretos, dos quais não indaga as ra-
das nações. Aí, chefes e sistemas são relativos, mutáveis, fictí- zões profundas, que dá a impressão da vista curta de um míope.
cios. São pura forma ou instrumentos. Se, além deles, quiser- Ele não olha o que está atrás desses fatos nem o motivo por que
mos achar a substância, isto é, quem é que verdadeiramente acontecem. É simplista, ingênuo, superficial.
manda e dirige, temos que recorrer, como nas sociedades ani- Assim, mostra-nos Maquiavel uma realidade verdadeira, mas
mais, ao pensamento e à vontade da vida, que manobra todos, triste e chã, fechada em si mesma, sem esperança de evolução.
partindo do íntimo deles, movendo-os sem que eles se deem Corresponde essa visão ao conceito que até hoje, na prática,
conta. As massas, com efeito, sentem e manifestam o pensa- também se tem do poder, ou seja, uma exploração da posição de
mento coletivo por instinto e acham o caminho que têm de se- mando para a exclusiva vantagem egoísta pessoal. Tudo isso,
guir por intuição. Elas não saberiam dizer por que o seguem. ainda que verdadeiramente objetivo, não só põe a nu toda a ver-
Quem é então que pensa por elas e lhes instila as ideias ade- gonhosa baixeza do homem e seu estado de involuído, como
quadas ao momento? É verdade que as multidões são instigadas ainda demonstra crassa ignorância das leis da vida, na louca pre-
e lançadas, mas só até certo ponto, porque, uma vez lançadas, sunção de querer impor-se a elas. De fato, que resultados obtive-
em geral não obedecem mais, tanto que as revoluções costu- ram os numerosos sequazes de Maquiavel, senão a instabilidade
mam matar seus primeiros promotores. Quem poderia confiar de tudo e de todos, lutas e ruínas contínuas? Isso porque não
na política, se não soubesse que atrás dela e por trás dos erros, compreenderam a lei pela qual a vida tira o poder, quando esse
das loucuras e dos delitos dos homens que a fazem, existe o juí- não é usado para desempenho de uma função; porque não com-
zo e a sabedoria de um pensamento superior? Está por acaso a preenderam que a exploração para fins egoísticos é um jogo de
política fora da vida e do Cosmo? E se este está no singular e, forças instáveis, que, se não sustentadas, tende por sua natureza
portanto, como tem que ficar no singular, é dirigido pela ima- a ruir. Assim, ainda que seja a sua uma corajosa declaração de
nência de Deus, como pode a política escapar a esse poder e lei verdade, Maquiavel sanciona, no fundo, e aprova um triste esta-
universal? De fato, acima de governantes e governados, há um do de fato, o que representa não só uma autorização imoral para
chefe supremo que, dirigindo toda a vida, os dirige também pa- insistir nele, desde que vem aceito e justificado como legítimo,
ra os fins mais altos, além deles, que estão imersos na luta pelo mas representa, ao lado de um erro biológico, também uma ins-
triunfo pessoal e não podem vê-los. Então, em última análise, tigação a cair e recair nele para os incautos que nele acreditam.
quem salva as nações, apesar de todos os erros e egoísmos hu- É essa aquiescência e reconhecimento, mais do que sua ignorân-
manos, é o próprio pensamento e vontade que dirige a história, cia, que nos repugna em Maquiavel, isto é, sua total ausência de
e tudo utiliza como meio para que se cumpra a evolução. revolta, que tem de ser feita em nome de um fim mais alto, para
◘ ◘ ◘ o qual tende a vida. O que é horrível em Maquiavel não é a ver-
Observemos agora mais de perto o pensamento de Maquia- dade que ele diz, mas o fato que ele a aceita, ficando fechado
vel em seu O Príncipe, para compreender melhor por que moti- dentro dela, convencido, sem sentir a necessidade de tentar
vo e até que ponto corresponde à verdade uma linguagem tão qualquer caminho de saída. Assim, seu ceticismo congênito se
crua; para saber se podem, e até que limite, ser aceitos tais con- reduz a uma asfixiante estreiteza de visão.
ceitos e ver de que modo podem ser completados no campo es- O único terreno prático em que Maquiavel podia encontrar-
piritual, que Maquiavel ignora. Procuraremos desse modo tra- se com os fatores espirituais era o cristianismo. Mas a religião
çar uma figura mais completa do “príncipe”, no lugar daquela foi por ele relegada fora de seu tema, excluída dos negócios de
mutilada na parte superior espiritual – tão necessária à vida – Estado. Em seu terreno, os valores espirituais tinham bem pouco
que resulta da visão materialista desse escritor. Chame-se prín- peso, e deles ele só viu os homens que materialmente os repre-
cipe, rei, imperador, presidente, condutor, chefe, etc., ainda que sentavam na Terra, ligados por interesses numa coligação políti-
se mude a forma de eleição e de governo, o homem que está no ca. Além disso, ele era levado a exaltar, como Nietzche, a força,
leme de um estado tem sempre a mesma função, devendo fazer a coragem e a vitória dos homens de ação, e não podia certa-
o mesmo trabalho, pois, diante das leis da vida, sobe ao poder e mente compreender o que pode haver de concreto nas virtudes
o exerce pelas mesmas razões. Diante de um problema tão im- da humildade e espiritualidade, tão mal representada em seu
portante, qual estabelecer os atributos e o comportamento do mundo. Maquiavel nunca suspeitou que, além dessas formas,
supremo chefe de Estado, daquele que tem em mãos as rédeas houvesse uma realidade positiva, tanto quanto a descrita por ele;
da nação e é dono da alavanca de comando, diante de um pro- que houvesse valores espirituais com um peso ainda maior que
blema tão substancial para a vida dos povos, Maquiavel de- os por ele observados; que houvesse outras leis e outros princí-
monstra apenas uma psicologia prática, utilitária, com fins limi- pios, cuja ignorância e inobservância podiam produzir desastres
tados e imediatos, como o de vencer materialmente, subjugar os mesmo em seu mundo prático, que tem suas origens nessas leis
povos e permanecer no poder. Numa visão tão realística, no en- e nesses princípios. Só podemos compreender Maquiavel vendo-
tanto tão restrita, escapam-lhe completamente as mais altas o colocado no lado negativo, inferior, involuído do sistema. Mas
funções próprias ao condutor de povos, que, se quiser ser com- já vimos, nos volumes precedentes, que esta verdade só subsiste
pleto, não pode prescindir dos imponderáveis valores do espíri- nos planos inferiores e que, ao subirmos, ela desaparece, pois aí
to. Ora, um chefe assim saberá submeter e dominar, saberá entramos nos planos mais altos, em que ficam cegos os pensado-
manter sua posição, saberá vencer os rivais, mas continuará to- res desse tipo e aparecem verdades superiores, que explicam e
talmente ignorante da única razão que lhe justifica o exercício valorizam todas as coisas diversamente.
do mando, isto é, que o poder não é fim em si mesmo, mas ape- No terreno de Maquiavel, as virtudes morais têm valor nega-
nas um meio para atingir os superiores fins da vida. Falta a Ma- tivo, isto é, não são conquista atingida por superação, mas re-
quiavel uma vasta visão biológica para relacionar todas as for- núncia e perda. É natural que as coisas, vistas de baixo, mostrem
mas de vida coletiva, mesmo no mundo animal, e assim com- um aspecto oposto ao que se vê olhando-as do alto. Por isso,
preender que as leis que governam todos os seres só concedem normalmente, a bondade evangélica é confundida com fraqueza
poderes para desempenhar uma função e em proporção a ela. e ingenuidade. Cada julgamento está feito em proporção com o
Assim Maquiavel não percebeu que cometeu um erro biológico. modelo proposto. É assim que a concepção de Maquiavel pode
Falta-lhe uma visão cósmica, na qual é indispensável enquadrar parecer, a quem veja as coisas do alto, um emborcamento de va-
qualquer verdade, mesmo a menor no contingente. Seu realis- lores e uma subversão de ideais, tanto quanto estes podem pare-
10 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
cer loucas utopias se olhados de baixo. Assim, evitando todo proporcional ao valor do trabalho executado. No entanto o
princípio superior, Maquiavel nos delineia uma figura de prínci- primeiro condutor será apreciado imediatamente, e o segundo
pe bem proporcionada à sua função de domador, tal como o es- apenas muito ao fim da vida ou depois de morto, somente após
tado involuído dos povos exige dele, e, ao mesmo tempo, deixa terem sido realizadas essas coisas futuras.
bem claro, em sua objetividade, que a união que estreita entre si O homem político equilibrado deverá procurar manter-se
governantes e governados, pelo fato de basear-se no interesse entre esses dois extremos, porque, se é um dever para ele pen-
comum, transforma-se em luta quando este falha e que, portanto, sar no futuro da nação, é também uma necessidade permanecer
um santo cheio de bondade não pode governar na Terra. no poder, satisfazendo os cérebros medíocres da maioria, dos
Por isso Maquiavel nem sequer conta com a bondade de sen- quais justamente depende o poder com o sistema eletivo. O
timento do povo e aconselha o chefe a basear-se mais no terror chefe deve ser, ao mesmo tempo, um teórico e um prático ou,
que possa incutir do que no amor que possa inspirar. É mais se- pelo menos, se não tiver em si essas duas qualidades opostas,
guro ser temido do que amado. “O amor”, diz ele , “é um víncu- deve cercar-se de conselheiros que, com seus cérebros, lhe
lo que, bem depressa, é quebrado, por utilidade própria, pelos forneçam estes resultados. O teórico olha os resultados remo-
homens que são malvados, mas o temor é mantido pelo medo do tos, o prático observa os próximos. Só após longo tempo é que
castigo, que jamais desaparece”. Na mesma ordem de ideias, muitos pequenos passos do segundo poderão cobrir um passo,
desenvolvidas por Nietzche, moveu-se Hitler, seu discípulo, em muito maior, do primeiro e coincidir com ele. Este trabalha pa-
seu livro “Mein Kampf und Leben”, onde diz: “O terror não é ra os vindouros, aquele para os presentes. As duas direções são
vencido pelo espírito, mas por outro terror igual”. Pois bem, ho- complementares. O político necessita de uma bússola que o
je a completa derrota da Alemanha ensina a todos que creem no oriente e o guie não só nos casos particulares imediatos mas
terror que este não basta para vencer. Mas haverá alguém que também nas grandes linhas, sem o que caminhará às cegas,
jamais tenha aprendido as lições da história? Falou-se tanto de sem metas, e jamais poderá empreender grandes coisas. O teó-
imponderável na última guerra, sem se compreender que ele é rico, por sua vez, precisa de um executor prático, sem o que
tão ponderável, que pode destruir as nações, quando estas vio- sua visão permaneceria sem atuação. O certo é que, quanto
lam os princípios da Lei. Por esses princípios, logo que nasce maior for o político e mais longo alcance tiver, menos será
um terror, surge, por equilíbrio, um contraterror, e ambos ten- compreendido no momento. Quanto mais for pioneiro, tanto
dem a matar-se reciprocamente, para se autoeliminarem. A Lei mais tarde será exaltado. Torna-se então heroica sua vida, por-
penetra também no mundo político, e ela consiste no seguinte: que ele sacrifica-se, a si mesmo e as suas satisfações e triunfos
quem faz o mal, o faz a si mesmo, e quem faz o bem, o faz a si imediatos, renunciando às suas próprias defesas, pelo bem do
mesmo. A religião do ódio é um suicídio. A história é uma ca- futuro da nação. E, se um povo sem compreensão lhe tirar o
deia interminável de vinganças e contravinganças, que, por isso, poder, é justo que venha a cair sob domínio de chefes de me-
jamais se resolvem, gerando apenas um contínuo sofrimento. nor valor e que, assim, se retarde o seu progresso.
Torna-se indispensável, portanto, uma humanidade mais inteli- Para Maquiavel, o exercício do poder parece confiado ape-
gente e evoluída para compreender tudo isso. Pode haver, em nas a uma cadeia de traições. Mas chegará hoje o mundo a ser
sociedades mais civilizadas, outras relações, que não se consti- inteligente o bastante para compreender que isto é uma fábrica
tuam, como as atuais, no esmagamento mútuo, que predomina de males que envenenam o ar, atingindo a todos? Para Maquia-
nos planos inferiores da vida. Nos planos mais elevados, entram vel, o chefe deve ser simulador e dissimulador, porque a bonda-
em ação outras forças e outros elementos. Com a evolução, as de é rara, mas não a estupidez, e o que engana achará sempre
relações se tornam mais suaves e se aperfeiçoam, a vida se apura quem se deixe enganar. Sem dúvida, esta é a arte de fazer da
e pode triunfar de outros modos. Só os primitivos acreditam que Terra um inferno, e essa arte só pode ser executada por demô-
somente com a ferocidade se pode vencer. nios. O chefe, pois, não deve ter certas virtudes, mas deve fazer
Nos governos dos povos, é hoje necessário um duplo traba- crer que as tem. Isto, acrescenta Maquiavel, porque, tendo-as e
lho: primeiro o teórico, que vê ao longe, que descobre e indica pondo-as em prática, elas são prejudiciais: “Algo existe que pa-
a meta; depois o prático e analítico, que realiza a ação. São ne- rece virtude, mas, seguindo-a, leva à ruína; e outra coisa há que
cessárias duas vistas: uma para os horizontes longínquos, outra parecerá vício, mas, se a seguirmos, trará segurança e bem”.
para o contingente próximo. A primeira revela os princípios Mas, acrescentamos nós, quais são os verdadeiros fins da vida,
universais, dando as grandes linhas de orientação; a segunda tanto para o chefe quanto para os povos? Podem esses fins, en-
entra nos particulares, ocupando-se da atuação. A primeira é a tão, ser sacrificados, tornando fim supremo apenas governar,
bússola; a segunda, o leme. Esta deve conhecer a verdade de quando isto é somente um meio? Mas que utilitarismo míope é
Maquiavel, que está na realidade da vida, a outra deve conhecer esse, se os governantes, violando a Lei e expondo-se às suas du-
os conceitos fundamentais, que explicam tudo isso e dos quais ras reações, não poderão nem sequer alcançar seu único fim, que
tudo deriva. Um é trabalho exterior de atuação; o outro, um tra- é permanecer no poder? Isto, entretanto, não é apenas ferocidade
balho interior de compreensão. Para agir, é indispensável a e mentira, é sobretudo ignorância, é não saber compreender o
mente que dirige e o braço que executa. utilitarismo mais vasto, no qual, seguindo as leis morais, não se
É certo que, na prática, o êxito de um homem político será é exposto a estas reações destrutivas. E ignorância, ferocidade e
tanto mais fácil e rápido quanto mais ele se ocupar de resolver agressividade são as características do homem involuído. Quan-
os problemas pequenos e tangíveis, que as massas melhor to mais evolve o homem, mais lhe parece tudo isso como uma
compreendem. Essas, satisfeitas, aclamam-no então. É por esse maldade demasiadamente primitiva e prejudicial a todos, para
êxito contingente que são atraídos os chefes de menor alcance que possa continuar a ser aceita por muito tempo.
visual, pois se guiam pelo visível e imediato. Mas, se esse Continua Maquiavel: “Todos veem o que pareces, poucos
triunfo pode nascer da satisfação dos desejos do povo, ignaro sentem o que és. E esses não ousam opor-se à opinião dos mui-
dos grandes fins da história, ele é, no entanto, de efeito transi- tos”. Esquece-se, no entanto, que esse sistema, se é um hino a
tório, proporcional ao valor do trabalho realizado. Mas há ou- imbecilidade humana, realiza, à força de ferir os mais ingênuos
tro êxito, ligado a quem se dirige para as grandes metas lon- durante séculos, uma seleção que faz sobreviver apenas os mais
gínquas da nação, mesmo se, de momento, não puder satisfazer astutos, reduzindo-se a uma escola de velhacaria. Assim a im-
as massas. Este outro êxito é bem mais duradouro e muito mais becilidade diminui e vai desaparecendo e, automaticamente, o
importante, porque, abarcando horizontes mais vastos e lon- sistema se torna cada vez mais difícil de ser posto em prática e
gínquos e operando realizações maiores e mais profundas, é menos rendoso. É a lei do progresso. Acrescenta Maquiavel:
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 11
“Nas ações de todos os homens e máxime dos príncipes, olhe-se defesa contra as classes que ficaram em baixo e que não conse-
o fim: vencer e manter o Estado. Os meios serão sempre julga- guiram subir e vencer na luta. Ocorre, então, no grupo dentro da
dos honrados”. Eis que vem à tona, nua e crua, a realidade bio- classe dominante, uma repartição dos lucros da vitória.
lógica. O mundo ético é ainda uma sobreposição instável ao Quem está de fora fica a olhar de estômago vazio. Quem
mundo do animal. Existem os princípios afirmados com gritos, pertence a planos biológicos mais evoluídos se surpreende de
mas não existe sua aplicação. Não estão ainda eles incorpora- ver como, diante de um poder exercido como exploração e es-
dos, assimilados à realidade biológica, que está no fundo espe- magamento, e não como missão, não se rebelam os povos. Mas
rando e de cujo fundo sobe a lama. Transições na evolução. se é isto injustiça feroz nos planos superiores da vida, é coisa
Os súditos sonham com um chefe bom, mas apenas para ex- normal nos inferiores. Nestes, é justo que os povos escravos,
plorá-lo, agredi-lo, tirar-lhe o poder, e só param quando encon- que não têm força, não se rebelem contra os dominadores. As
tram o homem duro que Maquiavel nos descreve. Fala-se que o massas dominadas sabem que os fracos não têm direitos contra
poder deve servir para o povo. Mas que faz o povo para que o os mais fortes e que, por isso, têm de calar. Sabem que não
chefe seja bom? Agride-o ao primeiro sinal de fraqueza. Diz-se merecem a vitória, porque não conseguem se impor com a sua
que o poder é entendido como exploração egoísta do chefe, e própria prepotência e que, por isso, têm de suportar. Sabem
não como função social. Mas como pode pretender-se o contrá- que, segundo a lei de seu plano, os fracos serão justamente
rio, quando sua primeira necessidade é a autodefesa? “Ir ao en- esmagados até aprenderem a ser mais fortes. Com efeito, só
contro do povo” deve ser, pois, apenas uma bela frase. Na reali- agora, quando as massas, por sua organização, aprenderam a
dade, a ocupação daquele que detém o poder deve ser defender- fazer-se valer, é que os dirigentes as tomam em consideração.
se dos rivais, que tentam agredi-lo, para tirar-lhe aquele poder. Assim os deserdados sofrem, não porque aceitem, mas porque
Mas o povo gosta do lindo sonho de crer que os governantes só esperam uma ocasião para fazer pior, pois a lei dos vencedores
tem uma coisa a fazer: protegê-lo, pois está no poder por graça e dos vencidos é a mesma: a do mais forte. O problema é um
de Deus. Tão imensas ingenuidades coletivas, que também sa- só para todos: vencer esmagando.
bem fazer-se tão exigentes e ferozes, que chefes podem atrair Assim os vencidos ficam a olhar todas as velhacarias dos
para si? Como pretender que, numa corrente tão universal, sejam vencedores. Não sabem organizar-se e compreender melhor,
eles diferentes do tipo dominante? É inútil inventar sistemas, para fazer melhor. São todos da mesma raça. Declaram com
quando o nível médio da raça humana é o que é. melancolia que é inútil mudar o chefe, porque os outros são
Se os chefes são assim, em grande parte a culpa é também piores. Quem quer que seja que suba ao poder, isto não muda-
dos povos. Em uns e outros há uma corrente psicológica involu- ria a situação. Deploram-no, não porque pensem numa ordem
ída que arrasta todos. Bem quereriam as massas, em seu chefe, superior, mas porque não podem fazer o mesmo. Deploram-no
aquelas perfeições morais de bondade que lhes seria cômodo por inveja, convencidos de que é assim mesmo que se faz e
achar nele, para melhor aproveitá-lo, perfeições que é absurdo prontos a fazer o mesmo. Alimentam a esperança de poder
que ele tenha, porque, se as tivesse, seria logo liquidado como chegar também eles um dia a tomar parte no banquete ou, ao
chefe. Todos desejam os bons, mas para aproveitar-se deles. menos, aproveitar as sobras. Vivem, assim, com a miragem de
Assim se explicam as verdades enunciadas por Maquiavel. O conseguir um dia apoderar-se de qualquer coisa, como só o
chefe deve parecer bom, mas ai dele se o for de verdade. Só um pode fazer quem tem em mãos o poder.
chefe forte, que não se deixa esmagar pelo assalto de outrem ao Entre os que ficam de fora, a olhar de estômago vazio, são
poder, é respeitado. Dado o atual grau de evolução humana, é escolhidos os subordinados, os satélites, a clientela dos depen-
inútil apelar para a compreensão, bondade e inteligência, pois, dentes que se oferecem, contanto que ganhem algo do banque-
como diz Maquiavel, só se pode contar com o temor. Neste te. Assim podem entrar outros nas fileiras dos felizes. Nascem
mundo, só o mais forte é respeitável. daí os representantes da autoridade, mediante cessões parciais,
E se o chefe deve ser assim feito, como pretender dele aque- nascem a burocracia, os administradores, a classe dos escravos
le comportamento ideal, que é a negação da realidade da vida tal do Estado, que podem enfeitar-se com a sua libré. É a máquina
como ela é hoje no mundo humano? Deste modo, o homem che- social a serviço dos patrões. Estes mudam, por vicissitudes po-
ga ao poder emergindo das camadas sociais inferiores, com seu líticas, mas a máquina permanece, porque serve para todos.
esforço e risco, contra todos. Com isto, quer ele satisfazer seu Mas, nos escravos, fica também o instinto de subir, o huma-
instinto de subir, seu anseio de poder, de riqueza, de grandeza. no e universal instinto de dominar. E não há homem que, ao
Quando chega assim, vencendo após dura luta, como poderá vestir-se com a libré do patrão, não se sinta por si mesmo, in-
transformar-se em outro homem e seguir outro sistema? Como vestido com a autoridade dele, também um pouco patrão e não
poderá deixar de pensar, em primeiro lugar, em gozar o mereci- procure, como o fazem os chefes, utilizá-la para si. O homem é
do prêmio de seus esforços e de sua habilidade? Mas, dado o sempre o mesmo. Por isso o funcionário acredita que ele mes-
que ele é, faz-se natural que utilize o poder antes de tudo em sua mo é um pouco o Estado, como o sacerdote crê que é um pouco
vantagem e satisfação, procure defender-se dos seus inimigos e a igreja e, investindo-se da autoridade de Deus, de que ele se
submeter os seus semelhantes, porque são estas as necessidades faz ministro, é levado a dogmatizar como tal, e isto tendo por
que a vida impõe, e não há outro meio de reforçar aquilo que é base apenas suas ideias pessoais. Como ministro de Deus, ele
pedestal do seu poder. Como pode a luta pela vida desaparecer se sente um pouco investido de Sua onipotência e infalibilida-
logo no vértice da pirâmide social? E como, num mundo egoís- de. Assim o médico é levado a substituir-se às forças curadoras
ta, poderia ser o poder algo diferente de uma afirmação do eu, da natureza, tentando monopolizar em suas mãos os poderes
que se impõe no ambiente social para dominar todos? Tudo isto dela, como os ministros das religiões são levados a monopoli-
é um derivado lógico da estrutura do sistema psicológico que di- zar Deus e utilizá-lo como poder próprio. Por isso o médico é
rige a humanidade. Sem dúvida que deveria ser diferente, e caro levado a assenhorear-se do doente na luta contra os micróbios,
se pagará não o ser. Mas, enquanto o homem pensar desse mo- como o ministro de uma religião é levado a dominar as consci-
do, as coisas não poderão ser diferentes. E a psicologia da força ências, impondo-se aos mais fracos. Assim também o exército,
não pode ter como resultado senão traição, ilusões e dor. consciente de sua força, pode tentar tomar conta do poder.
A maioria dos homens tem um irrefreável instinto de domí- A lei é sempre a mesma: luta pelo domínio. Em qualquer
nio. O que vence sobre todos se torna chefe supremo. Os outros tempo, todos os grupos humanos, todas as formas de governo,
se coordenam hierarquicamente, segundo suas próprias forças. todas as classes sociais, todos os homens, em qualquer nível,
Forma-se assim uma classe dominante, que se organiza para sua assemelham-se. Não se pode culpar ninguém em particular. O
12 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
homem é feito assim, vista ele qualquer libré, manto real ou pode acreditar que seja possível sustentar-se as posições da vida
presidencial. Todos conhecem esses defeitos, mas só se veem e sem que atrás delas existam valores reais?
denunciam no grupo oposto, contra o qual se luta, porque o É inútil procurar responsáveis por tais estados de coisas e
próprio grupo é sempre dos homens perfeitos, e o outro é sem- condená-los. A culpa não é dos indivíduos, mas do grau de evo-
pre defeituoso e corrompido. A verdadeira realidade que está lução dominante, que constitui um nível geral e estabelece uma
em tantos discursos, exaltações e condenações, é a luta, luta em corrente seguida por todos. Inútil condenar, porque todos so-
que todos se igualam, onde bons e maus situam-se em todos os frem mais ou menos as consequências de seu estado atual, cas-
terrenos e se misturam em todos os grupos, sem que se possa tigando-se, assim, por si mesmos. A tudo isso correspondem os
dizer a priori que nenhum grupo seja melhor ou pior. resultados obtidos até hoje. O dano está em proporção com a
Essa visão objetiva da realidade biológica pode dar-nos do ignorância, da qual é consequência. Todos conhecem os belos
conceito de Estado uma forma mais positiva do que qualquer resultados dessa psicologia dominante. Não parecem o resulta-
outra construção artificial filosófica ou ético-jurídica. Como do de um estado de barbárie, representando um destino de con-
fundamento disso, está sempre o espírito gregário, com fim denação? Por isso é preciso dar razão a Maquiavel. Continuan-
utilitário, para ataque e defesa na luta pela vida. Estas são as do por esse caminho, aonde iremos parar? Pois, se procuramos
bases biológicas e as verdadeiras origens do Estado. Se qui- sair para nos salvar, gritam que é utopia. Mas, sendo verdade
sermos compreender os fenômenos sociais, temos sempre que que apenas nela está a salvação, deverá a utopia amanhã, após
nos referir aos princípios fundamentais da vida. É assim que, duríssimas provas, mas necessárias para aprender, tornar-se rea-
instintivamente, formam-se os grupos, e aquele que vence os lidade, se o mundo não quiser suicidar-se. Eis porque temos
demais forma a classe dominante, constituindo o Estado, que que crer na vida de uma nova civilização.
então se organiza para sua defesa e, sobretudo, para resistir em Dir-se-á: mas o mundo foi sempre assim. Não. O progresso
sua posição. Em redor desse grupo dominante rodam como sa- é um fato real. O homem pré-histórico, podemos bem imaginá-
télites as forças menores da nação, em posição mais ou menos lo, foi na época o modelo da raça humana. Se estabelecermos
privilegiada e com domínio correspondente a seu valor e pode- uma proporção, podemos imaginar o homem futuro. Então po-
rio. Neste trabalho e distribuição, todos obedecem à mesma demos dizer que o homem pré-histórico está para o homem de
imperativa e imprescindível necessidade de viver, que torna hoje como o homem de hoje está para „x‟, e será fácil, dada a
necessário também descobrir e usar todos os meios, da força à relação, achar o valor da incógnita. Não é afirmação gratuita di-
paciência, do domínio à adaptação na obediência, para sobre- zer que a forma da seleção animal terá que mudar no porvir.
viver. Ao vencedor a glória e a própria submissão, só porque Sem dúvida, até hoje esteve no sentido de produzir o tipo mais
ele representa a capacidade de guiar, que os subordinados acei- prepotente, porque isto era indispensável para conquistar o do-
tam apenas como vantagem própria e defesa. mínio do planeta, mormente sobre as outras espécies. Mas,
Como se vê, permanecemos em tudo isso no princípio do conquistado esse domínio, surge na Terra outro tipo de vida, a
egoísmo, e o edifício todo é construído sobre um jogo de ego- vida social do homem coletivo, pela qual as qualidades de for-
ísmos. Tal como é hoje o homem, é inútil pretender que o Esta- ça, ferocidade e agressividade, outrora preciosas, tornam-se ca-
do ou qualquer agrupamento humano possa ser algo diferente da dia mais contraproducentes, pois desagregam a primeira
de uma organização de egoísmos em bases estritamente utilitá- qualidade de uma comunidade, que deve ser a organicidade. É
rias. Nesse nível evolutivo, o altruísmo é um absurdo biológico. natural então que a vida, que é tão sábia, renove os seus méto-
Hoje só se pode começar dilatando lentamente esse egoísmo, dos de construção do tipo biológico melhor, através da seleção,
fazendo com que a inteligência compreenda a utilidade egoísti- e lance então uma nova técnica. O melhor que a vida quererá
ca dessa dilatação. Só podemos realizar hoje o progresso procu- então produzir será outro tipo biológico, em que predominará a
rando aumentar essa organização, de modo a tornar partícipes inteligência, pois, num mundo mais evoluído, vencer-se-á mais
de suas vantagens um número cada vez maior de cidadãos. Tra- com a inteligência do que com a força. Hoje já se guerreia mais
ta-se de conglutinar a maior parte possível do povo na classe com a ciência do que com a ferocidade. Já começa a se desen-
dominante, e esta é de fato a conquista que as massas querem volver mais essa inteligência, e, quanto mais se desenvolver,
hoje impor aos dirigentes. Esta é a tendência do progresso, que mais se compreenderá a vantagem utilitária de todos e de cada
faz pressão da parte de baixo contra o grupo social vitorioso, um de ser honestos fraternalmente, como quer o Evangelho,
que acima de tudo pensa em defender-se e estabilizar sua posi- pois, numa humanidade orgânica, esta será a linha de maior
ção. Esta é a vontade da vida, que quer evoluir, mas os gover- rendimento. Por isso Maquiavel, com suas doutrinas, ficará
nantes, em vista do estado de coisas, têm que pensar primeiro atrasado no tempo, como é hoje o homem das cavernas. Mas as
em sua defesa, mesmo porque, para se fazerem valer, essa é a gerações futuras compreenderão melhor estas coisas, pois para
necessidade mais urgente para que possam ficar no poder e, as- elas, principalmente, foram escritos estes livros.
sim, desempenhar sua função de chefes. Aos que gritam que é utopia respondemos que, muitas vezes,
Ao povo agrada o belo sonho utilitário do ser servido gratui- os jovens têm feito o que os velhos julgavam impossível, ino-
tamente pelos dirigentes. Mas, em sua ingenuidade, não sabe portuno, desaconselhável; que o mundo, a despeito de todas as
que a vida nada oferece de graça. Ignora que seu mundo é o da resistências, caminhou sempre; que, frequentemente, a utopia de
força e que o povo não será servido enquanto não tiver aprendi- hoje é a realidade de amanhã. A intuição nos dá a sensação viva
do a ser uma força e representar um valor. Quem nada vale, na- imediata da presença de uma inteligência e vontade na história,
da obtém da vida. Os governantes levarão em conta o povo, como momento da imanência de Deus no mundo. Aos historia-
quando este souber fazer-se valer pela inteligência, consciência dores presos apenas ao fato exterior, aos filósofos hipercríticos e
de si mesmo e vontade, quando representar algo no destino co- céticos, capazes de destruir até seu pensamento à força de dis-
letivo, quando souber até ser temível e impor-se aos chefes, se cussões, controles e análises, opomos a nossa percepção da rea-
necessário. Mas, nos férreos equilíbrios que balanceiam os va- lidade do mundo interior do espírito, presente em toda a parte,
lores da vida, o que pode pretender hoje uma massa amorfa, em todo fenômeno, mesmo no histórico e social. Procuramos fa-
instintiva, inconsciente, se não for guiada e explorada por quem zer com que o leitor sinta essa realidade na única forma possí-
é mais forte biologicamente, mais astuto, mais dinâmico? Que vel, ou seja, através da lógica e da demonstração racional.
pode pretender um rebanho de ovelhas senão a erva dos campos Se tivéssemos que dar um subtítulo ao volume O Príncipe,
e a tosquia? E que sabe fazer esse rebanho, quando se revolta, de Maquiavel, poderíamos dizer: “Estudo da natureza animal do
senão passar das mãos de um patrão para as de outro? Como se homem”. Seja ele chefe ou súdito, revela-se sempre o mesmo
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 13
nos conselhos desse autor. Sendo ainda dominante esse tipo bio- o próximo como a ti mesmo” não significa mais sacrifício de
lógico, é bom conhecê-lo e estudá-lo, tanto quanto é instrutivo mártir entre as feras, como acontece aos pioneiros do Evange-
observar as feras nos jardins zoológicos, para conhecer-lhes ins- lho num mundo de involuídos, mas torna-se uma posição natu-
tintos e hábitos. Continua Maquiavel: “Devendo dominar os ral de maior vantagem para todos.
soldados, não importa ser chamado cruel, pois sem esse nome Assim, o edifício cresce de pavimento em pavimento, tor-
jamais se manteve unido um exército. Foi por sua extrema bon- nando-se sempre mais belo. Sua construção é feita de andar em
dade que se rebelaram os exércitos de Cipião na Espanha. Nas- andar, cada vez com menos esforço e maior alegria, pois satisfaz
ceu isso de sua demasiada bondade. Por isso Fábio Máximo ao instinto de criar e ao anseio de subida, e isto com um trabalho
pôde chamá-lo, no Senado, corruptor da milícia romana”. cada vez menos pesado, porque ele é confiado cada vez mais à
Inútil, pois, iludir-se. O homem emerge da animalidade. Os inteligência, que se está tornando paulatinamente senhora das
primeiros graus do poder são dados pela força, pela imposição, forças da vida, obedientes apenas ao ser consciente. E assim,
pela ferocidade. Os chefes de governo do tipo descrito por Ma- transformando-se o mundo, por obra do homem, do caos em or-
quiavel descendem de domadores de feras. A posição que tem dem, ele se lhe revela sempre menos inimigo e rebelde e sempre
hoje o homem, como rei do planeta, foi desesperadamente con- mais amigo e obediente. Noutros termos, pouco a pouco, a Terra
quistada pela luta realizada com todos os meios e vencida con- se transforma de inferno em paraíso e, lentamente, desaparece
tra todas as feras rivais. Foi através desse esforço bestial, hor- do mundo Satã, isto é, a revolta, o ódio, o tormento, aparecendo
rendo para o homem civilizado, mas feito de coragem desespe- cada vez mais Deus, ou seja, a harmonia, o amor, a felicidade.
rada, sob pena de extinção da raça em caso de derrota; desse es- Assim eleva-se o edifício, e os gritos dos condenados que tive-
forço diabólico, no entanto cheio de certa potência viril, qual ram de construí-lo nos primeiros andares transformam-se no
deserdado que, sozinho, desafia os elementos e as feras inimi- canto amargurado das almas que se purificam nos planos superi-
gas e as submete; foi através dessa tremenda fadiga que o deca- ores, até se tornarem um hino de alegria e triunfo nos planos al-
ído enfrentou o caos, para levantá-lo um primeiro passo em di- tíssimos, que no céu infinito se aproximam de Deus.
reção ao primitivo estado de ordem. Os primeiros degraus da Só assim é compreensível Maquiavel, quando enquadrado,
escada estão imersos em lama e sangue. Mas, ainda que esma- com seus homens e os seus tempos, no devido plano da escala
gando, triturando e reduzindo os rebeldes à escravidão, conse- biológica. É lógico, pois, que, naqueles planos, a bondade fosse
guiu assim o homem, com mão de ferro, construir certa ordem, considerada defeito, sobretudo para os detentores do poder. É
primeiro passo na reorganização do caos para uma gradual re- lógico que, para manter unidos homens ferozes num exército ou
organização do universo, fruto do esforço imenso de todos os numa nação, indispensável fosse a ferocidade; é lógico que esta
seres, por intermédio do qual, reconstruído o edifício que eles tinha de ser a virtude do condutor e que o homem bom, não a
mesmos fizeram ruir, encontrarão Deus. possuindo, acabasse por ser um corruptor de milícias ou um
No plano de vida que Maquiavel descreve, o que ele indica destruidor de nações. Jamais um cordeiro poderá chefiar lobos.
é lei, regra e justiça. Em seu orgulho, o homem se autodeclara A política e o governo dos povos e exércitos será, pois, o últi-
ser superior, última finalidade da criação, a mais bela flor da mo dos setores sociais em que poderá penetrar a doutrina de
vida no planeta. Mas deve tudo isso ao fato de ter sabido triun- Cristo, que hoje representa uma revolução biológica, porquanto
far a despeito de tudo e de todos, exterminando os inimigos significa a passagem a um plano de vida mais alto.
sem bondade nem piedade. Os idílicos pensadores do ideal Deste exame, podemos compreender as dificuldades que de-
afirmaram que Deus criara todas as coisas apenas para prazer vem encontrar o tipo biológico do santo e os princípios de bon-
do homem. Na realidade, o homem só conseguiu possuir aqui- dade do Evangelho para que possam passar da fase de casos es-
lo que pôde arrancar à vontade inimiga, usando todos os mei- porádicos e pregação teórica à fase de realização prática, enxer-
os. A vida só se inclina e oferece regalias diante do homem tando-se na vida humana como forma vivida. Tudo isso deveria
forte, violento, vencedor. Nada é gratuito diante dela. Nenhum aplicar-se ao tipo biológico normal, mas o quanto este ainda está
escrúpulo ou piedade a impediu de condenar à extinção raças distante mostra-nos Maquiavel, descrevendo-o, quando acres-
mais fracas. E tê-lo-ia também feito com o homem, caso ele ti- centa: “Abstenha-se dos bens alheios o chefe, pois os homens
vesse sido menos forte e violento. esquecem mais depressa a morte do pai que a perda de um pa-
A bondade e o amor vêm depois. O próprio Deus de Moisés trimônio”. Até agora, em suas leis, sobretudo no campo econô-
teve que prescindir delas dada a imaturidade dos tempos e a in- mico, o Estado parte do pressuposto da má fé do cidadão e, para
volução do povo que então O adorava. Tudo isso, todavia, mos- ser obedecido, só conta com sanções penais. Que triste espetácu-
tra-nos as verdadeiras origens da ordem e do direito e nos ex- lo este pobre ser humano, esteja ele na privilegiada posição de
plica como, no plano por ele observado, Maquiavel tenha tido mando ou na de deserdado dependente, igualmente involuído e
razão. Pode representar-se a evolução como um grande edifício envolvido na mesma luta! Pobre ser, vindo ao mundo sem saber
que se vai elevando da terra para o céu. Seus primeiros pavi- o porquê, só para devorar ou ser devorado, para depois se redu-
mentos são grandes massas grosseiras de pedra, plantadas na zir a pó e assim acabar, acreditando ficar aniquilado!
rocha dura, por homens fortíssimos mas ignorantes, açoitados Continua Maquiavel: “O chefe deve manter fidelidade en-
até à dor da própria carne pelo terror de morrer e o anseio de quanto lhe for útil, e deixar de observá-la quando terminadas
viver. Em seguida, porém, através desse esforço, a inteligência as razões que o fizeram prometer. Não seria necessário isso, se
se abre e o edifício toma formas mais regulares. O trabalho se os homens fossem bons. Mas, sendo maus, da mesma forma que
torna mais racional, alcançando maiores resultados com esforço eles não manteriam fidelidade, assim não deve o chefe mantê-
cada vez menor. Assim, servir-se da inteligência e da ordem la com eles”. Assim, Maquiavel aconselha a astúcia “pela qual
torna-se cada vez mais vantajoso. Então o homem, começando saiba o chefe, com razões legítimas, colorir a não observância
a constatar seu rendimento, é levado a aproveitá-las cada vez dos pactos”. Eis como se comporta o involuído. Sua miopia
mais, devido aos mesmos princípios que regem a vida, que é psíquica ou imbecilidade o faz acreditar que tanto a traição co-
sempre utilitária. Assim, o operário construtor se torna cada vez mo a ferocidade sejam forças resolutivas. Em outros termos, em
menos animal e sempre mais homem. Desenvolve-se nele a sua ignorância das leis da vida, é levado a procurar o poder pre-
mente, que lhe permite compreender a utilidade de se discipli- ferindo descer aos planos biológicos inferiores (isto é, ao infer-
nar, de dilatar seu egoísmo até abarcar toda a humanidade e de no), em vez de subir aos planos superiores (ou seja, ao paraíso).
aprender a viver colaborando em vez de lutar, enquadrando-se Quanto seja tola essa crença deduzimos do fato de que, mesmo
com tudo isso num grande organismo coletivo, em que o “ama aplicando esses critérios a seu próprio comportamento, conti-
14 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
nuaram chover sempre derrotas e desastres sobre o gênero hu- num plano primitivo e feroz, a luta pela vida não pode assumir
mano. Isso prova que esse sistema não resolve absolutamente outra forma, tendo em vista ser o homem o que é, forma esta que
nada. O poder está no alto, e não em baixo, onde há apenas ilu- mais tarde, ao evolver, parecerá tola e contraproducente. A vida
são e dor. Por isso a humanidade se encontra hoje numa encru- quer viver e, nos planos inferiores, só pode viver assim. Nesse
zilhada: ou ela compreende que o problema da convivência na nível, isso é justo e equilibrado. Mas, logo que se suba, como
forma menos dolorosa possível só pode ser resolvido aplicando principia a fazê-lo o homem de hoje, percebe-se a injustiça da-
o método do Evangelho, por mais que pareça utopia, ou então quilo e sente-se o escândalo, porque os pontos de referência fo-
continua indefinidamente no atual estado infernal. Mas, não há ram colocados mais no alto. Para o animal, que ainda é amoral,
dúvida, a solução é uma só: tanto durará e martelará esse tor- sua lei de animal é lei justa. É preciso olhar tudo isso de frente,
mento, que o homem há de compreender um dia e tomar a deci- corajosamente, como fez Maquiavel, mas de um ponto mais al-
são de civilizar-se. Não há outra hipótese. A presença destes so- to, abarcando horizontes mais vastos, pois só assim se pode
frimentos é justificada exatamente por isso e tem a finalidade compreender tudo e permanecer orientado. Então, evitaremos
de levar o homem a achar o caminho para sair deles, evoluindo protestos inúteis de pessoas ofendidas pela nudez da crua verda-
para um plano de vida mais elevado. de e, ao contrário, admiraremos a sabedoria da vida, isto é, do
Em vista desse estado de coisas, podemos compreender qual pensamento de Deus, que sabe tirar de tal estrumeira a flor de
seja a origem do poder e da riqueza. Em si mesmo, o poder po- amanhã, do mal o bem e da ferocidade a ascensão.
de representar uma grande função, instrumento de imenso bene- Isto porque o animal também ascende. E isto ocorre por
fício, e a riqueza, se for bem usada, maravilhoso processo de meio das forças disponíveis em ação em seu plano de vida, sem
criação. Mas o que são ambas verificamo-lo ao ver que os san- necessidade do concurso de utópicos sentimentos de bondade e
tos e os melhores homens fogem delas como de uma peste. É o altruísmo, que é inútil pedir e ingênuo esperar naquele nível.
estado do involuído que, usando tudo mal, alastra-se até infec- Mais do que elementos de transformação invocados em vão,
tar tudo e tudo tornar pestífero. Dados esses métodos, como eles são, pelo contrário, o ponto de chegada de novo trecho per-
pode um homem honesto acreditar na riqueza ou no poder? No corrido no caminho evolutivo, são o resultado do embate das
entanto que instrumentos de bem e de grandeza poderão tornar- forças pertencentes ao plano inferior.
se esses meios nas mãos de um homem consciente e evoluído! Tudo torna-se lógico e claro, em seu lugar justo. A luta é um
Continua Maquiavel: “Muitas vezes, para manter o Estado, é exercício com finalidade seletiva. O esforço para evolver é o pa-
mister agir contra a fé, a caridade, a humanidade, a religião. gamento devido pelo homem, dívida que ele contraiu com a
Um príncipe deve parecer a quem o vê e ouve todo piedade, to- queda (veja o volume Deus e Universo) e é o preço de seu resga-
do fidelidade, todo integridade, todo religião”. Ora, acrescen- te. A dor é uma escola salutar para aprender a eliminar o erro.
tamos que isto, se aos primitivos pode parecer suprema argúcia, Quanto mais se sofre, mais se aprende, e, quanto mais erros se
mostra-se suprema ingenuidade ao homem mais evoluído, por- eliminam, mais a dor diminui. Ao invés de colher escândalo e
que esse método, praticado há séculos, é uma escola e talvez a pessimismo da leitura de Maquiavel, nasce aqui um hino à evo-
única coisa em que a maioria dos governantes esteve de acordo, lução e à sabedoria da vida. O homem não está ainda maduro
aplicando-a com aceitação de todos. Aconteceu, assim, que os para conceber e exercitar o poder como função social para o
povos aprenderam e bem sabem tudo isso, tanto que hoje é coi- bem coletivo. Governantes e governados têm todos conceitos di-
sa óbvia e pressuposta a má fé dos governantes bem como a dos ferentes. Exercita o poder quem venceu na luta e o exerce para
governados, que se tornaram todos profundos conhecedores e sua vantagem, dominando o povo. Só essa vantagem egoística e
hábeis entendidos nos defeitos e culpas uns dos outros. Então, imediata explica a luta de tantos para atingir os postos de man-
que defesa representa o método de Maquiavel, se ele é o ponto do. De fato, o poder não gera colaboradores, como deveria e
de partida de todo o julgamento para o próximo? Não obstante como aconteceria num plano superior, mas inimigos e rivais; re-
o constante renascer dessa planta, que é o simplório, a seleção quer força e é o prêmio egoísta para o mais forte, e não um ser-
destrutiva, operando intensamente desde séculos, mediante uma viço reconhecido por governados que o aceitam com gratidão.
desapiedada caça a tão saboreado petisco, o está tornando cada Eis então que Maquiavel se ocupa, em primeiro lugar, em
vez mais raro. E tudo isso é um progresso providencial, pois, ensinar aos governantes como se defenderem para permanecer
não se achando mais o mercado dos ingênuos, bons para serem no poder. Explica-nos ele que se evitam as conjurações quando
logrados – que, justamente por terem sido instruídos por essa as maiorias não o odeiam. Então, diz-nos ele, os rebeldes não
escola, não se deixam mais enganar – os próprios ludibriadores ousam e temem, porque não têm o consentimento da maioria. O
veem cair as armas de suas mãos e, por fim, esgotado o pro- conjurado tem medo do castigo. O chefe tem a majestade do
grama de todas as astúcias possíveis, devem abandonar tal mé- reino, a lei, o poder em ação e, se também tiver o favor popular,
todo. No fim, por eliminação, dado o crescimento progressivo nada tem a temer. Assim, Maquiavel só coloca objetivamente
do controle recíproco, só restará aos enganadores, se não quise- na balança do poder os elementos que ele julga positivos, acre-
rem ficar desacreditados, isolados e desprezados como maus, ditando que os fatores morais e espirituais não o sejam, porque
usar o sistema da retidão, sem enganos. Então o progresso po- são imponderáveis. No entanto os governantes – embora aque-
derá caminhar sem ter jamais de recorrer à qualidade de bonda- les fatores lhes pudessem servir como reforço, em virtude do
de e boa vontade, que é utopia esperar do homem de hoje. domínio que exercem esses elementos na psicologia da massa –
Nada se perde em olhar com coragem a realidade biológica apressam-se a se declarar investidos em seu poder por direito
tal qual ela é verdadeiramente. Maquiavel tem razão, mas não divino e a se fazerem aprovados, sancionados e abençoados pe-
podemos deter-nos aí, só com esse trecho limitado do terreno las autoridades religiosas, declarando-se representantes de
explorado por ele. Aquele mundo, observado assim isoladamen- Deus. Inúteis mantos, que as revoluções, quando, em virtude
te e aceito como verdade única, e não como fase de evolução, dos abusos, ainda que cometidos à sombra de Deus, são mere-
não é suficiente, sozinho, para nos fazer compreender a sabedo- cidas e os tempos estão maduros, rasgam e destroem.
ria da vida, que é sábia mesmo nas suas fases involuídas e tende Pode a vida parecer desapiedada e feroz, mas como se pode
para o que é melhor, utilizando, naturalmente, os meios do plano deixar de admirar essa sua absoluta, apesar de cruel, sincerida-
em que opera no momento. Maquiavel escandaliza-nos porque de, que põe a nu os valores reais? Como não admirar essa sua
aceita e sustenta o involuído, sem nos explicar nada. Mas a vida honestidade franca, que desmantela todas as hipocrisias e tira
não nos escandaliza em nada, porque conhecemos seus métodos do ninho todos os parasitas dos recantos mortos, onde não é lí-
e fins e sabemos onde tudo irá acabar. Temos de admitir que, cito ninguém se esconder para gozar a vida, querendo escapar
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 15
ao indispensável esforço de evoluir, que cumpre a todos? Quem ponto máximo, como santo. É mais comum ele se apresentar
é verdadeiramente honesto não pode temer essas intervenções de forma mais ou menos alta, aproximando-se do santo. Apre-
purificadoras, pois o que é puro não pode sofrer depurações. As senta-se como homem simplesmente honesto, moral, evangé-
tempestades destruidoras que a sabedoria da vida, de vez em lico, que procura tender à perfeição da santidade. O problema
quando, desencadeia no mundo são obra que destrói o corrom- interessa, portanto, a mais pessoas do que se pensa e às pró-
pido e cura. A dor é dura, mas lava e purifica, e a vida sai das prias massas, porque são elas que estão envolvidas nele, o que
provas rejuvenescida e reforçada, muito mais apta assim a dar se pode ver na veneração que tributam ao santo, exprimindo
um novo salto para frente, como não lhe não era possível no es- dessa forma, inconscientemente, uma aprovação, o que é uma
tado anterior, carregado de incrustações e abusos. exigência das leis da vida.
Procuramos, neste capítulo, colocar sob os olhos do leitor Quando vem viver na Terra algum exemplar raro do tipo bi-
esse dinamismo em ação, em que se debatem as forças da vida, ológico do santo, ou de alguém que tende a isso, verifica-se um
sempre mais construtivamente emergindo do caos. Procuramos espetáculo que relembra a descida dos mártires inermes à jaula
mostrar-lhe, em contraposição, a figura do velho tipo do ho- dos leões. Ele desce ao mundo que Maquiavel pôs a nu com
mem de poder com a do novo, da nova civilização, situado cruel verdade, como vimos nas páginas precedentes. Observe-
num plano biologicamente mais elevado. O primeiro, pobre mos. O que acontece com o cordeiro quando ele se coloca entre
ser, odiado e invejado, não é colaborador mas sim escravo da os lobos? Estes, naturalmente, começam a rodeá-lo, farejando a
opinião pública, também ela imersa na mesma psicologia de presa. Num mundo cuja maior atividade consiste em viver dila-
luta. Triste domínio este do chefe num tal mundo, em que são cerando o próximo, porque esse é o trabalho que a seleção im-
necessárias a força e a astúcia maquiavélicas para reinar, e isso põe no plano animal, a primeira manifestação da vida é repre-
por culpa de todos. É bem triste ser escravo de massas anima- sentada pela agressão. Em vista dessa psicologia básica, os lo-
das por essa psicologia de exploração egoística, tendo de con- bos começam a farejar, a fim de conhecer a força do inimigo,
siderá-las como um inimigo de quem se é obrigado a defender- para calcular se convém realizar o esforço de agredi-lo, de ma-
se, porque estão prontas a saltar em cima ao primeiro sinal de neira que seja compensado pela segurança da vitória. Esta é a
fraqueza. A evolução abre a todos, governantes e governados, principal forma de atividade no plano em que vive hoje o ho-
novos horizontes, preparando formas de vida mais altas, que mem, tanto como indivíduo quanto como povo. Inútil, pois,
serão compreendidas quando o homem for mais inteligente e, pensar na abolição da guerra, enquanto a maioria humana con-
então, serão aceitas, porque mais vantajosas para todos. O pro- tinuar a pertencer prevalentemente ao mundo animal.
blema é de chegar a compreender essa vantagem, porque, uma Começa então a espoliação do homem evangélico. Apro-
vez compreendida, ninguém mais pode recusar-se a seguir um xima-se o primeiro lobo e dá uma dentada, arrancando um pe-
caminho melhor, por um princípio utilitário que todos compre- daço de carne. Visto que a cobiçada festa foi iniciada impu-
endem. O mundo futuro olhará com horror e compaixão os nemente, apressa-se um segundo a imitar o primeiro, e, com
atuais métodos de governar o mundo. Mas, para melhorar, é outra dentada, abocanha outro naco de carne. E assim por di-
mister maturidade ao menos nas maiorias humanas, não só nos ante. Encorajados pelo êxito dos mais fortes, adiantam-se en-
chefes mas também nos povos, porque hoje chefes e povos se tão os fracos, mascarados de fortes e com armas ocultas. Com
impõem o mesmo comportamento, que é dado pelo atual plano suas astúcias e mentiras, enganam o homem evangélico, todos
da vida humana. Do novo tipo de homem de governo, já trata- fascinados pela grande miragem de poder tirar tudo do próxi-
mos no capítulo “O Chefe” de A Grande Síntese. Mas, se o mo “impunemente”, ou seja, escapando à sua reação punitiva,
presente pode parecer triste, as forças irrefreáveis do progresso única coisa que eles temem e que os pode deter. É por isso
trabalham incessantemente, obrigando o homem a superá-lo. que só se pode conseguir ordem num povo pela imposição da
Tudo isso está no pensamento e na vontade da história, que, lei, e só se pode obter a paz entre as nações pela imposição da
visto ser a evolução lei da vida, imporá que tudo isto se realize mais forte. O sonho e voluptuosidade do macho reside nessa
com a nova civilização do Terceiro Milênio. impunidade de poder, sem esforço nem perigo, superar o obs-
táculo que o impede de obter a vitória sobre o próximo. A sa-
III. NOVO HOMEM tisfação consiste em achar, nesse caso, o caminho mais rápido
e mais fácil de satisfazer seu instinto de conquistar e dominar,
Por vezes, aparece na Terra um tipo biológico de exceção, para evoluir. Mas, para obedecer ao que a vida ordena ao ma-
com índices característicos estranhos, se o considerarmos em cho, é de pouca valia satisfazer apenas uma vitória que é mais
relação às leis normais da vida, seguidas pela maioria. Estu- fruto da fraqueza do vencido do que da superioridade do ven-
damos sua figura e função no capítulo “Os Guias do Mundo”. cedor. As leis sociais, como o equilíbrio dos povos e seu as-
Vejamos agora como se comporta ele quando é colocado em salto nas guerras, baseiam-se no princípio de obter o máximo
contato com a realidade do mundo animal, e como este se e, arriscando o mínimo, apoderar-se de tudo. Que isto, no pla-
comporta em relação àquele tipo biológico. No capítulo cita- no humano, signifique vitória, mesmo não o sendo num plano
do, vimos como os ideais sustentados pelas forças do Alto mais alto, compreende-se, quando se pensa que o espírito de
descem à Terra. Troquemos agora a perspectiva, ou seja, ve- egoísmo e de domínio, que hoje se procura corrigir com as
jamos como são eles acolhidos, modificados, contorcidos e virtudes do altruísmo e obediência, formou-se no homem jus-
sufocados pelas forças do ambiente terrestre, com as quais tamente porque só os indivíduos que o possuíam conseguiram
eles se encontram para nelas se entrosarem. Trata-se de uma sobreviver melhor na universal luta pela vida.
luta entre dois tipos e dois planos biológicos. Observemos Assim, o homem do Evangelho fica reduzido apenas a seus
como se comportam os representantes de cada um deles, ar- ossos. Estes só lhe são deixados, porque de nada servem ao
mados de forma tão diferente, e como vencem ou perdem na agressor, que se contenta em despojá-lo, não o matando apenas
luta pela vida. Perscrutemos tudo isso com a psicologia posi- porque isso representa um trabalho que nada lhe rende, única
tiva, objetiva e desapiedada de Maquiavel, partindo dos prin- razão para deixá-lo vivo. O que faz então o homem do Evange-
cípios positivos de que, no mundo, tudo é luta para viver e pa- lho? Descido ao inferno terrestre, olha sua pátria longínqua e se
ra subir e de que a vida é sempre utilitária. O problema é ver a deixa despojar e matar. Ele conhece outra vida, desconhecida
forma que essa luta assume e quais os alvos que o utilitarismo por quem o assalta, de modo que não perde muito, mesmo se
da vida quer atingir nos planos mais altos. Não queremos di- lhe tiram a vida terrena, que para os outros é tudo. Ele se deixa
zer que esse tipo biológico se nos apresenta sempre em seu despojar na Terra, pois tem pouco a perder, já que seus valores
16 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
estão em outro lugar. Então, quem o despojou acredita que ven- não tivessem tão desgraçadas ocupações? E como tirá-las deles,
ceu, ao passo que o homem do Evangelho sabe que, ao contrá- se, sem elas, só saberiam morrer de tédio ou destruir-se com to-
rio, aquele perdeu, pois, ao invés de subir para a libertação, ele da a espécie de abusos? Se não houvesse esse freio de tantas di-
se prende cada vez mais a um cárcere infernal. Compadece-se ficuldades na Terra, quem moderaria sua insaciável sede de go-
então e chora sobre a miséria do seu próximo, que é de tal sorte zos? Se não houvesse o recíproco assalto contínuo, quem arran-
e tanta, que leva este a considerar um belo lugar de permanên- caria o homem à sua preguiça, para obrigá-lo a evoluir?
cia a estrumeira humana, julgando vencer quando, ao contrário, Para o evoluído, entretanto, a coisa é muito diferente. O
amarra-se sempre mais a seu cárcere. Ora, para o homem nor- ambiente terrestre é para ele verdadeiramente um inferno, uma
mal, a traição consiste justamente na ilusão que o circunda e lhe vida inaceitável. Seus instintos são diferentes, suas ideias não
faz crer que venceu, quando de fato perdeu. Entretanto isto é são compreendidas, suas mais vivas verdades são utopia. O po-
natural, porque a ignorância e, portanto, a ilusão crescem à pro- bre pássaro, sedento de luz e liberdade, bate em vão as asas pa-
porção que se desce na escala da involução. ra voar. Todos os peixes o acham ridículo. E ele, assim, estra-
Nasce assim um estranho duelo, no qual as posições, as ar- gará suas gloriosas asas, só conseguindo mover-se com dificul-
mas e os alvos são tão diversos, que não se sabe quem vence e dade, embaraçado no fundo do mar, lá onde os peixes sabem
quem perde. Permanece o princípio fundamental da vida, que é nadar tão bem e viver confortavelmente.
sempre utilitária, só que os alvos utilitários são diferentes. As- No entanto ocorre uma circunstância. O pássaro morrerá de
sim como o macho e a fêmea encontram um modo de conviver, padecimentos, isto se os peixes não o matarem logo de vez, e
cada um no seu perfeito egoísmo, apenas porque seus alvos uti- será tomado em vida como louco, todavia ele contará coisas
litários são opostos, também o santo e o homem normal desco- estranhas e novas, que nenhum peixe jamais soube ou disse, e
brem o modo de viver juntos, porque as metas de suas vidas es- alguns o ouvirão, sendo suscitada então alguma curiosidade.
tão nos antípodas. O tipo normal, rei da espoliação, consegue Assim, também no homem comum, há um desejo indefinido de
alegrar-se ao esmagar e vencer. O tipo evangélico atinge sua progresso, dado pelo instinto de evolução, que se desperta nes-
alegria em outro mundo, desconhecido do primeiro, mundo em ses casos, porque todos anseiam subir, ainda que muitos parem
que a perda das coisas terrenas, que para o outro são tudo, re- no primeiro esforço. O pássaro perderá as asas, viverá e morre-
presenta quase nada. Sendo eles dois tipos biológicos diferen- rá dilacerado, mas sua descida ao mundo inferior era o único
tíssimos e falando duas línguas diversas, é natural que se consi- meio para fazer chegar um pouco de luz até lá embaixo, luz
derem reciprocamente tolos. Ambos tem razão, mas cada um que, de outra forma, seria ignorada para sempre. A descida do
em seu plano. Porém, uma vez colocados nos planos a que não pássaro de seu mundo superior era o único meio para que al-
pertencem, então estarão ambos errados. guém do mundo inferior dos peixes se movesse e tentasse subir
Para compreender melhor a posição do evoluído – homem um pouco mais para cima. E o pássaro, ou o evoluído, continua
do Evangelho, tipo biológico do futuro – em relação à maioria, sendo o mensageiro enviado por Deus como vítima, saindo de
dada pelos homens normais, faremos uma comparação. Imagi- um mundo superior para iluminar com seu sacrifício um mun-
nemos um pássaro habituado a voar em seu mundo aéreo de li- do inferior e ajudá-lo a subir. É assim que se pode compreen-
berdade, de luz, de panorama vastíssimo e rápidos movimen- der essa parábola do pássaro e dos peixes. Ela é verdadeira
tos. Esse pássaro, desce um dia para viver entre os peixes no porque se baseia em três leis fundamentais da vida, às quais
fundo do mar, num mundo denso, escuro, com panorama mí- correspondem três instintos que são vivos em nós: 1o) a fome,
nimo e movimentos lentíssimos. Porém, seja entre animais ou, para conservar o indivíduo; 2o) o amor, para conservar a ra-
às vezes, mesmo entre homens, o primeiro modo de estabele- ça; 3o) a evolução, para progredir. Biologicamente, todos os
cer conhecimento entre seres que se encontram pela primeira seres, mesmo os inferiores, possuem também esse terceiro ins-
vez é a agressão e a defesa, isto é, a luta. Essa é a dura apre- tinto. Há para todos na vida humana uma necessidade de subir,
sentação biológica que se faz na sala de visitas da vida, basea- que constrange os evoluídos a descerem e os involuídos a subi-
da num manual de educação bem positivo e objetivo, cuja fina- rem. O encontro é o choque doloroso. Mas é dor genética. A
lidade é mostrar quais os meios ofensivos que cada um dispõe subida só pode ser realizada através da dor.
e, nessa base, julgá-lo. Isso porque, no plano animal-humano, Vimos que Maquiavel nos descreve o mundo inferior dos
o valor é dado pela força e pela capacidade de subjugar. Por is- peixes, mas sem conhecer o dos pássaros. Ele tem razão entre os
so os peixes agredirão o pássaro que desceu entre eles e, se- peixes, porém, entre os pássaros, erra. Quando nos diz que é
nhores de seu ambiente, vangloriar-se-ão de sua força e sabe- mister nos mostrarmos externamente virtuosos, mas que é peri-
doria, condenando-o, pois este, por estar no meio deles, encon- goso sê-lo de fato, permanece fechado nos limites de um mundo
tra-se fatalmente sem razão. Impor-lhe-ão, assim, um modo de inferior. É necessária muita ignorância das leis da vida para errar
viver que é produto de seus cérebros de peixes, mas que não tanto, e muita insensibilidade para suportar as reações da Lei ao
será aceitável para o pássaro. Quando este narrar seus rápidos erros que são assim perpetrados. Mentir é esforço, sendo indis-
e livres voos nos espaços, em vastíssimos horizontes cheios de pensável sermos dotados do instinto da mentira, isto é, sermos
luz, os peixes o chamarão de louco. E, se o pássaro, para que ignorantes e involuídos, para suportá-la. Tudo sacrificar em tro-
os peixes tenham mais luz, convidá-los a subir, um pouco que ca de vantagens efêmeras de um mundo inferior é coisa triste, e
seja, à superfície, narrando as maravilhas do mundo acima das só almas ignorantes, capazes de se iludirem, podem fazer tão
águas, eles gritarão que é utopia, dizendo: peixe sempre foi mau negócio. É muito triste viver e agir assim, sem uma meta
peixe, o nosso é o único mundo verdadeiro, o resto é sonho. E, mais alta e mais segura, que nos garanta a conquista de valores
se o pássaro lhes narrar tudo, falando daquilo que ele bem co- que não sejam falsos, como na Terra. Logo que progride um
nhece, eles todos negarão e voltarão ao abismo. pouco, o homem precisa de um pão mais nutritivo. Chegar a ser
Então o pobre pássaro exilado chorará sua bela pátria lon- exímio na arte de enganar o próximo não pode satisfazer ne-
gínqua e dirá que é um crime produzir filhos, porque lhe é duro nhuma consciência bem formada. O homem fica imensamente
demais viver assim. No entanto, para os peixes, nascidos em mais satisfeito e consegue resultados muito maiores quando, ao
seu ambiente e a ele proporcionados, a vida pode ser a coisa contrário, consegue compreender uma lei completamente diver-
mais adequada e até bela. Assim, para os seres do tipo comum sa do princípio de Maquiavel, segundo a qual: “quem faz o bem
corrente, a vida terrestre, feita de mentira, luta feroz e dores aos outros o faz a si mesmo, e quem faz o mal aos outros a si
contínuas, pode ser o necessário. Poderíamos perguntar, com mesmo o faz”. Aqui já saímos do mundo dos peixes e entramos
efeito, o que tais homens saberiam fazer melhor do que isso, se no dos pássaros. Mas tudo na Terra quer ficar no primeiro des-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 17
ses dois mundos, e todo o universo é visto, na Terra, desse ponto riam as massas assimilar do super-homem, se tivessem contato
de vista e reduzido aos termos desse ambiente. direto com ele? Quando isso aconteceu, elas perderam a ocasi-
Assim pode haver duas formas de santidade: a íntima, que ão, por absoluta incapacidade de compreendê-lo. Se não hou-
Deus vê em segredo, reconhece e recompensa; e a exterior, vesse essa exploração utilitarista por parte dos grupos, quem
oficialmente declarada diante do mundo, perante o qual a pri- desempenharia a função de intermediário entre o mais e o me-
meira pode passar despercebida. Nem sempre as duas chegam nos, para torná-lo acessível a todos? Quem funcionaria como
a se sobrepor e coincidir, porque o julgamento de Deus não redutor de potencialidade do gênio que queima, até à tepidez
pode ser igual ao dos homens. A santidade é, antes de tudo, um dos cérebros pequenos da maioria? Quem fixaria no concreto
fato privado entre a alma e Deus, único que pode julgar o mé- prático o relâmpago evanescente de um pensamento que atra-
rito. A satisfação humana é outra coisa. Aqui estamos na Ter- vessa o mundo como um meteoro? A vida é uma construção
ra, e a lei da luta invade tudo. Aqui, enquanto o santo está vi- orgânica, onde cada indivíduo tem a sua respectiva função útil.
vo, muitas vezes o perseguem e até o matam. Só quando ele foi Os involuídos também fazem parte dela e devem executar o seu
de todo embora, havendo plena certeza que a sepultura encon- trabalho. No seio da vida nada é fátuo, mas tudo é sábio, até
tra-se bem fechada e que ele não fala mais, então nasce o gru- mesmo aquelas manifestações mais elementares, que podem
po que o santifica. Falamos do santo no sentido amplo, isto é, parecer tolas aos mais orgulhosos.
do homem excepcional que, mais tarde, um grupo escolhe co- Assim, o instinto do progresso leva os primitivos a imitar
mo bandeira, para que muitos medíocres possam tornar-se um os mais evoluídos, porque a lei de evolução é fundamental e
pouco maiores à sua sombra. Assim, cada religião, cada parti- impera soberana. Vimos que as necessidades básicas impostas
do político, cada período histórico têm seus eleitos, porque o pela vida são: a fome, para a conservação individual, o amor,
instinto de deificação é fenômeno biológico desde as fases para a preservação coletiva, e a evolução, para que tudo isso
primitivas da evolução humana. Ele se inclui no instinto de não signifique trabalho inútil, mas sirva, ao invés, para pro-
progresso, pelo qual se procura, através dos homens de exce- gredir. As formas materiais da vida são revestimentos que
ção, criar modelos para imitar, evoluindo com eles. Seja Leni- servem de aprendizado para os princípios espirituais nelas de-
ne para os comunistas ou o chefe de uma ordem religiosa para caídos, e a meta suprema desses princípios é remontar a Deus.
esta, seja um general para o exército ou um mártir para uma Assim as três supracitadas leis: fome, amor, evolução, são três
ideia, o princípio utilitário para a vida é sempre o mesmo: o degraus consecutivos, o primeiro dos quais serve para passar
grupo escolhe um chefe ideal para sua glória, mas sobretudo ao segundo, e o segundo para alcançar o terceiro. A fome para
para seu poder e defesa. O grupo gosta de criar para si um mo- conservar o indivíduo, a fim de que este, amando, conserve a
delo, para sobretudo mostrar o que os seguidores pretendem raça, para que esta, experimentando por sua conta e aprenden-
parecer. Que de fato o sejam, isto é outra questão. Há, porém, do dos mais evoluídos, progrida. A meta final de tudo é a su-
um ponto comum a todos eles: o santo escolhido está bem bida. E, na vida, o trabalho é dividido: os involuídos tendem a
morto e, portanto, impossibilitado de voltar a se ocupar de coi- permanecer servos, pois nada mais sabem fazer, executando o
sas terrenas, que os seguidores gostam que sejam deixadas ex- trabalho material de conseguir o que serve para satisfazer a
clusivamente em seu poder. Entramos aqui no terreno de Ma- fome de todos. A mulher, ao invés, é incumbida do amor. Seu
quiavel. Ter que suportar o controle direto por parte de um trabalho é, com sua arte, apoderar-se da semente do macho,
santo vivo, justamente nesse terreno em que se apaga todo que lhe pertence e que ela defende como propriedade sua, e
princípio superior, seria um contraste e um empecilho. assim gerar e depois criar a prole. Os evoluídos são incumbi-
Os homens da Terra, pelo instinto de progredir, têm mais dos da evolução. Seu trabalho é apoderar-se das massas hu-
ou menos a intuição de que, nesses casos, existe um ser supe- manas, produto dos dois trabalhos precedentes, a fim de ela-
rior. Mas eles continuam a ser práticos no terreno positivo, li- borar o fruto de ambos. Trata-se sempre de apoderar-se. Com-
mitando-se apenas a usar este ser. Imitá-lo é muito difícil. Bem pete ao macho o esforço do anjo decaído para reconquistar o
sabem eles que assim é e pouco pensam nisso. A santidade não paraíso perdido, ou seja, para do caos criado com sua revolta
é comida para todos os dentes, mas alardeá-la é vantajoso. O reconstruir a ordem. O tipo biológico do evoluído é o que se co-
homem prega e faz muitas coisas bonitas, mas, se quisermos loca à frente da marcha ascensional da humanidade. É o pionei-
compreender por que as diz e as faz, acharemos que a verda- ro do porvir, o explorador de novos continentes do conheci-
deira e última razão quase sempre é apenas uma utilidade sua. mento, ainda que, nos graus menos evoluídos, ele seja apenas o
Só os ingênuos podem acreditar no que dizem os astutos, isto prepotente que impõe com a força uma nova ordem. A vida o
é, que se possa fazer algo sem tirar vantagem. Todos têm o al- respeita, e, representando ele um valor biológico, mais cedo ou
vo “útil”. E isto não constitui culpa: é a lei da vida. É erro pen- mais tarde impõe respeito ao instinto das massas.
sar que isto, como princípio, seja uma culpa. O defeito reside Observemos os instintos. Eles nos falam claro, revelando-
na baixeza da utilidade que queremos alcançar e, por isso, de- nos o pensamento diretivo e a vontade da vida. Assim, o ho-
saparece no ser superior, que põe a sua utilidade no amor ao mem se sente impelido, sem saber por que (e obedece sem
próximo, no amor a Deus. discutir), a utilizar para nutrir-se o produto da vida alheia, seja
Não nos escandalizemos deste utilitarismo da vida. Em sua planta ou animal, e deles se alimenta. Por outro instinto, sem
sabedoria, ela consegue extrair utilidade de tudo, até mesmo discuti-lo, o homem é impulsionado a utilizar a mulher para se
dos instintos elementares do homem. Explora-se o santo, mas reproduzir e, então, ele ama. Enfim, para satisfazer seu instin-
assim se alardeia a virtude, e as massas que só sabem pensar to de progresso, o homem é levado a utilizar o super-homem
com a cabeça de quem as guia, aprendem regras melhores de e, por isso, o venera, glorifica e imita, embora o tenha antes
vida, assimilam alguma coisa por sugestão e aplicam também desprezado e perseguido. São estes os valores da vida, ansia-
algumas delas, fazendo tudo por imitação. Como ensinar gente dos por ela através dos seres que a representam. São estas as
que não sabe e não quer pensar, porque isso cansa, senão com a coisas preciosas e defendidas na economia utilitária da natu-
repetição mecânica de máximas simples, axiomáticas, que não reza, que sabe ser econômica nas coisas de somenos impor-
requerem nenhum esforço mental? No entanto assim se progri- tância e riquíssima onde se acham as de maior importância
de. Deste modo é atingido o alvo da vida, ainda que apenas na para seus fins. Por isso ela é avara em fornecer meios para vi-
forma permitida pelo estado de involução humana: a imitação. ver, pois quer o nosso esforço de procurá-los, porém também
Nisto tudo vemos, mais que o defeito do homem, a sabedoria da sabe, depois de realizarmos essa busca, ser pródiga. Por isso é
vida, que sabe tirar partido de tudo, até dos defeitos. Que pode- exuberante de sementes geradoras, mas, a seguir, nos dá uma
18 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
existência precária, para que se aprenda na luta. Por isso deixa mo é útil, mesmo no terreno prático, ter compreendido o fenô-
os super-homens em poder dos involuídos, a fim de que, nesse meno do universo, já que só desse conhecimento é possível de-
atrito, sejam testados e se revelem, afirmando-se na luta. As- duzir uma moral na qual todos os postulados podem ser compre-
sim, a vida utiliza tudo para seus altos fins: um bom alimento, endidos de acordo com as leis da vida e estas podem ser logica-
uma bela mulher, um herói, um gênio ou um santo, defenden- mente demonstradas à razão. Elevarmo-nos: esta é a regra. É o
do seus valores e abandonando o que é inútil, rica e pródiga conceito da evolução que nos indica a escala de valores.
onde se encontra a meta a alcançar, pobre e avarenta no que Elevemo-nos, ou então cairemos no mundo de Maquiavel,
não lhe interessa, demonstrando claramente com esses sinais que é um mundo de traições. Ele também nos oferece estima e
inequívocos o seu pensamento. respeito, mas que nos chegam invejando-nos e odiando-nos, e
Por isso, como o bom alimento ou a bela mulher, o super- isto só enquanto formos fortes. Nesse mundo, o vencido e o
homem é ansiosamente desejado. Mas, para utilizá-lo, não fraco nem sequer são odiados, mas simplesmente lançados fo-
podemos devorá-lo nem fecundá-lo. É mister imitá-lo. E isso ra, com o devido desprezo ao vencido. Mundo em que a morte
é difícil. Ele pensa e age tão diversamente dos outros! Mas ele de um é a vida do outro; mundo em que o amor luta para pro-
é só um modelo, pois o esforço de subir é indispensável que criar e o ódio para matar. Mundo em que cada momento de
cada um o faça de per si, sozinho. Também os macacos imi- vida deve ser conquistado contra todos, numa luta sem tré-
tam, mas só o lado externo, sem compreender o significado guas, em cada pensamento e ato. Estamos tão permeados de
dos atos que repetem. Da mesma forma, as massas se limitam luta, que mesmo quando oramos a Deus, lutamos para cavar
a imitar as atitudes aparentes, julgando que a santidade con- favores. A batalha atinge até o terreno moral, que é o mais al-
sista em jejuar ou dormir no chão e que ela resida na pobreza, to e próprio das religiões. Desse modo faz-se a guerra ao pró-
na castidade ou na humildade, sem perceber que estes são ximo até em nome da virtude. Mesmo os princípios dos pla-
apenas acessórios exteriores, o lado negativo da renúncia à nos superiores, mais livres, têm que assumir, para subsistir na
Terra, e não o lado positivo e verdadeiro da santidade. Mas o Terra, a forma de imposição moral, sustentada por sanções
homem só vê a Terra e concebe todo o universo em relação a correspondentes. Há luta não só entre homens, mas entre pla-
esse único ponto de referência. Foi por isso que reduziu a pai- nos de vida. E é interessante observar como ocorre o embate
xão de Cristo particularmente à carnificina de um corpo, já entre as forças do Evangelho e as da animalidade humana, e
que o resto se acha longe demais do seu mundo. ver que contorções têm que sofrer esses princípios superiores,
No entanto a santidade é algo de positivo, de construtivo no quando descem em contato com a dura realidade da vida ter-
espírito, e não apenas destrutivo no corpo; é feita com a renún- rena, a fim de conseguir adaptar-se a ela. Maquiavel nos dá
cia, mas só para conquistar mais e em ponto mais alto; é feita uma ideia disso. E veremos então que o Evangelho, na Terra,
com a solidão, mas apenas para abraçar todas as criaturas; é toma forma de utopia, e a virtude, de mentira. Desfralda-se
feita com os ócios materiais e aparentes da contemplação, mas então a bandeira do amor fraterno, do altruísmo, do espírito de
unicamente para dinamizar-se numa atividade espiritual maior. sacrifício, ocultando por baixo a vantagem material, explo-
Assim, do santo, o homem imita o que mais compreende, mas rando tudo no interesse próprio. Tudo isso é um fenômeno bi-
que vale menos e, porque mais próximo da sua natureza de in- ológico que pertence a todas manifestações da vida na Terra,
voluído, também o que melhor assimila. Todos temos riquezas em qualquer lugar, tempo e religião. Não estamos, pois, jul-
imensas ao nosso lado, todavia, na sabedoria da natureza, só gando ninguém, mas apenas fazemos constatações biológicas
nos é dado agarrar o que merecemos, compreendemos e, por- objetivas e com absoluta imparcialidade.
tanto, podemos alcançar e assimilar. Por isso é natural que o O primeiro erro é de quem exige a virtude, no próximo, de
homem comece imitando a exterioridade, enquanto lhe escapa forma antivital, isto é, pretendendo ter, em nome da virtude, o
o que vale mais. Porém a vida não pode pedir mais a um ser direito de sufocar a vida nos outros. É natural, então, que esta
material que tende a reduzir a atividade espiritual a movimen- se rebele, para não se deixar sufocar. Com efeito, tudo o que
tos físicos de boca, braços e pernas. atenta contra a vida, atenta contra Deus, que a quis. Então a
De tudo isso nasce novo conceito de virtude. Em outros ter- virtude, na Terra, assume a forma de luta para todos, esma-
mos, surge em primeiro plano o conceito de virtude positiva, gando-se mutuamente. De um lado, os moralistas, que a im-
enquanto passa para segundo plano o de virtude negativa, tal põem, sufocando; de outro, seus discípulos, que não querem
como foi prevalentemente compreendida até hoje, que consiste deixar sufocar-se. Mas estes, de um modo geral, sabem defen-
mais em um não fazer. Não se pode negar que uma pedra satis- der-se bem por si mesmos, e esta é sua melhor sabedoria. No
faça às virtudes de pobreza, castidade e obediência, pois nin- atual estado de involução humana, é tão grande a ignorância,
guém é mais pobre, casto e obediente que uma pedra. No entan- que se torna inútil pretender resolver os problemas com a inte-
to bem longe está uma pedra de ser santa. Dessa forma, encora- ligência e a bondade. Por isso, só existe o caminho longo, du-
ja-se a inércia, sufoca-se o eu, oprimindo-o, ao invés de desen- ro e doloroso da luta. Assim a vida resolve os seus problemas.
volver-lhe os recursos. Mas isto se explica. O homem está situa- Mas bem sabemos com quantas dores. E, com estas, o homem
do na animalidade, e, se esse é seu mundo e sua casa, desde que paga então a sua ignorância.
ele não conhece ainda a nova, só lhe resta destruir a velha. Mas Tudo é justo e se explica. Num plano de vida involuído, a
claro que isso não é construir. No entanto, que mais pode fazer virtude não é sentida, nem espontânea, nem compreendida. Só
quem não sabe construir? Então, espera-se os construtores, os pode ser imposta pelo mais forte e aceita pelo mais fraco com
santos, os heróis, os guias do novo caminho. Explica-se isso, repugnância, pois a vontade de viver só existe em forma ani-
também, como consequência da luta pela vida, em razão da qual mal. Nesse nível, a virtude é um peso, uma perseguição. E o
cada pregador de virtudes sente necessidade de cercar-se de ove- indivíduo que aceita essas cadeias sente-se no direito, de
lhinhas obedientes, evitando encontrar diante de si o santo inde- acordo com a psicologia de seu plano, de ter ciúmes de quem
pendente. Tudo se explica. Mas, desse modo, sobra-nos apenas não está acorrentado como ele às mesmas virtudes e, portanto,
uma virtude triste, com sabor de punição. No entanto, ainda que pode gozar de liberdade. (Assim, de fato, a liberdade, na prá-
tenha que ser assim nos seus primeiros passos penosos, deverá tica, não é mais do que abuso). Ele sente-se autorizado, em
ser alegre e construtiva na sua parte melhor, numa forma que nome da própria virtude, a desviar os seus sofrimentos contra
tem sabor de conquista e de triunfo. Devemos ser virtuosos, po- os que não estão presos a eles, ou seja, contra os não virtuo-
rém com mais inteligência. Consiste a virtude em fazer a vida se sos. Nasce assim o santo zelo agressivo e a procura da satisfa-
elevar, e não em mutilá-la e matá-la. E, nesse ponto, vemos co- ção ao próprio rancor – filho do instinto de conservação na lu-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 19
ta pela vida – exigindo que o próximo fique amarrado à mes- res nos oprimidos. Esta é uma das razões das revoluções. O po-
ma virtude a que ele se encontra ligado. Dizem: “ao menos, já vo reconhece que os princípios são justos e percebe quando a
que devo fazer sacrifícios e renúncias, que as faça também o classe dominante o atraiçoa, enganando-o. Exige que também os
próximo”. E é assim que alguns pregam e impõem a virtude. chefes apliquem esses princípios. A Revolução Francesa foi ba-
No plano animal, nada além disso se pode obter. Mas qual- seada no ateísmo porque o clero francês, em nome de Cristo e
quer pessoa vê quanto tudo isso está longe do princípio do pregando o Evangelho, só cuidara de apoderar-se das melhores
Evangelho: “ama teu próximo”. posições sociais, traindo Cristo e o Evangelho. E ainda agora, se
Se, na Terra, são fixadas algumas normas como virtudes e o povo às vezes se revolta, o faz em geral contra todos os maus
estas são aprovadas e exaltadas, isso se deve ao fato de que elas ministros que o merecem. Apenas fazemos aqui amargas verifi-
podem ser utilizadas como arma pelos involuídos, que as utili- cações de sentido geral, e tanto mais amargas porque se referem
zam para combater melhor contra o próximo e lutar pela própria ao mais precioso e delicado terreno espiritual e moral, ao passo
vida. Se a caridade é proclamada e aplicada em forma de benefi- que Maquiavel o fazia apenas no terreno mais baixo, onde era
cência, isso pode ser devido também ao fato de que se pode, mais fácil prescindir dos princípios superiores. Na prática, infe-
com ela, recolher da piedade pública fundos dos quais, mais tar- lizmente, a virtude é muitas vezes propugnada e defendida até
de, podem viver os organizadores. Assim, os beneficiados po- porque é um meio de sufocar a expansão vital do próximo, po-
dem ser um pretexto para encobrir interesses materiais, ou seja, dendo ser transformada em arma de agressão, um meio útil na
a indústria da beneficência ou o desejo de glória. Mas que o ho- luta pela própria vida. Repetimos: esse princípio da luta invade
mem atual ame e, verdadeiramente, tenha predileção pelos de- tudo, e nada lhe escapa na Terra. O santo, o homem evangeliza-
serdados em seu instintivo egoísmo individual é coisa em que do, que a tudo isso renuncia de verdade, só pode viver com o
alguns podem não acreditar. Mas pode ser conveniente aos pio- auxílio de forças supranormais, que descem somente até ele,
res a bela mentira de uma caridade utilitária. Quantas coisas be- porque somente ele pertence àqueles planos.
las e grandes se fazem pelos pobres! No entanto o problema é O amor é o fenômeno que a moral quer disciplinar mais do
descobrir se, por detrás de tanto barulho, os pobres gozam sem- que todos os outros, e isto é um grande bem. Ele preside à con-
pre realmente alguma coisa, ou se para eles sobram apenas as servação coletiva, pela qual luta a vida com vontade de ferro.
migalhas do repasto. Porém, como pode admitir quem conhece o Depois da conservação individual, é este o outro centro em redor
homem atual que ele sempre trabalhe desinteressadamente pelo ao qual ferve a peleja e naturalmente se verifica a contorção dos
próximo? Não dizemos que a vantagem seja o furto, o que seria princípios, quando de um mundo superior são transportados à
escândalo, mas pode ser a conquista de uma posição, o que se Terra. Assim, a virtude da castidade, na prática, pode ser enalte-
admite, ou a glória, o que é tolerado, e assim por diante. O alvo cida porque serve para ter, em quem a segue, um rival de menos
pode ser também o domínio moral da classe, base do poder. Por no terreno do amor. Também assim, a virtude da pobreza pode
que, na Europa, o Clero sempre lutou para manter o monopólio ser exaltada porque serve para ter, em quem a observa, um rival
da instrução pública nas escolas, contra o ensinamento dado pe- de menos no terreno do bem-estar material. Na realidade bioló-
lo Estado, e sempre procurou, ao menos, reservar para si uma gica positiva, que é a de Maquiavel, parece que essas duas virtu-
cátedra de religião? No entanto como pode acreditar quem co- des, castidade e pobreza, podem ter também esse sentido. Se aí
nhece o homem de hoje que a alguém interessem os princípios acrescentarmos também o terceiro voto franciscano, a obediên-
em si, quando não signifiquem interesse de domínio individual cia, teremos o próximo reduzido a zero, completamente demoli-
ou de casta? Quem é que pode acreditar que o homem, em cada do no plano biológico, o que significa poder conquistar todo o
caso, gaste suas preciosas energias por algo que não lhe renda de espaço vital à custa dele e em vantagem própria, ou seja, um ata-
forma positiva e imediata? Existem, sem dúvida, muitos casos lho fácil para, subjugando, vencer na luta pela vida. Tudo isso é
genuínos de admirável bondade e sacrifício, mas pode-se tam- muito triste, mas a vida também pode aparecer assim do ponto
bém pensar que nem tudo o que brilha seja ouro. de vista de Maquiavel, de acordo com a realidade biológica. Na
Esta é a contorção que tem de sofrer o princípio da virtude Terra, tudo pode ser virado ao contrário e falsificado. E temos
para descer à Terra, no campo em que se debate o problema da que conhecer também esse aspecto da vida. Repetimos: tudo is-
conservação individual. Nada disso ocorreria na aplicação da so é muito triste, mas é assim que aparece o nosso mundo, visto
virtude, se o homem amasse o seu próximo, isto é, se levasse dos planos superiores, dos quais desce este pensamento.
em conta os direitos que também seu semelhante tem à vida, Assim, pode sustentar-se a santidade do matrimônio para que
respeitando-o, ao invés de servir-se da virtude alheia para do- o vizinho, cerceado por ela e dentro dela, aprisionado com sua
minar. Só há uma solução para o problema: fazer viver, ou me- mulher, não possa atentar contra a mulher do moralista, enquan-
lhor, ajudar todos a viver. O homem quer, antes de tudo, viver. to que a este muito agradaria atentar contra a mulher alheia. As-
Se isso pode desagradar ao inimigo, que então o condena, não é sim, toda mulher, tendo em vista que sobretudo a ela pertence a
por certo culpa diante de Deus. Em nosso plano, quando al- função biológica do amor, é a guardiã natural e desapiedada da
guém quer sufocar-nos no direito de viver e nos asfixia, tiran- virtude em todas as outras mulheres, mas isto só para excluí-las
do-nos o ar, o espaço e aquilo que necessitamos, Deus não des- de seu banquete, em que triunfa ou espera poder triunfar. Assim,
ce a nos ajudar diretamente, mas o faz através de nós mesmos, em nome da virtude, pode justificar-se e tem foros de cidadania,
dizendo-nos: “defende-te, ajuda-te”, porque o esforço de defen- ao lado do amor ao sexo oposto, o ódio e a perseguição contra o
der a nossa vida deve ser nosso. próprio amor. Por isso as mais denodadas defensoras da virtude,
Então, se, por exemplo, de um fraco que não tenha outra de- em matéria de amor, são as mulheres feias, que não encontram
fesa senão a mentira, quiséssemos pretender, em nome da virtu- quem as satisfaça, as irritadas solteironas, as frígidas, as desilu-
de, que dissesse sempre a verdade, obrigando-o assim a renunci- didas, que desafogam na raiva, escondidas sob o manto da virtu-
ar à única arma que tem para defender sua vida, os culpados se- de, tudo o que não foi possível desafogar no amor. Estamos nos
ríamos nós que, em nome da virtude, o agredimos. Isto porque, antípodas da bondade evangélica, e, desse modo, o verdadeiro
para poder exigir dele uma virtude que o desarma num mundo sentido cristão está invertido. Com efeito, Cristo escolheu Ma-
de armados, temos primeiro o dever de libertá-lo da necessidade dalena entre as mulheres que mais haviam amado, ainda que
de usar esse meio de defesa, e isso garantindo-lhe um mínimo carnalmente, mas tinham amado, e não estavam irritadas pela
espaço necessário para viver. Garantir isso a todos, eis a grande renúncia forçada, e isto porque o amor é a lei da vida. É triste
obra da justiça social a ser realizada. Só desse modo poderão quando ele está corrompido, mas qualquer amor é sempre me-
cessar as reações ao esmagamento, que dissemina tantos ranco- lhor que o azedume, que a vingança, que o ódio.
20 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
Se esse é o abuso que se pode fazer das normas que preten- Assim surgem à luz fealdades que não deveriam ser expos-
dem regular a vida humana, não se pode negar sua utilidade tas. Mas não as dizemos, por certo, para nos demorarmos nelas
como regra de vida para a maioria, nem o grande conhecimento com alegria. Pelo contrário, experimentando todo o seu horror,
da natureza humana por elas expresso, em vista dos instintos estudamos todos os meios que nos pode oferecer a vida para sa-
animais de revolta e luta, de egoísmo e avidez do tipo biológico ir delas, convidando desesperadamente todos a usá-los, a fim de
dominante, qualidades que aquelas normas presumem nele. fugir desta triste condição. Fazemos um trabalho de análise do
Elas são feitas para a maioria no nível animal. Para uma mino- mal, para curá-lo; fazemos um diagnóstico triste, para nos liber-
ria mais evoluída, em que os instintos já estão transformados, tarmos de aflições que nos fazem sofrer a todos. Não culpamos
certas normas podem não ter sentido e, se aplicadas a persona- ninguém e o único inferno que prometemos é o de permanecer
lidades fracas, podem até provocar complexos de inferioridade. na estrumeira atual, o que já nos parece bastante horroroso. Ser
É um fato positivo que o ambiente terrestre representa uma for- involuídos não é culpa, mas demonstramos, sem religião ou
ça, tem suas leis e seus direitos. Quando o céu desce à terra, pa- sentimento, que isso constitui grave dano e que conseguir sair
ra aqui enxertar uma vida nova, tem que levar em conta tudo is- daí é enorme vantagem. Se o homem compreendesse que mui-
so, deve suportar o choque da reação por parte das forças ativas tas de suas dores derivam do atrito nascido da luta de todos
neste ambiente. Aqui, onde reinam os princípios de vida de um contra todos, da falta de conhecimento dos próprios deveres,
plano inferior, o santo aparece como um intruso e um violador. dos direitos alheios e da reação natural dos oprimidos; se o ho-
Só pode ser um mártir destinado à destruição, um utopista, tole- mem compreendesse tudo isso e a imensa vantagem da confra-
rado apenas enquanto não agride nem prejudica, ou depois da ternização de todos, a Terra se transformaria em paraíso. Mas
morte, quando dele se pode tirar proveito. Se olharmos bem, essa compreensão tem que ser conquistada, pois só pode ser
poderemos ver que a exaltação que se faz a tantos grandes ho- atingida com o desenvolvimento da inteligência, que é constru-
mens pode, às vezes, ocorrer também em função da potencial ída e ganha mediante nossa penosa experiência. Aqui procura-
exploração que dele se pode fazer. Seria possível que o tipo bi- mos abrir as mentes a essa nova forma de vida. As leis biológi-
ológico involuído exaltasse outro homem, se isto não lhe ser- cas já estão escritas, o caminho está traçado e é necessidade ab-
visse para alguma vantagem sua egoística? Não dizemos que soluta seguir por ele, mas nós é que temos de percorrê-lo, trans-
tenha que ser o dinheiro. Há tantos desejos e tantas vantagens formando-nos aos poucos.
na Terra! Como poderia ser diferente num mundo em que cada O espírito de egoísmo e de revolta bem como a desordem
posição, pela necessidade de uma luta universal sem tréguas, há dominante em seu modo de viver provam que o homem atual é
de transformar-se numa trincheira ou refúgio para ataque e de- involuído. Os índices da evolução são o altruísmo, a disciplina, a
fesa? Então a própria posição social, qualquer que ela seja, po- ordem. Quanto mais se sobe, mais o indivíduo se harmoniza.
de representar o castelo de ataque e de defesa, pois o involuído Quanto mais se desce, mais ele é rebelde, indisciplinado, desar-
sabe que, sem toca, o animal está perdido. mônico, caótico. O homem ainda mata! As próprias religiões
Como se vê, não discutimos cada uma das instituições soci- que pregam o mandamento “não matar” admitem as guerras,
ais, posições jurídicas, governos ou religiões. Discutimos, sim, abençoam-nas e, até mesmo, realizam as guerras santas, reco-
os princípios da vida e sua aplicação entre os homens. Procura- nhecendo no grupo dominante o direito de matar em nome da
mos compreender e expor a verdade mais verdadeira, que é a justiça, que, em última análise, é apenas autodefesa. Quanto
mais difícil de conhecer, a mais escondida, porém a mais escal- mais se desce na escala evolutiva, menos são defendidas a pro-
dante, a que mais se proíbe de dizer. E isto porque, sendo ela a priedade e a vida, mais áspera é a luta e maiores os perigos e as
mais verdadeira, é a que mais se mantém escondida na batalha dores. Quanto mais se desce, mais a morte de um é a vida do ou-
para viver, pois representa a verdadeira face do homem, a medi- tro. Quanto mais se sobe, mais a vida de um é a vida de outro. É
da de suas forças, as qualidades de suas armas, a natureza da sua assim que se explica, nos involuídos, a alegria de matar. Desse
estratégia – justamente aquilo que o homem mais precisa escon- modo, quanto mais se desce, maior é o instinto de agressividade,
der do inimigo. Essa verdade é a mais proibida de falar-se por- mais forte o egoísmo, mais caótica e insegura a vida. Mas é ló-
que descobre o jogo sujo e oculto que revela a animalidade e a gico que, quanto mais se desça, maior seja o separatismo indivi-
vergonha da baixeza dos instintos, métodos e alvos, coisas cujo dualista que ignora o vizinho, maior seja a mortandade e maior a
reconhecimento representa uma degradação que ofende o orgu- dor, porque a vida se torna mais quebrada, devido ao ritmo mais
lho humano. Pode parecer que estejamos aqui fazendo malicio- acelerado do ciclo vida-morte, expressão do estado de cisão,
samente a acusação da humanidade. Não. Mesmo sem ofender que, como consequência da queda, aumenta com a descida.
ninguém em particular e respeitando a todos, é necessário ter a Num plano mais alto, tudo isso desaparece; cessa a agressi-
coragem de enfrentar os problemas de face, com sinceridade, pa- vidade e o desejo de matar; tudo se arruma e se harmoniza; as
ra vermos claro e sem mentiras. Ai de quem começa a se iludir a dores são menores e os direitos maiores; o indivíduo é protegi-
respeito da natureza real dos fatos. Qualquer construtor, antes de do na vida e nos haveres, não estando mais isolado no caos,
iniciar o trabalho, tem de examinar bem e conhecer a estrutura pois é uma célula da grande organização social. Isto, porém,
do terreno em que quer edificar, senão construirá mal e tudo rui- pertence ao futuro. Muitos perguntam ingenuamente o porquê,
rá. Temos de partir de bases positivas, daquilo que a realidade até hoje, desta triste necessidade de fazer guerras. Mas a causa
biológica nos oferece. O otimismo que devemos alcançar deve é o estado involuído das maiorias humanas, o baixo nível de
ser férreo, ou seja, não fácil e simplista, de sonhadores ignaros seus instintos. Esse duro destino é causado pela própria nature-
do mundo, mas um otimismo que arrombou todas as portas e za do homem atual, por sua psicologia, que revela seu plano bi-
venceu todas as resistências. Não podemos criar o terreno, ele é ológico, onde só o mais forte vale e tem direito à vida. Não são
o que é. Não podemos criá-lo para nós. Compete à habilidade do estes os princípios aplicados diariamente nas competições da
engenheiro saber construir nele, conhecendo-lhe os defeitos, su- nossa chamada vida civil? Como pode o homem tornar-se ou-
prindo suas falhas e utilizando o que for aproveitável. Detesta- tro, logo que entre no campo das competições internacionais?
mos ilusões e, em vez delas, preferimos uma realidade horrível, Em vista da forma mental desse biótipo, é fatal que ocorra,
mas verdadeira. E suas bases mais positivas, as temos encontra- mais cedo ou mais tarde, o embate entre os dois grandes con-
do nas leis da vida, nas forças em ação no mundo humano, nos tendores que hoje ficaram em pé no mundo. Tudo isso já está
instintos do homem e na realidade biológica. Este volume é dife- em embrião e não pode deixar de se desenvolver. Não é possí-
rente dos anteriores, e, por ocupar-se mais da terra que do céu, vel ocorrer de forma diferente num mundo em que vingam es-
podemos nele dizer o que não foi dito nos outros. ses princípios. Onde é preciso decidir quem é o mais forte, pois
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 21
só a ele compete viver, a guerra é inevitável. A fim de terminar levando em conta sobretudo o tipo biológico a que tudo isso se
com as guerras, é indispensável uma psicologia completamente aplica. A maioria involuída precisa da virtude imposta e do ter-
diferente, e, para que o mundo possa chegar a ela, são necessá- ror do inferno, porque, sem o império de uma autoridade e sem
rias destruições e dores imensas, experiências apocalípticas, o medo da própria condenação, nada de bom faria. Mas, para os
proporcionadas à grandeza da transformação que deve realizar- mais evoluídos, esses métodos são inaceitáveis e produzem o
se no homem. As portas do progresso estão abertas. E, quando afastamento da fé. Tudo o que se faz na Terra é feito em relação
a gangrena chega ao coração, o cirurgião, que deseja salvar o e proporção às qualidades dominantes da maioria. Às minorias
doente louco, tem de arrastá-lo, amarrá-lo à mesa de operação compete apenas adaptar-se a um mundo que não é feito para as
e, para salvá-lo, esquartejá-lo. Essa é a operação cirúrgica que suas medidas. Ainda aqui, é o mais forte que vence, sendo a
Deus se prepara para fazer na humanidade, a fim de salvá-la. força, neste caso, representada pelo número.
Esse é o mundo de hoje. Isso não é culpa, é apenas ignorân- O poder do santo pertence a planos superiores, tanto que,
cia. Mas isso não impede que se deva pagar da mesma forma. E na Terra, parece fraqueza. Sua arma defensiva é tão evoluída,
a humanidade está pagando, e tanto pagará, que será obrigada a que se torna amor. Ele se deixa explorar, e esse é seu triunfo.
aprender. A dor é um grande mestre. A vida hodierna é um erro Ele personifica a inversão dos valores correntes, por isso, entre
psicológico, pois baseia-se em ilusões mentais. Compete ao ho- ele e o homem normal, não podem nascer rivalidades, porque,
mem entrar num terreno de utilitarismo superior, substituindo o entre pessoas que têm necessidades e metas diferentes, sem
antigo método de seleção do mais forte, isto é, do mais prepo- pontos de contato e, portanto, de atrito, não é possível elas
tente, pelo método de seleção do mais inteligente e, por fim, do surgirem. Não havendo competições nem rivalidades, não há
mais honesto. A solução do problema do bem-estar não se situa luta. Tanto menos poderão elas existir, porquanto o evoluído e
só na justiça econômica, mas consiste também em se reconhecer as massas involuídas desempenham trabalhos complementares
todos os direitos do próximo, que são de muitos gêneros, e não e, portanto, estão entrosados um em função do outro. Para o
apenas econômicos; consiste em deixar espaço vital suficiente evoluído, o trabalho é civilizar; para as massas, ser civilizadas.
para todos, sem sufocar ninguém. Os povos e a humanidade só Em geral, o santo não pode ser, e não é de fato, compreendido
poderão refazer-se com o progresso do indivíduo, levando pri- pela maioria, e o seu triunfo se fundamenta num mal-
meiro à frente seus componentes um a um. O progresso coletivo entendido. Há, por certo, outras razões biológicas pelas quais a
não pode ser alcançado senão com o progresso de cada um. É vida exige a vitória do tipo mais evoluído. Mais próximas, to-
mister respeitar o princípio utilitário fundamental da vida, pelo davia, aparecem as razões da realidade mais perceptível. Como
qual só se faz algo em vista de uma vantagem a ser obtida. Mas, podem esquecer-se e silenciar, diante do santo, os instintos uti-
se todos precisam obter algo, não há dúvida também de que to- litários da vida? Sem dúvida, uma intuição confusa faz sentir
dos têm algo a dar, e há, portanto, para todos uma possibilidade às massas, através do julgamento dos mais adiantados, que na-
de troca. É a lei do mundo econômico: “do ut des”. Ela foi con- quele homem há um raro campeão. Mas é isso suficiente para
denada em A Grande Síntese porque ali foi olhada de um ponto que contra ele não se exercite o egoísmo humano?
de vista mais elevado. Mas, nos planos inferiores, é preciso re- Ele é sempre um renovador, e, quando não é até mesmo
conhecer que cada concessão altruística do egoísmo humano só morto por isso, sua inovação e superioridade atraem prosélitos,
é obtida em presença de uma contradoação da parte do egoísmo formando-se então o grupo do qual ele fica sendo o núcleo espi-
oposto do outro, nosso semelhante. Isto é o máximo de justiça ritual, a ideia central, de que aquele grupo, para sua vantagem,
que se obtém no plano humano. Esse é o máximo de fraternida- inicia a defesa contra todos os outros. Começa então a glorifi-
de possível neste nível, em que o estado mais involuído implica cação do santo, chegam os reconhecimentos oficiais, forma-se a
maior separatismo egoísta. Mas o “do ut des” já é um equilíbrio corrente favorável na psicologia coletiva, surgem os meios,
e, na troca, também uma tomada de contato, o maior abraço constroem-se os grandes templos em sua memória. Dado que,
permitido pelo egoísmo dominante nesse nível. Esse já é um na vida, o santo é um grande independente, dificilmente domes-
primeiro início de ligação entre os indivíduos, na estrada que le- ticável, porque foge para seu outro centro de vida, que os nor-
va aos grandes organismos das futuras coletividades sociais. mais ignoram, estes esperam que ele esteja bem morto, porque
A vida não pode oferecer em cada plano uma perfeição só então estão bem seguros de que a sua figura não pode nem
maior que aquela suportável por aquele plano. Ela é uma mãe mudar nem reagir, sendo possível apoderar-se dela. As massas
que nos protege tão oculta e misteriosamente, que por vezes sabem que o santo, apesar de não ser imitável, pode ser, no en-
nos parece cruel. Mas nada do que ela faz é em vão, inútil, sem tanto, utilizado como farol luminoso e remoto para interceder
finalidade benéfica, mesmo quando nos faz sofrer. Verificando junto a Deus, a fim de dar glória ao próprio grupo ou cidade de
estas verdades, apenas contemplamos os erros dos planos infe- que faz parte e ganhar o paraíso com as indulgências pedidas
riores, aqueles mais afastados de Deus. Mas isto nos leva sem- pelo santo no Céu. Utilizar é a vontade da vida, falando através
pre em direção ao centro, Deus, e nos faz ver como, com sua do instintos das massas, que exigem isso, e delas não se pode
sabedoria, Ele permanece sempre presente, mesmo nesses pla- pedir mais. Tal é a natureza humana em seu plano, e não se po-
nos. A natureza é justa quando, dando a todos uma arma para de inculpar ninguém. Este é o único modo em que um pouco do
se defender, quer que todos vivam. A quem mais não tem, dá a Céu pode descer à Terra. Foi assim que se firmou o sistema das
fuga ou a mentira. Quando nós, escandalizados, quisermos – indulgências, porque esse é justamente o sistema que satisfaz
em nome de uma lei mais alta, que ainda é um absurdo nesse ao desejo e corresponde à mentalidade da maioria.
plano – tirar ao indivíduo a única arma que ele tem para defen- Com isto, queremos só explicar, e não acusar. Fugimos da
der sua vida, podemos perguntar-nos se temos o direito de acusação fácil ao próximo, qualquer que seja ele. De tantas coi-
despojá-lo desta sua única proteção, impondo-lhe renúncias, sas foram acusados os ministros de todas as religiões e crenças,
sem antes lhe garantir pacificamente o que aquela defesa que- e isto em nome da virtude, como aliás o fazem todos os acusa-
ria defender. A desobediência a um verdadeiro chamado do dores, que se julgam sempre do lado da razão e de Deus e con-
Alto para nos elevarmos é, sem dúvida, um erro que se paga. denam ao inferno, ou a seus equivalentes, todos os que lhes são
Mas a resistência contra a tentativa de estrangulamento da vi- contrários! Essa é a luta pela vida, igual para todos. Mas os
da, mesmo sendo este feito em nome do ideal, é legítima defe- acusadores, quaisquer que sejam, deveriam confessar que em
sa que a vida, através do instinto, impõe ao homem. geral, para viver, condenam só enquanto lutam contra um grupo
É difícil dar normas particulares para a aplicação dos prin- inimigo e que, tendo os mesmos defeitos que eles, lutam para
cípios em cada caso prático. É necessário ver, caso por caso, substituí-los com os mesmo métodos, na mesma posição. Acu-
22 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
sadores mais leais deveriam reconhecer que são da mesma raça uma força que nenhum homem possui. Mas, quando Ele pereceu
e plano de vida dos acusados. Assim, por exemplo, censurou-se na cruz como vencido, quase todos o abandonaram. Não é sem-
o cristianismo por usar a ameaça do inferno. Mas, sem falar da pre a vitória e o poder o que admiramos? Com isto queremos
necessidade dessa pressão para se poder conseguir algo dos in- explicar não só o comportamento humano, mas também o com-
voluídos, a reação contra esse inferno era justamente para de- portamento da vida, que é justa. Ela é utilitária, mas quer que as
sarmar o cristianismo da sua única arma, que só podia ser psi- condições exprimam de fato a realidade e deem, em posições
cológica e espiritual, e assim melhor vencê-lo. Num mundo as- positivas e concretas, a medida exata do valor de cada um. Ape-
sim, como podia sobreviver sem armas uma tal casta, à qual se sar das defesas do momento, sem dúvida necessárias (e essa é a
deve, sem dúvida, o fato de ter o cristianismo podido chegar até compaixão da natureza), ainda quando se prolonguem um estado
nós? E, acusando, não estão os acusadores realizando o mesmo de injustiça ou um erro, tudo tende a exprimir a verdade, ou seja,
ato de condenação que a Igreja usa com a ameaça do inferno? a verdadeira natureza das condições individuais. Assim o forte e
Tudo é luta pela vida, de todos contra todos. Tudo na Terra inteligente é premiado com o triunfo, e o fraco é derrotado, para
pode ser transformado de bem em mal. Assim, a defesa dos que se desperte e fortaleça. Mas a vida dá para todos um ponto
princípios pode, ao invés, constituir de fato uma busca de pro- de desforra ou compensação. Para manter seus equilíbrios, a
sélitos, sobre os quais se possa mais tarde elevar o próprio tro- quem ela muito dá de um lado tira do outro, aos muito dotados
no, transformando-se, desse modo, na caça aos mais sugestio- de certa qualidade dá a carência ou miséria correspondente. Ao
náveis e fracos. Estes, por sua vez, aceitam os princípios para mesmo tempo, dá aos deserdados a habilidade de se apoiar no
achar um refúgio, um pão, uma defesa. Quantas vezes uma séquito dos mais fortes, formando dessas diversas adaptações a
profissão de fé pode servir para resolver o tão difícil problema estrutura social. Essa, se existe, é porque a posição coletiva tam-
da vida! Esse é o problema que todos compreendem bem e que bém corresponde ao utilitarismo da vida, produzindo vantagens
a realidade impõe que compreendam. Mas ter uma fé, crer, é para todos. Nas velhas cidades medievais, todos eram inimigos
um ato que talvez poucos estejam em grau de compreender to- entre si, mas todos estavam apertados pelos mesmos muros, para
talmente e que, para eles, tem valor relativo, ao passo que tem a defesa comum. Só por esse princípio pôde nascer a unidade
um valor muito mais real e tangível aquela realidade. Assim é europeia. Assim, por mais diversa que seja, cada posição é útil
para todos a vida, uma luta tão dura, que não permite o luxo de para todos, pois a derrota ensina, o triunfo recompensa e sua
uma fé que pese. Aceita-se uma fé que ajude, mas não há mar- esperança encoraja, as adversidades estimulam a reação, a fra-
gem para uma fé que onere. As necessidades materiais são es- queza acha apoio dobrando-se diante dos fortes, que dessa forma
picaçantes, as grandes verdades estão longe, os céus são difí- utilizam os fracos para governar, vencer e progredir.
ceis de escalar; só os fortes, os inteligentes, os bem dotados e Assim caminha a vida e cada povo aprende. Os velhos po-
afortunados podem permitir-se ter uma personalidade própria e vos, como os da Europa, possuem tudo mais precisamente disci-
impô-la. E, muitas vezes, à miséria material soma-se a miséria plinado em normas exatas. As virtudes religiosas e civis são co-
espiritual, incapaz de qualquer coisa. dificadas, e é difícil escapar-lhes. As coisas livres e lícitas são
Procuramos observar tudo objetivamente, sem preconceitos cada vez em menor número. Mas, com todo esse aperfeiçoamen-
e sem preferências, para compreender e também para desculpar to, a luta pela vida é mais dura que nos países novos e jovens,
todos. Para o fraco, a luta pela vida é coisa terrível. Quer-se a onde, ao menos, não há pressão demográfica. Na Europa, o in-
aplicar grandes princípios a todos, mesmo aos que nada disso divíduo está mais encaixado no dever, o que faz brotar os substi-
compreendem; exige-se renúncias, virtudes e sacrifícios a tutos e requintes da luta, que se torna manhosa. A inteligência é
quem não tem a força de suportá-los. É preciso nivelar tudo no toda mobilizada desesperadamente e, assim, consegue produzir
baixo plano das maiorias. Dos chefes e ministros do espírito obras-primas na arte de sobrepujar o próximo da forma mais
pretende-se qualidades raras, duras de se conquistar, as quais elegante e legalmente perfeita. Mas, nos mais fracos, surgem
eles não têm. Pretende-se uma vida exemplar num mundo cor- complexos de inferioridade, penosas adaptações, contorções do
rompido; pede-se o sacrifício, que é um tormento para a vida. instinto, aberrações nervosas, formas patológicas que se fixam
Mas, se falta o material humano por toda a parte, como impro- na raça e de que, mais tarde, se inculpa o indivíduo. São todas
visá-lo? Os fracos, que são tantos, procuram defesa. Por isso, elas reações da vida tentando não ficar sufocada na ordem, que
para serem defendidos, lançam-se nos braços do mais forte, ajuda, mas também oprime, e muitos ficam esmagados por ela.
que venceu. Em meio a uma luta tão áspera para viver, o dese- Outros, dotados de paciência, adaptam-se. Assim, a religião da
jo de proteção torna-se agudo. Forma-se, assim, entre os che- resignação ajuda a viver, pois dá uma esperança no porvir. Não
fes, fortes e vencedores, e os fracos, em todos os campos, um há dúvida de que, nesse ambiente, a inteligência se desenvolve.
contrato tácito, pelo qual os primeiros, para obter uma base de Mas, infelizmente, nem sempre ela tem força para enfrentar a
poder, oferecem defesa e vantagens, e os outros, para obter tu- subida para o alto e, por vezes, prefere dobrar-se para os atalhos
do isso, adaptam-se e aceitam tudo. Que tipo de confiança po- que levam para baixo. Então, quando nem assim se consegue
dem ter estes chefes em tais prosélitos logo se vê, pois, assim vencer, nasce diante da derrota e da escravidão o ódio, seja ele
que um chefe cai, quase todos o renegam, desprezando-o e pessoal ou de classe, ódio que espera o primeiro afrouxamento
abandonando-o. Não foi o próprio São Pedro induzido a rene- do poder da ordem, para desafogar-se na rebelião.
gar Cristo três vezes, porque temeu por sua vida? Naquele Num rápido olhar, quisemos ver e mostrar a verdadeira face
momento, o ataque foi medonhamente concreto, e isso é o que ensanguentada do nosso mundo, estendendo a mesma desumana
persuade a maioria, que vale menos que São Pedro. psicologia de Maquiavel a todos os campos; quisemos penetrar
Desse modo de se comportar não queremos dar uma justifi- até às primeiras raízes de tantos males, de que todos sofremos as
cação, mas sim uma explicação. Não fora o homem colocado em consequências, e isto com a coragem de quem sente um mundo
tão duras condições pelas necessidades da vida, quais a fome, a desmoronar-se e tem fé em outro que surge. Observamos impar-
defesa etc., nada disso aconteceria. Nem sequer aconteceria se cialmente, sem defender nenhum grupo em particular com des-
ele tivesse a força que o ideal requer dele, de desafiar as leis da vantagem para outro. Em geral, procura-se convencer que a vir-
vida que o ameaçam, para vencê-las. Dom Abbondio1 dizia: tude está toda no próprio grupo e que os vícios e defeitos estão
“mas coragem, ninguém pode dá-la”. E, se tanto admiramos todos no grupo rival. Isso só tem valor de tática de guerra na luta
Cristo, é também porque Ele foi vencedor, demonstrando ter pela vida, mas não é verdadeiro nem honesto. Há bons e maus
em todos os grupos humanos, e a distinção, dentro de qualquer
1
Personagem do romance “Os Noivos”, de Manzoni. (N.T.) grupo, é pessoal e só pode ser feita caso por caso. Por isso não
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 23
podemos tomar a defesa de nenhum deles. Aqui, com absoluta imbecilidade e falsidade. As tristes verificações feitas aqui não
imparcialidade, respeitando os bons onde quer que estejam, e nos devem tornar pessimistas nem céticos, nem imorais ou amo-
abraçando todos, porque a todos procuramos compreender, qui- rais. Animados sempre de fecundo otimismo, temos de descobrir
semos ouvir a voz das leis da vida, convencidos de que só da e compreender a mais profunda e universal moral biológica, em
compreensão do estado real das coisas pode nascer uma tentati- que a vida diz honestamente a verdade nua.
va de remédio e uma esperança de um futuro melhor. Através O passado passou, e temos que olhar o futuro. Devemos su-
destes volumes, pedimos à própria voz da vida que nos expuses- perar as morais baseadas na rivalidade e na luta, a fim de realizar
se suas leis, ou seja, uma moral biológica que racionalmente esta outra, baseada na compreensão e no amor. Ponhamos fim a
mostre sua razão de ser até aos pormenores e até às suas raízes. todos os erros do passado e todas as dores que deles derivaram;
Honestamente, temos que ser utilitários como é a vida, secun- ponhamos fim às religiões do ódio, que muita gente pratica em
dando-a nesta sua característica fundamental. Jamais devemos nome do amor e do bem, escondendo-se à sombra da virtude.
agredir, nem mesmo em nome da virtude, se não quisermos Nasça a verdadeira religião, de amor, no seio de todas as religi-
oprimir e ser causa de revolta. Trata-se de nos tornarmos mais ões humanas. É isto que verdadeiramente importa, e só isto pode-
inteligentes. O bastante para chegarmos a compreender qual é o rá salvar o mundo. Nasça a religião da sinceridade, em que se re-
nosso interesse e, assim, estancar a intensiva produção de tantas conhece a todos o direito de viver, pois, sem isto, o próximo, pa-
dores que, por meio de sua ignorância, o homem provoca em ra viver, ficará sempre constrangido a mentir e a lutar. Nasça um
seu prejuízo. Quisemos apelar apenas para a razão e a vantagem conceito de virtude que ajude a vida, em vez de oprimi-la, e dis-
egoística, evitando qualquer ternura, sentimentalismo de fé ou cipline a ação, demonstrando logicamente a sua racionalidade bi-
apelos a ideais, que podem parecer utopias. Desse modo não se ológica. Basta de condenar os outros grupos para defender o seu
poderá dizer que desconhecemos a vida e somos sonhadores próprio, reconhecendo que a virtude não está apenas nele e que
idealistas. Ao contrário, quisemos ficar desumanamente apega- as culpas e vícios não se encontram apenas nos outros, mas que
dos ao terreno positivo da crua realidade biológica. Ela é dura e vício e virtude podem estar em qualquer grupo humano. Enquan-
assustadora. Mas agora a conhecemos sem ilusões. Pois bem, to dissermos que a virtude está apenas conosco e entre nós e que
agora podemos concluir, afirmando que nessas bases se elevará os defeitos e culpas estão todos no campo contrário, não faremos
a civilização futura, como do estrume faz Deus nascer os frutos moral, mas apenas guerra em nossa defesa. Essa não pode ser a
e da lama, uma flor. Isto porque o progresso é lei de vida, esta é moral de Deus, que é universal e abarca a todos.
a vontade da hora que vivemos e é isto que nos diz o estudo po- É necessário amor para todos, isto é, compreensão, e não
sitivo que vimos conduzindo até aqui. perseguição. É indispensável nos iniciarmos nesta nova religião
Nossas verificações precedentes podem parecer bem tristes. do amor, tão pregada e tão pouco vivida. É mister abraçar aquele
No entanto, se o mundo, visto de um plano superior, parece que cai, para ajudá-lo a subir, e não repeli-lo como leproso.
uma estrumeira, onde só podem viver os vermes, aí felizes, is- Compaixão para todas as misérias humanas, condenadas por to-
to não é pessimismo, porque também das estrumeiras a vida dos, reconhecendo que os culpados, muitas vezes, são aqueles
sabe fazer nascer as flores. Com um exame mais profundo, as que ninguém condena. Batamos todos no peito, pois somos todos
correntes morais, aquelas que são vividas, revelam sua filiação responsáveis, mais ou menos, por todas as desgraças desta pobre
direta com a grande lei da luta e se reduzem por vezes a um humanidade, resultado do nosso egoísmo, que se desinteressa das
mundo fictício, com o qual, em nome de muitas coisas eleva- dores e misérias do próximo. Toda a culpabilidade que a socie-
das e belas, os vários grupos humanos se cobrem, só para as- dade pune no desgraçado que caiu em seu laço e nele se deixou
sim, mais bem protegidos, realizarem a luta pela vida. Por isso, prender, é uma culpa da própria sociedade, que não devia permi-
na Terra, os ideais subsistem enquanto são utilizados nesse tir a formação daquelas tristes condições em que, forçosamente,
sentido. Na realidade biológica, cada grupo, aproveitando-se há de nascer a culpa. Quantos delitos se praticam impunemente
de tudo, constrói uma moral para seu uso e defesa e procura todos dias, porque feitos com astúcia, representando isto um cho-
impô-la a todos os outros grupos, que, por sua vez, fazem o que que se transmite, caminha e repercute até atingir as costas de
mesmo, retorquindo ao assalto. O grupo mais forte, vencedor alguém, que é então abatido e, com sua derrota, condenado! Nos-
de todos os outros, cria a moral dominante, que é lei para to- sa vida individual e social está assentada em erros, em mal-
dos, à qual as minorias têm de submeter-se porque estão em in- entendidos, em mentiras, em violações dos mais elementares di-
ferioridade numérica e, portanto, são mais fracas. Morais hu- reitos da vida, em esmagamentos sob os quais muitas vítimas
manas, relativas, de combate, com finalidade de ataque e defe- gemem, porque não sabem reagir para se defender. A humanida-
sa, mutáveis no tempo e de país para país. A moral de Deus de carrega em seu passivo um fardo de injustiças, que são forças
não pode ser essa, mas sim a própria moral biológica manifes- biológicas ativas a reclamar compensação nos equilíbrios da vi-
tada pela vida em seu funcionamento, que só pode ser a ex- da. É preciso decidir-se a retificar tudo isso, pagando essa dívida
pressão do pensamento de Deus em cada determinado plano. humana para com os deserdados, e pagá-la mediante o amor, se
Chegou a hora de superar essas morais que, debaixo da hipo- não quisermos pagar amanhã à força. Não obstante, a justiça está
crisia, são praticadas escondidas daquelas que são proclamadas; presente e a vontade de Deus é sempre ativa para realizá-la.
superar essas morais de grupos, de interesse para ataque e defe- Eis o que deve fazer o novo homem, eis como deve conce-
sa, filhas da luta pela vida e, portanto, cobertas de mentiras, em ber a vida. Colocou-nos Deus os olhos à frente para ir adiante, e
que se utilizam as maiores ideias que possui o homem só para não para retroceder. O problema é refazer o homem, e a hora
vencer a batalha da existência. Infelizmente, esta é a realidade soou. Não se pode chegar à renovação da sociedade, já o dis-
da vida. Chegou a hora de olhá-la de frente, qualquer que ela se- semos, senão através da renovação de cada indivíduo. É inútil
ja, sem falsos pudores, a fim de sobrepujá-la. Havemos de ter a gritar que é utopia. Os tempos estão maduros. Para quem não
coragem de lançar fora a máscara, e será salutar conseguirmos queira renovar-se, há a possibilidade de ser definitivamente
nos envergonhar de nós mesmos. Devemos crer, com fé, que eliminado da vida. O novo mundo veloz não pode caminhar na
Deus está pronto a nos ajudar em nossa miséria, se, diante d'Ele, estrada dos velhos métodos e conceitos. Quem compreendeu
tivermos a coragem da sinceridade. Enquanto nos cobrirmos que a lei da luta e da seleção do mais forte impera na Terra, sa-
com a mentira, jamais Deus poderá reerguer-nos. Temos de be que o choque entre as duas grandes potências que hoje so-
compreender que a maior quantidade de nossos males nós mes- braram é inevitável e que, portanto, não se pode escapar a uma
mos os queremos fazer contra nós, pela nossa teimosia, filha da destruição gigantesca. Dada a estrutura psicológica humana
nossa ignorância. É hora de superar este tão doloroso estado de atual e os meios bélicos hoje já preparados, é uma fatalidade
24 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
que se tenha de concluir desse modo. Isto está implícito no sis- vantagem sua. Permanece a luta no terreno da posse dos bens, a
tema social-político hoje vigente no mundo. Este, então, se en- fim de se poder adquirir o máximo em quantidade, qualidade ou
caminha para ter que compreender, à força e através da dor, que valor, dando em troca o mínimo. A balança da procura não é
tem de renovar-se. Então, a humanidade melhorará, porque os igual à da oferta, e ao contrário, mas, para cada uma das duas
piores terão se destruído mutuamente e a dor terá aberto a inte- partes, a medida “justa” pretendida é sempre ser tudo para mim
ligência dos sobreviventes. Nada desenvolve tanto a inteligên- e nada para o outro. Na luta, constrangidas pela necessidade de
cia como a dor. Estamos às portas de grandes transformações. chegar à troca, a fim de satisfazer às próprias necessidades, de-
Renovam-se os tempos, e já passou a hora da aceitação passiva vem, sem dúvida, as duas partes encontrar-se num ponto inter-
e da cega repetição por inércia dos tradicionais conceitos do mediário, mas este não é o da justiça equitativa, e sim apenas o
passado. Quem em primeiro lugar se encaminhar para a reno- resultante do encontro de duas forças opostas, das quais a mais
vação, quem souber caminhar mais rapidamente pela novas es- forte vence a outra, fazendo a balança pender para seu lado.
tradas da vida, este é que estará mais pronto para entrar no novo Esta é a justiça econômica, que vale tanto quanto a justiça
mundo que nos espera, esse é que terá mais probabilidades de bélica ou política, e assim por diante, em que o mais forte tem
ser salvo, porque ele representará o novo tipo biológico seleci- razão e estabelece e impõe a justiça para sua vantagem. Assim, a
onado pela vida, com o qual esta, por lei de evolução, quererá procura põe a mão no prato da balança da oferta, e ao contrário.
construir a mais adiantada humanidade do porvir. Por isso, quando a oferta abunda em relação à procura, desvalo-
riza-se o produto oferecido, porque a procura oferece uma com-
IV. PROBLEMA DA ESTABILIDADE MONETÁRIA pensação sempre menor, correspondente ao crescimento da ofer-
ta, aproveitando-se para, da abundância do produto e da necessi-
Os princípios gerais – que o leitor conhece, pois já foram dade que tem o inimigo de dar-lhe saída, obter a mercadoria a
desenvolvidos em outros volumes anteriores – apesar de terem um preço de troca sempre menor. Por isso, quando aumenta a
suas origens nos planos da metapsíquica e mesmo da teologia, procura, a oferta aproveita a necessidade e a carência do requisi-
descem até no particular de nosso mundo econômico, continu- tante para pedir um preço sempre mais alto e o produto ofereci-
ando verdadeiros e eficientes também para os problemas técni- do então se valoriza. Por isso, mesmo no caso mais simples de
cos das trocas monetárias. Os sábios princípios e equilíbrios da troca direta de mercadorias, sem a intermediação da moeda, te-
vida dominam o próprio contingente prático, manifestando-se mos nessa luta sempre uma instabilidade de valores ou preços,
também neste terreno do particular, que parece isolado e desta- que é o germe das crises econômicas e monetárias, dependendo
cado deles. A biologia, concebida como um fenômeno que é tudo da estrutura psicológica do animal humano. É precisamente
guiado pela lei de Deus e expressa Sua vontade e pensamento, esse regime de luta, derivado de tal estrutura, a primeira fonte
abraça também todos os fenômenos da vida, desde o moral, in- das crises econômicas e da instabilidade monetária. Equilíbrios
telectual e espiritual, até ao social, histórico e econômico, num instáveis, porém melhor resultado não se pode obter de uma má-
monismo absoluto. Assim o mundo econômico, mesmo no seu quina baseada sobre o egoísmo e, portanto, no embate entre ego-
caso monetário particular, também está ligado ao todo e é re- ísmos, onde só pode sair vencedor o mais forte.
duzível à unidade universal. Baseia-se o nosso atual mundo na falta de reconhecimento
O primeiro aspecto que nos aparece na economia política é das necessidades e direitos do próximo. A sociedade humana
o fenômeno da oferta e da procura. Ele é regido pela lei do mí- não se apoia em uma colaboração harmônica, como deveria
nimo meio, segundo a qual – assim como, pela lei da gravidade, ocorrer entre células de um mesmo organismo, mas fundamen-
o que menos pesa sobrenada e o que mais pesa afunda-se – o ta-se na luta entre células, atentas a suprimirem-se, para que a
que escasseia é valorizado e procurado, sobressaindo-se e flutu- mais forte esmague a mais fraca. Isto ocasiona um atrito que a
ando sobre as outras coisas, enquanto o que é abundante e exu- coletividade deve pagar à sua custa. Assim, querendo vencer
berante é pouco valorizado e afunda-se. Mas o fenômeno é para si, cada um age de modo a que todos concordemente per-
também regido pelo princípio geral da luta pela seleção do mais cam em parte, ou seja, devam pagar uma taxa comum, uma
forte, vigente em nosso plano evolutivo, princípio que, em seu percentagem de perdas ou consumo para a luta comum de todos
aspecto demográfico e bélico, apresenta-se na forma de luta contra todos. E isto é absurdo. Mas, no grau atual de sua evolu-
armada (guerra) pela conquista do espaço vital e, em seu aspec- ção, o homem não consegue proceder com mais inteligência.
to econômico, assume a forma da interação entre oferta e pro- O organismo social só pode achar a linha de maior rendi-
cura. Estas, no entanto, só na aparência se apresentam com rou- mento na colaboração, baseada na honestidade e na confiança,
pagem pacífica. Apesar dos economistas no-las apresentarem filhas de um altruísmo não teórico e vão, mas inteligente e uti-
em equilíbrio, como uma balança, elas são na realidade o resul- litário. Ora, neste nosso mundo nada disto se pratica, e a má-
tado de uma luta baseada num egoísmo desenfreado. Na práti- quina social, por isso, funciona com esforço, sem nenhuma
ca, a oferta é o ato com que se busca satisfazer a uma necessi- consciência coletiva, nem mesmo aquela já alcançada por al-
dade ou procura, quando, no mundo civilizado, não é mais pre- gumas sociedades de insetos, como as abelhas, as formigas,
ciso recorrer ao método primitivo de agressão a mão armada ou etc. E, quando funciona um pouco, é um funcionamento força-
ao furto. Trata-se de uma forma mais evoluída que as outras pa- do, porque só a imposição de um governo consegue obrigá-la a
ra aquisição de bens, imposta num estado de ordem em que isso. Está tudo desgastado e esmagado pelo peso da desconfi-
somos constrangidos a reconhecer um direito igual em nosso ança e da contínua resistência do indivíduo contra o interesse
próximo (inimigo, porque rival na procura dos bens). A procura coletivo. O egoísmo fecha e divide, sufocando a vida, enquanto
é a busca declarada e direta da satisfação do desejo ou necessi- o mundo necessita sempre mais de estradas abertas, por onde
dade próprios, tentando combinar essa procura com a oferta, circule a troca, já que ela é, por natureza, útil e fecunda. Acon-
mas também procurando aproveitar, para vantagem própria, to- tece então que o Estado, para que tudo seja controlado, deve
das as fraquezas e necessidades do ofertante. onerar-se com uma custosa e embaraçosa burocracia. Esta, en-
Embora os economistas apresentem o problema em forma tão, torna-se uma odiosa caçadora de transgressores, e os go-
de equilíbrio, no qual os dois impulsos se contrabalançam, há vernantes passam a ser inimigos do povo. Surge, assim, aquele
por trás de suas fórmulas sempre a mesma realidade biológica natural e universal antagonismo entre o Estado e o indivíduo,
que observamos em todos os fenômenos. Revela-nos ela a dura sempre em luta entre si, como ocorre entre empregados e pa-
face da luta desapiedada entre egoísmos opostos, na qual cada trões. Então os governos, para se manterem de pé, precisam
um deles procura desfrutar, espremer e esmagar o outro para armar um exército. E assim por diante. Dessa forma, grande
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 25
parte da produção e do trabalho, os bens da nação, precisam ser quando caminhamos com tais métodos, a mercadoria se desva-
usados com esse fim e subtraídos ao gozo de todos. loriza e a moeda se valoriza e desaparece, enquanto os produto-
Em cada anel da cadeia das trocas, que vai do produtor ao res, para se salvarem da queda dos preços, não produzem mais.
consumidor, não se procura dar frutos para todos, tornando-se Então, para elevar os preços, eles chegam a queimar a mercado-
útil à função exercida, mas procura-se, pelo contrário, explorar ria. E, assim, com o sistema do egoísmo e da avidez, chega-se
a todos, impondo aos outros, a preço de extorsão, a própria ao absurdo de que o enriquecimento com maiores bens median-
função, só porque esta serve a si mesmo, embora seja prejuízo te o trabalho não é uma vantagem, mas sim um prejuízo. Não se
para a coletividade. Assim, o que parece uma graciosa oferta chega então ao bem estar, mas à crise. No entanto não nos da-
do comerciante nos negócios é, às vezes, apenas uma luta para mos conta de quanto isto seja providencial. Se as leis da vida
arrancar do cliente a maior quantidade possível de dinheiro, tendem a nivelar o homem mais num plano de miséria que de
com uma mercadoria tomada ao produtor pelo mínimo preço riquezas, acontece isto como consequência automática da psi-
possível. Nada produzindo de seu, torna-se ele indispensável a cologia de abuso que rege o mundo econômico, o que é um
ambos, procurando tirar de ambos todas as vantagens. Estas, bem, porque esse homem não deve possuir o poder econômico,
quando a produção aumenta, são primeiro, antes de atingir o dado que só saberia fazer dele péssimo uso, em seu prejuízo.
consumidor, absorvidas pelo próprio comerciante, que também Após estas premissas, entremos no problema particular mo-
pode, se a procura aumentar, fazer subir o preço, sem que o netário. Temos que presumir um conhecimento ao menos geral
produtor sinta a vantagem. de economia política, agora que nos engolfamos no aspecto
Por sua vez, o produtor se preocupa em satisfazer às neces- técnico da questão.
sidades dos outros somente enquanto isto corresponde a seu de- Falamos até aqui de um sistema simples, de troca direta, em
sejo de lucro. Ele, então, explora os gostos pervertidos e tam- que os bens funcionam não só como mercadoria mas também
bém os vícios (como a imprensa, que divulga fatos criminais e, como moeda, e observamos a forma psicológica que rege o fe-
em alguns Estados, onde o governo tem monopólio do tabaco, nômeno econômico basilar da oferta e da procura. Para nos
difunde a propaganda do hábito de fumar). Estabelecida, por- aproximarmos do problema monetário, temos que substituir o
tanto, certa produção, o produtor, atento apenas a satisfazer ao sistema originário e primitivo da troca direta pelo atual sistema
seu interesse de vender e embolsar, é arrastado a conquistar, a de troca entre bens e moeda, em que um dos termos é a merca-
qualquer custo, o seu cliente. Nasce então uma propaganda fic- doria e o outro é o dinheiro.
tícia, dirigida a criar novos gostos, inúteis, com o único fito de Nas fases primitivas, a instintiva utilidade da troca limitava-
dar saída aos produtos, aproveitando-se da sugestionabilidade se a fazer nascer uma economia direta, de trocas não monetá-
das massas. Trata-se de um assalto à boa fé dos simples. E, rias, de simples permuta de bens, em que a moeda é a própria
quanto menos vale o produto, maiores despesas de propaganda mercadoria. Mas a lei utilitária, sempre em vigor, do mínimo
pode certamente suportar e, portanto, mais apto está a invadir o meio, levara instintivamente o homem a escolher, entre todas, a
mercado. E isto ainda pode ir além, como aconteceu, por exem- mercadoria que mais destacadamente tivesse as qualidades que
plo, na formação de um mercado europeu a favor dos Estados a tornassem apta à permuta. Devia ser mercadoria de uso e va-
Unidos, chegando a ponto de levá-los à guerra e, depois, a um lor sobretudo universais, de modo a servir de denominador co-
bombardeio cerrado de grande parte da Europa, com o que, no mum de troca entre todas as outras, representando o seu equiva-
entanto, ficou assegurado o cliente. lente em valor. Devia ser então mercadoria de fácil transporte e,
A oferta, portanto, sabe fabricar a procura de que tem ne- sobretudo, conservável, que permitisse o armazenamento, ser-
cessidade, tornando assegurada a saída da produção. Tal é a na- vindo como lastro de todos os outros bens, mais adequados à
tureza humana, pela qual o médico tende a fabricar os doentes utilização direta no consumo do que para essa função de reser-
de que precisa, por vezes até aplicando tratamentos e operações va econômica. Mercadoria indispensável e não deteriorável, in-
cirúrgicas inteiramente desnecessários e inúteis. Assim, os mi- dependente de todas as transformações, como nascer, crescer e
nistros de qualquer religião são levados a criar para si mesmos morrer, a que estão sujeitos todos os produtos da vida.
o rebanho dos fiéis ou prosélitos que justifiquem sua posição ou Começou-se com o “pecus”, a ovelha, unidade genérica de
presença. É sempre o mesmo egoísmo na luta para viver que gado pecorino, de que se derivou mais tarde a palavra “pecú-
leva o homem a impor à coletividade a sua própria utilidade ex- nia”. Mas ainda estamos numa forma de troca direta, à base de
clusiva individual, em vez de oferecer-lhe suas capacidades pa- mercadoria não facilmente amoedável, porque ela mesma, se-
ra a utilidade coletiva. Por isso, tudo se torna um perigo nas gundo a produção, tinha quantidade variável e, portanto, valor
mãos dos homens. No entanto o erro consiste em acreditar que instável, desde que não permanente em quantidades constantes
o dano seja apenas para o vizinho, quando é de fato para todos no mercado, devido à lei da oferta e da procura, mediante a
e, portanto, para si próprio. qual, aumentando a quantidade de dada mercadoria, seu valor
Tanto nos países livres como nas ditaduras, a realidade bio- diminui. Além disso, não era mercadoria facilmente transportá-
lógica, feita de luta desapiedada de todos contra todos, é sem- vel nem conservável. Chegou-se, por isso, pouco a pouco, ao
pre a mesma. Em qualquer parte, o peixe maior come o menor, ouro e à prata, que correspondiam melhor aos requisitos de
o mais forte esmaga o mais fraco. A mesma coisa é feita em amoedamento, não só como aceitação universal, transportabili-
nome dos princípios e ideais mais diferentes. Por vezes, a liber- dade, conservabilidade (não deteriorável) e estabilidade (não
dade para os mais fracos, os vencidos, pode reduzir-se apenas à sujeita às contínuas transformações da vida), como ainda pela
liberdade de morrer de fome. São gigantescas e tremendas coli- quantidade e, portanto, valor relativamente constante. O ouro e
gações de interesses que regem o mundo. Acusa-se justamente a prata são, ademais, bem definíveis como peso e medida, re-
o comunismo de explorar os instintos rapaces das massas, mas presentado mercadoria que tem por si, nas joias, valor intrínse-
isto prova que as massas já tem esses instintos em sua alma. Eis co, sempre realizável nos mercados.
uma qualidade em que muitos homens, tanto vencedores como Até aqui estamos diante de valores reais, ainda que de cará-
vencidos, são verdadeiramente iguais. Eis onde está a igualdade ter diverso, uma vez que não é possível comer ouro ao invés de
humana para todas as raças: ilimitada cobiça. No entanto, no grão. Reais, pois haverá sempre quem aceite, nas trocas huma-
mundo econômico, é possível morrer não só de fome, mas tam- nas, ouro em troca de outra mercadoria. Mas o homem não pa-
bém de indigestão. O próprio aumento da produção deveria rou aqui. Esses metais preciosos foram transformados em moe-
produzir abundância e bem estar, oferecendo tudo a menor pre- da cunhada, em que eles eram unidos a ligas de outros metais
ço, aumentando o consumo e elevando o nível de vida, mas, de valor menor. Depois, para subtrair essas moedas à deteriora-
26 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
ção e ao perigo dos desvios, substituiu-se-lhes o papel-moeda, os preços, isto é, a mercadoria vale mais e a moeda vale menos.
ao qual, ao menos em teoria, deveria corresponder uma equiva- Além disso, esta é constrangida a aparecer para adquirir os bens
lente reserva de ouro. Assim, tudo se foi transformando, substi- que, escasseando, se tornaram mais necessários e procurados.
tuindo-se cada vez mais o primitivo valor de utilidade imediata Mas acontece que a moeda abunda no mercado, quando há me-
por valores fictícios e convencionais. Isso tudo principalmente nos que comprar, e escasseia, quando há mais que comprar.
porque o poder político se apossou deste terreno para seu uso e Sendo o produtor e o consumidor dois inimigos em luta, pron-
consumo. Pôde chegar-se assim a valores nominais bem pouco tos a explorar qualquer fraqueza do adversário, esse movimento
correspondentes ao real. Na luta econômica universal, a inter- é gerado não só pela esperança de um lucro sempre maior em
venção estatal pôde, com isso, coagir a seu favor os equilíbrios vantagem própria e com dano do outro, mas também pelo medo
naturais e alterar os valores reais. Desse modo, em pleno regi- de uma perda sempre maior, com dano próprio e vantagem do
me de tanta liberdade trombeteada, a intervenção estatal parali- outro. Nasce então, com o aumento da oferta, o pânico no pro-
sou o jogo da oferta e da procura. Por isso a violação dos equi- dutor ou possuidor das mercadorias, ou seja, o medo que a des-
líbrios que naturalmente se formam num regime de liberdade cida dos preços continue com uma desvalorização sempre cres-
econômica, conduz a regimes econômicos falsos, a inflações cente dos bens possuídos. Ao contrário, com o aumento da pro-
monetárias, a crises contínuas, delícia de nossos tempos... cura, forma-se outro pânico no consumidor ou possuidor da
Nada pode firmar-se sobre a mentira. Em qualquer terreno, moeda, isto é, medo que o aumento do preço continue, com um
a vida, que é honesta, quer que valores reais correspondam aos encarecimento sempre crescente dos bens.
valores declarados. No mundo econômico, isto é tão verdadei- Eis, então, que o sistema, ao invés de conter forças que ten-
ro como no mundo físico ou moral. Emitir papel-moeda sem o dam a repô-lo em equilíbrio, resulta em forças que tendem a
equivalente lastro de ouro significa pôr em circulação moeda ampliar e agravar sempre mais o desequilíbrio. Em outras pala-
falsa, e comprar com semelhante moeda, sem dar pela merca- vras, ao se verificar uma descida dos preços, o produtor ou o
doria o equivalente ao que com ela se adquire, equivale a um possuidor da mercadoria, temendo sempre maior desvaloriza-
furto. Mas é furto de Estado e, como tal, juridicamente prote- ção da mesma, ao invés de retirá-la do mercado, é levado, prin-
gido. Esse foi o caso da emissão do papel-moeda pelos aliados cipalmente se esta é deteriorável, a saturá-lo sempre mais, au-
que ocupavam a Itália no fim da II Guerra Mundial, forma ci- mentando seu próprio depreciamento e, assim, valorizando e
vil de tomar sem dar nada, ainda que de forma legalmente cor- afugentando a moeda. De outro lado, no caso oposto de aumen-
reta, isto é, pagando regularmente, porém com papel desprovi- to de preços, o consumidor ou possuidor da moeda, temendo
do de qualquer valor real. Mas guerra é guerra, e apossar-se de sempre maior escassez de mercadoria, pelo medo de ficar des-
tudo sem saquear as casas – como sempre fizeram os exércitos prevenido do necessário, ao invés de retirar o dinheiro do mer-
invasores – apresentando-se com as vestes cândidas de liberta- cado, é levado a lançá-lo aí cada vez mais, aumentando seu
dores que espalham flores, já é um progresso, ainda que apenas próprio depreciamento e, assim, valorizando ou aumentando de
na forma. Assim, as despesas aliadas, feitas com papel fictício, preço as mercadorias. Então a posição de desequilíbrio inicial,
puderam aumentar a inflação, com a qual tudo foi graciosa- em que se baseia e surge o sistema, arruína-o e consome-o todo,
mente pago. Permaneceu, desta forma, grande quantidade de até ao fim. Os impulsos dos dois egoísmos que contrastam,
papel-moeda em circulação, com poder aquisitivo mínimo, es- buscando sobrepor-se e eliminar um ao outro, pois um quer
tando os bens e a produção, devido à destruição bélica, mais vencer o outro, esmagando-o, não podem dar-nos um equilíbrio
diminuídos que aumentados. entre eles como dois pontos equidistantes, mas apenas um cons-
Enfrentemos agora o problema mais particular ainda da es- tante acúmulo de desequilíbrios e agravamentos de crise, pelo
tabilidade monetária. É evidente que a primeira qualidade que fato de procurem, ao contrário, resolver seu embate só com a
deve possuir a moeda, como contravalor de bens, é a confiança, vida de um, impondo como condição a morte do outro. É por
ou seja, a moeda deve corresponder a um valor real, e isto em isso que, tão logo se verifica um desequilíbrio inicial, todo o
forma estável. Hoje, porém, uma das características da moeda, sistema tende a ampliá-lo e agravá-lo, ao invés de resolvê-lo.
ao invés, é especialmente a instabilidade de seu valor. Mas, dada a psicologia anticolaboracionista em que se funda
Deveria haver equilíbrio e união entre os dois termos: bens nossa economia, ela só pode ter uma fisiologia cancerosa, só
e moeda, para que fecundassem em colaboração com a vida pode ser economia de crise, como o é de fato.
humana. Mas, ao invés, eles se combatem e se afugentam mu- Então, quando, devido à abundância, o preço da mercado-
tuamente. Deveriam estar abraçados, no entanto, ao contrário, ria diminui, ainda que o produtor procure produzir menos,
são rivais. Quando um precisa do outro, este o abandona. Há pois cada nova produção aumentaria mais o dano, os compra-
luta e antítese entre bens e moeda, pelo que, quando os bens dores prorrogarão suas aquisições, porque cada um é levado a
abundam no mercado, a moeda desaparece e, ao contrário, es- segurar o que vale, isto é, a moeda neste caso, e também por-
ta sai a procurar desesperadamente os bens quando estes, por que lhes poderá parecer mais útil prorrogar seu gesto, na espe-
qualquer motivo, escasseiam. Assim, acontece que, quando os rança de que os preços possam baixar ainda mais. Enquanto
armazéns estão cheios, os bolsos aparecem vazios e, quando acontece isto, os possuidores da mercadoria, temendo ulterio-
os armazéns estão desprovidos de mercadoria, então os bolsos res baixas, lançarão tudo no mercado para apressar sua venda.
se apresentam cheios. Assim ampliar-se-á cada vez mais o desequilíbrio, agravando-
Por que acontece isto? A economia é como um organismo se o estado de desconfiança, até atingir a queda nas crises.
vivo, movimentado e regido em seu funcionamento pela psico- Dada a estrutura do sistema, não há outra solução. Tudo age
logia humana. E como pode nascer coisa diferente de uma psi- como ampliador dos desequilíbrios. Mas o princípio desagre-
cologia de mesquinho egoísmo individualista? Dado que cada gador da luta só pode levar a esses resultados. Não sendo o
um age apenas em seu exclusivo interesse, há luta entre procura fenômeno sujeito à direção e ao controle de uma consciência
e oferta, procurando uma aproveitar-se da outra, explorando-se econômica da coletividade, tudo se desenvolve de acordo com
reciprocamente, só para trazer a si o lucro maior. Então aconte- a mesma lei que desencadeia a precipitação descontrolada da
ce que, logo que há aumento de oferta, os preços descem, isto é, avalanche, cujo movimento cresce por si mesmo e não pode
a mercadoria vale menos e a moeda vale mais, portanto esta se ser parado senão com a queda final ou crise.
retira, escondendo-se, de modo que, aumentando seu poder Neste jogo de egoísmos, os honestos sempre levarão a pior,
aquisitivo, ela se torna mais preciosa. Ao contrário, logo que há enquanto os que procuram seu próprio interesse, não se impor-
diminuição de oferta e as mercadorias escasseiam, aumentam tando com o interesse coletivo, acumularão riquezas e sairão
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 27
vencedores. Neste jogo, em que ora se escondem os bens ora a ante razões de justiça, para restabelecer a ordem, para o bem do
moeda, o trabalho, que é a coisa mais importante, sempre per- povo e até em nome de Deus. Depois, empossados, patrões e
de. No período de abundância de bens e escassez de moeda, go- clientes procurarão seus interesses, até que venha nova crise,
zam os que têm dinheiro. Nos momentos de abundância de di- sua queda e a substituição por outro grupo, que fará o mesmo.
nheiro e escassez de bens, gozam os que têm bens para vender. Pelo sistema dos egoísmos contrastantes acima exposto, a
Em meio a este contraste, o trabalho, que é o elemento genético antítese entre interesse individual e coletivo significa que Esta-
de tudo, aparece como um empecilho, pouco considerado, cons- do e indivíduo são inimigos. Então um Estado só pode manter a
trangido a sofrer o dano de ambos os lados. E, de fato, quando ordem econômica com um regime de força, que invada e con-
há abundância de mercadoria, o trabalho é rejeitado, dado que a trole toda atividade econômica dos cidadãos. Forma-se então
moeda para pagá-lo está cara e porque não convém produzir uma vasta organização burocrática, com a qual se manobra to-
mais, a fim de não aumentar a queda dos preços. Teremos então dos os mecanismos e organismos de produção, de consumo e de
o desemprego. E, quando há abundância de moeda, que sai à trocas, bancos e fábricas, agricultura e transportes. Cada cida-
procura dos poucos bens à venda, o trabalhador então acha dão vive assim, em sua atividade mais ciosa, submetido ao po-
ocupação, mas, não tendo nem bens nem dinheiro acumulados, der estatal, de que não é, de certo, aliado. Em outros termos, te-
sofrerá os danos da carestia. Assim a economia é atingida em ríamos a ditadura econômica da nação, levada a dirigir, domi-
suas raízes, que são representadas pelo trabalho. Esta oscilação nar e absorver cada atividade dos indivíduos.
contínua de valor da unidade monetária influi também no crédi- Temos dessa forma o estado burocrático, policial c militar.
to, exigindo juros altos quando a moeda escasseia, com reper- Assim, o navio da economia nacional deveria caminhar mais
cussão, portanto, em toda a produção. E, assim, esses proble- regularmente, mas é mister considerar quanto custa em traba-
mas invadem toda a vida dos povos, sendo o fator econômico lho, despesas e sacrifícios essa disciplina. Além disso, esse na-
um dos mais importantes na determinação do curso da história. vio se transformaria depressa em navio de guerra! Em vista da
Observemos mais de perto ainda esse sistema de antíteses. oposição entre o interesse do cidadão e o do Estado, a fim de
Num mundo equilibrado, não deveria haver antagonismo entre obrigar o indivíduo a sacrificar o seu em benefício do bem co-
interesse coletivo e interesse individual. Um deveria correr pa- letivo, o Estado deverá impor-se com custosa burocracia e
ralelo ao outro, e ambos deveriam coincidir. Fazendo o interes- também com poderosas forças de polícia e de exército. Diante
se próprio, o indivíduo deveria implicitamente fazer também o de uma invasão na esfera ciosa dos interesses privados, todos
da coletividade. Ora, na prática, sucede justamente o contrário, se rebelam, e a disciplina representa fadiga e gastos pelo atrito.
pois quem quiser se salvar não deve em absoluto pensar nos in- Então a nau do Estado, que poderia ser um navio de passagei-
teresses da coletividade. Vejamos dois exemplos. ros ricos de espaço e confortos, deve tornar-se um navio de
Num período de descida de preços das mercadorias e valo- guerra, em que tudo é disciplina e limitação, porque as maiores
rização da moeda, dever-se-ia, no interesse coletivo, continuar margens de liberdade e riqueza são absorvidas pelas despesas e
a produzir, a dar trabalho, a manter em pé a própria indústria. pelo peso da grande máquina estatal.
Mas quem tivesse, para isso, no princípio do ano, tomado uma É sempre o princípio da luta e rivalidade de egoísmos que
soma em empréstimo no banco teria conseguido, em virtude da reclama a necessidade de uma autoridade que, no interesse ge-
diminuição dos preços, muito menos lucro no fim do ano do ral, termine com a constante guerrilha. É assim que o contraste
que houvesse despendido e, ainda que tivesse aumentado a ri- entre os interesses dos indivíduos entre si e dos indivíduos com
queza real e proporcionado um benefício à sociedade, teria tra- o Estado, abre as portas aos despotismos e às ditaduras, que
balhado com prejuízo e estaria arruinado. No caso contrário, acham na necessidade de manter a ordem a sua justificação de
num período de subida de preços e desvalorização da moeda, domínio absoluto. Mas assim chegamos ao arbítrio, que termi-
seria interessante que, no interesse coletivo, todos os que tives- nará com novas crises econômicas, guerras e revoluções, depois
sem reserva de mercadoria as vendessem, para satisfazer as das quais recomeça-se tudo desde o início, como acima.
necessidades coletivas, esperando para readquiri-las depois, As nações vizinhas, pelas mesmas razões, transformar-se-
quando a produção recomeçasse, e isto, sobretudo, para as ão em outros tantos navios de guerra semelhantes àquele, e to-
mercadorias indispensáveis. Pois bem, suponhamos que um das esperarão uma oportunidade de guerrear-se, pela mesma
vendedor de tecidos ou remédios etc. venda ao preço corrente. razão que transformou cada uma de navio civil em navio de
Ao fim do ano, achar-se-á ele com o depósito vazio e com ne- guerra. A ordem entre todos os navios de guerra, ou nações, só
cessidade de preenchê-lo com preços aquisitivos muito superi- possível de ser obtida por imposição de uma ditadura superior
ores aos que ele vendeu. Se recorrer às suas economias, ele as a todas, não pode ser alcançada, e assim o campo permanece à
achará depreciadas, com poder aquisitivo muito inferior e, as- mercê apenas do livre sistema de ataque e defesa para a sele-
sim, estará arruinado. Quem se salvará então? Só aqueles que ção do mais forte. Cada navio ou nação representará apenas
tiverem cuidado exclusivamente de seu próprio interesse pes- uma unidade coletiva, baseada no mesmo princípio de egoísmo
soal, em prejuízo do interesse coletivo. próprio a cada um dos componentes. Cada um deles procurará
◘ ◘ ◘ sua vantagem exclusiva e o prejuízo da outra nação, procuran-
Ao verificarmos isto, uma coisa nos surpreende: ver como, do nela exportação, emigração e tudo o que lhe serve. Mas, in-
apesar de tudo, o organismo social tenha podido sobreviver. felizmente, a outra nação buscará fazer o mesmo, em sua van-
Parece que os recursos primários da vida tenham sido calcula- tagem exclusiva. Assim, um dia, rebentará a guerra e será des-
dos de modo que pudessem resistir a todos os assaltos des- truído todo o superávit de riqueza e bem estar conquistado, que
truidores. O organismo social sobrevive, mas é mister verifi- poderia lhe ter servido para elevar o nível de vida. Mas, na sa-
car quantas dores custam à humanidade tais erros. Contudo a bedoria das leis da vida, tudo é merecido, tudo deve ser pro-
ignorância e a insensibilidade humanas parecem proporciona- porcional ao grau de inteligência e consciência atingido. As-
das às dores. E, assim, o sofrimento constitui uma das princi- sim, tudo torna a se nivelar mais em baixo, no nível em que o
pais ocupações do mundo. homem automaticamente se encontra, por seu peso específico,
Imaginaram-se remédios, mas estes, frequentemente, foram na escala da evolução. Assim aparecem em rodízio crises, di-
piores que o mal. Assim foi a intervenção coativa da autoridade taduras, guerras e de novo crises, e assim por diante. É triste.
estatal. As crises econômicas fazem que as nações desejem o Mas o homem atual não consegue fazer coisa melhor.
médico para curá-las. Por isso um novo grupo, substituindo-se Como se vê, a intervenção estatal não resolve o problema. E
ao velho, culpado do mal estar, assumirá o poder, sempre medi- o resolve muito menos ainda, porque a moeda deveria represen-
28 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
tar uma riqueza real, e não um valor fictício de curso legal, ção de mercadoria à de moeda, e ao contrário, exercendo a fun-
mentira imposta pelo Estado, convenção e ilusão, um não-valor ção de uma ou de outra, segundo a necessidade.
que adquire valor só pela vontade de um governo. Também não Imaginemos a economia de uma nação representada por
se pode pretender, para resolver o problema, a transformação um navio dividido pela metade, no sentido do comprimento,
em altruísmo da atual psicologia egoísta do homem. É mister por uma linha que chamaremos de trocas, havendo em ambos
alcançar a solução suprimindo a antítese entre interesse indivi- lados bens em relação de troca direta, de uma parte e de outra.
dual e coletivo, isto é, fazendo-os coincidir. Só assim, operando Em tal sistema de trocas diretas, sem a intromissão do ele-
em bases utilitárias, será possível a compreensão, tornando a mento moeda, sendo a circulação dos bens proporcional à cir-
adesão livre e espontânea. É indispensável estabelecer um equi- culação dos meios de troca, o lado direito do navio teria carga
líbrio entre mercadoria e moeda, para, dessa forma, resolver o igual ao esquerdo. Não havendo antítese entre bens e moeda,
problema da estabilidade monetária. Hoje não há concórdia en- não haveria oscilações no navio, nem crises, e isto sem inter-
tre esses dois termos, que, sem saberem abraçar-se, repelem-se. venção de regimes autoritários que regulassem todo o movi-
Assim, os bens comerciáveis podem aumentar, mesmo sem o mento econômico da nação.
crescimento da circulação da moeda, e esta pode aumentar, Mas, quando a essa economia direta substituímos a monetá-
mesmo que a quantidade de mercadorias permaneça invariável. ria, teremos de um lado o meio da troca, a moeda, e de outro os
Como se não se conhecessem, pode aumentar indefinidamente bens comerciáveis. Dado que, como vimos, cada desequilíbrio
uma, enquanto indefinidamente diminui a outra. desses dois elementos tende a amplificar-se, não havendo ne-
Para resolver o problema, temos de achar um sistema de cir- nhum elemento natural e automático de reequilíbrio entre bens
culação monetária capaz de, qualquer que seja o afluxo de bens e moeda, entre um e outro lado do navio, a economia da nação
ao mercado, deixar inalterável o nível dos preços, ou seja, man- só caminharia sob ameaça de constante desequilíbrio, e até
ter automaticamente estável o valor da moeda. E tudo isso sem mesmo de emborcamento (crise).
coações estatais, sem o alto custo e o atrito da máquina burocrá- Trata-se, agora, de achar o meio de reequilibrar o navio,
tica, mas só pelo jogo livre da oferta e da procura, sendo tudo compensando o demasiado acúmulo de um lado e o alívio de
automaticamente regulado com despesa mínima. O indispensá- outro, contra ou a favor da moeda ou das mercadorias, segun-
vel é fazer corresponder a uma abundância de mercadorias uma do os casos. Hoje, o sistema já funciona, mas em quantidade
abundância de moeda, em vez de carência; e a uma escassez de insuficiente para reequilibrar o navio. A quantidade de merca-
mercadorias, uma escassez de moeda, em vez de abundância. doria amoedável limita-se apenas ao ouro e à prata. Hoje, o
Então a abundância de mercadoria, ao invés de desvalorizá-las – jogo do reequilíbrio só funciona em mínima parte, e o navio
valorizando e tornando rara a moeda, limitando a produção dos não sente muito seu efeito. Hoje, o trabalho de reequilíbrio es-
bens até destruí-los, para evitar a queda dos preços – produziria tá confiado a uma quantidade mínima em relação à grande
ao contrário uma paralela abundância de moeda. Então os inte- massa de bens que precisa ser reequilibrada. O reequilíbrio,
resses bancários poderiam ser baixos, e seriam estimuladas as portanto, no estado atual, funciona com efeitos mínimos, não
iniciativas e os investimentos, que absorveriam a parte exceden- porque esteja errada a fórmula de equilíbrio, mas por insufici-
te, em vez de destruí-la, e o trabalho, ao invés de parar, com pre- ência da massa reequilibradora. Ainda que perfeito como
juízo para todos, continuaria a produzir. E, ao contrário, uma es- princípio, o sistema é insuficiente, porque apenas uma merca-
cassez de mercadorias, ao invés de valorizá-las, desvalorizando doria amoedável constitui uma parte muito pequena em rela-
e inflacionando a moeda e arruinando a poupança anterior, pro- ção ao valor de todas as outras mercadorias.
duziria uma paralela escassez de moeda. Então os interesses Trata-se aqui, ao invés, de conseguir o amoedamento de um
bancários poderiam ser altos e estimulariam a economia e o tra- vasto grupo de mercadorias (grãos, café, algodão, ferro, gasoli-
balho, que, não saindo de uma crise de desemprego e tendo na, etc., segundo a produção das nações) que, acumuladas nos
acumulado bens e dinheiro, poderia resistir melhor à inflação. armazéns por parte dos próprios produtores, comerciantes, in-
O problema que nos propomos é solúvel, mas até hoje não dustriais ou bancos, funcionariam como lastro da moeda legal
foi resolvido, porque a mercadoria atualmente amoedável no circulante, a qual teria assim seu correspondente bem determi-
mundo é só o ouro e a prata, o que não é suficiente para reequi- nado e realmente existente, com plena cobertura e, portanto, de
librar as oscilações de todos os outros elementos. Mesmo se inteira confiança, como o papel-moeda baseado em ouro. Para
fosse possível produzir uma quantidade infinita desta única ser mais perfeito, o reequilíbrio deveria permitir, quando hou-
mercadoria amoedável, não se atingiria o equilíbrio buscado, vesse desequilíbrio entre o valor dos bens amoedáveis e o dos
mas sim um novo desequilíbrio, porque, com o aumento da bens não amoedáveis, que se passasse da produção destes à
quantidade da mercadoria, diminui seu valor. É certo que, no produção daqueles, e do consumo destes ao consumo daqueles,
atual sistema, existe o esquema do mecanismo reequilibrador, de acordo com a utilidade dos produtores e consumidores. Toda
mas este não pode funcionar bem, porque é insuficiente a massa a economia, inclusive as trocas internacionais, só poderia ter
reequilibradora. Então, se já possuímos a fórmula, bastará, para vantagem com uma moeda (meio de troca) que se baseia em
resolver o problema, variar apenas a relação entre bens amoe- lastros reais e está fora do arbítrio dos governos e das oscila-
dáveis e bens não amoedáveis, ou seja, aumentar a quantidade ções de valor. E, só assim, com o trabalho, base de tudo, se po-
dos bens amoedáveis. A solução está em tornar amoedável uma deria gerar riqueza, mesmo sob forma de moeda sólida, inde-
parte de bens que hoje não é considerada amoedável. pendente dos açambarcadores mundiais do ouro.
Qualquer mercadoria que não se altere representa valor Resta-nos apenas, para concluir, observar a mecânica do
permanente, pelo que pode tornar-se moeda. Assim, escolhendo amoedamento e do desamoedamento. Veremos, assim, que o
um tipo de mercadoria adequada e cercando sua conservação da sistema tende a reequilibrar-se, ao invés de ampliar o desequi-
devida cautela, torna-se possível transformá-la em moeda, sub- líbrio. Dividiremos o fenômeno em três fases; 1 a) Quando um
traindo-a ao consumo presente quando faltar moeda e abundar lado pesa mais que o outro, e o navio pende mais, por exem-
mercadoria, e restituindo-a depois ao rol de mercadoria, para plo, para a direita. 2 a) Quando os dois lados se equilibram, e o
uma venda e consumo futuro, quando faltarem bens e abundar a navio está a prumo. 3 a) Quando o navio tem maior peso do la-
moeda. Teríamos então uma moeda com uma base muito mais do oposto e pende, por exemplo, para a esquerda. Eis como
ampla, tendo como lastro uma quantidade suficiente de merca- pode operar-se o reequilíbrio.
doria amoedáveis, que, para reequilibrar o preço e tornar está- 1a Fase: Quando o grupo das mercadorias básicas custa
vel o valor da moeda, podem livremente transferir-se da posi- menos que a unidade monetária – Nesta fase, os possuidores
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 29
de mercadorias amoedáveis, ao invés de oferecê-las ao mer- V. ORIENTAÇÕES TERAPÊUTICAS E
cado, com tudo o que se segue, a conservam, provocando pa- PATOGÊNESE DO CANCER
ralelamente uma emissão de títulos equivalentes a elas, dos
quais elas representam o lastro. Esses títulos, de curso legal Enfrentaremos agora outras questões de caráter prático-
como o papel-moeda, criam um aumento de circulação e, as- social. Nenhum problema pode ser verdadeiramente resolvido,
sim, se restabelece o equilíbrio. Concomitantemente o Banco se não partirmos de sua orientação cósmica, que o enquadra
de emissão reduz a taxa de desconto, alarga o crédito, aumen- em relação ao funcionamento orgânico do todo. É necessário,
tando desse modo a quantidade de moeda circulante. Eis as- pois, partir do geral, para nele engastar depois, no ponto exato,
sim restabelecido o equilíbrio. o particular. Tudo é ligado no universo. Portanto não é de es-
2a Fase: Quando o grupo das mercadorias básicas custa tan- tranhar que possamos achar, nas condições espirituais do mun-
to quanto a unidade monetária – Nesta fase nenhuma modifica- do de hoje, as causas remotas dos estados patológicos em
ção se opera, estando já tudo em equilíbrio. crescimento. É natural, por isso, que escape à orientação mate-
3a Fase: Quando o grupo de mercadorias básicas custa mais rialista da ciência e, sobretudo, da medicina moderna o signifi-
que a unidade monetária – Nesta fase, os possuidores de mer- cado íntimo da doença, que tende a fixar-se em formas especí-
cadorias amoedáveis são constrangidos a reembolsar ao Banco ficas na raça, como última consequência das errôneas correntes
de emissão parte dos títulos obtidos como antecipação durante de pensamento que dominam em nosso tempo. Para manter o
a primeira fase, e para isso devem vender parte de sua merca- estado de saúde, é necessário que todo o mecanismo físico-
doria. Assim é diminuída a quantidade da moeda circulante e espiritual de nosso composto humano funcione em harmonia
se restabelece o equilíbrio. Concomitantemente o Banco de com os princípios das leis que regulam a vida. De acordo com
emissão eleva a taxa de desconto, restringe os créditos, dimi- o conceito unitário da vida, a medicina somática e a medicina
nuindo desse modo a quantidade de circulação legal. E assim psíquica deveriam colaborar. Deveria o médico ser também um
fica restabelecido o equilíbrio. sacerdote do espírito. No ser humano, que é, como vimos, a
No primeiro caso, tudo se reequilibra com o amoedamen- fusão de uma alma com um corpo, estão conexos fenômenos
to. No segundo, tudo já está em equilíbrio. No terceiro caso, de ordem espiritual e material, com consequências físicas de
tudo se reequilibra com o desamoedamento. Assim, os dese- origens psíquicas e efeitos psíquicos de causas físicas. Alex
quilíbrios, ao invés de aumentar, são corrigidos, e as crises Carrel, em O Homem, Esse Desconhecido, afirma que o con-
não podem desenvolver-se. Assim, o interesse do indivíduo e junto formado pelo corpo e pela consciência pode ser modifi-
o da coletividade não são mais inimigos em antítese, podendo cado tanto por fatores orgânicos como por fatores mentais.
concordar no princípio utilitário compreendido e aceito por Tudo o que existe é vivo, mas a ciência não sabe o que é a vi-
todos, qual é o da sua vantagem. Assim pode resolver-se o da, este princípio espiritual que anima tudo, ignorado pela ciên-
problema da instabilidade monetária, que atormenta o mundo. cia. Assim, tudo o que existe é um organismo em funcionamento,
Compreendido o princípio geral, cada técnico de finanças po- que traz nele escrita a sua lei. Quem se afasta dessa ordem a ela
derá adaptá-lo às condições particulares do seu país e do mo- volta, reconduzido pelo sofrimento. Ninguém nega o valor dos
mento, segundo as modalidades requeridas pelo caso particu- novos meios diagnósticos e terapêuticos. No entanto muitos dos
lar, tendo em conta que, assim, podem ser evitadas crises do- progressos em campos particulares são, em parte, anulados pela
lorosas, porquanto a riqueza deriva de recursos naturais, da desorientação no conjunto. Além disso, é errada a psicologia es-
inteligência e, sobretudo, do trabalho. piritualmente anárquica de que eles se valem, com a pretensão de
Quisemos, de fato, entrar neste problema especial de circu- tomarem o lugar da ordem natural e dobrá-la à vontade humana.
lação monetária por sua imensa importância social, dado que Tal atitude é consequência do princípio instintivo e axiomático
ela é, para o organismo econômico, o que é a circulação do da luta pela vida, princípio este tão enraizado no homem, que a
sangue no organismo humano. Circulação que, se não for bem ciência o utiliza inadvertidamente, sem discuti-lo. No entanto,
regulada, pode ser mortífera, tanto por excesso como por carên- quanto mais a ciência se eleva em conhecimento, mais deixa de
cia. A circulação monetária deve estar sempre em relação direta ser imposição pelo domínio, tornando-se adesão em obediência a
com a circulação dos bens, no entanto, com os sistemas atuais, uma sabedoria que já está atuando na vida. Neste princípio de lu-
ela tende à relação inversa. Infelizmente, se é verdade o que diz ta, que pertence aos planos mais baixos da vida, onde ecoa ainda
Filangieri (Leis Econômicas): “os homens seguem o curso do mais viva a posição luciferiana da revolta à ordem de Deus, ba-
metal como os peixes seguem as correntes das águas”, ou seja, seia-se a posição psicológica da ciência, que a leva a se tornar
se a circulação da moeda é um fenômeno tão importante, per- não um meio de civilização e bem-estar, mas sim e antes de tudo
guntamo-nos quão grande deve ser a lacuna das atuais condi- um instrumento de destruição bélica.
ções, quando o próprio Francesco Ferrara declara que a teoria No campo médico, essa psicologia leva a uma terapêutica
da circulação da moeda “é um capítulo das ciências econômi- repressiva, enquanto a medicina deveria ser somente a arte que
cas que é mister refazer de todo”. No prefácio de seu Tratado imita, secunda e promove os processos curativos da natureza.
da Moeda, J. M. Keynes afirma que: “não obstante seja a ma- Esta, no doente, age seguindo um programa próprio, conserva-
téria monetária objeto de ensino em todas as universidades do tivo e compensativo, que o médico deveria respeitar e ajudar. É
mundo, é estranho, que não exista um texto que trate sistemati- lamentável, então, verificar que a terapia não segue o esquema
camente e a fundo da teoria e dos fenômenos da moeda, tal da natureza, isto quando não se opõe totalmente a ela com in-
como existe hoje no mundo moderno”. tervenções tão enérgicas, que paralisam sua ação. Essa psicolo-
Por isso quisemos demorar-nos sobretudo nesta questão tão gia de luta para dominar e submeter levou a outro erro perigo-
viva e atual, em redor do qual giram tantos outros problemas so: o equívoco microbista, segundo o que toda a medicina se
sociais. Com isto, quisemos também desenvolver alguns aspec- concentrou na luta contra os micróbios. Correspondia perfeita-
tos do fenômeno econômico, já delineados nos últimos capítu- mente à psicologia atávica da luta pela vida a crença de que a
los de A Grande Síntese. O leitor inteligente acha aqui a chave sabedoria humana tivesse enfim descoberto, com o microscó-
para resolver por si outros problemas particulares, aplicando, pio, o verdadeiro inimigo, oculto no infinitamente pequeno, e,
como demonstramos no caso deste capítulo, os princípios gerais tendo nele encontrado finalmente a causa das doenças, fácil lhe
do sistema monista de toda a Obra e o método nela seguido pa- fosse vencê-las. E o homem, sempre ávido de guerras, iniciou
ra sua aplicação. Assim poderá ele alcançar a explicação e a com isso uma nova guerra, e nela acreditaram médicos e doen-
orientação nos fenômenos mais díspares. tes, estes últimos sugestionados pela nova ciência, que os ater-
30 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
rorizava com o espectro do micróbio. Mas, logo abaixo, expli- ciedade moderna elevou como biótipo modelo o homem de
caremos melhor estes conceitos. ação, desvalorizando o homem de pensamento, que é o que
Outra consequência da supracitada psicologia luciferiana é mais vale. Conseguiu-se, assim, eliminar da vida social o sen-
o fracionamento a que ela, estando situada no polo oposto ao tido de orientação nas infelicidades, a fé que anima no porvir,
representado pela unidade em Deus, tende por sua natureza. A a consciência das metas remotas para as quais vivemos, o
especialização, perdida no dédalo das análises, desorientando- equilíbrio e a calma dos sábios.
se e arruinando assim a virtude da síntese e da unidade, é um Chegar-se-á dessa forma a eliminar o biótipo do homem
dos erros de todo o pensamento cientifico moderno. Procede- bom e honesto, tornando sempre mais dura a luta, numa ânsia
se hoje por análise, subdividindo e seccionando, com um apro- sem tréguas. Mesmo que o trabalho produza bem-estar, se não
fundamento cada vez maior no particular. Assim, quanto mais for orientado para fins superiores, ele, ficando espiritualmente
subdividirmos um organismo unitário, tanto mais nos afasta- estéril, nos deixará desiludidos. Caro pagará a sociedade, com
remos da possibilidade de compreendê-lo, restando-nos nas sofrimentos nervosos e morais, a carência desses elementos in-
mãos, ao final, apenas um acúmulo de elementos desconexos, dubitavelmente necessários à vida. Não poderá permanecer im-
dos quais teremos que achar os significados, reconstruindo-os pune e sem consequências o erro de se ter querido fazer do ho-
na unidade, num conjunto que os explique e valorize, cuja mem – ser espiritual – apenas uma máquina de produzir dinhei-
imagem desapareceu de nossa frente. Não é de ordem analítica, ro. O espírito, cloroformizado pela concepção materialista da
mas sim sintética, o conhecimento do ser humano. Inegavel- vida, manifesta-se como pensamento falaz, incerto, agitado, de-
mente são grandes as descobertas da ciência médica, mas, para sorientado, que não caminha direto ao alvo, mas perde-se na
compreender, não basta um mosaico de julgamentos separados, tentativa de alcançá-lo. Essa ingente corrente no vazio parece
pois bem diferente é o desenho geral, único fator que valoriza dinamismo, mas é uma corrida para procurar sem encontrar,
as várias partes numa ordem superior. Não pode ser obtida a que não conclui, contraposto ao pensamento ponderado, que
compreensão do ser humano adicionando-se todos os infinitos sabe e vai direto ao escopo. A vida moderna, em grande parte, é
conhecimentos analíticos tirados da observação do particular, apenas barulho inútil, uma irrequietude que dissipa sem produ-
mas só vendo-o de outro ponto de vista, em seu conjunto. Se o zir, é dispersão de energias, é inquieto nervosismo, debaixo do
método da observação e experimentação representou grande qual está o vazio. Trabalha-se com forças ilusórias, produzidas
progresso ao criar a ciência, não é ele, entretanto, isento de pe- por excitantes. Cada desequilíbrio produz novo desequilíbrio, e,
rigos. Especializar-se quer dizer separar, significa ir de encon- assim, gira cada vez mais rápido o turbilhão que tudo arrasta.
tro ao princípio fundamental da unidade, que rege todas as Não mais se sabe hoje quanto frutifica o saber trabalhar com
formas da vida. O organismo humano é feito por órgãos que se calma. E, por isso, trabalha-se para perder, com a máquina in-
fundem, e não por compartimentos estanques. çada de atritos. Com as premissas que o materialismo hoje lhe
O microbismo mencionado acima é um dos efeitos dessa deu, a vida se torna a fadiga do diabo, desarmônica e dolorosa,
psicologia. Trata-se do calcanhar de Aquiles da atual medicina, que só produz dano. Ao passo que a fadiga de Deus é harmôni-
o “locus minoris resistentiae” do conceito patogenético. Dá-nos ca e alegre, produzindo frutos de paz. Nem mesmo sabemos
ele, mediante as bactérias, uma explicação que parece fácil e mais repousar e é frequente fazê-lo cansando-nos com inúteis
acessível, mas é apenas aparente, como veremos, e não resiste à fadigas. O homem moderno tem medo do silêncio e, para re-
crítica. Outra consequência e caminho de extravio é o laborató- pousar, gosta de aturdir-se com novos rumores.
rio. Se é verdade que fornece elementos para o diagnóstico, Vive-se esmagando o próximo. E isto significa a dor de to-
nem sempre resolve o problema. Indivíduos há que continuam dos, inclusive do vencedor, porque ele também poderá cair
doentes, apesar de serem negativos os exames. Quantas vezes amanhã na posição de vencido. É mister compreender que, es-
poderá negar-se uma úlcera porque o radiologista não acha o magando o próximo, hoje que se está formando a unidade soci-
nicho duodenal, ou então negar-se a qualidade tuberculosa de al humana, não estamos esmagando um estranho, mas uma par-
um depauperamento orgânico, de uma tenaz dor torácica, de te de nosso próprio organismo ou corpo social, do qual somos
uma febre ligeira, porque o escarro não apresenta bacilos e a células. É indispensável a eliminação do ódio, que corrói a to-
radiografia é negativa, quando, ao contrário, a história clínica e dos. A ferocidade na luta pela vida imprime traumas na psique,
o hábito constitucional do enfermo falam claro de uma pré- que se fixam na raça, com complexos congênitos de inferiori-
tuberculose? E, assim, quantas outras doenças são excluídas dade. Formam-se assim pontos fracos, e estes depois investem
com base na resposta negativa do laboratório! Ele não deve também contra o terreno orgânico, criando focos de vulnerabi-
substituir a nossa síntese pela sua análise. Nosso julgamento lidade, que constituem as portas abertas para as doenças. Cada
deve dominar, e não sujeitar-se a tais respostas, deve iluminá- erro se paga, mesmo este da desorientação espiritual. E paga-se
las com sua luz e completá-las onde elas se calam. Em outros com a moeda soante de nossa dor. Cada estado desarmônico
termos, é mister curar o enfermo como unidade orgânica, e não ecoa e se repercute de plano em plano, até que fique exaurido
uma doença teoricamente decomposta em seus elementos. seu impulso e esteja tudo pago por nós mesmos. Para remediar
Como se vê, a medicina está enferma de diversas enfermi- tudo isso, seria necessária não só uma profilaxia e higiene fisio-
dades. Mas, dado que isto é uma consequência da corrente de lógica, mas também e sobretudo espiritual.
pensamento hoje em voga, é natural que também esteja desvi- Diante de tal estado de coisas, ao invés de reconhecer essa
ado do bom caminho o conjunto dos doentes. A massa destes, condição patológica, ao invés de compreender que suas causas
sendo eles homens de nosso tempo, tem um conceito errado estão antes de tudo no espírito e que a cura só pode ser obtida
da vida. Esta é um ato de ordem e disciplina, do espírito e do refazendo-se tudo desde o início, prefere o homem abandonar-se
corpo, e não uma corrida ao gozo. Os vícios de todos, ricos e ao belo sonho de que a medicina, com a baqueta mágica do far-
pobres, as condições antinaturais da vida nas grandes cidades, macêutico, opere por si o milagre de nos curar. Na verdade, so-
mil hábitos artificiais, transformam a elevação do nível de vi- nhar é belo. Mas é lógico que, depois, tudo seja ilusão. Antes,
da num perigo para a saúde. Esta é dada, antes de tudo, por abusa-se de tudo com uma vida desregrada e, depois, pretende-
um regime simples e sóbrio, de ordem, porque a doença só en- se o milagre da cura pela ciência. Com essa psicologia dominan-
tra quando lhe tivermos aberto as portas, enfraquecendo as na- te, como impedir que ela influencie o próprio médico, que é as-
turais resistências orgânicas com um sistema errado de vida. sim levado a usar sistemas enérgicos, que deem o resultado tan-
Nisto entram também nossos hábitos psíquicos, nosso modo gível e imediato que o cliente quer, sem cogitar o que isso pode-
de conceber e dirigir-nos. Com sua direção materialista, a so- rá custar ao organismo perturbado em seus equilíbrios naturais?
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 31
De outro lado, como impedir, dada a psicologia dominante, Essa reação tem a sua razão de ser, sua estrutura, seu ciclo,
que se forme sobre ela uma indústria farmacêutica que satisfa- sua duração, seu tempo individual interior, sua solução. A natu-
ça esse estado de ânimo? É natural que a procura provoque a reza viva é, sem dúvida, inteligente e finalística, tendendo à
produção e a oferta. Aparece assim, no mercado, um acervo de própria conservação. É natural então, em tais processos reati-
produtos já confeccionados para cada tipo de doença. Desse vos, que se realizem operações de acúmulos, transformação e
modo, prescindindo das particulares condições do enfermo, eliminação de substâncias tóxicas e detritos celulares, opera-
acha-se automaticamente pronto o remédio. E, para que tudo ções que só os micróbios podem realizar, porque é a eles que,
seja acessível a todos, mesmo às classes menos favorecidas, tanto no terreno agrário como no animal, está confiada a função
mecaniza-se a vida em serviços simplificados e administrados desintegradora das substâncias desvitalizadas. Então eles, atraí-
em série. Essa industrialização é, na verdade, economicamente dos como por uma chamada, acorrem e realizam sua função au-
rendosa e mais realizável, porque praticamente mais fácil, mas xiliar e integradora, pela solução do processo morboso. Assim
não é, sem dúvida, o meio mais apto à finalidade de curar. To- como os micro-organismos do terreno se lançam sobre a maté-
davia, como se vê, existe uma cadeia de exigências de todo o ria orgânica em decomposição, para transformá-la e torná-la as-
gênero, que são dessa forma satisfeitas, e assim tudo se expli- similável às plantas, os micróbios que se acham inócuos, à es-
ca. Há somente um pequeno erro. A solução do problema da pera no ambiente ou em nós, quase que sentindo a presa, tam-
saúde física e espiritual, problema único, não se pode alcançar bém se lançam sobre o materiais em decomposição que se
por esse caminho. A saúde não se conquista com o produto acumularam no organismo, para transformá-los e eliminá-los.
farmacêutico, mas sim com um regime são de vida, fornecido Então não é o micróbio que atenta contra a vida celular, mas
pela compreensão de suas leis e pela obediência a elas. A saú- é a célula organizada que, desorganizando-se, decompondo-se e
de é um estado de equilíbrio que só pode ser conquistado pelo dissolvendo-se, permite ao micróbio viver e cumprir sua função
esforço do autodomínio, para nos mantermos disciplinados na cósmica proteolítica. Nada há de funesto e mortal nas coisas da
ordem, tanto espiritual como material. E uma medicina enfer- natureza. A doença, muitas vezes, é uma experiência de salva-
ma de analitismo, de microbismo, de laboratorismo etc., não ção, e a morte é a passagem para outra forma de vida. As pró-
poderá absolutamente, por meio da indústria farmacêutica, rea- prias doenças epidêmicas, como peste e cólera, são consequên-
lizar o absurdo milagre de curar um público de doentes desori- cias da resposta do organismo a causas patogênicas. Caso con-
entados, ignaros das regras do sadio viver. trário, numa epidemia, deveria perecer a totalidade.
◘ ◘ ◘ Segue-se daí que o sistema de truncar os sintomas de uma
Após esta visão panorâmica, entremos nas minúcias da ques- doença aguda, como se fossem eles a causa, é uma repressão pe-
tão. Procuremos compreender como a vida, não obstante tudo rigosa com resultados ilusórios. As doenças agudas são uma
isso, sabe triunfar. Se assim não fora, já de há muito teria desa- concentração de luta, onde ela é necessária. Trata-se de movi-
parecido a humanidade. Acredita-se, em geral, que as doenças mentos calculados, que se devem desenvolver segundo um pla-
cheguem por acaso, quando o capricho de alguns micróbios pa- no preestabelecido. Então a ação de truncar uma doença prepara
togênicos os faça agredir e instalar-se em nosso organismo. Mas outra mais grave, porque a natureza não abandona a luta e rea-
não é assim. Em muitos casos, os micróbios só entram quando cende alhures a necessária reação para sua conservação. Isto até
há uma porta aberta e um convite que os instigue a entrar. Então que, exauridas as forças disponíveis, ela se relaxa e permite, en-
não está apenas no micróbio inimigo, mas também em nosso es- tão, o advento da anarquia orgânica do câncer. Se este fenômeno
tado orgânico a causa de nossas doenças. A lei é que cada um está crescendo, deriva isso também do sistema de obstaculizar o
traz em si mesmo a causa das próprias enfermidades. Muitas ve- desenvolvimento das salutares reações morbosas. É perigoso
zes, então, não é o micróbio que forma a doença, mas sim a do- atrapalhar os cálculos da natureza, eliminando os micróbios,
ença que atrai o micróbio. Como ocorre isso? com os quais ela conta para se defender. Paralisando-os, anula-
A orientação diagnóstica pós-pasteuriana, organística e lo- se também um meio de defesa. Mas, além disso, o antibiótico é
calista foi sempre levada a considerar, mais do que o ponto de um tóxico para o organismo, tanto que paralisa todos os elemen-
partida, o ponto de chegada da doença. Descoberta a presença tos químicos, físicos, histológicos, secretivos, nervosos e mag-
de determinado micróbio, a medicina fica satisfeita por poder néticos, que a natureza havia mobilizado para sua defesa. Desa-
considerá-lo a causa primeira da doença, tanto mais que a ex- parecem, então, os sintomas. Eis o milagre, que é apenas ilusão.
periência confirma essa presença. E eis a série dos antibióti- O esforço vital de defesa foi anulado de um golpe, e faz-se o de-
cos, sulfas, penicilinas e outros derivados do mofo, como es- serto. Os humores tóxicos, de que estava saturada a economia e
treptomicina, clitocibina, aspergilina, aureomicina, cloromice- contra os quais se armara a natureza, continuam a poluí-la, e o
tina, superpenicilina, subtilina etc. Assim os antibiótico, pala- doente permanecerá doente. Ele, então, ao invés de se recobrar,
vra que significa: contrário à vida, deveria curar a doença, fica fraco e cansado. E, se, a seguir, não obstante tudo, a nature-
mas as coisas sucedem diferentemente. Sem dúvida, o micró- za souber e tiver a força de reacender uma reação de defesa, o
bio está lá, pois, onde existe matéria orgânica desvitalizada e organismo cairá num estado progressivamente discrástico, que
em dissolução, ele não pode faltar. Mas ele não se encontra lá prepara as mais variadas síndromes degenerativas, até à tragédia
para agredir com seu poder homicida, mas sim para cumprir do câncer. É por isso que, com tantas descobertas, as estatísticas
sua função benéfica, de ordem, que entra no quadro do desen- vão registrando aumento de doentes.
volvimento e da solução da doença. Os micróbios são muitas O princípio da caça ao micróbio não resolve. Basta apenas
vezes efeito, e não causa da doença, são o ponto de chegada, e observar o fato de que ele se habitua e, circulando qual patrimô-
não o de partida dela. Há aqui um erro de perspectiva psicoló- nio comum a todos, requer, para ser abrandado e debelado, uma
gica. Não existem na natureza antagonismos, mas sim integra- dose, sempre mais forte da substância com que queríamos elimi-
ções. A doença em geral está na constituição do indivíduo; ná-lo. Seria indispensável maior respeito às leis da natureza, evi-
suas raízes mergulham no terreno orgânico do sujeito. Seu tando intervenções violentas e diretas. Ela fez a torrente circula-
ponto de partida é o acúmulo de substâncias tóxicas, de maté- tória hermeticamente fechada, a fim de que as substâncias que
rias morbígenas, contra as quais, quando se atinge o limite da são absorvidas pelo sangue sejam antes homogeneizadas pelos
tolerância, a natureza orgânica reage em legítima defesa, e a complexos fisiológicos do organismo a que pertence o sangue. É
doença explode por lei de conservação. Ela é, pois, uma crise perigoso, por isso, o comuníssimo uso de atentar contra a integri-
protetora, um esforço curativo da natureza, necessário para dade do sistema circulatório mediante injeções endovenosas.
restabelecer o equilíbrio fisiológico humoral. ◘ ◘ ◘
32 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
Penetremos ainda em maiores particularidades, para nos celular, em que são impressos os caracteres das duas células
aproximarmos da compreensão do caso específico do câncer. progenitoras, caracteres que continuarão a se transmitir em toda
Conforme esclarecemos acima, a natureza possui uma inteligên- a multiplicação celular sobre a qual se baseia a formação do or-
cia sua, que usa com finalidades defensivas e conservadoras. A ganismo físico. Logo que se forma esta primeira célula, inicia-
doença, então, é um movimento curador, que faz parte de seus se o processo de construção de uma vida própria autônoma e
equilíbrios. A doença não é devida só ao micróbio, mas sobretu- independente, que faz centro em redor de outro eu ou persona-
do ao estado de vulnerabilidade do organismo. Se bem que a lidade, que não é a dos pais, ainda que o material utilizado para
nossa seja a era microbiana, em que a medicina se apega ao con- se revestir de um corpo seja tomado do organismo vindo da
ceito de infecção, os micróbios não são ferozes homicidas, mas mãe. Da primeira célula, começa um processo de reprodução e
colaboradores dos processos da vida. É a anormalidade do teci- multiplicação por cisões (cariocinese), com ritmo e diferencia-
do que precede a chegada e a fixação do micróbio, de modo que ções bem disciplinadas. Este ritmo é forte nas primeiras fases
as formações microbianas se apresentam quando é necessário embrionárias e de crescimento, mas decresce em seguida, pau-
desenvolver-se sua função proteolítica de purificação dos focos. latinamente, à proporção que os tecidos vão se diferenciando e
Dito isso, procuremos compreender o mecanismo da pato- os órgãos e aparelhos orgânicos se formam, até o organismo
gênese do câncer. Para melhor compreender o fenômeno, repor- adquirir sua conformação definitiva e adulta, quando a reprodu-
temo-nos às origens do nosso organismo. Daremos assim um ção celular torna-se tão exatamente disciplinada, que se limita
breve passeio pelas íntimas maravilhas da vida, o que nos per- apenas a substituir as células que se vão gastando na troca vital.
mitirá não só observar a sabedoria de seus planos de desenvol- A disciplina também é dada pelos limites dentro dos quais a cé-
vimento e esquemas arquitetônicos, mas também fazer novas lula deve reproduzir-se, sem o que o organismo nem atingiria
observações em relação à reencarnação. nem manteria sua configuração.
A entidade psicofísica que constitui o homem é, em última Leva-nos tudo isto a considerações de caráter filosófico e
análise, apenas a vibrante organização de bilhões de células em espiritual, que só podíamos fazer após o presente estudo, de ín-
constante evolução ou involução, em contínua adaptação ao dole técnica, para uso dos médicos. Quem dirige todo o fenô-
ambiente externo, assim como o cosmo é apenas um imenso meno? Há nele uma disciplina perfeita, uma coordenação de
agregado de átomos. Vida orgânica e vida inorgânica, fenôme- operações que colaboram todas para a execução de um exato e
no biológico e fenômeno físico-químico, são expressões da preconcebido esquema arquitetônico. Uma disciplina presume
mesma matéria, que se organiza e se agrega de modo diversís- um disciplinante, um trabalho inteligente indica um princípio
simo. Dessa forma, poderemos dizer que, no mundo biológico, inteligente, um trabalho periférico presume um motor e uma di-
a célula está para o organismo assim como, no mundo físico- reção central, a construção de uma estrutura orgânica só pode
químico, o átomo está para o microcosmo. Tal como o átomo derivar de uma unitária vontade finalística a que obedecem as
inorgânico é constituído por um núcleo central de carga eletro- células. Quem é que dirige todo esse trabalho? Por si mesmo,
positiva e por um ou mais elétrons de carga eletronegativa, a certamente não. Cada uma das células, por mais que seja levada
célula também é constituída por um núcleo central e pela subs- por hábitos e lembranças atávicas a refazer um caminho já tan-
tância protoplasmática. Portanto célula e átomo são as unidades tas vezes percorrido (a ontogênese repete a filogênese), não po-
elementares constituintes do mundo orgânico e do inorgânico, de dirigir um trabalho de conjunto diferente daquele de cada
igualmente cindidas e reunidas em seus dois elementos compo- uma, não pode possuir um conhecimento que supere as funções
nentes inversos e complementares, sempre positivo e negativo. da própria vida de cada uma. Então, o que dirige tudo seria um
Assim o átomo é regido e animado pela coesão de duas partes genérico consciente cósmico? Mas, neste campo da vida, tudo é
antagônicas que o compõem: a carga eletronegativa ou magné- individualizado, tanto como forma própria exterior quanto co-
tica e a carga eletropositiva ou radioativa. Por sua vez, a célula, mo princípio diretivo, portanto um genérico consciente cósmico
outro equilíbrio por compensação dos contrários – uma espécie só pode ser concebido como individuado na forma de um “eu”
de átomo orgânico – tem, em contraposição ao átomo inorgâni- pessoal ou princípio espiritual da personalidade. Será talvez a
co, o núcleo carregado eletro-negativamente e a massa proto- alma da mãe? Mas o processo continua, ainda que a mãe morra
plasmática carregada eletro-positivamente. Essa inversão de logo após o parto, e, mesmo em seu seio, há diretivas autôno-
carga elétrica entre o mundo inorgânico e o orgânico é o ponto mas, independentes da vontade dela.
nevrálgico da biologia. Tal paralelismo relaciona tudo com um Só nos resta admitir um princípio espiritual preexistente,
princípio unitário. Quando for penetrado o mistério biológico que intervenha para realizar esse trabalho. A sua ação diretora
até à profundidade do átomo constituinte, segundo as universais inicia-se na primeira reunião dos elementos prolígenos sexuais,
leis da matéria, o fenômeno da vida poderá ser visto em sua no átimo da concepção (em confirmação, veja o Cap. VIII – “O
unidade com todos os outros fenômenos. Livro Tibetano dos Mortos”). O trabalho que vemos realizar-se
Vejamos como o fenômeno da vida humana, enquadrado como consequência nos demonstra a verdade e necessidade
assim em relação ao fenômeno cósmico, inicia-se em seu lado desta afirmação. É o espírito que, nos primeiros tempos, viven-
físico. Nosso organismo vivo deriva de uma primeira semente, do da vida da mãe, faz para si e por si o seu invólucro físico,
representada pela esfera de segmentação que se forma pela fu- adaptando-se ao terreno paterno-materno de que o deriva e
são das duas células sexuadas, masculina e feminina. Elas são o adaptando a si esse material de construção. Assim o espírito
produto de dois organismos vivos que se formaram pelo mesmo constrói sua casa. Podemos então, agora no campo biológico,
processo, numa corrente vital única, em que se escreve toda a esclarecer o fenômeno da reencarnação, de que em breve nos
história vivida e se imprimem todas as qualidades adquiridas no ocuparemos. Aqui não se trata de uma memória atávica celular,
campo orgânico. Portanto tudo é transmitido, e, com o nasci- que poderemos chamar analítica e periférica, mas de outra me-
mento, cada indivíduo recebe dessa forma uma sua particular mória, espiritual, que poderemos denominar sintética e central.
constituição física, com qualidades de resistência e vulnerabili- Para nos indicar a sua existência, seria suficiente a lei de equi-
dade congênitas, hereditárias, atávicas. Assim a substância fisi- líbrio do dualismo universal. Quando inicia o nascimento do
ológica que fornece a matéria prima para a construção do orga- corpo, a alma se dedica ao trabalho de formação de um orga-
nismo humano pode estar, desde o início, sadia ou estragada, nismo que corresponda a um esquema preestabelecido, que ela
conforme a carne transmitida pelos pais. já conhece por sucessivas encarnações no biótipo humano. Não
A primeira célula do novo organismo é constituída, pois, se lança ela a uma experiência nova, mas apenas repete uma
pela fusão dos dois elementos prolígenos unidos numa simbiose experiência já realizada, quem sabe quantas vezes, cujo conhe-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 33
cimento só pode ser adquirido lentamente, por graus. De outra mônico complexo de nossos tecidos, órgãos e aparelhos, que
forma, o espírito não poderia realizar esse trabalho. Tudo con- são expressões de ordem e disciplina, essa célula secessecio-
verge para nos demonstrar a verdade da tese reencarnacionista. nista, subversiva, anárquica e criminosa é, ao contrário, a ex-
Material orgânico e espírito já se conhecem bem, e só de longa pressão da desordem e do mal no campo orgânico.
convivência podia nascer a sintonia físio-psíquica que permite O fato de o câncer aumentar à proporção que nos afastamos
sua fusão num mesmo composto humano. A vida baseia sua re- da vida sadia segundo a natureza, numa sociedade também espi-
sistência na adaptação, e assim é ela possível de ambas as par- ritualmente corrompida, e também crescer com esta corrupção,
tes, do corpo em relação ao espírito e do espírito em relação ao faz pensar que ele seja o resultado de um desconjuntamento dos
corpo. Por longa repetição, a alma humana habituou-se ao am- ritmos vitais e exprima um estado patológico de todo o comple-
biente terrestre, homogeneizando-se a ele. É absolutamente im- xo humano. Seu modo de manifestar-se faz pensar, de acordo
possível um princípio espiritual, que se destacou do mundo do com a lógica que até aqui desenvolvemos, em um relaxamento
absoluto, enxertar-se de um só golpe, no momento da concep- do poder diretivo central, que é espiritual, e, por conseguinte,
ção, no mundo da matéria. Como aceitar esse conceito, quando em um regresso involutivo dos elementos que compõem sua
ele contrasta com os hábitos fenomênicos do universo e está em veste corpórea. Significa isto que. assim, algumas células esca-
flagrante contradição com o que vemos ser feito pela vida a ca- pam à disciplina que as dirige e, por conseguinte, recaem em sua
da instante? Além disso, com a teoria da criação da alma ao fase involuída e desorganizada de reprodução indisciplinada. A
nascimento, cairia toda a teoria da evolução espiritual, que é a ordem é uma conquista da evolução, assim como é o entrosa-
contrapartida da queda pela violação da ordem da Lei; cairia o mento em unidades coletivas múltiplas, que aquela ordem aceita
sistema que explica tudo, obrigando a concluir pelo desequilí- em sua construção. E a célula que escapa a um poder central co-
brio, pelo absurdo, pelo caos. ordenador só pode ter a sua própria diretiva individual, uma in-
Cada princípio espiritual (no sentido mais amplo, de princí- dependente da outra, sem capacidade para formar qualquer es-
pio que anima qualquer forma de vida), tem seu tipo biológico trutura orgânica. No caso do câncer, achamo-nos então, no
ao qual ele está proporcionado e no qual pode encarnar-se, mesmo indivíduo, diante de duas unidades biológicas diferentes
achando nele sua adequada expressão e gênero de experiência que convivem nas mesmas bases fundamentais da vida, isto é, a
adaptada, necessária para sua evolução. Quanto menos evoluído colônia celular anárquica do câncer e a estrutura disciplinada do
for esse princípio, tanto mais elementar será sua veste corpórea, organismo humano. Explicaremos abaixo por que a célula re-
descendo do mundo animal ao vegetal, até ao mineral (cristais) belde neoplástica se comporta assim. Ela é derivada de um mi-
e atômico. Mas, quanto mais se desenvolver esse princípio, tan- cróbio que, após longuíssima permanência e adaptação, conse-
to mais tenderá a superar a expressão de forma humana, emi- guiu desindividualizar-se e assumir caracteres afins aos das cé-
grando para ambientes onde lhe será possível construir para si lulas dos organismos policelulares evoluídos.
uma habitação mais perfeita, adaptada ao seu novo desenvol- Mas, antes de explicar tudo isso, paremos para algumas ob-
vimento e ao seu gênero de experiências, necessárias a ele para servações. Parece que, mesmo no campo biológico, as forças
continuar a evolver. Mas esta é uma ciência a ser aprendida do mal assumem as mesmas características que o individuam
gradualmente e que não pode ser usada senão quando conquis- no campo moral. A desordem e a revolta pertencem aos planos
tada por merecimento. Conforme já explicamos, os fatos nos mais involuídos da vida, cujas formas inferiores tentam sempre
mostram que reina no universo um princípio de ordem, segundo agredir as formas mais evoluídas, desde que estas relaxem o
o qual, apesar de todas as revoltas, cada coisa está contida em controle e a defesa, que só pode ser exercitada pela força e in-
seu devido lugar, nos limites que lhe dizem respeito. Ainda que, teligência do poder central. Repete-se esse fenômeno no cam-
em casos particulares, possa ocorrer o contrário, a disciplina po social, quando vemos que, logo que se corrompe e enfra-
reina inviolável nos princípios diretivos. quece um governo, imediatamente emerge das camadas inferi-
◘ ◘ ◘ ores da sociedade a rebelião para apoderar-se do poder. Leva-
Depois desta moldura introdutória, útil também para a teo- nos isto a ver uma relação entre a difusão do câncer e o cres-
ria da reencarnação, retomemos agora o caminho para alcançar cente relaxamento moral de nossos tempos. Quando a desor-
a compreensão do fenômeno do câncer. Escolhemo-lo entre dem chega ao poder central, que é o espírito, ele perde os mei-
muitos outros porque nos permite realizar várias observações os diretivos até da disciplina orgânica. O funcionamento e a
importantes. Vimos que a primeira célula do novo organismo é estrutura das células se ressentem de estados de ânimo prolon-
uma simbiose celular. Este é o tipo da sadia simbiose fisiológi- gados, habitudinários, que tendem a imprimir-se nelas, proje-
ca, da qual deriva um desenvolvimento disciplinado de células, tando as próprias deformações do plano espiritual até ao plano
que obedecem a um princípio central diretivo. Tudo aqui se orgânico. É essa transmissão ao subconsciente e, daí, por ideo-
desenvolve segundo leis organizadoras, associativas, corpora- plastia, à estrutura orgânica, que explica a evolução das formas
tivas, que dominam férrea e totalitariamente as miríades de cé- como consequência da evolução do espírito, que é a causa de-
lulas que compõem o organismo inteiro. A patológica celula- la. Assim, quando se inicia no centro esse processo de degra-
ção neoplástica do câncer, ao contrário, tem características dação, é natural que se verifique um regresso involutivo geral.
opostas. A célula neoplástica não obedece mais à disciplina do Compreende-se então como uma célula inferior e degenerada,
poder central e, arrastada pelo próprio prurido genético, repro- de origem micróbica, possa tentar revoluções no seio de um
duz-se louca e anarquicamente. Daí o neoplasma. Acontece, organismo relaxado pelo poder central. É justo que este, então,
então, que essa célula neoplástica, reproduzindo-se por subdi- não merecendo mais ficar no plano evolutivo atingido, de
visão como as outras, não rebeldes, das quais mantém caracte- acordo com os equilíbrios da vida, sofra agressão dos inferio-
res de semelhança, senão até de identidade, torna-se a progeni- res e seja eliminado, se não der prova de possuir em si o poder
tora de uma colônia celular anárquica, que se arraiga no tecido do comando e defesa que lhe dá o direito de viver.
semelhante, constituindo aquela monstruosa massa que se Essa íntima conexão entre o próprio tipo espiritual e a forma
chama câncer. Vive parasitariamente na sociedade policelular orgânica que o reveste nos induz a admitir que, na reencarnação,
orgânica, da qual esgota o sangue e os coeficientes nutritivos, o espírito deva escolher um organismo do seu tipo, que tenha
em cuja torrente humoral despeja os produtos de sua especial suas qualidades, tanto boas como más, porque, de outro modo,
troca, verdadeiro glúten de morte, de modo que, gradual e ir- não poderia formar a sintonização necessária para a fusão. Co-
remediavelmente, subverte a admirável e concorde sociedade mo seria possível, sem uma semelhança, realizar-se tal fusão? É
celular, até destruir todo o organismo. No maravilhoso e har- lógico que, na união da alma com o corpo, devem funcionar as
34 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
leis de afinidade, que operam por atração e repulsão. Desse mo- dades, pois hoje elas seriam usadas apenas com finalidade de
do, para poder conseguir realizar uma vida inteira de tão íntima abuso, para fraudar a natureza, buscando gozos e fugindo aos
convivência, devemos admitir identidades fundamentais de qua- sagrados deveres impostos pela prole. E, hoje, a vida quer a
lidades entre espírito e organismo, concluindo que este último procriação em abundância, para que haja bastante gente para sa-
representa a verdadeira expressão do primeiro no plano físico. crificar, a fim de resistir às guerras e às suas grandes destrui-
Leva-nos isto a admitir outro fato, que aperfeiçoa mais ainda a ções, à miséria, a tantas doenças novas criadas pela civilização,
teoria da reencarnação. Quando um espírito vem inserir-se numa sobretudo à seleção na feroz luta corpo a corpo de todos contra
célula prolígena hereditariamente tarada, da qual só pode retirar todos, que ceifa os mais débeis e na qual tantos perecem sem
um organismo com certas predisposições patológicas congêni- derramamento de sangue. Enquanto não se passar desta atual fa-
tas, isto não ocorre por acaso, mas segundo a lei de justiça, que se caótica a uma fase de ordem, o sistema de colaboração e dis-
dá a cada um o que lhe cabe por seu merecimento. Será atraído ciplina que se realiza em nosso organismo não poderá ser alcan-
por afinidade, para uma determinada estrutura orgânica, o tipo çado pelo organismo coletivo. Mas, atingida uma fase de ordem
correspondente de personalidade, e não qualquer outro, ou seja, na qual o atual dispêndio da vida não seja mais requerido pelas
aquele tipo que tem um comprimento de onda que esteja em sin- formas caóticas de existência, a natureza não permitirá mais tal
tonia com a onda biológica da célula prolígena. Poderemos en- desperdício, que então será inútil, e disciplinará o esforço gené-
tão dizer que os pontos vulneráveis, as predisposições para este tico em proporção às suas novas condições. O homem evoluído,
ou aquele ataque patológico, estão antes de tudo no espírito. civilizado e consciente, não procriará mais apenas para seu gozo
Sendo assim, ainda que se verificasse excepcionalmente o ata- egoístico e para abandonar os filhos à feroz lei da seleção do
que contra um espírito são, a própria natureza diversa deste re- mais forte, mas apenas quando souber que está garantida a vida
presentaria um impulso contrário, tendente à cura. As exigências e assegurado um mínimo indispensável de bem-estar.
da lógica, os princípios de ordem e equilíbrio, um instintivo sen- ◘ ◘ ◘
tido de justiça, confirmam estas conclusões. Após estas breves digressões, que nos aconselhou o argu-
Mas a atividade anárquica e separatista das células do cân- mento, retomemos o problema da gênese do câncer. Os saprófi-
cer nos levam ainda a outras considerações. O homem atual po- tos endorgânicos, em convivência perene, de contraste e adap-
de considerar-se como uma célula de um novo grande organis- tação, com a natureza orgânica, são quatro: o espiroqueta de
mo hoje em formação: a humanidade. Como tal, acha-se o ho- Schaudinn e o plasmódio de Laveran, da série acidógena, e o
mem hoje, socialmente, na fase involuída das células desorga- bacilo de Koch e o gonococo de Neisser, da série alcalinógena.
nizadas, indisciplinadas, ainda não obedientes a um poder cen- O saprófito que, em geral, produz o câncer no homem é o
tral. Assemelha-se a nossa sociedade mais à massa desordenada espiroqueta, isso porque, entre os quatro, este é o menos exi-
celular do câncer do que à estrutura ordenada de um organismo gente, o mais paciente e contemporizador. Fica escondido du-
policelular. Como no período paleontológico, as novas formas rante anos, durante gerações inteiras. Sem bulha, adapta-se, e
de vida de nosso mundo estão na fase embrionária da tentativa. é raro que organize ataques. O organismo que o hospeda não
O poder central deve formar-se por seleção, com a destruição teme a fraude que ele esconde e, portanto, não reage como o
das formas fracassadas, imaturas, não bastante sólidas para sa- faz contra os outros saprófitos, mais vivazes e esfaimados, à
berem resistir. E, uma vez formado, deve impor e manter, com espreita entre tecidos mais altamente diferenciados, cujas
sua real superioridade, a ordem entre os menos evoluídos, por- sentinelas estão continuamente alertas. Mas a vida do espiro-
que, ao primeiro sinal de inferioridade ou fraqueza dele, estes queta, ainda que reduzida, exala, não obstante, produtos tóxi-
se sublevarão para destruí-lo e tentar uma forma sua diferente. cos, que lentamente alteram o quimismo celular, a dinâmica
Só assim poderá formar-se o novo organismo social humanida- nuclear, a própria estrutura dos átomos da molécula proto-
de, segundo a lei geral das unidades coletivas, com a coordena- plasmática, assim como o potencial magnético e radioativo,
ção e união de cada uma das individualidades humanas. positivo e negativo, da célula inteira.
Representa, assim, o homem atual a célula anárquica, tal Ora, a célula de um organismo policelular que esteja em
como a do câncer, que se reproduz sem disciplina nem freio. perfeita saúde é como uma cidadela fortificada, cujo muro de
Esse é o estado das unidades primitivas, muito mais prolíficas proteção não permite invasão de elementos heterogêneos. Mas,
que evoluídas, a fim de que um grande número possa ser sacri- quando, na luta enervante contra o saprófito, a membrana celu-
ficado, sem dano para a vida, em tentativas à procura de formas lar se tenha gastado e relaxado e o próprio saprófito, por força
melhores. Quantas existências são sacrificadas com essa finali- da mesma luta, se tenha gradualmente enfraquecido, até perder
dade, desapiedadamente ceifadas pela seleção! O mais idôneo, suas tendências evolutivas e agressivas, achar-nos-emos diante
só ele é que sobrevive. Por isso, nesta fase, a prolificação é fácil de duas substâncias prolíficas, as quais, ainda que originaria-
e abundante, proporcionada à inconsciência do homem, que não mente heterogêneas, acabam achando-se – quer por constitui-
percebe que, de acordo com a sabedoria da Lei, está gerando ção quase idêntica, como a experiência o comprova, quer pelo
para a dor e a morte. E isto é um bem, senão quem o levaria a recíproco contraste e adaptação – em estado de equivalência,
procriar para atingir tão duro sacrifício e fadiga, necessários pa- nos seus agrupamentos atômicos, com relação às leis que do-
ra que se cumpra a evolução? Mas, no futuro, deverá ocorrer ao minam os processos de fusão.
organismo social o que hoje sucede no organismo humano e até Dissemos equivalência e fusão. Mas, a este propósito, há
mesmo nas sociedades de alguns animais (abelhas, formigas), outro fato. O espiroqueta de Schaudinn encerra uma cromatina
onde os nascimentos são controlados em relação aos meios de nuclear idêntica à dos núcleos celulares, especialmente no ho-
subsistência e às possibilidades de educação. A moral evolve mem. Há, pois, forte afinidade entre ambos. Diz-nos Pfeiffer
com a vida e, com as exigências supremas desta, justifica-se. que: “a causa da neoplasmogênese é uma cromatina heterogê-
Hoje é imoral o controle dos nascimentos, porque contrário aos nea, trazida de fora por um portador de cromatina, sendo que
interesses da vida na fase atual, como vimos agora mesmo. esta cromatina no homem é exatamente a cromatina nuclear do
Nem podia isso ser concedido a um homem desprovido de espiroqueta de Schaudinn”. Este portador, então, só pode ser o
consciência coletiva, de consciência eugenética, cego diante germe que habita permanentemente na economia do organismo
dos remotos fins da vida; um homem que ainda não transfor- humano, no estado saprofitário. É legítimo, então, pensar que,
mou em automatismos, isto é, em instinto natural mediante lon- em consequência da contínua intoxicação, a membrana celular,
ga repetição, o estado de absoluta adesão à Lei, em obediência já bem defendida e fortificada para deixar passar somente as
na ordem. Só a esse tipo biológico pode conceder-se tais liber- correntes osmóticas nutritivas homogeneizadas, possa relaxar
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 35
suas malhas até ao ponto de permitir o ingresso da cromatina controle dos nascimentos, ou seja, explica-nos como, numa hu-
heterogênea, produto do saprofitismo espiroquético, à qual a manidade desorganizada e involuída como a atual, deve vigorar o
própria célula se acostumou no prolongado contraste. princípio da prolificação livre e incontrolada. Explica-nos tam-
Tudo isso tende a um estado de semelhança pelo qual os dois bém como, numa futura humanidade orgânica e evoluída, a vida
termos contrários acabarão fundindo-se em simbiose. Temos, imporá uma disciplina ao ímpeto reprodutivo, de modo que ele
com efeito, um contraste contínuo e prolongado, durante o qual obedeça às exigências de toda a coletividade.
tanto o agressor como o agredido, não podendo alcançar uma vi- Eis de onde deriva o câncer. Formada a célula simbiótica
tória plena e definitiva, acabarão por acomodar-se, com base na pela união de dois elementos heterogêneos e antagonistas, ela
lei da adaptação, atenuando respectivamente sua energia agres- se torna a cabeça do tronco genealógico de um novo ser des-
siva e reativa. Tudo isto nos faz pensar que o espiroqueta tenha mentado que, por sua origem, só obedece à sua lei e finalidade,
habitado no terreno orgânico humano desde a noite dos tempos, que não são de maneira nenhuma as do organismo no seio do
ficando aí acomodado a ponto de ter caracteres confundíveis qual se desenvolve. Assim essa célula, pela desistência do or-
com a substância nuclear do antropoplasma. Isto nos faz pensar ganismo em reagir, gera uma populosa colônia celular, organi-
também que o contraste e a adaptação entre o plasma humano e zação histológica disforme, avulsa da unidade orgânica e inimi-
o plasma espiroquético, prolongando-se por indefinido fluir de ga dela. Este é o câncer.
gerações, constituam um fator da mais alta importância para Para concluir, tiremos algumas consequências de tudo o que
atingir semelhante fraternidade de dois plasmas, a ponto de de- dissemos. Não existe, não pode existir e é inútil procurar um
sarranjar a disciplina reprodutiva da célula orgânica. micróbio no câncer. Nessa forma, ele não é encontrável materi-
Que acontece então? Ocorre a simbiose célula-micróbio. almente, nem individualizável e muito menos isolável, assim
Teremos simbiose de uma célula que não é mais célula com como não são encontráveis, individualizáveis ou isoláveis na
um micróbio que não é mais micróbio, isto é, de dois elemen- esfera de segmentação, uma vez feita a fusão, o espermatozoide
tos desindividualizados, que fundem suas cromatinas nuclea- e o óvulo, bem como suas respectivas cromatinas nucleares.
res, até aí vitais, para dar lugar a um conglomerado nuclear Segue-se daí que, em sentido absoluto, não se pode considerar a
que contém em si uma parte da substância nuclear celular e doença do câncer nem infecciosa nem contagiosa, ainda que
uma parte da substância nuclear do micróbio. Teremos uma nisso tome parte a cromatina de um vírus micróbico, mas sim
neocélula que não perdeu, em absoluto, a virtude reprodutiva, uma doença degenerativa. O vírus jamais será encontradiço no
sentindo-a, pelo contrário, exaltada pela cromatina micróbica. contexto do neoplasma, porque perdeu seus traços fisionômi-
Neocélula “sui generis”, híbrida, subordinada a uma substância cos, desindividualizou-se no longo processo de homogeneiza-
que não tem nenhuma intenção de sujeitar sua tendência ultrar- ção da própria substância nuclear com a da célula. No máximo,
reprodutiva às leis do organismo em que penetrou. Neocélula poderá ser encontrado circulando na economia, no estado gra-
degenerada, que se rebela contra tais leis, às quais as células nular ultramicroscópico, sobretudo durante a fase pré-
sadias obedecem em perfeita disciplina. Anárquica no seio da neoplástica. Dessa forma, o espiroqueta, uma vez que haja en-
ordem, procurará transformá-la em desordem, para arruinar to- trado na economia orgânica, não sai mais dela, apesar dos re-
da a sociedade policelular à qual se agarrou. médios chamados específicos. Cessada a sintomatologia reati-
Forma-se assim a célula neoplástica, que constitui uma hi- va, ele perde o estado figurado toxínico e se transfigura para
bridação celular, com caracteres semelhantes mas não idênticos sempre no estado de ultravírus tóxico, que polui permanente-
aos da células. Nela estão fixados os caracteres parentais da cé- mente a economia do indivíduo e de sua descendência.
lula e do vírus, tal como estão fixados na esfera de segmentação Assim a doença é dada não pelo assalto atual de um micró-
os caracteres parentais do espermatozoide e do óvulo. Temos, bio, mas por uma geral incapacidade congênita do organismo
assim, uma célula simbiótica patológica, com a mesma fusão e de defender-se, incapacidade já revelada pelo fato de ter o or-
permanência dos caracteres parentais, como acontece na célula ganismo permitido o estabelecimento dele e sua colônia inici-
simbiótica fisiológica. Ou seja, temos, na célula neoplástica, al. A tragédia não reside tanto, então, no fato de apresentar-se
uma fusão tal como a que ocorre com as células prolígenas se- o tumor, e sim no ter sido permitido o advento dele. Portanto o
xuadas para formar o neoplasma fisiológico, na qual a operação problema cifra-se todo em saber colocar-se em condições de
dos elementos genéticos, dada a fusão, desindividualizam-se, não permitir esse advento. E vimos de que depende isso. A ex-
iniciando uma nova individualidade celular, em que permane- tirpação do tumor, por qualquer meio que seja, não pode re-
cem, em potencial, os caracteres dos pais. compor a unidade vital em sua harmônica submissão às leis
Eis como nasce o híbrido neoplástico, contexto celular todo que presidem ao equilíbrio da economia normal. Nem o cirur-
“sui generis”, que obedece às suas próprias leis, e não às do or- gião, nem os raios X, nem o rádio, nem outros medicamentos
ganismo em que se abriga, cumprindo primeiro aquela imposta aparecidos hoje, poderão fazer voltar um poder central decaído
pela tendência ultrarreprodutiva do vírus. Por isso ocorre que, e incapaz de governar. Assim acontece com todos os governos
enquanto as células dos organismos policelulares se reproduzem fracos e ineptos, que o primeiro sopro de revolução derruba.
em proporção aritmética, as monocélulas micróbicas se reprodu- Este é o triste destino das sociedades civilizadas que se torna-
zem em proporção geométrica. O prurido reprodutivo das primei- ram, como a nossa, insensibilizadas e anérgicas em suas virtu-
ras é contido pela leis rígidas centrípetas da associação e organi- des reativas, discrasiadas pelo materialismo edonístico e ten-
zação, ao passo que, nas segundas, ele extravasa sob a elástica lei dente ao paganismo, poluídas em tudo o que surge no espírito
da reprodução, eminentemente centrífuga. Além disso, a repro- por saprofitismo psíquicos, que ecoam no plano orgânico com
dução celular é constrangida dentro dos limites da configuração saprofitismos celulares. É indispensável compreender que, no
anatômica dos tecidos e órgãos, ao passo que a reprodução mi- conceito unitário da natureza, mesmo se a ciência não admite
cróbica pode dilatar-se indefinidamente. Assim, enquanto a célu- isso, a saúde é dirigida também pelas qualidades de ordem,
la orgânica, por memória ancestral, habituou-se à disciplina, com equilíbrio e sabedoria de um poder central, que em tudo se
a qual freia o próprio ímpeto reprodutivo, proporcionando-o às prende ao princípio orgânico da vida. Isto nos reconduz aos
exigências de toda a sociedade das células, sob diretivas unitárias conceitos com que iniciamos este capítulo.
de um eu central, a célula micróbica, ignara de qualquer discipli- Entretanto não devemos ser pessimistas. Muito já se pode
na finalística coletiva, trata apenas de se reproduzir loucamente, fazer, evitando as causas determinantes do estado orgânico que
não sendo nisto vigiada por nenhum poder coordenador. Esta ob- predispõe ao desenvolvimento da doença. Isto é, evitar os coe-
servação confirma tudo quanto dissemos acima em relação ao ficientes físicos e químicos que deprimem o tônus vital dos te-
36 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
a
cidos nos pontos em que agem localmente, como café, álcool, VI. TEORIA DA REENCARNAÇÃO (1 PARTE)
tabaco, muitos medicamentos, substâncias químicas irritantes
nos alimentos, traumas etc., pois, ao se deprimir o tônus vital Seria loucura acreditar que o exame das condições atuais do
celular, facilita-se a simbiose célula-micróbio. Um regime de mundo, por nós procedido neste volume, possa ser suficiente
vida simples, são e regrado, previne o câncer. Dissemos, no iní- para modificá-lo e salvá-lo. Tão vasto fenômeno não poderá ser
cio, que o câncer aumenta na proporção do afastamento do vi- feito senão por poderosíssimas forças, que só Deus pode domi-
ver segundo a natureza. Ele parece um produto da vida artificial nar. Nós, desprovidos de todo poder, somos apenas simples ob-
da civilização. Nutrir-se de acordo com a natureza, e não por servadores. Mas conseguimos ascender, por meio da inspiração,
gula; com produtos genuínos, e não com produtos sintéticos a uma torre em que são vistos os longínquos horizontes. Pude-
farmacêutico-industriais conservados. Evitar os medicamentos mos assim narrar, aos que em baixo haviam permanecido, como
violentos da medicina repressiva, que, estrangulando ao nascer aquelas poderosíssimas forças que estão nas mãos de Deus es-
os processos morbosos agudos e desviando-os de seu curso na- tão prontas a mover-se e qual a sua direção, bem como as ra-
tural, deixam o pélago humoral poluído e em tempestade, resul- zões e o significado de tudo isso.
tando daí o enfraquecimento da resistência celular. Dessaprofi- Se a crítica, por vezes, parecer um pouco áspera, não foi,
tizar em tempo o terreno orgânico, estimulando o organismo a contudo, para condenar do alto da cátedra, nem tampouco para
combater a cilada permanente do saprofitismo endorgânico, de ofender, mas apenas para fraternalmente explicar que, num sis-
modo que a célula orgânica, no prolongado contraste com o sa- tema guiado pela perfeição e sabedoria de Deus, só pode estar
prófito, seja sempre vitoriosa e não se precipite no estado de em nós mesmos a causa de tantas dores nossas, que são até
involução que, coincidindo com o estado de involução da célula poucas em relação ao que merecemos. Se ao homem, com o seu
saprofitária, permite o aparecimento da simbiose e, portanto, a espírito rebelde, fosse dado o poder, ele tentaria destruir o uni-
neoplastia. Trata-se de combater a causa primeira do mal, isto verso e, sem a providência de Deus, que tudo guia, quiçá con-
é, aquela fragilidade e morbidade dos tecidos e aquele particu- seguiria destruir seu planeta. O fato é que estamos ainda em
lar quimio-fisio-tropismo que lhe preparam o terreno. baixo, muito em baixo, na escala evolutiva. E baixo quer dizer
Mas há outro fator importante: é o elemento espiritual. Tudo mais próximo do polo negativo, representado por Satanás e pe-
é conexo no universo e, portanto, também no composto humano, lo caos, do que do polo positivo, constituído por Deus e pela
feito de alma e corpo. Nossa ciência materialista chega a admitir ordem. O fato de que, na Terra, domina a lei da seleção do mais
que a psique deriva da matéria do corpo, e não ao contrário. forte, isto é, da ascensão por esmagamento, demonstra quanto
Nós, ao contrário, não podemos deixar de admitir o poder da ainda estamos vizinhos do polo negativo, ou seja, do princípio
psique – formadora, diretora e conservadora do corpo – tanto no satânico de rebelião, pelo qual, nesta posição às avessas, só
que diz respeito ao aparecimento e à própria propagação e difu- vence quem é mais forte. É natural que esse mundo, visto dos
são dos estados morbosos, como no que se relaciona ao mais ou planos mais altos – como quisemos fazer neste volume – pareça
menos rápido desaparecimento dos estados patológicos. Desta infernal, ou seja, um lugar ao qual venham almas baixas, con-
forma, é possível afirmar-se que a psique pode fazer adoecer o denadas a viver aí por expiação. Não é possível aqui a felicida-
órgão sadio, assim como pode curar o órgão doente. Ainda que a de senão de modo precário e como uma forma de inconsciência.
biologia queira explicar todos os fenômenos, mesmo espirituais, A felicidade consciente, originada pela chegada do ser à pleni-
só com o mundo físico, permanecem demonstradas estas nossas tude do conhecimento e à própria harmonização na ordem divi-
afirmações por todo o sistema desenvolvido em nossa obra. na, só pode aparecer nos mundos superiores.
Aquele princípio vital, imaterial e imponderável, que é a alma, é Se observarmos as características das várias formas de vida
tudo, porque sem ela a matéria seria incapaz de agregar-se em em relação à altitude dos diversos tipos biológicos na escala
organismos vivos. Para ser positiva, a ciência apega-se à experi- evolutiva, veremos que nosso mundo pertence mais aos planos
ência. Mas o que dirige a experiência é a sua razão interna, seu infernais que aos paradisíacos. Poderá haver no além, em ou-
finalismo, que lhe guia o processamento; é um conceito que per- tros ambientes, infernos ainda piores. Mas o terrestre já é bas-
tence ao espírito. Sem esse conceito para iluminar e nos revelar tante para nossas forças. Aqueles que merecem um pior, não
a alma do fenômeno, este não tem significado. A experiência tenham pressa, eles o acharão.
precisa ser interpretada por meio do engenho, que foi definido: Que é o inferno e que é o paraíso? Pela queda, de que nas-
“a faculdade de unir e reduzir à unidade comum, coisas separa- ceu nosso universo material, o princípio da unidade, que lhe
das e diferentes” (G. B. Vico). constitui a base, podia ser emborcado, mas não destruído.
Em muitos casos, seria necessário começar curando a alma. Resta assim, por toda parte, um vínculo entre todos os seres.
Por esses caminhos, hoje desusados, a terapia futura poderá cu- No alto, esse vínculo que une é o amor. Em baixo permanece
rar muito mais doenças do que hoje se possa imaginar. Mas isto ele, mas às avessas, como ódio. Num todo orgânico, nenhum
não exclui que, paralelamente, a nova ciência sutil das ondas e ser pode viver isolado. No paraíso, isto é, nas fases biológicas
radiações, com a qual ela mesmo se vai encaminhando para o mais evoluídas, para as quais caminhamos, estão os seres
reino do espírito, possa achar a estrada que beneficiará e salvará abraçados para amar-se e fazer o bem, que a todos dá alegria.
tantos pobres seres sofredores. No inferno, ou seja, nas fases biológicas menos evoluídas, de
Concluindo, depois de haver tratado no presente volume que provimos e em que nos achamos ainda, abraçam-se os se-
de vários problemas sociais, tanto materiais como espirituais, res para se estrangular, para fazer o mal mutuamente, o que é
quisemos tratar, neste capítulo, de outro assunto que tem dor para todos. Antítese perfeita, avesso completo, que se vai
grande importância para todos, qual seja a terapia em geral e, endireitando com a evolução. No paraíso, a vida de um é con-
no caso particular, a gênese do tão espalhado câncer, doença dição para a vida do outro. No inferno, a morte de um é con-
da civilização moderna. Os mais diversos temas, todos palpi- dição para a vida do outro, e ao contrário. No mundo dos
tantes de atualidade, foram aqui tratados com os mesmos animais, com efeito, a carne de cada ser é alimento para nutrir
princípios do nosso sistema, e, assim, as questões mais díspa- outro, a derrota de um é a vitória do outro. Princípios estes
res, foram reconduzidas à unidade, isto é, àquele monismo, que todos conhecem bem e que, no mundo humano, só mu-
que é o conceito central da Obra. dam de forma, permanecendo os mesmos na substância. De
Quisemos assim aplicar à vida prática de cada dia os princí- fato, regulam eles a seleção sexual, a conquista da vida, o êxi-
pios do sistema desenvolvido nos volumes precedentes, agora to em cada coisa; representam o método para chegar às rique-
transportados ao terreno atual das realizações. zas, aos gozos, à glória, ao poder.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 37
Assim, o paraíso é o reino da ordem, da harmonia, da paz. O sensibilidade. Ideia, em vez de racional, bastante aterradora,
inferno é o reino do caos, da dissonância, da guerra. Quem vive não importa se absurda, porque no ser aparece o medo antes da
em estado paradisíaco ama o próximo. Quem vive em condição razão. O verdadeiro inferno, realidade indiscutível, é aquele que
de inferno odeia e mata o próximo. Isto porque, no paraíso, a nós mesmos criamos e temos debaixo dos olhos. Não se trata,
vida de um aumenta a vida do outro, ao passo que, no inferno, a portanto, de uma verdade de fé, mas de uma tremenda verdade
vida de um sufoca e ameaça a do outro. Por isso o Evangelho, a cotidiana. E, pelas leis biológicas, é certo que, com um pouco
fim de guiar-nos ao paraíso, diz-nos: “Ama teu próximo”, en- de inteligência e boa vontade, possamos sair desse inferno, isto
quanto no mundo, infelizmente, com frequência, odeia-se o é, destruí-lo na Terra, para substituí-lo por um estado que se
próximo, o que significa inferno. E como poderia ser diferente avizinhe do paraíso. Um só é o grande problema: evoluir.
um lugar em que o próximo é um rival natural, às vezes um pe- Por mais que se queira tingi-la de civilização, é incontestável
rigo e um inimigo a destruir? Como podia ser diferente um que a nota fundamental de nosso mundo é o espírito de domínio
mundo em que reina o princípio da luta pela vida e da vitória do e de ferocidade, que, por atavismo tenaz, persiste em nossa for-
mais forte, onde a lei é devorar ou ser devorado? No paraíso, ma de vida. Essa ferocidade, todavia, tanto mais se torna percep-
cada ser é nosso amigo, para nos ajudar, e a vida, por isso, é fá- tível e salta aos olhos quanto mais o homem vai sensibilizando-
cil. No inferno, cada ser é nosso inimigo, de tal forma que a vi- se por evolução. Esse é o inimigo que está em nós e que em nós
da é bem dura. Mas isto é lógico, porque, sendo o inferno uma precisamos vencer. Tal é a lei satânica do caos, lei de luta, de-
posição de negação de Deus, não pode isto ser senão a negação sordem e ódio. Mister é acordar de novo nosso eu evoluído, até
da vida e da felicidade, que Deus representa. sentirmos como, pelo contrário, a vida vibra de outras forças,
Pouco basta para compreendermos a qual dos reinos perten- que nos parecem não existir só porque ainda não conseguimos
ce nosso mundo. Permanecermos todos amarrados por uma ca- percebê-las. Revelam elas, entre nós, a operante presença de
deia de rivalidades, luta e terror é bem infernal. E ninguém po- Deus. Verifica-se então uma transformação milagrosa, e tudo
derá negar que isto seja o resultado da lei vigente no mundo muda. Isto é possível porque tudo o que conhecemos se nos re-
animal e humano: a luta pela vida e a seleção do mais forte, e vela só em função de nossas capacidades perceptivas. Podere-
que esta seja a lei vivida pelo homem de hoje. O indivíduo que, mos compreender então que são verdadeiras palavras tão estra-
sozinho, consiga apenas superar essa fase animal, fica aterrori- nhas como estas: “A privação e a dor não são, em realidade,
zado com tão completa ausência de senso coletivo, necessário aquela derrota que parecem ser em nosso mundo de ferocidade,
para poder compreender e dar valor a utilitarismos mais vastos porque, se Deus, sempre presente como bondade e amor, tira-
e de muito maior vantagem; fica aterrorizado pela estupidez nos qualquer coisa e, com isso, nos deixa sofrer, isto é somente
desta contínua agressão mútua e pela tão grande ignorância das para nos fazer subir e, depois, dar-nos mais num plano mais ele-
mais elementares leis da vida, razão pela qual se chega a acredi- vado, em forma de alegria maior, pois a dor é a experiência que
tar no absurdo de que seja possível colher flores semeando ve- mais amadurece a alma e afina nossa sensibilidade, para que ela
neno. As gerações mais civilizadas do futuro compreenderão o possa assim gozar vibrações que antes não podiam ser percebi-
significado destas palavras. das. Poderemos desta forma, portanto, emergir conscientes na
Os céticos e os práticos poderão rir de nós. No entanto fi- divina harmonia universal. Entraremos então no reino do paraí-
zemos neste volume uma vasta resenha das velhacarias huma- so, porque sentiremos o paraíso nascer dentro de nós”.
nas, demonstrando que as conhecemos e que não somos otimis- Dir-se-á, no entanto: como se pode realizar a evolução,
tas por ingenuidade, mas por motivos positivos bem sólidos. O transformando o inferno em paraíso? Como poderemos nós
mundo deve caminhar para a colaboração, que é o princípio do mesmos recolher o fruto de nossas fadigas? Afirma-se que vi-
futuro. Colaboracionismo sempre mais amplo, porque a vida veremos em nossos filhos. Mas isto é sobreviver de modo ge-
caminha para as grandes unidades. As virtudes atuais do vence- nérico, sentimental e poético, ao passo que o homem, justa-
dor à custa da derrota do próximo serão desprezadas amanhã, mente utilitário e, portanto, calculador, quer um resultado con-
quando, ao contrário, será virtude social a compreensão do pró- creto, próprio e individual. Um instintivo e próprio sentido de
ximo. Isto não é fantasia, porque a vida em alguns pontos já re- justiça exige que a cada particular fadiga corresponda um pro-
alizou esse progresso de unificação por colaboração, tal como porcional resultado particular. O problema do paraíso, isto é,
nas sociedades celulares dos tecidos orgânicos, ou nas socieda- de nossa felicidade, bem como de todos os problemas humanos
des animais – por exemplo, a das abelhas e das formigas – onde é um problema individual, antes de sê-lo coletivo. A solução
a cooperação desinteressada é obtida com aplicação somente do segundo só pode ser a consequência da solução de muitos
dos mais simples princípios utilitários, de acordo com a lei do casos do primeiro. Recorre-se em nossos tempos, ao invés, a
mínimo meio. Essas colônias, assim, puderam conquistar, como métodos e sistemas exteriores, que, permanecendo no exterior
rendimento coletivo, resultados que a sociedade humana está da superfície e da forma, resultam inadequados, porque não
ainda longe de conseguir. É claro e lógico que as leis da vida penetram na substância. Inadequados também, porque a solu-
contêm esse princípio, isto é, a tendência a formar, pela coope- ção da questão econômica, mesmo elevando o nível de vida –
ração, novas, maiores e superiores unidades biológicas, e a hu- que é sem dúvida grande coisa – não é suficiente para resolver
manidade será uma delas. Tudo isso é lei de progresso, e nin- o problema da felicidade, em que entram os fatores mais díspa-
guém poderá jamais fazê-la parar. res. Podemos ser ricos, e faltarem-nos coisas indispensáveis e
O planeta Terra é nosso campo de trabalho. Era caos. Cabe- preciosas, como a inteligência, a vontade, a saúde, a bondade,
nos a nós transformar o inferno das feras no paraíso dos anjos. os afetos, e assim por diante. O lado econômico é apenas um
Se soubermos evoluir, esse paraíso será nosso. Se não o sou- dos elementos do bem-estar, e a felicidade depende da coope-
bermos, ficaremos no inferno, até querermos evolver. Se sou- ração de todos. Além do mais, ninguém poderá, nesta nossa
bermos realizar o trabalho de transformar o caos em ordem, es- Terra, em que não existem duas coisa iguais, impedir que exis-
sa ordem, depois, será nossa. Se soubermos transformar a atual tam diferenças entre um homem e outro. Mesmo se todos esti-
ferocidade em bondade, essa bondade, depois, será para nós. O vessem economicamente nivelados, disparidades intrínsecas da
inferno existe, mas não é uma vingança de um Deus cruel. Esta natureza de cada um os colocariam de imediato em posições
é uma concepção criada pelo homem, porque estava proporcio- sociais diversas, segundo suas qualidades! Isto pertence às leis
nada e era até mesmo adaptada à sua mentalidade. Uma tão da vida, e ninguém poderá impedi-lo.
aterradora ideia de pena eterna ocorria para induzir este tipo de Então o problema da felicidade, mais que econômico e soci-
homem a não praticar o mal, sendo proporcionada à sua pouca al, revela-se-nos antes como um problema de destino individu-
38 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
al. E até a posição econômica, seja herdada ou adquirida com o uma teoria não é demonstrá-la, mas mostrar-lhe os resultados
próprio trabalho, reduz-se então a uma questão de destino, isto positivos a cada passo. A melhor demonstração do fato de que
é, de qualidades pessoais, conquistadas por nós mesmos no pas- temos pernas será o caminhar, sem recorrer a dissertações com-
sado, ou seja, de merecimentos ou desmerecimentos próprios. probatórias sobre a existência e uso das pernas. Alhures 2 pro-
Então a repartição econômica no mundo aparece-nos como uma metemos que daríamos provas decisivas desta matéria, e cum-
consequência de uma justiça moral, de uma justiça mais alta, de primos aqui a nossa promessa.
Deus, segundo nossas obras, da qual sobrevêm todas as posi- A melhor prova que podemos dar da teoria da reencarnação
ções favoráveis ou contrárias, de satisfação ou privação na vida, é a seguinte. O sistema de toda nossa Obra, como já se pode
em todos os campos, seja como riqueza, inteligência, saúde, agora verificar, resolve harmônica e logicamente os maiores
afetos etc., problemas que, mesmo completamente ignorados problemas do conhecimento, fundindo-os num todo orgânico.
nos projetos humanos da justiça econômica, todavia são reais. Problemas menores, não diretamente tratados, têm a solução
Limita-se o homem a ver que há ricos e pobres e quisera reme- implícita no sistema, que lhes dá a chave. Posto isto, estamos
diar o desnível igualando-os. Mas saberá ele por que se forma- autorizados a crer que este sistema corresponde à realidade dos
ram essas diferenças e por que, mal sejam suprimidas, tendem fatos. Qualquer problema, mesmo os não diretamente tratados, é
logo a formar-se de novo? Ou por que um indivíduo se acha, de possível solução nele, com os mesmos princípios e o mesmo
por determinadas circunstâncias exteriores, em dada posição, procedimento por ele aceitos. Apresenta-nos o todo como um
diferente da que outro se encontra? edifício completo em cada uma de suas partes, desde suas ori-
Do problema do destino já escrevemos bastante em outras gens no Absoluto até aos particulares no contingente; apresenta-
obras, especialmente no fim do volume A Nova Civilização do nos o todo como um organismo em ação, em que cada compo-
III Milênio. Mas isto implica na solução também de outro pro- nente está em seu lugar, bem coordenado com o outro, mediante
blema: a reencarnação. Indiretamente, essa solução foi admitida justa função e meta a atingir. Nele, o todo é regido por tão sim-
e suposta em sentido positivo em todo o desenvolvimento da ples e evidente lógica, que instintivamente persuade, tal como os
nossa I Obra, se bem que o problema não fosse tratado até aqui conceitos axiomáticos que todos aceitamos sem discutir: o todo
com explícita referência. Entretanto, iniciando esta nossa II é coligado e fundido num monismo absoluto, ou seja, é estrita-
Obra, era necessário tratar de propósito e em particular de um mente unitário, reduzível a uma fórmula única e constituído por
assunto de tão grande importância. Fazemo-lo, agora especial- um só organismo, em que se coordenam todos os mais díspares
mente, porque, depois de havermos navegado tão longamente fenômenos, desde os do mundo físico aos do mundo moral. Ora,
pelos mares do conhecimento, só agora podemos dispor, em fa- ou esse sistema é verdadeiro ou não o é. Se é verdadeiro, temos
vor da tese reencarnacionista, de soluções já adquiridas em a explicação racional de tudo. Se não é verdadeiro, recai tudo na
concomitantes problemas menores, como pontos fixos já de- confusão, na contradição, no mistério. Se não quisermos esco-
monstrados, ou seja, já prontos para serem utilizados para tal lher este segundo caminho, temos que aceitar o primeiro.
fim. Fazemo-lo agora, já num estágio mais avançado, quando o Posto isto, verificamos que a teoria da reencarnação – se
leitor, após percorrer o caminho dos volumes precedentes, já bem que não demonstrada por nós até agora especificamente,
pode, então, ter alcançado conosco muitas conclusões de pro- dado que sua evidência fazia parecer supérfluo tal trabalho – é o
blemas mais particulares, que são necessárias para atingir esta, ponto-chave, a pedra angular de todo o edifício, que sem ela cai-
maior e mais complexa. Fazemo-lo agora porque a reencarna- ria. Mesmo se a teoria da reencarnação não ressaltasse por si
ção é também um problema social e nos explica como cada um mesma de lógica evidente, devemos admitir que não se poderia
de nós volta a esta Terra para colher o fruto, bom ou mau, de dar a essa incógnita da equação outro valor senão o da reencar-
quanto precedentemente tenha querido semear de bem ou de nação, pois todos os fenômenos, concordes com a lógica mais
mal. Fazemo-lo, enfim, porque, através do fenômeno da reen- cerrada, nos dizem que esse X só pode ter um significado no
carnação, a transformação do inferno em paraíso na Terra tor- sentido reencarnacionista. Só esse valor pode ser colocado neste
na-se possível e compreensível. ponto do organismo lógico do todo. Com efeito, temos dois ca-
Façamos antes algumas observações de caráter geral. Na sos: ou à incógnita se dá esse valor e, então, tudo continua a ser
Europa, a teoria da reencarnação penetrou vinda da Ásia, que a logicamente explicado e resolvido até ao fundo, sem resíduos,
professa através da teosofia. Tendo em vista que apenas culta ou se lhe dá outro valor e, então, qualquer seja ele, tudo perma-
minoria de estudiosos se interessa por esses problemas, ficando nece insolúvel e incompreensível. Com isto, não queremos di-
as massas indiferentes, o catolicismo não tomou posição de minuir a importância daquilo que foi maravilha no seu tempo, a
franco antagonismo contra tal teoria. Afirmam sacerdotes cul- teologia de São Tomás. Mas ele não podia situar os problemas
tos que a questão ainda não foi definida nos concílios e é, por- por nós hoje situados, cuja solução o mundo moderno atingiu
tanto, opinável, isto é, sujeita a diversas opiniões. Outros pen- com a ciência. Ninguém poderá dizer num universo em marcha,
sam diversamente, conforme sejam, por temperamento próprio, que deva ser aquela a única, última e definitiva teologia de um
levados a simpatizar com a teoria ou repudiá-la. Sendo este um mundo que, por força das circunstâncias, deve e quer progredir.
problema de que relativamente poucos se ocupam na Europa, e Vimos que o conceito da evolução é a espinha dorsal de to-
não sendo doutrina dominante de outra religião, o catolicismo do o sistema, como segundo tempo da subida após a queda 3.
não se preocupa, naquele continente, de condená-la expressa- Não podemos parar na simples evolução da forma, no sentido
mente. No indiferentismo geral em relação aos problemas reli- Darwiniano, pois mesmo esta só se explica como evolução do
giosos, ainda que algum católico nela creia, não há quem se princípio espiritual que rege todas as formas, do qual estas são
preocupe com isso, uma vez que, não tendo seus interesses ma- expressão. Por aqui se compreende, ao lado da bondade de
teriais lesados por isto, ninguém é levado a reclamar. Deus, a utilidade da dor e tantas outras coisas. Suprimamos es-
Na América do Sul e sobretudo no Brasil, interessam-se as ses conceitos e cairemos num caos de contradições, em que
massas por essa doutrina, dado que faz parte integrante do espi- triunfa não Deus, mas o mal. Ora, evolução espiritual só pode
ritismo de Allan Kardec, aí difundido. A teoria da reencarnação significar reencarnação. Só a eterna existência de um eu pessoal
é de clareza tão intuitiva e de logicidade tão evidente, que, da pode permitir seu progresso, sua responsabilidade e sua corre-
mesma forma que a existência de Deus, não sentimos necessi-
dade até agora de ocupar-nos dela diretamente, tanto mais que 2
Conferência na Federação Espírita do Estado de São Paulo – 5 de
esta teoria está subentendida em cada página da Obra e implíci- Outubro de 1951.
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ta na solução de cada problema. A melhor demonstração de UBALDI, Pietro. Deus e Universo.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 39
ção pela dor. Fora desse ponto de vista, a estrutura orgânica do então continuar seu transformismo ou caminho evolutivo mes-
todo perde seu significado e a grande marcha para a redenção, mo depois da morte, como nos indica a reencarnação. Há um
em que tudo caminha, perde sua meta. A eterna existência de termo ao “tornar-se”, mas só no fim do processo evolutivo, com
um eu pessoal é imposta ainda por sua intrínseca natureza divi- a perfeição atingida no regresso a Deus.
na, isto quer dizer reconhecê-la e respeitá-la, porque tudo o que Os vários grupos humanos poderão sustentar o que quise-
é divino não pode ter princípio nem fim. rem segundo seus interesses. Mas a reencarnação é uma verda-
O eu, ao nascer na Terra, representa desde os primeiros de biológica positiva, que hoje já pertence à ciência; é fato ob-
anos uma personalidade sua, já definida em seus pontos essen- jetivo independente das afirmações de qualquer escola ou reli-
ciais, que jamais poderão os anos modificar completamente. Se gião. A essa doutrina se refere o próprio Evangelho, que, sem
quisermos atribuir uma lógica e justiça ao fato de que nasce- ela, seria incompreensível em vários pontos.
mos em posições e com qualidades tão diferentes, temos que ◘ ◘ ◘
admitir que isto é a consequência de um passado próprio e in- Procuremos encarar o problema mais de perto, em seus
dividual, que, em virtude do princípio universal de causa e pormenores. Não basta, às vezes, que seja verdadeira uma teo-
efeito, nos acompanha em suas consequências. Se assim não ria, para que se possa apresentá-la a todos. Pode-se então assis-
fora, outra coisa não nos restaria senão declarar esse fato como tir, nos países reencarnacionistas, ao triste espetáculo da caça
injustiça e recair nas trevas do mistério. Mesmo os animais ao próprio passado, feita como um jogo, por leviandade e curi-
nascem com instintos, como os homens com suas qualidades osidade vã, só para saber quais foram as próprias encarnações
pessoais. Quem fez isto? Não! A obra de Deus criador não po- anteriores. Afirmar a teoria como princípio significa sustentar
de ficar à mercê dos atos sexuais de tantos inconscientes para uma verdade, porém abandonar-se a uma pesquisa de adivi-
fornecer almas quando a estes mais agrade. nhos, na qual se pode esconder o orgulho e dominar a fantasia,
Além disso, deve haver proporção entre causa e efeito. En- é, pelo contrário, mais condizente a desacreditar que confirmar
tão não é possível que uma causa limitada no tempo (uma só a teoria da reencarnação. Muitos, com efeito, pretendem rever-
vida) possa produzir um efeito de natureza ilimitada (eternida- se, de preferência, não nos comuns desconhecidos, mas em per-
de). Essa causa só poderá produzir um efeito a ela proporcio- sonagens históricas, o que é pouco provável, pois estes repre-
nal, da mesma ordem, isto é, limitado por natureza. Ora, um sentam muito poucos lugares vagos em relação ao número de
pedaço de tempo e a eternidade, ou seja, finito e infinito, são pretendentes. Verifica-se o caso de várias pessoas vivas afirma-
entidades de ordem diversa. A eternidade jamais se poderá rem ter sido a mesma personagem do passado. E tudo isso é fei-
conseguir somando um número finito de unidades limitadas de to sem possibilidade de controle. Mas é elementar e até mesmo
tempo, por maiores que sejam. regra de honestidade que não se tenha o direito de fazer ne-
Ademais, se não quisermos negar a eternidade do espírito nhuma afirmação gratuitamente, isto é, quando não se possam
após a morte, temos que admitir em paralelo sua eternidade an- aduzir provas tanto para os outros como para si mesmo. Assim,
tes do nascimento. O universo é um organismo equilibrado. o povo, simples e fantasioso, ainda que sem malícia e certa-
Não pode haver balança com prato de um só lado. Não pode mente de boa fé, pode construir lendas destituídas de qualquer
existir um semicírculo sem outro correspondente, inverso e fundamento, só com base em vagos indícios, hipóteses e ele-
complementar que o complete. Uma mesma quantidade não mentos incontroláveis. A teoria da reencarnação é uma coisa
pode ser avaliável, de um lado, em termos de infinito e, de ou- séria e não deve ser usada para satisfazer vã curiosidade. Quem
tro, em termos de finito, ou seja, é um desequilíbrio inadmissí- chega a ter intuições a esse respeito estude a si mesmo, faça
vel que possa não ter fim o que teve princípio, um absurdo ló- pesquisas íntimas para conhecer-se e reconstruir a história de
gico e matemático. O universo é todo lógico. Não se pode ser seu destino, para melhor trabalhar de acordo com a lei de Deus.
eterno só de um lado, isto é, só no futuro. Se quisermos admitir Mas é bom não divulgar isto, ao menos até achar confirmações
a sobrevivência da alma, é mister situar a vida humana entre em provas positivas, por todos aceitáveis.
duas entidades da mesma natureza, entre duas entidades equiva- Assim, igualmente prudente se deveria ser na pesquisa das
lentes, uma no passado e a outra no futuro. Assim como uma causas que justifiquem o atual destino e condições de vida de
linha limitada de um lado e ilimitada de outro é somente uma outrem. Aplicando a lei dos opostos, isto é, o princípio geral de
parte ou seção da linha, que só é completa se concebida como que cada abuso gera carências, é fácil imaginar que cada priva-
ilimitada e infinita de ambos os lados, a existência do espírito ção e dor presente seja a consequência de um excesso passado
no tempo, limitada de um lado (pelo nada do qual teria nascido) em sentido contrário. Mas, se este é o princípio, não nos autori-
e eterna do outro, também é apenas uma parte ou seção de toda za ele a julgar o próximo em casos particulares, pois muitas são
a vida do espírito, que só é completa se concebida como eterna as formas de reação da Lei e muitos os elementos que nela con-
dos dois lados (passado e futuro, infinito negativo e infinito po- correm. Nosso julgamento será tanto mais inoportuno quanto
sitivo). Então, se quisermos dar à vida um princípio com o nas- mais tender a se transformar em fácil condenação e a nos liber-
cimento, temos necessidade de lhe dar um fim com a morte, tar do dever da piedade e da ajuda. Não aproveitemos desgraças
como fazem os materialistas. O que nasce deve morrer. Somen- do próximo só para nelas ver justa punição da Lei, pois assim
te o que não nasce não deve morrer. Se não quisermos dar à vi- nós também nos tornaremos culpados. Recordemo-nos ainda de
da um fim com a morte, não lhe podemos dar um princípio com que se trata de afirmações gratuitas, que, se são aplicações de
o nascimento. Não há como fugir: se a alma foi criada no mo- princípios gerais correspondentes à verdade, não oferecem em
mento do nascimento, deve terminar com a morte. Se não ter- cada caso particular nenhuma possibilidade de controle e, por-
mina com a morte, deve preexistir ao nascimento. tanto, podem ser puro trabalho de fantasia. Ninguém pode dizer
Mas há outra razão em favor da reencarnação. Em nosso com segurança que aquelas culpas com que explicamos as do-
universo, a existência de cada ser toma a forma do “tornar-se” res de alguém tenham sido de fato por ele cometidas.
ou transformismo, de modo que “existir” só pode significar Entretanto não se pode desconhecer o bem que faz essa teo-
“tornar-se”. Ora, fixar o ser num estado definitivo, não mais su- ria, pois ela mostra, de forma mais convincente do que a crença
jeito ao caminho evolutivo ou involutivo, como é o estado para nas penas eternas, de modo prático e próximo a nós, como tudo
sempre imutável do paraíso ou do inferno, significa paralisar o se paga neste mesmo mundo, com as dores que conhecemos, ex-
“tornar-se”, o que quer dizer paralisar a existência, ao menos plicando-nos a presença dessas dores entre nós com uma exata
qual a encontramos em nosso universo em evolução e enquanto proporção ao mal cometido, com lógica reversão de posições,
ele existir em tal forma. Se o ser quer continuar a existir, deve como um instintivo sentido de justiça nos diz que deve ser. As-
40 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
sim, o pagamento do erro se faz de tal forma que todos possam servaria as experiências da vida? Onde se acumularia o patrimô-
vê-lo em ação na vida prática, bem como em forma específica e nio dos instintos e qualidades adquiridas? Como seria possível o
estritamente pessoal. Só assim se pode explicar, de acordo com a aperfeiçoamento longo e lento que constitui a evolução? Como
justiça de Deus, tantas injustiças aparentes. Dessa forma, a dor pode um inseto evoluir com uma vida de apenas poucos meses?
resulta guindada à função benigna de escola e de prova imposta Que pode ele aprender e registrar? No entanto vemo-lo nascer
por um Deus bom, só para nosso bem. É este o único modo de com uma sabedoria sua, que é suficiente para resolver todos os
poder conciliar o fato de tantas vidas desgraçadas, com a bonda- problemas da sua vida. Como pode um homem, numa vida com
de e justiça de Deus. Os outros sistemas não resolvem o proble- a máxima média de 80 anos, aprender toda a sabedoria, exaurir
ma e, deixando-o envolto em mistério, tendem infelizmente a le- todas as experiências, adquirir méritos ou deméritos da tal en-
var quem queira indagar e raciocinar um pouco a tristemente vergadura e valor para produzir consequências eternas? Mas o
concluir com o absurdo da maldade ou, ao menos, da insapiência nosso universo é um organismo de impulsos e movimentos pro-
do Criador. Ora, não podemos negar que, por mais que se queira porcionados. Uma causa tão minúscula não pode produzir efei-
fugir da lógica no terreno religioso, esta tenha grande importân- tos tão gigantescos; um átimo de vida vivida, muitas vezes sem
cia, tanto em si mesma, como prova, quanto como elemento per- compreensão alguma, não pode produzir consequências irrepa-
suasivo e tranquilizador, que permite aceitar os fatos, especial- ráveis e definitivas. Em outros termos, não há unidade de medi-
mente os mais duros para nós, com mais clareza e convicção e, da que, ao mesmo tempo, possa servir para medir o finito e o in-
portanto, com maior sentido de obediência. E a teoria da reencar- finito. Como se vê, se abolirmos a teoria da reencarnação, demo-
nação, não há como negar, corresponde à lógica perfeita, onde liremos todo o sistema construtivo da evolução, e tudo rui no
cada elemento é enquadrado na forma mais simples e persuasiva. absurdo, ao invés de formar um organismo lógico.
Deus é lógico, opera logicamente, e o universo é uma construção Assim como Einstein, só com processos de lógica matemáti-
lógica, um organismo funcionando racionalmente. Tudo o que se ca, pôde atingir conclusões que, depois, a observação e a experi-
coaduna com esta qualidade fundamental do sistema tem, pois, ência confirmaram, também podemos, apenas pelos processos da
probabilidade imensamente maior de ser verdadeiro, isto é, cor- lógica e do raciocínio, chegar a demonstrar a teoria da reencarna-
respondente à realidade. A teoria do inferno eterno, considerada ção, à espera de que a observação e a experiência confirmem
sem paixão, sem a finalidade de concluir a favor de uma religião nossas conclusões, mesmo se hoje isto não for possível, faltando
ou de outra, mas apenas com o intuito de conhecer a verdade, não à ciência meios positivos para dominar e penetrar tais fenôme-
se sustém diante da teoria reencarnacionista, ainda que possa ser nos. Entretanto acontece um fato importante: a teoria da reencar-
explicada como um terrorismo psicológico. Produto de tempos nação sai do campo empírico das religiões e da fé, para entrar no
ferozes, necessário para gente feroz, o inferno nasceu das trevas terreno positivo da ciência. A demonstração racional é o primeiro
da longa noite medieval, bem explicável, dada a dureza dos tem- passo, o controle experimental será o segundo. Por controle expe-
pos, como forma de psicose coletiva que invadira todas as mani- rimental, entendemos métodos de observação positiva, cientifi-
festações da vida e, portanto, também da religião. camente exatos, submetidos a controle severo, apenas possíveis
Mas há outros fatos. A teoria da reencarnação está em har- quando as ciências psicológicas e, sobretudo, a ciência das radia-
monia com as leis da natureza que conhecemos, como a indes- ções estiverem mais desenvolvidas. Aqui, podemos apenas dar o
trutibilidade da substância, pela qual, se as mudanças se operam primeiro passo, mas este é suficiente para indicar em que direção
só na forma, a personalidade humana poderá mudar, mas não deverá dar-se o segundo. O atual método fideístico é útil e neces-
ser destruída. Essa teoria é a ampliação, no campo moral, da lei sário para as massas, não suscetíveis apenas aos processos de ló-
de conservação da energia, estabelecida pelos físicos. Enfim, só gica e raciocínio, e merece, pois, o nosso máximo respeito. A fé
essa doutrina se coaduna com o que poderíamos chamar de há- não é suficiente, porém, para explicar e impor ao mundo essa teo-
bitos fenomênicos do universo. Este costuma funcionar por ci- ria, o que só pode ser feito com a demonstração e a experiência,
clos e retornos, e nunca por bruscas inovações, muito menos isto é, com os meios da ciência positiva, aceita por todos.
por formação imediata de elementos novos, mas só por lenta A teoria da evolução, que é admitida pelo mundo e na qual
transformação dos já existentes. Tudo só irá nascer de uma pre- se baseia o sistema das duas Obras que estou escrevendo, im-
cedente forma diversa, em que o “inédito” já existia no desco- plica a conservação dos valores que o ser adquire através da
nhecido. Essa ideia da criação do “inédito” a partir do nada, se- experiência da vida. Vive-se para aprender, e só o aprender va-
ja para a alma como para qualquer outra individuação do ser, loriza o viver. Ora, diz-nos a lógica que, sem reencarnação, a
representa flagrante contradição com tudo o que normalmente conservação dos maiores valores da vida é impossível, porque
acontece de fato e constituiria, na soberana ordem do universo, lhes falta o fio condutor da evolução. Então, sem reencarnação,
uma tão estridente desordem, que, na lógica do sistema, nos o sistema do universo perderia todo o poder de recuperação pa-
apareceria como um absurdo. Se a estrutura do existir em nosso ra corrigir sua imperfeição e voltar à perfeição, e a dor seria um
universo repete sempre o tipo ou modelo central, dado pela tormento sem sentido nem escopo útil. Ora, não é possível tão
unidade interiormente cindida em dualismo, e o ser, portanto, flagrante contradição logo no centro de um sistema que sabe-
não é concebível senão em função de seu contrário, o não-ser; mos ser lógico e estritamente utilitário. É absurdo que ele, em
se tudo volta e torna a voltar, nascendo desse seu retorno; se tu- seu ponto mais vital, renegue seus princípios fundamentais.
do, enfim, é cíclico, como poderia o existir, que é sempre bipo- Herdar todo o passado, sem que nada se perca de tudo o que se
lar, mesmo no caso da pessoa humana, ser manco ou falho, viveu, sem que nada se desperdice desse trabalho fundamental
constituído por uma só metade sem a outra, inversa e comple- ao qual foi confiada a reconstrução do eu, é uma necessidade
mentar, única forma que pode torná-la completa? absoluta e insuprimível, porque, sem ela, não desaba uma reli-
Quebra-se assim o equilíbrio e a própria continuidade feno- gião, uma filosofia, ou um grupo humano que lhes está conexo,
mênica, que é um fato fundamental da nossa cotidiana experiên- mas desaba a lógica de todo o universo.
cia. Só o fenômeno da vida humana, só esse, iria de encontro à Estudamos o problema da hereditariedade no fim do volu-
corrente seguida por todos os demais fenômenos e nos aparece- me A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Lá vimos (Cap.
ria, assim, desconexo deles, como que desligado do fenômeno XXVII e XXVIII – “A Personalidade humana”) que há dois ti-
semelhante da vida de todos os outros seres que, não se sabe a pos de registro: o recente e o atávico, o novo e o velho, isto é,
razão, sendo igualmente vida, seriam regidos por lei diversa. o que nós fizemos e o que fizeram nossos ancestrais. Vimos
Não haveria neles, então, um princípio espiritual. Mas sem a in- que tudo se transmite, sem o que a evolução não poderia dar-
destrutibilidade e a eternidade deste, para todos, que centro con- se. Vimos que duas são as forças de hereditariedade que funci-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 41
onam como canais de transmissão, ou seja, que ao lado da he- pendente dos outros. Esta teoria aqui se apresenta não avulsa,
reditariedade fisiológica (pais-filhos) há uma hereditariedade mas em conexão com toda a fenomenologia universal; não co-
espiritual própria, individual. Dois são, portanto, os caminhos mo algo em si mesmo, mas como pedra incrustada no edifício
aptos à transmissão dos resultados das experiências anteriores: do universo, que sem ela ruiria; não como um corpo separado
um para as do corpo, transmitidas através da carne, e outro pa- funcionando por si, mas como um órgão tão vital, que, sem ele,
ra as do espírito, transmitidas através da alma. “O que nasce da o grande organismo do todo não poderia funcionar.
carne é carne, mas o que nasce do espírito é espírito” (João, ◘ ◘ ◘
3:6). Assim, o nosso ser, quando nasce, traz consigo não só Mas focalizemos de novo, em particular, o problema da re-
uma memória biológica, que guia a reconstrução do organis- encarnação. Só esta teoria nos deixa aberto o canal de transmis-
mo, repetindo sua história celular, continuada através da here- são dos resultados da experiência da vida. Totalmente insufici-
ditariedade fisiológica, mas também um destino, que é conse- ente é a hereditariedade fisiológica para os filhos, que nascem
quência do passado pessoal de cada um, por ele livremente sobretudo quando os pais são ainda jovens e, portanto, possuem
semeado antes, e que agora o acompanha em forma de deter- quantidade mínima de experiência a transmitir. Para que pudes-
minismo fatal, sendo transmitido através de uma paralela here- se ser transmitida aos filhos, ao menos a maior parte dela, seria
ditariedade espiritual. Este último conceito está desenvolvido indispensável que os pais gerassem em idade avançada, quase
no Cap. XXIV “Nosso destino livre”, do mesmo volume citado no fim de suas vidas. Ao contrário, a reprodução é confiada aos
“A Nova Civilização do Terceiro Milênio”. jovens, mais aptos materialmente e menos maduros espiritual-
Então há duas formas de continuidade: a biológica e a espi- mente. A hereditariedade fisiológica não pode, pois, ser o ca-
ritual. A primeira para continuar a estrutura atávica, o tipo bio- minho para a transmissão das qualidades intelectuais e morais,
lógico já construído, ainda que a ele acrescentado contínuos que são as mais importantes. Deve então haver outro caminho,
aperfeiçoamentos. A segunda para continuar, não no plano bio- que não permita a perda de nenhuma experiência.
lógico, mas no espiritual e moral, o desenvolvimento do pró- Outra objeção surge. Rebela-se nossa mente ao conceito de
prio tipo de personalidade, de acordo com as premissas já co- que a personalidade do filho deva ser exclusivamente dependen-
locadas, trazendo-lhe novos aperfeiçoamentos. Achamo-nos te da personalidade dos pais, sofrendo-lhes as consequências de
sempre, nos dois planos, diante do mesmo fenômeno, pelo qual alegria ou dor, submetidos a causas estranhas a seus próprios
é sempre o passado que preside ao desenvolvimento presente e atos e igualmente injustas, porque não merecidas. Que um fato
futuro (lei de causalidade). Deste modo, cada novo indivíduo de tal monta, com cargo de responsabilidades e consequências
nasce com seu destino biológico, consequência de seu passado num destino de alegrias e dores, deva depender do capricho de
biológico, vivido na carne dos pais, e com seu destino espiritu- dois seres que geram quando querem; que um fato tão vital e
al, consequência de seu passado espiritual, pessoalmente vivi- importante tenha que derivar da vontade às vezes de inconscien-
do por sua alma. Dois destinos harmonizados, necessariamente tes; que o próprio Deus deva permanecer à disposição destes pa-
sintonizados pela escolha (consciente ou inconsciente) feita ra realizar a criação de uma alma adequada, no momento por
pelo espírito ao reencarnar-se, influenciando-se reciprocamen- eles escolhido; tudo isto representa tal contradição e absurdo na
te em seu desenvolvimento, fundidos num só destino, enquanto ordem do universo, que se torna inconcebível para quem dele
dura a vida na Terra. Poder-se-ia chamá-lo um composto, um tenha compreendido um pouco o perfeito funcionamento. Rebe-
complexo físico-espiritual, do qual depende o período de vida la-se a mente à ideia de poder alguém pagar por culpas não ex-
percorrido pelo ser em nosso mundo. clusivamente suas. Revolta-se totalmente nosso senso instintivo
Em A Grande Síntese (Cap. LXV – Instinto e Consciência. de justiça, se formos obrigados a admitir que o nascer em de-
Técnica dos Automatismos), está o primeiro germe destes con- terminado ambiente, receber nele determinada educação e ter de
ceitos, que foram controlados e desenvolvidos em muitos ou- assumir o tipo biológico e a carne, sadia ou enferma dos pais,
tros pontos dos volumes que se seguiram, em harmonia com o com os instintos anexos, bons ou maus, herdando condições de
sistema. Pode o leitor achá-los por si, quase a cada passo da vida em que se baseará o nosso destino, revolta-nos a alma ter
Obra. Trata-se aqui apenas de restringir as fileiras convergentes que admitir que tudo isso seja devido ao acaso e esteja na de-
para as soluções finais neste capítulo, de puxar as redes para pendência da escolha sexual e do capricho dos pais, isto é, de
concluir. Foram esses problemas tratados lá separadamente e condições produzidas por outros, e não estritamente por nós,
diversamente enquadrados em relação a outros pontos de refe- pessoalmente. Não podemos acreditar nisto e admiti-lo nos cho-
rência, para alcançar outras conclusões. Mas os observamos ca e ofende, porque de tudo isto pode resultar uma existência de
agora, aqui, em síntese, para deles fazer a plataforma destas alegria ou de dor, que nos pode tornar satisfeitos ou nos fazer
conclusões em favor da teoria da reencarnação. Era mister ter odiar a vida até ao desespero. Não se pode ficar agnóstico e indi-
concluído esse longo caminho através de tantos meandros da ferente diante da primeira fonte de nosso destino. Não podemos
fenomenologia universal, para ter agora pronta, em mãos, já al- ficar persuadidos e, portanto, aceitar os fatos gravíssimos que
cançada, a solução de tantos problemas menores e mais particu- resultam disso, se não virmos que dessa fonte tudo nasce com
lares, sobre os quais, nesta fase de síntese, não é mais possível lógica e justiça. Não sendo assim, a consciência dará razão ao
nos determos. Só agora, nesta última fase, é possível pôr de instinto de revolta, acrescentando às tristes condições de fato o
acordo as soluções particulares, fazendo-as convergir para uma inferno na alma. Assim, no caso dos filhos destinados apenas
solução única, que, a uma voz, constituída de muitas vozes di- aos delitos, às doenças, à dor, eles teriam o direito de amaldiçoar
versas e concordantes, de todos os lados nos repete: reencarna- quem lhes deu uma vida triste, não pedida. Então a união para
ção. Para destruir esta teoria, mister seria demolir muitas con- gerar poderia, antes, aparecer como uma associação de dois se-
clusões já alcançadas, anular muitas soluções que nos satisfize- res egoístas que, para seu exclusivo prazer, podem impunemente
ram e persuadiram. Trabalho longo, mas só assim podemos cometer um delito em dano de um terceiro, o filho, incapaz de
chegar às afirmações definitivas, couraçadas por observações, defender-se. E a lógica dos fatos autorizaria esta maldição a di-
experiências, soluções e conclusões apoiadas em sólidas bases, rigir-se até Deus, uma vez que ninguém saberia justificar tal fato
que difícil será abalar, pois seria preciso destruir um sistema de uma criação de almas tão diferentes e em tão diversas condi-
completo, que se demonstrou lógico e satisfatório, porque re- ções, quando a justiça exigiria que almas novas fossem criadas
solve sem deixar resíduos os fundamentais problemas do co- todas iguais, ou ao menos assim o fosse ao nascer.
nhecimento. Aqui, a reencarnação não é apresentada como fe- No sistema reencarnacionista, o eu é uma individuação
nômeno isolado, que se propõe como solução desligada e inde- eterna, única responsável diante da Lei, é personalidade em
42 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
formação pela evolução, que colhe em bem ou mal, sob a forma muito mais vastos. Permaneceria ainda o mistério dos que
de destino, o que ela quis livremente semear. Só assim não se morrem crianças. Com a teoria reencarnacionista, isto não re-
pode culpar ninguém, mas apenas, em cada caso, aceitar e bater presenta senão uma tentativa sem êxito apenas na carne, mas
no peito, até mesmo alegrando-se, porque, corrigido o erro e que o espírito pode recomeçar sempre com melhores resulta-
aprendida a lição com a prova, tudo se restabelece na ordem, dos, para prosseguir sua evolução, e talvez até de modo mais
que foi violada, e na alegria ansiada. Assim a mente compreen- eficiente, após haver superado isto, que pode ter sido uma pro-
de, e quem compreendeu pode aceitar melhor e saber sofrer va ou uma nova experiência. Mas, com a teoria da criação no
sem culpar a outros, mas apenas a si mesmo; pode, suportando nascimento e da vida única, que significado teria uma vida sem
melhor, adaptar-se à sua dura posição de dor, quando sabe a tempo de fazer experiências, e com que direito pode ela pre-
função corretiva desta. As ideias de punição e vingança excitam tender o mesmo paraíso que os outros devem conquistar dura-
a revolta contra Deus, que então aparece egoísta e injusto. Na mente, com uma vida de renúncias e dores?
realidade, todos nós somos filhos apenas de nós mesmos, e nos- Se a evolução só atuasse pelo canal da hereditariedade fisio-
sa posição presente é consequência fatal de nosso livre passado. lógica, então o gênio, o super-homem, que são valores biológi-
Os pais nos dão o corpo físico, da mesma natureza que os seus, cos maiores, deveriam ser os mais prolíficos, porém, ao contrá-
mas não a alma. Só nosso corpo de carne é filho de sua carne; rio, quanto mais é evoluído o ser, menos tende a se reproduzir.
nosso espírito, porém, é filho apenas de suas próprias obras. É o Quer então a vida perder seus maiores valores? Não. Na reali-
nosso eu que escolhe em que ambiente nascer e, se não o sabe dade esses valores se transmitem por outros canais, os da here-
fazer ainda, é nisto guiado pela sábias forças da vida. É eviden- ditariedade espiritual. E assim se explica como gênios e super-
te a todos que as crianças têm uma personalidade sua própria homens nasçam sem seguir os caminhos da hereditariedade fi-
desde pequenos. Esta, desde o início, é bem definida, de modo siológica. Se não houvesse reencarnação, quanto mais evoluído
que a seguir, mesmo delineando-se melhor nos particulares, fosse o indivíduo, mais facilmente se perderia como valor bio-
continua idêntica e irremovível em suas notas fundamentais. É lógico, tendendo a desaparecer da raça humana. Contradições e
assim que o gênio não se transmite, porque não é filho dos pais. absurdos que a lógica da vida não pode conter. Ao contrário,
É assim que entre irmãos, se há semelhanças exteriores, as per- quem dá tudo de si colherá o que semeou e como o tenha seme-
sonalidades são inconfundíveis e, com frequência, são diferen- ado, podendo, através de suas experiências, enriquecer a si e
tíssimas. E, se há afinidade entre pais e filhos, esta não é só da- aos outros. Nosso planeta é o terreno que devemos cultivar, e,
da pelo corpo ou resultado do ambiente comum, mas sobretudo conforme queiramos fazer dele um deserto ou um jardim, aqui
da necessidade de que as almas sejam afins, para que uma pos- morreremos dilacerados ou repousaremos felizes, como resul-
sa avizinhar-se tanto da outra, que chegue a vestir-se com a tado daquilo que tivermos querido fazer.
mesma carne. Para revestir-se com uma carne da mesma natu- A consciência e o conhecimento instintivo com que nasce-
reza, é necessária uma sintonização espiritual. Assim se explica mos não é uma característica nossa, genérica, igual para todos,
também, ainda que isto nem sempre se verifique, certa nota es- mas sim um conjunto de qualidades específicas, diferentes de
piritual semelhante entre pais e filhos. indivíduo para indivíduo, do qual elas formam o caráter parti-
As observações em favor da tese reencarnacionista são cular e a personalidade. Essas qualidades, pelo fato de se apre-
muitas, porque com ela tudo se explica e, sem ela, tudo se con- sentarem aptas e proporcionadas ao ambiente terrestre, onde
funde. Se só houvesse o canal da hereditariedade fisiológica, deve justamente usá-las o homem, demonstram um conheci-
que significado experimental, depois de passada a época da re- mento específico das condições deste ambiente. Deduzimos
produção, teria a vida no sentido da evolução? Nenhum! Seria então que devem ter sido aí formadas, e não alhures, isto é, de-
tempo perdido. Aprender-se-ia uma lição toda terrestre, em vem ser frutos de uma experiência terrestre. É certo, sem dúvi-
função da vida física, para usufruir um ócio eterno num mundo da, que não é no Céu que essas atitudes de índole prevalente-
espiritual, sem corpo e sem a nossa matéria, em um ambiente mente material, quase todas em função e dependentes da vida
em que não se compreende como poderiam ser utilizadas essas física, podem ter sido formadas. O espírito, que guia os primei-
qualidades. Como pode uma experiência todo material servir ros atos da criança, demonstra saber retomar o caminho da vi-
de escola a fim de preparar-se para uma vida totalmente espiri- da material, dando provas de ter um conhecimento já adquirido
tual? Quando somos jovens, temos a força, mas não a experi- e possuído, aderente às suas condições físicas terrestres, co-
ência. Quando somos velhos, temos a experiência, mas a força nhecimento nada metafísico para que possa fazer pensar numa
e a vida desaparecem. É verdade que os jovens, vivendo, usam direta e imediata filiação do mundo altíssimo do Absoluto di-
a força para transformá-la em experiência. Mas essa experiên- vino. Esta condição poderá revelar-se mais tarde, mas só em
cia não é usada na Terra, porque sobrevêm a morte; não se proporção ao grau de evolução atingido, isto é, do caminho já
transmite aos filhos, porque nascidos há muito tempo; e, nos percorrido ou da maturidade elaborada através de longuíssima
ambientes não terrestres, é de uso difícil. Para que serviria en- série de experiências. Poderá revelar-se mais tarde, mas só em
tão este conhecimento terreno específico, se não se regressasse proporção ao trecho de subida que o ser soube realizar em di-
à Terra, onde somente aí pode ele ser usado? E, com efeito, reção a Deus, com o próprio e pessoal esforço evolutivo de re-
vemos nascerem pessoas com qualidades inatas, atitudes ins- denção. Revelar-se-á, pois, em graus diversos e, para os invo-
tintivas de caráter nitidamente humano, que só podem ser ex- luídos, não se revelará em absoluto. Revelar-se-á como resul-
plicadas como resultado de um trabalho terreno precedente de tado de uma conquista própria e laboriosa, em diferentes pro-
construção. Não há outro modo de se explicar isto num univer- porções de acordo com esta, e não como um dom gratuito de
so em que nada se cria e nada se destrói. Deus, dom que, então, a justiça exigiria que fosse igual e,
Mas com isto são explicados também outros fatos. Sem a mesmo que tarde, se manifestasse igual para todos.
reencarnação, a vida dos solteiros estaria perdida para a evolu- É evidente que a alma que se encontra na Terra demonstra,
ção. Se a continuação do processo evolutivo fosse confiada por suas atitudes, que provém de uma experiência terrestre, e
somente à hereditariedade fisiológica, a vontade de qualquer não celeste. Os meninos, guiados por um instinto de luta, são
um em permanecer celibatário teria o poder de intervir no co- turbulentos, audaciosos, levados a brincar com armas (conquis-
ração da Lei e paralisá-la em seu processo mais substancial. A ta violenta). As meninas, levadas pelo instinto materno, são
teoria da criação da alma no nascimento é estritamente indivi- tranquilas, afetuosas, inclinadas a brincar com bonecas (cuida-
dualista e ignora o importantíssimo aspecto coletivo da vida, do dos filhos). E estas são qualidades da personalidade, não do
que considera cada um como uma célula de organismos étnicos corpo físico. As almas são diferenciadas segundo tipos diversos
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 43
e demonstram conhecer e saber aplicar as fundamentais leis bi- sim se justificam. Isto porque a obra de construção do edifício
ológicas, isto é, a luta pela seleção do mais forte e a reprodução espiritual, representado pelo desenvolvimento de uma vida, é
e defesa da vida. A alma aparece na Terra como uma entidade só um momento da obra de construção de um mais vasto edifí-
fundida com a realidade biológica, e não como um produto abs- cio espiritual, representado pelo regresso da alma a Deus. É as-
trato metafísico. Dizem que as almas não tem sexo, e isto é sim que só em sentido evolucionista e reencarnacionista se po-
verdadeiro no sentido terreno, mas possuem as qualidades que de compreender o significado da vida, de uma de nossas vidas,
depois, na Terra, formam o substrato próprio ao biótipo de um assim enquadrada no plano do “tornar-se” universal. Cada um
sexo ou do outro. Assim, no espírito macho prevalecerá o ins- dos elos sozinho, desligado da cadeia, muito pouco nos diz,
tinto de domínio, a inteligência, a vontade; no espírito feminino permanecendo um caminho fracionado e manco, de que não
dominará a obediência, a intuição, o amor. As qualidades fun- podemos ver o desenvolvimento, a proveniência e a meta na
damentais que depois formarão o biótipo masculino ou femini- eternidade. Mas, ligada em cadeia, nossa breve vida assume
no estão antes de tudo na alma, que, embora não tenha sexo, de- insuspeitados e profundos significados, expande-se até aos
le possui os elementos basilares. Vemos assim, na Terra, almas mais longínquos horizontes, potencializa-se e se acresce de
do tipo masculino encarnadas tanto em corpos sexualmente novos valores, pois é levada ao contato com suas mais longín-
masculinos como em corpos sexualmente femininos; e, ao con- quas origens e com suas maravilhosas conclusões, até ao plano
trário, almas do tipo feminino encarnadas tanto em corpos se- altíssimo do Absoluto e da Divindade.
xualmente femininos como em corpos sexualmente masculinos. Compreende-se, então, a íntima força espiritual que anima o
E tudo isto permanecendo na normalidade, sem que implique fenômeno da evolução; compreende-se o progressivo revelar-se
de modo algum inversão sexual. Mostra-nos isto que a persona- da divindade sepultada no profundo do ser pela queda, lenta-
lidade espiritual é independente da veste orgânica que venha a mente acordada pelo choque das provas e da dor. Vemos, então,
assumir no corpo. Um espírito dotado de qualidades viris per- dentro da forma que ele anima, a substância do fenômeno evo-
manece assim, qualquer que seja o tipo de corpo que escolha lutivo; vemos o princípio espiritual reger essa forma em cada
para si, sucedendo de modo igual no caso de um espírito dotado plano do ser, desde a pedra até ao super-homem; e compreen-
de qualidades femininas, mesmo mantendo-se eles no âmbito demos que nada pode existir senão enquanto for animado por
da normalidade sexual, de acordo com o tipo masculino ou fe- uma centelha proveniente de Deus. Quanto mais, porém, se
minino de seu corpo. Tudo isto é explicável e compreensível, desce na escala da evolução, mais este princípio é aprisionado,
porque a evolução tende à unificação da unidade quebrada no encapsulado, escondido na materialidade. E, quando mais se
dualismo universal e, neste caso, à formação de um biótipo sobe nessa escala, mais se liberta esse princípio e se revela na
completo, em que se refundam as duas metades, macho e fê- espiritualidade. Nossas crianças têm o sentido do bem e do mal,
mea. Para atingir essa reunificação, ambos os biótipos espiritu- compreendem no plano ético conceitos incompreensíveis aos
ais, com as qualidades masculinas e femininas, precisam atra- selvagens, que, amorais, vão direto à satisfação de suas neces-
vessar todas as experiências, tanto do próprio tipo sexual como sidades e desejos, ignaros desse mundo mais alto. Vemos co-
do oposto, pois só assim, somando-se e complementando-se mo, com o progresso da civilização, a alma humana vai sempre
mutuamente, podem fundir-se e assim formar o biótipo comple- se enriquecendo de qualidades. De que nasce, pois, o progresso,
to, em que coexistem todas as qualidades do ser, então, a cisão e como se pode explicar sua contínua ascensão com o tempo,
devida à queda do Sistema poderá ser sanada. senão como efeito das experiências da vida e do acumular-se de
Não se pode negar e a observação nos mostra que cada alma, seus resultados úteis? Temos sob os olhos muitos fatos conco-
encarnando-se na Terra, traz consigo algo como um feixe de im- mitantes: o desenvolvimento de muitas vidas no tempo, o pro-
pulsos seus, que depois obrigarão sua vida terrena a tomar esta gresso das civilizações, o desenvolvimento da consciência e o
ou aquela direção. Quantos acontecimentos em nossa vida ten- enriquecimento do espírito com tantas novas qualidades. Sem a
dem a se realizar como por força própria, impondo-se à nossa reencarnação, esses fatos permanecem desconexos, sem signifi-
própria vontade, e quantos, por mais que façamos, jamais con- cado e sem explicação. Com essa teoria ficam explicados, inte-
seguiremos traduzi-los em realidade! Vemos, pois, que a alma, gram-se e convergem harmonicamente para a própria solução.
encarnando-se, traz consigo um destino específico seu, particu- Só com essa concepção é possível se admitir a salvação de
lar, que será como o roteiro no qual tenderá a realizar sua vida. todos, porque há, com abundância, tempo para realizar expe-
Sem dúvida, se o futuro é sempre livre, o passado nele marcou riências de todo o gênero. Ao invés, com a teoria do inferno,
pontos fixos, de passagem obrigatória, dos quais não se pode fu- parte dos seres, agora, já teria ido formar definitivamente o
gir. E isto continua verdadeiro, ainda que o cinzento dominante núcleo da revolta eterna, isto é, o tumor canceroso que, para
na maior parte dos destinos, constituídos de pequenas coisas, sempre, mancharia a obra da criação, tornando assim definiti-
torne tais marcos menos visíveis. Mostra tudo isso que, quando vamente vã e imperfeita a obra de Deus. Não podemos abso-
nasce o homem, já foram colocadas diante de sua vida premissas lutamente admitir o absurdo representado por uma tal falên-
que, depois, é difícil abalar. Se isto é um fato de observação, o cia. Não! Só com a teoria da reencarnação poderemos expli-
senso de justiça nos diz que essas premissas devem ter sido pos- car-nos tudo e tudo aceitar, porque corresponde ela à justiça,
tas por ele mesmo. Essas premissas, partindo primeiro de seu es- ou seja, às particulares condições de ambiente, de qualidades
tado espiritual, depois dinâmico, chegam em forma imponderá- físicas e espirituais com que vimos ao mundo, e ao modo par-
vel ao estado de impulso ou força e materializam-se nas condi- ticular com que, para cada um de nós, a seguir se desenvolve
ções concretas do ambiente, como constituição física etc., que a vida. É inútil negá-lo. Dissemos acima que, em nossa exis-
formarão o tipo de cenário em que a alma viverá sua vida, isto é, tência, há acontecimentos que querem acontecer, sejam ale-
o terreno sobre o qual se desenrolará sua vida. gres ou dolorosos, e acontecimentos que não querem verifi-
Em tais bases se eleva a obra de construção do edifício es- car-se e, se acontecem, é só a seu próprio modo, contra nossa
piritual, representado pelo desenvolvimento de uma vida. A vontade. Há um destino mais forte que nós. Quem o fez, quem
cada indivíduo está reservado um tipo particular de experiên- o guia? Colocaríamos então Deus, caso por caso, ilogicamen-
cia, cuja explicação e justificação está toda contida nas supras te, sem finalidade a nós conhecida, amarrando nosso livre ar-
citadas premissas à sua vida. São suas as premissas, e suas são bítrio e assim tornando-nos irresponsáveis? Que nem sempre
as atuais consequências. Cada vida é um elo de uma longa ca- somos livres é um fato. E como poderemos ser responsáveis,
deia de vidas. Estas vidas, quando vistas todas reunidas em devendo, portanto, pagar as consequências, se não somos li-
conjunto, completam-se reciprocamente, explicam-se e só as- vres? Não podemos admitir que seja Deus que nos amarre,
44 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
mas sim que nós mesmos o façamos com o nosso passado, de te. O problema é este: como conciliar a efetiva falta de liber-
forma que, se agora não somos livres, a responsabilidade é dade, fato evidente ao menos naquela vida de Judas, com sua
nossa, porque fomos nós mesmos que quisemos reduzir-nos à culpabilidade? Como pode julgar-se passível de condenação e,
escravidão, amarrando-nos às consequências de nossas ações. portanto, de castigo um ser que não pode escolher? E, se a
Nossas obras nos acompanham. Só assim não poderemos cul- primeira qualidade do espírito é a liberdade, como terá sido
par senão a nós mesmos quando o destino nos golpear e, ao esta tirada de Judas? E isto apenas para que desse fato surgis-
invés de amaldiçoar, só poderemos agradecer a Deus por nos se sua perdição? Temos aqui um fato indiscutível, ou seja, um
corrigir, pedindo-lhe que nos ajude. Só assim não pode a men- traidor inelutavelmente condenado antecipadamente, para ser
te lançar a culpa em Deus, pois desta forma exclui-se que Ele amaldiçoado pelo mundo e condenado pelo céu. Se esse con-
opere por arbitrariedade, mas sim, pelo contrário, que atue ceito de culpável por predestinação repugna a todo senso de
apenas mediante a lógica, a justiça e a bondade, como exige justiça, é absurdo, por outro lado, o livre arbítrio num ser co-
Sua perfeição. As consequências morais da reencarnação nos mo Judas ou em qualquer outro no mesmo caso, a quem fosse
falam de Sua verdade e bondade. entregue em mãos o poder de, com sua escolha, desmentir as
Um caso clássico, em que se aplicam os supracitados con- profecias e paralisar o desenvolvimento da paixão de Cristo.
ceitos, é o de Judas. Como complemento necessário da descida, Havia, pois, um homem irremediavelmente lançado para a
vida e missão de Cristo, era indispensável a Sua paixão, de que traição e, depois, para seu desesperado suicídio, sem escapató-
dependia a redenção da humanidade. Sua morte na cruz fazia ria para ele. Neste caso, então, teria sido ele a vítima maior,
parte da lógica do seu sistema, baseado no amor e no sacrifício. porque inocente, sacrificada até seu último opróbrio e perdi-
Todos os acontecimentos que condicionaram essa paixão, in- ção eterna, para triunfo final de Cristo.
clusive a traição de Judas, deviam pois ter um caráter de fatali- Só com a teoria da reencarnação se resolve tudo. Sem dú-
dade. É bem verdade que a traição podia ter sido cometida por vida, o ato de traição de Judas foi fatal, e Cristo sabia que po-
outro, e os sacerdotes poderiam achar outro meio para apode- dia com certeza contar com ele. Mas a liberdade apenas se co-
rar-se de Cristo. Mas isto não impedia que alguém tivesse que agulou e fixou-se no último momento, quando foi necessário,
prender, condenar e matar Cristo, sem o que não se poderia ve- ligando-se em forma de fatalidade. Esta derivava de todo o
rificar a paixão. Em todo o caso, não se pode excluir que hou- seu passado, fora longa e livremente preparada nas vidas pre-
vesse um predestinado incumbido de cumprir essa parte, neces- cedentes. Nelas, Judas quis espontaneamente constituir-se
sária no drama, sem a qual a missão não se teria podido reali- traidor, isto é, quis escolher, entre as qualidades boas ou más,
zar. Ora, se ele era predestinado e sua ação era fatal, ele não era estas últimas. Com repetidos pensamentos e ações, ele as ab-
livre e, se não era livre, como poderia ser responsável e, portan- sorvera e as fixara em seu biótipo, de modo que não podia
to, considerado culpado? mais modificar-se, ao menos no momento. Quando viveu ao
Mas ainda há mais. As profecias já haviam predito como lado de Cristo, ele já se havia enredado irremediavelmente
tudo isto deveria ocorrer, mesmo em suas modalidades. O nesse modo de pensar e viver, e isto de uma tal forma, que
Evangelho de São Mateus explica: “Como se cumpririam, não lhe restava mais possibilidade de escolha. Tudo, então,
pois, as Escrituras, que dizem assim deve suceder?...”, “Mas era fatal, mas só naquele momento. Ele fora livre precedente-
tudo isso aconteceu, a fim de que as Escrituras dos profetas se mente, portanto permanecia intacta sua responsabilidade e, as-
cumprissem”. E isto tudo a propósito do beijo de Judas e da sim, sua culpabilidade. Foi assim que Judas pôde tornar-se
prisão de Cristo. Pouco depois acrescenta: “Assim cumpre-se o condenável. Cristo nada mais fez que escolher um homem já
que foi anunciado pelo profeta, que disse: ...e apanharam trinta pronto para a sua função e admiti-lo entre os apóstolos, para
moedas de prata, preço daquele que foi vendido...”. Por sua que, no momento propício, ele a realizasse. Mas, apesar de, no
vez, confirma-o São Marcos em seu Evangelho: “Certamente fim, lançado no caminho do mal, ele não poder mais retirar-se,
vai embora o Filho do Homem, como dele foi escrito, mas ai sua responsabilidade, que agora parecia desaparecer no deter-
do homem pelo qual é traído o Filho do Homem! Melhor lhe minismo, permanecia intacta, porquanto remontava a vida an-
fora jamais ter nascido”. Em primeiro lugar, não podemos dei- teriores, em que ele mesmo criara em si essa personalidade e
xar de observar aquele “jamais ter nascido”, que dá impressão livremente se quisera amarrar a este destino. A culpa de Judas
de um ato escolhido e querido pelo próprio sujeito, que o teria não foi tanto o beijo traidor, última consequência de um hábito
podido evitar. Sem a reencarnação, Cristo, com essas palavras, de traições, quanto o ter querido adquirir esse hábito, que não
só poderia ter expressado que seria melhor que Deus não tives- se adquire num dia e que ele agora tinha no sangue. Uma res-
se criado tal homem. Ora, é inconcebível que Deus tenha erra- ponsabilidade de tamanha gravidade exigia uma culpabilidade
do, que pudesse ter feito melhor agindo de outra forma, e que proporcionada, profunda, verdadeiramente merecida, em plena
Cristo tenha salientado esse erro. consciência e liberdade. Por fim, ao lado de Cristo, a obra de
As profecias, pois, dizem tudo com precisão. Fica claro, dos Judas foi então automática. Quem sabe quantas traições já fize-
textos citados, que, qualquer que fosse o homem chamado para ra, e, com a última, pagou-as todas, como merecia.
entregar o Cristo, já devia existir um predestinado para isso e É assim que a reencarnação nos explica como seja possí-
que, sobre a sua cabeça, já pesava “a priori” essa condenação. vel permanecer responsáveis e constrangidos a pagar. Isto
Ora, como pode ser considerado responsável, culpável e puní- porque esta inexorabilidade é uma consequência inelutável
vel um ser que, sendo criado por Deus, não podia deixar de do que nós mesmos preparamos no passado. Às consequên-
nascer; um ser cuja ação, de uma ou de outra forma, era indis- cias não podemos mais fugir então, de modo que permane-
pensável à realização da Paixão de Cristo e para o qual a trai- cemos responsáveis, mesmo não mais sendo livres. O caso de
ção, já tendo sido profetizada, era um ato inevitável? O verda- Judas não é o único. O bem e o mal, no passado, amarra-nos
deiro culpado, então, teria sido Deus, que, mesmo sabendo tu- a todos no presente. Na fase de efeito, o destino de todos, em
do, haveria criado e feito nascer, sem deixar-lhe liberdade al- certos pontos, é determinístico. Está assim resolvido o inex-
guma, um predestinado a esse ato. plicável emaranhado das precedentes contradições. Eis como,
Sem a teoria da reencarnação, o emaranhado das contradi- só com a teoria da reencarnação, podem conciliar-se os dois
ções permanece inexplicável. Limitamo-nos a explicar este extremos opostos: liberdade e responsabilidade de uma parte,
caso, sem citar – o que já foi feito por outros cabalmente – e fatalidade de outra. Assim tudo é simples e claro. Em cada
muitos outros pontos em que só se pode compreender o Evan- caso, a evidência das soluções só pode confirmar-nos a vera-
gelho no sentido da reencarnação, à qual aí se alude claramen- cidade da teoria da reencarnação.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 45
a
VII. A TEORIA DA REENCARNAÇÃO (2 PARTE) É assim que cada vida forma, durante sua existência, uma
memória sua, separada das precedentes, dando dessa forma a
Observemos, agora, a teoria da reencarnação sob outros cada vida a sensação de ser a única. Os resultados de todas
aspectos. Uma das objeções apresentadas em contrário ba- são registradas no espírito, porém, estando este ainda involuí-
seia-se em que nós não lembramos das vidas passadas. A ob- do, adormecido no estado de inconsciência, a memória do
jeção é de um simplismo pueril, pois, se só tivesse existido passado permanece profundamente sepultada no inconsciente,
aquilo de que nos recordássemos, muito pouco de nós resta- que ainda não despertou, e, ainda que possa aparecer em lam-
ria. Se tivéssemos que nos basear na recordação, não teria pejos nos estados hipnóticos ou mediúnicos, nas intuições ou
existido nossa maturação como feto, nosso nascimento, nem na fase de desencarnação, perde-se de modo absoluto no perí-
os primeiros anos de nossa vida. Da mesma forma, infinitas odo da vida no corpo, quando a vitalidade deste assume a pre-
particularidades cotidianas, por nós vividas, não teriam acon- dominância. Somente nos casos de seres muito evoluídos po-
tecido, porque não as recordamos, nem teriam existidos nos- de o espírito manter-se desperto mesmo no cárcere, debaixo
sos tataravôs, que não conhecemos. Se só fosse verdadeiro o do véu da vida física, com força para lançar até ao plano cere-
que está sob o controle direto de nossa consciência, não exis- bral jorros de intuição que revelem, com uma memória dife-
tiria a assimilação dos alimentos, a circulação do sangue, a rente da normal, lembranças da vida anterior.
atividade curadora da natureza nas enfermidades e reparadora Temos, pois, duas memórias, a cerebral, que só abarca a vida
no sono. Que grande parte de nós mesmos nos escapa, reali- atual, e a espiritual, que abarca todas as vidas. O cérebro é um
zando-se sem que o saibamos, no inconsciente! Acontece que instrumento de registro apenas de impressões sensórias terrenas,
não é falta de consciência, mas só uma consciência diferente, não indo além de sua coordenação racional. O cérebro, pois, não
interior, subterrânea, que trabalha sem nada dizer à consciên- pode conter outra memória além daquela de sua vida, antes da
cia normal de vigília; uma consciência profunda, que está em qual ele não existia e depois da qual se desagrega. Para a grande
contato com as leis da vida e com o pensamento diretivo de- maioria, a memória espiritual está sepultada no inconsciente e,
la. É essa outra consciência – muito mais vasta que a cere- portanto, não pode oferecer nenhuma recordação, pois não sabe
bral, apenas de superfície – que dirige a nossa existência co- funcionar nesta vida. Esta, desenrolando-se no plano físico, só
tidiana e à qual estão confiadas as maiores atividades e dire- pode possuir uma memória cerebral, que nada pode saber do que
tivas da vida. É ela que transmite ao consciente normal, sob a existia antes da formação do cérebro, que é o órgão em que se
forma de julgamentos sintéticos, axiomáticos, de impulsos baseia. Por isso não se pode recordar em geral as vidas prece-
instintivos, as suas conclusões. Quando estas devem trans- dentes e diz-se, então, que elas não existiram. Trata-se de dois
formar-se em ações, o impulso tem de se transportar do cen- centros, um interior ao outro, de natureza e com funções diver-
tro espiritual da alma ao centro cerebral do corpo, e só então sas. Um, o menos profundo, é analítico-racional; o outro, mais
o eu se torna sabedor, na forma de consciência normal. profundo, é intuitivo-sintético. Representa o primeiro uma série
A consciência profunda aparece como inconsciência para a de operações em curso; o segundo, uma série de operações já
cotidiana, que pouco lhe nota a presença. Mas é daquela que executadas. O primeiro abarca a fase da aquisição experimental
emergem movimentos instintivos, raios de inspiração e intui- das qualidades mediante o embate contra as resistências do am-
ções que a razão, depois, procura analisar e compreender. Essa biente externo terreno, o segundo abarca a fase de registro exe-
consciência profunda, muito mais vasta que o eu a nós conheci- cutado e, portanto, de aquisição definitiva dessas qualidades,
do, contém muitas coisas que escapam à nossa psique normal, agora tornadas próprias da personalidade. As instintivas mani-
feita para uso da vida em nosso mundo relativo. Essa psique festações atuais do eu, ainda que a consciência central delas não
normal é como um olho menor, com o qual a alma percebe as guarde lembrança, são o resultado do passado, em que foram
coisas com visão microscópica, é uma função cerebral a serviço preparadas e livremente lançadas suas sementes.
do corpo. Mas tudo é um meio ou instrumento para que o espí- É verdade que a memória cerebral não nos dá a recordação
rito possa tomar contato com o ambiente terrestre, meio que analítica das vidas precedentes. Mas não há esta forma apenas
abandonamos com a morte física, porque então esse órgão ce- de memória. Permanece em nós uma lembrança sintética, no
rebral não serve mais ao espírito, que lhe destilou os valores e sentido de que não podemos explicar em nós as ideias inatas,
absorveu o produto sintético. instintos, qualidades, tendências, se não admitirmos que a se-
Ora, esta menor consciência terrena – constituída pelo mente que agora desabrocha tenha sido por nós plantada em
funcionamento de dois sistemas: um sensório periférico e existências pretéritas, e que cada marca tenha sido impressa na-
outro cerebral central, ligados por meio do sistema nervoso quela forma específica, porque nada pode nascer do nada, mas
– só pode ser depositária dos resultados das experiências ter- tudo nasce de um precedente de seu mesmo tipo e natureza. Não
renas desta vida, isto é, das mais próximas e imediatas sínte- podemos compreender nossa atual vida senão como um desen-
ses menores, tudo em função do desenvolvimento dos meios volvimento de estados precedentes correspondentes e proporci-
sensoriais e cerebrais. Partindo do mundo virgem da realida- onados. Se quisermos limitar-nos apenas à memória cerebral,
de material exterior e do infinito pormenor do particular, e s- não conheceremos a causa de muitas coisas que, do inconscien-
ta é uma primeira destilação que forma a história da vida te, vemos nascer em nós, pois tudo o que somos e fazemos,
atual, aquela que nos recordamos. E, nessa vida, é lógico mesmo no mundo analítico do domínio cerebral, só se explica
que nada mais se possa recordar. Esta psique cotidiana é ap- pesquisando-lhe as origens no mundo interior do espírito. Eis
ta a conter, sobretudo, os produtos racionais da experiência. então que, como desenvolvimento e consequência, um passado
O espírito sabe muito mais e, por sua vez, concentra as me- emerge, ainda que não em forma de memória direta, das profun-
nores sínteses cerebrais de cada vida, realizadas pela psique didades de nosso ser. Pode-se, então, reconstruir um passado
cotidiana, em sínteses maiores, transportando e fundindo a remontando às avessas o caminho que da causa desce ao efeito.
memória particular de cada vida na memória de uma vida Como do que fazemos hoje poderemos deduzir o que seremos
maior. Ora, esse espírito, na maior parte dos indivíduos do amanhã, assim do que agora somos podemos reconstruir o que
biótipo humano, está ainda adormecido no inconsciente e, ontem fizemos. Mais ainda, na primeira parte da vida, enquanto
portanto, é incapaz de recordar, especialmente quando está não utiliza a razão, isto é, não tem controle cerebral nas diretivas
fechado num corpo físico cujas funções superiores se limi- da ação, o homem age por instinto, sem disso dar-se conta. Esse
tam às atividades sensório-nervoso-cerebrais, sem saber su- período, que parece irresponsável, também é responsável, pois
bir evolutivamente mais acima. constitui apenas a consequência automática dos impulsos dese-
46 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
jados e já postos em movimento na vida precedente, ao passo faz ver que ela manda mais que todos. Que pode a razão diante
que, na madureza, o controle racional intervém com o poder de do instinto e do sentimento? O irracional, que no fundo é ape-
corrigir esses impulsos, iniciando novas rotas, com consequên- nas o suprarracional, que tudo domina, ri-se dos cálculos do
cias automáticas, ao menos na primeira parte, dita irresponsável, nosso racional e lhe transmite suas ordens. Nunca somos nós,
isto é, não controlada racionalmente, da vida futura. com nosso cérebro, que tomamos as maiores decisões de nossa
O fato, pois, da falta de lembrança do passado, não prova vida. Sendo assim, como podemos admirar-nos com o fato de
nada contra a reencarnação. Uma memória de natureza cerebral ser o mistério de nossas vidas passadas todo confiado a essa sa-
não pode abarcar o que foi sentido e pensado com outro cére- bedoria superior da vida, que já dirige, sem que nos demos con-
bro, que fazia parte de outro corpo. É verdade que a matéria or- ta, tantos de nossos fatos vitais?
gânica que constitui nosso organismo se renova quase toda Observemos, agora, a teoria da reencarnação em relação à
completamente, mas esta, após substituir a antiga, sempre con- ciência. Pode-se dizer que Freud, sem querer, haja dirigido
serva as mesmas características. No entanto as células de um seus primeiros passos para levar a pesquisa psicológica positi-
novo cérebro, em uma nova vida, não são, em absoluto, o deri- va ao terreno da reencarnação. Fixando e aplicando o conceito
vado orgânico das células cerebrais do corpo da existência pre- do subconsciente, Freud afirmou e demonstrou a existência de
cedente e, portanto, não pode sobreviver a este nenhuma me- uma atividade espiritual que não se pode exaurir na vida atual,
mória direta, mas só uma diferente memória espiritual, pela mesmo se ele não ultrapassou o limiar desta. Chegando a esse
qual, ainda que nada recorde, tudo, como destilação de valores, ponto em seu caminhar às avessas, ele embrenha pela heredita-
em nós sobrevive, e nada se perde. riedade fisiológica, mas não nos dá provas, nem poderia dá-las,
Se observarmos de perto todo o procedimento, só podemos de que a continuação desse caminho para trás não pode tomar
admirar quanto seja providencial este desembaraço de uma ba- outra direção, diferente da assinalada no cérebro pelas experi-
rafunda de particularidades, inerentes ao mundo material, mas ências e personalidades dos pais. De qualquer modo, Freud
inúteis no mundo espiritual, a fim de que permaneça para a inaugurou um sistema que, levado apenas um pouco mais para
personalidade apenas o essencial, o que vale mais. Só assim, trás, nos conduz à vida precedente. Ora, é um fato que, se,
libertada do peso das escórias supérfluas, pode ela mais rápido através da psicanálise, com a pesquisa para explicar os traumas
continuar seu caminho. Uma lembrança analítica do passado psíquicos e depois desfazer as posições psicológicas erradas,
exercitaria enorme pressão sobre o presente. Essa recordação andarmos para trás, até à meninice e ao nascimento, podemos
só se pode realizar à proporção que o espírito, evolvendo, tor- encontrar traumas e posições tão profundamente congênitos,
na-se mais sensível, isto é, paralelamente à sua purificação, o que, para conhecê-los e corrigi-los, seria necessário remontar
que é muito providencial, pois acontece à medida em que se até às suas raízes, que, de tão profundas, só podem ser achadas
vai tornando mais leve o fardo do passado, carregado de erros. na vida anterior ao nascimento. Trata-se de casos que nem
Dessa forma, cada um tem a sensação de começar nova vida. mesmo a vida dos pais ou avós nos mostra conter as causas, e
Sente-se por isso mais livre e leve, ao passo que, se lembrasse que se apresentam como fato pessoal do sujeito, cujas origens
de tudo, ficaria carregado de recordações, dúvidas, problemas não podem, pois, achar-se senão em sua vida individual antes
e, às vezes, rancores, que estorvariam seus movimentos. Não do nascimento, desde que não sejam achadas na atual.
haveria a feliz ilusão da infância e da juventude, pois parece Há sinais característicos da personalidade, qualidades espe-
que na Terra só se pode ser feliz na inconsciência. Pode-se as- cíficas inatas, feridas nervosa ou morais, que nem a vida pre-
sim gozar aqueles períodos de repouso e, com mais esperança, sente do sujeito nem a de seus pais ou avós nos dão explicação.
enfrentar as fadigas de uma nova vida. Em tais casos, uma verdadeira psicanálise, para ser completa,
Como vemos, aqui nos movemos numa psicologia diferente deveria remontar mais atrás nessa corrente de vida, até aos
daquela que, quase levando a pedir contas a Deus de Seu modo tempos anteriores ao nascimento do sujeito. Mas que caminho
de agir, normalmente é utilizada. É justo que a razão procure escolher? A hereditariedade psicológica ou a hereditariedade
compreender. Mas também devemos entender que nosso pen- espiritual? A ciência ignora a segunda, mas temos motivos para
samento não é absolutamente a medida das coisas, que parecem crer que a personalidade humana seja filha mais do segundo
não necessitar de forma alguma de nossa compreensão para que do primeiro tipo de hereditariedade. A personalidade, em
funcionarem por si, de modo maravilhoso. Há, portanto, outro suas notas fundamentais, que permanecem constantes, resiste a
aspecto de conhecimento ou sabedoria, que não consiste em in- todas as contínuas mudanças do corpo físico, sujeito a um me-
dagar para saber ou dominar, mas sim em abandonar-se a essa tabolismo incessante. Uma entidade que, fundamentalmente, fi-
infinita sabedoria que tudo rege. Aonde não chega nossa mente, ca idêntica a si mesma, não pode derivar de um organismo físi-
há o pensamento de Deus, onipotente, que por si resolve todos co (dos pais) que não conhece essa estabilidade. O corpo se
os problemas; há a corrente da vida, que nos guia e arrasta. A transforma sempre, mas o tipo do indivíduo permanece e,
maior parte dos seres humanos e todos animais vivem sem nada quando se transforma, suas mudanças são muito menores. O
saber. Apenas obedecem aos impulsos da vida, que tudo sabe espírito permanece muito mais estável e independente enquanto
para eles. Nosso corpo funciona e se renova sem que nada sai- atravessa a viagem da vida. Ora, Freud dirigiu suas pesquisas
bamos, muitas vezes curando-se sozinho. Colocada a primeira no próprio terreno da personalidade, cujas atitudes não se po-
semente, tudo se desenvolve automaticamente. O que podem a dem explicar cabalmente senão remontando a seu passado, se-
nossa ciência e a nossa vontade diante de tais maravilhas? Não gundo a teoria da reencarnação.
somos nós que vivemos autônomos e separados, mas é a vida Poder-se-ia dizer que os pais dão a matéria prima – a carne,
que vive em nós. Por vezes atuam em nós inúmeras maravilhas o corpo, com algumas de suas características – e que, nesta base
suas, sem que disso nos apercebamos. De outras vezes, intro- material, inocula-se a personalidade do filho, como um moto-
metemo-nos com intervenções terapêuticas no trabalho da natu- rista em seu veículo. Então, à matéria prima, recebida dos pais,
reza, só para prejudicar. Nossa vida é anterior ao nosso conhe- o novo eu dá sua marca própria: o dirigente adapta a si o seu
cimento e depende dele muito pouco. Antes que cada um de veículo. A matéria prima, já elaborada pelos pais para eles
nós nascesse, já existia o esquema de nossa estrutura orgânica. mesmos, vem a ser assim elaborada por outro eu para si mes-
Existimos antes de nos termos percebido disso. Não resta dúvi- mo. Poderá ocorrer, então, que um habilíssimo dirigente (per-
da de que há uma imensa consciência cósmica que sabe fazer sonalidade evoluída) se ache na contingência de ter que guiar
tudo e faz por nós tudo o que não saberíamos fazer. E nós que- um veículo primitivo, com órgãos defeituosos, que impedirá a
remos impor-nos a tudo. Mas aquela consciência cósmica nos manifestação dos talentos do sujeito; ou então que um motorista
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 47
sem valor algum se encontre a guiar um belo automóvel, que Vistas assim as relações entre a psicanálise e a reencarna-
ele, em sua ignorância, estragará totalmente. Ainda que a carne ção, enfrentemos outro aspecto da questão.
seja do mesmo biótipo familiar, ela se encontrará desposada Observemos a estrutura das células germinais. O óvulo hu-
com diversos tipos de personalidade, no caso de cada um dos mano não chega ao tamanho de um ponto. Dentro de uma ca-
filhos, mas isto sempre com uma base de afinidade, sem a qual mada de gelatina aquosa há um núcleo central mais espesso e
fusão nenhuma pode formar-se. Se o corpo é mais forte que o mais escuro. Dentro dele acham-se 24 cromossomos, em fila-
espírito, então a carne, filha dos pais por herança fisiológica, mentos estriados horizontalmente, com estrias claras e escuras.
vencerá e a personalidade que a veste será por ela rebocada, isto Estes cromossomos contêm cerca de 3.000 genes. Na cabeça
é, a máquina prevalecerá sobre o dirigente, e o indivíduo irá à ovoide do espermatozoide, que tem uma cauda como os girinos,
deriva, à mercê das leis animais. Mas, se o espírito é mais forte, há igualmente um núcleo com cromossomos e genes. Essa ca-
então ele dominará e plasmará à sua imagem a carne, filha dos beça é cerca de 40 vezes menor que o óvulo.
pais, imprimindo-lhe suas próprias características. Cada filamento dos cromossomos é como um fio de pérolas,
Vimos, em A Grande Síntese, o processo da formação de é uma serie longitudinal de genes. São assim duas filas: uma de
instintos e novas qualidades com o método dos automatismos, derivação materna e outra de derivação paterna. Um cromos-
ou repetição habitudinária. A psicanálise no-lo confirma, ao somo é visível ao microscópio. Os genes são ainda menores, de
percorrer o caminho inverso. Evidentemente, o espírito não é dimensões que escapam à nossa imaginação. Temos, então,
um edifício imóvel, uma entidade qualitativamente constante. uma multidão de genes dispostos aos pares, ao longo de fila-
A psicanálise, remontando para trás o caminho da vida, procu- mentos longitudinais. Esses genes do óvulo se combinam com
ra individuar os erros cometidos numa fase abrangida por ape- os do espermatozoide quando esses dois elementos se encon-
nas uma vida, erros de desenvolvimento da personalidade, para tram e se fundem, e é essa combinação que determina os carac-
individuá-los e depois corrigi-los, apresentando-os ao espírito teres hereditários do nascituro.
em posição inversa, para endireitamento das formas psíquicas O número de genes já é representado por cifra astronômica.
contorcidas que assim se formaram. Em outros termos, diz Imagine-se qual não será o de suas possíveis combinações!
Freud: “aqui, erramos o caminho. Voltemos atrás e refaçamo- Pense-se que, para cada óvulo, existem de 200 a 500 milhões de
lo no sentido correto”. Trata-se de refazer um procedimento er- espermatozoides que partem juntos à procura do mesmo. Mas,
rado, tornando a fazê-lo de novo, substituindo a antiga repeti- após poucas horas, permanecem vivos apenas alguns milhares,
ção por outro hábito, com sacudidelas equivalentes e reequili- até que um consiga atingir o óvulo e perfurar-lhe o invólucro.
bradoras em sentido contrário, recomeçando em outra direção Então o espermatozoide perde a cauda, e a cabeça penetra no
a formação de alguns caracteres da personalidade. Tudo isso é óvulo, alterando-lhe a estrutura, fundindo-se com ele e inician-
lógico e certo. Mas, na prática, é bem difícil refazer uma vida do o crescimento por divisão celular.
revivendo-a de novo, corrigir erros devidos a lentas adapta- Ora, cada gene representa um caráter a reproduzir. Dada a
ções, alterar qualidades de formação tão longa, que se esten- disposição em pares dos genes, um materno e um paterno,
dem até às vidas precedentes. Freud não se deu conta de que, achamo-nos aqui, como dizíamos, diante da possibilidade de
em alguns casos, trata-se de intervir no determinismo de um inumerável quantidade de combinações, pois, se é grande o
destino que remonta a semeaduras remotas, das quais não po- número de genes, maior ainda é a quantidade de arranjos possí-
demos impedir hoje a frutificação. Não se deu conta de que é veis. A cada nascimento, realiza-se apenas uma combinação,
inelutável a lei segundo a qual tudo se paga. Não há psicanáli- diante de um inconcebível número que não chega a realizar-se.
se que possa evitar o aparecimento dos efeitos, quando foram Aqui, na reprodução dos caracteres da personalidade, achamo-
estabelecidas as causas. Ainda que o princípio seja correto, é nos diante de um sistema de probabilidades que nos recorda
muito difícil, contudo, descer e operar no subconsciente para aquele que dirige o mundo da moderna física estatística e quân-
demolir posições que se estabilizaram como qualidades adqui- tica. Isto porque as leis do ser tendem a unificar-se no mesmo
ridas. Vemos as religiões terem em vão lutado durante milê- princípio, tanto mais quanto mais descemos em profundidade,
nios para modificar os instintos animais do homem, sem tê-lo isto é, em direção ao centro. Neste caso, encontramos o mesmo
conseguido. Tanto maior será essa dificuldade, no caso indivi- sistema probabilístico quando descemos na profundidade do
dual, quanto mais profundamente se tenham imprimido e fixa- mundo biológico, assim como do físico-atômico. Diante da re-
do no espírito do sujeito essas qualidades, que tanto mais aí es- produção dos caracteres da personalidade, verificamos que o
tarão fixadas quanto mais tenham sido repetidas, isto é, con- fenômeno escapa a uma regulação determinística, para obede-
firmadas pela prática da vida que as aceitou e a elas se adap- cer só as leis estatísticas ou de probabilidade, em que as livres
tou. No entanto este é o mesmo processo corretivo que usa a irregularidades de cada caso, por compensação nos grandes
Lei, mandando-nos as provas opostas ao erro cometido. O mé- números, desaparecem numa regularidade coletiva. Assim, a
todo de endireitamento pelo uso dos contrários é um velho Lei se realiza deterministicamente, mesmo deixando livre o in-
processo biológico, que a vida sempre usou para nos ensinar a divíduo de mover-se como quiser em seu caso isolado. Isto é
não mais errar, rearmonizando-nos na ordem da Lei. Se, por possível, porque inumeráveis irregularidades livres individuais
tudo isso, fica confirmado e justificado o princípio da psicaná- compensadas (caso isolado), podem, na massa, resultar numa
lise, ela continua, tal como é concebida hoje, impotente diante obrigatória regularidade coletiva (lei da espécie).
dos processos psicológicos profundos, que não são exauridos No caso das combinações dos genes, isso significa a possibi-
numa só vida, psicoses cujas primeiras raízes se firmam nas lidade de inumeráveis encontros livres individuais, mesmo per-
vidas precedentes e que o ambiente da vida atual não basta pa- manecendo determinística a lei geral de distribuição dos biótipos
ra explicar. Por vezes, o trauma psíquico não apresenta traços por equilíbrios étnicos e sexo nas qualidades dominantes de
nos pais e se manifesta tão cedo e instintivo no sujeito, sem massa. Isto significa, para cada tipo de individualidade espiritu-
causas exteriores capazes de justificá-lo, que só pode ser expli- al, a possibilidade de achar à sua disposição um número enorme
cado remontando a estados de existência antecedentes ao nas- de combinações e de escolher, qualquer que seja seu gênero, a
cimento, porque só neles se pode ter formado tudo isso. Con- combinação a ele semelhante, com a qual possa estabelecer
cluindo, a psicanálise não será solução completa senão quando aquela sintonização por afinidade, que é necessária para que o
souber estender sua pesquisa até ao terreno pré-natal, segundo espírito possa, num dado tipo de estrutura orgânica, formar sua
os princípios da teoria da reencarnação. veste corpórea. Se a lei biológica é determinística em suas gran-
◘ ◘ ◘ des linhas, é, no entanto, tão vasta, que engloba os movimentos
48 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
das unidades componentes, deixando-os ao mesmo tempo livres. gênero de personalidade. Assim, os bons podem também gerar
Quanto à teoria da reencarnação, tudo isso quer dizer que, ao os defeituosos, e ao contrário. Nossa eugenética só conhece o
contrário de uma alma de tipo genérico, como a que deveria ser caminho da hereditariedade fisiológica. Mas as coisas aconte-
criada ao nascimento, sem um passado seu de formação, somen- cem de outro modo. A enorme riqueza dos genes tem a função
te uma alma do tipo especifico, resultante do caminho percorri- de oferecer, através de todos os tipos de combinações, a mais
do por ela, pode sentir necessidade de achar, entre inumeráveis ampla escolha possível. E quem faz esta escolha, de acordo
combinações, aquela que seja de seu tipo, ou seja, o germe do com o próprio tipo – coisa que a eugenética ignora – é o prin-
material orgânico afim, com o qual possa estabelecer a sintonia cípio espiritual. É ele que regula todo o fenômeno, proporcio-
indispensável para fundir-se com ele. Isso tudo careceria de sen- nando tudo à própria natureza, que já se definiu bem no ambi-
tido, não havendo necessidade de nada disso, no caso de espíri- ente terrestre e que a este volta para continuar o trabalho aqui
tos que não se definiram em suas qualidades por uma própria iniciado. E, se a eugenética, também aqui, observou que a saú-
experiência terrestre precedente, única razão pela qual eles po- de dos filhos depende da saúde dos pais, isto não é proveniente
deriam procurar e achar, nas combinações físicas dos genes, a dos genes senão como efeito, porquanto o que regula tudo é a
posição afim de sintonização em relação ao próprio biótipo. lei de afinidade, pela qual gente doente atrai como filhos espí-
Uma alma que naquele momento nascesse de Deus, descen- ritos doentes, e gente sã atrai espíritos sãos, que procuram e
do diretamente dos céus, do absoluto, completamente ignara devem construir para si corpos sãos, como sede proporcionada
das condições do ambiente terrestre, não teria razão de escolher a eles. Por isso os tarados não deveriam gerar. Mas, infeliz-
nas combinações dos genes – porque jamais poderia achar, por mente, eles, assim como os involuídos, acham em nosso mun-
mais variadas que fossem – aquela que pudesse sintonizar-se do o ambiente inferior que lhes é mais adequado. A vida regula
com uma natureza sua sem precedentes terrestres. Para uma tudo com leis, segundo as quais a geração é dirigida por prin-
alma assim, seria impossível achar, no material orgânico huma- cípios de caráter espiritual e moral. Mas tudo isso, dada a sua
no, qualquer afinidade que lhe permitisse fazer com ele uma orientação, a ciência ainda não pode compreender.
veste corpórea. Se, ao contrário, vemos que a personalidade es- A nossa tese de que a escolha dos genes seja feita pelo
piritual demonstra, desde os primeiros momentos de vida, co- princípio espiritual, por afinidade, e que eles não são a causa,
nhecer o ambiente terrestre e a ele estar proporcionada em seus mas apenas um veículo dos caracteres da personalidade, é su-
instintos e estrutura; se as combinações dos genes não podem, fragada também por outras afirmações. Há, com efeito, alguns
por sua natureza, sintonizar-se e fundir-se senão com um prin- fatos biológicos que podem fazer duvidar da validade da afir-
cípio espiritual afim a eles; se vemos que a vastíssima amplitu- mação de que as diversas individualidades sejam devidas so-
de de escolha permite a sintonização e fusão com qualquer tipo mente a diferenças nas combinações dos genes. A própria união
de alma que se defina nesse ambiente terreno, só nos resta, se das duas células germinais pode produzir dois indivíduos per-
quisermos explicar tudo isso, admitir que essa alma já conheça feitamente diferenciados. Este é o caso dos gêmeos monocori-
a Terra e que aqui tenha sido formada com suas características, ais. Examinados objetivamente, suas características originárias
todas elas de um sabor nada celestial, mas sim bem terreno, ou são tão semelhantes, que podem ser consideradas quase idênti-
seja, de imperfeição do involuído, e não de perfeição divina, cas. No entanto elas formam depois duas pessoas e individuali-
como ocorreria se a alma tivesse saído naquele momento do dades bem distintas no corpo, nas sensações e na consciência.
seio de Deus, caso no qual não se poderiam explicar aquelas A morte de um não é a do outro, a dor de um não é a do outro.
imperfeições de involuído nem a necessidade de uma vida de Trata-se, para cada um dos dois gêmeos, de um eu separado.
provações para aperfeiçoar-se. Só nos resta, portanto, admitir Mesmo se os caracteres morfológicos tendem à semelhança, as
que essa alma volte aqui para se desenvolver, num terreno duas personalidades podem ser diferentíssimas.
adaptado à semente. E dizer isso é dizer reencarnação. A isto a biologia não sabe responder. O certo é que, no caso
Mas há ainda outro fato. A possibilidade de um tão grande dos gêmeos monocoriais, não é a natureza da combinação dos
número de combinações entre genes, poder permitir que, dos genes a causa determinante da distinção. Como sustentar então
mesmos pais, qualquer tipo de vivente venha à luz, isto é, que que uma individualidade particular esteja ligada apenas a uma
um tipo bom possa nascer de maus e ao contrário. Explica-se, particular combinação genética? A explicação só pode estar na
assim, como isto às vezes acontece. Porém, se nem sempre afinidade, base da sintonização necessária à fusão espírito-corpo,
acontece assim, visto que os filhos, pelo contrário, tendem em como acima foi dito. O que nos leva a concluir que só podemos
geral a assemelhar-se aos pais, isto não pode ser devido às in- compreender o fenômeno admitindo que a marca individual deri-
finitas combinações possíveis dos genes, mas sim a algum ou- va, antes de tudo, do princípio espiritual, que estabelece a perso-
tro fator importante. Este só pode estar na lei de afinidade, que nalidade. Esta concepção desloca o centro de gravidade da ques-
preside à escolha realizada pelo biótipo no processo de encar- tão, do terreno material ao espiritual. Apenas este ponto de vista
nar-se numa determinada família e ambiente. Se as combina- é aceitável, porque apenas ele resolve tudo. Então a individuali-
ções dos genes não podem absolutamente, por seu extraordiná- dade humana resulta ser uma entidade que se forma e existe in-
rio número, assegurar a semelhança entre pais e filhos e se essa dependentemente dos genes e de suas combinações. Independen-
semelhança tão frequentemente existe, não podemos dar-nos temente, significa que, se determinado nó particular da trama não
explicação desse fato senão recorrendo à lei de afinidade, base se realiza, aquela individualidade citada vai identificar-se com
da sintonia necessária à fusão espírito-corpo. Dizer isto é dizer outro nó. Então a relação entre os genes e o eu seria análoga à
reencarnação. É então do princípio de afinidade que resulta o que existe entre o eu e o ambiente, isto é, a combinação genética
que as combinações dos genes não são suficientes para regular. ajudaria o eu a determinar os próprios caracteres, mas não seria o
Estes então, em vez de causa determinante, representam ape- determinante exclusivo da personalidade do indivíduo.
nas o veículo dos caracteres preexistentes da personalidade, Permanecendo apenas no âmbito positivo das considerações
que escolhe aqueles determinados genes, como seu meio de biológicas, o problema não é solúvel e permanece um enigma,
expressão, ao invés de ser por eles escolhida. Um corolário ao passo que tudo se torna claro se aí introduzirmos o elemento
pode deduzir-se dessas verificações, ou seja, que é relativa a espiritual. Pode-se, então, concluir pela preexistência de um
eugenética que propõe apenas a reprodução dos biótipos esco- dado número de individualidades espirituais já constituídas com
lhidos como sãos. Cada biótipo contém todas as qualidades dos todas as suas características pessoais, prontas para combinar-se
genes, oferecendo assim a possibilidade de se prestarem como com um par de genes, ansiosas e procurando os meios para fa-
veículos de qualquer tipo de caracteres e dar a vida a qualquer zê-lo (veja o capítulo seguinte). Esses meios são estabelecidos
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 49
pela afinidade, através da sintonização de vibrações. Sendo esta Os problemas não podem ser esgotados e resolvidos só do
sintonia uma qualidade que se encontra tanto na vida física co- ponto de vista positivo cientifico. Esta técnica, agora examina-
mo na espiritual, pode ela funcionar como denominador comum da, da encarnação do espírito num corpo, no seu tipo especifi-
e ponte de união entre os dois elementos, que pertencem a dois co e adaptado de corpo, corresponde além disso a uma neces-
planos evolutivos diversos. Nestas bases, pode realizar-se então sidade lógica e filosófica, segundo o plano da Criação, exposto
a fusão, mediante a qual o eu espiritual toma a direção do de- em nosso volume Deus e Universo. Demonstramos nele que
senvolvimento orgânico, adaptando a si mesmo a matéria prima nosso universo físico é o resultado da queda do espírito, da
recebida dos pais. Esta, por sua vez, passa a formar o ambiente qual nasceu a matéria e a forma. A encarnação repete essa
que a nova personalidade adapta a si mesma e ao qual se adap- queda cada vez que uma alma retorna ao corpo, e cada vida re-
ta, trabalho que se torna possível pela originária aproximação, presenta uma etapa da subida ao longo do caminho da evolu-
por meio da afinidade e da sintonia, explicando-se assim por- ção e uma porção de fadiga e de dor com que ele é percorrido,
que essas duas condições são necessárias para a fusão. realizando assim, progressivamente, a própria redenção. E as-
Então verificar-se ou não uma particular combinação de sim, repetindo o motivo da primeira revolta do ser rebelado,
genes é apenas mera circunstância, que, mesmo faltando, não que fez ruir o universo na forma física, o homem continuará a
paralisa o fenômeno, pois não tem valor determinante para a recair no corpo e em seus castigos, permanecendo submetido
existência da individualidade – que é a sua verdadeira causa – ao ciclo vida-morte, até que, evolvendo e reespiritualizando-se,
mas apenas a função de fornecer-lhe uma base em que possa tenha queimado, ardendo na chama de sua dor, a forma materi-
fixar-se, a fim de formar para si, com o corpo, um instrumento al que o aprisiona e voltado à sua primitiva posição de puro
de ação e realização no plano físico do ambiente terrestre. Se espírito. Só assim o ritmo vida-morte, iniciado com a primeira
agora multiplicarmos o enorme número de combinações pos- queda, poderá ser lentamente absorvido e esgotar-se com o re-
síveis de genes num acasalamento pelo ilimitado número de gresso a Deus, lá onde se extingue a reencarnação.
seres humanos e acasalamentos possíveis na Terra, veremos O que nos revela a observação objetiva, isto é, material e
que cada individualidade espiritual se achará sempre diante de sensória da ciência, é apenas uma pequena parte, uma ilha
uma tão vasta escolha de elementos, que, para qualquer bióti- que emerge de um continente submerso. A ciência positiva se
po humano, será possível estabelecer por afinidade a sintonia move no campo dos efeitos, mas escapam-lhe as causas, que
e, portanto, fundir-se. estão alhures. Ela não sabe o que é a vida, porque de cada
Este é o imenso trabalho escondido e silencioso que, desper- coisa e para todas as formas do ser não conhece o essencial: o
cebido, continuamente se realiza, presidindo à formação do feto. espírito. A ciência para no corpo, mas como pode compreen-
Tudo é escolhido segundo as leis de atração. A escolha sexual, dê-lo, se não conhece o espírito que o anima? Esse corpo é
que tende à fusão conjugal, precede esta outra escolha por parte no princípio apenas uma célula, que depois cresce. Quem o
do espírito, do ambiente apto à formação de seu corpo. Assim, faz crescer e por que o faz só até certo ponto? Do primeiro
os egoísmos separatistas estão necessariamente ligados por atra- núcleo, desenvolve-se, por contínua subdivisão e multiplica-
ções e reorganizações continuas, que reúnem e fundem juntos os ção de células, um aglomerado em contínuo aumento, sem
elementos separados, mantendo-os todos juntos, ligados na uni- que apareça o motor genético dele. Parece um caos amorfo.
dade da vida. Por isso as diretivas do nascimento não são confi-
Mas eis que, em certo momento, começa-se a delinear uma
adas aos pais, simples instrumentos instintivos e mecânicos, que
diferenciação na estruturas das células produzidas, uma dis-
nada sabem. O fenômeno é dirigido pelo elemento espiritual, se-
ciplina que dirige esta maravilhosa multiplicação. Cada célu-
ja diretamente pelo espírito, se este for evoluído e, portanto,
la obedece a diretivas precisas, terminando agrupadas em cer-
consciente o bastante para poder realizá-lo, seja através da sabe-
tas zonas, para começar a construir certos órgãos ou tecidos:
doria das leis da vida, quando o indivíduo ainda não tem capaci-
o cérebro, o olho, o coração, os ossos, etc. Deste maravilhoso
dade de escolha nem autonomia de julgamento. Neste caso, ele é
e inteligente trabalho nasce o milagre do organismo único,
preso automaticamente a correntezas e por elas guiado à posição
em que, por fim, se coordenam os resultados de todos os tra-
que lhe compete, porque melhor se adapta a ele. É sempre, por-
balhos parciais, em plena eficiência de funcionamento orgâ-
tanto, o elemento espiritual que domina o fenômeno físico, e não
nico. Em lugar da primeira desordem, é então entoada como
ao contrário. Verifica-se, assim, a combinação genética pela
qual a personalidade espiritual se une provisoriamente ao corpo, uma orquestração sinfônica, em que cada instrumento execu-
seu instrumento de trabalho e expressão, para realizar depois o ta a sua parte em harmonia com todos os outros, segundo a
processo inverso de separação do mesmo, quando houver termi- lógica de um plano geral que rege tudo.
nado o ciclo e completado o devido trabalho. Eis, então, que Ora, um trabalho tão sábio não pode ser produto do acaso,
também o mundo positivo da biologia não pode ser compreen- tanto mais que ele se reproduz exata e regularmente para ca-
dido senão à luz da teoria reencarnacionista. da ser que vem nascer na Terra. Quem os dirige, pois? Não é
Certamente não podemos pretender que a ciência positiva suficiente a ação dos hormônios para explicar tudo isso. Mais
da biologia, dada sua atual orientação, possa sustentar hoje essa do que a causa última das especializações, representam eles
doutrina. Tão logo se busque subir às alturas filosóficas das ul- antes as alavancas de comando que fazem disparar um meca-
timas razões, a ciência costuma calar. Mas, admitindo que, ao nismo já preexistente. Eles não são suficientes para resultar
contrário, nós queremos ter a explicação dos fenômenos; admi- na formação dos órgãos, mas podem apenas acionar alguns
tindo que a biologia não nos fornece nenhuma doutrina positiva mecanismos que levam a esse resultado. Há, portanto, inde-
a respeito da relação das individualidades com as combinações pendente deles, uma força diretriz inteligente que, segundo
dos genes, nada nos explicando sobre isso; admitindo, enfim, um seu plano ou esquema preestabelecido, produz isso tudo.
que existe a teoria da reencarnação, já sufragada por muitas A morfogênese, ou seja, a origem das formas, mediante a
provas que a tornam certa, sendo tudo explicado neste caso, é qual a vida assume seus modelos predeterminados, depende,
bem lógico que nós a aceitemos, porque ela é uma solução e a pois, de esquemas preexistentes no mundo espiritual, sem o
melhor, sem a qual só nos resta renunciar a compreender, numa que essa morfogênese não se explica.
triste posição de agnosticismo e ignorância. Não se pode ter ou- O problema, agora, é saber como acontece tudo isso. Da-
tra atitude, quando é a própria ciência positiva que nos guia até remos uma resposta conseguida por via intuitiva, que a ciência
às portas da teoria reencarnacionista. poderá considerar como uma hipótese. Quando e como entra a
◘ ◘ ◘ alma no feto? Qual a técnica fisiológica da reencarnação?
50 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
Partamos das duas células germinais, o espermatozoide e ção celular, o eu superior não trabalha ainda nem como enge-
o óvulo. São dois seres unicelulares, cada um com suas ca- nheiro nem como general ou diretor. O trabalho de organizador
racterísticas individuais especificas. Enquanto o óvulo não de células ainda não é requerido, o edifício ainda é simples, e
sabe mover-se por si, o espermatozoide se move com uma basta o impulso de cada célula e sua pequena inteligência para
rapidez relativamente fantástica, de dois centímetros e meio dirigi-lo. Mas, nesse ínterim, o espírito humano está avizinhan-
cada oito minutos. Ele pode continuar a nadar assim por dois do-se cada vez mais, aprofundando essa vizinhança como sin-
dias, realizando um trabalho que não tem paralelo em outros tonização vibratória, através do comprimento de onda da fre-
indivíduos monocelulares. Demonstra saber bem que o óvulo quência e do tipo de individuação cinética. Quanto mais se
é seu objetivo, porque executa os movimentos próprios para complica o trabalho construtivo, mais ele necessita da ajuda de
realizar sua viagem nada fácil, a fim de atingi-lo. Das varias um diretor por parte do eu superior. No câncer, a multiplicação
centenas de milhões de espermatozoides que iniciam essa vi- das células é anárquica, porque não existe essa direção.
agem, só alguns milhares se avizinham da meta, e só um, ou Eis então que esse eu superior, tendo em mira fins mais
poucos mais, a alcançam. complexos, não alcançáveis pelas limitadas inteligências de ca-
Não se pode negar que existe neste pequeno ser uma von- da célula (que, abandonadas a si mesmas, como no câncer, se
tade precisa e uma inteligência que dirige sua ação. Demons- arruínam), começará a guiá-las, coordenando seu agrupamento
tra ele, com todo este empenho em seu trabalho, que sabe su- à medida que elas se reproduzem e organizando-as em tecidos
perar muitas dificuldades, evitando ciladas e ultrapassando diferenciados, destinados a funções especificas. Acontece então
obstáculos para obter êxito. E os espermatozoides que ven- que, enquanto o feto cresce e se define em suas varias partes, se
cem as varias centenas de milhões de irmãos devem tê-las é a inteligência celular que provê a multiplicação do material e
superado todas. Aqui também está em vigor a lei da seleção se é o inconsciente materno que dirige o processo, presidindo o
do mais forte, como nos animais e no homem, demonstrando- funcionamento elementar mecânico como um prolongamento
nos que essa é uma lei geral. Quando, enfim, o espermatozoi- próprio, quem dirige a diferenciação em vários tipos de tecidos
de alcança o óvulo, ele perfura sua barreira externa para pe- e os orienta para a formação dos vários órgãos, preparando seu
netrá-lo. Para melhor conseguir isso, traz consigo uma pe- funcionamento, independente do trabalho da mãe, é unicamente
quena quantidade de uma substância que tem a propriedade a inteligência do eu humano que se apresta para a nova reen-
de dissolver esse invólucro protetor. carnação. Assim, a determinação do sexo, é feita pelo espírito,
Como pode esse ser monocelular ter tal providência, de- conforme ele, dadas as suas qualidades, ache mais adequado,
monstrando saber tantas coisas? E esta é uma inteligência espe- para si, viver num corpo masculino ou num feminino.
cifica e especializada, própria dele e preexistente à ação. Ve- É assim que este é fabricado pelo espírito, sob sua própria
mos aqui a execução de uma serie de atos coordenados, tenden- direção, como um seu casulo; corpo do qual vai ele tomando
tes a alcançar um escopo preciso. Além disso, não se pode ne- posse gradativamente, numa espécie de temporária colabora-
gar que esse ser esteja vivo, e vida quer dizer vontade e ação di- ção com a mãe; corpo em que crescerá definitivamente, to-
rigida por uma inteligência. Há, pois, neste ser um seu centro mando posse independente e destacando-se da colaboração
próprio inteligente, que constitui a “vida” dele. Temos, pois, materna quando o feto, completamente construído, vier à luz.
que admitir nele algo como uma pequena alma, ainda que ele- O corpo, então, pertencerá todo e exclusivamente ao novo eu
mentar, mas da natureza imaterial de que é feita a vida. que se encarnou e, assim como foi formado à imagem e seme-
Eis-nos agora no ponto crucial: como ocorre a encarnação, lhança daquele eu que o plasmou, também continuará a desen-
isto é, como o princípio superior espiritual do eu humano se volver-se sob sua contínua influência e direção, para tornar-se
funde na primeira célula e nas que dela derivam, para depois cada vez mais sua própria forma, isto é, sua mais exata mani-
formar um corpo humano? festação exterior no plano da matéria.
Creio que para responder, mister se torna recorrer à lei das Nesta sua forma física, pois, nosso eu se encontra sem re-
unidades coletivas, que alhures mostramos constituir o meio pa- cordar. Tudo se passou na zona dos automatismos conquista-
ra formação unificadora das unidades menores na construção dos pela repetição muito longa e abandonados ao subconsci-
das unidades orgânicas maiores. Ocorre isto também na socie- ente. Acima destes, a grande lei estabelece os ritmos maiores.
dade humana, nos sistemas planetários e estelares, assim como Segundo esses ritmos, o eu irá depois, no fim da vida, execu-
nos atômicos, moleculares, etc. Então, o eu humano que quer tar o processo inverso, quando o organismo que construiu se
reencarnar-se, avizinha-se gradualmente, não espacialmente, estraga e o espírito desprende-se dele, desencarnando. Logo
mas por afinidade vibratória, isto é, vai aos poucos, como prin- que este falta e cessa sua ação diretriz, aquele organismo,
cípio espiritual, sintonizando-se com o princípio espiritual que abandonado a si mesmo, desagrega-se. Achamo-nos, assim,
rege estas primeiras células do feto em formação, organizando temporariamente donos de um corpo, pois somos no fim des-
o material molecular atômico que as constitui, começando as- pojados dele. Ele é tomado como empréstimo à terra, à qual
sim a construí-lo. Estas células representam o terreno que o eu devemos restituí-lo no fim, sendo constituído de um material
humano utiliza para a sua manifestação futura. As duas primei- comum, que é de todos e que nós mesmos, amanhã, podere-
ras células germinais, a resultante da fusão delas e as outras que mos tomar de novo por empréstimo, para uma nova reencar-
daí derivam depois são como que os tijolos do edifício que nação. Só o espírito é individualmente nosso. A ciência não
aquele eu vai construir para si, ou como os soldados do seu nos dá nenhuma explicação desse jogo. Só a teoria da reen-
exército. Ele, como o engenheiro construtor, põe em ordem o carnação faz dele um processo lógico, dando-lhe um signifi-
material da edificação para fazer a sua construção ou, como um cado profundo e uma meta final.
general, disciplina seus soldados para deles fazer um todo or- Podemos todos verificar que a personalidade é algo de
gânico. A comparação poderia repetir-se com o exemplo de um muito mais vasto que as funções racionais e cerebrais, con-
diretor de uma empresa, que enquadra os seus trabalhadores tendo qualidades e elementos que as superam de muito. Dizer
etc., ou seja, em todos os casos onde um chefe assume a dire- que o pensamento é uma secreção do cérebro é como dizer
ção, coordenando os elementos de que dispõe para fins superio- que a matéria seja a fonte da vida, a máquina elétrica consti-
res à vida e ao trabalho deles como indivíduos. tua a causa da eletricidade, o violino crie a musica ou o reló-
Há, portanto, vários princípios espirituais que não se des- gio construa o tempo. No fundo de cada questão de fisiologia
troem mutuamente, mas se coordenam por afinidade (vibração). há, ao invés, algo de impalpável, que recua à medida que
Na união das duas células germinais e na primeira multiplica- avançamos. Não pode ela reduzir-se aos fenômenos positivos
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 51
da física e da química. Há um elemento que não é matéria e então ser acompanhado com o método da intuição. Em seus
que se chama vida, há o pensamento, que não pode limitar-se primeiros passos, o problema situa-se nas profundidades da
a um efeito mecânico. Não é aceitável, portanto, a teoria ma- química orgânica, em sua cinética atômica, de onde deriva
terialista da biologia. Os órgãos do corpo não podem ser en- uma diferente orientação das vibrações das correntes noúri-
tendidos senão como instrumentos e condições organizados cas, ou seja, encontra-se no sistema de movimento das traje-
por um princípio superior para sua manifestação. No ser hu- tórias internas dos átomos componentes. Essas trajetórias são
mano há um centro e os órgãos periféricos. Estes fazem o tra- linhas de força das quais se desenvolvem as emanações noú-
balho de análise e de transmissão centrípeta. Aquele faz o tra- ricas e nas quais se inserem as recepções noúricas, imprimin-
balho de síntese e de emissão centrífuga. Assim, o eu faz con- do-lhes modificações que formarão os novos caracteres ad-
tato com o mundo externo, chega a conhecê-lo e reage sobre quiridos pela personalidade.
ele. Esse eu não é apenas a central de recepção, repartição, Foi sustentada em A Grande Síntese a tese das origens elé-
controle psíquico e julgamento das mensagens recebidas, mas tricas da vida, pela qual a matéria, evolvendo através das for-
é também a central diretriz das reações correspondentes a ca- mas dinâmicas, da fase  (beta), energia, ascende, com a vida, à
da estímulo, transmitidas aos órgãos do corpo. Também aqui fase  (alfa), o espírito. Esta é a atual ascese evolutiva que, co-
aparece o dualismo, isto é, um mecanismo equilibrado no bi- mo vimos no volume Deus e Universo, implica e pressupõe a
nômio ação-reação, ou seja, um circuito constituído por dois inversa descida involutiva da queda e desmoronamento do Sis-
semicircuitos inversos e complementares: percepção e ação. A tema, do estado de espírito ao estado de energia, que, neste caso
central do eu é transmissora e receptora. Sem os sentidos, o da eletricidade, continuará a dirigir, na forma de sistema nervo-
espírito não poderia ler as mensagens que, através deles, o so, os organismos dessa vida. Assim, no processo inverso da
mundo externo lhe manda. Se o espírito não fosse transmissor, queda – que o fenômeno da reencarnação repete em cada caso
não poderia enviar para o exterior, através dos órgãos de seu individual – o cérebro constitui o órgão de inserção do espírito
corpo, as suas reações. À alma desencarnada faltam os meios no mundo da matéria, o que significa dizer que o espírito,
tanto para perceber nosso mundo da forma que nós o perce- quando se funde ao corpo, insere-se primeiramente no organis-
bemos como para se fazer perceber por ele, agindo sobre ele. mo elétrico deste. Com efeito, é pelo cérebro que começa a
Tudo isto é tão simples e evidente, que a técnica humana construção orgânica do feto. Portanto a primeira manifestação
reproduziu vários desses instrumentos e deles se serve. Porém física do espírito no útero materno começa na forma dinâmica,
ainda não sabe reproduzi-los todos. Mas, reproduzindo ainda que, por ser a mais evoluída, também lhe é mais afim. Esta, de-
outros, poderá fazer novas descobertas técnicas. E vice-versa, pois, recolhe em torno de si os materiais orgânicos fornecidos
reproduzindo artificialmente os que já sabemos imitar, será pela célula paterna e pelo útero materno. Existe, assim, dada
possível suprir à falta dos órgãos físicos e assim curar doentes pela própria estrutura do sistema do universo, uma lógica cons-
em que esses órgãos se estragaram. Enfim, quando se entender trutiva na operação que o espírito realiza ao revestir-se de uma
toda a técnica da estrutura dos meios sensórios, conhecendo seu casca sempre mais densa, e isto até que, no nascimento do feto,
funcionamento até à central espiritual e os meios de conexão a forma física da matéria está completa e pode começar a fun-
com esta, será possível chegar a fornecer os meios de percepção cionar, como acima vimos, recebendo e transmitindo por meio
e expressão em nosso mundo sensório às almas desencarnadas. dos sentidos. Sendo estes os únicos instrumentos de que dispõe,
Será então derrubado o muro que nos divide com o além. o espírito não pode receber nem transmitir senão o que lhe
Por essa estrada poder-se-á chegar à descoberta científica permitem as possibilidades da máquina física em que ele se
da alma, de uma alma que, além de saber viver na forma que consubstanciou. No fim da vida verifica-se o processo inverso,
todos conhecemos, em sua vida unida ao corpo, também de- de libertação da casca por parte do espírito, que leva consigo,
monstra saber viver mesmo sem corpo. Ver-se-á, então, que a registrados em seu sistema de forças, como trajetórias dinâmi-
alma não é uma abstração filosófica, teológica ou metafísica, cas, os resultados da sua experiência na vida, transformados as-
mas sim uma realidade objetiva, que a medicina, à proporção sim em qualidades suas pessoais.
que se aprofunda, terá que fatalmente encontrar e levar em Assim nascer é morrer, e morrer significa nascer. E eis
conta. Só sendo assim compreendida, poderá a alma reentrar aqui outra prova da reencarnação, pois não pode morrer, nas-
no âmbito dominado pelos métodos da ciência médica. A ob- cendo, senão quem estava vivo, além disso, se morrer signifi-
servação anatômica dos corpos mortos não é suficiente. Trata- ca nascer, quem nasce dessa morte deverá de novo morrer,
se aqui do fenômeno da vida, de que a anatomia é apenas a encarnando-se novamente. Tudo é rítmico e equilibrado no
casca e a consequência. É preciso remontar os caminhos sen- universo. O motivo da queda se repete em cada reencarnação,
soriais até ao centro, a consciência. Sobrepujadas a anatomia e porque tudo é regido por um esquema de tipo único, que se
a histologia, o segredo está na cinética atômica dos corpos repete em todas as alturas e em todas as dimensões. Tudo se
químicos que compõem os últimos e mais apurados elementos repete. Assim, a ontogênese repete a filogênese. Tal como, no
do sistema: as células nervosas, ou seja, nos sempre renova- homem, que está no cimo da escala da evolução terrestre, re-
dos equilíbrios daquela química instável, e, subindo ainda pete-se a história da vida do planeta, também se repete, nas
mais, nas emanações dinâmicas lançadas no espaço por aquela vicissitudes de sua vida, o motivo fundamental de sua queda.
cinética atômica. Entramos no terreno extrassensório do telep- Ela é como um regresso à matéria, como uma contração invo-
siquismo. É preciso alcançar essas radiações-pensamento que lutiva do sistema, à qual se contrapõe o progresso realizado na
estão conexas com aquela cinética atômica. Nesta são fixados vida, que na morte se fixa na alma, como um seu novo passo
os movimentos rítmicos, ligados às leis cíclicas, em que se para o alto. Assim, caminha a vida: 1 o) com sua contração
deve basear a memória, o registro das impressões, a formação numa forma dura, na descida do espírito à matéria, em que ele
dos automatismos e a aquisição das qualidades instintivas ou permanece prisioneiro das provações e das dores; 2o) com sua
inatas. Deve aqui o médico aliar-se ao rádio-técnico para in- expansão na libertação do espírito da matéria, enriquecido pe-
dividualizar essas radiações pelas características da onda (ul- las provações superadas e pela nova experiência adquirida.
tracurta) e examinar seu comportamento. Do estudo analítico Então a morte não é igual para todos, podendo parecer, ao in-
desse feixe de ondas, é possível reconstruir analítica e cienti- voluído, um fim doloroso e, ao evoluído, uma alegre liberta-
ficamente a síntese psíquica do eu, que, mais acima ainda, ção. À proporção, pois, que o ser evolve, liberta-se ele da
escapa no imponderável. E, nestas dimensões superiores, que morte, isto é, da consequência da queda, transformando em
estão fora do domínio da ciência positiva, o fenômeno poderá alegria o sistema emborcado em dor.
52 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
A teoria do pensamento produzido pelo cérebro baseava-se VIII. O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS
na localização das varias funções, de acordo com os lobos cere- (TÉCNICA DA REENCARNAÇÃO)
brais. No entanto, se podemos encontrar localizações cerebrais
para funções animais, não há circunvoluções nem centros para Consideremos agora a teoria da reencarnação sob um ponto
nenhuma das funções superiores do espírito, como a inspiração de vista que, não obstante sua completa diversidade, coincide
artística, a intuição cientifica e filosófica, as aspirações místicas com os precedentes e nos dá uma confirmação não só dos parti-
e religiosas, a concepção dos ideais e das ideias abstratas. Ao culares, mas sobretudo da verdade de todo o sistema. E essa
contrário, está provado que, em muitíssimos casos, a destruição confirmação nos chega bem de longe, tanto no tempo como no
de partes das zonas cerebrais não lesou em absoluto as faculda- espaço. Trata-se de uma antiga tradição do Tibete, o “Livro Ti-
des intelectuais. Se existe uma possibilidade de localização das betano dos Mortos” (Bardo Thödol), traduzido para o inglês pe-
funções cerebrais, ela se refere apenas àquelas inferiores, mais lo Lama Kasi Dawa Samdup, que, desse modo, transmitiu ao
elementares, pois tal mapeamento torna-se cada vez mais pro- mundo ocidental parte dos ensinamentos dos grandes mestres
blemático quando se passa às funções espirituais superiores. O da sabedoria budista do Tibete, especialmente no que diz res-
trabalho criativo original não se faz com o cérebro, mas só com peito às experiências “post mortem”, no período da existência
o espírito. Com o primeiro só podemos obter resultados de or- como desencarnados, e ao fenômeno da reencarnação. Este es-
dem analítico-racional, ou uma erudita repetição de coisas ve- crito nos lembra o “Livro Egípcio dos Mortos” e representa um
lhas. O cérebro é um órgão de menor potência que o espírito, dos elos da grande corrente de homens, religiões e povos uni-
que o utiliza para os trabalhos menores. dos através do tempo e do espaço pela mesma fé na reencarna-
Mas ainda há mais. Lemos no volume O problema da alma ção. Bastaria o fato inegável de sua difusão no mundo, para
e da ciência de hoje, de Picone Chiodo, 1945: “Está demons- constituir uma prova da verdade dessa teoria.
trado que, em circunstâncias excepcionais, a inteligência, mes- É interessante o “Livro Tibetano dos Mortos”, porque nos
mo com a destruição do cérebro, pode conservar-se íntegra. mostra de forma cientifica, poderíamos dizer, o mecanismo da
Desse modo cai inevitavelmente a gratuita hipótese explicativa, transmigração, de vez que aí encontram aplicação alguns fatos
formulada pelos fisiólogos, segundo a qual os lobos cerebrais comprovados pela ciência ocidental. Entre tantos de sua espécie,
que permanecem, suprem os destruídos. Sucede que esses ca- escolhemos esse livro porque é o único que trata racionalmente
sos, sendo literalmente inexplicáveis por qualquer hipótese fisi- do período de existência entre a morte e o renascimento, base-
ológica, arrastam ao báratro ingente das teorias erradas também ando-se em dados que têm correspondência no terreno fisiológi-
aquela que considera o pensamento como uma função do cére- co e psicológico, ambos controláveis pela experiência humana.
bro. Ao contrário, o órgão cerebral é permeado e dirigido em E isto está conforme aos ensinos de Buda: “que não se aceite
suas funções por algo qualitativamente diferente, e só assim se como verdadeira nenhuma doutrina antes de a ter experimentado
pode explicar como consiga conservar-se a inteligência, apesar e reconhecido como verdadeira, mesmo promanando ela das Es-
da destruição parcial ou total do cérebro”. crituras”. Assim, a teoria da reencarnação nos é apresentada nes-
O espírito extravasa por todos os lados os limites de seu se livro não só como uma lei natural, que se harmoniza com to-
meio, que ele utiliza e dirige. O cérebro é empregado nos usos das as outras leis do ser, mas também como fenômeno corres-
da vida, no contingente do ambiente animal. O espírito sabe as pondente à grande lei que constitui o próprio princípio da cria-
coisas profundas e distantes, domina um campo muito mais vas- ção, dado pela potencialidade criadora do pensamento. Com
to, de dimensões superiores às do espaço e do tempo. Conhece a efeito, nós nos construímos a nós mesmos com os nossos pen-
telepatia e a profecia. As funções cerebrais são de ordem inferior samentos, da mesma forma que Deus, com a simples atividade
às espirituais. O funcionamento cerebral não cobre absolutamen- de Seu pensamento, criou o universo. O pensamento é a fonte
te a totalidade do consciente. Pensar com o cérebro, isto é, raci- primeira de tudo. Resulta daí o Karma, lei segundo a qual tudo
onalmente, significa pensar de forma muito mais limitada do que livremente foi semeado será totalmente colhido mais tarde.
que pensar com o espírito, ou seja, intuitivamente. E, quando se Estabelecido o princípio do poder determinante do pensa-
acredita que, ao serem ofendidos os meios nervosos e cerebrais, mento, todo o resto se desenvolve logicamente. A existência
também seja lesado o espírito, porque se veem alteradas as fun- depois da morte é apenas uma continuação da vida, já não
ções espirituais, não se compreende que foram ofendidos e es- mais em condições físicas, mas em condições psicológicas,
tragados apenas os intermediários de sua expressão em nosso como consequência do fenômeno psicológico que se iniciou
mundo. Não é, então, o espírito que fica alterado, mas só suas na vida terrena. Este lado, que na Terra constitui apenas uma
vias de comunicação e manifestação, só a mecânica de sua in- parte da vida em função das atividades físicas, passa então a
serção em nosso mundo material. Assim, os materialistas, vendo prevalecer e domina todo o campo do ser. Dá-se, assim, uma
o órgão do espírito, e não o espírito, veem na morte a destruição inversão, em que a vida não procede mais do exterior para o
desse órgão cerebral e creem, com isso, que o espírito também interior, como percepção por meio dos sentidos, mas procede
termine. Mas a realidade é que o simples fato de perder seu ór- do interior para o exterior, como projeção das impressões co-
gão não implica de forma alguma no desfazimento do espírito, lhidas, armazenadas e assimiladas pela repetição, em forma de
que, apesar de precisar deste instrumento para se manifestar, po- automatismos. Tudo isso se desenvolve canalizado pela lei de
de, ainda assim, existir sem esse meio de expressão, morrendo, causa e efeito, com correspondências especificas e proporcio-
portanto, somente para os nossos sentidos. E, destes, sabemos nadas ligando o efeito à causa.
bem quão restrita é a gama de vibrações que podem perceber. A existência depois da morte é, pois, uma continuação, no
Eles não são, de certo, a medida de todas as coisas. Então, o es- plano psíquico, da vida precedente no plano físico, até o mo-
pírito pode muito bem existir em formas não perceptíveis para mento em que se retoma um corpo, para continuar o caminho
nossos sentidos físicos, continuando bem vivo, ainda quando a da evolução. A natureza dessa existência de desencarnado é a
nós possa parecer morto. E qual outra coisa, então, poderia fazer consequência exata, em qualidade de representações mentais de
esse espírito, que se elaborou com a vida no ambiente terrestre, alegria ou dor, da existência material precedente, que é, por sua
senão continuar depois a sua elaboração, regressando aqui? vez, a consequência de todas as anteriores. E, no mundo dos
Como vimos, as provas em favor da tese reencarnacionista desencarnados, a representação mental é tudo. Falando psicolo-
nos chegam convergentes e decisivas, dos campos mais dispa- gicamente, poderíamos chamar a isso um estado de sonho pro-
ratados. No próximo capítulo, vamos examiná-la ainda sob longado, cheio de visões vivíssimas, decorrentes diretamente do
outros pontos de vista. conteúdo mental do indivíduo que as percebe.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 53
Não esqueçamos que o ser decaiu no relativo e vive na Tudo isso, entretanto, não acontece ao acaso ou desordena-
grande Mayâ, isto é, na ilusão, no irreal, quer esteja encarnado damente. Existe uma ligação entre cada ser e sua forma, que é
ou desencarnado, dado que o real só pode ser alcançado no fim sua expressão, de acordo com o grau evolutivo que atingiu.
do caminho evolutivo, quando forem reencontrados a perfeição Nos planos mais elevados, cada indivíduo está ligado ao seu
e o absoluto. Nossas percepções, que chamamos luz, som, ca- tipo biológico, encontrando-se encerrado nele, sem que lhe se-
lor, tato, olfato, etc., são sensações exclusivas da única parte de jam permitidas improvisações de qualquer espécie. Todavia as
nosso ser que possui capacidade sensitiva: o espírito. Elas não portas não estão fechadas. A Lei impõe apenas um princípio
existem objetivamente, de per si, mas unicamente em função regulador, que garante a estabilidade da forma e dos tipos,
dessa capacidade sensitiva apta a percebê-las. Tirando-se esta, pois, sem isso, a vida se tornaria um caos. É possível, então,
existirão apenas vibrações com determinada frequência e com- sair deste recinto fechado, que o ser formou para si e que ma-
primento de onda. Os sentidos são simplesmente meios de re- nifesta o caminho percorrido por ele. Com a estabilidade, a Lei
cepção dessas vibrações, que, uma vez recebidas, selecionadas lhe garante que esse resultado, conquistado por ele, é seu e, se
e coordenadas nos centros nervosos, são então percebidas, lidas lhe permite alterá-lo, só o faz em continuação, ao longo da li-
e registradas pela unidade central, constituída pelo espírito, e nha causa-efeito, lentamente, pelo caminho da transformação
somente nele é que se tornam luz, som, calor etc., como as evolutiva, de acordo com o conhecido método do registro das
chamamos. Esse estado de ilusão é proporcional ao grau de in- experiências e da sua assimilação e transformação em qualida-
volução do espírito, que corresponde ao grau de materialidade des, por meio dos automatismos.
de sua existência, ou seja, de inconsciência, ignorância e imer- É assim que o biótipo humano, como alma, é espiritual-
são no irreal. Quanto mais involuído é o espírito, tanto mais mente o produto hereditário dos reinos sub-humanos. O bióti-
adormecido está ele. Mas, com o evolver, a grande Mayâ pode po que constitui o elo biológico de junção entre uma forma or-
ser desfeita, através da desmaterialização da própria forma de gânica inferior e a superior – tão procurado pela escola darwi-
vida e do aprendizado de modos cada vez mais extra-sensoriais niana e por seus sucessores, para demonstrar a teoria da evolu-
de percepção. Nessas condições, também a vida de além- ção em bases puramente materialistas – é representado, antes
túmulo se torna mais clara. Surge, então, e cada dia mais se de tudo, por um tipo que é definido por particularidades psí-
firma uma capacidade de orientação e de escolha na grande cor- quicas próprias, ou seja, pelo seu desenvolvimento espiritual.
rente dos renascimentos, e o espírito sempre mais se aproxima A essência da evolução é dessa natureza, sendo a transforma-
da visão real, tornando-se cada vez mais senhor do seu destino. ção orgânica sua última consequência. É o espírito que forma
No fundo do ser há esse núcleo central, o ego, centelha di- suas próprias qualidades, as quais ele exterioriza depois, nos
vina que a queda não pôde destruir e que permanece como um órgãos físicos de seu corpo. A continuidade da evolução existe
conjunto de potencialidades latentes, comprimidas, adormeci- e deve existir, primeiramente, em seu lado de desenvolvimento
das, mas ansiosas para despertar, tornarem-se ativas e se ex- do eu, ainda que isso não apareça externamente, porque suas
pandirem. Nesse ego, apesar de tudo, Deus permaneceu como formas, que aparecem com interrupções, o exprimem apenas
centelha animadora. Dessa fonte, à espera aí de infinitos de- de modo descontínuo. É preciso compreender o que Darwin e
senvolvimentos, nasce o impulso íntimo e instintivo da evolu- seus seguidores materialistas não compreenderam e não podi-
ção, que forma, desse modo, o movimento ascensional de to- am compreender, isto é, que a evolução é guiada por um fluxo
dos os seres do universo. Nesse fenômeno da evolução enxer- vital e que sua substância é espiritual. Portanto a chave do fe-
ta-se, como necessidade absoluta, o fenômeno da reencarna- nômeno da evolução está precisamente nos antípodas da fé ma-
ção, sem o qual não seria possível a reconstrução do eu. Dessa terialista, sobre a qual eles se basearam. No centro do fenôme-
forma, a vida única, pulsando do seu lado material para o seu no da evolução está a expansão progressiva do princípio divino
lado espiritual – dois aspectos inversos e complementares, sem aninhado nas profundezas do eu, capaz de desenvolvimentos
os quais seria incompleto o fenômeno – vai vivendo momentos infinitos. Darwin e seus seguidores não podiam compreender
diferentes, em que se dá o desenvolvimento das próprias forças tudo isso. No centro da evolução existe esse princípio espiritu-
da evolução. No fim de cada ciclo, a alma deposita nos braços al, capaz de aprender através do choque da luta pela vida, pois,
do ciclo seguinte os resultados alcançados e crava no caminho se assim não fora, esse grande esforço não teria sentido nem
da evolução o marco de seu percurso. Tudo funciona obede- finalidade. O ambiente martela desapiedadamente a bigorna, a
cendo a uma lei de harmonia. Assim como, no estado embrio- fim de despertar uma alma capaz de atingir desse modo a ilu-
nário humano, o feto passa por todas as formas de estrutura or- minação. O alvo da evolução é algo que Darwin e sua escola
gânica, desde a ameba até ao homem, da mesma forma, no es- não podiam perceber, ou seja, o desenvolvimento espiritual,
tado posterior à morte, deve a alma retomar, tanto mais consci- que é o despertar da consciência até encontrar Deus.
entemente quanto mais for evoluída, todas as experiências vi- Nada se pode efetivamente compreender do fenômeno da
vidas em suas existências passadas, para a elas acrescentar os evolução se não se perceber a semente psíquica, que é a causa
resultados da última. Na Terra, a ciência vê apenas um lado da da forma. É essa semente que forma ao seu redor o seu pró-
existência: somente a metade do fenômeno da vida. Nosso prio corpo, com os materiais do ambiente. Por isso só é capaz
mundo físico e biológico, se não quisermos ficar sem compre- de produzir um organismo correspondente à sua própria natu-
ender nada, deve ser completado com o mundo espiritual, que reza. É assim que o princípio psíquico involuidíssimo do mi-
forma o seu substrato e lhe fornece a explicação. Se olharmos neral (tão involuído que muitos o negam) não pode produzir
em torno de nós, veremos que tudo é vivo, tudo é constituído seres mais evolvidos que os cristais, capazes somente de ori-
de vida, tudo é regido por esse princípio espiritual que impul- entar suas moléculas em formas geométricas. Dessa forma,
siona tudo a caminhar no sentido evolutivo. E a evolução, que gradativamente subindo até ao homem, nenhum indivíduo po-
se revela na forma apenas num segundo tempo, como conse- de formar para si uma veste corpórea que seja mais que ele
quência, está antes de tudo no espírito. Portanto tudo que exis- mesmo. E chegamos assim à reencarnação, que não diz res-
te, do mineral ao gênio, evolve, alcançando um grau cada vez peito somente ao homem, mas, nesse amplíssimo sentido, a
maior de iluminação. E isto significa desenvolver a consciên- todo ser vivente. Cada ser humano, então, não pode nascer se-
cia, começando pela capacidade de sentir e reagir, que repre- não em um corpo adequado ao desenvolvimento psíquico do
senta o primeiro e mais rudimentar despertar da alma. Este é o espírito animador. Não pode um homem nascer no corpo de
caminho do ego ou centelha divina, alma de toda individuação um animal, ou vice-versa. Imitir o princípio espiritual de um
existente, para remontar às origens. ser humano na forma física de um animal ou de um inseto se-
54 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
ria como querer que o oceano entrasse num rio. Todavia há Não é, pois, concebível que seja deixada à liberdade da criatura
uma possibilidade teórica de que isso venha a ocorrer, quan- a possibilidade de vencer definitivamente contra Deus, arrui-
do, por involução, um oceano evaporasse até se tornar um rio. nando Sua obra. Impõe-se, por isso, a destruição final do mal e,
Verifica-se, nesse caso, o processo inverso da evolução, isto portanto, do ser que o personifica. Isto porque outra lei, ligada à
é, em vez do desenvolvimento da consciência, a sua redução e lei de liberdade, exige que o mal, quando este queira impor-se
adormecimento. Então as qualidades mais elevadas, anterior- definitivamente, sem nunca converter-se no bem, que é a lei do
mente adquiridas, atrofiam-se por falta de exercício, como Sistema, seja eliminado por aniquilamento.
acontece para o órgão corpóreo que não seja mais utilizado. Já desenvolvemos esse tema no volume Deus e Universo,
Nessas condições, toda reencarnação origina não um desen- nos Caps. VII e X. Aqui, apenas resumimos e esclarecemos al-
volvimento, mas uma perda de consciência, de sensibilidade, de guns particulares.
inteligência, isto é, uma descida sempre maior para a inconsci- Como se combinam, então, estas duas exigências opostas: de
ência. Em outros termos, o ser é expulso cada vez mais do divi- um lado, a garantia de liberdade do ser e, de outro, a necessidade
no consciente universal que tudo rege, em lugar de ser sempre de destruição final do mal, para salvaguardar a incolumidade do
mais acolhido nele para conhecer e colaborar como obreiro de Sistema? Quais são as correções que tornarão somente teórica
Deus, como acontece a quem evolve. esta possibilidade de destruição do rebelde? Como pode tudo is-
Tais transformações, em geral, tem lugar somente nos limi- to dar-se sem a violação do princípio da liberdade?
tes de regressos relativos e temporários, seguidos, antes ou de- Todo ser, embora decaído, permanece sempre uma criatura
pois, por recuperações salutares. Elas se tornam possíveis pelo de Deus e tem no fundo, sempre acesa, a Sua divina centelha
fato de haver evidentes semelhanças entre biótipos mais ou me- animadora, cuja natureza, que é positiva, e não negativa, con-
nos evoluídos, dado que os planos inferiores contêm os primei- siste no existir, e não no destruir. Por isso ele não pode, devido
ros princípios, os mais elementares, dos planos superiores. É à sua própria natureza, deixar de agir e rebelar-se contra seu
assim que, nós mesmos, atribuímos aos animais qualidades próprio aniquilamento, pois o princípio fundamental que o rege
humanas, como a fidelidade ao cão, a imundície ao porco, a é dado pelo “eu sou”, a afirmação primeira em que Deus “é”. A
operosidade à formiga ou à abelha, a traição à cobra venenosa, revolta, ou seja, a inversão ao negativo pelos caminhos do mal,
o assassínio ao tigre, a astúcia à raposa, o instinto do furto e da nunca poderá anular este princípio fundamental do egocentris-
imitação ao macaco, a miséria vil ao verme, a leviandade e a mo. Eis, pois, inserido no âmago do ser, controlando sua pró-
graça à borboleta, a força ao boi, a coragem ao leão, etc. Todos pria liberdade, um freio automático, que a limita a uma possibi-
reconhecem nos animais sentimentos humanos de amor, ódio, lidade teórica, porque, quando se trata de ir contra o próprio in-
vingança, inveja, ciúme, inteligência, estupidez, etc. Evoluindo, teresse egoístico, ainda que se tenha a liberdade para tanto, nin-
esses rudimentos de consciência se desenvolvem até ao nível do guém irá querer fazê-lo. Eis o impulso automático para corrigir
homem, mas este, ao involuir, poderia reduzir-se da riqueza de a direção errada que a liberdade pode tomar pelas vias do mal;
seus sentimentos àqueles rudimentos. Desse modo, involvendo, eis o dispositivo que reduz tal desvio a uma simples possibili-
o assassino poderia chegar a reencarnar-se num animal feroz; o dade, tornando-o, desse modo, irrealizável na prática; eis o
sensual e guloso, no suíno, etc. Mas isto é demasiado difícil, que, em qualquer caso, salva o ser rebelde da anulação final, se-
dado que haveria necessidade de períodos extremamente longos ja qual for a sua livre vontade.
de retrocessos, insistindo num mal que constitui dor também Há também um outro freio para limitar a liberdade do ser e,
para o sujeito que o pratica, dor que ele mesmo, instintivamen- assim, estancar seu progresso nas vias do mal, impedindo-lhe a
te, procura libertar-se. Períodos longuíssimos de milhares de loucura do suicídio por aniquilação. A liberdade do ser não é
encarnações são precisos para que se possam verificar essas tão grande a ponto de lhe permitir alcançar uma condição em
transformações biológicas, seja em sentido involutivo como no que, sobrevivendo exclusivamente como mal, ele tornaria o Sis-
evolutivo, neste segundo caso para a consciência subumana la- tema definitivamente poluído, mácula que, com a autodestrui-
tente se transformar na consciência desenvolvida do homem. ção do ser, seria eliminada. A liberdade é uma qualidade de
As operações da natureza são dirigidas por leis de proporção Deus e do ser não decaído, atributo que, sendo inerente ao espí-
e harmonia. E há, por trás da biologia das formas orgânicas, uma rito, inverte-se cada vez mais, através da involução, no deter-
outra biologia, de que tudo depende e sem a qual aquelas opera- minismo da matéria. Disto decorre que o ser, quanto mais insis-
ções não são compreensíveis. Nenhuma forma aparece por aca- te na vontade do mal, tanto mais involui, perdendo a liberdade
so, mas é sempre o resultado de longos períodos de amadureci- e, com isto, a capacidade de efetivar o mal. Então a vontade di-
mento de fenômenos espirituais. O gênio e o santo representam rigida para o mal paralisa-se, de modo que, automaticamente, o
o produto destilado de quem sabe quantos milheiros de encarna- ser, quanto mais se adianta no caminho do mal e, portanto, do
ções. Por certo a evolução, a lei fundamental da vida, é uma for- seu próprio aniquilamento, tanto mais se torna impedido de
ça que impele para frente, mas, como temos observado agora, prosseguir. A liberdade é uma qualidade fundamental e inalie-
não se pode excluir a possibilidade teórica do processo inverso, nável do ser, que a recebeu íntegra, como divino atributo, ao
isto é, da involução, porque o homem não é um autômato amar- qual, sendo filho de Deus, tinha direito. Mas, com a sua revolta
rado à evolução. Antes, a liberdade é a lei fundamental e invio- e consequente queda, esta qualidade toldou-se na derrocada, o
lável do seu ser. É esta sua liberdade que nos obriga a admitir a que significa uma tendência para ela inverter-se ao negativo, is-
possibilidade de que o homem a utilize da forma que melhor en- to é, deslocar-se para o determinismo. Com a evolução, o ser,
tender, até mesmo, portanto, para retroceder. Se o homem não elevando-se novamente, reconquista sempre mais a sua liberda-
pudesse também involver, não seria mais livre. No entanto há, de originária, enquanto quem involve fica cada vez mais priva-
na prática, dispositivos de correção que tornarão apenas teórica do dela e, com isto, perde a possibilidade de praticar o mal e,
essa possibilidade de autodestruição por involução. Porém ja- portanto, de progredir para seu aniquilamento. Com a involu-
mais poderemos admitir que a Lei seja um sistema escravizante, ção, verifica-se com aquela liberdade uma espécie de congela-
que reduza o ser a um autômato irresponsável. mento no determinismo, que se torna sempre mais rígido quan-
Este, portanto, permanece livre e pode sempre retroceder. to mais se desce para os planos inferiores. Então à vontade do
Esse princípio de liberdade não pode permitir a exclusão de ser substitui-se uma outra, emanada da Lei, porque determinis-
uma vontade contínua e tenaz de regresso. O que acontece en- mo quer dizer vontade da Lei. Assim o ser, como um destroço,
tão? É lógico que, se um simples átomo de mal permanecesse incapaz de se dirigir, é retomado pela Lei e entregue à corrente
definitivamente no Sistema, o plano de Deus resultaria falido. dominante no sentido evolutivo, porque agora a Lei é a evolu-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 55
ção, que, como reação proporcional, compensa e reequilibra o derivam também as atividades mais repetidas, geradoras, por
processo involutivo precedente. Desse modo, o ser é recondu- isso, daqueles automatismos com que se fixam as tendências e
zido à tona, contra sua própria vontade de mal e autodestruição. instintos futuros. Desse modo, conforme afirma o livro citado,
Estas correções da liberdade do ser, que agem cada vez o ambiente em que vivemos no estado de desencarnados é for-
mais energicamente, quanto mais ele, utilizando-a em seu pró- mado por nós mesmos, com os nossos pensamentos durante a
prio dano e em sentido destrutivo, quer envolver-se no erro e no vida. Esgotado o impulso que nós mesmos lhe imprimimos,
mal, acabam por endireitar seu caminho na direção evolutiva, termina a representação ou projeção no estado de desencarnado.
isto é, para a construção e salvação. É assim que a Lei, mesmo O espírito, então, sente-se atraído a dirigir-se ao mundo dos vi-
respeitando a liberdade fundamental do ser, resulta construída vos, para nele recomeçar suas experiências.
tão sabiamente, que contém em si os meios automáticos ade- Essa é a doutrina do Livro Tibetano dos Mortos. Quer ele
quados para frear essa liberdade, quando dela se faça mau uso. nos avisar que, no estado de desencarnado, essas visões são ape-
É assim que a Lei consegue impedir aquela autodestruição, nas reflexos das próprias formas-pensamento, e não a realidade
que, de outro modo, seria necessária, uma vez que o mal, ainda em si. Os pensamentos são como germens concretos, sementes
que ínfimo, não pode, em hipótese alguma, vencer de forma de- que podem ser plantadas no terreno de nossa consciência. Sejam
finitiva, podendo somente existir transitoriamente e servindo eles bons ou maus, se encontrarem um terreno favorável, que
aos fins do bem. Permanecem, desse modo, satisfeitas as duas lhes permita, por afinidade, sintonizarem-se com ele, lançam ra-
exigências opostas: a absoluta eliminação do mal e a inviolabi- ízes, crescem e formam a personalidade de um homem, ou seja,
lidade do princípio de liberdade, que não é negado. Podemos, sua natureza espiritual, da qual, mais tarde, dependerá seu desti-
então, concluir que a possibilidade de aniquilamento do ele- no e também sua forma física, especialmente a de sua face. Nes-
mento rebelde, direcionado contra a Lei, permanece apenas sas sementes, imprimem-se os pensamentos dominantes na vida
uma possibilidade teórica. de um homem. Quando olhamos a face de um semelhante nosso,
Após esta digressão explicativa, útil para uma compreensão vislumbramos, através das suas formas materiais, a sua alma,
melhor do argumento de que estamos tratando, voltemos a que nos interessa acima de tudo, porque ela é tudo. Quando esta
examinar o Livro Tibetano dos Mortos. Confirma-nos ele uma não se encontra mais ligada ao corpo, distanciamo-nos com re-
ideia aceita pelo Ocidente, ao afirmar que o subconsciente man- pugnância do cadáver, que é somente um despojo morto, sem
tém em reserva, no estado de latência, a memória de todo o qualquer valor ulterior. Essa alma que procuramos no rosto
passado biológico do indivíduo e da espécie. Aqui, porém, à alheio é um corpo sutil, uma espécie de organismo dinâmico
memória biológica ancestral, que reproduz no plano orgânico as com determinadas vibrações de natureza especifica, cujo con-
qualidades adquiridas pela raça em suas longas experiências, junto define aquele feixe de formas-pensamento e tendências
acrescenta-se uma memória pessoal, que reproduz no plano que se chama personalidade. Essas formas-pensamento são in-
psíquico as qualidades adquiridas pelo indivíduo nas experiên- separáveis da alma e representam sua própria natureza, de modo
cias de suas múltiplas vidas. O nosso passado foi duro e bestial, que seguirão o indivíduo em qualquer lugar em que ele se en-
e, no subconsciente, como nos ensina a psicanálise, estão ins- contre. Trata-se de forças ativas, cujo movimento não pode ser
critos tanto o terror da luta como os instintos mais primitivos e detido, tendo que desenvolver-se deterministicamente até ao
ferozes. Nosso passado recente é a tenebrosa Idade Média, de fim, de acordo com a lei cármica de causa e efeito.
que somente agora estamos emergindo. Consiste o progresso No estado de desencarnado, o homem se encontra no mun-
em nos libertarmos desse amargo lastro psicológico, que ainda do dos efeitos, cujas causas foram semeadas em vida, por meio
persiste em nós; em libertar-nos todos daquelas terrificantes de seus pensamentos dominantes e de suas obras. Por isso pa-
formas de pensamento que oprimiram a humanidade durante raíso e inferno são estados mentais de alegria ou de dor criados
séculos, como a perseguição ao próximo em nome da virtude e por nós mesmos, existentes para cada um na forma por ele
as vinganças de Deus com as torturas do inferno; em libertar- próprio gerada, mas inexistentes fora de sua mente. São esta-
nos todos das formas de pensamento de agressividade e feroci- dos ou condições completamente espirituais daquela alma,
dade em que a humanidade viveu até hoje, por haver construído que, tendo perdido os meios de percepção para sentir, perma-
uma ética falseada com ilusões psicológicas, muitas vezes cons- nece sempre o centro de toda a capacidade sensitiva, especial-
tituídas de desabafos sádicos ou aceitações masoquistas, que mente agora que está livre do corpo. A crença num estado de
nada têm a ver com a verdadeira moral. alegria ou sofrimento depois da morte, dependendo da boa ou
A parte psicológica correspondente a esta memória pessoal má conduta precedente do indivíduo – crença difundida em
tem, no Livro Tibetano dos Mortos, função preponderante em nosso mundo e reconhecida em muitos povos, nos mais diver-
relação à vida depois da morte. A vida do desencarnado, diz este sos lugares e, poderíamos dizer, em todos os tempos – de-
livro, é totalmente produzida pelo conteúdo mental do próprio monstra que nos encontramos em face de um fenômeno que
indivíduo que a percebe. Assim, depois da morte, um muçulma- não pode ser produto de um só pensador ou de uma determina-
no verá o paraíso de Maomé, um indiano verá seu nirvana, o da filosofia ou religião, mas que é parte da realidade biológica
cristão o seu céu de anjos e santos, enquanto o materialista terá universal, verdadeira para todos, em todos os tempos. Há con-
somente visões negativas e vazias, tal como imaginava quando ceitos instintivos, comuns a toda a humanidade, como os con-
vivo. Essas visões mudam de acordo com a manifestação das ceitos de bem e de mal, que se revelam inerentes à própria na-
formas-pensamento fixadas no indivíduo, que agora as percebe. tureza humana e que fazem parte de uma ética biológica uni-
Isto até que sua força cármica condutora se haja exaurido por si versal, da qual também os animais superiores mais inteligen-
mesma. Trata-se de formas-pensamento ou criações mentais tes, que convivem mais de perto com o homem, chegam por
que, no estado de desencarnado, sem corpo material, adquirem, vezes a participar. Foi assim que, nos lugares e tempos mais
num ambiente imponderável, a consistência do real, qual nos remotos, pôde nascer a mesma ideia de inferno e paraíso, ainda
aparece em nosso mundo sensório, em vida. Essas formas- que repleta das mais diversas imagens mentais, sugeridas pelo
pensamento são constituídas de matéria sutil, estado associado à próprio ambiente terrestre particular. Mas o fato de que, em tão
primeira fase na criação da matéria e derivado diretamente do diferentes representações, da hindu à maometana, à cristã etc.,
pensamento, que tem sobre ela poder genético e modelador. reencontramos um fundo idêntico e comum nos assegura que
Derivam, assim, diretamente do pensamento e, portanto, dos não nos achamos em face de um produto particular de uma re-
pensamentos que cultivamos ou que nos dominaram em vida, ligião, mas, como já o dissemos, diante de um produto biológi-
isto é, de nossa atitude espiritual dominante e habitual, de que co universal, que se baseia em fenômenos positivos da vida,
56 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
independentes de qualquer religião, tanto que todas as religi- da vida física, repassando numa visão depois da morte todo o
ões, por mais diferentes que sejam, o repetem igualmente. Dos caminho percorrido e estabelecendo desse modo até que ponto
egípcios aos cristãos, há um julgamento posterior à morte, com da escala evolutiva haja chegado pelo trabalho da vida, a alma
as respectivas consequências. Tudo isso não é somente pro- só pode continuar seu caminho se levar, de novo, aqueles resul-
blema religioso. Quando o homem houver aprofundado as ci- tados ao cadinho das lutas da vida física, a fim de novamente
ências biológicas e psicológicas, chegando a compreender a elaborá-los, levando-os mais adiante. É por isso que a evolução
biologia também como fenômeno espiritual, então poderá re- não pode dar-se de forma ascendente contínua e retilínea, mas
conhecer cientificamente a verdade objetiva desses estados es- unicamente de acordo com o primeiro modelo da queda, isto é,
pirituais depois da morte, que se chamam inferno e paraíso. por um caminho interrompido por contínuos retornos ou desci-
Existência objetiva, mas só como estado mental exclusivamen- das na matéria, a fim de nela completar um novo trecho de su-
te pessoal, em íntima relação com a existência terrena prece- bida, consequência das etapas precedentes. O motivo original
dente e o tipo de pensamentos e atividades nela dominantes. da queda faz com que o ser não possa avançar senão através do
Depois da morte, tudo que o indivíduo pensou e fez torna-se retrocesso de um passo a cada dois passos à frente. Com efeito,
objetivo; tudo o que nele viveu, volta a ele na forma de reflexos é esse o andamento da trajetória típica dos motos fenomênicos
cármicos. As formas-pensamento visualizadas em sua consci- exposta no começo de A Grande Síntese, trajetória cuja forma
ência, que ele deixou aí enraizarem-se, crescerem e expandi- de desenvolvimento só assim podemos explicar. Com a queda,
rem-se, vivem agora diante dele, tomando forma concreta na- o ser estabeleceu essa lei, pela qual é impelido a retroceder a
quele ambiente mais sutil, onde isto se torna possível. De fato, cada avanço ao longo do caminho do espírito, que é o caminho
a tendência de todo pensamento é atingir a sua manifestação, da libertação e da felicidade, recaindo numa nova vida na estra-
repetindo o motivo fundamental da criação, dado pelo primeiro da da matéria, que é o caminho da escravidão e da dor.
ato genético operado por Deus, de que derivou a construção do Por isso o espírito está jungido à roda cármica de suas su-
universo físico. Aquele é o primeiro grande modelo; esta é a cessivas reencarnações, necessárias para completar a evolução e
repetição. E o universo funciona através de modelos únicos e de reconquistar o paraíso perdido. Depois de havermos compreen-
sua repetição em todas as dimensões e graus de evolução. As- dido por que a evolução teve que tomar esse ritmo de impulsos
sim a vida, encontrando um caminho, tende a passar por ele in- interrompidos por continuadas quedas, procuremos agora com-
finitas vezes, até que encontre uma estrada melhor. Quando a preender quais sejam os princípios que presidem ao fenômeno
ciência psicológica estiver mais evoluída, esses fenômenos de escolha do renascimento. Como tudo em nossa vida é um
mentais tornar-se-ão claramente compreensíveis, então se com- jogo de atrações e repulsões, assim ocorre neste caso, que re-
preenderá como nossos impulsos mentais em vida possam, de- lembra a escolha sexual. Dizer que a ligação entre a vida ante-
pois, personificar-se em formas, no estado após a morte. rior e a seguinte é o anel da conexão causal significa, mais pre-
◘ ◘ ◘ cisamente, que as escolhas das formas de renascimento são gui-
Neste ponto ingressamos na parte que mais interessa à teo- adas por uma predileção cármica instintiva, que constitui auto-
ria da reencarnação. Chega o momento em que o impulso das maticamente o impulso determinante. Cada ser humano possui
forças postas em movimento na vida se esgota, cessando seus afinidades com determinados biótipos e ambientes terrestres,
efeitos de alegria ou de dor, segundo sua natureza boa ou má. acha-se em sintonia com os mesmos e por eles sente atração e
Então o ser desperta, alcançando a compreensão de seu novo afeição, o que para ele constitui uma chamada irresistível. Com
estado, isto é, do fato de ter morrido e de se encontrar sem cor- aqueles determinados biótipos e naqueles determinados ambi-
po físico. Assim, diz o Livro Tibetano dos Mortos, o ser ingres- entes, esse ser humano reencontra seus velhos hábitos da vida
sa no estado transitório da procura do renascimento, fenômeno precedente, sua expansão, suas satisfações, sua ligações de ódio
do qual aquele livro oferece as diretrizes, ensinando as modali- e de amor. Se não for um ser superior, ele permanece apegado a
dades do processo para bem reencarnar-se. Alcançando a certe- todas essas coisas da Terra, e esse apego o prende, sendo uma
za de que se encontra sem corpo e que este morreu, nasce então poderosa força, que, sem que ele próprio perceba, o atrai, como
na alma o desejo de formar um novo corpo para si. Ela procura acontece com a atração sexual. Há semelhança entre esta e a
então um lugar onde reencarnar, para recomeçar nova vida. predileção cármica do renascimento. Os dois fenômenos são tão
Por que acontece isto? Porque a vida é contínua e não pode conexos um ao outro, que parecem um único fenômeno, do
parar. Há entre uma vida e outra um elo de conexão causal, pe- qual representam apenas dois momentos sucessivos. Para a
lo qual as causas devem extinguir-se em seus efeitos e, assim, o grande maioria ignara, tudo isto acontece por instinto, por obe-
que foi iniciado num ciclo tem que cumprir-se no seguinte. O diência mecânica às leis de atração e repulsão. Para os seres
impulso irrefreável da vida não pode parar e tem que forçosa- mais evolvidos, a escolha é livre, consciente, executada em vir-
mente seguir adiante nessa linha, que lhe foi determinada pela tude de realizações complexas, em função da organização do
Lei. A vida não pode parar e deve continuar seu caminho ao universo e do progresso da humanidade, como atividade volun-
longo da trilha cármica. Mas por que deve o espírito tender a tária para a execução de determinadas obras e de destinos espe-
reencarnar-se, isto é, descer na matéria, construindo nela uma ciais. Mas isto, para nós, constitui exceção.
forma física para si? Há um conceito profundo na base dessa Do mesmo modo que todos chegam à escolha sexual por
necessidade, que não é apenas a tendência que todo pensamento instinto, sem saber o porquê de certas preferências, ainda que
tem, como já vimos, de atingir sua manifestação, como repeti- razões profundas existam, assim também quase todos chegam à
ção do motivo fundamental da criação. Já explicamos, no vo- escolha da reencarnação por instinto, sem saber o motivo, em-
lume Deus e Universo, que o universo físico ao nosso redor não bora existam razões especificas para isso. Não é por acaso que
é a verdadeira criação de Deus – a qual foi espiritual – e sim um espírito nasce aqui ou ali. A sabedoria da Lei guia tudo
uma sua inversão, uma queda dela na matéria, como conse- harmonicamente e, por meio dos instintos, sabe conduzir o in-
quência da revolta da criatura contra o Criador. divíduo para onde deve ir, aonde a sua ignorância não lhe per-
Há, pois, também este outro motivo fundamental, com base mitiria chegar. Há equilíbrios de forças que determinam o tem-
na gênese do universo físico, para a queda na forma material. po, a raça, o país, a família, a mulher e, com isto, o ambiente
Ora, pelo mesmo princípio acima exposto, de que o universo em que o indivíduo deve nascer. Antes de mais nada, tudo isso
funciona por modelos únicos e pela repetição destes, aquele obedece à natureza do biótipo espiritual, que deve encontrar o
motivo fundamental, uma vez firmado, tende a repetir-se ao in- terreno apropriado para nele colher os materiais que lhe permi-
finito. Por isso, uma vez gravados em si mesma os resultados tam construir uma forma adequada no plano físico. As atrações
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 57
e repulsões são forças geradoras de liames invisíveis, que man- mundo moderno pode, com a concepção cristã do amor, com-
tém coesos os mais distantes elementos constitutivos do univer- pletar a concepção budista, menos completa, da supressão do
so. Tudo se movimenta ao longo desses fios, que formam uma desejo. Para nós, a reencarnação não é apenas uma condena-
rede unindo intimamente tudo a tudo. Há trilhos invisíveis, de ção, mas sobretudo um meio de redenção através das provas da
natureza dinâmica e psíquica, que guiam o caminho das almas vida. A dor não é um castigo, mas um meio de salvação, como
para determinados pontos, de preferência a outros. O que as no-lo ensinou o Cristo com sua paixão. A finalidade última da
impele a seguir esse trilho é, como na vida, o instinto, o desejo. vida não é alcançar um nirvana cuja realidade consista no ani-
Essas ansiedades representam o imã que atrai os seres para cer- quilamento de todos os recursos do eu, cuja alegria provenha
tos ambientes. Nascem de um estado de afinidade, por similari- de um repouso contemplativo e de uma felicidade negativa, re-
dade vibratória, dando lugar a atos inconscientes, instintivos. presentada unicamente pela exclusão da dor. Não! Não quere-
Sabemos que as maiores atividades da vida não são confiadas à mos, nós do mundo cristão, apenas a paz obtida com a renún-
sabedoria humana, demasiado fraca e pequena para que se lhe cia, retraindo-nos da vida num supremo vácuo da alma desta-
possa confiar algo de importância. Mais do que à consciência cada de tudo; queremos, isto sim, a felicidade conseguida com
do indivíduo, são elas confiadas à sabedoria das leis da vida, um trabalho produtivo de bem, seja na terra como no céu,
uma consciência universal maior, que sabe tudo e tudo dirige. afirmando-nos na vida, na suprema plenitude da alma que se
Está, assim, automaticamente pronto o impulso que condu- enriqueceu com tudo ao reencontrar Deus. O fenômeno dolo-
zirá cada alma inconsciente para o ambiente em que ela vai roso da morte e do renascimento não é vencido se, pela fuga,
encontrar a si mesma novamente e, portanto, também lá, as desaparecermos do caminho da evolução, mas só se cami-
consequências de suas ações no passado. Está assegurada, des- nharmos para frente, pois sabemos que o desenvolvimento da
sa forma, a continuidade e a sucessão lógica das experiências consciência, pouco a pouco e automaticamente, sutiliza, até
na evolução, tudo harmonicamente, sem interrupções. Assegu- anulá-las com a espiritualização, essas formas de vida despe-
rada fica, assim, no mecanismo da transmigração, a conexão daçadas, próprias do plano da matéria.
causal cármica. É desse modo que as almas inconscientes do Falando dos métodos que são aconselháveis ao espírito para
grande fenômeno que estão vivendo, vão sendo arrastadas, ig- evitar o castigo das reencarnações, o Livro Tibetano dos Mortos,
norando tudo – da mesma forma que os elementos componen- a fim de nos ensinar a profunda arte por meio da qual nosso es-
tes do átomo – ao longo das trajetórias da vida, impelidas por pírito poderá escapar de retornar ao gérmen vital humano, expli-
essas forças, ora aquém e ora além do limite que separa o ca verdades que confirmam asserções nossas sobre esse assunto,
mundo da vida e o mundo da morte, atraídas pelo desejo, obe- neste mesmo volume. Possuindo o espírito a visão da união dos
decendo a leis que não conhecem. Em fileiras intermináveis, seres humanos, enxerta-se neste terreno no momento em que o
empurradas pelo divino impulso da vida, perseguidas pela dor espermatozoide se une à célula do óvulo materno. Há, pois, ao
para apressar o passo da evolução, de ilusão em ilusão, vão in- lado da fecundação fisiológica, outra fecundação espiritual, que
do, errando cegamente e construindo destinos e provas, tudo se enxerta naquela, sem o que a primeira não poderia tomar dire-
para aprender. Em fileiras imensas, em massas de humanida- trizes autônomas no seio materno. A união entre dois seres pos-
des, em falanges cósmicas, de mundo para mundo, vão sofren- sui, pois, não só uma significação biológica, mas também um
do, lutando, aprendendo. Este universo espiritual imponderá- conteúdo espiritual. Então não há somente a felicidade criadora
vel, ainda não conhecido pela ciência, em equilíbrio com o dos dois cônjuges, pois um terceiro ser, o nascituro, atraído por
universo físico, é turbilhão tão grande quanto a luz da poeira idêntica paixão de amor, sensibilíssimo como espírito, também
cósmica estelar até às mais longínquas galáxias. E tudo, num alcança em sintonia a mesma felicidade criadora e, como que
harmônico sentido evolutivo, ascende para Deus. perdendo os sentidos, se precipita de seu estado de consciência a
O conceito central que guia o Livro Tibetano dos Mortos, é um estado de inconsciência. Isto porque então se completou o
alcançar a iluminação, única condição que pode permitir o ser motivo da queda e a prisão na carne, embora mínima e embrio-
escapar à corrente das mortes e dos renascimentos. Em termos nária, já se fechou em redor dele, só lhe restando, para viver, o
ocidentais, a iluminação é a consciência, e tudo isso quer dizer caminho de desenvolvê-la, utilizando-a para a sua manifestação.
que a referida corrente não pode ser quebrada, senão alcançan- O espírito, então, penetrou na forma, e esta será sua moradia, da
do o termo da evolução, isto é, com a subida até Deus, no fim qual não poderá sair senão quando completar sua vida. Desde
do ciclo. Evidentemente, não estão desenvolvidos naquele vo- então até à morte, espírito e corpo permanecerão fundidos num
lume os conceitos que aqui especificamos para tornar compre- composto único. A formação do feto é confiada ao divino cons-
ensível seu difícil texto, mas eles, embora escondidos e laten- ciente da vida, enquanto o inconsciente humano despertará pau-
tes, estão presentes nele e fazem parte de sua filosofia. Ingres- latinamente, fundido em sua nova forma, numa consciência que
samos agora, aqui, no tema especifico do texto tibetano que se será função dele. A consciência irá despertando cada vez mais
refere sobretudo à arte de escolher uma nova reencarnação. até à idade madura do corpo, quando o eu tiver conseguido to-
Não podemos aceitar a concepção negativa dessa filosofia mar posse totalmente e, por seu intermédio, houver aprendido a
tibetana, quando ela afirma que a causa de todos os males está manifestar-se em todas suas potencialidades.
no desejo e na sede de sensações e que a salvação se encontra Esta perda de consciência no ato da descida na forma mate-
na supressão de tudo isso, pois é isso que nos amarra às rodas rial é um eco do primeiro motivo da queda, que volta e se repe-
das reencarnações. Contudo interessa-nos esse livro, porque te a cada reencarnação. Recomeça depois a subida, desde a
esclarece diversas particularidades do fenômeno da reencarna- profunda prisão do feto, no seio do corpo, que é meio de ex-
ção, que estamos estudando, e confirma algumas das asserções pressão; subida lenta para o alto, em que volta a ecoar, retorna
feitas em outros volumes da presente Obra. O nosso conceito e se repete o motivo contrário ao precedente, com a retomada
do significado da reencarnação é diferente. A salvação não está ascensional. A vida de cada indivíduo resume assim, em pe-
em saber escapar-lhe, nem na consequente evasão da vida, mas quena escala, o maior fenômeno do universo: a queda dos espí-
consiste em saber utilizar tudo isso para evolver, porque a sal- ritos puros rebeldes na forma material (primeiro semiciclo,
vação reside apenas em saber remontar o caminho da descida. chamado involução) e a retomada ascensional para o estado
Concepção ocidental positiva e dinâmica, não perdida no vazio espiritual originário (segundo semiciclo, denominado evolu-
das abstrações para escapar no irreal, mas apaixonada e criado- ção). Desse modo, com o desenvolvimento de cada vida, va-
ra também em nosso mundo, que deve ser corrigido e melho- mos reencontrando, lentamente e com esforço, a consciência
rado, e não renegado aprioristicamente, sem remédio. Assim, o de nós mesmos, assim como a massa dos espíritos decaídos
58 PROBLEMAS ATUAIS Pietro Ubaldi
vai, com a evolução, lentamente e com esforço, recuperando a tabilidade e, no fim, limita-se a fornecer conselhos sobre a esco-
consciência de si mesma e o conhecimento perdido. lha da matriz, ou seja, do melhor ambiente para reencarnar.
O Livro Tibetano dos Mortos não explica tudo isso com cla- Aqui, no entanto, surge mais uma circunstância, dada por
reza, através de termos e referencias próprios da nossa psicolo- outra fatalidade que prende o ser: o seu Carma. Então o ser é ir-
gia ocidental, pois se exprime com uma estranha linguagem resistivelmente dominado pelas forças cármicas, que o impelem
simbólica, que, sem o sentido da intuição para nos fornecer a a tomar um corpo, porque foi no terreno físico que ele semeou
chave em muitos pontos, permaneceria obscura. Continuando (com pensamentos e atos) e é nesse terreno que ele deve agora
em seu ponto de vista, segundo o qual a salvação está em evitar colher. Essas forças o impelem a encarnar-se em determinado
a reencarnação, aconselha ao espírito diversos modos para fe- gérmen porque esse é o ambiente que lhe é afim, o ambiente de
char, como diz o livro, as portas das matrizes, isto é, para im- suas afinidades, sintonizações e atrações. A capacidade de esco-
pedir a queda de si mesmo no gérmen embrionário do feto. lha está em proporção ao desenvolvimento da consciência, qua-
Aconselha, assim, uma espécie de castidade ao espírito, com a lidade que o biótipo humano comum está longe de ter adquiri-
qual ele deveria evitar a conjunção carnal com a primeira se- do. Também neste campo, como já observamos, o ser obedece a
mente do corpo. Pode tudo isso ter profunda significação, dan- impulsos instintivos, sendo manobrado por princípios diretivos
do-nos a compreensão do fenômeno da castidade voluntária. diante dos quais sua mente é cega. As leis da vida comandam o
Certamente, a união normal entre homem e mulher corresponde ser ignorante e o canalizam por trilhos obrigatórios, conforme
às leis da natureza. Mas sabemos também que esta natureza é a suas qualidades. Nossas obras nos acompanham, e nosso passa-
lei de um mundo resultante da queda, é a disciplina do estado do sempre ressurge em nós e em torno de nós. É da Lei que es-
de involução. Se constitui um erro rebelar-se contra esta lei da ses ímpetos causais não possam extinguir-se, enquanto não se
natureza, desviando-se de suas normas, é possível, contudo, so- exaurirem no terreno dos efeitos, pelo desencadeamento dos
brepor-se a elas, mas isto somente quando, em seu lugar, são impulsos, bons ou maus, de alegria ou de dor, encerrados no
seguidas as normas de uma lei de natureza superior àquela, lei campo de forças da esfera do eu. Aquele livro chama, com ex-
indicada pela evolução e situada num plano mais elevado. A pressão imaginosa, de fúrias cármicas tormentosas ou tempes-
união normal é a regra sadia para os seres que precisam de to- tades cármicas o desencadeamento das formas maléficas. Cons-
das as provas e dores inerentes à vida, necessárias para evoluir. tituindo o nascimento na Terra, em geral, um impulso para a
O caminho da ascensão deve passar por esta rota, portanto é expiação, pois que a Terra é lugar de provas e de dor, onde se
bom que a grande maioria se lance por ela, ainda que esta seja a nasce para pagar e aprender, são as forças trevosas que predo-
estrada da dor. Além disso existe, sem dúvida, a ilusão da ale- minam geralmente. É por isso que as fúrias cármicas perse-
gria, convidando-os à realização de um ato que evitariam, se guem o espírito, para forçá-lo a ingressar numa matriz, mesmo
pudessem calcular suas dolorosas consequências. sabendo ele que esta é da piores e que nada promete senão do-
Quem compreendeu a lógica do sistema não pode estranhar res. Essas forças cármicas personificam-se em formas-
que tudo em nosso mundo, inclusive o prazer do amor, tenha de pensamento, como demônios ferozes, subversão dos elementos,
resultar numa ilusão. É natural que, num mundo originado nas tempestades terrificantes, perseguições e torturas. Amedronta-
ruínas da queda, tudo, no fim, se revele como traição. Mas é do, o espírito procura um refúgio, mas a ventania terrível do
exatamente evoluindo que podemos sair de tudo isso. Então é Carma, arrastando a tudo irresistivelmente, continua a forçá-lo
possível, subindo, ingressar num mundo sempre menos ilusório, pelas costas, com golpes insistentes. Sobrepujado por visões
uma vez que a ilusão é herança da queda. Quanto mais nos ele- espantosas, que para ele são realidade, o espírito procura es-
vamos, tanto menos ficamos jungidos a formas de vida na maté- conder-se, jogando-se no primeiro gérmen que encontra, o pior,
ria e tanto menos necessitamos da carne, produto da conjunção o mais merecido, aquele que as inteligentes e justas forças da
sexual, que é parte daquele mundo inferior e ilusório. Eis então, vida lhe puseram ao alcance. E, assim, ele toma então um corpo
que desponta aí uma lei diversa: a castidade, também esta uma miserável, de baixeza e sofrimento. Nascendo neste mundo,
lei da natureza, mas da natureza de um plano mais elevado. Ex- porque também aí, infelizmente, estão suas atrações, ele nasce
plica-se, então, como os santos, seres mais evoluídos, fogem da no inferno que traz consigo. Para aí o impeliram as horríveis fú-
gênese sexual. Eles já emergem do plano oceânico das grandes rias cármicas; seus pensamentos e obras do passado, afins com
massas humanas para o âmago de outra lei da natureza, não mais aquele ambiente; seus hábitos, a ele semelhantes; seus desejos,
aquela que nos obriga a permanecer amarrados ao jogo das re- que ele quer aí satisfazer; seus apegos e suas recordações.
encarnações com a união material. Seu amor espiritualizado Para aí o trouxeram não só as forças que, formando uma es-
proporciona outras soluções menos ilusórias, cujo conteúdo pécie de constrição dinâmica, continuam a avançar na direção da
mais puro consegue resultados mais espirituais. Quanto mais nos trajetória já iniciada, mas também uma instintiva atração para o
distanciamos do estado involuído, isto é, da matéria e da forma ambiente que se lhe assemelha, onde reencontra a si mesmo e
carnal, tanto mais nos afastamos de suas dores e ilusões. pode continuar a realizar-se, reforçando seu tipo biológico e
Em vista de tudo isso, compreende-se porque o Livro Tibe- afirmando sempre mais o seu eu, tal qual é. Há, pois, não apenas
tano dos Mortos orienta o espírito a resistir à volúpia de sua o ataque pelas costas, mas a atração pela frente. Tudo isso torna
conjunção carnal com o primeiro gérmen do corpo, ou seja, a descida naquele pobre gérmen um fato irresistível. Nasce des-
aconselha esta nova espécie de castidade de desencarnados, con- se modo um delinquente, um assassino, que, nascendo no seu in-
cebível como paralela à que os santos costumam manter na car- ferno interior, expande em torno de si o inferno na Terra. Cami-
ne e que é considerada uma virtude entre os encarnados. Aquele nhando no tempo, essa alma andará, semeando o mal e acredi-
livro, porém, aconselha essa castidade a todos, sem discrimina- tando, com isso, que fere os outros, quando, ao invés, fere cada
ção, ao passo que ela só é possível e só se adapta ao biótipo evo- vez mais a si mesma. E sofrerá cada vez mais nesse caminho
luído. Verifica-se, de fato, que não é possível, por exclusiva contrário à senda da Lei, que é a evolução. Desenvolvemos
vontade própria, evadir-se à lei do próprio plano, pois, ao con- alhures o tema do fim do mal, verificando que a sua eliminação
trário, só é possível sair dele através de amadurecimentos lentís- é fatal, uma vez que, sendo negativo por sua própria natureza,
simos. Os cônjuges na Terra, tal como o espírito no além, obe- quanto mais vive, mais se aniquila, isto é, tende automaticamen-
decem todos a uma lei de atração fatal, que os impele irresisti- te, por sua simples existência neste seu modo de ser, à autodes-
velmente a seguir o caminho traçado pelos princípios regulado- truição. O mal não pode ser eterno e não pode vencer.
res de seu plano de vida, ou seja: amor material, encarnação, vi- Mas nem todos os Carmas são assim. Há os inumeráveis
da, provas, dores e evolução. O livro, de resto, prevê esta inelu- medíocres, que não fizeram nem grande bem nem grande mal,
Pietro Ubaldi PROBLEMAS ATUAIS 59
formando destinos cinzentos e insignificantes, gente sentada melhores condições de poder subir depois. O segredo está em
à beira da grande estrada da evolução, à espera – pois a eterni- não se deixar atrair cegamente por uma matriz, como escravo
dade, sem dúvida, é bastante longa – brincando com puerilida- do desejo, mas em saber escolhê-la com inteligência, para ob-
des, passivos, satisfeitos com a inércia: são os adormecidos. Os ter uma encarnação e uma vida não de simples satisfação, mas
impulsos cármicos não os perseguem ferozes e terrificantes, mas de progresso. Quem não procurar escolher iluminadamente
os impelem igualmente, e eles vão como as gotas da chuva, co- permanecerá prisioneiro de seus apegos e vítima do desejo, no
mo as folhas ao vento, como a água dos rios que corre para o jogo das ilusões próprias dos planos inferiores. Aprender a es-
mar. Vão e, sem sabê-lo, pousam naquele gérmen que seu Car- colher significa pôr-se a caminho da nossa consciência da Lei,
ma e suas atrações querem; tudo por instinto, mecânica e auto- não mais para suportá-la cegamente, como ocorre com os invo-
maticamente. Estas almas, assim, caem na Terra, no seu purga- luídos, que tudo ignoram, mas para saber, ao longo dos canais
tório, que trazem consigo, dado por sua própria natureza, adap- da Lei, dirigir-se inteligentemente para a meta radiosa do bem,
tando-se, vegetando e perdendo tempo na preguiça ou dormindo. do conhecimento e da felicidade.
Há, enfim, os espíritos superiores. Estes raramente des- Assim termina o Barbo Thödol ou Livro Tibetano dos Mor-
cem à Terra, que não é seu mundo. Quem não deve pagar ou tos. Dele tratamos porque, como já o dissemos, ele confirma
não tem que aprender, não pode descer à Terra senão para muitos dos conceitos aqui afirmados antes de tomarmos conhe-
cumprir uma missão de bem para os outros. Então ele é um cimento desse livro. No presente volume, demonstramos as mais
mestre que vem para ensinar e sofre só por amor à humani- diversas ramificações particulares dos princípios gerais do sis-
dade. Com plena consciência, ele escolhe o tempo, o lugar e tema, e, ao adentrarmos na complexidade dos pormenores, ficou
a matriz em que nascerá na Terra. Sua encarnação é um ato confirmada a verdade destes princípios únicos e simples, que tu-
de sacrifício; sua descida na prisão da carne, apropriada às do regem. Para confirmá-los, quisemos escutar também esta voz
almas pouco evoluídas como as humanas, é sua paixão mais que nos chega do longínquo passado e do remotíssimo Tibete.
dolorosa. Por ser ele assim tão adiantado no caminho da evo- Com isto, encerramos o estudo do tema da reencarnação,
lução, já está desligado do ciclo da morte e do renascimento. desenvolvido nestes três últimos capítulos. Observamos a teo-
O plano humano de vida já foi por ele vivido há muito tempo ria sob diversos pontos de vista: da lógica, da ciência, da ética,
e constitui passado remoto. Fruto de inumeráveis existências da psicologia, da biologia, etc., até delinear a técnica de funci-
de vida pura e reta, sua mente é iluminada pela clara visão da onamento do fenômeno. Cremos, com isto, haver oferecido
Lei, da qual se torna obreiro a serviço de Deus. elementos suficientes para poder considerar a teoria da reen-
Eis como se desenvolve toda a mecânica da reencarnação. O carnação definitivamente provada e realmente correspondente
Livro Tibetano dos Mortos conclui com uma observação assi- à realidade dos fatos. Para chegar a esta conclusão, percorre-
nalável. O sistema mais eficiente para escolher a melhor matriz mos as estradas mais diversas, porém o ponto de chegada foi
é tornar-se livre de toda atração ou repulsão, de todo o desejo sempre o mesmo: reencarnação.
de tomar ou de evitar. Esse conceito se baseia numa verdade Procuramos, com isto, acima de tudo, alcançar a meta de
mais profunda, pela qual se pode afirmar que a principal causa conduzir definitivamente a teoria da reencarnação do terreno da
dos nossos erros é querermos ser astuciosos demais, à força. incerteza da fé religiosa, onde sempre se discute sem resolver,
Assim, o que nos induz ao maior erro é querer escolher de con- para o plano positivo da lógica e da ciência, cujos resultados as
formidade com o nosso prazer; o que nos deixa alcançar menos religiões não poderão deixar de aceitar. Outro resultado alcança-
é querer obter demais, à força; o que nos limita ao menor êxito do, não desprezível, cremos tenha sido o de haver provado, com
é a imposição de nossa vontade errada. Quem possui uma coisa a reencarnação, que o bem e o mal que fazemos voltam mais
qualquer pode perdê-la e sofrer, mas quem nada possui de nada tarde para nós, inevitavelmente, como destino nosso, do qual
poderá sofrer a perda. Quem se agarra a alguma coisa para não não se pode fugir. Tanto do ponto de vista individual como do
cair, pode cair, se largá-la, mas quem a nada se agarra nada po- social, não se pode deixar de reconhecer a importância não só de
de largar nem pode cair. O segredo, portanto, para a escolha de haver sido aqui demonstrado que os pensamentos e as ações que
uma reencarnação que, mais tarde, nos faça sofrer o menos pos- dirigimos contra os outros se inscrevem em nós mesmos e que,
sível é desapegar-se de tudo; é não se deixar atrair pelos velhos portanto, tudo isso nós o fazemos a nós mesmos, mas também
instintos, que nos reconduzem aos antigos ambientes; é saber de haver provado isto como verdade positiva, como moral bio-
desamarrar-se de tudo que nos prende a eles, para poder assim lógica universal, independente de qualquer religião. Para o ho-
entrar em ambientes melhores, ainda que estes não correspon- mem racional de hoje, não é mais lícito recusar o que está de-
dam aos nossos gostos do momento. Tudo isso porque os hábi- monstrado racionalmente. Nada disso podíamos ter dito antes,
tos mentais adquiridos na vida precedente tendem a perpetuar- mas somente neste momento, em que estamos mais adiantados
se por inércia, propendendo sempre a nos reconduzir para as em nossa Obra, na hora da madureza dos tempos.
mesmas condições de vida. Em outros termos, no momento de-
cisivo da escolha do gérmen, é preciso procurar usar o melhor
critério de que podemos dispor, buscando colocar-nos em
FIM
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra “evolução”. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício “Iguaçu”, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício “Nova Era” (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – “Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra”): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

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