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Pietro Ubaldi

I – PARTE II – PARTE III – PARTE

CONCLUSÃO DA I OBRA
PROBLEMAS DO FUTURO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................... 1
I. A VERDADE ........................................................................................................................................................... 8
II. A PERSONALIDADE OSCILANTE E A VISÃO DE OUTRAS VERDADES ............................................ 12
III. EXPERIÊNCIAS EM BIOLOGIA TRANSCENDENTAL............................................................................ 15
IV. UM CASO VIVIDO ............................................................................................................................................ 19
V. A ECONOMIA SUPERNORMAL ..................................................................................................................... 22
VI. LUTA E SELEÇÃO ........................................................................................................................................... 26
VII. O MAIS FOR'I'E .............................................................................................................................................. 29
VIII. A METAMORFOSE ....................................................................................................................................... 32
IX. A TÉCNICA DA EVOLUÇÃO ......................................................................................................................... 37
X. O PENSAMENTO CRIADOR............................................................................................................................ 40
XI. LIVRE-ARBÍTRIO E DETERMINISMO ....................................................................................................... 41
XII. EQUILÍBRIOS .................................................................................................................................................. 45
XIII. EVASÕES ........................................................................................................................................................ 49
XIV. INFERNO E PARAISO .................................................................................................................................. 52
XV. DEUS E UNIVERSO (I Parte) ......................................................................................................................... 56
XVI. DEUS E UNIVERSO (II Parte) ...................................................................................................................... 62
XVII. AS ÚLTIMAS ORIENTAÇÕES DA CIÊNCIA .......................................................................................... 67
XVIII. O “CONTÍNUO” ESPAÇO-TEMPO E A EVOLUÇÃO DAS DIMENSÕES ........................................ 72
XIX. O ESPAÇO-CURVO E A SUA EXPANSÀO ................................................................................................ 76
XX. COM A CIÊNCIA PARA O INCONCEBÍVEL ............................................................................................. 80
XXI. A CIÊNCIA NA DESCOBERTA DE DEUS ................................................................................................. 83
XXII. O DRAMA DE QUEM CRÊ ......................................................................................................................... 86

ASCENSÕES HUMANAS

I. O PRINCÍPIO DE UNIDADE .............................................................................................................................. 89


II. A ERA DA UNIDADE ......................................................................................................................................... 93
III. CAPITALISMO E COMUNISMO ................................................................................................................... 96
IV. A UNIDADE POLÍTICA ................................................................................................................................. 100
V. A UNIDADE RELIGIOSA ................................................................................................................................ 102
VI. OS CAMINHOS DA SALVAÇÃO ................................................................................................................. 104
VII. FAZER A VONTADE DEUS ......................................................................................................................... 106
VIII. COMO ORAR ............................................................................................................................................... 108
IX. A COMUNHÃO ESPIRITUAL ...................................................................................................................... 110
X. PAIXÃO .............................................................................................................................................................. 112
XI. RESSURREIÇÃO ............................................................................................................................................ 115
XII. CRISTO AVANÇA ......................................................................................................................................... 117
XIII. UMA ESTÁTUA SE MOVE......................................................................................................................... 118
XIV. SINAIS DOS TEMPOS ................................................................................................................................. 120
XV. O ATUAL MOMENTO HISTÓRICO .......................................................................................................... 122
XVI. UMA PARÁBOLA ........................................................................................................................................ 124
XVII. A DESORIENTAÇÃO DE HOJE .............................................................................................................. 126
XVIII. O ERRO DE SATANÁS E AS CAUSAS DA DOR ................................................................................. 127
XIX. O ERRO MORAL ......................................................................................................................................... 129
XX. MEDICINA E FILOSOFIA ........................................................................................................................... 131
XXI. A CIÊNCIA DA ORIENTAÇÃO ................................................................................................................. 133
XXII. O CONCEITO DE PODER EM BIOLOGIA SOCIAL .......................................................................... 135
XXIII. CRISE DE CIVILIZAÇÃO ....................................................................................................................... 137
XXIV. COMO FUNCIONA O IMPONDERÁVEL ............................................................................................. 140
XXV. AMOR E PROCRIAÇÃO ........................................................................................................................... 142
XXVI. SEXUALIDADE E MISTICISMO............................................................................................................ 145
XXVII. POR QUE AMOR É ALEGRIA .............................................................................................................. 147
XXVIII. O PROBLEMA DA CASTIDADE ......................................................................................................... 149
CONCLUSÃO ......................................................................................................................................................... 151
DEUS E UNIVERSO
PREFÁCIO .............................................................................................................................................................. 157
I. COMO FALA A VIDA ........................................................................................................................................ 160
II. “EU SOU” – ESQUEMA DO SER .................................................................................................................... 162
III. O EGOCENTRISMO ....................................................................................................................................... 164
IV. A QUEDA DOS ANJOS ................................................................................................................................... 167
V. ORIGEM E FIM DO MAL E DA DOR............................................................................................................ 169
VI. DESMORONAMENTO E RECONSTRUCÃO DO UNIVERSO ............................................................... 172
VII. A PERFEIÇÃO DO SISTEMA ...................................................................................................................... 175
VIII. SOLUÇÃO ÚLTIMA DO PROBLEMA DO SER ...................................................................................... 179
IX. CONFIRMAÇÕES EM NOSSO MUNDO ..................................................................................................... 185
X. A TEORIA DO DESMORONAMENTO E AS SUAS PROVAS .................................................................. 190
XI. A CAMINHO DA SUBLIMAÇÃO .................................................................................................................. 201
XII. OS TRÊS ASPECTOS DA SUBSTÂNCIA ................................................................................................... 204
XIII. IN PRINCIPIO ERAT VERBUM ................................................................................................................ 207
XIV. A ESSÊNCIA DO CRISTO ........................................................................................................................... 210
XV. À PROCURA DE DEUS.................................................................................................................................. 213
XVI. A PRECE ........................................................................................................................................................ 217
XVII. IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA ...................................................................................................... 220
XVIII. O FENÔMENO INSPIRATIVO ................................................................................................................ 224
XIX. A ALMA E DEUS........................................................................................................................................... 228
XX. VISÃO SÍNTESE ............................................................................................................................................. 231

COMENTÁRIOS

PRIMEIRA PARTE – O FENÔMENO .................................................................................................................. 235


PREFÁCIO .............................................................................................................................................................. 235
HISTÓRIA DE UM CASO VIVIDO ..................................................................................................................... 236
MENSAGENS PARTICULARES DE PIETRO UBALDI .................................................................................. 241
MENSAGENS MEDIÚNICAS DIRIGIDAS A PIETRO UBALDI .................................................................... 241
SOBRE DEUS E UNIVERSO DE PIETRO UBALDI ......................................................................................... 245
A VERDADEIRA E INTEGRAL REALIDADE DE PIETRO UBALDI POSTA EM EVIDÉNCIA COM O
MÉTODO PARAPSICOLÓGICO – PSICODIAGNÓSTICO “BLASI” .......................................................... 247
UM CASO DE BIOLOGIA SUPRANORMAL .................................................................................................... 250
PIETRO UBALDI E SUA OBRA .......................................................................................................................... 258
PIETRO UBALDI, PROFETA DO ESPÍRITO.................................................................................................... 259
A GRANDE SÍNTESE E A NOVA TEORIA DE EINSTEIN (Esclarecimentos) ............................................. 259
ENCONTROS COM EINSTEIN (I) (O Homem) ................................................................................................ 261
ENCONTROS COM EINSTEIN (II) (O Pensamento) ........................................................................................ 262

SEGUNDA PARTE – CRÍTICAS ........................................................................................................................... 264


GRANDES MENSAGENS (I) ................................................................................................................................ 264
GRANDES MENSAGENS (II) ............................................................................................................................... 265
O REGRESSO AOS DIAS CRIATIVOS DO DIVINO PENTENCOSTES ATRAVÉS DA MEDIUNIDADE
INTELECTUAL ...................................................................................................................................................... 266
A PROPÓSITO DA “MENSAGEM DO PERDÃO” DO PROF. PIETRO UBALDI ....................................... 266
PIETRO UBALDI – A GRANDE SÍNTESE ......................................................................................................... 267
A “SUA VOZ” .......................................................................................................................................................... 267
A HISTÓRIA DE UM NOVO GRANDE MOVIMENTO ESPIRITUAL ......................................................... 269
O FIM DA SÍNTESE CÓSMICA (A Grande Síntese) ......................................................................................... 270
NASCIMENTO DE A GRANDE SÍNTESE ......................................................................................................... 271
O FENÔMENO UBALDI ....................................................................................................................................... 272
A GRANDE SÍNTESE PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ITALIANA ....................................................... 273
A GRANDE SÍNTESE PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO ITALIANA ........................................................ 274
A GRANDE SÍNTESE PREFÁCIO À QUARTA EDIÇÃO ITALIANA ......................................................... 277
A GRANDE SÍNTESE PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ESPANHOLA .................................................. 279
A GRANDE SÍNTESE – MENSAGEM DE EMMANUEL ................................................................................ 279
AS NOÚRES – APRECIAÇÃO DE FERMI ........................................................................................................ 279
A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DE FERMI ........................................................................................ 283
ASCESE MÍSTICA – APRECIAÇÃO DE FERMI ............................................................................................. 287
A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (I) ............................................................................. 290
A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃODA IMPRENSA (II) ............................................................................. 290
A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (III) ............................................................................. 291
A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (IV) ............................................................................. 292
A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (V) ............................................................................. 293
VÁRIAS CRÍTICAS ............................................................................................................................................... 294
UM LIVRO REVELADOR ................................................................................................................................... 295
MISTICISMO MODERNO ................................................................................................................................... 296
HISTÓRIA DE UM HOMEM ............................................................................................................................... 298

TERCEIRA PARTE – A CONDENAÇÃO ........................................................................................................... 299


CONDENAÇÃO DO SANTO OFÍCIO ................................................................................................................ 299
UBALDI CONDENADO PELA IGREJA ............................................................................................................ 299
A GRANDE SÍNTESE NO ÍNDEX ....................................................................................................................... 299
A CONDENAÇÃO DE A GRANDE SÍNTESE ................................................................................................... 300
AS OBRAS DE PIETRO UBALDI NO INDEX ................................................................................................... 300
ORIENTAÇÃO ....................................................................................................................................................... 302
CONCLUSÕES SOBRE A CONDENAÇÃO ....................................................................................................... 304
PIETRO UBALDI E A IGREJA ........................................................................................................................... 307
O PONTO DE VISTA TEOLÓGICO ................................................................................................................... 309

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 1
Esse processo evolutivo implica a retomada dos motivos da
PROBLEMAS DO FUTURO primeira explosão, onde foram apenas sinteticamente expres-
sos, para se proceder depois ao seu desenvolvimento analítico.
É por isso que, no volume precedente, A Nova Civilização do
INTRODUÇÃO Terceiro Milênio, encontra-se o subtítulo: ―Análise e Desen-
volvimento de A Grande Síntese‖. Esta, como escrito inspira-
Iniciando o presente volume, que se abre no limiar da tercei- do, permanece fundamental, mas sempre parece mais um es-
ra trilogia, é necessária uma pausa para nossa orientação. Cada quema do que um verdadeiro e exaustivo tratado. Dai a neces-
um desses livros é uma jornada, cada trilogia representa uma sidade de desenvolvê-lo, de ultrapassar sua vastidão sintética,
volta na maturação do destino daquele que escreve e no desen- descendo-se à profundeza analítica.
volvimento do seu pensamento, traçado nesta obra, em paralelo As características da terceira trilogia não se tornarão comple-
com o desenvolver do pensamento da própria vida, conforme es- tamente evidentes senão quando o processo for completado. Não
ta se expressa pela ação, na fase histórica que estamos atraves- podemos prever, senão no conjunto, aquilo que a vida poderá
sando. Façamos isso, portanto, para que nos possamos orientar dizer em uma determinada fase de sua manifestação. O certo é
nesses aspectos, os quais se acham intimamente entrelaçados e que este primeiro volume da terceira trilogia se inicia com um
se desenvolvem em ressonância, formando uma perfeita sinfo- retorno à obra A Grande Síntese, com um desdobramento refle-
nia, no mais unitário sentido da vida. Isto não é somente afirma- xivo sobre a sua parte mais difícil, que é a inicial, científica. O
do em cada palavra, mas também vivido profundamente. alforje do autor, caminhante da vida, tem se tornado sempre
O enquadramento formal dos seis volumes, que compõem a mais cheio de experiências. Ele está cansado de palavreado inú-
primeira e segunda trilogias, já se encontra no prefácio do tra- til e tem pressa em concluir a demonstração da doutrina de A
balho precedente: A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Grande Síntese com provas resolutivas. Ele sente toda a vacui-
Vamos repeti-lo, entretanto, para o leitor novo, que ainda não dade e a corrosão das polêmicas filosóficas e religiosas. Preocu-
conhece o argumento. A primeira trilogia compreende: 1) Men- pa-o apenas o que é consistente para provocar no involuído o
sagens1 e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3) Ascese Mística. A abalo decisivo na hora histórica crucial. Por isso ele se dirige à
segunda trilogia é formada de: 1) História de um Homem; 2) ciência, procurando o motivo da vida na origem e na psicologia
Fragmentos de Pensamento e de Paixão; 3) A Nova Civilização do homem, para então desenvolver o presente volume.
do Terceiro Milênio. A terceira trilogia inicia-se com Proble- Mas, também aqui, o caminho continua sempre, assim como
mas do Futuro. No capítulo XVIII, do volume precedente, a vida segue da matéria para o espírito. Deste modo o presente
acha-se sumariamente explanada a significação dessas etapas. livro, tal como os outros, nada mais é senão uma diversa sinfo-
O autor é um viandante da vida, de uma vida em ascensão, nia da ascensão. Mesmo retomado de baixo, o traçado é sempre
na qual ele se eleva penosamente, degrau por degrau. Nessa su- o mesmo, portanto, embora não se possa exatamente prever o
bida, realiza uma série apocalíptica de experiências espirituais, conteúdo desta terceira trilogia, porque a vida fala com os fatos
que se lhe mostram muito graves e decisivas no mundo biológi- e se expressa em formas concretas, reais e vividas, a lógica do
co e que, por transcenderem a vida comum, o deixam tão es- desenvolvimento e o pressentimento de intuição dizem que,
pantado, que não pode furtar-se à necessidade de analisá-las. As como a nota dominante da primeira trilogia foi explosão e a da
palavras que escreve foram por ele vividas com luta e sofrimen- segunda, assimilação, então a da terceira será sublimação.
to, portanto compreender-se-á que, atrás do desenvolvimento Dados esses graus de desenvolvimento, é natural que a nota
do pensamento racional, encontra-se o desenvolvimento de um inspiradora tenha dominado no primeiro tempo (primeira trilo-
destino e que a batalha de conceitos foi primeiramente batalha gia). Daí, os qualificativos de médium, ultrafano 2, inspirado e
de paixão. Pode-se dizer, pois, que cada palavra aqui escrita místico, aplicados ao autor. De fato, ele falou em nome de ou-
ainda está sangrando de dor, vibrando em consequência da luta tra personalidade, em forma ultrafânica, em Grandes Mensa-
travada. No fundo, trata-se propriamente de uma biografia, vis- gens e A Grande Síntese. No seu segundo volume, As Noúres,
ta em sua profundidade; de um caso real, em que é a vida que ele se pôs logo a observar a si mesmo, para poder compreender
fala e se revela, com a experiência de um para proveito de to- o fenômeno da inspiração e suas consequências, a fim de que
dos. É natural que, assim sendo, o pensamento explanado nes- tudo viesse a ser controlado com responsabilidade e plena
tas páginas tem de estar estreitamente unido à manifestação his- consciência. Porém o ímpeto da explosão não pôde deixar de
tórica da própria vida, porque ela é sempre una e indivisível. levá-lo até à altura do terceiro volume: Ascese Mística. No se-
Foi afirmado já, na conclusão da precedente segunda trilogia, gundo tempo (segunda trilogia) a nota inspirativa, tratando-se
que o ciclo da primeira é explosivo e o da segunda, reflexivo. É a de um período reflexo, se atenua e, com o primeiro livro, apa-
assimilação que se segue à inspiração. É uma espécie de recuo rece um retorno autobiográfico: História de um Homem, no
sobre a primeira impetuosa revelação, para que ela possa ser dis- qual o autor procura a si mesmo. O segundo volume é uma co-
ciplinada e melhor compreendida racionalmente por todos. É letânea de artigos que expunham de forma dispersa o seu pen-
uma assimilação necessária para se poder subir ainda mais, de- samento e que foram publicados em revistas. O terceiro é, co-
pois de terem sido racionalmente consideradas e consolidadas as mo foi dito antes, uma retomada e um desenvolvimento dos
posições alcançadas por inspiração. Foi muito forte e muito rápi- problemas mais humanos de A Grande Síntese, decisivamente
do o passo até à Ascese Mística. Após atingir as alturas místicas, apontando para a meta de toda a obra, que é a nova civilização
havia necessidade de tudo disciplinar e enquadrar. O filósofo não do espírito, o grande motivo, apenas assinalado anteriormente.
achará nesse caminho exposição sistemática, onde se busca a Retornos necessários, sem os quais o desenvolvimento não é
construção de sistemas com um cerebralismo artificioso. Isto foi possível, método que, embora ao leitor menos avisado possa
evitado, para que a própria vida falasse com o seu dinamismo. A parecer apenas repetição, é conscientemente adotado.
organicidade, mais do que nos esquemas conceptuais da exposi- Assim, cada volume, significando uma etapa do caminho e
ção, está inserida na sempre presente substância do argumento: a exprimindo uma fase de vida, à qual adere, tem sua característica
eloquente estrutura orgânica do universo. Fundamentalmente, é o própria, que o distingue, como se dá, por exemplo, com as sinfo-
mesmo processo evolutivo que falou em muitos, como a Beetho- nias de Beethoven. Assim, o terceiro tempo (terceira trilogia),
ven, na Nona Sinfonia, ou a Wagner, no Parsifal.
2
O que pratica a ultrafania, quer que dizer: luz do além. Ultrafano cor-
1
Traduzidas em português como Grandes Mensagens. (N. do T.) responde ao médium espiritista. (N. do T.)
2 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
que podemos chamar de sublimação, inicia-se com este primeiro parece de loucos, nas trevas rasgadas pelo lampejar de uma
volume, no qual é feito primeiramente um profundo exame da alucinante luminosidade interior, em meio da qual o Evange-
personalidade humana, já iniciado no livro anterior; abarca-se lho, como sentinela ao longe, grita: ―Ocupai-vos das coisas do
depois a ciência da matéria, a fim de finalmente levá-la até à fé e espírito e tudo o mais vos será dado‖.
ao espírito, seguindo um método ultramoderno de renovação, em Se soubermos, pois, inverter os valores correntes e realmen-
que, alcançando uma visão mais profunda do universo, não mais te viver a utopia do Evangelho, entraremos no mundo dos pro-
materialista, a ciência se torna um grande motivo de sublimação, dígios, tornando atual a já descrita economia do evoluído, base-
que não poderá deixar de constituir o final místico de toda a obra ada na Providência. O milagre consiste em que sua vida, pare-
nos ulteriores volumes. Este final, para o autor, significa a última cendo humanamente ter que findar no desespero da miséria e da
sublimação do seu destino e, para o mundo, o despontar da auro- fome, deságua, ao contrário, num confiante abandono em Deus,
ra da nova civilização do espírito. Nestas três formas estreitamen- porém não só confiante pela fé, mas também através da prova
te ligadas: exposição conceptual, caso individual de evolução es- experimental, onde os fatos demonstram que o apoio nunca fal-
piritual e ascensão coletiva do homem, a vida fala, exprimindo o ta a quem verdadeiramente crê no Evangelho, praticando-o.
mesmo pensamento. Há, na tempestade dos conceitos, nos dra- Quando é superada a grande barreira que nos separa da in-
mas de paixão e de dor de quem escreve e nas lutas do mundo, a versão dos valores correntes, desenvolve-se a série dos milagres.
mesma elevação, a purificação criadora que da matéria leva ao A percepção do mundo que nos circunda é dada pela nossa natu-
espírito, a sublimação na dor que redime. reza; se nós mudamos, tudo muda. Assim, com a nossa elevação
◘ ◘ ◘ no espírito, tudo tende a sublimar-se; o que antes era dor, trans-
Nesta curva da vida do autor, da exposição que constitui sua forma-se em regozijo. Então, o trabalho, hoje transformado em
obra e do próprio destino do mundo, três fatos sintonizados no condenação pela máquina e pela avidez humana, torna-se um li-
mesmo ritmo ascensional, é necessário aprofundar os conceitos vre e alegre ato da criação, no qual o homem é chamado a cola-
acima expostos, com coragem e sinceridade, para proveito de borar no funcionamento do universo e operar, à semelhança de
todos. Que significa, nesses seus três aspectos, essa sublimação Deus, imitando-o em Sua perene ação criadora. Toda renúncia
que caracteriza a terceira trilogia? Comecemos pelo primeiro. na matéria aparece no lado positivo, como construção do eu, isto
Para o autor, isto significa aprofundar sempre mais a consci- é, como conquista e afirmação no espírito. A solidão se povoa
ência do próprio destino, quer dizer, manter sempre mais estreito de forças amigas que nos estendem os braços e nos ajudam; as
contato com o infinito; significa completar a purificação. Há provações se suavizam e se tornam criadoras de nós mesmos.
muitos anos, o misterioso processo biológico da maturação vem- Eis as maravilhas da ascensão, o milagre experimentado pelo
se realizando, sem ser visto exteriormente nem compreendido, autor. O valor destes escritos não se baseia na novidade de con-
através de uma profunda e dilacerante maceração, sob múltiplas ceitos, que são velhos como a vida, mas sobre o fato de que eles
formas. Trabalho intenso, dor, renúncia, pobreza. Um contínuo foram experimentalmente vividos, e não apenas repetidos, ainda
afastamento de si mesmo, de tudo o que é humano, arrancando a que em perfeita ortodoxia de forma. É certo que, antes de Co-
própria carne viva pedaço por pedaço, lentamente, para não aca- lombo descobri-la, a América já existia, contudo ela foi no seu
bar morto. Sim, e tudo isto endossado pela vestimenta exterior do tempo a maior descoberta do século. Desta forma, se hoje, assim
imbecil que não sabe conduzir seus negócios, pela máscara do como Colombo fez com a América, o homem descobrisse verda-
homem educado que deve sorrir para não incomodar, mas, inti- deiramente o Evangelho, vivendo-o experimentalmente, tocando-
mamente, acompanhando o progressivo esclarecimento da cons- o com as mãos, esta também seria a maior descoberta do século.
ciência do seu próprio destino, num crescente senso da missão Atingindo pela evolução o plano do espírito, tem-se a sen-
que deve desempenhar, numa afirmação no plano do espírito. A sação de que emergimos de um fétido mar de lama. Liberdade
grande experimentação evangélica da qual nasceram os volumes no infinito. Entre tantas imperfeições dolorosas, se percebe,
precedentes não foi para o autor literatura, mas um fato vivido, de outro lado, a harmoniosa perfeição da obra de Deus. No
carregado de frutos vivos. Ele, tendo em vão procurado livrar-se plano do universo, percebe-se a lógica do próprio destino, que
do peso da riqueza, que constituía um embaraço à marcha ence- é assim aceito, porque se verifica que ele nos conduz ―sem-
tada, acabou por enfrentar o dilema: ou cuidar de seus próprios pre‖ ao encontro daquilo que representa o nosso bem. Com-
negócios ou renunciar à sua missão. Conciliar duas coisas, onde preende-se a maravilhosa trama da vida, admira-se tudo e
cada uma exigia totalmente o homem, era impossível. E o senso bendiz-se a Deus. É verdade que há as provações, mas, depois
da missão a cumprir, cada dia que passava, mais se acentuava em de superá-las, compreende-se o respectivo sentido e o seu va-
seu íntimo e mais forte gritava. Precisava então abandonar os in- lor criador; adquire-se então uma visão profunda, que vê o
teresses materiais, deixando-os à mercê do assalto de todos. porquê de cada uma das vicissitudes humanas. Tudo se vai re-
Eis o dilema: salvar os valores do espírito ou os da maté- velando completamente, a dor se faz instrumento de redenção,
ria? Ora, uma vez que, neste nosso mundo, sempre se encontra e cada acontecimento de nossa vida se torna um amigo, por-
aquele que está pronto a levar o que não é guardado nem de- que é para nós, sempre, o melhor possível. O grande milagre
fendido, além do que é impossível confiar em outros, pois da ascensão é a nossa progressiva libertação da dor e do mal.
quem sabe desincumbir-se de seus negócios, em geral, só o sa- Todo assalto destruidor se transforma em meio de criação. E a
be para si mesmo, então ocupar-se dos valores do espírito sig- força de cada ocorrência nos fará sempre sentir perto de nós a
nificava pobreza. Precisava escolher. Vivemos em um mundo mão operante de Deus, imanente em nós!
no qual os involuídos são ativíssimos em realizar sua vida com Então, o caminhante da vida, carregado de recordações, em
seu próprio método, a qualquer preço. O homem de espírito, que o futuro, antes um tanto vago, se transformou em passado,
que nesse campo é inepto, facilmente é eliminado. Então, a es- vê e compreende. Compreende como cada golpe da adversidade
colha foi feita, e foi iniciada a experimentação evangélica. O provocou como reação uma nova luz, como cada obstáculo o es-
autor pôde descrevê-la nos volumes anteriores, porque a estu- timulou, como cada provação o instruiu e como toda vicissitude
dou de perto, porque a viveu. Evangelho experimental. Só as- se transformou em força criadora. Então ama-se tudo o que antes
sim essas coisas podem ser verdadeiramente compreendidas; desagradava e pesava, porque já se sabe que tudo serve para edi-
só assim se pode fazê-las compreendidas, quando as pregamos; ficar o espírito. A catarse é de todo o ser, de suas qualidades, de
de outro modo, não passaria de retórica. Trata-se de experi- suas necessidades e desejos, assim como de sua dor. Tudo se su-
mentação que verdadeiramente inverte os valores e refaz o blima nele e, nele e com ele, destila-se e transmuda-se. E isto o
homem; catarse que penetra até aos ossos. É um avanço que faz verdadeiramente rei da vida. É o superamento de todo um
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 3
mundo, para entrar em outro mais alto. O ser é levantado para o censão espiritual. O grande problema é a conquista da felicida-
céu por esta sua sublimação acima de todos os males e dores de, e o que transforma tudo em nós, para o bem e a alegria, não
humanas. Eis o conceito dominante na terceira trilogia. é o além-túmulo, mas sim a evolução, a catarse da vida, ele-
◘ ◘ ◘ vando-nos do plano animal humano ao super-humano. O que
Com relação a este conceito, observemos agora a obra es- importa é a sublimação, sem o que tudo permanece cego, infe-
crita, a série de volumes que dele são consequência. O proces- rior, doloroso, seja aqui ou acolá. E o mediunismo de efeitos fí-
so evolutivo do autor não pôde deixar de produzir nele um re- sicos ocupa-se bem pouco da sublimação; visa problemas parti-
lampejar da mente, um clarão de conceitos que, regularmente culares, realmente secundários em relação ao problema de apre-
registrados e depois publicados, têm dado lugar a várias inter- sentar, na atual e tremenda hora histórica, cada vez melhor con-
pretações. No princípio, no período explosivo da primeira tri- tribuição para a salvação do mundo.
logia, esse clarão foi tão forte, misterioso e imprevisto, que Se o misticismo é para o autor o vértice da ascensão, o mé-
tomou o aspecto de verdadeira mediunidade. O autor foi, pela todo da intuição (a inspiração reduzida a método) é a sua disci-
necessidade bem humana do enquadramento, catalogado logo plina, que organiza e racionaliza a inspiração, dirigindo-a meto-
no campo mediúnico (primeiro período das Grandes Mensa- dicamente à conquista do conhecimento, para resolver os mais
gens e de A Grande Síntese). Mas, saberemos nós o que, ver- variados problemas, inclusive os da ciência, com o objetivo de
dadeiramente, seja a mediunidade? melhorar o homem, para seu próprio bem. A sublimação atua
O autor passou, pois, a procurar por si mesmo, tentando então em dois campos: no sentimento, levando ao misticismo, e
aprofundar a visão nesse abismo que é o mistério da personali- na mente, levando à disciplina orgânica e racional da inspiração
dade humana, fenômeno até hoje bem longe de ser plenamente – disciplina da técnica receptiva após analisá-la, e organização
conhecido. Assim, começou a compreender o seu caso e procu- de uma doutrina racional com os dados obtidos pela inspiração.
rou defini-lo (segundo volume: As Noúres). Pôde, então, preci- Nesse trabalho múltiplo e complexo cumpre-se a missão do au-
sar que se tratava de mediunidade inspirada, ativa e consciente. tor. Com o progresso da sua maturação, enquanto por um lado
Nenhum transe, inconsciência ou cessão passiva de seu próprio sublima-se como paixão no misticismo, por outro assenhoreia-se
eu a qualquer entidade incorpórea ou forças estranhas. Ele, cada vez mais da técnica receptiva e da sistematização orgânica
permanecendo consciente, captava a onda (noúre) e registrava, e racional dos resultados, de modo a poder expô-los em lingua-
escolhendo com pleno conhecimento, como uma antena que gem normal. Tudo isto, ainda que possa desagradar aos espiritis-
captasse a frequência transmissora porque a conhece e quer tas, era necessário dizer, para que estes escritos fossem aceitos
sintonizá-la, recebendo-a por relação voluntária de ressonân- pela ciência, pela cultura séria, pelos que têm prevenções antiul-
cia, livremente. A mediunidade torna-se assim inspirativa, isto trafânicas, para os quais todas as coisas expressas em tais roupa-
é, não mediunidade de efeitos físicos – nunca praticada e sem- gens inspirativas não são sérias nem aceitáveis.
pre evitada pelo autor como barôntica 3 – mas ultrafania ativa e Certo é que a inspiração subsiste ainda na segunda e tercei-
consciente, sem transe. E assim foi ele tido por ultrafano. À ra trilogias, mas é normalizada em veste comum. A mesma ca-
vista disto, os seus escritos foram considerados suspeitos pela racterística, não mais explosiva (primeira trilogia), e sim refle-
Igreja e aceitos no campo espírita. xiva, de assimilação e análise (segunda trilogia), leva a esta
Mas, eis que no fim do primeiro período, com o seu terceiro conclusão. Mas, nem por isto, o autor perde o contato com a
volume, Ascese Mística, o autor supera também o campo ultra- fonte da inspiração. Ao contrário, na sua ascensão mística, o
fânico e, deixando atrás o espiritismo, que o havia catalogado contato é normalizado, a sintonia estabilizada, a distinção no
entre os seus, se transforma em inspirado e, enfim, em místico, uníssono das vozes se torna, assim, sempre menos sensível. A
entrando num campo apropriado sobretudo às religiões. catarse é de fato uma sublimação também neste sentido: uma
Os trabalhos que compõem a segunda trilogia perderam a união sempre mais estreita com a fonte. A recepção, em geral
vestimenta mediúnica, ultrafânica ou inspirativa e falam a lin- salteada e inconsciente no ultrafano, aqui é contínua e consci-
guagem normal. Assim é o presente volume. Ora, muitos per- ente, é um colóquio, um contato, uma comunhão que tende à
guntam se esses novos livros que se expressam como falam to- unificação; torna-se prece, religião, misticismo, amor de Deus.
dos, e não com tonalidade extra ou sobrenatural, são ou não A terceira trilogia, que representa a fase da sublimação, não
inspirados. Os leitores, em geral, estão habituados, como os pode acabar senão em pleno misticismo. Assim, sempre pro-
demais, a tratar com o homem normal de tipo único e constante, gredindo, fecha-se o caminho iniciado com manifestações que
de enquadramento estável, e não com o tipo múltiplo, em con- foram chamadas mediúnicas, alcançando resultados que, como
tínua evolução, como é o nosso caso, que, por isso mesmo, não técnica receptiva, são bem diversos e, como conteúdo, estão
pode ser enquadrado em esquemas fixos. muito longe da mensagem ultrafânica usual em função de certa
Em se tratando desta trilogia, era necessário responder a es- entidade. Aqui, a mensagem é uma obra orgânica racional, que
ta pergunta, esclarecendo dúvidas. O autor, agora, acha-se já atinge o oitavo volume; a mediunidade é uma missão que se
cônscio de haver completado seu misticismo na forma ativa de apossa de uma dada hora histórica e de toda a vida de um ho-
sua missão e o tem estudado em si mesmo, com auxilio de ou- mem. Como se vê, os conceitos espíritas comuns não são mais
tros místicos, embora ainda esteja longe de tocar o fundo deste suficientes para conter estes resultados.
mistério (que aliás não pode findar), de tal maneira que, em seu Chegamos aqui a uma disciplina consciente e racional, que
caso, através de um contínuo controle racional do fenômeno de analisa e põe em ordem, organicamente, os produtos da intui-
sua intuição e dos seus produtos por ele registrados, transfor- ção. Em geral, todos, mais ou menos, possuem intuição, mas de
mou a sua própria inspiração em técnica regular de pesquisa, um modo vago e sumário, sem a crítica e a precisão de um mé-
que ele chama o método da intuição, não tendo nada a ver com todo. Em nosso caso, a intuição não só se faz método de inves-
a ultrafania em transe e muito menos com o mediunismo de tigação cientificamente exata, vasta a ponto de permitir com-
efeitos físicos. A finalidade da vida do autor, como acima ficou preender e orientar todos os problemas do conhecimento, mas
dito, não é de nenhuma maneira o estudo dos fenômenos medi- também é traduzida do seu natural funcionamento por clarões
únicos, e o espiritismo lhe interessa relativamente. Sua vida é sintéticos e intermitentes para os termos da exposição contínua
missão, e seu escopo não é a experimentação espiritista, mas e da análise racional. Se tudo é antes sentido por via intuitiva,
sim a evangélica; não é a indagação do além-túmulo, mas a as- como síntese, conclusão e solução dos problemas, deve ser, de-
pois, analiticamente demonstrado pela força da lógica, para uso
3
De natureza densa, inferior. (N. do T ) da forma mental corrente, não intuitiva. Trabalho de reflexão e
4 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
coordenação, útil e necessário para permitir a compreensão; de Agora, que vimos o significado da terceira trilogia relativa-
precisão analítica e cultural, sem o que, a mensagem inspirativa mente à maturação do autor e à natureza de sua produção inte-
ficaria confusa e distante. A mensagem provém de superiores lectual, observemos a conexão que tudo isto pode ter com a
dimensões conceptuais, sendo necessário reduzi-la à nossa di- atual hora histórica, como contribuição e como missão.
mensão racional. Trabalho inicialmente de audição e compre- Em nosso caso, não há só a catarse do autor e a criação efe-
ensão, posteriormente de elaboração dos dados da inspiração, tuada pelo fenômeno inspirativo, mas há também o fato da com-
desconhecido portanto do ultrafano comum. preensão sempre maior por parte do público. De que deriva isto?
Em nosso caso, a inspiração, embora se possa dizer que di- Nota-se que, no leitor que lê estes volumes, nasce um senso ín-
rige como um guia a mente do sujeito, é todavia por este con- timo de convicção que não é apenas racional. Muito mais do que
trolada. Mais do que de recepção, pode-se neste caso falar de pelos processos lógicos, geralmente quem lê fica persuadido pe-
colaboração consciente de ambas as partes, sem com isto deixar la ressonância íntima, pela convicção segura de quem escreve,
de reconhecer quão mais sábia e potente é a fonte transmissora. pela sua sincera paixão, pela misteriosa formação daquela sinto-
Por outro lado, uma vez que o já conhecido fenômeno da união nia que constitui base e condição necessária para a compreen-
mística, através da progressiva catarse do sujeito, torna-se sem- são. Mas o que, então, determina o aparecimento dessa sintonia?
pre mais intenso, compreende-se como vem a ser cada vez mais De onde desponta essa vibração que une leitor e escritor?
difícil distinguir o receptor do transmissor – fundidos que estão O fenômeno inspirativo a que se deve a gênese primeira
num mesmo ritmo de pensamento – e isolá-lo de uma fonte em destes escritos coloca o autor em uma posição especial, diferen-
que a sua personalidade, distinta no sentido humano, sente-se te daquela assumida pelo escritor comum, que exprime apenas
como que diluir em sublime alegria. De fato, uma das mais per- a si mesmo, quando não faz coisa menos sincera e verdadeira,
turbadoras sensações que a elevação mística produz é a da disso- como uma criação de fantasia. Em nosso caso, a inspiração
lução do próprio eu como unidade egocêntrica. Na alta psicolo- permite ao autor colóquios diretos com a vida, com o pensa-
gia, como na alta matemática, os conceitos comuns não têm mento de Deus, ouvindo a voz de todos os seres, em todas as
mais sentido. Tudo isto transforma o fenômeno neste nosso ca- suas formas, da pedra ao gênio e sempre mais alto, até às di-
so, distanciando-o cada vez mais da ultrafania e aproximando-o mensões do superconcebível, pelas sendas do misticismo.
da inspiração do artista, do sábio, do místico, enfim daquele que, Aquele que aqui escreve não inventa nada, simplesmente lê no
em todo campo, cria no espírito. Em nosso caso, a sensibilidade grande livro da vida universal; é um espectador da infinita sa-
ultrafânica veio tornar-se um método preciso de pesquisa, que bedoria de Deus, que ele contempla em visões e exprime em li-
encara os problemas com o velho sistema experimental analítico vros. Assim, quando quem fala não é o indivíduo, mas sim a
apenas num segundo tempo, como controle, enquanto, num pri- própria vida, o pensamento não envelhece. O mundo está reple-
meiro tempo, perlustra-os por vias intuitivas, sintéticas, somente to de ideias cansadas, que têm exaurido seu dinamismo e sua
alcançáveis por um hipersensitivo, tornado tal pela evolução do função. Lá onde é a vida que fala, a ideia é sempre jovem e vi-
instrumento humano. Este será o método de indagação do ama- va. Se o autor simplesmente revela aquilo que já está escrito no
nhã, que só um tipo humano mais evoluído saberá empregar. íntimo de todos e que é instintivamente sentido, ainda que de
Mas não há só este trabalho de controle da recepção, de co- modo impreciso, é natural que o fundo comum, o elemento ba-
ordenação e organização dos resultados, de precisão analítica ra- se da sintonia, já preexista com grande potência. Então o leitor,
cional e cultural. Em geral, os leitores creem que a inspiração em seu instinto, onde fala a vida, sente e reconhece aquela voz
representa qualquer coisa concedida gratuitamente, no entanto como sendo a voz da verdade e, mesmo sem poder ainda com-
ela é conquistada com trabalho e fadiga. É necessário procurar preender o porquê, aprova com um irresistível senso de íntima
ardentemente, porque Deus não se revela senão àquele que o convicção. Eis a sintonia e o consentimento pleno. O leitor,
procura e o chama. É preciso subir com o próprio esforço para mais do que isso, sente alegria ao encontrar um intérprete exato
chegar a escutar, é preciso duramente maturar-se e merecer para de seus vagos sentimentos, que ele mesmo tentava precisar,
ter resposta. É necessária uma fé positiva, que saiba vencer to- mas que não conseguia levar à plena luz de sua consciência;
dos os obstáculos. E quando a inspiração chega, é preciso segui- sente-se feliz em encontrar feito o esforço que a vida lhe pedia,
la a todo custo e em qualquer condição, no seu arremesso impe- de levantar o véu do mistério; regozija-se ao encontrar pronta
tuoso, ainda que estejamos atordoados por tantas exigências de uma resposta a tantos porquês que o torturavam e ver assim re-
um mundo que pretende andar por estrada bem diferente. solvidos os seus mais tormentosos problemas.
Ainda que haja sofrimento, é preciso escrever; extenuado Parece então ao leitor tornar a ouvir a sua própria voz, clara
ou doente, mesmo assim é preciso escrever. Pode faltar de tu- e engrandecida, tão perfeita é a sintonia dada pela mesma lei da
do, mas escreve-se; se os interesses materiais estão a caminho vida que a todos anima. Há uma aproximação com aquele que
da derrocada e os involuídos roubam tudo não importa, escre- lê, um retorno de alma para alma, que pela sintonia e convicção
ve-se; se a casa cai e o mundo explode ou está perto do fim que se seguem, reforça-se em admiração, gratidão, simpatia e
não importa, escreve-se até ao último suspiro. É necessária amizade. Estes livros terminam assim em afetuoso liame, em
uma vida concentrada toda em um ponto: registrar esse pen- vínculo não só de compreensão, mas de ação e de missão. No
samento que nasce dentro de clarões, de turbilhões, como um campo social, esse é o resultado, no terceiro tempo, da trilogia
furacão que grita, canta, arrebata e atordoa. Registrar tudo, com a qual a obra se concluirá, e essa é a estrada pela qual o au-
nos mínimos detalhes, quer na potencialidade como na doçu- tor, pelo caminho da livre e espontânea convicção, quer dar a
ra, seja como conceito seja como paixão. Abandonando-se ao sua contribuição para o advento da nova civilização do espírito.
irresistível, deve-se muitas vezes exprimir o inexprimível, Porém há mais. A expressão da voz da vida, captada pelo
sem contudo deixar de permanecer na forma. É preciso viver autor por via inspirativa, não é vaga e genérica, e sim precisa,
as teorias expostas, fazer-se campo experimental e, com as na forma do atual momento histórico, falando aos homens do
provações trazidas por elas, confirmar a exposição. Com uma amanhã próximo, em função de acontecimentos iminentes. Eis
vida elevada de sacrifício, é necessário manter-se em perma- então que todos os sensitivos que já verificam o fermento da
nente sintonização, fazendo de tudo isto uma missão para o hora prestes a soar, se incendeiam na leitura como diante de
bem dos outros, vivida em abrasamento, como cumprimento uma revelação. O fato é que estes livros são estreitamente li-
de um destino. Levar tudo isto adiante, ardendo sempre mais e gados ao nosso tempo, são expressões da vida, que tem de di-
não ceder nunca, fiel a Deus até à morte. zer alguma coisa de muito grave e se apressa a dizê-lo aos que
◘ ◘ ◘ têm ouvidos para ouvir. Estes escritos estão ligados à história e
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 5
à evolução biológica, delas exprimem o atual drama e a elas justamente porque deles hoje há extrema carência. O homem
desejam dar uma contribuição efetiva. Mais exatamente, eles tem fome destes valores. As novas classes dirigentes não pode-
revelam as correntes biopsíquicas que dominarão no dia de rão, portanto, formar-se segundo o nascimento, o poder ou ape-
amanhã, anunciando-as e preparando-as. Realizando a função nas a inteligência, mas deverão basear-se nos valores espirituais,
de antena biológica, quem os escreve capta a antecipação do que superam a animalidade, valores constituídos por sensibili-
futuro. Muitos já o pressentem, embora não consigam precisar dade psíquica e moral, sabedoria, sensatez, altruísmo, caridade e
tudo, porém já estão aptos a reconhecer qual é a voz da vida, amor, bondade, desprendimento das riquezas, renúncia a toda
porque esta fala neles, e aguardam ansiosamente quem se le- forma de excesso. A vida pede ao homem muitas vitórias, prin-
vante para exprimi-la, prontos para abraçá-la com paixão, cipalmente sobre o ódio e a cobiça, que hoje envenenam a vida.
quando se encontrarem com a sua revelação. Os homens so- Deve aparecer um novo tipo de lutador, evangélico, desprendido
mente respondem a um apelo quando este já se encontra no in- e desarmado, mas inteligente e consciente, muito mais poderoso
terior deles, de onde a vida já lhes está bradando. De outro que o rude e violento de hoje. Há bem maiores revoluções para
modo, ficam mudos, sem compreender. Somente então se for- se fazer do que aquelas que o homem atual concebe.
ma a corrente coletiva, constituída pela corrente das forças da Tudo isto, hoje, pode parecer muito longínquo e, portanto,
vida, que quer atingir assim os seus objetivos, corrente que de escasso interesse. Mas todo amanhã é feito para tornar-se
pertence a todos e a todos vai arrastando. O revelador da ideia, depressa o hoje. Quando o homem tiver realizado as suas ne-
que parece o seu criador, é tão-somente um expoente exterior; cessidades e desejos de hoje, que fará? Quando o homem, com
é apenas o representante de um pensamento que não é seu e a máquina e a técnica, com suas novas teorias econômicas e
que ele tem a função de sentir antes, para depois exprimi-lo e distributivas, tiver resolvido o problema do bem-estar material
divulgá-lo. Trata-se apenas disso, e não de outra coisa. Na vi- para todos, quais os problemas que encontrará pela frente?
da, mais que o indivíduo, importa a sua função. Quando o progresso científico e social tiver reduzido, para to-
Se muitos não ouvem o chamamento da vida, se estão fora dos, o dia de trabalho a poucas horas e resolvido as dificulda-
desta corrente que impele a evoluir, se não podem sintonizar-se des da vida material para todos, ao menos quanto a um mínimo
com ela e se, enfim, são surdos a ela, não importa. À grande necessário, como ocupará o homem o supérfluo de seu tempo e
massa dos involuídos, daqueles que, podemos dizer, servem de suas energias? É certo que ele se aproveitará disto para
como lastro, a vida não tem confiado funções de antecipação e abandonar a luta e, em vez de continuá-la em um plano superi-
criação. Esses têm que ser impelidos para depois chegar por úl- or para conquistas mais altas, deixar-se-á quedar no ócio, em
timo. Os inferiores são os que mais opõem resistência e, no en- busca de prazeres e vícios, chegando assim ao destino de todas
tanto, são os que mais precisam ser ajudados para evoluir. as aristocracias e dos povos ricos e preguiçosos, que é o esfa-
Se compreendermos a estrutura e a gravidade da atual hora celamento. A vida fere quem dorme sobre as conquistas feitas.
histórica, justamente porque involuída, veremos que tal contri- Ela hoje caminha com rapidez, e essas conquistas estão mais
buição é hoje necessária. Os valores do domínio autoritário, da perto do que possa parecer. Todo futuro é feito para tornar-se
vitória baseada somente na força, se é que ainda há quem pense presente; assim a utopia se transforma em realidade. Nenhuma
ter domínio próprio, já caíram substancialmente, porque, depois utopia é maior que a do Evangelho; entretanto, se ele foi pre-
do desastre geral para vencedores e vencidos na última guerra, gado, não o foi, decerto, para permanecer como utopia, mas
diminui sempre o numero dos que neles acreditam. Os valores para se transformar em realidade.
da riqueza subsistem ainda, mas sob a ameaça de tamanhos A atual hora apocalíptica, através de grandes lutas e crises,
golpes, que já vacilam, inspirando sempre menor confiança. A prepara novas condições de vida. Entre tantos homens que pen-
que valores se prenderá então o mundo assim abalado, senão sam somente no presente, é necessário que haja alguém que en-
aos únicos que restam, os do espírito? Onde se poderá de outra xergue mais longe no futuro e tenha a intuição desse futuro, o
maneira achar aquela solidez e invulnerabilidade que a huma- anuncie, o prepare. Os problemas existem para serem soluciona-
nidade demonstrou não possuir? O mundo está desiludido e tem dos, mas há decerto, além dos atuais relacionados ao dinheiro e
fome de uma fé, porque não se pode viver sem esperar alguma ao estômago, outros problemas, que também devem ser resolvi-
coisa e sem crer no amanhã. As filosofias não servem, e as reli- dos. Nas grandes voltas da história, como a verificada hoje, não
giões devem adaptar-se às massas involuídas e supersticiosas. bastam os homens de ação, administradores, que seguem pers-
Mas o motivo do espírito já desponta nas conclusões dos gran- pectivas imediatas e realizações vizinhas, é necessário que haja
des intelectuais da ciência, que começa a emergir de seu velho também homens de pensamento, capazes de se orientar segundo
materialismo. Eis aí alguns sintomas, que não são os únicos. óticas mais amplas, em relação não só ao que é contingente, mas
A vida é uma viagem. Parar é morrer. Mas não se pode con- a todo o funcionamento orgânico da história e da vida. Da com-
ceber caminho sem meta. A vida tem, portanto, absoluta neces- preensão da extrema gravidade da hora, da necessidade de pre-
sidade de possuir uma tábua de valores e subir para planos mais parar um amanhã que se avizinha rápido, da consciência do de-
elevados, a fim de realizar a evolução, que é o imperativo abso- ver de dar a contribuição necessária, nasce então, em alguns pi-
luto. A culpa mais grave, aquela que se paga mais caro, é a de oneiros de sensibilidade apurada e aptos para esse fim, o senso
furtar-se à ascensão, é a de não atender à lei da evolução. de missão, confiada a eles pela vida, que neles escolhe seus
A nova aristocracia não poderá ser, por certo, a da força ou meios para fazer ouvir a sua voz. Estes pioneiros, por serem
a da riqueza, porque de tais aristocracias, até hoje, o mundo já evoluídos, já superaram o egocentrismo animal e somente sa-
teve superabundância. Tais formas exauriram a sua experiência bem viver fundidos no amor ao próximo, missão inevitável para
e deram o seu rendimento biológico. A vida não alimenta senão eles, que não sabem dar outro conteúdo à vida senão esse.
aquelas formas que têm uma função e um objetivo definidos, Eis em particular o significado deste volume, Problemas do
por isto liquidará esses tipos de classes dirigentes. Ela tem ne- Futuro, e da terceira trilogia que ele inicia, bem como de toda
cessidade de outras formas, para outro trabalho. O tipo dos no- a Obra. Com o novo milênio, o homem entra em um novo ci-
vos condutores não será o bélico, político ou econômico, mas clo histórico e biológico. É preciso fazer que ele compreenda
um tipo completo, que, mais do que religioso, seja sábio e justo. essa imensa realidade que o espera. É necessário incendiá-lo,
Depois da falência dos chefes armados, dar-se-á o advento dos enfim, com uma fé e com um impulso proporcionado ao esfor-
chefes espirituais, dos profetas desarmados. A vida tem neces- ço que hoje a vida lhe pede, para que ele saiba conquistar essa
sidade também dos valores mais desprezados hoje, que são os realidade. A vida nunca dá presentes, mas nos convida e nos
da vida interior. Deles tem necessidade para reequilibrar-se, ajuda a merecermos tudo. Há perigos, mas há também ilimita-
6 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
dos horizontes. É preciso orientar o homem. Ele hoje procura É preciso fazer com que o homem suba da matéria ao espíri-
sua realização e alegria fora de seu verdadeiro lugar e fica de- to. Só ali há salvação. O materialismo centralizou a nossa men-
siludido. É preciso transformá-lo de involuído em evoluído. te nos bens materiais. A ciência, conquistando e desfrutando as
Quem escreve deve ter vivido antes, pessoalmente, a sublima- forças naturais, criou uma psicologia de prazer e de poder em
ção da vida, para depois ensiná-la aos outros, oferecendo-lhes vez de sacrifício e renúncia, roupagem para os tolos e os venci-
gratuitamente a sua conquista biológica, um precioso produto dos. Daí resultou um homem moralmente fraco, sem resistência
experimental, fruto de tremendas lutas. nas adversidades, um homem que se sente sempre mais pobre.
O nosso mundo atual está em estado de colapso espiritual. Uma artificial multiplicação de necessidades inúteis e nocivas
O homem moderno, enfunado de descobertas, tornou-se um va- está anulando a elevação do nível econômico, o que significa
zio espiritual. A fase da onda atual representa a inércia das qua- empobrecimento, porque a riqueza não é absoluta, mas sim uma
lidades mais nobres da alma. A imprensa gosta de destacar os relação entre meios e necessidades. Em meio a um bem-estar
delitos e todas as piores baixezas humanas. A arte se está dege- crescente, adveio uma sensação de miséria, uma vida mais difí-
nerando em todos os seus aspectos. Mesmo debaixo das apa- cil, um estado de angústia pela falta de espaço vital, enfim um
rências mais intelectuais, respira-se sempre um ar de deprava- abandono das necessidades superiores, única saída para a alma,
ção. Parece mesmo que tudo há de ter hoje esse sabor funda- que fica assim comprimida, restringindo-se à satisfação de ne-
mental. Mas é preciso reagir e salvar-se. Há uma quantidade cessidades inferiores, insuficientes para nos satisfazerem, por-
apreciável de valores superiores que nos podem tornar muito que se multiplicam a expensas daquele outro estado de alma
poderosos e ricos. Mas é preciso descobrir esses novos conti- muito mais vital. Isto é patológico, é antivital. Há uma descida
nentes do espírito, para desfrutá-los. É preciso aprender a subs- para as necessidades mais elementares, que invadiram todo o
tituir por esses valores superiores os inferiores da riqueza mate- campo dos desejos humanos. Há uma riqueza econômica que
rial, para nos tornarmos, o mais que pudermos, independentes não compensa a carência dos bens espirituais. Há uma capaci-
dela e de todos os dissabores que dela se originam. Dá-se tanto dade de saber procurar os primeiros e uma incapacidade de sa-
valor ao dinheiro, que não se pode resolver o problema espiri- ber usufruir os segundos, ainda que vizinhos e gratuitos.
tual se não for antes resolvido o material. É verdade, mas o E, assim, vai tudo por água abaixo. A indústria, com a pu-
grande erro consiste em se considerar as coisas do espírito co- blicidade, faz do homem um consumidor e das nações um
mo artigo de luxo, supérfluo, a que se recorre somente quando mercado a ser desfrutado. É preciso produzir e depois vender,
se está saciado de tudo e não se sabe mais desejar outra coisa, fazer consumir. Mas é preciso pagar tudo isto, ainda que seja
no entanto são elas as coisas de primeira necessidade. O bem- inútil ou supérfluo, com o nosso tempo e o nosso fadigoso es-
estar econômico por si só não basta. O problema da vida não é forço, com a nossa paz. Cultiva-se assim o consumidor, cria-
de solução assim tão simples, como o crê a moderna psicologia se e educa-se ele com a propaganda, e há sempre novas neces-
utilitária e materialista. Nada está isolado na vida, nenhum pro- sidades, a escravidão das necessidades artificiais. Isto se cha-
blema pode ser resolvido isoladamente e, portanto, também o ma bem-estar e civilização.
material e o espiritual, tanto que se pode dizer o contrário do Atrai-se com prazeres fictícios o consumidor, para que ele,
que todos dizem, isto é, que o problema material não pode ser estando viciado e persuadido de que vai ao encontro de sua
resolvido se antes não foi resolvido o espiritual. alegria e seu bem, submeta-se à exploração. Assim, novos há-
A riqueza pode ser nociva para quem dela não sabe fazer bitos sociais vão nascendo, uma determinada moda para cada
bom uso. Hoje não se crê senão nela e se tem horror da pobre- coisa, sempre mutável, para encher tantos cérebros vazios. Na
za. Não se compreende hoje uma pobreza que não é miséria, medicina, essa moda e essa psicologia de exploração do con-
mas um estado de poucas necessidades materiais e de grandes sumidor chegam ao ponto de representar um atentado à saúde e
riquezas espirituais, a ponto de poder tornar aquele que as pos- um perigo para a raça. A nossa civilização, que é tão sábia no
sui mais rico do que os ricos. Essa pobreza de vastos horizon- particular (hoje também a ciência é especialização), está deso-
tes, bem diversa daquela que também é miséria de alma, pode rientada nas grandes linhas; falta-lhe diretriz geral, falta-lhe
transformar-se em terreno de grandes conquistas espirituais, um guia inteligente. Por ora, o progresso, apesar das conquis-
que são afastadas pela riqueza, porque esta nos adormece nas tas materiais, ainda não atingiu a alma, onde está o verdadeiro
comodidades. É necessário que falte alguma coisa em baixo pa- homem, e limita-se a um espantoso excitamento das cobiças
ra sermos induzidos a procurá-las mais no alto. Quem está saci- animais, com todas as suas consequências.
ado não procura. Para progredir, é preciso viver com o ânimo É preciso ensinar ao involuído atual que as alegrias que ele
vibrante e não satisfeito. Para poder superar a matéria e enri- procura no fumo, no álcool, na cocaína, no vicio ou até mesmo
quecer-se mais elevadamente, é preciso não gozar-lhe os enle- no furto e no delito, ele as encontrará, mais belas e mais pode-
vos; para formar desejos e exigências mais espirituais, é preciso rosas, mais no alto, em realizações novas, que o moderno caça-
que a alma encontre fechada a porta para os gozos materiais. dor de êxitos, sempre ansioso e agitado, perseguido pelo tempo,
Essa pobreza pode ser um estímulo para alcançar intuições ina- não conhece. O crescimento do ser em direção da alegria é di-
tingíveis de outra forma, ela nos ensina a caducidade do nosso reito sagrado, mas deve ser dirigido para outro tipo de volúpias,
apego às coisas terrenas. A riqueza é um resultado vitorioso, vitais, e não precárias, em sentido ascendente, e não descenden-
mas efêmero. A pobreza a vence neste seu ponto fraco, que é a te. É preciso analisar e demolir esses prazeres que intoxicam e
falta de segurança e de paz. E assim é o nosso mundo: sem se- desfazem o homem, para ir em busca dos grandes prazeres do
gurança e sem paz. É preciso vencer e superar esses pontos fra- espírito. É preciso substituir os gozos destrutivos pelas grandes
cos. Hoje nada se compreende disto, vivendo-se desesperada- alegrias construtivas, substituir o sucesso exterior, vão e fictí-
mente numa luta feroz. Este é o tormento que nos impõe a nos- cio, em que hoje se crê, por aquele outro, vindo do próprio va-
sa cobiça. É preciso compreender o lado que é conquista e valor lor íntimo e substancial. O evoluído não renega a vida, mas a
positivo dentro da renúncia e do desprendimento. Porém, infe- enaltece muito mais. Os tempos são maduros e é necessário
lizmente, o conceito tradicional de virtude nos mostra aí o lado aprender novos modos de viver. É necessário começar a prepa-
negativo, de perda e pobreza material, em vez de conquista e ração do terreno para uma nova civilização, fazendo o homem
riqueza espiritual. É a nossa vacuidade interior que despreza a compreender que ele é muito mais do que um simples animal, é
vida simples e pobre, enquanto esta pode ser, ao contrário, um o dono de um destino radioso; fazê-lo compreender que o uni-
meio de superação e libertação, criando formas de vida superio- verso não é somente um campo a ser explorado, mas um sábio
res, mais ricas e mais poderosas. organismo de pensamento e de matéria, fundidos entre si.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 7
O homem, hoje, não se realiza, dispersa-se. A felicidade É preciso ser o pioneiro de um ideal diverso, de destaque e
da posse, que ele tanto procura, é primitiva e traidora. Ela é de libertação, para subtrair-se à obsessão econômica que é o
própria de uma dada fase do desenvolvimento, e não das fases tormento moderno; é preciso ensinar a desfazer as falsas mira-
sucessivas, mais elevadas. Hoje, é preciso aprender a conhe- gens dos prazeres oferecidos por traição pela nossa chamada
cer a felicidade superior que está na criação. Muda, desta sor- civilização, rebelando-se contra a prostituição e o sufocamento
te, a atual concepção da vida. Assim como o conceito de ma- do espírito que ela nos quer impor. É necessário enriquecer-se
terialismo, uma vez tido por definitivo, perdeu todo o valor no bem diversamente da maneira como hoje se anseia. É preciso
seu velho significado sensório, também mudará o conceito de saber colocar-se nesse terreno utilitário tão diverso e compre-
trabalho. Este, em nosso mundo de hoje, é condenação e, por ender-lhe as vantagens superiores. É preciso ensinar a gozar em
isto, exige um salário. Daí as maiores lutas do nosso tempo, planos mais altos, a possuir alegrias mais refinadas e gratuitas,
daí capitalismo e comunismo, guerras e destruições. O traba- que provêm do íntimo, e não do exterior. É preciso alijar o peso
lho é cada vez maior condenação, porque o temos privado do do trabalho-pena para amar o trabalho-função e missão, que
espírito animador, cujo sopro é alegria. A máquina, a indús- não é fadiga para uma paga, mas livre e espontânea realização.
tria, a organização e a cobiça levam ao cálculo do dinheiro e É preciso conquistar a riqueza da tranquilidade e a riqueza do
do tempo, ao horário e à escravização. A descida na matéria tempo, hoje perdidas, especialmente pelos ricos. ―Não tenho
sufoca na limitação, que é seu elemento; a elevação no espíri- tempo‖ é a frase moderna, e é também a sua pobreza. E não há
to dá liberdade, fora da limitação. A involução humana redu- obras de beneficência que permitam doar essa mercadoria, aju-
ziu o trabalho a uma condenação oprimente, embora ele seja dando em sua miséria esses desgraçados pobres de tempo! Essa
o mais alegre recurso do ser e, realizando e nos desenvolven- carência de tempo é uma vingança da matéria, que escolhemos
do, esteja entre os mais ativos instrumentos de evolução, isto como padrão, enquanto o espírito se mantém fora do tempo.
é, de libertação para a felicidade. Transformou-se assim nessa Somente no alto há liberdade, que se deve conquistar elevando-
opressora miséria aquilo que acima tínhamos chamado de li- se, e não roubando de outros escravos os seus grilhões de ricos.
vre e alegre ato da criação, no qual o homem não só se realiza A grande luta social hodierna se reduz a esse desejo intenso
e se desenvolve, mas também é chamado a colaborar e operar de roubar esses grilhões, isto é, de roubar aos ricos o tormento
no funcionamento orgânico do universo, à semelhança de imposto pelo medo de perder os próprios bens, pela paixão de
Deus, imitando-O na sua perene ação criadora. aumentá-los, pela necessidade de conservá-los. O mundo atual
A evolução é lei de vida, e o mundo deverá percorrê-la, co- anseia por essa prisão dourada, cárcere que cerca e prende entre
mo teve de percorrê-la quem aqui escreve. Chegar-se-á, com a seus muros e do qual, depois, é tão difícil e penoso sair. Mesmo
ascensão, a uma grande transformação de valores. Compreen- aí dentro também se está roído pelo tédio e pela saciedade de
der-se-á então que o bem-estar material, embora seja um grande tudo, roído pela fome do espírito privado de alimento. Pouco
passo, por si só não basta para dar felicidade. Na vida há neces- dinheiro valoriza tudo; quanto mais as alegrias são moderadas,
sidade de muitas outras coisas, que hoje matamos, como a fé, o tanto mais são prelibadas. Muito dinheiro desvaloriza tudo, ale-
belo, a poesia, a paz interior, o amor elevado, a esperança. O grias abundantes e repetidas terminam em náusea. Sábias com-
mundo de hoje cresceu no plano físico, como corpo; urge um pensações, justas vinganças da vida.
paralelo desenvolvimento no espírito, pois é extremamente pe- A atual máquina social funciona, em grande parte, pela for-
rigoso que um tão grande corpo fique em poder de uma mente ça. Precisamos ser os pioneiros de um ideal diverso, de amor,
tão limitada e primitiva, sem a direção de uma alma adequada. convicção e colaboração. Só assim será possível alcançar a or-
É exatamente a hipertrofia técnica e científica que exige, para dem necessária, subtraindo-se ao peso da coação. Cada forma de
equilibrar-se, um proporcional desenvolvimento espiritual que poder, hoje, é mais ou menos uma forma de coação contra a pre-
assuma a direção, sem o que tudo ameaça acabar em desastre. cedente, somente para se impor; a autoridade, mais que uma
A ditadura da ciência materialista e da sua psicologia é uma fa- função social a serviço da coletividade, é uma vantagem pessoal
se superada, e o mundo invoca desesperadamente uma sistema- a serviço de quem a conquistou. O egoísmo foi até ontem um
tização diversa, espiritual e moral. elemento útil e necessário para as conquistas materiais e o pro-
Entre tantas revoluções que o homem moderno deseja, há gresso humano, que lhe têm sido devidos, porém hoje, quando a
também aquela contra a asfixia espiritual, contra o nivelamen- vida humana entra na fase social orgânica, aquele egoísmo cons-
to numa animalidade universal, contra o embrutecimento ge- titui um elemento antivital, porque é antissocial, tornando-se
ral, próprio tanto do capitalismo como do comunismo, nos destrutivo e inaceitável na nova coletividade. Hoje, que a técnica
problemas do ventre. tanto progrediu, a caridade se encontra em pleno retrocesso. O
Bem outras revoluções hão de realizar-se, não para a con- progresso não consiste, como hoje se crê e se quer, em uma vã
quista dos bens materiais, mas sim dos bens espirituais, conti- multiplicação de necessidades a que, depois, se oferece satisfa-
nente inexplorado de riquezas infindáveis, lugar ao sol também ção, pois disto resulta uma custosa dependência, pela qual é ne-
este, sol que o homem tem extrema necessidade para a mente e cessário, logo após, pagar o custo com trabalho forçado.
o coração. É preciso rebelar-se contra a imersão na massa nive- O atual desenvolvimento dos valores mais baixos não é
lada, opondo-se aos gostos podres das maiorias. A verdadeira progresso, mas sim atraso, não é vitória, mas sim derrota que o
revolução será feita chegando-se à compreensão dos valores de mundo está pagando caro. Qual o uso que o homem sabe fazer
substância e substituindo por eles, na própria vida, os atuais de hoje dos melhoramentos econômicos? E se não sabe empregá-
superfície e de forma, dados pela abastança ou sucesso, hoje tão los no bem, mas só no mal, então não é melhor para ele a po-
em moda. É preciso conquistar uma potência superior de domí- breza? Quando o homem, com a ciência, a máquina e a justiça
nio espiritual e lançá-la à face do mundo como um desafio. Po- social, chegar ao bem-estar material, que uso dele saberá fazer
tência de uma riqueza que não é de dinheiro ou de poder, uma com sua psicologia? Certo é que, se não for educado a tempo,
riqueza que permite ter piedade dos ricos e dos poderosos. De- não fará mais do que multiplicar e estender a sua atividade abu-
ve-se contrapor à riqueza econômica, hoje supremo ideal, a ri- siva. E se a finalidade da vida é bem outra, o alcance desse tão
queza da inteligência e do coração, que hoje falta. É preciso desejado bem-estar não pode representar, para uma humanidade
mostrar tanto aos ricos do capitalismo como aos pobres do co- como a de hoje, um dos maiores perigos?
munismo a sua vacuidade espiritual, que os iguala e os torna os Este é um quadro sumário das condições do nosso tempo. A
mesmos homens em luta no mesmo terreno, com os mesmos finalidade destes livros é demonstrar através da razão a realida-
fins egoístas e os mesmos instintos de avidez. de e a utilidade de uma vida superior no espírito, mais rica e
8 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
mais feliz, e o escopo da vida do autor é demonstrá-la com o governo é perfeita porque, em face desse chefe-Lei, cada um
exemplo. Se, depois disto, outros quiserem compreender com a deve responder e pagar pessoalmente, caso tenha violado as
sua razão e proceder com o seu exemplo, então a ideia de uma suas normas. Essa é uma responsabilidade da qual não é possí-
nova civilização não será mais utopia. vel eximir-se. O indivíduo, ainda que agindo em coletividade,
Já foi afirmado que estes livros não representam nada de se acha sempre só e despido diante da Lei, sem poder descar-
novo e que não são mais do que repetições de coisas que já fo- tar-se de nenhum modo das suas ações. Cada um, sem hierar-
ram ditas. Certamente, não pretendemos oferecer descobertas quia, está sempre em contato direto com o chefe-Lei, que nele
no sentido moderno, particular e analítico, como invenção téc- sempre funciona. Aqui, o proselitismo com o fim de engrossar
nica e utilitária para solução de casos isolados. Se isto aconte- a fila e, com isto, a força do próprio poder contra os contrários
cer, será apenas incidentalmente, como consequência da reali- não tem sentido, porque os seres não se podem unir senão fra-
zação fundamental, que é bem outra. Esta encontra-se nos antí- ternizando-se para o bem de todos. Esse bem, qualquer que se-
podas da atual ―forma mentis‖ humana e tende não ao resultado ja a sua forma humana, que aparecerá como coisa secundária,
utilitário no particular, mas à síntese, à orientação, a uma utili- será o verdadeiro governo do homem evoluído do futuro.
dade de conjunto, a uma nova compreensão da organicidade da Concluamos. Dissemos que a ideia dominante desta tercei-
vida. Há uma descoberta, porém em sentido diferente do corri- ra trilogia, que aqui se inicia, é sublimação. Ela se encontra
queiro: a verificação da onipresença de uma lei que tudo guia. aqui projetada em relação à maturação do autor, ao desenvol-
Embora essas verdades sejam repetidas muitas vezes, isto se faz vimento da exposição e ao cumprimento do destino do mun-
mecanicamente, por tradição, por quem não as vive, o que aca- do. Sob este aspecto tríplice, continuaremos o seu desenvol-
ba por matá-las em vez de vivificá-las. Dizendo-as e repetindo- vimento no presente volume. Esta sublimação que o autor vi-
as assim, por hábito e sem senti-las, chega-se ao resultado de veu e que tenta exprimir nesta terceira trilogia, está, pela fata-
torná-las fastidiosas, falsas, inaplicáveis. Aqui, no entanto, elas lidade da hora histórica, segundo a intuição que tem, para ser
são ditas por quem as vive e, por isso, as faz viver também em projetada no destino do mundo. É uma sublimação da vida
quem as escuta, e não por quem não as vive e, por isso, as faz que entra em uma de suas mais altas fases de evolução e ar-
morrer em quem as ouve. Esta é a novidade e a descoberta que rasta primeiramente os mais sensíveis. É o ingresso do homem
tentamos fazer. Elas consistem em superar aquela mentira que em um novo plano de vida, o plano evangélico do Reino de
acabou por invadir toda a nossa vida. Deus; é a aproximação da nova civilização do espírito. Este é
Há aqui mais uma coisa nova: o método de comando e de o significado da sublimação no campo social. Este é o coroa-
governo. Aqui, saímos fora do plano humano e de seus siste- mento desta obra, bem como da vida do autor.
mas tradicionais; trata-se, portanto, não mais das habituais re- Ter compreendido a hora histórica e explicar o seu signifi-
voluções de forma, mas de uma revolução de substância. Ho- cado como sublimação, lendo os seus traços escritos nas leis da
je, a sociedade em geral é regida por emersão, com o sistema vida; viver essa sublimação e projetá-la nos outros, fazendo-os
representativo ou totalitário de um chefe que trabalha antes de participar da maravilhosa nova realidade alcançada; oferecer
tudo para si; outrossim é regida por um grupo de homens que assim, gratuitamente, uma contribuição para o advento da nova
se coligam em torno dele, por força de seus próprios interes- civilização do espírito; realizar essa sublimação no próprio des-
ses, prontos a se desembaraçarem dele tão logo não satisfaça tino e também no destino do mundo – eis a significação de toda
mais àqueles interesses. O princípio do comando hoje é, no esta obra em volumes, eis o cumprimento do destino do autor, a
fundo, mais ou menos como aquele característico da alcateia realização da sua missão.
de lobos ou da associação bélica, em que um guia é aceito
porque serve como coordenador, tornando-se útil na luta, pois I. A VERDADE
a união faz a força. Baseando-se nisto, a lei humana que nasce
de tais associações é naturalmente fruto de partido e está, por Não! Nada é verdade! Com este brado de desespero, abre-se
isto, contra quem está fora do grupo; por essa razão essa lei, este volume. O ideal que dos escritos precedentes perseguimos
logicamente, é fraudada por quem está do lado de fora, quase até aqui é uma ilusão, a verdade sonhada é utopia, as nobres
com um sentido de justa defesa. afirmações são falsas e, já que não correspondem em nada à re-
A novidade, pois, dos princípios aqui expostos consiste alidade da vida, constituem uma traição. O leitor foi enganado.
num método todo diverso. O indivíduo se põe sozinho em face É preciso ter a coragem de confessá-lo e mudar de rota a tem-
da lei do ser e deve fazer a sua descoberta, chegando a senti-la po! Os fatos desmentem em cheio as conclusões destiladas pe-
como atividade própria e em tudo à sua volta. A sociedade não los trabalhosos raciocínios! Esses fatos repetem a cada passo,
vem a ser regida por nenhum chefe físico e muito menos por em quotidiana evidência, que não é o bem, mas sim o mal que
suas leis, que temos visto o que são, tampouco pela força de vence e domina em nosso mundo, que o mais forte e o mais as-
que ele dispõe. Em face da Lei, que tudo sabe e tudo pode, es- tuto é que triunfam, e não o mais justo; e quem crê de outro
ses menores poderes humanos não conservam mais do que um modo é um néscio que sonha e pagará caro o seu sonho, porque
valor relativo e subordinado. Se o espírito de grupo subsiste, será subjugado e eliminado. Mas é preciso ser cego para não
ele é baseado nas afinidades, com finalidade orgânica de cola- ver que a realidade biológica zomba de todos os ideais e de to-
boração criadora, segundo as normas da Lei, sem interesses dos os idealistas, para não compreender que, enquanto estes úl-
materiais para defender, sem fins utilitários que excluam os timos intentam construir com palavras as suas belas teorias, a
que estão fora do grupo. Não se baseando na coação, a força vida os circunda e assalta com os fatos, para os esmagar e su-
não serve mais, mas somente a convicção. A liberdade que an- primir! Mas quem é que não sabe que, enquanto eles sonham
tes havia somente para quem comandava, agora é de quantos bondade e justiça, a realidade biológica, na prática, premia com
são capazes de compreendê-la. Ninguém pensa em fraudar a alegrias imediatas o mais ousado e egoísta, que, livre dos lia-
Lei. Aqui, o chefe não tem corpo, mas é uma lei onipotente e mes do dever, sabe procurá-las com todos os meios? Mas o
onipresente, situada no imponderável, que, portanto, não se próprio instinto da vida, que fala e se revela na mulher, naquele
pode liquidar quando mais não sirva, não se pode coagir ou momento decisivo para a seleção e para a raça, da escolha se-
fraudar, porque ela é a alma das coisas e até mesmo o rebelde é xual, ri-se do homem honesto e sábio, escravo do dever, aplau-
formado por ela. Não se pode matar esse chefe por revoluções dindo o audacioso, para o qual tudo se faz licito quando de-
ou por atentados. Ele não precisa de polícia, porque é imaterial monstre saber vencer. Isto prova que a vida marcha para a bes-
e indestrutível: é o próprio princípio da vida. A justiça desse tialidade, e não para a espiritualidade.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 9
Mas que evolução! Na Terra há que pensar em não se deixar desses grupos tem o seu tipo-modelo e outros tantos campeões
subjugar. E quem esquece disso morre. A vida nos quer fortes, para explorarem, tornando-os estandartes, e tudo isto para man-
audazes, egoístas, sem escrúpulos, sem moral, e pune como fra- ter e multiplicar o tipo do simplório, que acredita neles e, as-
cos os que não o são; o ideal biológico terrestre, que a mulher sim, obedece e serve. Mas o povo-rebanho começa a despertar
adora e o homem respeita, é o delinquente, aquele naturalmente e a inquirir das razões mais verdadeiras que lhe impunham
astuto, esperto, que vence, e não aquele que perde. Hoje caiu obediência, que não aquelas que até hoje bastaram para domi-
também a medieval tentativa do Cavaleiro, que procurava dis- nar; e os dominadores não as sabem dar. Novas astúcias eles te-
ciplinar e nobilitar o furto e o assassínio; aqueles que saibam rão que estudar para que não se descubra o seu jogo.
perpetrá-los legalmente e com êxito são admirados, dando pro- Outro significado não pode ter a pregação de honestidade e
va de engenho. Estes são os valores da vida real; os outros, bondade num mundo em que o esmagamento ao próximo é
aqueles tão declamados do espírito, são falsos. De fato, na prá- prova de valor e a culpa do furto não é atribuída ao ladrão, que
tica, quem neles crê, quem os usa? São usados como uma bela é considerado esperto, mas ao imbecil que se deixa roubar.
mentira, com a qual os astutos, que são aqueles que mais va- Que iluminar e melhorar! A ignorância deve ser mantida nos
lem, sabem cobrir o seu jogo, para sua vantagem e dano dos outros, a fim de que se possa explorá-la. Que sanear o mal de
que acreditam em tais fantasias. Mas que ideal! Enquanto so- tanta algazarra humana! É preciso pisar os outros e triunfar,
nhas bondade e justiça, o próximo te espia e estuda como te embora semeando lágrimas e sangue. Que importa? Tudo isto
possa despedaçar e, apenas te distraias da luta para seguir o é para os outros. A vida nos quer vencedores, isto é, heróis da
ideal, salta sobre ti para acabar contigo. O mundo não está sob destruição, mestres da esperteza. Mas certo é que a bondade é
um controle moral de sabedoria, mas sob um controle brutal de útil na Terra e, por isso, tanto a proclamam e apregoam, justa-
força. O Evangelho se apresenta inerme. E quem hoje pode to- mente porque desarma, domestica e serviliza, e, inculcando-a,
mar a sério alguém que está sem armas? A vida é de ferro, e melhor se comanda. De outro modo, para que serviria? Diante
quem não é forte deve perecer. É inútil querer dar-nos a enten- do caminho tortuoso das mentiras humanas, não é bela a pura
der outras verdades. Esta é a única verdadeira. As outras são as- simplicidade dessas palavras?
túcias para esconder a luta pela vida, são uma das tantas armas Assim é a vida. Cada um há de trazer a sua máscara de men-
sutis para subjugar e vencer os ingênuos e os fracos. tira. O vencido mais que o vencedor. Este, quando triunfa, joga-
A realidade é que o indivíduo quer egoisticamente viver e a e mostra-se à admiração de todos como o belo campeão que a
crescer; que a fêmea é prêmio ao esforço do macho, que a quer luta pela seleção criou. Mas o vencido nunca a joga. Sob a más-
possuir para gozá-la e multiplicar-se; que as alegrias da vida se cara, o seu rosto está em chagas. Na Terra, ai dos vencidos e ai
exaurem na Terra e que, só aqui, hão de ser procuradas; que as deles caso se mostrem! A máscara lhes é imposta; a dor é uma
superações, as evasões, o céu são utopias para loucos; que o derrota e deve pudicamente ser escondida. A dor não é conheci-
homem são lança-se pelo mundo, contra todos, para robustecer- da como um instrumento de redenção, isto é, como uma força e
se na luta e colher, com qualquer meio, todas as alegrias que uma glória. Não, ela é uma derrota. Ai, pois, de quem a revela.
quer. Não importa se o herói é um semeador de carnificinas, O vizinho a goza e está pronto para dela aproveitar-se; se perce-
basta que vença. Não importa quantos vêm a ser prejudicados be que és um vencido, salta-te logo ao pescoço. A verdadeira fa-
por ele. A grandeza humana consiste justamente em saber pisar ce, quanto mais chagada e sangrenta está, tanto mais há de ser
nos outros e elevar-se sobre as ruínas; ela deve ser fabricada cuidadosamente coberta com sorrisos floridos. Quantas másca-
sobre o sangue. Oh! quanta ingenuidade para proceder por per- ras macabras andam assim desconsoladas pelo mundo! A dor
suasão e por fé em um mundo onde não existem senão vence- que não pode expandir-se escava sempre mais por dentro. Tudo
dores e vencidos! Para o forte, tudo. Para o honesto não restam isto para o triunfo do tipo biológico do vencedor, para fazê-lo
senão belas e estéreis palavras, que lhe são jogadas pelo filan- grande, para que a vida seja sua, toda sua e de nenhum outro.
tropo por compaixão simulada, extremo insulto da hipocrisia Mas sabe ela sobre quais ruínas avança esse macho triunfador?
humana. Assim é que o justo é defendido com belas palavras Parece que nada lhe importa mais do que ele. Os vencidos so-
por todos os paladinos do bem, que se regozijam do seu ato frem e morrem; eles não pesam na balança. A grande aventura
magnânimo, distribuído gratuitamente. Isto chega a dar-lhes da vida está aberta para todos; se tantos não conseguem vencer,
ótima aparência e não oferece perigo, pois quem o recebe não pior para eles! Se ao menos morressem! Ao contrário, a luta pela
sabe e não pode defender-se, o que lhes fornece enfim a ilusão vida, ao lado de poucos selecionados, a quantos não deixa quase
de ter feito alguma coisa em desagravo da própria consciência. como mortos, estropiados fisicamente e, ainda mais, moralmen-
Como renunciar a tantas vantagens? Florescem, assim, os teóri- te! É que nem no vencido a vida quer morrer e a tudo se adapta,
cos do amor fraterno e os idealismos confortantes que hipote- deformando-se até à monstruosidade, e assim, estropiada, conti-
cam o futuro e o outro lado da vida, em que acham, para os ou- nua, seja mesmo na sombra, à traição, por despeito, nutrindo-se
tros, compensação para a derrota e a escravidão terrena, do que, de ódio e de veneno, mas continua, subterrânea e em espasmos,
no entanto, se aproveitam e gozam. Para melhor e mais longa- para vingar-se um dia, quem sabe quando, do vencedor. Assim,
mente aproveitar-se delas, as vítimas são adormecidas com o a vida oculta a reação por séculos, adiando-a por gerações, à es-
narcótico do ideal. Assim, os bons são preciosos, porque mais pera da desforra; assim, o impulso do mal fixa-se no sangue e
desfrutáveis; os sinceros são preferidos e amados, porque, com nos corações e torna-se instinto, um automatismo do subconsci-
astúcia, são enganados, tornando-se úteis e poupando a fadiga ente. Tudo grava-se em nós e a nós retorna, até que os longín-
da luta. A exploração do honesto organiza-se, então, como uma quos descendentes do vencedor sejam um dia esganados pelos
indústria; este homem é procurado (a caça ao simplório); que- descendentes do vencido. Na realidade, não se chega assim à se-
rer-se-ia criá-lo em uma cultura intensiva se a própria explora- leção do melhor, mas a uma multiplicação de adaptados, de mu-
ção não tivesse, ao contrário, a tendência de eliminá-lo; chegar- tilados, de feridos, de malvados, de monstros. O resultado não é
se-ia a curá-lo e a protegê-lo, como se faz com os animais do- um número de selecionados, mas de estropiados na luta. E o
mésticos, para melhor utilizá-lo. É desse modo que se formam próprio vencedor não é o mais forte, mas sim o mais astuto e
as religiões e as respectivas castas sacerdotais; dessa maneira se traidor. A vida, pois, segue para o mal, e não para o bem. Abala-
formam o estado, os governos e respectivos grupos dominantes, se o edifício da evolução. Essa luta não é, então, instrumento de
bem como o poder, a autoridade, as instituições, as leis, tudo. E seleção, mas um atentado à vida, um esforço para subjugá-la,
todas essas coisas com a finalidade de dominar, sempre a ex- deformá-la, pelo que ela se dirige para o pior, em vez de para o
pensas de alguém, um ente mais fraco a ser dominado. Cada um melhor. Os poucos vencedores triunfam, enquanto há uma mul-
10 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
tidão de vencidos que os sustêm no alto, de cuja derrota eles se da virtude. Para evoluir, é preciso sofrer, e já se sofre demais!
fazem grandes. O herói é sempre, mais ou menos, um carrasco, Qual sofrer! A vida, ao contrário, quer gozar. Por que se deve-
que tem sua alegria extorquida de um desgraçado que paga o seu ria ir contra isto, que é o seu instinto fundamental? Quando a
quinhão por conhecê-lo; é um carro triunfal que avança por cima vida alcançou os seus fins, ela se recusa a tentar novos cami-
de todos os outros que ficam abatidos ao longo de um caminho nhos e a cumprir novos esforços. O normal está satisfeito no
de dores. A luta não representa mais que um assalto das forças seu mundo, acha nele tudo o que deseja e não faz caso da evo-
negativas da vida, a que ela mesma frequentemente fica submis- lução. Aliás, que faria ele num mundo sábio, em que fosse eli-
sa; representa a sua negação, que culmina na morte. A vida, as- minada a sua principal ocupação de subjugar na luta o próximo
sim, decai em vez de se elevar. Isto prova como todo ideal de para submetê-lo, onde encontra a sua alegria! Que faria ele num
ascensão humana seja falso e absurdo. mundo melhor, não sabendo fazer nada melhor? A sua miséria
Evolução! E quem paga o seu custo? Onde está, na econo- e baixeza, as rivalidades dos atritos já se tornaram ingredientes
mia da vida, a compensação para um esforço similar? Apenas naturais da sua vida, fazem parte do equilíbrio desta, certas re-
longínqua e hipotética miragem! O problema da evolução é um sistências estúpidas lhe são necessárias. A libertação alteraria
problema de energia. Quando, para o dever e a virtude, nos im- aquela certa ordem que, de qualquer modo, se formou entre as
pomos limites, sacrifícios e obrigações, onde e como achamos forças da sua existência no seu plano. Muitas vezes houve po-
compensação? A vida não se lança para tentativas de novas cri- bres que, tirados da miséria a que estavam habituados, sucum-
ações senão quando há margem de superabundância de energias biram por isso. Além disso, para evoluir, há de se ter muita
e de meios. E deveríamos arriscar um capital biológico precioso vontade, audácia, tenacidade, esforço, inteligência, e quem dá
e duramente conseguido em semelhantes aventuras, com o risco ao homem tudo isto? Mas como pretender que estes escritos in-
de tudo perder? Evoluir é a mais ousada experiência da vida, na cendiários possam sacudir o animal humano que, por hábito mi-
qual se investem e se arriscam todos os capitais acumulados, lenário, está curvado na terra, onde está o seu pasto? É natural
assumindo o perigo de estragá-los; além disso, sabemos que, que ele não compreenda e jogue para longe essas fastidiosas
para quem estiver assim enfraquecido, não há piedade. Se per- questões, tornando a olhar para a terra, onde estão todas as suas
dermos a força, nossa única defesa, a vida nos pune sem per- alegrias, das quais não pretende abrir mão. O mundo do evoluí-
guntar se gastamos aquela força por um ideal. Não. A luta para do é para ele um superconcebível que não lhe desperta nenhu-
viver é um trabalho mais que suficiente para tudo absorver, sem ma ressonância, nenhum desejo. É inútil mostrar a um jumento
que haja necessidade de lhe acrescentar nada mais. Não há os quadros de Rafael. Estes não lhe dizem respeito, estão fora
margem de energia supérflua para isto, e, nos raros casos em da sua órbita, e ele voltaria para a sua cocheira. E mais, para
que possa haver, nós preferimos aproveitá-la para gozar, mais ressurgir no espírito, coisa longínqua e incompreensível, teria o
do que para evoluir. O sábio se recusa a lançar-se nas aventuras homem de enfrentar a consumação do corpo até à morte, daque-
da evolução. Por que se há de encontrar fadiga para o que cons- le corpo que para ele é toda a vida? Loucuras!
titui uma incógnita? Nenhum homem, até agora, experimentou Mas, quando o evoluído pretende escapar da dor, escapará
o futuro, e o que está fora da experiência não merece crédito. A de verdade? Como escapará, se a sua vida é a mais espinhosa,
vida é prudente, e a sua prudência ensina a não conceder ante- se é toda feita de renúncias e de dores? Que vida é a sua, se es-
cipações de confiança. Quem garante que o seu resultado valha tá baseada na destruição de tudo o que é humano? Começa-se
a fadiga que custa? A dura experiência ensinou ao homem a não com um abrandamento, mas com um redobrado peso de
desconfiança. Ele não possui reservas e recursos que possa dis- sacrifício. A dor fica, aumenta até; a evasão é um sonho, nin-
sipar em especulações espirituais. É melhor não tentar o ignoto. guém foge. Começa-se mal, e a coisa ameaça acabar pior. Co-
Tudo em torno não é senão mistério, que pode conter infinitos mo se pode pretender que gente de bom senso siga semelhante
perigos. É melhor não sair das velhas sendas, que, embora pe- caminho? É natural que ninguém pense assim. As ilusões da
quenas, são conhecidas e seguras; é melhor desinteressar-se das Terra podem ser ilusões, mas também o são as do céu, então
grandes coisas, pois sabe-se que não são feitas para o homem tudo dá na mesma e uma coisa vale a outra. O evoluído diz que
comum, que não está preparado nem encaminhado para elas. vence. Mas vence verdadeiramente? A vitória vem depois da
Embora esta seja a psicologia do involuído, que se fecha no seu morte, no mistério, em um mundo muito problemático. E se,
egoísmo, é a única que oferece segurança. ao contrário, ele perde? Quem controla tudo e nos assegura al-
Mas que liberdade! O homem está adaptado e apto para es- go? Quem nos indeniza dos danos? Que lástima então haver-se
ta vida terrena, que é a sua, com suas alegrias e dores, e outra sacrificado por nada! Ao menos quem gozou, gozou, e isto,
coisa não quer. Para que voar, quando não se sabe voar, quan- conquanto seja pouco, ninguém lhe pode tirar, seja o que for
do tentá-lo é perigoso e, para tanto, não se tem nenhum dese- que depois aconteça no futuro. É tão intrincado o problema da
jo? O involuído não sabe o que fazer do paraíso dos místicos, vida! Nada há de seguro. Tem razão então o epicurista em ar-
das glórias do herói, dos triunfos do gênio. Essas ascensões rancar os maiores prazeres que possa desta vida avara e amar-
vertiginosas perturbariam a sua consciência. Ele sabe conten- ga, em querer gozar logo, haja o que houver depois. Há uma
tar-se com alegrias bem menores, seguras e ao alcance de sua lógica, e que lógica, na sua filosofia! E depois, tanto para o
mão, sem necessidade de grandes fadigas Ele diz: ―Há um li- evoluído como para o involuído, tudo tende a resolver-se na
mite para o conhecimento e a conquista. Respeitemos o limite, dor. O gozo será uma alegria roubada, mas dado que outra coi-
não nos arrisquemos, não dissipemos esforço em pompas e sa não é possível obter e que uma felicidade completa e eterna
grandezas de super-homens, contentemo-nos, permaneçamos não é alcançável, faz-se o que se pode. Enfim, tudo é ilusão
no certo, nunca antecipemos nada por simples confiança‖. Não para todos. Se a evolução, em lugar de uma alegria longínqua e
são belas estas palavras cheias de bom senso? hipotética do lado de lá, com uma barreira de dor maior, ofere-
Que evoluídos e super-homens! Loucuras. A humanidade é cesse logo uma alegria vizinha e segura, acima de tudo segura
feita de almas pequenas, míopes, fracas, apegadas a coisas pe- e sem aquela barreira, naturalmente todos correriam para ela.
quenas. Cada um tem o que lhe basta para o seu pequeno drama Mas essa evolução se opõe à natureza humana e aos seus ins-
da vida, da sua dor a suportar, do seu problema a resolver, do tintos fundamentais. Lógico é que, assim, seja evitada, pois
seu destino a cumprir. Ninguém sente a necessidade de trazer não oferece senão fadiga e dor. Dessa mercadoria temos supe-
para casa o supernormal, o mistério, os enfados e os perigos das rabundância. A natureza humana formou-se para ser levada à
ascensões espirituais. Está fora de propósito propor um esforço alegria. Como se pode pretender que vá para uma alegria que,
evolutivo, um aumento de fadiga, o peso dos ideais, do dever, ao menos nos seus primeiros graus, é feita de dor? Esse é um
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 11
contrassenso inaceitável. É natural que o homem ache que a verso egocêntrico por sua própria natureza, no qual tudo vai ter
evolução é extremamente repugnante. Nem é sua a culpa se o a Deus? Não é o homem feito à sua imagem e semelhança?
mundo e ele próprio foram construídos assim. Pois bem, na sua pequenez, ele o imita. O homem que, com
Mas, enfim, somos feitos de estômago. Para que negá-lo? qualquer meio, triunfar sobre todos, será o herói e virá a ser
As nossas principais funções são animais, e não espirituais. Se deificado. Os vencidos beijarão seus pés. Esta é a lei da Terra.
temos o corpo, é para gozá-lo, e não para atormentá-lo ou su- A ele pertence o direito de ter razão e de fazer a verdade, de
focá-lo. É verdade que, à força de experimentar com esses modo egoísta e exclusivista, deus da luta e da vitória, intransi-
meios e nessa linha, um dia nos cansaremos, e a humana insa- gente e ciumento como o antigo Deus da Bíblia. Uma vez, tam-
tisfação procurará algo além. Mas que importa o amanhã! So- bém, o Deus único era feito assim. Pois bem, igualmente, o
mos positivos e atentamos no que é hoje, e hoje é assim. Que homem pode ser feito assim, conforme as mesmas leis. Diante
nos importa se, num dia longínquo, virá um reino do céu, onde dele, a vida prostra-se e adora pelo mesmo princípio único do
impere o bem? Hoje vivemos no reino da Terra, onde impera o mais forte; princípio que, na fase involuída, o homem aplicou a
mal. Já que aqui estamos e não escolhemos vir para aqui, de- si como a Deus, a quem o homem faz à própria imagem e se-
vemos aprender a saber viver neste reino do mal. Mas que he- melhança. Os mais fracos, os vencidos, ficam verdadeiramente
roísmo haveis de pretender desses homens que não são mais persuadidos que, nesse mundo, o mais forte, o vencedor, é o
que ventres ambulantes! A maior parte das pessoas, a parte sã melhor e pode, enfim, representar a verdade. Mesmo ainda em
e equilibrada da sociedade, nem cogita desses problemas. Ela é nossos tempos, igualmente involuídos, o vencedor, com o poder
como Deus a fez: carne que vegeta. Às vezes, aparece aqui ou da imprensa, do rádio e de todos os meios de divulgação do
ali uma pequena chamazinha de espírito, mas é logo utilizada pensamento, tem razão pelo simples fato de ter sabido fazer a
com bom senso, para fins práticos e utilitários! Sim! Há os coisa e por ter demonstrado, assim, ser o mais forte e o mais
ideais, mas justamente porque se tornam utilíssimos para en- esperto. Basta isto para que ele adquira o direito de lançar as
ganar a gente. Quantos não se fazem seus intérpretes e divul- ideias que mais lhe convêm, não interessando se têm ou não
gadores com esse fim! É tão lógico isto, tão justificado em um qualquer valor ou significação, e de incutir nas massas as ver-
mundo utilitário como o é o nosso! Tudo deve servir para do- dades que quer, não importando se redundam em proveito ou
minar, e, para tanto, os ideais são utilíssimos. Assim é natural em malefício. As massas não possuem ideias próprias, não
que cada um sustente só aquele ideal com que se pode enalte- compreendem por si mesmas, nem distinguem qualquer verda-
cer, condenando os outros, desde que tudo deve servir para si, de, estão indiferentemente prontas a aceitar tudo; mas aceitar
e não para os outros. Também é natural que dos princípios do enquanto debaixo delas haja a verdade do vencedor, a real,
bem se haja de fazer estrita observância da execução sobretudo aquela que as massas bem compreendem por instinto e pelo que
nos outros; que a aplicação da virtude comece sempre neles, lhe dão razão, aquela que está debaixo de todas as verdades e
para serem, assim, facilmente subjugados. Há as religiões, dá- que as sustenta, isto é, o fato de que aquela é a voz do mais for-
divas do céu, para guiar os homens para a salvação. Mas, nesta te, daquele que venceu. Eis a verdade.
baixa atmosfera terrena, se querem sobreviver, também elas Esse é o mundo real, sólido e resistente, e querer refazê-lo
têm que se adaptar à baixeza humana, que aqui embaixo, quei- constitui verdadeira loucura. Se está feito assim, é sinal que as-
ra-se ou não, é a mistura de todas as coisas. Não é conveniente sim deve ser. Uma das provas está em que não se deixa mudar.
destruir essa acomodação, que é resultado de um trabalho mi- Não pode dar-nos altruísmo, porque está construído sobre o
lenário de tantas gerações e corresponde ao fim, que, aliás, não egoísmo; nem paz, porque se baseia na luta; nem verdade, por-
é facilmente alcançado, de tornar suportáveis na Terra as uto- que é feito de mentira. Não peçamos a esse mundo justiça, por-
pias do céu. Não falemos destes tantos espiritualismos, reduzi- que nele reina a força, nem uma economia de justiça, porque
dos hoje a um aristocrático esporte de moda, a um substituto nele os bens vão naturalmente às mãos dos maiores ladrões.
erótico, para distração de salões. Como pretender ordem e disciplina se, nesse lugar, o maior me-
Dizeis vós, idealistas, que possuís a verdade e a anunciais recimento está em rebelar-se e estar na oposição? Esse pode ser
ao mundo. Mas que verdade? Ela é bem diversa nos fatos. O o reino do mal, mas onde está o reino do bem? Sim! Consumir-
mundo possui uma verdade sua, e bem diferente. Na Terra, ela se-á o justo no caminho do dever, não obstante tudo acabará em
é simplíssima: destrói-se quem a contraria e dela discorda. A destruição. Inútil. Tenta-se o voo, para recair na terra. Procu-
verdade está em que o vencedor tem razão e quem perde está ram-se vitórias, libertação, quer-se sair da prisão da vida, e
errado; ele possui a razão só pelo fato de ter sabido, com a for- sempre se recai nela. A vida é esta. Inútil debater-se. Além dos
ça, fazer calar o mais fraco. Este não tem mais voz, não pode seus limites não se pode ir. Ela é tudo para nós. Não se sabe vi-
mais falar, é inútil enfim que ele tenha um pensamento próprio. ver senão dela. Idealismos piedosos e ridículos! As grandes
A vida discute, despedaçando; faz calar, estrangulando. Lógica verdades não servem para nada. A vida esconde o seu mistério.
estridente. As proposições do raciocínio constituem outros tan- Ela age sem falar, sem nos dar explicações. Quando quer, fere-
tos golpes e alcançam as conclusões esmagando o antagonista. nos como quiser, sem nos dizer o porquê. É inútil pensar, não
Método persuasivo. O direito de ditar a lei e fazer as normas se subtrai nada. O pensamento é uma doença do espírito, o psi-
compete ao vencedor; dele é o direito de fazer a verdade a seu quismo do evoluído é uma hipertrofia patológica, um desequilí-
modo e a vantagem de impô-la. A única verdade dominante na brio. É preciso matar o espírito, suprimir o olho da consciência,
Terra é a do vencedor. Não existem verdades absolutas e uni- que nos enfada com as exigências morais e revela tantos males
versais, mas só particulares, relativas aos interesses de quem humanos, tão-só para assim torná-los mais sensíveis, sem, po-
possuí os meios para impô-las; são feitas por ele e para ele. Po- rém, saber oferecer remédio. É inútil pretender poder e saber in-
de ser esta a lógica da besta, mas o vencedor com qualquer tervir num mundo de leis fatais. Tem razão a nossa civilização,
meio, aquele que há demonstrado ser o mais forte, é o que ver- que tende a nos estupidificar com a mecanização da vida e a
dadeiramente tem razão na vida. Ele representa a verdade, e por nos barbarizar completamente, cientificamente, com todos os
quê? Somente porque venceu. A obediência lhe é devida, per- meios da técnica e da razão. O pensamento desenvolve-se para
tence-lhe de direito. Segundo a lógica animal do plano biológi- acabar providencialmente suicida. A inteligência superior, que
co humano, compete-lhe a determinação dos valores. A vida nos conduz para fora da realidade terrestre, não só não serve,
procura o vencedor e tudo lhe concede, porque dele espera tu- mas também é um perigo para a vida. É preciso vencer no plano
do. Biologicamente, a verdade é a afirmação egoísta do próprio material, onde hoje está toda a vida. Vencer de maneira mais
eu. Por que se deve condenar e combater o egoísmo num uni- elevada não tem sentido; é inútil para quem deve viver na Ter-
12 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
ra. Importa resolver primeiramente os nossos problemas imedi- mas. Se há loucos que seguem em sentido contrário, pior para
atos e só depois os do universo, que estão longe. Este deve estar eles; tão logo estejam cansados, acabaremos com eles. Quem
em função nossa, e não nós em função dele. É melhor, então, pretende sair dos limites biologicamente assinalados de ataque
não pensar, não revelar, não descobrir. Tanto é assim, que os e defesa para sua vantagem, submetendo-se ao peso inútil do
resultados da ciência não servem senão para destruir. Melhor é ideal, biologicamente passivo, luxo inadmissível, vai contra a
gozar. Tudo o que existe vale tão-só enquanto serve ao nosso vida, então é justo que esta o elimine.
prazer. As grandes coisas do espírito estão afastadas, as peque- A verdade destas afirmações é evidente, muito mais do que
nas, da Terra, estão perto. Na prática, estas são as maiores, por- as elevadas construções dos volumes precedentes. Muitos leito-
que estão vizinhas. É preciso nutrir-se, viver e gozar. Há tantos res irão regozijar-se agora, ao verificar o arrependimento do au-
meios para gozar e olvidar! Quando tu, que queres subir, tiveres tor, e dirão: finalmente ele compreendeu também ter errado.
gasto todas as tuas energias pelo ideal e ficares abatido na Ter- Não é um espetáculo comum de um autor, réu confesso, reco-
ra, o ideal abandonar-te-á, a vida rir-se-á de ti, como é natural nhecer o seu erro. E, assim, tudo caiu de chofre; do grande so-
para com os vencidos, e esmagar-te-á. Besta és, e a besta torna nho nada resta; a realidade da vida retomou as rédeas e fez va-
à Terra. O brado da tua alma é vão. A vida escarnece das tuas ler os seus direitos, nivelou e devorou a superconstrução tenta-
explosões. E, na luta entre a besta e o anjo, pode acontecer que, da. Foi uma ilusão, uma mentira. Enfim, a loucura não é grande
em vez de o anjo matar a besta, a besta mate o anjo. culpa. A ilusão lubrifica a vida; a Terra é lugar de traições. O
Era tempo de abandonar os sonhos e de não enganar mais o homem pode encontrar-se em quatro posições: do vencedor que
leitor com utopias. Era tempo de dizer esta verdade, mais ver- acredita vencer, do desgraçado que se perde, do imbecil que se
dadeira, que está além das palavras, nos fatos. As religiões, a contenta ou do evoluído que se sacrifica. Pois bem, cada posi-
cultura, a política, toda atividade material e espiritual, indivi- ção se resolve igualmente em uma traição. Também o autor foi
dual e social, tudo é uma mentira, um pretexto, um modo de traído; é natural. Mas, assim, desceu do céu e compreendeu
camuflar a luta pela vida em procura do único fim, o próprio uma realidade que antes lhe escapava, sobre a qual ele hoje ba-
bem-estar. Todas essas coisas são astúcias para, com um jogo seia a sua novíssima concepção da vida.
simulado, mascarar o jogo verdadeiro. E os ideais fazem parte
do jogo. Forma-se, assim, um consenso universal no desejo de II. A PERSONALIDADE OSCILANTE E
fazê-los entendidos como reais, sem que sejam de fato. Forma- A VISÃO DE OUTRAS VERDADES
se um consenso na mentira, para a vantagem própria que daí
deriva, e isto basta para constituir a base de tantas instituições. Qual é a significação do capítulo precedente? Que é que
Assim, a autoridade e o poder que, em teoria, deveriam ser aconteceu? Arrependimento, evolução, contradição? Será outro
função e missão, na realidade não passam de meios de explo- o autor que fala? Que significa, no lógico desenvolvimento
ração. Não se explicaria de outro modo como as posições de construtivo resultante dos volumes precedentes, essa tão diver-
comando são tão cobiçadas e se travem tão ásperas lutas para sa voz destruidora, que lembra Nietzsche e se parece com a do
conquistá-las. Isto, certamente, não se faz por amor ao próxi- mal? Ela exprime uma mentalidade que se encontra nos antípo-
mo. É assim que autoridade e poder, muitas vezes, são parasi- das daquela dos escritos anteriores, uma psicologia não de
tários, não obstante aqueles que os detêm procurarem dar a en- quem se eleva, mas do homem que se encerra no seu egoísmo e
tender que são úteis, protetores e produtores insubstituíveis, tudo encara em posição egocêntrica. Como, depois de tanto
justamente porque só assim podem, aparentando função e mis- caminhar, encontramos aqui, aceita e levada a primeiro plano,
são, justificar suas posições. Se, depois, os ocupantes do poder como verdade, a filosofia do involuído?
caem, fica-se deveras surpreendido pela verificação de que as Observemos o fenômeno. Não podemos, por ora, demorar-
coisas prosseguem igualmente, mesmo depois de desapareci- nos na refutação das observações precedentes. Somente o lei-
dos os tidos como insubstituíveis. tor superficial pode vir a ser persuadido. Basta aprofundar um
Assim se prega fé, honestidade, ordem, confiança, sacrifí- pouco a questão, para obter pontos de vista e soluções diversas
cio, altruísmo, porque são úteis para o domínio. O ideal verda- e mais satisfatórias. Essas são dadas a cada passo nos volumes
deiro é o rebanho a mugir, rebanho passivo, que se comanda precedentes, dos quais este é a continuação. O problema que
com menor esforço. O próximo não é um irmão, mas um inimi- nos defrontamos agora é explicar como o autor possa ter pos-
go. O próximo que mais se ama é o mais imbecil, é aquele que suído, seja mesmo naquele breve tempo, uma verdade tão di-
é mais facilmente vencido. Qual fraternidade e amor! A vida é versa da sua habitual; como lhe puderam parecer verdadeiras,
rivalidade desapiedada. Para alcançarmos um posto, devemos por um pouco, as vias da descida, em vez daquelas da ascen-
tirá-lo do vizinho. Ao menos confessamo-lo, não mentimos, são, em que geralmente se move. Assim, é bom esclarecê-lo,
temos a coragem de jogar com cartas abertas. Se Deus existe, as páginas do capítulo precedente não constituem ficção literá-
Ele está no céu; por certo não está na Terra. A sua ordem, har- ria, mas foram verdadeiramente sentidas como verdade por
monia e bondade não estão aqui embaixo Ele está longe de nós quem aqui escreve. Devo também explicar que falo de mim
e nós d'Ele. É preciso saber viver sem Ele. Somos chamados de mesmo na terceira pessoa, pois separo-me completamente do
involuídos? Pois bem, este é o nosso orgulho. Somos feras, mas meu caso, que observo, destacando-o de mim e tornando-o in-
fortes e audazes como as feras. É com a força que o homem dependente, como se o fenômeno se passasse com outra pes-
conquistou o mundo, e não com a piedade. Seremos demônios, soa. Para compreendê-lo, é necessário saber mudar a posição
mas também é grande a nossa força e belo este nosso poder sel- psicológica, observando as coisas sob diversos pontos de vista.
vagem. Esta é a vida do nosso nível, e como tal a aceitamos. Agora, o problema está em conhecer como uma mesma perso-
Com nosso calcanhar, alegremente pisamos sobre a cabeça do nalidade possa existir sucessivamente em diversos planos do
idealista, que, traído por seus sonhos, cai na terra desfalecido... concebível, tomar deles exata consciência e chegar, enfim, à
Temos esse direito, porque, em nosso mundo, onde vive, ele é visão de outras verdades. Para chegar a isto, é necessário, pri-
um vencido. Esta é a verdade. Hoje estamos na época da liqui- meiro, compreender o fenômeno da personalidade oscilante.
dação dos idealistas, liquidação dos que creem em qualquer Os fenômenos biológicos são rítmicos. A onda, segundo a
coisa que não seja o próprio desapiedado egoísmo. É inútil ser qual a trajetória do seu desenvolvimento caminha, desenvolve-
forte no espírito. Quem é fraco no plano animal, na Terra, onde se por vértices e depressões, por máximos e mínimos de inten-
está a vida, há de ser esmagado e suprimido. A destruição mate- sidade, por períodos de atividade e de repouso. Essa é uma lei
rial pela guerra nada é comparável à destruição maior, das al- de oscilação que já observamos no desenvolvimento e decadên-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 13
cia das civilizações, no nascimento, juventude e senilidade- tra na experiência das suas sensações esse fenômeno da oscila-
morte do indivíduo etc. Tratando-se de um sistema de forças ção resultante de posições de transição e de tensões criadoras,
equilibrado, deve haver proporção entre as duas fases, que, se que estão fora do seu campo biológico.
são opostas, são também complementares. É natural, enfim, A verdade do capítulo precedente é, também ela, uma ver-
que, quanto maior é a altura atingida pelo vértice da onda, tanto dade, mas exclusiva do mundo inferior da Terra. O autor a sen-
maior é a profundidade da sua descida. Ora, não se atingem as tiu verdadeira numa hora de baixa tensão, na qual ele viveu na-
superiores realidades do espírito senão nas horas de graça, em quele plano evolutivo. Isto nos antípodas das horas inspirativas,
que a vida oscila de tensão e potencial até alcançar o ponto em que ele pôde, ao contrário, sentir e registrar as verdades su-
mais alto da evolução conquistada, isto é, no período de máxi- periores do espírito, que fazem parte do futuro da evolução, ex-
ma intensidade psíquica, no vértice da onda, depois do qual de- postas em A Grande Síntese. Ora, se essas oscilações de poten-
ve seguir um período de descida da luz nas trevas, uma precipi- cial nervoso e psíquico não estão corretamente adaptadas para
tação da consciência, um desabamento de um mundo. O ciclo ajudar na luta pela vida, todavia são condição necessária para
completo resulta de dois períodos evolutivos: um elevado, de atingir planos evolutivos mais altos, de onde os normais, equi-
afirmação, e outro baixo, de negação. De resto, a consciência librados no seu plano, são excluídos, ao menos até alcançarem
não é fenômeno constante e, segundo o princípio da dualidade superações biológicas no futuro. Se essa oscilação pode ser
que rege todos os fenômenos, compõe-se da sua fase lúcida e também dolorosa pelo permanente sentido de tempestade que
da sua fase obscura, que se completam reciprocamente, com dá à vida, pelo contínuo acúmulo de criações e de ruínas, num
funções opostas: a primeira de intuição sintética, a segunda de estado de elaboração ascensional que queima as etapas da evo-
elaboração analítica e de controle. lução bem como a vida orgânica, todavia somente assim, por
Assim, as grandes verdades e os ideais representam uma esse excepcional esforço, é que pode nascer a possibilidade, de
alta meta longínqua, uma antecipação da evolução, ainda a ser outro modo muito afastada, de atingir diversos aspectos da
atingida, acima da realidade biológica atual; representam mais consciência em diversos planos evolutivos e, assim, a visão de
o futuro que o presente, e o cântico do futuro é um som débil outras verdades e o seu confronto. Lá, onde o homem comum
no presente. Para ouvi-lo, é preciso aguçar a audição psíquica, está fechado na concepção de uma só verdade, limitada ao seu
é preciso levar a própria consciência até ao alto potencial e às plano de vida, com poucos elementos de apreciação, podemos
altas frequências de onda, somente nas quais se pode perceber obter em nosso caso uma vastíssima escala.
as grandes vozes longínquas. Para antecipar o futuro biológi- Com o avanço da evolução, essas ondas em que se acumu-
co, registrando a visão do mundo espiritual do futuro, é preci- lam os períodos de luz e de treva, embora conservando a sua
so atingir a alta tensão nervosa que abrasa e esgota. Só quem amplitude, elevam-se sempre mais, o que lhes permite atingir
vive esses fenômenos pode compreender que dinamismo bio- vértices sempre mais altos, avançando assim de conquista em
lógico e que ímpeto de sensações eles representam; porém, se conquista para verdades sempre mais vastas e profundas. Ar-
eles enchem de entusiasmo quem os alcança, dando-lhe na ho- quejando, o pobre organismo físico segue esse vertiginoso
ra inspirativa o senso de uma inusitada plenitude de vida, dei- curso de ascensão, que se faz cada vez mais acentuado, e tam-
xam-no depois desfeito, como que incinerado pelo incêndio bém ele, dessa forma, para adaptar-se às novas exigências de
vivido. Não é o espírito que se cansa, a parte do ser que está vida impostas pelo espírito, deve sofrer a sua catarse. Esta,
no ápice da zona evolutiva, mas é a parte orgânica, inferior, por sua vez, permite ao espírito, que deve arrastar consigo o
que está situada no fundo dessa zona evolutiva. Cansaço pelo corpo ao qual está ligado, avançar sempre mais, porque, trans-
trabalho da catarse, que é mais sensível onde a vida vem a ser formando o organismo pela adaptação, torna-o sempre menos
abandonada, embaixo, correspondente à que paralelamente é inapto para a respiração nas altas atmosferas rarefeitas e à vi-
conquistada no alto. Mas o equilibrado dualismo do fenômeno da de alta potencialidade. Quem escreve fala de experiências
não se faz sentir só nessa direção. Pela mesma lei de equilí- vividas, controladas por ele experimentalmente, a cada dia,
brio e dualidade, esse estado de hipertensão, período de alto pois que esta é a grande aventura biológica que forma o con-
potencial, deve depois compensar-se em um estado de hipo- teúdo da sua vida. Trata-se, todavia, de sensações e experiên-
função, isto é, num período de baixo potencial. Assim, à alta cias intransferíveis de homem para homem, e quem não se en-
tensão que, se prolongada, queimaria o organismo físico, se- contra nessa posição evolutiva não pode experimentá-las. Por
gue um período de relaxamento e de repouso. Tudo isto é ló- isto elas fogem à ciência positiva de hoje.
gico e de acordo com as leis da vida. Assim se explica a contradição entre a verdade exposta no
Um tipo normal, em geral, é evolutivamente inerte e estáti- capítulo precedente e as que foram anteriormente expostas nos
co, portanto estavelmente equilibrado na sua fase animal, e não outros volumes ou ainda o serão depois. A contradição é dada
na fase de transformação intensa; não é lançado para formas de pelo contraste entre posições diversas, tratando-se de coisa tão
vida mais elevadas. Ele não se ressente, enfim, de oscilações e natural, que normalmente constitui a base da percepção. Só as-
desequilíbrios que, se podem parecer anormais, na verdade são sim se podem perceber verdades evolutivamente futuras, às
criadores. O tipo corrente, que não toca as alturas do espírito, quais a maioria chegará somente mais tarde. Porém, justamente
não pode de fato cair nesses estados de depressão, que são coi- porque o autor não é estático em nenhum plano, nem mesmo no
sa bem diferente daqueles patológicos, e somente quem não alto, a sua consciência pôde completar a oscilação que o levou
compreendeu o fenômeno pode fazer esta afirmação. Para o ao máximo de depressão da onda, isto é, ao plano da consciên-
homem comum, as oscilações da onda são levíssimas, a sua cia terrena daquele homem que é ainda, em grande parte, ani-
consciência se mantém mais ou menos estática no mesmo ní- mal. Porém, não sendo este para o autor senão o ponto mais
vel, portanto a sua visão é constante, de uma realidade que as- baixo da sua oscilação, o próprio fenômeno o leva logo a re-
sim lhe aparece única e sem contradições. A sua inteligência, montar aos planos mais altos e a sentir e afirmar verdades supe-
não tendo oscilações entre o supernormal e o subnormal, é pa- riores. Ao leitor oferecemos justamente, junto à análise do fe-
ra ele quase exclusivamente um instrumento de luta pela vida e nômeno, a possibilidade de assistir a essa retomada ascensional
esgota a sua função na defesa do corpo. É para isto que ele está de consciência. Veremos, assim, no desenvolvimento conceptu-
armado, e não para as conquistas biológicas; construído mais al que segue, reconstituir-se lentamente a tensão e reaparecerem
para conservar-se tal qual é, do que para se arriscar nas gran- sempre mais nítidas e vizinhas as verdades do espírito, de que
des aventuras da evolução. Ele é mediocremente inteligente, se afastou apenas por um momentâneo colapso. O exame de tal
porém mais ou menos constante o tempo todo. Ele não encon- desenvolvimento constitui o esqueleto deste volume, cujo an-
14 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
damento, por isso, é ascensional. Assim, serão expostos ângu- nia do universo, incapaz de agarrar as maiores forças, que lhe
los visuais progressivamente mais salientes, embora depois, fogem, fechado em uma pequena verdade limitada ao plano ter-
uma vez terminado o estudo do fenômeno psicológico, não nos restre animal da evolução. Para poder fazer confrontos e dar-se
ocupemos mais de tratar da causa que o determina, mas somen- conta de uma parte maior da verdade universal, o autor devia
te de pôr em evidência o seu resultado conceptual. conhecer também aquela psicologia, atravessando-a toda, mes-
Veremos, dessa maneira, uma verdade continuamente pro- mo que fosse por um momento. Somente essa sua possibilidade
gressiva, que se eleva aos poucos, até ao vértice, onde contem- de ter consciência em planos evolutivos diversos lhe pode per-
plaremos, no seu conjunto, o Criador e a Sua criação, para des- mitir coligar as diversas verdades e levar para o plano humano
cer depois aos problemas particulares, da síntese e análise. Isto verdades próprias de planos superiores, que, naquele momento,
porque a consciência não pode se manter longamente na alta parecem erradas ou utópicas; com isso, pode-se ajudar a evolu-
tensão da síntese máxima e deve, depois, relaxar-se, para re- ção, antecipando verdades que hoje estão ainda evolutivamente
pousar nas menores visões da análise. Na ascensão, o espírito longínquas, próprias de um futuro biológico ainda não alcança-
aponta para a unidade, o absoluto, com concepções sintéticas; do. O produto da vidência de alta potencialidade pode ser imita-
na descida, ele vê, mais que o conjunto, o particular, o relativo, do nas concepções mais turvas e menos ativas do plano de baixa
com concepção analítica. No fundo, ele não faz mais que per- potencialidade ou de cegueira em relação àquela vidência.
correr, ao longo da escala da evolução, o caminho de ida ou de É natural que a verdade mais baixa se revele feroz e infer-
retorno que o ser percorre, ascendendo para Deus ou descendo nal quando vista de um plano mais alto, enquanto pode pare-
d'Ele. Nesse caso particular que agora observamos neste volu- cer justa para quem, por evolução e sensibilidade, está pro-
me, vemos refletido o esquema da estrutura do universo, con- porcionado àquela ferocidade. Assim se explica como a Terra
firmando que ele, como já o dissemos muitas vezes, está cons- pode se assemelhar a um inferno aos mais evoluídos e o céu,
truído por esquemas únicos, de modo que, em cada caso menor visto da Terra, pode parecer utopia; explica-se também como
e em todas alturas, vemos reaparecer reproduzido o esquema a verdade inferior, que parece tão verdadeira no seu plano,
máximo Deus-universo. Assim o crescendo conceptual que se caia para o absurdo tão logo fique em contato com realidades
seguirá não é senão a expressão da maior lei da vida, que é a superiores. E que faria a primeira por si só? Permaneceria sem
ascensão de todos os seres para Deus. esperança, sem futuro. E esse futuro está fatalmente implícito
Mas, se esta é a meta para a qual se caminha, pela própria na instintiva insatisfação humana, que exprime o impulso da
transformação das visões que se obtêm na ascensão, poderemos evolução, fazendo que, cedo ou tarde, tudo seja superado. A
dar-nos conta da relatividade da nossa verdade. Não dizemos, vantagem está em saber achar a passagem da verdade inferior
com isso, que não exista uma verdade absoluta ou que ela mude para a superior, e essa é a função e missão dos mais evoluí-
à medida que progredimos. A verdade absoluta existe, o que dos, condenados a viver no inferno terrestre. Trata-se de pas-
muda é somente a nossa percepção dela, é o aspecto subjetivo sar para mais elevadas formas mentais, e só nisto pode consis-
daquele fato objetivo. Assim é que, para cada plano evolutivo tir o progresso para mais altas civilizações.
que atravessamos, achamos para nós uma verdade relativa diver- À medida que se evolui, a vida torna-se mais vasta e poten-
sa, dependente do nosso ponto de vista e sua variação. Essas te, ampliam-se os horizontes do conhecimento e, portanto, do
verdades relativas parecem contradizer-se, entretanto comple- domínio. O involuído vive, dia a dia, das pequenas coisas ime-
tam-se. É preciso compreender esse conceito da relatividade das diatas, imprevidente, impulsivo, sem sabedoria e sem senso. O
nossas verdades, que estão em função do ponto de vista dado pe- evoluído domina a vida, sabe e calcula causas e efeitos longín-
la nossa posição ao longo da escala da evolução. A verdade ab- quos, é previdente, reflexivo, sábio e sensato. O campo do seu
soluta, total, completa, nos escapa. Ela está em Deus, não no conhecimento, portanto de seu domínio, é muito mais vasto.
homem. É a visão simultânea de todos os pontos e posições ao Ele sente, enfrenta e resolve problemas dos quais o involuído
longo da escala da ascensão. O homem, situado no relativo, não não cogita. Este nem mesmo suspeita da presença do imenso
pode perceber mais que uma verdade particular e relativa, apro- mundo que está além da sua pequena consciência, do qual há
ximada e progressiva, que, justamente por isto, está em movi- nele algum germe, apenas assinalado, mas ainda não conquista-
mento e relacionada com a outra, absoluta e imóvel. Dessa for- do, perdido no inconcebível. Se bem que ele não compreenda
ma, o homem não pode compreender senão por sucessivas apro- tudo o que o evoluído faz e diz, ainda assim este tem muitas
ximações a mesma e única verdade, que está somente em Deus. coisas a dizer-lhe, porque ele vê onde o outro ainda não vê e es-
Dessa maneira, todo plano tem a sua verdade, que, na sua tá mais adiantado no caminho da evolução, que todos devemos
forma relativa, continuamente se retifica e aperfeiçoa. Assim, percorrer. Ainda que estranha, incompreendida e desprezada, a
uma forma que, em dado nível, vem a ser justa, pode tornar-se palavra do evoluído tem o valor e a potência de uma revelação,
injusta em outro mais elevado. Os valores e, portanto, os juízos porque manifesta novas zonas do pensamento do universo, traz
são diversos nos vários planos. Quem é sábio no plano da maté- para a luz o que está recôndito e descobre o mistério. E o saber
ria pode ser tolo no do espírito, e ao contrário. Dessarte, um nos guia ao poder. Conhecer os porquês da vida, possuir a solu-
não-valor pode se tornar um valor máximo e ao contrário, se- ção dos problemas, agir com ordem, em vez de ao acaso, orien-
gundo a altura evolutiva da qual é observado e o mundo ao qual tado, e não desorientado, representa uma posição de grande
ele se aplica. É assim que se explica a inversão evangélica dos vantagem também para os fins práticos da defesa e da conquis-
valores. O que na Terra é dor e derrota, mais no alto pode signi- ta. O involuído, que se apoia na força, não sabe que o pensa-
ficar redenção e salvação. Evoluindo, o valor das coisas muda, mento é o maior poder, capaz de vencer a própria força. Esta é
como muda a verdade da qual ele depende. O corpo pertence ao obtusa por si mesma, um desencadeamento brutal sem rendi-
mundo, e o espírito a outro plano de vida. Eles têm duas verda- mento, perdendo-se em erros e atritos. E a inteligência vence. O
des e leis diversas. O antagonismo que está em nós, quando o pensamento é criador e, pertencendo a planos mais altos, domi-
espírito é forte, pode assumir violência tremenda. São duas vi- na tudo o que lhe está abaixo, porque evolutivamente inferior.
das em luta, na qual a mais poderosa vence. Na maior parte dos O poder que procuramos com tanta fadiga na Terra vem a nós
casos, o espírito dorme e, se acorda, é para o serviço do corpo. espontaneamente, assim que saibamos subir.
Mas, no caso contrário, em que o espírito domina, nascem tem- Assim, o evoluído pode representar, em favor dos involuí-
pestades apocalípticas que o homem comum não imagina. dos, uma verdadeira função biológica, antecipadora e criadora
A psicologia do capítulo precedente é a terrena, é a do invo- de valores. A vida o produz para esse fim e lhe confia a corres-
luído, ignorante das leis da vida, cego diante da grande harmo- pondente missão. Desse modo, ainda que o seu sacrifício pela
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 15
utopia possa parecer tolice, é sempre um testemunho necessário III. EXPERIÊNCIAS EM BIOLOGIA
para dar impulso à vida. E, se esta o deixa morrer, é somente TRANSCENDENTAL
para fazê-lo frutificar. Assim, a vida salva a melhor parte e, pa-
ra seus fins universais, consegue o rendimento maior. Desse seu Depois de haver sumariamente traçado no precedente capítu-
método de agir se conclui qual a importância dada à evolução. lo a direção do nosso caminho pela via ascendente que, à seme-
Se nenhuma posição é mais criadora do que a do macho, nin- lhança do grande caminho evolutivo do ser, nos propomos se-
guém mais do que ele se arrisca a ser esmagado. E ninguém é guir neste livro, é necessário, antes de continuar, completar com
mais macho do que o evoluído, que representa a potência ultra- uma visão psicológica mais exata aquilo que já acenamos no
viril do pensamento, a função criadora e diretriz, colocada na começo a respeito do fenômeno da personalidade oscilante entre
direção da ascensão, sem a qual as outras duas grandes funções vários planos de evolução e de consciência, com a respectiva vi-
da vida, a conservação e a reprodução, tornar-se-iam estéreis. são das várias verdades. Esse salto do eu, do vértice da onda pa-
A evolução tem os seus arautos, que ela manda à frente, ar- ra a profundidade das suas depressões e ao contrário, essa preci-
mando-os mais do que os normais, a fim de que tentem o ignoto pitação da alta à baixa potencialidade e a subida em sentido in-
com risco e perigo seus. A natureza não os protege exterior- verso, quais as sensações que, além da visão dos diversos planos
mente, modificando o ambiente para eles, mas os mune interi- da verdade, produz em quem vive o fenômeno, como acontece
ormente pela premunição. A vida faz deles especialistas em esse fato, como se explica, qual o seu significado biológico na
funções evolutivas, como antenas investigadoras e antecipado- economia da vida? Quem escreve procura documentar aqui,
ras. Para esse fim, ela produz poucos exemplares de exceção, através da própria experiência, o estranho fenômeno por ele vi-
enquanto a maioria, prudentemente, mantém-se em posições vido, aprofundando assim o complexo problema já tratado da
mais recuadas e mais seguras. Ela, depois, os lança para a luta, personalidade humana, para o qual enviamos os leitores, indi-
não aquela da competição recíproca entre os homens para a cando-lhes o final do precedente volume, A Nova Civilização do
formação de qualidades humanas, mas uma luta direta contra o Terceiro Milênio4. Tornar-se-á assim mais aclarado o fenômeno
mistério e as forças biológicas, para avançar, conquistando inspirativo, já examinado no volume As Noúres.
campos inexplorados. Assim é que o progresso avança com a O mundo ideal, que o evoluído antecipa nas suas visões, não
colaboração entre os mais e os menos evoluídos. A vastidão e a é uma realidade que haja alcançado sua manifestação em nosso
profundidade dos problemas que o homem se propõe e resolve, ambiente terrestre. Aqui, aquele mundo superior não existe senão
a elevação dos mundos com que ele chega a se pôr em contato e como miragem, utopia, no estado potencial de futuras realiza-
a viver, são índice de seu grau de evolução, o que significa ções, como é o da árvore na semente, isto é, o estado de uma coi-
também o grau de autonomia, poder, segurança e felicidade que sa que poderá ser, mas que ainda não é. Não existindo em nosso
o homem alcançou. A vida é sempre utilitária, e o progresso, mundo como realidade concreta e objetiva, essas verdades supe-
que também custa fadigas e riscos, deve trazer uma melhoria. A riores não são suscetíveis de exata percepção e de experimenta-
sabedoria e a sensatez não constituem um fim em si mesmas, ção, o que as torna irreais, fantasias, ilusão. De fato, na Terra,
mas um meio para constituir um modelo, dado que o poder e o elas são uma miragem, uma projeção de uma realidade longín-
domínio não podem ser concedidos senão a quem deles fizer qua, porém plenamente objetiva para planos evolutivamente su-
bom uso. É dessa forma que a Lei quer que a vida floresça. periores ou para quem saiba conscientemente encontrá-las. Essas
Com a evolução, o jogo da vida, de curto e míope, qual é realidades espirituais, portanto, podem ser exatamente percebidas
para o involuído, limitado aos planos inferiores, se transforma e experimentadas em estados de consciência de alta potencialida-
em um jogo sempre mais amplo e complexo de longas e amplas de. Então, enquanto o observador fica nessas condições, é possí-
realizações. O homem, então, passa a viver em função de um vel explorar aquele mundo ignorado, da mesma forma como se
sempre maior círculo de seres. A sua esfera de ação se expande explora a realidade concreta do nosso mundo terreno através dos
no espaço e no tempo, descendo sempre mais profundo na es- sentidos comuns. Isto pode ser bem compreensível para todos,
sência das coisas. O involuído é impotente para viver uma vida pois é sabido que tudo o que nos circunda toma uma certa apa-
assim vasta; não sabe usar senão dos poucos elementos de que rência somente em função dos nossos meios sensórios e que,
dispõe e nada mais. Enquanto ele, pela assimilação das tão ne- quando estes mudam, essa aparência pode mudar completamente.
cessárias experiências, não estiver amadurecido para novas O método inspirativo ou intuitivo aqui usado por quem es-
formas de vida, delas estará excluído. Desconhecendo o com- creve, meio de pesquisa que ele atingiu pela evolução de suas
plexo jogo das forças do seu destino e a técnica do seu funcio- qualidades de sensibilidade, é justamente o que lhe permite
namento, ele deverá aceitá-lo como fado inexorável, sem com- atingir conscientemente planos superiores de vida e, num esta-
preendê-lo nem assimilá-lo, enquanto quem as conhece torna-se do supernormal de percepção, levar a cabo observações, experi-
senhor dele. Ignorando os fios que ligam causas e efeitos, ele ências, crítica e registro das soluções dos problemas focaliza-
não sabe estabelecer aquelas conexões que explicam tantos fa- dos. As melhores páginas de toda a obra, da qual este volume
tos e que, para outros, permitem a previsão. O homem de hoje faz parte, foram obtidas com esse método. É verdade que ele
ignora a solução dos problemas fundamentais da vida, de modo não pode ser usado por todos, como os comuns meios de pes-
que possui bem poucos meios para defender-se dos dolorosos quisa. No entanto é compreensível a contribuição que pode tra-
efeitos de seus contínuos erros, que, dessa maneira, não são re- zer para o conhecimento esse inusitado instrumento, que é me-
solvidos e eliminados, ensejando que venham a ser continua- todicamente usado desde alguns anos, numa produção orgânica
mente semeadas novas causas. Estas o homem de hoje vai pro- conceptual que haverá de ser compreendida somente quando a
curando em tudo, nos outros e até mesmo em Deus, que chama obra for completada. Tratando-se de um caso de exceção e não
de injusto, sem saber que elas estão nele próprio. Ele cria à sua tendo a ciência resolvido tais problemas, esse método veio a ser
volta um caos, perde toda a confiança na ordem do universo, na confundido com a mediunidade, com a ultrafania em transe,
bondade e sabedoria das leis da vida, e procura a salvação na com o espiritismo etc. Mas, aqui, não existem fenômenos físi-
psicologia da vantagem imediata. Então resultam posições ins- cos nem transe. O transmissor se funde em colaboração com o
táveis, porque usurpadas, desequilíbrios e ruínas, ilusões e do- receptor numa obra orgânica em que, cientificamente, é enfren-
res. A vantagem imediata, o sucesso rápido que não foi ganho tado, inclusive como síntese, o campo do saber humano, para
antes, não pode ser senão traição. Assim, em baixo há sempre dar orientação e solução aos problemas mais árduos e vitais.
mais o estridor da luta, enquanto, no alto, a Lei exprime as
4
grandes harmonias da criação. Cap. XXVII e XXVIII. (N. do T.)
16 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
Nada há de estranho que, nessas condições especiais e com ponderável, inegavelmente se projeta em manifestações bem
esses meios, seja possível alcançar o conhecimento de outros sólidas e tangíveis também em nosso mundo material. Os sím-
planos de vida, onde o real e objetivo não é a matéria, mas sim o bolos, as bandeiras, as imagens, veneradas representações do
espírito, e obter a expressão daquela realidade imaterial por trás imponderável, não são criações ou convenções arbitrárias, mas
de todas as formas, que são regidas por ela e não passam de uma sinais e formas nas quais a maioria reconhece uma realidade in-
sua manifestação exterior. É desta forma que o imponderável terior, outro tanto verdadeira. Se o consenso não se houvesse
emerge do mistério e, visto com os olhos do espírito, assume a formado antes, em torno de uma substância interior, ele não se-
mesma solidez que a realidade concreta apresenta aos olhos co- ria possível depois, em torno da forma exterior que a represen-
muns. Assim a vida, percebida com outros meios, revela-se di- ta. Certas afirmações de fé coletiva não são artificiais; elas es-
versa, e o significado e o aspecto das coisas mudam completa- tão além de todo poder humano de criá-las e mantê-las e têm
mente. Então o nosso mundo, que se apresenta a nós como rea- uma resistência que, muitas vezes, falta na realidade concreta.
lidade em face do espírito, torna-se ilusão, enquanto o mundo do Podemos até perguntar-nos se não será essa própria realidade
espírito, que nos parece sonho, aparece como realidade. interior, relegada entre as ilusões, que plasma o mundo humano
Nós nos movemos de fato entre duas realidades, cada uma e, através desse, também o físico. Não está, talvez, nesse íntimo
das quais parece ilusão se observada do ponto de vista da outra. imponderável eu, que tudo deseja plasmar e marcar sem limites,
No final do volume precedente, A Nova Civilização do Terceiro a maior força do ser? Se pudesse, não quereria dar uma expres-
Milênio, descrevemos os dois caminhos que levam para as duas são própria em todo o universo?
realidades, a primeira, por percepção direta exterior, a segunda, Era necessário, com tudo isso, explicar como as afirma-
por percepção inversa interior. As chamadas criações do espíri- ções ideais que iremos expondo respondem, ainda que pare-
to não são mais do que percepções de realidades evolutivamen- çam utopias, a uma potente e objetiva realidade interior. É es-
te mais elevadas, registradas por meio dessa percepção interior. ta que, em qualquer caso, sustém tudo. Sem esta realidade in-
Dessa maneira, tanto no campo científico como no artístico, o terior, que é a alma das coisas, a forma cai como coisa morta.
gênio nos mostra, sem transe e com potência de resultados que A instintiva necessidade de evoluir faz com que também o in-
superam aqueles da comum ultrafania, haver tido contato com voluído procure essa realidade interior nas coisas, cuja exis-
realidades que não são da Terra, sendo que até estas, que sem- tência somente ela justifica. Em todos está radicado esse ins-
pre tocamos com a mão, desfazem-se no imponderável quando tinto de procurar em tudo uma substância espiritual, repelin-
observadas com a análise penetrante da ciência moderna,. Ve- do-se tudo o que não se torna vivo e vital por essa substância.
remos isto melhor no capítulo ―As últimas orientações da ciên- Somente nisto é que está a potência destes escritos. A base do
cia‖. Desse modo, a estabilidade da matéria se reduz, em última consenso que se forma e sempre mais se formará em torno de-
análise, à simples constância dos princípios diretores abstratos les é dada pelo regozijo de tantas almas ao se encontrarem
que a regulam. Isto confirma o conceito acima exposto da com- nesse mundo interior de onde surge a vida. Uma fantasia ou
pleta relatividade do nosso conhecimento, visto ser óbvio que criação individual, não mantida por uma completa aderência e
os axiomas que colocamos como base de seu edifício estão em mais potente realidade interior, não acharia eco nem corres-
função dos nossos meios sensórios e são dados por um consen- pondência nas almas e ficaria incompreendida, sem ser ouvi-
so derivado da semelhança entre esses meios. A compreensão da. O consenso, além de todo raciocínio, é dado pelo instinto
entre os seres se dá enquanto e porque são feitos do mesmo que, super-racionalmente, sente que aqui não é apenas um
modo, de outra forma eles não se compreendem mais. Certo é homem falando, mas sim a vida universal respondendo. É nes-
que deve haver uma realidade última que seja objetiva em si e te mundo interior que o escritor se colocou e é para lá que
por si. Mas o que ela seja na sua absoluta objetividade, além de conduz os seus leitores. E estes, inconscientemente, vibram,
todas as formas, ignoramos. Esta última realidade verdadeira, reconhecendo em si mesmos estas afirmações, em que a pró-
que está além de todas as aparências relativas, deve ao menos pria vida fala. Eles percebem ter encontrado quem soube ex-
possuir, relativamente aos meios de observação, tantos aspec- primir a voz que sentem vagamente ressoar também neles.
tos objetivos quantas são as reações e reflexões que podem O organismo que opera tais percepções e registros é o espí-
produzir em todas as possíveis formas de consciência. Não rito, situado no plano da realidade interior, no polo oposto ao
vemos que o nosso estado físico e psíquico, assim que muda, corpo, situado na realidade sensória exterior. Sendo o espírito
produz em nós sensações diferentes? E não o julgamos, então, um organismo imponderável, a sua anatomia ainda nos foge.
como uma realidade diversa? A absoluta realidade nos escapa Todavia podemos sumariamente concebê-lo como uma unidade
completamente. Não somos senão caminheiros do relativo, pa- dinâmica radiante, existente em uma dimensão superior à nossa
ra nele caminhar sem parada, sem nunca poder exauri-lo. E, de espaço-tempo. Trata-se de um organismo de forças equili-
mesmo avançando em nosso caminho evolutivo, enquanto o bradas e hierarquicamente coordenadas, segundo leis que po-
campo do nosso relativo não muda, não possuímos nele senão demos analogicamente deduzir do funcionamento dos outros in-
alguma oscilação, que serve para experimentarmos a nossa vi- finitos organismos do universo, inclusive do físico humano. O
da. Verdades definitivas e estáticas, pois são impossíveis na ignoto pode sempre ser explorado, assumindo como segura a
Terra, onde há somente progressivas aproximações do incon- hipótese de trabalho indicada pelo princípio de analogia, porque
cebível absoluto, que não nos pode aparecer senão como um o universo é unitário, regido por esquemas únicos, reconduzí-
ponto de referência, porém dele, caminhando no relativo, pro- veis a um tipo central único, que se repete em todas as alturas
curamos sempre mais avizinhar-nos. evolutivas e em todas as formas e combinações possíveis.
As duas realidades, exterior da matéria e interior do espírito, Já explicamos em A Grande Síntese a evolução das dimen-
são os dois extremos que confinam o atual concebível humano, sões. Podemos assim dar-nos conta de qual seja o plano de
entre os quais, em ascensão e descida, move-se a observação da existência em que devemos procurar o espírito. A sua caracte-
personalidade oscilante aqui estudada. Embora, por razões sen- rística principal é o dinamismo. E isto é natural, já que a po-
sórias, a primeira realidade da matéria venha a ser considerada tência aumenta com a elevação do grau evolutivo. Esta unida-
a mais verdadeira, perguntamo-nos a que ficaria reduzida a so- de é vibrante; nisto está a sua vida, o seu modo de existir; nisto
ciedade humana se fossem suprimidas as realidades imateriais está o elemento fundamental da sua individualização. O espíri-
do mundo moral e ideal, onde estão o bem e o mal, o sentimen- to, por sua natureza, é teletransmissor e telereceptor, sendo de-
to, a fé, o pensamento, a arte e a própria ciência, produtos per- finível não por uma sua forma física, mas por uma frequência
tencentes a um outro mundo, que, mesmo perdendo-se no im- de vibrações e por um tipo e comprimento de onda. No futuro,
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 17
a personalidade humana não será individualizada por caracte- É assim que se inicia de fato a hipertrofia psíquica, encabe-
res somáticos, mas psíquicos. A identidade de cada um será çando a evolução para aquele determinado tipo. Hipertrofia
expressa por um diagrama, definindo o tipo pela trajetória e porque a vida é uma contínua experimentação, que nutre o ser
frequência da onda individual. Um novo mundo de radiações, em sentido evolutivo, e tudo que se nutre armazena dinamismo
que hoje não imaginamos, invadirá a nossa vida quotidiana. A e deve, por isto, desenvolver-se. Mas, pelo dualismo e equilí-
posição do indivíduo será determinada pelo próprio tipo de vi- brio universais, no polo oposto, isto é, na cauda da evolução,
bração, resultante dos pensamentos e atos dominantes, e a deve ocorrer um correspondente afrouxamento no metabolismo
convivência social será, em grande parte, um problema de sin- vital, um hipofuncionamento, tendente à atrofia de qualidades e
tonia. Esses são os primeiros passos da futura evolução huma- órgãos correspondentes, que o exprimem. Tudo isto ficará
na. A nossa existência tornar-se-á sempre menos física e sem- abandonado no passado, do qual não sobrevivem senão ruínas
pre mais psíquica, nervosa, espiritual. Trata-se de uma expan- no organismo físico e no subconsciente. Veremos mais adiante
são imensa da personalidade humana, que lembra aquela atin- que a matéria, em seu último elemento, não é mais do que um
gida pelo ser quando, da imobilidade da planta, alcançou a pequeno feixe de ondas e se reduz, assim, a uma frequência on-
mobilidade do animal, realizando assim a possibilidade de in- dulatória ou vibração, o que a torna capaz de formar a vida e os
finitas novas experiências, base de novas e amplíssimas ascen- vários tipos biológicos. Então, a todo salto da personalidade pa-
sões. O ser existe até onde alcançam os seus meios de percep- ra diante, em direção a futuras formas, sempre mais psíquicas, a
ção e, tornando-se sempre mais espírito, amplia este campo, onda individual conquista uma frequência, um potencial (inten-
alcançando assim uma imensa expansão da personalidade, que sificação cinética e potência dinâmica) e, com isto, um vértice
agiganta o seu campo de ação e o seu poder de domínio. Quan- evolutivo sempre mais altos. À maior tensão biológica nesse
tas realidades, quantas experiências e, com isto, quantos novos plano corresponde uma paralela depressão no plano físico. O
meios de elevação poderá amanhã realizar um ser que, além organismo físico sofre então agonia e morte, gasta-se ardendo,
das atuais escassas possibilidades sensórias, poderá alcançar para ressuscitar como organismo psíquico, num processo que
uma telepercepção e uma telecomunicação radiante! Então, os lembra a histólise do inseto. O fenômeno foi vivido por muitos
atuais limites do concebível se ampliarão para dar lugar a for- pensadores, artistas, místicos e santos, os quais, porém, não se
mas de existências hoje insuspeitas. Os evoluídos, que já se deram ao trabalho propositado de observá-lo introspectivamen-
encaminham por esse lado, sentem o corpo não como um meio te, com psicologia analítica e orientação científica moderna. O
de expansão e de experimentação, mas sim como um limite à conceito de morte e ressurreição, de sacrifício da vida física pa-
vida, uma prisão da qual se deve fugir. A evolução representa ra o triunfo da espiritual, é fundamental nas religiões e, especi-
para todos, em todos níveis, uma expansão vital. almente, no cristianismo. Se a humanidade o sentiu, fica prova-
Procuremos observar sempre mais a fundo essa biologia do que ele tem um significado biológico universal.
transcendental, na qual a própria vida do corpo, gradativamen- Ora, se, nesse processo, a vida no plano físico vem a ser su-
te, evolui para a do espírito, que dela é o resultado e a meta. focada, no plano espiritual ela cresce em triunfo. Isto é total-
Podemos fazer isto dispondo dos princípios, dos meios e dos mente lógico para quem conhece os métodos e a economia da
métodos acima expostos. Certo é que essa catarse biológica po- vida, de compensação e equilíbrio: sempre criar e jamais procu-
de implicar, como efeito colateral e secundário, um turvamento rar uma renúncia senão para compensá-la com uma conquista.
do equilíbrio da normal e medíocre ―mens sana in corpore sa- E é justamente nos momentos de graça, em que se alcança nes-
no‖5. Isto porque a transformação se dá com dano do corpo se processo a fase de hipertensão, de máxima frequência, que o
(atrofia), em proveito do espírito (hipertrofia). Desequilíbrio, sujeito pode perceber, por intuição, o que ao equilibrado normal
porém, que se reequilibra gradativamente em outros equilíbrios, está impedido. Mas, pelas mesmas leis mencionadas, a vida de-
para atingir o superior equilíbrio de uma nova fase evolutiva. ve retrair-se das posições demasiado avançadas, que, se persis-
Procuramos dar a documentação experimental de tais fenôme- tissem, ameaçariam definitivamente a estrutura, somente sendo
nos de biologia transcendental vividos pelo autor. No homem possível a retomada depois do reequilíbrio das posições mais
de tipo médio, funcionamento orgânico e psíquico se equili- embaixo. Assim, a tensão deve voltar a descer, mas isto para
bram e, assim, o diagrama do tipo da onda psíquica individual novamente se elevar mais tarde. Nessas oscilações, as novas
exprime uma trajetória e frequência medianas e quase constan- posições instáveis devem estabilizar-se gradualmente, depois de
tes. A psique esgota a maior parte das suas funções em ativida- haver assimilado experimentalmente todos os elementos consti-
des relativas à vida física do corpo. A personalidade é estática, tutivos. Entretanto, por compensação, deve se dar uma queda,
sem saltos evolutivos. Os planos superiores da vida estão, por que é ignorada pelo tipo normal; deve haver uma descida pro-
isto, fora do concebível e da experiência. porcional à subida, para um nível inferior ao normal, uma caída
Mas, logo que, por maturação, ao término de longos períodos em hipotensão, depressão ou colapso, em que o sujeito é menos
experimentais, o registro e assimilação dos seus resultados estão inteligente do que o tipo médio. Ele, então, aparecerá como um
completados e há saturação do dinamismo daí resultante, inicia- vencido na luta, e o seu caso será tido como patológico. Mas
se então, no campo dado pelo organismo de forças constituído ele não o é perante a vida, que o retomará num lance ainda mais
pelo espírito, que se atinge somente através do amadurecimento, potente, sempre mais para o alto, enquanto o normal ficará
um deslocamento no equilíbrio daquelas forças, tendendo a des- adormecido na sua mediocridade. Dos dois tipos, somente o
locar o baricentro evolutivamente para mais alto. Esses conceitos primeiro é o verdadeiro vencedor.
espaciais constituem pura imagem, dado que o fenômeno se veri- Assim, a evolução avança para uma progressiva expansão
fica em dimensões superiores. Substancialmente, trata-se de des- da personalidade, por contínuos ensaios e estabilizações em
locamentos cinéticos da substância, onde se efetuam os registros mais altos níveis espirituais. A oscilação entre máximos e
daquelas experiências que, depois, formam as qualidades instin- mínimos do concebível não é estéril, porque ela nunca se re-
tivas adquiridas, ideias inatas posteriormente inseridas na perso- pete idêntica, mas cada vez toca um vértice mais alto e desce
nalidade, como suas características, que a individualizam. Não a uma depressão menos baixa. Desse modo, todo o sistema
entramos aqui no problema de sermos, assim, filhos dos nossos caminha para formas de vida mais elevadas. Se, de um lado,
pensamentos e ações no passado, nem naquele outro, de que já essa oscilação significa conquistas sempre mais vertiginosas,
tratamos, do nosso destino, que é a sua consequência. é, de outro lado, constituída de quedas pavorosas. Se temos
os momentos de expansão paradisíaca, temos igualmente os
5
―Espírito são num corpo são‖. (N. do T.) de desânimo e agonia. Quem vive o fenômeno sente esse res-
18 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
piro evolutivo da personalidade nas duas inversas fases de te, chamamos consciência somente o seu lado afirmativo, isto é,
expansão e contração de consciência. Primeiro, um dilatar-se, a sua metade positiva, esquecendo que cada individualidade é o
quase um explodir do eu além dos limites comuns da vida, resultado composto de duas metades inversas e complementa-
com uma triunfal expansão de alegria; depois, um abismar- res. A consciência completa tem dois polos, é dúplice por lei de
se, um precipitar-se, retraindo-se nas formas comuns da vida. dualidade, e cada unidade é formada não só do consciente mas
Esse retroceder involutivo é terrificante. A superconsciência também do inconsciente. Assim, se uma parte do eu funciona
atingida inicialmente parece desfazer-se em cinzas, o que dá como consciência, a outra parte deve existir e funcionar como
ao eu uma angústia sem nome, uma sentida saudade do gran- inconsciência, coisa bem diversa de um estado de nada, pois
de bem perdido, como conhecimento, poder e liberdade, num constitui um funcionamento inverso e complementar, subterrâ-
choro salutar, porque nele se aninha o desejo criador de no- neo, de maturação e preparação, condição do outro. Na primeira
vos ímpetos e a necessidade de realizá-los a todo custo. posição, o eu trabalha ativamente, projetando-se para o exterior,
Então, purificado por essa dor necessária, transformado, vivendo no ambiente e o sentindo segundo as suas reações; na
livre das escórias, tornado digno de novas ascensões, o eu res- segunda posição, o eu trabalha passivamente, projetando-se pa-
surge de suas cinzas para se lançar sempre mais para o alto. A ra o interior, assimilando as experiências e com elas se elevan-
elaboração evolutiva consiste exatamente nessas anulações e do. Essa elaboração advém de um estado que é de inconsciência
reconstruções do eu. Há como que uma desintegração e rein- com relação à consciência exteriormente ativa, mas que não é
tegração da personalidade. Definir tudo isto como patológico senão uma consciência diversa, que só parece assim porque é
é extremamente fácil, mas nada explica. Embora muito estra- vista de seu outro polo e ao contrário. Quanto de nossa vida
nho, um estado do qual resultam potenciais criadores de ta- transcorre e do nosso eu funciona, como corpo e como espírito,
manho porte é desejável, e considerá-lo patológico seria como sem intervenção de vontade e de consciência! Parte de nosso
definir patológicas as dores do parto. Permanece o fato de que tempo passa no sono, outra parte de nossa existência está sub-
a reintegração da personalidade se processa regularmente e mersa no olvido. Quanto da nossa consciência se aprofunda nas
sempre para um nível mais elevado. Para bem compreender, trevas! Ela se apaga toda noite, no fim de cada dia, no entanto
seria necessário introduzir, em biologia, o conceito de evolu- sempre ressurge e se reconstitui das suas próprias cinzas com
ção das dimensões. Parece que, além dessa destrutibilidade de os sepultados elementos do passado. Toda noite, nos anulamos
superfície, haja uma mais profunda indestrutibilidade de subs- no sono e, cada manhã, nos reencontramos como éramos à tar-
tância, isto é, que o fenômeno obedeça a uma íntima e inesgo- de. Assim, a cada morte, temos nossa consciência terrena anu-
tável potência criadora das coisas, que está em Deus. Essa po- lada num sono que não é senão uma consciência diversa, seu
tência não pode absolutamente ser detida, pois é mais forte lado negativo, e a reencontramos em cada renascimento, tal
que toda destruição, da qual ela se serve para transformar o como a tínhamos antes de morrer. Sempre o mesmo ritmo. As-
ser, destruindo a cada passo o velho para reconstruir o novo sim, a consciência emerge e se aprofunda, dos céus aos abismos
sobre suas cinzas. No fundo desse respiro destrutivo-criador e ao contrário, oscilando entre dois mundos opostos para reali-
sente-se a imanência de Deus, continuamente presente e cria- zar trabalhos complementares. Nada pode anular-se em subs-
dor, e chega-se ao contato sensível com o Seu poder, pois é tância. Tudo continua sempre a viver e a funcionar, a trabalhar
este que nos plasma diretamente. Só quem o experimentou e a amadurecer. Não é a memória o único índice de uma ativi-
pode dizer quanto tudo isto seja tremendo. dade cumprida no passado. Quando a possuímos, ela é tão im-
Assim, a alma caminha entre os extremos da alegria e da perfeita, que bem pouco prova com fatos. Como se pode pre-
dor. No fim de cada volume pode-se dizer que, para o autor, ve- tender, então, que a falta de uma lembrança exata constitua uma
rifica-se uma dessas destruições e que cada novo volume ex- prova contra a nossa existência em vidas precedentes? Como se
prime uma sua nova ressurreição e elevação para mais altos pode pretender que, além de uma lembrança intuitiva, que per-
planos. Atrás da exposição conceptual dos mais diversos temas, manece mesmo para quem não saiba percebê-la no espírito,
esconde-se esse fenômeno de sua evolução espiritual, com a também se conserve uma lembrança cerebral e sensória, quando
qual seus escritos estão estreitamente ligados e da qual são con- cérebro e órgãos sensórios foram destruídos?
sequência. De modo que, na apresentação dos mais variados É surpreendente observar que enorme trabalho é feito nos
problemas gerais, existe o fenômeno real da sua particular me- períodos de sono e de repouso, na fase negativa, na inconsciên-
tamorfose, que o leva de um plano biológico para outro, mais cia, e como desta ressurgimos mudados. Deve haver, também
alto. Aqui, a vida está realmente trabalhando, aplicando as suas nisto, um outro ritmo de duas atividades opostas. Enquanto o eu
leis a um caso particular, para produzir um tipo biológico con- fica imerso no esforço de lutar e experimentar, a Lei o guia de
forme os seus fins. Desse modo, nos encontramos em face de longe, deixando-o com o seu cansaço. Mas, quando percorreu
um fenômeno que a vontade humana de terceiros não pode des- essa primeira fase do fenômeno criador, então é ele que se
locar, por isso qualquer dificuldade interposta para a divulgação abandona à Lei, que automaticamente realiza nele, por sua vez,
destes livros ou mesmo a sua completa destruição consumaria o trabalho de assimilação e maturação. Assim, ritmicamente,
um dano para os leitores, mas não para o autor, que trabalha agem, em posições inversas e com funções complementares, a
sobretudo em contato com as leis da vida. Quando ele pode di- livre iniciativa de cada um e o sistema de princípios e forças da
zer a Deus que fez todo o possível para cumprir a sua missão, Lei. A atividade consciente do primeiro dá livremente um im-
não pode ser considerado responsável pelo restante. Ninguém pulso inicial, que deve ser seu, como suas serão as consequên-
pode desfazer o fato de haver sacrificado a sua vida para esse cias. A Lei recolhe depois esse impulso e automaticamente o
escopo e, com isto, ter cumprido a sua tarefa, o que significa desenvolve, fazendo que o indivíduo, ao despertar, reencontre-o
realizar a sua transformação biológica e alcançar, independen- purificado das escórias e do supérfluo, destilado no essencial, e
temente de todo ser humano, a mais alta finalidade da vida. Não possa retomar, com esse novo material, feito seu e elaborado
importa se isto, mais do que a transformação do ambiente, para ele pela Lei, o seu novo caminho, sobre essas novas bases
constitui a evolução do eu, pois o que realmente vale, mais do e com esses novos meios. Assim, progredimos em parte pelo
que a realização alcançada, é o esforço levado a efeito. O su- nosso impulso, e em parte arrastados pelas suas consequências.
cesso exterior, pode-se dizer, será um produto secundário. Na fase de inconsciência, continua-se e caminha-se do mesmo
Não haja estranheza com esses desfazimentos de consciên- modo, porque é a Lei que então intervém para maturar os ger-
cia. Ela nunca é um estado fixo, estável, definitivo, mas sim mes e as causas que nós mesmos provocamos. O ofuscamento,
uma flutuação contínua de formações em evolução. Geralmen- pois, faz parte do fenômeno da consciência e do seu desenvol-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 19
vimento, como a sombra faz parte do fenômeno da luz. Isto dado pela alta frequência, e persegue como em corrida laborio-
porque o ser é composto do ser e não-ser, e não é ser enquanto sa esse primeiro vertiginoso turbilhonar do pensamento. Essa
é não-ser, e ao contrário. O existir é dado justamente por essas ascendência conceptual não assume a mesma forma; algumas
oscilações entre as duas fases opostas do existir. O nada não é vezes é racional e científica, outras vezes é mística. Assim
mais que uma posição reversa, e as duas posições se condicio- emergem as soluções dos mais variados problemas de qualquer
nam uma à outra. Sem o ser, não pode existir o não-ser, assim gênero, conforme o que foi proposto ao espírito nos ciclos pre-
como, sem o não-ser, não pode existir o ser. cedentes. Influem ainda as estações. O outono, em nosso caso,
Com isto, temos orientado o nosso caso em relação à feno- está mais adaptado aos trabalhos racionais, como a primavera o
menologia universal, explicando assim, sobre bases amplas, o é para a inspiração mística, culminando no período pascal. O
fenômeno acima exposto de expansão e contração de consciên- verão ardente de sol é negativo para esses estados de alma, que,
cia e o seu andamento ondulatório, que estamos estudando. Es- similarmente, refogem de dia para florir à tarde, até alta noite.
sa oscilação da personalidade se enquadra e se liga com o fun- Dessa maneira, a pressão interior se faz sempre mais inten-
cionamento universal e nele encontra o seu significado e a sua sa. Ela quer explodir, tomando a forma de uma exposição orgâ-
justificação. Esse exame nos prova que as quedas de consciên- nica completa no seu campo. Cada conceito tem uma face e
cia são aparentes e que, na realidade, na profundeza do esface- uma voz. O leitor pode imaginar uma maré subindo de um oce-
lamento, depois da destruição do estado de graça, a consciência ano feito pelas imensas massas de vultos e pelo estrépito das in-
fica igualmente viva e operante, mas em uma posição diversa. finitas vozes da vida. Estas começam a falar submissas como o
Trata-se de um fenômeno evolutivo progressivo, com uma res- murmúrio da floresta, formado pelo sussurro de infinitos seres
piração rítmica, oscilando entre expansão e contração, do alto que despertam ao sol da primavera. E, verdadeiramente, o espí-
ao baixo potencial e ao contrário. O que é esforço e atividade rito tem a sensação de ser tocado por uma radiação que ilumina,
de elevação se equilibra, compensando-se com um correspon- aquece e vivifica. Mas, gradualmente, aquele murmúrio se tor-
dente repouso ou inércia. Não devemos atemorizar-nos com es- na voz possante, e a radiação que aquece se faz abrasadora. Tu-
sas quedas de consciência, pois sabemos que, depois, ela se re- do, pouco a pouco, se agiganta, se levanta, se põe adiante, im-
constitui sempre mais no alto. O eu não pode morrer senão em ponente e ameaçador. A ânsia para seguir, para tudo agarrar,
sentido relativo, como dada forma de consciência, e isto somen- para estreitá-lo e mantê-lo em seu poder, se torna tensão, em
te para ressurgir em uma outra. As noites do eu são os dias de que o espírito parece despedaçar-se. Esse é o momento crítico
uma outra sua vida subterrânea, que também faz parte da sua da ascensão e da transformação de potencialidade. O ser o su-
vida maior, que compreende essas oscilações do consciente ao pera com angústia, sentindo-se preso e envolvido por um turbi-
inconsciente. Não temamos. Reencontraremos sempre em nós o lhão de forças, como por um furacão que tudo abala. A consci-
fruto do nosso passado. Quando um trabalho nos deixa desfale- ência é perturbadora, porque o centro vital se desloca para um
cidos, abandonemo-nos confiantes à Lei. Ela então trabalhará plano mais alto. Ela sente-se presa no turbilhão de uma vida
por nós. É a sua vez. Ela é sábia e boa, é a expressão de Deus. sempre mais intensa. É uma sensação de vertigem e de ame-
drontamento, como cair em um abismo de fogo.
IV. UM CASO VIVIDO Superado esse ponto crítico, o eu reencontra-se em um pla-
no mais alto, onde não há mais a agitação das mutações, e sim
Depois de haver completado a crítica poliédrica do fenôme- apenas a grande alma da alta potencialidade. Então, o eu toma
no, concluamos com a descrição das sensações que produz no plena posse do seu novo estado e se reconhece qual era no cu-
sujeito. Quando se avizinha a fase da retomada de alta potencia- me do ciclo precedente, reencontrando a sua potência e lançan-
lidade, ele é advertido como por um longínquo ribombar de do-se com ímpeto e alegria no vórtice da criação. A vertigem
trovão no meio de uma calmaria que prenuncia tempestade. do estado de transição é superada, e todo problema é encarado e
Aquele ribombar lhe diz que iniciou-se um trabalho interior, resolvido por visão, com um novo sentido da verdade, que dá a
passando da fase latente no inconsciente para sua fase atual no orientação na organicidade universal e em cada problema parti-
consciente Há nisto qualquer coisa que se assemelha ao desper- cular. A consciência encara, sem mais tremer, o abismo do infi-
tar da vida na primavera, depois do seu sono de inverno, isto é, nito, que é agora o seu elemento natural, com o qual está em
um ―quid‖ de apocalíptico, que se sente surgir no relativo, vin- plena sintonia. Sente-se senhora dele e, lançando-se em voo nes-
do do absoluto. Percebe-se, então, que alguma coisa age pro- sa nova atmosfera, como um ser aéreo destacado da terra, en-
fundamente em nós, proveniente das fontes do ser. É uma gêne- contra a calma potente das altas velocidades. Surge então a ex-
se, uma criação, uma nova manifestação divina que vem à luz. posição conceptual, calma e alegre, límpida e vibrante, por es-
Sente-se, então, que a vida, e nela o nosso pobre ser, é um canal crito, nos profundos silêncios da noite. Estando tudo já completo
através do qual o pensamento divino abre o caminho para a sua na elaboração interior, a redação torna-se simples fato mecânico.
expressão, e que o nosso pobre eu é um instrumento de algo Tudo se reduz a um registro de visões conceptuais. Para estas, a
vertiginoso, que o transcende e quer operar através dele. E eis preparação cultural não serve, nem os livros humanos, porque se
que a mente se torna túrgida de conceitos. É uma floração inte- lê somente no grande livro da vida, onde está escrito o pensa-
rior, intuitiva, irresistível, não preparada, não buscada. Acumu- mento de Deus. Trata-se de um trabalho absolutamente livre, ao
la-se assim, pouco a pouco, um punhado de pensamentos, em qual são inaplicáveis as normas dos trabalhos comuns, obrigató-
que navegam visões, problemas, soluções e conexões com o to- rios e com pagamento. A maior obra criadora não se pode fazer
do, em uma orquestração sempre mais vasta e complexa. As- senão indo além dos meios e das leis humanas.
sim, os simples motivos iniciais se dilatam, entrelaçando-se em Enquanto, assim, o organismo espiritual se inflama, o orga-
uma completa organicidade. Os germes conceptuais se esboçam nismo físico diminui o seu metabolismo e estaciona em calma,
e vêm a desabrochar quais gemas e flores. O pensamento se di- num regime de vida reduzido, fugindo do alimento. Então o so-
ferencia e se desenvolve como na multiplicação celular do em- no, mais do que uma continuação da maturação do pensamento,
brião e assim, crescendo, faz pressão de dentro para manifestar- representa para ele a preparação do pensamento que é registra-
se à luz, como feto maduro que quer nascer. Esse é o período de do no estado de vigília. Uma vez formado tal estado de alma
mais intenso e cansativo trabalho. A consciência lança-se ávida em plena atividade, as distrações exteriores não têm o poder de
sobre todos estes conceitos para registrá-los, mas eles ainda lhe paralisá-lo; ainda que tormentosas, elas podem, quando muito,
fogem na sua integridade. As visões são ainda fragmentárias e retardar o parto espiritual, mas não impedi-lo. Assim nascem os
evanescentes. A mente não tem ainda o poder da penetração, volumes, um depois do outro. O espírito arde, mas não se
20 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
queima. Sabe que o instante é precioso e foge ao corpo; sabe da sua fase orgânica à psíquica. Parece que, em certo grau de
que, se produzir, obedecendo os fins da vida como à própria maturidade biológica, o resultado do funcionamento do orga-
mãe, então cumpre a sua missão, que o valoriza, embora o seu nismo físico e da sua experimentação registrada na psique vem
organismo físico, no incêndio, naturalmente se gaste. Mas não a tornar-se um filho adulto, avançado demais para poder ainda
importa. Esse torna-se para ele sempre mais uma escória a ser exprimir-se nas formas da animalidade. Então, o espírito, sen-
abandonada. O corpo não segue completamente essas tensões, e tindo no corpo mais uma prisão do que uma casa, tenta trans-
as exigências materiais da vida aumentam o seu quotidiano cendê-lo com suas manifestações supernormais, transbordando
tormento. Enquanto o principal ator desse drama se sente enle- das limitadas vias de percepção sensória, até ao ponto de quase
vado em um trabalho conceptual que se torna prece e mística libertar-se dele, destacando-se do seu velho suporte corpóreo.
união com Deus, o homem comum, sem nada compreender, en- Eis o que acontece quando o ser, percorrida toda a fase terrena
frenta-o com a sua psicologia, exercendo pressão, conforme as da animalidade humana, se apresenta no limiar de mais altos
leis do seu plano biológico, no sentido de fazê-lo agir na forma planos de existência. As oscilações observadas na personalida-
de luta pela vida. Exercício útil somente para as finalidades de de não são mais que periódicas, rítmicas e graduais oscilações
uma seleção animal. Pode-se imaginar como essa atividade se de adaptação a novas posições biológicas. Assim se explica o
torna sem sentido para ele, enquanto é bem necessária para fa- andamento ondulatório e progressivo do transformismo evolu-
zer evoluir quem vive no plano normal. No entanto o sujeito tivo que examinamos. Dessa maneira, compreende-se como a
deve pensar em se defender de todos, deve escutar os ociosos, vida se retrai dos vértices alcançados, porém descendo a míni-
não se deixar roubar, vigiar as astúcias dos outros, trabalhar pa- mos cada vez menos baixos, para se lançar em busca de vértices
ra viver, consumir as suas energias para opor resistência a quem sempre mais altos, depois de se ter apoderado, através desses
está cheio de forças porque não tem nada para fazer, deve lutar percursos, das posições atravessadas. Tais são as leis da vida, e
na vida banal de todos. Mas, nem por isto, pode apagar-se cada um as encontra a seu tempo, quando atinge esta fase. Nos
aquela atmosfera de incêndio. Enquanto algum novo motivo se grandes momentos da vida, nas passagens críticas, é o ritmo da
movimenta em turbilhão, arrastando a consciência aturdida, di- Lei que nos aferra, sem que nada possamos fazer, senão segui-
ante de improvisos, abismais rasgos do infinito, escancarados e la. Assim, o nascimento e a morte, a fome e o amor, o cresci-
cegantes, também a pequena ofensa do vizinho, que arranha a mento físico e a ascensão espiritual têm o seu ritmo e seus ciclos
epiderme, pode tomar, naquele estado de hipersensibilidade, a fatais, nos quais não se pode mandar. O nosso livre arbítrio é
potência de um cataclismo. O centro da vida, para o sujeito, es- uma pequena liberdade enquadrada em uma lei absoluta porém
tá deslocado, e o normal acha que se encontra em frente de um boa, que nos comanda somente para nos impor o nosso bem,
fraco inepto, fácil de se vencer Como não se aproveitar desse pois somos ignorantes e não sabemos encontrá-lo. Por sermos
grato convite para dele tirar vantagem? Para quem está nesses livres, devemos sempre viver todos no âmbito da lei de Deus.
estados especiais, o espírito está no céu, o corpo ainda na Terra, O que acontece ao corpo nessas transformações biológicas é
com os pés no lodo. A posição é cheia de riscos, e o contraste fácil imaginar. Mas, pela lei de equilíbrio e justiça, é preciso
pode tornar-se sofrimento agudo. Mas não há outro caminho pagar a alegria da nova ressurreição no espírito com a dor de
para quem quer verdadeiramente progredir na Terra. uma agonia de morte no corpo. Porém, se o corpo, embaixo,
Da descrição acima exposta compreende-se que o fenômeno grita desesperado a sua lenta consumação, no alto o espírito
inspirativo não é tão simples como sói ser considerado. Já o ha- canta triunfante a sua maior vida. A transformação deve alcan-
via enfrentado e descrito, em meu caso vivido, no volume As çar o ponto em que se tornará secundário o que hoje, para o es-
Noúres. E, longe de crer haver conseguido com isto esgotar a pírito humano, é o principal meio de sua expressão, isto é o
complexa questão, quis agora voltar a ela com uma diversa ma- corpo. Os atuais meios sensórios devem ser superados por uma
turidade, para redescobrir novos aspectos. Era necessário, por sensibilização que abrirá novos canais perceptivos e, com ela, a
isto, ter antes separado o problema da personalidade humana e via para novos contatos. Mas as leis da vida são benignas tam-
muitos outros com ele conexos. Como se vê, estamos longe da- bém para o corpo, por isto nunca forçam o fenômeno, amadure-
quele fenômeno que se chama ultrafania, com que se crê poder cem sem romper, pois que o fim é transformar para criar, e não
simplesmente reduzi-lo a uma receptividade passiva do sujeito para matar. As forças da vida sabem operar essas profundas
em transe, recebendo o pensamento de uma entidade transmis- elaborações, que do espírito penetram até no metabolismo celu-
sora. Em nosso caso, não há nenhum transe ou passividade, mas lar e transformam a composição química e atômica, atuando
sim um estado de hiperconsciência e hiperatividade espiritual, harmonicamente em todo o complexo orgânico, do polo-
exclusivamente ao qual se deve a capacidade do sujeito para espírito ao polo-matéria, estreitamente conexos e comunicantes.
elevar-se a mais altos planos de consciência e pôr-se em comu- Se o espírito, na sua mais profunda substância, é redutível a
nicação com correntes de pensamento situadas em dimensões uma estrutura cinética, como também o são o organismo físico
superiores à normal humana. Não se trata, pois, de um contato e a matéria que o compõe, encontramos naquela fundamental
esporádico, limitado a poucos conceitos morais, mas de um estrutura, que é o denominador comum ao qual se pode reduzir
contato com retorno periódico, para registrar sistematicamente o ser de um polo a outro, a possibilidade do mencionado trans-
uma visão orgânica do universo, que abraça e orienta todo o sa- formismo evolutivo. Assim se concebe como, através dessas
ber humano. O fenômeno ultrafânico, que alguns querem en- oscilações progressivas, possa formar-se o organismo espiritu-
contrar neste caso, não é mais que uma particularidade. Na rea- al, até ao ponto de, no fim, poder reger-se com vida autônoma,
lidade, trata-se de coisa bem diferente, que escapa das órbitas independente de uma sua expressão física. Entretanto o corpo é
do campo espírita das comunicações mediúnicas. Trata-se de veículo necessário aos fins dessa elaboração, qual instrumento
catarse biológica, fenômeno imenso que toca toda a vida, do de experimentação no denso ambiente terrestre. Todavia a sua
seu polo físico ao seu polo espírito, fenômeno do qual médiuns energia vital é absorvida em favor do espírito. Em outros ter-
e ultrafanos pouco se ocupam e que, pelos seus resultados, inte- mos, a íntima atividade cinética constitutiva se desloca do cor-
ressa mais à ciência, à religião e à filosofia do que à ultrafania. po para o espírito, abrandando-se no primeiro polo e tornando-
Para o sujeito, ele não termina na mediunidade, mas no misti- se mais ardente no segundo. É necessário que a reconstituição
cismo, no caminho da união com Deus. O que pretende, de fato, vital venha a ser simultânea e paralela, de modo que, no con-
a vida alcançar através desse fenômeno? Parece que o espírito, junto, não haja nenhuma destruição de vida, mas somente um
esse novo imponderável organismo, centelha de Deus, na qual deslocamento de centro para o polo-espírito, ao qual pertence o
Ele se manifesta através da evolução humana, quer continuá-la porvir, uma vez que essa é a direção da evolução.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 21
Esta íntima análise do fenômeno explica o verdadeiro sig- Concluamos o exame do nosso caso vivido, observando as
nificado da experiência não só do místico que, na renúncia ao sensações do sujeito no período da descida. Quando o estado de
mundo, sobe para Deus, mas também do gênio que, na alta graça se prolongou o bastante para permitir um registro orgânico,
tensão do espírito, revela os mistérios do ser. Neste sentido, a como a produção de um volume ou parte dele, conforme o traba-
virtude é verdadeiramente a morte do eu inferior e, por isto, lho a cumprir e o grau de resistência do indivíduo, então a natu-
repugna; o erro está em concebê-la somente neste seu aspecto reza, econômica e prudente, retrocede para os planos evolutivos
negativo, enquanto o seu valor e sua alegria estão no seu as- inferiores, o potencial desce, a frequência diminui e a vida se re-
pecto positivo e criador de expansão vital. É justo que o eu se equilibra mais embaixo. Extingue-se então a centelha do pensa-
revolte contra uma virtude somente negativa, que destrói em- mento; tudo enlanguesce e se precipita, numa agonia lenta, em
baixo, sem construir no alto; tudo o que destrói sem criar é um abatimento de morte. A vida se retrai, caminhando para trás.
contra a lei de Deus. Jamais é lícito matar, nem mesmo o eu Reaviva-se a obtusa razão, míope e analítica. A base da descida
inferior, senão como condição para a construção do eu superi- involutiva é dolorosa para o espírito, porque é um regresso ao li-
or; a morte não é admitida pela Lei senão como condição de mite, um novo encarceramento no contingente de que antes tinha
um paralelo renascimento. Nenhuma dor é admitida senão para se evadido, que volta a ser senhor. É uma descida de todo o ser
conquistar uma alegria, nenhum limite senão para alcançar na dura realidade da matéria. Fibra por fibra, vibrações mais
uma expansão. A virtude apenas negativa, que destrói sem cri- grosseiras, mais desarmônicas e violentas, o penetram, ferem-no,
ar, transformada em perseguição e ódio à vida, é um erro bio- sufocam-no. Se tão alegre foi a sensação da subida, muito dolo-
lógico que se deve pagar. Sadia e salutar é somente a virtude rosa é aquela de descer. Tais são, no ser, as sensações, os resulta-
que, enquanto sufoca uma parte do ser, desenvolve-lhe uma dos experimentais do movimento vertical ao longo das dimen-
outra, melhor e mais alta. A vida é utilitária e econômica; tudo sões dos vários planos evolutivos, seja em direção evolutiva, su-
deve produzir um valor no bem, que é uma alegria, e não uma bindo, seja em direção involutiva, descendo. Domina sempre um
demolição no mal e na dor. Ai de quem se mata com a renún- sentido de imensa tempestade em que turbilhonam, levantadas
cia sem saber ressuscitar! A virtude sadia e positiva é constru- desde as profundezas, as forças da vida.
tiva e se inflama no espírito, deixando cair em esquecimento Este é o Getsêmane de quem aqui escreve. Na tempestade,
os instintos inferiores, ao invés de se encarniçar contra eles e subir. Cada volume é um degrau, é uma das séries salientes das
provocar, assim, uma reação cujo resultado é reforçá-los. Pri- visões que parecem querer dar a escalada ao céu, mundo do
meiro construir e, depois, deixar cair o resto, pois que os cons- qual é, depois, dolorosamente necessário precipitar-se na Terra.
trutores nunca são destruidores. Tudo o que toma o aspecto de No fim de cada sondagem no mistério, a personalidade cai e se
perseguição, ainda que sob a veste de ódio ao mal, é mal. A desfaz, a fim de reconstruir-se para a seguinte, e assim por di-
vida deve ser incitada a elevar-se, e nunca agredida para ser ante. Andando como as ondas do mar, como quer a Lei; fatal-
suprimida. Caso contrário, ela se revolta, se adapta à força por mente, como quer a maturidade, quem sabe há quanto tempo
meio da mentira, mutila-se, mas não cede, porque ela não pode preparada no tempo pelo próprio destino. A personalidade cai e
abandonar uma sua forma enquanto não possuir outra melhor. se desfaz. No entanto é preciso saber ficar senhor do fenômeno
É um erro muito difundido esse de ver sempre o lado-morte e não ser arrastado por ele; é necessário não perder-se na queda
e permanecer impassível externamente, para que os outros não
no polo inferior, e nunca o lado-vida no superior. Daí os escas-
vejam; é indispensável saber continuar a vida normal de traba-
sos resultados espirituais de tanta prática de virtudes e renún-
lho e de relações sociais com todos, pois que bem se sabe que
cias. Ao contrário, o homem que se reconstrói no espírito vê
eles não podem ter piedade para com o que não podem compre-
tudo positivo, não fala de renúncia, mas sempre de conquista.
ender. Tudo isto implica uma força de espírito mais que nor-
Assim, por exemplo, os três votos franciscanos: pobreza, cas-
mal, contudo se está adestrado para bem mais. Ao despertar na
tidade e obediência, perdem o sentido negativo para adquirir o
Terra, imediatamente é reencontrada a sua infernal e desapie-
positivo. Não são mais: não-riqueza, não-amor e não-poder,
dada realidade e, sem um único conforto em tanto esforço,
mas riqueza em Deus, amor em Deus e poder em Deus. Tudo
apresenta-se a dura face do contingente, a preocupação das ne-
depende do fato de encararmos as coisas mais do ponto de vis-
cessidades materiais, o desprezo de quem reina em seu plano,
ta humano que do super-humano, sentindo na virtude a perda
onde é senhor. É preciso, então, ouvir o apelido de louco e sen-
dos bens e alegrias terrenas, às quais a nossa mente continua tir repercutir no coração, em cada pensamento e ato do homem,
sempre a volver, em vez de olhar mais no alto, para sentir a o grito: ―Não é verdade‖, porque somente a sua suja realidade
posse dos bens e alegrias super-humanas, no espírito. A nossa na matéria, como ele quer, passa por verdadeira. Então, com o
alma fica sempre na Terra, e nós devemos sair dela. É preciso olhar invocador, ainda ofuscado pelas visões do espírito, é pre-
cuidar de se firmar no mais alto, antes de se mutilar embaixo. ciso olhar para as pequenas coisas terrenas, que quereriam para
Esse comportamento nos tira a vida sem no-la devolver, quan- elas toda a alma. Sente-se redobrado o peso da luta pela vida, a
do ela deve expandir-se, e não se contrair. Não devemos decla- sua estupidez para quem, superados os seus fins de seleção, não
rar-nos pobres, olhando sempre para a riqueza do mundo, mas sente mais o seu significado. Sofre-se, então, cego e mudo, sem
sim ricos, olhando para a riqueza de Deus. É preciso ir ao en- a grande compensação do espírito, que antes fugia da Terra, vi-
contro da vida, e não contra ela; viver em sentido positivo, e torioso na sua evasão. Ele, agora, agoniza sozinho, num mundo
não retirar-se em sentido negativo. A verdadeira virtude, antes que lhe é estranho. As portas do céu estão fechadas. As pontes
de ser renuncia, é conquista; se dela fazemos uma renúncia para o retorno lá em cima parecem cortadas para sempre, sem
sem conquista, uma privação que empobrece em vez de uma esperança. O fenômeno está cansado; o ciclo está ligado à sua
aquisição que enriquece, então a tornamos uma força maléfica descida, que agora é sua lei; os impulsos ascensionais estão es-
antivital. De tudo isso se compreendera o caráter ativo e posi- gotados. Não há mais força para subir. A hora da graça passou,
tivo de quem evolui. A ação negativa da perseguição e destrui- e o céu ficou lá em cima, no alto, longe, apagado, inatingível.
ção do eu inferior lhe interessa muito menos do que a ação po- Tudo parece acabado para sempre. No entanto deixou-se lá
sitiva da criação do eu superior. Quem evolui, se expande. A em cima, no céu, um farrapo sanguinolento de si mesmo e sen-
renúncia, mais do que virtude como luz, é a sombra da virtude. tiu-se a voz de outros mundos, dos quais, por um pouco, se go-
É certo que o negativo é condição do positivo, que a conquista zou a cidadania. Isto é uma ponte, um liame, uma chamada.
começa onde acaba a renúncia e a alegria inicia onde termina a Despontará a ascensão. Tudo será árduo, mas o ser está deses-
dor. Mas, nem por isto, deve-se fazer do meio o fim. peradamente ligado à batalha em que se tempera e se revela,
22 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
onde está a vida. Mastiga-se então, com raiva, a glória que o Temos assim, como sempre, mas nunca viva como hoje, a luta
mundo queria dar como compensação. O destino sopra tremen- entre o novo e o velho: uma quantidade de formas petrificadas,
do sobre os cumes, e, entre as tempestades, sente-se a morte. somente explicáveis historicamente, e um contínuo trabalho de
Mas que importa a dor, quando ela é criação e nos leva ao céu? desgaste operado, como sempre, pelas ideias novas, constituindo
Que importa sofrer? É preciso criar, e a vida vale só enquanto um estado de formação de novas concepções da vida.
se cria. Urge lançar a semente. A vida dá a cada um o que deve Observemos o choque entre as duas forças antagônicas em
cumprir, e ai de quem trai uma missão! Semear na tempestade, seu campo de batalha, que é a consciência humana em evolu-
para aqueles que virão! Se a dor bate às nossas portas, é para ção; observemos o dinamismo da sua transformação de uma na
que o espírito expeça suas centelhas. Este é o drama. Quem outra, esse estranho paralelismo de impulsos ativos e recalci-
chegou lá em cima, no céu, deve dar tudo. Para ele, não há pie- trantes, que, mesmo lutando, se abraçam, porque uma é filha e a
dade, porque a piedade o faria fraco e vil; não há ajuda, porque outra é mãe. Quem tem ouvidos ouve o potente martelar da vi-
esta o tornaria indolente e inepto. Que ele siga para a frente, ta- da, que pulsa para explodir das incrustações do passado que a
citurno, solitário, desesperado. É necessário que ele sofra para envolvem, sente o frêmito da gênese na superação. Ainda que
que a sua alma cante. O trabalho deve ser o seu único refúgio; a uma dada civilização caia em ruínas, a ―civilização‖ nunca
bondade, a sua única vingança; a criação, a sua libertação. morre, porque, como a vida, ela renasce sempre alhures e mai-
or. E, se hoje triunfa a destruição em todo campo material e es-
V. A ECONOMIA SUPERNORMAL piritual, é porque a vida está lançando os fundamentos de mais
altas construções. Aos olhos superficiais, tudo parece caos,
As diversas verdades do autor, sucessivamente apercebidas porque produtos de desfazimento e germes vitais estão materi-
nas suas oscilações de consciência, não são um produto subjeti- almente misturados. Mas cada um desses tem a sua lei e a se-
vo, pois têm uma sua existência própria objetiva, independente gue, sem que possa haver confusão. Se, na superfície, a maio-
dele, que mais não faz senão vê-las segundo suas mutáveis ca- ria, tremendo, enxerga ruína, quem sente profundamente vê res-
pacidades. Tais realidades pertencem simplesmente a planos surreição e regozija-se, pois, em seu coração. A sua psicologia
evolutivos diversos, e cada um vê aquela que pode, conforme é ―a priori‖, enquanto a comum é ―a posteriori‖ e treme depois,
as condições de sua receptividade. Qual é, então, a verdade e não antes do desastre. Antes da última guerra poucos temiam,
verdadeira? Cada uma é verdadeira apenas relativamente a cada e temem hoje por psicose de consequência. Tremer depois é
um. A verdade absoluta é outra coisa e, mais que a soma, deve trabalho inútil. Quem, ao contrário, sente e sabe que esta é a ho-
ser a fusão orgânica de todas as possíveis verdades relativas aos ra decisiva para os futuros milênios, em vez de ensandecer para
infinitos pontos de vista, dados pelas infinitas posições do ser. esquecer ou perder-se no pessimismo, colabora com as forças
Naturalmente, o absoluto está além do concebível humano, onde da vida, que querem a salvação de todos. Ele bem sabe que não
não podem permanecer senão os fragmentos e aproximações se pode parar a vida e que ela sempre venceu todas as guerras.
progressivas dados pelo grau relativo da evolução. Que os ho- O homem comum, aturdido pela voz de mil verdades diversas,
mens pertençam a verdades diversas, segundo a natureza de ca- em que tantos exprimem a si mesmos, se confunde. Ele é sensó-
da um, é um fato demonstrado todos os dias pelos seus conflitos, rio e, para ele, a verdade é o que faz mais barulho, atingindo
que sucedem todas as vezes que um homem, com a sua verdade, principalmente os seus sentidos. O verdadeiro, então, lhe parece
se põe em confronto com o homem de uma outra verdade. E, se inatingível, porque ele percebe somente um redemoinho caótico
há formação de grupos humanos, deve-se isto à identidade e fi- de contradições e, assim, vive de imitações, sem saber pensar
nalidade de verdades, o que significa natureza e plano evolutivo por si mesmo. Mas a substância do vórtice é dada por leis sá-
iguais ou afins. Cada um se reagrupa sempre com os seus seme- bias, pelas quais cada um bem sabe alcançar organicamente a
lhantes e, dessa maneira, revela o seu tipo biológico. O indiví- sua meta. Que visão titânica representa, ao contrário, o destino
duo comum não tem de fato as possibilidades dadas pela perso- humano, assim marcado na evolução das leis da vida! As ver-
nalidade oscilante e se mantém, com escassas variantes, mais ou dades, que parecem utopia para as consciências ainda não ama-
menos na mesma verdade, sem mudar de tipo biológico. durecidas para isso, existem e, amanhã, serão de todos.
Uma boa parte dos homens atuais representa uma verdade Para fazer compreender o que hoje parece utopia, isto é, as
que não é aquela humana involuída, inferior e de completa ani- formas de vida mais elevadas, começamos por descrever sua
malidade, nem a do evoluído do porvir. Muitos se encontram economia, que aí regula a distribuição dos meios e forças e pre-
numa posição mediana, em que os dois extremos aparecem co- side ao abastecimento para a vida material sentida por todos.
mo que à margem, um embaixo e o outro no alto. Assim, o ho- Confrontaremos essa nova economia, completamente diferente,
mem se debate em uma fase de transição, na qual, lentamente, com a nossa atual. Observando as duas economias, veremos
vai sendo realizada por evolução a passagem de um tipo bioló- como possa advir a passagem de uma para a outra. Presumimos
gico e relativa verdade para outro tipo biológico e verdades su- o conhecimento do capítulo sobre a Divina Providência, desen-
periores, tendendo a modelos mais elevados. A característica da volvido no volume precedente, A Nova Civilização do Terceiro
hora atual é encontrar-se a cavaleiro de duas civilizações, uma Milênio, argumento que aqui retomaremos para levá-lo mais
que morre e outra que nasce. Disto deriva um contraste entre adiante. Subindo evolutivamente, aparece à consciência uma
elementos em esfacelamento e outros em formação, efeito da verdade mais alta, na qual a economia se revela completamente
presença de uma verdade que está para submergir no subconsci- diversa da normal. Na Terra, os bens, segundo a verdade inferi-
ente e da visão de uma outra verdade, que alvorece no super- or, aparecem limitados, de modo a tornar necessária e justificar
consciente e representa a formação da nova consciência do por- uma luta contínua, sem piedade, para procurá-los. Subindo, vê-
vir. Hora de grande fervor na obra criadora da vida. As duas po- se, ao contrário, que, na realidade, a limitação não existe para o
sições estão se defrontando e se desafiam. A velha verdade luta homem, senão no ambiente da sua forma mental e modo de
para não morrer, forte na posição já conquistada, mas corroída agir. No universo, os bens são infinitos e sempre mais livre-
pelos séculos, correspondendo cada vez menos às novas e sem- mente acessíveis à medida que o homem progride. Na sabedo-
pre mais exigentes necessidades do espírito, portanto biologica- ria da Lei, que tudo rege, é necessário que, antes, o homem
mente condenada a desaparecer. A jovem verdade luta para con- evolua e dê prova, com o conhecimento e sabedoria consequen-
quistar a vida na consciência; é jovem e nua, mas forte e com te, de ser capaz de fazer bom uso das coisas e do poder, sem o
todos os recursos de sua juventude, fresca e plena de ímpetos, que ele não é admitido à sua livre disponibilidade, o que pode-
destinada pela lei da vida a vencer, pelo seu direito de existir. ria não ser-lhe útil, mas sim prejudicá-lo. A um selvagem, uma
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 23
lei previdente não pode conceder senão os meios mínimos pro- nos com ela, pois sua vontade nos quer salvos, livres e felizes.
porcionados à sua inconsciência, se não se quiser que ele, com Como nos ama Deus, que tudo criou, através dela! Como se
a sua psicologia, destrua tudo, inclusive a si mesmo. E o perigo atingiria a perfeição, se o homem, com suas inauditas loucu-
da nossa atual fase de transição é justamente este, dado por uma ras, retrocedendo ao mal e à dor, embora não consiga substan-
crescente disponibilidade dos meios proporcionados pela ciên- cialmente destruir nada, não fosse constrangido por forças in-
cia, porém colocados nas mãos de um homem que ainda não é visíveis a avançar para o bem e a alegria? Que ímpeto sente
sensato o bastante para saber usá-los bem. Quanto mais o ho- quem compreendeu a sabedoria e a bondade dessa lei, e que
mem é involuído, tanto mais todo poder deve permanecer se- paixão de se harmonizar com os seus ditames. Isto também se
pultado pela sua ignorância; quanto mais for feroz, tanto mais pode exprimir na frase: ―Fazer a vontade de Deus!‖. Quantos
será pobre de meios. Tudo, saúde ou doença, assim como a mi- cuidados maternos nos vêm prodigalizados a cada momento,
séria, antes que efeito externo, é causa situada dentro de nós. sem que os vejamos nem os compreendamos! Quantas catás-
Dessa forma, quanto mais se evolui, tanto menos se faz sentir o trofes nos são poupadas a cada passo; com que ritmo de com-
perigo do mau uso e maiores podem ser os poderes concedidos. pensação, com que harmonia de equilíbrios são musicalmente
Então a riqueza se faz sempre menos egoísta e exclusivista, coordenados para mais altos e alegres fins, todas as dissonân-
mais universal e gratuita. O limite para tão cobiçadas posses, cias e os conflitos da vida! Quantos auxílios não notados, que
pelas quais o mundo tanto se atormenta hoje, é dado exatamen- economia para nós, poupando-nos as forças para trabalho
te por nós. Somos nós que, com o nosso egoísmo, fazemos a mais útil! Se há um esbanjamento para a reprodução, que
nossa pobreza. Quem compreendeu isto, compreendeu também chama os seres para o banquete nupcial, ou para a luta, que
a verdade superior, que ao involuído parece um absurdo, isto é, quer selecionar o melhor, digno do seu mundo animal, é por-
que a riqueza se conquista não fazendo ricos a si mesmos e po- que isto representa as vias mestras nas quais a vida caminha,
bres aos outros, mas fazendo ricos aos outros e pobres a si onde se atira com uma exuberância de meios, justificada pela
mesmos. Comportando-nos segundo o primeiro caso, adquiri- importância do fim. Ela bem sabe ser rica, mas nem por isto é
mos para nós, em vez de riqueza, pobreza. loucamente pródiga, a não ser quando o fim a ser atingido o
Essa nova e estranha economia é bem outra que a comum merece e requer. Mas quanta economia, ao contrário, por
e resolve de fato o problema econômico. Mas ela pertence a exemplo, no fato que deixa ao consciente somente a fadiga
um mundo que o homem atual não pode ainda compreender. das novas construções, enquanto confia aos automatismos do
Trata-se da mesma lei pela qual quem faz o mal aos outros o subconsciente a função de conservar para cada necessidade,
faz a si mesmo, e quem faz o bem aos outros o faz a si mes- sem a fadiga de conscientes elaborações, em forma de instin-
mo. A grande descoberta que a ciência ainda não imagina po- to, o resultado do trabalho cumprido e já assimilado! No en-
der fazer é esta: da presença de uma lei universal que tudo re- tanto uma exemplificação nos levaria demasiado longe.
ge. Lei boa e justa. É completamente estúpido e contrário à fi- Como se vê, a visão de verdades mais elevadas, próprias de
nalidade de alcançar a nova felicidade o sistema de querer mais altos planos de existência, não é coisa que se encontre
forçar as portas. Essa lei é a alma de todas as coisas, é o divi- longe de nossa realidade quotidiana, que, pelo contrário, delas
no pensamento que as rege todas em um admirável funciona- recolhe apoio e salvação. O homem de hoje não compreendeu
mento orgânico. É necessária uma quantidade enorme de ig- que ele foi criado para ser senhor, e não servo, e que basta sa-
norância para crer que aquele grãozinho de areia, o homem, ber ser senhor para o vir a ser. Mas ele, com a sua ignorância,
possa tomar o comando dessa lei. Eis a grande verdade que se coloca-se, ao contrário, na posição de servo, que pertence ao
descobre, evoluindo-se. Para alcançá-la, não há outro caminho inconsciente. Não há outro remédio senão fazê-lo compreender
senão a ascensão; o resto não vem ao caso. É necessária uma como funciona a vida. É preciso mostrar-lhe que o mesmo po-
inteligência muito mais ampla que a racional; uma inteligên- der criador que Deus usou na criação do universo e que está no
cia equilibrada no ponto de partida, feita não somente de co- pensamento, está também no homem, que foi feito à Sua ima-
nhecimento, mas de sabedoria, não só de saber, mas da arte de gem e semelhança. Como Deus é a causa perene de tudo, assim
saber usá-la bem; uma inteligência regida pelo senso moral o homem é causa do seu pequeno mundo, que ele faz para si,
das coisas. O homem atual, que parte do apriorismo dogmáti- em si e ao redor de si, como inferno ou paraíso, à sua vontade.
co absoluto do eu, que se faz centro do universo, inverteu sua A habitual inversão de todas as coisas leva, também aqui, a ver
posição já no início e, assim, não pode alcançar senão resulta- a causa onde está o efeito, e ao contrário. É inútil encarniçar-se
dos invertidos. Desse modo, ele não pode compreender o pon- contra os efeitos quando não se sabe manejar e remover as
to fundamental e elementar, isto é, que para entrar não se deve causas. Isto vemos em nossa medicina, que não consegue curar
tentar arrombar as portas, porque então elas se nos fecham senão aparente e momentaneamente, pelo que as doenças,
sempre mais solidamente, mas é preciso nos tornarmos aptos e quanto mais são tratadas, tanto mais se renovam. A razão está
conformados, para que possamos entrar. Em outros termos, em que se curam os efeitos exteriores do mal e se deixam in-
sendo impossível transformar a Lei, nada mais resta senão nos tactas as causas, que são profundas, dependentes da psicologia,
transformarmos. Então, as portas se abrem e nos convidam a direção e regime de toda uma vida, sobre a qual o médico, en-
entrar, como é de nosso direito, espontaneamente, e, somente contrando tudo já consumado, ainda que penetrasse naquele
assim, o justo desejo, que não podia cumprir-se por erro de campo, bem pouco poderia fazer, sobretudo como resultado es-
método, pode ser plenamente satisfeito. No entanto, perante tável. A saúde não se improvisa com intervenções imediatas,
um problema de tão simples compreensão e resultado, deve- com guerra antimicrobiana, pois exige uma preparação a longo
mos presenciar o homem moderno partindo a cabeça contra prazo. O que pode curar a fundo uma medicina materialista
uma muralha, fazendo um inferno da Terra, que poderia ser um que ignora o espírito, quando as causas estão todas exatamente
paraíso. De tudo isto se deduz a importância do trabalho de no espírito, isto é, num campo que lhe escapa? Do espírito e da
dissipar a sua ignorância e de induzi-lo a civilizar-se. sua estrutura falamos alhures. A causa é ele, que constrói o seu
Diante do quadro terrificante de tantos seres reduzidos ao corpo como sua expressão, como Deus construiu o universo
desespero pela avidez da disputa de meios e recursos, dos como sua expressão. Tudo isto que advém ao corpo é, pois, o
quais a Terra está cheia para todos, que maravilha representa a efeito do que antes já esteve preparado no espírito, e o sanea-
visão dessa lei, que tudo sabe, que é justa e boa e, como tal, mento duradouro não se pode obter senão saneando primeira-
ainda quando tentamos fazer o mal, rebelando-nos, nos prote- mente aquele. E sanear o espírito significa harmonizá-lo com a
ge e nos salva! Para conseguirmos isso, bastaria harmonizar- ordem da Lei, perante a qual o homem, ao contrário, com o seu
24 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
egocentrismo rebelde, representa impulso de desordem, origem os métodos modernos creem resolver a vida com uma justiça
de todos os males. E estes ele semeia em seu caminho a mãos econômica poluída na origem, pelo método da extorsão violen-
cheias. Que se pode pretender quando ele, ávido de prazeres, ta, com uma total inversão do Evangelho! Mas o que não está
em vez de aderir às sábias leis da vida, procura dobrá-las ao invertido hoje, na época de Satanás?
seu desejo? Assim como quem monopoliza os bens semeia mi- Essa é a realidade sólida da vida, a filosofia que exaure e
séria para si mesmo e quem, para seu benefício, faz o mal aos convence, sem abstrusas elucubrações acerca de particularida-
outros o faz a si mesmo, também quem vive em desordem de des e sem intelectualismos inúteis, filosofia feita para viver. É
espírito deve arcar com as doenças físicas dela decorrentes, verdadeiramente piedoso o espetáculo desta pobre humanidade,
que atormentam igualmente o espírito. A saúde do corpo, as- vítima da sua ignorância das mais elementares leis da vida. Não
sim como tudo, depende de saber harmonizarmo-nos com a se trata de compreender o funcionamento de um mecanismo. É
sabedoria da Lei, que nos rege e nos guia. natural que um primitivo procure abrir as portas, arrombando-
A saúde do corpo é dada pela harmonia. Esta é a vontade as. Porém é um sistema desastroso, sobretudo para ele. Quem
da Lei. Então, quando nos revoltamos, negamos a nós esta viu verdades mais elevadas, isto é, o mecanismo segundo o
harmonia, isto é, a saúde. Eis uma outra porta fechada por nós qual aquelas portas funcionam, com um ligeiro e hábil movi-
contra a alegria de viver, alegria que a natureza bem quereria mento de dedos, gira a chave, abre e entra. No entanto o ho-
nos dar como pacto da nossa compreensão e obediência. Rebe- mem, tão justamente ávido de domar e dirigir para tornar-se se-
lião, aquela de Lúcifer, o grande destruidor, é a nossa culpa e a nhor de tudo, em vez de começar a saber comandar a si mesmo,
causa de nossas dores. O homem é feito para mandar, e tudo como a Lei impõe, procura comandar os outros, incitando a re-
que lhe é inferior é feito para obedecer-lhe. Ao contrário, a sistência e a revolta. Ele segue assim o único caminho para não
nossa grande infelicidade consiste justamente nisto, que as coi- se tornar senhor de nada. Desse modo, com pobre domínio e
sas muito raramente correm conforme os nossos desejos. Mas contrariados, mal seguros e sempre prontos a cair, tiveram de se
por que acontece assim? É porque desejamos o mal, contra a contentar tristemente todos os imperadores do mundo, porque a
Lei, que representa o nosso bem. É justo e útil, portanto, que quem ignora e viola a Lei nada pode ser concedido, senão o pi-
não sejamos atendidos. Para nos salvarmos, constrangendo-nos or. Os impérios duradouros não podem ser senão os do espírito.
a compreender nosso erro e como devemos proceder, a Lei nos Diz-se que o espaço esteja fechado, conforme uma trans-
faz sofrer. E como fazer de outro modo, para um ser que deve missão curvilínea da luz, como energia que retorna ciclicamen-
permanecer livre? A dor é o único raciocínio que todos com- te sobre si mesma. Essa hipótese física nos pode dar a imagem
preendem. Então, na perfeição do sistema, é justo e lógico que do sistema de retorno das forças lançadas pelo eu, centro gené-
tudo corra às avessas no mundo de hoje. tico, à fonte, de modo que cada eu, à semelhança de Deus,
Qual é hoje a nossa vontade? Que desejos este impulso constitui centro de um seu universo, em que todo efeito retorna
construtor proveniente do espírito transmite e faz chegar àquele à sua causa. Trata-se do mesmo princípio, repetido do plano fí-
operário, que é o subconsciente? Este é o animal que vive no sico ao espiritual, por universal lei de analogia. Também em
homem e deve ser usado como uma besta domesticada pela fa- Deus e Seu universo, toda criatura retorna ao Criador, tudo vol-
diga, qual servo, obediente executor das ordens do espírito ilu- ta para Ele. Assim nós, qual centro irradiante, somos os cons-
minado e consciente. Mas é o espírito que, no homem de hoje, trutores de nós mesmos e de nosso ambiente, à nossa imagem e
dirige com conhecimento e sabedoria, ou é aquele animal que semelhança, e fazemos a nossa atmosfera como queremos. Esta,
comanda e serviliza o espírito? Também aqui, tudo está inverti- portanto, está ligada a nós como nosso inevitável destino. O
do, como em qualquer parte. Que capacidade diretriz pode ter a pensamento tem verdadeira potência criadora. Todo o universo
parte animal? Que pode desejar senão coisas materiais, portanto é baseado sobre esse princípio. Mas potência criadora somente
ilusórias, transitórias e mortais? Que pode um tal chefe transmi- enquanto e até aonde se vai conforme a Lei, e não contra ela.
tir ao operário, como motivos construtivos? Somente motivos De outro modo, tem-se uma potência destrutiva. O princípio de
de ilusão, decadência e morte. Eis as doenças físicas e também destruição não representa senão o caminho percorrido por Sata-
as dores morais. Estando isto contra a Lei e, portanto, sendo nás, inverso do percorrido por Deus. Que o pensamento no bem
danoso para nós, ela sabiamente se apressa em destruir e liqui- ou no mal plasma as coisas – o bem, para o belo e a vida, e o
dar tudo, negando toda nutrição vital. Para o nosso próprio mal, para o feio e a morte – vemos em nosso organismo, no
bem, ela não pode proceder de outro modo. À força de gerar- qual é evidente a construção ideoplástica, por exemplo nas im-
mos o que é mortal, deveremos, sem desfalecimento, suportar pressões maternas, que se podem imprimir no feto. Que seja o
as consequências da destruição, até que o espírito imortal com- espírito que modela o seu corpo, o vemos no fato de que uma
preenda um dia ter errado o caminho e saiba encontrar de novo ideia, fortemente sentida e constantemente vivida, se imprime
a melhor e única via do bem. em nosso rosto, que assim acaba por revelá-la debaixo de qual-
Quando, ao contrário, é o espírito que guia, então os seus quer máscara. Deste modo, a ideia dominante se torna um cará-
impulsos criadores se dirigem todos para as coisas imortais, ter somático. Atrás de um impulso enérgico e tenaz do espírito,
reais, eternas. Assim, quando àquele operário, que é o sub- também os ossos e os tecidos se plasmam.
consciente, forem transmitidos motivos de trabalho desse gê- Eis, em breves traços, o que aparece quando se alcança a
nero, a sua construção se dará em correspondência, com um visão de verdades mais elevadas. Desponta, então, uma eco-
efeito similar à causa. Então a Lei não nos oporá mais obstácu- nomia universal supernormal, que sabiamente regula a vida em
lo. Pelo contrário, ela mesma nos tomará sobre suas asas para todo campo. De tudo isso, vê-se quanto está fora do caminho o
nos levar ao alto, como é seu desejo. Dessa forma, a morte não mundo moderno na procura da felicidade, e quanto esteja lon-
será mais o fim do ser, o eu, isto é, de tudo, mas somente o fim ge de poder alcançá-la. Assim se compreendem as suas infini-
de um servo que nos deixa, cansado do serviço cumprido. As- tas desgraças, que, como dissemos, constituem fenômeno lógi-
sim, não somente desaparecerão doenças, dores, misérias e es- co e justo num organismo universal sempre perfeito, onde quer
cravidão, mas também nos encontraremos repletos da alegria que seja. Para entrar no reino da felicidade existe apenas uma
de viver, que não consiste na posse, como a louca psicologia fórmula, que é dada pelo Evangelho: ―Ama o próximo como a
hodierna acha, mas sim no equilíbrio de todo o ser em todo as- ti mesmo‖. Ela representa a retificação divina da inversão sa-
pecto e atividade, no mais pleno acordo com o desejo indestru- tânica. Mas que pode compreender de tudo isso nosso mundo
tível da Lei. Então, tudo nos virá ao encontro festivamente, ri- de hoje, se nada sabe do funcionamento orgânico do universo e
queza, saúde, amor, afetos, conhecimento, êxito. E pensar que não só ignora a estrutura da Lei mas também a sua própria
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 25
existência? Que podemos pretender quando o homem moder- riférico, que não alcança a meta. Os imóveis sábios orientais,
no, com o seu materialismo, nega francamente o espírito e, em reclusos nos conventos do Tibete, podem bem olhar com pie-
lugar de partir deste, que é o princípio genético, causa de tudo, dade para a nossa vertiginosa sociedade, que, em cima do edifí-
parte inversamente do mundo físico e do corpo, que são sim- cio das suas conquistas, vê apresentar-se o suicídio atômico. No
ples efeitos? Que conclusão pode tirar uma ciência assim in- entanto a corrida do ―tempo é dinheiro‖ é a sua punição. A pre-
vertida, senão a universal destruição? Entretanto tudo isso já sença do nosso erro é revelada pela nossa ansiedade. Quem en-
foi dito há tempo pela filosofia hindu, que é a mais antiga e controu não procura. O tormento e a pressa são índices de vá-
profunda que o homem conhece. A moral está em que nosso cuo interior, de fome de espírito, de ameaçadoras carências. As
século é um período de transição, que tem a função de liquidar, mais altas verdades satisfazem a fundo, a sua compreensão dá
numa destruição geral, a atual pseudocivilização, construída às calma, que é índice seguro para reconhecê-las. Encontramo-
avessas, isto é, baseada sobre a matéria em vez de sê-lo sobre o nos, ao contrário, num redemoinho de filosofias, de relativas in-
espírito, a fim de desembaraçar o campo para uma civilização terpretações da vida, entretanto seus princípios fundamentais
nova, corrigida, construída sobre o espírito, em vez de o ser não mudam e são sempre idênticos na vã procura de soluções.
sobre a matéria. Perante essa nova grande civilização do tercei- A contínua necessidade de novidades é a primeira característica
ro milênio, a atual tem apenas a função de preparar a parte me- da nossa posição periférica e relativa. Todavia o homem atual
cânica que possa depois prover automaticamente a execução deve viver e percorrer a sua fase biológica. Que outra coisa po-
dos serviços materiais, de modo que o homem se dedique a al- demos hoje esperar dele? Chegará no tempo próprio. Cada coi-
go mais importante. Resolvidos os dois maiores problemas que sa está sempre perfeitamente em seu lugar.
hoje nos atormentam, quais são a paz universal sob um gover- Neste ponto, surge espontânea em nossa mente a pergunta
no único e a justiça econômica e social, problemas que a histó- de como seja possível, por evolução, a passagem da nossa
ria nos propõe para uma iminente solução, o novo mundo po- mente para uma fase mais elevada, e também a correção do
derá começar a utilizar os resultados da ciência atual, porém nosso mundo pervertido num mundo melhor, para curá-lo de
não mais para destruição da guerra, e sim para o próprio bem- seus erros. Não é possível negar que mesmo a nossa economia
estar. Então, por estes servido, ele poderá superar a luta pelas normal não tenha as suas leis e equilíbrios. Como se pode de-
necessidades materiais, primeiro problema de hoje, para en- molir a premissa axiomática do egocentrismo, que, se existe, é
frentar lutas e problemas superiores, próprios de um mais ele- porque tem a sua função? Como se pode passar da economia
vado nível biológico, hoje não compreendido, onde domine egoísta do ―do ut des‖6 à economia altruísta do ―ama o próxi-
não a matéria, mas a grande potência do espírito. mo como a ti mesmo‖? Certo é que, à primeira vista, parece
O mundo de hoje escolheu o caminho na direção descen- bem estranho, tanto está fora da nossa psicologia, esse sistema
dente, para o relativo e o particular, em vez de escolhê-lo para a de obter as coisas não enfrentando-as para agarrá-las, mas dei-
unidade. Por essa razão, o saber é divergente, a ciência é analí- xando-as vir espontaneamente a nós. O que nos parece muito
tica, a concepção da vida é materialista e não se exaltam os va- estranho é, entretanto, uma realidade experimental que se veri-
lores centrais genéticos do ser, mas sim os periféricos da forma, fica com todos aqueles que se encontram além do limite do
por isto o conhecimento perambula penosamente por entre uma nosso plano de evolução, em outros superiores. Como se pode
miríade de efeitos, sem ser capaz de penetrar as causas. Assim, negar uma realidade experimental, fatos aos quais também a
tudo se constrói ao reverso, o trabalho se torna contraproducen- ciência se faz escrava, só porque não se chegou até lá, não se
te, a construção vem a ser destruição e tudo se pulveriza nas vê nada e não se pode compreendê-la? Se posso falar longa-
mãos de pseudoconstrutores. É verdade que, no fundo da obra mente dessa economia supernormal, é porque vou largamente
do homem, está a obra da Lei, preparando a correção salvadora. experimentando-a. Limito-me a indicar aos meus semelhantes
Mas o mundo caminha de cabeça para baixo. Vive-se em uma as observações objetivas, por mim controladas racionalmente,
atmosfera de esmagamento. O tempo, isto é, o limite, tornou-se feitas explorando a sua realidade pouco acessível. Mas certo é
o senhor, o tirano. Tudo secciona-se, fraciona-se, subdivide-se. que, para quem as alcança, elas possuem a potência das coisas
A ideia de superar o tempo com a velocidade é um delírio. Do mais vizinhas, atuais e concretas, tanto que se pode fazer de-
tempo não se foge; não se pode superá-lo acelerando o passo, pender delas também o contingente da própria vida.
mas apenas vivendo fora dele, sem qualquer movimento no es- A passagem da economia normal à supernormal torna-se
paço. São bem escassos os lucros de tempo dados pela veloci- possível e compreensível quando se chegou a sentir que a essên-
dade; trata-se de pequenos deslocamentos de correlações, mas o cia da vida e do criado é amor. Ele é a maior força do universo,
tempo fica, e com ele o limite; configura um certo alargamento que o rege e, no fim, tudo vence (v. Deus e Universo Cap. 15 e
de horizontes, mas o espírito permanece sempre fechado numa 16). Por isto é lógico que o amor abra todas as portas, e que, ao
prisão, que é somente um pouco mais ampla. Pequenas expan- contrário, o egoísmo as feche. É uma verificação de fato, para
sões que não podem saciar a ânsia do infinito que está na alma. quem vê, que essa é a mecânica do sistema. Para poder, pois,
Nunca houve tanta falta de tempo como agora, quando se dis- atingir as infinitas riquezas das quais o criado extravasa, é ne-
põe de tão rápidos meios de comunicação! A nossa ansiosa cor- cessário passar pelo caminho do amor. Eis que o Evangelho po-
rida sem paz, que chamamos dinamismo, não é uma vitória, de ser também o mais seguro método para enriquecer, e com que
mas uma derrota; não é a nossa força, mas a nossa fraqueza. riquezas! Não se quer com isto dizer que, somente num mundo
Exaltamo-la como uma nossa nova virtude e potência, mas é de justos, todos estariam bem como consequência da honestida-
uma nossa deficiência e inferioridade. Estamos fechados em um de de todos. O fenômeno é pessoal, e os resultados são acessí-
sistema virado às avessas, no qual quanto mais se corre tanto veis em qualquer mundo. A riqueza não nos vem somente pelos
menos se chega, que, em vez de nos ajudar, nos esmaga. E o efeitos que o sistema produziria se coletivamente aplicado, mas
preciosíssimo tempo fica esmagado e pulverizado em mil coi- nos vem porque o indivíduo põe então em movimento algumas
sas, sem nada nos trazer de concludente. Que felicidade cons- recônditas forças da vida, que o compensam e o premiam, por-
truiu essa corrida contínua? A nossa era foge das ideias centrais que ele caminha conforme a Lei, que é amor. Em suma, o cálcu-
sintéticas, unitárias. Quem se coloca na circunferência está lo econômico não é o resultado de trocas de meios entre ho-
obrigado, pela sua própria posição, a uma afanosa corrida con- mens, mas de forças entre o indivíduo e a vida. O próprio seme-
tínua, para dominar apenas uma parte daquilo que é dominado lhante, aqui, não pode interferir e, quando aparece, é como meio,
por quem está situado no centro, sem se mover absolutamente.
6
Daí a nossa necessidade de correr. Mas é sempre um correr pe- ―Dou para que dês‖. (N. do T.)
26 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
frequentemente inconsciente, manobrado pelas referidas forças. ísta, isto é, expansionista. É o caminho dos santos. Contudo a
A conversa não se faz com o homem, mas com Deus, com base maioria se retrai amedrontada. Assim aconteceu ao jovem que
nas próprias ações e no real mérito próprio. perguntou a Cristo o que deveria fazer para tornar-se perfeito.
Trata-se de uma economia superior, que dista da normal co- Quando ouviu a resposta: ―Si vis perfectus esse, vade, vende
mo o cálculo infinitesimal da aritmética elementar. A vida fun- universa‖7, ele se retirou triste, sem aceitar o conselho. E, as-
ciona com os princípios das várias economias, conforme os pla- sim, os caminhos das maiores riquezas se fecham. É bem difí-
nos de evolução. Quanto mais alto se sobe, tanto mais ela opera cil despedaçar o circuito dos vínculos terrenos em corrente, e
segundo a divina lei da criação, que é o amor. Quanto mais se é necessária para isso uma energia pouco comum. Estamos
sobe, tanto mais o rudimentar princípio de equilíbrio ―do ut des‖ embaixo e, somente se tivermos a força de subir por nós
se torna completo, passando da lei do talião para a lei do altru- mesmos, poderemos ver a luz e provar a felicidade. Estamos
ísmo, dois graus de justiça diversos. O universo está regido por embaixo, e o mundo procura o conforto descendo ainda mais
princípios definidos e fixos. Estes representam a estrada sobre a para baixo, criando assim nova dor e, desse modo, fechando-
qual os seres podem caminhar como querem, mas a estrada está se sempre mais nos limites da involução e na prisão do ego-
traçada. Somos livres, porém teremos em proporção do que ti- ísmo. Mas a saída está no lado oposto. Para encontrá-la, o
vermos dado. Se usarmos com egoísmo quanto nos vem dado homem deve tentar e sofrer muito ainda. É da Lei que não se
pelas fontes da vida, ou seja, contra a lei do amor, que tudo rege, possa subir para a felicidade senão através do sacrifício e do
maior será a contração das forças que regulam a distribuição dos amor, os grandes princípios sobre os quais se apoia o univer-
bens. Quanto mais egoísta for o indivíduo, tanto mais se restrin- so. Infelizmente, isto não se faz ou não se quer fazer. E então,
girá o canal, que tende a se fechar, até que a fonte não flua mais na expectativa de saber subir, ficam na Terra a dor e a misé-
e todo auxilio seja negado. Nesse sistema, os bens vêm a nós, ria, herança própria desse plano de vida. Não há remédio se-
não mais em proporção à nossa capacidade de extorsão, mas na não em saber e querer fazer o esforço para sair dele. Esta é a
medida dada por aquilo que merecemos. É difícil experimentar estrutura do sistema. Se não quisermos subir, ficaremos na dor
isto em nosso mundo apressado, porque o mérito não se con- e na miséria, como é justo em um universo perfeito.
quista em um instante, e sim com longa preparação. Este depen-
de, como a saúde, do tipo biológico e do regime constante de VI. LUTA E SELEÇÃO
ação. Por essa mesma lei do amor, um trabalho feito somente
com a finalidade do pagamento, isto é, egoisticamente, é muito Já dissemos que as diversas verdades vistas pelo autor atra-
menos criador e vital do que o trabalho fecundado pelo amor, vés do fenômeno da personalidade oscilante não constituem um
que aumenta a sua potência genética e diminui a fadiga, até que, produto subjetivo a ele limitado, mas que elas têm uma existên-
nos planos mais altos, se torna livre e alegre ato criador, que re- cia própria objetiva, dele independente, isto é, correspondem
flete o divino ato da criação. É a nossa involução que faz do tra- aos vários planos evolutivos da vida, representando assim uma
balho uma condenação, uma fadiga, uma escravidão. Subindo, universal realidade biológica. O caso pessoal ficou, dessa ma-
tudo se liberta, alivia-se na alegria, torna-se a um só tempo po- neira, dilatado numa significação muito mais vasta, que interes-
tência e rendimento. E a ascensão se cumpre no amor. sa toda a vida. As diversas verdades nos aparecem como ex-
A dificuldade para iniciar tal novo método é dada por um pressões de diversas fases evolutivas ou planos de existência.
agravamento da fadiga, que já é muita em um baixo plano de Destes vimos alguns aspectos gerais no capítulo precedente,
evolução. Quanto mais se está embaixo, tanto mais se é pobre e descrevendo-lhes as características, as condições do nosso
onerado, sendo então muito mais necessário e maior o esforço mundo atual e a técnica da passagem para fases superiores. Ob-
para se tornar livre. Só resta então iniciar o trabalho com paz e servemo-los, agora, mais de perto, de um ponto de vista mais
tenacidade. A evolução não se força e não se precipita. Ela é particularmente biológico, em referência às teorias que hoje vi-
uma lenta marcha de resistência. No princípio, teme-se uma no- goram nesse campo. Em substância, nada mais fazemos do que
va limitação, e o egoísmo se revolta. Acaso será possível se de- aprofundar sempre em maior escala o grande problema da as-
satarem os nós, continuando-se a apertá-los, ou, pelo contrário, é censão humana, aquele que contém as soluções de todos os
necessário afrouxá-los pelo caminho inverso? Somente inver- problemas. Com isto, já se delineia o ritmo ascensional deste
tendo-se o caminho da involução é que se pode evoluir. A prin- volume, que, partindo do inferno humano e subumano, nos quer
cípio somos desviados pela ilusão, que nos faz temer uma piora levar, fazendo sentir todo o contraste, ao paraíso super-humano
de condições. Mas, se fosse possível ver claramente, saber-se-ia e divino. O estudo psicológico particular onde iniciamos nosso
que o egoísmo em nada sofreria, porque a vida é sempre utilitá- movimento não serviu senão de motivo inicial para a descrição
ria e quer o nosso bem. O sistema é verdadeiramente vantajoso. dessa ascensão universal. É natural que, para poder falar com
Os obtusos responderão que não se deixam lograr por esses es- conhecimento desse fenômeno, o autor deva antes tê-lo experi-
peciosos e capciosos raciocínios e permanecerão pobres e can- mentado no seu caso particular, um momento da universal lei
sados servos do que puderam agarrar. Naquele plano, é muito da vida, que também é de todos. Vejamos como penetrar o pen-
difícil compreender o Evangelho, quando diz: ―Pensai nas coisas samento diretivo que guia a nossa evolução.
do espírito, e o resto vos será acrescentado‖. Entretanto essa coi- A interpretação que hoje domina nesse campo nos provêm
sa que parece tão absurda, posso testemunhar que para mim foi do materialismo ainda dominante, que viu as coisas a seu mo-
experimentalmente verdadeira. Somos filhos de Deus, Pai amo- do, de um ponto de vista relativo a um dado plano de evolução.
roso. Ele, infinitamente rico, nos proverá de tudo, se nós esti- Trata-se, portanto, de uma ideia destinada a ser superada, mas
vermos com Ele. Os seus escrínios não têm limites e estão sem- que hoje é aceita na psicologia corrente como verdadeira e de-
pre cheios; a chave para abri-los é o amor, e tudo se pode deles finitiva. É bom observar até que ponto ela corresponde ao ver-
tirar em proporção. Quanto mais se ama e se dá, tanto mais os dadeiro pensamento diretivo da vida. Comecemos por observar
escrínios se abrem e tanto mais recebemos. Quanto menos se que, enquanto a forma mental dominante continua a mover-se
ama e se dá, tanto menos eles se abrem e tanto menos recebe- por inércia na direção materialista, proveniente da orientação
mos. Com a avidez e a força, ao invés de se abrirem, eles se fe- científica do último século, e isto até suas últimas consequên-
cham, e nada mais pode ser tomado, porque a vida, em face do cias práticas, o mais recente pensamento diretivo da ciência le-
egoísmo e da violência, se contrai, defende e nega. vou tão além, nas profundezas, a visão da matéria com a nova
O único caminho para sair de toda limitação é iniciar pro-
7
gressivamente uma série de ações positivas em direção altru- ―Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens‖ – Mateus, 19:21.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 27
química atômica e física quântica, que aquela concepção mate- porque este leva ao bem deles, um trabalho proporcionado à sua
rialista fica sendo primitiva e superficial. Ela foi levada pela ci- capacidade e sensibilidade; gênero de trabalho que seria inútil,
ência mais moderna, segundo as mais recentes orientações, tão absurdo, destruidor e insuportável em planos de vida superio-
perto do espiritualismo, que, no final, aquela concepção quase res. Assim, a vida dá imediatamente a esses seres do plano
não pôde mais ser distinguida deste. Mas disto nos ocuparemos animal e humano uma ocupação digna de si, manobrando-os
mais adiante. Portanto o materialismo representa o tipo de co- através de seus instintos, a que eles obedecem, crendo obedecer
nhecimento científico do nosso tempo e nada mais. Mas a dire- a si mesmos. A vida nos faz sempre trabalhar para nos fazer su-
ção, ainda que embaixo, nas massas, continue imperturbável, já bir. A quem está mais alto, aquela seleção animal pode parecer
se inverteu no alto, no elevado pensamento diretivo. Assim, por um trabalho bestial. Mas uma atividade mais refinada e com-
lei biológica, é lançado o impulso que, prolongando-se depois, plexa o ser daquele plano não saberia cumprir e não seria pro-
como sempre, inverterá a rota do pensamento moderno, levan- porcional à sua capacidade. Trata-se verdadeiramente da sele-
do-o para uma nova civilização, de tipo oposto. Não se tratará ção do mais forte, como é hoje compreendida, uma seleção
por certo do espiritualismo de hoje, vago e não demonstrado, animal em que é preciso, todavia, usar e desenvolver os senti-
mas de um espiritualismo que provará e aplicará o que agora é dos e a inteligência. Neste plano, o trabalho coletivo orgânico e
somente fé ou teoria filosófica. as conquistas espirituais são inconcebíveis. Porém, em nosso
Na biologia, o materialismo de Darwin viu a evolução das mundo, a luta já se está transformando de muscular e física em
formas físicas ou efeito, sem imaginar a presença de uma evo- nervosa, conquanto esta ainda seja feroz. O progresso já é visí-
lução do espírito ou causa das formas. Acima, falamos dessa vel. A forma de luta é índice do próprio plano evolutivo. Diz-
tendência à inversão de tudo em nossa fase atual. Assim viu-se me como e por que coisa lutas e te direi quem és. A luta, condi-
exatamente às avessas: a causa naquilo que é somente o efeito, ção de conquista, não se extingue nunca na vida, mas, com o
isto é, na forma. Segundo essa orientação, a evolução se pro- evoluir, mudam sua forma, seus fins e suas realizações.
cessa através da técnica da luta pela vida e a seleção do mais Hoje, em nosso mundo, se começa a compreender, como
forte, tipo que, em filosofia, vemos reaparecer no super- não acontecia no passado, o disparate desse gênero de luta
homem de Nietzsche. Tudo isto é verdade, mas somente no animal, que não sabe atingir os seus fins senão lançando os
plano biológico animal, num mundo inferior, ao qual ninguém homens uns contra os outros, para se matarem e para destruí-
pode impedir que o homem pertença. Mas, assim que se haja rem tudo o que é mais útil e custoso, e isto, para a seleção. A
subido evolutivamente, isto não é mais verdadeiro. Em suma, hodierna impopularidade da guerra demonstra que o homem
quando se fala dessa coisa imensa que é a vida, é preciso dis- hoje caminha para a superação da fase animal. Um estado de
tinguir e precisar a que biologia nos referimos, porque cada coisas, de fato, não se pode perceber quando se está fundido
plano evolutivo tem a sua, com leis próprias, que não são as nele como num todo homogêneo, mas somente quando se co-
dos outros planos. Ora, a biologia normal humana, se olhada meça a emergir dele, diferenciando-se. Hoje, na realidade,
do ponto de vista de uma biologia supernormal, pode aparecer começa-se vagamente a compreender, sem ainda saber atuar,
toda como um erro de perspectiva, e ao contrário. E, aqui, po- as suas consequências lógicas, o disparate desse perene odiar-
demos aplicar o conceito das verdades relativas, pelo qual as se uns aos outros, quanto seja antivital esse nunca acabar de
teorias do materialismo servem e valem apenas para a sua bio- punir-se reciprocamente, que é o que faz verdadeiramente da
logia, e não além. Não se pode compreender o pensamento di- vida uma punição. Esta é criada e imposta pelo homem, e não
retivo da vida observando-a num só de seus momentos, relati- por um deus vingativo. O homem está hoje bastante sensibili-
vo a uma só fase, tanto mais que aquela, evolutivamente supe- zado para começar a sentir quanto se há tornado inaceitável
rior, nos aguarda, é o nosso amanhã e nós justamente percor- esse tipo de luta e seleção animal. Formas mais civis de exis-
remos a atual para nos preparar à sucessiva. tência fatalmente o esperam. O mais desenvolve-se do menos.
Como se comporta a vida no plano animal e humano? Ela Assim como, no começo, a propriedade era filha do furto e a
escancara as portas para a reprodução e lança fora indivíduos primeira forma de organização social foi dada pelo império do
em grande abundância. Estes, no plano animal, não estão in- senhor sobre o servo; assim como, para se chegar à sociedade
tegrados juntos na fase orgânica coletiva e, portanto, não sa- dos estados, deu-se início aos imperialismos escravistas, do-
bem fraternizar-se em organismos coletivos e colaborar em minadores dos povos; assim como se chegou ao conhecimen-
unidades superiores. Isto está muito alto para eles e representa to, partindo-se do terror do próprio dano, e à ciência através
o futuro. Eles se devem preparar através de infinitos contatos da necessidade utilitária, não é para se maravilhar que tam-
recíprocos, que, no princípio, são choques sanguinolentos. bém se possa chegar a um novo tipo de seleção, partindo do
Tão logo nascem, eles se tornam rivais e inimigos, e os moti- atual, embora este seja bestial. Não devemos, pois, nos escan-
vos psicológicos dados por sua forma mental não faltam: o dalizar se a vida sabe atingir os seus fins evolutivos mesmo
espaço vital, a exuberância de energia, o instinto de invadir e através de todas as velhacarias humanas.
submeter para se expandirem, a natural insaciabilidade do de- Procuremos compreender o verdadeiro significado desse
sejo, a conquista dos bens para viver, da mulher para se re- método para nos fazer evoluir, usado pela vida com a luta e a
produzir. Eis subitamente a luta. É a mecânica do sistema. seleção. A que tende verdadeiramente esse triunfo do mais
Basta olhar em torno para ver funcionar automaticamente, em forte? Trata-se aqui de uma lei válida para todas as fases bio-
pequena e em grande escala, como num grupinho de rapazes lógicas, ou será ela limitada somente a um dado plano inferi-
que, de repente, litigam entre si, como povos sempre em guer- or? Quais são os fins da maior biologia universal? Propõe-se
ra. Esta, antes que no comando dos governos, está no instinto ela verdadeiramente a fazer triunfar esse tipo do mais forte,
dos homens, sem o que ninguém poderia impô-la. que pode ser ainda o mais prepotente ou injusto, ou será esta
O primeiro passo é a produção dos seres, o segundo é a luta, uma fase de transição admissível somente em planos inferio-
o terceiro é a seleção. O resultado final é a evolução; a finalida- res, enquanto a finalidade da vida é criar um tipo biológico
de é a elevação para o bem e a felicidade. É uma sucessão de completamente diverso?
escopos, de proposições num raciocínio. Eis porque, como títu- A lei da maior biologia universal é que a luta, em todo pla-
lo deste capítulo, ligamos as duas palavras: luta e seleção. A no, é um meio de construção da consciência, uma forma de ati-
primeira é condição da segunda. Sendo pacífico que a vida tra- vidade imposta aos seres pelos seus instintos, pelo ambiente e
balha sempre com inteligência e com um fim a atingir, ela en- pela Lei, que domina tudo isso, para chegar, através da experi-
tão oferece a esses seres, para o fim evolutivo a que tende e mentação, ao desenvolvimento de qualidades sempre mais espi-
28 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
rituais. É natural que, nos planos inferiores, o trabalho e as qua- permitir-se tudo porque é vencedor e, como tal, lhe cabe fazer a
lidades sejam de caráter inferior. Mas tudo tende a atingir traba- lei, chega-se lá onde isto, ao contrário, é injustiça condenada
lhos e qualidades superiores. Nos animais e no homem inferior, pela Lei, única senhora, em cuja harmonia somente, viver é líci-
a luta servirá para o refinamento dos sentidos e para o desen- to. No primeiro caso, o ser é deixado apenas às suas forças, pa-
volvimento egoísta da inteligência utilitária. Mas, no homem ra sofrer os erros que perpetrará e, dessa forma, chegar a com-
superior, ela servirá para o triunfo de uma ideia e se transfor- preender e aprender. Mas, conquistada com esse trabalho a
mará numa colaboração qual instrumento consciente da Lei. É consciência, ele percebe que vive em um todo orgânico, bom e
ainda lógico que, no plano animal, as experimentações, os con- sábio, e que a violência não serve para mais nada, somente para
tatos e as reações do ambiente devam assumir uma forma brutal perder, e não para vencer. Então, a vida, harmonizada na ordem
e violenta, porque, com modalidades mais refinadas, o ser ainda divina, torna-se de inferno em paraíso.
não sensibilizado por evolução nada perceberia. A luta parece Interroguemos ainda o pensamento diretivo da vida, como
brutal e violenta para quem está mais no alto, mas não para ele funciona na realidade biológica. É fato que a natureza não
quem está naquele nível. Tudo é proporcionado pela divina sa- se opõe à geração dos fracos e doentes. Procura remediar os
bedoria da Lei. Assim, o animal e o homem inferior não são fe- seus defeitos para salvá-los, reforçando-os como pode, mas
rozes senão para o evoluído. Para si mesmo, ele está equilibra- não se opõe ao seu nascimento. Deixa assim vir ao mundo uma
do no seu nível; vê somente o fim a atingir, e não a ferocidade quantidade de infelizes, doentes da mente e do corpo. Ela os
do meio, que somente se revela ofensivo de um ponto de vista deixa lutar e sofrer. Por que? Nesses casos, se a finalidade
mais alto, com outras leis, ignoradas no plano inferior. Assim o principal da vida fosse a seleção do mais forte, aquele desígnio
selvagem não se sente selvagem, do mesmo modo que o verda- seria completamente frustrado e a natureza seria a própria con-
deiro delinquente não se considera delinquente. No entanto eles tradição. Entretanto vemos quanto ela é sábia e benévola prote-
também devem evoluir. Então são necessárias para eles experi- tora. Por que os deixa, então, se debaterem na dor? Se a vida se
ências bem duras, que para o evoluído seriam cataclismos mor- comporta assim, dado que nunca age loucamente e não está
tais. Assim, as grandes dores que dominam na Terra são pro- acostumada a errar, isto significa que o seu objetivo é bem ou-
porcionais à insensibilidade humana, e isto se prova pelo fato tro, e não a seleção do mais forte, com o abandono dos outros.
de que a maioria ama esta vida tão miserável. Quem está mais A natureza não é partidária e nunca abandona alguém. A fina-
adiante não pode aceitá-la como prazer, mas somente em outro lidade é a formação da consciência, enriquecendo-a de todas as
sentido, isto é, como expiação, dever ou missão. possíveis qualidades, através de todas as possíveis experiên-
A vida, portanto, definitivamente não se propõe, como últi- cias. O insucesso do fraco e do doente, dos vencidos na vida,
mo desígnio, o triunfo dos mais baixos campeões da raça. So- não pode então ser interpretado como uma derrota, mas sim
mente o materialismo e a sua filosofia podem pensar assim. A como uma útil posição de trabalho para a aquisição de precio-
supremacia do mais forte, neste sentido, pode dar-se durante os sas qualidades novas, das quais o vencedor, ao contrário, dada
primeiros degraus da estrada ascensional, mas a via dos triunfos a sua diversa posição, está excluído. A finalidade da vida não
é longa e vai longe. A luta, no alto, assume outras formas e ou- é, pois, senão em casos particulares, a formação de um mais
tros fins, isto é, a formação de um ser não mais forte porque forte e prepotente. Nas grandes linhas, a vida quer criar um ser
dominador e mais violento, porém mais potente porque mais in- sempre mais ativo, mais complexo, mais orgânico, mais sábio,
teligente e sábio, portanto justo e bom. Ele, então, como vere- e tudo isto mesmo através da fraqueza, da derrota e da dor.
mos, penetrará no funcionamento da Lei, como conhecimento e Eles não constituem, por isto, uma falência e uma perda da vi-
como atividade, pondo em movimento novas forças e podendo da, como crê o materialismo, mas uma das tantas vias de expe-
atingir riquezas imensas, antes ignoradas. Ele será potente, bem rimentação e um meio de conquista. Se não fosse assim, a vi-
diferente daquele fraco e falido como o julga o homem inferior, da, que é mesmo tão forte, sábia e boa, seria vencida, estulta e
que sempre toma a bondade por fraqueza. Sua luta e experi- cruel ao permitir a geração dos fracassados. Ela, ao contrário,
mentação assumem um caráter de todo diverso. A forma de luta absolutamente não se opõe a isto, e são muitos os que deixa
dos planos inferiores, aquela do tormento da fome, do ataque e nascer. Portanto não é a natureza que não alcança os seus fins,
da defesa, lhe é poupada, porque é superada. Então a vida se mas somos nós que não compreendemos a natureza. Quanto
harmoniza e a própria Lei trata de defender o homem que adere mais formos capazes de compreender, tanto mais encontrare-
a ela, poupando-lhe esse duro trabalho, para ele já inútil, mas mos no universo um organismo perfeito. Dizer o contrário sig-
que, para os inferiores, ainda é fundamental e necessária ocupa- nifica nada haver compreendido.
ção. É lógico que o trabalho útil, imposto a tipos biológicos tão Todo plano de existência tem as suas leis. Não se pode
diversos, deva ser diferente. É lógico que, quando se há supera- compreender e julgar o plano superior permanecendo no inferi-
do o nível de vida visto pelo materialismo, o campeão visto por or, enquanto, nos planos mais altos, é possível compreender os
Nietzsche no seu super-homem torna-se um delinquente, um mais baixos, julgados ferozes e selvagens. Temos assim uma
selvagem rei de selvagens, um ser antissocial, destruidor da série de níveis evolutivos, dos quais cada um possui uma sua
unidade, desagregador e antivital. verdade relativa, que com eles evolui sempre mais para o alto.
O Evangelho, que é construtivo, nos indica, ao contrário, Planos, pois, e verdades em evolução. Esse é o movimento das
bem outro tipo biológico. A sua inversão de valores não signifi- formas e do concebível no relativo para ascender, sempre mais
ca nada mais que a passagem de um nível biológico inferior a se acercando do absoluto. O mais pode compreender e julgar o
um plano superior. Nisto consiste a grande boa nova, isto é, o menos, mas não é possível a recíproca. Sobre todos os planos,
anúncio de que hoje, para o mundo, chegou a hora da grande impera a Lei, única, através dos infinitos aspectos da verdade,
transformação evolutiva, que o levará para uma nova civiliza- relativa a cada determinado grau de desenvolvimento ou fase
ção, com um novo tipo humano. O Evangelho enfrentou dire- evolutiva, em contínua transformação progressiva. Todos os
tamente a lei do plano animal, contrapondo-lhe uma outra lei, meios são usados sempre em proporção à natureza do ser. O
de um plano superior, em que, pela evolução, a primeira deverá método da seleção do mais forte não representa senão um caso,
fatalmente inverter-se. Afirmou isto com o Sermão da Monta- um grau, uma lei, uma verdade relativa. Depois, a fase é supe-
nha, que é a inversão dos valores humanos em outros opostos, rada, passando-se a uma ordem de formações e aquisições di-
em que os vencidos aparecem vencedores e os fracos, fortes. versas, com outros métodos mais evoluídos, com característica
Eis a maior biologia que o materialismo não viu. Assim, da fase diferente, proporcionais a um diverso tipo de vida. Os experi-
onde o arbítrio da absoluta vontade do vencedor, que pode mentos são de variações incontáveis. A natureza não tem limi-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 29
tes de meios e de ambientes, e a aquisição de qualidades no de- Dessa maneira, a vida funciona por impulsos interiores, lan-
senvolvimento da consciência deve ser infinitamente múltipla. çando as suas forças do íntimo do ser. Deus não age do exteri-
Desse modo, o ser, guiado pela Lei, move-se ao longo de or, mas de dentro do ser, através dele, que é o instrumento da
canais assinalados por uma rede de princípios em todos os ní- Sua manifestação. Assim, a vida não nos defende externamente,
veis; ele encontra sempre, a cada passo, o trabalho que lhe é mas do interior, partindo do centro e atingindo a periferia atra-
adaptado. Como poderia orientar-se e guiar-se no universo, ig- vés de nós, não modificando o ambiente, mas munindo-nos
norante de tudo? Ele nunca está só, nem abandonado. Sem essa com recursos interiores, fazendo-nos adquirir qualidades e de-
imanência de Deus, o ser estaria perdido. Também os golpes fendendo-nos com a outorga de poderes de resistência. A nossa
adversos têm um significado útil e construtivo; há sempre a vida devemos conhecê-la, e as nossas forças, conquistá-las. As
proteção, mesmo no total abandono aparente, como há salva- fontes são inesgotáveis, mas devemos atingi-las com meios que
ção no fundo de qualquer derrota. Em cada ser há a vida, que devemos conquistar. Com isto, a Lei nos quer instruir. Ela exi-
nele se defende a si mesma. Tudo, também o mal e a dor, é nas ge a nossa colaboração, ainda que seja fadiga, mas nos ajuda,
suas mãos instrumento para a ascensão. A vida é força positi- orientando-nos, reagindo contra o nosso erro por meio da dor,
va, sempre construtiva, ainda que através da destruição. Ela indicando-nos a verdadeira estrada. A Lei não nos arrasta gra-
nos quer educar sempre, para nos fazer subir, embora através tuitamente, mas nos obriga a fortalecer as pernas para não fi-
do fracasso. Tudo é salutar, proveitoso; tudo é sempre perfeito carmos preguiçosos e tornarmo-nos inábeis com a supressão
e tende ao melhor pelo caminho do mínimo meio, obtendo má- dos obstáculos, que estão ali justamente para que aprendamos a
ximo resultado com o mínimo esforço. O nosso ponto de vista superá-los. Eis a razão da dura luta pela vida, eis porque o ven-
humano é muito limitado para nos permitir compreender e jul- cedor é premiado. Mais no alto do plano animal-humano, diver-
gar. A vida sabe salvar-nos também através da morte. Quería- sa será a luta, mas o tipo vencedor é sempre premiado, seja ele
mos impor-lhe os nossos pequenos fins imediatos, e ela traba- o conquistador com o domínio terreno, o gênio com o domínio
lha para fins longínquos, que não vemos, com uma sábia hie- do pensamento, ou o santo com o amor de Deus.
rarquia de finalidades, das quais nós, míopes, não enxergamos
senão as próximas. Mas ela é justa. Cada dor é paga, cada es- VII. O MAIS FOR'I'E
forço é compensado, cada experiência nos enriquece, cada fa-
diga é premiada. Se somos alguma coisa hoje, é porque a vida Se mais no alto há leis superiores, isto não impede que a lu-
nos impôs primeiro o trabalho de ganhá-la. Ela quer e deve ta pela seleção do mais forte seja a verdadeira lei vigente no
formar o ser. E, ainda quando açoita, o faz para o nosso bem. plano animal-humano. Limitada a esse campo inferior e relati-
Com isto, Deus está presente em cada coisa e em nós. A pro- vamente a ele, a formação desse tipo biológico pode represen-
funda consciência da Sua constante presença em cada coisa e tar aí a finalidade da vida, porque nada de melhor se pode pre-
em nós será o nosso conforto e a nossa força. tender de um ser que está imaturo para mais altas expressões.
A palavra vida não exprime um conceito genérico e abstra- Para melhor poder examinar depois a ascensão para planos
to, mas uma realidade que vive, goza e sofre através de nós. mais elevados, procuramos pôr em foco a nossa observação
Toda nossa vibração nos transcende e pertence a alguma coisa sobre o animal-humano, que está mais perto de nós. Podemos
maior do que nós, com a qual estamos em contínua comunica- assim delinear o fenômeno da ascensão espiritual também de
ção e que é um organismo imenso e perfeito, complexo e sá- um ponto de vista biológico e ver a que tipo diversamente forte
bio. A vida, autopunindo-se, corrige-se através de nós e, assim, a vida quer chegar nos níveis mais altos. Todo plano evolutivo
nos protege. Suas também são as nossas alegrias e as nossas produz o seu modelo ou obra-prima. O reino mineral produz os
dores. Em nosso plano e ambiente, nós somos a vida, como to- cristais geometricamente perfeitos, o reino vegetal produz a
do ser também o é em seu nível: um caso particular, do infinito flor maravilhosa e a árvore soberba, o reino animal produz a
existir. Somos a sua expressão particular, concretizada em uma besta ágil e forte, o reino humano produz o herói condutor de
dada forma, expressão de princípios e forças universais. Que povos, o reino super-humano produz o gênio e o santo. Assim,
profundas raízes, pois, tem cada ser no infinito! Somos a ex- cada fase alcança a sua finalidade, para depois ingressar na fa-
pressão exterior de uma fonte inexaurível que está no íntimo e se sucessiva e alcançar outra meta, ainda mais elevada, subin-
que tudo alimenta e rege. Se, na periferia, onde estamos como do assim, aos poucos, os degraus da evolução, que não repre-
forma, há caducidade e morte, no íntimo do ser os poderes ge- senta senão a gradual exterior manifestação de Deus, a pro-
néticos de renovação são infinitos e inexauríveis. Evoluindo, gressiva realização do Seu pensamento no Seu universo. Todo
ele se avizinha sempre mais da riqueza dessa fonte e dela pode novo impulso ascensional só pode ser tomado sobre uma base
gozar. Assim se explica como a economia supernormal seja anteriormente alcançada e consolidada. Toda forma é o resul-
muito mais rica que a normal, como vimos. O segredo para en- tado do passado e das conquistas precedentes que resume, e
riquecer é, pois, saber tornar-se sempre mais vivo em profun- não se pode subir para a sucessiva sem haver cumprido, elabo-
didade, sempre mais perto da fonte, Deus. Eis que potente sig- rado e assimilado as precedentes. Dessa maneira, a construção
nificado vital pode assumir esta palavra para quem está mais continua além do gênio e do santo, limites máximos da nossa
avançado no caminho da evolução. É nessas profundezas que, atual concepção e perfeição. É sempre a vida que se enriquece
com estes escritos, aqui procuramos despertar a vida É por isto através de miríades de experiências nas individuações que a
que aqui sempre se insiste sobre o evoluir, sobre a ascensão personificam. O que é da vida é nosso, e somos feitos de tudo
para Deus, e com tanta paixão dela se fala, pois que, verdadei- aquilo que vivemos. Como de outro modo se pode conquistar
ramente, é este o problema dos problemas e com ele tudo se consciência, senão através das próprias experiências?
resolve. Entretanto, para eliminar a dor, conquistar conheci- Que imensa dilatação de horizontes viver nesta maior vida,
mento e sabedoria, riqueza e potência, existe um meio: cami- sem limites de tempo e de formas! Que profundo sentido lhe dá
nhar para Deus. Se o mundo compreendesse o significado des- esse conceito de um desenvolvimento guiado por uma lei sábia,
sas palavras e as soubesse aproveitar! No entanto ele passa para uma meta radiosa, ainda que ela esteja além do nosso con-
perto de tudo sem compreender nada, agindo como um selva- cebível! Que conquistas faz assim conosco a vida; que indestru-
gem que, ao olhar um precioso instrumento científico sem co- tível patrimônio ela constrói! Que alegria é pensar que, em
nhecer-lhe o valor, não saberia o que fazer dele e terminaria qualquer posição, de vitória ou de derrota, cada um de nós nun-
por destruí-lo. A ignorância é a muralha mais difícil de superar ca perde nada, mas trabalha sempre utilmente para a construção
para se alcançar a felicidade. de si mesmo! Que gigantesco edifício é uma alma! Nada mais
30 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
de inútil acontece; tudo fica indestrutível, tem o seu peso, as invertem. O Evangelho demonstra ser também uma escola de
suas consequências, é sempre útil para alguma coisa; cada dor fortes, mas de uma força diversa. Por isto os vencedores pela
nos enriquece de uma consciência maior. À medida que subi- violência a esta se apegam desesperadamente, porque sabem
mos, mudamos e a vida muda para nós. Que nos pode roubar a que, despojados desse meio, estão perdidos. Subindo, os ven-
velhice e a morte, quando somos uma alma imortal em ascen- cedores tornam-se vencidos, como se tornam sempre os juízes
são? Que importa a crucificação lacerante, se depois a ascensão perante os mártires por eles condenados. Em um plano mais
nos torna gloriosos? Muitos deliram acerca do fim da humani- alto, os inferiores tremem ao aventurar-se, porque se sentem
dade. A Terra poderá ser o féretro do seu corpo, mas não do seu desarmados. E, então, desafogam-se sobre os mais evoluídos,
espírito. Apagando-se o Sol, o nosso planeta não poderá mais golpeando-os pelo lado material. Mas estes são invulneráveis
hospedar a nossa vida de hoje. Mas esta não terá mais necessi- no seu plano espiritual, onde triunfam. Esta é a história de to-
dade daquele suporte físico, porque a humanidade terá alcança- dos os mártires, até ao maior: Cristo.
do uma outra vida, mais elevada, fruto da presente, e viverá em Tudo isto obedece leis que permanecem iguais à distância de
um novo ambiente, mais adaptado. Então, todos os restos terre- milênios e de uma ponta a outra do mundo. Elas tornam a apli-
nos da nossa civilização humana serão somente produtos de re- car-se todas as vezes que o ser se encontra em um dado grau de
fugo, deixados para mundos inferiores, para que eles os utili- evolução. A ascensão apresenta-se livre para todos, mas, quando
zem no seu plano, como acontece com todo cadáver em desfa- se quer percorrê-la, a rota é inalterável. Toda nossa atitude, seja
zimento. E a nossa humanidade será sempre viva e jovem, ex- ela qual for, nos prende sempre a um sistema, do qual precisa,
pressa em formas mais elevadas e mais felizes. depois, exaurir e absorver todos os elementos componentes, até
Como fica, diante de uma visão assim tão vasta, a nossa à ultima consequência. Desse modo, quem se empenha no plano
pequena biologia, com os seus fins limitados à sua fase e rela- da força, tem no começo, de fato, a vantagem de ver tudo permi-
tivos modelos? Como fica na biologia universal o nosso ―mais tido: o lícito e o ilícito, o justo e o injusto. Assim, ele pode es-
forte‖, obtido por luta e seleção? Nessa biologia maior, o mais carnecer de todas as leis morais do plano evolutivo superior. E
forte adquire um sentido completamente diferente, formando- tudo vai bem enquanto ele tem na força seu único apoio. Porém,
se através de uma luta e uma seleção bem diversas. A grande uma vez colocado sobre este terreno, quando perde este seu úni-
luta não é para submeter o semelhante à servidão, numa pobre co apoio, para ele não pode existir piedade. Então, a justiça, que
emersão de um bruto entre brutos, mas é para conquistar qua- ele violou, fará que ele pague tudo aquilo que injustamente to-
lidades superiores de sabedoria, numa decisiva emersão fora mou com a força. A queda de tantos grandes da Terra nos mos-
da animalidade e da ignorância. O mais forte nessa biologia tra quão seja perigoso usar esse método, que está sempre pronto
universal é o mais evoluído, que é verdadeiramente melhor do- a nos trair. A astúcia é força de caráter psíquico e, igualmente,
tado, porque é mais rico em qualidades para vencer as batalhas tenta subjugar, por isto está sujeita às mesmas leis. Quando,
da luta pela vida. Ele vence sempre melhor que o involuído, de após muito tempo, a mentira aparece, não há mais piedade para
mente obtusa, embora materialmente forte. Os grandes mons- o astuto e, então, ele paga por tudo. Cada um está ligado ao seu
tros paleontológicos, quais os brontossauros etc., bem gigan- sistema. Porém o mais sólido é o da sinceridade e da bondade,
tescos, pereceram por sua estupidez, enquanto sobreviveram único para construir estavelmente, sem antecipações e débitos,
animais menores e menos fortes, porém mais inteligentes. O que depois se hão de pagar. Então suporta-se a violência e a as-
homem os está chefiando. É lógico que a vida dê a vitória ao túcia, deixando simplesmente que o mundo saiba. Este, então, vê
mais evoluído, que representa o seu melhor produto. E ele me- no justo condenado o mártir, pois a Lei está escrita na alma hu-
rece, porque há mais tempo provou o seu valor e sofreu, sendo mana, que, queiram ou não, tem o senso do bem e do mal. Prin-
assim o mais rico de experiências e qualidades. A vida é sem- cípios verdadeiros em ponto pequeno ou grande, do indivíduo
pre econômica e justa. Mais no alto vence não o homem de mais humilde aos povos e nações.
corpo mais forte, mas aquele de espírito mais potente. Defron- Há uma invisível hierarquia de seres e valores, uma ordem
te ao seu dinamismo de alto potencial, a brutalidade é somente que ninguém pode subverter. Conquanto inerme e condenado
estúpida destruição. Que pode a ferocidade contra um explosi- ao martírio possa parecer o evoluído na Terra, ele pertence
vo? É belo observar a luta apocalíptica entre o anjo e o bruto. sempre a um plano de vida superior, do qual nenhuma conde-
Ela não é senão um momento da maior luta entre a luz e a tre- nação terrena poderá jamais arrancá-lo. Cada um é ligado às
va, entre Deus e Satanás. E Deus e a luz vencem. leis do seu sistema, e também o evoluído, que por ele finalmen-
Em qualquer nível, a vida exalta e faz triunfar aquele que é te é exaltado. A hierarquia é inviolável. Os vários reinos, mine-
o melhor em relação ao seu ambiente. Assim ela obedece ao ral, vegetal, animal, humano, super-humano, estão sobrepostos
seu campeão, vencedor do próprio plano. Dessa maneira, den- como os planos de um edifício, e cada um se eleva sobre o ou-
tro destes limites e relativamente às próprias capacidades, ele tro, dominando-o. Este é o equilíbrio da imensa construção do
é admitido à colaboração com a Lei na direção de fenômenos, universo. Direito, pois, à obediência dos inferiores, assim como
porque, como campeão, ele merece confiança; o tipo físico dever de obediência aos superiores. Ao comando estão ligados
domina só a matéria, o dinâmico domina a energia, e o tipo os pesos e a responsabilidade da direção; nele, pois, nunca arbí-
espiritual domina o espírito. Hierarquia de potencialidade e de trio e abuso, mas sempre função e missão. A Lei é um regime
domínio, pois que, no fundo, o mais forte é quem está mais no de justiça. Cada um gravita segundo o próprio peso específico,
alto na evolução, porque é aquele que mais manda. Ele opera no próprio plano evolutivo, isto é, encontra-se a viver na posi-
nas causas profundas, de onde tudo deriva depois; opera com ção que merece, conforme as próprias qualidades e real valor,
o espírito, que dirige a energia, e, através desta, atinge a maté- permanecendo, enfim, no sistema de força proporcionado e
ria, atuando sobre ela. O primitivo, crendo somente na força, adaptado a ele como vantagem e dever.
não pode compreender que a justiça, se vence mais tarde, Para ascender a um plano biológico superior, é necessário
vence mais profundamente do que a astúcia; não consegue en- haver antes percorrido e assimilado as experiências dos planos
tender que a inteligência e a bondade vencem afinal toda vio- inferiores, ter resolvido os problemas que neles nos atormen-
lência e que uma ideia, quando responde a uma função bioló- tam. A este propósito, muitos economistas afirmam que não é
gica, é mais potente do que um explosivo. O mais forte, no possível educar os povos para um mais evoluído nível de vida
sentido materialista, deve compreender que somente pode sê- sem antes ter resolvido o problema das necessidades materiais.
lo no seu campo animal-humano, fora do qual ele se torna um Afirma-se, como acima já indicamos (Introdução), que, com
fraco e inepto. Passando de um plano a outro, as posições se essas preocupações, não se pode pensar no espírito. O fato de o
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 31
homem moderno haver situado a questão nesses termos, revela se ou indivíduo pode vencer isoladamente. A vida já é coletivis-
a sua miopia, isto é, significa não ter compreendido qual é o ta há muito tempo. Se os mais evoluídos podem tirar da fonte, é
fim da vida, ou seja, a evolução. O erro está em exagerar a im- porque devem irradiar para os outros. A justiça social que hoje
portância do problema econômico e crer que a sua solução sig- tanto se procura, já existe na vida. Tudo nela está proporciona-
nifique resolver todo o problema da vida, que é bem mais am- do: fadiga, méritos, poderes. Quem não é digno, usurpa ou abu-
plo que o do estômago. E, então, perguntamos a nós mesmos: sa, recai nos planos inferiores, onde mais se serve, e é excluído
que saberá fazer do seu bem-estar um homem que, havendo re- dos planos superiores, onde mais se comanda. O vencedor deve
solvido o problema econômico e achando-se satisfeito em to- pagar a sua vitória em favor do vencido, que deve ser pago pela
das as necessidades materiais, por haver pensado sempre e so- sua derrota. Depois de ter cumprido, naquele plano, a justiça de
mente nisto, sem saber pensar em outra coisa, não possui ne- fazer triunfar o mais forte, a vida cumpre a justiça de ajudar o
nhuma preparação para um gênero de vida superior? Eis, en- mais fraco. Tudo é harmonia no conjunto, tudo é equilibrado
tão, o perigo já alhures notado. Não é lícito ignorar os fins da com justiça. As derrotas são compensadas e as vitórias são uti-
vida e limitar-se aos do estômago. A vida não pode parar ali e, lizadas, a força é estrangulada e a fraqueza é fortalecida; cada
se aceita essa meta, isto só se dá para subordiná-la a um fim um é exposto conforme a posição dada pela sua natureza, pois
mais alto. O nosso mundo materialista se detém nessa etapa, que é esta que estabelece e atrai os assaltos. A natureza, nunca
ignorando o resto, sacrificando tudo por ela. Ai de quem trair madrasta, compensará o servo à custa do dono e o débil à custa
os grandes fins evolutivos da vida! Esta quer ascender, não do forte. Este, mais dotado, crendo dominar, prestará ao outro o
quer por nada criar um gordo involuído, mas sim um evoluído, serviço de guiá-lo; o fraco servirá o senhor, mas este será o
não importa se magro. Em suma, para a vida, o problema do educador do servo. As barreiras sociais são artifícios humanos
nosso bem-estar é secundário frente à nossa ascensão, enquan- passageiros, já que a vida tende à unidade e, além dos antago-
to o homem inverteu os termos, tornando principal o secundá- nismos, propende à simbiose. Na realidade, o senhor não co-
rio e secundário o principal. Assim acontecerá que, se o ho- manda e o servo não se sujeita senão formalmente, eles convi-
mem não for preventivamente educado a saber fazer bom uso, vem, influenciando-se reciprocamente e adaptando-se um ao
para atividades mais elevadas, da abundância dos bens, do tem- outro; vencedor e vencido nada mais fazem do que executar
po livre e das energias disponíveis, dadas pela reduzida neces- funções complementares, das quais cada uma tem a sua com-
sidade de trabalho, então o mais alto nível de vida se reduzirá pensação. O dominador, com o bem-estar, se desfaz, e o servo,
somente a multiplicar os seus defeitos, excitando a cobiça de na sua dura posição, torna-se astuto e aprende a traí-lo. Assim,
gozar, a avidez de possuir, o ócio fatal. O novo poder do bem- alguns povos são mais inteligentes porque se tornaram astutos
estar, se obtido por um tipo não preparado, em vez de ser uma em milênios de servidão. Dessa maneira, em qualquer posição
vantagem, pode resultar em prejuízo. Não é pueril crer que se em que estejamos, a vida nos faz mestres e alunos um do outro.
possa satisfazer à insaciabilidade humana somente com uma No fundo de todas as dissensões e competições sociais, a vida
mais equitativa distribuição de bens? No fundo da alma de já estabeleceu as suas harmonias e as faz funcionar, colocando-
quem mais grita hoje contra a injustiça social não está o desejo as em atividade. Cada elemento tira do outro e cada um acaba
de alcançar uma equidade, mas sim de substituir aos atuais ri- por dar o que tem. Quem crê comandar serve aos servos, e
cos, para lhes imitar os feitos e de maneira mais desastrada. quem crê servir se faz servir pelos senhores. O mais forte não
Há, porém, um outro perigo. O bem-estar material adorme- pode deixar de irradiar e se expandir nos outros; o mais fraco,
ce o espírito, amortece a luta, o que faz parar a evolução e nos porque é mais pobre, absorve. Assim o mais forte, ligando-se
distancia da salutar fadiga, que é o meio para alcançar os mais ao mais fraco, lhe permite viver. Tudo se reduz a uma universal
elevados fins da vida. Que fizeram, historicamente, todas as convivência, na qual cada um, conforme sua natureza, atende a
classes sociais que asseguraram para si o bem-estar, senão apo- fins diversos, com objetivos complementares, formando a única
drecerem até à ruína? Para evoluir, portanto, não basta por si só grande orquestração da vida. Não há posição que não se com-
a solução do problema econômico, como sustentam as moder- pense de alguma forma do peso que a grava. Assim, o explora-
nas teorias igualitárias. Ninguém lhes nega a importância, mas do explora como pode o explorador, numa rede de desforras, e
é necessário compreender que isto ―por si só‖ alcança uma bem tudo se reduz a trocas fraternais. A vida utiliza todas as suas cé-
pobre solução, se ela não se faz acompanhar por uma paralela lulas, e, quer queiramos ou não, a convivência no mesmo ambi-
educação e preparação espiritual para saber viver em condições ente torna irmãos todos os seres.
melhores, fazendo de tudo bom uso. Que venha, pois, também a Qual é a sorte e a função dos fracos na sua economia? O
justiça social e a elevação econômica das classes menos abasta- número é a sua força. Assim, a natureza os protege. Por isto
das, mas tome-se em conta que, se tal crescimento não for eles se reúnem em grupos para se apoiarem uns aos outros.
compensado por um paralelo progresso moral e intelectual, tu- Sentem-se seguros somente entre as filas dos iguais; isolados,
do isto pode levar a uma ruína maior que a miséria atual, quan- estão perdidos. Não sabem pensar e agir sozinhos, mas pensam
do tantas coisas que se podem perdoar agora, seriam depois, em e agem coletivamente, como se fossem construídos em série,
condições melhores, imperdoáveis. E, hoje, é exatamente esta vibrando em paralelo. Desprovidos de qualquer autonomia, eles
sabedoria que falta, quando os bens não são meios para fins não sabem funcionar senão por imitação. Para saber pensar e
mais altos, mas somente fins em si mesmos e, com isto, motivo agir por si próprio, é preciso ter uma personalidade. As massas
de ódios e destruições. Que real vantagem evolutiva o bem- vão assim, como rebanhos, à procura de pastores. E a sociedade
estar econômico pode levar a esse tipo humano? De que serve já tem os seus homens-guias e normas-guias: instituição e che-
melhorar economicamente, quando se é imaturo para fazer disto fes, leis e costumes, civis e religiosos, em todo campo. O forte
um meio de progresso para planos de vida mais elevados? não vive na grei; ele emerge e se isola. A massa dos fracos é
As finalidades da vida estão acima das teorias humanas. necessária para fornecer ao forte o material com que trabalhar,
Elas querem levar a humanidade para o espírito, onde há maior mas um trabalho que serve para todos cumprirem os fins da vi-
poder e felicidade, e não fazer dela um rebanho de animais que da. Tudo se reduz a uma distribuição de funções. Deste modo, o
pastam. Todas as leis humanas, em qualquer campo, devem povo tem necessidade de chefes, assim como os chefes preci-
existir somente em função dos escopos da vida. É preciso com- sam do povo; os inteligentes têm necessidade dos ignorantes
preender os seus planos e segui-los, se não se quer ficar derro- para ensiná-los, e estes precisam daqueles para que possam
tado. Enquanto, na Terra, os homens lutam para monopolizar aprender; os bons têm necessidade dos malvados para ajudá-
egoisticamente tudo, a vida é sempre universal. Nenhuma clas- los, e estes precisam daqueles para evoluir.
32 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
Esses seres se combatem, no entanto não podem viver sozi- para se livrar das escórias, das incrustações, das superestruturas,
nhos; lutam para se conhecerem, chocam-se para se combina- que lhe impedem o caminho. Poda-se a árvore social, obra essa
rem, para encontrar a fórmula de sua simbiose. Se não é possí- em que todos colaboram a seu turno. O pensador lança a ideia, o
vel encontrá-la, então a adaptação sabe em geral alcançar a so- homem de ação a apanha e a aplica, as massas a fixam. Elas não
lução: o mais forte destrói o mais fraco e o substitui na vida. Se sentem analítica e racionalmente, mas intuem por instinto, no
isto parece cruel e desapiedado, é a esse sistema que a natureza fundo do qual é a vida que fala; são guiadas pela psique de seu
deve a sua força nos planos inferiores. Assim cada ser tem o núcleo vital. Os fracos, reunidos em grupo, sentem qual é a ver-
seu natural inimigo, segundo sua natureza e, nele, o seu conti- dade que pode executar a função biológica de ajudar e salvar e a
nuo exame de prova. ―Diz-me com quem lutas e te direi quem ela se apegam. Tal é, por exemplo, a materna e protetora função
és‖. Os grandes são solitários. Eles não aceitam a luta pelas pe- biológica das religiões, a que se agarram, mais do que todos, os
quenas coisas terrenas e não é com esta que se ligam aos seus fracos, os deserdados, os vencidos, à procura de ajuda para supe-
semelhantes, mas somente por missão de bem. Eles não agri- rar a dor, esperando e crendo. Eis o rebanho reunido e sectário.
dem os fracos, mas deles sentem piedade. O fraco tem sempre a Poucos são os fortes capazes de dar, em vez de pedir. Os demais
vantagem de ser menos odiado, pois não se odeia o inferior, que procuram apoio, uma defesa da vida, e os meios que os auxiliam
obedece sem oferecer obstáculos e pode, assim, ser dominado. cumprem uma função biológica.
Odeia-se, ao contrário, quem, sendo mais forte, representa uma O que observamos numa rápida visão não é senão um dos
ameaça e, por isto, é temido. Cada assalto, na natureza, é no aspectos da infinita sabedoria da vida. Dilatar os princípios aci-
fundo uma defesa. Todo ser é levado a agredir quem para ele ma expostos em ulteriores consequências nos levaria agora mui-
representa um perigo. Quando a simbiose não é possível, então to longe no caminho até aqui trilhado das ascensões humanas.
um dos dois deve perecer: o menos dotado. Dessa maneira, a
vida alcança os seus fins seletivos no plano animal-humano. VIII. A METAMORFOSE
Ela elimina os ineptos. Se isto parece ferocidade nos planos
mais altos, não o é em relação ao próprio nível onde se verifica Depois de examinada a seleção no plano animal humano,
e à sensibilidade dos seres que toca. O que justifica a vida é a observemo-la nos planos mais altos. Defrontamos agora o pro-
função. Se esta cai, aquela é inútil. As células imperfeitas dos blema que mais de perto interessa ao nascente tipo biológico do
grandes organismos são sacrificadas para vantagem e perfeição futuro, isto é, o problema daquela profunda transformação que
das outras. Esta é a condição do triunfo final. leva o ser humano do seu atual nível biológico para um evoluti-
Assim é a sabedoria da vida. O que é destrutivo, no fundo, vamente superior. Procuremos observar o fenômeno da meta-
é criador, e o que é negativo assume um valor positivo. E a morfose do involuído em evoluído, explorando os desusados
harmonia do conjunto, no caso particular do indivíduo inepto, caminhos da futura biologia supernormal. Daremos assim um
não é destruída senão na forma, pois ele é eliminado do ambi- novo passo para diante, sempre mais progredindo no caminho
ente que lhe é menos profícuo, enquanto o princípio espiritual da ascensão do ser. Poderemos então, paralelamente, ascender
reencontra a vida em uma forma mais adaptada. A vida segue para verdades sempre mais vastas e profundas. Aqui, a particu-
aqui um método geral e lógico para a eliminação dos valores lar experiência de um caso vivido, já exposta, torna-se visão
fictícios e das passividades, permitindo que, na desordem das das leis gerais do fenômeno. Completaremos, então, as normas
revoluções, na decomposição dos enquadramentos sociais, que regulam o desenvolvimento do ser nessa nova fase da sua
aflorem os extratos inferiores. Assim, a história, momento da evolução, distanciando-nos sempre mais do plano humano atu-
biologia social, entra em crise. Então, a vida procura superá-la, al. Mundo supernormal, que não se pode explorar experimen-
para dela sair mais forte e imunizada, como acontece nas do- talmente com o método objetivo, mas somente por visão interi-
enças. São esses os momentos em que os micróbios patogêni- or, com o método da intuição. É necessário apegar-se a esta, já
cos – compostos, tanto na patologia orgânica como na social, que o campo é inacessível à investigação racional. O mundo do
pelos involuídos dos planos inferiores – prosperam, só porque espírito não se pode explorar com instrumentos materiais, mas
encontram o ambiente adaptado para demolição. Micróbios so- somente com meios espirituais. Para o ser não sensibilizado, in-
ciais, que não afloram senão nas horas patológicas das revolu- capaz de conceber os conceitos que seguem, bem como de ob-
ções. Depois, eles são repelidos para os planos biológicos infe- ter sua visão por intuição, não podemos senão expor-lhe o re-
riores, seu ambiente natural, porque cada ser acaba sempre re- sultado racional, sem outra possibilidade de controle. Como
caindo no próprio plano de vida, por peso especifico, equilí- prova, podemos oferecer a concordância de todos os fenômenos
brio e sintonia. Assim, os filhos da desordem são depois reto- observados nestes volumes e que convergem para as conclusões
mados no ciclo de forças do seu mundo, pois que ninguém po- neles expostas. Quando tudo se enquadra e, logicamente, tudo
de resistir longamente fora do seu elemento. As posições fictí- se explica, a razão pode ficar satisfeita.
cias, não correspondentes aos valores reais, logo caem. Desse O problema da evolução do ser humano nos leva para fora
modo, os vencedores das revoluções raramente são os que as do campo dominado pela biologia normal, ao seio de uma ou-
fizeram, e depois se restabelece uma ordem diversa, da qual tra biologia, que domina um campo mais elevado. Temos dito
eles são expulsos. Inicialmente, as revoluções são destrutivas e que ela muda com o ascender evolutivo de grau em grau. Não
a vida, então, mobiliza a ralé incumbida dessa destruição. Po- é de se admirar, então, que, em um universo em contínua as-
rém depois, quando esses elementos exauriram sua função, censão, a utopia de hoje representa a realidade do amanhã. O
tornando-se inúteis, a vida se desembaraça deles, para chamar fato é comum na história da vida. Vejamos se compreendemos
à ação os mais evoluídos. Dá-se, assim, como que um processo a estrutura do tipo humano do futuro e as leis da nova biologia
de decantação ou depósito, pelo qual as unidades mais grossei- supernormal na qual ele se move. Enquanto o homem atual é,
ras e de maior peso específico, gravitando para baixo, aí retor- com prevalência, assinalado pelos seus caracteres físicos, o bi-
nam para se encarregarem de funções inferiores. ótipo do futuro o será por caracteres psíquicos. Confrontando
Semelhantemente, a guerra é o grande catalisador, isto é, re- as duas biologias, que evolutivamente são contíguas e comuni-
presenta a ação decisiva na química dos povos. Tudo isto a vida cantes, podemos dizer que aquilo que, hoje, é psíquico tomará
faz para voltar aos valores reais e, assim, garantir a eficiência da amanhã o valor e a precisão anatômica do que, hoje, é somáti-
função de cada um. Exame periódico de tudo, indivíduos, castas, co. Enquanto, hoje, o homem é considerado pela ciência como
povos, leis, instituições, para reformar, desfolhar, liquidar, dei- organismo prevalentemente animal, amanhã ele será conside-
xando somente o útil e o bom. Com esses meios, a vida trabalha rado como organismo espiritual.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 33
Como se dá a criação de novas formas de vida? A existên- por graus, até que este último, fixado em novas formas, terá
cia se deve a uma contínua restituição por trocas, isto é, a um construído os meios e os órgãos para uma atividade superior.
movimento que, tendo uma direção natural, significa caminho A palavra alma é genérica, e o espírito não é uma quantidade
evolutivo. No íntimo de cada forma, está a perene imanência constante, mas um edifício em construção. O tipo biológico
do pensamento de Deus, que impele o ser a percorrer aquele do porvir pode representar, em face do atual, uma hipertrofia
caminho. A forma define precisamente toda sua posição su- psíquica, uma elefantíase espiritual, uma hipersensibilidade,
cessiva e, para não se imobilizar, torna-se destrutível, portanto uma dilatação de consciência e de conhecimento hoje incon-
suscetível de contínua renovação. Esse perpétuo morrer e re- cebíveis. Se confrontarmos o crescido funcionamento cerebral
nascer de todas as coisas é o que torna possível o transfor- e intelectual moderno com o do homem pré-histórico, pode-
mismo evolutivo, de outro modo impossível. Assim, o existir mos bem imaginar o que ele poderá vir a ser no futuro, conti-
é um tornar-se, mas ascensional; um relativo, mas sempre em nuando esse caminho. Ninguém pode negar as novas condi-
evolução. O pensamento de Deus, ao movimentar-se progres- ções de vida do homem moderno em um ambiente de veloci-
sivamente, faz pressão do interior para se manifestar na for- dade e de máquina. E ninguém poderá impedir que essas con-
ma, sua expressão. É evidente, e a vida assim nos diz, que a dições de vida, que são um desenvolvimento do passado, con-
expressão que dá forma a nós e a tudo que existe vai do mate- tinuem a se desenvolver no futuro e a influir sempre mais so-
rial ao espiritual e além. De modo que, com a evolução, aque- bre o gênero de experiências e, pois, de funções que comple-
la forma se faz sempre menos concreta e mais abstrata, tor- tarão a nossa vida de amanhã. Essas funções, tenazmente apli-
nando-se assim expressão sempre mais clara do íntimo pen- cadas por longa repetição ao organismo atual, só podem resul-
samento criador, portanto mais semelhante a ele. Temos visto, tar na transformação desse gênero, para criar um organismo
nos precedentes escritos, como se dá o desenvolvimento da novo, mais adaptado à sua atuação. Com a mecânica evoluti-
personalidade por expansão de consciência, por força da con- va, dada pela oscilação entre órgão e função, chegar-se-á ao
tínua experimentação que é o fruto da vida. Esta é a parte ex- novo tipo biológico, com características predominantemente
pressa pela colaboração humana, que segue com a sua fadiga espirituais, e não mais físicas.
o íntimo divino impulso criador. Aqui nos propomos observar esse fenômeno, concebendo-o
A ciência pergunta se a função cria o órgão ou o órgão cria não pelo lado ideal, mas biologicamente. Queremos ver o espí-
a função. Recordemos que o órgão é forma transitória, forma- rito não como vaga aspiração, mas enquadrado na biologia su-
da, sustentada e transformada continuamente pela função, que pernormal do futuro. Trata-se de uma nova biologia do espírito,
é a atividade na qual, gradativamente, se exprime o íntimo com suas respectivas leis, na qual o homem se prepara para in-
pensamento criador. O que é real na vida não é a forma, mas a gressar. Já dissemos alhures que a humanidade atual, em face
trajetória do seu tornar-se. É neste tornar-se que se manifesta desse novo plano evolutivo, se encontra psiquicamente na sua
o íntimo impulso do pensamento criador, em que o ser, com o fase paleontológica de incertas formações e precipitados esbo-
desejo, repete em ponto menor o gesto de Deus, tentando o ços. É a fase dos ensaios e das tentativas. Construções espiritu-
primeiro esboço do órgão. Cada ato, expressão daquele pen- almente monstruosas, que aguardam, para fixar-se, a verifica-
samento, vem logo experimentado pelas resistências do ambi- ção na experiência. Elas representam um primeiro funciona-
ente; é repetido se houver êxito e, com isto, fixado e desen- mento desordenado, que está plasmando o seu órgão, a consci-
volvido no crescimento do órgão, seu meio. Toda formação ência, hoje rudimentar. O fenômeno é originado pelo íntimo
atual da vida não é senão repetição de atos iniciais bem suce- impulso criador, amadurecido por todas as construções prece-
didos, confirmados na prática, consolidados em órgãos estabi- dentemente completadas, potenciado por todas as conquistas já
lizados, que permanecem até que haja evolução ulterior para a feitas. As experiências de hoje, sociais, artísticas, bélicas, inte-
formação de novos. Se, assim, é a função que cria o órgão, lectuais etc., representam também um exercício de novas fun-
não se pode negar que seja depois o órgão que permite à fun- ções psíquicas, que tendem a formar órgãos espirituais novos,
ção fixar-se e agir sobre ele para o transformar, aperfeiçoar e derivando-os daqueles rudimentares hoje existentes.
desenvolver até ao ponto de conseguir um meio superior Trata-se de uma verdadeira grande volta da evolução, que
àquela expressão, utilizando seu funcionamento para fazer quer levar a humanidade para um mais elevado plano de vida,
uma nova forma para si. Então é de novo a função que cria um deslocando assim o seu centro de gravidade. Nenhum período
órgão sempre mais perfeito, e assim por diante. Mas a este histórico foi mais intenso e ativo nesta transformação, o que
ponto ela não pôde chegar senão porque pôde primeiro mani- explica assim a destruição dominante e o universal dinamismo
festar-se e agir por meio do órgão já formado. Dessa maneira, do nosso tempo. A maioria tem somente o sentido da ruína,
tudo está concatenado em continuação, num lento transfor- mas no fundo dela, por lei da vida, está sempre a ressurreição.
mismo, e os dois meios de expressão, o órgão e a função, se Se a civilização europeia está morrendo, ela deixa no entanto,
escoram reciprocamente para chegar ao mesmo fim de evolu- como tudo que morre, uma semente, e cada filiação repete a
ir. Pois que toda função tende a formar um órgão sempre mais vida precedente em um grau mais elevado. A cada novo re-
complexo e perfeito e todo órgão permite que haja expressão bento seu, há um imperceptível deslocamento para um ciclo
de uma função sempre mais complexa e perfeita. Reciproca- maior. Tal como o fruto cai da árvore quando está maduro e o
mente, causa e efeito, órgão e função, são como duas pernas filho se solta da mãe tão logo esteja crescido – processo em
sobre as quais caminha a evolução. que o novo se destaca do velho, abandonando-o – assim tam-
Se esta, agora, se encaminha para o espírito (que sabemos bém, apenas a função esteja amadurecida e fixada, a nova ci-
representar um grau maior de liberdade, conhecimento, potên- vilização do espírito se destacará da velha civilização materia-
cia e expansão), é lógico que o íntimo impulso criador tenda, lista, que cairá abandonada como inútil. Toda vida é um ciclo
através da mencionada mecânica evolutiva, a transformar o que se renova e se dilata no ciclo seguinte. E, assim como a
organismo físico em organismo espiritual, através de um fun- vida percorreu e superou o ciclo mineral, vegetal, depois ani-
cionamento que, de físico, expresso por órgãos materiais, ten- mal e, enfim, humano, agora, pela mesma lei que a lançou por
de a fazer-se sempre mais espiritual, expresso por órgãos ima- esse caminho, ela deve percorrer o ciclo sucessivo, o super-
teriais. Já no atual grau de evolução, o homem começa a re- humano do espírito. Assim como, no desenvolvimento, o ciclo
presentar um funcionamento que se faz sempre mais nervoso mineral está para o vegetal, o vegetal para o animal e este pa-
e psíquico. Eis a fase de transformação do velho organismo fí- ra o humano, o humano está para o super-humano, que dele se
sico, com a formação de um novo organismo espiritual, e isto distancia em um ciclo mais alto, progredindo com o mesmo
34 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
ritmo de ascensão e desenvolvimento. O espírito, fruto da ex- passo a novas formas; daí um contraste penoso, mas criador.
perimentação por meio do organismo material, tenderá a des- Devem dar-se, então, profundas transformações na íntima estru-
tacar-se sempre mais da matéria, em cujo seio é elaborado, tura cinética da substância orgânica, para registrar e fixar os re-
para formar órgãos de expressão mais adaptados à sua nova sultados de um metabolismo diversamente orientado, para no-
estrutura, mais refinados para suas novas funções. Esta é a vas formas biológicas: as espirituais. Todas as energias e os re-
grande metamorfose dos futuros milênios. cursos da vida física devem ser cedidos à outra forma que sur-
Sendo tal metamorfose uma revolução biológica, é natural ge; todas as qualidades já adquiridas devem ser postas a serviço
que ela se verifique numa atmosfera de destruição e de renova- e orientadas para o seu crescimento, pois que, sem morte, não
ção. À sua testa estão os ideais e quem os professa; na sua cau- pode existir ressurreição; sem renúncia não há conquista.
da estão os instintos animais e os involuídos, que os vivem. É uma estranha sensação sentir-se renascer em outro pla-
Tais são as forças biológicas em contraste. As atividades que no de vida, com recursos e poderes diversos. Cai então o
fazem a nossa vida representam as várias funções formadoras conceito da pequena e breve vida humana, e nos sentimos vi-
de órgãos. A matéria, forte na sua formação do passado, resiste, ver em uma imensa vida eterna. O senso fundamental de ale-
mas o espírito já está em ação, e isto significa que está em ato o gre expansão, próprio de todo desenvolvimento, nos diz que
processo de formação dos novos órgãos de sua expressão. A estamos no caminho mestre da evolução. O senso de felicida-
permuta da vida e a assimilação dos frutos da sua contínua ex- de crescente nos diz que não erramos. O novo senso de orien-
perimentação não pode parar. O mineral chegou à construção tação, que nos dá consciência e sabedoria, nos diz que sem-
do seu edifício geometricamente orientado, a planta conquistou pre mais nos avizinhamos de Deus. É estranho e maravilhoso
a sensibilidade e a permuta, o animal alcançou o movimento e o sentir-se mudar, morrer para reviver em novas dimensões,
instinto, o homem atingiu a inteligência e o domínio. Assim, o além do espaço e do tempo, sentir que a própria vida física se
super-homem alcançará, com a intuição, o conhecimento e a atrofia, se contrai, para ceder a sua potência a qualquer outra
sabedoria. A progressão em potência e libertação é evidente, e parte do eu, que ainda não se conhece e que foge no impon-
o futuro não pode ser senão a continuação do passado na mes- derável. Parece que a vida física se esvai, absorvida pela vo-
ma linha de desenvolvimento. racidade do espírito. Se o corpo passa para segundo plano e
Na metamorfose evolutiva, o novo homem espiritual deve parece agonizar, ele é todavia sustentado, porém não mais
substituir o atual homem animal. As experiências da sua vida se por fontes orgânicas, e sim espirituais. Profundas alterações
tornam sempre mais psíquicas e sempre menos físicas. A nova devem advir na permuta e na assimilação, para passar da
função já está começada, e as suas experiências no novo campo normal, do alimento, à da energia cósmica, devendo a íntima
não podem deixar de desenvolver o meio apto que as exprima e estrutura do metabolismo celular transformar-se toda. Mas as
as fixe. Esse novo gênero de atividade se faz sempre mais di- leis da vida sabem conduzir-nos a bom termo.
fundido e profundo na raça humana; resulta disto que se desti- Então, começa-se a ver o mundo com olhos diversos, tor-
lam sempre novas qualidades no imponderável, que assim, nando-se de natureza diversa o contato com o ambiente; apare-
amanhã, tornar-se-á de pleno domínio humano. Dessa forma, os cem, então, novos aspectos, mais psíquicos do que físicos. As-
novos organismos imateriais se desenvolvem e se potenciam sim, os contatos e as experimentações se espiritualizam, as tro-
até se elevar à forma autônoma e, através de sua coordenação, cas e abastecimentos dinâmicos seguem novos caminhos radi-
constituir um organismo para o qual, do plano material, será antes, que não são mais os do alimento. A sensibilidade, que
transferido o centro do sistema de forças da vida humana. As- exprime o grau de expansão vital e fornece os seus meios, ini-
sim, a função psíquica, derivada da atividade gerada pelo fun- ciada com o ingresso do reino mineral no vegetal e acentuada
cionamento orgânico animal através da luta pela vida, torna-se no mundo animal e humano, se desenvolve até transformar o
dominante e determinante de um diverso organismo dele deri- organismo em uma unidade vibrante. O evoluído é um sensibi-
vado. De modo que o organismo físico, antes principal, em fun- lizado. Nele abrem-se novas portas, com a queda de diafrag-
ção do qual existia a psique, torna-se secundário e acaba por mas, permitindo comunicar e receber. Então, além do limite do
viver em função do psíquico, tornado dominante. Enquanto ho- espaço e do tempo, o mundo se torna imenso. Entra-se, depois,
je, para a maioria, o espírito é uma antecipação rudimentar da no domínio de novas leis, com um funcionamento orgânico e
evolução e o corpo é toda a sua vida, amanhã a vida estará toda uma química cujos elementos componentes são forças-
no espírito e o corpo não representará senão um apêndice aban- pensamentos, um mundo dócil e plástico, em que a concepção
donado na cauda pela evolução, resíduo do passado, em proces- tem potência criadora. É, por certo, uma grande revolução pas-
so de lenta atrofia. Um dia, como hoje se dá com alguns órgãos, sar da biologia normal à supernormal. A química do metabo-
todo o atual organismo será uma sobrevivência atávica, um re- lismo de alta potencialidade, própria do extremo superior, dito
síduo de formas vividas e superadas, que o ser se prepara para espírito, deve gradativamente introduzir-se, substituindo a
abandonar definitivamente nos mais baixos degraus da evolu- química do metabolismo de baixa potencialidade, própria do
ção. Então, o homem viverá em plena biologia supernormal. A extremo evolutivo inferior, dado pelo organismo físico, que é,
esta conclusão nos leva toda a lógica do sistema. assim, como queimado pela lenta combustão de uma potência
No estado atual, o homem está em fase de transição entre as e um ritmo de vida demasiado fortes para os seus meios e es-
duas biologias: a animal e a espiritual. Isto corresponde ao uni- trutura. O corpo, assim, emagrece, torna-se em feixe de nervos,
versal transformismo físico-dinâmico-psíquico. Em um primei- mas com um dinamismo e resistência ao trabalho e doenças
ro tempo, a psique, produto do funcionamento orgânico, está a superiores ao normal. Parece que a vida trata agora o organis-
serviço deste; em um segundo tempo, quando aquele produto mo físico como uma inútil sobrevivência atávica, produto de
elaborado pela vida orgânica se tornou adulto, o equilíbrio do refugo a ser eliminado em cinzas. Certamente a química do es-
sistema de forças constitutivas do ser se desloca e tudo começa pírito não só deverá basear-se em leis análogas às da química
a gravitar para outra extremidade. Então, o corpo torna-se de inorgânica e orgânica, mas também, assim como a química
senhor em servo, de fim em meio, e a sua atividade, em vez de atômica recorda a dinâmica astronômica, deverá lembrar a es-
subordinar a si o espírito, como no tipo corrente, subordina-se trutura dos sistemas de forças segundo os quais a energia se
ao espírito, como nos mais evoluídos. Isto desloca todos os va- organiza por frequências. Um primeiro contato entre o extremo
lores da saúde e da doença, do bem-estar, da vida e da morte. psíquico e aquele físico humano, o encontramos na influência
As velhas formas de vida ficam esvaziadas do conteúdo normal que tem na assimilação e permuta um estado psíquico do sujei-
e com significado de todo diverso. Então, elas devem ceder o to, tanto que, se prolongado, ele pode incidir na estrutura orgâ-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 35
nica e alterá-la. Isto prova que é possível, por parte da psique, te. Então, em vez de elevar o homem ao nível do espírito, abai-
uma influência transformadora na estrutura da célula. xa-se o espírito ao nível do homem. Em vez de efetiva colabo-
Como se vê, a catarse espiritual não é somente fenômeno da ração entre os dois, nasce luta e atrito, destruição e deformação.
alma, mas, para ser completa, deve conter todo o ser humano até É da forçosa imposição da virtude que nasceram em tantos ima-
o seu outro polo, o físico, com que se comunica. As duas biolo- turos os arranjos e as mentiras.
gias estão em contato, representam dois planos evolutivos contí- A evolução é mudança profunda, que requer infinitas expe-
guos e trocam entre si os seus produtos. Na prática, podemos ter riências, mesmo do mal, do erro e da dor, operadas tanto no
metamorfoses muito diversas, seja pelo grau de evolução, seja espírito como no corpo. Para que a vida, que deve viver, não se
pelo particular tipo biológico que as vive e, portanto, pelas res- rebele com razão, é preciso, antes de destruí-la embaixo, de-
pectivas qualidades a serem adquiridas. Que diverso conteúdo senvolvê-la no alto. Antes de ser sufocamento no corpo, a as-
pode, pois, adquirir para os vários indivíduos a metamorfose! censão espiritual deve ser expansão no espírito. Somente então
Em todo caso, porém, como velocidade, o transformismo é sem- a vida se lançará deste lado, e o resto, tornado inútil, cairá por
pre gradual, diluído no tempo, de modo a permitir os íntimos si. Ai de nós se dermos à prática da virtude um conteúdo nega-
deslocamentos cinéticos necessários para a substituição das ve- tivo, em vez de positivo. A vida não pode destruir-se, o que se-
lhas trajetórias pelas novas. Mas tudo é sempre proporcionado ria contra a lei de Deus, além de ser um suicídio. Então, se qui-
aos recursos disponíveis e à maturidade atingida. Tudo se realiza sermos tirar antes de dar, ela reagirá, reforçando-se embaixo
com ordem, de modo que os equilíbrios são deslocados, e não para não morrer, e obteremos por reação o efeito contrário, isto
destruídos. Trata-se de instituir novos circuitos de forças, lançar é, a involução. É preciso sempre ter em conta a que tipo bioló-
pontes e suprimir outras, abrir ou fechar passagens, dissecando gico um ideal é aplicado. Assim é que se explica como, na prá-
ou alimentando, atrofiando ou desenvolvendo este ou aquele tica, todo ideal representa uma afirmação teórica que pede
ponto, ou vibração, ou corrente. Trabalho complexo, onde nada cem, sabendo que recolherá apenas um. É a natureza das mas-
mais há senão confiar-se à sábia direção da Lei. A vida, que sa- sas que estabelece a dosagem para a assimilação dos princípios
be, protege nesses profundos trabalhos evolutivos a criatura que, pregados, aos quais, por isto, não se pode lançar a culpa de
inexperiente, se aventura no inexplorado. uma aplicação falha, porque esta depende do terreno no qual a
Velocidade de transformismo significa intensidade de ela- semente cai. É preciso recordar que a evolução é uma grande
boração, que não pode superar um dado limite relativo. A evo- transformação e que a vida sabe o esforço e o risco que isto re-
lução tem um ritmo que não se pode forçar. Pode, assim, haver presenta para ela. Ela caminha lenta e prudentemente, explo-
necessidade também de pausas e repousos, ainda de momentâ- rando o ignoto futuro com desconfiança; das energias acumu-
neos retrocessos, para que a evolução não se torne destruição. ladas, não arrisca o necessário à vida, mas somente o supér-
Problema vasto e complexo o da ascensão espiritual, porque diz fluo; expõe aos perigos do novo somente alguns pioneiros da
respeito a uma biologia na qual o imponderável psicológico e evolução, deixando o grosso atrás, em mais segurança, para
moral se torna força dominante. Certas concepções absolutistas aprovar ou seguir os pioneiros somente quando eles tiverem
de um ascetismo não iluminado podem, em vez de ajudar, cau- experimentado sozinhos, com risco e dor própria, a forma futu-
sar dano ao processo evolutivo. Este representa uma maturação ra. Então, esta pode ser seguida pelos outros, porque somente
de todo o ser, por isto também do corpo, que não deve ser inu- aí ela dá segurança. Assim, os pioneiros ficam glorificados,
tilmente perseguido e esmagado como um inimigo, mas tratado porque utilizáveis para a vida.
como um aliado colaborador na árdua obra construtiva. Os dois Podemos, pois, encontrar-nos com diversíssima velocidade
polos são comunicantes, e cada impulso desconsiderado pode de transformismo evolutivo: desde a rapidíssima do super-
gerar reações prejudiciais. Nenhum dos dois extremos pode tra- homem, que já se lançou e percorre a grandes passos o seu ca-
balhar sozinho, mas sempre em função do outro. Trata-se de minho, até às mais limitadas e lentas dos normais, que funcio-
uma sábia distribuição de trabalho. É necessário haver propor- nam em série, como massas. A vida não pode ingressar nos
ção e equilíbrio a cada passo, porque o desequilíbrio que o planos superiores da evolução sem ter antes percorrido os pre-
transformismo implica deve ser enquadrado no equilíbrio geral cedentes e haver se consolidado neles. É a vida, e com ela o
do sistema. É necessário saber dosar o esforço evolutivo em re- pensamento de Deus, que aperfeiçoa a sua manifestação, dando
lação aos recursos que a vida dispõe no caso particular. Que a evolução à forma pela qual se manifesta.
ascensão seja uma metódica e consciente conquista, e não uma Mas também as massas conhecem as crises evolutivas, as
louca aventura. Evoluir significa revolucionar os equilíbrios da quedas e as reconstruções; também para elas a história tem
vida, o que, se mal feito, pode resultar, em vez de progresso, voltas e metamorfoses. Eis como tudo isto acontece. A fecun-
em retrocesso. Para se fixar na alma é necessário haver mais didade da vida é tal que produz em exuberância, além das ne-
perseverança e disciplina do que ímpetos precipitados e desor- cessidades para sua continuação. Logo que, nos períodos de
denados. É preciso ter em conta que a evolução espiritual é um paz, há trégua na luta viril, destruidora e construtora, o ele-
fenômeno que se desenvolve entre duas biologias, portanto não mento negativo ou feminino, produtor, protetor e conservador
é somente um fato moral, mas penetra todo o organismo, tam- da vida, trabalha e produz no seu campo, que é o da acumula-
bém o físico, com o qual precisa fazer as contas. ção de material. Então se verifica, assim, uma superprodução
É muito difícil formar um conceito exato e são de virtude, que não somente repara todas as perdas passadas, mas também
especialmente no caso particular das aplicações práticas. De to- acumula material biológico em abundância. Logo que se haja
da maneira, ela deve ser sempre um auxílio, e não uma ofensa à formado uma suficiente reserva, elaborada até um dado grau
vida, uma atividade positiva e construtiva, e não de prevalência de evolução, então a vida, tal como já fez no mundo mineral
negativa e destrutiva. Lembremos que Deus é sempre construti- para chegar ao vegetal, em seguida no vegetal para chegar ao
vo, e que o trabalho de destruição foi deixado a Satanás, que o animal e depois no animal para alcançar o plano humano, pode
executa. Tudo o que é destruidor não pode, pois, vir de Deus e arriscar em sua economia o sacrifício desse material excedente
exprime o princípio satânico do mal. Não façamos da virtude, ao necessário, para fins não mais de conservação, mas de evo-
na luta pela vida, um meio para oprimir e vencer o próximo. lução. Então, a vida queima esse seu combustível e o consome
Por outro lado, ministrar ideais muito elevados e absolutos sig- em revoluções, usando-o para alimentar um esforço excepcio-
nificaria oferecer um alimento não assimilável. Desta despro- nal de ascensão, destruindo com as revoluções as suas constru-
porção entre ideal e homem é que nascem as degradações dos ções biológicas menos eleitas e, ao mesmo tempo, deixando
princípios por adaptação, como observamos tão frequentemen- sobreviver das cinzas do incêndio os mais selecionados tipos
36 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
biológicos, aptos para mais altas formas de vida. Completado o pois, tal como faz o pé ao subir, um novo impulso para um de-
ciclo da paz com a construção dos seus produtos, entra em grau mais alto. Os superados são abandonados embaixo, como
campo o princípio positivo, másculo, destruidor e criador, cuja formas de vida já inúteis, mas os superiores, pelo fato de domi-
função é utilizar o combustível acumulado, queimando-o para ná-los, resumem em síntese e contêm todo valor já adquirido.
renovar e fazer evoluir as formas da vida. Assim, nas revolu- Assim, nada se perde e a conquista continua.
ções, cumprem-se as metamorfoses dos povos. Mas essas não Nesse movimento vivem dois processos paralelos: um de
podem vir senão depois de períodos de preparação, de paz, e destruição na cauda e outro de construção na cabeça, à seme-
requerem outro tanto depois para elaborar e fixar os resultados lhança de vermes que caminham desintegrando-se de um lado
atingidos com as revoluções. No entanto se acumula novo ma- para reintegrar-se no outro. Assim este, mesmo enquanto se
terial de reserva ou combustível para as queimas, para novos transforma ao progredir, fica inteiro, pois que readquire em no-
deslocamentos evolutivos, e assim por diante! Dessarte, de me- va forma aquilo que perde. Na substância nada se cria e nada se
tamorfose em metamorfose, também os povos progridem. destrói, mas tudo se elabora. No homem que ascende, há sem-
Esse processo faz parte do sistema criador, em que Deus pre qualquer coisa que se deixa e qualquer coisa que se adquire,
perpetuamente está presente e opera, manifestando-se na for- em um movimento paralelo e proporcional que o desloca para o
ma. Assim, a produção exuberante como quantidade, mas de alto. Essa técnica é igual para todos, em todo nível, relativa ao
qualidades inferiores, destila-se no seu equivalente, menor passo de cada um, seja ele involuído ou evoluído, caminhe in-
como quantidade, mas de qualidade superior, em um plano conscientemente, somente como célula em função de uma mas-
biológico mais elevado. Dessa maneira, aumenta a potenciali- sa, ou como autônomo e consciente, autodirigindo-se.
dade da expressão, porque o valor passa de um grande número Evoluir é o motivo dominante neste e nos outros volumes,
de exemplares de escasso valor, a um mais exíguo, mas de observado em todos as aspectos e níveis do nosso concebível.
maior potência e mais elevado grau evolutivo. Esse é o ritmo Vimos isto alhures, como fenômeno inspirativo, psicológico,
da ascensão dos povos e civilizações. Primeiro paz, trabalho, místico e filosófico. Aqui, quisemos observar como fenôme-
desenvolvimento demográfico, construção material e espiritu- no biológico. Quando um primitivo resolveu o problema da
al, isto é, expansão em sentido horizontal sobre a superfície do fome e da reprodução, está satisfeito com suas conquistas.
próprio plano evolutivo, depois aquela formação horizontal é Outros querem alguma coisa a mais: honras, poder, riquezas.
utilizada para o único fim possível, isto é, para crescer na ver- Outros ainda mais: a cultura e o bem coletivo. Outros, enfim,
tical. Então, a primeira se desfaz e, do que resta, porque é mais um pouco mais: a visão do universo e o amor de Deus. Mas
resistente e vital, faz-se um edifício em altura, isto é, em dire- todos apressam o passo para alcançar qualquer coisa, e nisto
ção evolutiva, em potência. Utilizando os resultados do ciclo cada um se revela quem é, pois que não se sabe desejar e não
precedente, toma-se o impulso para um novo, podendo assim se conquista senão conforme a própria natureza. Assim, há
chegar bem mais alto, ao utilizar somente o valor intrínseco e a trabalhos e conquistas fundamentais para alguns, que para
potência das conquistas feitas, sem trazer consigo o peso dos outros estão no inconcebível. Há coisas tremendas, para as
particulares elementos determinantes. Assim, de revolução em quais o inferior não tem a mínima ressonância. Há necessida-
revolução, caminha a história e evolui a vida. Dessa maneira, des espirituais, como as do conhecimento, que para uns são
por alternada vicissitude entre paz e guerra, entre períodos de fundamentais, mas que para o primitivo não têm sentido, pois
legalidade, representando a fase de estabilização e assimilação, fundamentais para ele são as do corpo. Ele é surdo e cego em
e períodos de ilegalidade, representando a transformação, ca- face das grandes alegrias, tempestades e criações do espírito.
minham os povos. Estas fases, ambas necessárias e comple- Cada um está fechado no próprio concebível, nas dimensões
mentares, são como uma respiração a dois tempos, a respiração do próprio plano evolutivo, limitado pela própria forma men-
da história. Elas não são senão duas posições inversas, uma no tal, que lhe define a natureza. O que está além do próprio ní-
positivo e outra no negativo, da mesma perene atividade cria- vel, latente, ainda não desenvolvido, representa o nada. É a
dora de Deus na humanidade. estrutura da nossa consciência que estabelece os confins do
No seio desses movimentos de massa, os indivíduos seguem eu. A verdadeira servidão é dada por esses limites, a verda-
ciclos pessoais. Aquele para, aquele caminha, aquele retrocede, deira liberdade consiste somente em superá-los. Todo ser está
aquele procede lentamente, cada um segundo sua natureza e fechado nos limites constituídos por seu próprio tipo biológi-
condição. Mas é sempre por revoluções ou metamorfoses que co. É inútil indicar-lhe portas: se não está amadurecido, não
se ingressa em formas de vida mais altas, é sempre pelo mesmo sabe passar por elas. É inútil mostrar-lhe novos mundos: não
incêndio que se ascende, tanto para o indivíduo como para as tem olhos para vê-los. É inútil oferecer-lhe novo alimento:
massas. Quando, num plano, experimentou-se suficientemente, não sabe nutrir-se dele. É inútil dizer-lhe tudo nos livros: não
tendo absorvido todos os recursos, então o ser, saturado daquela o sabe ler neles. Ele está integralmente preso às experiências
ordem de forças, transforma-se e aporta a um plano mais eleva- do seu plano. Até que tenha percorrido toda a estrada neces-
do, para experimentar outras formas de vida e, dessa forma, po- sária, um passo depois do outro, não poderá chegar àquele
der continuar, com novos elementos, a sua construção, e assim dado grau de evolução, de liberdade e de potência.
por diante. Observando o processo das metamorfoses do huma- Na atual fase evolutiva humana, hora histórica de grandes
no ao super-humano, temos delineado a trajetória dos grandes transformações, os dois tipos biológicos pertencentes às duas
ritmos da evolução, isto é, das oscilações periódicas dessa biologias, normal e supernormal, estão-se defrontando. O se-
grande respiração criadora de Deus. Podemos, assim, ver um gundo, se bem que raro, já existe para se multiplicar e se
aspecto da técnica da criação, que é contínua. Parece que esta- afirmar, e eles se podem medir na luta pela vida. À primeira
mos contemplando uma ascensão ao longo de uma escada, da vista, pode parecer que o primitivo, mais simples e menos
qual todo degrau é um plano de evolução. O pé do ser que sobe sensibilizado, seja o menos vulnerável, o que tem maiores
pousa sobre um deles, ajeita-se e, somente depois de consolida- probabilidades de salvação. Mas não é assim. Ele se move por
da a sua posição, pode tomar impulso para subir ao degrau se- tentativas, nas trevas da sua ignorância e, fora dos imediatos
guinte. A ascensão de um degrau representa uma revolução, a problemas, nada mais sabe resolver. O evoluído é autônomo,
formação de uma nova civilização para os povos, a metamorfo- autodirigindo-se em relação ao funcionamento orgânico do
se para o indivíduo. Mas assim como, feito o esforço e realiza- universo, que ele conhece. Suas previsões e defesas alcançam
da a ascensão, os povos se acomodam nas novas posições para muito mais longe. A inteligência é uma grande força na luta
fixá-las, também o indivíduo repousa nelas, para retomar de- pela vida, a sabedoria é uma força ainda maior. O primitivo é
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 37
estúpido. A sua violência pode triunfar no momento, mas per- problemas e às raízes dos fenômenos, mostrando seu funcio-
de no jogo mais longo e complexo que a vida constitui. Ele namento substancial. Assim sendo, a nossa exposição não po-
deve suportar as reações de leis que não conhece e que, lou- de assumir, conforme a hodierna mentalidade objetiva, a for-
camente, viola em seu dano, coisa que o evoluído, que sabe, ma periférica aderente aos efeitos, pois é central, aderente às
nem pensa fazer. Quem sabe proceder em harmonia com o to- causas. As deduções, as aplicações ao caso particular, o ínti-
do arrisca-se muito menos a errar e a sofrer. As vitórias do mo e incomunicável controle experimental que o autor fez por
primitivo são imediatas, mas efêmeras. Afirmações, defesas e si mesmo, qualquer um poderá depois fazê-lo em si e por si.
conquistas, nada pode superar os limites do próprio plano, que O precedente exame da metamorfose humana ou catarse fí-
são sempre tanto mais acanhados quanto mais em baixo se sico-espiritual nos tem levado plenamente ao fenômeno da
desce, e sempre tanto mais vastos quanto mais se sobe. As evolução, de cuja técnica nos propomos agora aprofundar a
mãos do ser evoluído alcançam muito mais longe. Está-se observação. Devemos aqui presumir o conhecimento do pro-
inexoravelmente ligado à própria natureza, resultado do nosso blema da personalidade humana, tratado no precedente volu-
passado, e se recai sempre no prejuízo dos próprio limites. me: A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Trata-se aqui de
Nenhuma liberdade humana pode dar a verdadeira liberdade, desenvolver aqueles conceitos, especialmente com relação à
que não se pode conquistar senão através da própria transfor- evolução. Vimos que espírito e corpo são os dois extremos de
mação. As verdadeiras prisões que encarceram os homens, as um mesmo organismo, os polos inversos de uma mesma uni-
cadeias que os mantêm escravos, ligados a dados pontos fixos, dade. As características do corpo são físicas; as do espírito,
são os seus instintos, que os prendem aí. Os verdadeiros mu- psíquicas. De um lado, qualidades materiais sensorialmente
ros de contorno que limitam a cidade do eu são imponderáveis ponderáveis; de outro lado, qualidades imateriais, imponderá-
e, no entanto, invioláveis; todos estão inexoravelmente fecha- veis. Assim é pelo princípio universal de dualidade e por lei
dos dentro deles e não os veem. Não suspeitam sequer que de- geral de equilíbrio, simetria e complementaridade, segundo o
les se possa sair e vão gritando liberdade, uma liberdade que que toda individualidade é uma unidade equilibrada e simétri-
quer dizer direito de obedecer aos próprios instintos, isto é, de ca, feita de duas unidades inversas complementares. Essas du-
ficar nas cadeias da própria escravidão. Assim todos obede- as partes do organismo único dividem entre si, conforme sua
cem, mesmo quem crê ser um rebelde à Lei, que mantém to- natureza, o trabalho e a função da vida, sendo opostas e ambas
dos, não importa que o saibam ou não, enquadrados na sua necessárias. Assim, o dinamismo biológico, base da evolução,
ordem. Para se moverem livres e autônomos basta conhecê-la se divide em dois. O corpo trabalha no exterior, em uma forma
e, depois, segui-la. Para se tornar sempre mais livre e autôno- de atividade periférica e sensória; ocupa-se, pois, do registro
mo, para derrubar os invisíveis muros que cingem a cidade do das experiências e da transmissão ao centro, que está no outro
eu e arrombar as portas que os fecham, mais não há que ape- polo do ser. O espírito, que é íntimo, central e sensitivo, é o
nas compreender a Lei e harmonizar-se com o seu funciona- ponto de chegada daquela atividade. Ele trabalha no interior,
mento, vivendo-a; mais não há senão subir evolutivamente, em forma inversa, complementar da primeira, que, sozinha,
operando a própria metamorfose. não teria finalidade. Ele elabora e fixa os registros que lhe são
transmitidos, assimila-os e os transforma assim em material
IX. A TÉCNICA DA EVOLUÇÃO construtivo da personalidade. Somente dessa maneira, a vida
física assume um significado e uma meta; e esta meta é a evo-
Iniciamos este volume partindo da psicologia do involuído lução, que significa contínua conquista da vida.
Desse ponto é que se iniciou a nossa ascensão, estudada ante- Os dois termos são necessários um ao outro; o corpo como
riormente em um simples caso vivido, experimentalmente ob- instrumento do espírito, e o espírito enquanto dá significado,
servado. Depois, para tomar o impulso a uma ascensão mais valor e direção à vida do corpo. A colaboração é possível,
vasta, dilatamos a observação a todo o plano inferior da ani- porquanto os dois termos e os seus trabalhos são opostos e,
malidade, para ver suas leis de luta e seleção para a produção ainda que rivais, não valem senão enquanto ficam ligados pa-
do seu tipo mais forte, de acordo com a biologia daquele pla- ra se completarem. Esses princípios gerais definem logo a es-
no. Enfim, no precedente capítulo, para passar ao plano mais trutura do complexo humano, no seio da qual já podemos ver
alto e à sua biologia, pusemos em foco a observação do fenô- assim como funciona o dinamismo biológico de onde se des-
meno da metamorfose do humano em super-humano, porém prende a ascensão evolutiva. Temos então dois campos de
não mais como antes, numa particularidade, mas estendendo o força opostos que, assim como no amor e no ódio (o negativo
estudo até à visão das leis gerais do fenômeno, que o regulam do amor), se abraçam para se sobrepujarem, logo que um dos
para todos. Alcançado esse ponto, podemos estender o nosso dois seja menos forte. Também, como nos dois sexos, nenhum
exame à íntima técnica do mais vasto fenômeno de toda a pode operar isolado. O espírito, sozinho, não teria expressão e
evolução. É maravilhoso observar o método pelo qual ele fun- contatos no plano físico, que, embora sendo ilusório, tem de
ciona e se cumpre, pois que exprime a técnica do processo da transmitir à consciência, através da ilusão dos sentidos, expe-
criação, sistema com o qual se realiza a perene ação criadora riências que, no seu campo, lhe são bem reais e necessárias
de Deus. Este, pois, além de transcendente, é também imanen- para a sua formação. Sem o espírito, faltaria o dinamismo
te e presente, qual pensamento que sempre mais perfeitamente animador ao corpo, que então seria apenas um cadáver. Como
se exprime na forma evolvente, em que ele se manifesta. sempre, todo trabalho genético não se pode verificar senão
Também este fato é aqui relatado por meio de visões percebi- por junção dos dois termos contrários.
das por intuição. Elas, assim, fazem-se sempre mais vastas e Qual é a relação entre os dois termos? Na correlação de
profundas à medida que o argumento se desenvolve, fazendo- causa e efeito, eles, se bem que contrários, estão em íntima co-
nos ascender de plano em plano, o que nos levará a compre- laboração. O motor, o princípio centralizador, o eu sempre uno
ender o espírito e a sua estrutura. Do fato de tais concepções ao longo das suas contínuas transformações, é o espírito, intui-
serem obtidas não por análise, através do método racional ob- tivo e sintético. O seu meio e expressão é o corpo, sensorial-
jetivo, mas sim por síntese, com o método da intuição, deriva mente analítico, imerso no múltiplo, relativo e contingente,
a sua potência, com a qual elas são aqui apresentadas. En- constrangido a uma contínua troca e renovação para suprir a
quanto a mente moderna se demora na investigação do parti- sua caducidade, feito de um contínuo tornar-se. É justamente
cular e na infinita casuística, aqui se concebe por grandes li- essa contradição que os obriga a se unirem e se completarem.
nhas de orientação, indo, assim, diretamente às soluções dos É erro, pois, considerar o homem somente como espírito, igno-
38 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
rando e desprezando o corpo, como fazem alguns espiritualis- dos dois precede o outro no respectivo desenvolvimento. O
tas e místicos, ou considerar o homem só como corpo, igno- órgão está no corpo, a função está no espírito, e eles cooperam
rando e desprezando o espírito, como fazem os materialistas. A para o mesmo fim de fazer o homem. Através dessa alternada
vida nunca é unilateral, desequilibrada, assimétrica. E, se há vicissitude, dão-se as mutações, as variações tanto do indiví-
contraste entre os dois termos, assim é para um escopo cons- duo como da espécie, fixando-se, primeiro, no imponderável
trutivo, uma luta que se deve resolver com a evolução. Se, para e, depois, na forma física que o exprime. A adaptação é psí-
o normal, vigora a norma áurea da ―mens sana in corpore sa- quica e orgânica a um tempo, sendo as duas formas conexas.
no‖, para quem vive a metamorfose biológica é necessária a Iniciando-se a evolução no espírito, o corpo depois deve se-
luta entre espírito e corpo, a fim de chegar à vitória do primei- gui-la, ainda que ele esteja sempre no final desse caminho.
ro e passar além da vida do segundo. Esta é a técnica da evolução. Ela resulta de dois movimen-
A atual biologia se detém no corpo, isto é, no efeito, dei- tos em duas direções opostas. O dinamismo do espírito gravita
xando de penetrar as causas, que estão em outra biologia, de para o interior, abre caminho para a substância, o infinito, o
tipo transcendental, ou seja, espiritual. Desta, então, a ciência eterno, o absoluto, a essência de Deus; a atividade do corpo
vê somente a sua expressão no mundo físico, que é a forma dirige-se para o exterior e explora a forma, o finito, o transitó-
material. Todavia, sendo o corpo uma projeção do espírito, a rio, o relativo, a manifestação de Deus. Quem compreendeu
ciência, adiantando-se sempre mais na observação da íntima qual é a estrutura do universo sabe que este é constituído por
estrutura das coisas, não poderá encontrar outra coisa senão o um esquema único, repetido em todas alturas e em todas as
espírito. O corpo existe enquanto há uma causa em si, que ele dimensões da evolução, portanto acha lógico que, no comple-
exprime e revela, como o universo físico exprime e revela o xo humano espírito-corpo, seja repetido o modelo do comple-
divino pensamento que o anima. O corpo é manifestação do xo universal, onde a unidade é dada por uma dupla de opostos
espírito, como o criado é a manifestação de Deus. Ora, se, no complementares, em que Deus e universo, transcendência e
homem, o espírito, que é causa, precede a forma, que é efeito, imanência, equilibram-se. A vida e a sua elaboração evolutiva
plasmando-a à sua imagem e semelhança, por sua vez o efeito são dadas pela contínua troca dinâmica entre os dois campos
reage e se torna causa, cujos efeitos, depois, estarão no espíri- de forças. Cada uma das duas é por sua vez agente e reagente.
to, tornando-se então uma nova causa e assim por diante. Já O dinamismo circulante entre eles inverte o seu sinal a cada
vimos isto a propósito do órgão e da função. A vida do corpo passagem. Assim, fecha-se o ciclo, e o dualismo reencontra a
é um meio de experimentação que elabora o espírito, mas po- unidade em um único circuito. Por períodos inversos, o traba-
demos também dizer que a potência do espírito elabora para si lho é contínuo, porque, quando ele é ativo na sua forma posi-
o seu corpo. Se é verdade que o espírito serve-se do corpo pa- tiva, de vida exterior diurna, então está inativo na sua forma
ra armazenar os resultados experimentais de um exterior feito negativa, de vida interior noturna, condições que se invertem
de tenazes resistências, ele também os transcende, transfor- no período oposto. Positivo e negativo são duas posições rela-
mando-os dentro de si em qualidades do eu e em valores espi- tivas, que se invertem, tornando-se negativo e positivo, de
rituais. Estes modificam, então, a estrutura do campo de for- modo que há sempre um positivo em ação. Assim, trabalhan-
ças da personalidade e do dinamismo causal, que lançará cor- do alternativamente e exercendo funções inversas, espírito e
rentes sempre diversamente plasmadoras da forma, fazendo corpo realizam uma atividade contínua.
assim evoluir também esta como consequência da sua própria Um primeiro estímulo, provindo do campo oposto, desloca
evolução. Desse modo, passando-se da causa ao efeito, este os equilíbrios no outro campo, com todas as suas consequên-
depois, como nova causa, volta à origem, que, assim modifi- cias. Os choques do ambiente, através dos meios sensórios,
cada, passa de novo ao efeito, para modificá-lo ainda mais, continuamente bombardeiam o espírito, isto significa que os
como acontece por ação e reação entre órgão e função e ao impulsos do ambiente tentam penetrar e se unir ao sistema di-
contrário, processo pelo qual, lentamente, opera-se a trans- nâmico do espírito, que, mesmo oferecendo resistência às de-
formação evolutiva. Os dois impulsos contrários continuam formações, registra e se adapta e, assim, fixa na sua estrutura
assim a se moverem um para o outro, invertendo as suas posi- cinética novas trajetórias, isto é, assimila novas qualidades. Por
ções a cada passo, porém sempre enlaçados numa corrente sua vez, o sistema dinâmico que constitui o espírito bombar-
contínua, que forma um mesmo caminho evolutivo. Se, no seu deia, com o seu feixe de forças, o sistema atômico-molecular-
íntimo, a estrutura do fenômeno oscila entre dois polos opos- celular que constitui o corpo, o qual, resistindo às deformações,
tos, num constante vaivém, no seu conjunto representa uma registra e se adapta e, assim, fixa na sua estrutura cinética novas
ascensão contínua, em que o ritmo interior desaparece. trajetórias e assume, no mundo da ilusão sensória, novas formas
Assim, o dinamismo da vida parte do polo positivo, que é orgânicas. Veremos mais adiante, no Capítulo XVII, ―As últi-
o espírito, princípio ativo, e vai, como corrente positiva, para mas orientações da ciência‖, que a matéria se reduz a uma onda
o polo negativo, que é o corpo, de natureza passiva. Daqui, sem substrato material, isto é, àquele mesmo dinamismo a que
aquela corrente animadora retorna em forma negativa ao polo se pode reduzir também o espírito. Encontrado esse denomina-
positivo, fechando o circuito e prosseguindo assim. A carne dor comum entre espírito e matéria, esta interação entre espírito
quer conservar-se e engordar. É fêmea e quer a gênese na car- e corpo é também cientificamente possível e aceitável. Assim,
ne. O espírito quer renovar e subir. É macho e quer a gênese trabalhando em dois campos diversos, o espírito constrói o cor-
no espírito. A primeira representa uma expansão horizontal, a po e o corpo serve para construir o espírito.
segunda, uma vertical. No topo da escada, à testa do caminho Ora, como podem os impulsos provenientes do sistema di-
evolutivo, está sempre o espírito, enquanto no fundo da esca- nâmico-espírito agir sobre as forças do sistema dinâmico-
da, na cauda do caminho, está a massa indolente dos corpos. corpo? Para que os dois campos se possam comunicar, é ne-
O mundo físico está subordinado ao espiritual e, como inferi- cessário que eles possam estar em contato, o que, no mundo
or, deve ser o servo, arrastado por aquele e seguindo por últi- dinâmico, significa vibração em uníssono, sintonia. Se as for-
mo na sua ascensão. Sozinho, apodreceria na abundância. ças devem unir-se uma à outra e se fundirem, isto não pode
Desse modo, a iniciativa de todo movimento está no espírito, acontecer senão onde elas encontrem a mesma frequência, um
no entanto ele é uma consequência da resposta que o corpo igual número de períodos, à semelhança de duas centrais elé-
deu à sua precedente ação, consolidada pelo meio físico, sen- tricas que se quisessem pôr em paralelo. Ora, a escala evoluti-
do assim formado por este contato com o ambiente. Já vimos va se poderia exprimir dinamicamente com uma passagem da
como órgão e função colaboram sem que se possa dizer qual onda longa à curta, da baixa à alta frequência e potencialida-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 39
de. Então os dois sistemas dinâmicos espírito e corpo não po- penetrar e juntar-se ao sistema dinâmico do espírito. Seria
dem comunicar-se senão onde estejam contíguos na escala preciso, depois, conhecer de que trajetórias é constituído esse
evolutiva, possuindo a mesma frequência, a mesma potencia- sistema, a resistência que suas forças opõem, a afinidade que
lidade, períodos e comprimento de onda, ou seja, no limiar en- apresentam com os novos impulsos sobrevindos, as reações
tre as mais baixas zonas do espírito, seus extratos mais invo- que oferecem, para chegar, assim, a calcular qual será a resul-
luídos, e as máximas alturas do organismo físico, seus extra- tante de tal encontro, o último termo residual da batalha, que
tos mais evoluídos. Isto significa que o contato não pode dar- representará o novo impulso assimilado no eu, isto é, a nova
se senão no sistema nervoso e cerebral, que representa as cé- qualidade por este adquirida.
lulas mais evoluídas, ou seja, a zona organicamente mais ele- Certo é que a nossa personalidade representa um organis-
vada e, ao mesmo tempo, espiritualmente mais baixa, por- mo dinâmico já constituído, que resulta do mencionado traba-
quanto ela é a primeira materialização daquele organismo im- lho de experimentação e assimilação levado a termo no passa-
ponderável radiante e receptor, que é o espírito. do e exprime a sua atual fase de maturação e grau evolutivo.
Tudo isto é possível quando se sabe que o universo, tal Ela constitui a atual natureza do ser, efeito de tudo o que por
como aparece aos nossos meios sensórios com a sua solidez fí- ele foi vivido e já está fixado no sistema de forças, que ten-
sica, não é senão uma aparência. Tudo que acima expusemos dem fatalmente, por inércia, a continuar o caminho na direção
torna-se concebível quando se sabe que a substância da maté- estabelecida pela trajetória já iniciada. Ela também representa
ria não é representada por algum substrato em sentido físico o destino do indivíduo, como uma sua vontade de se realizar
concreto, mas somente por trajetórias e relações reduzíveis a da forma que ele quis. Estamos na fase em que as precedentes
energia, e que esta se resume a conceitos abstratos. Desse mo- causas se coagularam em efeitos e estes, por sua vez, torna-
do, fica demonstrável a equivalência matéria-energia-espírito, ram-se causas tendentes a novos efeitos. Tudo isto forma as
afirmada nestes escritos. Assim como a matéria pode reduzir- qualidades fixadas no eu, constitui a estrutura do seu sistema
se a energia e a pensamento, é lógico que, inversamente, o de forças, resultado de todas as trajetórias transmitidas e as-
pensamento possa reduzir-se a energia e matéria e que ele seja similadas no passado. O circuito, porém, está sempre aberto, e
criador de todas as formas, primeiro dinâmicas e depois físi- cada nova experiência ou contato, por meio do corpo e dos
cas. Dessa maneira, compreende-se como o pensamento de sentidos, com o mundo exterior, representa a possibilidade de
Deus unicamente tenha podido construir um universo cuja ver- imissão e assimilação de impulsos e trajetórias novas. Esta-
dadeira solidez não está na matéria, mas está toda na constân- mos aqui em uma outra fase, de livre escolha e de formação
cia e inviolabilidade das leis que o governam, isso é, em prin- do eu, com que se pode corrigir o passado, iniciando novas di-
cípios abstratos. Se a ciência já pode fornecer muitos elemen- reções. É preciso, porém, ligar tudo isto ao passado, às velhas
tos para demonstrar a equivalência do mundo físico, dinâmico causas tornadas efeitos fatais e, como tais, agentes de novas
e psíquico, em direção ascendente, quem conhece os grandes causas. Em outros termos, na imissão de novos impulsos e tra-
esquemas do universo concorda certamente que o ciclo deve jetórias, é preciso ter em conta a natureza dos precedentes im-
cumprir-se, equilibrando-se na sua segunda metade, e que, por- pulsos e a resistência das trajetórias já estabelecidas no eu,
tanto, o caminho oposto, em direção descendente, também de- aos quais se devem sobrepor aqueles, para se fundirem. Pode-
ve ser percorrido. Este é dado pela equivalência inversa, isto é, se, em suma, semear no próprio ser o que se quiser, mas é
pensamento, energia e matéria, movimento trifásico que sinte- preciso atentar-se para a natureza do terreno em que se se-
tiza a técnica construtiva do nosso universo. meia, à estrutura completa, porque disto, e não tão-só da se-
Tudo o que existe é, como forma, a resultante de uma dada mente, dependerá o que há de nascer depois.
disposição cinética, redutível a um movimento puro, denomi- Assim, a evolução é gradual, ao mesmo tempo livre e liga-
nador comum de todas as coisas, dado pela energia, que é da, num jogo de forças reguladas a cada passo por reações e
pensamento em ação. Certo é que, para compreender-lhe a equilíbrios, segundo princípios estabelecidos pela Lei. Aqui,
substância, é preciso penetrar além da ilusão sensória. Somen- não é possível dizer mais além destes princípios gerais, sufici-
te assim, reduzindo o fenômeno do ser ao seu funcionamento entes, porém, para orientar o problema e as pesquisas neste
cinético, é possível compreender como as experiências obti- campo. A questão está em saber conhecer a estrutura desses sis-
das no ambiente por meio dos canais sensórios podem modifi- temas. Eles podem ser considerados como dinâmicos, por isto
car e enriquecer de qualidades o espírito, modificando e enri- falamos de forças; ou como cinéticos, daí termos falado de tra-
quecendo as trajetórias do seu sistema cinético; só assim tam- jetórias. Aprofundar demais o argumento nos faria perder o fio
bém é possível conceber como essas qualidades, ou íntimas da exposição, além disso o método da intuição aqui usado não é
trajetórias, podem depois modificar o sistema cinético que apto para a investigação analítica, que qualquer um pode racio-
constitui a substância da qual o organismo corpóreo não é se- nalmente realizar com base nesta orientação. Postos esses prin-
não a resultante perceptível aos nossos meios sensórios. A cípios gerais, é fácil tirar deles muitas consequências e contro-
mecânica da evolução se baseia sobre essa troca e assimilação lar a sua aderência à realidade.
de forças, isto é, no registro e conservação de trajetórias na É muito provável que, por analogia, o organismo físico-
estrutura dos dois sistemas dinâmicos que são o corpo e o es- espiritual do homem seja constituído, à semelhança do siste-
pírito. Na escala evolutiva, eles representam os dois extremos, ma atômico ou do sistema solar planetário, por um campo
o mínimo e o máximo, da zona ocupada pelo homem, que se central de forças, positivo e ativo, em torno do qual funciona
comunica com todas as vibrações de tudo o que existe nesta em dependência um campo de forças periférico, negativo e
zona, entrando em contato com a zona superior através do ex- passivo, isto é, de natureza, posição e sinal oposto. Os dois
tremo máximo e com a zona inferior através do extremo mí- campos se influenciam reciprocamente. É inegável que o ser
nimo. No circuito de forças entram, portanto, as experiências esteja em contínuo contato com o ambiente, do qual recebe in-
e registros provenientes do contato tanto com o mundo inferi- finitas impressões, que tendem a penetrar na consciência e a
or como com o mundo superior. Assim, conforme a sua capa- formá-la com a experiência das coisas. A nossa mente se sa-
cidade, o ser pode representar os mundos inferiores da matéria tisfaz ao pensar que, assim, nada de quanto se vive é perdido,
ou antecipar os superiores planos do espírito. mas tudo se registra em nós e sobrevive à ruína do contingen-
Para poder fazer a análise do fenômeno evolutivo em cada te na forma de nossas qualidades, adquiridas como nós quise-
caso particular, seria preciso conhecer a trajetória de todas mos. Somente assim a vida tem, em cada caso, um significado
forças que, entre as tantas em movimento no ambiente, vêm e um valor útil, num quadro em que tudo, também a dor e as
40 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
derrotas, tem o seu significado e rendimento. Está satisfeito X. O PENSAMENTO CRIADOR
desse modo o nosso instinto e o da vida, que é de sempre
crescer e se expandir, porque o espírito se torna uma unidade Quanto dissemos até agora não representa senão uma fenda
em contínuo desenvolvimento, sem limites. Tudo então, e so- que em minha mente se vai abrindo para o infinito em forma de
mente então, torna-se satisfatório, lógico e justo, porque sa- visões progressivas, que vou registrando por escrito, para que
bemos que é efeito do que fizemos e pode ser remediado no elas não fiquem somente para mim. Dou-me conta que, perante o
futuro. Então compreende-se que é necessária a prova da vida nosso tempo racionalista, este é um modo estranho de enfrentar o
terrena na matéria, para que o espírito possa evoluir. ignoto, com um tão desusado método de investigação: a intuição.
Essa transformação de forças e trajetórias no espírito deve Questionei a mim mesmo se ele seria pura fantasia, perguntei a
produzir um aceleramento de frequência e uma proporcional que ignorado mistério da personalidade humana ele poderia cor-
diminuição de comprimento de onda e, com isto, uma elevação responder. Contudo, por mais que tenha procurado analisá-lo
de potencial, o que significa uma potenciação do espírito, uma com a crítica mais demolidora, esse método permanece como um
harmonização que leva a um rendimento maior. Isto se alcança fato, seja pelos seus produtos racionalmente orgânicos, seja pela
por uma troca e luta, que são sempre elementos genéticos. Pa- progressiva profundidade das visões que dele resultam. Sem que
rece que o espírito possa, assim, armazenar em síntese os resul- eu conheça ciência, elas correspondem aos seus últimos resulta-
tados da experimentação, os valores, os totais das operações dos. Por falta de pontos de referência pelos quais se pudesse en-
feitas por análise, no particular, pelo seu organismo exterior. quadrar esse caso, ele foi entendido como ―ultrafania‖ (V. ―In-
Parece que esse sistema periférico, com a função de tentáculo, trodução‖, neste volume, e o livro As Noúres). Mas vê-se o quan-
deve alcançar, a um certo ponto, uma saturação de vibrações to estamos longe da habitual mensagem de conteúdo moral, que
que o força a extravasar tudo que ele não pode mais conter para nunca até agora, mesmo nos melhores casos, assumiu o encargo,
o sistema complementar de forças interiores, que teria justa- tanto em vastidão como em profundidade, de produzir um traba-
mente a função de transportar a um plano evolutivo mais alto, lho orgânico que abranja e oriente todo o saber humano.
sem sensíveis embaraços de forma, somente a substância desti- A atual geração se tornou muito audaz ao enfrentar o igno-
lada do que se adquiriu. Parece que o sistema de forças de mais to, que se vê assediado de todos os lados e com todos os meios.
baixa potencialidade constituído pelo corpo, conquanto mais Entretanto a ignorância não ficou destruída, somente foi impe-
adaptado para dominar as forças do ambiente e estar em contato lida mais para trás. Porém deu-se algum passo para a unificação
com o mundo inferior externo, eleva aquele potencial até ao de todas as ciências, para uma só lei e um só pensamento: o
ponto em que o seu sistema, não podendo suportá-lo mais, pensamento de Deus. Esse ataque cerrado deve levar à grande
transmite-o ao sistema superior do espírito. Isto é bem admissí- descoberta do terceiro milênio: os poderes do espírito, poderes
vel, quando se compreendeu a íntima substância cinética de to- verdadeiramente criadores. Agora me pergunto porque, ao lado
das as formas e, portanto, sabe-se que nenhuma delas pode iso- do assalto movido ao ignoto pelos cientistas, armados de ultra-
lar-se das outras, pois, num universo dinâmico que irradia e re- microscópios, câmaras de condensação de Wilson e tubos de
cebe em qualquer ponto, todas as partes são comunicantes. As- bombardeamentos eletrônicos de alta potência, não deva ser
sim, também o corpo é necessário, porquanto funciona como admissível um paralelo ataque movido por outra via, super-
transformador de potencial entre o externo e o interno, que dire- racional e supersensória, utilizando indivíduos sensibilizados,
tamente, sem este intermédio, não poderia comunicar-se. O or- nos quais parece que a misteriosa personalidade humana haja
ganismo físico é, pois, uma ponte entre o espírito e o mundo, encontrado meios de percepções ainda mais penetrantes e de
para que os dois possam ficar em contato, e os seus meios sen- ordem diversa? Por que se deve recusar a priori esse novo mé-
sórios são os canais de comunicação. Sem esses canais, nenhu- todo de investigação? Os seus resultados são aqui oferecidos ao
ma relação poderia haver. Somente assim as variações e cho- público, fixados em volumes; não são de caráter analítico, mas
ques de ambiente podem chegar da periferia ao centro. sintético; parecem complementares daqueles racionais da ciên-
A que se reduz, enfim, a evolução? A uma diversa disposi- cia, uma vez que, muito mais do que para aprofundar um singu-
ção cinética da mesma substância, que, em última análise, não lar e particular argumento, servem para a orientação de conjun-
é senão o pensamento de Deus. É essa diversa disposição ci- to; parecem feitos para oferecer um produto paralelo ao ofere-
nética que constrói todas as formas, que são realidades como cido pela ciência e apto a completá-lo. Se a análise sensória da
substância feita de pensamento, mas ilusões como forma sen- física mecânica de uma época passada está se tornando hoje,
sorialmente concebida. Há somente uma verdadeira realidade, através da teoria da relatividade e da mecânica quântica, ondu-
à qual tudo no universo se reduz por último: o pensamento de latória e estatística, sempre mais abstrata, a ponto de se fundir
Deus. Espírito e corpo são simplesmente pensamento mais ou com o transcendental, quem poderá dizer que a ciência de ama-
menos evoluído, isto é, mais ou menos puro e livre das for- nhã não se tornará atingível senão por meio de uma matemática
mas! A evolução consiste justamente na purificação desse transcendental intuitiva? Tudo se espiritualiza hoje, sem que
pensamento, isto é, no retorno de todas as mutáveis formas- disso nos apercebamos, enquanto o materialismo, em ruínas,
efeitos à imutável causa de todas as coisas. Isto significa a parece triunfante porque nos aturde com o fragor de sua queda.
gradual libertação de todas as formas, vestes do pensamento, Não nos apercebemos que, no fundo de tudo, mesmo da maté-
para que fique somente o puro pensamento de Deus, e não é ria, há o espírito, e é inevitável que, com o progredir da ciência,
possível para o espírito livrar-se delas, senão através da elabo- chegue-se à descoberta dele. Se o progresso é fatal e se a estru-
ração da forma corpórea em que ele existe. A ele compete o tura da matéria é em substância espiritual, então não é possível
esforço de fazer evoluir consigo aquela matéria que ele despo- impedir que a ciência alcance a conjunção entre os campos da
sou. O universo é unitariamente compacto, e nada se pode matéria e do espírito, que é a unidade fundamental de tudo que
destruir nele, portanto não é possível livrar-se da forma des- existe e tem de ser finalmente compreendido pelo homem.
truindo-a, mas somente fazendo-a progredir para o alto. Já vimos outros níveis evolutivos de existência e sabemos
O grande respiro do universo, assim, é composto de dois que a cada um deles corresponde uma lei diversa, uma diversa
tempos: 1o) criação, fase de ida, na qual o puro pensamento di- expressão da única lei universal. O universo está, assim, cons-
vino se manifesta, vestindo-se de forma e quebrando a sua uni- truído hierarquicamente, como um edifício em que cada plano
dade no transitório, múltiplo e relativo, isto é, involução; 2 o) de existência se apoia sobre o inferior, dominando-o. E, de um
evolução, fase de retorno, em que aquele pensamento se livra plano ao outro, o ser passa por aquela metamorfose ou catarse
da forma e reconstitui a sua unidade no eterno e no absoluto. evolutiva, cuja mecânica temos observado. A cada plano cor-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 41
responde uma verdade diversa, que é a sua lei, e o ser, evoluin- nhecimento, e os planos inferiores, em que tudo vai involuindo,
do, sobe de uma verdade inferior para uma superior, adquirindo precipitando-se no negativo: a bondade em maldade, a potência
conceitos e valores mais elevados. Assim, vimos que da biolo- em impotência, o conhecimento em ignorância. Existe em mim,
gia animal se passa à biologia transcendental do espírito, e da como nos meus semelhantes, um sistema de organismos cone-
economia da justiça mecânica do ―do ut des‖ se passa à econo- xos em cadeia, que vão do reino mineral (sistema ósseo), ao
mia supernormal baseada no princípio evangélico do ―ama o reino vegetal (sistema vegetativo), ao reino animal (sistema
próximo como a ti mesmo‖, segundo o qual rouba a si mesmo muscular-nervoso), ao reino humano (sistema cérebro-
quem rouba, e a si mesmo dá quem dá aos outros. É assim que psíquico), ao reino super-humano (sistema imponderável do es-
a ciência, penetrando agora no mundo submicroscópico, passa pírito, em dimensões hiperespaciais). Cada um desses organis-
da mecânica clássica gravitacional para uma mecânica atômica, mos emite a voz do seu reino, e isto me dá o sentido da hierar-
em que as leis da primeira não valem mais e são ultrapassadas quia vigente nos planos do ser, dentro de limites além dos quais
por uma diversa ordem de leis, supergravitacionais. Que mara- tudo se perde no inconcebível. Com o fenômeno da personali-
vilha será então se, por evolução da personalidade humana, dade oscilante, o eu pode perceber, desde o extremo-matéria até
primeiro instrumento de observação, passarmos do método sen- ao extremo-espírito, as verdades relativas a cada plano. Delas
sório racional, experimentalmente indutivo, a uma técnica se deduz, pelo sentido estabelecido na hierarquia, o domínio de
transcendental do pensamento, em que funciona o superconsci- cada plano sobre o inferior e, portanto, o poder criador do pen-
ente, com resultados não mais de análise, e sim de síntese? Não samento e das grandes consequências do próprio tipo de ativi-
significa isso, assim como acontece para a ciência, uma pene- dade espiritual em cada plano.
tração mais profunda no mundo das causas determinantes dos No ―Satapathabrahama‖ está dito: ―Do desejo depende a
efeitos ilusórios, um maior avizinhamento do plano da realida- natureza do homem. Conforme o seu desejo, tal será a sua von-
de e da substância? E não será possível, assim, resolver pro- tade, tal será a sua obra; conforme a sua obra, tal será a sua
blemas insolúveis com outros métodos e alcançar conceitos de existência que lhe diz respeito‖. O pensamento é criador no
outro modo inatingíveis? Assim como hoje, evoluindo, vai-se homem e em todos os planos inferiores ao espírito, como o foi
ao encontro de novas verdades, de uma nova biologia e econo- o pensamento de Deus ao criar o universo. É com este pensa-
mia, de novas concepções sociais e formas de organização cole- mento, em princípio livre e fluido, que definimos em nós a ma-
tiva, a novas formas mentais em todo campo, é lógico que tam- téria, isto é, as formas orgânicas e depois, mais no alto, o nos-
bém se vá ao encontro de novos métodos de investigação, filhos so fatal destino. No pensamento está a causa de tudo, saúde ou
da diversa estrutura psicológica do novo tipo biológico que a doença, riqueza ou pobreza, alegria ou dor. Sempre somos
evolução, hoje, se apresta a produzir. Estes são os grandiosos herdeiros somente de nós mesmos, isto é, daquilo que fomos,
resultados daquele fenômeno de elevação humana que aqui es- quisemos ou fizemos. O micróbio não nos assalta senão quan-
tamos estudando. Pode-se, assim, compreender a sua importân- do encontra debilidade e, pois, vulnerabilidade orgânica; a po-
cia e verificar o quanto ele interessa hoje à vida do mundo. breza se estabelece quando encontra incapacidade e preguiça,
Somente poucos começam hoje a se dar conta da grande re- porque os capazes e ativos nunca são pobres; a dor nos assalta
volução incruenta e silenciosa que está sendo realizada no mun- quando encontra erros morais a sanar. Qualquer pensamento
do, por obra dos vigorosos impulsos da evolução criadora, que nosso é escrito na estrutura do sistema de nossos organismos,
hoje impele a vida para um plano mais alto. As revoluções políti- conexos em corrente, gerando assim, em cada plano, posições
cas, demográficas e econômicas estão na superfície, muito rumo- munidas e potentes ou pontos fracos e, com isto, predisposição
rosas e visíveis, mas de mínimas consequências em face dessa a todo ataque. Eles são o ponto vulnerável onde a vida sempre
outra revolução, cujos efeitos serão bem maiores, porque ela é ataca. Quem se tornou tarado deve pagar, não porque a Lei se
muito mais profunda. A ciência, tendo chegado ao elétron, ao vingue, mas sim porque ela cura e fortalece. Tudo é espiritual
próton e ao nêutron, pergunta se eles são corpúsculos ou pura vi- antes de ser material. E o universal princípio de causa e efeito
bração. A um certo ponto, não se sabe mais se o que observamos nos diz que tudo aparece por derivação e filiação.
é matéria ou energia. Amanhã, nos encontraremos diante do caso Compreende-se assim porque Cristo, depois de ter curado
em que não mais saberemos se aquilo que observamos é energia um doente, disse a ele: ―Vai e não peques mais‖. Isto significa
ou pensamento, e este será individualizável por seu comprimento que não devemos mais violar a Lei, se não quisermos mais
de onda e sua frequência. Então acharemos que, no fundo, há sentir suas consequências no físico. Matéria e espírito são
uma equivalência de substância, em que matéria, energia e espíri- mundos comunicantes e conexos, e tudo se escreve nos arqui-
to podem fundir-se e comunicar-se. E compreenderemos como vos da alma, mas o que nela está escrito deve, cedo ou tarde,
tudo pode ser formado pela potência criadora do pensamento: o alcançar o corpo e aí manifestar-se. Assim, tudo se paga e tudo
pensamento de Deus. ―No princípio era o Verbo e o Verbo estava se recolhe. Ensinou Buda aos seus discípulos: ―Assim como as
junto a Deus, e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por seu intermé- árvores são diversas segundo a variedade das suas sementes,
dio, e sem Ele nada foi feito de tudo o que existe‖8. Assim, ao ze- também o destino dos homens é diverso segundo a diversidade
ro absoluto, isto é, a 2730C abaixo da temperatura do gelo, todos das obras de que suportam os efeitos‖. E ainda: ―O que somos
os movimentos da molécula cessariam e a própria matéria, com é a consequência do que havemos pensado‖. Mais tarde São
isto, perderia todo o volume e seria reduzida a nada. Deste nada, Paulo dizia: ―O que o homem semeou, isto mesmo ceifará‖. E
somente um estado cinético seu a teria tirado, um dinamismo que Jó disse: ―Deus dá ao homem segundo a sua obra e faz encon-
tem pontes de comunicação com o mundo do espírito. Eis, então, trar a cada um conforme o seu caminho‖.
que é concebível, neste sentido, uma criação partindo do nada,
derivada de um puro pensamento. O método da intuição nos avi- XI. LIVRE-ARBÍTRIO E DETERMINISMO
zinha da solução dos maiores mistérios.
Assim, através de rasgos progressivos, vou percorrendo, Quem chega-se a penetrar no mundo das causas e nele se
junto com o leitor que me segue, a descrição da estrutura do descobre a substância das coisas, fica-se atordoado pela maravi-
universo. Eu mesmo, sem investigação racional, assisto à visão lhosa perfeição com a qual tudo harmonicamente funciona, do
que se abre diante de mim. Vejo-me suspenso entre os planos plano da matéria (equilíbrio) ao do espírito (justiça). Todavia o
de existências superiores, que irradiam bondade, poder e co- homem comum pode levantar muitas dúvidas a respeito da li-
berdade da semeadura por parte do espírito, da qual tudo de-
8
João, 1:1 e 3. (N. do T.) pende depois, até à última consequência. A filosofia se debate
42 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
entre os dois pontos, determinismo e livre-arbítrio, sem saber se O que permanece livre dessas amarras constitui o livre-
decidir exclusivamente por nenhum dos dois. O problema é so- arbítrio. É, todavia, certo que o eu representa um impulso au-
lúvel somente tendo-se em conta que a evolução desloca a vida tônomo, ainda que ele, no seu manifestar-se, deva sofrer tan-
ao longo de vários planos de existência, e que há leis imperan- tas limitações. Mas que pode fazer uma força agindo entre
tes em cada um deles, segundo as quais o determinismo, pró- tantas outras forças em ação, senão agir, ressentir-se e reagir
prio da matéria, evolui para a liberdade, própria do espírito, ou com elas, combinando-se? Ninguém, porém, pode impedir
ao contrário no caso de involução. A liberdade é concedida ao que o originário livre impulso humano imprima na ação um
conhecimento, à consciência e à sabedoria; o caminho forçado é cunho próprio, qualquer que seja depois a modalidade em que
imposto à ignorância e à inconsciência, capazes de abuso. De- se deva desenvolver ou a distorção imposta pelos limites que
terminismo e livre-arbítrio não representam senão os dois ex- assediam o seu livre desenvolvimento. Todo ato nosso fica
tremos do caminho que o homem percorre na escala evolutiva, sem dúvida individualizado com características fundamentais
que parte da matéria e atinge o espírito. pelo primeiro livre impulso, que continuará assim a acompa-
Já vimos no Cap. XXIII, ―Problemas Últimos‖, do volume nhá-lo até ao fim, desde que outro fato, depois, não venha
A Nova Civilização do Terceiro Milênio, que, evoluindo, vai- desviá-lo da rota. Qualquer coisa de semelhante acontece na
se sempre mais para a liberdade, própria do espírito, aumen- formação dos cristais, que mantêm o seu tipo, ainda que obs-
tando com isto também o conhecimento, e que essa liberdade truídos pelo ambiente. Assim, das características originais de
cada vez maior se resolve em uma sempre maior aderência à todo ato nosso dependerá também a natureza das forças atraí-
Lei. E vimos também que, involuindo, vai-se sempre mais para das e das reações estimuladas, de modo que daquelas caracte-
o determinismo, próprio da matéria, perdendo-se assim liber- rísticas nada se perde, ainda que devam depois ser alteradas.
dade e conhecimento. A tendência em ambos os lados, seja na Em suma, há uma luta de forças, e a mais forte vence. Se a
subida, seja na descida, é que a liberdade se resolva em deter- nossa vontade fosse verdadeiramente potente e iluminada, en-
minismo. Isto parece uma característica da fase experimental tão o livre-arbítrio poderia vencer tudo. Como se vê, esta não
da evolução, quase um parêntese no universal determinismo da é questão abstrata de liberdade, mas também de poder.
Lei. Porém os dois determinismos, tanto o positivo, do ser Se refletirmos, veremos que esses limites são providenci-
consciente, que abdica espontaneamente de sua liberdade para ais, desejados por uma lei sábia que tudo guia para o bem. Se
se fundir na vontade da lei de Deus, quanto o negativo, do ser o primeiro impulso do livre-arbítrio humano for lançado con-
inconsciente, que perde compulsoriamente a liberdade, porque forme a ordem das coisas, ele será enquadrado nessa ordem
aniquilado qual rebelde à lei de Deus, estão nos antípodas: du- como um seu natural elemento e, com isto, encontrará todos
as fases extremas, igualmente resolutivas, mas em posições os caminhos abertos para o seu desenvolvimento. Se, ao con-
opostas. De modo que, como se estivesse suspenso entre esses trário, aquele primeiro impulso houver sido contrário à ordem
dois extremos determinísticos do universo, o ser oscila dentro das coisas, ele será contrariado por forças que o procurarão
de um campo de relativa liberdade, limitado às necessidades da corrigir, forçando-o e levando-o àquela ordem. Isto significa
experimentação formadora da sua personalidade. Acima dele, um processo de correção do erro; poderá constituir dor, mas é
evolutivamente mais no alto, há o determinismo do evoluído, uma vantagem e uma salvação para o caminho do bem, que
que, tendo compreendido toda a sabedoria da Lei, não pode, deve fatalmente triunfar, conforme estabelecido pela Lei. É
devido ao princípio do mínimo meio e maior rendimento, fazer preciso compreender que tudo está sabiamente dirigido por
outra coisa senão uniformizar-se com ela. Abaixo dela, evolu- uma lei sábia e que ser reconduzido a ela, embora pelo cami-
tivamente mais embaixo, o determinismo da matéria domina o nho da dor, significa salvação. Aquela central genética, que é
ser, que, nada sabendo da Lei, mais não pode fazer senão obe- a nossa livre vontade, não pode e não deve, para o nosso bem,
decer-lhe cegamente, arrastado por ela. produzir impulsos de desordem na ordem universal e, se os
É assim que o homem, não obstante seu ilimitado desejo de produz pela sua ignorância, eles devem ser corrigidos e re-
liberdade, encontra limites a cada passo. O primeiro limite ao li- conduzidos para a ordem. Não pode ser permitido que eles in-
vre-arbítrio é a nossa ignorância. Voltamos à dúvida inicial. Co- vertam a ordem universal. Se o homem, nesta sua livre gênese
mo escolher quando não se conhece? Tudo é sempre limitado ao de atos, repete o gesto criador de Deus, esse gesto deve ser
pequeno campo do conhecimento humano. Se conheço o princí- disciplinado para colaborar no plano da criação e não tender a
pio de causalidade, não posso saber qual será o efeito preciso de invertê-lo. Eis por que esses limites e liames do livre-arbítrio
uma determinada motivação minha. Embora eu preveja e calcule, são salutares. Ele, pois, há de ser sempre entendido em função
nunca poderei saber com exatidão aonde, partindo daquele meu da ordem universal, que não é possível violar, e jamais como
primeiro impulso, irei acabar, já que tantos outros impulsos des- arbítrio desordenado e absoluto.
conhecidos agem sempre na determinação dos efeitos. Como se vê, o problema está conexo com outros, como o
Um segundo limite é dado pelo desenvolvimento determi- timbre e a potência do nosso querer (impulso originário), a in-
nístico imposto pelo princípio de causalidade. Todo estado flexibilidade da ordem da Lei e o que disto deriva como res-
precedente, amadurecendo, tende fatalmente a produzir um ponsabilidade e consequências. Certo é que o gesto criador do
efeito consequente. O que é conhecido e existe há de se de- homem, que repete em ponto pequeno o princípio da criação,
senvolver na forma em que foi gerado, à qual está ligado. pode também assumir na sua liberdade a forma de rebelião, de
Uma força, uma vez lançada, não pode parar senão quando anti-Lei e anti-Deus. Se o poder do querer da criatura é grande,
chegar à sua exaustão. Desse fato nenhum livre-arbítrio pode então também se torna grande o conflito com a inflexibilidade
fugir. Todo o passado, pois, nos liga ao que fomos e ao que da Lei e surge uma luta na qual esta vence e o rebelde, se não
fizemos. O que semeamos devemos colher. Forma-se assim a se modifica, fica autodestruído. E, aqui, o problema se coliga
base determinística e fatal da vida: o destino, que nós mes- ao do bem e do mal, com a supremacia final do bem, conforme
mos, no passado, deixamos como nosso legado e que hoje re- já temos tratado alhures. Agora, postos os dois termos, livre
aparece ligado a nós, qual férrea necessidade. vontade humana e universal lei inflexível, diante da possibili-
Um terceiro limite é dado pelo determinismo da lei própria dade de um conflito entre elas, dessa realidade deriva a res-
das coisas materiais. O ambiente representa para o eu agente ponsabilidade humana, pela qual, se a liberdade ofende a Lei,
um feixe de impulsos exteriores e estranhos, que surgem inexo- esta a corrige com suas consequências. Essa responsabilidade
ravelmente em sua estrada, atravessando a sua trajetória, e mui- nasce do princípio de ordem e da reação da Lei à desordem, o
tas vezes lhe barram o caminho, impondo-lhe desvio. que conduz às sanções. A responsabilidade é proporcional à li-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 43
berdade, isto é, à possibilidade de violação, mas, se a liberdade Compreende-se então por que, com o conhecimento, au-
for bem usada, seguindo a Lei em vez de contrariá-la, então a menta a responsabilidade e, com o poder, a potência dos efei-
responsabilidade jamais conduz a reações dolorosas. Não pode tos do erro. Mas igualmente aumenta a ilogicidade da prática
ser de outro modo na lógica do sistema. do mal, o seu absurdo, que o torna sempre menos possível,
Um exemplo. O primeiro momento da ação é o desejo e a porque, quanto mais se sobe, tanto mais se sabe que ele leva à
motivação. Aquele é dado pelo meu temperamento, e esta é dor, e o instinto da alegria está escrito no ser. De modo que
limitada pelo meu conhecimento. Todavia, dentro dos limites esse aumento de responsabilidade, que poderia produzir efei-
estabelecidos pelo determinismo do meu passado, do qual de- tos desastrosos para o involuído, que se entrega ao mal, na
rivo, e pelo meu conhecimento, sou livre. Escolherei naquele prática, não é perigoso, porque é equilibrado pelo conheci-
âmbito um determinado tipo de força e a lançarei em uma de- mento, que tudo guia e ilumina. Com este, o homem compre-
terminada direção. Se esta escolha deriva dos meus preceden- ende a bondade da Lei e o próprio interesse em segui-la; tor-
tes, dela por sua vez dependem todas as consequências. Mi- na-se desse modo, ao invés de antagonista de Deus, cada vez
nha responsabilidade cobrirá o campo de todo esse interesse mais Seu colaborador. Esse é o sistema da Lei, que, assim, tu-
composto. E isto é justo porque, se tudo hoje se origina como do atrai a Deus. Dada esta estrutura, isto se torna fatal. É as-
consequência de precedentes aos quais está ligado o efeito sim que o ser passa do determinismo coagido e inconsciente
por princípio de causalidade, aqueles precedentes, no seu iní- da matéria ao determinismo livre e consciente da lei de Deus,
cio, foram sempre livremente desejados. Com isto, determi- que impera e triunfa em qualquer parte. No fundo, reina sem-
namos os limites da responsabilidade, os quais, mesmo sendo pre o absoluto, e o determinismo que o exprime não faz senão
na forma do interesse composto, jamais vão além do que foi mudar de forma. O ser que evolui em conhecimento tende au-
livremente desejado. Intervém, então, o determinismo do am- tomaticamente a limitar a maior liberdade que dele resulta e,
biente com a influência dos seus impulsos. A resultante deste em vez de servir-se dela para cair na anarquia, reorganiza os
encontro será dada pela natureza e potência do meu impulso seus livres atos de acordo com a Lei. É assim que o maior po-
e pela natureza e potência dos impulsos do ambiente, tudo der e liberdade conexos ao conhecimento não se resolvem em
combinado juntamente. Toda força tende a seguir o desen- desordem, mas em uma ordem sempre mais elevada. Tudo,
volvimento da sua trajetória conforme sua potência e nature- pois, se reduz à passagem de um determinismo coagido e in-
za, mas todas interferem entre si e combinam-se, não perma- consciente, como convém a quem não sabe, a um determinis-
necendo senão a resultante de todos os seus encontros. O de- mo livre e consciente, como convém a quem sabe. Então o ser
senvolvimento é sempre e em todo lugar disciplinado pela faz para si a vontade de Deus, seguindo-a livremente.
Lei, que ferreamente enquadra no determinismo universal to- O sistema é tão perfeito, que a liberdade não pode nunca
da oscilação do caso individual, admitida somente pela ne- trazer desordem, pois que ela nasce sempre em proporção ao
cessidade da experimentação indispensável à formação da conhecimento. Porém, logo que a liberdade seja usada em
consciência. Assim a ignorância de quem lança o primeiro sentido contrário a ele, nasce o erro e, portanto, a dor, que re-
impulso é prevista no sistema e, se leva para a desordem e o conduz o indivíduo para a Lei. Assim, automática e fatalmen-
mal, é logo corrigida com a dor, que ensina, educa e restabe- te, toda liberdade de que se haja abusado fica mutilada e re-
lece a ordem. É assim que se elimina a ignorância do ser que conduzida aos mais restritos limites precedentes. Mas, por es-
caminhou para o seu mal, sem o saber. ta experiência de dor, o conhecimento se dilatará, permitindo
Desse modo, ele escolherá depois caminhos melhores, sem- uma ampliação da liberdade, que se expandirá se dela não se
pre mais para o bem, à medida que, através desta escola, cresce fizer mau uso, renegando o conhecimento adquirido. O siste-
o conhecimento. ma de forças, com suas sábias reações, constitui o trilho e
É assim que o ser, evoluindo, aumenta a sua possibilidade contém a escala automática da evolução.
de agir livremente sem dano, isto é, conforme a Lei. Aumen- A liberdade, da forma que é usualmente entendida, como
tando com a ascensão a potência e o conhecimento, também arbítrio, sem conhecimento, não pode levar senão ao erro e à
aumenta a liberdade, que de fato sentimos ser uma qualidade dor, resultando na sua perda automática. Muitos procuram a
do espírito, e não da matéria. Mas trata-se de uma liberdade liberdade no abuso e na licença, mas sua ignorância os faz
consciente, por isto espontaneamente aderente à Lei, segundo a cair na cilada. A lei de Deus os espera no caminho, e o que os
qual a evolução consiste na passagem do determinismo físico aguarda é o erro, a dor e a perda de liberdade. O melhoramen-
dos mundos inferiores ao determinismo espiritual dos mundos to esperado torna-se ilusão. Dentro da Lei não se sobe com a
superiores através de uma oscilação, chamada livre-arbítrio, força, mas somente com o mérito. É inútil impor-se, quando
permitida com fim educativo. Se o ser involui, está retroce- não se sabe agir. A Lei se esquiva ao ignorante, que não a vê,
dendo para um determinismo sempre mais férreo, de reações mas não pode fraudá-la. O rebelde, pois, é destinado a recair
sempre mais enérgicas, mais adequadas à ignorância e insensi- na dor para aprender, sendo assim repelido de volta ao seu
bilidade do involuído, que, dessa forma, começa a ser abalado plano, para o seu bem, como quer a Lei na sua bondade. A or-
por golpes proporcionalmente mais violentos, pois somente dem sempre vence. Qualquer que sejam a força e a maldade
por estes pode ser induzido a evoluir. De fato, se o homem humana, a justiça triunfa; Satanás, o rebelde, está confinado
atual encarna na matéria, é porque aí ele encontra as resistên- no seu inferno. Qualquer liberdade desproporcional, perigosa
cias que lhe são adaptadas, duras o bastante para que nelas se para o ser, pois superior ao seu conhecimento, lhe é imedia-
possa exercitar e temperar. Disto decorre o quotidiano contras- tamente retirada. Satanás tem poder apenas até onde Deus
te, bem conhecido de todos, entre aspirações e ilusões em um quer; é escravo do bem e ignorante diante do céu. Logo que o
ambiente que dificilmente se deixa vencer. De tudo isto se ser abusa da liberdade, é levado de novo pelo seu próprio erro
compreende a enorme vantagem que representa, para alcançar ao esforço da experimentação, porque assim, através dessa
a alegria e evitar a dor, adquirir consciência da Lei, para saber única via, ele pode subir pelo caminho do conhecimento e da
depois movimentá-la, vivendo-a. É por isto que nestes escritos liberdade. De quantas dores se poderiam libertar os involuí-
se repete tanto este ponto, que é o problema fundamental da dos, se conhecessem esse simples mecanismo da Lei! E quan-
vida e o único remédio para todos os males. Quem compreen- ta bondade e sabedoria demonstra ela ao constranger o ho-
deu não pratica mais o mal e, assim, livra-se da dor. Eis a solu- mem, sob o seu látego, a ascender em direção ao seu bem e à
ção de todos os problemas. O homem é destinado ao domínio, sua felicidade! Quanta sabedoria ao tirar dos inferiores uma
mas é preciso que aprenda antes a mandar. liberdade que, sem conhecimento, seria para eles um perigo!
44 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
É salutar para quem vai em oposição à Lei, mesmo quando pensamento coletivo, no qual se somam as características psi-
domine, não encerrar em seu punho senão ilusões. Negar li- cológicas dominantes nos componentes. Teremos, então, uma
berdade aos inconscientes significa salvá-los do perigo de um massa humana que sente com um pensamento e uma única
mais grave abuso, portanto de um desastrado erro e de uma psique, e de forma muito mais determinista que no caso do in-
terrível dor. Há nisto, também, uma admirável economia di- divíduo singular. Uma observação macroscópica não nos daria
nâmica. Nova liberdade é concedida somente quando o ser, senão os resultados deterministas da psicologia coletiva, en-
por exuberância de forças, suporta esse risco e pode, portanto, quanto um exame microscópica nos daria as oscilações da psi-
após um período de bem-estar, enfrentar novas dores constru- cologia individual. Pode-se, portanto, observar com diversa
tivas (guerras e revoluções), quando então possui ao menos amplitude visual não somente a matéria, mas qualquer outra
uma margem de forças suficientes para submeter-se ao duro unidade coletiva, obtendo-se os mesmos resultados, quer dizer:
trabalho da experiência para conquistar nova consciência. livre mas limitada oscilação no caso singular da unidade com-
Esta nova concepção do livre-arbítrio, entendido como li- ponente e determinismo no caso coletivo da unidade superior.
mitada oscilação da atividade do ser num universo absoluta- Isto em qualquer nível evolutivo, para todas as unidades, con-
mente determinista, nos permite compreender os últimos re- forme a sua estrutura hierárquica.
sultados da ciência. A estrutura unitária e analógica do uni- Compreendidos esses princípios, cada um os poderá contro-
verso nos permite situar o problema do livre-arbítrio e deter- lar nos fatos e deles tirar consequências. Aplicando os concei-
minismo também na mais moderna física estatística e quânti- tos sobre o livre-arbítrio à estrutura da matéria, pudemos conci-
ca. Estabelecido o paralelo entre o mundo espiritual e materi- liar, como acima mencionado, o determinismo da velha física
al, poderemos dizer que a liberdade de ação do homem no mecanicista clássica com a indisciplinada irregularidade de
seio das leis que governam seu plano corresponde à liberdade ação que nos aparece no fundo da matéria, segundo a moderna
de movimentos dos elementos componentes do mundo da físi- física estatística e quântica. Pudemos compreender, outrossim,
ca atômica. Em ambos os casos, trata-se de uma oscilação em como se pode passar de um campo de forças regulado conforme
campo limitado, de uma liberdade relativa, que desaparece no o princípio do livre-arbítrio a um regulado pelo determinismo.
determinismo tão logo a observação seja levada do caso parti- Com isto, desenvolvemos estes dois conceitos já assinalados
cular (observação ultramicroscópica) ao plano da unidade co- em A Grande Síntese, no Cap. LXVI, ―Rumo às supremas as-
letiva de que ele faz parte (observação macroscópica). Eis censões biológicas‖ e em A Nova Civilização do Terceiro Milê-
que, seja qual for o caso, o livre-arbítrio, propriedade de cada nio, no Cap. XXIV, ―O nosso livre destino‖.
elemento, está fechado em um determinismo macroscópico, Uma última consequência ainda, que nos toca de perto. Tí-
que aparece imediatamente assim que se sobe das pequenas nhamos dito que um dos limites do nosso livre-arbítrio é o
diferenças individuais o bastante para colher as características princípio de causalidade, segundo o qual nosso passado está li-
comuns que reúnem em uma só lei todos os elementos com- gado a nós, e, assim, o que semeamos devemos colher (segun-
ponentes. Ela é a lei dos grandes números, revelada estatisti- do limite). Dado que todo momento é o efeito do precedente,
camente, própria da massa, e não do indivíduo. Assim, expli- bem como causa do seguinte, não nos encontramos apenas li-
ca-se como, sob o determinismo da velha física mecanicista vres como causa, mas também estamos ligados ainda como
clássica, se esconda uma aparente livre desordem. O ser, dei- efeito. Esta é, em nossa vida, uma zona de determinismo. Ora,
xado livremente à sua experimentação, é retomado na ordem tal condição se manifesta através dos instintos, que represen-
do determinismo em um plano mais alto. Assim, por exemplo, tam as qualidades adquiridas no passado, no bem ou no mal,
cada um come a seu modo, mas todos comem. Das folhas de com a própria experimentação. O período da vida mais sujeito
uma árvore, não há duas idênticas, mas todas são do mesmo a funcionar por instinto, o menos reflexivo, é o primeiro, isto
tipo, modelo e princípio. A oscilação individual não pode alte- é, a juventude. Então pode-se dizer que, na primeira metade da
rar o determinismo da Lei, em que fica sempre enquadrada vida, o homem apenas obedece fatalmente às consequências do
toda liberdade do indivíduo. passado, não se encontrando em condições de iniciar lança-
Tudo isto significa que, se em cada natureza individual estão mentos de novos impulsos. De modo que na juventude, espon-
escritas pequenas diferenças na aplicação e formulação da lei tânea e irrefletida, age-se impulsivamente, como efeito do pas-
geral, que é determinista, também está escrita no indivíduo, po- sado, aplicando-se somente os resultados ou os totais do fe-
rém muito mais a fundo, a substância da Lei, que, dessa forma, chamento do balanço da vida precedente, enquanto na maturi-
reconduz todos a ela através das características dominantes que dade, que é mais consciente e reflexa, age-se mais no sentido
a exprimem. Ora, pelo princípio das unidades coletivas, sendo as de lançar novas causas, semeando-se para o próprio futuro, e
individualizações do ser ordenadas hierarquicamente segundo os dessa forma, mais que suportar as consequências do passado,
grupos, também hierarquicamente estabelecidas são as respecti- age-se corrigindo as trajetórias e iniciando o lançamento de
vas leis de cada plano de existência, de modo que o campo de novos impulsos causais. As ações dessa segunda metade da vi-
livre oscilação de cada caso é sempre relativo à unidade indivi- da, portanto, enquadram-se mais ao livre-arbítrio, enquanto as
dual. Entende-se que, em qualquer nível, a unidade é individual da primeira metade obedecem mais ao determinismo.
diante da unidade coletiva do plano superior, enquanto é coleti- Quase como uma confirmação de tudo isso, encontramos
va diante da unidade individual do plano inferior. Assim, a li- uma confirmação em formas analógicas correspondentes no
berdade está sempre enquadrada no determinismo da unidade plano físico. O indivíduo recebe por hereditariedade e desen-
acima, e o indivíduo somente é livre como elemento componen- volve um organismo para o qual a sua personalidade espiritual
te de uma coletividade superior, que, em relação à unidade indi- foi atraída por afinidade, mas que é o resultado da evolução
vidual, é sempre determinista. Tal é a lei do grupo, enquanto biológica. Isto já constitui uma espécie determinismo orgânico
permanece livre o indivíduo. Assim, em toda unificação, verifi- hereditário, ou seja, um organismo físico já fixado em uma
ca-se uma reordenação determinista, e cada ascensão para Deus forma, assim como, em outro plano, também está fixado o des-
constitui uma adesão mais firme à Sua vontade absoluta. tino que exprime o seu passado. Então, tal como no caso ex-
Tem-se, assim, aos poucos, o tecido que forma esse grande posto anteriormente, o indivíduo também suporta aqui essa
organismo que é o universo. Como o elétron é o elemento forma física hereditária na primeira parte de sua vida, para
componente do átomo, este da molécula, esta da célula, esta transformá-la com a contínua pressão do seu espírito, pelo que
dos tecidos e estes do organismo, assim o pensamento de um as suas ideias dominantes acabam por se imprimir na carne,
indivíduo na sociedade humana é o elemento de um mais vasto exprimindo-se em características somáticas. Assim como é
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 45
corrigido, conforme a nova vida quer, o precedente resultado XII. EQUILÍBRIOS
espiritual que se fixou no destino, também é corrigido o prece-
dente resultado material fixado no organismo físico. Sempre, ―A glória d'Aquele que tudo movimenta no universo penetra
em qualquer parte, paralelismos e analogias. De modo que a e resplende, numa parte mais, noutra menos‖.
vontade, assim como pode corrigir na vida um destino adverso,
pode corrigir também uma fisionomia triste, fazendo nela Em nossa ascensão, tentamos agora, por outra via, avizi-
transparecer finalmente a interior beleza, se esta verdadeira- nhar-nos sempre mais da concepção de Deus e do universo, que
mente existir, e ao contrário. Assim, a nova vida, seja espiritu- em breve teremos de enfrentar; concepção que sinto chegar e
al ou seja física, implanta-se diretamente nas consequências da que vamos preparando e amadurecendo em nosso pensamento.
precedente, e é lógico que ela seja a continuação direta da an- Estamos bem longe daquela verdade do 1o Capítulo.
terior, segundo um mesmo e contínuo desenvolvimento de for- O homem normal não forma a ideia do universo de maravi-
ças. Deste modo, a maturidade, mesmo colhendo as conse- lhosos equilíbrios onde ele vive. Acredita que as harmonias da
quências da existência precedente, fixadas no período atual, ordem divina se encontrem somente no alto, no chamado para-
pode, na plenitude das suas forças e da consciência adquirida, íso. Não. Aquela ordem, expressão de Deus, está em qualquer
melhor corrigi-las, seja guiando-as, seja sobrepondo-lhes inici- lugar, também no inferno terrestre. O homem a tem, pois, toda
ativas novas. Poder-se-ia, assim, chegar ao conceito de que a à sua volta, nas pequenas coisas do seu mundo, em meio às du-
massa biológica, isto é, dos corpos ou formas da vida, seja um ras necessidades do contingente. É verdade que a maioria hu-
material biológico comum que evolui, porque progressivamen- mana é involuída, nada sabe dessa ordem divina, da sua bele-
te elaborado por todos os eus que, sucessivamente, vestindo-se za, da riqueza que ela representa, da potência que advém de
com ele em suas vidas, assumem a forma da sua manifestação. conhecê-la e saber harmonizar-se com ela. A maioria involuída
E isto exprimiria a ação evolutiva do espírito sobre a matéria e está, pois, mais atenta em violar continuamente essa ordem, o
a razão da necessidade de esposá-la na vida física, porque o que redunda em seu prejuízo, e não da ordem, que, na sua per-
espírito está à testa e tudo ele deve fazer subir consigo para feição, possui a característica de saber tornar automaticamente
Deus. Quando se compreende a estrutura do sistema universal, a reconstituir-se, não obstante toda violação. Assim, o homem
tudo parece justo e lógico, e a limitada concepção de uma vida está ativamente ocupado em procurar, sem descanso, somente
curta, fechada entre o nascimento e a morte, é substituída por o próprio dano e a própria dor. Mas isto é necessário para que
outra, vasta, de uma vida eterna. ele, mesmo ficando livre, aprenda. E, assim, na sabedoria divi-
Concluindo esta visão, antes de passar a outras, o livre- na, a desordem voluntária da inconsciência humana se trans-
arbítrio nos aparece, pois, como uma pequena irregularidade, forma em mais elevada ordem no futuro, e a dor, que deriva
que não viola o determinismo universal. É no seu seio e en- daquela desordem, se torna um meio de ascensão para uma fe-
quadrada no seu âmbito que é admitida esta limitada anomalia, licidade mais completa. De certo, o homem atual não imagina
própria da imperfeição, que deve ainda atingir a perfeição e que haja no universo, ao alcance de sua mão, uma riqueza, po-
que, através da incerteza da experimentação, a vai procurando. der e felicidade imensas. Delas se acha afastado pela sua invo-
Existem dois mundos: o absoluto e o relativo, o perfeito e o lução, que é ignorância; e, para conhecer, é preciso evoluir, is-
imperfeito. Parece que o determinismo, próprio do primeiro, to é, lutar e sofrer. A mente que, no aparente caos humano, sa-
fragmenta-se no segundo para escopos contingentes e transitó- be recolocar cada coisa em seu lugar, verá um desenho maravi-
rios, superados os quais, ele volta a unificar-se no próprio de- lhoso de que ela faz parte; verá que tudo é lógico e ordenado
terminismo. O livre-arbítrio domina a zona das formações e para o bem, por mais tristes que possam ser as condições do
depois cessa; corresponde à zona da consciência, contida no indivíduo e do momento. O evoluído vê as metas de tudo e a
inconsciente humano, subconsciente embaixo e superconscien- íntima e tenaz reconstituição da ordem, a despeito da desordem
te no alto, mas sempre inconsciente, isto é, abandonado à sa- vitoriosa, que está somente no exterior, na superfície, relativa e
bedoria da Lei. É neste intervalo que o infinito, verdadeira di- transitória. Otimismo, pois, um otimismo de ferro, de bases
mensão universal, avizinha-se da nossa mente, deixa-se perce- graníticas, dadas por um profundo conhecimento científico da
ber e medir, tornando-se nosso domínio no breve trecho limi- vida e de suas leis; otimismo em todo caso, ainda quando as
tado do finito, para depois fugir-nos de novo como infinito, do coisas vão mal, ainda diante da triste verificação de que toda
lado oposto de onde veio. Assim como a consciência humana, descoberta científica e todo progresso no conhecimento ve-
no fundo, é inconsciência diante da sabedoria de Deus, tam- nham a ser usados pelo homem em primeiro lugar para praticar
bém o finito e o livre-arbítrio são apenas dimensões nossas re- o mal. A Lei quer que quem pratica o mal involua, tenda a
lativas e transitórias diante da verdadeira, fechadas dentro des- aprofundar-se em sempre maior ignorância e dor, até à auto-
ta, na qual tudo recai e se completa. Eles não representam se- destruição. E quer que quem faz o bem evolua, tenda a subir
não a dimensão-limite diante da dimensão sem limite, que é o para uma sempre maior sabedoria e felicidade, até à fusão em
infinito, a consciência da Lei ou sabedoria de Deus, o determi- Deus. Não obstante as aparências infernais de alguns mundos
nismo. De um lado o limite, do outro o sem-limite. A nossa como a Terra, tudo é ordem, é bem, é feito para a felicidade
perspectiva parte do limite, e o lado oposto nos aparece nega- dos bons e o triunfo da justiça. Quem quer, esteja onde estiver,
tivo, um sem-limite. Não sabemos conceber o infinito senão pode sempre salvar-se. Quem compreende, eleva um cântico
pelo lado negativo, senão como um não-finito. Assim, a cons- de amor e gratidão a Deus e bendiz sempre a vida.
ciência humana não pode conceber senão no limite. Ela repre- É desta ordem que agora queremos ocupar-nos aqui, que se
senta um ponto de conhecimento que, diante de uma infinita refere não aos longínquos planos celestes, considerados de pou-
sabedoria divina, é ignorância, assim como o finito é sempre ca utilidade, porque longínquos, mas aos seus reflexos terrenos,
inadequado diante do infinito. O verdadeiro, à semelhança dos no seu funcionamento entre nós, humanos, nas suas consequên-
aspectos observados, provindo do infinito da intuição, fecha-se cias e aplicações práticas. Somente assim poderemos ser com-
diante de nós, em uma seção sua, em nosso pequeno campo ra- preendidos. É lei geral no universo o princípio de dualidade,
cional, que lhe analisa os particulares, sem capacidade de sín- pelo qual toda unidade ou individualização do ser é dúplice, is-
tese. Abaixo e acima do racional há a intuição; embaixo, aque- to é, separada, porém soldada em seu íntimo, em duas metades
la axiomática das premissas; no alto, aquela sintético- contrárias, inversas e complementares, que se combatem e se
conclusiva do gênio. Ela pertence ao mundo do infinito, da procuram, que se anulam e se completam, constituindo assim,
consciência da Lei, do determinismo, do absoluto, de Deus. na oposição de dois termos opostos e contrastantes, um sistema
46 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
equilibrado, ou seja, a unidade ou indivíduo. Lei esta já de- se destrutivo. Ele tende a transformar tudo em energia e, por
monstrada em outros escritos meus. Mas há mais. Os dois ele- isto, a queimar o material orgânico. É o verdadeiro motor da
mentos do dualismo, constituintes de toda individualização, não vida e agente da evolução, o catalisador, o princípio do vir-a-
assumem somente a forma estática, de equilíbrio estável, mas ser e da transformação. Ele tende a dissolver, a consumir e,
também a forma dinâmica de um sistema de forças, pelo qual quando não freado, a queimar e destruir. A sua ação é oxidante
os dois termos não são simplesmente contrapostos em equilí- e dissolvente da matéria nutritiva acumulada no protoplasma,
brio, mas um deles, de valor positivo, se põe no centro do sis- para reduzi-la a energia. Ele é, em suma, o Deus animador da
tema e um ou mais elementos de sinal oposto ou valor negativo célula e, portanto, da vida; representa a função da combustão e
passam a girar ao seu redor, dispondo-se na periferia. O número da troca, a função de governo e de comando. Assim como o
deles é variável em relação ao seu potencial dinâmico e ao do Sol rege, guia e faz avançar os seus planetas, ao núcleo perten-
elemento central. Quanto mais esse núcleo é potente, maior é a ce a tarefa da direção e da ascensão. Essa função, toda mascu-
sua capacidade de irradiar e, portanto, o poder de reger um lina e divinamente criadora, recorda e repete, num plano mais
maior número de elementos satélites. Paralelamente, quanto elevado, o motivo da gênese de energia que se verifica por de-
menor é a amplitude ou capacidade negativa de receber carga sintegração atômica nas mais complexas formas da individua-
positiva do núcleo por parte dos elementos satélites, tanto mai- lização química. Como o Sol, o núcleo arde, aquece, arrasta
or é o número destes que o sistema pode suportar. Isto porque consigo e comanda todo o sistema; entrega-se, irradia e sus-
cada um dos dois termos se põe no sistema em relação ao outro tém. Ele representa e reproduz, em proporção à sua potência, o
e, para a estabilidade e equilíbrio deste, devem harmonizar-se. esquema geral do universo – esquema que é único em qualquer
Observemos a influência que esse princípio tem, sobretudo lugar. Assim, o núcleo reflete e repete no seu plano as funções
em nossa realidade. Comecemos pelo caso máximo. O universo diretoras do princípio geral do cosmo, que, conforme a mesma
todo é dúplice. Deus, princípio espiritual, positivo, está no cen- e única lei (monismo), retorna em todos os menores sistemas
tro; a forma material, negativa, está na periferia. De um lado o componentes, até à infinitesimal ramificação. Este sistemas,
motor: ativo, criador; do outro a manifestação: passiva, criada, por sua vez, segundo a lei das unidades coletivas múltiplas, re-
efeito daquela causa. Os dois termos têm caracteres opostos. encontram-se e recompõem-se em uma nova unidade, irma-
Deus é o espírito, o absoluto, o imóvel, o imutável, o pensa- nando-se por reagrupamentos graduais e progressivos, que se
mento diretor, o comando. O universo que vemos é a forma, o estendem do centro à periferia.
relativo, o móvel, o transitório, a expressão, a obediência à Lei. Que faz o protoplasma, pelo seu lado? Logicamente, as su-
Transcendência e imanência não são senão os dois termos opos- as características e funções devem ser opostas. Ah se o princí-
tos de um par em que eles se unem em estreita unidade, ligados pio da inovação não fosse equilibrado por aquele da conserva-
no mesmo sistema em inseparável monismo. Esse esquema ção! Não nos surpreendamos então por reencontrar na estrutura
único ecoa e se repete em todo o universo, até à sua última pul- da célula os princípios contrastantes do misoneísmo e do pro-
verização. Todo fenômeno é um tornar-se que se liga ao par gresso, próprios da vida social. Para quem compreendeu a uni-
causa-efeito. Portanto todo pensamento ou ato contém em si, dade do universo, são lógicas e verdadeiras essas relações en-
conforme a sua natureza, as suas consequências. Assim, o efei- tre a estrutura da célula e os movimentos coletivos e aconteci-
to gira em torno de sua causa até que esta se exaure nele. mentos históricos, que também derivam da íntima constituição
Casos menores. O Sol, núcleo do Sistema Solar, tem, como do ser humano. De fato, somente assim é que se pode verda-
verdadeiro macho no harém, nove esposas nos seus planetas. deiramente compreender a história. O poder do protoplasma é
Elas o seguem obedientes em todo o seu curso através da galá- todo ele para a construção de material orgânico, reposição das
xia. O mundo atômico é regulado pelos mesmos princípios. Em perdas e fornecimento do combustível a ser queimado. Ele
torno do elemento central do átomo (núcleo), de carga eletropo- tende à economia, à conservação, ao acúmulo das substâncias
sitiva, rodam tantos elétrons de carga eletronegativa quantos o orgânicas, ao armazenamento de reservas nutritivas; em suma,
elemento central possa reger. Temos assim, no microcosmo à engorda. O protoplasma é a fêmea, e esta serve o macho para
atômico, um verdadeiro sistema planetário, em que o núcleo re- que ele, com o material recolhido por ela, possa, através do
presenta o sol. E todo sistema planetário não é senão o átomo poder óxido-redutivo do núcleo, isto é, das oxidações operadas
de uma química astronômica do macrocosmo. Na Terra, temos por ele como núcleo, criar a energia vital. Reencontramos aqui
92 elementos, ou corpos simples, que vão do hidrogênio (H) ao um momento do físio-dínamo-psiquismo universal. O núcleo
urânio (U); unidades atômicas em que o número dos elétrons está incumbido de criar energia, destruindo matéria; é, no seu
que giram em torno do núcleo sobe de 1 no H a 92 no U. Isto plano e sistema, o agente do transformismo, fenômeno univer-
quer dizer que o núcleo de U apresenta um potencial capaz de sal, em que a substância assume formas diversas. Em paralelo
reger 92 planetas, enquanto o do H admite apenas 1. a essa função, o protoplasma é inteiramente substância a ser
No mundo orgânico, a distinção sexual, antes de chegar às plasmada, na expectativa de receber impressões, para conser-
suas manifestações somáticas e psíquicas, já existe na célula e vá-las (misoneísmo); diante do agente, é o material da vida,
exatamente conforme os mencionados princípios. A célula é um portanto é todo feito para a construção e reintegração deste
microcosmo formado como um sistema planetário, cujo centro material, para preencher todas as perdas nele verificadas por
é constituído pelo núcleo, elemento positivo, masculino, e a pe- força do incêndio produzido pelo núcleo.
riferia, ou séquito, ou harém eletrônico, é constituída pelo pro- Esta é a base do metabolismo orgânico. A vida se apoia nes-
toplasma, elemento negativo, feminino. Os dois dinamismos ses equilíbrios. A própria agricultura está sujeita a essas leis. A
são inversos e complementares, reciprocamente contrários e semente é o núcleo, princípio ativo. A terra representa o proto-
equilibrados. Eis que chegamos então às aplicações práticas, plasma, princípio passivo, acumulador de materiais que a se-
que mais interessam ao leitor. mente toma ao redor do seu sistema. Há uma troca no terreno,
A saúde e a resistência orgânica, que representam uma sig- regulada pelas plantas que nele vivem. A cultura intensiva, com
nificativa parcela da luta pela vida, dependem em grande parte base na adubação química, alterou essa permuta, destruindo a
do equilíbrio entre núcleo e protoplasma. Estes, pelo mencio- flora bacteriana, em razão disto, hoje, ou se torna a fornecê-la à
nado princípio e dado o seu dinamismo inverso, representam terra ou se deixa esta descansar, para ter tempo de reconstituir a
funções inversas e complementares. O núcleo é ativo, portanto flora e recuperar assim os materiais nutritivos dos quais a ex-
dinamizante, a ponto de, se não encontrar no par o elemento ploração intensiva a depauperou, caso contrário teremos uma
contrário, como função compensadora e de equilíbrio, tornar- produção agrícola progressivamente menor.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 47
No metabolismo orgânico, o protoplasma trabalha para o nú- inércia, a divina sabedoria os colocou juntos de propósito para
cleo, mas dele recebe a energia para trabalhar para ele. A fêmea se compensarem. Uma humanidade toda de homens matar-se-ia
é a serva do macho, mas dele recebe guia e defesa. Se os dois na luta; uma humanidade toda de mulheres acabar-se-ia na es-
impulsos contrários não se compensarem e equilibrarem e, lu- tagnação. Nenhum dos dois princípios saberia viver e poderia
tando um contra o outro, não se penetrarem e combinarem, ex- sobreviver sozinho. E eis-nos entre as paredes domésticas. O
tinguindo a colaboração, então é o fim. O núcleo, sozinho, homem trabalha fora e leva para casa o fruto do seu trabalho, a
queima todo o material em energia. O protoplasma, sozinho, mulher trabalha em casa e elabora aquele fruto, nos alimentos,
cristaliza a célula, pois sufoca as reservas do núcleo e paralisa cuidados e criação dos filhos. Este é o modelo, segundo o es-
assim a sua obra dissolvente e redutora, deixando tudo apodre- quema da vida. A mulher operária, empregada, política, que lu-
cer, insensivelmente, na mais indolente das inércias. No primei- ta contra o homem, é um aborto moderno, contra a natureza.
ro caso, haverá uma troca demasiado violenta e, com isto, um Que o planeta se torne sol, o elétron vá ao centro do átomo, que
rápido esgotamento dos capitais da célula, das reservas do pro- o protoplasma se faça núcleo, isto é patológico, é subversão.
toplasma, resultando enfim na ruína do sistema orgânico e na Mas há compensação também aqui, e o equilíbrio é salvo. O sé-
morte por consumição. No segundo caso, teremos uma redução culo atual, em que as mulheres são machos, deve compensar o
do potencial vital da célula e, portanto, um afrouxamento das século de Setecentos, em que os machos de perucas e empoados
trocas e uma atividade celular orgânica reduzida. Isto produz eram fêmeas. Mas isto passará, e retornar-se-á ao romantismo,
excessivas e insuportáveis escórias na troca, autointoxicações, e então rir-se-á da atual mulher-macho, como hoje se ri do ma-
prepara o terreno orgânico onde medram e prosperam os micró- cho-mulher do século dezoito. Tudo se equilibra.
bios, ensejando o desenvolvimento de doenças infecciosas, a A coletividade tem a sua forma de vida masculina e femini-
disfunção dos órgãos, ou até mesmo a morte. na. Nos períodos de grande esforço inovador e evolutivo, tudo
Vê-se, pois, como temos em casa, em nosso próprio corpo, se dinamiza e se torna macho, também a fêmea. Nos períodos de
aqueles longínquos equilíbrios cósmicos pelos quais não nos in- estagnação no bem-estar, em que se colhe o fruto do esforço
teressamos, porque nos parecem muito afastados. Temos então precedente e os resultados são assimilados e fixados, tudo se
em nós e em nós revelamos, como tudo revela, o mesmo es- harmoniza, embeleza, refina e se torna fêmea, também o macho.
quema do universo. A ordem está em nós e em todas as coisas, Enquanto, antes, tudo era forte mas rude, depois tudo se aperfei-
e a essa ordem devemos nós, e tudo deve, a existência. Na ad- çoa, torna-se delicado, mas também se debilita. Primeiro a guer-
mirável distribuição de funções da economia da natureza, é ao ra e as revoluções, a vontade e a conquista; depois, na paz, as ar-
princípio masculino que cabe a ação de precipitar, neutralizar e tes, a beleza e o amor. Alternações como o dia e a noite, fadiga e
expelir tóxicos, toxinas, qualquer inimigo, todo resíduo da tro- repouso, criação e assimilação, processo pelo qual, com trabalho
ca. A ele é confiada a luta para a defesa orgânica. Daí, a maior alternado, cada um repousando enquanto o outro se cansa, espí-
resistência orgânica dos temperamentos fortes, de mais alto po- rito e matéria avançam. O contínuo alternar-se dos dois períodos
tencial nervoso. Mas ai se a sua função não fosse freada e equi- históricos, clássico e romântico, responde precisamente à lei do
librada pelo princípio oposto! Vimos o que sucede logo que os dualismo universal, que reencontramos nos dois sexos. Trata-se
dois processos celulares de síntese e redução não se equilibram. de desequilíbrios sucessivos, necessários para o movimento evo-
Também o nosso metabolismo orgânico é uma luta, mas uma lutivo, mas que, compensando-se, sempre se equilibram. O
luta equilibrada. O princípio de dualidade e o esquema desse mundo está hoje dividido neste sentido. De um lado, um totalita-
sistema de forças centrais e periféricas são uma lei universal. É rismo tirânico, revolucionário, guerreiro, pobre e conquistador;
esta universalidade que dá a toda manifestação do ser a forma do outro lado, as livres democracias, pacificas, fartas e acumu-
de luta. Compreende-se assim como o próprio homem não pos- ladoras. De um lado, o princípio comunista, para tomar; de ou-
sa fazer nada senão em forma de luta e como toda atividade as- tro, o princípio capitalista, para conservar.
suma e não possa assumir senão essa forma. Ela nos indica não Ora, considerada em posição de equilíbrio, e não como fase
só a impossibilidade e o absurdo de querer eximir-se do esforço de transição, a vida da mulher, por sua natureza reflexa, procu-
de medir-se com o próprio antagonista, mas também que todo ra todos os seus motivos no macho, em função do qual, como
ser, conforme seu tipo, tem naturalmente o seu próprio oponen- verdadeiro satélite, vive e funciona. Essa é a sua posição natu-
te. Assim explica-se como, sem luta, a vida se extingue. A gê- ral, o seu equilíbrio, a que ela, naturalmente, sempre tem ten-
nese das defesas e da força que nos robustece está na luta. Cada dência para retornar. Somente ao macho a natureza dá a inicia-
um, conforme o que é, tem o seu paralelo e proporcionado an- tiva. Ao satélite-fêmea cabe a obediência. E, se, transitoria-
tagonista, é por este atraído e deve medir-se com ele, para que mente, arrastado pela prevalência do impulso oposto, o macho
se forme logo a hierarquia de quem manda e de quem obedece, se adapta a funcionar como fêmea e ao contrário, isto sempre
segundo o seu valor, porque, sempre e em qualquer parte, as se dá por substituição. O deslocamento é acidental e transitó-
forças se dispõem, naturalmente, segundo o mencionado es- rio. A verdadeira mulher ama, e o verdadeiro homem conquis-
quema sideral atômico. Essa é a lei do cosmo. Não há, portanto, ta. Na evolução, à frente está o macho e, atrás, seguem os saté-
outro recurso, senão sermos fortes e premunidos, como nos lites. Na ponta do trem está a máquina, e não os vagões, que,
quer a própria luta. Ou lutar e, lutando, ficar forte e vencer; ou ao contrário, se deixam arrastar. Já que há tantas formas de
servir e, suportando, adaptar-se e, no caso extremo, morrer. evolução e tantas diversas altitudes, o progresso depende do
Esse diálogo entre núcleo e protoplasma não é senão o diá- que esse macho compreende. Se ele for ainda involuído, fará a
logo do sexo, isto é, do macho e da fêmea. E também esse é um luta do animal para a seleção de um mais forte tipo animal. Se
equilíbrio cósmico que está em nós. Não é por acaso, mas sim ele for evoluído, fará uma luta mais inteligente e civil, para a
em harmonia e obediência a esse sistema universal, que o ma- seleção de um tipo biológico mais elevado. Mas, em todo caso,
cho e a fêmea possuem determinadas características, distribuin- a mulher não pode senão inserir-se no sistema do macho, se-
do-se-lhes diversas funções. Não é por acaso, mas sim confor- guindo passivamente o elemento ativo. Quando quer se tornar
me a lógica e a sábia economia da vida, que o macho está apto ativa, fica naturalmente fora de fase e, não sendo munida pela
para a guerra e a fêmea para a reprodução; que o primeiro mata natureza para essa função de luta, vem a encontrar-se em con-
para criar, e a segunda gera e acumula para que ele possa matar dições de inferioridade e, naturalmente, sofre. Se é mulher, não
e destruir para criar. Isto demonstra que a vida não é um fim em pode funcionar como núcleo. Isto é inato nela até nas profun-
si mesma, mas meio para evoluir. E, se o primeiro é inovador dezas celulares do seu organismo. O fato de ser escasso o po-
até à destruição e a segunda é conservadora até à extinção por der oxidante da sua célula e, pois, reduzido o volume de ener-
48 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
gia que dela brota, constitui uma carência natural insuprimível, ser o mais longínquo, ao sexual, que está mais perto de nós.
até às suas últimas consequências, também nos planos superio- Somente assim, enquadrados nos esquemas universais, é possí-
res da psique. Por isto a mulher, essencialmente protoplásmica, vel compreender os problemas particulares.
tem necessidade de se completar, pedindo o poder dinamizante Façamos uma última aplicação no campo espiritual. Todo
ao princípio nuclear masculino. chefe, em qualquer campo em que opere, é sempre um núcleo
Eis-nos diante de novas e mais próximas aplicações do em torno do qual gravitam discípulos, súditos, exércitos, imita-
princípio de equilíbrio universal. Como compensa a mulher as dores, clientes. Em toda manifestação coletiva, social, política,
suas reduzidas capacidades metabólicas; como vivifica a sua religiosa, econômica, intelectual, também as forças espirituais
troca, que é toda poupança; como age a sua célula acumuladora, se distribuem metodicamente, segundo o esquema habitual de
para tornar a se carregar de energia? Como pode comunicar-se núcleo central e elementos periféricos, rodando em torno, à gui-
com o princípio oposto, para se recarregar? E ao contrário, co- sa de sistema planetário. O chefe, à semelhança do sol, sempre
mo pode aquele princípio oposto se descarregar nela? Qual o arrasta atrás de si a sua corte de satélites. O esquema de distri-
princípio regulador dessas trocas de recursos e cargas opostos? buição de forças no átomo, na célula, bem como no sistema so-
É evidente que os dois princípios contrários, o positivo e o ne- lar, é o mesmo e também se aplica aos sistemas políticos nos
gativo, para poderem reciprocamente se compensar e, com isto, quais se ordena a sociedade humana. Os povos giram em torno
formar o equilíbrio, devem ser comunicantes. Vejamos como de seu governo. Os dois são opostos e complementares no âm-
isto se dá. No mundo orgânico, são os hormônios que, mais ou bito da nação; eles lutam entre si, mas formam uma unidade,
menos, excitam e, portanto, regulam o metabolismo e a ativida- que é a nação. Para que o sistema de forças possa formar-se, é
de funcional de todo órgão. Eles são produtos das várias glân- necessário que os dois termos sejam reciprocamente proporcio-
dulas de secreção interna, mas sobretudo dos ovários e dos tes- nais e qualitativamente afins, de outro modo o equilíbrio e a
tículos. Os primeiros produzem os hormônios ovarianos, aptos simbiose não se formam ou se desmancham. Por isso os povos
a excitar a função de reintegração e construção orgânica; os se- têm os governos que merecem, e ao contrário. No grande orga-
gundos produzem hormônios de grande potência oxidante, di- nismo coletivo, nova unidade biológica do porvir, hoje em for-
namizante. A atração sexual é dada, de um lado, pela carência mação, o povo representa o protoplasma, a massa demográfica
e, de outro, pela abundância desses hormônios, e ao contrário acumuladora de carne e de bens; o chefe é o núcleo que tudo
para as de tipo oposto. Para atingir através da compensação o move e dinamiza, mas que também, para progredir, está dispos-
equilíbrio, eles tendem naturalmente para a troca. Reencontra- to a queimar tudo nas guerras e revoluções. Dessa forma, os
mos aqui também, nas leis do amor, aquele universal princípio dois termos se condicionam, freando-se e equilibrando-se reci-
de equilíbrio que tudo rege. Nele reencontramos até o equilíbrio procamente. Depois de um esforço bélico ou revolucionário, os
da procura e da oferta, que é a base das nossas trocas e da ciên- povos se recusam ao movimento inovador e se concentram,
cia econômica. Para cada um, conforme o seu sexo e tipo, trata- exaurido o esforço expansionista, na função de acumular. Che-
se de adquirir de quem os possua em excesso os elementos ne- fes e massas funcionam subordinados, e, tal como macho e fê-
cessários que lhe faltam, e de ceder os que possui em abundân- mea, não se sabe quem comanda mais. Algumas vezes, os po-
cia a quem deles tem carência. Somente assim, cada um pode vos mandam e os chefes obedecem. Quem guia a história não
atingir um bom reajustamento da própria troca e de todas as são, pois, nem uns nem outros, mas as leis da vida, que guiam
consequentes funções vitais. Somente assim os dois desequilí- todos. Não há vontade humana que nos possa fazer sair desses
brios se reequilibram e as recíprocas carências se suprem e se equilíbrios e ordem. No interior de cada unidade há sempre luta
saciam. Entre iguais (mesmo sexo) ou semelhantes (mesma fa- e contraste; cada eu (núcleo) está abraçado à sua contradição e,
mília) não há atração, mas repulsão ou indiferença. É a troca quanto mais forte ele é, tanto maior é a sua atração e tanto mais
que, através do ato sexual, em que se dá a absorção, permite a numerosa é a corte dos seus satélites, que são seus sequazes e
cada um dos dois sexos descarregar o próprio tipo de hormô- também inimigos. Ao vencedor todos rendem o obséquio da
nios supérfluos e se carregar dos hormônios de tipo e ação fêmea ao macho. É a homenagem da vida ao seu mais válido
oposta. É através da troca sexual que a célula consegue pôr princípio, positivo e dinamizante, aquele a quem é confiada a
água no vinho e vinho na água, conforme sua natureza e neces- evolução. Quem vence é rei. Esta é a lei em todo campo.
sidades, e, assim, regular o seu metabolismo, a sua vitalidade e Como vimos, tudo gira em torno de um centro: Deus, centro
seu funcionamento orgânico. Aqui não há espaço para expor máximo, que se reflete em infinitos centros menores para baixo,
em particular a modalidade dessa troca. Basta notar aqui as re- até ao infinitesimal. Assim, toda individualização reflete a Sua
lações entre um não sábio uso do sexo e as alterações da troca, imagem e Ele é verdadeiramente presente em qualquer parte,
e como se possa, por excesso ou por defeito, chegar a acumula- até à última poeira do universo. O mais absoluto monismo é
ções de escórias, a autointoxicações e, enfim, à debilidade e expresso na repetição do mesmo esquema em todas as grada-
vulnerabilidade orgânicas, que, somando-se com a hereditarie- ções e planos do ser, em todas as alturas da evolução. Assim, o
dade, vêm a constituir grande parte daquelas carências e pre- homem é feito à imagem e semelhança de Deus, e, em Deus, o
disposições ao assalto microbiano, que representam a hodierna universo diz: ―Eu‖, embora espedaçado em infinitas formas.
delícia do mundo. Todo fato, logo uma doença infecciosa tam- Mas é no próprio eu que está em tudo o que existe, que o ser
bém, é sempre conexo às suas mais longínquas raízes. encontra o seu centro absoluto e eterno, a sua divindade, mo-
Os erros e abusos, em qualquer campo, justamente por essa mento e reflexo da Divindade suprema, não importa quais e
lei de equilíbrio, é natural que se paguem. De qualquer natureza quantas formas transitórias ele possa assumir no tempo. Dizer
que sejam, exatamente porque são desequilíbrios, devem ree- que a forma está na periferia e o princípio animador no centro,
quilibrar-se. E reequilibram-se laboriosamente, saneando a pró- significa que a forma gira em torno da substância, a criação em
pria desarmonia com esforço. Aquela é dor, este é fadiga e dor. torno do criador, a matéria em torno do espírito, a manifestação
Esta a grande mestra da vida, que tudo sana e nos faz compre- em torno do ser, o efeito em torno da causa, o relativo em torno
ender. Essa é a medicina na ordem divina. Ela é amarga, mas é do absoluto, o móvel em torno do imóvel, o transitório em tor-
justa e cura. E nenhuma coisa é mais criadora do que uma dor no do eterno, a obediência em torno do comando da lei de
compreendida. Onde quer que lancemos o olhar, encontraremos Deus. É tão universal esse esquema do ser, que Deus mesmo o
o bem e o equilíbrio. Nestes exemplos, tomados ao acaso, te- representa e, nessa forma, se nos manifesta. Assim, Ele tem o
mos visto atuar sempre o esquema universal de forças antagô- seu termo oposto e complementar em Satanás, que o combate,
nicas e complementares, desde o problema máximo, que parece no entanto gira em torno de Deus e por Deus, único motor, é ar-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 49
rastado. Satanás é o mal, a negação, que não pode existir senão na vida. Daí, a sua necessidade e utilidade. Todos têm necessi-
em função do bem, a afirmação. Assim, o mal gira em torno do dade de receber alguma coisa, mas têm também algo a dar. Pro-
bem e o erro em torno da verdade. Eles se condicionam reci- curar é achar. A permuta corresponde aos princípios de equilí-
procamente. O mal é a condição da afirmação do bem, enquan- brio e harmonia que regem o universo. Trocas de todo gênero,
to este é a condição da negação e destruição do mal. O bem, a agrícolas, econômicas, intelectuais, orgânicas. O isolamento
verdade, está no centro, na substância, em Deus; o mal, o erro, egoísta mata. A permuta é genética. É através dela que a vida se
está na periferia, na forma, em Satanás. O dualismo, que traz recupera e reconstitui suas perdas. O princípio utilitário corres-
cisão e luta, está na base do universo. Ele é dor, mas é também ponde, nesse caso, a um princípio de fraternidade e de solidari-
possibilidade de movimento e de ascensão. Ele nos aparece edade. O método evangélico corresponde à grande lei do equi-
como uma fratura, mas o universo, com a evolução, que vai de líbrio universal e exprime uma insuprimível necessidade bioló-
Satanás a Deus, tende ao próprio saneamento. Veremos, assim, gica. Sinergismo cósmico, divino monismo do todo. Cada um
que Deus, dolorosamente, despedaçou-se para dar vida, em su- necessita do próximo, e quem não o ama dele se afasta. Para re-
premo ato de amor, a uma infinidade de seres que, por sua natu- ceber, é preciso dar, e ilimitadamente receberá quem ilimitada-
reza, não podem, como verdadeiros satélites, fazer mais do que mente tiver dado. De um modo ou de outro, todos se procuram
rodeá-lo, sempre atraídos e desejosos de se fundirem nele, de para se fundir. Quando se odeiam e se combatem, é porque eles
cair sobre seu próprio sol. O próprio Satanás, no extremo peri- se procuram sem ainda se conhecer. E não se conhecendo ain-
férico oposto, não pode existir senão em função de Deus. Tirai da, não sabem fundir-se, porque não acharam a sintonia, a nota
Deus de Satanás: e o que este negaria? Tirai o bem ao mal: e o comum da simbiose. Também os dois sexos lutam para conse-
que este destruiria? Satanás está atado a Deus pela sua própria guir a fusão. A vida é regida pelo amor, e o ódio não é senão
existência e não pode existir senão como executor da lei de amor malogrado. Na luta corpo a corpo, como no amor, termi-
Deus. É ela que confiou a Satanás a tarefa negativa da resistên- na-se igualmente abraçados num espasmo. A lei do ódio é a
cia, é ela que manda nele, o enquadra na sua ordem, o cons- mesma lei do amor, embora seja do lado negativo; a corrente é
trange para os seus fins. No fundo, Satanás é o servo de Deus, invertida, mas o princípio é uno. Tudo gira, no direito e no
como o mal é o servo do bem. Ainda que ao avesso, em forma avesso, em torno de um mesmo centro e, qualquer que seja a di-
de ódio e de revolta, Satanás é sempre um satélite ligado ao seu reção do seu giro, tende e quer, por lei divina, seja pelo cami-
sol, que é a sua razão de existir. nho do amor positivo, seja pelo negativo, unificar-se em Deus.
Um último esclarecimento antes de concluir. Se o sistema
de forças é equilibrado segundo o esquema mencionado, co- XIII. EVASÕES
mo pode ele permitir o transformismo da evolução? Na reali-
dade, os dois impulsos opostos nunca se compensam exata- Sigamos ainda por outros caminhos a ascensão da matéria
mente e o equilíbrio jamais é perfeito. Neste caso, ter-se-ia a ao espírito, que nos leva para Deus.
estagnação. O equilíbrio, ao contrário, é oscilante, de onde Que o nosso mundo de hoje se faça sempre mais infernal,
nasce o movimento. Entre os dois princípios, não há compen- é coisa que todos compreendem. Sabemo-lo pela nossa dura
sação perfeita mas sempre uma carência, que jamais se com- experiência. Se os poucos que se encontram bem repousam
pleta e, permanecendo insatisfeita, busca o seu termo com- satisfeitos, quem se acha incomodado se mexe na procura de
plementar, perseguindo-o sempre, sem nunca alcançá-lo. O uma posição melhor que o livre do seu sofrimento. Os incul-
que poderá parecer uma dor e uma condenação é, ao contrário, cadores de remédios pululam por aí, pela lei da procura e da
a base do movimento e da evolução. O que parece um mal é oferta, já que os remédios são um produto solicitado. Floresce
um bem, porque representa uma infinita possibilidade de sa- assim, nos tempos difíceis, a indústria do remédio, e isto tanto
neamento. A congênita insatisfação humana, essa dose de mais, pois os males são muitos, e, quanto mais estes aumen-
descontentamento que fica no fundo de cada prazer, está ali tam, tanto maior número de clientes e tanto mais a indústria é
para nos indicar que ele nunca é o último termo da satisfação, lucrativa. Sabe-se que os medicamentos não curam, o que não
que há outro mais adiante e que é preciso subir para uma feli- impede que as farmácias estejam apinhadas. Para qualquer
cidade sempre maior. Se houvesse a felicidade com que se so- parte que nos voltemos, um oceano de ais para todos. Os ven-
nha e a saciedade completa como se desejaria, então tudo pa- cedores e os ricos não escapam, porque, se os pobres sofrem,
raria. No momento em que os dois opostos se fundissem ple- eles tremem. E os remédios se reduzem a falatórios. O mal fi-
namente, as carências e lacunas estariam preenchidas e tudo ca, e fugir da dor parece impossível. Estaremos, pois, fecha-
cessaria: o movimento, a vida, a ascensão. Um pequeno dese- dos sem salvação em nossa prisão? E, como o pássaro na
quilíbrio é necessário no sistema, mas também este é dosado gaiola, o homem sempre mais se debate à procura da evasão.
para atingir os fins em razão dos quais existe. Se o sistema de Onde está a saída, a via de fuga? Os anunciadores de remé-
forças existe e se rege enquanto é equilíbrio (unidade estáti- dios indicam numerosos caminhos e dizem: Ele está aqui, ou
ca), ele também se move e pode transformar-se enquanto é, está lá. Mas a gaiola fica, e nós dentro dela a debater nossas
numa dada proporção, desequilíbrio (unidade dinâmica). Pro- asas contra as barras da dor, até à desesperação.
porção regulada pela unidade, dada por resíduo dosado em re- Evadir! Ânsia irrefreável de liberdade, sonho supremo de
lação aos impulsos do sistema. quem sofre, palavra de ordem de hoje, espasmo do homem fe-
Uma consequência, como conclusão. Em nosso mundo, tu- chado no inferno terrestre. Cada um, segundo a sua filosofia,
do é carecente, incompleto, mas ao mesmo tempo há tudo em que, de acordo com a sua natureza, exprime a si mesmo,
quanto basta para suprir a carência e completar o incompleto. tenta a sua forma de evasão. Tentemos nós também a nossa. Ela
Basta procurá-lo. A lacuna é feita para ser satisfeita em sua será muito diversa da outra, parecerá utopia, mas ao menos, por
grande parte, exceto por um resíduo de carência, sempre não alguns minutos, teremos, em vez do contínuo acusar e agredir,
preenchido, que forma aquele desequilíbrio e movimento ne- até em nome de Cristo, uma palavra de paz e de amor; ouvire-
cessário para evolver. Do completamento surgiria a felicidade, mos, em vez do caótico e infernal concerto humano, as harmo-
que é a resultante da harmonia. Esta, porém, uma vez que nun- nias da música divina; veremos aplacar o ódio em um amor su-
ca é completamente alcançada, está sempre em formação, sendo perior, dirigido a todas as criaturas. Para nós, trata-se de reali-
assim também para a felicidade. Se tudo existe e basta encon- dades cientificamente possíveis. Porém, mesmo para quem não
trá-lo, o caminho para suprir, senão todas, ao menos grande pode compreender e as considera utopias, não será também do-
parte de nossas carências está aberto. Este é a via das permutas ce evadir-se em sonho tão belo?
50 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
Há dois modos de fugir do próprio plano de vida e condi- como luciferina, isto é, portadora de luz satânica. E, de fato, ela
ções inerentes: ou descendo, ou ascendendo. O primeiro é ca- demonstrou uma ação pseudoconstrutiva, resolvendo-se, na rea-
minho fácil, mas traidor; oferece antes o doce e deixa depois o lidade, em destruição. Eis por que ela foi entendida como uma
amargo, parece presente, e não oferece senão uma antecipação, pseudoluz, com tendência a obscurecer e confundir, como está
que é preciso pagar depois. O mundo atual é néscio e prefere bem expresso no conto bíblico da torre de Babel.
esta via, que é o caminho do prazer. Quem é tolo, é justo que Quem, pois, vê Deus como manifestação periférica sustenta
sofra até que aprenda. Assim quer a Lei, para que ele se eleve. a imanência; quem o vê como causa central sustenta a trans-
No entanto há um outro caminho, mais difícil, que oferece an- cendência. Na realidade, causa e efeito estão uma na outra e ao
tes o amargo, mas, logo após, deixa o doce, um caminho em contrário. Ambos os juízes têm razão, no entanto, em nome da
que antes se paga e depois se obtém. Experimentemos esse se- mesma verdade, eles se acusam e se contrastam. É a relativida-
gundo caminho de evasão. Ele nos leva ao paraíso. Em vez de de de sua posição periférica involuída que lhes faz perceber a
romper nossas asas contra as paredes do inferno terrestre, diri- unidade como dúplice e separada. Ascendendo-se evolutiva-
jamo-las para o alto. Desta parte, a gaiola está aberta e a fuga é mente, vê-se mais profundo, de modo que a relatividade e a se-
possível. Fujamos por esta parte e observemos o que acontece paração, próprias do nosso plano de vida, pouco a pouco se es-
lá no alto, no paraíso dos mais evoluídos, que superaram as vaem. Então, transcendência e imanência se revelam como os
formas de vida humana terrestre. A porta está aberta e é inaces- dois polos do mesmo binômio; observa-se e compreende-se o
sível somente para quem não sabe subir. As suas barras invisí- universal princípio de dualidade, e a contradição desaparece. A
veis são dadas pelas forças de que se compõe aquele organismo ascensão leva a uma contínua pacificação de contrários, a uma
dinâmico que constitui a personalidade humana. Estamos limi- progressiva unificação dos fragmentos do nosso relativo. O to-
tados e fechados somente pelas forças de que somos constituí- do parece um, mas só no seu íntimo, se bem que dividido em
dos. Bastaria modificá-las, e todo um universo de maravilhas duas partes inversas e complementares, que se contrapõem só
apareceria. Saber mudarmos! E este é um problema absoluta- para formar uma unidade. Contraposição não para cindir-se
mente individual, em que somos independentes do ambiente como antes, mas para se equilibrar e, então, juntar-se. Eis um
humano. Independentes! Mas não somos independentes daquilo primeiro passo para a unificação.
que somos. Eis o problema. A gaiola não é a Terra ou a vida, Mas, à medida em que se ascende, isto é, vai-se para o cen-
somos nós, é a nossa natureza que estabelece a nossa forma de tro, Deus, vê-se ainda mais profundamente. O binômio Deus-
vida. Bastaria que soubéssemos mudar-nos e a evasão estaria universo não se mostra somente como um par unido em insepa-
pronta e garantida. Problema individual, de destino, que cada rável monismo, mas se torna um único sistema de forças, em
um fabrica por si com as próprias obras. Imaginemos, então, que a imanência gira em torno da transcendência e ambas são
fugir da Terra, embora isto pareça um sonho. Para nós é reali- parte integrante no esquema da mesma unidade, não importan-
dade vivida, por isto podemos explicá-la. Como se foge? Para do que tudo possa parecer imanência quando as coisas são ob-
onde? Para Deus, que é o centro da felicidade e do amor. Mas servadas do centro. Então, a criação não aparece mais no aspec-
onde está Deus? Deus está em toda parte, mas é tanto mais ma- to exclusivo de elemento complementar do Criador, mas sim
nifesto e perceptível quanto mais se ande para o centro. A eva- como o próprio Criador, visto em uma sua posição e de um
são da dor para a felicidade se realiza caminhando-se para o ponto de vista diverso, periférico em vez de central.
centro. E como se vai para o centro? Evoluindo. O centro está Tudo gira em torno do centro, Deus, para Ele gravita e é a
no íntimo das coisas, no íntimo de nós. A evolução se cumpre Sua manifestação, sem a qual Deus não possuiria no universo
transferindo da periferia para o centro a zona consciente e ativa forma ou corpo. Assim, também no homem, feito à imagem e
da nossa vida, caminhando da forma à substância, da matéria ao semelhança de Deus, a matéria é a veste do espírito e o corpo é
espírito, indo do extremo do todo que se chama imanência, ao transitório, sempre mutável, constituindo forma, expressão e
extremo que se chama transcendência. No precedente capítulo, manifestação periférica. No centro está a fonte da vida, de toda
―Equilíbrios‖, vimos como o criado gira em torno do Criador e energia e riqueza, fonte que, como a alma ou o sol, irradia e, as-
como esse sistema, de esquema rotativo, seja o esquema geral sim, tudo nutre e sustém, pulverizando-se e dispersando-se na
do universo, do átomo aos sistemas solares, da célula aos sexos periferia. O corpo é de fato um metabolismo, um tornar-se con-
e aos fenômenos de psicologia coletiva. Deus está no centro. tínuo, enquanto nós sentimos que o eu permanece constante no
Tudo gira em torno d'Ele, seja como matéria, como energia ou meio dessa constante transformação de sua veste. O eu é central
como espírito, e conforme se é mais ou menos evoluído, estan- no sistema, o corpo é periférico, e cada um dos dois tem em si as
do mais ou menos perto d'Ele, também se é mais ou menos vi- características da sua posição, como no universo. As diversas
vo, consciente, feliz. A fragmentação no relativo, o egoísmo, o formas com que nos revestimos giram em torno do nosso espíri-
transitório, o ódio, a dor, estão na periferia e diminuem à medi- to. Este é, no pequeno sistema da personalidade humana, o que
da que nos acercamos do centro. Indo nesta direção, faz-se Deus é no universo, isto é, o centro, a substância, o motor. Isto
sempre mais manifesta a unidade, a fraternidade, a incorruptibi- corresponde ao princípio monístico do esquema do universo, de
lidade, o amor, a felicidade. tipo único, coincide com a conhecida afirmação de que o ho-
Tornemos mais preciso. Transcendência e imanência são mem é feito à imagem de Deus, confirma a ideia de que Deus se
percebidos pelo homem atual como contraposições. Assim, de- reflete em todas as coisas, de modo que, em todas as coisas, nós
las se faz duas teses inimigas. Em geral, quando os homens lu- o reencontramos. E no homem, à semelhança de Deus no uni-
tam em torno de um conceito, é porque se colocam em posições verso, o eu também está no centro e em todo ponto do seu sis-
diferentes, cada um num extremo diverso da mesma unidade, tema, em todo lugar do seu ser, até às últimas propagações da
de modo que não percebem senão a própria posição. Isto acon- sua forma periférica. O eu, trate-se de Deus ou do homem, está,
tece porque estão na periferia, e, quanto mais periférica for a segundo o mesmo esquema, presente e ativo em todo momento
posição, tanto mais o todo lhes aparece separado, porque tanto da sua manifestação, que, como sua emanação, é toda ele pró-
mais eles estão imersos no relativo. É assim que a intuição, que prio. Centro e periferia, assim, são ligados e entremeados um no
leva para a síntese, está mais perto do centro-Deus do que a ra- outro, tanto que o primeiro está todo no outro e ao contrário.
zão analítica. A nossa ciência da matéria é periférica, divergen- Neste sentido, pôde-se dizer alhures (A Grande Síntese) que
te por sua natureza, e tende, como hoje acontece, a especializar- ―Deus é a criação‖, que ―tudo deve reentrar na divindade‖, que
se, isto é, a fragmentar-se e dispersar-se sempre mais no relati- ―Deus é também o universo físico‖. Assim como Deus fica imu-
vo. Por essa razão ela foi considerada pelos homens do espírito tável no centro do Seu universo, que muda sempre de forma, o
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 51
eu humano também fica constante no centro do seu ser físico, trífugos, os seus planetas, os torna a atrair por impulso centrípeto.
que muda e se renova através de suas formas diversas. Este é o Deus é o sol que, no centro do universo, atrai todo o universo e,
esquema do sistema central periférico único de nosso universo, assim, o rege. E o universo, como os planetas, tende a recair so-
que encontramos repetido em todas as alturas e grandezas. bre Ele, continuamente restringindo, em obediência à força de
A evolução torna-se possível em razão da estrutura do siste- atração, as suas órbitas de rotação. Um mesmo princípio rege tu-
ma, pela qual a um contínuo girar ou metabolismo periférico cor- do. Eis a evolução. Assim o ser vai do corpo ao eu, do exterior,
responde um paralelo poder central. Do fato que o eu humano onde reina Satanás, ao interior, onde reina Deus; da forma-
pode continuamente trocar de veste, utilizando novos corpos, matéria ao espírito-Deus. Por essa razão foi dito que o Reino de
nasce a possibilidade da elaboração através das suas experiên- Deus está dentro de nós, o que pode ser definido como um des-
cias. O incessante martelar das experiências da vida, através dos pertar, porque nada se cria e nada se destrói. Fundamentalmente,
contínuos choques e dores, essa investida sem tréguas sobre nos- a evolução não é senão um despertar do que em nós é latente, da-
sa casca corpórea, têm o poder de despertar a divina centelha que quele divino que está em nós, mas dormindo no fundo do obscu-
jaz adormecida em nós. Acontece, assim, que nosso ponto cons- ro cárcere do corpo fechado nos sentidos. Tudo deve desabro-
ciente e ativo na vida se transfere sempre mais da periferia para o char, abrir-se, florir na vida, também essa centelha que está em
centro, progredindo para o íntimo, no profundo do ser, distanci- todos os seres e coisas e que anima todo o universo.
ando-se assim, pouco a pouco, do relativo periférico da manifes- O homem atual deve somente à sua natureza involuída a sua
tação ou forma, e subindo para Deus, em direção ao centro, que ligação às tormentosas condições do seu mundo. Ele está preso
está na profundidade. Eis em que consiste o processo evolutivo. no fundo de um cárcere obscuro e não suspeita das infinitas pos-
Pode-se descrevê-lo como um subir para o alto, enquanto se as- sibilidades da vida, do extraordinário reino que ele compõe como
cende para a perfeição e a potência, ou como um descer em pro- cidadão do infinito, do maravilhoso organismo de forças que ele
fundidade, enquanto a vida se distancia da forma para o seu ínti- faz parte, do concerto de perfeições que é o universo em que vi-
mo, ou como um progressivo acordar do latente que está em nós, ve. E cego, faltam-lhe os sentidos para ver tudo isto; a sua miopia
ou ainda como um movimento da vida da matéria para o espírito, e a sua relatividade o fazem extraviar-se no labirinto das análises,
isto é, um desmaterializar-se, um evaporar da sua forma. Mas e, quando tudo isto lhe é relatado e explicado, ele não compreen-
compreende-se que esses não são mais do que alguns modos de de e torna a olhar as pequenas e tristes coisas vizinhas, das quais
ver e descrever o mesmo fenômeno sob diversos aspectos. faz todo o seu mundo. Incapaz de se evadir, dobra a cerviz sob o
Está justamente neste evaporar da forma a chave da nossa peso da sua vida atormentada ou se rebela e maldiz, lançando
evasão, para nos libertarmos da dor, da ignorância e do erro, filho nova lenha nas chamas do seu inferno de ódios. Ah! Se imagi-
dela. Este é o segredo para nos distanciarmos deste imenso ocea- nasse a riqueza, o poder e a felicidade que alcança quem, conse-
no de ais que é justamente a característica das zonas periféricas, guindo despertar no profundo, descobre e encontra a sua natureza
em que nós, humanos, vivemos. Como se vê, trata-se de proble- divina! Que apocalíptico espetáculo ver os muros desabarem em
mas vitais também para os que, em tudo isto, não veem senão torno do cárcere, que arrebatadora sensação de expansão no infi-
utopia. Problemas que aqui são apresentados e resolvidos com nito; que grandioso triunfo evadir-se da Terra, livrar-se da dor e
plena lógica e em harmonia com o funcionamento orgânico do da morte, conquistar a consciência da própria eternidade! As tão
universo. As soluções isoladas do todo não são jamais verdadei- alardeadas liberdades terrenas são apenas falatórios e ilusões.
ras soluções. Precisemos ainda mais. Nós, humanos, como criatu- Eis como aparece a visão do paraíso. Continuemos a obser-
ras, giramos, segundo o mencionado esquema dinâmico, em tor- var. Ainda que o corpo fique no inferno terrestre, o espírito pode
no do Criador, portanto não estamos fechados em um dado raio evadir-se. Sente-se, então, arrebatado em êxtase, na contempla-
de rotação, mas sim evoluindo, isto é, potenciando o nosso eu em ção das maravilhas da ordem divina. O infernal estridor de den-
proporção à desmaterialização de nossa veste corpórea, enrique- tes, o caótico lutar e odiar-se, os choques de todos contra todos e
cendo a nossa personalidade de conhecimento e sabedoria, quali- a imensa dor que disto resulta, tudo permanece lá embaixo, lon-
dade e sensibilidade, através de nossas experiências no corpo. ge, na Terra, assim como o fragor e o cheiro nauseabundo das
Podemos assim, transformando-nos em bem, passar a girar cada grandes cidades ficam longe do cimo do monte. Quanta pureza lá
vez mais próximo do centro divino, fato que implica na abertura em cima, que harmonia, que concerto de vibrações, que música
de infinitas novas possibilidades. É com essa transformação evo- de divinos equilíbrios, que compreensão e quanto amor entre os
lutiva que poderemos deixar embaixo, nos planos inferiores de seres! Então, enquanto o corpo ainda sofre na Terra, o espírito,
vida, sempre mais infernais quanto mais se desce, toda a desor- quase se destacando, regozija-se num mundo mais elevado. Mirí-
dem, o mal e a dor que os caracterizam. Pois que há infernos ain- ades de criaturas, de corpos sutis e resplandecentes, organismos
da piores do que o terrestre, lugar de pena onde só seres inferio- espirituais formados por um dinamismo de infinitas vibrações,
res podem encontrar uma felicidade a eles proporcionada. ignorados por nós, que, através de uma sensibilidade ilimitada,
Evoluindo, podemos emigrar para corpos sempre mais livres transbordando além das estreitas portas dos sentidos terrestres,
dos pesos e dores próprios da matéria, corpos menos transitórios recebem e refletem, absorvem e emanam, como centros radian-
e imperfeitos, em formas de consciência menos encarceradas no tes, toda emanação que lhes chega de Deus. Todas as criaturas se
relativo, menos segregadas do todo pelo egoísmo, em formas de harmonizam por ressonância e sintonia em um concerto grandio-
vidas menos esmagadas pelo ódio e menos sufocadas pelas trevas so, onde tudo é vida e movimento e todo movimento se coordena
da ignorância. Girar sempre mais perto de Deus significa sensibi- e harmoniza na luz de Deus, em gáudio intensíssimo. Na imensa
lizar-se e potenciar-se, enriquecer-se e satisfazer-se; significa sinfonia, esses seres se dispõem em círculos concêntricos em tor-
tornar-se sempre mais vidente, vibrante, dinâmico, resistente, no de Deus, mais ou menos vizinhos e resplendentes conforme a
luminoso e feliz. Por esse caminho, a evolução nos leva sempre sua maior ou menor perfeição e a sua capacidade de absorver e
mais para perto de Deus. O ser passa gradativamente de um pla- reemitir a luz divina. E esses círculos giram vertiginosamente em
no a outro de vida. Os vários níveis biológicos que conhecemos, uma ordem imutável, vibrando e brilhando em infinitas radiações
que vão do mineral ao gênio, não são senão círculos concêntricos no divino oceano vibrante. As suas trajetórias são doces harmo-
de rotação em torno de Deus, formando degraus que o ser, evolu- nias, a sua vibração é amor. Essas criaturas se inflamam na ânsia
indo pouco a pouco, ascende. Não se trata de movimentos no es- de evoluir, de estreitar as órbitas e avizinhar-se sempre mais de
paço, mas de íntima transformação do ser, de movimento interno Deus, ansiosas de precipitar-se e fundir-se naquele Centro. E
do todo, pelo qual se opera a progressiva reabsorção em Deus de Deus, do centro, atrai e irradia, chama e estreita a Si com as suas
sua manifestação. O sol que lançou à sua volta, por impulsos cen- radiações de amor as suas criaturas, e as criaturas respondem. O
52 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
colóquio é um amplexo que se faz sempre mais apertado, e o XIV. INFERNO E PARAISO
canto é uma música sempre mais potente e perfeita.
Todo ser conhece a Lei e não pensa senão em segui-la. Tudo Parece este um argumento para sermões quaresmais Mas
é harmônico. Nenhuma rebelião ou violação. Eis a grande bele- pode ser, ao contrário, um argumento científico, se por ciência
za. Todo ser sabe o seu caminho na Lei, porque tem consciência entendermos um conhecimento mais vasto e profundo que o
de tudo, de sua posição no todo, do que é e deverá ser. A viola- aceito pela ciência moderna. Se a concepção dantesca arrastou
ção, o erro, a culpa estão longe. E, sabendo o seu caminho, todo por séculos tantas gerações, enchendo-as de admiração, se, em
ser sabe mover-se ordenadamente, conforme a Lei, em harmonia correspondência com aquela concepção, existe no mundo um
com os outros, unificando-se a eles em fraternal ajuda e amor. consenso expresso de vários modos nas diversas religiões, se
Tudo isto, aqui, é natural, lógico, espontâneo. Os caóticos ímpe- essas coisas que parecem sonhos tiveram a força de convencer
tos da vida, aqui, estão finalmente coordenados. A vida se torna tantos povos por tantos séculos, isto significa que elas devem
sempre mais infernal quanto mais o ser é impelido pela sua im- representar alguma coisa de biologicamente verdadeiro e real,
perfeição à periferia, pois que, quanto mais nos destacamos de ainda que não visível e não provado com os métodos da ciência
Deus, tanto mais aumentam a desordem, o embate e a dor. A Lei atual. Não se trata evidentemente da biologia atual, que é limi-
e as suas forças estão em qualquer parte, e, em qualquer parte, tada apenas às espécies que viveram ou vivem no planeta, mas
Deus está presente. Mas é a coordenação dos seres, a reordena- sim de uma mais ampla biologia, não só subanimal e super-
ção na harmonia divina, que forma o paraíso, onde eles se tor- humana mas também espiritual e transcendental, ainda desco-
nam um canto divino, uma música universal que tudo satura de nhecida pela ciência. A existência de mundos, seres e condições
alegria sobre-humana. Por isto o paraíso é descrito com expres- de vida inferiores ou superiores ao nosso ambiente conhecido, é
sões musicais. Trata-se, efetivamente, de uma progressiva har- coisa instintivamente sentida por todos os povos e em todos os
monização no dinamismo universal, de uma musicalidade que se tempos. A universalidade dessa intuição não pode deixar de ter
faz sempre mais completa, profunda e perfeita à medida que nos um significado. Quem são esses outros cidadãos do universo,
avizinhamos do centro. As nossas criações artísticas e musicais de cuja presença, quem sabe onde e como, nós, vagamente, te-
não são senão as primeiras aproximações dessa harmonização. mos a intuição? Quais são as suas formas de vida?
Tão pobre coisa são, mas já nos arrebatam para o alto, dando- A hipótese astronômica da pluralidade dos mundos habita-
nos apenas uma ideia da divina contemplação dos anjos! dos, se é extremamente lógica e provável, não é suficiente pa-
Quanto mais a alma é evoluída, tanto mais compreende e go- ra exaurir a questão, porque uma biologia completa deve
za dessas harmonias, perto das quais o involuído passa sem compreender não somente as formas materialmente organiza-
compreender e sem alegrar-se. Assim, a produção musical de das no plano físico, mas também aquelas imaterialmente or-
um século é o primeiro índice do seu grau de evolução, e ne- ganizadas no plano dinâmico e psíquico-espiritual. No sistema
nhuma coisa como a selvagem música moderna exprime tão do universo, é lógico que a vida continue do lado de cima e do
bem a tremenda descida involutiva do nosso tempo. O pensa- lado de baixo do plano que conhecemos e em que vivemos. O
mento dominante em cada período histórico lhe dá a cor em to- mesmo princípio da evolução nos indica que devem existir no
das suas manifestações, social, artística, filosófica, moral e tam- universo seres mais involuídos e outros mais evoluídos do que
bém material. Enquanto no inferno terrestre, ódio, suspeita, in- nós. E que esse princípio seja universal, não há dúvida. Nós o
certeza e dor são a atmosfera natural, lá em cima, naqueles ele- reencontramos em qualquer parte em nosso mundo fenomêni-
vados planos de vida, amor, confiança e segurança representam co e, uma vez que, como já verificamos, tudo é analógico e
a dominante vibração do ambiente. Lá, os seres não se chocam, funciona monisticamente, por esquemas únicos e simples, re-
não se ferem reciprocamente como demônios, causando um a petidos em inumeráveis alturas e combinações, devemos con-
dor do outro. Todo ser, pois, que é consciente do funcionamento cluir pela universalidade do princípio de evolução, que deve
do todo, espontaneamente se põe, conforme sua natureza, na sua atuar, portanto, mesmo onde não podemos experimentalmente
justa posição, que naturalmente, sem luta, é a melhor e de maior obter uma comprovação. O conceito de marcha ascensional
rendimento em bem e felicidade para ele e para os outros. A cri- indica que devem existir não só formas de vida e indivíduos
atura vê os olhos de Deus, que a olha; sente a presença d'Ele, que estão mais adiante de nós no caminho evolutivo, isto é,
que tudo guia; conhece a vontade d'Ele, que tudo move; sabe mais no alto, mas também formas de vida e indivíduos que es-
que esta é perfeita e que a sua alegria está em querer aquilo que tão atrás de nós, mais embaixo. A evolução, sinônimo de pro-
Deus quer. Não há mais a distância que desarranja a ordem no gresso, exceto para os desorientados, presas do pessimismo, é
caos, ofuscando e tornando opaca essa compreensão e comu- um fato evidente. Em toda raça, seja vegetal, animal ou hu-
nhão de vontades entre a criatura e o Criador. A ignorância, a mana, verificamos existirem indivíduos de tipo biológico mais
inconsciência, o erro e a culpa, aqueles diafragmas que cindem a avançado e outros de tipo mais atrasado. Mas, aqui, trata-se de
unidade e são a causa de todo o nosso mal, caíram. descobrir com o método da intuição, já que o objeto foge à
Eis, apenas assinalado, um clarão do paraíso. Há ainda observação sensória experimental, quais são essas formas de
mais, muitíssimo mais. Porém a palavra humana não o sabe vida sub e super-humana. Não é possível observar a estrutura
exprimir. O resto permanece fechado em si, como um tesouro, de organismos cuja constituição celular e permuta se baseiam
e não deve ser dito ao mundo de hoje. Esta, em breve, é a vi- em uma química atômica dada por outras relações, diferentes
são. Depois de surgir em todo seu esplendor, ela se extingue, e das nossas, nem é possível definir a anatomia desses organis-
a alma, arrebatada, precipita-se para baixo no corpo, na Terra, mos de forças, receptores e radiantes, que chamamos espíri-
neste mundo opaco tão distante do centro, onde a luz de Deus tos, organismos vibrantes, cujo funcionamento vital e permu-
apenas ilumina as trevas profundas. Precipita-se para baixo, tas se dão em um plano com prevalência dinâmica, sujeitos a
mas lembra, todavia, que é possível evadir-se e que a Terra, uma física diversa da nossa. Teremos aqui de nos contentar
que temos observado, é o caminho para fugir do inferno terres- com algumas observações gerais de orientação.
tre. Precipita-se para baixo na Terra, onde, até em nome de O homem sempre chamou de paraíso àquele estado biológi-
Deus, os homens estão divididos pelo ódio e se combatem; on- co em que existem os seres mais elevados e de inferno àquele
de, também em nome da Sua mesma justiça, eles roubam e se menos elevado. Em termos modernos, poder-se-ia dizer: paraí-
matam; na Terra, onde tudo está prostituído pela matéria, onde so é o mundo dos evoluídos, e inferno é o mundo dos involuí-
arde o inferno desejado pelo homem, onde tudo é falseado e o dos. Certamente, a escala é infinita, e as posições não são abso-
próprio santo nome de Deus torna-se mentira. lutas, mas sim relativas a cada um, de modo que o paraíso é
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 53
aquele ambiente de vida mais ampla e feliz que está biologica- versal, devemos admitir que as suas leis dizem respeito somen-
mente mais no alto, e inferno é aquele mundo mais áspero e te e particularmente ao nosso ambiente terrestre. É neste senti-
atormentado que está relativamente mais embaixo. Qualquer do que devemos entender a lei que aqui vigora, da luta pela se-
coisa de semelhante vemos, em escala mais reduzida, na Terra, leção do mais forte, no entanto não devemos dar a este princí-
com o enobrecimento dos costumes logo que se pode elevar o pio um valor universal, mas somente relativo ao ambiente hu-
teor da vida por força de condições econômicas melhores. As- mano, que ainda é de prevalência animal. Se, aqui, esta lei pode
sim também se passa na domesticação dos animais e no cultivo ter função evolutiva, e isto em proporção ao baixo grau do ser
das plantas, onde verificamos a perda daqueles caracteres de fe- ao qual ela se aplica, em planos superiores, tudo isto pode pare-
rocidade e instrumentos de agressão que prevalecem no estado cer, ao contrário, uma atividade destrutiva e infernal, ilógica e
selvagem. Mas, também aqui, tudo é relativo e se reduz a uma bestial, tendente ao retrocesso, e não ao progresso. Assim tam-
questão de relação entre a posição no ambiente e o próprio grau bém para todas as expressões da nossa vida, como as formas de
evolutivo, com referência ao sentido entre ponto de partida e de amor, de reprodução, de nutrição e toda atividade regida não
chegada ao longo da escala evolutiva. pelo conhecimento, mas pelos instintos.
A nossa ciência ignora o que há, biologicamente, acima e Mas é possível verificar uma diferença de desenvolvimen-
abaixo do nosso plano de vida. Este ideia de diferentes planos de to evolutivo em nosso próprio mundo humano. Se bem que o
vida é uma consequência direta do conceito de evolução. Admi- grosso das massas sociais seja formado por indivíduos da
tindo-se este, deve-se admitir também aquele. Ora, é evidente mesma conformação psíquica, mais ou menos com os mesmos
que, para a solução desses problemas transcendentais, o conhe- instintos e necessidades, tanto que resultam praticamente qua-
cimento oferecido pela nossa ciência, baseado em um único pla- se iguais no conjunto, como as ovelhas, e construídos em série
no de vida, não pode ser suficiente. Nem pode sê-lo, se quiser- como as bicicletas, todavia, acima e abaixo dessa zona média
mos satisfazer à racional forma mental moderna, o conhecimen- e medíocre, em que a vida, pouco a pouco, estabelece os seus
to empírico da filosofia, ou o instintivo e intuitivo das religiões. equilíbrios, emerge ou aprofunda um número de casos fora de
Dado que as revelações das religiões não são precisas, nada mais série, que se faz sempre mais exíguo quanto mais subimos pa-
resta para a exploração científica do transcendental senão a in- ra o alto ou descemos para baixo. Se bem que a maioria venha
vestigação por intuição, que, em alguns sujeitos tornados sensí- a funcionar por imitação e a marchar em bando (bem o sabem
veis por evolução e ao mesmo tempo racionalmente disciplina- os governantes), em suas margens há um número restrito de
dos, pode adquirir valor de método científico. Somente assim o evoluídos e involuídos, afastados da média, incapazes, uns e
transcendental pode ser submetido à observação, tornando-se outros, de se enquadrarem nela, seja por excesso, seja por de-
possível entrar e penetrar no mundo do espírito com métodos feito. Embaixo da média há o bruto, o delinquente; mais no al-
objetivos. O homem de amanhã compreenderá certamente estas to há o gênio e o santo. O primeiro tipo representa formas de
afirmações, mas dificilmente as entenderá o homem médio de vida inferiores, às quais ainda pertence, e encontra na Terra
hoje, que não encontra em si nada que as consolide, pois ainda um ambiente a ele superior, paraíso para ele, lugar de alegria.
não alcançou por evolução o grau de sensibilidade necessário. O segundo representa formas superiores de vida, das quais
Neste sentido, falar de inferno e paraíso não significa falar desceu à Terra, um inferno para ele, lugar de dor. O primeiro
de coisas longínquas que não nos dizem respeito, ou de argu- se encontra bem e se lança a gozar, mas representa um peso a
mentos de fé em que não se pode crer. Trata-se do nosso futu- ser arrastado pelos demais, uma resistência sobre o caminho
ro biológico, individual e coletivo, que não é quimera; trata-se da evolução. Os outros devem tomar a seu cargo a fadiga da
da escolha do caminho da ascensão ou da descida, que condu- sua educação e as repercussões dos seus erros. O segundo, ao
zem à alegria ou à nossa dor. Trata-se de preparar o amanhã contrário, encontra-se mal e é constrangido a sofrer, mas re-
que nos aguarda e de compreender como prepará-lo no bem, e presenta um motor que arrasta os demais, um impulso no ca-
não no mal, para a nossa utilidade, e não para o nosso dano. E, minho da evolução. Ele toma a seu cargo a fadiga da educação
para compreender, é preciso resolver também este particular dos outros e as repercussões dos seus erros. A vida, que sente
problema no seio da fenomenologia universal, em relação e tudo isso, exprime-se através do sentimento popular, tornando
em função da qual eles se desenvolvem. É necessário nos o involuído detestável, odioso e arredio, e o evoluído, admira-
darmos conta de que as leis sobre as quais baseamos a nossa do, amado e procurado. A veneração das massas pelos santos
vida são relativas ao nosso ambiente terrestre, devem, pois, não é resultado imposto por alguma autoridade, mas sim ex-
ser tidas como válidas somente nele e em relação a ele, por- pressão de leis biológicas, que falam através do instinto e fa-
tanto não são necessariamente verdadeiras em outros ambien- lam alto, porque nenhuma autoridade poderia criar tão univer-
tes, onde podem vigorar outras. Logicamente, sendo tudo co- sais consensos; falam claro, porque elas bem sabem o quão
nexo e os planos de vida contíguos, devem existir também necessário é este tipo biológico aos fins da evolução, para on-
afinidades e analogias que sirvam de pontos de passagens que de converge todo o dinamismo da vida. Bem sabendo a que
possam permitir o transformismo da evolução e a comunica- suprema função esse tipo corresponde, ela o fustiga na in-
ção de um plano a outro, seja em ascensão, seja em decida, compreensão e na dor, assim o robustece e o experimenta; e
característica que também verificamos, em ponto menor, no se ele vence, o exalta depois, sem restrições.
plano biológico terrestre, isto é, uma passagem das formas in- Que triste sorte aguarda na Terra esses pobres caídos de
feriores às superiores e ao contrário. Os seres nunca estão fe- mundos superiores ao nosso, mas que grande função biológica
chados em um único plano de vida, em um dado nível evolu- eles representam, que missão desempenham! Eles são verda-
tivo, pois, para que ocorra a grande marcha evolutiva do uni- deiramente o sal da vida. Como seres pertencentes a formas
verso, é necessário que eles possam deslocar-se para cima ou de vida mais avançadas, representam um organismo prevalen-
para baixo, a fim de sempre possibilitar a emigração para no- temente espiritual com funções físicas secundárias, que ser-
vas pátrias, gradualmente, em correspondência com as experi- vem o espírito, enquanto os assim ditos seus semelhantes re-
ências adquiridas, os valores conquistados e o peso específico presentam um organismo prevalentemente físico com funções
atingido pela destilação espiritual, conforme a responsabilida- espirituais secundárias, que servem o corpo. No tipo normal
de, a consciência, o mérito e a perfeição amadurecida, para domina o corpo, no evoluído domina o espírito. Enquanto os
colher, segundo a justiça, o fruto do que tenham semeado. demais tendem a ficar indolentes nas funções animais da car-
Estabelecida a relatividade da nossa biologia, mesmo admi- ne, aquele se inflama e se entrega. Se as forças da vida não o
tindo que, por analogia, ela esteja conexa com a biologia uni- protegessem, ele, explorado por todos, empobreceria até à
54 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
morte ou ficaria queimado no seu incêndio. Somente Deus bons, semeadores do bem. Assim, a escala da evolução conti-
protege o evoluído, não os homens. A notória pobreza dos gê- nua no alto e em baixo, acentuando sempre mais, nessas duas
nios nos prova que, na Terra, os serviços materiais são muito direções opostas, os respectivos caracteres, até e além dos limi-
mais prezados e compensados do que os serviços espirituais. tes do imaginável. Certo é que uma biologia, para ser completa,
Está provado que o tipo dominante não é o evoluído, mas sim deveria se estender do demônio ao anjo, mas isto não se pode
o semievoluído ou involuído. O super-homem é um anjo que pretender de nossa ciência atual, dados os seus meios de inves-
desceu à Terra para trabalhar, lutar e sofrer. Os demais se fa- tigação e orientação. Ela não conhece senão a biologia animal
zem arrastar pelos seus esforços, exploram-lhes as obras, es- do involuído terrestre e do semievoluído. Poderia, contudo,
premem o seu sangue e dele se nutrem. Mas, para a vida, a começar a ocupar-se da biologia do evoluído, que por vezes,
exploração é também absorção, e ambas se fazem mais inten- sob a forma de gênio ou de santo, aparece entre os homens.
sas depois da sua morte, quando ele não é mais um rival hu- Compreender cientificamente o super-homem, em vez de rele-
mano e, já morto, não pode mais defender-se. Então, a vida gá-lo aos anormais e enquadrá-lo no patológico, somente por-
bebe avidamente o sangue dos seus mártires e a dor dos seus que está fora de série, significaria começar a penetrar naquela
gênios. Os homens se apoderam dele com a glorificação, nu- biologia transcendental, que é a biologia do futuro.
trem-se com a narração daqueles tormentos que eles causa- Na Terra, por necessidade de recíproca elaboração, vivem
ram, gozam o patético romance daqueles dramas e, não sacia- materialmente vizinhos, mas espiritualmente distantes, seres
dos ainda, têm até a desfaçatez de chorar sobre suas desventu- relativamente involuídos e evoluídos. Com o homem, a evolu-
ras, de que jamais se ocuparam em vida, e de lhes elevar mo- ção entra em um plano de diferenciação espiritual, que não é
numentos para sustentar a bandeira das próprias ambições. mais organicamente expressa por formas físicas e, por isto, não
Eis que, também na Terra, anjos e demônios, paraíso e in- se manifesta materialmente visível. Como tal, ela foge à avali-
ferno, estão frente a frente. Esses exemplares, próximos de nós ação sensória, mesmo havendo fortes diferenças naquele novo
o suficiente para que ainda lhes seja possível viver e trabalhar organismo espiritual dinâmico-radiante, acima referido, que,
na Terra, nos indicam a existência e as características dos pla- no homem médio, começa a sua construção com a formação da
nos evolutivos mais distantes de nós, que não nos podem ofere- psique. Portanto, em nosso próprio plano humano, começa a
cer representantes suscetíveis à nossa observação na Terra, pois existir essa biologia transcendental, embora ainda escondida
esta não lhes proporciona condições de ambiente adequadas. O no íntimo do ser, em estado de maturação subterrânea, mas
involuído representa a primeira propagação para baixo do nosso nem por isto menos pronta a explodir tão logo haja amadureci-
plano; o evoluído, a primeira para o alto. Mas ambos os lados do. O que notamos em nosso mundo não corresponde a essa
se prolongam e representam, respectivamente, o nosso passado realidade espiritual mais profunda. A estrutura orgânica ou a
e futuro biológico. Inferno e paraíso constituem a nossa própria posição social nada nos diz dela. A riqueza, o verniz da educa-
história. Baseando-nos na observação das formas somáticas e ção e da cultura, a máscara civil ou forma de mentira sob a
psíquicas dos tipos evolutivos, em excesso ou defeito, que en- qual o indivíduo se esconde para a luta pela vida, não pesam
contramos na Terra, e acentuando os seus caracteres, podemos na balança. Debaixo de todas essas aparências que os homens
chegar a uma aproximada representação das notas dominantes amam, dadas a entender como verdadeiras, há uma realidade
nos tipos biológicos verdadeiramente inferiores e superiores, natural interior, definida pelo grau de evolução que o indivíduo
das criaturas demoníacas dos ambientes denominados inferno e alcançou ao longo da escala biológica.
das criaturas angélicas dos ambientes chamados paraíso. Ora, aquilo que revela o homem e permite conhecê-lo não é
De um lado o bruto, todo potência física. Rico dos atributos o que ele diz, mas o que ele faz. É observando a sua verdadeira
animais e das características somáticas e psíquicas da besta, ele conduta que poderemos olhar atrás das cenas da comédia que
nos aparece como o demônio maciço na estrutura material, for- ele representa na vida e ver a realidade. Não interessa, pois, es-
nido de pelos, de artelhos, cauda, chifres, caninos desenvolvi- cutar quais são as ideias professadas, mas observar o método
dos na queixada devoradora e todos os meios de agressão. A com que elas são praticadas. Então veremos que, independen-
tudo isto, psiquicamente, correspondem os instintos mais san- temente de todos os programas, teorias e profissões de fé, a no-
guinários, egoístas e ferozes, paralelos a uma proporcional ob- ta característica que revela o involuído é o espírito de agressão
tusidade mental, definindo uma alma ainda fechada para os e de mentira, enquanto o evoluído revela-se pelo espírito de al-
grandes problemas do conhecimento e surda para as vibrações truísmo e de sinceridade. Nos fatos, eles estão nos antípodas.
do infinito. Do outro lado, o tipo biológico do super-homem se Também o primeiro sustenta os mais altos princípios de justiça
apresenta com caracteres somáticos e psíquicos opostos. De e de bondade, mas ele começa sempre pelos seus próprios direi-
uma potência toda espiritual, rico dos atributos imateriais e psí- tos e pelos deveres dos outros; não pensa, absolutamente, que
quicos do anjo, ele nos aparece como um organismo dinâmico se possa corrigir o vizinho antes de tudo com o próprio exem-
sensibilizado e radiante, receptor e transmissor, vibrante no plo e sacrifício, e é levado, por isto, a aplicar o bem movendo
oceano infinito das radiações da vida mais elevada do universo. guerra ao próximo, pelas vias da luta até ao ódio, e não pelo
A tudo isto, psiquicamente, correspondem os sentimentos mais caminho do exemplo, do sacrifício e do amor. Quando encon-
harmônicos, altruístas e refinados, paralelos a uma proporcio- tramos esses métodos debaixo de qualquer credo, seja ele qual
nada luminosidade de intelecto, inerentes a uma alma que se for, podemos seguramente dizer que se trata de involuídos, tan-
abriu aos grandes problemas do conhecimento e despertou para to para os indivíduos quanto para as nações. Saltar ao pescoço
as vibrações do infinito. Os caracteres são naturalmente opos- do vizinho para despedaçá-lo, crer somente nos exércitos e na
tos, justamente porque correspondem a posições opostas ao bomba atômica, este é hoje o real modo de agir no mundo, esta
longo da direção em que a vida se move. é a hodierna psicologia dominante, que revela quão involuída é
A arte, as religiões, a fé, o instinto humano já intuíram a re- a nossa humanidade. As teorias são palavras e não entram em
alidade dessas formas, inacessíveis à observação direta de nossa ação. Nos fatos, os imperialismos são todos iguais, todos usam
ciência, e no-las descrevem assim. Nessas descrições, de um o mesmo método, estão no mesmo nível biológico. Involuído
lado, ecoa o terror deixado impresso em nosso subconsciente quer dizer inferior, infernal.
pelo contato espantoso com seres ferozes, inferiores, semeado- Ora, o problema atual do mundo não é de continuar o mile-
res de dores; de outro, vibra em nosso superconsciente o pres- nário jogo de vencer e perder, de invadir e servilizar, de mandar
sentimento de avizinhar-se de formas de vida superiores e da e obedecer, mas sim de evoluir do atual plano do involuído para
presença invisível mas real, junto de nós, de seres elevados e o nível do evoluído, que vive com métodos diversos. Hoje, es-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 55
tamos no reino da besta. É bem natural que o mal e a dor for- acentua sempre mais a dispersão pela fragmentação no particu-
mem a atmosfera desse reino. Em face do que o homem é, não lar. Sempre mais debilmente sustentadas pelo poder central, as
pode ser de outro modo. Essa é a expressão do seu real grau células do organismo não funcionam mais juntas, organicamente
evolutivo. Quando se concebe a autoridade não como função e e coordenadas em harmonia, mas começam a lutar uma contra a
missão, mas como vantagem pessoal ou meio de exploração, outra. Então, no lugar do único centro-Deus, formam-se infinitos
quando se usa a riqueza egoisticamente, e não como serviço so- centros infinitesimais, que tentam suplantá-lo. Eis a rebelião lu-
cial, quando toda classe e todo povo baseia a sua posição sobre ciferina. Começa a degradação. Toda célula não é mais a com-
a conquista e o abuso, e não sobre o equilíbrio, então tudo se panheira que colabora com a companheira, mas a rival que agri-
torna agressão e depois destruição, e o universal grito de justi- de a rival. Tudo vai para a decomposição, para a destruição. O
ça, por culpa do homem, torna-se uma vã invocação. Que adi- ser é livre de seguir um ou outro caminho: ou a grande marcha
anta fazer distinção entre chefes e súditos, se uns são dignos ascensional dos seres, representada pela evolução, segundo a
dos outros; entre vencedores e vencidos, quando a corrente é tendência centrípeta do universo, que segue para Deus, ou o ca-
única e arrasta todos? Os chefes, que mais acreditam mandar, minho da descida, representada pela involução, segundo a opos-
estão mais que todos encarcerados no sistema e são obrigados a ta tendência centrífuga, que se distancia de Deus. Então, Deus se
segui-lo sem possibilidade de evasão, até ao fundo. Há na vida nega a quem o nega, e isto significa morte. Cortados da fonte
uma lógica desapiedada, dada por um férreo concatenamento que tudo alimenta, os seres, tornados inimigos, sem nada recebe-
causal, que, uma vez iniciado, de qualquer ordem que ele seja, rem e gastos por uma luta contínua, devem perecer. Com esse
não deixa evasão possível, até às suas últimas consequências. processo automático de autodestruição, Deus alcança, longe de
E, no fim da concatenação do atual sistema do involuído, há si, a eliminação do mal na periferia, isto é, na parte do universo
uma proposição terrível também para ele: a destruição univer- que segue o caminho negativo que se distancia d'Ele. Reencon-
sal. Não se trata hoje de querer aparentemente redimir-se de tramos, ainda aqui, a íntima estrutura dualista do sistema monís-
uma série de erros e abusos que são de todos. Assim, as contas tico do universo. No caso limite, o mal absoluto coincide com o
nunca são quitadas. Trata-se, isto sim, de mudar radicalmente o nada e o bem absoluto coincide com Deus. Satanás nega e des-
sistema e todos desse sistema. Essa é a lei da nossa hora histó- trói o que toca. Ele, que vive de destruição, não se pode alimen-
rica. Quem não compreender perecerá. tar senão consumindo. Ele é ávido, porque é paupérrimo. Deus é
Como se vê, não precisamos ir muito longe para procurar os generoso, porque é riquíssimo. Assim também para as criaturas,
motivos dominantes no ambiente infernal, visto que eles nos que tendem para um lado ou para outro. A plenitude de Deus é o
são postos sob as vistas pelo reino humano do involuído. A dor ser, a plenitude de Satanás é o não-ser.
é a nota dominante desses mundos inferiores. Ela está em rela- Podemos observar essa desagregação periférica também em
ção direta com o grau involutivo, periférico e caótico do ambi- nosso mundo, logo que um poder político central perde a sua
ente. Se observarmos bem, no inferno, a dor é causada pelos potência, com a qual rege um povo compacto. Multiplicam-se
próprios sofredores. Nesses mundos distanciados do centro, a então os partidos, isto é, as separações e as lutas interiores.
divina potência central não intervém enviando agentes próprios. Mas, em todo caso, a divina justiça fica perfeita em qualquer
A Sua ação, nesses ambientes de treva e tristeza, é de todo ne- parte, porque o ser, conquanto queira distanciar-se do centro e
gativa e consiste em retrair-se, em negar-se, deixando o ser na perder-se, tem sempre o que merece, em qualquer posição em
atmosfera que ele próprio faz. Para subir ao paraíso, é necessá- que ele queira estar. Quem desce segue para a ignorância, o er-
rio que o ser, evolvendo, crie uma atmosfera melhor para si. ro e, portanto, a dor. A própria verdade só é alcançada e possu-
Deixai os involuídos sozinhos e eles farão logo um inferno. ída em relação à unidade; ela está conexa com a harmonização,
Deixai os evoluídos sozinhos e eles logo farão um paraíso. Nos é um produto da evolução e se encontra caminhando para o
primeiros, a distância do centro faz com que a unidade do todo centro. É harmonizando-se com a ordem divina que se descobre
se despedace no egoísmo, a ordem se decomponha na desor- a verdade, muito mais que através da observação experimental.
dem, de modo que as relações coletivas são, sobretudo, de Eis toda a nossa história. Quem sobe e quem desce – cada um
agressão e de ódio. Lá, onde Deus está longe como está o Sol colhe o que semeia. Fazendo o bem, nos enquadramos na or-
do planeta Netuno, é natural que a Sua luz chegue apenas im- dem divina e avançamos para mundos mais harmoniosos e mais
perceptível, e Sua luz significa inteligência, consciência, amor, felizes; fazendo o mal, distanciamo-nos da ordem divina, retro-
ordem, harmonia, felicidade. Então, todo ser torna-se um de- cedemos para mundos inferiores e ficamos mais longe de Deus,
mônio. Longe de sua fonte, a vida se contrai. Em vez de se ex- onde a luta é mais feroz e a dor mais aguda. Depende de nós o
pandir fértil, ela se faz magra, hostil, feroz, qual é a dos abro- nosso estado de tormento ou de alegria: se descermos embaixo,
lhos na rocha. Estes não produzem senão espinhos. Toda doçu- teremos demônios por companheiros, se subirmos ao alto, te-
ra e beleza desaparece. O mal triunfa e é conduzido pela Lei à remos por companheiros os anjos. Todavia, conquanto queira-
sua autopunição, é levado a infligir na própria carne os agui- mos estar longe de Deus, Ele nos chamará sempre, através das
lhões da ofensa, para sua redenção. A tendência periférica do mil vozes da vida, sempre um Seu raio de luz nos alcançará,
universo é, no mal, uma dor sempre mais intensa, até à autodes- qual convite para a nossa ascensão, porque livre e nosso deve
truição. Eis a gênese e o significado daquilo que em nosso pla- ser o esforço, como nosso será o resultado. Há quem aceite e há
neta se chama luta pela vida e seleção do mais forte. Este con- quem se rebele. Tudo o que pensamos e fazemos permanece in-
ceito, desenvolvido ainda em direção involutiva, nos leva ao delevelmente escrito, e, assim, nos construímos e ao nosso des-
super-homem de Nietzsche, que é o verdadeiro tipo biológico tino. O que está escrito, poder-se-á corrigir com acréscimos ou
do superbruto, o rei campeão de um mundo de demônios. É as- retificações em direção contrária, mas não se cancela. O presen-
sim que a rainha Isabel da Inglaterra, ligada ao sistema do seu te, uma vez tornado passado, não pode ser mudado nem mesmo
mundo é ―obrigada‖ a fazer matar a sua real irmã Maria Stuart, por Deus. Ele é Lei, e não capricho, como o homem pode crer.
e exclama: ―Aut fer aut feri; ne feriare feri‖ (É preciso ferir pa- Todo homem tem nas mãos esse material fluido do presente,
ra não ser ferido; se não ferires, serás ferido). Toda vida e posi- que sempre escorre como um fio e, pouco a pouco, vai solidifi-
ção é dominada pelo seu próprio sistema. Todo jogo tem as su- cando-se. Assim, ele pode construir-se para o alto ou destruir-se
as regras e com elas é preciso jogar até o fim. para baixo. Todo homem traça com as mãos, no livro da sua vi-
Eis, pois, o que acontece na periferia. À medida que o ser se da, o seu caminho, que vai para o inferno ou para o paraíso.
distancia do centro-Deus, da gravitação pela qual o universo é Observemos, para concluir, como se irradia a luz divina do
mantido compacto em um organismo unitário, começa e se centro para a periferia, quais os caminhos que ela, num estu-
56 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
pendo milagre de amor, segue, para atingir também esses mun- res da treva e do mal. Eis a procura afanosa da ovelhinha desgar-
dos inferiores, que parecem abandonados por Deus, mas não o rada, a procura do pecador em vez da dos justos, que já estão
são. Qual é o canal que o centro segue para fazer chegar o seu salvos. Que orquestração de amplexos para o universo em todas
raio vital até aos mundos inferiores; quais os operários, colabo- as direções e alturas! Que real fraternização opera o amor de
radores da sua potência, que, levando-a longe, freiam o desa- Deus, mesmo lá onde parece não reinar senão ódio! Que contí-
gregar-se periférico, retomam o ser que se perde na fuga e man- nua descida de anjos para os mundos inferiores, em procura das
tém assim, não obstante tudo, o universo compacto? Esses ope- obscuras criaturas irmãs a serem iluminadas. E que alegria no
rários, emissários de Deus, são os evoluídos. Em cada mundo desempenho dessas missões e também no martírio; que regozijo
há uma contínua descida de seres superiores, que baixam de es- para os anjos de Deus o se tornarem mensageiros do Seu amor!
feras mais altas e sacrificam-se numa vida de martírio entre se- Em nosso baixo mundo, admira-se e exalta-se o dinamismo do
res para eles demoníacos, suportando infinitas dores, para ensi- macho atual, dinamismo involuído, cego e destruidor, semeador
nar, educar, revelar e dar testemunho de Deus. De Cristo para de dores. Saberá ele quanto sacrifício de seres mais evoluídos
baixo, quantos profetas, gênios, heróis, mártires, têm trazido à será necessário para educar e elevar este seu dinamismo, para
Terra a voz dos céus! Muitos se escandalizam diante de um inú- torná-lo construtivo, isto é, semeador de alegria? Que encontro
til martírio. Mas como se pode, sem martírio, proclamar na Ter- angustioso, mas que centelhas emanam dele! O inferior goza
ra uma verdade? Não são a agressão e a ferocidade as caracte- como de uma vitória a dor dos outros, e neles a procura com in-
rísticas dos mundos involuídos? Mas o estupendo milagre do diferença. O superior toma a seu cargo a dor dos outros como
amor é justamente este: enquanto os involuídos assaltam por coisa própria e a sofre. Que importa? Ele sofre na luz do amor
cego egoísmo, os evoluídos se sacrificam por iluminado amor. divino. Quão diversas são a dor do mártir, que vê o seu fruto e é
A vida nos diz que a troca é genética, e isto porque ela deriva confortado na comunhão atingida com Deus através desse martí-
do amor, e Deus é amor. Mas, se a fecundação da carne se dá rio, e a dor cega e desesperada que nasce do afastamento das
pelo caminho da carne, a fecundação do espírito se da pelas fontes da vida! Quanta distância entre uma dor bendita, carrega-
sendas do espírito. Quanto mais se desce para baixo, tanto mais da de amor, e uma maldita, carregada de ódio! O homem mais
a vida se contrai em uma dura casca de egoísmo, que fecha as evoluído de amanhã compreenderá que inferno o homem involu-
portas ao amor. Quanto mais se sobe para o alto, tanto mais a ído de hoje faz da Terra. É necessário avizinhar-se do paraíso.
vida se oferece, abrindo as portas ao amor. Embaixo, o eu se Estamos no limiar de uma nova civilização. A luta é apocalípti-
fecha em si mesmo e fica aí encarcerado. No alto, o eu se abre e ca, mas raios potentes se projetam sobre nós. Dos mundos supe-
se expande. O primeiro recebe sempre menos da nascente cen- riores, infinitos seres nos olham.
tral; o segundo recebe sempre mais. Ai dos que seguem uma
virtude negativa, entendida apenas para sufocar o amor, e não XV. DEUS E UNIVERSO (I PARTE)
para elevá-lo! Virtude significa sobretudo afirmação, muito
mais que negação. Esta pertence a Satanás, aquela a Deus. Depois das precedentes visões parciais, seguidas por nós pa-
A vida tem necessidade não somente da fecundação da car- ra nos aproximarmos mais do problema máximo, enfrentamos
ne, mas também do espírito. Aquela forma a massa, este lhe dá a agora a visão do mistério central: Deus e o universo.
alma. Corpo e espírito, involuído e evoluído são, como a fêmea Para chegar a uma definição de Deus é necessário partir de
e o macho, complementares. Por isso se atraem. No caminho da alguns conceitos que, pela sua evidência e comum aceitação,
evolução, o crescimento da carne não é senão um meio para podem ser tomados como axiomas. Aceitamos, então, como
crescer no espírito. A carne tem os seus limites, e somente o es- demonstrado que o homem é um ser inteligente, capaz de com-
pírito pode ajudá-la a superá-los. O espírito é o seu raio vivifi- preender alguns conceitos; que o universo é um funcionamento
cante. A carne é fraca, o espírito é potente. Assim, a fecundação orgânico dirigido por um ―quid‖ inteligente; que tudo se desen-
espiritual se sobrepõe por outros caminhos à fecundação orgâni- volve segundo o princípio de causalidade, pelo qual o efeito é
ca, elevando-a e completando-a. Os dois termos da fecundação proporcional e da mesma natureza da causa que nele se mani-
espiritual não são macho e fêmea, mas involuído e evoluído. Es- festa; que, em correspondência ao princípio de causa e efeito,
te é o fecundador, de sinal positivo; aquele é o fecundado, de si- existe um dualismo universal, pelo qual se pode contrapor rela-
nal negativo. Como a semente e a terra, eles têm necessidade um tivo e absoluto, finito e infinito, e semelhantes.
do outro. Um é rico, porque está mais perto de Deus e então dá; Querer chegar a uma definição de Deus significa reconhecer
o outro é pobre, porque está mais distante, e recebe, seja embora que, no universo, o homem percebe e concebe um princípio
massacrando o seu benfeitor. Esta é a sua forma de achegar-se causal único que tudo rege harmonicamente. Não podendo re-
ao próximo. Ele recebe, com reserva, assimila para tornar a bro- montar à causa invisível senão pelos efeitos perceptíveis, de-
tar conforme a semente fecundadora. Explicam-se assim tantas vemos primeiro verificar que o efeito exprime não um estado
frases do Evangelho. Eis um outro elemento de biologia trans- caótico, mas sim uma ordem em que tudo depende de um cen-
cendental. Os dois termos opostos se atraem. Os inferiores são tro, em razão do que o evidente vir-a-ser de todas as coisas tem
atraídos pelos superiores e aproximam-se, naturalmente, com a um significado e uma meta lógica.
própria forma negativa de destruição. O involuído mata os seus Assim dizendo, chegar a uma compreensão do conceito de
profetas, para venerá-los depois. Por outro lado, os superiores Deus significa atingir, do polo relativo ou finito, onde está o
são atraídos pelos inferiores e aproximam-se, naturalmente, com homem, o polo infinito ou absoluto, onde está Deus. O homem,
a própria forma positiva de construção. O evoluído sacrifica-se com o universo que o circunda, é efeito. Ora, para poder, par-
pelos homens para melhorá-los. Uns e outros se exprimem em tindo do efeito, reconstruir a causa, seria preciso poder observá-
formas de bem ou de mal, quais eles são. Eis o mistério do amor lo todo, isto é, no infinito do espaço e do tempo. Entretanto o
que mantém coeso o universo por infinitos liames entre os seres, homem não possui os meios para, usando o método indutivo,
seja quando ele se manifesta pelo lado positivo, como amor, seja poder conceber a natureza da causa partindo da observação dos
quando pelo lado negativo, como ódio. Assim, o martírio é lei efeitos. O homem não pode, portanto, definir Deus. Não o pode
de amor para os mais evoluídos, cuja superioridade, na divina porque o próprio conceito de definição pertence ao seu mundo
economia do universo, não é ociosa, mas sim, por justiça, reple- finito, que não é o infinito. Assim, querer definir Deus, isto é, o
ta de deveres. Somente assim se pode compreender Cristo. infinito, torna-se uma contradição e um absurdo. O infinito não
Abre-se diante dos nossos olhos a visão da ordem divina, que se se pode limitar a atributos particulares sem mutilar-se. Qual-
torna hino de amor e de bondade também nos extremos inferio- quer definição de Deus não pode ser senão uma mutilação. E
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 57
que pode saber de Deus um ser como o homem, cujas concep- pria alma em relação ao grau de conhecimento conquistado. As-
ções, mesmo as mais abstratas, foram alcançadas através de ge- sim, podem coexistir muitas definições de Deus e, reconduzida
neralizações de conhecimentos adquiridos por necessidades àqueles limites, creio que a minha não poderá ofender as dos ou-
materiais, que não passam de um produto destilado de percep- tros, que não pretendo impugnar, reconhecendo-as relativamente
ções, um resultado sensório, um derivado mais ou menos pró- verdadeiras, em relação a cada um, como expressão da sua alma.
ximo do modo de conceber que resulta dos meios de observa- Mesmo assim, não posso impedir, porém, que os espíritos evolu-
ção e de juízo, dados pela natureza e pelo organismo humano? tivamente situados no meu plano de evolução deixem de corres-
Que representam então as tantas definições de Deus, dadas ponder por sintonia ao meu pensamento e, portanto, lhe adiram.
pelo homem? Elas não exprimem o inexprimível Deus, o indefi- Entro agora no assunto, expondo os vários aspectos em que
nível infinito, mas sim o conceito relativo de Deus que o homem me apareceu a divindade. Mais que diante de uma definição, sin-
faz segundo ele próprio, nos revelando a sua natureza, o seu tipo to que me encontro diante de uma visão. Acerco-me, pois, de
biológico, a maturação espiritual alcançada, a sua potência de Deus, não como de um ignoto que minha razão queira conhecer
concepção. Nas suas definições, o homem não define Deus, mas e conquistar, mas como de uma visão que me aparece e se me
a si mesmo em relação a um infinito do qual nos mostra as vá- entrega, que me conquista, que me chega por intuição e me al-
rias aproximações realizadas no seu concebível. Daí segue que cança vindo do alto. Tenho a sensação de uma gradual e pro-
toda definição de Deus é relativa a cada um e é mutável e pro- gressiva revelação, como de um desvendar de mistério. Não
gressiva com o devir de cada um. Na Terra, encontramos infini- concebo mais conforme os conhecidos sistemas racionais de de-
tas definições de Deus, e nenhuma satisfatória e definitiva, evol- finição de Deus e suas consequências. Percebo essa visão so-
vendo todas no relativo sem fim. A estrutura do relativo é tal mente com os sentidos da alma, agarro a sua estrutura enquanto
que ele não pode existir senão no movimento. A vida em forma lhe sinto a logicidade; aí repousa o instinto satisfeito e a alma
imóvel poderá de certo estar no polo oposto do dualismo, no ab- saciada por alcançar essa sua verdade, além da qual hoje não vê
soluto. Mas, em nosso finito de criaturas, a parada, ainda que e que é a última de hoje, à espera de avançar mais no amanhã. A
conceptual, é morte. E morte não significa senão fatal destruição potência dessas sensações, para mim, é prova que a minha visão,
da imobilidade para reentrar no movimento da vida. ao menos do meu ponto de vista, relativamente à minha forma
Quando, pois, um homem se põe a definir Deus, ele não de- mental e grau evolutivo no momento atual, é verdadeira.
fine Deus, mas estabelece e exprime a sua posição em face do Para chegar à minha aproximação do conceito de Deus,
ponto de referência, Deus. Logo o seu conceito será relativo e parto de alguns dados de fato e me sirvo, como de uma escada
mais ou menos avançado conforme é a sua evolução. Com isto, para subir, do princípio analógico que observei ser sempre
cada um, colocando-se diante de todos os outros conceitos rela- verdadeiro em todo campo (aquele que permitia a Cristo ex-
tivos ou definições de Deus, dadas por outros homens, pode ter primir-se por parábolas). Esse princípio me diz que o universo
com eles consenso ou dissensão, segundo a respectiva posição é um organismo de estrutura harmônica, constituído conforme
psicológica. Coincidirão somente as perspectivas tomadas da um esquema unitário, segundo o qual o modelo fundamental
mesma posição. Logicamente, se do infinito podem ser tomadas que o individualiza no seu conjunto é repetido em todo parti-
visões de infinitos pontos de vista, então as definições de Deus cular, que assim é individualizado à semelhança do todo.
podem ser infinitas. As disputas sobre esse argumento não di- Quando houvermos compreendido a estrutura de uma indivi-
zem, pois, respeito a Deus, mas somente aos homens, segundo dualização qualquer particular, nela veremos refletido o uni-
o conceito que de Deus cada um consegue formar. Essas defini- versal e encontraremos a chave para resolvê-lo. Aplicaremos
ções se fazem com atributos humanos ao superlativo, o que ex- agora, por várias vezes, esse método.
prime antes uma ingênua tentativa por parte do homem de criar Verifiquei, assim, que tudo é bipolar no universo. Essa lei
uma ideia de Deus, uma representação segundo o próprio con- de bipolaridade é afirmada em A Grande Síntese e desenvolvida
cebível, feita à própria imagem e semelhança. E que mais se no fim do volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio. Pu-
pode pedir ao homem, além dos elementos de julgamento que de verificar que esta é uma lei universal, ao menos até aonde a
ele possui no seu concebível? É lógico e justo que assim seja. O minha observação pôde chegar, sem encontrar desmentido. Ca-
erro está somente em querer dar um valor absoluto a essas defi- da individualização particular nos diz que ela existe enquanto é
nições. E isto é verdadeiro para os indivíduos, para as religiões formada por duas metades inversas e complementares, antagô-
e para os povos, porque tudo caminha fatalmente. nicas, que se regem enquanto equilibradas no seu recíproco
Chegar ao conceito de Deus significa haver resolvido o pro- contraste, formando e fechando, assim, um circuito de duas for-
blema do conhecimento, dominar a visão do universo. Como o ças de sinal e valor oposto. Pelo princípio da unidade dos es-
conhecimento é incompleto, progressivo e inatingível, então o quemas repetidos por semelhança, derivados de um único cen-
conceito de Deus é progressivo e inatingível. Assim, a concor- tral, e pela lei de analogia, pode-se bem verificar quanto acima
dância de visão em muitos casos entre os homens é antes intui- foi exposto, confirmando, nos casos menores observados, a re-
tiva e, portanto, axiomática, do que racional e demonstrável. É petição do caso máximo do universo.
por uma universal tendência intuitiva que sentimos a necessi- Isto me guia para uma primeira aproximação do conceito de
dade de pensar em Deus como perfeição, como poder, harmo- Deus. Ele me aparece, pois, como o polo que é centro, potência,
nia, justiça e bondade. Temos uma intuitiva necessidade de en- conceito diretivo, causa motriz, substância, absoluto, polo que
contrar em Deus a causa última que tudo explica, o imutável está nos antípodas do outro, que é, ao contrário, periferia, ex-
em que possa encontrar razão e repouso a incessante instabili- tremo não irradiante, dinamicamente irradiado, conceptualmente
dade de todas as coisas, o elemento complementar do nosso re- guiado e desse modo plasmado na forma, polo em que o todo é
lativo, que lhe complete a deficiência que sentimos. Deus é sen- feito organismo que funciona e evolui para fins precisos, polo
tido, assim, mais como aspiração e tendência para uma meta in- dos efeitos e do relativo, no qual vivemos. Ora, o esquema da
finitamente distante, em cuja estrada se está sempre a caminho, estrutura de cada individualização do ser, observado em infinitos
do que como uma racional precisão em termos qualitativos. casos, não me autoriza a separar esses dois momentos opostos.
Aplicando os conceitos acima expostos à minha presente Ao contrário, mostra-me que o antagonismo não é senão com-
tentativa de dar uma definição de Deus, deverei tê-la como rela- plemento, contraste que traz equilíbrio, portanto não divide, mas
tiva a mim, expressão do grau de evolução espiritual por mim sim une as duas partes em um mesmo ciclo. Se assim são todos
alcançado hoje, progredindo no amanhã para sempre melhores os menores casos observáveis, também deve sê-lo, por analogia
aproximações. Toda expressão humana é manifestação da pró- e harmonia, que são leis do universo, este caso máximo. O prin-
58 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
cípio do dualismo me conduz, pois, inevitavelmente a essa con- Se, na concepção de Deus, nos limitarmos a um só dos seus
cepção de equilíbrio, porque ele está em todas as coisas e mostra aspectos, seja de imanência, seja de transcendência, d'Ele te-
que transcendência e imanência não se podem elidir até ao ab- remos um conceito mutilado, incompleto. Devemos, por certo,
surdo de um universo cindido contra si mesmo, mas devem, ao venerar o Deus transcendente, o absoluto, para nós inconcebí-
contrário, completar-se automaticamente, equilibrando-se. A ob- vel, que exorbita de todos os possíveis limites do nosso univer-
servação dos fatos me diz claramente que os dois extremos não so; o Deus na Sua verdadeira essência, muito distante, o in-
podem ser senão opostos e complementares, para formar, em es- cognoscível, o inacessível. Mas devemos também sentir com
treito monismo, uma mesma unidade. amor o Deus imanente, que se deu ao ser, fundindo-se no rela-
Este monismo nasce, pois, do dualismo. Assim, o universo tivo; o Deus vizinho, compreensível, que se encerrou no limite
aparece, como toda individualização, estreitamente unitário, se da criatura; o Deus que sabe humanizar a vertigem do seu infi-
bem que, no seu íntimo, de estrutura dualista. Desse modo, o nito, para se tornar acessível a quem não tem a potência de al-
monismo abraça, a um tempo, o aspecto de Deus transcendente, cançá-Lo; o Deus pai e amigo, que assiste e socorre as suas
eu distinto da sua criação ou manifestação, e o aspecto de Deus criaturas. Digam o que disserem a revelação e a teologia, sem
imanente, pulverizado em infinitos eus menores e fundidos na esse segundo aspecto o universo se resseca, separado da sua
sua manifestação, em que está sempre presente. Vejamos agora fonte divina, e a vida, não mais alimentada em cada instante
as relações entre causa e efeito, entre Deus e universo. Segundo pelo Deus imanente, morre. Nenhuma filosofia pode mudar es-
o primeiro aspecto, a criação é instantânea, operada fora de si, e sas leis, que são as leis da vida.
fica separada da sua causa, que é de natureza completamente di- Era necessário, para obter uma primeira aproximação do
versa. Segundo o outro aspecto, a criação é íntima, progressiva, conceito de Deus, começar no sensível do nosso universo, para
é evolução, uma manifestação de Deus, em que a causa perma- remontar depois à sua causa, que está além do sensível. Para
nece sempre presente e operante no seu efeito e nele permanece escalar o inacessível, era necessário começar do acessível, esta-
fundida com igual natureza, assim como a alma humana se fun- belecendo as relações entre universo e Deus, entre o efeito e a
de com o seu corpo. Desse fato decorrem duas concepções opos- desconhecida causa que está além dele. Se bem que hoje se du-
tas, que parecem elidir-se, mas, ao contrário, se completam. vide de tudo, inclusive do princípio de causalidade, é evidente,
Procuremos compreender as relações entre Deus e univer- contudo, que as características do efeito refletem a natureza da
so, tomando para exame, pelo método mencionado do princí- causa. Então, dado que o universo dos efeitos é assim incomen-
pio de analogia, um exemplo que cada um encontra em si suravelmente vasto e complexo, assim maravilhosamente orde-
mesmo no caso semelhante do homem, já reconhecido como nado e perfeito, é lógico ter de se deduzir que semelhantes qua-
feito à imagem e semelhança de Deus. O homem, assim como lidades superlativas se devem reencontrar também na causa,
o nosso universo, é formado de três elementos: matéria, ener- que é Deus. É assim que se formou a maior parte das definições
gia e espírito; nele reencontramos também uma trindade que é de Deus, com um processo de multiplicação dos melhores atri-
dualismo nos seus dois extremos, matéria e espírito, os dois butos concebíveis pelo homem. Não repetiremos essas defini-
termos inversos complementares em luta no composto huma- ções. Deixemos que Ele permaneça definido pela descrição das
no. A analogia, que é universal, nos diz que as relações entre suas atividades, em que estão implícitos os seus atributos.
Deus e universo devem ser semelhantes àquelas que correm Algumas referências antes de ir além. Tudo que havemos
entre alma e corpo, entre espírito e matéria. A alma é indepen- desenvolvido neste capítulo está de acordo com quanto já foi
dente do corpo e pode assumir diversos corpos, segundo o seu sumariamente dito em A Grande Síntese e é desenvolvido
grau evolutivo. Aqui temos o aspecto transcendência, em que o aqui para esclarecimento do pensamento lá contido. E isto, a
princípio é uma individualização separável da sua manifesta- fim de expor o seu verdadeiro significado, uma vez que uma
ção relativa. Porém, ainda assim, a alma não só é estreitamente inexata interpretação dele e da terminologia usada em sentido
fundida e conatural ao corpo – este, sem ela, torna-se um ca- especial, provocou sua condenação, sob a acusação de erros
dáver – como também dirige sua formação, troca e evolução (a teológicos como a afirmação do panteísmo, da exclusiva ima-
evolução orgânica não é senão a expressão externa da evolução nência de Deus e afins.
do espírito). Aqui temos o aspecto imanência, em que a causa O referido volume, no Cap. VI, diz: ―Podereis denominar is-
está sempre presente e ativa no seu efeito. to de Monismo; todavia deveis cuidar mais dos conceitos do que
Transferimos o esquema unitário dualístico que rege a vida das palavras‖; ―Monismo, isto é, conceito de um Deus que ‗é‘ a
do homem para a dimensão máxima do esquema semelhante criação‖; ―Lede mais uma vez antes de julgardes‖. No Cap. VIII,
que rege a vida do universo. Deus é distinto do seu atual uni- lê-se: ―A Lei é Deus‖ – ―O princípio e as suas manifestações‖.
verso e pode separar-se desta sua manifestação, para assumir Isto quer dizer que o conceito de Deus não se pode isolar em ne-
inumeráveis outras. Deus é, ainda, a alma que rege o atual uni- nhum dos seus aspectos, seja o transcendente de princípio, seja o
verso, fundida nele, sempre aí presente e ativa através de uma imanente de manifestação. Monismo significa justamente o seu
criação contínua, que chamamos evolução. O princípio da equilíbrio e fusão em unidade. Separá-los significa mutilar o
imanência nos diz que, se do universo tirarmos Deus, resta um conceito de Deus em um dos seus aspectos fundamentais.
cadáver. Mas o princípio da transcendência nos diz que, se A Grande Síntese, no Cap. LXIII, ―Conceito de criação‖,
Deus se desliga do seu universo, isto é, da sua atual forma de diz: ―Podeis denominar criação um período de vir-a-ser e, só
manifestação, Ele pode, todavia, expressar-se em infinitos ou- então, falar de princípio e de fim‖; ―Tudo deve se reintegrar na
tros universos. O universo atual não é senão uma das infinitas Divindade, pois, se tal não sucedesse, esta seria ‗parte‘ e, por-
formas que o absoluto quis dar a si mesmo no relativo; Ele po- tanto, incompleta; se existem forças antagônicas, estas não po-
de libertar-se sempre desta sua expressão no espaço e no tem- dem estar senão em seu seio, no âmbito de sua vontade, como
po; o infinito é sempre senhor de romper os limites do finito parte do mecanismo do seu querer, do esquema do todo‖ (...),
em que ele quis fechar-se. No entanto ele se impôs esses limi- ―uma cisão, uma duplicidade absoluta entre Divindade e criado.
tes; é causa do relativo do universo atual, sua expressão; nesta, Isto não pode ter cabimento neste meu monismo‖.
Deus é necessariamente imanente e, como tal, Ele vive neste E ainda: ―Não tenhais receio de diminuir-lhe a grandeza di-
seu aspecto, isto é, luta, sofre, goza, evolui conosco e com to- zendo que Deus é também universo físico, pois este nada mais
dos os seres. Ele é motor universal, impulso que faz pressão é do que um átimo do seu eterno vir-a-ser, do seu tornar-se, em
para levar o universo à plena expressão d'Ele, à gradual e com- que Ele se manifesta‖ (...), ―a minha mente tende a manter
pleta conquista da Sua perfeição. compacto o todo, numa visão unitária, e a fazer com que os
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 59
profundos vínculos que unem princípio e forma ressaltem‖ (...), invertido. Então, o primeiro Deus deve modificar os seus pla-
―Deus é o princípio e a sua manifestação, fundidos numa uni- nos imperfeitos e mal executados, tomando diretrizes diferen-
dade indissolúvel; é o absoluto, o infinito, o eterno que vedes tes, e socorrer o ser caído, com a Sua redenção. Disto resulta
pulverizado no relativo, no finito, no progressivo. Deus é con- uma série de consequências bem conhecidas.
ceito e matéria, princípio e forma, causa e efeito, conjugados Dado o conceito que o instinto da alma e a sua intuição nos
inseparáveis, como dois momentos e como dois extremos entre indicam de Deus, ela se rebela diante da ideia de um desdo-
os quais o universo se agita‖. bramento da potência criadora, em que a divindade se rompe,
Este é o monismo que agora aqui explicamos. Deus é causa contradizendo-se na imersão de uma parte da sua manifesta-
que se funde no seu efeito. Mas este é sempre um relativo, que ção, para acabar em uma luta dolorosa e estéril entre dois che-
tem assim princípio e fim, ao contrário do absoluto-causa que, fes que contendem nas diretrizes do criado. Então, o mal nos
como extremo oposto, tem características opostas, ou seja, é aparece verdadeiramente como uma força negativa, o antago-
imóvel, eterno, além de todo limite e medida. É assim que o nista que atenta contra Deus, uma imperfeição devida a um
atual universo tem princípio e fim. Porém as criações do mes- Seu imperdoável erro, que Ele, em determinado ponto, encon-
mo Deus infinito podem ser infinitas no finito, propondo-se ca- tra na Sua obra e que se apressa em remediar. Deus não é tudo,
da uma alcançar algum fim seu, criações progressivas que se ul- mas há fora d'Ele um outro Deus, seja embora ao contrário,
timam somente na sua conclusão (v. A Grande Síntese, Cap. que o limita e o agride. É o bastante para fazer ruir o conceito
XXII, fig. 2, criação a, b, c, d, etc.). do Deus absoluto e perfeito, que o instinto da nossa alma tem a
A esses conceitos é que se refere o desenvolvimento deste intuição. Permanece daquele Deus uma ruína, mutilada e ven-
capítulo. Para compreendê-lo, é necessário seguir toda a orienta- cida, um Deus relativo e finito. Tudo cai no absurdo. Para o
ção geral de A Grande Síntese; haver antes estabelecido a solu- homem ficaria uma herança de dor, sem finalidade construtiva,
ção do problema da dor e do amor, ali desenvolvida do Cap. punição de um Deus que se torna vingativo, dor que Ele em
LXXX ao LXXXII; ter compreendido a função do bem e do mal vão procura sanar. Essa dor é devida à grave culpa do primeiro
e da solução final do seu contraste (cfr. o volume A Nova Civili- rebelde que, seja Adão, seja Lúcifer, de certo não poderia ter
zação do Terceiro Milênio, Cap. XIII, ―Problemas Últimos‖); ter consciência completa do bem e do mal, por ser um primitivo
enfim compreendido os capítulos: ―Evasões‖, ―Inferno e Paraí- (Adão) ou porque, se a tivesse tido (Lúcifer), não seria jamais
so‖, ―O Princípio de Unidade‖, ―O Erro de Satanás e as Causas induzido a tamanha revolta em seu prejuízo, expulsando-se,
da Dor‖ e ―Porque Amor é Alegria‖, que se desenvolvem nos por si mesmo, para o reino da dor, por ele mesmo criado, e
volumes Problemas do Futuro e Ascensões Humanas. Não se não, de certo, por Deus. Como pode um inconsciente ser res-
poderia chegar ao atual grau de profundidade no conhecimento ponsável, quando não sabe o que acontecerá e lança-se a uma
do argumento senão por graus, preparando todos os elementos tentativa, crendo ganhar o próprio bem e, sem saber, erra? E,
das conclusões atuais com a solução de vários problemas con- em nome de qual justiça, Deus, que sabe tudo e tinha a presci-
comitantes. Retomemos agora o nosso argumento. ência de tudo, portanto também desse erro, pode condenar esse
Estabelecidas, pois, as relações entre Deus e universo, per- ser, que errou por ignorância, a pagar duramente na dor? Quan-
guntamo-nos por que Deus quis exprimir-se nessa sua manifes- do uma criança inexperiente cai, a culpa é do progenitor que,
tação e os seus significados e finalidades (admitido o universal sabendo mais, devia prever o que o inexperiente não podia; é o
princípio de causalidade). Encontramo-nos, aqui, em face de pai que tem o dever de educar, antes mesmo de ter o direito de
uma primeira, mas só aparente, contradição. Por um lado, so- punir, e somente em proporção da experiência adquirida pelo
mente o conceito de um Deus perfeito, absolutamente justo e filho. Quando o filho não tem conhecimento, o progenitor não
bom, sacia o instinto de nossa alma, que não pode admitir ou- pode punir. Se Adão e Eva creram na serpente, foi porque eram
tra coisa, porém o vemos na realidade dos fatos, em nosso ingênuos, inocentes e não conheciam as consequências, pois
mundo, como imperfeito, muitas vezes injusto e mau. Por que que, ainda hoje, o mal é sempre fruto da ignorância e da ilusão
haverá este efeito, tão dissemelhante da sua causa? Repugna que dela decorre. Ninguém também hoje faz o mal pelo mal; se
totalmente à nossa alma transferir para a causa essas qualida- o faz, é porque o reputa, na sua ignorância, uma vantagem, uma
des dos seus efeitos. E então, como é que uma tão maravilhosa utilidade, um bem. E, então, que deveremos pensar de um Deus
fonte se há depois corrompido na dor e no mal, na sua mani- que, contrariamente aos seus princípios de lógica e justiça, se
festação? O espírito humano se encontrou desde os primórdios comporta dessa forma para com a sua criatura?
da civilização em face desse problema e tentou resolvê-lo com Na visão que vejo aparecer diante de mim, tudo se esboça
o mito da queda dos anjos e, pois, do pecado original. Confor- bem diversamente. O dualismo, que é uma evidente e indiscutí-
me essas soluções, o nosso atual universo não seria senão uma vel verificação de fato, permanece. Contudo, assim, não aparece
degeneração de um outro universo perfeito, arruinado por obra mais antagônico e destruidor como no precedente sistema, e sim
da criatura, que quis trair o criador. O ser seria um decaído em com um mais profundo e satisfatório significado, revelando-se,
poder da dor e capitaneado por Satanás, um anti-Deus, rei su- ao contrário, unitário e construtor. O universo me aparece em
premo do mal. Diante de Deus, ter-se-ia assim formado, na sua seu monismo, isto é, estreitamente unitário também neste caso.
própria manifestação, um universo inimigo. Daqui nasce um Em A Grande Síntese está dito que, como o pensamento humano
dualismo antagônico, irresolúvel, em guerra, bem diverso do passou da ideia politeísta à monoteísta, agora passa da monoteís-
dualismo harmônico e unitário que acima havemos descrito. ta, isto é, a de um Deus só, mas distinto do Seu universo, à mo-
As duas partes formam uma cisão, uma insanável fratura dis- nista, em que Deus, sendo tudo, é também o universo. O homem
solvente, e não um equilíbrio compensado, que contrapõe os subiu evolutivamente, e Deus, hoje, avizinha-se, torna-se mais
opostos tão-só para unificá-los construtivamente. Aqui, ao acessível à nossa nova maturidade. No caso agora observado, o
contrário, estamos defronte ao naufrágio da obra de Deus. monismo do todo, a unidade universal, que não permanece cin-
Como podia Ele, com as qualidades que lhe devemos atribuir, dida entre o Deus transcendente e o Deus imanente, fica unidade
falir tão miseravelmente; como podia não haver sabido prever inseparável também no seu dualismo bem-mal, Deus-Satanás.
e, enfim, ficar vencido e subjugado pela vontade da sua criatu- Nesta visão, o universo me aparece absolutamente unitário, por-
ra? Isto implica algum grave defeito de origem para chegar a que qualquer cisão sua seria insanável fratura, ruindo a sua per-
tão desastrosos efeitos; e como podia tudo isto estar em Deus? feição. Não interessa, aqui, se a palavra monismo teve outros
E eis que a criatura superou o criador, substituindo-o na dire- significados e fez parte de diversas escolas humanas. Este é o
ção, e justamente em sentido contrário, como um segundo deus sentido que aqui damos a esta palavra e prescindimos dos ou-
60 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
tros. E, neste conceito, é fundamental que, no universo, haja um Observemos, porém, sempre mais de perto, esta visão mo-
só centro dominador, uma só força diretriz, e não duas. nística do universo. Se Deus, pois, aparece perfeito, absoluta-
Não há um anti-Deus; não existem atritos ou erros a sanar. mente bom e justo, por que existem na sua obra essas sombras
Deus não tem inimigos. Satanás é o Seu servo e, neste sentido, que são o mal e a dor e qual é a sua função? Como podem essas
lhe está sujeito, logo é seu instrumento para os fins do bem, forças negativas funcionar afirmativamente, esses ímpetos des-
que é a única lei de um Deus só, senhor de tudo, verdadeira- truidores fazer parte do mecanismo criador? A perfeição de
mente bom, justo e perfeito, como o instinto da alma nos diz e Deus não implica que Ele haja criado um universo já perfeito
exige. Há assim funcionamento orgânico unitário, e não uma como é Ele próprio. Ele pode ter construído um universo per-
cisão entre o bem e o mal. fectível, isto é, que evolui sempre mais para a Sua perfeição,
Mas a dor e o mal não desaparecem por esse motivo. Por um universo que, no tornar-se, é ascensão para esta, mas que,
que, pois, existem e os quis Deus, único senhor de tudo? Esta nesse progressivo caminho de conquista, exprime uma perfei-
visão não destrói o fato inegável que dor e mal existem; dá- ção de meios e de método. Isto corresponde à observação da re-
lhes apenas uma explicação lógica, a única que não ofende o alidade e explica o dualismo transcendência-imanência, bem-
conceito de Deus, que a nossa alma exige e não ofende a Sua mal, Deus-Satanás, porque o universo é uma projeção de Deus
perfeição. Tínhamos já, no volume A Nova Civilização do para o polo oposto a Ele, do imóvel para o tornar-se, do absolu-
Terceiro Milênio, tratado do problema do mal, da sua função to para o relativo, do perfeito para o imperfeito. E aqui surge a
construtiva a serviço do bem, da sua destruição final, implíci- grande pergunta: por que essa projeção? Eis o nó da questão.
ta na estrutura negativa do seu próprio sistema. Mas, aqui, não Deus era perfeito, completo em si, causa sem causas. E eis que
é da natureza do mal e de sua sorte que nos queremos ocupar, Ele se lança na concatenação sem trégua da causa e efeito, no
e sim da sua posição na estrutura unitária do universo, a fim laborioso trabalho de um tornar-se evolutivo, lança-se na im-
de compreender que ele não só absolutamente não o ofende perfeição, para criar fora de si uma perfeição semelhante a Ele.
como, ao contrário, representa uma função positiva e constru- Por que isto? Há aqui, verdadeiramente, uma ruptura em dois
tora, solidária com a do bem. Vemos, assim, o mal e a dor nos da unidade divina, pela qual Deus se projeta e vem a existir não
aparecerem com um significado mais profundo, bem diverso mais somente na substância, mas também na forma; assim en-
do precedente, surgindo como partes do mecanismo criador, cerra-se na limitação, submete-se ao esforço de uma ascensão,
como elementos negativos somente na aparência, mas em pulveriza-se no particular e se sujeita a atravessar os oceanos
substância positivos, não maléficos e sim benéficos. Somente do mal e da dor. Que há no fundo desse caminho, no fim de to-
assim eles podem estar na divindade, e não contra ela, que é do o processo? Há um universo de seres que conquistaram a
afirmação criadora, benéfica, e nunca maléfica. No atual novo consciência, isto é, a verdadeira existência, retornando a Deus,
impulso para Deus, Satanás, de um tremendo inimigo de Deus por quem foram gerados. A cisão, assim, no fim se anula e a
e nosso, torna-se um ignorante que faz o mal porque não sabe unidade é reconstituída. Cisão, pois, transitória e puro meio,
e, justamente por isto, acaba por fazer o bem no seio da infini- condição de uma unidade nova e mais ampla, na qual Deus terá
ta sabedoria de Deus, que tudo abarca, inclusive a obra de Sa- realizado uma criação nova, de inumeráveis falanges de huma-
tanás. Então, a nossa vida não é mais condenação, exílio, pu- nidade que n'Ele reencontram a sua unificação.
nição de culpa originária, mas alegria em ascensão para o A causa motora de tão imensa obra? O Amor. A criação é
bem; mesmo nas quedas e na dor, é sempre uma bênção de um uma autodoação de Deus. Daí, além da transcendência, a ne-
Deus, verdadeiro Pai amoroso; é, a todo momento, ascensão e cessidade da imanência, que exprime, por si só, a divindade no
conquista para a nossa felicidade. Nesta visão, vejo Deus abrir ato de se dar. Mas este dar-se é expressão na forma, isto é, li-
sempre os braços para atrair todos, alegria suprema. Vejo, mitação e, por isto, sacrifício. É Deus mesmo que, em primeiro
acima da negatividade do temor dominante em nossa anterior lugar, por amor para com as suas criaturas, cinde-se em sacri-
concepção de Deus, uma exaltação dos valores positivos da fício, dando-se a elas. Assim, o Uno se rompe, fragmenta-se no
vida, em que, além do antagonismo do bem contra o mal e ao dualismo para recompor-se depois em unidade, porém enri-
contrário, aparece a lei de absorção do mal no bem, de modo quecida num grande amplexo em que Ele atraiu a si todas as
que a vida não é uma falência, mas sim contínuo triunfo de criaturas. Eis em que consiste e a que tende essa criação contí-
Deus. A Sua obra já é substancialmente perfeita e se, na sua nua que é a evolução. Antes da criação, Deus era o todo e per-
expressão, ainda não o é toda, vai sempre mais se aperfeiço- feito, mas lhe faltava a aplicação do amor. Ele estava sozinho.
ando, justamente para sempre mais exprimir exatamente a ín- Para poder amar, Ele cria Suas criaturas e nelas se transfunde,
tima perfeição. No sistema do universo, a vitória cabe ao bem, animando-as; com elas trabalha para livrá-las da forma; não as
ainda que, para atingi-lo, seja necessária a luta contra o mal. quer como autômatos, mesmo que perfeitos, mas sim seme-
A evolução nos leva para Deus, isto é, para a alegria, se bem lhantes a Ele, livres e conscientes, senhores do bem e do mal,
que, para subir, seja necessária a dor. Esta, assim, deve apare- portanto os assiste na longa experimentação que, através do er-
cer em cada caso na existência, que, se não é felicidade, está ro e da dor, conduz a essa grande sabedoria, a única que pode
sempre caminhando para ela, mau grado todo o cansaço e so- tornar a criatura semelhante ao criador. Adão, primeiro ho-
frimento. Este conceito da grande unidade do todo vivificará a mem, não podia possuí-la e errou. Possui-la-á o último ser da
nova era do mundo, porque a unidade é a meta da vida e a última humanidade, que não pecará mais, porque terá compre-
unificação é o processo evolutivo para chegar a ela, pois a fe- endido e, portanto, estará livre do mal.
licidade está na superação em Deus de todo antagonismo e ci- E eis que aparece a dor, sábio instrutor, instrumento de
são. Eis o significado da ideia do monismo, sustentada em A Deus; dor feita somente para ser superada na alegria, que é a
Grande Síntese. Não mais um universo cindido entre dois se- essência de Deus. Desse modo, dor e mal são progressivamente
nhores, representando a falência de Deus na Sua criação, mas eliminados até serem completamente reabsorvidos em Deus,
um universo unitário, triunfo absoluto de Deus. A sombra da que os quis como meios de Sua construção. Assim, a criação é
dor e do mal aí fica, mas somente como sombra que, em vez contínua, presume a constante presença da causa operante, é ato
de lesar, valoriza a luz. Esta visão me parece exprimir uma ininterrupto de um Deus sempre criador que, através dos con-
boa nova ao mundo por parte de Deus, que, numa grande cur- trastes necessários para uma conquista livre, fica infalível e al-
va da história, realiza um novo gesto para tudo atrair a Ele. cança sempre os seus fins, dirigidos, conforme Sua natureza
Estes conceitos, então, animam-se, vivificam-se e iluminam- perfeita, unicamente para o bem. Eis o universo, ordem perfei-
se num magnífico incêndio de paixões. ta, não obstante a sua desordem transitória e a sua imperfeição
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 61
de superfície; eis um Deus que se serve da falência no particu- vida não é mais alguma coisa de negativo, uma punição, um de-
lar para triunfar no conjunto, em uma obra de amor que termina rivado de erro, mas é ato positivo de conquista, guiada por leis
com a criação progressiva de criaturas que o compensam do seu perfeitas. Deus está verdadeiramente conosco, é nosso amigo,
imenso sacrifício, retribuindo o amplexo no fim do caminho quer a nossa felicidade e de tudo faz para nos dá-la. Mas quer
evolutivo. Eis a ordem e a lógica conforme as quais me aparece também que aprendamos, procurando-a, fatalmente destinados
esta visão, satisfazendo sem contradições tanto as leis da eco- a encontrá-la no fim. Deus, assim, vive conosco, em amor, o
nomia da natureza, quais as vemos em ato, quanto o instinto da nosso duro esforço de ascensão. Que mais evidente exemplo
alma, que tudo quer harmonicamente resolvido, seja para a inte- disto do que a descida de Cristo à Terra? Assim, Deus se mani-
ligência, seja para o coração. Eis o verdadeiro Deus, Pai e festa sempre mais em todo nosso progredir, estimulando-nos a
Amigo, sempre benéfico, perto de nós, o Pai anunciado por superar as deficiências; não arrastando-nos gratuitamente, mas
Cristo, o Deus do amor que dominará a nova era do espírito. sim atraindo-nos e ajudando-nos, para que, depois, a vitória se-
À medida que vamos observando esta visão, aparece-nos ja justamente nossa. A sabedoria divina atinge assim dois esco-
mais claro o conceito de Deus. Se, no Seu aspecto transcenden- pos que parecem opostos: a criatura, mesmo guiada e ajudada
te, Ele é separável, independente da criação, imensamente dis- por quem sabe mais do que ela, tem pleno direito à sua felici-
tante de nós, está, contudo, no seu aspecto imanente, fundido e dade, porque a ganhou com a sua fadiga; e o Criador tem direi-
presente na criação, imensamente perto de nós. Então se com- to ao amor daquela criatura, porque lhe esteve sempre vizinho e
preende como cada fragmento do criado possa refletir a estrutu- a socorreu, deu-lhe o máximo que a necessidade de não torná-la
ra do todo. É esta repetição do universal esquema único nos in- preguiçosa permitia, tendo sofrido com ela. Somente assim po-
finitos esquemas menores, todos do mesmo tipo, que justifica o deria ser alcançada a criação de um ser consciente e perfeito,
princípio da analogia, que usamos. Podemos muito bem, pois, mesmo através de uma cansativa ascensão, com direito ao eter-
ver Deus refletido em todas as coisas. O absoluto se repete ao no amor de Deus. Se, pois, a lei suprema parece nos marcar du-
infinito, no relativo. Deus nos aparece como a atmosfera em ramente hoje, não nos rouba em nada, pois nos compensará
que o universo está imerso; tudo nos fala d'Ele, nos faz sentir a com tantas alegrias, que, então, todos poderão compreender a
Sua presença. Mas não é só. A manifestação de Deus é progres- verdade do ditado de São Francisco: ―Tanto é o bem que espe-
siva, proporcionada ao grau de evolução alcançado. E, a toda ro, que toda pena me é muito amada‖.
nova aproximação do ser no Seu conhecimento, Deus se mani- Não posso deixar de me inebriar com a beleza desta visão
festa sempre melhor, mais justo e mais perfeito. Assim compre- resplandecente de justiça e de bondade. Que alegria poder resti-
ende-se o conceito de evolução como o retorno do ser à fonte tuir a Deus os seus atributos de perfeição e de amor, que paz
que o gerou, como lei de ascensão contínua e fatal para esse di- existe em sentir a alegria além da dor, o bem além do mal, uma
vino centro que tudo atrai. Vemos fechar-se o circuito do mo- ordem perfeita quando superado o caos humano! Que sabedo-
vimento dualístico, antes centrífugo, de projeção da causa para ria, uma imperfeição como um meio de perfeição, uma disso-
a periferia na forma, sua expressão, e depois, na atual fase, cen- nância feita para reordenar-se em harmonia! A dura luta pela
trípeto, de reabsorção na causa do centro-Deus, quando a forma vida não é senão uma elaboração para conduzir à fraternidade.
se adelgaça, ficando sempre mais visível o espírito animador. O esforço criador de Deus está sempre presente e faz parte do
Eis o significado da ascensão moral, da elaboração e formação sistema. Deus é perfeito. O Seu plano é perfeito; é somente a
progressiva da consciência, da catarse, dos conceitos de dever e sua manifestação que parece imperfeita, porque, partindo do
de virtude. Eis como, com a evolução, a forma deixa mais imperfeito, tende ao perfeito, e partindo do caos, chegará à or-
transparente a animadora presença de Deus. dem. O caos originário não foi erro, mas sim o ponto de início
Assim, tudo se esclarece e se explica. Então, Deus se torna desejado. A obra da criação consiste na progressiva elaboração
mais logicamente compreensível e o conceito que d'Ele alcan- da desordem, na reordenação do caos na ordem. É este processo
çamos mais satisfatório; caem, assim, as contradições, de im- de harmonização gradual que forma a sinfonia da vida, con-
perfeito tudo se torna perfeito, embora fique a condição da im- quistar através da prova a felicidade, que constitui o seu esco-
perfeição do nosso mundo atual. A nossa consciência nos diz po. O Deus transcendente, não obstante Ele operar como ima-
que Deus não pode errar, e nos desagradava a hipótese de que a nente em meio às suas criaturas, não cessa de resplandecer no
realidade nos mostrasse que Ele houvesse errado. A nossa alma centro, tudo atraindo ao seu seio. A sua imanência consiste jus-
não pode deixar de sentir-se elevada e satisfeita por essa salva- tamente nessa irradiação que tudo penetra, satura e arrasta para
ção da ideia de Deus, qual ela a sente, satisfeita de poder final- Ele. O Sol, como sistema semelhante (o esquema é sempre úni-
mente afirmar que, não obstante tudo, Deus e a sua obra são co em tudo), arde no centro do seu cortejo planetário, mas tam-
perfeitos. Ele jamais errou e, agora, não recorre absolutamente bém está em todo ponto aonde chega irradiando, para e fecun-
a retoques do seu plano para sanar faltas imprevistas, que acu- da. Transcendência e imanência não são, pois, senão duas posi-
sariam a sua ignorância e no-lo mostrariam como um ser zan- ções, duas metades do circuito de uma mesma unidade.
gado e arrependido, embaraçado diante da sua criatura, que não Então, todas as formas de existência tendem para Deus e to-
obedeceu a Ele. O nosso universo não é feito com as escórias das devem, cedo ou tarde, sublimar-se para chegar a Ele, a fim
de uma catástrofe não prevista. Foi desejado, assim como ele é, de restituir-lhe o amor que as criou e encontrar n'Ele a salvação
porque assim ele é perfeito; não no sentido que a perfeição já final. A vida não pode ter outros escopos. De outro modo, ela
esteja atingida, mas no sentido que Deus quis um universo que perde todo o sentido e valor, é caos e mal, e a criação de tal dor
atingisse pouco a pouco, por evolução, a sua perfeição. Neste sem salvação torna-se maldade. Uma infinita sabedoria, que
sentido, como foi desejado, tudo é perfeito, isto é, não no senti- tem presciência do erro da criatura e conhece a possibilidade de
do de uma criação completa no instante da origem, que naquele terríveis consequências, se é boa como deve ser, não a pode ha-
momento tivesse já alcançado os seus escopos, como verifica- ver criado desta forma. Criando, Deus não pode haver desejado
mos que não é, mas no sentido de uma criação que os vai atin- senão uma coisa: a salvação da criatura, salvação final; não im-
gindo progressivamente, através daquela elaboração, vir-a-ser porta se para alcançá-la são necessárias gravíssimas provas, jus-
inegável, de que é feita a vida do ser e que é a íntima substância tamente proporcionais às insensibilidades de cada um, se são
do existir. Daqui, a necessidade também do Deus imanente, necessárias penas que se devam sentir também como eternas,
qual inteligência diretriz deste tornar-se. É imensamente maior sem ter jamais esperança, se são necessários estes abalos para
do que a anterior esta ideia de Deus perenemente ativo e pre- fazer subir enfim e chegar a Deus. Na realidade, Ele está mais
sente, é mais justa, melhor, mais humana, mais confortante. A ansioso de nos dar liberdade e felicidade que nós de as alcan-
62 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
çarmos. Mas seria muito perigoso para o homem que Deus des- sa alegria, primeiro em outros seres, para os quais ela é irradia-
se liberdade a um ser que ainda não é sábio e consciente, nem da, e depois, pelo que dela resplandece e irradia em retorno, pa-
seria justo dar a felicidade senão como merecido prêmio por ra quem sofreu para gerá-la, que vê então seu sacrifício resol-
um trabalho ultimado. Como tudo pode ser nosso se não for ga- ver-se, no fim, em multiplicação de felicidade. Assim, a dor se
nho? Tudo isto negaria as qualidades de bondade e justiça de torna genética, terminando num aumento de alegria, e é aceitá-
Deus, que Lhe sentimos necessárias. O dar gratuito não é justo vel por ser geradora de alegria.
em benefício de quem não pode dele usufruir. O homem deve O universo corresponde, do caso máximo ao mínimo, a esse
colaborar. É guiado e sustentado por Deus, mas o esforço deve conceito. É por haver verificado em todos os casos o princípio
ser seu. Eis por que, como em outra parte havemos examinado, de analogia, que nos sentimos autorizados a ver presente no
a Divina Providência não socorre senão em caso extremo, mas pensamento de Deus, ao criar, a mesma lei de amor e dor que
nos salva sempre. Trata-se, não de uma redenção gratuita, mas preside a qualquer menor ato de gênese no universo. A lei do
de uma colaboração entre Deus e o homem, onde cada um dos sacrifício está na base da gênese da vida, sacrifício em que se
dois termos complementares põe a sua parte. Mais do que os fundem no mesmo tormento criador a alegria do amor e o es-
resultados, são levados em conta o esforço e a boa vontade. Lo- pasmo da dor. Olhemos para o mundo que nos é acessível e en-
go que tenha sido feito todo o possível, acontece milagrosa- contraremos como raiz de toda a criação, seja na carne, seja no
mente a realização. Deus dá todos os meios, mas nós devemos espírito, o sacrifício; somente dele, que é juntamente amor e
trabalhar e aprender com esses instrumentos. Deus resplende dor, nasce alguma coisa, a criatura nova, seja filho, seja obra do
sempre sobre nós, como o sol irradia sem descanso. Cabe-nos trabalho, seja conquista heroica, seja intuição de gênio. É o es-
saber tomar o mais que possamos deste sol. Quanto mais quema geral do universo, que vemos repetir-se e reproduzir-se
aprendemos a usar a liberdade, tanto mais ela nos é concedida. em todos os seus momentos e pontos. O caso particular nos fala
Mas sempre somos, em proporção, responsáveis por ela, que, se do universal, pois que ele é ligado pela lei única que rege o to-
nos vergasta ou premia, se de nós se oculta ou a nós se mostra, do, que é uno. A lei que todos aplicamos, porque é inerente à
será sempre para nos atrair a Ele, para nos fazer alcançar, por vida, nos indica qual foi o primeiro, máximo ato da gênese,
Seu intermédio, a nossa salvação. A lei soberana que rege o que, depois, todos os seres vão repetindo à imagem e seme-
universo, não obstante as aparências contrárias e as condições lhança do primeiro: o sacrifício. Esta é a voz de todo o criado,
relativas e transitórias, é o amor. O dualismo Deus-Satanás não que continua a gerar e não pode gerar senão no amor e na dor,
é separação senão no tempo, com fins criadores, desejada para único caminho, seguindo o primeiro impulso semelhante e má-
o bem, por um só senhor de tudo, que não admite inimigos se- ximo exemplo. Se a criação é o resultado do ilimitado sacrifício
não como servos, e destinada a ser sanada no fim. De outro do criador infinito, que se limita na forma para se manifestar na
modo, ou a obra de Deus seria maldosa ou então falida. gênese de outros seres, a criatura não pode continuar a ser se-
não a expressão daquele primeiro ato, repetindo-o ao infinito.
XVI. DEUS E UNIVERSO (II PARTE) Mas é sempre Deus que, na criatura, repete o Seu ato originá-
rio, continuando assim a gênese. A Sua criação não é devida a
A visão do universo nos guia para a visão de Deus, em que um só sacrifício inicial, mas à perene renovação desse sacrifí-
vemos, na criação, o Criador e, no Criador, a criação. Torna-se cio. Uma vez que a criação não se sustenta senão por uma gê-
indiscutível uma estreita relação entre os dois, que devem for- nese contínua, porque manter é criar, também aquele sacrifício
mar uma só unidade, porque, qualquer cisão anularia essa uni- é continuo. Toda forma de existência é devida a esse imolar-se
dade do todo. Deus nos aparece como o aspecto ou polo trans- com um ato de amor. Se essa irradiação suspendesse, por um só
cendência do todo; o universo, como seu aspecto ou polo ima- instante que fosse, o seu fluir, a vida ficaria parada e a criação
nência. Examinemos agora, separadamente, a natureza e a ati- pereceria. Tudo, em todo movimento, é regido pelo centro que,
vidade desses dois polos. Dado que a criação está no limite do irradiando, encontra-se presente e age em todo ponto do criado.
finito, observemos o ponto de partida e o caminho por eles se- É essa fonte que alimenta tudo, e quem dela se separa vai ao
guido para voltar a conjugar-se ao completar-se o processo. encontro da morte. A nossa vida, como a de todo ser, é devida a
Comecemos pelo polo transcendência. essa presença de Deus. Senti-la, comunicar-se com essa fonte, é
Aqui, nos encontramos diante do mistério dessa limitação a vida. Ignorar, negar, repelir essa imanência de Deus, é a mor-
que o infinito se impõe para se exprimir no finito, que o absolu- te. Nenhuma filosofia pode mudar essa realidade biológica.
to se submete para se manifestar no relativo. É uma inversão de Deus é a atmosfera vital do espírito, de onde, depois, tudo nas-
valores de natureza involutiva, é a fragmentação do uno no ce. O universo é um organismo em funcionamento, dirigido na
múltiplo, é o equilíbrio desfeito num movimento sem trégua, sua infinita multiplicidade por esse centro que tudo mantém
um desequilíbrio que procura, através de um incessante vir-a- unitariamente compacto, como a alma rege o corpo humano.
ser, reencontrar o equilíbrio, é o início do transformismo no re- Assim como toda célula do nosso organismo possui uma pe-
lativo, é um fechar-se em outra ordem de leis, não mais aquelas quena consciência sua, dirigida, nutrida e coordenada por um
do absoluto, um fechar-se no limite, mas com a ânsia de sair eu central superior a ela, e só pode viver em função desse eu,
dele, com o instinto de transpor o limite, um fechar-se no ciclo do mesmo modo os seres também estão em contínua comunica-
vida-morte, mas para alcançar a imortalidade, um cingir-se no ção com o eu do universo, Deus.
esforço e na dor, mas para subir até à felicidade. Mas por que o O universo é regido por essa radiação de amor que os seres
absoluto Deus perfeito quis descer assim na imperfeição? Por recebem, que os mantém em vida, os atrai e incita a subir. No
que quem tudo tinha e de nada precisava quis livremente sub- centro há o pensamento, que, vemo-lo mesmo em nossas pe-
meter-se a esse trabalho? Para criar, através dele, uma criatura quenas coisas, é a máxima potência criadora, essa potência que,
semelhante a si e, assim, para amá-la e ser amado, fazendo-a irradiando, cria continuamente. A Lei não é palavra escrita e
participe da sua felicidade. Ao criar, então, há no pensamento morta, mas sim a presença viva do pensamento divino em ação.
de Deus dois conceitos fundamentais, que depois reencontra- É essa irradiação que torna imanente entre nós o Deus trans-
remos em todo o universo, como base da gênese em todos cam- cendente, unindo-nos a Ele. O universo é dirigido, isto é, conti-
pos e níveis: esses conceitos são amor e dor. Eles sintetizam-se nuamente criado, por essa irradiação que resulta de amor e dor
num só: sacrifício. Ora este dar-se em sofrimento não é estéril, e não se pode cumprir senão em sacrifício. Então o ser deve,
mas sim um meio para alcançar uma multiplicação de alegria. analogamente, repetir, pelo princípio da unidade em esquema
O sofrer, então, é logicamente justificado, porque é criador des- único, o próprio ato do Criador, e a gênese deve continuar atra-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 63
vés do sacrifício da criatura transformada em operário de Deus salvar a sua vida, perdê-la-á, e o que perder a sua vida por mi-
e instrumento de criação. Assim, a evolução nos leva a Deus, nha causa, achá-la-á‖ (Mateus, XVI – 24, 25). É assim que o
mas através de provas e lutas, erros e dores; assim, no esforço sacrifício e a paixão devem ser bilaterais, não somente em Cris-
fadigoso se opera o desenvolvimento da consciência. O univer- to, mas também no homem, que repete continuamente o sacrifí-
so transborda de alegria, mas ela há de ser conquistada; há entre cio da Eucaristia não para ser gratuitamente redimido, mas para
o ser e ela o diafragma da dor, que é preciso saber superar. Sa- se lembrar que, por sua vez, deve na dor e paixão abraçar a sua
lutar diafragma, que nos impõe aprender para subir. É assim redenção, repetindo, de sua parte, para com Deus, o que Deus
que a alegria chega escassa, porque escasso é o esforço que se fez para com ele! É evidente que o ciclo não pode fechar-se
realiza para se conquistá-la e, dessa maneira se vai, tristemente, nem as duas correntes reunirem-se se, para completar a corrente
bebendo aos goles o oceano. É assim que o ser, conquanto lento do sacrifício que desce do Criador para criatura, não houver ou-
e preguiçoso, deve responder por conta própria ao sacrifício de tra que suba da criatura para Ele. É sempre o mesmo princípio
Deus. Essa é a atmosfera necessária para toda ascensão. Trata- que deve atuar nas duas direções, as duas metades inversas e
se de romper as formas, o egoísmo que as sustenta; trata-se de complementares do dualismo.
se expandir do finito para o infinito, de superar o limite em que A atividade do homem deve refletir a atividade de Deus,
Deus se fechou, mas de onde Ele nos chama para chegarmos conforme a mesma e única lei pela qual, para ambos, é sempre
até Ele. Dar, não tomar, crescer da pequena vida individual se- o sacrifício que dá e multiplica a vida. O que significaria, de
parada para a grande vida universal. Tudo isto se opera com o outro modo, a encarnação de Cristo na Terra como condição da
sacrifício. Ele é dor, mas é também amor e conquista de felici- redenção, e como poderia cumprir os desígnios do Pai, se tudo
dade. Quem toma e não dá, fecha as portas da vida, limita-a, isto não correspondesse à suprema lei da vida, desejada pelo
perde-a. O dar é sacrifício, mas sacrifício que cria. Assim, a lei Pai? Cristo desceu à Terra para pô-la em atividade, formando
da dor torna-se a lei do amor e da ascensão. É difícil caminhar- assim o anel de conjunção entre o Pai e o homem. A descida de
se por essa estrada; os primeiros passos são penosos; difícil é Cristo se deu nos planos densos da matéria, no limite dos senti-
compreender esse íntimo mecanismo da vida. E, no entanto, é dos; é um entregar-se em dor para viver em contato com seres
assim: somente o sacrifício abre as portas da vida, os caminhos involuídos, entrando na mesma vida, submetendo-se às suas
de Deus, de onde flui toda a riqueza. Devemos, para obter, pos- leis ferozes até ao calvário, e isto para elevá-los, mostrando que
suir a força de renunciar, porém renunciar não para nos sufocar existe uma lei superior à da luta, porque existe uma outra vida
e nos destruir, mas para superar o menos, porque podemos além que não é a do corpo. A descida de Cristo à Terra está conexa
alcançar o mais. Eis o valor da renúncia: conquistar no alto. Eis ao ato da criação. Ele sacrificou-se para dar a vida; a cruz tor-
o significado da inversão evangélica dos valores humanos. A nou-se o centro de atração da humanidade, como o Pai o é do
dor não se elimina fugindo-se dela loucamente, sem compreen- universo por Ele criado, segundo o mesmo princípio. Cristo é a
dê-la, como faz o mundo de hoje, mas domesticando-a, utili- tangível expressão da imanência de Deus no criado, da Sua in-
zando-a como um instrumento de ascensão, aprendendo a lição tervenção e presença no desenvolvimento da vida. Assim, do
que a dor tem por qualidade ensinar-nos. Estas são as leis da extremo transcendente do universo ao seu outro extremo, na
vida, nem se pode subir de outro modo a escada da evolução. forma, atua a mesma lei, sempre e em qualquer parte, demons-
Não se pode criar senão com o sacrifício. trando a realidade do monismo do todo. O homem, para subir,
Reencontramos continuamente, nas religiões, esse princípio deve romper (como foi rompido o pão da Eucaristia para ser
do sacrifício nas relações entre o homem e Deus, de ambas as dado a outros) o seu egoísmo em favor do próximo: ―Ama o teu
partes. Sacrifício que o homem faz para Deus e que Deus faz próximo como a ti mesmo‖. Não há senão essa dura via de re-
pelo homem. Esse princípio, lentamente, evolui nas religiões, núncia de si mesmo para subir. Somente assim Cristo parte o
até tornar-se base do conceito da redenção, que significa sacri- pão, dizendo: ―Este é o meu corpo partido para vós‖. É a gêne-
fício de Deus para o retorno da criatura a Ele. E eis que, de um se. O sacrifício do Gólgota nos revela a lei da criação, o princí-
golpe, vejo esta visão lampejar diante de mim o significado pio do universo. É a gênese que se opera numa atmosfera de
profundo da Eucaristia, instituída por Cristo. Vejo a cena da úl- destruição, mas que é destruição somente da forma, condição
tima ceia: ―Accepit panem in sanctas manus suas et elevatis necessária à renovação de um universo em que Deus, no seu
oculis in coelum, benedixit, panem in fregit, deditque discipulis aspecto imanente, opera uma criação contínua.
suis dicens: Accepite et manducate ex hoc ombes: hoc est enim Dissemos acima que o todo resulta constituído de dois po-
corpus meum‖9. Eis que o Cristo parte o pão, ―fregit‖, enten- los: o extremo-transcendência e o extremo-imanência. Deus é o
dendo que com ―hoc est enim corpus meum‖, Ele partia a sua universo. Não podemos separá-los sem quebrar o todo-uno num
vida e a dava aos homens, como dava aquele pão aos seus dis- dualismo insanável. Agora, vimos que os dois polos não são es-
cípulos. E é com este sinal, o partir do pão, que Cristo se faz re- táticos e inertes, postos um diante do outro, mas sim que, dado
conhecer pelos discípulos de Emaús, como por um gesto seu o princípio do amor, eles se movem um para o outro, isto é,
próprio. E qual pode ser a significação desse ato, senão a de nos tendem para o amplexo: transcendência para imanência e ima-
querer exprimir e repetir a gênese através do sacrifício, o gesto nência para transcendência. Então, não vemos somente Deus
de Deus do qual nasceu a criação? Naquele tempo, o mundo projetar-se na sua manifestação-universo, penetrando-a intei-
espiritual caía, mas surge então novo impulso criador, que não ramente, mas vemos também o processo inverso e complemen-
podia ser dado senão através da dor. Aí está a necessidade da tar, segundo a conhecida lei do dualismo constitutivo de toda
paixão. E assim como Cristo expressa na Eucaristia o princípio unidade e de todo circuito que a determina. Até aqui, temos ob-
genético do ser, vivido por Ele em Sua dor, e aquele sacrifício servado, sobretudo, aquela metade do circuito que forma o todo
eucarístico ainda se repete agora, continuamente, na Terra, o e vai do transcendente, ou Deus, ou causa, ou Pai, para o ima-
próprio Cristo também, no Evangelho, indicou ao homem que nente, o universo, o efeito, o filho. Observamos agora o movi-
quer subir o caminho criador da ascensão, conforme o mesmo mento oposto, que vai do imanente ao transcendente, por onde
princípio por Ele vivido: ―Se alguém quer vir após mim, negue- o universo volta a Deus. Somente assim, o sistema podia equi-
se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois o que quiser librar-se e o circuito fechar-se, formando a unidade do todo. Is-
to nos diz que Deus não criou um universo estranho a Ele, mas
9
―Tomou um pão em suas santas mãos e, levantando os olhos para o um universo no qual Ele se transfere e vive, exprimindo a si
céu, deu graças, abençoou-o, partiu-o e disse aos seus discípulos: To- mesmo. Sem universo, Deus era perfeito, mas era sem manifes-
mai-o e comei dele todos – isto é o meu corpo‖. tação e também sem amor, porque, sozinho, conquanto perfeito,
64 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
não se pode amar. E tudo isto nos mostra ainda que o universo e incompletas. Assim, a dor pode nos aparecer como uma con-
não pode viver sem Deus e nos explica aquele seu grande mo- denação, e não como um instrumento de felicidade, nos levando
vimento que é a evolução, isto é, que o escopo de tudo o que a crer que o mal é um inimigo do bem e Satanás é um anti-
existe é fechar o circuito e retornar a Deus, de quem o ser des- Deus. Mas quem possui a visão completa encontra neste mo-
cende e foi gerado. Os dois movimentos: criação, que significa nismo tudo lógico e perfeito. No seu conjunto, o todo permane-
involução (primeira metade do circuito) e evolução (segunda ce, também na sua expressão de imanência, idêntico à sua subs-
metade do circuito) se condicionam e se completam um no ou- tância transcendente. Porém, se olharmos profundamente, no
tro. Nenhum dos dois é concebível e pode existir desacompa- absoluto, ele não nos aparecerá mais cindido, e sim na sua imu-
nhado. Eles são estreitados, presos um ao outro, como dois mo- tável unidade, o que constitui uma visão ainda mais avançada
vimentos de um mesmo único processo, num sistema absoluta- de Deus, que aqui não é possível expor.
mente unitário. Somente assim se salva a unidade do todo. Eis o Tornemos, pois, para o relativo da nossa fase e observemos
significado do monismo Deus-universo. com olhar relativo, especialmente do lado humano, a segunda
Observamos o completar-se de um no outro, dos dois inver- metade do movimento do todo, a parte evolutiva. Aqui, há a re-
sos e inseparáveis movimentos. Em um primeiro momento, o absorção em Deus da Sua irradiação. Vimos porque toda cria-
Deus transcendente deu-se, através do seu sacrifício, na veste ção, mesmo humana, não pode ser separada da dor e fadiga.
exterior da forma, pulverizando a sua unidade no multíplice e o Assim é para a mãe como para o gênio, para Cristo como para o
seu absoluto no relativo; deu-se pelo amor que quer criar uma homem. Mas que maravilha se olharmos o produto dessa dor e
nova criatura, para amar e ser por ela amado, transmudando-se fadiga! O mundo não pode progredir senão por esse caminho.
da transcendência na imanência. Em um segundo momento, o Esse é o esquema único que reencontramos em nossas pequenas
processo se completa, continuando na sua inversão, que pode conquistas quotidianas, assim como na ascensão do todo para
reequilibrá-lo e fechá-lo. Então a forma, ou criatura, expressão Deus. Mas, junto à força negativa da dor constitutiva do es-
do transcendente no imanente, o segundo modo de ser do todo, quema da evolução, há ainda uma outra: a força positiva do
deve cumprir o mesmo sacrifício, isto é, a mesma dação de amor. Se a primeira repele, a segunda atrai. E a conquista está
amor, que, tornando a subir em direção inversa, restitui ao Cri- além da nossa fadiga, de modo que a evolução necessariamente
ador, por amor, o que Ele por amor deu, porque amor é o prin- implica que do encontro e casamento destas duas forças nasce
cípio unitário do todo, que rege ambas as fases, a de ida e a de um contínuo ato de sobrepujamento de limites. Eis então o ter-
retorno, descida e subida, involução e evolução, que formam as ceiro termo: a criação. Daí a luta pela vida, o princípio da sele-
duas posições opostas do mesmo único respiro do todo. É nesse ção, a ascensão biológica ao longo de planos evolutivos. Se, em
segundo momento que o aspecto imanente deve voltar trans- toda parte, encontramos em formas diversas, segundo o grau do
cendente; que o universo descido de Deus, para Ele torna a su- ser, a luta e a fadiga do ato de superar, encontramos também o
bir, evoluindo. É evidente a correspondência das posições, mo- amor, seja ele invertido ao negativo como ódio, nos planos in-
vimentos e atos inversos. O sacrifício do Criador, dando-se na voluídos, seja elevado ao positivo como sempre maior amor,
descida, é compensado, para se equilibrar e se completar, por nos planos evoluídos. Força que é sempre amor, o princípio que
um paralelo sacrifício da criatura, e é da Lei que este se deva une e prende um ser ao outro, seja no ódio, numa ligação que
dar na ascensão. O mesmo princípio deve repetir-se em posição mata, seja no amor, num amplexo que gera. Ninguém pode vi-
invertida, harmonizando assim a mais férrea e exata justiça, que ver só no todo, mas somente ligado ao outro, do extremo invo-
está na ordem da Lei, com o princípio próprio do amor, de doa- lutivo, inferno, ao extremo evolutivo, paraíso, seja por vínculos
ção gratuita. O ser, para retornar a Deus, deve restituir-lhe o de ódio, feitos de dor e destruição, seja por vínculos de amor,
Seu sacrifício, a que deve sua vida, e somente assim pode al- feitos de alegria e criação. Na unidade da vida, nenhum ser po-
cançá-Lo para reencontrá-la. Dessa maneira, a destruição torna- de ficar indiferente ao outro, devendo ligar-se ao longo da via
se um meio de realização; da morte renasce a vida. Torna-se, positiva, por atração, ou ao longo da via negativa, por repulsão.
pois, lógico o absurdo que a dor crie e que a conquista se alcan- Amor é a grande lei universal, é o ímpeto animador do todo.
ce rompendo o próprio egoísmo centralizador num altruísmo Não se trata do amor a si mesmo, que pode ser culpa. Esta não
que, dispersando o eu, parece antivital. É assim porque não fo- está no amor, mas na involução do amor, na sua limitação ego-
mos criados para viver sós, cada um por si, mas sim uns para os ísta, porque o egoísmo representa verdadeiramente o limite em
outros, porque o escopo é unificar-se e, somente quando todo o que o eu se fecha na descida involutiva. A virtude não está na
universo voltar a ser uno, ele terá reencontrado Deus, o efeito supressão do amor, mas na sua elevação, na sua expansão altru-
terá voltado à causa, fechando o circuito. Somente então, Deus ísta, pois que o altruísmo representa a abertura do eu na sua as-
se sentirá todo realizado com o Seu universo, e a criação, hoje censão para Deus. Portanto este divino impulso unitário do uni-
em marcha, estará completa. verso nunca deve ser destruído, mas sim apenas dirigido para a
Com esta visão de conjunto, tudo se compreende e justifica. sua elevada meta, que é a reunificação, fazendo que ele se liber-
Na fase involutiva, é a dor de um Deus que opera a gênese; na te das suas formas inferiores, egoístas, para alcançar as superio-
fase evolutiva, é a dor do ser que a continua e conclui. É assim res, altruístas. A culpa para o homem está na animalidade do
que a dor do homem é criadora. O sacrifício de todas as criatu- amor, e o progresso está na sua espiritualização. Quanto mais o
ras, em todo o universo, deve compensar e equilibrar o sacrifí- amor é involuído, tanto mais está longe da unidade; quanto
cio do Criador. Mas a esse seu sacrifício elas devem a existên- mais é fragmento disperso encarcerado no egoísmo, tanto mais
cia, dom supremo de amor. Para que ele seja completo no todo, se distancia de Deus e da alegria. No plano animal, o amor, aí
porque recíproco, é fatal que o sacrifício seja restituído por somente pequena laceração de egoísmo, não gera senão os cor-
amor da criatura ao Criador, é necessário que ela rompa a sua pos, porém, mais no alto, ele possui funções criadoras imensas.
forma em gênese e se dê dolorosamente em amor, como Ele se Assim se explica como, dado o egoísmo separatista humano e a
dividiu e sacrificou, dando-se em amor para gerá-la. Eis por relativa dominante psicologia do ―do ut des‖, seja necessário
que evolução é dor. É duro, mas o resultado compensa tudo. À um prazer imediato para induzir o ser, ainda inconsciente, a um
dor do ser estão confiadas funções construtivas; é nessa fadiga início de unificação para a gênese física, um gozo que lhe pa-
da ascensão que ele se torna colaborador de Deus. O sistema é gue logo o sacrifício de dar parte vital de si mesmo no ato se-
equilibrado, e a lei de justiça aí reina soberana. A nós, situados xual, porque, nesse nível, o egoísmo prevalecente nada faria
em um ponto particular do ciclo, ele não oferece senão uma vi- sem uma compensação. Mas também aqui há sacrifícios pesso-
são parcial. Julgamos, portanto, conforme perspectivas relativas ais, pois, ainda que acredite tomar, o ser dá. O pai dá à mãe, a
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 65
mãe dá aos filhos. Sacrifício que evolui e se completa na edu- além do qual não há compreensão e harmonia, mas somente es-
cação deles, dando-lhes alimento e defesa, instrução e elevação tridor e luta. Quanto mais se sobe, tanto mais o egoísmo é
moral. Desta forma, a família, com os seus deveres, representa abrangente e unificador. O eu involuído ignora o vizinho, é de-
um amor mais evoluído que o do animal e também uma criação sorganizado e belicoso, desagregante e destruidor. Elevando-se,
muito mais profunda, que alcança o espírito e compõe uma esse egoísmo rompe-se, pouco a pouco, de círculo em círculo, e
primeira célula para a unificação. Assim, de plano em plano, o isto é dor, amor e conquista. Sobe, sobe, e em Deus o egoísmo
amor guia o ser para a unidade. Quanto mais o amor é involuí- alcança a sua infinita dilatação, que a tudo e a todos abraça,
do, tanto mais é isolado e tanto menos é criador; quanto mais coincidindo assim com o absoluto altruísmo. Em Deus, egoís-
ele é evoluído, tanto mais criaturas ele abraça, tanto maior é a mo e altruísmo se fundem, sendo uma coisa só. O universo, su-
sua potência criadora. Esse é o caminho que nos conduz sempre bindo para Deus, vai de um egoísmo separatista a um egoísmo
mais para perto de Deus. É grave erro combater para aniquilar sempre mais unitário e altruísta, para reencontrar assim, em
as formas involuídas de amor; todo amor é força motriz indes- Deus, a sua unidade. Dessa forma, conforme o princípio das
trutível da evolução. Uma virtude assim entendida, em forma unidades coletivas, desenvolvido em A Grande Síntese, os seres
destrutiva, representa a negação, o mal. Jamais destruir por des- se unem em organismos sempre mais complexos e completos;
truir, sem primeiro haver edificado. Caso contrário, geram-se as do núcleo, que rege no átomo os seus elétrons, aos agregados
piores contorções desse insuprimível impulso da vida. O amor de miríades de átomos que formam a matéria, ao núcleo do pro-
que desce em vez de subir, nos distancia ao invés de nos con- toplasma, à sociedade de células, ao organismo animal, huma-
duzir para a alegria, porque, então, o egoísmo o inverte, levan- no, à família, à classe social, à nação ou povo, à humanidade, à
do-o para o ódio e a dor. Quanto mais se reduz o amor em pra- organização progressiva de todas as humanidades do universo.
zer, tanto mais ele se torna traição; quanto mais lhe tiramos o Tudo, da química atômica às estruturas orgânicas, dos sistemas
elemento sacrifício, tanto menos ele é criador de vida para os solares e galácticos às coletividades animais e humanas, tudo
outros e, portanto, de felicidade. Por essa razão também, não se nos fala de associação. Nela, o egoísmo se expande em amor
deve conceber a virtude como ódio a si mesmo, mas sim como para o semelhante, porque nele vê a si mesmo. Neste sentido, a
amor pelos outros num campo sempre mais vasto, pois que o hodierna psicologia coletiva de classe já é um progresso, por-
amor nunca deve ser invertido em ódio. Essas são as leis da vi- que é uma tentativa de nova unificação, antes não sentida.
da. O amor que somente quer tomar sem dar, não pode gerar Quando o homem chegar a sentir em toda criatura o seu seme-
alegria. O universo é sabiamente equilibrado, e a vida se dá em lhante, a ponto de aí ver a si mesmo, como fazia São Francisco,
alegria a quem se lhe dá em sacrifício, mas se nega a quem então ele terá compreendido e sentido Deus. Assim, o egoísmo
egoisticamente nega dar-se. Muitas vezes, o amor é desviado torna-se amor, e, no egocentrismo absoluto de Deus, encontra-
para falsos objetivos pelo homem. Amar a criatura antes que o mos o absoluto altruísmo e o absoluto amor. Nele, estão com-
Criador, as coisas mais que o espírito, os fragmentos em vez do preendidos todos os seres. Por isto nenhuma criatura pode viver
todo, agarrar-se avaramente à posse, fechando em seu benefício senão em Deus. Para ela, só existe um mal e prejuízo: involu-
o fluir dos bens para todos, amontoar e adorar o tesouro, amar ção, que significa distanciar-se de Deus, e só existe um bem: a
assim, em forma contorcida e invertida, não pode gerar alegria, evolução, que significa aproximar-se de Deus.
mas somente dor. Por isto a vida nos oferece ilusões e traições. O homem que, na sua ignorância, acredita que o rompimen-
A verdadeira realidade da vida é outra. Tudo nasce de uma to da forma seja perda de vida, engana-se. Essa destruição não é
forma que se rompe. O rebento se abre na flor perfumada, que morte, mas sim condição de vida. Essa é a técnica da evolução,
perece gerando o fruto saboroso, que morre dando a semente pois que, sem o fim da vida velha, a nova não pode nascer. O
que encerra. E esta cai na terra e brota novamente, rompendo a egoísmo que avaramente se agarra à forma para conservar-se,
sua forma de semente, em uma nova vergôntea. Toda forma se não vai para a vida, mas procura deter o seu fluir. O homem
dá e, ao se dar, caminha para a morte. No entanto, se há morte procede assim porque ignora a infinita, inexaurível, riqueza da
na vida, também há vida na morte. Assim, a beleza da virgem fonte divina. A destruição da forma não é perda, e sim liberta-
floresce na maternidade, finalidade da beleza, que, deste modo, ção. O homem não sabe que é eterno, indestrutível centelha de
deve romper-se para gerar seres novos. Na sociedade, os me- Deus, destinado a subir sempre mais para Ele em alegria e po-
lhores indivíduos são perseguidos ou abandonados, porém eles tência. A forma não é a vida, mas somente o invólucro que,
devem dar-se, criando na solidão e no tormento. O homem ma- embora exprima, também aprisiona a vida. Evoluindo, não te-
ta os seus profetas, para se apressar depois a exaltá-los e colher, mos mais necessidade do corpo para nos exprimir, nem dos
como preciosas relíquias, o que não conseguiu destruir. Então, seus limitados sentidos, feitos para um meio denso. O porvir es-
o que resta se torna sagrado pelo sacrifício do grande que se tá no ato de superar a forma, o que significa expansão de vida.
imolou. Este é venerado pelo mesmo involuído que não pode É justamente através da sua espiritualização que ela adquire um
deixar de sentir nele um pioneiro da evolução de todos. Tam- dinamismo sempre mais intenso, uma agilidade e uma potência,
bém os involuídos, agressores dos mestres, são necessários para um conhecimento e uma liberdade antes ignorados. Cristo, com
que estes possam criar, sacrificando-se. Assim, toda civilização a Sua ressurreição, veio ensinar-nos essa indestrutibilidade da
desabrocha, floresce, frutifica e, depois, cai, deixando sobre o vida. Assim, o homem que se sacrifica pelo bem dos outros não
terreno humano as suas sementes. Desse modo, através do amor se danifica ou se mata, mas conquista uma vida maior. O altru-
e da dor, desenvolve-se a grande sinfonia criadora do universo. ísmo absoluto, destruidor do eu, não compensado por uma cor-
O romper da forma, expresso na Eucaristia pelo partir do respondente conquista, não existe no universo. O que é antivital
pão, representa o doloroso rompimento do eu e a reabsorção do é absurdo no seu sistema. O sacrifício é admitido na economia
egoísmo separatista no altruísmo ascendente para a universal da vida porque, quando se deve verificar, ele representa uma
unificação em Deus; significa a reconstituição em unidade, por real vantagem, uma conquista, uma ascensão. O homem atual
parte de um universo egocêntrico em Deus. E, de fato, toda cri- está fechado num utilitarismo restrito e imediato; não compre-
atura, no seu egoísmo, repete em escala menor, em toda altura, ende esses outros utilitarismos amplos e de realização remota.
o mesmo esquema. Mas egoísmo e altruísmo não são mais que Muitos dos seus erros e, portanto, dores são devidos à sua igno-
posições diversas, uma questão de amplitude. Também Deus é rância. É inerente ao seu estado involuído não saber viver senão
egoísta no Seu universo. Mas o Seu egoísmo é tão altruistica- as suas pequenas verdades parciais, de superfície. Todavia, en-
mente amplo, que compreende todas as criaturas. O egoísmo quanto não houver amadurecido para uma verdade mais ampla
destas, ao contrário, não compreende senão o seu eu isolado, e completa, a verdade precedente, inferior, é sempre útil para
66 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
percorrer o precedente trecho de evolução. Percorrido este, a arrisca fazer naufragar o mundo que queria elevar, e isto jus-
velha verdade cai por si só e a nova desponta na compreensão tamente por essa fundamental direção invertida. Como se vê,
humana. O mundo avança desse modo. Hoje, o homem crê en- as leis do universo são tão onipresentes, que penetram a nossa
riquecer agindo egoisticamente, mas, ao contrário, ele empo- tangível realidade quotidiana. Os meios de que o homem dis-
brece, porque se fecha no egoísmo, como em uma gaiola de fer- põe hoje, o seu domínio sobre a natureza, são infinitamente
ro que o sufoca, impedindo sua expansão e isolando-o das fon- maiores do que os dos velhos tempos. No entanto jamais ele
tes da vida. Amanhã, ele compreenderá mais e entenderá o mais foi tão inquieto como é hoje; a celeridade para poder satisfa-
amplo utilitarismo do altruísmo. zer-se não faz senão com que aumente essa inquietude. O ho-
O homem, fundindo-se no próximo, amando-o como re- mem sente que, do outro lado das suas conquistas, há para ele
comenda o Evangelho, realiza o processo da reunificação, que o vácuo, falta a meta para onde dirigi-las, e percebe que a dire-
reconduz o ser a Deus. Enquanto o movimento centrífugo, que ção atual o leva para a destruição. Aquelas conquistas não são
distancia o ser de Deus e tende a reforçar o egoísmo, faz do eu positivas, mas negativas; avançam em descida, não em ascen-
um centro independente em torno ao qual ele tende a atrair e são; levam para a separação, e não para a unificação. Com a
ligar todas criaturas e coisas que possa, levantando-se contra nova hodierna potência construtiva alcançada pela ciência, tudo
Deus, o movimento centrípeto, que conduz o ser a Deus, tende se despedaça nas mãos do homem. Ele, ao contrário, tem fome
a romper o egoísmo, reconhecendo cada vez mais Deus como de unidade, sempre mais. A vida quer ir para sempre maiores
centro universal e fazendo convergir para Ele tudo e toda cria- unidades. Essa é a ideia que fascina as almas, embora oneradas
tura. O egoísmo representa a rebelião de Satanás, o princípio pela nostalgia, de poderem se realizar conforme os planos do
separatista e antiunitário do anti-Deus. Gerada pela separação universo. Mas somos divergentes em tudo; não sabemos nos
do Uno, que se deu em sacrifício por ela, a criatura, em vez de exprimir senão em forma de luta; procuramos dominar, impon-
reencontrar a plenitude dada pela unidade, a Ele retornando do-nos em vez de compreender e conhecer; a ciência tende a
em sacrifício pelo mesmo amor que a gerou, procura reencon- pulverizar-se na especialização e o conhecimento se torna ins-
trá-la naquele reflexo da unidade que tem em si e, para não trumento de guerra. A conquista, ao contrário, não se pode
querer enfrentar a fadiga de tornar a subir, detém a vida na exercer senão por vias convergentes para a unidade, em todo
limitação, pretendendo conseguir, com um só fragmento, re- campo, unidade política, religiosa, filosófica, científica, social.
constituir o todo. É assim que nasce o mundo luciferino, a pa- A grande lei do progresso é: unificar-se. A vida não pode
ródia, uma unidade partida, um mundo às avessas como todo ascender senão por essa via. Um potente chamado para a uni-
fragmento, negativo, contraditório, inquinado nas próprias ra- dade grita em nós. É Deus uno que nos impele a fraternizarmo-
ízes por essa subversão central, pelo que o amor se transforma nos e compreendermo-nos. É a vida una a nos dizer que somos,
em ódio; o sacrifício, em prazer efêmero e traidor; a constru- cada um, parte de um mesmo organismo e que o separatismo
ção, em destruição; a ascensão para a unidade, em descida pa- egoísta o mata. É o princípio uno do todo querendo que a célu-
ra uma sempre maior separação. Essa é a mecânica do siste- la-indivíduo funcione na humanidade e esta no universo, har-
ma, o que explica como tantos que se aliam no mal acabam monicamente. Tudo isto clama da profundidade, fala de dentro
em guerra entre si e por que as suas construções são feitas pa- de nós; a todo passo, a realidade inimiga nos adverte que esta-
ra ruir, pois quem opera nessa direção está de tal modo embe- mos no falso caminho, mas o mundo continua impávido. Então
bido pela própria atmosfera de negação, que não pode cons- o poder de Deus nos mandará golpes tais, que quem sobreviver
truir senão às avessas, isto é, destruir tudo e, no fim, a si será obrigado a render-se à sabedoria, única salvação. Pois que
mesmo. Assim o egoísmo, que parecia a mais segura das con- o amor é lei suprema e deve triunfar custe o que custar. O mal,
quistas, fica sendo, ao contrário, a via da perda, e o altruísmo, e quem o segue, é destinado à autodestruição. De fato, tal é o
em que aquele egoísmo se rompe e que parecia uma perda, desespero de quem o personifica, que ele muitas vezes tende a
torna-se uma conquista. Tal é a estrutura do nosso universo. se matar, coisa que não acontece em quem, mesmo sofrendo
Essas realidades estão presentes em qualquer parte, esses igualmente, representa o bem. Quem compreendeu o funcio-
princípios funcionam em qualquer lugar. Em nosso mundo in- namento do universo sabe que Deus não pode ser vencido e
voluído, portanto ignaro e inconsciente dessas verdades, pre- que ao bem cabe o triunfo final. E Deus sempre nos incitará a
domina o segundo aspecto da verdade, luciferiano, invertido, alcançar a nossa felicidade na harmonia. O método do separa-
consequentemente prevalecem nele a cegueira, a ilusão, a trai- tismo é antivital, obstrui o caminho da fonte de Deus, portanto
ção em tudo. Não há senão uma salvação, seja para o indiví- não se pode reger senão por desgaste do ser, que fica limitado
duo, seja para a sociedade: inverter a direção, reencontrar o apenas às suas reservas e cedo ou tarde deve exauri-las, não
caminho da ascensão, desfazer a ilusão que nos faz parecer podendo existir senão por um sempre maior esforço seu, ten-
utópico o Evangelho, ver e aplicar a sua suprema sabedoria. dendo à agonia. Quem segue esse método, se não inverter o
Quem compreende tem a sensação clara que ao mundo de hoje caminho, vem a ser destruído por esgotamento. Suicídio ou co-
ficou cortada a via das fontes da vida. Ele se faz sempre mais lapso, esse é, para quem não quer emendar-se, o fim do mal no
desapiedadamente egoísta e ávido, todavia está sempre menos sistema do universo. Assim, vemos que, no sistema desejado
satisfeito de tudo; para se fazer mais rico, ele se torna sempre por Deus, já está assegurada a vitória final do bem. Tudo, pois,
mais pobre; não aspira senão a possuir, no entanto isto se torna no fundo, é perfeito, mesmo o mundo de hoje, que não pode
sempre maior mal; quer gozar a todo custo e, com isto, não impedir absolutamente a Deus de alcançar os seus fins.
consegue senão ligar-se a um tormento sempre maior. No en- O indivíduo é livre para buscar a plenitude do ser em Deus
tanto esse tormento é a única salvação do mundo, porque o ou encontrar a anulação na direção oposta. O fim do mal, por
obrigará a mudar de rumo, em direção oposta. O instinto de sua natureza, como negação de tudo, está no nada, isto, porém,
expansão, que é próprio da vida, nunca poderá saciar-se assim, não significa que a substância se possa anular, mas sim que ele,
invertido no domínio material, que, ao contrário, é uma servi- por esta via, involuindo, despe-se da vida em favor de quem,
dão. Aquela necessidade não pode ser satisfeita senão no espí- seguindo para o outro lado, dela se enriquece sempre mais. O
rito, indo para Deus, e não para as coisas. Assim, por pouco, ser é livre de seguir o mal, mas, seguindo essa via, é sempre
para nos enriquecermos, matamo-nos em grande escala; os im- mais despojado em prol do bem. Dessa maneira, o mal é desti-
perialismos, que deveriam conquistar, resolvem-se em guerras nado, pela sua própria negação e, portanto, falência, a alimentar
de destruição para todos, especialmente para os chefes que as o bem e, assim, a desenvolvê-lo. Os malvados, ou se redimem,
quiseram. E também a nossa ciência, maravilhosa conquista, subindo e voltando para Deus, ou, precipitando-se em uma dor
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 67
crescente e sempre mais desesperada, se anulam, de acordo nestes, porém, é que se podem operar amplas sínteses, enquan-
com a liberdade e a justiça. Assim, o dualismo, temporânea ci- to o campo da ciência é muito mais limitado. Faltam-lhe ele-
são com escopo criador, será reabsorvido na unidade através da mentos de caráter espiritual e moral, que ela ignora, enquanto a
expansão da vida na ascensão, e da sua anulação no sentido intuída unidade do universo nos faz presumir a existência de
oposto, em favor daquela. Uma dor e punição eternas, num relações mesmo entre as coisas mais distantes, o que tende a
eterno reino de Satanás, seria a vitória deste e a derrota de fazer da ciência, filosofia, religião, moral, sociologia etc. uma
Deus. A dor é a escola que provê a salvação. Mas, se a criatura, só coisa. Justamente por este princípio de unidade, o mundo
livre como é, não quiser senão o mal, este, através de uma in- observado pela ciência, conquanto limitado, não deve, no âm-
tensificação da autodemolição, a levará à perda da liberdade e bito dela, contradizer a mencionada visão universal, pelo con-
consciência, numa catarse invertida ou dissolução, cujos produ- trário, por estar neste seu nível, deveria confirmá-la. Agora ob-
tos, transformados de negativos em positivos, reentram no bem. servaremos o que diz a ciência, para ver se ela se dirige para
De tudo isto, o universo atual não nos pode mostrar senão a aquela síntese ou dela diverge, e quais elementos indicadores
tendência. Mas toda tendência é destinada a se resolver em rea- ela pode fornecer para se dirigir naquela direção.
lização. Este é o impulso que rege a vida e ele deverá alcançar a A ciência, com o seu método objetivo-indutivo, apresenta
meta que a sua trajetória nos indica. uma psicologia de prudência e de desconfiança, caminhando
Por outro lado, quem evolui se liberta sempre mais da for- sem poder ver os grandes planos do ser, sobre um terreno infi-
ma, por graus, espiritualizando-se. Liberta-se do relativo, do el, que continuamente experimenta e controla. Caminha, as-
limite, sempre mais achegando-se a Deus. O ser, depois de ha- sim, por tentativas e incertezas, lentamente, por hipóteses e te-
ver percorrido as fases do nosso universo – matéria, energia, orias, mas, em compensação, os seus resultados são positivos,
espírito – ainda muito mais terá de caminhar. A anulação da controlados, aplicáveis por todos. As últimas verdades, que a
forma por reabsorção em Deus será o fim do universo atual, intuição percebe em clarões de luz, fogem e constituem uma
Sua manifestação. O respiro de dois tempos, involução e evolu- meta desconhecida e distante. Mas, conquanto ignorada, é des-
ção, separação e unificação, estará completo, o circuito será fe- ta meta que a ciência tenta avizinhar-se através da descoberta e
chado, o ciclo dualístico estará concluído em unidade. Isto não da coordenação de verdades parciais, por aproximações suces-
impede que Deus possa iniciar, da imobilidade, outros movi- sivas. Tal é hoje a forma assumida pelo pensamento humano
mentos em dimensões para nós inconcebíveis, ou que já os te- no seu progredir. Forma relativa. Evite-se, pois, tomar como
nha iniciado. Então, não nos encontraremos somente diante da definitivos e como base de orientação filosófica os últimos re-
atual criação limitada, mas de uma pluralidade de criações de sultados, que são e foram sempre superados aos poucos. É a
quem sabe quantos e quais tipos, por parte de um Deus absolu- última verdade alcançada que modela o pensamento coletivo,
tamente transcendente, que, mesmo fundindo-se em sua mani- porque mais o atinge. A Antiguidade foi dominada pela con-
festação total, permanece sempre acima, distinto e independen- cepção platônica e aristotélica, em seguida, pela agostiniana e
te de cada uma delas. Neste sentido, aquela imanência que hoje tomística. Depois, a ciência objetiva e experimental suplantou
verificamos em nosso universo desapareceria como fato aciden- a especulação abstrata. Mas, logo após, também a física clássi-
tal, na relatividade e transição de toda a criação, reduzida assim ca de Laplace, Galileu, Kepler e Newton, com as concepções
a um dos tantos momentos da manifestação da absoluta e imó- mecanicistas do mundo, foram superadas pela física estatística
vel transcendência de Deus. e quântica (Planck) de hoje. E, assim, esta também será supe-
Neste ponto a nossa mente se perde; a vertiginosa visão de- rada. Houve tempo em que se acreditava apenas na lógica e se
saparece e a alma se prostra diante de Deus, em prece, amando desprezava a experimentação como um contato contaminador
e adorando. do pensamento puro. Todavia, conquanto perfeita em si mes-
ma, somente a lógica não pode superar a função de coligação.
XVII. AS ÚLTIMAS ORIENTAÇÕES DA CIÊNCIA Ela é uma corrente que, se não está apoiada num ponto sólido,
não sustenta nada. Assim, também na forma mais excelsa, a
Os conceitos acima expostos foram obtidos por visão, isto é, matemática. Caminhando dessa forma, a ciência materialista
usando a psicologia da intuição, que, como dissemos, pode superou, desmaterializando a matéria, todo o seu materialismo.
constituir para alguns indivíduos sensibilizados por evolução um Ela mesma, que é tão racionalmente positiva, não pode pro-
verdadeiro método de investigação. A forma mental que fala gredir senão confiando no método irracional da intuição, isto é,
nestes últimos dois capítulos é o ápice da curva da onda na osci- criando além de toda lógica e método, ao encontrar relações
lação da personalidade, fenômeno que já observamos. Seguindo impensadas entre os fatos e conceitos mais distantes. É na co-
a ascensão da onda na referida oscilação, obtivemos progressi- ligação entre experiências e na visão do seu significado, que
vas visões da verdade. Iniciamos este volume partindo do ponto relampeja a intuição da lei que as regula. A análise racional
mais baixo da depressão da onda, expondo assim uma verdade não basta para descobrir estas relações. E é nisto que, muitas
concebida com uma psicologia de involuído, que permanece na vezes, consiste a descoberta. Desponta então a hipótese, como
superfície e, não vendo a mais profunda realidade das coisas, a tentáculo lançado para sondar o mistério. Depois ela se desen-
nega. Daí, então, prosseguimos para alcançar outra verdade. volve em teoria e, somente então, começa a trabalhar a psico-
Propomo-nos agora examinar os conceitos aqui menciona- logia racional da ciência, que controla com a observação e a
dos, não com a psicologia da intuição com que foram alcança- experimentação para validar ou condenar. Se os fatos dão ra-
dos, mas com a psicologia racional usada hoje pela ciência. zão à nova teoria, então a velha rui e é abandonada. E assim,
Utilizando agora o intelecto normal, encontro-me no meio do lentamente, dá-se a escalada para a verdade.
caminho entre os dois extremos mencionados na oscilação da A força do positivismo está em manter-se em contato com
onda da personalidade e, neste nível, devo exercer a minha ati- a realidade, tornando-se observador exato. Pede-se a resposta
vidade com a psicologia correspondente. Ora, devido justa- aos nossos quesitos, não à lógica, mas à experimentação. Per-
mente ao plano evolutivo dessa psicologia, a ciência está ainda gunta-se tenazmente qual é o pensamento diretor que, escondi-
distanciada de uma síntese universal, possível somente em do, rege os fenômenos, dado que não se pode deixar de admi-
mais altos níveis mentais. Todavia será muito útil observar os tir, em toda parte, um princípio diretor e ordenador. Nem a ci-
resultados obtidos por ela, porquanto se baseiam em dados ex- ência pode interrogar Deus, uma vez que lhe são desconheci-
perimentais controlados, o que lhes fornece uma segurança que dos os contatos do místico. Não lhe resta senão segurar aquele
o intelecto racional não sente nos planos mais altos. Somente divino pensamento através de sua manifestação concreta nos
68 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
fatos, lá onde ele, ao menos no plano físico, não se exprime tínhamos acima exposto para outros campos, também o pro-
senão através das formas concretas e da ação. Certo é que, gresso da ciência representa o retorno do ser à fonte una que
além da medida necessariamente sensória e, portanto, relativa, tudo gerou. Neste sentido, A Grande Síntese, que nunca preten-
embora aperfeiçoada, deve haver aí uma realidade verdadeira e deu fazer novas descobertas particulares, demonstrou a coliga-
profunda, que foge à ciência, e esta não pode fazer mais do que ção em unidade dos fenômenos mais díspares. E fazer um orga-
tornar mais poderosos e mais exatos os seus meios de investi- nismo com o acúmulo de materiais diversos é verdadeira obra
gação, mais abstratos e independentes destes e dos sentidos os de criação, como o é a hodierna formação das grandes unidades
métodos utilizados (operações matemáticas puramente for- sociais, em que os indivíduos componentes gozam de uma vida
mais), menos antropomórficas as suas representações. Diante mais elevada em poder, utilidade e vastidão.
da realidade, uma medição é coisa bem diferente de um sim- Vejamos, pois, o que nos diz a ciência em relação à mencio-
ples fato objetivo, pois constitui a resultante de um processo de nada visão, enquadrando isto no sistema universal de A Grande
ações e reações entre fenômenos, meios de investigação, ór- Síntese, sem o que tudo apenas é compreensível no particular. O
gãos sensórios e psique do observador. Dessarte, progredindo, princípio das unidades coletivas nela exposto (Cap. XXVII) im-
a ciência acaba tendo que negar a sua objetividade, devendo plica em uma escala de formas hierarquicamente ordenadas no
considerar cada observação como um fenômeno entre muitos sistema do universo, em que a superior compreende a inferior,
outros, todos em relação de interferência. Não que o fenômeno que se organiza com outras semelhantes, em uma síntese mais
perca consistência objetiva e se reduza a um complexo subjeti- elevada. Esta é uma unidade coletiva que tem a função de coor-
vo de percepções, de modo que, suprimidas estas, o fenômeno denar as atividades das menores unidades componentes para no-
não exista por si mesmo. As próprias metas distantes da ciên- vos fins, que transcendem os de cada uma delas isolada, e isto
cia, que ela ainda não vê, mas para as quais também tende, sempre segundo o conceito acima exposto do princípio unitário
pois estão no final do caminho, são de caráter filosófico, meta- do universo e da tendência unificadora que ele imprime em to-
físico e espiritual, uma realidade incontrolável experimental- das as coisas. Esta coordenação é uma questão de relação, pela
mente. Quantos limites, pois, à objetividade do positivismo; qual os indivíduos componentes modificam o seu valor, poten-
que incerteza no registro e interpretação das mensagens obti- ciando-se, como é lógico, pois que a unificação é retorno a
das com a observação de um suposto mundo real na profundi- Deus, isto é, volta para chegar perto do centro genético. Assim o
dade, além das aparências sensórias! Como estabelecer exatas reagrupamento coletivo tem ação amplificadora e o poder au-
relações entre o mundo experimental dos sentidos e essa des- menta com a unificação, hierarquicamente de grau em grau, em
conhecida e recôndita realidade? E como alcançar uma reali- unidades sempre mais vastas e orgânicas. Atualmente, vários ci-
dade absoluta, independente dos sentidos humanos? entistas já sobrepõem ao mundo físico-químico o mundo bioló-
Por outro lado, exprobrou-se essa ciência por ser, com pre- gico e a este o mundo psíquico e espiritual. Trata-se de planos
valência, utilitária. Mas devemos também reconhecer que, se a de existência, em que as leis do plano superior dominam e
ciência nasceu, foi devido à natureza utilitária do homem. Foi a guiam as dos inferiores. Todo plano tem um limite além do qual,
necessidade de orientar-se na navegação, de medir um terreno, em um nível mais alto, as suas leis, mesmo permanecendo, não
de curar uma doença, de defender-se em todo campo, que a ori- têm valor senão em função de uma lei superior e, por si só, não
ginou. O que vale mais que a exatidão e verdade de uma ideia é são suficientes para explicar nem para dirigir a nova unidade.
muitas vezes a sua fecundidade. Da absurda procura de uma Dada a estrutura hierárquica do universo, toda unidade é
pedra filosofal para a transmutação dos metais em ouro, nasce a sempre coletiva, isto é, formada por menores unidades compo-
química; a procura do moto perpétuo levou à descoberta dos nentes coordenadas em organismo, de modo que a observação,
princípios da dinâmica. Mais tarde, a teoria de Einstein nasceu toda vez que defronta uma individualização, acaba por decom-
da ideia da velocidade absoluta da luz, e a física atômica nasceu pô-la analiticamente nas menores unidades componentes. Toda
do conceito astronômico do átomo de Bohr. A história da ciên- unidade, pois, é sempre síntese e é analiticamente decomponí-
cia é semelhante à história de todos os eventos humanos; acaba- vel em unidades menores, que, por sua vez, são sínteses maio-
se muitas vezes num lugar em que nunca se havia pensado. Tu- res em face das unidades-sínteses menores, ao infinito de am-
do passa e muda na vida. Muitas filosofias dominaram e caíram bos os lados. A observação pode assim mover-se em duas dire-
no olvido, para depois renascerem mais amadurecidas. A meta- ções: a analítica, que vai para as sempre menores unidades
física dominante há um século faliu, e, assim, será ultrapassado componentes, ou a sintética, que vai para as maiores unidades
amanhã o positivismo de hoje. Tudo passa, desaparece e retor- originadas. Ora, a ciência objetiva parte de um determinado
na, como as ondas do mar, no entanto se renova; dessa maneira plano de unidades-sínteses, admitido ―a priori‖ por axioma e
lançam-se novos pontos de pensamento, estabelecem-se novas dado pelos meios sensórios da sua observação. O trabalho da
conexões com fatos antes concebidos à distância, que, desse ciência foi decompor as unidades desse plano nos seus elemen-
modo, avizinham-se dos já conhecidos, refazendo no futuro, em tos componentes. Por estas razões, a ciência é analítica. Esta
novos campos, o que foi feito no passado para chegar até àquilo direção lhe foi dada pela própria estrutura das coisas. Partindo
que hoje é conhecido, mas era antes inexplorado. Tudo já exis- da matéria, unidade sensória para o homem, a ciência penetrou
te. Uma descoberta não cria coisas novas, apenas estabelece a sua estrutura molecular e atômica. Porém não percorreu com
novas relações entre as coisas, dando-lhes novos significados. isto senão um mínimo trecho em descida, enquanto o caminho
Muito da civilização moderna consiste na multiplicada possibi- é sem fim, seja em direção descendente de análise, seja na as-
lidade de trocas e de relações. É assim que, através de hipóteses cendente de síntese. Dizemos descendente porque é na direção
de trabalho, fatos antes desconexos vêm a formar uma teoria, da análise que se procede para a pulverização periférica centrí-
isto é, uma coluna de pensamento validada pela experiência e, fuga do uno na forma, e dizemos ascendente porque é na dire-
enfim, um organismo lógico revelador de uma unidade diretriz ção da síntese que se procede para a reunificação centrípeta no
ou lei sempre mais ampla. É dessa maneira que a ciência, num uno na substância. E o caminho sem fim pode ser percorrido
caminho lento e prudente, porém seguro, procura reconstruir não somente em direção analítica, como faz a ciência, mas em
por graus, no plano do conhecimento humano, a profunda or- sentido oposto, em direção sintética. Então, em vez de penetrar
dem que está nas coisas, numa sempre mais perfeita imagem na estrutura atômica da matéria, podemos conhecer as unida-
científica do mundo. Através de sua cansativa investigação, a des sínteses superiores, como pode ser, por exemplo, o orga-
ciência cumpre com sacrifício o mesmo trabalho de reunifica- nismo múltiplo dado pela humanidade ou sociedade de huma-
ção do todo, que é a base das ascensões humanas. Assim, como nidades e a sua alma coletiva.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 69
Agora, o observador não é exterior ao fenômeno e distinto quântica. Descobrindo a estrutura atômica da matéria e conce-
dele, mas é um fenômeno no fenômeno. A sua posição está num bendo-a não mais segundo as leis dinâmicas, mas conforme as
dado nível de hierarquia ou escala evolutiva, e do próprio plano leis estatísticas, a ciência moderna, que parece haver invertido
ele pode olhar, de baixo, para os superiores ou, do alto, para os as suas concepções precedentes, confirmou plenamente os con-
inferiores, isto é, a sua investigação pode hierarquicamente des- ceitos mencionados, isto é, o princípio das unidades coletivas,
cer por via de análise no particular, ou subir, por via de síntese, de unidades-sínteses analiticamente decomponíveis, de hierar-
no universal. O pensamento humano há tentado umas e outras quia de unidades e de leis, de pulverização no particular da uni-
vias, as primeiras, com o método indutivo, e as segundas, com o dade do universo, de uma progressiva divisão e complexidade
método dedutivo. Agora, o princípio da relatividade formulado no relativo, ao polo oposto do outro extremo do simples e uno
por Einstein, dependente do sistema de referência escolhido, é no absoluto. A teoria da relatividade de Einstein e a hipótese
aplicável pelo observador também a este caso, porquanto, além dos ―quanta‖ de Planck, que revolucionaram a ciência, confir-
da trajetória típica de um desenvolvimento fenomênico, ainda há mam estes conceitos. Expliquemo-nos.
o transformismo evolutivo deste e um semelhante transformis- Os movimentos brownianos, descobertos em 1827 pelo bo-
mo também no fenômeno representado pelo observador. Então a tânico inglês Brown, são devidos, provou-se recentemente, à
descoberta científica pode dar-se não somente pela projeção do estrutura molecular da matéria, em que as invisíveis moléculas
olhar indagador em um outro plano, mas também pela transfor- de um líquido ou de um gás, chocando-se com as microscópicas
mação evolutiva, isto é, biológica, do próprio observador. Eis partículas aí suspensas, lhes comunicam um movimento irregu-
assim justificada a afirmação, muitas vezes feita nestes escritos, lar. Este depende da distribuição assimétrica dos choques im-
de que o maior progresso no conhecimento resultará, sobretudo, pressos por aquelas moléculas. Pode-se, assim, pouco a pouco,
da transformação do homem atual no superpsíquico tipo bioló- provar o caráter descontínuo de quantidades antes tidas como
gico do porvir. E, assim, a ciência poderá avançar também pelo contínuas. Alcançada, assim, esta concepção da estrutura atô-
desenvolvimento das qualidades sensórias e psíquicas do ho- mica da matéria, a física clássica pareceu ruir para dar lugar a
mem. É evidente que toda a perspectiva do conhecimento atual uma física quântica estatística, onde não mais dominam as leis
poderá mudar quando o ponto de vista houver mudado, pela di- dinâmicas, e sim leis estatísticas ou de probabilidade, que regu-
versa posição biológica do observador. lam o processo do conjunto de inumeráveis casos particulares,
É certo que o nosso mundo sensível, de onde deriva também em vez de apenas um; leis que governam uma multidão de
a sua interpretação científica, é um mundo sensório e relativo. acontecimentos, em que o indivíduo desaparece. Desse modo, a
Sentimos axiomaticamente que, além dele, deve existir uma re- ciência superou a sua antiga interpretação mecanicista do mun-
alidade, diante da qual o que registramos é ilusório. Indagando do. Não mais propriedades definidas deterministicamente, mas
em todo campo e evoluindo, procuramos chegar sempre mais probabilidades que regulam as variações no tempo, conforme
perto dessa realidade, com uma interpretação sempre mais exa- leis estatísticas relativas a grandes agregações de indivíduos.
ta. Analiticamente decompondo, com a observação, uma unida- O refinamento alcançado pela técnica experimental moder-
de-síntese nos seus elementos, a ciência transfere ao relativo na permitiu descobrir esse mundo que, sem destruir o prece-
grandezas antes consideradas últimas e absolutas. Assim, à me- dente conhecido, aparece novo porque está além dele, mais
dida que se conquista o absoluto, este retrocede. Todo registro, profundo no seu íntimo. O que formava o objeto da física clás-
ainda que pareça o último em profundidade, é sempre um regis- sica não eram senão as mencionadas unidades-sínteses, das
tro de síntese, atrás do qual se esconde a possibilidade de ulte- quais uma análise mais progressiva acabou por revelar a com-
riores registros de análises reveladoras de outras leis mais parti- posição. Antes havia sido tomado como princípio único e defi-
culares. Mas, se a nossa registração é progressiva e verdadeira, nitivo, irrevogável e absoluto, aquilo que depois se mostrou ser
ela é, porém, relativa com referência à realidade e nos dá, por- a resultante de inumeráveis irregularidades livres compensa-
tanto, uma realidade relativa. Será por isto, então, ilusória? das, de modo a revelar, não as características do caso singular,
Não. No âmbito do seu campo relativo, ela é absoluta, no senti- mas as dominantes na massa. Estamos na primeira fase de pe-
do que é uma exata representação de uma dada unidade-síntese netração analítica da unidade-síntese, onde o caso particular
no seu plano e verdadeira somente nesse plano. Porém, quando ainda não foi alcançado como indivíduo. A observação na físi-
vista de outros pontos, fora desse plano, ela se torna ilusão. ca usa hoje o método estatístico das coletividades, conforme o
Quando, de fato, os filósofos indianos falam da grande Maya, é qual se calculam os valores médios prováveis, em vez daqueles
porque eles se põem em um ponto de observação espiritual exatos para cada momento ou partícula.
acima do plano da matéria, que, então, parece ilusão. Mas, para Se tomarmos para exame o caso de um centímetro cúbico de
os materialistas e os seres materiais, a matéria é realidade abso- ar, não poderemos calcular, conforme a velha dinâmica, a traje-
luta, ao menos enquanto eles fiquem naquele campo e vejam tória e os choques de cada uma dos 25 trilhões de moléculas
com os olhos daquele plano. Esta, porém, logo que se passa os (oxigênio e azoto) nele contidas. Isto requereria um tempo
seus limites, torna-se relativa e desaparece como ilusão. Um imenso, além disso elas são tão pequenas, numerosas e velozes,
mundo torna-se ilusório logo que é olhado de um mundo mais que semelhante exame é impossível. O número das moléculas
alto. Então, procuramos realidades mais elevadas, próprias de contidas em um grama de hidrogênio é de 303 seguido de 23 ci-
unidades-sínteses mais amplas que, superando-as, abraçam esta fras (303x1023). A massa de uma molécula de hidrogênio é de
nossa realidade de relação. E é de fato na unidade-síntese maior pequenez fantástica, isto é, 0.0000000000000000000000000033
que podemos encontrar a lei maior que abrange as menores, em (3.3x10-27) Kg. Contudo podemos observar as moléculas nas su-
que elas se coordenam e onde as diferenças que as tornam reci- as qualidades coletivas de unidades-sínteses, sem que necessi-
procamente relativas e ilusórias são superadas e conciliadas. temos conhecer o comportamento de cada uma. Poderemos, as-
Tudo isto não pode ser senão uma tendência, um caminho para sim, conhecer a pressão do gás, calculando a velocidade média
uma última realidade ampla ao infinito, que compreende todas de cada molécula e, com ela, obter aquela pressão, isto é, o efei-
as outras. Mas ela é infinita e, assim, não é alcançável pelo nos- to-soma de todos os choques produzidos por estas moléculas
so atual concebível, em razão de suas dimensões. contra as paredes do recipiente. E o cálculo que, em vez do caso
Vejamos o que diz a ciência a este propósito, no campo singular, exprime o resultado coletivo é exato, porque sobre ca-
mais concreto da física. Ela confirma plenamente estes concei- da centímetro quadrado de parede chega o choque de um tal
tos. Acima, assinalamos o sobrepujamento da concepção meca- número de moléculas (cerca de 200.000 trilhões de choques por
nicista clássica do mundo pela moderna física estatística e segundo) que, na prática, resulta uma pressão constante, cuja
70 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
grandeza depende do impulso médio de toda molécula. No não aquela repetição de casos? O que determina essa repeti-
grande numero, as irregularidades individuais desaparecem na ção? Pela lei dos grandes números, se lançamos um dado exa-
regularidade coletiva, justamente sobre a qual baseiam-se as leis to, cada número sairá tanto mais regularmente por um sexto de
descobertas pela física clássica. vezes, quanto maior for o número dos lances do dado. Mas, se
Ela se baseava em experiências de caráter macroscópico, o o dado tiver um defeito, quanto maior for o número dos lances,
que significa uma grosseira visão do conjunto, que não penetra tanto mais claramente a distorção se manifestará nos resulta-
absolutamente na estrutura analítica da unidade-síntese e, as- dos. Então a lei macroscópica está escrita nas qualidades dos
sim, não chega a compreender os processos de dimensão sub- componentes singulares, e a regularidade estatística nada faz
microscópica que ocorrem no átomo. A observação sensória senão revelá-la. O conteúdo não é senão a revelação da nature-
humana, conquanto a técnica científica se aperfeiçoe hoje, não za dos elementos individuais. É na qualidade da maioria dos
pode penetrar nessa estrutura analítica e deve contentar-se com casos que está escrita a lei, que, mesmo manifestando-se agora
as resultantes gerais de massa, sem nada saber do caso singu- como expressão de características mais íntimas, não perde,
lar, como acontece no uso das estatísticas, que conhecem o an- com isto, as características precedentes. Se o ato singular de-
damento geral do fenômeno, nascimentos, mortes, acidentes pende de uma lei mais profunda que, embora nos escape, de-
etc., sem nada saber do caso particular isolado. Ora, uma ciên- nominamos acaso ou livre comportamento, a lei coletiva ex-
cia que trabalha sobre resultantes gerais de massa, obrigada a prime e revela as qualidades dominantes nos casos individuais.
abstrair de uma realidade que se distancia sempre mais na pro- Por isto, mesmo concebida hoje como lei estatística, não é me-
fundidade e com a qual perde sempre mais o contato, se, de um nos absoluta a lei dinâmica. Não é de forma alguma, como se
lado, livra-se de contaminações antropomórficas, deve, por ou- acreditou, rejeitado o necessário conceito absoluto pela mo-
tro lado, trabalhar e construir no vazio, em forma de abstrações derna física estatística ou quântica, que permanece determinís-
matemáticas, procurando somente depois a concordância dos tica como a clássica. Não é, dessarte, prejudicada a necessida-
resultados obtidos com a realidade experimental. É assim que a de da premissa que existam leis reguladoras absolutas, que a
nova física deve confiar-se muito aos matemáticos, trabalhan- física, como qualquer outra ciência, reclama. A nova física di-
do com conceitos que não são os da corrente-concepção sensó- fere da clássica somente por haver posto em foco a observação
ria. E a alta matemática já está muito perto da especulação fi- num plano mais profundo, levando hoje a considerar como se-
losófica. Assim, não somente a matéria é hoje vista pulveriza- cundário ou derivado o que antes se considerava como primá-
da na sua estrutura atômica, mas também toda representação rio ou fundamental. Assim, as ―leis naturais‖ da ciência clássi-
antropomorfa e sensória do mundo desaparece totalmente. Se ca não são abolidas e, mesmo nos parecendo agora como leis
isto conduz a ciência para um princípio ordenador de um orga- estatísticas, relativas ao plano macroscópico, distintas do plano
nismo universal, do qual ela vê sempre melhor o grandioso submicroscópico, não perdem, com isto, nada da sua verdade.
funcionamento, também lhe mostra que o princípio do univer- Para compreender, podemos referir-nos analogamente aos
so, Deus, está tão além das nossas concepções antropomórfi- fenômenos sociais, onde reencontramos a mesma relação, em
cas, que, para o homem, se perde no inconcebível. que o funcionamento do organismo coletivo é dado por leis
Agora podemos perguntar-nos: a moderna e mais profunda precisas, que se exprimem estatisticamente, enquanto no seu
penetração analítica num mundo-fenomênico mais íntimo fez âmbito o indivíduo, regulado por uma outra lei, sente-se livre.
verdadeiramente ruir a física clássica e as suas concepções? O Também neste caso, o organismo coletivo é dado pelas caracte-
fato desta ciência mais panorâmica, sensória e grosseira, es- rísticas dominantes nos componentes individuais, pelos valores
cavando em profundidade, além da face exterior dos fenôme- comuns, enquanto as diferenças se elidem. Vemos aqui o prin-
nos, ter encontrado um mundo com leis diversas, não pode cípio das unidades coletivas ressoar idêntico, do plano da maté-
anular o valor das leis precedentemente descobertas, que, ria ao humano, com as mesmas características. E o que se disse
mesmo conquistando um valor relativo em relação a outros do plano físico (organismo de átomos), e agora do plano social
planos de existência, permanecem absolutas em relação ao (organismos de seres humanos), pode ser repetido também para
próprio nível. É verdade que o mundo subatômico não funcio- o plano biológico (organismos de células) etc.
na como o macroscópico. Naquele plano mais profundo, o Quando as unidades individuais não são mais observadas
mundo não é mais uma grande máquina dirigida por absoluto singularmente, mas coletivamente, por massas, a observação é
determinismo, e os seus elementos aparecem independentes e conduzida de maneira macroscópica em vez de o ser de manei-
livres. Surgem assim, segundo a nova física, os ―quanta‖ de ra microscópica, então aparece uma lei nova, em que as carac-
ação. Entretanto é possível, dessa desordem submicroscópica, terísticas de minoria, dadas pelas diferenças individuais, se
obter uma ordem indiscutível no plano macroscópico, que é anulam e desaparecem, sobressaindo somente os caracteres
vista pela física clássica. O que esta denominava leis, sabe-se predominantes comuns. Então, sobre a minoria dos casos di-
hoje que, na realidade, são apenas regras estatísticas formula- vergentes, triunfa a maioria dos casos concordantes. Para lá da
das ―a posteriori‖, como resultantes gerais de massa, nem por lei do indivíduo, aparece a lei do grupo, em que os singulares
isto menos verdadeiras. Simplesmente elas não aparecem mais se fundem por homogeneidade de caracteres. Na mais vasta lei
como férreo determinismo, e sim como regularidades estatís- da unidade-síntese, é reabsorvida a lei de cada uma das unida-
ticas, que conservam o valor e a verdade de leis naturais no des individuais componentes. Na visão panorâmica, desapare-
plano macroscópico, porém, no plano submicroscópico, re- cem os particulares e o indivíduo revive, não como tal, mas
pousam sobre o acaso ou liberdade dos atos elementares. Mas como síntese. Da mesma forma que os respectivos planos, as
não são menos válidas do que antes. E, se dizemos acaso para duas leis são contíguas, mas diversas. E, tal como toda unidade
os atos elementares, é porque a ciência ainda não encontrou coletiva é a resultante dos seus elementos componentes, toda
neste campo as leis inflexíveis e eternas que devem vigorar lei de todo plano também é a resultante das leis que dominam a
num plano mais profundo que o microscópico. A concepção maioria dos casos singulares. Assim, analiticamente mais se
estatística dessas tais leis não é senão a primeira fase de apro- desce ao particular e mais se vai para a diferenciação dos prin-
ximação para o seu conhecimento. cípios diretivos; sinteticamente mais se sobe para o universal e
A certeza das leis do mundo macroscópico é dada pelo mais se vai para a unificação e extensão dos princípios direti-
grande número dos elementos e atos componentes e por uma vos. Estes, também neste campo da Lei, são hierarquicamente
repetição preponderante, em determinado sentido, de uma conexos, conforme os planos evolutivos do ser. É assim que,
maioria de casos. O que forma essa regularidade estatística se- acima do espírito, há uma infinita hierarquia de leis que nos
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 71
fogem, como no íntimo da matéria há uma outra infinita hie- no nada. Mas, nem por isto, a ciência identifica o mundo com
rarquia de leis que não conhecemos. o nada, mas crê que alguma coisa o distingue disto. Esta dife-
Dessa maneira, a visão sentida antes, em forma filosófica e rença está num ―quid‖ objetivo, independente do sujeito co-
mística, agora se prolonga em forma científica. E eis que o nhecedor, que não é o ponto de partida das coisas. Este
ponto clássico, ou um elétron que se move no espaço, já é con- ―quid‖, porém, por certo não é a matéria. Esta ficou, assim,
cebido pela ciência como um conjunto de ondas, e o que se dissociada da concepção materialista, justamente ao longo da
achava ser o último indivisível elemento da realidade, é ainda, linha do realismo, e não ao longo daquela de um absoluto ide-
depois, formado de menores elementos componentes. Desse alismo. Isto nos mostra que o materialismo, levado às maiores
modo, conforme a mais recente física, este último termo da re- profundidades, por fim se confunde com o espiritualismo. As-
alidade não é senão uma contração de energia ondulatória, tan- sim ruem tantas distinções, física e dinâmica, matéria e vida
to mais facilmente e exatamente localizável quanto mais as etc., e tudo se torna, como já afirmei em A Grande Síntese, a
frequências componentes do conjunto de ondas diferem entre expressão de um mesmo princípio cinético. Não permanece
si. Com uma frequência única, não é possível nenhuma locali- no fundo de tudo senão um ―quid‖ que, no campo da física,
zação, porque uma onda única em nenhum ponto se distingue extravasa naquela forma sensória que chamamos matéria. Ho-
de uma uniforme intensidade. Esse elemento, portanto, pode je a ciência chama de ignoto este ―quid‖ no campo abstrato do
formar-se lá onde numerosas ondas de várias frequências inter- puro pensamento. Mas um dia ela verá que o pensamento, de
firam entre si, de modo a se anularem reciprocamente no espa- Deus ao homem, representa uma força criadora, significa uma
ço e a se distinguirem em sistema autônomo, somente em tor- transcendência em que é latente toda imanência, constituindo
no de um determinado ponto. Ora, dado que a ―função de on- o elemento genético de toda manifestação concreta.
da‖ é determinável segundo regras de cálculo bem definidas, Agora podemos compreender como o mundo, que nos apa-
adotando-as, resolvem-se algumas dificuldades, pois somente rece e denominamos real, seja, além do limitado ponto de vista
assim, por exemplo, tornando o elétron divisível em mais on- sensório, uma ilusão, como possa essa realidade, que é uma sín-
das incidentes, explica-se o seu comportamento quando, isola- tese, dissolver-se toda através da análise científica, e como o
damente, incide sobre uma lâmina de cristal. que vemos como estabilidade da matéria não seja senão uma
Eis então, conforme a ciência moderna, a substância repre- estabilidade abstrata, isto é, dos princípios imateriais que a re-
sentada pelo elemento fundamental da realidade. O extremo gem (o pensamento). Assim, o materialismo, como acontece
corpúsculo material, qual o elétron, se dissolve em ondas; a para o mal e todas as formas de erro, tem se autodestruído com
substância fundamental, material de construção do edifício das o progredir da ciência materialista e, embora ainda impere em
coisas, é um puro campo eletromagnético, ondas que não têm nossa vida prática, já foi superado no pensamento diretriz, pois
necessidade de se apoiarem em nenhum substrato material, esta última interpretação do elemento extremo, conhecido hoje
sendo concebidas somente como modificações periódicas. A como realidade, o elétron, é verdadeiramente uma ponte lança-
tudo isto não se sabe mais dar qualquer significado físico real, da pela física no campo do espírito. A ciência encontrou no
mas apenas o de uma representação lógica da probabilidade fundo da matéria uma onda, uma vibração, alguma coisa que
matemática de que o elétron se encontre, naquele instante, na- pode formar o elemento construtivo da matéria, da energia e do
quele determinado ponto do espaço. A solidez do mundo físico pensamento. Achado esse denominador comum, possuímos os
é, pois, toda sensória e se reduz a algo que está bem distante da elementos fundamentais para demonstrar o físio-dínamo-
realidade física, isto é, a uma probabilidade matemática. Eis psiquismo monista de A Grande Síntese.
em que se tornou a matéria por obra da mesma ciência materia- Assim concebida a matéria, conforme a física moderna, não
lista. A série estequiogenética nos mostra como a matéria foi há mais dificuldade em conhecer o espírito, conexo e substrato
decomposta em 92 elementos. Depois, foi decomposto o áto- das formas materiais, dotado de potência criadora. Observe-
mo, à guisa de sistema sideral, em partículas dotadas de carga mos agora a mesma realidade, não mais com o olho analítico
elétrica. Agora também, essas últimas quantidades da matéria da ciência, e sim com o olho sintético de quem sobe ao longo
são reduzidas a determinações formais de processos ondulató- dos planos do ser, ao longo das grandes construções da arqui-
rios, de modo que da matéria não permaneceu senão uma for- tetura do universo. A visão continua, não mais no mundo físi-
ma matemática, isto é, simplesmente fenômenos de oscilações, co, mas no espiritual. Ela se dilata numa concepção cosmogô-
sem que aí se encontre qualquer coisa que exista e persista por nica em que a matéria aparece como uma organização elemen-
si mesma, fora delas. Não se pode admitir, de fato, uma subs- tar, dominada por uma hierarquia de formas de existência su-
tância absolutamente neutra, sem características próprias, que periores em complexidade e potência construtora, entre as
não poderiam deixar de influir sobre processos a ela relativos. quais estão, antes, a energia e, depois, o espírito. Assim, tal
De modo que, por último, a ciência da matéria se reduz a uma como a energia representa o princípio criador e diretriz da ma-
ciência de relações, a um puro processo lógico. Assim ela se téria, o espírito representa o mesmo princípio para a energia e,
encaminha para compreender como a última essência da maté- depois, para a matéria. Todo plano depende hierarquicamente e
ria não seja senão uma abstração, um imponderável, um pen- é dominado pelo evolutivamente superior. Assim, a vida orga-
samento puro da mente diretriz do universo. Essa ciência pre- niza para um mais complexo nível de química orgânica a mais
para-se para conceber como, em Deus, este puro pensamento simples química inorgânica, como esta tinha organizado os
possa ter criado o universo, Sua expressão. átomos em moléculas etc. Desta forma, o espírito constrói o
Desse modo, a moderna mecânica ondulatória no estudo seu organismo com os elementos preparados pelo mundo bio-
das ondas não pensa num substrato físico, mas somente nas lógico. Do espírito e além, sobe-se para Deus, em domínio e
leis formais do fenômeno, de modo que a física pode hoje potência criadora. A criação deriva assim continuamente de
deixar de se referir a um substrato ou meio. Ele pode existir e Deus, mas de plano em plano, através de meios de diversa po-
ser um ―quid‖ que ocupa contemporaneamente espaço e tem- tência, utilizados como instrumentos proporcionados ao divino
po, mas hoje ainda não se sabe como conhecê-lo. Assim, a fí- trabalho criador, que se cumpre por meio deles. Porém, mesmo
sica o estuda como relação, no seu comportamento, e não na como operários, os seres colaboram como canais, através dos
sua essência. Dessa maneira, para poder continuar a trabalhar, quais a criação se mobiliza e a manifestação de Deus se ex-
a ciência e o seu sistema se tornaram independentes e, para prime. De sua parte, o ser ascende, e evoluir também significa
funcionar, não têm mais necessidade dessa incógnita, que foi tornar sempre mais real o pensamento de Deus, significa dar
posta fora das suas equações. Tudo assim parece vaporizar-se forma a algumas coisas de verdadeiramente novo como forma
72 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
e manifestação, se bem que tudo já exista latente em Deus. As- Trata-se de antecipar, e sem fé não se antecipa. Poder-se-á
sim a criação é contínua, pois que não se pode manter nada dizer fantasia, intuição, mas estamos sempre em um campo su-
sem criar. Deus realiza essa criação através das criaturas. per-racional, o único de onde pode partir a primeira centelha.
Quanto mais o ser sobe, tanto mais se torna criador, porque Assim a ciência, que foi, mas não será inimiga da fé, nasceu e
mais se avizinha e se assemelha a Deus. Assim, o homem par- não poderia nascer senão de uma fé. Assim, se a observação
ticipa e se torna sempre mais participador da atividade criadora não é fecundada e os dados da experiência não são coordenados
divina, que cria nele e por meio dele. A criação é atual, assim o pelo espírito, tudo permanecerá material desconexo, e a ciência
Deus transcendente se torna também imanente no contingente, nunca saberá concluir. Ela não é somente observação, mas tam-
e este não pode estar além d'Ele, que deve ser tudo. O homem bém síntese das observações. Dessa maneira, como em qual-
que cria no pensamento já opera fora do espaço e do tempo e, quer parte, somente uma grande fé é igualmente criadora no
por isso, ele é o ser terrestre que mais se avizinha de Deus e o campo da ciência. Ela é o impulso que sustém o homem em
primeiro artífice da Sua criação na Terra. A atividade intelec- qualquer parte, mesmo na confusão das áridas fórmulas mate-
tual e espiritual do homem é diretriz da sua obra nos planos a máticas. Desse modo, uma obra, ainda que tecnicamente imper-
ele submetidos, da qual está investido de direito, dada a sua feita e parcialmente errada, pode ser frutífera e genética, porque
posição hierárquica no universo. O criador das obras do pen- sustentada por uma grande fé, de onde só pode nascer a intui-
samento é o ser que mais está perto de Deus na Terra. ção genial. Entende-se aí, no entanto, uma fé livre, sentida es-
É assim que o espírito tem verdadeiramente potência criado- pontaneamente. O cientista, que deve indagar sem preconceitos,
ra no sentido que plasma organiza e mantém em vida, na forma não pode estar ligado ―a priori‖ a absolutismos dogmáticos em
desejada, tudo quanto existe nos planos a ele inferiores. Mas is- nenhum campo. Uma fé orienta, impele, aguça os sentidos e ge-
to não significa que o mundo tenha uma existência somente en- ra a intuição, torna-se essencial em meio ao mar de particulares.
quanto seja uma pura criação subjetiva do espírito individual. O Assim o matemático encontra e formula o novo teorema antes
mundo, já dissemos, tem uma existência objetiva, independente de estar em grau de demonstrá-lo. A ciência nasceu de uma fé
do sujeito pensante. Ora, como se conciliam essas opostas afir- numa ordem racional do universo. Quando o cientista se man-
mações? O que existe é efeito do pensamento ou é independen- tém no sólido terreno da experiência e da realidade dos fatos e
te dele? Mas sobre a Terra não há somente o pensamento hu- os respeita, baseando-se neles como primeiro fundamento, sem
mano. Ele pode dirigir a sua vida para algum fim, mas não to- o que não se faz ciência, somente a fé poderá, depois, dar-lhe
das as vidas, às quais outros pensamentos presidem. Eis o mun- asas aos pés para percorrer o áspero caminho.
do objetivo, independente do homem. Não é o pensamento hu-
mano a única força diretriz do planeta. Dessa potência criadora, XVIII. O “CONTÍNUO” ESPAÇO-TEMPO E
própria do espírito, pode-se, porém, deduzir quanto interfira A EVOLUÇÃO DAS DIMENSÕES
num fenômeno a simples presença do observador, que, embora,
esteja em posição neutra de pensamento, será sempre ativo, Os conceitos desenvolvidos no capítulo precedente, obser-
uma força capaz de influenciar o fenômeno. vando-se as últimas conclusões da ciência, nos permitem colo-
Terminando esta visão, podemos perguntar: chegará a ci- cá-las em relação com a concepção central de A Grande Sínte-
ência a nos dar do mundo uma concepção exaurida e demons- se: o físio-dínamo-psiquismo. Havendo escrito esse volume em
trada em todos os campos, tudo coordenando organicamente, 1932 (começando a publicação em janeiro de 1933), não tinha
o que sabemos e o que saberemos, em uma síntese universal? nenhum conhecimento das mencionadas teorias científicas, que
Certo que chegará, por isso urge compensar hoje o atual di- somente agora examino para fins de controle, confrontando as
vergente trabalho racional de análise com um oposto conver- conclusões com aquela visão do universo. De certo, naquele
gente trabalho intuitivo de síntese. Atualmente não se pode tempo, elas eram ainda pouco divulgadas, e, para mim, não te-
fazer uma filosofia ou explicar uma religião sem conhecer a ria sido fácil conhecê-las. Hoje, a transformação da matéria em
ciência. Hoje não se admite mais um pensador insciente de energia está realizada. Para a ciência, contudo, esse fenômeno
todos os ramos do saber humano; ele deve conhecê-los todos. permanece isolado, sem estar enquadrado no funcionamento
Trata-se de descobrir as relações que façam desse esparso sa- orgânico do universo, portanto não está orientado no seu verda-
ber um todo orgânico. É necessária uma obra criadora de in- deiro significado filosófico, que o situa no primeiro dos três
tuição que, sem representar nenhuma das particulares ideias graus da fase evolutiva do ser, à qual corresponde a fase involu-
tomadas em cada campo, revele e represente uma nova ideia tiva inversa. Hoje, a ciência demonstrou a passagem físico-
coordenando todas, o que significa a criação de um novo or- dinâmica, mas poderá depois provar também as outras. A mais
ganismo, de uma potência muito maior do que a dos compo- provável descoberta que a espera é do processo inverso, isto é,
nentes particulares somados em conjunto. Não são as fórmu- da transformação da energia em matéria. A ciência se colocará
las e os complicados processos da matemática que criam, no caminho do processo criador, que representa a via inversa do
mesmo na física. Eles somente demonstram. O que conta são nosso atual caminho evolutivo, isto é, o processo involutivo es-
as ideias fundamentais, filhas das intuições, de onde nascem pírito-energia-matéria, cujo resultado é a criação da forma con-
depois as teorias. Na origem destas estão as ideias, e não as creta. Haver aqui enquadrado filosoficamente o problema pode
fórmulas. É unicamente em seguida que aquele pensamento representar uma direção útil para orientar as pesquisas.
deverá tomar a veste matemática de uma teoria quantitativa Crer hoje que, amanhã, a ciência chegará a descobrir e usar o
para fins de controle experimental. Assim como na história, processo da assim chamada criação a partir do nada, não é mais
temos o período clássico e o romântico, a guerra e a paz, a re- absurdo do que era, como há poucos anos atrás, acreditar que se
volução e a reconstrução; na biologia, o macho e a fêmea; na pudesse anular a matéria para transformá-la em energia. Esses
física, o núcleo e os elétrons, e na astronomia, o sol e os saté- processos já existem no universo e exprimem o progresso, lei de
lites, tudo sendo assim bipolar e avançando por opostos perí- Deus. Os problemas do conhecimento não estão fechados senão
odos de onda, também a ciência é bipolar e avança por clarões por barreiras relativas e superáveis; o espírito humano não é
de intuição criadora antes e, depois, por paciente controle ana- construído para ficar eternamente excluído do mistério, mas para
lítico racional. Desta forma, a elaboração racional da mais penetrá-lo e saber usá-lo para o triunfo do bem. Deus estende os
árida ciência presume como ponto de partida o seu oposto, e braços ao nosso contínuo desejo de ascensão.
esse ponto de partida é uma fé. E o que é uma hipótese de tra- Aqui não podemos nem repetir nem explicar as últimas te-
balho, senão um ato de fé? orias científicas no campo físico-matemático. Basta-nos pre-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 73
sumir o conhecimento atual, sobretudo em suas conclusões, Síntese sobre o mesmo assunto. O último resultado, pela teoria
aceitando como provados os resultados alcançados, com os da relatividade de Einstein, é a concepção de um espaço qua-
seus cálculos e experiências, pelos grandes físicos e matemá- dridimensional, em que as três dimensões do espaço estão sol-
ticos do nosso tempo, e disto, que foi o seu ponto de chegada, dadas com uma dimensão temporal. Dessa forma o universo é
fazer o nosso ponto de partida. concebido como tendo uma estrutura quadridimensional, que é
Eis o que lemos, por exemplo, em James Jean, em ―The definida com o termo novo de ―contínuo‖. Este conceito substi-
Mysterious Universe‖ (1948); ―(...) a matéria sólida se volatiza tui hoje o anterior de éter, consistindo num espaço quadridi-
em radiação (...) Matéria e radiação constituem duas formas de mensional em que as três dimensões do espaço são conexas e
onda, e uma pode mudar-se na outra (...) Estamos bem perto da fundidas no tempo, que age como quarta dimensão. Em outros
verdade, se da matéria e da radiação fazemos ideia como de du- termos, esse ―contínuo‖ exprime uma realidade em que as três
as espécies de ondas, uma que gira descrevendo círculos, e ou- dimensões do espaço e a quarta do tempo entram como fatores
tra que segue em linha reta (...) Assim a matéria não seria senão absolutamente iguais na manifestação das leis cósmicas. Até
uma espécie de radiação congelada. A tendência da física mo- agora, a experiência vem demonstrando que o universo funcio-
derna é resolver todo o universo material em ondas e nada mais na justamente nesse sentido e que esse é o seu sistema de medi-
que ondas. Essas ondas são de duas espécies: ondas, por assim da, tendendo a provar que as leis naturais não isolam o tempo
dizer, prisioneiras, que denominamos matéria, e ondas livres, do espaço, o que confirma a referida teoria.
que denominamos radiação ou luz‖. Concebendo os fenômenos em relação a esse ―contínuo‖
Recordemos agora somente poucas linhas de A Grande Sín- quadridimensional, muitos deles, que não eram antes enfrenta-
tese, reenviando para esse volume o leitor que quiser aprofun- dos nem resolvidos, vieram a ser explicados. Assim não é mais
dar o argumento: ―Para compreender bem a transmutação de absurdo que haja dois diferentes valores para as quantidades de
matéria nas formas dinâmicas, é necessário ter bem presente a energia em uma dada região do espaço, como não o é que exis-
sua natureza cinética (...). A matéria é pura energia. Na sua ín- tam dois tempos diferentes no espaço. Hoje, no ―contínuo‖ es-
tima estrutura atômica, é um edifício de forças (...) A evolução paço-tempo, um raio de luz não é mais representado pela pro-
é a exteriorização de um movimento que, por involução, con- pagação de algo concreto e objetivo através do espaço, separa-
centra-se e, por evolução, expande-se (...) A espiral, portanto o damente do tempo, como se fez até agora, mas sim concebido
sistema atômico, continua a se abrir até ao ponto em que os elé- como um fenômeno que se verifica num ―continuo‖ quadridi-
trons não voltam mais a girar como satélites em torno do núcleo mensional, em que espaço e tempo não se podem separar. En-
e, quais cometas, lançam-se nos espaços com trajetórias inde- tão o tempo aparece como um elemento que tem a função de
pendentes (...) (Cap. 46). Os elétrons lançados para fora do sis- manter unidos os outros, isto é, seria a dimensão que liga con-
tema planetário atômico, em desfazimento devido à abertura da juntamente todas as outras dimensões do espaço tridimensional.
espiral e ruptura do equilíbrio atrativo-repulsivo do sistema, Assim, os princípios de Einstein explicam fenômenos que
conservam em sua nova trajetória ondulatória a recordação do a famosa lei da gravitação de Newton não havia sequer imagi-
movimento circular de origem (...) (Cap. 48). As infinitas pos- nado, nem podia resolver. Às próprias afirmações de Newton
sibilidades concentradas num anterior processo involutivo se se deve dar hoje uma interpretação diversa. O efeito gravita-
manifestam neste inverso e compensador movimento centrífugo cional de uma massa não é, como pensou Newton, produzir
evolutivo (...) Na profundeza está o movimento; quando ele uma ―força‖, mas sim provocar uma distorção do ―contínuo‖
muda de trajetória, então, externamente à vossa percepção, cor- quadridimensional no seu interior. Um planeta que se move
responde-lhe uma mudança de forma (Cap. 52). (...) as órbitas não é desviado então do seu movimento retilíneo uniforme pe-
atômicas dos elétrons girando em volta do núcleo e abrindo-se lo ímpeto de uma força, e sim pela curvatura de um ―contí-
para gerar a energia pela expulsão de elétrons (...) (Cap. 53) ‖. nuo‖. É preciso imaginar antes um ―contínuo‖ a quatro di-
Estamos aqui, sem dúvida, entrando na técnica do processo mensões não distorcido, e depois considerar as suas distor-
criador, mas, para poder trabalhar mais profundamente nele, é ções. Por outro lado, o efeito da distorção combinada do ―con-
necessário saber em que direção ele se realiza. A hodierna de- tínuo‖ quadridimensional, produzida por toda a matéria do
sintegração atômica se dá em sentido evolutivo, que é a nossa universo, é fazer que o universo se torne a fechar sobre si
fase de existência, oposta à precedente fase da assim dita cria- mesmo, de modo que o espaço se torna ―finito‖. Mas, antes de
ção, que representa o inverso processo involutivo. Mas, aqui, a nos envolvermos na concepção do espaço-curvo, resolvamos
ciência passa para a filosofia, e da primeira não podemos pre- o problema do ―contínuo‖ quadridimensional.
tender conclusões tão vastas. Partindo dessa conclusão matemática de Einstein, continu-
Está, ao contrário, de pleno acordo com a ciência de hoje A emo-la no plano filosófico, enquadrando-a numa concepção
Grande Síntese, quando afirmava que ―ainda quando decompu- universal, do que não se ocupa aquela teoria. Façamos isto em
serdes a matéria naquilo que vos parecer serem os últimos ele- relação aos vários sistemas tridimensionais do nosso universo,
mentos, nunca vos encontrareis em face de uma partícula sóli- como foram expostos em 1932, em A Grande Síntese, quando
da, compacta, indivisível (...), nunca tendes aí um corpo, no quem escreve os havia sentido somente por intuição, sem ainda
sentido comum (...), assim, na substância, não existe matéria no haver aprofundado racionalmente esses problemas, nem co-
sentido em que a compreendeis; apenas há movimento (...) nhecido a teoria de Einstein, se bem que percebesse o conhe-
(Cap. 46)‖. Tínhamos já visto que, pela ciência, o elétron é cimento dela. Em A Grande Síntese se disse: ―Não tendes um
concebido como um conjunto de ondas, pura concentração de tempo e um espaço em sentido absoluto, isto é, existentes por
energia ondulatória, localizável somente por diferença de fre- si mesmos (...) mas eles são relativos (...) Assim, cada fenô-
quência diante do ambiente. Para a ciência mais recente, todo o meno tem um seu tempo próprio (...) invertem-se a física e a
problema da realidade se refere a formas de energia, e esta é mecânica clássica newtoniana. (...) (Cap. 34). Na realidade não
concebida como uma abstração matemática: ―a constante de in- encontrais senão um tempo e um espaço relativos, cujo valor
tegração de uma equação diferencial‖. Eis que a ciência, por não ultrapassa o sistema a que dizem respeito (...) Se o vosso
fim, não nos deixa senão um conceito absolutamente abstrato, universo é finito como vórtice sideral, o sistema dos universos
alguma coisa que é mais pensamento que matéria ou energia. e o sistema de sistemas de universos é infinito (...) (Cap. 35)‖.
◘ ◘ ◘ Como melhor veremos mais adiante, aqui damos à teoria da re-
Observemos agora o que nos diz a ciência quanto às dimen- latividade um valor universal, tanto para o tempo como para o
sões do espaço-tempo, comparando com o que diz A Grande espaço. Assim como tudo, no espaço, movimenta-se em rela-
74 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
ção a um ponto de referência, todo fenômeno ou ser também se ali, isto é, podendo observar todos os fenômenos. A sua teoria
move em relação a um ponto de referência no tempo. nasceu exatamente desses confrontos, originados do fato de ser
Resumamos agora como é concebida em A Grande Síntese possível contemplar, o que somente uma dimensão superior
(Cap. 38) a sucessão das dimensões. Em nosso universo- pode permitir, os vários movimentos lineares na dimensão-
trifásico (matéria, energia, espírito), a matéria se nos apresen- tempo, fenômenos já completos no sistema tridimensional do
ta como volume, isto é, na sua terceira dimensão de espaço espaço. Abrangeu assim não o movimento de um só caso, mas
(linha, superfície, volume) completa. A matéria representa a os movimentos reciprocamente relacionados de mais casos, is-
evolução do ponto à linha, à superfície, ao volume. Mas, se to é, a contemporaneidade de diversos vir-a-ser, domínio que
nela o desenvolvimento da dimensão espacial é completo, o somente a consciência pode alcançar, como somente a superfí-
conteúdo da dimensão sucessiva e evolutivamente contígua, cie o pode fazer diante da linha.
que denominamos ―conceptual‖, é nulo, isto é, equivale àquilo Qual será agora a sucessiva dimensão conceptual corres-
que no espaço é o ponto. Aqui nasce segundo Einstein a quar- pondente ao volume do sistema-espaço? A consciência comum
ta dimensão, o tempo, concebido porém como o primeiro ter- é racional, analítica, finita, relativa. Ela representa somente
mo de um novo sistema tridimensional, porque este é o es- uma primeira fase da superação do devenir linear, com a con-
quema do universo. Se o tempo é assim a dimensão linear des- temporaneidade de diferentes vir-a-ser, mas não além. É filha
te segundo sistema tridimensional, que evolutivamente sucede da observação, isto é, aderente aos fatos, porque não está ainda
ao sistema tridimensional espacial, então a matéria, com o seu fora do plano onde se movem as várias linhas. Assim, para al-
espaço a três dimensões, representa, diante desse novo siste- cançar o princípio geral diretivo, ela deve percorrer infinitos
ma dito ―conceptual‖, o ponto, um puro germe. Dada a estru- casos particulares, não atingindo senão sínteses parciais, e so-
tura cinética da mais profunda realidade, é sempre através de mente por cansativo processo de tentativas. Ela se ressente de
um novo movimento, em uma nova direção, que se passa para sua posição periférica, ligada ao concreto. Seja indutivamente,
a dimensão superior. A nova direção do novo movimento do seja dedutivamente, ela concebe sempre por sucessão, no vir-a-
volume, ou espaço completo, é justamente hiperespacial, dan- ser e no tempo. Ela é superfície, isto é, uma impotência diante
do-se no tempo. Por essa razão Einstein pôde ligar espaço e do volume, a menos que se verifique um movimento em uma
tempo. Ora o tempo é sempre linear e nada mais que linear. nova direção. Eis como isto acontece. A consciência humana
Não pode ser de outro modo. Ele exprime exatamente a natu- não é linear, isto é, limitada a si mesma ou a um só fenômeno,
reza e comportamento da linha, onde o ponto a que, na nova mas pode mover-se em todas as linhas da superfície. Para for-
dimensão, é reduzido o espaço já completo até à sua terceira mar o volume, é necessário agora elevar a perpendicular sobre
dimensão, move-se e, com o seu movimento, forma a primeira o plano, e isto é representado pela superconsciência ou intui-
dimensão do novo sistema, a linha. É natural que este evolua e ção, uma faculdade que hoje poucos possuem, mas para a qual,
se complete de forma análoga ao primeiro, isto é, com um amanhã, a evolução biológica levará o homem. Enquanto a
movimento ou vir-a-ser em uma nova direção, progredindo consciência racional comum, somente por multiplicação de
por três etapas sucessivas, paralelas e semelhantes àquelas análises, pode alcançar alguma síntese particular, a intuição,
através das quais se maturou até à sua plenitude o precedente como terceira dimensão conceptual, volumétrica, concebe na-
sistema tridimensional: linha, superfície, volume. Porém, nes- turalmente não mais por análises, mas por síntese, e se move,
ta fase, todo o transformismo fenomênico move-se nessa di- como num elemento seu próprio, no absoluto e no infinito. A
mensão linear-tempo, a primeira do sistema, e dela não pode sua posição no universo é mais central, mais distante do con-
sair. O volume é completo, mas as unidades espaciais da ma- creto e mais perto do abstrato, dos princípios diretivos, do ab-
téria não podem mover-se na nova dimensão tempo senão um soluto. Ela não percebe mais analiticamente, em sucessão, por
instante depois do outro. Desta sorte nasce o vir-a-ser, o trans- concatenação racional, como nos métodos indutivo ou deduti-
formismo fenomênico. Assim, da matéria completa, em que se vo, ligado ao tornar-se do tempo, mas concebe intuitivamente,
conclui o ciclo involutivo criador, inicia-se o inverso ciclo instantaneamente, fora do tempo, por síntese. A razão perma-
evolutivo, que retorna ao espírito, de onde tudo veio. Essa di- nece, assim, como uma impotência diante dos clarões concep-
mensão tempo começa a aparecer na evolução estequiogenéti- tuais da visão. Então não há mais a nossa ciência de relações, e
ca, em que a matéria se transforma e se revela plenamente no sim uma ciência de substância, a única que poderá fazer-nos
fim da evolução física, lá onde esta alcança os corpos radioa- compreender a profunda e última realidade das coisas, o abso-
tivos, quando a matéria começa a se transformar em energia e luto, inatingível de outro modo com a razão. Assim também o
nasce o universo dinâmico. Gerado assim o tempo, ele perma- segundo sistema tridimensional se completa. Aqui começa pa-
nece como dimensão da energia, tal como o espaço representa ra o homem atual o inconcebível, pelo que, para ele, tudo de-
a dimensão própria da matéria (volume). saparece em dimensões superiores.
Passemos à dimensão sucessiva, a segunda do sistema con- Dessa maneira, na matéria, que já é tridimensional espaci-
ceptual, correspondente à superfície do sistema espacial prece- almente, o sistema tridimensional conceptual não tem dimen-
dente. Todo fenômeno vive somente o seu tornar-se, toda são (ponto); depois, no campo do transformismo fenomênico
transmissão dinâmica vive o seu próprio curso no ―contínuo‖ (despertar dinâmico), ele alcança a primeira dimensão (linha);
espaço-tempo. Para evoluir na dimensão sucessiva, é necessário a seguir, no campo da vida (consciência), atinge a segunda
acrescentar um movimento em uma nova direção, não mais fe- dimensão (superfície); e finalmente, no campo abstrato do es-
chada na mesma linha, e sim colateral, isto é, alcançando a con- pírito (intuição), realiza a sua terceira dimensão (volume). As-
temporaneidade de mais um vir-a-ser. Somente um fenômeno sim como a superfície absorve a linha e, no tornar-se, a cons-
pode dar-nos essa sensação: a consciência. Somente ela, que ciência absorve o tempo e o domina, a intuição também do-
corresponde no sistema conceptual à superfície do sistema es- mina a análise e a razão com os seus lampejos sintéticos. Ve-
pacial, pode dominar mais de um vir-a-ser (linhas), isto é, o de- mos a ciência se tornar dessa forma sempre mais abstrata, o
senvolvimento de mais movimentos no tempo contemporanea- que deve acontecer caso queira avizinhar-se sempre mais da
mente. A consciência é a segunda dimensão conceptual. realidade profunda da essência das coisas. Somente assim en-
Se a mente de Einstein pôde conceber a teoria da relativi- quadrado é possível compreender o significado e o porte filo-
dade, foi porque ela, justamente como consciência (superfície), sófico das conclusões matemáticas de Einstein.
podia melhor confrontar os diferentes vir-a-ser fenomênicos, Observemos agora quais desenvolvimentos filosóficos se
dominando como superfície todas as linhas que podem passar podem dar à teoria da relatividade. Vimos há pouco que o es-
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 75
paço é a dimensão da matéria. Assim como esta, por desinte- espiritual, que implica a necessidade de avaliar não só os senti-
gração atômica, pode modificar-se, gerando a energia (implíci- dos mas ainda a psique e a orientação conceptual do matemáti-
ta em todo transformismo fenomênico), a sua dimensão-espaço co. Em outros termos, o próprio matemático deve colocar-se e
também pode tornar-se (em direção evolutiva) o elemento ge- entrar como elemento determinante nas suas equações. É ver-
nético (ponto – não dimensão) do tempo (linha – primeira di- dade que a matemática não é uma opinião, o que significa que
mensão conceptual). Daí a logicidade da teoria de Einstein, ela é a consequência de uma racionalidade absoluta, e não rela-
que viu espaço e tempo estreitamente conexos, em correspon- tiva à mente que raciocina. Todavia, quanto mais se sabe ma-
dência com uma realidade estrutural trifásica do universo, for- temática, tanto mais se faz filosofia, portanto, quanto mais se
necendo hoje explicação para fenômenos e problemas antes sabe, tanto mais ela vem a depender de toda a orientação inte-
sem solução. Mas isto não basta. Talvez, com o desenvolvi- lectual do matemático que a utiliza.
mento das matemáticas, um ulterior progresso ainda venha a O novo pensador de hoje, pela sua necessidade de cami-
ser dado pela introdução nas suas equações também da dimen- nhar, deve fatalmente encontrar-se com o desmoronamento
são-consciência. Isto poderá parecer uma linguagem estranha, das velhas formas mentais, sendo o momento psicológico atu-
pois que nos avizinhamos ainda mais do inconcebível, e faltam al no progresso do pensamento humano particularmente críti-
aqui as palavras para exprimir esses conceitos. Trata-se de co. Herdamos, por exemplo, por concepção atávica, represen-
continuar o caminho já empreendido pelas matemáticas, cami- tações de espaço e tempo que hoje, como se começa a perce-
nho de progressivas abstrações, sempre menos suscetíveis de ber, não mais correspondem à realidade. Esses conceitos, as-
representação concreta. Mas é lógico que esta, quanto mais se sim como a geometria euclidiana, foram uma grande conquis-
avança para o real, tanto menos seja possível. É provável que, ta do mundo grego, e nós os fizemos nossos com um sentido
para explicar outros fenômenos e resolver outros problemas, de absoluto. Agora se percebe que eles não foram senão uma
alcançando uma compreensão mais profunda do universo na interpretação, não falsa, mas incompleta; não absoluta, mas
sua íntima realidade, se fará necessário chegar à concepção de relativa; não definitiva, mas transitória; uma interpretação que
um ―contínuo‖ a cinco dimensões, em que fique fundida tam- pode ser superada. A nova visão caminha em um mundo sem-
bém a dimensão que hoje, por falta de outros termos, chama- pre mais abstrato. Se é lógico que assim seja, já que a ascen-
mos consciência, formando não somente um ―contínuo‖ espa- são vai da matéria ao espírito, disto resulta todavia, para a
ço-tempo, mas um ―contínuo‖ espaço-tempo-consciência (3a, nossa forma mental habitual, uma crescente dificuldade de vi-
4a e 5a dimensões). Trata-se de introduzir em nossas equações sualização conceptual. Em outros termos, já não nos é possí-
um novo elemento, exprimindo a dimensão consciência, fa- vel transportar as mais profundas realidades alcançadas para o
zendo-o entrar no conceito de ―contínuo‖, de modo a conceber mundo das nossas representações sensórias comuns, de modo
as relações que ligam não somente espaço e tempo, mas tam- que estas realidades, das quais hoje nos acercamos, permane-
bém estes à consciência. Trata-se, em suma, de continuar a te- cem para nós inimagináveis, pelo menos até que aprendamos
oria de Einstein em mais altas dimensões, dilatar ainda mais o melhor a senti-las. Isto também ocorre agora com o conceito
conceito de relatividade, chegando assim a uma mais vasta re- de espaço finito que desenvolvemos. Ele nos foge porque,
latividade universal, que, desse modo, viria a ser por ora es- além do espaço, não vemos senão espaço e, com os conceitos
tendida da 3a e 4a até à 5a dimensão. É lógico, de mais a mais, habituais, um nada do espaço não o sabemos conceber. Para
que, na estrutura do nosso universo, situado para nós no relati- compreender o espaço-curvo e finito, é necessário mudar o
vo, tudo deva aparecer na forma de relatividade, isto é, em nosso modo de imaginar o espaço, como veremos, conceben-
função de um ponto de referência, do qual tudo depende, e isto do-o numa forma curva, pelo que, com o contínuo retorno so-
em todo campo, até no moral. bre si mesmo, pode-se conciliar o que até hoje ficou inconcili-
Poderá parecer insensata essa continuação dos conceitos das ável: o finito e o infinito.
matemáticas, levando-os ao contato com elementos que parecem Hoje, na ascensão para o abstrato, a física se torna sempre
de natureza diversa. Entretanto, num universo unitário, todos os mais matemática, e a matemática, filosofia. Se, no último vér-
fenômenos, também os aparentemente distanciadíssimos, devem tice da racionalidade, vemos aparecer, também na matemática,
ser conexos e podem ser concebidos como contíguos. Sendo in- o irracional super-racional, é evidente que andamos precisa-
tercomunicantes, eles são ligados em conjunto por esse monis- mente para aquela 3 a dimensão conceptual volumétrica, de-
mo que tudo rege compacto, tudo reconduzindo, em todo ponto nominada intuição, que se move no infinito, como em seu
e instante, à unidade. Esta é a lógica do esquema segundo o qual elemento natural. Somente ela poderá dar a possibilidade da
é constituído o nosso universo. E nenhuma coisa, nem mesmo as visualização conceptual do abstrato que está evolutivamente
matemáticas que vão indagando o absoluto, pode fugir dessa ló- mais no alto e que, hoje, visto da inferior dimensão da consci-
gica. De modo que, desenvolvendo ainda os precedentes concei- ência normal, representa um inimaginável. Na grande aventu-
tos, pode-se concluir que o ―contínuo‖ do absoluto, coligando ra do espírito, explorador das zonas virgens da mais alta evo-
todos os fenômenos do universo, de toda ordem, é um ―contí- lução, a racionalidade representa um método velho, estabili-
nuo‖ de infinitas dimensões e, para um determinado universo, zado e seguro, porque experimentado. Mas ele é limitado e,
um ―contínuo‖ que compreende todas as suas dimensões. Dele diante de alguns novos problemas, é impotente. A experiência
deriva um conceito de relatividade em que todo valor, de qual- intuitiva é um processo novo, não comprovado, não estabili-
quer natureza, depende, para sua avaliação e determinação, do zado, com todos os perigos que dele derivam. Ele é ainda in-
ponto de referência, isto é, do plano de existência ou grau evolu- seguro porque está em formação, no entanto lhe pertence o
tivo de onde a observação é feita. Eis como, logicamente, se po- porvir, porque será o único meio para avançar, com a solução
de levar a teoria da relatividade até ao campo espiritual e moral de problemas novos, explorando o inexplorado.
e também aqui falar de valores relativos, determináveis somente O homem inicia hoje um grande colóquio com esse uni-
em função do próprio ponto de referência. verso que, em qualquer nível, sempre mais se demonstra pen-
Como se vê, hoje o mundo se prepara para um modo todo sante. Não pode haver verdadeira compreensão senão imer-
novo de conceber o universo. Modo muito estranho para a nos- gindo-se na profunda realidade da coisa que se examina, se-
sa velha forma mental, no entanto só ele nos permitirá resolver não estabelecendo uma sintonia no espírito, entre o eu pensan-
alguns problemas que, de outra forma, permanecem insolúveis. te humano e o eu pensante que está em todo ser ou fenômeno.
Na matemática, é inaudita a concepção que se deva introduzir Agora, essa forma de compreensão, não por observação, como
nas suas equações, como elemento de cálculo, também o fator no velho método exterior racional (superfície), mas por sinto-
76 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
nização, como com o novo método da intuição (volume), é a XIX. O ESPAÇO-CURVO E A SUA EXPANSÀO
única que nos poderá abrir as portas do infinito e o acesso à
solução de novos mistérios. Não se poderá chegar até lá senão Uma outra concepção da ciência moderna é a do espaço-
por maturação evolutiva daquele elemento que dissemos ser curvo, que assinalamos acima, problema que melhor poderemos
preciso introduzir nas equações da nova matemática, dado pe- enfrentar agora que, filosoficamente, havemos enquadrado nu-
la natureza psíquica do observador. Em outros termos, a solu- ma concepção universal o conceito de ―contínuo‖ espaço-tempo
ção de tantos novos problemas não será alcançável senão por e observado alguns dos possíveis desenvolvimentos filosóficos
maturação biológica do instrumento humano. Hoje não é mais da teoria da relatividade. Estabelecida, como acima, a evolução
a inteligência humana emergente no universo que o observa da matéria em energia e depois vida e consciência; estabelecida
de alto a baixo, mas é ela mesma que começa a se sentir pe- também a correspondente evolução das dimensões, cada uma
quena, cada vez mais, diante de um universo que, sempre própria para cada fase, a dimensão-espaço permanece limitada
mais, demonstra saber pensar também sem ela e mais profun- à fase matéria, como sua propriedade e unidade de medida. O
damente do que ela. Quem verdadeiramente sabe não é o ho- espaço existe enquanto ali nasce matéria, que estabelece os
mem, mas aquele oceano de pensamento de onde o homem pontos de referência. Sem matéria e, portanto, sem esses pon-
capta o que lhe é possível. O pensamento é fenômeno extra- tos, um espaço vazio e infinito se confunde com o nada, é, co-
humano, cósmico, é um pensamento universal, em que o hu- mo realidade objetiva, um não-existir. E podemos dizer que a
mano também se acha contido. De modo que uma descoberta energia se transmite no espaço e a correspondente dimensão-
ou a solução de um enigma cientifico, que, de fato, verifica- tempo existe enquanto há matéria, isto é, enquanto as concen-
mos operar-se contemporaneamente em diversas mentes que trações estáveis de energia que ela representa nos podem dar
não se conhecem, é mais um problema de captação que de in- pontos de referência. Se o que forma o espaço é a involução da
vestigação racional, e o maior cientista será aquele cuja mente dimensão-tempo na sua dimensão inferior, por via do congela-
sabe oscilar na faixa da frequência de onda mais elevada. mento de radiações ou seu aprisionamento cinético na forma de
Cremos, ao havê-lo repetido sob todos pontos de vista, ter matéria, o que forma o tempo é, ao contrário, a evolução da di-
tornado claro o conceito fundamental em que se baseiam estes mensão-espaço na sua dimensão superior, pelo livramento ciné-
escritos. A crise moderna não está situada fora do homem, de tico da forma matéria das radiações aí concentradas e fixadas,
modo que possa ser solucionada especulativamente, mas en- pelo que, superada a fase-matéria na de energia, o espaço, como
contra-se no homem e não é resolúvel senão biologicamente. espaço, não existe mais. Uma quantidade de radiações nave-
Não se trata hoje de crise de um sistema em favor de outro, gando sempre num espaço sem matéria não nos pode dar um
mas de crise de evolução, através do que se deve mudar a es- ponto de referência, e, sem ponto de referência, o espaço nos
trutura cerebral do homem e, com isto, a sua natureza espiritu- escapa no indeterminável e se anula. Não haveria mais ponto de
al e a sua forma mental. Trata-se de uma crise de transposição partida ou de chegada. É o espaço que funciona como ponto ao
de limites, de explosão para fora do encarceramento das velhas longo da linha tempo, que o torna mensurável, onde a simples
formas, que não podem mais ser suportadas. A crise é dada pe- radiação não daria senão um indeterminável tempo sem medi-
la maceração do ser empenhado na metamorfose por nós já ob- da, eternamente fluente. É sempre função da dimensão inferior
servada, que deve conduzi-lo para formas de vida superiores. marcar com o seu limite a dimensão superior, dando-lhe com
A autos superação, que está no instinto humano, não deve ser isto medida. A dimensão inferior, sendo mais involuída e, por
entendida como uma multiplicação do próprio eu, como ele isto, periférica, é muito mais fechada no separatismo do relati-
hoje é e como hoje se crê. Essa concepção hodierna é comple- vo, que tanto mais aumenta quanto mais nos distanciamos da
tamente errada. Na concepção materialista, Lúcifer subverteu o central unidade do todo, o absoluto.
mundo. É preciso subverter Lúcifer, isto é, inverter o materia- O espaço não é um elemento indestrutível e, assim como o
lismo cego, caótico e negativo de hoje, para o espiritualismo tempo em relação à energia, pode ter fim com a forma-matéria,
iluminado, harmonioso e positivo de amanhã. O homem, hoje, da qual ele é a medida. Como matéria e energia são modos de
deve compreender que o universo não é acaso como ele acredi- ser relativos, também relativas são as suas dimensões de espa-
ta, um caos do qual ele deve tornar-se senhor, mas é lei, a antí- ço e tempo. E, com a transformação por evolução ou involução
tese do acaso, uma lei que já sabe tudo e tudo faz, diante da daquelas formas do pensamento de Deus, que denominamos
qual não há comando, mas compreensão e aplicação. Conquan- matéria e energia, também as sua dimensões desaparecem.
to nos escapem as equações, é certo que, também em nosso Conceitos estranhos estes, que fogem ao concebível normal,
contingente, vivemos em condições matemáticas. O universal para os quais não encontramos em nossa consciência meios de
ressoar analógico em todo campo nos fala da unidade dos es- representação fornecidos pela experiência passada. E procura-
quemas de funcionamento. A medida, recorrente em todas as mos expô-los da melhor maneira, como no-lo permitem as pa-
periodicidades, exprime um ritmo de natureza matemática. Há lavras e as ideias hoje normalmente disponíveis. É bem difícil
uma lei em todo campo; é isto que o homem deve compreen- reduzir o conhecimento das últimas realidades à nossa dimen-
der. Se ficarmos fora da Lei, o fenômeno não mais se verifica. são conceptual: consciência. Mas, decerto, somente assim é
Mas sabemos que, se seguirmos a Lei, o fenômeno deve verifi- possível compreender um pouco mais esse estranho espaço que
car-se (por exemplo, a síntese química). Nessa lei, o homem se pode contrair ou expandir conforme se forma ou se desagre-
bem pouco pode mandar, conquistar ou impor, como hoje pre- ga a matéria da qual ele é função. Em suma, por represamento
tenderia. A sua melhor posição é, ao contrário, obedecer de- cinético, não somente nasce a matéria mas também a dimensão
pois de haver compreendido. O universo não é matéria, como que lhe é relativa, o espaço, pois que são os centros desse re-
ele julga que seja, mas sim um pensamento que tudo rege e de presamento que fornecem os núcleos de matéria, isto é, os ne-
que tudo depende. O pensamento do homem não é senão um cessários pontos de referência. Em outros termos, o fenômeno
momento infinitesimal deste todo pensante. Não resta a este do represamento cinético na forma matéria e o da libertação
outra coisa senão enquadrar-se nesse pensamento, muito maior cinética em forma de energia, fenômenos verificados, impli-
do que ele, harmonizar-se com ele e realizá-lo. cam também os da formação e extinção do espaço. É assim
A grande moral da vida, posta aqui como alicerce destes es- que o espaço, enquanto é função da matéria, pode gradativa-
critos, é que a nova posição do homem civilizado dos futuros mente se formar por centralização de radiações ou se dissolver
milênios não pode ser senão a de inteligente colaborador de por descentralização dinâmica e, portanto, pode contrair-se ou
Deus na obra da Sua criação. expandir-se. Isto é difícil de imaginar porque a realidade atual
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 77
não oferece tal fenômeno às nossas vistas, isto é, ele se encon- nossa concepção um mundo dinâmico sem condensações físi-
tra fora da nossa experiência e concepção comum, além do que cas, feito de radiações, de energia vagando somente ao longo da
jamais encontramos matéria ou energia isoladas, mas, assim linha do tempo, à espera de condensação e represamento cinéti-
como as suas respectivas dimensões de espaço e tempo, sem- co, em forma de matéria ainda não nascida. Vimos que o tempo
pre fundidas em conjunto. Estamos situados com o nosso uni- é linear. Ora, o espaço começa a aparecer logo que se inicia a
verso em determinado plano evolutivo e não podemos sair dele curvatura daquela dimensão linear, ou, em outros termos, o es-
nem física nem conceptualmente. tado cinético linear da energia radiante começa a encurvar-se
Por espaço entendemos aqui a dimensão da matéria e a me- sobre si mesmo, andando para aquela forma diversa do ser, que
dida desta e do que está em relação com ela, em sentido objeti- é dada pela prisão cinética que constitui a matéria. De modo
vo, independente da consciência humana. Dado que esta pode que a gênese do espaço poder-se-ia conceber toda como um
traduzi-lo na sua própria dimensão, numa abstração subjetiva processo de curvatura do tempo. E a descida da terceira dimen-
independente da realidade, o espaço pode existir também como são (volume) à segunda (superfície), à primeira (linha), até à
ideia em nossa mente, mas então não temos o espaço, e sim o anulação do sistema do espaço tridimensional no ponto, poder-
conceito de espaço, isto é, um espaço abstrato, na realidade um se-ia conceber como um processo de curvatura. De forma se-
vácuo, porque de si é um não-espaço e uma não-matéria, que, melhante, por outro lado, poder-se-ia imaginar a gênese do
porém, é um germe de onde pode nascer, por involução criadora tempo como devida a uma curvatura da dimensão-consciência,
das superiores dimensões conceptuais, a matéria e, pois, o espa- e esta, a uma curvatura da dimensão-superconsciência. De mo-
ço, sua dimensão. Tudo pode nascer do que está nas dimensões do que o processo involutivo criador seria devido a esse fenô-
superiores, nas inferiores, em direção involutiva, à guisa de con- meno de curvatura. Certo é que faltam as palavras, porque os
densação do pensamento, e tudo pode ser restituído, evolutiva- conceitos comuns não são mais suficientes. Curvatura é um
mente, das inferiores às superiores, à guisa de expansão. Esta é a termo espacial, como também o são os conceitos de condensa-
técnica criadora pela qual todo o concreto pode se desenvolver ção, concentração e aprisionamento, e são estas as ideias que o
da potência que está na ideia, para depois a ela retornar. nosso relativo nos pode dar com as imagens tomadas em nosso
No sentido objetivo, um espaço vazio não teria dimensões mundo relativo. Podemos, porém, compreender que, se tivés-
nem medida, constituindo um indefinido e um indefinível, em semos capacidade de dar a essas representações um valor uni-
que nada se pode distinguir enquanto aí não se gere alguma coi- versal, válido em todos os planos de existência, poderíamos
sa. Um espaço vazio é somente uma possibilidade em potência, chegar muito mais perto daquela recôndita realidade que, em
em que nada está ainda realizado. Aí, o ser ainda não tomou verdade, nos escapa completamente, porque os meios comuns
forma no plano material, mas é somente um germe no regaço de concepção são absolutamente inadequados para penetrá-la.
da ideia geradora. O espaço real, existente em sentido objetivo, O processo inverso, nosso período atual, evolutivo, pode ser
é dado pela matéria e nasce com ela por concentração dinâmica. concebido invertendo-se as posições precedentes, isto é, disten-
Disto decorre que, quanto mais concentração de matéria se ge- dendo-se a curvatura com a ascensão de fase em fase e de di-
ra, tanto mais o espaço se centraliza e se acentua, isto é, se tor- mensão em dimensão, ao longo da escala, e isto da primeira à
na restrito. Eis como ele se pode contrair ou expandir, e isto segunda e terceira dimensão do espaço, à primeira, segunda e
conforme a matéria, que forma naquele espaço sua dimensão, terceira dimensão conceptual. Agora, o escopo destas nossas
se concentra ou se rarefaz, condensando-se (matéria) em deter- observações não é mais tornar concebível o inconcebível, mas
minados pontos ou se expandindo (energia) ao precipitar-se dis- sim ampliar a compreensão do problema da curvatura do espa-
tante deles. A expansão do sistema cinético da substância re- ço, da sua contração e expansão, enquadrando o fenômeno no
presenta a nossa fase evolutiva do universo (expansões das es- esquema do funcionamento universal, como sempre fazemos
pirais galácticas, arrefecimento por irradiação, formações pla- em nosso sistema. Deste modo, o conceito de espaço-curvo fica
netárias, desintegração atômica, geração da energia e desenvol- mais lógico; harmonizando-se no todo, ele resulta racionalmen-
vimento do espírito). A concentração do sistema cinético da te mais provável e compreensível.
substância representa a precedente fase involutiva (gênese di- Estendemos assim o conceito de curvatura além do seu co-
nâmico-física, proveniente da primeira potência criadora do es- mum valor espacial, dando-lhe um significado universal, como
pírito). No primeiro caso, temos concentração de matéria e pro- já fizemos com os conceitos de ―contínuo‖ quadridimensional e
gressiva contração do espaço; no segundo, temos expansão da de relatividade. Neste sentido universal, o que, no plano matéria,
matéria e progressiva dilatação do espaço. É assim que a con- significa espaço curvo, no plano conceptual, significa ciclo, e ao
centração em forma de matéria faz diminuir as dimensões do contrário. Esse princípio que denominamos, com termos espaci-
universo, dando-se o contrário com a expansão. Deste modo, ais, de curvatura, mas que tem um valor universal, bem mais que
quanto mais matéria se formou no universo, tanto mais o espa- espacial, nos reporta ao princípio geral do circuito ou ciclo, que
ço se há encurvado, isto é, tanto mais rapidamente ele se fecha reencontramos em qualquer caso, reproduzido a cada passo,
em si mesmo e menores se tornam as suas dimensões espaciais. porque ele está no esquema unitário do todo. Reencontramos o
Isto se dá na fase involutiva ou criadora, quando o universo vai princípio da curvatura na trajetória típica que nos traça o desen-
para o polo ou centro-matéria, enquanto na sua fase inversa volvimento dos movimentos fenomênicos (cfr. A Grande Sínte-
evolutiva ou expansionista (a nossa), ele vai para o polo oposto se). Mas, se a curvatura é um conceito universal, chegou agora o
ou centro-espírito, ao qual tudo o que dele (Deus) foi gerado a momento de perguntarmos se, na natureza, a reta existe de fato
ele tende voltar. Já dissemos que, pelo dualismo universal, tudo em sentido absoluto. Muito provavelmente ela não existe senão
é bipolar e também é cíclico. As dimensões do universo físico no relativo, no finito, no particular. Então devemos chegar à
dependem assim da quantidade de condensação que nele se dá conclusão de que o infinito é curvo, isto é, não o temos senão
em forma de matéria, e o espaço relativo está em função da sua com o retorno do finito sobre si mesmo. O infinito não é, pois,
curvatura, dada por essa centralização cinética. Daqui o concei- senão o ciclo, circuito do finito, em que o absoluto pode coinci-
to de espaço-curvo e contrátil, único conceito que nos pode ex- dir com o infinito retorno do relativo sobre si mesmo. Somente
plicar o seu aparecimento e desaparecimento como dimensões assim se concebe a compacta reunificação no uno por parte de
de um sistema cinético que se centraliza ou se expande. um todo fragmentado no multíplice e particular da forma, en-
Procuremos esclarecer ainda melhor esses conceitos com- quanto o separatismo do relativo é conexo com um contínuo re-
plexos. O nosso concebível dificilmente pode separar do todo a torno a si mesmo. No finito em que vivemos, das massas gravi-
ideia de tempo da de espaço e vice-versa. Procuremos isolar em tacionais às boas e ruins obras e pensamentos, tudo retorna sobre
78 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
si mesmo, à origem. O próprio universo, nascido de Deus, retor- to mais concentrado. Hoje que vivemos na fase oposta e com-
na a Deus. Aí está o que, visto como síntese, é infinito e, visto plementar da criadora, isto é, na evolutiva, o nosso universo es-
como análise, é finito. O infinito e finito, absoluto e relativo, não tá na fase de expansão, em que tudo foge do centro e, paralela-
são senão dois aspectos do mesmo todo uno, Deus. Eis que tudo mente, o espaço se dilata. Esses conceitos de contração e dila-
permanece sempre uno, embora o uno se haja pulverizado do in- tação do espaço não se podem alcançar senão admitindo o es-
finito no finito, do universal no particular. paço-curvo. Observemos o que dele diz a ciência.
Certo é que assim, concebendo tudo segundo um esquema Calcula-se que a velocidade de distanciamento dos univer-
curvo, podemos compreender muito melhor o universo. O cir- sos galácticos chega aos 144 milhões de quilômetros por hora.
cunferência na superfície e a esfera no volume são de fato as Os astrônomos de Mount Wilson calcularam que, no seu con-
únicas formas geométricas que podem conciliar em um mesmo junto, o nosso universo não contenha de matéria senão uma
princípio o infinito e o finito. Mas então, se tudo é curvo, pode- fração de grama expressa por uma unidade precedida de 29 ze-
mos ainda nos perguntar como é que pudemos dizer que a gêne- ros (10-29) e que o raio deste universo seja de 35 bilhões de
se do espaço é dada pela curvatura do tempo, antes definido co- anos-luz. Um raio de luz, viajando através do espaço, confor-
mo linear, qual primeira dimensão na reta. Só agora podemos me dizem os cientistas, descreve um grande circuito cósmico e
precisar melhor. Sendo tudo já curvo, por curvatura não pode- retorna à sua origem depois de pouco mais de 200 bilhões de
mos entender senão uma curvatura maior do que a precedente. anos terrestres. Hoje se conseguiu transformar a matéria em
E, então, devemos concluir que também o universo dinâmico, na luz, calor, som e movimento, isto é, em energia, e admite-se a
dimensão-tempo, era curvo, fechado sobre si mesmo, retornando equivalência entre ambas, pelo que, se a matéria expande a sua
sobre si mesmo. Mas, então, ele era muito mais expandido, me- massa e viaja com a velocidade da luz, nós a denominamos ra-
nos curvo que o universo físico, enquanto nele não se haviam diação dinâmica, porém, se, ao contrário, a energia se congela
ainda formado concentrações dinâmicas por represamento ciné- e se torna com isto inerte, sendo possível assim estabelecer a
tico. Naquele universo de energia, todo impulso, mesmo propa- sua massa, então a denominamos matéria (―The Universe and
gando-se ao infinito, dada a curvatura daquele sistema cinético, Dr. Einstein‖, por Lincoln Earnett, 1949).
retornava ao ponto de partida, fechando o circuito assim num Essa equivalência nos indica a possibilidade acima menci-
percurso infinito em espaço-curvo fechado. A passagem para o onada, talvez mais próxima do que se pensa, da descoberta da
universo físico é dada, pois, não pela curvatura de uma reta, mas transformação da energia em matéria, o que permitiria ao ho-
por aumento de curvatura de uma curva. Assim, o universo físi- mem realizar um trecho, conquanto pequeno, do processo cria-
co é dado por uma contração das vastíssimas trajetórias dinâmi- dor. Trata-se de fazer o processo inverso daquele gerado atra-
cas no fechado dos sistemas circulares atômicos, que continuam vés da energia atômica pela liberação do movimento aprisio-
a representar o mesmo esquema, isto é, o universal princípio da nado na matéria. A equivalência matéria-energia em direção
curvatura, mas com uma intensidade muito maior. evolutiva nos deve dar também a inversa equivalência energia-
Mesmo nos aproximando do inconcebível, todas essas con- matéria. Se a matéria é radiação congelada e, hoje, a ponte se
cordâncias falam claro. A disposição espiralada das galáxias, a abriu pela liberação daquela radiação, é bem lógico que, ama-
estrutura esferoidal das estrelas-planetas, dos sistemas planetá- nhã, se possa abrir a ponte que, em direção oposta, leva, atra-
rios e dos sistemas atômicos nos falam do princípio da curvatu- vés do aprisionamento da energia, à síntese da matéria. Talvez,
ra. Segundo este, a criação não é senão uma progressiva curva- para o homem, não haja conveniência utilitária em consumir
tura, enquanto a atual inversa fase evolutiva é uma progressiva uma grande quantidade de energia para produzir somente al-
distensão daquela curvatura. Com esse princípio é possível gum fragmento de matéria, de que há tanta abundância. É pos-
compreender como o espaço possa ser finito e infinito ao mes- sível, no entanto, que ele, com a desintegração atômica, venha
mo tempo: finito porque, enquanto é curvo, permanece fechado a ter também a energia em grande abundância, podendo ser-lhe
em si mesmo, e infinito porque, enquanto é curvo, retorna sobre útil a síntese de particulares tipos raros e preciosos de matéria.
si mesmo sem qualquer fim. Assim, pode-se conceber o espaço Ficará, além disso, a importância científica de uma tal desco-
finito e infinito ao mesmo tempo. Por essa via consegue-se berta, rica de quem sabe quais consequentes descobertas afins,
atingir o conceito de infinito, não alcançável pela estrada co- também utilíssimas. Tudo isto é logicamente possível.
mum, que nunca resolve, como no habitual contínuo sobrepu- Estamos num universo fechado, cuja forma mutável é dada
jamento de um limite que, sem pausa, ressurge e, sem pausa, se pela contração dele e de suas dimensões, em direção involutiva,
supera. Mas também essa psicologia exprime o curvo, pelo qual e pela expansão dele e de suas dimensões, em direção evoluti-
o relativo percorre no finito um ciclo infinito, de que não pode va. O princípio cíclico universal é expresso do átomo aos sis-
sair porque ele o conduz sempre sobre si mesmo. temas planetários, aos ciclos telúricos, biológicos e históricos,
Deste modo, chegamos ao conceito de espaço-curvo. Assim em qualquer parte e sempre, para nos mostrar que ele está no
como, seguindo para o infinitamente pequeno, onde a observa- sistema do todo. E, se tudo funciona por circuito, por movimen-
ção macroscópica nos indicava uma física mecanicista, chega- tos espaciais relativos, que, em substância, não são deslocamen-
mos com a observação submicroscópica a uma física estatística tos, mas apenas autoelaboração do transformismo fenomênico,
e quântica, também agora, seguindo para o infinitamente gran- é lógico que também o universo e o espaço sejam curvos.
de, toda reta do nosso mundo finito, observada em dimensões Se tudo isto não é facilmente imaginável pela nossa forma
ainda mais macroscópicas, torna-se uma curva. Em A Grande mental, que é o resultado de outras experiências biológicas, é
Síntese, Cap. LIII, é dito que na natureza qualquer reta é uma certo que o porvir da ciência está em concepções abstratas do
curva. Eis, pois, que, na gênese do plano físico, nos encontra- todo, não susceptíveis de serem reduzidas, através de represen-
mos diante de um universo dinâmico muito expandido onde se tações concretas, às ideias comuns sobre a realidade. Tendo
acendem focos de condensação de energia em forma de maté- sempre visto o espaço com a matéria, isto é, sempre conexo a
ria, que representa uma cinética igualmente fechada em si um ponto de referência, não nos damos conta de que ele é para
mesma, porém muito mais contraída, como a estrutura do áto- nós concebível só relativamente. A nossa experiência biológica
mo de Bohr mostra com evidência. O sistema cinético dinâmico não conhece o fenômeno da condensação de matéria partindo
curvo, passando da onda livre à represada num circuito muito da energia, e lhe escapa todo o processo centralizador involuti-
mais restrito, não faz senão acentuar as suas características cur- vo criador, que está nos antípodas daquele evolutivo, expansio-
vas. Assim, do amplíssimo espaço, o circuito vastíssimo da nista, que hoje se percorre. A vida, vinda depois, encontrou o
energia se há restringido no circuito da matéria, de espaço mui- espaço já formado e centralizado na matéria.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 79
Naquela fase de concentração, formavam-se ilhas de matéria vê o universo atual, mas sim o da época em que a luz que lhe
num universo que se tornava sempre menor. Mas, a um dado chega partiu e foi transmitida pelas fontes, por isso lhe atribuí-
momento, o processo involutivo converteu-se no evolutivo. mos uma estrutura diversa e mais jovem, em que tantos siste-
Aquelas ilhas incandescentes e irradiantes iniciaram o caminho mas planetários não nasceram ainda.
oposto. Desde então, os corpos que se haviam formado como Se o universo atual está em via de se gastar por radiação e,
matéria, em vez de se precipitarem um contra o outro (fase de portanto, por expansão no espaço e se os átomos que formam a
contração), afastam-se, distanciando-se um do outro (fase de ex- matéria desaparecem nessa sua forma, anulados como massa
pansão), e assim, hoje, universo e espaço se dilatam. Desde en- pela transformação no equivalente das radiações emitidas em
tão, realiza-se o desgaste da matéria como tal, por irradiação. As- milhões de anos, nada se anula por isto. Já vimos, em nosso
sim, o Sol perde peso na razão de 250 bilhões de toneladas por planeta, que as radiações solares se tornam vida e que a vida se
minuto, de modo que ele chegará a se consumir todo. Acrescen- torna consciência; verificamos que a ciência mais recente ainda
te-se que esta radiação o repele, porque exerce uma pressão sobre mais profundamente confirma o físio-dínamo-psiquismo de A
a superfície em que cai. A radiação conduz massa consigo. Um Grande Síntese. Compreende-se, assim, a criação partindo de
feixe de luz contém massas que se movem com a velocidade da um nada relativo e vê-se o lógico e equilibrado duplo respiro do
luz, 300.000 quilômetros por segundo. Assim, uma pequena pla- universo, antes na fase criadora involutiva e, depois, na fase in-
ca pode ser vista oscilar sob golpe da radiação da luz como se versa evolutiva. Podemos assim contemplar um pouco da ma-
fosse ferida por um projétil. Mas essas não são senão pressões ravilhosa técnica da criação, pela qual tudo pode nascer do pen-
mínimas. Tudo seria, ao contrário, repelido potentemente, apenas samento de Deus e tudo deve a Ele retornar. A ciência atual
se avizinhasse do Sol, pela tremenda radiação proveniente dos 50 confirma estas visões filosóficas. Depois de todas estas com-
milhões de graus, que é a temperatura no seu centro. provações e controles científicos, racionais e analógicos, temos
A ciência admite que o nosso universo haja começado a se motivo para crer que as afirmações de A Grande Síntese cor-
expandir somente há poucos milhares de milhões de anos, o respondem à real estrutura do universo.
que indica que ele está numa fase juvenil. Agora, alguns cien- A ciência moderna mais progressiva se está orientando jus-
tistas, verificando que, em confronto com o total das estrelas, tamente em sentido monista, unitário, como foi sustentado em
há uma quantidade escassa de sistemas planetários e conside- A Grande Síntese, embora essa afirmativa haja sido julgada er-
rando que a vida é possível somente nesses, concluem que as rônea por alguém. Propriamente nesta direção aponta a última
condições dominantes são hostis à vida. Por entendê-la assim, teoria de Einstein, anunciada pela imprensa nos começos de
como um caso secundário, fora do plano do universo, os cien- 1950, com o nome de ―Teoria Generalizada da Gravitação‖ ou
tistas não se dão conta do seu real significado. É verdade que ―Teoria do Campo Unificado‖, com que se haveria encontrado
os espaços astronômicos, como os cúmulos estelares, são luga- o elo que faltava para a concepção unitária do universo. Haver-
res onde a vida é impossível e que estes são predominantes; é se-ia alcançado uma mais profunda realidade fundamental que,
verdade que, para a vida, não restam senão pouquíssimas ilhas compreendendo-os, teria unificado os fenômenos da gravitação
de zonas temperadas ao redor dos focos estelares, além das e do eletromagnetismo numa mesma lei superior universal. De-
quais, tudo morre imediatamente; é verdade que essas zonas la resulta, entre eletricidade e gravitação, uma afinidade que as
privilegiadas constituem menos de um milionésimo ou mil mi- torna duas forças irmãs, derivadas de um único princípio unitá-
lionésimos de todo o espaço. É verdade, ainda, que é bem raro rio. A isto tudo se pode reduzir a energia radiante, da qual de-
o acidente de uma estrela, por atração de outras estrelas que rivariam todos os fenômenos, todos reconduzíveis a uma única
passem perto, vir a entumecer, levantando tais marés de maté- idêntica lei fundamental do universo. Ter-se-ia dado assim
ria líquida e lançando-as no espaço de modo a formar planetas; demonstração matemática da relação entre todas as forças
é verdade que, mesmo sendo improvável que o sol seja a única cósmicas e, portanto, de sua unidade.
estrela com planetas, esse desenvolvimento seja extremamente Eis que aparece, também para o olhar da ciência, uma har-
raro e que, provavelmente, somente uma estrela em 100.000 mônica construção de leis cósmicas, o plano orgânico do uni-
tem um planeta; é verdade que essa passagem de uma estrela verso, em que se manifesta o pensamento de Deus. Ora, tudo
tão perto de outra de modo a produzir gêneses planetárias, com isto dito há 18 anos, em A Grande Síntese, antes publicada em
a progressiva expansão do cosmo, torne-se sempre mais im- revista, em 1932, foi afirmado não só em linhas gerais, nos
provável. Se tudo isto é verdade e os planetas são tão excepci- princípios unitários, mas também no particular de afinidade
onais, não se pode, contudo, deduzir que a vida, somente por- entre gravitação, eletricidade, luz etc., explicando a íntima na-
que ela nos aparece hoje como um subproduto sem importân- tureza da força da gravitação como protoforma do universo di-
cia, mínimo diante do todo, como um descuidado acidente fora nâmico. Isto, de modo particular, foi exposto no Cap.
do plano geral, não seja o escopo da evolução. XXXVIII de A Grande Síntese, ―Gênese da gravitação‖, mais
Não. Considerando-se que a ciência julga haver, até onde precisamente no antepenúltimo parágrafo desse capítulo. Aí se
alcança hoje o mais potente telescópio, 75 milhões de universos especificou que os conceitos da teoria de Einstein, então co-
semelhantes ao nosso, deve existir em tão grande número um nhecidos, deviam ser completados, como aconteceu, e que isto
complexo de muitos milhões de estrelas com planetas, dos devia ser feito pelo cálculo, como se fez. Todo leitor pode ve-
quais quem sabe quantos são habitáveis também para o nosso rificar quanto acima ficou exposto.
tipo de vida. Além disso, não é necessário que, por vida, se de- Deixando de lado o problema psicológico de como a intui-
va entender somente a forma que ela tomou na Terra, e nin- ção filosófica haja conseguido captar os mesmos conceitos a
guém pode excluir a existência de outras tantas formas, de todo que os processos racionais teriam depois conduzido os grandes
diversas da nossa, até mesmo incorpóreas. matemáticos, percorrendo assim os tempos e antecipando-se às
Não. O nosso universo é simplesmente jovem. A vida nele suas descobertas, e também o problema de haver um pensamen-
se encontra ainda, em grande parte, na fase matéria e energia. to não tanto no indivíduo quanto na vida, que o alcança quando
Mas ela deverá alcançar a fase biológica que se iniciou na Terra houver atingido sua maturação, ou seja, de que uma nova ver-
e se tornar depois psíquica e espiritual, para voltar assim à fase dade somente se revela por maturidade biológica, que dá à vida
pensamento ou espírito, como era na sua gênese, antes da des- uma transparência por sensibilização, o certo é que, hoje, a ci-
cida involutiva, conclusões estas a que não se pode chegar se- ência, que não se discute, confirma em cheio o monismo, o
não tendo enquadrado o atual conhecimento científico no plano conceito unitário que é a base de A Grande Síntese, e também
do todo. Podemos, enfim, acrescentar que, hoje, o homem não os pormenores que o provam.
80 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
XX. COM A CIÊNCIA PARA O INCONCEBÍVEL ganismo físico. Este, para o homem, se calcula composto de 10
mil quatrilhões de átomos, em uma colônia orgânica de 60 tri-
Essa nossa corrida pelo mundo físico-matemático tem o lhões de células, que têm tarefas diversas, com funções especia-
escopo de desenvolver as suas conclusões científicas no cam- lizadas e sincronizadas em perfeita coordenação hierárquica.
po filosófico, para levá-las até ao plano espiritual e moral, on- Pense-se que uma célula-ovo é constituída de 8.640 quatrilhões
de estão as grandes diretrizes da ascensão humana. Num uni- de átomos, organizados em 1.728 trilhões de moléculas, e que o
verso unitário, todas as verdades parciais e relativas do ho- menor organismo vivente é constituído, pelo menos, por 4 tri-
mem devem fundir-se em uma só. Assistimos hoje a um gran- lhões de moléculas. Que vertiginosa visão é, pois, a simples vi-
de acontecimento no pensamento humano: a própria ciência da física, sem se cogitar da psíquica e espiritual! Pense-se que o
está contribuindo para a queda do materialismo e se dirige átomo já é um microcosmo, um sistema solar planetário, mas
com os seus próprios métodos para a descoberta de Deus. A do diâmetro de cerca de um décimo de milionésimo de milíme-
ciência está para desembocar no espírito e com os próprios tro, enquanto o núcleo e os elétrons oscilam entre cem bilioné-
meios; as suas velhas negações caem pela sua própria matura- simos e um trimilionésimo de milímetro. Para imaginar essas
ção. O espiritualismo, religioso ou leigo, parece não perceber medidas, considere-se que o número dos átomos contidos em
que essas portas estão sendo abertas pela própria velha inimi- um grama de matéria resulta em cifra da décima à vigésima
ga, a ciência, e continua ainda, por inércia, a verberá-la como quarta potência (1024), cifra vertiginosa, que é igual à que ex-
negação do espírito, enquanto ela se prepara, com os meios prime o número dos centímetros cúbicos de água contida em
positivos que lhe são próprios, a descobrir o novo mundo. Es- todos os oceanos. Somente um centímetro cúbico de hidrogênio
sa é a mais poderosa apologética das religiões, a da ciência contém 54 bilhões de bilhões de átomos. E todo átomo é com-
que nos conduz a verificar uma consciência diretriz do univer- posto de um núcleo positivo em repouso ou rotativo sobre si
so e à descoberta da imanência de Deus. mesmo, em torno do qual com uma velocidade de 30 km por
No campo da própria ciência, o universo dá sinais manifes- segundo, se move uma miríade de elétrons de carga variada, de
tos de um poder inteligente que o guia e controla, de um pensa- número diverso conforme cada único elemento. Ora, esse mi-
mento que muito se assemelha ao de nossa mente, especialmente crocosmo não é senão o primeiro elemento do edifício molecu-
no campo das concepções matemáticas abstratas. A inteligência lar, que não é senão o primeiro do edifício celular, que não é
não é um fato isolado do homem, mas preenche todo o universo. senão o primeiro do edifício orgânico, que não é senão um caso
Há um pensamento que rege tudo, com o qual temos afinidade único do edifício biológico. Sobre o plano físico, a mesma pro-
de natureza e estamos conectados por compreensão. Se podemos gressão hierarquicamente construtiva se estende do átomo à
compreender um pouco da estrutura do universo, isto ocorre molécula, aos cristais ou cúmulos, às grandes estratificações
somente por essa afinidade, porquanto também somos seme- geológicas, aos planetas, aos sistemas solares e galácticos, aos
lhantes àquele pensamento que tudo ordena e penetra em qual- sistemas de sistemas galácticos.
quer parte. Há pontes e comunicações a cada passo. O pensa- A nossa mente se perde não só pela extraordinária grande-
mento não é estranho à matéria, que é feita mais por conceitos za ou pequenez, mas também pela complexidade da organiza-
do que por uma simples e aparente solidez sensória. O seu dua- ção que mantém em tão vastas e complexas estruturas a ordem
lismo antagônico é superado no monismo universal, e isto não mais precisa. Num centímetro cúbico do ar que respiramos,
porque a matéria se dissolva em um nada, mas sim porque ela se cerca de 30 bilhões de bilhões de moléculas se precipitam
tornou a expressão de um pensamento com o qual está estreita- com velocidades fantásticas, chocando-se e mudando rumo
mente conexa e sem o qual não pode existir. Eis que as velhas cerca de 10 milhões de vezes num segundo. Respiramos esse
concepções materialistas são invertidas, e a ciência tende a con- mundo cinético e, assim, formamos inúmeras outras combina-
cordar com alguns postulados da fé, explicando-os em grande ções de movimentos, das quais deriva o nosso funcionamento
parte. O século passado disse a grande palavra: evolução. O nos- orgânico e a nossa vida. Assim, vemos tudo desfazer-se na ve-
so tempo diz: relatividade. O futuro próximo dirá: síntese. locíssima dança de infinitos elementos imponderáveis, não
Chegamos a compreender o espaço em função da matéria, da somente para a matéria, mas também para o nosso corpo. E
qual é a dimensão, portanto um espaço finito como a matéria, este, na sua profunda realidade, torna-se um imponderável di-
mesmo sendo ilimitado, porque curvo. Admitimos hoje que o rigido pelo pensamento, o mesmo que rege também a matéria.
que existe fisicamente não é senão uma propriedade do próprio Então, esta e o espírito podem ser reduzidos à mesma subs-
espaço, uma distorção do ―contínuo‖ espaço-tempo a quatro di- tância: uma lei, e o corpo, chamado de prisão do espírito, tor-
mensões, e que a gravitação é uma distorção levando à curvatura na-se da mesma natureza deste. Pense-se que o aspecto físico
do ―continuo‖. Concebemos um espaço que se dilata, e continu- da matéria, bem como do nosso corpo, é devido simplesmente
amente a lei de probabilidade substitui a de causalidade. Este a vertiginoso movimento dos elementos dos átomos que o
universo não tem mais representação material. Ela não se lhe constituem e que se compõem nessa forma porque são guia-
adapta mais hoje, que vemos mais profundamente. Com o pro- dos por um pensamento inteligente, embora escondido em
gredir do nosso conhecimento, começamos a compreendê-lo em nosso inconsciente. E então, que significa a presença dessa in-
uma sua mais verdadeira realidade, que é puro conceito. É a teligência que, através do nosso inconsciente, nos plasma e nos
nossa visão que avança, e, com isto, o universo se torna para nós mantém a vida, à nossa revelia, senão a imanência de Deus? A
sempre mais pensamento. A ciência viu nele primeiramente uma própria matéria não representaria senão uma das formas do
simples máquina, porque essa ciência era mecânica. Hoje, ela vê pensamento a que tudo se pode reduzir, como substância uni-
a inteligência que está atrás da máquina. Assim, o universo nos versal, elemento último e fundamental, gerador de tudo. Quan-
aparece quase consciente de si mesmo, como se uma parte co- do essa substância toma a forma atômica, então ela se torna
nhecesse o que fazem as outras partes distantes, pois ele age em ponderável e chama-se matéria; quando toma a forma dinâmi-
relação harmônica. Os fenômenos não se podem interpretar se- ca, chama-se energia; quando a forma não é nem atômica nem
não como projeções dessa inteligência que tudo coliga e guia pa- dinâmica, chama-se pensamento. Entre a matéria e o espírito
ra fins precisos. Cada movimento tem a sua lógica, como se de- haveria apenas uma diferença: aquela é substância atômica
pendesse do pensamento de um matemático puro. (ponderável) e este é substância não atômica (imponderável).
A sabedoria que está em cada coisa existente é tão profun- Dado isto, não é absurdo o conceito aqui exposto de uma cria-
da, que nela a nossa pequena inteligência se sente confundir. ção entendida como gerada a partir de um nada relativo à fase
Basta pensar no que cada um de nós é, simplesmente, como or- criada, como uma forma particular do pensamento de Deus.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 81
Da compreensão dessa imanência de um pensamento direti- que a última realidade é pensamento puro e que o absoluto é,
vo do mundo fenomênico deriva a compreensão da técnica cri- para a mente humana de hoje, um inconcebível, do qual ela não
adora que nos mostra como opera o pensamento de Deus. Tudo pode obter senão aproximações sucessivas.
o que existe em forma de matéria é formado por laços no espa- O fato é que somos relativos, inexoravelmente situados no
ço vazio, e não por massas de partículas rígidas, laços dados pe- relativo, isto é, contidos em dimensões particulares das quais
los desenvolvimentos cinéticos regulados e derivados de puro não é fácil sair. Desse modo, não podemos formular um jul-
pensamento. Isto nos faz pensar que aquelas zonas de determi- gamento senão em relação a alguma coisa, em função de um
nismo, que formam em nossa vida o que nela há de destino fa- ponto de referência. Se sairmos do relativo, este nos vem a fal-
tal, não são senão laços cinéticos formados como os conjuntos tar e, com ele, toda possibilidade de juízo. Uma vez que con-
de ondas que constituem o elétron; não são senão concentração cluímos por comparação entre quantidades ou qualidades, não
de forças, por nós operada com os nossos pensamentos e atos podemos proceder senão no âmbito das dimensões que nos são
do passado e assim fixada à guisa de semente. Esta, como toda próprias e conhecidas, onde também está situado o objeto em
semente ou germe (que também é alguma coisa de semelhante), exame. É nesse âmbito que a nossa psique está fechada, fora
deve desenvolver o que nela foi concentrado, restituindo tudo do qual ela não compreende e, como instrumento de conheci-
na forma original, repetindo o mesmo esquema do nosso uni- mento, vem a ficar inadequada e falida. Agora, para conceber a
verso, que agora, em fase evolutiva, restitui o que nele foi con- substância das coisas, trata-se justamente de sair desse âmbito,
centrado no estado de germe, no precedente período involutivo- de abandonar os velhos pontos de referência para encontrar
criador. Não se trataria, talvez, de vários casos particulares, em novos. É natural que a nossa mente fique completamente im-
que se aplica sempre o mesmo e único princípio? potente enquanto, pouco a pouco, não aprenda a individualizar
Eis, assim, a possibilidade de imaginar e admitir uma cria- e conhecer novos pontos de referência, hoje situados no incon-
ção emanada do pensamento de Deus, partindo de um estado cebível, transferindo-os assim ao seu concebível.
que, diante da matéria, de que será depois formado o criado, é A concepção hoje alcançada da energia, como uma abstra-
o nada. ―No princípio era o Verbo‖. O Verbo se faz ação e tu- ção matemática: ―a constante de integração de uma equação di-
do deriva do dinamismo que dela nasce na forma de matéria, ferencial‖, significa haver tornado a subir o caminho criador,
radiação congelada em ondas aprisionadas. Assim a criação seguindo para a abstração. E é justamente por essa via, conce-
procede da onda-pensamento, à onda dinâmica, até à transfor- bendo as coisas em forma sempre mais imaterial, que podere-
mação do sistema cinético no circuito fechado da matéria. Ho- mos chegar perto da mais profunda realidade: o espírito. A re-
je, a ciência já está trabalhando nesse sentido, começando pela presentação sensória nos conduz apenas ao caso particular, en-
transição da matéria à energia. Mas essa passagem deverá ser quanto a fórmula abstrata, e somente ela, é universal, capaz de
aberta ainda além, em fases superiores, e também na direção abrangê-los todos. Com isto, parece que o real nos escapa,
inversa. Então, a ciência chegará a fazer a síntese da matéria, porque ele está para nós no relativo e particular, que são o irre-
usando a energia. Depois da síntese dos conceitos, a síntese fí- al, e não no absoluto e geral, que são o real. Mas tudo é relati-
sica. E talvez, num dia mais longínquo, o homem, que tem sua vo e, para nós, o irreal é real e o real é irreal. Assim, na abstra-
mente feita à semelhança de Deus, poderá derivar a energia do ção de uma fórmula matemática, não podemos saber, com ter-
seu pensamento e, dessa maneira, poderá realizar todo o per- mos sensórios completos, o que é o objeto sob exame, mas só
curso do caminho criador: espírito, energia, matéria. A atual como ele se comporta. Vemos agir esse ―quid‖ desconhecido
técnica em realização, da desintegração atômica, se bem que que, na ação, projeta-se em nosso conhecível e só assim pode-
situada no período oposto do ciclo, nos indica essas possibili- mos apreendê-lo como uma cognição de relação, isto porque,
dades. Ela representa a técnica evolutiva, e não a criadora, isto sendo relativos, ficamos no relativo. Esta é a nossa condição,
é, a nossa fase atual de desenvolvimento partindo da concen- portanto o absoluto nos foge no inconcebível. Conquanto o
tração-matéria, e não a anterior fase involutiva criadora, que nosso conhecimento possa progredir para o absoluto, o homem
vai para a referida concentração. Ao contrário, as materializa- não pode conceber senão a sua projeção no próprio plano de
ções espiritistas, ectoplásmicas, são construções ideoplásticas, conhecimento, isto é, uma representação a ele relativa. O an-
que provam a possibilidade do ato criador psíquico-dinâmico- tropomorfismo é um limite, e o progresso consiste justamente
físico também nos limites do campo humano. Já vimos que, no em saber superá-lo. Por isto a ciência moderna renuncia, por
universo, esse ato diz respeito à fase de descida por emanação ora, à representação do real e para naquela do seu comporta-
de Deus, ato que se equilibra, depois, na oposta fase de ascen- mento, limitando-se a este derivado do absoluto.
são ou realização de cada ser em Deus. Isto parece coincidir com o velho ―ignorabimus‖ 10, ou seja,
Assim compreende-se como o universo se torna tanto mais constituir uma renúncia ao conhecimento. No entanto isto já é
explicável quanto mais o reduzimos ao que é na sua origem e um progresso, pois a ciência, ao chegar hoje mais perto da rea-
na sua essência, isto é, um conceito puro. Certamente ele é uma lidade última e, assim, compreender que esta não é suscetível
grande incógnita a ser interpretada, e a sua representação é bem de representação, já não cai mais nas ilusões dadas pelas repre-
diferente da antropomórfica. A última realidade do universo é sentações antropomórficas, ilusões que, até ontem, ela tomara
um conceito abstrato, sem possibilidade de uma figura redutível por realidade. Assim, entramos num terreno que parece renun-
às nossas aparências. Toda redução nesse sentido é uma defor- ciar a conhecer o real, mas que, ao contrário, é mais sólido e
mação, de modo que, quanto mais a representação é antropo- mais verdadeiro, justamente porque, quanto mais ele é imateri-
morficamente acessível, tanto mais ela se torna um desvio da al e abstrato, tanto menos é suscetível de representação. Che-
realidade. Se, pois, quisermos fazer modelos para explicar o gamos, assim, ao ponto de achar que se possa dar a essa for-
conteúdo dos conceitos abstratos e fórmulas matemáticas que mulação completamente abstrata do universo aquele conteúdo
exprimam o universo, poderemos fazê-lo, mas por conta e risco em que cada um crê, pois chegou-se a compreender que cada
nosso, porque sabemos que, assim, em vez de nos acercarmos representação dele é um relativo e um irreal, uma pura inter-
da verdade, distanciamo-nos dela. A última realidade não é sus- pretação ilusória diante da realidade. Isto significa havermos
cetível de representação e, quanto mais nos avizinhamos daque- chegado racionalmente mais perto de Deus, tendo compreen-
la realidade, tanto mais a sua representação se torna impossível. dido que Ele, na sua essência, é um incognoscível. Já dissemos
Toda imagem nos distancia mais do que nos conduz para perto que suas definições são reduções e mutilações. Desse modo, a
do real; toda forma, ao invés de nos dar a ideia da essência das
10
coisas, é apta a traí-la com aparências ilusórias. Isto demonstra Ignoraremos. (N. do T.)
82 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
ciência admite que os valores concretos das suas formulações que transcende a nossa atual capacidade de compreender. Po-
abstratas possam ser diversos, e aí está a sua nova universali- rém é certo que se caminhou nessa compreensão e que hoje a
dade. O real é tanto mais verdadeiro quanto mais for abstrato, velha concepção é inadequada.
distante do concreto, princípio universal, distante do particular. As ondas que representam um elétron na mecânica ondula-
Conduziu-nos para perto da realidade o fato de não dar-lhe tória, hoje se julga que são ondas de probabilidade, cuja inten-
mais uma representação ou, pelo menos, se a damos, de não sidade em cada ponto dê a medida da probabilidade de que
atribuir-lhe senão um valor relativo e fictício. Dessa maneira, um elétron esteja naquele ponto. A nova representação é sim-
ao menos compreendeu-se que as nossas representações do re- bólica e se exprime somente em termos de probabilidade.
al não valem senão pelas necessidades do contingente e que é Agora, quando falamos de ondas no espaço-tempo, formamos
erro dar-lhe um valor absoluto. Elas não podem servir para es- simples visualizações de uma fórmula matemática de natureza
se fim. É assim que o homem saiu do antropomorfismo e acer- ondulatória, mas de todo abstrata. Assim o ―contínuo‖ quadri-
cou-se mais da realidade, compreendendo dela ao menos sua dimensional da teoria da relatividade não admite representa-
bem definida característica de estar situada no atual supercon- ção espaço-temporal. Temos visto, porém, que há dimensões
cebível. É a primeira tentativa para começar a definir a reali- superiores, e a primeira é a consciência, que está fora desse
dade. Já se encontrou um primeiro atributo não imaginário. ―contínuo‖. E a ciência já imagina que os fenômenos desse
Com isto, o homem compreendeu, pelo menos, que Deus, o ―contínuo‖ espaço-tempo são a projeção, a quatro dimensões,
absoluto, última realidade, não é redutível ao seu atual conce- de uma realidade de mais de quatro dimensões. A própria ci-
bível. Já é importante haver saído um pouco do velho inconce- ência caminha para a aceitação dos conceitos acima expostos
bível, enquanto, com a superação do antropomorfismo, que acerca das dimensões superiores, admitido a possibilidade de
tornara o homem medida das coisas, desmantelou-se a ilusória vários planos de existência, tal como há graus de evolução na
representação que ele fazia do real. matéria, na energia e na vida.
Quanto aqui é exposto decerto é um sistema de concepção Se tudo isto para a ciência significa chegar mais perto do
mais complexa que os precedentes, e os sistemas, muitas vezes, real, para o filósofo é acercar-se do verdadeiro e, para o crente,
encontram favor em proporção da possibilidade de sua compre- de Deus. A ciência indica uma natureza que parece estar muito
ensão. A facilidade de representação tem importância na divul- versada nas matemáticas puras, entendendo com isto aquela
gação da teoria. A presteza com a qual foram aceitas tantas ex- matemática que é criação do pensamento puro, sem se conta-
plicações mais elementares do universo, foi obtida pela sua minar com a observação. Agora, se é propriamente essa criação
aceitação psicológica, isto é, capacidade de representação e do pensamento puro o que mais nos faz avizinhar da íntima rea-
compreensão por aderência à forma mental humana. A nossa lidade das coisas, então significa que essa realidade, isto é, a
psique se formou por vias sensórias, que a tornam mais apta a substância do universo, é afim daquilo que no homem é pensa-
entender o mundo relativo que a circunda, ainda que irreal, e mento do espírito. Se é com o espírito que nos avizinhamos da
não um mundo absoluto que ela nunca concebeu diretamente. essência das coisas, quer dizer que essa essência é de caráter
Quando aquela mente é usada para essa finalidade tão distante, espiritual. Eis a grande descoberta da ciência. Ela, então, já não
é certo então que se faz dela um uso bem diverso daquele dos é mais materialista, e sim espiritualista. A essa certeza chegou
fins imediatos da vida, para o qual nossa mente se formou. Di- com os seus próprios meios. Com estes, hoje, a ciência moveu-
ante da investigação abstrata, a única mais aderente ao real, a se e avizinhou-se da descoberta de Deus e Dele poderá racio-
psique formada para os escopos do contingente tende a se con- nalmente nos dar uma certa aproximação, que, assim como a
fundir, tornando-se inadequada. Acontece-lhe tal como ao jo- dada pela fé, talvez necessite de representações antropomórfi-
vem que vai à escola, que, em geral, já possui no instinto adqui- cas para poder ser utilizada pelas massas.
rido no passado todas as astúcias e prepotências necessárias à A grande mudança está na orientação do pensamento cientí-
luta pela vida e deve fazer um grande esforço para usar uma tal fico. A verdade é hoje enfrentada não mais com o simples mé-
mente no trabalho lógico e abstrato da cultura. No jovem que, todo experimental, e sim com os métodos da lógica pura, tipo
sem esforço, é hábil no primeiro trabalho, a vida repele a nova Aristóteles, porém transferidos para o plano das matemáticas.
e diversa atividade, com a qual não está acostumada e da qual Está, então, superado o ciclo do método experimental? Será que
não cuida porque não é imediatamente útil. Mas a evolução ele não é mais suficiente? Certo é que hoje se recorre com su-
consiste justamente nessas transformações. cesso e se justificam também outros métodos. Hoje se admite
Para enfrentar o problema do conhecimento, devemos antes uma aproximação da realidade também com os meios do pen-
fazer as contas do que somos e do que podemos. Hoje, final- samento abstrato, não influenciado pelo mundo exterior, nada
mente, compreendemos que tanto mais nos acercamos do real tirando da experiência. Eis-nos na via do método da intuição, já
quanto mais nos distanciamos do imaginável; compreendemos sustentado e explicado nestes escritos. Os fenômenos objetivos,
que o verdadeiro está situado no inconcebível e que tanto mais que parecem tão certos, nos aparecem somente como uma pro-
chegamos perto dele quanto mais nos distanciamos do nosso jeção de um mundo que os gera, um mundo diverso, que de-
normal concebível. Decerto o sistema atual é mais difícil, mas monstra conhecer muito bem esses processos de pura matemá-
ele demonstrou a capacidade de penetrar, muito mais a fundo, tica. A ciência chega, assim, a sentir atrás dos fenômenos a pre-
na natureza das coisas e de saber explicá-las. As novas interpre- sença de uma mente diretriz que, por certo, conhece muito bem
tações que fazemos da realidade desconhecida e que parecem as regras que os geram. Decerto que as matemáticas não che-
mais capazes de harmonizar-se com ela, não são materiais, e gam a descrever a natureza da última realidade, porém sabem
sim matemáticas. Esta abstração vence, por potência explicati- estabelecer as relações que regulam as várias partes no seu fun-
va, precisão e aderência aos fatos, as precedentes representa- cionamento, isto é, o pensamento que tudo rege e guia. E que
ções materiais. Também é certo que esta é apenas uma repre- mais é isto senão o espírito, a Lei, Deus?
sentação, e não a última realidade, mas é uma aproximação Há, pois, uma afinidade entre nosso espírito e esse espírito
maior do que as precedentes, uma interpretação mais vizinha do regulador do universo. Torna-se assim a valorizar o método de-
verdadeiro. Compreendeu-se que as coisas não estão mais como dutivo do passado. Entramos na era da síntese, em que o méto-
antes se acreditara, se bem que não se saiba ainda como verda- do indutivo e dedutivo coexistem e se fundem num plano con-
deiramente estão. Porém a explicação em termos matemáticos ceptual superior: a intuição. Eles não são senão duas direções
resolve muito mais do que as precedentes representações mecâ- do mesmo pensamento. Pode-se caminhar num sentido ou em
nicas. A última realidade possui, sem dúvida, um significado outro, porém por vias opostas, sempre para o conhecimento da
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 83
mesma realidade. A involução do passado as mantinha separa- va, porque a forma mental, não obstante tomar sempre uma po-
das e antagônicas, não se sabendo percorrê-las senão uma por sição axiomática e dogmática, muda em cada século com o seu
vez (involução=separatismo). O homem novo do terceiro milê- progredir, pois que tudo está em função do subjetivismo, mes-
nio delas fará uma perspectiva bifronte para a mesma realidade, mo na mais objetiva investigação. Se a velha forma mental,
com o método da intuição que conduz à síntese. subjugada pela prevalência do método experimental, via tudo
A última e mais profunda interpretação do universo nos diz materialistamente, a nova, ao contrário, vê espiritualistamente.
que ele parece pré-ordenado pela mente de um matemático pu- Hoje, a concepção mecanicista-materialista, que não enxergava
ro. E, então, devemos admitir que, se é essa matemática que nos o real senão no concreto, está superada. Começando do alto das
conduz para a realidade do universo, nesta realidade deve haver mentes que dirigem a cultura humana, haverá uma nova orien-
aquela matemática, isto é, uma abstração, pura qualidade do es- tação de todo o pensamento moderno, e as massas, que ainda
pírito. E, se esta realidade nos é revelada por graus, devemos revolvem no materialismo, pois que elas chegam sempre por úl-
admitir que ela já existe, tão vasta e completa, que nos escapa timo, amanhã seguirão também este novo caminho e formará
no inconcebível, mas nem por isto menos real e perfeita em si uma nova civilização: a civilização do espírito. A ilusão sensó-
mesma. Então podemos concluir que a descoberta do desconhe- ria e a filosofia materialista que dela decorria, hoje estão desfei-
cido não é senão o resultado de uma maturação do meio, a psi- tas. E já foi dada a partida numa nova direção. O método obje-
que humana, cuja compreensão é limitada e dada pelo grau da tivo-experimental, que criou a ciência moderna, por esta mesma
sua evolução. Em outros termos, o limite do conhecimento está já foi superado e agora está em segundo plano. Em suma, não
somente na natureza humana e ele se desloca porque esta evo- se pede mais o respectivo conhecimento ao fenômeno, que não
lui, daí a progressão na conquista da verdade. De maneira que o é mais considerado, como antes, o ponto principal, mas passa
homem não descobre o universo, mas a si mesmo. Ele deve para um segundo plano, em posição subordinada.
descobrir sempre novas expressões na sua linguagem, em lugar Esta inversão, pela qual o real se tornou irreal e o irreal, real,
das precedentes, que se tornam inadequadas à medida que as renovará as diretrizes do pensamento moderno, diretrizes que
suas capacidades intelectuais lhe revelam mais profundos as- dão a orientação ao próprio século. Os aspectos espirituais da
pectos do real. Por último, toda representação pode significar vida não são mais considerados ilusórios somente porque não
uma limitação ou deformação dele. Então, a verdade se avizi- são concretos. Eles, assim, avizinham-se de nós e se valorizam,
nha sempre mais do inexprimível, e é exatamente isto que nos entram a iluminar a nossa vida de cegos. O concreto tornou-se
revela a sua verdadeira natureza. E o homem, cansando na su- irreal, e o espiritual, real. Assim, a nossa vida alcançou outras
bida para sair do antropomorfismo, livra-se da ilusão só para se realidades, além dos velhos horizontes, com meios mais sutis do
avizinhar do inexprimível. Cabe-lhe saber, na ascensão, expri- que as velhas vias sensórias. A ciência hoje abre as portas para o
mir o inexprimível, isto é, evoluir a sua psique para saber intro- espírito e, na conquista deste, poderá ser uma grande aliada. Lo-
duzir nela uma representação hoje inimaginável do real. E, as- go que a ciência começou a observar atentamente a realidade
sim, o inconcebível é gradualmente conquistado no concebível. concreta, esta se desfez; o que se tomava por indiscutível solidez
A natureza não é antropomórfica. Começa-se hoje a compre- não era senão um dos sinais sensórios que uma misteriosa, dis-
ender que o homem está superando o seu velho ser. A realidade tante e íntima realidade nos transmitia. Então se compreendeu
não pode absolutamente ser reduzida a esquemas antropomórfi- que aqueles sinais, qualquer fosse a forma que assumissem,
cos. Ao contrário, ela mostra-se aderente a esquemas puramente eram somente uma expressão simbólica de alguma coisa com-
matemáticos, pelos quais se deixa interpretar melhor. A realida- pletamente diferente, que estava atrás das cenas, uma represen-
de mais profunda está mais estreitamente ligada aos conceitos da tação toda relativa, eram a expressão de uma realidade ignota,
matemática pura do que aos da biologia ou da mecânica, que exprimível somente com o símbolo matemático ―X‖.
permanecem mais exteriores. O universo fenomênico adquiriu
um sentido muito mais claro e profundo quando ele foi visto XXI. A CIÊNCIA NA DESCOBERTA DE DEUS
com o olhar da matemática pura. Isto é lógico, porque, quanto
mais soubermos ser abstratos, tanto menos seremos materiais e Quando subimos aos mais altos planos do conhecimento,
antropomórficos, e tanto mais chegaremos perto da realidade, nos avizinhamos do centro em que se dá a unificação de todas
que é de natureza abstrata. Dado que a visão matemática é mais as coisas, para a qual tudo tende, evoluindo. Então, acontece
abstrata, espiritualmente mais elevada do que a mecanicista, é que o cientista e o místico se aproximam tanto um do outro, que
lógico que ela explique melhor as coisas. Dessa forma, desmate- chegam quase a tocar-se no mesmo terreno. Eles representam
rializando o seu concebível, espiritualizando a sua psique, o ho- tudo o que chamamos ciência e fé, que, assim, também se avi-
mem se acerca da compreensão da verdadeira natureza do real, zinham até se fundirem; trabalham ambos num mundo invisí-
realizando dessa maneira a escalada para o inconcebível. Assim vel, onde têm valor experimental, positivo e objetivo fatos de
a ciência, tornando-se sempre mais abstrata, caminha no conhe- natureza imponderável, subjetivos – os fenômenos da consciên-
cimento de uma realidade que, por sua vez, torna-se também cia. Esta parece feita não somente para registrar os dados da
sempre mais abstrata, mas com isto mais verdadeira. Hoje só experiência sensória, mas também os resultados de outras im-
podemos dizer que para nós, lá onde está o absolutamente in- pressões espirituais de caráter todo diverso. Desta ordem de ex-
concebível, está o absolutamente verdadeiro. periências a ciência não conhece absolutamente nada, mas delas
Hodiernamente, quando a ciência chegou a esse grau de es- acabará tendo de se avizinhar, logo que ela progrida para as
piritualização, os modelos mecanicistas do passado são consi- grandes profundidades do conhecimento. Então, cientista e mís-
derados mais um obstáculo que um auxilio para a compreensão tico entram no mesmo mundo do transcendental, em que todas
do real, que está atrás dos fenômenos. Assim, a ciência moder- as formas superiores de consciência se aproximam para se fun-
na prefere os símbolos abstratos das equações matemáticas, o dir; ciência e fé nos aparecem então como dois diversos modos
que nos limita ao conhecimento das relações, o qual nos diz, de ver a mesma verdade, duas vias para chegar à mesma reali-
pelo menos, como as coisas funcionam, embora não nos diga o dade última. A separação e a luta entre ciência e fé são apenas
que elas realmente são, o que virá depois. Com isto, cai o mo- questões de involução. Evoluindo, segue-se para o universal,
delo mecânico, ideia adaptada à forma mental do velho cientis- para o abstrato, para a unidade. O pensamento imaterial que re-
ta materialista, e prevalece uma ordem psicológica de todo di- ge e constitui a matéria torna-se a mesma coisa que o pensa-
versa. Ela nasceu da verificação de que a estrutura da matéria se mento imaterial que constitui o espírito. No alto, tudo se conci-
rebela à visão concreta. Mas essas mudanças não são coisa no- lia e se harmoniza. Então, tudo se unifica num mesmo plano,
84 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
onde trabalham juntos e concordes o cientista, o místico, o ma- entista quem mais se move entre as sombras do irreal. Se ob-
temático, o musicista, o poeta, o santo; onde a ciência é arte, a servarmos a fundo os dados experimentais, eles perdem muito
matemática é filosofia, a pesquisa é prece; onde tudo se funde e da sua valia. O místico, quando alcança a sensação de Deus,
se torna um só impulso para o mesmo único centro, Deus. obtém a prova completa e não procura outras. E, quando se
A mente humana, percorrendo a circunferência do relativo, chega a esta sensação, como se dá em tantos casos e tempera-
tenta alcançar no centro o absoluto, que ela reencontra projeta- mentos diversos, tem-se o mesmo direito de negar que se possa
do em todo ponto daquela circunferência. As suas experiências obtê-la pelas sensações da investigação física. Estas, se as exa-
analítico-objetivas estão dispersas ao longo dessa circunferên- minarmos a fundo, não nos dão nenhuma garantia absoluta. Se,
cia. Mas, progredindo com a evolução, a mente humana penetra atrás de toda sensação, há de existir uma realidade, por que
em zonas sempre mais conexas e vizinhas ao centro, aproxi- umas devem ser falsas e outras verdadeiras? É lógico que am-
mando-se assim, cada vez mais, da unificação. Tal como a fase bas sejam verdadeiras. Então eis que, para o místico, o Deus
criação-involução representa uma projeção na forma, distante que tudo permeia poderá ser a mesma lei onipresente e perfeita
do centro, assim a evolução significa uma reconstituição no que, para o físico, tudo regula. Por ambas essas vias, tão distan-
centro, em unidade, daquele universo, antes cindido no particu- tes e opostas, apresenta-se a mesma imanência de Deus, tão lo-
lar. Isto também para o conhecimento, que assim torna-se sem- go a consciência se eleve mais para o centro do ser. O místico,
pre mais unitário. Dessa maneira, elimina-se progressivamente porém, quando queremos nos avizinhar da mais profunda e
o separatismo humano, que divide o conhecimento em mil verdadeira realidade, tem muito mais a dizer do que aquele es-
afirmações antagônicas em luta entre si. Assim, aos poucos, curo mundo de símbolos com que a matemática, uma vez que a
caminha-se para a verdade única, que é luz e que, dada a estru- representação mecânica e antropomórfica diz bem pouco, pro-
tura do universo, é tanto mais verdadeira quanto mais é abstrata cura hoje ver no mistério do universo físico-dinâmico. O pró-
e unitária. Essas são as características que devem ter as maiores prio cientista sabe que tudo isto não o coloca em contato com a
verdades futuras, mais avançadas que as atualmente concebidas última realidade e que dela obtém apenas puras interpretações,
pelo homem. Quanto mais se progride, tanto mais se tornam algo bem diferente do absoluto e definitivo. O místico pode, ao
pesados e insuportáveis os muros divisores, o separatismo de contrário, ensinar-nos que, além dos sentidos apropriados para
todos os enquadramentos humanos e a luta entre verdades, que a análise objetiva, o homem possui um senso interior dos valo-
são diversas e rivais somente devido à involução. res e do caminho para atingi-los; que, além dos recursos pura-
Quando se alcançam os mais altos planos do conhecimento, mente racionais do cientista, há meios intuitivos mais rápidos e
todas as formas de investigação se dispõem em paralelo e todas sintéticos; que, além dos sentidos imediatos, existem meios de
as formas de experiência, da científica à mística, avizinhando- percepção direta aptos para apreciações que se estendem a
se do centro, igualam-se e, concordando, colaboram para o campos inacessíveis ao raciocínio. Por outro lado, no fundo da
mesmo fim. Evidentemente, a substância do mundo em que vi- observação sensória, há a premissa axiomática, apriorística e
vemos representa algo que transcende tudo quanto pode ser não demonstrada, de que os nossos sentidos constituam um ca-
medido com os instrumentos da física e até o que é descrito nal para o conhecimento, apto a revelar o significado real das
com os símbolos da linguagem matemática. Se, portanto, o mís- coisas. Os primeiros momentos da ciência racional são inde-
tico vê com modo próprio as realidades profundas e nos revela monstráveis, super-racionais e intuitivos, como os últimos. O
um aspecto delas, não podemos, ―a priori‖, excluir essa forma matemático puro não tem uma opinião elogiosa sobre os méto-
de investigação, nem podemos dizer que ela não esteja mais dos de dedução usados pela física e desaprova a fragilidade do
perto da verdade do que as outras, pois, de qualquer modo, ela que é aceito como prova pela própria ciência física. Isto de-
possui sempre um significado e tem alguma coisa a levar para a monstra a contribuição que pode dar a intuição do mundo invi-
ciência. Não se pode excluir nada. Não se pode negar que tam- sível por parte do místico, ainda que, do ponto de vista da ciên-
bém os nossos sentimentos e impulsos espirituais possam atin- cia, possa parecer inconsistente, porque imprecisa.
gir alguma revelação daquela realidade. Esses resultados, em Concluindo, nenhum caminho deve ser desprezado para en-
vez de serem repelidos como desprezíveis, por não serem posi- frentar o mistério; ele é tão profundo e complexo, que todo au-
tivos, deveriam ser coordenados com os do físico e do matemá- xílio nos é necessário; é tão vasto e múltiplo, que todos os ca-
tico, para obter uma compreensão sempre mais completa da re- minhos podem conduzir à sua solução. Na própria ciência posi-
alidade das coisas. Não se pode absolutamente dizer que só pe- tiva, que acredita ter base sólida, vemos que os resultados con-
lo fato de usarmos os meios sensórios do espírito, em vez dos seguidos por uma geração não valem mais para a seguinte. É
relativos e ilusórios do corpo, caímos no erro e no irracional. tudo um contínuo fazer e sobrepujar, em todo campo. Pode-se,
Pode ser que se trate apenas de um raciocínio diferente da cor- então, perguntar se essa contínua mudança do nosso conheci-
rente racional científica, mais profundo e mais potente, que, re- mento em todo campo não seria apenas o efeito da evolução
sultando da observação e contemplação mística, também pode psíquica humana, da qual depende tudo o que pensamos, não
ser positivo e importante para o conhecimento. sendo senão o seu índice; se toda objetividade científica não se-
Sem dúvida, a ciência chegou hoje à concepção de uma rea- ria senão uma função dos nossos meios sensórios e psíquicos;
lidade do todo transcendental que antes lhe escapava e, com is- se o nosso conhecimento não dependeria, sobretudo, da evolu-
to, veio a se debruçar sobre o campo das experiências do místi- ção daquele instrumento que é a nossa mente. É certo que, em
co. Chegamos ao ponto em que isto pode fornecer alguma ori- princípio, para uma inteligência nata e feita para os fins imedia-
entação à ciência, e esta pode então receber a contribuição de tos da vida, o ingresso nesses campos de investigações abstratas
uma tão inusitada fonte. Nos capítulos precedentes, vimos co- pode dar o sentido de uma aberração biológica, de uma ativida-
mo a concepção e Einstein pode ser orientada e continuada no de anormal. O intelectual que avança nesse terreno poderá pa-
campo filosófico. Agora, aquela concepção pode continuar recer uma monstruosidade para a classe média, alguma coisa
também em forma mística, numa visão universal. Neste volu- que vai além da vida, à qual interessa primeiro a nutrição e a
me, diante dos últimos problemas, ciência, matemática e misti- reprodução, coisas que não apenas são bem conhecidas do ho-
cismo aparecem fundidos numa única síntese, convergindo para mem normal, mas também estão no fundo da vida do pensador.
ela harmonicamente. A intuição mística encontrou confirmação O primitivo, normal, não tem nenhuma necessidade de conhe-
na mais recente físico-matemática, e esta nos conduz àquela. cer a estrutura do universo para viver. No entanto um futuro da
Mas diremos ainda mais. Pondo-nos diante da última reali- evolução não é sequer imaginável senão nessas atividades su-
dade, poderíamos perguntar se, em vez do místico, não é o ci- pernormais, hoje aberrações biológicas, amanhã criações de
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 85
novos tipos de existência. O conhecimento é, sobretudo, resul- reconhecem que o nosso universo dinâmico-físico pode ser uma
tado da evolução. O intelecto, como tudo no universo, desen- formação involutivamente descida na 4a dimensão, ou ―contí-
volve-se e floresce. O que verdadeiramente rege tudo é a ima- nuo‖ espaço-tempo, da 5a dimensão, que é a consciência. E o
nência de Deus; o que guia tudo é a Sua constante obra criado- que quer dizer isto senão o físio-dínamo-psiquismo evolutivo
ra. Vemo-nos porque antes, sem o sabermos, foi construído o atual, na sua inversa fase criadora? Esta consistiria justamente
olho. Com este e outros sentidos formados do mesmo modo, em uma emanação do pensamento de Deus, de que, também pe-
debaixo do estimulo da luta, que instrui e seleciona, o homem la ciência, derivaria toda a formação do nosso universo.
descobriu depois as leis ópticas, segundo as quais, há muito O esquema desse universal transformismo cíclico se repro-
tempo, sem que ele as houvesse analisado e compreendido, o duz em toda parte, debaixo de nossas vistas, nos casos menores,
seu olho já funcionava. Assim ascende-se ao atual superconce- que nos são acessíveis. Em um universo conexo, harmônico e
bível pouco a pouco, com a formação e o aperfeiçoamento do analógico em toda parte, isto é uma prova. Tudo é cíclico no
órgão psíquico, e somente este fato poderá permitir, com uma universo, tudo renasce das radiações em que tudo se dissolve.
mente mais perfeita, penetrar a estrutura daquele conhecimento Diz o mesmo James Jeans: ―As estrelas atuais se volatilizam
que hoje não se alcança. Toda a nossa incompreensão dos últi- em radiações que de novo tomarão consistência, tornando-se
mos problemas é questão de imaturidade biológica. matéria... Assim pode-se representar o nosso universo como cí-
◘ ◘ ◘ clico, isto é, enquanto numa região ele morre, em outra os pro-
Termina por ora a nossa corrida no campo da ciência mo- dutos de sua morte são capazes de produzir novas vidas‖.
derna. Temos comprovado e desenvolvido muitos conceitos Eis traçado aqui, no âmbito físico-dinâmico, o inverso respi-
sumariamente expostos no começo de A Grande Síntese. Reu- ro criador-evolutivo do universo. A ciência já viu esse traço do
nimos também as conclusões filosóficas e místicas do capítulo dúplice transformismo. Temos primeiro, então, a formação dos
―Deus e Universo‖ com as da mais moderna ciência físico- núcleos de matéria no espaço, dinamizados pelo pensamento
matemática. Assim, a nossa concepção da estrutura espiritual criador, e depois a irradiação dinâmica desses núcleos altamen-
do universo concorda com a atômico-dinâmica dos maiores fí- te dinamizados, até seu esgotamento (entropia), mas, em conse-
sicos e matemáticos hodiernos. A ordem moral, em que se mo- quência, formam-se os planetas e sobre eles a vida, incumbida
vem as forças espirituais, funciona em harmonia com a ordem da transformação da energia em consciência e pensamento.
dinâmico-física, concebida segundo as últimas teorias da relati- Cumpre-se assim o ciclo de ida e de retorno do ser, de Deus pa-
vidade de Einstein, dos ―quanta‖ de Planck, da física estatística ra Deus. Tudo é cíclico e volta ao ponto de partida. Hoje, a di-
e quântica, do ―contínuo‖ quadridimensional e do espaço- reção do tornar-se é evolução. Ou avançar ou morrer. A vida
curvo. Aqui vimos como essas teorias podem desenvolver-se no está a caminho do espírito.
campo filosófico, nas teorias conexas desenvolvidas na primei- Tudo, porque é cíclico, é curvo no universo. O átomo é es-
ra parte de A Grande Síntese, segundo as quais o mundo físico- férico como os sistemas planetários. Curvo é o espaço, dimen-
dinâmico é conjugado com o mundo moral. Assim aparece o são do universo físico, que hoje, em fase evolutiva, está em ex-
todo-uno que denominamos monismo. pansão; curvo é o ―contínuo‖ quadridimensional em que se
Tudo isto converge para a demonstração que esse todo-uno fundem o espaço e o tempo, dimensão da energia; curvo é o
é realmente um físio-dínamo-psiquismo, o conceito central des- conceito criador-evolutivo, que assim cumpre o ciclo e retorna
tes escritos. Estes três modos de ser da mesma substância única ao ponto de partida. Curvatura universal, expressa pelo univer-
são conexos por um transformismo que os muda um no outro, sal esquema do ciclo; curvatura de todas as dimensões do ser,
seja em um respiro de ida, de involução ou centralização, seja em que finito e infinito se fundem. Curvatura expressa pela lei
em um inverso respiro de retorno, de evolução ou expansão, de causalidade, onde causa e efeito, efeito e causa, ligam-se em
que é o atual. Trata-se de uma viagem através de progressivas cadeia num circuito que se completa, retornando às origens. Es-
dimensões, de uma viagem que, em nossa fase, é uma íntima se é o esquema do universo.
autoelaboração, em que Deus está presente e ativo e pelo que Eis a grande e simples ideia que tudo explica e contém. A
tudo volta a Ele. Hoje, tudo se dirige para o puro pensamento. explicação, quanto mais simples, tanto mais é convincente.
A visão da ciência é mais circunscrita. O ponto de vista ci- Nesta, que tudo enquadra e em que tudo torna a entrar, tem-se
entífico mais ortodoxo é que a entropia do universo aumente e maior probabilidade de reencontrar a mais fiel interpretação do
deva aumentar até ao seu valor máximo final. Ela é rapidamen- verdadeiro. Ela é hoje a mais completa e exauriente. A conclu-
te crescente. Mas a ciência para na atual fase evolutiva, que de- são deste nosso trajeto, levado a termo com a ciência, que ca-
ve justamente, porquanto se encaminha para o espírito e repre- minha para a descoberta de Deus, é que o universo não é uma
senta a reconstrução dessa forma do todo (Deus, pensamento), realidade inconsciente e mecânica, onde reina o acaso, mas algo
representar a morte da matéria, como a involução representa a sempre mais como um grande pensamento que sabe melhor do
morte do espírito Assim, isolando a entropia numa só direção, que um grande maquinismo autômato, ignaro de si. Também no
sem ver o transformismo oposto, não se pode compreender essa universo físico e dinâmico se revela a inteligência e a consciên-
transformação. Foi na precedente fase inversa involutiva que se cia. Elas regulam tudo através de uma lei perfeita, que se dis-
concentrou aquela potência que agora se manifesta e vai gas- tingue das leis humanas, enquanto não sofre exceções e nunca é
tando-se, nivelando-se como entropia. Ela não é senão um de- violada. Ela determina o ser e lhe define as propriedades. No
senvolvimento que, anulando a forma-matéria, cria a forma- mundo físico, os símbolos matemáticos indicam essa irrevoga-
espírito, que é o retorno a Deus na ascensão evolutiva atual. bilidade absoluta. Na matéria e energia, ela é uma regra íntima,
A técnica da criação é explicada por esse atual retorno, que tão inserida na essência das causas, que está em sua natureza
equilibra um transformismo inverso: psíquico, dinâmico, físico, segui-la, de modo que ela é espontânea, não forçada, livre mas
de criação do universo sensível, da forma, por um ato do pen- nunca desobedecida. Enquanto nas leis humanas é a realização
samento puro. Este, a ciência hoje o verifica; ficou como que que é difícil, aqui é a não realização que é impossível. Acontece
emaranhado em toda parte, revelando-se presente na estrutura o que deve acontecer, conforme a Lei. Entre os mundos involu-
íntima da matéria. E isto tanto é verdade, que a reduzimos a ídos da matéria e da energia e os planos mais evoluídos do espí-
uma fórmula matemática, uma vez que esta é a representação rito a diferença é que essa obediência inconsciente torna-se
mais próxima daquela realidade, que é abstrata. James Jeans, consciente; mas a Lei sempre domina, e a vida, ainda que atra-
como homem de ciência, diz que o ato da criação é uma materi- vés do erro e da dor, serve para ensinar a se tornar consciente,
alização do espírito. Mas também vários outros cientistas hoje isto é, a segui-la livremente, como o próprio e máximo bem.
86 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
Ela é o pensamento de Deus, de que tudo depende. O espírito, tão Deus parece dar-nos força e falar muito mais potente para
pois, é universal, porque hoje, também para a ciência, ele não nos dizer: vai, vive, luta, resiste, age, mas vive!
parece mais um intruso, nem mesmo no reino da matéria, mas A vontade de Deus é que a vida viva a todo custo, utilizan-
fundido nela, emergindo evidente das suas profundidades. O do todos os seus recursos, aprendendo todas as coisas, boas e
espírito que denominamos Deus aparece hoje também para as más, conquanto se viva. Ora, quando a fera mata para não mor-
grandes mentes diretivas da ciência, como o criador e o gover- rer de fome ou o involuído, esmagado, rebela-se e rouba, tor-
nador de todo o universo. Tudo isto prova que, hoje, verdadei- nando-se delinquente porque não tem outro meio para viver, é a
ramente, caminhamos para a nova civilização do espírito. voz de Deus que diz: vive. Quando o santo tudo sacrifica, até a
vida, pelo ideal, é a voz de Deus que diz: vive. Essa voz nunca
XXII. O DRAMA DE QUEM CRÊ se resigna definitivamente à morte e, diante desta, revive, reno-
vando-se em novas vidas. Também a fera e o homem-fera que-
De quanto dissemos resulta a inegável presença de uma in- rem viver. Mas cada um tem a sua vida. O involuído não tem
teligência nas coisas. Como podemos então perguntar se uma outra e se apega à vida animal, que é tudo para ele. E se o santo
tão profunda sabedoria pode às vezes falir como na morte, na a entrega, é porque ele viu uma outra vida a ser conquistada, da
dor, no aborto, e não ser capaz, assim, de alcançar os seus fins? qual o primeiro nada sabe. O santo se rebelaria com a mesma
Como é que tanta potência pode aceitar tanta limitação? Mas potência, se bem que em planos e com métodos diversos daque-
será isto verdadeira limitação, ou toda barreira depois vem a les com os quais se rebela o involuído, quando lhe viesse a ser
ser igualmente sobrepujada, e a vida, portanto, pode ficar indi- tirada a sua vida de santo, tal como aquele reage quando se lhe
ferente a essas falências? E tudo isto não poderia ser, ao con- tira a sua vida de besta. Porém, se bem que ele tenha razão no
trário, uma forma de vitória e um meio de conquista? Então é seu plano inferior, o seu modo de comportar-se o qualifica e o
possível, quando tudo rui em torno de nós, que Deus funcione revela como ser inferior. E esta marca é a sua mais grave con-
também através da nossa esperança desiludida? Sinto, então, denação, porque isto implica em estar ele ligado a formas de
que alguma coisa se move com a fé e que ela, embora não se vida inferiores. Mas a vida quer viver em todo plano e, quando
alcance imediatamente a realização, permanece e, dessa forma, lhe falta o necessário, procura-o por todos os meios. Com lobos
não se torna vã. O Deus imanente e recôndito parece não ter saciados poderemos sempre viver tranquilos, em paz, mas nun-
pressa de se manifestar e saber realizar os seus fins, mesmo ca com lobos esfomeados. Ora, a vida nos faz compreender, pe-
através da falência e além da nossa desilusão. Mas nós quere- lo modo como incita os lobos esfomeados contra os seus esfo-
mos e procuramos a via mais direta e segura para conseguir o meadores, que ela é necessidade para todos, é dever e direito
êxito, porque, em nós, a vida o procura e o quer. Porém deve- ainda se os esfomeadores, somente porque são mais fortes,
mos verificar que os cálculos da razão, na prática, podem falir classificam como culpa a defesa de quem é esmagado e como
como os impulsos da fé. Nenhum dos dois métodos sabe dar- justo direito o seu próprio ato de esmagamento. Assim se expli-
nos uma segurança; um não é mais válido do que o outro. Fra- ca como, em dado momento histórico, quando chega a maturi-
cassam os grandes calculadores prudentes e previdentes, e, por dade das classes inferiores despertadas, a vida, como vontade
vezes, alcançam êxito, com métodos opostos, homens que só de Deus, possa impeli-las a conquistar por si aquele bem-estar
têm fé e arriscam tudo, e ao contrário. Tal é a complexidade da que dois mil anos de Evangelho aconselharam em vão aos de
vida e tantas incógnitas ela contém, que nunca há nela algo de mais posses repartir fraternalmente.
seguro. Mais não nos resta senão confiar-nos a essa imanente, Quando o evoluído fracassa no seu plano, ele sente que está
sim, mas tão recôndita sabedoria, que tudo rege, e nos limi- tentando realizar um tipo de vida super-humano, mas que, por
tarmos a fazer de nossa parte o que pudermos, pois que, seja enquanto, aquela tentativa fracassou. Não conseguir por en-
como razão, seja como fé, sempre podemos muito pouco no quanto o que deseja não constitui derrota, mas faz parte da es-
seio de um universo sem limites, também como pensamento. tratégia de conquista. Então, se o homem é maduro, a fé que pa-
Parece que este Deus, que tudo sabe e sem o que nada pode recia aniquilada pela desilusão, ressurge mais forte por outro
existir, procura tornar-se inacessível para nós. Tão logo os fe- lado, como se potenciada pela derrota, mais aguerrida para me-
nômenos nos dizem que Ele não é antropomórfico, como in- lhor poder vencer novas batalhas. Porque a verdadeira fé não é
genuamente imaginávamos, e acreditamos haver descoberto um estado inerte e passivo, mas uma arma que deve ser refina-
alguma coisa e saber algo mais, percebemos então que sabe- da, uma posição de vanguarda que deve ser consolidada, que
mos menos, porque, suprimindo o antropomorfismo, Deus de- pode vacilar e que se pode perder, mas que se pode reconquis-
saparece do nosso concebível e não sabemos como procurá-lo. tar. A fé sentida é uma força útil na grande batalha para a evo-
E a tão declamada sensação de Deus que o místico obtém, é lução, para a conquista no espírito e para a ascensão até Deus.
verdadeiramente sensação de Deus ou será o resultado de A alma sente a utilidade da fé nessa luta e, conhecendo-a, não a
quem sabe quais processos psicológicos subconscientes? Con- abandona mais. Quando a vida provou a fé e conquistou essa
tudo, nem por isto, eles ficam menos verdadeiros. E o que de- força, decidiu mantê-la, pois que nunca deixa o que lhe é útil. A
les sabemos nós da sua verdadeira função biológica criadora e fé é um novo sentido, um tentáculo estendido para o ignoto,
em que relação eles estão com Deus? com um poder de intuição que pode errar, mas que, errando, se
É certo que esse nosso corpo e a sua psique, aliados num corrige, se aperfeiçoa, se consolida. Ela é um meio positivo de
conjunto para viver a todo custo contra tudo e contra todos, po- defesa da vida, apto a progredir sempre. Para quem provou uma
dem pregar-nos boas peças e dar-nos perspectivas ilusórias. Mas vez a fé, há, ainda quando esta fracasse e pareça nos haver en-
é certo também que a vida dificilmente se deixa enganar nos ganado, um instinto que conduz à sua salvação, porque ela pos-
seus escopos de vencer. Então é lícito suspeitar que toda derrota sui a grande função de ser a última âncora de salvação, sem o
não seja senão uma vitória transferida, porque, para a vida, o que toda derrota não pode ser senão desespero. A esperança que
tempo não falta; é lícito pensar que a derrota seja a condição de a vida nos impõe, ainda quando tudo parece perdido, é um ins-
uma vitória maior. Certamente, o instinto nos indica muitos ca- tinto que vem do Deus presente, que quer que vivamos ainda;
minhos para vencer, e, através deles, Deus, sempre presente, nos instinto que, irracionalmente, parece saber que, não obstante
impele para salvar-nos. Ele se manifesta como uma espécie de tudo, derrotas, dores e até mesmo a morte, a vida continuará. É
recuperação contra os assaltos, como uma reação nossa, defen- este instinto, em que fala o Deus imanente, que nos faz crer na
siva e protetora, que parece automaticamente fazer-se tanto mais vida além da morte. Além de todas as aparências contrárias, es-
forte quanto mais forte foi o golpe arremetido pelo exterior. En- se instinto nos diz que a vida não pode acabar.
Pietro Ubaldi PROBLEMAS DO FUTURO 87
Estranho, misterioso mundo este, que somente a fé no-lo do seu próprio, que chamaria de ilusão, embora, relativamente a
pode abrir! Por momentos, ele se abre de par em par; depois, ele, no seu plano, seja uma realidade. Todo mundo é real no seu
torna a se fechar. Ele nos enceguece com seus raios, no entanto nível, mas ilusão se visto de outros planos, e todo ser é dotado
parece feito de treva profunda. Na fé está o porvir da vida. Há da sabedoria que lhe serve para a sua vida. Se o homem vai
um pressentimento de divina indestrutibilidade em todas as coi- conquistando o conhecimento do universo, é porque a sua vida
sas. Não é essa a voz de Deus, que nos fala das profundezas? É se dilata em proporção àquele conhecimento que lhe deverá
a eternidade da essência das coisas que nos fala, revelando-se servir. Tudo é relativo em nosso universo, que é relativo. Sem
do profundo de tudo o que existe, dizendo-nos, através de um ir tão longe, observando casos menores, ainda em nosso mun-
indomável instinto nosso, que, não obstante toda a aparência do, vemos que existem entre os homens diferenças profundas,
contrária, segundo a qual tudo é lábil e transitório, parecendo dadas pelos diversos planos biológicos em que vivem, confor-
poeira e ilusão, tudo, ao contrário, é estável e real. E o que é es- me o seu grau de evolução. A ciência médica, bem como as ci-
ta voz senão a revelação da universal presença de Deus? Então ências sociais, dirigem-se para o tipo médio e aplicam para to-
levanto a vista para o céu e digo: ―Deus, perdoa-me se, no mo- dos normas estandardizadas e adaptadas àquele tipo. Assim,
mento em que as coisas fracassaram, a minha fé caiu e assim te quem é menos ou mais evoluído que este padrão, deve adaptar-
reneguei. Eis que Tu novamente surges diante de mim, mais vi- se à medida comum, ou elevando-se para um comportamento
vo e mais presente do que antes. Nenhum fato contrário nunca superior à sua natureza, ou rebaixando-se para um inferior.
poderá eliminar a Tua presença. Tu estás aqui, e eu Te escuto‖. Bem dura será na Terra, entre os normais tipo ―standard‖, a vi-
Será ilusão, mas com a fé pode-se operar muitas coisas que, da do ser que alcançou no espírito formas biológicas superiores.
de outra maneira, não podem ser feitas. O fato é que ela é útil, O primeiro obstáculo colocado diante desses puros pesqui-
serve-me, e eu a utilizo para a vida. A desilusão escava mais sadores da verdade, a esses ascetas do pensamento e sacerdotes
profundamente, com o resultado de demolir uma fé superficial do espírito, é a humana intransigência e mania de enquadra-
e encontrar uma mais profunda. Porém é preciso ser prudente mento, pelo que tudo já está aprioristicamente catalogado se-
também na fé, pois que também ela oferece os seus riscos. gundo os interesses de cada grupo. Quem procura seriamente a
Quem se aventura loucamente, confiando na imaginação, fana- verdade tem necessidade de ser livre, e não preso a pontos fi-
tizando-se e crendo que a fé consista nisto, pode estragar esse xos e soluções já dadas. Assim ele se encontra de maneira a
mecanismo maravilhoso e, então, a fé não pode funcionar em não poder dar um passo sem encontrar um muro divisório e,
suas mãos. A culpa, então, não é da fé, mas de quem não soube atrás dele, um inimigo armado. O involuído é separatista,
crer justamente. E, renegando-a, distanciamo-nos de uma via agressivo, absolutista. O evoluído é universal, pacífico, tole-
salutar, que nos conduz para forças boas e amigas. rante. Como tal, não pode ser enquadrado nos grupos huma-
Disse que Deus desaparece da nossa mente quando O de- nos, com base em interesses e ávidos de se destruírem para
santropomorfizamos. No entanto Ele ressurge em nosso pensa- dominar. Desta sorte, o evoluído não encontra senão tentativas
mento e diz a cada um de nós: ―Olha em torno: em toda parte, de encarceramento da sua universalidade em limitações huma-
Eu estou‖. E tudo volta a falar-nos d'Ele, que volta a nos olhar nas. Disto resulta o seu sufocamento e o secar-se daquela fonte
de uma miríade de rostos diferentes. E nós, que julgávamos espiritual de que o tipo inferior, mais do que todos, tem neces-
havê-Lo perdido por não O vermos mais localizado numa for- sidade. A esses seres que emergem do tipo biológico normal
ma, vemo-Lo ressurgir diante de nós em todas as formas. Re- impõe-se a luta de todos, de modo que eles devem saber viver
almente, para muitos, essa imanência pode tornar-se amedron- como anjos entre demônios e produzir no espírito, em meio a
tadora, então eles se afanam em enclausurar Deus nas igrejas e turbas de encarniçados ventres ambulantes.
distanciá-Lo no transcendente, para ficarem mais livres de Sua Sem dúvida, o método da luta é útil à vida para os seus
presença, que os preocupa em seus negócios quotidianos. Mas o fins seletivos, mas, nessa forma, o é só nos graus inferiores,
justo, que sofre e tem ânimo puro, goza dessa imanência e se onde o ser não sabe aplicar um mais elevado gênero de ativi-
lhe agarra com todas as suas forças, como única defesa, e não dade evolutiva. Mas, em planos superiores, essa forma de ati-
há condenação espiritual que possa separá-lo dessa sua fé. vidade é completamente estúpida e inútil para os fins seleti-
A nossa rápida corrida através da ciência nos confirma vos. O ser superior afasta-se dela completamente, com a tole-
sempre mais a ideia não só da existência, mas também da ima- rância e o perdão. O inferior, que não sabe fazer melhor do
nência de Deus. Se essa sabedoria por vezes parece fracassar e que faz, tem necessidade, para aprender a evoluir, do egoís-
ser contrastada pela dor e pelo mal, trata-se apenas de uma apa- mo, da rivalidade com o vizinho, da agressão recíproca, da
rência. Para quem vê em profundidade, esses desequilíbrios são fome e da resistência de um ambiente hostil. E tudo lhe é for-
reabsorvidos em equilíbrios maiores e, no fim, são eliminados. necido em proporção. Mas, para o evoluído, a seleção se rea-
Certo é que o universo aparece diferente segundo o olho que o liza em forma totalmente diversa. A sua atividade se dirige
vê e o plano de onde se vê. Então nos vem a propósito pergun- para criações muito mais profundas. Para ele, é completamen-
tar como apareceria o nosso mundo visto de um plano macros- te estúpido matar-se uns aos outros, quando, para viver, o que
cópico. Talvez do mesmo modo como a nós aparece o mundo há na Terra sobra para todos. Mas, se comem uns aos outros
submicroscópico. E, assim como nos escapa o universo ma- os seres que ainda não compreenderam o rendimento utilitário
croscópico, também não poderíamos perceber o mundo do nos- do trabalho fraternalmente orgânico e por isto lutam e sofrem,
so plano, se tivéssemos uma mente e sentidos adaptados a per- é justamente para aprender tudo, que é a meta da sua evolu-
ceber o mundo submicroscópico. Uma consciência submicros- ção, já alcançada pelo evoluído. Este encontra-se só e deve
cópica, quem sabe com que esforços, chegaria somente a algu- viver entre os que ainda não podem compreendê-lo.
ma aproximação daquele mundo sensório que forma a nossa re- Mas, para o homem normal, é coisa diversa. Para o animal,
alidade concreta! Avizinhar-se-ia dele como fazemos com os se não fosse a agressão, quem lhe ensinaria a astúcia e quem lhe
universos galácticos, com tais e quais observações, hipóteses, formaria a inteligência? Tudo sempre se escreve em nosso eu;
teorias, cálculos, controles experimentais e por sínteses pro- onde e como, não sabemos, mas permanece escrito. O evoluído,
gressivas. Uma consciência assim formada deveria fazer estu- que não tem necessidade de reforçar a inteligência, pois, pelo
dos, quem sabe quais, para distinguir a água da pedra e nunca menos nesse plano, já a formou, sabe esquivar-se ao golpe,
poderia perceber e compreender um ocaso, uma flor, um qua- porque é inteligente. O néscio, que tem necessidade de reforçar
dro. De seu próprio plano, portanto, o homem sabe muito mais. a inteligência porque ela ainda lhe é escassa, é o que menos sa-
Se ele pertencesse a mundos menores, não compreenderia nada be defender-se e o que mais se expõe, portanto apanha todos os
88 PROBLEMAS DO FUTURO Pietro Ubaldi
golpes. Ele é o bom bocado dos espertos dedicados à caça ao não sabe utilizar senão para a morte e a destruição. A invenção
parvo; ele é o que mais vai à escola. Quem mais sabe, por mais da bomba atômica parece secundária diante da descoberta de
ter aprendido, não frequenta mais as aulas. Não se pode impedir raios letais que teriam um efeito infinitamente superior ao pro-
isto, porque é da vida que no mundo social, a cada passo, exista duzido pela desintegração de um núcleo de plutônio ou de urâ-
uma armadilha e um lobo pronto para dilacerar. Tudo é lógico e nio. São conhecidas as reações em cadeia na desintegração dos
equilibrado no plano normal e tem o seu justo escopo. Tudo é átomos. Nesse processo se formam radiações gamas que inter-
proporcionado à necessidade de evoluir e à sensibilidade dos rompem a cadeia desintegradora. Se essas radiações podem
homens que, para compreender, têm necessidade de duros gol- causar distúrbios na desintegração em cadeia completa, então
pes. Mas, para o evoluído, ficar imerso nesse mundo e exposto eles podem criar zonas letais. Acelerando-se essas radiações e
a esse gênero de luta é coisa inútil e antivital, enquanto ela é regulando-se-lhe a velocidade e a direção, poder-se-ia canalizá-
útil e vital para os outros. Ele deve gastar tempo e energia para las a uma velocidade teórica de 300.000 km por hora a um ob-
não ficar ferido, enquanto desejaria cumprir o seu fim, para o jetivo até 100.000 km. Nesse campo, toda vida deveria cessar.
qual ele está na Terra, fim bem diverso daquele egoístico dos Como se vê, a ciência do mal não está em ócio.
demais, e que é o bem dos outros. Os homens, aninhados em suas posições conquistadas com
A incompreensão da posição do evoluído por parte do esforço, desejariam, para conservá-las, que nada caminhasse
mundo chega ao ponto de considerá-lo um anormal, e o seu es- no mundo, permanecendo tudo imóvel. Mas a vida não pode
tado é tido como patológico pela medicina, que não admite se- parar. Que faz parte dos insuprimíveis ímpetos evolutivos, não
não um modelo estandardizado, baseado no tipo biológico mé- é o revolucionário louco ou egoísta, que mente em vantagem
dio, dominante por número. Todo o resto é definido como pa- própria, mas sim o revolucionário sábio, que trabalha em con-
tológico. Não se admite o tipo biológico transcendente, super- tato com o pensamento de Deus e em harmonia com as leis da
normal, imerso no duro trabalho criador que se opera naquela vida. E pense-se que a ascensão em todo campo é a grande lei
fase de transição evolutiva que os demais ignoram. Por razões do ser, o princípio fundamental do universo, sustentado pelas
de prática atuação, hoje os princípios terapêuticos, econômicos maiores forças da vida. Pode-se matar o homem que personifi-
e sociais são todos estandardizados, contudo nenhuma coisa é ca essas forças, mas elas estão acima de todo poder humano e
igual a outra e nada é mais absurdo na natureza do que o igual não se pode destruí-las. Deus está com os homens que se sacri-
para todos. Dever-se-ia chegar, ao contrário, a um novo ramo ficam por esses escopos de ascensão humana, e, para cada um
de medicina do supernormal, cujas perturbações evolutivas se- deles que se mate, renascem cem.
jam entendidas como normais e salutares, e não, como hoje, Há mais de um século que o mundo se orientou para o mate-
patológicas, como também não são patológicas para a mulher rialismo, que, em seu tempo, também teve a sua função. É o fe-
as dores do parto. No entanto, muitas vezes, no caso do evolu- nômeno equilibrado das oscilações do pêndulo ou do retorno
ído, esses princípios são considerados patológicos, qualifica- cíclico dominante na vida, também na social, que agora impõe
dos com nomes que dizem bem pouco, como histerismo, neu- um impulso na direção oposta, ou seja, para o espiritualismo.
roses e semelhantes. Como se daria o parto de uma mulher que Isto é elementar. A vida harmônica e equilibrada está para dizer
visse o seu feto considerado como um tumor a ser operado e o seu ―basta‖ aos homens da matéria. Isto significa a sua liqui-
devesse suportar intervenções nesse sentido? Todavia assim dação. Tudo é periódico e equilibrado na natureza. Estamos su-
acontece com o futuro tipo biológico que hoje, excepcional- jeitos a retornar a uma ordem, estamos sujeitos a uma vontade
mente, começa a formar-se, tipo que deverá sempre mais se cósmica, contra a qual o homem nada pode. E este que se con-
generalizar, porque é no espírito que está o único porvir da vi- clui, é o nosso oitavo volume, que estuda o pensamento e o
da. É preciso compreender que certos desequilíbrios são neces- comando dessa vontade cósmica, da qual o homem quase não
sários como condição de equilíbrios mais altos, que assim são faz nenhuma conta. Ela fala sempre, e a escutamos em todas as
conquistados. Formou-se desse modo uma pseudopatologia. suas expressões, das seguidas pelo cientista às percebidas pelo
Entretanto, quando o novo tipo biológico de amanhã começar a místico. Escutar, para eles, constitui espasmo, porque aquela
formar-se com maior frequência de casos, deverá nascer essa voz é terrivelmente potente e fala do inconcebível. Para com-
nova medicina que contempla os distúrbios evolutivos e as preendê-la, é preciso enfrentar o martírio da mente e do cora-
perturbações orgânicas e psíquicas geradas pelo transformismo ção, pois somente então ela responde, somente através desse
biológico, que tende para mais altas formas de vida. martírio o homem se torna digno de ouvi-la.
A progressiva evolução humana está transformando tudo na O esforço da vida é fugir à paralisação dos mundos inferio-
Terra, e o involuído ainda não se apercebe dela. A ciência está res e evadir-se da imobilidade e do determinismo das leis dos
prestes a abrir muitas portas do mistério, derrubando muitos planos mais involuídos, para conquistar liberdade e domínio.
ídolos, e iluminará muitas mentes, modificando em consequên- Contra a morte, o ambiente hostil, as forças do mal, o egoísmo
cia a nossa vida individual e social. O ultramicroscópio eletrô- do involuído, a vida quer subir para Deus. Esta é a Lei. Por isso
nico (utilizável somente com a fotografia) pode alcançar au- a vida arrisca o novo e imola tantos exemplares, para explodir
mentos de 40.000 diâmetros. Mas, com isto, estamos bem dis- da forma para o espírito, para evadir-se da matéria, para elevar-
tantes de poder penetrar a alma das coisas. Atrás do mundo das se, sempre insaciável de superamentos. Assim, a vida lança os
aparências, há um outro mundo, de potências. Entretanto tudo seus campeões e, para esse fim, também os sacrifica, mesmo
já está escrito e resolvido no pensamento universal, basta so- sabendo que arrisca a sua melhor parte. O pensamento criador,
mente saber ler nele. A solução de todos os problemas está em concentrado nas formas inferiores, não está morto. Ele está aí
ideias ou ondas pensamentos que já existem e circulam na at- prisioneiro, mas pronto a se desenvolver em energia e de ener-
mosfera espiritual do cosmo. Nada há para descobrir; basta gia em psiquismo, porque quer se libertar e retornar a ser ele
apenas saber evoluir e, consequentemente, sensibilizar-se, que próprio. E eis que, no fundo de todo conceito, reencontramos
tudo se tornará visível e evidente. Este trabalho que cabe ao sempre a vertigem do infinito.
evoluído, àquele que os demais consideram o grande imbecil da
vida, porque ele não rouba, não esmaga, não mente. Trabalho FIM
que deve equilibrar os efeitos de uma ciência que o involuído
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 89

ASCENSÕES HUMANAS é o universo. Segue-se daí que não é possível tratar nenhum ar-
gumento isoladamente, porque cada um reclama a consideração
de todos os outros, com os quais tem pontos de contato, impon-
I. O PRINCÍPIO DE UNIDADE do-se assim a necessidade de localizá-lo com relação a todos os
problemas do universo. Quando se passa para um novo proble-
Depois de haver, no volume anterior, examinado os proble- ma, torna-se indispensável relacioná-lo a todos os precedente-
mas psicológico, filosófico e científico, encaminhamo-nos ago- mente desenvolvidos, porque se sente a cada passo uma rede de
ra para novas regiões do pensamento. contatos recíprocos que, em um universo uno, faz com que, de
Nos capítulos do volume precedente1, desenvolvemos vários qualquer ponto deste, todos os demais pontos sejam notados. É
esta impossibilidade de isolar qualquer caso que o faz apresen-
conceitos contidos em A Grande Síntese. Foram assim confir-
tar-se a nós sempre circundado por um cinturão de outros casos,
madas varias afirmativas científicas, que se podem encontrar
que necessitam ser tomados em consideração. Este é o motivo
especialmente nos capítulos XII, XIII e XLVI, bem como no
pelo qual, nesta nossa exposição, veremos reaparecer com fre-
Cap. XCVI da obra citada. Vimos, desta forma, os últimos re-
quência os mesmos conceitos, o que poderá induzir o leitor de-
sultados da ciência objetiva confirmarem os conceitos aponta-
savisado a concluir que houve repetições desnecessárias. Trata-
dos pela intuição. Ali, procuramos fortalecer a previsão intuiti-
se, ao invés disto, do retorno ao mesmo caso para observá-lo di-
va com especulações em todos os campos, ainda os mais diver-
ferentemente, ora de frente, ora de lado, ora de cima, ora de
sos. E, de cada um destes, obtivemos a confirmação desejada,
baixo, ora em função desse ou daquele fenômeno, ora em um
para tornar válida a visão sintética fundamental. Dado que
ponto ou posição do organismo universal, ora em uma outra,
qualquer ramo do conhecimento humano não é senão uma visão
pois é muito importante estabelecer as conexões e realçar as re-
parcial do universo, dado que o objeto observado, ainda que
lações com os outros casos e com o todo.
muitos sejam os pontos de vista diversos, é único, torna-se ine-
As maiores descobertas podem nascer apenas por se terem
vitável que estas visões parciais e particulares, se não forem
encontrado relações novas entre fatos velhos. O universo é uno,
torcidas por preconceitos e absolutismos, devam finalmente
e não é possível, em nenhum instante, deixar de encará-lo como
convergir e fundir-se numa única visão harmônica. É certo que
um todo. É difícil, pois, concatenar numa elaboração lógica e
o pensamento sintético de hoje deve possuir, senão nos deta-
sistemática aquilo que, apresentando-se como um bloco único e
lhes, pelo menos em seus últimos resultados, todo o conheci-
compacto de coexistência de todos os fenômenos, rebela-se con-
mento moderno. Se, antigamente, o filósofo, desdenhando o tra a exemplificação parcial e sucessiva. Esta volta frequente aos
contato com os fenômenos, reputados coisa impura, podia es- conceitos básicos, que, como dissemos, pode parecer repetição,
pecular apenas no campo das puras abstrações da lógica, hoje é devida à nossa orientação convergente e centrípeta, e não di-
ele deve levar em consideração toda a riquíssima contribuição vergente e centrífuga; resulta da nossa contínua preocupação de
oferecida pelos inúmeros ramos particulares em que se divide a unidade, a fim de permanecermos coligados ao único centro de
ciência, cada qual no seu campo de pesquisa, como resultado da todas as coisas, encarando estas apenas em função deste, do qual
indagação objetiva. Estes ramos do saber humano nos apare- dependem. Em vez da concatenação lógica, o pensamento de
cem, de fato, como disciplinas circunscritas no âmbito restrito quem observa o universo procede, em nosso caso, segundo a tra-
do particular e, por conseguinte, fragmentárias e até divergen- jetória típica dos movimentos fenomênicos (cfr. A Grande Sínte-
tes, mas o objeto é único: trata-se do mesmo universo unitário, se, Cap. XXIV, fig. 4), isto é, por retornos cíclicos que, progres-
em que todos os caminhos conduzem ao mesmo centro. Por es- sivamente, elevam a posições sempre mais altas o ponto de par-
ta razão, pode haver discrepância, por exemplo, entre revelação, tida, seguindo as oscilações de uma onda. O pensamento tam-
religião, filosofia, ciência etc., mas isto apenas enquanto estes bém obedece a esta lei universal dos fenômenos. Todo conceito,
ramos do conhecimento forem ainda involuídos e se apresenta- realmente, é atravessado muitas vezes e, cada vez, se aprofunda
rem no atual estado elementar, pois é evidente que, sendo idên- mais, de modo a surgir ampliado e coligado a outros conceitos
tico para todos o livro em que se abeberam, eles, ao progredi- novos e mais afastados. Da primeira vez, ele surge genérico,
rem, não poderão acabar dizendo senão a mesma coisa. Efeti- como vista panorâmica de conjunto; depois aparece diferencia-
vamente estamos vendo, na presente quadra, a ciência evolver do, com particulares que emergem e se distinguem com indivi-
além do materialismo, abrindo caminho para a verdade do espí- dualidade autônoma. O seu desenvolvimento detalhado não se
rito, já proclamada pelas religiões e filosofias. pode verificar senão a seguir, pois que, de outra forma, prejudi-
É justamente este sentido de unidade que domina a presente caria o aspecto conjunto da primeira visão. Por este mesmo mo-
obra. Daqui resulta a grande dificuldade de isolar qualquer fe- tivo, o desenvolvimento de tantos temas, apenas acenados em A
nômeno, seja qual for a sua natureza, do restante do todo, mes- Grande Síntese, não era possível naquela ocasião, pois divagarí-
mo com relação a aspectos que pareçam de uma ordem muito amos em digressões que teriam fragmentado a unidade da expo-
afastada. Quem concebe o universo com mentalidade sintética, sição, além do mais a visão não havia adquirido os detalhes que
e não analítica, encarando-o como um todo orgânico, e não co- só subsequentemente poderiam vir a lume. Assim compreende-
mo um oceano de fenômenos isolados, não pode deixar de per- se a necessidade de retomar cada tema em lances sucessivos, pa-
ceber, qualquer que seja o ponto do mundo fenomênico que ele ra fazê-lo progredir. Desta maneira, progressivamente, dilata-se
observe, que a multidão dos casos afins ao caso tomado por ob- o nosso conhecimento, tanto em amplitude como em penetração,
jeto de estudo acumula-se em derredor, para se fazer ouvir tam- e, assim, partindo dos princípios gerais, cada vez mais nos apro-
bém a sua voz. Um fenômeno isolado é uma abstração nossa, ximamos da atuação prática da nossa vida.
por necessidade de estudo, que não corresponde à realidade. Finalmente, também é levado a encontrar repetições nesta
Assim como não é possível observar nenhum fenômeno com- exposição quem, em sua leitura, procura apenas o conceito,
pletamente isolado, sem que nele repercutam e influam tantos pouco se importando em transformá-lo em ação na própria vi-
outros fenômenos, inclusive o próprio fenômeno que o obser- da. Ora, estes escritos não foram feitos para serem somente li-
vador representa, também não é possível enfrentar e solucionar dos, mas sobretudo para serem aplicados, pois que não consti-
um problema particular sem conhecer a sua conexão com mui- tuem uma ginástica intelectual, um treinamento literário, e só
tos outros problemas e resolver todos eles, até ao máximo, que começam a revelar sentido quando forem vividos, porque en-
tão, e só então, poderão ser compreendidos. Quem simplesmen-
1
Problemas do Futuro. (N. do T.) te os ler, sem aplicá-los em si, não poderá dizer que os compre-
90 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
endeu. Sim, trata-se de vida, de conceitos-ação, de pensamento- ponentes, mas é a resultante da sua organização, isto é, alguma
força, trata-se de um verdadeiro dinamismo concentrado na pa- coisa qualitativamente em tudo diferente. E assim se prossegue
lavra, à guisa de um explosivo capaz de imensa expansão em até à unidade máxima, Deus, que certamente não é a soma de
ambiente apropriado; trata-se de conceitos-germe, capazes de todos os elementos do universo, mas algo completamente dife-
enorme desenvolvimento se caírem em solo fecundo. Quando, rente e muito mais, não só por ser unidade-síntese, mas também
pois, o leitor achar que se encontra diante de uma repetição, em porque, neste ponto, o ciclo dos efeitos se esgota, confundindo-
vez de exclamar: ―mas isto já foi dito e eu já o li‖, diga: ―mas se com a causa, que assim permanece eterna e absoluta, trans-
ainda não fiz isto, e esta repetição deve me induzir a pô-lo em cendendo além de todas as suas manifestações imanentes, além
prática‖. Quem ler este livro como o fez com todos os outros, de sua natureza exaurível, que opera no limitado.
por curiosidade ou por cultura, sem realmente pensar em vivê- A ciência e a lógica, que nos permitiram chegar a estes
lo, perde o tempo. A leitura aqui consiste em assimilar e apli- princípios, nos guiarão em suas importantes aplicações. O pro-
car. Ela se completa na maceração, aperfeiçoa-se na maturação gresso é, pois, sinônimo de unificação, ou seja, a evolução não
e conclui-se na catarse e na sublimação. se cumpre apenas individualmente, porque, tão logo se tenha
Justamente pelo principio de unidade que domina em todo o revelado neste sentido, manifesta-se reorganizando rapidamente
universo – aquele monismo em que nos aprofundamos nos ca- os elementos em unidades coletivas. Hoje, a identidade de inte-
pítulos precedentes2 e que encontra confirmação na ciência – resses começa a irmanar em grupos variados os homens de todo
constatamos que os princípios universais e as grandes coisas es- o mundo, num sentido coletivo antes ignorado, pelo menos nas
tão coligadas com as pequenas do nosso mundo, de modo que a proporções e na extensão que se verificam agora. E o indivíduo
nossa limitada e efêmera vida do relativo adquire significados pode encontrar no respectivo grupo, qualquer que seja este, pro-
imensos e eternos. Assim é que a vida mais simples pode dila- teção e valorização. A unificação, sem dúvida, corresponde
tar-se, agigantando-se no infinito. Se esta descoberta de novas sempre a um interesse mais alto no momento, e a evolução con-
relações entre as coisas velhas pode parecer uma repetição de- siste em chegar a compreendê-lo. Assim, mal uma série de in-
las, pois não se consegue com isso nenhuma descoberta nova divíduos progride, descobre a maior vantagem de viver organi-
particular, no entanto empresta-se a cada uma delas um sentido camente que em luta recíproca.
e sabor novo. Assim, quanto melhor não se poderá compreen- Atualmente compreende-se isto para vastas classes sociais;
der cada uma delas, como por exemplo o fenômeno social, ontem se compreendia apenas para grupos menores; amanhã
quando visto do mesmo ponto de vista biológico que repete no compreender-se-á para toda a humanidade. A organização será
nível vida o que sucede nos agregados celulares, moleculares e tão ampla quanto a compreensão. Quanto mais se caminha para
atômicos da matéria! Este método universal dos agregados, ou o separatismo, tanto mais se desce. A unificação é o caminho
unidades-sínteses, que observamos por toda a parte, em todos da ascensão. A nossa vida social é uma aplicação destes princí-
os campos e em todos os níveis evolutivos, este procedimento pios. Quando um organismo qualquer, físico, biológico ou soci-
em direção a unidades cada vez mais vastas bem como a estru- al, se desfaz, é uma unidade-síntese que se fragmenta, verifi-
tura coletiva de toda unidade nos mostram a verdade dos prin- cando-se um retrocesso involutivo, e ao contrário. No primeiro
cípios acima afirmados, ou seja, de um lado uma pulverização caso, não permanecem senão as menores unidades ou elemen-
do todo em elementos cada vez menores indefinidamente e, do tos componentes, que, isoladamente, retomam a vida num plano
outro, a reconstituição da unidade no reagrupamento destes inferior, sem mais conhecer-se um ao outro, frequentemente
elementos em conglomerados continuamente maiores. Esta inimigos. A rede das relações que formam o organismo superi-
constatação da estrutura coletiva de toda a individualização, or se despedaça. Assim se dá na morte de um homem, como na
que é sempre uma síntese, é justamente uma demonstração ati- de uma nação. A própria cisão do tipo humano em dois sexos é
va do processo supracitado da reunificação universal. uma forma involuída, em que cada unidade procura completar-
Calcula-se, afirma Lieck, que um homem adulto seja se na outra metade, sem a qual permanece incompleta. Um dia
constituído, em cifras redondas, por 3 bilhões de células e que o macho atual, que compreende apenas a força, o trabalho, o
possua mais ou menos 22 bilhões de glóbulos vermelhos. Pen- dinheiro, a organização e a inteligência, deverá completar este
se-se agora, de quantas moléculas será constituída uma célula, seu conhecimento com a bondade, o sacrifício, a beleza e o sen-
de quantos átomos cada molécula, de quantos elétrons cada timento, qualidades estas sobretudo da mulher atualmente, que
átomo e de quais e quantas ondas interferentes será constituído também deverá completar-se no outro sentido. E quando o tipo
um elétron, para então avaliar-se a complexidade da estrutura biológico houver reunido em si todas estas qualidades, então te-
coletiva e progressiva sobre a qual se eleva o edifício do ser rá avançado. Entretanto, quando o homem e a mulher conse-
humano. No entanto, mesmo existindo nele uma série de mun- guem coordenar as suas qualidades em colaboração, na família,
dos, a multidão de elementos que o compõem coordena-se tão já constituem um organismo mais evoluído, uma primeira nova
harmonicamente, que esta unidade-síntese, que é o homem, célula ou uma unidade-síntese coletiva. Mas, quando uma des-
sente-se perfeitamente uno no seu eu. Mas o homem, por sua tas unidades se desfaz, ao mais evoluído estado orgânico segue-
vez, não é senão um elemento da sociedade humana, que tam- se um involuído estado caótico. Quando uma sociedade se de-
bém o é de uma humanidade mais vasta, e assim ao infinito. sagrega, são em verdade os atritos que triunfam em vez da co-
Atendo-nos a esta observação dos fatos, de um ponto de vista laboração, e, na queda involutiva, são os mais primitivos que
científico, poderemos imaginar Deus como a máxima unidade- ganham projeção, valorizam-se e emergem, porque o funcio-
síntese, em que se reunificam estes agregados que, gradativa- namento da vida coletiva desceu ao seu plano. No grau superi-
mente, progredindo de unidade-síntese em unidade-síntese, or, eles não têm oportunidades de ação. Estas desagregações se
chegam até Ele. Se este é o esquema do universo, que da maté- verificam assim que a classe dirigente se esgota e entra em cri-
ria ascende até ao homem, o mesmo deve suceder também do se, como sucede depois das guerras e nas revoluções. Então, à
homem para cima, pois que já vimos que o sistema é único em ordem de um funcionamento orgânico sucede a desordem e a
todos os níveis. Ele exprime exatamente o princípio da cisão e revolta, que se justificarão chamando-se liberdade, até que se
reunificação da cisão, confirmando com isto o outro princípio reconstitua uma nova ordem, com uma nova disciplina, que se
do equilíbrio universal. Deve-se compreender, ademais, que justificará com o nome de dever. A vida social jamais pode pa-
cada unidade-síntese não é apenas a soma dos elementos com- rar. Quando a classe dirigente, detentora da autoridade, se cansa,
perde-a, e uma classe inferior a conquista, a classe mais involuí-
2
O autor refere-se ao livro Problemas do Futuro. (N. do T.) da dos primitivos. São as classes inferiores que sempre fazem
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 91
pressão de baixo, intentando subir. São elas que o poder, nos pe- nos opostos imperialismos, representam a corrente involutiva. O
ríodos de calma, mantendo a disciplina, coagem dentro da pró- imenso progresso científico que nos conduz até ao espírito, o
pria ordem; são elas que, aspirando sempre ao domínio, no pri- domínio sobre as forças da natureza, os grandes meios de comu-
meiro sinal de fraqueza saltam à garganta do velho patrão para nicação, a formação de grandes unidades sociais, políticas, eco-
estrangulá-lo e substituir-se a ele no comando. Mas também isto nômicas e religiosas, uma tremenda necessidade de orientação e
redunda em fadiga, e também as classes inferiores se cansam em de fé, nascida da dor, representam a corrente evolutiva.
exercitar o poder. Por isso mesmo a nova ordem por elas cons- As características da nova era serão a unificação e a univer-
truída será subsequentemente agredida por outros estratos soci- salidade. Isto por si só justifica, em face das finalidades da vi-
ais, numa luta em que sairá vencedor o mais idôneo, aquele que da, a necessidade da ação destruidora atual. A nova era não será
melhor representar os interesses da vida. de imposição, mas de compreensão. O sistema da coação e da
Assim, quando a unidade-síntese superior é reconstituída força, no último meio século, destruindo a Europa, isto é, o cen-
em condições melhores que a precedente (assim caminha a his- tro do mundo civil, nos forneceu a mais dolorosa e desastrosa
tória) e firmar-se como poder, então os involuídos, representan- experiência que um homem pode conhecer. Quem ainda acredi-
tes de um nível de vida inferior ao da maioria, devem subordi- tar em tal método e segui-lo, deverá fazer a mesma experiência
nar-se à unidade superior e viver uma vida secundária, apenas e chegar ao mesmo fim, pois que isto está implícito no sistema.
em função dela. Desta forma, eles são enquadrados na ordem Mas existe um outro sistema, incompreendido e negligenciado,
restabelecida e, dado que a vida agora funciona num plano mais que é o único que poderá sobreviver: o da compreensão e o da
elevado que o seu, não aparecem mais como heróis de uma re- convicção. Os absolutismos, as verdades exclusivistas e intran-
volução, e sim como delinquentes comuns, inimigos da ordem. sigentes, tendentes a dominar e coagir o indivíduo e a consciên-
Mesmo o micróbio-patogênico no organismo humano é uma cia, em qualquer campo, são métodos superados.
forma de vida, que é mantida à parte enquanto predomina a do Da concepção matemática da relatividade de Einstein, o que
organismo são. Mas, tão logo esta se desfaz, eis que o micróbio todos compreenderam foi a ideia da relatividade humana. Avi-
invade tudo, encarregado da liquidação da sociedade celular, zinhando-nos hoje, por evolução, mais um passo do absoluto,
que é o corpo humano. Eis o significado biológico e cósmico sentimos em compensação a nossa relatividade, a princípio
das lutas políticas e classistas hodiernas, vistas em relação aos pouco notada, e percebemos melhor, em contraste, a natureza
dois princípios de cisão e reagrupamento dos elementos do uni- transitória e envolvente do nosso contingente. Sentimo-nos na
verso. Em tudo isto há equilíbrio. As classes inferiores, como pura função de ponto de referência. Desta forma, os absolutis-
os micróbios patogênicos, são solicitados pela vida à ação so- mos exclusivistas que antes possuíam o sabor de absoluto, ago-
mente enquanto for necessária e útil a sua presença, e não mais. ra não passam de obstáculos. A divulgação moderna do concei-
Trata-se de intervenções patológicas, de crises de transição (re- to de relatividade desferiu-lhes um golpe mortal. Por isso os
voluções), de execução de uma tarefa de destruição necessária à nacionalismos estão em via de extinção e sobrevivem apenas
reconstrução, da qual eles são condição. Mas a obra dos demo- como imperialismos. E estes reduziram-se a dois apenas, numa
lidores se extingue com eles logo que os interesses da vida re- luta para decidir a supremacia final de um mundo só. Trans-
clamam a obra dos reconstrutores. É assim que as revoluções, forma-se o conceito de pátria. O que antes se apresentava como
cumprida a sua função, se exaurem, e os seus autores são traga- santo patriotismo, hoje só parece belo para efeito interno e,
dos pela sua própria revolta, na qual está toda a sua missão. As- além fronteiras, desperta nos outros povos suspeitas contra a
sim se formam sempre equilíbrios novos. Mas, nestes equilí- nação que o professa, porque uma tal forma de amor tende a re-
brios, impera sempre a lei biológica, segundo a qual o ser bio- solver-se em ódio e em guerra contra outros países.
logicamente involuído deve permanecer automaticamente, pela Ao lado deste amor surge concomitantemente a ideia do es-
própria qualidade, submetido ao evoluído. trangeiro, inimigo que deve ser combatido. Modernamente,
Como nunca, hoje, no mundo se defrontam em luta dois com os grandes e contínuos intercâmbios e contatos, desponta
princípios opostos: o da cisão e o da reunificação. O nosso sé- uma tendência à fusão de todos os povos em uma humanidade e
culo é de transição, em que estão abalados os equilíbrios prece- o conceito de uma grande pátria que abrace todos eles. É uma
dentemente estabelecidos e se está na expectativa da formação dilatação de egoísmo, como já vimos para o indivíduo, que
de novos equilíbrios. É bem verdade que este estado de coisas é evolve até abraçar outros povos. Deste modo, as grandes unida-
o mais criador, mas também é o mais perigoso. É o mais cria- des humanas se reagrupam em torno de outros conceitos mais
dor porque tudo desmorona; o velho mundo é removido, e o compreensivos, e tanto ódio, antes justificado e santificado por
terreno se torna desimpedido, desaparecendo as barreiras e separações nacionalistas, encaminha-se para a extinção. O amor
desmantelando-se as defesas das posições conquistadas. Tudo é de pátria, limitado a um país, hoje pode parecer um obstáculo a
mudável, um campo aberto a todas as inovações. Tudo é possí- um novo espírito tendente às grandes unificações.
vel hoje. Mais do que a bomba atômica, temos sob os pés o Os caminhos são dois: subir ou descer. O mundo atual está
fermento das ideias, que é muito mais explosivo. Tudo é des- suspenso entre ambos. Ou fortalecer-se construtivamente atra-
truição atualmente. Rolam por terra as velhas divisões naciona- vés da unificação, que irmana, ou embrutecer-se no separatismo
listas, econômicas, religiosas, ideológicas. É a grande hora de e destruição, num massacre alternado. Ou construir um orga-
joeirar e reconstituir todos os valores humanos. Na hora destru- nismo humano mais vasto, sem exemplo no passado, e só em
tiva, são chamados em cena os demolidores de todos campos, nome deste destruir o atual, ou então destruir por destruir, fina-
materiais e espirituais. É a orgia da destruição preparada pelo lizando na barbárie. O homem seria capaz de seguir o último se
materialismo, e este é a ideia que, na quadra atual, atinge a ple- a vida sábia não velasse por ele, que ignora. Por isto é fatal uma
nitude de sua realização. Mas, justamente por se encontrar em grande onda de ascensões que invada e eleve o mundo; mas que
plena realização, ela amadureceu e caminha para a sua morte, provas e dores isto implicará? E será o homem quem deverá
enquanto que, pela lei do equilíbrio, desponta por baixo dela, suportá-las. Assim como para o indivíduo, duas são as sendas
ainda como um fraco dealbar de aurora, a ideia do espírito. As na vida dos povos: a do progresso e a do retrocesso. Por elas se
trevas e a luz se digladiam em plena batalha. E, na verdade, se desenvolve o grande caminho do universo em direções opostas,
de um lado tudo desmorona, jamais como agora se observaram como vimos. Hoje, como ontem, as criaturas seguem uma ou
tão aguçadas as tendências às grandes unidades. Involução e outra, como vemos. Os métodos usados por elas revelam o ca-
evolução se contrastam. A capacidade destruidora, o materialis- minho de sua escolha, a sua natureza e posição. Quem procura
mo, o ódio, o egoísmo, a avidez desaçaimada e individualista até a matéria, acredita na riqueza e na força, nos exércitos e no do-
92 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
mínio; é um involuído, subjugado pela ilusão. Na sua grosseira e de missão, porque a realização e a conquista se transferiram
insensibilidade e ignorância, deve ainda atravessar duríssimas inteiramente para o plano mais elevado do espírito. E a vida ter-
provas para compreender a vida; deve, sofrendo as consequên- rena, em vez de enriquecer, espolia, porque, para o evoluído, ela
cias de sua ação, dado que o seu pensamento é concreto, con- se tornou de sinal negativo, dado que o positivo é representado
quistar o senso do bem e do mal. Encontrando-se em queda, ele por uma nova vida que apareceu, ignorada ao involuído: a vida
não sabe valorizar-se senão com a posse, à qual se aferra e pela do espírito. Quem freme por dominar e enriquecer-se não se ilu-
qual luta. Por isso é ambicioso e insaciável. Não é capaz de da: está no caminho da descida, em direção que conduz à pulve-
compreender outra realização de si mesmo a não ser a que con- rização. Só quem gosta de dar e sacrificar-se pelos outros está
siste em ligar a sua vida física efêmera às coisas transitórias da no caminho da ascensão, em demanda da unificação. Poderá pa-
Terra. Nada enxerga além disto. Permanece ainda excluído da recer utopista, mas só ele está habilitado a transformar um mun-
vida maior, em que se é eterno colaborador de Deus, cidadão do do de ladrões e assassinos em um mundo de civilizada colabora-
universo. Possui do bem um conceito limitadíssimo, circunscri- ção fraterna. O elemento coesivo de unidades maiores só se po-
to ao próprio egoísmo, no qual permanece aprisionado. Assim, de encontrar em quem concebe a vida como um encargo altruís-
a sua alma se encontra excluída da grande e inexaurível riqueza tico. Só uma massa de semelhantes indivíduos pode formar um
de Deus, sempre insaciada, e, por mais que possua, torna-se organismo social. Querer organizar um coletivismo real com o
sempre mais esfaimada. Quanto mais possui, tanto mais lhe tipo biológico involuído é mera utopia.
cresce a avidez e, porque crê apenas na ínfima vantagem indi- É neste coletivismo, atingido não por imposição exterior
vidual e só por isto vive, é levado a menoscabar o resto. Um de força, mas pela dita maturação, que se pode verdadeira-
mundo feito de tais seres não pode ser senão uma alcateia de mente valorizar o eu, e não pelo domínio do próximo, como
lobos. A sua involução, que lhe faz ter fé apenas na força, dá ainda hoje se compreende na Terra. A hipertrofia da persona-
nascimento a um espírito egoístico universal de revolta, que faz lidade de um indivíduo a expensas dos outros representa o
do mundo um caos. E é por isso que o involuído é vítima de si triunfo do princípio separatista, exprime um estado de pulve-
mesmo. O que o fere é a reação provocada pelo próprio méto- rização da unidade. Se for obtida com a tirania, será apenas
do: ―Quem com ferro fere com ferro será ferido‖. Estamos as- uma unidade às avessas, uma construção forçada, em equilí-
sim na via descendente, que termina na pulverização. brio instável, sempre pronta a desagregar-se. Tais são as
Mas, se o involuído assim age em seu prejuízo, condenan- pseudo-unidades, construtivas só na aparência, mas substanci-
do-se a uma vida inferior, porque não compreendeu o escopo almente destrutivas, obras de Satã. Nelas, o eu, por mais po-
da vida, o evoluído caminha em sentido oposto, que o conduz deroso que seja, está sempre entrincheirado no próprio separa-
para a unificação. Este compreendeu que há muitas outras tismo, permanece um centro isolado e jamais abre as portas do
conquistas a fazer além dos bens materiais, compreendeu a es- amor para unir-se a outros seres. Os liames impostos pela for-
terilidade de tantas lutas colimando a conquista de uma posse ça são superficiais, não substanciam e só perduram enquanto
efêmera, insuficiente para saciar o desejo infinito da alma. A existem forças para mantê-los. Em profundidade, eles não li-
razão de ser da vida é outra. A procura de uma felicidade atra- gam coisa alguma. Não é considerando todas as coisas apenas
vés de satisfações materiais é vã; ela cria inimigos, desenca- em função de si mesmo que estes liames se podem estabele-
deia lutas, verte sangue, desperta dores e nos deixa cansados e cer, mas só considerando-as em função dos outros. Como se
insatisfeitos, na sensação da inutilidade de semelhante esforço. vê, os sistemas atuais empregados na formação de grandes
Só o involuído, inexperiente, pode aceitá-la. Assim tem-se no- unidades coletivas poderão servir como tentativas, como ex-
jo da Terra, que traiu, e volta-se a olhar para o céu; então tudo periência e ainda como meio educativo para penetração de
se inverte. O desenvolvimento, que é lei de vida, atua não mais conceitos novos. Mas, para atingir a sua real atuação, mister
tomando, mas dando; o impulso não é mais para o exterior, se torna outro método, inteiramente diverso: o da compreen-
mas para o interior; a riqueza que se procura não é mais a efê- são. Para tal fim, é necessário um tipo humano diferente, e ou-
mera da forma, mas a eterna da substância. E o ódio se trans- tro caminho não existe para se conseguir esta compreensão se-
muda então em amor; a força, na compreensão; o egoísmo iso- não aquele que conduz à formação desse tipo. O mais acirrado
lacionista, na unificação; a guerra, na colaboração. adversário da unificação dos homens em um plano de justiça
Ora, enquanto o indivíduo não evoluir de modo a compreen- social é exatamente o homem hodierno, aquele que, para servir
der estas coisas, a aplicação de princípios de solidariedade não seus próprios fins, mais a preconiza, mas que, na realidade,
poderá passar de utopia e mentira. O irmanamento humano é o menos crê nela. Na realidade, os programas professados e rea-
resultado de maturação e convicção, não podendo sê-lo da força. lizados com tal psicologia manifestam-se às avessas e, efeti-
É verdade que na Terra foram feitas tentativas, em todos os vamente, ocultam sob bela roupagem a luta comum pela vida,
tempos, para se chegar a grandes unidades através dos mais di- através da substituição de pessoas nas mesmas posições de
versos imperialismos, mas deles nada resultou. Com a imposi- domínio ou de subjugação. A isto não se pode chamar progres-
ção domina-se, esmaga-se, escraviza-se, mas não se unifica. Se so, porque é falência da unidade. A verdadeira unidade não re-
as raças se misturam, isto depende de deslocamentos demográfi- pousa no equilíbrio instável, carregado de reações, como o im-
cos e não diz respeito aos imperialismos. É a vida que tudo utili- posto pela força, mas na adesão livre e convicta.
za a seu modo. A força e o egoísmo – dois impulsos separatistas Quando o eu intenta construir apenas pela via do egoísmo,
– não podem conduzir à unidade. A verdadeira unidade é outra ele tende, mais do que construir em unidade, a desfazer-se no
coisa que não imposição violenta e sobreposição dos povos ou separatismo. Quando o eu se torna centro no lugar de Deus e
das suas classes. Ela implica elementos espirituais que a política se apossa de tudo, então caminha-se para Satanás, e não para
ignora. Trata-se de compreender e de sentir a Grande Vontade Deus. De tal método não podem surgir senão rivalidades e an-
diretora do universo e de conduzir-se neste de acordo com ela. tagonismos, que só oferecem uma solução possível: a destrui-
Neste plano de vida dominam princípios bem diferentes. Ao ção de um dos contendores. Mas a isto não se pode chamar vi-
invés do egoísmo, o altruísmo; ao invés da lei do mais forte, a tória, porque, na realidade, trata-se de uma ilusão, visto que,
lei do sacrifício e do amor. No evoluído, o involuído é transfor- em uma guerra, todos são prejudicados e vencidos. Isto é na-
mado nos seus instintos e métodos. Se, no segundo, a vida do tural, uma vez que nos mundos inferiores reina a traição. Tais
espírito cede em favor da vida do corpo, no primeiro é a do cor- métodos são próprios destes mundos inferiores, como o é o
po que cede em favor da vida do espírito. Então, a Terra, antes mal, e é por isso que, carregados de atritos, dado que a força é
campo de realização e de conquista, torna-se teatro de sacrifício a sua base, não podem resolver-se senão em destruição e dor,
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 93
por mais que apregoem construção e felicidade. Este é o des- vindicações teóricas a fazer, com o que se justifica, possui
tino fatal de quem se encaminha para a matéria. Estas são as também as vítimas que o acusam: de um lado, as vítimas do
leis da vida, que funcionam igualmente no campo das realiza- cárcere e dos trabalhos forçados; de outro, as silenciosas e ―li-
ções sociais, pois que seria certamente ingenuidade supô-las vres‖ da miséria, aquelas que geraram a revolução comunista.
excluídas do funcionamento orgânico do universo, onde seri- O que leva um sistema contra o outro é a sua parte de cul-
am arbitrariamente plasmadas apenas pelo capricho do ho- pa, e isto justamente porque a vida quer destruir esta parte, va-
mem. Se este é invadido pela pretensão de tudo dominar, nem lendo-se dos dois antagonistas como um meio de recíproca de-
por isso o pode diante dos fatos. As leis da vida deixam ao puração, de modo que deles não sobreviva senão a parte em
homem também a faculdade de crer no que entenda, mas nos que ambos têm razão. De um encontro entre os dois resultará a
fatos elas agem de acordo com as próprias diretivas. Cada um destruição daquilo que cada um possui de egoísmo separatista,
pode crer e dizer o que deseja, mas no modo de agir revelará antivital para a coletividade, pela qual, efetivamente, todos
sempre aquilo que realmente é. Se acredita na força e age de trabalham. É inerente à natureza humana que culpa e razão,
acordo com ela, é um involuído, que nela encontra a sua lei. méritos e defeitos se apresentem conjuntamente imiscuídos, e
Se acredita e age na solidariedade, é um evoluído, que na uni- é lei de vida que, embora o homem seja separatista, tudo seja
dade encontra a própria lei. Força e justiça são dois extremos comum entre os homens. A solução não pode estar senão em
irreconciliáveis. Uma exclui a outra. Elas representam a lei e uma recíproca depuração que elimine em cada um a parte de
o sistema de dois planos de vida diferentes. Quem recorrer a culpa. Sobreviverá aquilo que de melhor existe nos dois. Deste
uma não pode apelar para a outra. modo, vencedora será unicamente a vida, que conseguirá o seu
fim de fazer progredir a humanidade, objetivo para o qual uti-
II. A ERA DA UNIDADE liza ambos os antagonistas, confiando a cada um deles um
princípio a ser afirmado. Neste sentido, o comunismo possui
Eis que, partindo de uma visão cósmica e de conceitos uni- uma função vital, que é lançar no mundo uma ideia de justiça
versais, chegamos agora à aplicação destes nas mais longín- com métodos de tal ordem, que ela possa ser lembrada bem
quas consequências em nosso mundo no momento atual. Refe- claramente por aqueles que, embora tendo-a recebido do evan-
rimo-nos às condições da hora histórica presente, que, mesmo gelho há 2.000 anos, acharam mais cômodo não tê-la posto em
sendo consequências de princípios universais, são na sua es- prática. Neste sentido, o Ocidente, prevendo o inevitável, que
sência transitórias e relativas. O mundo está atualmente dividi- já está iminente pela imposição das massas em plena arremeti-
do em duas partes separadas por um abismo intransponível: o da, começa hoje, queira ou não, a aplicar vários princípios do
oriente comunista e o ocidente liberal. Cada uma apoia-se em comunismo, ainda que sob bandeiras diferentes. E assim cami-
seu princípio idealístico. Eles são reciprocamente exclusivistas nha no mundo a ideia da justiça social.
e irreconciliáveis. Isto porque, por trás dos ideais, estão os in- Cristo pregou há tempos, mas, visto que a palavra d'Ele con-
teresses, que são irreconciliáveis. Os verdadeiros ideais são tinuava letra morta e as gerações não pensavam de modo ne-
verdades universais, e não particulares, e, sobre esta base, o nhum em aplicá-la, a vida teve necessidade de servir-se para is-
acordo é natural. Se há conflito é porque as duas partes são ri- so de inferiores meios de coação. Há maturações biológicas que
vais no mesmo terreno humano e os homens que o compõem não se podem conter.
pertencem ao mesmo tipo biológico e ao mesmo plano de vida. O atual movimento do mundo, que caminha em demanda da
Cada uma delas pretende esconder atrás dos ideais apregoados justiça, concentrou-se em um dado país, que se fez dele promo-
os próprios interesses. Por isso elas se acusam reciprocamente, tor em virtude de contingentes razões históricas. Mas ele é um
sem cessar, cada uma tendo razão enquanto está no campo do movimento de toda a vida humana planetária e, se não se tives-
ideal, mas tendo culpa quando, na prática, aplica este ideal se configurado em um país, tê-lo-ia feito em um outro. Não im-
apenas em vantagem própria. O quanto de razão cada uma pos- porta que seção política do globo assuma o encargo, contanto
sui, ainda que pareça sacrifício, constitui a sua força, e a parte que este seja desempenhado. É natural que um agregado de in-
de culpa que cada uma tem, embora pareça vantagem, forma a teresses logo enquadre e limite qualquer movimento. Mas este
sua fraqueza. Apliquemos sempre os princípios acima expos- se propaga além dos confins do enquadramento, porque tudo é
tos, ou seja, evolução para a unidade é crescimento em potên- comunicante e universal na vida. Assim, as ideias do inimigo
cia, involução para a cisão é decréscimo em potência. são absorvidas, pois ultrapassam os confins políticos; também
Observemos. A democracia possui uma parte de razão, que assim, elas se purificam, se adaptam e se tornam vida em toda a
lhe é dada pelo princípio de liberdade. Isto representa a sua for- parte. Desta forma, a ideia nascida em um ponto, sendo pela
ça, pela qual ela pode acusar o parte contrária. Mas também própria natureza universal, avança e alcança até onde não se
possui uma parte de culpa, representada pela injustiça econômi- imaginava; intensifica-se, expande-se, e os mais diversos agen-
ca, pelo egoísmo capitalista e pela desigualdade na distribuição tes são chamados a desempenhar cada qual a sua parte de traba-
dos bens. E isto representa a sua fraqueza, pela qual ela se ex- lho. Eis por que a ideia de uma justiça social ganha corpo atu-
põe às acusações da parte contrária. O comunismo, de outro la- almente. Na realidade, ela se desenvolve e floresce mais como
do, tem por sua vez uma parte de razão, dada pelo princípio da um princípio geral da vida do que como uma particular ideia
justiça econômica, da igualdade e solidariedade social. Aqui es- política, avançado além de todas as barreiras, para alcançar as
tá a sua força, que lhe faculta acusações à parte contrária. Mas finalidades da vida, e não apenas as de um só povo ou partido,
também exibe uma parte de culpa, dada pelas limitações à li- cada qual devendo rejubilar-se da contribuição que deu para o
berdade e ao individualismo, expressas pelo absolutismo e pelo avanço de uma ideia que é de todos.
capitalismo de Estado. Nisto está a sua fraqueza, que o expõe às Encontramo-nos em verdade, atualmente, na maturidade dos
acusações da parte contrária. tempos, e está próxima a aurora de uma nova civilização, em
Assim, cada um dos dois sistemas encontra justificação no que o evangelho deverá ser aplicado plenamente. Quem dirige a
fim a atingir, mas também possui as suas culpas e, por conse- história são as forças da vida, e não o homem. O comunismo
guinte, os seus pontos fracos no modo com que procura atingir não foi criado por uma doutrina econômica, por um partido ou
este fim, visto que, em ambos os casos, realmente, só existem povo que o tenha proclamado e aplicado. Ele não é senão o efei-
em mira vantagens próprias. Trata-se, no fundo, em todos os to da maturidade dos tempos, que conduz ao evangelho. Tudo o
quadrantes da Terra, do mesmo homem involuído, que age mais não passa de meios materiais, portanto transitórios, que
com idênticos critérios. Assim, se um dos dois tem as suas rei- cairão depois de preparadas as vias para a referida realização.
94 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
Assim, ficarão neutralizadas pela recíproca eliminação as qualquer campo, serão tragados. Tais são e assim querem as
duas zonas de culpa, e se fundirão as duas zonas de razão em leis da vida atualmente, e ninguém poderá contê-las.
uma nova formação, em que nenhum dos dois contendores do É interessante observar a sutil mecânica que um sábio jo-
momento sobreviverá íntegro e exclusivo na forma que cada go de impulsos, na luta entre o bem e o mal, conduz ao
um pretende. Assim também, exaurir-se-á a tarefa de ambas as triunfo do primeiro.
partes, que é de elaborar e ativar na sociedade uma ideia uni- No comunismo, as forças do mal, dada a sua natureza ne-
versal já expressa pelo evangelho, que está acima do contingen- gativa, operam naturalmente às avessas e, consequentemente,
te e de suas lutas. Este já contém, numa fusão conjunta, quanto aplicam o evangelho desfigurado. Elas não sabem agir senão
de razão há nos dois princípios opostos, sem aquilo que de er- com inversão de valores. Efetivamente não há nada mais anti-
rado existe presentemente na sua aplicação. O evangelho tam- evangélico que o método com que o evangelho é aplicado, ou
bém encerra comunismo, mas de amor, e não de força, e susten- seja, pela força, dado que a essência do evangelho é o amor. É
ta a liberdade individual, com a justiça do ―quod superest date lamentável que na Terra não se procure atingir a justiça senão
pauperibus‖3. Compreende-se que se deve tratar de um evange- através da injustiça. E isto macula tudo. Que faz então a vida
lho vivido, e não apenas teoricamente pregado. O movimento destes impulsos negativos? Se os deixa agir, é sinal que, de
atual é de ascensão biológica, e a vida trabalha com fatos, e não qualquer modo, eles são construtivos, porque todos conver-
com palavras. Não se trata, pois, de um evangelho situado em gem para um centro diretor que é Deus, e não para um segun-
uma religião particular, utilizado como substrato de uma hie- do centro anti-Deus, Satanás. O fato é que o mal, em última
rarquia de homens. Cristo é universal e, como o ar e o sol, que análise, é enganado, porque esta inversão, depois, se retifica
devem vivificar tudo, não podendo encerrar-se em divisões em favor do bem. O mal é ignorante e, querendo imperar pela
humanas, supera todas as barreiras. Algumas poderiam dizer: força, excita reações em toda a parte, de modo a levar todos a
nós representamos Cristo oficialmente. Ninguém o nega se, por se unirem contra ele. Ele gera mártires que, depois, formam a
ventura, o evangelho for vivido. Muitos de vós o vivem de fato, potência e a grandeza moral do inimigo. Sempre foi assim, e o
porém Cristo é realmente representado somente por quem vive mal, que é cego, recai permanentemente nos mesmos erros. E,
a Sua lei. O resto possui escopo diverso e uma função que não é assim, faz o jogo do inimigo, o bem, que ele combate. Ei-lo,
a de fazer representantes de Cristo. desta forma, a desempenhar a função social de purificar a
Assim, o comunismo, depois de trazer à lembrança dos Igreja e vivificar a fé. O mal é assim utilizado para divulgar o
homens o evangelho, sobreviverá como evangelho, pelo qual evangelho com a ideia da justiça social. Aquele pobre mal,
trabalha sem saber, e cairá como bolchevismo, que é contin- que tanto se esfalfa para conseguir os seus fins, nada mais faz
gente; sobreviverá como justiça econômica e, com isto, esgo- do que preparar, sem compreender, os fins que o bem colima.
tada a sua missão, cairá como absolutismo de Estado e escra- Depois disto, as forças da vida o liquidam em favor do bem,
vidão coletivista. Também a democracia, após haver defendido que ele acredita desfrutar e que o deixa agir somente enquanto
a liberdade humana e salvado o individualismo nas novas e é um meio para o próprio triunfo.
grandes unidades coletivas, sobreviverá nestes princípios do Na sabedoria divina, o mal está a serviço do bem. É natural
evangelho e cairá como injustiça econômica e egoísmo capita- que, para mover o homem de hoje, torna-se indispensável im-
lista. Tudo passará, exceto o evangelho. Quem está cego pela pelir a mola do seu egoísmo. É preciso que ele creia agir em
luta, vivendo no particular, não pode perceber estes equilí- seu imediato interesse. Por esse meio, a Lei o manobra para
brios. A vida ressurgirá no evangelho, porém não mais apenas seus próprios fins mais sábios, fazendo-o em benefício de to-
pregado, e sim vivido. O homem, hoje, não se contenta mais dos, porque o tipo biológico atual jamais seria levado a traba-
apenas com palavras e quer olhar os quadros que estão atrás. lhar por tais fins se conhecesse o real funcionamento da histó-
Para isto, foi educado por duras lutas de milênios, de modo a ria. E, assim, sem sabê-lo, uns e outros dos dois grandes inimi-
ver atrás de cada verdade uma mentira. Tem sido uma escola gos, capitalismo e comunismo, trabalham concordes pelo lou-
constante, a única forma de educação que todos os dirigentes, vável fim comum do progresso humano. Eles creem que diri-
em todos os tempos e lugares, em todos os campos, concorda- gir-se ao povo seja uma mentira útil e astuta, de que habilido-
ram, durante séculos e séculos, em conceber. samente se valem para conseguir os próprios fins egoísticos, e
Não sabemos se o evangelho vivido coincidirá com a Igreja não compreendem que, ao contrário, é este o verdadeiro esco-
de Roma, que o professa em sua forma atual, ou se poderá po pelo qual, à sua revelia, a vida os põe em movimento, e será
coincidir com uma outra forma que venha a revesti-lo, ou com o único que conseguirão, enquanto que a consecução do pró-
um cristianismo mais vasto, e não apenas católico, ou simples- prio interesse é muito problemático que se verifique. Quem
mente com os homens de boa vontade, aos quais foi anunciado. participa só de um ou de outro destes dois polos na luta co-
A hora histórica do momento é apocalíptica, e tudo está abalado mum pelo progresso, não pode ser senão o dominante tipo bio-
desde os alicerces. A verdade é que as duas grandes forças ora lógico involuído, que só pode pensar em função do contingen-
em ação, democracia e bolchevismo, tornaram-se fracas pela te. O evoluído está acima do embate, admira a perfeição da
recíproca inimizade, pois que cada um dos dois impulsos é neu- obra divina, na qual a Lei, para conseguir os grandes fins evo-
tralizado quando se defronta com outro igual e contrário. É este lutivos da humanidade, mobiliza homens aos quais é necessá-
antagonismo que pode destruir a ambos, deixando somente ria a forma de luta para que eles se ponham em ação.
aquilo que eles possuem de evangelho. É certo também que o Tudo que presentemente acontece no mundo é simplesmen-
ciclo da matéria está para esgotar-se, encaminha-se para a mor- te a consequência natural do grau de evolução em que o homem
te e, na ânsia de sobreviver, recorre aos meios extremos da de- vive. Se ele fosse mais evoluído, a sua vida seria inteiramente
sesperação. A matéria exaure-se no tempo, e o tempo não pode diversa. Mas evolverá e, evolvendo, tudo mudará.
parar. Vimos que, pelas leis da vida, o materialismo é um sis- Os grandes imperialismos atuais do mundo, com poderosa
tema fatalmente autodestruidor. Isto significa a destruição dos tendência expansionista, que se tornou possível em tais propor-
valores materiais, os únicos a que hoje se tributam reverências. ções em virtude dos novos e grandes meios de comunicação,
Só os valores superiores espirituais, que são inatingíveis pela acabam por manter em contato, seja na paz ou seja na guerra, as
destruição, serão salvos. Salvar-se-á também unicamente quem nações e raças mais distanciadas. Entrar em contato significa o
vive neles. Os que se apegarem a tudo que for terreno, em início da unificação. A humanidade está para tornar-se una. As-
sistimos a um esboroamento universal de barreiras. Transpõem-
3
―Dá aos pobres o que te sobra‖. (N do T.) se todos os velhos limites. O contato, na posição de vencedor
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 95
ou de vencido, de senhor ou de escravo, leva sempre ao mesmo que aprendam na luta a formar a inteligência, postos na contin-
resultado: a fusão. Tudo termina sempre com a unificação. Esta gência de empregá-la no ataque e na defesa. Foi assim que sur-
é a essência das tendências políticas modernas: a formação de giu o homo sapiens e, desta maneira, foram conseguidas as fi-
unidades cada vez maiores. Essa será a conclusão do nosso pe- nalidades evolutivas da Lei.
ríodo histórico. Parte-se para conquistar e acaba-se por irmanar- Como a química e a física, também a vida possui as suas
se, hodierna tendência universal em todos os campos. Assim leis e os seus fins, dos quais não se pode fugir. Essa necessi-
como, no fim da Idade Média, as cidades transbordaram com dade de luta é imposta pela Lei, em vista de suas finalidades
alegria da angústia das estreitas muralhas circundantes, esten- seletivas e evolutivas. Tal finalidade têm as guerras, que estão
dendo-se desafogadamente além de confins acanhados e de bar- antes no instinto dos povos do que no comando dos chefes. É
reira, desfrutando um senso de liberdade onde antes ninguém tão forte esse instinto de guerra, que, não podendo satisfazê-lo
podia circular sem esbarrar a cada passo em obstáculo inimigo, na verdadeira luta cruenta, as massas dão desafogo a ele no
também hoje, no fim do Segundo Milênio, a humanidade co- sucedâneo das competições esportivas. Assim, graças às con-
meça, jubilosa, a transbordar com alegria das angústias psico- tínuas competições, necessárias ou supérfluas, sanguinolentas
lógicas que a asfixiam. Cairão as barreiras que dividem parti- ou incruentas, o homem se manteve sempre vigilante ao assal-
dos, filosofias, religiões, isolando e sufocando em absolutismos to de qualquer rival, que pode surgir a qualquer instante, mo-
que paralisam a circulação da vida do espírito. São superações vido pela miragem de um benefício pessoal. E assim também
que redundarão em benefício de todos. Cada atrito social pesa e se cumprem os fins de evolução.
custa. Então, a máquina coletiva poderá funcionar mais desem- O atual antagonismo entre os dois grandes imperialismos do
baraçada, sem atritos e conflitos econômicos, políticos, religio- mundo é problema seletivo. Eis o verdadeiro jogo mundial da
sos, filosóficos, demográficos, raciais etc. É um grande obstá- história no momento. Jogo inerente ao plano do tipo biológico
culo à vida ter de, a cada passo, esbarrar com uma parede divi- atual. Dado o que ele é, os problemas só são solúveis através da
sória. Hoje, os homens vivem agrupados em castelos inimigos, luta e da destruição recíproca. Nesse plano, a substância da vida
prontos a combaterem-se. Se isto é útil para a sua seleção, que é de natureza econômica. Nele domina a economia limitada e
não tem outro objetivo, também torna a vida bem fatigante. A egoísta do ―do ut des‖4, isto é, interesse e materialismo, arma-
nossa época quer abater estes obscuros castelos medievais do mento e destruição. Mas já dissemos que existe para cada plano
espírito, que, se são defesa, são também prisão. Esta é outra de vida uma biologia e uma economia diferente. Ambos os an-
forma de expressão vital que acabará na unificação. tagonistas terrenos ignoram que existe uma biologia e uma eco-
Entrementes, toda força social presentemente em ação pos- nomia mais elevada, em que nenhum dos dois penetra, porque
sui uma função na vida. O comunismo tem a função que a opo- ambos pertencem a um plano de vida inferior. O ser encontra-se
sição tem em todas as assembleias: o controle que induz aos encerrado em sua forma de consciência. Além desta existe o in-
exames de consciência perante a opinião pública e a história, e finito, rico de poderes, de bens ilimitados, ao alcance da mão.
determina o aperfeiçoamento das armas, elemento de luta para a Mas está separado desse infinito pela impossibilidade de com-
seleção. De um modo particular, o comunismo desempenha a preender, pelo menos enquanto não evoluir. Explicar a este tipo
tarefa de despertar o espírito de massa e de educação ao funcio- biológico que os seus problemas serão rápida e automaticamen-
namento coletivo. A luta, enquanto não se torna cruenta, será te resolvidos, logo que se eleve em evolução, é obra inútil. Ele
pelas conquistas das massas, e, nesse sentido, as duas partes co- não poderá compreender enquanto essa ascensão não se der, ra-
laborarão na educação delas, obrigando-as a pensar. Estas, fei- zão pela qual realmente ele hoje vive e luta, destrói e sofre. Ob-
tas de carne insensível, serão obrigadas à fadiga de compreen- servada de um outro plano, toda esta luta se torna unidade e o
der para saber escolher um guia, qualquer que seja. Toda luta se problema se transforma completamente, pois que cada proble-
reduz a uma escola, e os tempos de luta são tempos de aprendi- ma é verdade sempre em função da inteligência que o propõe e
zagem e, consequentemente, de progresso. dos limites da mesma. Mais acima, vê-se a luta entre o bem in-
O comunismo serve para forçar o capitalismo a admitir al- teligente e o mal estúpido, luta em que este, pela sua estupidez,
guns princípios de justiça, pelos quais, de outra maneira, este cumprida a função que lhe cabe, é vencido e eliminado como
jamais se decidiria. Dado que a criatura humana é por natureza um mal, restando dele apenas os efeitos, que ele, sem saber e
egoísta e a mesma em ambas as partes, a justiça, se não fosse querer, produziu para o bem.
imposta, jamais seria obtida. Esta é a razão biológica pela qual Então a visão se perde naquela que configurou as tentações
a vida atira o comunismo contra o capitalismo. Sem a violência, do Cristo. Ele, após haver jejuado 40 dias, sentiu fome, e Sata-
não se teria dado a Revolução Francesa, e o mundo estaria ain- nás, o tentador, acercando-se, lhe disse: ―Se és filho de Deus,
da na fase feudal dos privilégios da aristocracia e do clero. A dize a estas pedras que se transformem em pão‖. Mas Jesus
violência, por certo, é o que revela o involuído, porque o evolu- respondeu: ―Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de
ído jamais recorre a ela. Mas é preciso recordar que nos encon- cada palavra saída da boca de Deus‖ (Mateus, 4: 3-4). Eis em
tramos no plano biológico animal-humano, e não além, plano que se torna o problema econômico que atormenta o mundo de
em que as coisas só se podem resolver desta maneira primitiva. hoje, se visto de um plano mais elevado. O diabo então condu-
Certo é também que, se não tivesse sido ensejado um motivo ziu Cristo ao cimo de um monte assaz elevado e, tendo-lhe
para o surgimento desta violência, dado por uma injustiça inici- mostrado todos os reinos da Terra e sua magnificência, lhe dis-
al que está no fundo dos atos de todos os homens deste plano, se: ―Eu te darei tudo isto, se te prosternares e me adorares‖.
então esta violência não teria oportunidade de se formar. Mas Jesus respondeu: ―Arreda-te, Satanás, porque está escrito:
Como se vê, trata-se de um jogo de forças que, contrastan- Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás‖. O diabo então
do-se, concorrem para o mesmo fim: o progresso. A carne é o deixou, e os anjos o rodearam e se puseram a seu serviço
preguiçosa, e a maioria dos homens é carne, e não espírito. Eles (Idem, 4: 9-11). Com isso, estão fixados os limites ao mal, que
se furtam ao trabalho de evolver. Então a Lei os alcança, envol- nada pode além deles. E todas as grandes lutas terrenas pelo
ve e agita, lançando-os uns contra os outros, iludindo-os com domínio material e pelo bem-estar econômico se reduzem a agi-
miragens de interesses pessoais que jamais conseguirão e que tações de um mundo inferior, além do qual a vida é completa-
desaparecerão logo que seja atingido o escopo prefixado pela mente diferente. Então desaparecem os temas relativos da luta
Lei, que eles ignoram. Assim age a Lei. Por isto os animais moderna, comunismo e capitalismo. Eles se reduzem ao que
possuem uma carne que, se para um é corpo, para outro é ali-
4
mento. Por isto eles são levados a contender, o que é útil para Dou para que dês. (N. do T.)
96 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
são todas as coisas humanas: uma transitória e ilusória forma Todavia assistimos ao fato de que se está desenvolvendo
exterior, neste caso, de um único e idêntico movimento de pro- atualmente um comunismo no campo social. E, se tudo que
gresso, para o qual concordemente colaboram. Assim quer a existe tem uma razão biológica, neste caso qual será esta razão?
unidade da vida, Porém, dada a psicologia do homem atual, esta Ela é dada pela atual fase da evolução humana, que assume a
colaboração não pode encontrar outra forma senão a da luta. O forma coletiva, quando tende à formação de grandes unidades
que realmente se dá hoje é uma formação da consciência coleti- de massa, isto é, de grandes organismos biológicos coletivos.
va e um despertar das massas, movimento universal de matura- Esta é a tendência moderna de toda a vida humana sobre o pla-
ção biológica, que, na vida, se coloca acima das divisões huma- neta terreno, ativada, pois, em todo o mundo, ainda que revesti-
nas. Pouca importância tem que ele hoje se vista de comunismo da em formas e normas diferentes. É uma tendência que implica
ou capitalismo. O movimento existiria mesmo sem estes nomes a ânsia em demanda da justiça social. O mundo, que atingiu
e teorias, vestidos em outras roupagens. De tal maneira, ele de através da ciência um inaudito domínio sobre as forças da natu-
fato se iniciará e continuará, ainda que estas vestes desapare- reza, tende a reordenar-se em novos equilíbrios econômicos.
çam. Deste modo pode-se concluir que as novas ideologias e Este é o conteúdo que, nesta sua atual fase evolutiva, a vida
concepções modernas, mais do que constituir a causa dos pre- empresta à luta pela seleção. Sendo assim, é natural que o co-
sentes e grandes movimentos coletivos, são apenas a forma re- munismo tenha surgido primeiramente nos países pobres, onde
lativa e transitória que, no atual momento histórico, assume em é maior a luta da qual ele deriva. É lá, onde mais cruciante é a
nosso mundo o eterno movimento ascensional da vida. fome e, consequentemente, mais sentida a inveja, que mais in-
tensa se torna a luta para destronar os que possuem mais. Onde
III. CAPITALISMO E COMUNISMO mais elevado é o nível econômico, não existe ódio contra quem
possui, porque todos possuem.
Depois de havermos visualizado o problema da unidade em O fenômeno só é compreensível se atentarmos para a reali-
suas linhas gerais, focalizemos de maneira particularizada e dade biológica que ele representa. As ideologias podem sobre-
concreta o que sucede atualmente no campo político do mun- por-se às leis da vida, podem envolvê-las e intentar recalcá-las,
do. Para principiar, perguntamos: corresponde às leis do uni- mas não podem destruí-las. Eis o que representa o comunismo
verso o princípio de igualdade que se pretende impor presen- moderno. A causa eventual que fez com que o movimento uni-
temente pela força? versal da vida no sentido da justiça social se localizasse na Rús-
Na estrutura atômico-eletrônica da matéria, os diversos sia, foi a miséria tradicional do seu povo. A necessidade de
elementos componentes não são iguais. É o que nos desvenda a igualdade econômica e de justiça social foi sentida, antes e mais
indagação submicroscópica. Em seguida, se à observação analí- acentuadamente, na terra da clássica desigualdade econômica e
tica substituirmos uma observação sintética macroscópica e da injustiça social. Na superfície da Terra, esse povo represen-
constatarmos uma homogeneidade de conjunto, é porque esta tou o ―locus minoris resistentiae‖5 para a explosão da crise. As
resulta das características comuns aos elementos diferentes, que características da vida nesse país permaneceram as mesmas de
só assim conseguem uma identidade de conjunto. E isto se dá há muito: a pobreza, a dor, os desnivelamentos sociais, os
sem prejuízo de sua individualidade e livre manifestação, se- ódios, a constante ameaça da Sibéria, a própria desolação que
gundo a estrutura de cada um. As leis da existência nos dizem, encontramos em Gorki, Tolstoi, Dostoiewsky e outros. Parece
pois, que a vida atinge a homogeneidade sem prejudicar a indi- que toda nação do planeta possui uma função, que, no presente
vidualidade, atinge a igualdade que unifica, sem destruir as di- caso, é a dor. O povo russo sempre sofreu um duro destino, e as
ferenças que distinguem. Os elementos conservam, pois, a indi- convulsões sociais frequentes, em vez de atenuá-lo, agravaram-
vidualidade inviolada, sem com isto impedir que todas as seme- no. O fenômeno é, pois, antes de tudo, russo, caracterizado pe-
lhanças equilibrem estas diferenças, reconstituindo assim a uni- las condições deste povo. Ainda que a ideologia comunista seja
dade segundo as qualidades coletivas, que estão na base de uma universal, a sua forma de bolchevismo russo não é aplicável a
individualização mais vasta do que a dos simples elementos. A povos tão diversos, com destinos e funções biológicas diferen-
igualdade se constitui, deste modo, não como uma violação im- tes. Ainda que a ideia comunista se divulgue, não poderá ser
posta à individualidade, mas como uma espontânea reordena- senão assumindo alhures formas diferentes. E é natural que os
ção dessas unidades. A igualdade não é, assim, uma superposi- povos não se adaptem quando ela queira permanecer russa, para
ção forçada da realidade, mas uma organização desta em um tornar russos povos que pela própria natureza não o são e que,
plano evolutivo mais elevado. biologicamente, não podem sê-lo.
Naturalmente, é inútil falar dessas leis universais a quem Se, pois, a ideia comunista não souber despojar-se da
não compreendeu o funcionamento orgânico e unitário do uni- forma contingente da terra em que se originou praticamente, a
verso. A igualdade que a natureza nos oferece é o resultado es- sua expansão reduzir-se-á como a de todos os imperialismos,
pontâneo, um produto das próprias individualidades, erguido despertando fatalmente as reações e resistências naturais por
sobre a linha de suas semelhanças, sem alteração da linha de parte das outras formas humanas de vida. Se ela quiser perma-
suas diferença. O mesmo que se dá com os agregados celulares necer russa, para tornar russo o mundo, o problema efetivamen-
se passa com os agregados sociais, de que agora nos ocupa- te oculto sob a ideologia será o de qualquer invasão demográfi-
mos. Nós existimos em um universo unitário, de princípio úni- ca e predomínio racial, velhíssimo motivo da história. A guerra
co, que se repete em todos os níveis evolutivos, e o fenômeno deflagrada seria apenas de raças e de interesses, e não de ideias.
social, para ser compreendido, deve ser tomado como um mo- Possui o comunismo atual capacidade de universalizar-se, er-
mento do fenômeno biológico. guendo-se acima das suas características particularmente rus-
A homogeneidade celular nos tecidos é efeito de qualidades sas? Saberá ele permanecer não russo em outros lugares, com
dominantes comuns, que deixam intactas as diferenças indivi- psicologia e métodos totalmente diversos? A vida, para atingir
duais, sem forçá-las ou suprimi-las, porque, tanto no indivíduo o universal, deve antes atravessar o particular. Antes da ideolo-
como na sociedade, elas são necessárias e possuem função pró- gia que tende à formação de unidades universais, a vida sente,
pria. E, se o princípio é sempre o mesmo, e a sociologia é bio- muito mais vívida, porque mais próxima, a menor unidade bio-
logia, por que se deveria aplicar nos agregados humanos um lógica nacional. Esta é a realidade, e nenhum povo pode mudá-
princípio diverso daquele aplicado pela natureza a todos os seus la. Se o trabalho obrigatório pode ser uma necessidade para um
agregados? E então, o que representa neste sistema de vida a
5
igualdade forçada imposta pelo comunismo? ―Lugar de menor resistência‖ (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 97
povo paciente e sonhador em um país imenso e triste, onde o o que é o homem atual, não pode empregar outros sistemas para
homem se habituou a ele desde séculos, como poderá ele apli- alcançar esta justiça, que, no entanto, representa a conquista a
car-se a povos de hábitos secularmente diversos, que jamais vi- ser feita nesta nova atual fase de evolução.
veram de tal forma sob regime algum, qualquer que fosse o gê- Falamos da necessidade que o comunismo de amanhã tem
nero deste? O que decide não é somente o tipo de governo, de universalizar-se, desnacionalizando-se, para supernacionali-
mas, sobretudo, a natureza do povo sobre o qual atua. A forma zar-se como ideia, e não como imperialismo de guerra; de supe-
de governo não é mais do que um dos tantos elementos da vida rar a fase de imposição de força, para ceder lugar à livre persu-
de um povo, que são, com frequência, antes a causa do que o asão; de substituir a luta de classe pela do amor evangélico.
efeito desta forma. Desta maneira se vê como o comunismo Acenamos também sobre a necessidade, para o comunismo de
atual é resultante de tantos fatos diversos. Resultou do presente amanhã, de espiritualizar-se, completando assim a sua inicial
momento histórico ou fase biológico-social, que avança para a unilateralidade materialista. No seu aspecto atual, ele é incom-
formação de grandes unidades coletivas e amplos organismos pleto, porque a vida não é feita apenas de matéria e os seus
biológicos de massa, o que impõe a implantação da justiça so- problemas humanos não são unicamente os do mundo econô-
cial. Desenvolveu-se segundo a natureza particular do povo mico. E ninguém o impede de poder encontrar, no seu caminho,
russo, que fez com que este fenômeno fosse mais sentido e se ensinos do gênero de A Grande Síntese, que estejam em condi-
verificasse naquele país, mais pobre e sofredor que os outros. ção de fornecer-lhe um sentido orgânico e uma orientação uni-
Isto explica a razão deste comunismo, cujo aparecimento hoje versal da vida, que as teorias de Karl Marx são insuficientes pa-
no mundo, biologicamente, significa a aproximação da ação ra dar-lhe. A vida caminha atualmente, e tudo o mais com ela,
evangélica esperada há 2.000 anos, ter nascido na Rússia às para o plano supermaterial. Para ele estão se dirigindo a ciência
avessas, isto é, como ódio de classe ao invés de amor evangéli- e, inevitavelmente, todo o pensamento humano.
co. O ateísmo se torna cada vez mais absurdo em um universo
Tivemos de nos referir ao evangelho porque, no seu atual que a físico-matemática revela cada dia mais ser pensante, isto
lance evolutivo, a vida está prestes a dar um passo decisivo é, feito de pensamento na sua mais profunda realidade. Os mío-
para aproximar-se da realização da Boa Nova, que há 2.000 pes, que não se orientam e não se atualizam, fixando-se nas
anos foi simplesmente anunciada. A ideia comunista, mesmo conquistas do momento e do contingente, sem conseguir vis-
se, em principio, o aplica de forma invertida, representa do lumbrar um amanhã mais vasto e sem poder pressentir a conti-
evangelho a primeira e vasta aproximação no plano econômi- nuação do presente no futuro, da matéria no espírito, arriscam-
co e político. Disto deriva que, se o comunismo quiser conti- se a ficar em meio do caminho. Não se pode existir na vida em
nuar a desenvolver-se segundo a linha traçada pelas leis da estagnação, mas só como vir-a-ser. E ninguém pode mudar as
vida, deverá completar-se, desenvolvendo-se amanhã, além da leis da vida, que assim pensa e assim quer.
sua atual fase materialista, com um novo aspecto espiritual O homem pode crer nas ideologias que mais lhe aprouve-
evangélico, de que hoje carece. rem, mas ai da ideologia que tenta sobrepor-se às leis biológi-
Ninguém nega a bondade e a verdade do comunismo como cas, procurando violentá-las! No conflito entre ideologia e bio-
justiça social. Mas, para que uma ideia seja aplicável em toda logia, vence sempre esta última, que é a mais forte. A vida é
parte, é necessário que seja universal, e não o produto apenas um fenômeno muito mais vasto e complexo do que o simples
de um dado povo ou regime. Ora, somente o evangelho, que fenômeno econômico. O homem não é, exceto em parte, um
não é filho de nenhum governo e que, nascido de um povo, dele fator de produção. No dia em que a atual ideologia não for
se destacou, possui não só as características de universalidade, mais concorde com os planos inteligentes que a vida quer rea-
mas também se apresenta completo no campo espiritual, que é lizar, será logo arredada do caminho, não pelos homens, não
necessário à vida. A história nos mostra que, quando o catoli- pelos governos ou exércitos, mas pela própria vida, que é a
cismo se nacionalizou em um povo e em um governo temporal, única força que, com a sua inteligência e poder, verdadeira-
originou a reação nórdica e antilatina do protestantismo. Assim mente domina o planeta. Em suma, não é o comunismo ou a
sendo, para evitar cismas em um comunismo universal, não res- democracia que comandam a vida, mas é esta que comanda a
taria outro caminho senão o de um imperialismo tirano e escra- ambos. É ela a única e verdadeira senhora do mundo e lhe im-
vagista, o que também significaria chegar-se a pior injustiça so- põe a própria vontade, que hoje é a de subir.
cial por meio da teoria da justiça social. Assim, um processo A respeito deste domínio das leis da vida prepostas como
tão deformado não estaria de acordo com a atual tendência evo- guia dos eventos históricos, é este o ponto mais oportuno para
lutiva da vida, mas contra e, portanto, destinado por esta, que é que se responda a algumas objeções propostas ao Cap. XCIX:
mais forte, a ser destruído, o que se verificará se o comunismo ―O Chefe‖, de A Grande Síntese. Quem, na Itália e no exterior,
não se universalizar e não se espiritualizar, isto é, se não conse- quis ver nele uma referência particular à exaltação de um dado
guir aproximar-se em tudo, também como método, do evange- homem e de um dado regime, não compreendeu o significado
lho. A acusação movida pela democracia ao comunismo é a de universal dos conceitos ali expostos, aplicáveis a qualquer
que ele não é comunismo, mas capitalismo de Estado, não é tempo, em qualquer lugar e a qualquer chefe, visto que eles
justiça, mas uma forma de injustiça social pior do que aquela exprimem universais leis biológicas. E as primeiras entre elas
que ele aponta e pretende corrigir. De fato, o comunismo se são a autoridade-função e o poder-missão. Função e missão,
implantou como luta de classes, pelo que não pode resultar se- que são o único verdadeiro sustentáculo da autoridade e do po-
não como imposição de classe, velha lei biológica do mais for- der, de modo que, se eles caírem, a vida arrebata estes últimos,
te, que ele aplica como a vida sempre fez, desde que o homem e toda a posição, qualquer seja a força que queira protegê-la,
existe. Em escala mais ampla, luta de classe significa luta de automaticamente cai. Repetimos sempre que a sociologia não é
povos e domínio de povos, imperialismo e imposição pela guer- senão um momento da biologia, e a política não é uma criação
ra. Onde está a justiça social? Pode-se alcançar a justiça pela humana, mas um efeito das leis da vida. Perante estas realida-
força? Ou então a ideologia é pura forma e aparência, por trás des, o regime representativo não é senão uma das formas pelas
da qual vigora a velha realidade biológica peculiar ao involuí- quais essas leis podem exprimir-se.
do, que não sabe afirmar-se senão pela força? Então a novidade Quem apresentou, pois, tais objeções não leu o que está es-
consiste apenas em acobertar com um manto de teórica justiça crito em A Grande Síntese, no fim do Capítulo XCVI: ―Con-
social o velho sistema da lei elaborada e imposta pelo mais for- cepção biológica do poder‖. Aí está dito: ―As forças biológicas
te em sua vantagem? Então é preciso confessar que a vida, dado não garantem o homem, mas a função, e o destroem apenas ele
98 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
deixe de corresponder a esta. (...) Assim, sempre a história comunismo, são coagidas a obstar a formação dessas condições
chama os seus homens. (...) Rejeita-os, sem remorsos, apenas a de miséria, que justificam e atraem o comunismo. O resultado
função cesse ou quando eles exorbitem ou se entibiem‖. E o do assalto comunista, porque tal é a sua forma de ação em face
referido capítulo se encerra dizendo: ―Assim nasce Napoleão, da técnica de luta que adota, é compelir os Estados capitalistas a
simples instrumento de uma guerra difusora de novas ideias, uma produção e distribuição de riqueza que facultam um eleva-
que foi posto à margem pelo destino, como inútil, mal se esgo- do nível econômico em todos os países não comunistas, de mo-
tara a sua função, da mesma forma como o último rei da Fran- do que o comunismo não encontre neles um ponto de apoio,
ça, do qual ele se rira‖. nem razão ou meio para interferir. Eis então que, superando os
Trata-se, pois, de leis biológicas, prontas para entrar em ação limitados planos dos homens de ação, os mais vastos planos da
mal se verifiquem alguns precedentes determinantes, seja no vida desenvolvem um programa inteiramente diverso, isto é,
passado, no presente ou no futuro, independentemente da pes- transformar um agente revolucionário de desordem em um gera-
soa, tempo e lugar em que elas se aplicam. A história confirmou dor de bem estar, e forçar o capitalismo a ser o primeiro a apli-
e confirmará sempre estes princípios. Deste modo se compreen- car a justiça comunista, para não ser por esta suplantado num
de quão instáveis são todas as posições de mando baseadas na desígnio hoje universalmente sentido e reclamado. Assim, nas
força, e não na função. É natural então que se pergunte que esta- mãos sábias da vida, a desorganização transmuda-se em organi-
bilidade podem ter hoje os poderes humanos considerados gene- zação, o mal em bem, e, assim também, o capitalismo conserva-
ricamente como uma conquista em seu próprio benefício. Daí as dor é obrigado a ativar o progresso. Desta maneira, nas mãos da
desconfianças e lutas entre governantes e governados, daí a clás- vida, o assalto comunista resolve-se, à sua revelia e contra a sua
sica forma de rebelião que parece hoje inerente a toda forma de vontade, na consecução daquilo a que ela aspira, e não do que
autoridade e que assume o aspecto de legítima defesa. almejam os diferentes chefes: um universal progresso de todos,
Por tudo isto se vê como os critérios através dos quais a vi- mesmo das nações capitalistas, rumo à justiça social.
da nos dirige são diferentes daqueles pelos quais o homem de- A vida atinge então essas suas finalidades pelo método da
sejaria mandar, e também como a distinção entre capitalismo e reação. Quando ficamos no contingente, onde fervilha a luta,
comunismo só possui valor contingente e transitório, em função desencadear o assalto significa excitar uma reação equivalente,
de certas finalidades, conseguidas as quais, tudo se transforma. em virtude da lei universal do equilíbrio. Uma benéfica reação
A distinção biológica é de alcance bem diverso e se verifica en- dos Estados capitalistas consiste, pois, no imperativo, a que
tre involuído e evoluído, diferença evolutiva, de substância, da eles se veem sujeitos, de desenvolver, eles mesmos, os princí-
qual tudo deriva e da qual o problema social atualmente não se pios de uma justa distribuição da riqueza e de justiça social
ocupa. Assim, praticamente, este se reduz a um conflito de inte- proclamados pelo comunismo, ainda que o façam gradativa-
resses em que os homens de ação, preocupando-se com objeti- mente. Uma outra reação consiste no fato de serem obrigados a
vos imediatos e concretos, permanecem imersos na peleja, pri- cuidar do nível econômico dos novos amigos por toda a forma
vados de qualquer visão de conjunto, a qual, se é de realização de auxílio. Efetivamente, como consequência da reação, surge
mais remota, não deixa de ser um fim a ser atingido depois. neles esta objeção: se o fim é melhorar o próprio estado eco-
Quem estiver envolvido na ação política deverá assumir a nômico, por que, em vez de melhorar-se o problema através da
atitude e o encargo de agir, o que é indispensável, mas não po- distribuição, não fazê-lo através da produção da riqueza? O
de dispensar o homem de pensamento, único capaz de indicar- mesmo problema universal da melhoria econômica pode assu-
lhe as grandes linhas de orientação. Quando se está encerrado mir, realmente, segundo a natureza dos diferentes países, as-
no horizonte estreito das realizações concretas, não se pode en- pectos diversos. Um país pobre, incapaz até de explorar o seu
xergar o amanhã distante, que também deve chegar; não se po- território, ainda que rico e vasto e, por isso mesmo, ainda pou-
de ver o pensamento da vida e a vontade da história, que, na re- co adiantado, sentir-se-á mais impelido a resolver o problema
alidade, guiam o homem, ainda quando ele se julgue dirigente pelas lutas de classes, disputando as riquezas já produzidas.
autônomo. Quem se limitar à visão e realização imediatas pode- Um outro país, rico de história, de temperamento e clima dife-
rá certamente atingir os seus fins próximos, mas não poderá sa- rentes, jovem e dinâmico, cheio de recursos próprios e alheios,
ber que realizações mais distantes alcançará. A elas chegará, será levado a encarar o método precedente como um contras-
embora não queira e não saiba. Acenamos acima para onde, senso e achar muito mais conveniente resolver o mesmo pro-
muito provavelmente, levarão as tendências sociais modernas. blema por meio de uma maior produção de riqueza para todos,
Em política, o homem prático age num outro plano. A im- relegando a um segundo plano a questão de sua distribuição
parcialidade e a universalidade para ele não têm sentido. No en- mais ou menos justa ou do nivelamento econômico. As nações
tanto o tem, bem acentuado, o enquadramento dos próprios in- não comunistas podem proclamar que elas acham mais conve-
teresses em um dado partido, com exclusão dos outros e contra niente resolver o problema deste modo e que assim o resol-
os outros. Sua psicologia de ação se reduz, pois, a uma psicolo- vem. Desse modo, sem luta de classe, o regime capitalista po-
gia de luta e ao exercício desta. De posições que correspondem de ser meio de uma abundância geral para superar as desigual-
apenas a um relativo que lhe é próprio, particular e transitório, dades distributivas, enquanto que o regime comunista, mesmo
faz um absoluto. O problema social e político se transforma en- distribuindo com justiça, deixa todos na miséria. Por que então
tão em problema particular, isolado, limitado, jamais fundido perder tempo em uma luta intestina de classe, com todas as su-
com o problema universal, do qual ele mesmo depende. Surgem as consequências destrutivas e corrosivas, quando o fim se po-
desta forma, nos primeiros planos, as questões secundárias, de mais facilmente atingir mercê de uma produção mais au-
perdendo-se de vista os projetos de ação mais vastos, justamen- mentada, que é capaz de elevar o nível econômico de todos de
te nos quais opera a mais vasta inteligência da vida. É assim modo a contentar a cada um? Ao invés de lutar contra o seme-
que nos engolfamos em uma técnica de pura batalha. lhante, possuído de ódio, por que não lutar apenas contra as
Desta forma, o comunismo, que se justifica com a injustiça forças da natureza para dominá-las? O problema não é distri-
social, procura-a e amplia-a, para também justificar a sua inter- buir, mas sim produzir. Só assim se pode verdadeiramente me-
venção. Cessa, desta forma, esta ideologia de justiça, dado que lhorar as próprias condições. Não é preferível um sistema de
prospera melhor na desagregação social, que ele incentiva para bem-estar geral, que exista para todos, ainda que desigualmen-
se servir dela. E, assim, uma ideologia de ordem e justiça come- te distribuído, a um sistema de igualdade na miséria?
ça a agir como desordem e injustiça. Mas decorre daí um fato Por aí se vê quanto é difícil o transplante de ideologia feita
estranho. As nações capitalistas, para impedir o crescimento do para um país e outros climas, difícil de aplicar a outras realida-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 99
des biológicas, que naturalmente reagem. O que pode ser ver- se de todas as vantagens materiais e igualmente dos vícios das
dadeiro junto a um povo pode parecer absurdo a um outro que classes superiores, mas não se preocupa com os deveres, educa-
possui qualidades muito diferentes. Como mandar um urso po- ção e encargos inerentes a esses níveis. Daí decorre um rebai-
lar para o Equador? Ou morre ou se transforma. A vida, com as xamento geral do nível de vida a plano inferiores. Erigirem co-
suas férreas exigências, impõe adaptações dentro de férreos li- mo modelo o homem da rua, o camponês, o operário, significa
mites de tolerância. Por este motivo, como dissemos, o comu- um nivelamento também espiritual e está em correspondência
nismo, se quiser ganhar o mundo, deve desnacionalizar-se, com o atual materialismo, com a psicologia do ventre, própria
adaptar-se e transformar-se, porque existem leis biológicas que do tipo menos evoluído, assim como com a tendência destruido-
nenhuma força pode mudar. O resultado final da realização da ra atualmente em ação em todos os campos mais elevados da
ideologia não sabemos a que distância está do ponto de partida, mente e do coração. O problema é muito vasto. Hoje, nos encon-
porque, para atingi-lo, a ideologia originária deve defrontar-se tramos em fase universal de nivelamento, que não é apenas eco-
com as leis e com a vontade da vida, que a amoldarão inexora- nômico. É natural que os extratos inferiores da sociedade huma-
velmente às próprias exigências, e, se, por ventura, não se qui- na, despertando, nivelando-se e afirmando-se, carreguem consi-
ser dobrar, será despedaçada. Já dissemos que o pensamento da go aos primeiros planos todas as características do involuído.
vida é bem diverso do pensamento dos homens. É aquele, e não O princípio igualitário não interessa apenas ao mundo eco-
este, o verdadeiro pensamento que necessita ser lido para que nômico, mas é fenômeno que investe sobre todas as manifesta-
se possa compreender os fenômenos sociais. Existem princípios ções da vida, mesmo aquelas que não lhes dizem respeito. Pu-
universais mais profundos, que o indivíduo, imerso nos seus seram-se em movimento para sentir a vida todas as células so-
problemas particulares, não vê e que, entretanto, atuam. É, pois, ciais, mesmo aquelas adormecidas em expectação. É certamen-
natural que no mundo imperem motivos diversos, repetidos no te um fermento de vida extenso, mas rude, primordial. Desta
fragor das armas, mas que, embora guerreando, colaboram to- maneira, na quadra atual, cada vez mais decai a raça do indiví-
dos para os mesmos fins evolutivos da vida. duo evoluído selecionado, porque uma emergente maré de vida
Momentaneamente, pondo-nos do lado do capitalismo, po- inferior se impõe, conquista todo o espaço e submerge qual-
demos indagar se a desigualdade econômica, contra a qual só quer superelevação biológica.
hoje a psicologia coletiva se insurge em massa, foi historica- Tal é o momento histórico, do qual o comunismo não é
mente considerada uma injustiça. Se ela existiu, se a vida lhe senão um aspecto no plano econômico-político. Em seu âmbito,
permitiu existir, isto significa que deve ter cumprido uma fun- o nivelamento talvez satisfaça o sentimento de inveja dos me-
ção que hoje teria desaparecido, não se sabendo qual será o seu nos abastados, mas é indubitável que a nossa época deverá pa-
substituto. Só hoje a vida, em um momento excepcional, deci- gar esta conquista com um rebaixamento do tipo mais elevado
diu o progresso das massas humanas em bloco. Antes, com a de civilização. Porém este tipo era de poucos, e o nivelamento
sua habitual parcimônia, ela permitiu o avanço apenas de gru- agora é de todos, e, por isso, faltar-nos-ão modelos elevados, a
pos limitados, que formavam as aristocracias. Este sistema não ser o da mediocridade. Teremos um estado de semicultura,
persistia, ainda que se lhe mudassem os componentes, porque de semirriqueza, de semieducação e finura, mas igual para to-
estava adequado à função de criar modelos de civilização mais dos. É verdade que, na alma do pobre que sonha, o comunismo
avançados, formas de existências mais refinadas, de modo que é bem diverso de um ideal de justiça social, ou pelo menos essa
os menos abastados, a seguir, pudessem por sua vez, imitando- justiça deveria ser, no seu modo de ver, uma substituição por
os, ascender. Estas formas mais adiantadas, quer em razão do sua pessoa nas posições de favor de pessoas dos velhos esque-
meio, quer pelo preparo educativo, não podiam se alcançadas mas sociais. E, assim, ele está pronto a aceitar o comunismo
pelo grosso das massas e se tornavam assim, necessariamente, somente enquanto houver o que ganhar e, se, por ventura, tiver
limitadas a uma classe de reduzido número de pessoas. Estas que resignar-se a uma paridade econômica, só admiti-la-á no
possuíam uma função educadora e diretora, representando uma caso em que signifique para ele uma melhora. Com o que ele
antecipação ou modelo. A Europa admirou, desta maneira, as verdadeiramente sonha é o desnivelamento de antes, mas em
loucuras luxuosas de Luís XIV, que constituíram depois o mo- seu favor. Contudo esta possibilidade de emergir, distinguindo-
delo para a civilização aristocrática do século XVIII e, exauri- se da plebe, está definitivamente eliminada da atual fase histó-
da a sua função, justificaram o assalto demolidor da Revolução rica, mesmo para a plebe. Esta, no igualamento, terá o gosto de
Francesa. A mesma plebe que se sentiu honrada e se extasiava não ver mais diante dos olhos esta exibição de riqueza; não terá
quando era admitida a contemplar a opulência daquela corte ao menos quem e o que invejar; não poderá mais admirar, ainda
nos banquetes reais, nos jardins etc., um século depois consi- que seja invejando, as cenas de que ela mesma sempre foi tão
derava tudo isso um escandaloso insulto. ávida. No entanto poderia ser-lhe útil explorar alguns dos as-
A vida, que se expressa através das pessoas, utilizou o ego- pectos da riqueza que lhe foge, percorrer as experiências das
ísmo da classe aristocrática enquanto esta lhe servia para criar classes refinadas, que conhecem também outras formas de dor,
um modelo. Mas, quando esta classe, egoisticamente pretendeu que a justiça da vida mantém distanciadas daqueles que já se
monopolizá-la para seu usufruto exclusivo, a própria vida se in- encontram abundantemente gravados com a dor da pobreza.
surgiu e, manifestando-se através de todos os que haviam sido Em face destas mais profundas realidades da vida, todos os
excluídos, lançou-se contra os monopolizadores. A vida é por si nossos nomes de partido e de governo passam para segunda
mesma coletivista e não admite injustas exclusões. Então ela plano, e parece até inútil amofinar-se com as distinções atrás
grita pela boca dos deserdados: ―também nós!‖. das quais, sob a forma especiosa de palavras novas, esconde-se
O erro humano que a vida pune e que, para não ser pago, o velho homem de sempre. Então se desce ao terreno da luta,
deve ser evitado está inteiramente no egoísmo e no monopólio. onde é inútil procurar a verdade. Esta situa-se alhures, nas leis
A moral está em que, segundo o verdadeiro coletivismo, que é da vida. E, por esta, as diferenças individuais existem e persis-
o da vida, todos devemos ser irmãos. tem e, como tais, voltarão a manifestar-se. Nenhum nivelamen-
Hoje, com a igualdade, obteremos certamente a justiça soci- to econômico poderá impedir ao mais inteligente e voluntarioso
al, mas também o nivelamento de toda distinção e refinamento, de aparecer, e ao mais obtuso e preguiçoso de ter que se subme-
perdendo completamente o modelo do senhor que, se era rico, ter a ele. A distância entre servos e senhores corresponde a uma
também deveria ser educado, culto e bondoso, pelo menos em realidade biológica e está sempre pronta a reconstituir-se, até na
teoria. Teoria hoje perdida, embora justamente, mas perdida, sua manifestação exterior de posições sociais diferentes. Ne-
porque traída pelas classes altas. O povo está pronto a apropriar- nhuma disciplina de estado pode alterar estas posições substan-
100 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
ciais. Nos indivíduos, como nos grupos, o mais forte se torna os homens de ação, que são necessários, mas não nos deixe-
sempre centro, em torno do qual, como planetas, os mais fracos mos empolgar demasiado pela sua miragem. Atentemos para a
gravitam, seguindo a lei e a ordem que ele lhes quiser impor. vida, que é a única que não mente e pode inspirar-nos confian-
O movimento da vida hoje é o mesmo já realizado no pas- ça. Ela, dividindo o mundo entre capitalismo e comunismo,
sado: a ascensão das classes sociais inferiores. O nivelamento não faz mais do que aplicar o seu universal princípio de duali-
não tem outro sentido. Verificar-se-á uma retração das distân- dade. Nós sabemos que o dualismo é a base do monismo, por-
cias, sobretudo formais, mas as diferenças são insuprimíveis. A que cada unidade que existe é o resultado de duas metades in-
plebe ainda agora é menos evoluída do que os chefes, consti- versas e complementares. Essas duas metades são hoje no
tuindo campo de luta favorável aos dominadores, que continua- mundo: capitalismo e comunismo. Estes formam, por conse-
rão a instruir as massas sempre com novos truques, pois, na guinte, uma unidade. Eles representam a forma atual dos equi-
verdade, cada povo possui os dirigentes que merece e que pode líbrios da vida. Isto é, as duas metades são, como sempre e em
compreender. Desta maneira, as massas aprenderão melhor a toda a parte, equilibradas, tal como o positivo e o negativo em
pensar e, de desilusão em desilusão, sofrendo duramente de ca- todas as coisas, como os dois polos do circuito elétrico ou os
da vez, irão formando, como é natural, à própria custa, a cons- dois termos do sexo. Assim como a história possui os seus pe-
ciência coletiva. Assim, a vida consegue permanentemente, ríodos românticos e clássicos e a política as suas formas de
através da luta, os seus objetivos evolutivos. Como se vê, a ten- democracia e totalitarismo, assim também devem ser encara-
dência destruidora universal do presente não passa de uma fase. dos capitalismo e comunismo. O primeiro é produtor, logo ar-
Em biologia, a destruição tem sempre uma função renovadora. mazenador e conservador, estribando-se na riqueza e no bem-
A substância de todos estes movimentos é a luta biológica, estar material. O segundo é revolucionário, logo expansionista
em que cada um se comporta segundo a própria natureza. Toda e guerreiro, baseando-se na conquista e na ideia. Eles lutam
ideologia tem de se ajustar sempre aos insuprimíveis instintos hoje como o macho e a fêmea no amor, acreditando, como es-
que fazem o homem agir, e, entre estes instintos, são fundamen- tes, poder impor o seu próprio eu para sua exclusiva vitória.
tais o de posse e propriedade, meios poderosos que o ajudam a Mas o terceiro elemento, o filho, que nascerá desse encontro,
subir. O verdadeiro comunismo presumiria o homem angelical, não será exatamente nem um nem outro, pois, ainda que se
desinteressado, altruísta, disposto a renunciar às próprias vanta- lhes assemelhe, será apenas ele. E o que será mais necessário
gens individuais em benefício de todos. para a sua gênese: o macho ou a fêmea? A vida age sempre,
Existem hoje exemplares de tal homem? E, se existem, po- em toda a parte, com os mesmos princípios.
derão sobreviver no mundo atual? Então, como podem subsis- Antigamente, pobres e ricos viviam na mesma cidade. Hoje,
tir tais qualidades? Com o espírito de grupo e o interesse de esta cidade é o mundo, e como todos os pobres se uniram, o
partido? Mas, assim, da ideologia não estará em atividade se- mesmo fizeram os ricos. Assim, o mundo se dividiu em dois. A
não a habitual e antiga luta pelo domínio, a união para gerar a Rússia, que é pobre, fez-se mãe de todos os pobres e está abra-
força. Esta culpa não cabe ao comunismo ou ao capitalismo, çando a China, que também é pobre, em uma ideologia que jus-
mas ao próprio homem, que, em toda a parte, é sempre o mes- tifique a todos. A América, que é rica, fez-se mãe dos ricos e
mo. Na verdade, a meta é o evangelho e a sua justiça. Mas, da- está abraçando a Europa, que até ontem pertencia à casta dos ri-
do o que o homem ainda é hoje, mais avançada aproximação cos. Se, no passado, todo pobre pedia esmola ou pretendia ex-
em massa não se pode obter presentemente. Tudo sucede em torqui-la ao rico à força, cada um cuidando de si mesmo, sem
virtude de uma razão profunda e colima num objetivo na vida, pensar em outro pobre, e cada rico dava isoladamente, hoje, em
e este ainda está muito distante para que os homens da atuali- consequência da atuação do princípio das grandes unidades, o
dade o percebam. Amanhã, a fase atual de capitalismo e co- mesmo gesto, de uma parte ou de outra, é repetido em grandes
munismo estará superada. Sem dúvida nenhuma, a consciência massas. Hoje, não é mais um pobre ou um grupo deles, mas é
coletiva foi despertada e as massas sentem com maior clareza a uma metade do mundo que pede e impõe justiça econômica à
voz da vida. Os erros serão pagos e, na dor, serão corrigidos. outra metade. A realização do princípio das grandes unidades a
Deste modo, por eliminação, sobreviverá apenas o melhor, que que o progresso nos conduziu nos faz alcançar a unificação em
passou pela seleção das provas. todos os campos, começando pelo econômico.
Todos os movimentos hodiernos, ainda que em parte nau-
fraguem, possuem uma grande função como escola e prova. IV. A UNIDADE POLÍTICA
Começará a formar-se um egoísmo de classe que é mais vasto
que as unidades psicológicas que se haviam formado no pas- Nos capítulos precedentes, observamos o principio da unifi-
sado. Tudo que arvora-se em coordenação e unificação é uma cação e a sua presente atuação no mundo, que representa a fase
forma de progresso. A estruturação da organização de classe atual do seu progresso. Trata-se da coordenação de múltiplos
levará a um sentido de unidade por parte de células que ainda elementos antes heterogêneos em novas unidades-sínteses, o
não se conheciam. A coordenação dos egoísmos de classe em que significa uma ascensão na hierarquia do ser, dado que este
mais amplos egoísmos de povos e humanidade levará a novo é um momento da reordenação progressiva do caos, através da
progresso. Já vimos, no volume A Nova Civilização do Ter- qual tudo tende a voltar para Deus. Qualquer que seja a atitude
ceiro Milênio, os métodos de aquisição do involuído. Ele é le- que o homem queira presentemente assumir, no bem ou no mal,
vado a considerar ―legitimamente seu‖ qualquer coisa em que, o fato novo que exprime o progresso atual é que tudo hoje co-
de alguma forma, tenha arriscado a pôr as mãos. As atuais meça a suceder em escala sempre crescente, em razão do ho-
macerações sociais levam-no, pelo amadurecimento, a conce- mens abranger distâncias cada vez maiores, agrupando-se, con-
ber uma propriedade cada vez menos egoísta e exclusivista, sequentemente, em unidades mais amplas.
cada vez mais coletiva e social, até à sua negação no comu- Falando em A Grande Síntese (Cap. XXVII) da lei das uni-
nismo. Esta é uma maneira de conduzir o involuído à concep- dades coletivas, simplesmente constatamos esta estrutura analí-
ção que o evoluído possui de propriedade, que, em outra par- tico-sintética, isto é, coletivista, através de reagrupamentos or-
te, veremos ser muito diferente. gânicos no universo. Aqui, estamos observando alguns casos
Muitos são hoje os modos pelos quais a vida procura eclo- particulares situados no campo social da presente fase histórica,
dir das suas velhas formas. Não nos resta mais que confiar na analisando algumas unidades coletivas, sobretudo no seu pro-
sua sabedoria e nos limitarmos a segui-la, lendo-lhe o pensa- cesso de formação, ou seja, não em seu aspecto estático, mas
mento, que se inscreveu nos eventos da história. Respeitemos sim no dinâmico de sua transformação.
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 101
No capítulo anterior, verificamos assim o fenômeno hodi- Em nosso século de movimento e velocidade, assistimos a
erno das grandes unificações mundiais na fase de interesses um contínuo desmoronar de barreiras. As paredes divisórias,
econômicos. erguidas pela ignorância humana, por mais que resistam, vão
Passamos agora a observar o mesmo fenômeno no campo sendo paulatinamente demolidas. No campo político, revela-se
político e, finalmente, o veremos no religioso. No estudo des- absurda e ofensiva para os excluídos a ideia de uma absoluta
tes casos particulares de unificação, encontramos também uma superioridade racial, como o é também a de uma absoluta supe-
explicação e uma confirmação do monismo que sempre nos rioridade individual. Tanto mais perniciosa é semelhante ideia
guiou nesta obra. Por este estudo, o leitor verá que todos os quanto mais ela tende à escravização e ao extermínio de outras
problemas são sempre orientados para o mesmo princípio uni- raças ou povos. Toda raça possui qualidades que não se forma-
versal. Mesmo agora, partiremos utilizando um ponto de refe- ram ao acaso e que têm uma função coletiva. Cada povo pode
rência de caráter universal. oferecer uma contribuição útil à formação do novo organismo
A criação não é o resultado da intervenção exterior por parte da humanidade. E, se existe uma raça mais evoluída, esta tem,
de um princípio transcendente que do nada cria tudo de uma vez. por isso mesmo, o dever de educar e fazer evoluir, e jamais o
A realidade fenomênica nos mostra universalmente que a criação direito de esmagar e desfrutar.
é o resultado de uma contínua e íntima atividade de um princípio A mentalidade moderna, especialmente depois das últimas
imanente, cuja faculdade criadora deriva do fato de dispor de um experiências bélicas, é impelida a fazer a crítica do velho con-
modo permanentemente novo e diverso de formas transitórias e ceito de nacionalidade, que dividiu e prejudicou o mundo por
caducas, numa substância que é indestrutível. O que muda e se milênios. Então interroga: que interesse tem alguém em matar,
acaba é apenas a forma. Somente ela nasce do nada, e não a subs- por motivos de estratégia política, homens que não conhece?
tância. Esta é envolvida por uma cadeia de contínua composição Em face de qualquer afirmativa, o espírito crítico moderno vai
e decomposição, segundo modelos diferentes. Tudo se individua- espiar por trás dos cenários, dando origem então à dúvida de
liza em tipos definidos e, compondo-se, passa a existir. Depois que as exaltações heroicas, as honorificências bélicas, podem
desintegra-se, para recompor-se de novo, em uma existência mais ser criações artificiais dos governos ou classes sociais, a servi-
completa e perfeita, consoante a marcha da evolução. Através ço dos seus objetivos egoísticos, e que, efetivamente, não inte-
deste florir e fenecer para reflorir, nascer e morrer para renascer, ressa aos povos, conduzidos assim ao massacre, para vantagem
a vida avança – movimento que, se é esforço e parece instabili- de alguns. O racionalismo moderno abalou a confiança simples
dade, é porém meio de inexauríveis conquistas. Por isso é certo de antanho. Os últimos desmoronamentos de grandes potências
que quem toma por realidade definitiva a forma transitória e a ela e os rápidos transtornos que sofreram as pregações e os ideais,
se fixa, abraça apenas uma aparência e se perde na ilusão. Isto puseram à mostra o desgaste de muitos políticos que em geral,
não acontece a quem se fixa na substância. antes, se mantinham ocultos. O lamentável aspecto dos gover-
Dito isto, vejamos sua aplicação. A nova era, na qual o nos desnudados desacreditava a ideia de Estado. A proclama-
mundo está para entrar, não é uma criação nova do nada, mas ção feita aos quatro ventos dos abusos praticados pelos diri-
somente uma forma diversa e mais elevada de vida, em que os gentes soou aos ouvidos do cidadão, inimigo natural de seu pa-
elementos individuais e sociais da humanidade, hoje existen- trão estatal, não mais como uma reivindicação de justiça, mas
tes, serão dispostos diversamente, isto é, mais harmônica e or- como uma simples acusação pública contra toda autoridade,
ganicamente, com maior amplitude e profundeza de fusão, razão e justificativa de desordem e consequente incentivo à re-
através da supressão de tantos atritos dolorosos, de modo a belião. Degringolou assim o prestígio da autoridade em si
tornar possível a formação de uma individualidade biológica mesmo, personificada em quem quer que fosse. O homem, tor-
coletiva mais harmônica, extensa, complexa e perfeita, ou seja, nado mais astuto e suspicaz pela constatação de tantos enga-
uma civilização mais avançada. nos, começa a compreender os truques de todos os governos,
Há milênios que os indivíduos sofrem uma elaboração den- de todos os programas, de todos os partidos, e sabe agora por
tro dos mais variados acontecimentos históricos, que de modo que método a imprensa fabrica a opinião pública e, em meio a
nenhum se podem repetir igualmente. Ainda não existe a com- tantos mestres, aprendeu a desconfiar de todos. O homem de
preensão, mas há a possibilidade de se alcançá-la. Indiscuti- vida privada quer os seus negócios, a sua paz. Os povos estão
velmente, o homem é, na maioria dos casos, um involuído. cansados de guerra. Eles não admitem hoje senão uma guerra:
Mas dois fatos novos surgiram: a extensão das suas faculdades a guerra contra aqueles que pretendam desencadear novas
racionais, mercê da ciência e da cultura, e o progresso tecnoló- guerras. Por este motivo, quem deseja fazer a guerra desempe-
gico, que libertou o homem do trabalho material e lhe facultou nha antes o papel inocente do agredido, proclamando ao mes-
fáceis e rápidos meios mundiais de comunicação. Formou-se, mo tempo que é o defensor da paz.
pois, na humanidade, a capacidade e o meio para que ela se No entanto murmura-se: o pacifismo abre as portas ao inimi-
sinta em qualquer dos seus pontos. Não existe ainda o senso da go. É verdade, mas o atual transtorno e relatividade de frontei-
organicidade, mas as suas premissas já estão plantadas. O ras, com os meios aéreos que as podem superar e com a moder-
mundo está maduro para começar a compreender e movimen- na tendência a grandes unidades mundiais, faz tal frase perder
tar a ideia nova de unidade. dia a dia sua significação. A guerra se faz, cada vez mais, com
A velha mãe Europa completou grande parte da sua tarefa, capitais e indústrias e, cada vez menos, com patriotismo e espíri-
irradiando a própria civilização para as duas Américas, as suas to heroico; cada vez mais, com a capacidade técnica e, cada vez
duas filhas, a latina e a anglo-saxônica, nas quais se expandi- menos, com o valor militar. Por isso tem mais ação protetora pa-
ram e revivem as duas grandes raças europeias. O mundo está ra o povo o senso orgânico industrial do que o sentimento béli-
dividido hoje entre as duas únicas grandes potências: Rússia e co. O mundo se transforma, caminha para a fase orgânica coleti-
América. De qualquer maneira, deverão defrontar-se e decidir a va. Ora, o coletivismo é, pela própria natureza, colaboracionista,
supremacia mundial, alcançada a qual, tudo girará em torno de antiagressivo e pacifista. Pelas suas naturais destruições, a guer-
um único centro, aquele que demonstrar como potência, justiça ra encaminha-se para destruir a si mesma. A técnica torná-la-á
e inteligência, ser o melhor. Somente a formação de um único tão destruidora, que o mundo entrará em coalizão, em autodefe-
governo central poderá estabelecer uma ordem que isole e eli- sa, contra quem quiser recorrer a ela. E, assim, o espírito belico-
mine a violência bélica dos Estados separados. Os idealismos so de virtude se transformará em culpa. Tudo isto, hoje, pode
antibélicos podem exprimir um desejo e preparar o terreno para parecer desmoralização, mas, com a evolução, as necessidades e
a paz, mas não são por si sós suficientes para eliminar a guerra. os valores éticos sociais mudam. A vida avança e abandona os
102 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
valores que não mais a servem. O que servia em um mundo de Compreensão não significa sujeição do superior ao inferior e,
paz temporária, permitida por um equilíbrio instável entre tantas muito menos, do inferior ao superior, mas coordenação, segun-
nacionalidades distintas e rivais, não serve mais para um mundo do o valor intrínseco e peso específico de cada unidade, para a
que gravita em torno do único poder central, para um mundo or- formação de um todo orgânico e único. Cada religião na sua
gânico, ligado assim ao pacifismo. Os meios técnicos conquista- justa posição, consoante à sua elevação espiritual. Há lugar,
dos, assim como emancipam o homem dos esforços animais, pois, para os budistas, maometanos, hebreus e cristãos de todos
também o levam a aplicar as suas energias em lutas mais eleva- gêneros, inclusive os católicos. Há lugar para cada religião, pa-
das, para servir a uma seleção espiritual, e não material. ra cada seita que supere o espírito sectário, para cada forma de
O patriotismo, sentimento tão fundamental no passado, pa- fé, filosófica ou científica, contanto que seja livre e que tenha
ra a defesa nacional, ressente-se da mutação condicional da vi- tendência sincera para o espírito e para o divino.
da e se transforma. Ao invés de surgir como exaltação heroica, Também isto pode parecer desmoralização. Mas tantas sub-
ele se nos revela em outros aspectos, que lhe são peculiares, divisões humanas do mesmo sentimento de adoração a Deus,
em conexão com sentimentos de intolerância, rivalidade, com as quais acredita-se ciosamente conservar a fé, são mais
agressividade, guerra e destruição. Cada um desses sentimen- questões de forma do que de substância e atingirão a unidade
tos encadeia-se com outro, numa sequência de raízes profun- quando souberem superar a forma, atendo-se precipuamente à
das. A elevação do nível de vida e a progressiva evolução do substância. Dê-se à forma o valor que merece e não mais. Quan-
ser humano o tornaram mais sensível a tudo, especialmente em tos delitos se cometeram por ela, quantos massacres se fizeram
face da destruição, cujas dores se tornam cada vez mais insu- em nome do mesmo Deus, que a cada qual parecia tão diverso,
portáveis. Se o patriotismo é belo dentro dos limites pátrios, no sendo sempre o mesmo. É evidente que tudo quanto divide é sa-
exterior constitui uma ameaça, e a cada exaltação patriótica in- tânico. Os caminhos de Deus, que são amor, conduzem à unida-
terior corresponde uma recrudescência de ódios nos países vi- de. O espírito egocêntrico e sectário é uma expressão do mal. O
zinhos. Estes isolamentos egocêntricos se tornam gradativa- espírito de compreensão, altruísta, é expressão do bem. Em to-
mente mais absurdos em um mundo tão intercomunicante nos das as igrejas se adora Deus, e trata-se do mesmo Deus. No en-
seus interesses e relações de qualquer gênero. tanto queremos dividir-nos com a pretensão de definir o indefi-
Hoje, sentimos o peso das barreiras a que nos sujeitávamos nível infinito, de conceber o inconcebível, de dar no relativo
no passado, resignados como a um fato inevitável. Tem-se sede uma forma àquilo que, podendo assumi-las todas, está acima de
como nunca de liberdade, de uma liberdade mais ampla que a qualquer forma! Se a verdade absoluta é uma só e jamais muda,
precedente, de mais espaço, porque, de criança, o mundo trans- é natural que, no relativo humano, não possa caber senão uma
formou-se em adulto. Como nunca, hoje o homem sente que a verdade relativa, limitada e em evolução. É natural que a capa-
vida é tanto mais bela quanto mais livre. A intensificação do cidade humana de compreensão não possa abarcar a verdade ab-
dinamismo moderno e dos meios de movimentação que satisfa- soluta, que está além de toda a inteligência humana e que, pois,
zem a este dinamismo exige liberdade. E uma liberdade maior a esta verdade não se pode subir senão por graus, por aproxima-
não se pode obter senão com uma tolerância e compreensão ções sucessivas. Na livre atmosfera espiritual do universo, todo
proporcionalmente maiores. Do princípio de que é grande quem isolamento fechado de uma verdade particular é estiolamento e
ama apenas a própria pátria, odiando todas as outras, chegar-se- morte. Cada profeta, cada fundador de religião, levou a sua
á ao de que é grande quem ama ao próximo como a si mesmo. mensagem do mesmo Deus, em formas diversas, adaptadas ao
Aquilo que, perante a velha mentalidade, parece desmoraliza- homem e proporcionada aos tempos. Não confundamos a forma
ção é, pelo contrário, uma queda de barreiras. O patriotismo do com a sua essência. As diversas mensagens de Deus não são
futuro abraçará todo o mundo, e um homem não será cidadão verdades diferentes e inimigas, mas sim as formas sucessivas
senão da nação humanidade. O tipo biológico do futuro, senhor com as quais se exprime a palavra de Deus aos homens em um
do planeta, o vencedor da luta pela vida nas suas novas formas, mesmo progressivo plano de educação.
não será o homem belicoso, violento e feroz de antanho, mas Não basta a tolerância, que é atitude passiva. É necessário
um ser orgânico, ―o homem social‖, célula de um imenso orga- alcançar a compreensão, isto é, a fraternidade entre as várias re-
nismo humano, cuja vida nada mais terá a ganhar com a extor- ligiões. Não se trata de suportar um inimigo tolerando-lhe o erro
são do indivíduo pelo indivíduo praticada até agora, mas base- com um tácito espírito de condenação, trata-se sim de ir ao en-
ar-se-á no desfrutamento das inexauríveis riquezas e energias contro de todas as formas de fé, de coração aberto, procurando,
que transbordam da natureza. mais do que aquilo que as divide, aquilo que as pode unir. É ne-
cessário compreender que elas não são mais que diferentes está-
V. A UNIDADE RELIGIOSA gios históricos, fases evolutivas ou formas étnicas de uma mes-
ma religião única, que evolve paulatinamente e se completa de
O mundo atual não caminha apenas no sentido da unidade período em período. Por que deve o adulto ser inimigo do jovem
política internacional em que está implícita, numa relação de ou da criança; o fruto, inimigo da flor ou do botão ou da semen-
causa e efeito, a unidade econômica, mas avança também para a te, se é sempre o mesmo eu que marcha no tempo, evoluindo? A
unidade religiosa. Neste campo, igualmente tão importante co- atual mania separatista no campo espiritual torna-se dia a dia
mo o político e econômico, lavra uma tendência, em meio a mais ilógica e prejudicial. As barreiras que dividem o mundo
tantos grupos distintos e hostis, à unidade, isto é, à formação de são ainda grandes, mas, na época atual, elas deverão desmoro-
um só rebanho, com um só pastor, mas é necessário frisar que nar. A luta entre as religiões esteve até agora unida à luta racial,
isto, assim como para as raças e nações, não se deve interpretar política, econômica e nacional. É evidente que, conseguindo-se
como supremacia de uma religião e seus representantes, com a unificação nesses últimos campos, deve-se conseguir a unifi-
exclusão das outras religiões e seus representantes. Assim como cação também no campo religioso. Visto que a realidade funda-
a futura humanidade será uma unidade racial e nacional acima mental das religiões é uma só e a mesma e que a luta religiosa é
das diferentes unidades raciais e nacionais, a religião do futuro frequentemente a expressão de rivalidade de outro gênero, é cer-
também será uma unidade espiritual acima das diferentes uni- to que, desaparecendo esta, a tendência à unidade em todo cam-
dades religiosas. Em outros termos, da mesma forma que no po acarretará a fraternidade também no campo religioso. Esta
campo político, social e econômico, a unidade no campo religi- fraternidade fará com que o mais evoluído compreenda e ajude o
oso também não pode ser dada senão pela compreensão e fusão menos evoluído, ao invés de condená-lo e combatê-lo. Não é
em um todo harmônico das verdades religiosas existentes. nociva a disputa de interpretação quando acarreta cisão e ódios?
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 103
Não é a essência da religião a união, a fraternidade, a aproxima- cido. Elas avançam com a psicologia dominante. Ideias que, há
ção de Deus, amando o próximo? A mais profunda erudição, poucos anos, pareciam heresias, como o conceito de evolução,
sem o ardor de sacrifício e de fé, é puro farisaísmo. É evidente, hoje são admitidas. Assim será também amanhã para estas pá-
já o dissemos, que em nosso tempo assistimos a um desmoro- ginas. Deixemos que, no homem, o finito caminhe gradativa-
namento de barreiras em todos os campos. O instinto expansio- mente para o infinito, pois que jamais o atingirá. Deixemos que
nista, sempre fundamental e ativo na vida, jamais atirou como o homem faça de Deus a representação admissível pelo seu po-
agora uns nos braços dos outros, ainda que o seja por instinto de der de concepção. Tudo quanto ele disser de Deus jamais será
violência bélica e num amplexo de ódio. Não importa. Os fins Deus, mas a Sua limitação para uso humano. A essência da di-
da unificação em um mundo involuído se manifestam sobretudo vina realidade é para nós inconcebível, e qualquer especulação
em forma de luta, que é a primeira fase do avizinhamento. A vi- filosófica e teológica não pode nos dar dela mais do que uma
da é sempre expansionista em qualquer nível, desde as invasões longínqua aproximação. O homem não pode ver Deus senão em
bárbaras, que reduzem os povos à servidão, aos imperialismos Seus espelhos. Passam pela Terra seres como o poeta, o gênio,
políticos e econômicos, até mesmo na ordem evangélica, que o santo, o herói; tão avançados, que neles podemos ver um re-
diz: ―Ide e pregai a toda a gente‖. Tudo tende sempre a dilatar-se flexo de Deus; alguns tão perfeitos, que nos aparecem como
e, por conseguinte, à unidade. semelhantes a Deus. Se a essência divina não é cognoscível, as
No campo religioso ocidental, esta dilatação não pode ser manifestações da Sua qualidade são visíveis por toda a parte, e
realizada pela segregação dos dissidentes, mas sim por uma ex- nada existe que não nos fale d'Ele. Então poderemos vê-Lo em
pansão além de sua forma atual. É necessário encontrar, para lá todo rosto e forma, amá-Lo em toda criatura, encontrá-Lo em
do Cristo chefe de uma única religião, o Cristo universal cone- toda parte. Então compreenderemos que Deus não se atinge se-
xo a todos, no qual se pode, assim, concentrar o consenso de não amando o próximo e que, se agredirmos e detestarmos,
todos os justos que seguem os princípios do evangelho, ainda ainda que seja em nome de uma fé, estamos nos distanciando
que formalmente se filiem a outros ritos e hierarquias. Uma d'Ele. Acima das diferentes formas religiosas está, pois, a subs-
verdadeira expansão não se pode verificar a não ser neste senti- tância da verdadeira religião de Deus, que só pode ser única.
do, porque é o único que não gera reações naturais de defesa. Hoje, vivemos ainda em um mundo de cisões. Não se pode
Os obstáculos nascem do que é material e terreno. As cisões re- dar um passo sem tropeçar numa parede divisória. Nenhuma fé
ligiosas nasceram, com frequência, das rivalidades nacionais e verdadeira pode existir com o espírito sectário de domínio, no
raciais. Quando a ideia assume forma concreta de homens, hie- entanto é este que se encontra em todos campos. É o mesmo
rarquias e interesses terrenos, entra-se no campo biológico, com espírito humano de luta e exclusivismo que impera. Deus, o
seus absolutos antagonismos. Quanto mais a religião assumir bem e o justo estão sempre desse lado; Satanás, o mal e a culpa
forma material, tanto mais ressentir-se-á das lutas que dominam estão sempre no lado oposto. É sempre o homem agindo por si
a vida terrena e delas dependerá. Se esta pode ter sido uma dura mesmo, e não fazendo-se instrumento de Deus. Os métodos de
necessidade do passado, pela qual a religião, o poder temporal, Deus são opostos: aqueles que o seguem, praticam antes de
a força e a guerra tiveram que misturar-se, é também verdade pregar; convencem com o amor e com o exemplo antes de
que tudo evolui e que, com o tempo, tudo se espiritualiza. constranger com as argumentações, ameaças de sanções e de
Quanto menos a ideia penetrar no árduo terreno biológico, tanto condenações morais. A guerra santa é uma contradição. Matar é
mais independente ela se torna de todas as limitações que daí sempre um delito, mesmo que se cumpra em nome de Deus. A
derivam e tanto mais possível se lhe torna a expansão e a con- guerra religiosa não se faz com a espada, mas com o exemplo e
sequente unificação, que estão a serviço da espiritualização. o martírio. Jamais puderam as perseguições sufocar a verdade,
Tal é o processo evolutivo das religiões, que, nas suas for- tornando-se, pelo contrário, instrumento de divulgação. Para
mas, exprimem as etapas seguidas pela ascensão biológica dos cada crente morto pela sua fé, formam-se centenas de novos
povos. Essas formas são o efeito da forma mental dominante crentes. Esta também é uma estratégia de guerra, ainda que
nos vários séculos. As culpas e erros que se atribuem a uma hi- oposta à estratégia bélica humana.
erarquia humana não passam de culpas de um século e mais ou No limite extremo do nosso ciclo histórico, os conceitos se
menos de todos os homens. Quando a evolução biológica tiver tornaram mais ásperos. Se ciência e fé não estão de acordo em
civilizado o mundo, a religião ter-se-á libertado da forma terre- algum ponto, isto significa que, aí, pelo menos uma delas deve
na e, então, poderá expandir-se sem as reações de parte a parte, possuir algum conceito errado e, por conseguinte, não pode ter
rivais apenas porque são formas terrenas. Quando a religião se razão. Isto porque uma religião e uma ciência que sejam verda-
fundamentar no céu, não haverá, como não há para os santos, deiras e completas não podem deixar de concordar, devendo
razão de rivalidades na terra e desaparecerão todos os males ambas dizer de maneira diferente o mesmo pensamento de Deus.
que dela derivam. Céu e terra são dois opostos. Toda potência É necessário que essas duas asas do espírito humano se movam
terrena é uma impotência no céu, e toda derrota na terra é uma sincrônica e harmonicamente, sem o que o voo não será possí-
vitória no céu. Assim, quando a religião for apenas espírito, en- vel. Não se voa com uma asa só. Com a religião apenas, cai-se
tão, automaticamente, será universal. A unificação só pode vir na superstição; só com a ciência, resvala-se para o materialismo.
fora da terra, no único Deus universal, que, acima de todas as Hoje, Oriente e Ocidente estão divididos, não se comuni-
divisões humanas, domina-as todas. cam, não se compreendem. Entretanto o primeiro tem necessi-
Em outros tempos, não maduros para tais conceitos, era dade dos conhecimentos científicos do Ocidente, e este precisa
uma necessidade histórica fixar a verdade na forma, restringin- dos ideais espirituais do Oriente. Um simples intercâmbio pre-
do a liberdade de pensamento no campo da fé, para impedir o encheria as duas lacunas. Presentemente, as religiões e as várias
seu fracionamento em heresias. O misoneísmo possui funções formas de fé são, com frequência, causa de separações e de
conservadoras, também necessárias. O cisma era o terror de to- ódio. Quem, com estes sentimentos, professa qualquer religião
da a unidade religiosa, que representava uma laboriosa e preci- ou fé é antirreligioso, e toda religião que não gerar amor, har-
osa construção, custara milhares de mártires para formar-se e monia e união não é verdadeira religião. A verdade que se fun-
exigia uma plêiade de pensadores e uma legião de ministros pa- damenta em anátemas e acusações recíprocas de falsidade está
ra manter-se. Ele se insurgiu contra tal espírito conservador, muito longe do espírito de verdadeira religiosidade. O progres-
que tem contudo a sua função e, de fato, não freia a evolução. so do conhecimento exige colaboração em todos os campos,
Não obstante a sua aparente imobilidade, as religiões caminham porque cada um está ligado ao outro e toda descoberta, qual-
conexas com o progresso humano. De outra forma, teriam pere- quer que seja ela, ilumina a todos. Assim, o astrônomo, o quí-
104 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
mico, o físico, o biologista, o psicólogo, o sociólogo, o filósofo, VI. OS CAMINHOS DA SALVAÇÃO
o teólogo etc., ajudam-se constantemente um ao outro. É neces-
sário que eles se compreendam e se completem fraternalmente. O leitor que seguiu a vasta orquestração ascensional com a
A síntese universal do saber só poderá surgir desta unificação, qual procuramos dar apenas um eco daquela que realmente vive
em que o intérprete da divina revelação dos textos sagrados e soa no infinito, ver-se-á agora, gradativamente, conduzido ao
concorde com o intérprete do mesmo pensamento divino escrito mundo místico. Uma vez neste, teremos nos avizinhado do pon-
na realidade fenomênica. to culminante deste trabalho, para depois, novamente, descendo
Todos esses dissídios constituem um contínuo óbice às pes- de grau em grau, atingirmos o seu termino. Ao vértice, o leitor
quisas e manifestações do pensamento. Cada seção, cada fé, será guiado por uma real experiência do autor. Essa, como aqui
possui uma terminologia própria com que pretende enclausurar está exposta, representa dele uma nova maturação, cujo trajeto
a verdade nos limites do seu monopólio. Apresenta formas que preparatório está nesta obra delineado nos quatro capítulos que
constituem simplesmente as vestes da própria verdade, acredi- se seguem, do VI ao IX, em que se estabelece a base para o sal-
tando com isto apresentar a própria verdade. Quem tem espírito to até o capítulo XI: ―Ressurreição‖, que conclui a fase. O capí-
de separatismo se escandaliza com quem, possuindo espírito de tulo XI pode ser considerada o ponto culminante deste volume.
unidade, diz a mesma verdade indiferentemente, de qualquer Estes quatro capítulos foram sentidos e registrados na Qua-
maneira. Este último, na realidade, acredita dar um bom exem- resma do ano de 1947, em um lance instintivo que representava
plo de unificação quando, no campo religioso, animado de fé, uma preparação à eclosão da Páscoa do mesmo ano, na ―Res-
fala e escreve sobre as mais diversificadas questões como se surreição‖, que se segue. Nos aproximaremos deste ponto ao
fossem uma coisa só; quando demonstra que se sente igualmen- entrar em mais detalhes à medida que avançarmos, atingindo a
te bem entre crentes de qualquer fé, sejam católicos, protestan- ―Paixão‖, que se apresenta como antecedente para uma eleva-
tes, hebreus muçulmanos, budistas etc., contanto que sejam sin- ção, assinalando o harmônico retorno do ritmo de uma vida. Es-
ceros; quando mostra que sabe venerar a Deus tão bem em uma tes quatro capítulos foram escritos para em opúsculo individua-
igreja como em uma sinagoga, ou em uma mesquita, ou em um lizado, cujo capítulo seria ―A Comunhão Espiritual‖, que deve-
templo hindu, ou mesmo a céu aberto. Deus, em toda parte, não ria narrar completamente uma experiência mística, logicamente
é o mesmo? Quem possui espírito de unidade, que é muito mais apresentada e enquadrada. Porém, não tendo sido possível en-
do que tolerância, desfruta dessa confraternização, que ofende o contrar um editor religioso que quisesse publicar o opúsculo
espírito de exclusivismo e intransigência de tantos. Às vezes sem antes obter o ―imprimatur‖ e visto, também, que este grupo
acontece que uma verdade, ainda que aceita por uma crença, é de capítulos representava a fase espiritual vivida pelo autor a
por esta condenada quando exposta com a terminologia e di- meio caminho da gênese do presente volume, ele foi incluído
vulgada com a configuração de uma outra. Surgem assim estra- aqui, neste ponto e neste momento, em seu lugar mais natural e
nhas contradições: um livro ou uma ideia são exaltados sobre- lógico, como verdadeira exposição de estudos místicos vividos.
tudo porque condenados pela parte oposta, que é sempre de Sa- Todavia resta o fato que esses quatro capítulos, tendo sido
tanás, e o mesmo livro ou ideia são expulsos como satânicos escritos para um opúsculo separado, tiveram que ser refeitos
mal sejam aceitos e subscritos por essa parte. Pobre verdade! nessa ocasião para adaptarem-se aos conceitos gerais, que de-
Efetivamente, quando se expõe um conceito, é necessário man- viam ser aqui escritos resumidamente, a fim de permitir um
ter-se no princípio abstrato, onde todos estão de acordo, porque melhor entendimento ao leitor novo, mas que se tornam repeti-
ele não toca em pessoas e interesses. Mas, quando se entra em ção supérflua para quem os acompanhou nos outros volumes.
particulares, até alcançar os representantes terrenos dessa ideia, Não obstante, dado que se trate de poucas páginas, aqui nada
então a controvérsia é inevitável, e a condenação da parte opos- alteramos da sua original espontaneidade, seja porque qualquer
ta é certa. Isso demonstra que aprovação e condenação são com alteração seria difícil hoje, em face do estado de alma superado
frequência frutos de interesses e preconceitos. Muitos concor- e longínquo que os criou, seja porque somente de um texto as-
dam hoje em seguir o Cristo da história, porque pode parecer sim, deixado íntegro, poder-se-á construir em seguida, para as
estar longe e afigurar-se teórico, mas quantos o seguiriam se almas devotas, um extrato autônomo completo em si, num
Ele voltasse à Terra e ferisse os interesses terrenos? opúsculo. O leitor que já conhece os motivos gerais que nesses
Aqui, esboçamos a unificação sobretudo no aspecto religioso, quatro capítulos aparecem como ponto de experiência para uso
porque a religião é a base da civilização. Mas, neste aspecto, es- de um leitor novo, a quem era destinado o opúsculo, poderá
tão implícitos todos os outros. Os sinais dos tempos nos revelam facilmente dispensar a sua leitura. Mas, nem mesmo aqui, de
a aproximação de uma nova era para o mundo. Esta será a era da resto, será completamente inútil projetar aqueles conceitos
unidade. Isto quer dizer era do espírito, do amor, da consciência. complexos sob um ponto de vista diferente, isto é, de uma
E, só quando tudo isto existir, poderá haver também liberdade. forma prática para as almas simples, mais como aplicação vi-
Esta é algo que o homem procura, mas que ele ainda não apren- vida do que como teoria ou demonstração.
deu a conseguir. A nova civilização nascerá da substituição pro- Pode saltar esses quatro capítulos o leitor que não aprecia a
gressiva da animosidade recíproca pela ajuda recíproca. psicologia do tipo místico-religioso, para satisfazer-se com os
É lei de vida que a crisálida se transmude em borboleta, que de caráter filosófico, social, cientifico ou psicológico. Todavia
a criança se torne adulto e que a flor desabroche e origine o fru- deverá admitir que, em nome da imparcialidade e universali-
to. Tudo deve fatalmente maturar. É verdade que sempre esti- dade que aqui foram sempre profundas, não se pode excluir a
vemos e todos já nos encontramos unidos em um organismo priori nenhuma forma de pensamento e, por isso, nem mesmo
universal, ainda que muitos não o saibam. Mas hoje estamos a místico-religiosa, dado que alguns estados de alma não se
unidos mais por vínculos de ódio e de luta do que de amor e podem exprimir de outra maneira. Os aspectos da verdade
compreensão. Que vínculos duros e tristes são estes. O homem apresentados neste volume são variados, e cada um traz consi-
do futuro será consciente desta unidade que hoje não compre- go a sua forma mental e a terminologia que lhe corresponde.
ende. Presentemente, estamos unidos mais pela dor do que pela Quanto menos formos universais, tanto mais nos encerraremos
alegria, unidos sem querê-lo, unidos sem compreendê-lo, uni- em um ponto de vista particular e tanto menos poderemos ob-
dos pela força. União suportada, e não sentida e conhecida; vi- ter a visão conjunta do verdadeiro. Para compreender este, é
vida sem a coparticipação consciente nesta divina unidade de preciso saber pensar nas mais díspares formas mentais e ex-
tudo quanto existe no universo, que é a mais evidente expressão primir-se segundo as mais diversas psicologias e terminologi-
de Deus e a maior maravilha da vida. as. Quem se fecha no seu particular aspecto do verdadeiro, es-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 105
candalizando-se quando se lhe mostram outros aspectos da ve senão em função de uma dada vantagem. E a vantagem neste
questão, não pode compreender estes escritos, que são anima- caso, para cada um, é um estado de felicidade dependente ape-
dos pelo principio da mais imparcial universalidade. nas de si mesmo, e não das condições do ambiente e da vontade
Sob a orientação que aqui se segue, foi escrito: ―A religião alheia. Para o mundo, a vantagem está em receber a mais valio-
universal de Cristo‖. Acompanha-o quem vive na disciplina do sa contribuição hoje possível para conseguir a sua salvação em
espírito, tremenda porém livre, porque é consciente e convicta. uma hora histórica de tremenda gravidade.
Não há nisso nenhuma anarquia, mas sim uma ordem maior, O nosso mundo de hoje é materialista. Projeta-se pelas vias
porque, além de exterior, é também, e sobretudo, interior. sensórias, que chama de objetivas, completamente para o exte-
Só a universal religião do espírito, nas pegadas de Cristo, rior e só aí procura a solução dos seus problemas. Nós segui-
vivendo o evangelho, reunindo todos os justos da Terra, de mos uma via oposta. Ao invés de agir sobre os efeitos, pene-
qualquer religião, pode dar ao mundo uma unidade religiosa, tramos nas causas, na substância espiritual das coisas e dos
que não se pode obter por imperialismos e imposições morais, problemas, havendo antes bem compreendido como tudo funci-
mas apenas por compreensão e confraternização. ona. Trata-se de compreender, para depois agir de maneira in-
Isto dito, quem escreve pode afirmar que tudo quanto segue, teiramente diversa da habitual. As fontes do conhecimento e do
antes de ser exposto, foi por ele experimentalmente vivido, ob- poder, da riqueza e da saúde não estão, como a maioria crê, no
jetivamente estudado, cientificamente compreendido. Não se mundo material, exterior a nós, mas no mundo espiritual. E tu-
trata, pois, de vagas aspirações, mas de realidades controladas do o que se realiza naquele não é mais do que uma consequên-
com o método da observação e da experimentação, ainda que cia daquilo que primeiro se realizou neste. Tudo deriva de um
devamos nos referir a realidades imateriais que fogem à sensi- centro do universo, que tudo rege e se chama Deus.
bilidade comum do homem atual. Se este as nega porque não as Colocar-se e manter-se por vias espirituais em contato com
percebe e não as compreende, isto não obsta a que elas existam. Deus, significa poder atingir tesouros guardados e alegrias des-
Quem aqui escreve deu-se conta das atuais e desastrosas conhecidas. Nós somos livres e podemos, se quisermos, alcançar
condições espirituais da maioria. Mas ele sabe que nesta babel a felicidade. Mas tudo provém do interior, e nada poderá andar
infernal que é o mundo de hoje, existem também almas eleitas, bem no exterior, se antes não estiver bem marcado em nosso in-
ainda que em minoria, e que a estas está confiada a salvação e o terior. Só nos mudando para melhor é que poderemos transfor-
futuro de todos. A nossa terra é reino ainda involuído, no qual mar para melhor toda a nossa vida. Não se pode pretender que
ramificações provindas de baixo, da grande árvore do mal, ani- negócios, saúde e os acontecimentos se tornem nossos amigos
mada por Satanás, se entrelaçam, frequentemente vitoriosas, ao invés de inimigos, se antes não tivermos estabelecido a or-
com as ramificações descidas do alto, da grande árvore do bem, dem dentro de nós, em harmonia com Deus e a Sua lei.
animada por Deus. Em nosso plano material, onde reina a forma, Quando as coisas vão mal, ninguém quer admitir ter sido ele
Deus se manifesta através de Suas criaturas. É certo que toda próprio a causa disso. Não compreende que atribuir isto ao pró-
criatura é um canal para as manifestações divinas, mas os bons ximo de nada serve, que este desafogo a que tantos recorrem na
constituem o mais elevado, melhor e mais permeável meio pelo dor não só não a elimina, como, pelo contrário, agrava-a pelo no-
qual Deus pode exprimir-se com maior evidência. Assim eles vo mal que se lhe acresce, pois quem faz o mal aos outros o faz a
representam o ponto de apoio do bem na Terra; constituem o ca- si mesmo e, para fazer o bem a si mesmo, necessário se torna
nal através do qual a ação benéfica de Deus pode melhor operar praticá-lo em primeiro lugar com outros. A vida provém de Deus
entre nós; são a única via aberta para que o mundo possa atingir e é irradiada desse centro em forma universal. Para que ela possa
a divina fonte da vida, que está no centro: Deus, e nutrir-se nela, ser fecunda de alegria, tudo deve circular livremente com espírito
estabelecendo uma comunicação com o princípio afirmativo e fraterno. O egoísmo atualmente dominante, com o seu separatis-
construtivo do bem. Do outro lado, os malvados representam o mo, é antivital. Ele obstrui os canais da linfa vital, opondo desta
ponto de apoio do mal na Terra; constituem o canal através do maneira barreiras que produzem congestões e estagnações; aqui,
qual a ação das forças do mal pode se manifestar entre nós; são a superabundância inútil; ali, dolorosa miséria, e, por toda a parte,
via comunicante com o princípio negativo e destrutivo que per- tristes diferenças e penosos desequilíbrios de todo o gênero:
sonificamos em Satanás. Se aos malvados, pois, está confiado o econômicos, demográficos, orgânicos, espirituais.
encargo de tudo massacrar, espiritual e materialmente, aos bons Aqui, buscamos orientar-nos de maneira diversa; procuramos
está atribuída a incumbência de tudo salvar e construir. O terre- não só compreender que a vida funciona de modo inteiramente
no de seu encontro e luta é o nosso mundo. diferente daquilo que se crê e que se segue, mas também enten-
Estas páginas se dirigem imparcialmente a todos os bons, der que a maior parte das nossas desventuras depende de não sa-
que representam na Terra a obra divina do bem. Os outros não bermos comportar-nos. Procuramos a felicidade onde ela verda-
podem compreender e, obedecendo a outros impulsos e encar- deiramente está e a encontraremos se soubermos pensar e agir.
gos, palmilham a sua estrada. Contudo quem compreendeu a vi- Poderão, desta maneira, começar a formar-se, no oceano das do-
da sabe, com absoluta certeza, que só as vias do bem conduzem res humanas, ilhas de felicidade e, no espinheiro universal, tufos
à felicidade e que as forças do mal, prometendo-a, em verdade floridos. Na tempestade do mundo, algumas almas poderão, desta
traem depois a promessa e, cedo ou tarde, acabam infalivelmen- maneira, formar em derredor de si uma atmosfera de bondade e
te na dor. O escopo desta obra é de ajudar, ensinando os espíri- de paz e nela repousar. Nesses castelos, protegidos por forças es-
tos evoluídos a alçar-se sempre mais para o alto, de modo que a pirituais, ainda mesmo que, a princípio, isolados no inferno ter-
felicidade, que está no bem e com a qual Deus permanentemente restre, poder-se-á ter, aqui e ali, uma antecipação do paraíso.
nos quer inundar, contanto que saibamos e queiramos, possa, Deste estado de ordem e harmonia interior, não pode deixar de
por caminhos inteiramente independentes das coisas terrenas, derivar, espontaneamente, um símile estado de ordem e, por con-
alcançá-los e entrar neles, para aí permanecer, instaurando a sua seguinte, de bem-estar nas próprias coisas terrenas também.
paz interior. Ajudar as almas dispostas a alçar-se sempre mais Cada um desses indivíduos, reequilibrados dentro de si, não
para o alto tem, pois, também por escopo multiplicar os canais poderá deixar de irradiar em torno de si mesmo equilíbrio e paz,
de comunicação com o divino, ampliar as estradas, aumentar os carregando consigo, para onde quer que vá, a sua atmosfera de
meios para que, mais rápida, ativa e abundante, por eles flua e harmonia, e poderá assim saturar com ela tudo que ele tocar, sa-
possa descer a linfa vital do bem, único meio de salvação. nando o mal e a dor ao seu redor, depois de havê-lo sanado den-
Como se vê, aqui se fala em termos de psicologia utilitária, tro de si mesmo. Formar-se-ão, desta maneira, na desordem geral
pois sabemos bem que o homem não compreende e não se mo- do mal, núcleos de atração de bem, do Alto para a Terra, e de ir-
106 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
radiação deste para o bem de todos. Isto permitirá a formação de imediato, se a direção fosse confiada ao homem, seja por deso-
correntes benéficas e salvadoras, uma gradual reordenação do rientação, por impotência ou por incapacidade deste. O homem
caos, uma progressiva transformação da infernal dissonância ter- é relativo na evolução, imperfeito e contingente. A Lei é eter-
rena na música divina do paraíso. A vida poderá então, cada vez na, perfeita e resoluta. O homem é capricho inconsciente; a Lei
mais, expandir-se pelas largas estradas do amor. A vida tem ne- é disciplina sábia. O homem é desordem; a Lei é ordem e har-
cessidade, para prosperar, não das barreiras do egoísmo, mas dos monia. A primeira coisa, pois, que devemos compreender é
canais abertos do altruísmo. E da lei de Deus que, nestes canais, que, acima da vontade do homem, está esta norma que tudo re-
ela se atire triunfante, apenas eles se formem, para levar nutrição gula, feita de bem, de liberdade e de amor, representando a
vital onde existe mal, amor onde domine o ódio, paz onde pre- perfeição. Nada se pode acrescentar a ela; nada há nela para se
domine a guerra, alegria onde reine a dor. É a bondade de Deus modificar. Então, quando o mal triunfa e a dor nos fere, ao in-
que faz pressão para verter-se nestes canais e por eles circular. vés de culpar a Deus e a sua lei, devemos compreender que is-
São as forças do bem que por eles querem descer até nós para, to não é obra D‘ele, mas da criatura, que, sendo livre e ignara,
entre nós, contrapor-se às do mal e vencê-las, espargindo a felici- enganou-se no caminho; compreender que é justamente por
dade. As graças divinas procuram as portas abertas e requerem meio da dor que Deus a faz compreender que errou e a induz a
almas dispostas para poder chegar até nós e nos salvar. procurar o caminho certo, onde ela encontrará alegria. Assim,
É a estas almas que aqui nos dirigimos, a fim de que atin- pois, ao invés de nos rebelarmos ou maldizer, o certo é procu-
jam o centro divino e sirvam de canal à Terra e, desta manei- rarmos compreender qual foi o nosso erro, para corrigi-lo. Ca-
ra, não só conquistem a felicidade para si mesmas, mas tam- so se pudesse chegar ao absurdo de suprimir a dor, como dese-
bém a irradiem em derredor de si, cumprindo a sua missão, jaria o homem, a vida se deteria no seu caminho ascensional,
que é de receber do Alto e irradiar embaixo. Elas formarão que a conduz à perfeição e à felicidade, porque, então, viria a
uma rede de correntes benéficas que envolverão o mundo e – faltar a sua maior mestra e o seu mais poderoso corretivo. A
vencendo as influências maléficas, que, funcionando em sen- grande coisa a compreender é que nós não vivemos num caos,
tido contrário, querem transtorná-lo – salvá-lo-ão dos cata- mas sob a guia de um pai sábio e amoroso que, com a sua lei,
clismos que hoje o ameaçam. através de todos os meios compatíveis com a nossa necessária
liberdade, quer conduzir-nos à nossa felicidade. É necessário
VII. FAZER A VONTADE DEUS compreender que Deus não nos faz sofrer por egoísmo ou vin-
gança, mas sim para o nosso bem, porque nos ama; que a Lei
Tudo isto é possível, mas é necessário saber alcançar as fon- não faz mal e que, se inflige dor a quem a transgride, é para
tes da vida, que estão em Deus. Para conseguir isto, começare- ensinar que ela é a única e verdadeira via da felicidade. Certa-
mos procurando compreender algumas coisas elementares. Ei- mente o homem é tremendamente ignorante e se atira de um
las. O universo é um movimento contínuo que não se desenvol- lado e de outro, iludido por miragens cuja falsidade ainda não
ve ao acaso, mas segundo normas precisas, estabelecidas por conhece. Somente sofrendo pode compreender onde foi que er-
uma lei que representa o pensamento e a vontade de Deus. rou. É justamente a dor que nos mostra quão amorosamente
Quanto mais a ciência avança, tanto mais deve constatar Deus vela por nós, como ele nos guia e age sempre, ainda
em todos os fenômenos um princípio orgânico que rege o uni- quando nos fere, para o nosso bem. Em vista disto, compreen-
verso e que revela a presença de uma mente diretriz. Segue-se de-se agora que não só a felicidade é possível, mas que nós
daí que o nosso livre arbítrio não é absoluto, ilimitado. Se po- somos realmente feitos para ela e que o nosso instinto, que no-
demos agir como loucos, praticando o mal e, consequentemen- la faz procurar em toda parte, não nos engana. Compreende-se
te, provocando para nós mesmos a dor, enquanto a lei de Deus também que há uma via para alcançá-la, mas que, não bastan-
quer nosso bem, para a nossa felicidade, esta possibilidade de do isto, Deus emprega todos os meios compatíveis com a nos-
violação, em um sistema universal de ordem, está providenci- sa liberdade, para nos fazer enxergar esta via e nos forçar a
almente confinada dentro dos limites dados pelas necessidades atingir essa felicidade. A lei de Deus indica esta via. Então, a
de nossa experimentação. O homem vive para aprender. Ele melhor posição possível em nossa vida, aquela que exprime o
deve construir-se espiritualmente, conquistar a plena consciên- máximo grau de perfeição atingível para cada um, relativamen-
cia, e não apenas constituir um instrumento cego, um autômato te ao que ele é e deve ser, é dada pela vontade de Deus e pela
de Deus. É-lhe feita, portanto, a concessão de agir em plena li- fusão da nossa vontade na d'Ele, numa adesão tão completa,
berdade. Mas, para que esta liberdade não possa redundar em que ambas se fundam numa só. E que mais se pode desejar se-
sua destruição, ela é regulada pelas reações da própria Lei, que não aderir a uma vontade que só procura o nosso bem? Se o
permanece inviolada e, com a dor, fere o homem com o único homem compreendesse Deus, veria claramente que Ele deseja
escopo de corrigi-lo e iluminá-lo para o seu bem, tão logo ele o seu bem muito mais do que ele mesmo o desejaria.
se aparte da referida lei pelo erro ou pela culpa. Se ele é livre, Muitos se quedam, todavia, perplexos, porque não sabem
é contudo responsável também e deve fatalmente sofrer as qual possa ser para eles a vontade de Deus. Antes de tudo, nós,
consequências de suas ações. mais ou menos dependentes de nosso grau de evolução, possu-
No mundo atual, o homem, na sua ignorância, engana-se, ímos todos o senso do bem e do mal. A vontade de Deus está
tomando como poder absoluto esta limitada liberdade de agir sempre sobre as sendas do bem. Uma regra mais precisa é esta:
que Deus lhe concedeu apenas para os referidos escopos. Ele cumpramos o nosso dever, como ele nos é apresentado pelas
não compreende que se trata de uma liberdade enquadrada nas condições da nossa vida, e teremos feito a vontade de Deus.
férreas reações da lei de Deus, que lhe inflige dor quando ele er- Mas o que é que se entende por dever? Para estar de acordo
ra. Assim o homem se engana ao crer-se árbitro de tudo, quando com Deus e, assim, aproximar-se do infinito, não são necessá-
na realidade não é senão árbitro do próprio destino. O homem rios atos heroicos. Trata-se de estabelecer uma harmonia, e isto
atual, efetivamente, não compreende a vida e, por isso, a empre- se pode atingir muito bem pelos meios mais simples e humil-
ga quase que por inteiro para cometer erros e provocar dores. É des. Para cantar a música divina, não é necessário aquela altis-
natural então que, na Terra, a dor seja dominante, pois é sobre- sonância que fere os sentidos e, na Terra, faz tanto efeito, mas
tudo à construção intensiva dela que o homem se dedica hoje. basta apenas executar bem o próprio trabalho, com amor e com
Quem guia tudo não é o homem, mas Deus. E como pode- consciência. Tudo consiste em saber enquadrar a própria ativi-
ria o homem guiar um mundo onde ele procede tão mal, onde dade no funcionamento orgânico da vida e do universo. Nós
pode tão pouco e do qual nada sabe? O desastre dar-se-ia de nos valorizaremos ao máximo apenas se soubermos desincum-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 107
bir-nos da função que nos toca. Desta maneira, a corrente vital de diferente da de nosso Pai. E, assim como o organismo pro-
nos impelirá; de outro modo, porém, ela estará contra nós e vê, através de uma sábia distribuição, cada célula e órgão para
procurará destruir em nós o rebelde e o inimigo. que execute o seu trabalho e auxilie os outros elementos com
Não é, pois, a importância e a nobreza de trabalho que de- os quais está em conexão, para a vantagem de todos, assim
cide, mas é o modo pelo qual ele é por nós executado. Este igualmente Deus proverá cada indivíduo quando este tenha
trabalho pode até assumir a forma apenas de dor, isto é, algo cumprido o seu dever, isto é, tenha desempenhado as suas fun-
que pareça não apenas improdutivo, mas até mesmo prejudici- ções com relação aos seus semelhantes.
al. Na sábia organização da vida, tudo e todos são úteis em seu Esta é a economia da criação. Bem-aventurado é quem sabe
lugar, cada um ocupa a posição mais justa, segundo a capaci- amoldar-se a ela. Nessa economia, o trabalho é remunerado com
dade e o mérito que lhe é peculiar, a mais adaptada para sua justiça, e o parcimonioso pode depositar o fruto desse trabalho
vantagem, a mais útil para o seu bem, ainda que seja a mais em caixas seguras, que lhe proporcionarão uma renda garantida
humilde, desprezível e dolorosa. Observando-se, verifica-se para a hora da necessidade, em proporção ao mérito que adqui-
que a concepção do mundo é exatamente inversa de tudo isto, rir. Só assim se pode encontrar uma forma de investimento segu-
e que tantos males derivam justamente do fato de que ninguém ro, que assim é porque depende apenas de Deus, que é justo, e
quer executar bem o próprio mister, qualquer seja ele. Todos não dos homens, nos quais não se pode depositar confiança al-
se sentem deslocados e querem mudá-lo, tornando o mundo guma. Consegue-se dessa maneira um pecúlio tranquilo e pacífi-
cheio de descontentamento e de luta. Cada qual pretende valer co, porque é harmônico, visto que está contido na sua verdadeira
muito mais do que realmente vale e acredita que o mais certo função, que é a de ser um meio aos fins da vida. O homem, uni-
esteja em mudar de posição, enquanto uma realidade se impõe versalmente, coloca a riqueza fora do lugar, fazendo dela um
e mostra saber mais, acabando por ficar melhor aquele que sa- fim, e não um meio. E, assim, torna-se ambicioso e ansioso pelo
be permanecer fiel no lugar que lhe cabe. Hoje, considera-se dia de amanhã, e, em meio à abundância, acaba por debater-se
falido quem não triunfa de qualquer modo, não importam os em tormentos. Deus não nos quer ávidos e ansiosos, mas confi-
meios que utilize; admite-se que a dor seja um insucesso e uma antes n'Ele. ―Para cada dia baste a sua pena‖. Por que haveremos
perda; enquanto há possibilidade de uma vitória e de um ga- nós de pretender dominar o amanhã, se dele nada sabemos? Não
nho, não se trabalha senão com o espírito de avidez, reputan- é pela vontade que poderemos nos impor a ele, mas pelo obedi-
do-se bravura saber fazer o menos possível dentro do próprio ência à Lei, merecendo. Poderemos assim formar em nós um oá-
dever, em aparente vantagem própria e prejuízo dos outros. A sis de paz, não importa qual seja o inferno que nos circunde na
vida, ao contrário, é para todos uma missão, com objetivos, re- Terra. Não é o mundo que no-lo poderá dar, com as suas fasci-
alizações e recompensas ultraterrenas. Antes que operários nantes mentiras, mas somente a adesão à vontade de Deus. Obe-
humanos, somos operários de Deus, igualmente grandes, qual- deçamos à Lei, e o auxílio está garantido, porque a vida foi que-
quer seja a posição social. Desincumbir-se da própria função rida por Deus, e, com ela, ganhamos o direito aos meios para vi-
no imenso concerto universal, qualquer seja ela, como nos é vê-la. Todos temos direito à vida perfeita, mas somente quando
oferecida por Deus, e executá-la bem, eis a perfeição, porquan- tivermos antes cumprido os nossos deveres para com Deus. Se
to isto é fundir-se na perfeita lei de Deus. não fizermos isto, este direito deixa de existir ou existirá apenas
Este é o segredo da felicidade: enquadrar-se na ordem divi- na medida em que tivermos atentado para os deveres. O mundo
na. Quando tivermos desempenhado em nosso posto todo o não quer compreender tudo isto, está destorcido e fora dos tri-
nosso dever, teremos feito o suficiente para que tudo caminhe lhos. É lógico que sofra e caminhe para a ruína.
bem por si mesmo. Podemos então repousar tranquilos. Quan- Para muitos, no entanto, tudo isto ainda não basta para co-
do tivermos obedecido em tudo a Deus, conformando-nos à nhecer a vontade de Deus no seu caso particular. Deus está pre-
Sua Lei, propriamente deixamos de ser responsáveis, porque, sente em toda a parte, no entanto não o vemos jamais manifes-
na realidade, não agimos por nós mesmos e também não somos tar-se por ação direta, mas apenas por meio do pensamento e
passíveis de reações dolorosas como quando nos substituímos ação das suas criaturas, por meio dos eventos, e agir, mais do
a Deus e Sua lei, agindo independentemente. É natural que, que no exterior, no profundo ou pela profundeza das coisas. É a
quando a escolha seja nossa, também nossas sejam as conse- isto que é necessário atentar. Quando Deus faz uma flor, cria um
quências e males. Mas é natural também que, quando não se- órgão ou matura um fenômeno, não age com as próprias mãos,
jamos senão executores da vontade de Deus, tenhamos direito como nós o faríamos, pelo exterior, mas opera silenciosamente
à Sua proteção e providência. A nosso vida encontra então, de do interior, justamente porque, se Satanás é exterior e periférico
novo, um equilíbrio, uma sensação de segurança que o mundo e age em superfície, Deus é interior e central e opera em profun-
de hoje ignora. Desta maneira, fluiremos aquele profundo sen- didade. A vontade de Deus reside, pois, no interior da vida e daí
timento de paz que é o primeiro passo em direção à felicidade aflora nos fatos. É uma tácita e lenta transformação que só por
interior, que é a substância do paraíso. Assim, a nossa vida se fim aflora à realidade sensória, quando todo o processo da gêne-
torna rica e a nossa obra, coordenando-se em um plano univer- se estiver completo. Por isto a maioria não a percebe e, assim,
sal, torna-se infinita. Se, ao invés, nos isolarmos em nosso ego- acredita que Deus não esteja presente na Sua obra contínua. É,
ísmo, permaneceremos destacados e sós e, distanciados de pois, necessário saber enxergar profundamente, não com olhos
Deus, nos sentiremos perdidos. É necessário abdicar do separa- materiais, mas espirituais. É necessário permanecer com ouvidos
tismo e, através da caridade para com o próximo, tornar-se atentos para ouvir como falam os fatos em volta de nós, sobre-
uma só coisa com o todo. É abraçando os nossos irmãos que tudo como significado espiritual, que não é quase nunca aquele
conquistamos a unidade. Em um universo de princípio unitá- significado próximo e utilitário que nós lhes damos. Se souber-
rio, é a via da unificação que conduz a Deus. É indispensável mos ouvir, perceberemos que realmente Deus nos fala. Ele se
olhar com amor todas as criaturas irmãs, porque cada uma de- manifestará indiretamente, através de outras bocas e outras
las é um canal através do qual Deus se exprime e nos fala. Para ações, mas se manifestará. Efetivamente, através dos infinitos
chegar a abraçar Deus, o caminho mais fácil é começar por seres viventes e pensantes, não lhe falecem as vias para expri-
abraçá-Lo nas Suas infinitas manifestações da Criação. Em to- mir-se em qualquer linguagem e caso.
da parte e sempre, devemos ser executores da vontade de Nós nos fazemos iludir pela voz do mundo. Esta é muito di-
Deus, que é bondade e amor. Só nisto é que está a vida. Assim ferente. É verdade que fere muito mais os ouvidos, mas não
como um órgão ou célula não pode ter uma vontade diversa da atinge a alma. O mundo tem sempre pressa, porque está encer-
de todo o organismo, nós também não podemos ter uma vonta- rado no tempo. Deus fala calmo, porque é senhor do tempo. Por
108 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
mais que o mundo corra, nunca chega exatamente. Deus, com a quando a dor nos fere, em lugar de procurar compreender o seu
paz das coisas eternas, jamais se engana na hora. O mal clama significado profundo e aceitá-la, reconhecendo que o que Deus
estertorante nas praças, faz-se ouvir bem materialmente e, por nos envia não pode deixar de ser justo; em lugar de admitir que,
isto, parece prevalecer. O bem, que vem de Deus, enxerga-se se ela nos fere, é sinal de que a merecemos; em lugar de procu-
mais dificilmente, porque está oculto no interior, onde silencia rar, sobretudo, superar essa prova salutar, para aprender, evi-
e espera, mas amadurece na raiz das coisas. As vias de afirma- tando recair em novo erro, nós tentamos iludir essa ordem em
ção são opostas, mas as interiores produzem efeitos bem maio- nosso favor, com a pretensão de dirigir e violentar a vontade
res. Os homens escrevem na superfície, mas Deus esculpe nas divina. E é por isso que, ao contrário de repetir as grandes pala-
profundezas, de onde tudo nasce. Assim, os bons não aparecem, vras de Cristo: ―Fiat voluntas tua‖ 6, que nos mostram a consci-
porque não fazem ruído. O bem move-se mais lentamente, mas ência da divina ordem do universo, nós nos tornamos advoga-
produz transformações mais substanciais, por conseguinte mais dos de nós mesmos, com o único objetivo de evitar danos ou
duradouras. Ele se propaga pacificamente, quase invisível; ra- ganhar graças em nossa vantagem, e isto quase sempre no cam-
mifica-se, infiltra-se no interior, sem aparecer, porque obedece po material, que mais de perto nos toca e interessa. Em suma,
aos tenazes e profundos impulsos da vida, que o quer. Aflição, na oração, nós nos conduzimos diante de Deus com a psicolo-
alarido e também instabilidade estão no exterior, no reino peri- gia de luta e utilitarismo, que é própria da Terra e das coisas
férico de Satanás, não nas fontes, onde se encontra Deus. Ali há terrenas. Ora, se essa mentalidade pode estar adaptada ao nosso
paz e silêncio; uma atividade imensa e silenciosa, que só surge, mundo inferior, ela está inteiramente deslocada quando nos
por fim, quando tudo está feito. Deus opera sem rumor. A Sua elevamos para o Alto. A atitude egocêntrica, para não dizer
ação é tranquila, igual, segura, tenaz, e tudo vence em paz, co- egoísta, e o exclusivismo constituem um grave erro quando se
mo uma lenta inundação. Diferentemente da afanosa evolução fala com Deus. É, pois, ilusório que semelhante gênero de ora-
do mundo, Deus ―é‖ e silencia, no entanto está sempre presente ção possa produzir frutos reais. Certamente, Deus permite que
com a Sua ação íntima, constante, benéfica. Só com essa Sua falemos. A diferença está em que nós não obtemos aquilo que
silenciosa presença, Deus alimenta e renova o universo, não da pedimos. E é lógico. Deus não nos dá senão o que merecemos,
periferia ou superfície, mas do centro; não da forma, mas a esta senão aquilo que é justo, segundo a Sua lei, nos seja dado. Que
chegando pela substância, onde Ele é fonte da vida. Por isto é grandes tolices nós cometemos quotidianamente, agindo assim
que Deus se nos revela em uma sensação de grande paz. É nesta em um ato tão vital quanto é o de nos colocarmos em comuni-
direção, portanto, isto é, na profundidade, no espírito, que de- cação com Deus. Que resultados poderemos obter quando
vemos procurar ouvir as vozes que nos dizem qual é para nós, transportamos para planos de vida mais elevados a psicologia
em nosso caso e a cada momento, a vontade de Deus. do nosso plano, quando levamos para eles aquela mentalidade
de luta e usurpação, que na Terra parece tão verdadeira e útil,
VIII. COMO ORAR porque corresponde às necessidades seletivas animais, mas que,
um pouco acima, não tem o menor sentido?
Não basta ter estabelecido as nossas relações com Deus. É A atitude fundamental da prece deve ser de obediência, de
necessário entrar em comunicação com Ele, é necessário a ora- adesão à vontade de Deus, de harmonização entre nós e a Sua
ção. Eis aqui uma outra coisa elementar, comumente não com- Lei, que é perfeita. No entanto, mesmo na prece, recaímos na
preendida, e que também é necessário compreender, para alcan- primeira culpa do homem, que foi também a de Lúcifer: erigir o
çar não só o conhecimento da vontade de Deus mas também a próprio eu em lei da vida e antepor essa lei, em que o eu é cen-
adesão a ela e, com isto, a união mística da alma com Ele. Em tro, àquela em que o centro é Deus. Desta maneira ora-se às
geral, não se sabe orar, o que explica o escasso resultado que avessas, com um impulso de afastamento, ao invés de aproxi-
obtemos com as nossas orações. mação a Deus. Nós nos erigimos em juízes de nós mesmos, de
A lei de Deus, que tudo regula, inclusive a nossa vida, não é nossos semelhantes, do mundo, da própria ação de Deus e pre-
e não pode ser ilógico capricho, como frequentemente cremos e tendemos indicar-lhe o caminho a seguir para o nosso bem. Pre-
como, tal qual somos, assim desejaríamos, para que a pudésse- tendemos salvar tudo e não sabemos nada. Justamente nos diri-
mos submeter à nossa vontade. Nesta lei, que guia e rege o uni- gimos a Deus, mostramo-Lhe todo o nosso orgulho e a nossa
verso, tudo é ordem, lógica, método, disciplina. O contrário es- presunção. Exatamente na oração, provamos desconhecer a Sua
tá apenas em nós, que somos um grosseiro esboço de sua reali- bondade e o Seu amor por nós. Tomamo-Lo, universalmente,
zação e, por conseguinte, nos encontramos muito longe da sua por um chefe caprichoso, que podemos propiciar com ofertas;
perfeição. A desordem não está na Lei, nem em Deus, mas so- por um Deus de vingança, capaz de ser aplacado com sacrifí-
mente em nós, e a dor, que lhe é consequente, não é uma absur- cios. Imaginamo-Lo um senhor despótico e O respeitamos ape-
da condenação de um Deus malvado que nos criou para nos nas porque é o mais forte. O insensato chega mesmo a manifes-
atormentar, mas é uma prova da Sua bondade, sabedoria e cui- tar, na blasfêmia com que O desafia, uma prova da própria for-
dado que nos dedica, visto que, por intermédio dela, Ele nos ça. E muitos oram apenas porque não podem mandar. Desejari-
conduz ao único caminho que nos pode proporcionar felicidade, am poder mandar e, não o podendo, entregam-se a uma total su-
sabiamente corrigindo-nos e ensinando-nos na escola da vida. jeição. Tornamo-nos, às vezes, petulantes ao pedir e insistir em
A dor, que tanto nos azorraga, não é uma violação da vida divi- vantagens imediatas e materiais que, se coincidem com o nosso
na do universo, mas é justamente uma reintegração nela, ainda prazer, nem sempre representam o nosso bem. Por que esta ati-
que seja às nossas expensas, o que é justo, porque fomos nós tude de mendigos enfadonhos, que pretendem impor-se mais
que livremente quisemos violá-la. com a insistência do que com a humildade, mais com a longa
Ora, o que sucede frequentemente, ao nos apoiarmos em repetição vocal do que com a expectação confiante? Mas Deus
Deus, através da comunicação com Ele pela prece, é que, ao in- tudo sabe a nosso respeito, sabe do que necessitamos, sabe me-
vés de aderirmos à disciplina que Ele criou e da qual nos dá o lhor do que nós aquilo que é benéfico ou maléfico para nós.
exemplo em Suas manifestações, procuramos alterá-la em nos- Devemos compreender que Ele é Pai que nos ama e que, por
sa vantagem. Então, ao invés de nos unirmos a Deus, fundindo conseguinte, antecipa-se em nos oferecer todo o bem que não
a nossa na Sua vontade, procuramos as vias do separatismo seja para nós um dano, antes que nós mesmos saibamos ou pen-
egocêntrico, em que pretendemos ser nós os senhores e dirigen- semos. Como podemos presumir que possamos ensinar-Lhe o
tes, vias estas pelas quais justamente mais nos distanciamos de
6
Deus, que é unidade e, por conseguinte, fusão, e não cisão. E ―Faça-se a tua vontade‖. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 109
que é melhor para nós, correndo para oferecer-Lhe esse belo vidência, o necessário para que possamos cumprir a obra da
aspecto de soberba atitude, justamente na oração? nossa vida. Que paz se origina em trabalhar assim nos braços
Não. A oração deve ser diferente. Nela, não devemos ter a de Deus, na consciência do próprio dever cumprido! Quando se
pretensão de ensinar nada a Deus. Não é a lei de Deus que deve executou o próprio dever para com Deus, está-se seguro de que
alterar-se, adaptar-se a nós, mas somos nós que devemos mudar, Deus cumprirá o Seu para conosco. E que grande fato, que ex-
curvando-nos a ela. Não devemos pretender, com a oração, tor- pansão de toda a nossa vida é nos tornarmos assim Seus operá-
nar Deus um nosso servo a trabalhar para nós, nem buscar fazer rios e representar uma parte do grande organismo, uma função
de Cristo um redentor que tenha sofrido em nosso lugar. Não se no funcionamento do universo!
deve inverter, porque é cômodo, a ordem divina. Cada um con- A oração que se baseia em tal estado fundamental de alma
quista a felicidade com a própria dor. A verdadeira oração é avi- deve caracterizar-se por ser feita mais de aspiração que de pa-
zinhamento e adesão, é dócil aceitação. Nem também por isto, lavras, deve ser mais sentida do que dita. Ela deve preferir as
ela deve ser confundida com uma passiva e inerte resignação. coisas espirituais e só pedir as materiais em função das espiri-
Ao contrário, ela é consciência da ordem e vontade de Deus, é tuais. A oração só deve ser feita com escopo justo e altruísta,
cooperação ativa na Sua ação de bem no mundo, é aceitação pois não pode produzir efeito de outra maneira, contrariando a
operante, dinâmica e fecunda. Aceitar significa colaborar com lei de Deus, que quer o amor ao próximo, e não o egoísmo; o
Deus segundo os Seus desígnios, significa corresponder ao Seu bem, e não o mal. A oração não deve ser egocêntrica, do eu
amor, compreendendo que toda a alegria que, segundo a Sua que pede para si, mas uma adesão à vontade de Deus, um ato
bondade e justiça, nos pode ser dada pelo nosso verdadeiro bem, de harmonização com a ordem divina. Devemos estar dispos-
Ele já no-la deu antes que fosse por nós pedida, e que se não nos tos a sofrer quando tivermos violado essa ordem, persuadidos
dá um bem, é porque este nos faria mal. Mesmo uma privação de que o nosso bem e a nossa redenção residem nessa dor me-
pode ser um dom em vista de uma maior felicidade futura. recida, que nos reintegra na ordem que violamos. As formas
Se quisermos, pois, que a oração seja uma verdadeira prece inferiores de oração, próprias do involuído homem atual, pode-
e dê os seus frutos, não peçamos o impossível, porque, por mais rão ser, por piedade à sua ignorância, permitidas por Deus,
que seja pedido e rogado, nos será negado. Ela não deve ser mas é certo que a verdadeira e elevada oração não exige, não
uma ordem, nem uma petulante mendicância, nem também um julga, não aconselha, não pede, apenas escuta, para depois ade-
modo de aconselhar Deus quanto ao que deve fazer, mas deve rir e obedecer. Cessa, desta forma, a exposição das necessida-
ser um ato de humilde adesão à Sua sábia vontade: ―Fiat mihi des e rogativas terrenas; domina uma atitude receptiva de au-
secundum verbus tuum‖7. E, se quisermos reduzir a oração a dição, em que muito mais fala Deus do que nós; prevalece uma
um pedido de graças, recordemos que o melhor meio de obtê- expectativa de conselho e de guia, de ampliação de energia e
las é tornarmo-nos merecedores delas. Nós somos livres para de potência para a nossa nutrição. A prece torna-se assim algo
fazer o que mais nos aprouver e aceitar ou não, no momento, a diferente: é um abrir de portas da alma para que Deus entre,
vontade de Deus. Mas, se não aceitamos hoje, teremos que para que o grande rio da vida, descendo das suas fontes, nos
aceitá-la amanhã, em condições mais onerosas, pois que a von- inunde, e para que a divina irradiação do centro nos invada e
tade divina é que nós consigamos, por todos os meios e a qual- vivifique. Atitude de grande atividade espiritual, porque se tra-
quer custo, mesmo com dor, o nosso bem. Essa ativa adesão a ta de atingir as altas frequências e os potenciais necessários pa-
tudo que Deus nos prepara; essa nossa compreensão e boa von- ra nos sintonizarmos com o centro transmissor, porque sem
tade de desenvolver os motivos que Ele nos oferece, sejam eles sintonia não há comunicação. Trata-se de nos darmos em
sofrimento ou alegria; esse superamento do nosso interesse amor, porque só então Deus pode dar-se a nós em amor, dado
imediato em vista de maiores interesses nossos porvindouros; que Ele jamais se impõe a quem não O quer. E, enquanto nós
enfim, essa anulação da nossa vontade individual na vontade não O quisermos, porque ainda não chegamos a compreender,
divina, que guia os grandes planos da vida universal, tudo isto é Ele permanecerá em expectativa, indiretamente estimulando-
essencial para atingir e manter aquela contínua união com nos por mil vias, a fim de que sintamos a necessidade d'Ele,
Deus, que aqui nos propomos atingir. procuremo-Lo e O chamemos para que venha até nós. Quantos
Semelhante comunicação com Deus através da prece pres- perdem os Seus imensos tesouros por andar à procura das po-
supõe em nós um estado de ânimo habitual inteiramente diverso bres riquezas terrenas! No entanto Deus não deseja senão tor-
do comum. Na Terra, acredita-se que valer e poder estejam em nar-nos ricos! Mas é necessário que O procuremos, fazendo-
função de possuir, enquanto que o que realmente conta é o que nos dignos, porque assim o quer a Sua justiça.
se é, e não o que se possui. Quanta gente possuiu os nossos ha- A verdadeira oração, a mais elevada e mais intensa, chega
veres antes de nós, acreditando ser deles o verdadeiro dono, no assim a não ter mais palavras e se reduz a um silêncio de todo o
entanto teve que deixá-los! Assim, nós também podemos acre- nosso ser, em atitude de receptividade e de oferecimento à es-
ditar que sejamos os seus donos, mas, apesar disso, os deixare- cuta da palavra divina. A maior oração é tácita e consiste, antes
mos, e assim também outros, depois de nós, acreditarão suces- de tudo, em ter agido bem e, depois, na simples sensação da
sivamente ser igualmente donos e terão que os deixar. E cada presença de Deus. Quando tivermos compreendido e cumprido
um não levará consigo senão o que realmente é e vale, isto é, as tudo quanto acima está dito, isto é, quando tivermos nos har-
obras e os méritos, isto é, somente aquilo que possui em espíri- monizado em pensamento, palavra e ação na ordem divina, tor-
to. Deve-se, por isso, desligar o coração de qualquer coisa ter- nando a nossa vontade una com a vontade de Deus, então pro-
rena, tratando-a com desapego de simples administrador, depo- varemos esta sensação. Quando tivermos dado tudo a Deus e ao
sitário que deve prestar contas a Deus dos bens que lhe foram próximo e deixado de existir para nós mesmos, então tudo virá
confiados temporariamente para fins mais altos. Então, na ver- a nós espontaneamente e tudo possuiremos.
dade, não se possui mais nada para si mesmo. Tudo se torna Preparemo-nos, pois, para essa oração. Ela se faz em silên-
propriedade de Deus, e a Ele compete a defesa dos nossos ha- cio, a sós com Deus, distante do alarido das multidões, tacita-
veres. Embora nos cansemos e corramos, é para mais segura re- mente enquanto espera a mão de Deus, como ocorrem na inti-
compensa e já sem a ânsia de perder, porque tudo é confiado ao midade os maiores fenômenos da vida. Abramos confiantes as
verdadeiro dono, com a garantia de sua sabedoria e bondade. nossas almas, como faz a flor à luz do Sol. Assim como a lei
Então, estamos seguros de que Ele nos enviará, com a Sua Pro- de Deus quer que o sol leve aos seres a vida orgânica, ela tam-
bém quer que as radiações espirituais do sol divino nos inun-
7
―Faça-se em mim segundo a tua palavra‖. (N do T.) dem de sabedoria e felicidade.
110 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
IX. A COMUNHÃO ESPIRITUAL prio prejuízo pelo inferno merecido e pelo paraíso perdido.
Ao menos neste supremo momento de união com Cristo, de-
Quando bem tivermos compreendido e assimilado os pon- ve-se banir completamente todo o egoísmo humano. Para al-
tos acima expostos, suscetíveis de aplicação em qualquer reli- guns, isto será difícil, e só quem for capaz poderá consegui-lo.
gião, visto que possuem um significado universal, racional e, Mas, se quisermos obter resultados verdadeiros nesta comu-
poder-se-ia dizer também, biológico e científico, poderemos nhão, não há outro caminho a seguir. Quem não estiver ama-
entrar em uma fase mais profunda, fase mística e intuitiva, em durecido não pode compreender e deve ocupar-se com outra
que não se procede à luz da razão, mas da fé, fase de atuação coisa. Para estes, a Eucaristia é verdadeiramente um ―myste-
dos referidos pontos no seio do cristianismo, que é a mais ele- rium fidei‖8, algo incompreensível, de que só pode avizinhar-
vada religião que o homem conhece. Deus, na Sua verdadeira se com: ―credo quia absurdum‖ 9. É questão de evolução e re-
essência, está tão acima de nossa capacidade intelectiva e afe- lativa sensibilização. Mas quem atingiu a maturidade biológi-
tiva, que permanece inacessível à nossa natureza humana. Não ca e, com ela, a necessária sensibilidade nervosa e espiritual,
somos capazes de amar e proclamar tal suprema abstração, em quem conseguiu, contrariamente ao comum, ser mais vivo no
face da qual o coração e a mente se perdem. Devemos, por espírito que no corpo, poderá então ―sentir‖ na Eucaristia a re-
conseguinte, contentar-nos em nos aproximar de Cristo, mais al presença de Cristo; e ―sentir‖ a tal ponto, que poderá esta-
acessível a nós porque é também forma, e forma humana. belecer o colóquio. Esta é a evidência máxima que supera
Cristo, materialmente desaparecido da Terra e aos nossos qualquer demonstração ou esforço de fé.
sentidos com a Sua morte física, fica entre nós sempre presen- É justamente na prática da comunhão espiritual que a alma
te em espírito e, de um modo particular, na Eucaristia. Ele procura educar-se ainda melhor para esta sensibilização, esta-
quis, com esta Sua instituição, deixar um canal aberto para belecer a comunicação, aprofundar a sensação, progredindo
que nós pudéssemos nos comunicar com Ele. Este é o maior sempre para Deus. Esta prática pode ser, pois, para as almas
dom da Sua paixão. Nós nos propomos aqui utilizar justamen- eleitas, um grande meio de elevação espiritual. É certo que
te este canal para conseguir a união com Cristo em uma forma Deus, do centro, faz pressão para alcançar as Suas criaturas,
que, de resto, não é nova, mas que, se já é admitida, não foi mas, frequentemente, as forças do bem não podem passar, por-
muito praticada e sentida; uma forma que, se pode parecer que os canais estão obstruídos por mil detritos e atravancamen-
materialmente mais livre, exige em compensação uma disci- tos espirituais. É certo também que as forças do mal, que per-
plina espiritualmente mais rígida, pelo menos se quisermos sonificamos em Satanás, tudo fazem para manter esses canais
obter os resultados que lhe pedimos. As almas pias poderão fechados e, cada vez mais, acumular obstáculos à passagem
recorrer a ela para integrar a forma material, renovando-a nes- das correntes benéficas. Mas é igualmente verdade que, sim-
ta forma espiritual, que pode ser praticada mesmo quando a plesmente pela vontade humana, um e outro canal abre-se ao
outra não seja possível, quer pela hora, pelo lugar ou por ou- fluxo livre das radiações divinas, podendo se formar assim um
tras incontáveis circunstâncias. A comunhão espiritual pode bom condutor para a corrente espiritual, através do qual ela
efetivamente ser praticada não só nos momentos e circunstân- pode passar. Então, as forças do bem precipitam-se álacres e
cias mais próprios, nos instantes de maior urgência e fervor, abundantes por essa via, que lhes permite a expansão, porque
mas em qualquer hora e lugar, sem necessidade de jejum, to- assim é a Lei. E a vida, que fala no coração dos homens, cons-
das as vezes que a alma sinta necessidade, com uma frequên- tringe-os instintivamente a sentir e reconhecer, nesses seres
cia que, de outra forma, seria impossível, até que se consiga que servem de conduto à vontade divina, o mais alto e precioso
assim, mesmo em meio às nossas ocupações, uma contínua e valor biológico, ao qual está cometida a incumbência de ali-
completa união em Cristo. mentar-nos e salvar-nos. Estas atividades espirituais aqui ex-
Esta forma de comunhão, sendo espiritual, não pode deixar postas são, pois, preciosas não só para o indivíduo em sua as-
de assumir, por esta sua própria natureza, uma forma mais censão, mas também para o bem de todos.
individual e espontânea, relativa à natureza de cada alma. É Começamos, desta maneira, a nos aproximar do ponto cul-
difícil assim traçar-se normas gerais, porque cada um irá minante da comunhão espiritual, que é a sensação do contato e
adaptá-la a si mesmo, e não se pode, nem como guia, configu- da união com Cristo, reconstruindo em nós, isto é, revivendo
rar preces com palavras e formas. Cada alma dirá, com plena espiritualmente, como conceito e como sentimento, a sublime
sinceridade e efusão, o que ela mesma é, expondo de acordo cena da Última Ceia. Quem não a tiver presente, já impressa na
com as suas necessidades, mas, sobretudo, ouvirá consoante a alma, pode recorrer à leitura dos evangelhos. Estes contém um
própria capacidade de ouvir. Nenhum constrangimento lhe é imenso material para meditação. Pode-se chegar, assim, a atin-
imposto, nenhuma linha lhe é traçada, senão os princípios ge- gir a formação em nós e em derredor de nós de uma atmosfera
rais acima expostos, porque ela deve dizer as coisas que ver- espiritual onde vibra como que um eco daqueles sentimentos
dadeiramente sente, que brotam de si mesma, jamais abando- que, de um lado, foram sublimes em Cristo e, de outro, como-
nando-se a repetições mecânicas no trabalho de lábios, e não ventes nos discípulos; sentimentos de alta paixão espiritual,
de espírito. É justamente esta realidade interior que pode fal- como os que se agitaram no cenáculo, naquela hora suprema de
tar mesmo na mais perfeita execução das formas materiais de amor e de dor. Deve-se procurar alcançar um estado de identifi-
comunhão; é esta realidade interior que deve, de maneira ab- cação espiritual; em outros termos, alcançar a presença em espí-
soluta, ser posta em primeiro plano e tudo reger; é ela que, rito de todo o drama vivido, gradativamente começando da re-
quando tudo o mais tenha caído, deve subsistir em toda pleni- presentação da cena material e, aos poucos, ascendendo através
tude. Não é, pois, possível conseguir a comunhão espiritual dela, penetrar sempre mais na sua íntima compreensão, cada
com o espírito ausente, com a alma errante, sem a mais com- vez mais profunda, até à efusão espiritual. Começa-se por con-
pleta e vibrante adesão de nós mesmos. centrar a própria atenção na figura de Cristo, observando o pen-
É lógico que, tratando-se de um puro ato de amor, presu- samento, o amor, a paixão d'Ele naquele momento, procurando
me-se como preparação, de modo absoluto, um perfeito ato de penetrar o sentido do Seu supremo sacrifício. Aproximar-nos-
dor com respeito às próprias faltas, isto é, uma dor verdadei- emos, assim, paulatinamente, da visão da Eucaristia, da percep-
ramente sentida por haver violado a lei de Deus e desobedeci- ção do seu verdadeiro conteúdo e significado. Abriremos, desta
do à Sua vontade. Seria verdadeiramente ofensivo, em um ato
de amor tão puro, introduzir, justamente no momento de cum- 8
―Mistério da fé‖ (N. do T.)
9
pri-lo diante de Deus, cálculos de interesse referentes ao pró- ―Creio porque é absurdo‖ (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 111
forma, pouco a pouco, as vias à comunhão espiritual com Cris- guimos estabilizar-nos na alta velocidade do voo e nele manter-
to, que se dá então a nós nesse momento. nos em equilíbrio. Como quem sobe a vertente de um monte, em
Inicialmente, nesta ascensão, a nossa gradual elevação de terreno irregular, escorregaremos às vezes para trás, nos detere-
tensão será dificultosa e lenta. Tudo depende da nossa pureza. É mos às vezes, ora baixamos ora subimos, mas continuamos
necessário, como primeira condição, que a alma, antes de entre- sempre, cada vez mais alto, até atingirmos o cume desejado. As-
gar-se a estes atos espirituais, que constituem uma verdadeira sim, quando tivermos chegado a obter o estágio colimado, esta-
realidade e atividade no imponderável, se haja destacado de to- bilizando a passagem do fluxo espiritual, por haver eliminado
das as coisas terrenas, pela compreensão de tudo quanto foi aci- todo o material obstrutor, então sentiremos a radiação divina
ma exposto, encontrando-se já distanciada e bem acima delas. É descer em amplas ondas, enchendo-nos a mente de pensamento,
indispensável, para isso, estar habituado à concentração, saber o coração de sentimento, saciando-nos de potência, nutrindo-nos
isolar-se do ambiente na meditação. Nisto pode ajudar-nos a so- de energia, iluminando, confortando e alimentando todo o nosso
lidão, quer ao ar livre, quer em casa, como também em uma ser. Nessa altura, tudo se harmoniza e se potencializa dentro de
igreja que seja silenciosa, pouco frequentada por perturbadores, nós. As mesmas energias, em vez de divergirem e se atritarem
recolhida e, sobretudo, pobre. Tudo quanto é luxo humano pro- reciprocamente em lutas e conflitos, agora convergem e colabo-
fana esses contatos de espírito. Não importa tanto o lugar, mas ram entre si para produzir um rendimento máximo. Adquirire-
sim a atmosfera espiritual de que ele se constitui, as radiações de mos, então, a potência que é própria dos sistemas de forças equi-
que está saturado, pois que a base de tais fenômenos é a sintoni- libradas. Uma nova harmonia, que tem sabor de paraíso, come-
zação de vibrações. Há ambientes que parecem esplêndidos, no çará a invadir o nosso ser, penetrando-o gradativamente; primei-
entanto são espiritualmente surdos, e há ambientes paupérrimos, ro, no plano espiritual; a seguir, nervoso; depois, orgânico, até
como por exemplo São Damião, em Assis, mas riquíssimos de atingir a medula dos nossos ossos, imprimindo no indivíduo to-
sonoridade e ressonâncias espirituais. Cada um deve escolher, do um ritmo de vida mais elevado e benéfico. Isto permanecerá
de acordo com a sua natureza, todos os meios que sentir serem em nós como um eco doce e poderoso e se estabilizará, empres-
no seu caso coadjuvantes do processo de sintonização com o tando-nos uma vitalidade nova, que cicatrizará primeiro as nos-
centro, para o qual se dirige e em torno do qual gravita. A alma sas feridas morais, depois materiais, começando por nós e inva-
pode seguir nisto as suas simpatias e atrações, mas deve lem- dindo a seguir o nosso ambiente. Uma nova força nos fará supe-
brar-se de que aquilo que sobretudo forma a sintonia é a nature- rar as dificuldades das provas e as angústias da vida. No mundo
za dos seus pensamentos habituais, pensamentos de cada instan- orgânico, não é tudo regido, ainda que através de inúmeras pas-
te de sua vida, mesmo os que estejam fora do mundo; é o seu ca- sagens graduais, pela energia que desce do Sol para a Terra? As-
ráter e tipo; é a natureza das obras de que ele vive; é a sua afini- sim também, no mundo das forças espirituais, tudo é regido pela
dade conseguida com o Alto. Comunhão quer dizer de fato ade- potência que de Deus desce às almas. Quando estes mais eleva-
são, contato de espírito, ensimesmamento, fusão, identificação. dos planos do espírito são atingidos, a oração se torna audição e
Ela se baseia na afinidade. É necessário, pois, que procuremos a alma não mais fala, mas ouve e recebe. Então, ela nada mais
avizinhar-nos o mais possível de Cristo desta maneira, tendo an- tem a dizer e não faz senão ouvir à voz de Deus, nutrir-se de Sua
tes já nos avizinhado d'Ele em todas as manifestações de nossa potência e deixar-se conduzir pela Sua vontade.
vida. Pode-se alcançar tudo isto, mas é necessário uma discipli- Quando a ciência define como alucinatórias semelhantes
na que nos transforme radicalmente. O objetivo é exatamente sensações, relegando-as em massa, sem discriminação, para o
uma maturação e ascensão de todo o nosso ser. O exercício e o domínio do patológico, não sabe o que diz nem o que faz. Trata-
hábito abreviarão e facilitarão essas fases iniciais. se, como já dissemos, de realidades experimentais e objetivas, se
Façamos, pois, o que saibamos e possamos para abrir a nossa bem que de realidades sobrenaturais, que escapam a quem não
alma e escancará-la às radiações divinas, deixando-nos inundar tem os sentidos para percebê-las e, por conseguinte, as nega.
por elas, recebendo-as e tornando-as nossas, vibrando com elas Mas o homem, com o tempo, evoluirá e então compreenderá.
em todo o nosso ser. Quando tivermos, de nossa parte, tudo feito Hoje, faltando a sensibilidade necessária para a percepção, para
para sintonizar-nos; quando tivermos sabido tornar-nos recepti- a admissão de um fato que está além da razão, como seja a pre-
vos, mais por abandono do que por esforço; quando, subindo em sença de Cristo na Eucaristia, não há outra via senão a da fé.
espírito, tivermos conseguido abrir o canal e estabelecer assim Dado que este escrito se dirige ao ser humano atual, é ne-
uma corrente entre emissor e receptor, então basta: a nossa parte cessário insistir sobre o que, para ele, constitui a parte mais di-
está feita e a nossa tarefa executada. Abertas as portas, a luz en- fícil a percorrer, isto é, a que prepara a sintonização. Para isto,
tra por si. Aqueles que não estejam habituados ao trato com coi- aconselhamos a reconstrução interior do ambiente espiritual da
sas espirituais de tal profundidade, não se amedrontem. Deus, Última Ceia no momento da instituição da Eucaristia, momento
que, no outro extremo, deseja a união muito mais do que a pró- que seria de uma grandeza terrificante, se tudo nele não fosse
prio criatura e pode muito mais do que esta, virá em seu auxílio, feito de amor, em que Cristo se sacrifica e tudo dá, esquecido
porque tudo isto está na linha da ascensão, que é o ponto mais da própria grandeza, de tal maneira que desce até ao nível da
vital e central da lei divina. A alma nada mais tem a fazer, senão natureza humana. Ora, em nada encontraremos tão poderosa-
secundá-la, permitindo-lhe a atuação. Sem dúvida, quanto mais mente reconstruída, atual e presente, em sua sensação mais ví-
se é evoluído, tanto mais fácil é percorrer rapidamente e com vida e profunda, a substância espiritual desse momento como
mais sucesso esse caminho. As almas preguiçosas, gélidas, ego- no sacrifício da missa. Basta apenas seguir-lhe o desenvolvi-
ístas, fechadas em si mesmas e incapazes de um grande impulso mento em espírito, ainda quando, materialmente, não se possa
de paixão, ainda que religiosas, ainda que carregadas de uma estar presente. As próprias fórmulas do rito, pelo menos as mais
montanha de práticas formalísticas e mecânicas, são as mais dis- importantes, repetidas com todo fervor, poderão ser um ótimo
tanciadas dessas realizações espirituais e as que mais necessitam guia para o preparo da Comunhão Espiritual.
de maturar-se. Mas tenhamos fé, porque Deus está presente em Sigamos, pois, o sacrifício da missa e concentremos a
toda a parte e também a elas auxiliará. nossa atenção no momento culminante da elevação, repetindo
Continuemos. Uma vez estabelecida a comunicação por as mesmas palavras do sacerdote, as mais vitais, aquelas que
meio do desejo e da prece, a comunhão é espontânea, calma, ele realmente pronuncia em voz baixa, como que para sub-
profundamente vibrante e sem choques. É como que um desli- traí-las à profanação do público distraído. Repitamo-las, me-
zamento pelo ar. As sacudidelas do desprendimento da terra ces- ditando, procurando senti-las em profundidade, em um cres-
saram, e tudo se acalma, parecendo imóvel. Nem sempre conse- cendo de paixão e aproximação:
112 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
―Accepit panen in sanctas manus suas et elevatis oculis in meira, porque o espírito arde no desejo de unir-se ao espírito.
coelum, gratias agens benedixit, fregit, deditque discipulis suis Dentro de si não significa penetração material de corpos, mas,
dicens10: como sempre acontece no mundo espiritual, fusão de centros de
―Accipite et manducate ex hoc omnes: hoc est enim corpus forças vibratórias e isto pela via da sintonização, que é vibração
meum11. em uníssono, semelhante ao que sucede no campo acústico, pe-
―Accipit et bibite ex eo omnes: Hic est enim calix sanguinis la qual duas notas distintas tornam-se uma nota só. Esta fusão é
mei, novi et aeterni testamenti, mysterium fidei: qui pro vobis a mística união com Cristo, isto é, a perda da própria personali-
et pro multis effundetur in remissionem peccatorum‖12. dade egocêntrica distinta, que se abstraiu assim e se introverteu
―Haec quotiescumque feceritis, in mei memoram facietis‖. 13 na de Cristo, com a qual, daí em diante, saberá pensar e agir.
Cada qual procure ―sentir‖ estas palavras na máxima pro- Se a alma souber atingir este ponto, qualquer guia será para
fundeza possível que a sua natureza permita. Depois disto, a sempre supérfluo ou até mesmo um obstáculo. Deus agirá e fa-
alma sensível começa a perceber a real presença de Cristo tor- lará nela, e ela, silenciando, admirada e arrebatada, por-se-á à
nar-se cada vez mais vizinha e perceptível, em um lento cres- escuta, realizando assim a oração perfeita. Ela não necessita
cendo de sensações, cada vez mais claras e evidentes. Cada pa- mais do guia, porque Cristo a guiará. Daqui por diante, ela tudo
lavra, naturalmente, não deve ser dita com a boca, como habi- possui e nada mais lhe pode ser dado pelo homem.
tualmente se faz, mas com a alma, sentida como a própria pai- Neste ponto, o conselheiro que até aqui, nestas páginas, ser-
xão, profundamente. Extraordinariamente poderosa é a palavra viu de guia, deixa a alma que ele procurou conduzir a Deus, nas
que corresponde a um real estado de alma, a palavra que não é mãos de Deus, para que Ele apenas lhe fale, a ilumine, a con-
apenas som, mas força viva da alma. forte, a nutra e a fortifique. Ninguém pode interferir nesses co-
Eis que se avizinha o momento culminante em que Cristo, lóquios e amplexos de espírito. A comunicação com Deus está
tendo-se pouco a pouco aproximado como nossa sensação, po- estabelecida, e toda a alma encontrará, segundo sua própria na-
de comunicar-se com a alma que lhe soube abrir as portas. Sau- tureza, em plena liberdade, vias individuais de efusão. Neste
demos esta aproximação com as palavras do sacerdote: ponto, o pobre conselheiro que a acompanhou até aqui, nestas
―Agnus dei qui tollis peccata mundi: miserere nobis. páginas, cala, venera e em silêncio se retira.
―Agnus dei qui 'tollis peccata mundi: miserere nobis.
―Agnus dei qui tollis peccata mundi: dona nobis pacem‖ 14. X. PAIXÃO
A esta palavra ―paz‖, deixemos a nossa alma repousar tran-
quila, longe de todas as tempestades e preocupações humanas, Agora que completamos o trajeto dos quatro capítulos pre-
plácida como um lago límpido em cuja superfície o sol pode cedentes e, com isto, se não chegamos todos a realizar, pelo
agora espelhar-se em toda a sua pureza, sem ofuscamento ou menos compreendemos a união espiritual com Cristo, avan-
deformação. cemos ainda no mundo místico, tremendamente real para
Atingindo esse estado de calma e limpidez, abandonemo- quem o alcançou, mas dificilmente concebível para o homem
nos agora a Cristo, deixando que Ele venha a nós e complete o apenas racional.
restante. Mas, antes que Ele chegue, ofereçamo-nos a Ele com- Chegados a este cume, não podemos deixar de voltar para
pletamente, em perfeita fusão com a Sua Lei e vontade, ofere- trás e considerar o longo caminho que percorremos desde o
çamo-Lhe tudo o que sejamos como dor e como miséria, já que Cap. I – ―A Verdade‖, do livro Problemas do Futuro, até aqui.
nada mais possuímos. Repitamo-Lhe as grandes palavras. Todas as formas mentais atravessadas foram verdadeiramente
―Domine, non sun dignus, ut intres sub tectum meum: sed sentidas como reais por quem expõe, e isto pelo fenômeno
tantum dic verbo et sanabitur anima mea‖ 15. acima descrito da personalidade oscilante e pela sua ascensão
Após este último impulso de humildade e consagração, a em onda progressiva até às tensões elevadas. À medida que
alma que, em graus sucessivos, conseguiu subir até aqui está nos avizinhamos do cume, a racionalidade, embora progredin-
pronta. Ouvirá então uma voz atrás de si anunciando-lhe: do até destilar-se nas abstrações físico-matemáticas, permane-
―Corpus domini nostri Jesu Cristi custodiat animam tuam in ce no limiar do mundo místico, incapaz de penetrar em uma
vitam aeternam. Amen‖16. atmosfera tão rarefeita, em que ela se sente dissolver e onde
A alma deve seguir este pensamento três vezes. Na terceira, apenas a intuição pode penetrar.
ela terá a sensação da presença de Cristo, não mais apenas vizi- Após haver observado esse momento culminante e o seu re-
nho, mas dentro de si mesma. Se ela estiver amadurecida e flexo nos problemas que lhe são afins, o leitor poderá observar
pronta, frequentemente Sua presença em si, para tornar-se sen- o fenômeno da personalidade oscilante na sua cômoda metade
tida, não esperará a terceira vez, mas será notada desde a pri- descendente, isto é, em uma coordenação mais calma, no plano
da racionalidade normal, retornando aos problemas da Terra.
10
―Tomou um pão em Suas santas mãos e, levantando os olhos para Com isto, o volume se encerrará. Os dois capítulos: ―A Verda-
o céu, deu graças, abençoou-o, partiu-o e o deu aos Seus discípulos, de‖ e ―Ressurreição‖, deste volume, representam os dois ex-
dizendo‖: tremos da oscilação da vida percorrida pelo autor no período
11
―Tomai-o e comei dele todos: isto é o meu corpo‖.
12 1945-50, em que este volume foi escrito, no fim do qual ele re-
―Tomai e bebei dele todos: este é o cálice do meu sangue, do novo e
eterno testamento, mistério da fé, que por vós e por muitos é derrama- tornou ao fundo, mas sempre em nível mais elevado, e assim
do em remissão dos pecados‖. por diante. Daí se pode concluir que não é tanto o estudo ou o
13
―Todas as vezes que fizerdes estas coisas, fazei-o em lembrança de raciocínio que eleva o conhecimento, mas a maturação da per-
mim‖. (N. do T.) sonalidade. Aqui não se trata, assim, de aquisições culturais,
14
―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; tem compai- mas de um fenômeno biológico mais profundo, de uma catarse
xão de nós. de todo o ser, da qual deriva toda essa produção.
―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; tem compai- Antes de seguir adiante, será útil observar o ritmo destas
xão de nós. oscilações ou ondas sucessivas e ascendentes, comparando-
―Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo; dá-nos a
paz‖. (N. do T.)
lhe os vértices, que, como dissemos, com a maturação do in-
15
―Senhor, não sou digno de que entres em minha casa, mas dize uma divíduo, atingem níveis cada vez mais elevados. Um cume fo-
palavra e minha alma ficará curada‖. (N. do T.) ra em primeiro lugar alcançado no fim da I Trilogia, com a
16
―O corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo guarde a tua alma na vida cena conclusiva: ―Paixão‖, do volume Ascese Mística, como
eterna. Assim seja‖. (N. do T.) foi descrita na Páscoa de 1937, ao pé da tumba de São Fran-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 113
cisco, que está na sua Basílica em Assis. O cume atual, na ce- O novo impulso representado pela ―Ressurreição‖ foi prepa-
na do capítulo seguinte, ―Ressurreição‖, foi atingido na 2 a rado como que por um prenúncio na noite que precedeu a tercei-
parte do 1o volume da III Trilogia, na Páscoa de 1947, diante ra sexta-feira anterior à Sexta-feira Santa de 1947, com inespe-
do Alverne. O conteúdo aqui não é de desolação na expectati- rados e intensos fenômenos místicos. Isto sucedia com a apro-
va da guerra e de oferta na dor, como em ―Paixão‖, mas é ximação da Páscoa, ao 60o aniversário do autor, enquanto ―Pai-
triunfante na espera de uma nova civilização. Também o am- xão‖ foi escrita na Páscoa do seu 50o aniversário. Essa composi-
biente de inspiração, ao invés de uma tumba escavada nas en- ção representa a dor e o voto expressos pelas três solenes pro-
tranhas da terra, lugar de morte para o corpo, é o da contem- messas feitas na tumba de São Francisco de Assis, aos cinquenta
plação radiosa de um monte sagrado, onde Cristo apareceu, anos. Essas promessas foram repetidas em seguida, todas as tar-
lugar de máxima realização espiritual. Tudo se transforma e des, até que, 10 anos depois, juntam-se à ―Comunhão Espiritu-
se inverte. O motivo de 1937, expresso no 3 o volume, com al‖, atrás exposta, escrita em 1947, pouco antes de ―Ressurrei-
que se encerra a I Trilogia, se transforma completamente, em ção‖. Esta, depois daquele período de maceração, representa a
1947, no 1 o volume, com que se inicia a III Trilogia, em per- alegria que triunfa sobre a dor, a vida que se sobrepõe à morte, o
feito equilíbrio em uma obra de três trilogias. cumprimento da catarse. Após 10 anos de esforço e de dor, no
Há depois um retorno, com ritmo decenal, 1937-47, que en- Monte Alverne, onde Francisco se uniu a Cristo, veio do Alto a
contramos também nas Mensagens Espirituais17, pelo qual, tam- resposta e foi colocado o sinete da promessa final. O motivo ne-
bém aqui, ―A Mensagem da Paz‖ (Páscoa de 1943) chegou gativo de ―Paixão‖ reproduz-se aqui em posição corrigida, posi-
inesperada, justamente dez anos após a ―Mensagem aos Cris- tiva. Não mais trevas e tormentas, mas luz e vida.
tãos‖ (Páscoa de 1933), que encerrava a serie precedente. Retor- É a retificação do mundo na nova era do espírito. A dor,
no decenal de vértices, segundo um ritmo que parece inserido no compreendida, aceita e vivida, cumpriu a sua obra de redenção e
fenômeno, pelo qual os dois cumes, 1937 e 1947, seguem o pri- se transmuda em alegria. É a ressurreição do mundo através da
meiro na vida do autor, no ano de 1927, ano em que fez o seu sua atual prova e paixão, é a derrota do mal no triunfo do bem.
voto de pobreza e teve a primeira visão do Cristo. Como se vê, Sobre as ruínas despontam as flores, e a vida avança. O autor
já em 1927, o fenômeno se verificara, embora a sua primeira não vive aqui um motivo seu, individualizado, mas todo o moti-
manifestação exterior não haja surgido senão com a primeira vo biológico da sua era histórica, e começa a realizar, primeira-
―Mensagem do Natal‖, em 1931. Todas essas coisas não foram mente nele, a metamorfose que levará o mundo para o novo tipo
preparadas nem previstas, sendo constatadas somente posterior- de civilização. É assim que, nestas composições e nesta sua
mente e por um impulso íntimo, não controlado pela vontade e obra, pode repercutir e vibrar o ritmo do grande fenômeno que a
consciência por parte de quem o experimentava. É evidente que vida está agora vivendo. Ele teve que vivê-lo antes, sentindo em
este, como tantos outros fenômenos biológicos, é regido por um si a correção evangélica dos valores hoje invertidos no materia-
seu ritmo inteligente e sábio, que o ser não cria, apenas segue. lismo, como deve hoje vivê-lo o mundo em tragédia paralela.
Eis então que, assim como no volume A Nova Civilização do Neste endireitamento, os três motivos da ―Paixão‖ reapare-
Terceiro Milênio se verifica um desenvolvimento de A Grande cem, portanto, em ―Ressurreição‖, correlacionados entre si, mas
Síntese, aqui também se encontra mais aprofundado o motivo fi- transformados de treva em luz, de tristeza em alegria. E o mes-
nal do volume Ascese Mística. Assim, os germes sumariamente mo homem que, na Quinta-feira Santa de 1937, havia tornado
aparecidos na primeira explosão retornam amadurecidos com a sua a dor de Cristo moribundo e a dor que esperava o mundo,
progressiva catarse do indivíduo, da qual mais não são que um então ignaro da última guerra mundial, agora faz, na manhã da
momento e uma expressão. Assim, através dos volumes das vá- Páscoa de 1947, também suas a festa do Cristo que ressurge
rias trilogias, toda a obra verdadeiramente ascende, elevando-se triunfante e a glória que está reservada para o mundo em uma
a uma atmosfera cada vez mais purificada. Aqui, cada palavra, nova civilização que ele ainda não vê. O fenômeno não se refe-
cada capítulo, cada volume, enfim toda a obra, não pode deixar re apenas a quem escreve, mas envolve a todos no mesmo ritmo
de espelhar e repetir o grande motivo ascensional, que é a base e a todos conduz para a mesma meta.
de toda a orquestração da vida, que se expande para Deus. É um Enquanto ―Paixão‖ foi escrita na noite de Quinta-feira Santa,
canto único de todo o ser, canto do qual estes escritos não são vigília de paixão, na treva, embaixo, junto a uma tumba, ―Ressur-
senão um eco na alma de um pobre homem que sentiu cantar em reição‖ foi escrita na manhã da Páscoa, à luz, no alto, onde triun-
si o universo e, em uma férvida paixão, se tornou dele o humilde fou o espírito em Cristo. Esta passagem representa o afastamento
intérprete. Assim, este canto, começando na forma racional das da pedra que fechava o sepulcro e a ressurreição do espírito, que,
zonas inferiores da matéria e do nosso cotidiano contingente in- no terceiro dia, isto é, no III Milênio, explode do seu invólucro
dividual e social, eleva paulatinamente o seu potencial. Assim é corpóreo. Assim, quem escreve, instintivamente preparado pelo
que a racionalidade se torna intuição, a observação se transfor- ritmo do fenômeno universal, que vai da vida de Cristo à vida do
ma em contemplação, o pensamento se transmuda em prece, a mundo, fenômeno no qual se encontrava preso sem sabê-lo, che-
visão do verdadeiro se faz êxtase, amor, arrebatamento. Então gou à manhã da Páscoa de 1947, após um vago pressentimento
deixa-se de ser espectador, para se tornar ator no grande funcio- da aproximação de um grande acontecimento espiritual. A visão
namento orgânico do universo. Não mais se ouve apenas a divi- exposta em ―Ressurreição‖ se desenvolveu nas primeiras horas
na harmonia do criado, mas nela se penetra, por ela se é envol- do dia, estando o seu espírito presente na Capela dos Estigmas,
vido e transformado. E nós mesmos nos tornamos assim um no Alverne, enquanto o corpo estava em Santo Sepulcro (Arez-
canto, o canto da vida, uma harmonia de Deus, uma harpa vi- zo), aonde fora com a família. Voltando a si, ele registrou a refe-
brante na divina orquestração do todo. E nos anulamos, desta rida visão, de jato, como uma explosão, ao mesmo tempo que
forma, perdidos no ilimitado incêndio do amor divino. podia ver com o olho físico o perfil do Alverne e o ponto onde se
Descreveremos aqui, em seguida, no presente capítulo e no encontra a aludida capela, visíveis dali de Santo Sepulcro. E
seguinte, estes dois vértices: ―Paixão‖ e ―Ressurreição‖. Esta aquela manhã, embora interposta entre duas semanas de mau
última composição é nova, enquanto que a precedente é repro- tempo, estava verdadeiramente límpida e radiosa.
duzida do volume Ascese Mística. Isto para que seja possível o Eis o texto de ―Paixão‖18. Seguir-se-á, no capítulo subse-
confronto. Mas, antes, façamos algumas observações. quente, ―Ressurreição‖.

17 18
Traduzidas em português com o título de Grandes Mensa- Publicado também no volume Ascese Mística, II Parte – Cap. XXVI,
gens.(N. do T.) do mesmo autor. (N do A.)
114 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
PAIXÃO Já é noite. Ensombram-se os vitrais luminosos. Tudo está
Assis, Quinta-feira Santa de 1937 apagado nos altares nus. A Igreja, que nesta hora agasalha a dor
de um Deus e a dor do homem, depôs seus ouropéis e se abate
Peregrino de dor e de paixão, eu me aproximo de Ti, Se- desnuda ao pés de Cristo.
nhor. Neste ar triste, mas calmo; nesta atmosfera de dor, gran-
Despedaçaste todos os meus afetos humanos, um a um; qui- de mas consciente e resignada, ouço o clamor das multidões
seste que somente o Teu amor permanecesse. distantes, que não querem e não sabem sofrer; sinto o es-
E, quando o meu coração caiu por terra, ensanguentado, na pasmo das marés humanas que a dor e a paixão perseguem e
estrada poeirenta, pisado por todos, Tu então o recolheste e me atormentam.
disseste: ―Eu sou o teu amor. Somente a mim podes amar‖. Minha alma treme.
Em mordaça de ferro, comprimiste minha paixão; quando Jaz abatida ao pé da cruz e olha no alto o drama de um
ela desejava explodir no mundo, Tu lhe fechaste todas as portas Deus agonizante por amor. Somente o seu olhar me dá força
e a lançaste dentro de mim, para que, na constrição, se tornasse para viver.
mais profundo e mais potente o seu lume e ardesse num incên- Vivo o Teu tormento, meu Senhor. Subi Contigo até à cruz;
dio sempre maior e, no íntimo, inflamasse, chamejando até en- Tua dor é minha dor. Agonizo e morro Contigo.
contrar-Te, Senhor. Desejaria invocar piedade para todos, mas não tenho cora-
Dosaste o meu tormento, proporcionaste asfixia lenta, qui- gem. Não tens mais sangue para dar; morres nu e amaldiçoado
seste que eu me aproximasse de Ti por minha procura e por es- e és inocente. Que posso pedir-Te mais por amor do homem?
forço meu. Eu o sei: dar-me-ias ainda lacerações tremendas; mas, a ca-
Agora compreendo que ao Teu amor divino eu não poderia da novo rasgar-se de minha carne, eu Te direi: ―Por amor de Ti,
chegar senão pela dilaceração de todo amor humano. Senhor‖.
A Ti não se chega senão pela tempestade, por que és o tur- E, quando, já sem forças, cair e vir chegar até mim a carícia
bilhão e o poder, és a essência da força. sedutora das coisas humanas, minha alma deverá recusar qual-
Sinto que a chama do Teu incêndio se aproxima e lança la- quer repouso ou conforto e dizer: ―Por amor de Ti, Senhor‖.
baredas sobre mim. De repente, uma delas me toca e se enrodi- Flagela diariamente meu espírito, para que ele seja desperto
lha em minha alma, aperta-a e agarra-a, para atraí-la a si, no e pronto ao Teu comando.
centro do incêndio. Com a minha renúncia, alimentarei todo o dia a chama de
Afrouxa em seguida a pressão e me deixa recair nas coisas amor por Ti.
humanas, para retomar-me depois, outra vez, e ainda outra, Não! Não é renúncia, não é dor: é expansão e alegria. ―É pe-
sempre mais forte. lo meu amor, Senhor‖.
Aquele incêndio me espera, e eu nele cairei. Que posso eu fazer? Agora, é inútil resistir. Precipito-me em
◘ ◘ ◘ Ti, Senhor; as órbitas se comprimem vertiginosamente; a matu-
É a Semana da Paixão, e aproxima-se a hora santa em que ração prossegue no mundo e em mim, por caminhos opostos.
Tu, Senhor, na Tua agonia, lançaste ao mundo o grito de reden- A hora é intensa para todos. Não se pode detê-la. Preparada
ção e de amor. já há tempo, precipita-se. Eu temo olhar.
Nestes dias, espadelaste minha alma para que também eu ◘ ◘ ◘
vivesse a Tua paixão de dor e de amor. O círculo se aperta. O drama da paixão de Cristo se faz in-
Sobre minha sensibilidade, vibrando e ressoando, passaram tenso dentro de mim; o drama das tempestades humanas acossa
o choque brutal e o insulto feroz, e nela pousaram, submergin- quem está lá fora.
do com alegria na minha dor. Desço a cripta e me abato aos pés do túmulo de Francisco.
Tu estavas presente e próximo, mas, por desgraça minha, eu Apossa-se de mim, plenamente, o espírito do lugar, tão forte
não o senti. que me lança por terra. Apoio sobre a pedra desnuda a fronte
A nova dor, porém, reergueu até Ti minha sensação e, nas em chamas, para acalmar a febre e abrandar o incêndio.
profundezas do meu desânimo, eu Te encontrei, assim como Conduziste-me até aqui. Para que? Que queres de mim,
tantas vezes eu Te perdi e, na minha prostração, vieste ao meu Senhor?
encontro e de novo me apareceste. Começo a balbuciar: ―Toma minha alma‖. Estou à espera,
Que desejas de mim, Senhor? vibrando em tensão, sem palavras.
◘ ◘ ◘ Recordo. Já me disseste numa hora de trevas: ―Segue-me,
Chego a Assis ao anoitecer da Quinta-feira Santa. segue-me‖.
Sete velas e mais sete, em duas ordens bem visíveis, ardem Paira sobre mim algo de grave e de grande que eu não sei.
solitárias na basílica de Francisco19. Sinto solene a hora. Estás perto de mim, ó Cristo, eu Te sinto.
Apagam-se lentamente, uma a uma, com um salmodiar lon- Francisco é uma força viva, vibrando daquele túmulo, e me
go e triste, em que chora a Igreja e o mundo suplica; lá fora, contempla e me ajuda.
tristemente, o dia se extingue, filtrando sua agonia através dos Algo de potente, de imenso, quer subir das profundezas de
históricos vitrais. meu coração e não pode. É intenso demais para suas forças. A
A sinfonia de liturgia, de luzes, de pranto, canta concorde ideia se agita, comprime-se para explodir, busca a palavra que a
com a lenta sonolência de morte em que se extingue a agonia expresse, que a engaste em sua última forma.
da paixão. Finalmente, emerge a voz e minha alma grita:
Quando, porém, com a derradeira luz do dia, apaga-se a ―Senhor! Eu Te seguirei até à cruz‖.
última vela, o último cântico do salmo explode tão trágico e Então, sinto dentro de mim, a cantar: ―Tu estás no centro de
dilacerante, interrompido pelo triste batido das vergas no solo, meu coração‖.
que minha alma tempestuosa se abate, porque, então, ouço Minha alma, liquefeita em lágrimas de júbilo, de amor e de
dentro de mim gritar a dor do mundo, que, súplice, chora com paixão, prostra-se sem forças.
o Cristo que morre. Naquele instante, porém, ressoa do alto, do templo superi-
or20 da igreja baixa, pintada por Giotto, o cântico que salmodia
19
Nesta basílica giotesca, ao anoitecer de Quarta e Quinta-feira Santas,
20
se faz o ―Ofício das Trevas‖, extremamente sugestivo pelo ambiente ar- A basílica de São Francisco é composta de três igrejas superpos-
tístico, a liturgia, o canto solene e, sobretudo, pela quase ausência do po- tas. A cena realiza-se na igreja do meio e na cripta embaixo, onde
vo, que perturba sempre, com a sua distraída incompreensão. (N. do T.) está o túmulo do Santo. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 115
até ao vértice de Sua paixão; ressoa como raio a ecoar toda a Hora de doces colóquios de espírito com a alma do criado
explosão do meu tormento, condensando minha tempestade; no intenso pressentimento de primavera. Hora de ternas recor-
ressoa, no clamor da musica e das vergas batendo no solo, o dações para mim, nesta doce terra de Assis, onde tão profun-
grito derradeiro do Cristo que morre. damente vivi e que tanto amei. Hora em que o céu e a terra re-
Esse grito me atinge e me fere. Alguma coisa se dilacera em fletem, amigos, um sorriso comum e se estreitam num fraterno
mim; abre-se uma fenda em minha alma. amplexo.
O extremo apelo me convoca: é o lamento de Cristo, é a dor Parecem em paz, mas é aparência do momento.
do mundo, é uma convergência, em mim, de forças superiores e Vive dentro de mim a visão da realidade.
inferiores. Sinto minha alma fugir-me, arrebatada num vértice Eu senti verdadeiramente a terra tremer.
de forças titânicas; sinto a voz instar dentro de mim e repito:
―Senhor, seguir-Te-ei até à cruz‖. XI. RESSURREIÇÃO
Estou esmagado pelo peso de uma promessa solene. Alverne – Páscoa de 1947
◘ ◘ ◘
Torno a subir à igreja média, pintada por Giotto. É manhã de Páscoa, manhã radiosa da minha ressurreição
Apaga-se a última vela. É noite. Ouço a repetir-se ainda em Cristo, e eu cheguei em espírito aqui em cima do Alverne.
mais perto, dentro de mim, o grito do Cristo a morrer. E, aqui, na Capela dos Estigmas, no lugar em que Francisco viu
Ele aqui está, atual, presente. Cristo, a minha alma escreve no livro da sua vida eterna, em ca-
Rasga-se, então, ante meus olhos, a visão da terra e do céu. racteres que não mais se apagarão. Escreve e exprime em si este
O céu chora a agonia e a paixão de amor de um Deus; a terra novo grande dia da sua eterna transformação, dia de alegria,
treme, convulsa, no pressentimento de um vendaval sem noite. depois de tanta dor, dia de vitória e de paz, depois de uma ca-
O drama do homem e o drama de Deus se conjugam nesta minhada tão exaustiva. Sinto o olhar de Cristo sobre mim, que
hora suprema de paixão. imprime um sinete de fogo à minha palavra.
Olho atemorizado. Vejo um turbilhão de forças que se pro- Deste alto cume do Alverne, contemplo a terra adormecida
jeta para a terra e vejo a terra sacudida, agitada, submersa num lá embaixo, longínqua e vaga na névoa matinal, tão cheia de
mar de sangue. ânsias e de dores e, apesar disso, aquecida e fecundada pela di-
É a hora tétrica da paixão do mundo. E parece sem esperan- vina luz do sol.
ça. O círculo estreita-se cada vez mais; bem depressa estará fe- Deste cume espiritual, também repasso a história do mundo,
chado, e tarde será para escapar à compressão. ainda imerso no paul da ignorância e da barbárie, perdido na
A mão do Eterno empunha o destino do mundo; estão pron- névoa da involução, história cheia de aflições e destruição e,
tas a desencadear-se as forças para o choque fatal. Está próxima apesar disso, guiada e regida pela lei de Deus.
a hora das trevas, do mal triunfante, da prova suprema. Feliz Deste cume do meu destino, miro a infinda alternância de
quem não for vivo, então, sobre a terra minha transformação, que hoje, finalmente, emerge da prova e
O amor de Deus deve retrair-se um momento, para que a da dor e, por esta impelida a um ancoradouro mais firme e ele-
justiça seja feita e o destino, desejado pelo homem, se cumpra. vado, pode arremessar-se agora de um salto para Deus. O espí-
Há algum tempo, eu já disse – preparai-vos, preparai-vos – rito, redimido pela dor, pode finalmente escancarar as portas
e não ouvistes. Em breve será demasiado tarde. cerradas pelo egoísmo e pela culpa, pode abrir-se para que a luz
O drama está próximo, eu o sinto, torna-se meu, toco-o, res- do alto o penetre e o inunde.
soa desesperadamente, no mais íntimo de meu espírito. Eis que hoje, não mais na tumba de Francisco de Assis 22,
Repito: ―Toma, Senhor, minha alma‖. tumba de Seu corpo morto, mas no Alverne, a apoteose do
E três vezes repito: ―Senhor, ofereço-Te a mim mesmo pela Seu espírito vivo e presente confirma-se e se concluem, ama-
salvação do mundo‖. durecidos no tempo, os meus pactos com Cristo, já cumpridos
―Seguir-Te-ei até à cruz‖. em uma hora de paixão e de treva para o mundo, no claro
Três vezes repito e sinto que Tu, Cristo, me escutas e me pressentimento do iminente último conflito mundial. Tudo
aceitas; estou unido à Tua Paixão. Compreendo que me guiaste caminha e tudo fatalmente deve maturar-se na vida. O bem e o
até aqui, ao templo de São Francisco, para que, sobre Seu túmu- mal estão enquadrados no ritmo de sua transformação, e eis-
lo, próximo Dele, eu Te repetisse esta nova promessa solene, de- me chegado aqui em cima, de onde contemplo a terra, a histó-
cisiva, seguindo a primeira, após cinco anos de duro caminhar. ria e a mim mesmo.
Compreendo que Tu esperavas esta minha nova dação, por- Dez anos faz, na Quinta-feira Santa de 1937, que chorei em
que agora um peregrinar mais áspero se inicia e um esforço Assis e pranteei a minha dor e a dor do mundo, que tornei mi-
mais árduo me espera. nha. E, como agora ressurjo da minha dor na alegria de Cristo,
O cântico cessou depois de seu último paroxismo. assim ressurgirá o mundo em uma nova civilização. Vejo-a do
Todas as luzes se apagaram. O templo está em silêncio, no alto deste cimo, que domina o tempo, última meta de tanta luta
escuro. e sofrimento. Hoje, aqui, neste cume do Alverne, não choro
Minha alma atinge, junto à alma de Cristo no Getsêmane, mais a minha paixão em Cristo e a paixão do mundo, mas can-
sua última desolação. to a minha ressurreição em Cristo e a ressurreição do mundo.
Abala-me o último estalido das vergas batendo no solo. A esta dediquei a vida.
Naquele instante, verdadeiramente senti a terra tremer. ◘ ◘ ◘
◘ ◘ ◘ Senhor, semeei segundo as Tuas pegadas, como me orde-
Como era belo contemplar, lá fora, antes do ocaso, sobre naste. Semeei por toda a parte, em todos os campos do mundo,
o doce e extenso vale umbriano, os reflexos do Tescio 21 e os rivais e invejosos de vãs posições terrenas. Entrei lá, onde, com
pinheiros ondeando ao vento, contra os diáfanos esplendores bondade e compreensão, me foi aberta a porta, seguindo o Teu
da distância! evangelho, que nos ordena amor. Permaneci contristado em si-
E, mais tarde, a lua cheia surgindo do Subásio, a mole lêncio, no limiar das portas que me foram fechadas. Fui expulso
do templo, irreal entre pálidas luzes, e a imensa campina por aqueles que mais amava e que melhor deveriam ter com-
adormecida.
22
Veja ―Paixão‖; Assis, Quinta-feira Santa de 1937, capítulo an-
21
Rio perto de Assis (N. do T.) terior. (N. do A.)
116 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
preendido. Senhor, ofereço-te esta minha dor. Eles não me qui- Eis que, aqui, no cimo do Alverne, nesta manhã de Páscoa, o
seram. Oro por eles. Outra coisa não posso fazer. A obra da meu drama se cumpre. Por dez anos repeti toda tarde os três vo-
qual eu sou o servo é Tua. Somente Tu possuis os meios para tos. E Tu permaneceste ao meu lado, Senhor, e guiaste cada pas-
fazê-la triunfar. Eu nada sou. Repito-Te o meu voto: ―Senhor so meu no mundo, precedendo-me com a Tua cruz, coroado de
eu sou o Teu servo, nada mais quero senão isto‖. espinhos. Mas tudo é transformação, e a transformação possui
Senhor, pela salvação do mundo, para aliviar, se possível, a um ritmo. A lei que rege o universo é um pacto que Deus fez
sua merecida dor; para dar à Tua justiça uma contribuição com o homem, estabelecendo a garantia da estabilidade fenomê-
qualquer de amor, ainda que seja quase nula; para encher o hor- nica. Nesta lei, o mal está enquadrado a serviço do bem, a dor é
rendo vazio produzido pelo ódio, ofereci a Ti minha dor aqui permitida como instrumento de felicidade. Assim, como em Ti,
em cima, esvaído e quase que sangrando. Somente Tu a viste. depois da paixão a ressurreição. Tudo é ordem em uma harmonia
Tu o sabes. Jamais peço para mim. A minha prece não pede, sublime. Tal como Tu já nos mostraste como sucederá para o
mas ouve. Ouve a Tua voz. Mas, se posso implorar para os ou- mundo, assim também a minha dor cumpriu a sua redenção.
tros, faze com que o mundo seja salvo da medonha catástrofe Na redenção, não Te vejo mais coroado de espinhos, san-
que o ameaça, faze com que ele possa aportar a salvo à outra grando na crucificação, na primeira fase que é de sacrifício do
margem, que se encontra além da sua atual prova de dor e faze corpo-matéria, crucificado, em que o homem, ainda todo carne,
com que a meta da sua ressurreição, pela qual Te ofereço a vi- se detém demasiado e permanece ainda. Mas vejo-Te na segunda
da, seja logo plenamente alcançada. Faze que não seja vão tanto fase, a mais alta e vital da redenção, que é a ressurreição no espí-
sofrimento, faze com que a dor abra as mentes e os corações, rito, ressurreição em que o homem, ainda pouco evoluído, muito
faze que esta destruição na matéria construa no espírito. Tam- pouco assimila e compreende. Vejo-Te, pois, imensamente diver-
bém Tu, Cristo, ressurgiste da Tua paixão, e também ressurgi so de ontem. Vejo-Te emerso da dor, em um esplendor de glória,
agora em Ti da minha dor. Faze que igualmente o mundo, re- de beleza e de potência, projetado na amplitude dos céus. Es-
dimido pela sua tribulação, ressurja em Ti, álacre e triunfante, plendes e irradias, todo feito de luz. És o sol da vida. A Tua cha-
como Te vejo ascender hoje aos céus, vencedor da dor e da ma aquece e nutre o universo. Neste esplendor, aqui no Alverne,
morte, como me apareces neste radioso cume do Alverne, nesta onde agora me encontro presente em espírito, Te viu Francisco,
gloriosa manhã de Páscoa. Faze com que isso aconteça. Sei que aqui onde está escrito: ―Signasti, Domine, Hic servum tuum
tudo é perfeito no universo, segundo a vontade do Pai, que Lhe Franciscum, Signis Redemptionis nostrae‖23. Nesta alegria, como
acena a marcha fatal e que eu, orando, não posso e não devo se acabou a Tua dor, ó Senhor, deve ter fim, pela mesma lei que
nem ajuizar nem aconselhar, mas apenas obedecer. Deveria di- Tu nos mostraste, toda dor, a dor do homem, a dor do mundo.
zer somente: ―Seja feita a Tua vontade‖. Mas esta minha súpli- ◘ ◘ ◘
ca é a explosão do meu amor pelos irmãos em perigo, e é mais Na mata em derredor do sacro monte do Alverne, canta a
forte do que eu. Vejo o báratro da barbárie, que ameaça as mul- voz das grandes árvores meditativas, projetadas para o céu, a
tidões inconscientes. Entre tanta preconização de sistemas, sal- voz das minúsculas criaturas aladas que aí se aninham. Mais
va-os, Senhor. Repito-Te o meu segundo voto: ―Senhor, eu Te além canta a voz do homem ocupado nos labores da terra, canta
ofereço a mim mesmo pela salvação do mundo‖. a voz das rochas e das águas, das nuvens e dos ventos em tem-
◘ ◘ ◘ pestade, e tudo domina o canto imenso dos céus. Tudo é festa.
Senhor, ao terceiro ponto, permaneço só, diante de Ti. O Os sinos anunciam para o mundo a Tua ressurreição. E Tu so-
destino do mundo separa-se do meu destino. Cada qual é livre bes glorioso no esplendor do sol. A Tua ordem triunfa. É a vitó-
e responsável por si, isoladamente. Um dia me chamaste para ria final do bem sobre o mal.
dizer-me: ―Segue-me, segue-me!‖. Obedeci ao Teu apelo e O meu destino se cumpre. Eis-me junto a Ti, Senhor, última
procurei seguir-Te Senhor, como a minha infinita fragilidade e meta. As trevas da noite se desfizeram, a névoa se diluiu ao sol.
fraqueza permitiram, como a minha pobre e culpável humani- Tu me apareces intensamente mudado, vestido assim de glória,
dade facultam. Mais não pude fazer. Desesperadamente Te se- visto nesta outra margem da minha vida, depois de uma cami-
gui de longe, chorando o meu amor perdido, no desejo de tor- nhada bem longa e dolorosa. Vejo-Te, não mais aflito, mas
nar a manifestá-lo. E caminhei sangrando entre as sarças, cain- amorosamente reclinado ao meu lado, para dizer-me: ―Estás fa-
do e levantando, levantando apenas porque Tu, que conheces a tigado. Apoia a tua cabeça em meu peito e repousa‖. Mas, ven-
miséria, tiveste piedade de mim e me estendeste a mão. Segui- cedor do mal, Tu me dizes, como ao bom ladrão, porque com
Te de longe, como convém a um servo indigno. Procurei ver- ninguém mais tenho semelhança: ―Amanhã estarás comigo no
Te do fundo destas trevas terrenas. Procurei ouvir de novo a paraíso‖. É a Tua resposta aos meus votos, repetidos por dez
Tua voz amiga no Evangelho, esquecido dos homens. Escutei anos seguidos. Tantas outras coisas depois me dizes, em lin-
com a minha pobre razão os passos por Ti impressos na histó- guagem não humana, no segredo da alma. Mas estas não se po-
ria, sentindo, contudo, que a pobre análise feita pelos sentidos dem repetir, porque não seriam compreendidas. Estas não se
não poderá jamais reconstruir a Tua figura, que está acima de devem dizer, permanecem encerradas no segredo do Eterno!
toda a forma humana. Segui-Te chorando a minha insensatez, ◘ ◘ ◘
envergonhado por não saber falar a Ti, porque Tu estás no alto, Assim cheguei junto a Ti, Senhor, peregrino de amor e de
em tão ofuscante glória de perfeição, que eu me desoriento. paixão. De todos os amores humanos, o Teu foi que venceu. A
Senhor, juntei esta dor que é a consciência da minha miséria às Ti só se pode amar. Através da tempestade, cheguei à Tua paz.
outras dores e também isto Te ofereci, para que Tu tivesses pi- As chamas do Teu incêndio me envolverão e não me deixarão
edade de mim. Tudo isto Tu sabes, e eu o sei. Nada fiz do que mais. A dor me salvará. Bendita sejas, irmã dor, que nos redi-
devia e do que desejaria. No entanto o meu coração, enamora- me. Agora sei o que Tu querias de mim, Senhor. Não mais cho-
do de Ti, sem medir mais nada, nem a Tua grandeza, nem a ra, não mais treme a minha alma, mas triunfa na Tua alegria. A
minha indignidade, o meu coração, ardente de desejo por Ti, paixão está superada na ressurreição. Assim como a Tua dor foi
incapaz de resistir à Tua chama, que o envolve e queima, inca- minha, assim também agora é minha a Tua felicidade.
paz de compreender o alcance das suas próprias palavras, a Tu estás comigo, Senhor, e não mais me deixas. E Ele me
imensidade de seu ardor, o absurdo do seu impulso, o meu co- diz: ―Vai, diz aos homens que não se sofre em vão. Vai, lembra
ração Te repete, irresistivelmente transtornado à Tua luz, repe-
te o seu terceiro voto: ―Senhor, seguir-Te-ei até à cruz‖. 23
―Assinalaste aqui, ó Senhor, o teu servo Francisco com os estigmas
◘ ◘ ◘ da nossa redenção‖. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 117
aos homens o caminho da redenção. Que saibam sofrer e, so- vos. A concepção materialista fez crer aos dirigentes que a
frendo, compreender. À medida que compreenderem, o círculo opinião pública se pode hoje fabricar mecanicamente, em sé-
se alargará e a dor se suavizará. A luz de Deus bate às portas de rie, por meio do radio e da imprensa. Não é verdade. Existem
sua alma e pede para entrar, mas eles a mantêm hermeticamente correntes de pensamento independentes, que escarnecem de
fechadas. Abram-nas ao amor fraterno, que Deus entrará. O ho- semelhante indústria. A vida nos mostra que, em momentos
mem deve aprender qual ser livre e pode, pois, aceitar ou repelir decisivos, a alma coletiva caminha por si, independente do ha-
como quiser. Mas ai de quem odeia os outros, porque envenena bitual controle dos dirigentes em qualquer campo.
a si mesmo. Ai de quem se encerra no cárcere de egoísmo, por- No momento atual, efetivamente, ideologias hedonistas im-
que barra para si próprio o caminho das fontes da vida, isola-se e portadas tendem à formação de uma ordem bem diversa de idei-
se estiola em direção à morte. Vai, ensina ao mundo esquecido, as, baseada no interesse e no bem-estar material. Como explicar,
desviado em busca de falsas miragens, os verdadeiros caminhos no entanto, que semelhante propaganda, em vez de atrair com
da alegria. Sê sacerdote do espírito e oferece também o que sa- seu utilitarismo, tenha obtido o efeito exatamente oposto, colo-
bes, porque de mil ofertas nasce a nova civilização‖. cando-nos, ao invés, frente a um inegável despertar religioso?
Eis que, enquanto me afasto do Alverne para tornar aos mes- Este, por sua vez, não é apenas o difícil produto desejado pela
mos misteres do mundo azafamado, uma última visão se me de- Igreja, mas sim algo mais profundo, além do quanto possa que-
para. Também aqui, como lá em Assis, o drama do mundo e o rer um indivíduo, uma autoridade ou as próprias massas huma-
drama de Cristo se conjugam. Assim como Cristo ressuscitou, a nas, que apenas lhe obedecem. E como pode ele, nos eventos
vida ressurge da moderna e imensa catástrofe. Outros golpes vi- históricos, assumir de inopino uma direção tão imprevista?
rão, porque o homem é obstinado. Mas, além deles, também para Observemos um fato. Em 1939, quando eu já sentia os temo-
o mundo, há a sua ressurreição. A fé, a lógica profunda da vida res da guerra desde 1932 (tudo publicado), ninguém temia essa
no-la indicam. E tal como me liguei à dor do mundo na hora de guerra, razão pela qual nela nos precipitamos com a inconsciên-
sua paixão, estou ligado agora à sua alegria na hora da sua ressur- cia de criança. Hoje, quando o horizonte não é tão sombrio co-
reição em espírito. Nela reviverei. No bem e na felicidade dos mo então, todos vivemos sob o temor de uma nova guerra. Pro-
outros estará o meu paraíso. E isto será a plenitude da minha me- virá este sentimento do temor de uma nova guerra ou será mais a
ta atingida. Um paraíso ocioso, egoísta e solitário, não é paraíso. recordação da última, tão recente? Estará este despertar religioso
Adeus, santo monte do Alverne, adeus... Retorno lá embaixo conexo à tão difusa psicose de guerra? A Terra está surgindo aos
ao meu árduo trabalho, no mundo azafamado. Tudo aqui embai- olhos do homem como qualquer coisa de infernal e inabitável,
xo é tempestade: egoísmo, ódio, agressão. A fúria das paixões então ele procura refúgio alhures, em Deus. E ei-lo a fitar o céu,
devasta esta pobre terra, que poderia ser um jardim. Aqui em- Cristo e os Santos, em outro mundo. E à Terra, apontada pelo
baixo, o belo sonho vivido se torna utopia, e ao canto de Deus materialismo como paraíso imediato e seguro, mas que, de fato,
responde um grunhido feroz e satânico. Mudo é o espírito, extin- tornou-se um inferno, voltam-se as costas. Tal desespero impele
ta é a chama da fé e da esperança. Vive-se em um pressentimen- o homem a buscar a verdadeira vida alhures. É assim que as for-
to de catástrofe universal, sem que se saiba evitá-la. A terra está ças do mal colaboram para o triunfo das forças do bem.
enregelada sob um manto de dor. Nem mesmo o céu se vê mais Tudo isto é lógico, mas não termina aqui. O insucesso do
sorrir do fundo deste inferno, e a terra parece prestes a abrir-se, materialismo, com a falência das suas promessas, é clamoroso e
ávida por tragar o homem, que se tornou fera e criatura do mal. o atingiu em profundidade. Isto todos compreenderam. O mun-
Dentro de mim está a visão do real. do sente que o materialismo o traiu e o repudia. O mundo, pre-
Sim! O velho mundo realmente está no fim. É o fim deste cipitado na dor, viu o verdadeiro rosto de Satanás, antes oculto
mundo. Mas um outro surgirá dele. atrás das falsas promessas. E então? Eis aí o germe da reação e
Eu vi realmente a terra florir. o primeiro impulso em uma nova direção, no sentido oposto,
espiritual. É assim que a onda da vida, depois de uma descida
XII. CRISTO AVANÇA tão grande, volta a subir após atingir o fundo. O mal operado
pelo materialismo foi grande, mas o homem é livre e deve pro-
Depois de haver observado o fenômeno místico em um caso var para aprender. A lição foi dura e feriu a nossa carne. Não é
individual, observemos a sua dilatação no mundo da hora atual. fácil esquecer, quando se derramou sangue. Algo de imenso e
Todo período histórico possui a sua moda, que é a forma de novo deve maturar, porque Deus não nos fez sofrer em vão,
manifestação de suas atitudes mentais. A corrente dominante mas apenas para o nosso bem. As leis da vida querem que tudo
de nosso tempo tem sido o materialismo, com todas as suas rume enfim para o bem, que o mal se transforme em bem, nisto
consequências em todo campo. Como se explica hoje, no en- tudo respeitando o livre arbítrio humano.
tanto, que bem no meio desta corrente que tudo penetrou, nas- Que sucede, pois, hoje no mundo? Verifica-se uma inversão
ça entre nós a moda das paixões, dos milagres e, nas massas, de rota. Essa inversão se inicia nas massas da maneira mais
surja uma tão imprevista e difundida paixão de sentimento re- elementar: o sentimento religioso. Hoje, isto pode nos parecer
ligioso? Os fatos provam, pois, a tese por mim amplamente fanatismo. Mas, amanhã, subirá até aos mais evoluídos, até aos
sustentada há tempo, de que nós nos encontramos no ponto de dirigentes, que serão atraídos. Dar-se-á um refinamento no sen-
maior declive da onda involutiva, e que é justamente deste timento e na manifestação, haverá uma consolidação através da
ponto que se inicia a ascensão. Essa ascensão parece hoje ina- razão e da ciência, que, em forma bem mais evoluída, conferirá
creditável para quem enxerga apenas superficialmente, mas ela novo aspecto à humanidade. Essa renovação não pode provir
invadirá todo o horizonte de amanhã, configurando a realiza- dos dirigentes de hoje, porque eles não se encontram evoluídos
ção daquela ideia que parece utopia no momento e pela qual eu o bastante, em todos os campos, para poder assumir a direção
luto: ―A Nova Civilização do Terceiro Milênio‖. de uma renovação do mundo no sentido espiritual. A renovação
Como é possível que hoje, em pleno materialismo, assista- se inicia naturalmente pelas multidões, em forma primitiva,
mos à intensificação de movimentos religiosos de massas? É como primitivas são estas também. Ela se comporta como a
difícil provocá-los artificialmente desta maneira. Eles são es- maré, como uma inundação que sobe lentamente, em silêncio,
pontâneos. Eles não obedecem a nenhum comando de dirigen- invadindo tudo, sem alarido, sem propaganda, sem armas nem
tes humanos. As leis da vida seguem um plano lógico e entram conflitos, mas sempre subindo. Não provém, como habitual-
em função no momento adequado, sem se preocuparem com mente, do exterior, de coações, partidos, hierarquias ou classes
longas explicações, visando apenas conseguir os seus objeti- dirigentes; não é fundamentada em meios econômicos nem ori-
118 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
entada pela vontade humana. É de dentro que ela provém, das Tudo isto parece irrealizável hoje. No entanto o mundo está
almas, de uma necessidade instintiva, de uma ordem de Deus, reduzido a apenas duas ou três grandes unidades. O fato destas
que fala tacitamente aos corações e os arrasta. Suas vias e mé- se armarem para destruir-se mutuamente prova que elas não
todos estão invertidos, nos antípodas dos humanos ora vigentes. podem deixar de decidir a supremacia absoluta do mundo, em
É estranho! Essa maré crescente do bem é mantida e impeli- uma fatal pugna eliminatória pelo último campeonato. Isto trará
da pelos impulsos do mal! A fase materialista gerou um espírito a unidade e, portanto, o fim das guerras. A unidade não pode
de luta. O princípio egoístico em que se baseia é cisão satânica e ser conseguida por pacifismos teóricos ou desarmamentos si-
acarreta, implícita no sistema, uma crescente e contínua destrui- mulados, mas somente pela vitória final de um só, escolhido
ção, que irremediavelmente o leva para o desmoronamento final, pela vida através da seleção natural, que se efetua por intermé-
única solução. O conflito humano entre ideias e interesses é hoje dio da luta sem piedade; seleção de apenas um, biologicamente
tão intenso, que a vida não pode mais suportá-lo, o que torna fa- escolhido como o mais cotado das qualidades necessárias, que
tal ele explodir e, com isto, resolver-se e exaurir-se. O homem demonstre nas provas ser o mais capaz. Com isto, a era dos
não aguenta mais. Daí a revolta. No fundo da atual descida invo- conflitos, depois de um terrível crescendo, exaurir-se-á e a nova
lutiva da onda histórica há um vértice negativo, um ponto críti- era poderá então nascer, a era da harmonia e colaboração, a no-
co, de máxima tensão, em que o edifício de forças, formado se- va era do conhecimento e do espírito.
gundo aquele sistema, em direção separatista-destrucionista, não Todas as energias do mundo, demográficas, bélicas e eco-
pode deixar de precipitar-se e desmoronar fragorosamente. A nômicas, giram em torno destes princípios. Toda raça, toda na-
ressurreição em direção à vida, que não pode acabar, está implí- ção serve a estes princípios de acordo com a própria forma. No
cita e é fatal. Eis aonde vai terminar este primeiro sintoma atual entanto a ideia fundamental, que avança em meio a tão diferen-
do despertar instintivo do sentimento religioso das massas. tes processos e manifestações exteriores, é o retorno de Cristo e
Homens e governos, toda a autoridade humana na Terra, fo- a verdadeira atuação do evangelho na Terra. Até agora, tem ha-
ram até agora, em geral, prevalentemente egoístas. A luta do- vido aí mais pregação e teoria do que prática, mas Cristo avan-
minante pesou sobre eles, exigindo-lhes que pensassem antes ça. Por este motivo, as primeiras manifestações se dão como
na própria defesa. Em todo campo, mesmo espiritualmente, a expressão religiosa das multidões. Estes movimentos religiosos
vida teve que forçosamente basear-se na luta e na imposição. populares constituem o primeiro e verdadeiro sintoma do futu-
De resto, as multidões eram um verdadeiro rebanho inconsci- ro. As próprias forças do mal são utilizadas pela vida para este
ente, e se fazia mister não só ensiná-las, mas igualmente im- retorno de Cristo. Ele se encontra no centro da nova civilização;
por-lhes aquilo que deveriam crer, pensar e fazer, sem direito a é a grande potência da nossa ascensão humana. Ele é o princí-
juízo, porque este levaria à anarquia. A necessidade de unidade pio do amor que concretizará a nova unidade. Esta não será
implica a sujeição de consciências em todo campo. Não se po- apenas de diretivas sociais e interesses, mas também de fé e re-
dia pretender uma ação por convicção da parte de massas inca- ligiões. Em Cristo, meta final, exaurir-se-ão e se extinguirão
pazes de possuir outro valor senão os do ventre e do sexo. todos os atuais conflitos humanos. Da tumba do materialismo,
Mas, hoje, o homem começa a procurar compreender, queren- Cristo fará ressurgir na humanidade, com Ele, a nova luz da
do entender por si. Diante da mentalidade moderna, que está percepção e consciência espiritual. A grande força que faz pres-
mais apta a funcionar por persuasão espontânea do que por são através de tantos conflitos atuais, para resolvê-los e vencê-
aceitação obrigatória, perde cada vez mais valor o princípio de los, é Cristo. Ele inspira alguns elementos isolados, mais pró-
autoridade, que já foi útil uma vez, mas pode ser prejudicial ximos a Ele, e os faz falar. Ele fala no instinto das massas, ori-
agora. Quem, no entanto, poderá coagir os dirigentes – instin- entando-as de maneira inesperada para novas formas de consci-
tivamente levados a repousar nas suas posições de comando, ência. A vida não pode deixar de responder ao apelo de Cristo.
tão trabalhosamente conquistadas – senão a troante voz da vi- O mundo sabe que, entre os homens, não pode haver um salva-
da, que investe contra eles, falando através das multidões? Es- dor e o espera do céu. E o Cristo libertador se aproxima. Clama
sa voz os perturba, mas como poderia falar de outra maneira a por Ele o desesperado grito de dor da humanidade dilacerada,
vida, se as outras portas estão fechadas? Só então eles, para igualada que está no sofrimento, sem distinção de classes, cre-
salvar as próprias posições, procuram as reparações, obedecem dos ou de raça. Já se abrem as vias espirituais para Sua presen-
e se modernizam. Os dirigentes são assim conduzidos pela vi- ça entre nós. Tudo está pronto e evidente nos eventos, e não há
da, que tudo dirige. Desse modo, tudo se move, também eles, quem possa pará-los. Tudo, mesmo o mal, abre o caminho para
ainda que por último, e a vida avança. Ele. Esperemos com alegria a final e fatal apoteose do bem.
O homem desperta hoje, através da dor, para uma nova ma-
turidade. Ai de quem não se dá conta disto! Não se resiste ao XIII. UMA ESTÁTUA SE MOVE
crescimento do espírito, centro da vida. O ideal dos dirigentes, (Santa Maria dos Anjos - Assis, 14 de março de 1948).
em qualquer campo do passado, foi a vitória sobre outros seres
humanos por meio de rivalidades, lutas e superações sem fim. Precisemos agora melhor as nossas observações, localizan-
O herói da raça foi o guerreiro agressivo, o ideal foi a conquis- do-as em um caso particular24. Quando acontece um fenômeno
ta, a grandeza consistiu no domínio pela sujeição. Harmonia e reconhecido como milagroso, todos acorrem para ver e julgar.
cooperação no mundo eram inconcebíveis na prática, uma uto- Um caso fora do comum, que parece situado além dos limites
pia. Estamos hoje em uma grande reviravolta, na qual o ho- ordinários das leis da vida, nos chama a atenção para o sobrena-
mem, cansado de suportar os efeitos coletivos da sua universal tural. Frente ao extraordinário, somos levados a procurar a so-
ferocidade, conceberá um novo ideal, biologicamente mais lução interpretativa que mais corresponde à nossa própria for-
rendoso. O seu herói não será mais um imperialista como Júlio ma mental, instintos e necessidades, mas, às vezes, também aos
César, Carlos Magno, Napoleão, mas sim aquele que, conce- interesses coletivos, e não só individuais. Nesta interpretação
bendo o mundo como uma unidade harmônica e cooperante, só influem, pois, não só a natureza de cada tipo biológico, mas
agir em função disso. Todavia não era possível atingir isto se- também a da raça e dos eventos de um particular momento his-
não hoje, quando o mundo tende a reunir-se sob um só gover- tórico, que podem fazer pressão sobre este juízo. Este, por con-
no, com os meios de comunicação multiplicando as relações e seguinte, é resultante também de fatores psicológicos interiores.
permitindo uma fusão antes impossível. Também se tendia à
unidade no passado, mas a excessiva involução da época não a 24
Este capítulo é extraído de um artigo do mesmo autor, publicado em
permitia senão por aproximação. ―La Nazione‖ de Florença, em 4 de agosto de 1948. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 119
Mas eis que, ao lado do juízo dos indivíduos e da coletivi- tes, visíveis de qualquer ponto, próximo ou distante, indepen-
dade, dado pela corrente formada pela maioria, existe também dentemente de fatores atmosféricos. Entramos então no campo
um outro: o juízo da ciência e da autoridade. Há indivíduos das ciências psicológicas. Mas estas também não conhecem a
diferenciados, que observam o fenômeno munidos de cultura, técnica de funcionamento da personalidade humana. Elas per-
de métodos racionais, de instrumentos científicos e também manecem no campo nervoso e central, com uma psicologia su-
de autoridade espiritual. Tal observador não é instintivo ou perficial, que não atinge as profundezas do espírito. Os termos
fanático. Ele procura, por todos os meios de que dispõe, ser psicose, alucinação etc., são mais palavras do que conceitos,
objetivo, buscando ser racional e prudente. É lógico, pois, que mais complicações do que explicações. Neste ponto então, jus-
o indivíduo e a multidão apelem, em última análise, para a ci- tamente quando se deveria começar a explicação científica do
ência e a autoridade. Mas isto não impede que os primeiros caso, como acima dizíamos, não se enxerga mais nada e pene-
influenciem estes últimos, fazendo pressão sobre eles na dire- tra-se em cheio no sobrenatural e miraculoso, no mistério
ção a que pende a psicologia coletiva do momento, a qual ar- inexplicável. O fenômeno, desta maneira, nos foge para o in-
rasta mais ou menos a ―todos‖. cognoscível, autorizando, desta maneira, os incréus a negá-lo.
Do lado oposto dessa tríplice ordem de espectadores, isto é, Ora, Deus nos deu a mente para usá-la com o raciocínio, e não
indivíduo, multidão e ciência-autoridade, está o fenômeno, seja para renunciá-la. E relegar o problema como inexplicável não
ele a aparição de Lourdes, de Fátima, ou outra qualquer. No é conclusão para a mente, mas sim fracasso. Não se quer com
caso presente, trata-se da enorme mole da estátua de Santa Ma- isso contrariar o ato de fé e de sentimento com que as massas,
ria dos Anjos. Move-se ou não se move? Para muitos, ela se por instinto e intuição, tudo resolvem de improviso, o que evita
move. Eis o que multidões vão ver para julgar, deduzir, como- cair no fanatismo – perigo oposto ao da incredulidade – crian-
ver-se, crer ou não, cada qual segundo o seu temperamento. do fatos e milagres por fantasia. Não queremos de modo ne-
Alguns realmente não veem. Por que eles não veem? Um mo- nhum renunciar à fé, mas apenas ser, sem ingenuidade nem fa-
vimento real da matéria, situado na matéria, todos veem se não natismos, verdadeiros crentes, isto é, acreditar em plena cons-
forem cegos. Mas quem tem olhos para ver, vê segundo preci- ciência e com a solidez da razão clara.
sas leis óticas. Parece, pois, que aqui deva intervir outro fator, Se o fenômeno indubitavelmente existe e se a sua objetiva
mais sutil, além das leis óticas. Qual é ele? realidade não está, como demonstram os controles, situada na
Já coligimos os vários elementos do fenômeno. Se este, por estátua, essa realidade deve estar em alguma outra parte. Ora, o
um lado, refere-se à matéria, por outro lado concerne às três milagre não é menor se a sua sede for transferida de um movi-
unidades psíquicas – a cada uma e a todas conjuntamente, com mento físico, espiritualmente sem nenhum valor, a um movi-
recíproca influência – que se encontram no extremo oposto do mento de almas. Aqui é o caso de se crer então que os apare-
próprio fenômeno. Este, assim, está situado, em parte, no cam- lhos sismográficos, se tivessem sido postos na alma das multi-
po das leis físicas e dinâmicas do mundo exterior ao homem e, dões ao invés de na estátua, teriam registrado oscilações nor-
em parte, no campo das leis psíquicas e espirituais do mundo mais. Mas a ciência não possui sismógrafos capazes de registrar
interior do próprio homem. Daí uma consequência importante. tais movimentos. Deve-se mesmo acreditar que as máquinas fo-
Quem observa apenas o lado físico, ignorando o psicológico, tográficas, se pudessem gravar a imagem psicológica espiritual
não vê mais do que a metade do fenômeno, e nada vê quando o da estátua na alma dos observadores, teriam registrado imagens
fenômeno físico, segundo o exame objetivo, é inexistente. bem diversas das estáticas. Mas tais máquinas fotográficas não
Façamos a aplicação. Diz-se que foram colocados apare- existem. É certo que, se o fenômeno não é solúvel no plano fí-
lhos sismográficos na estátua e que estes nada registraram. Es- sico, deve sê-lo no espiritual. É certo também que existem rea-
ta é a primeira fase, a mais elementar e material da observação. lidades interiores, sólidas e objetivas, poderosas e resistentes,
A Igreja, em tais fenômenos de sua jurisdição, de acordo com tanto quanto as exteriores, se não mais. Não é mais fácil mudar
a lógica, não recorre à hipótese do assim chamado sobrenatural a forma de uma montanha que a de um tipo de personalidade?
e miraculoso, senão depois de excluída toda e qualquer expli- Com tudo isto, exauridas todas as hipóteses científicas, a re-
cação que possa ser dada pelas leis normais da física, conheci- alidade objetiva do fenômeno permanece e se apoia em fatos
das por nós. A precedência cabe assim à ciência e ao seu mate- tão sólidos quanto os da realidade exterior, que parecem negá-
rialismo. Mas, se, por tal método de indagação, nada se encon- lo. Deixemos a matéria entregue às suas leis. O espírito não tem
tra nesta primeira e mais baixa ordem de fenômenos, então é necessidade dela, a não ser, quando muito, como ponto de refe-
evidente que, se não quisermos permanecer alheios, impõe-se rência para fixar a atenção e as ideias. Mas a causa, o motor,
que abandonemos a sabedoria da matéria, que nada mais pode não está na matéria, e sim no espírito. Em um artigo não é pos-
nos dar, e apelemos para a ciência do espírito, capaz de, com sível expor mais do que as conclusões. Neste caso, o movimen-
outros métodos, permitir-nos um juízo sobre uma outra ordem to não é de caráter físico, mas está repleto de sentimento e de
de fenômenos. A primeira observou, por todos os seus meios, significação moral, qualidades ignoradas na matéria.
se existe ou não uma oscilação física e se é possível, segundo Observa-se na estátua um arquejar doloroso, as mãos se es-
as suas fórmulas, dar uma explicação do fenômeno. Foram tendendo como por amor, enquanto a coroa e toda a matéria
exercidos controles de caráter elétrico e ótico, mas tanto os circunstante permanecem imóveis e indiferentes. O fenômeno,
eletroscópios, como os galvanômetros ou a imagem fotográfica pois, projeta-se também na matéria, mas está e tem origem nas
nada revelaram. Excluídas as causas físicas – elétricas, óticas almas, mesmo que estas tenham a necessidade de representá-lo
etc. – foram descartadas também as causas radiantes. Todo em uma realidade exterior, onde pode ser reconhecido e encon-
controle no sentido de descobrir uma causa física ou dinâmica trado. Toda a técnica das imagens corresponde a esta lei. O fe-
teve resultado negativo. Logo, na realidade objetiva, situada no nômeno não é menos extraordinário por isso. Ao contrário, jus-
mundo das leis cientificamente conhecidas, a estátua não se tamente por estar situado nas almas e revestir-se de um caráter
move. Para os aparelhos de registro, desprovidos do lado espi- espiritual, representa a via lógica e natural da comunicação do
ritual, que está na alma humana, o fenômeno não existe. Neste homem com as forças superiores da divindade. O fenômeno se
ponto, o fenômeno foge à ciência atual, que deve retirar-se, torna realmente miraculoso, quando pensamos que este contato
declarando a própria incompetência. das massas com Deus é tão poderoso e de tal ordem, que o mo-
Entramos agora, aqui, em um campo inteiramente diverso. vimento espiritual invade mesmo a matéria e a arrasta consigo.
A ilusão ótica também está excluída, tratando-se de um fenô- E é isto o que confere a esta, no fenômeno, a parte de efeito, e
meno coletivo e objetivo, de movimentos parciais e intermiten- não como se acreditou, a de causa.
120 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
As multidões acorrem, veem, choram, convertem-se. A que já não interessa mais qual seja a ideologia. Tanto isto é
matéria da estátua, de per si muda e inerte, modela-se assim verdade, que o conteúdo delas consiste apenas na mesma coi-
em uma forma de pensamento e exprime uma ideia superior sa: mentir, conquistar, dominar.
de santidade, de bondade e de fé. Esta ideia, que é viva nas De tudo isto nasceu uma extraordinária recrudescência da lu-
almas, torna viva a estátua inerte. Esta forma de vida a faz ta pela vida. O racionalismo mal disfarça a realidade bestial, em
mover-se por vias interiores, que podem mesmo chegar a que o lobo, não importa em que forma social, alia-se a outro lo-
atingir a solidez das leis físicas. Faz também com que ela fale, bo apenas porque a união faz a força, tornando mais fácil vencer
e a alma docemente ouve. Mas não é a estátua que fala. É a e pilhar. Formam-se, assim, as associações de interesse que
voz de Deus que se fez ouvir pelas almas, por vias interiores, mantém ligadas em unidades compostas algumas classes de in-
através de um meio sensório aparente, necessário para firmeza divíduos, não importando sua categoria ou tipo biológico, nem
e atenção dos espíritos habituados a perceber quase somente os objetivos aparentes apregoados ou o lugar na Terra onde tudo
os estímulos dos canais exteriores. Então a alma das multidões isto se passa. Essas diversas formas são aparências de um mes-
ouve a Mãe de Cristo dizer-lhe: ―Na hora tremenda que te afli- mo problema substancial, que é a luta, o ataque e a defesa, que
ge e que tu, no teu instinto, sentes aproximar-se pavorosa, eu se tornam mais fáceis se executados em grupo. Não importa,
aqui estou para te proteger com o meu amor. Vem a mim. Crê. pois, se esses agrupamentos possuem características e objetivos
Vem, eu te salvarei‖. Isto corresponde também aos profundos religiosos, econômicos, políticos etc. Se reduzirmos todas essas
instintos da vida, pois esta, nas horas apocalípticas, recorre às diversas formas à sua nua realidade biológica, então compreen-
ideias mães da estirpe e às forças biológicas salvadoras, que deremos que, atrás de todos estes princípios que deveriam edu-
não são destruidoras, como no homem-conquistador, mas sim car o indivíduo, está na realidade o homem, buscando submetê-
conservadoras, como na mulher-mãe. los a si mesmo e adaptá-los às suas necessidades, que são antes
Desta maneira inicia-se o colóquio entre Deus e as multi- de mais nada biológicas, isto é, de um animal que quer viver.
dões. Os dois interlocutores se falam e se aproximam cada vez Nesse estado de coisas, tendendo cada vez mais ao caos,
mais. É a hora histórica tremenda que aguça nas massas a sen- onde ―homo homini lupus‖26, em vão busca-se no mundo um
sibilidade para o divino. A tragédia está nas almas. O temor da poder, uma autoridade superior que restabeleça a disciplina,
aproximação dos sem Deus provoca, por natural lei biológica sem a qual não são possíveis a paz e o bem-estar. As nações
de reação, uma automática frente de resistência dos homens que procuram unir-se, como fazem os homens nas classes sociais,
estão ou estarão com Deus. Assim, pois, de acordo com o que com o fim de atacar e defender. Formar-se-á um espírito de
se é, vê-se ou não o fenômeno. Cada um de conformidade com grupo, não mais apenas de indivíduos, mas de nações, sólido
a própria alma. E isto é lógico, porque não se trata de uma visão porque utilitário. A psicologia da alcateia de lobos estender-se-
dos olhos, mas sim da alma. Só assim tudo se explica: tanto a á dos indivíduos aos povos, que se coalizarão em classes domi-
imobilidade física da estátua, como o seu movimento espiritual, nantes, como acontece antes no seio de qualquer nação. Os fe-
invisível para muitos, porque inexistente em sua alma. Explica- nômenos sociais são compreendidos apenas quando vistos pelo
se, desta maneira, como tais fenômenos, antes tão raros, verifi- que realmente são, isto é, fenômenos biológicos particulares.
cam-se repetidamente agora, nestes momentos tão calamitosos. Mas, ainda que as unidades em luta se tornem cada vez mais
Deixemos, pois, à matéria o que é da matéria, para dar assim ao vastas, isto não basta para formar um poder superior a todos,
espírito o que ao espírito pertence. E é no espírito que devemos sempre parciais e terrestres. Superior quer dizer melhor pela in-
venerar o milagre de Deus, que se faz sentir tangivelmente pre- teligência, capacidade e bondade. Isto existe no super-homem,
sente em momentos tão excepcionais. no homem de gênio, no herói, no santo. Mas estes são extre-
mamente escassos, portanto agem isolados, insuficientes para a
XIV. SINAIS DOS TEMPOS25 formação de um grupo, além disso não se coadunam com a psi-
cologia do domador, indispensável para a formação da alcateia
Lancemos o olhar em derredor. Hoje, em nosso mundo, de lobos, necessária para dominar. Mesmo que os materialistas
impera o materialismo, que, na prática, significa racionalismo, não saibam, porque não podem compreender (dado que essa é a
egoísmo, força bruta, destruição e dor, estados conexos e liga- psicologia do involuído), esta inteligência ou poder diretor cen-
dos entre si numa cadeia fatal, até ao fundo. Isto é natural, tral existe, mas não reside na Terra, por isso não é passível de
porque o materialismo representa a filosofia do involuído, que agressão nem destruição. Ela é Deus, ainda que a esta palavra
não sabe apelar senão para os instintos bestiais, pois que não tenhamos de dar apenas um sentido científico, de mente e von-
pode compreender mais do que isso. Ao materialismo se con- tade diretoras da vida. Não há motivo para desencorajamento se
trapõe o espiritualismo, que possui características opostas e falta a diretriz humana. Quando ela existe, em verdade é muito
pode ser denominado, quando elevado, a filosofia do evoluído. relativa. De resto, não faz falta e, na maioria das vezes, seria
Essas duas atitudes do pensamento humano se defrontam hoje, prejudicial, como vemos. Nem por isto a história é destituída de
no mundo, em luta desesperada, uma das formas da luta entre senso ou caminha ao acaso. Ainda que os chefes frequentemen-
o bem e o mal. E cada uma, consoante a própria natureza, põe- te nada saibam do pensamento de Deus, esse pensamento, que
se de um ou de outro lado. não se vê nem é acessível ao involuído rebelde e destruidor,
É evidente que, quando se fala de ideologias num período não deixa de guiar tudo, ainda que numa ação deletéria para es-
de materialismo – e nunca se falou tanto delas como hoje – isto te último, mas com finalidade de construir o bem.
não pode ser senão por espírito de mentira, que faz parte dos Quem vê em profundidade, onde o materialismo involuído
métodos do involuído. Outra interpretação não se pode dar à não alcança, não se alarma e diz: tende fé. O que quer que su-
propaganda de ideologias que hoje se observa, quando a subs- ceda, Deus tudo sabe e tudo orienta para o melhor. As iniquida-
tância que apoia a maior parte desses estandartes é bem dife- des são de superfície, visíveis apenas aí. Deus trabalha por bai-
rente: é a voracidade do lobo, é o mais desapiedado egoísmo, é xo, na intimidade das coisas, para ressurgir sempre contra todos
o espírito avassalador de domínio, seja do indivíduo, da famí- os assaltos. Por isso é verdade que a vida sempre vence a mor-
lia ou da nação. O pendor para mentir hoje está tão difundido, te. Se na profundeza está Deus, silencioso e perene criador, na
superfície está o mal, rumoroso, destruidor e encerrado no tem-
25
Este capítulo e alguns dos seguintes foram, pelo mesmo autor, po. O mal naturalmente se contradiz, e nenhuma psicologia é
tratados em artigos publicados em 1948-49, em revistas italianas e
26
estrangeiras. (N. do A.) ―O homem é o lobo do homem‖. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 121
mais contraditória do que a racionalista moderna. Hoje acredi- que se devem despojar para serem dadas em pasto. O sistema
ta-se ser possível chegar à posse através da destruição, à alegria da luta de classes é o mais antiprodutivo e pode transformar-se
pela semeadura da dor, ao bem-estar por intermédio da guerra e em verdadeiro parasitismo. Arrisca-se, com ela, a chegar a uma
do ódio de classe. Mas, para possuir, é necessário ordem e dis- reação ou, realmente pior, à destruição do trabalhador – pacífi-
ciplina, em vez de rebeldia. Para progredir, é necessária a sábia co produtor – e, consequentemente, de todo o bem-estar. O sis-
obra construtora dos melhores, e não dos piores, dos pacíficos, tema está ligado à necessidade de ampliar cada vez mais a área
e não dos delinquentes; é imprescindível paz e segurança. Mas de destruição em que ele trabalha. Como as guerras, esse siste-
como é possível enriquecer por meio de agressão e furto recí- ma está unido à força e à necessidade de conquistas sempre no-
procos? Este processo resseca as fontes de toda riqueza, que só vas que o justifiquem. Essa necessidade está implícita na pró-
pode nascer do trabalho pacífico e da confiança. Não é mais ló- pria natureza do sistema e, por isso, o tornará cada vez mais fe-
gico aspirar ao bem-estar por uma elevação geral do nível eco- roz e agressivo no exterior, férreo e desapiedado no interior, is-
nômico através de um trabalho concorde do que esperar melho- to é, antissocial e antivital, levando-o a um desequilíbrio bioló-
ramentos de uma destruição alternada e improdutiva? As armas gico que lhe acarretará, em um determinado ponto, fatalmente,
preparam o deserto e a morte, não o bem-estar e a vida. uma ruptura e a ruína. A espantosa irracionalidade do raciona-
Remedeia-se, então, pedindo um esforço que visa um paraí- lismo moderno não alcançou esta verdade elementar: opressão,
so futuro, não aquele apregoado e utópico dos céus, mas sim extorsão, violência, são forças negativas, que, por isso, se des-
real, na terra. E se escarnece do paraíso celeste, conquistado por troem e jamais poderão construir, porque essa função construti-
esta realidade. Mas este tem pelo menos a vantagem de ser uma va só se pode encontrar nas forças positivas, que são a convic-
promessa sem controle, porque se mantém no outro mundo, en- ção, a colaboração, a confiança. O racionalismo não compreen-
quanto já se via que o paraíso terrestre ninguém conseguia deu que o materialismo é um impulso negativo, que tende à
cumprir. Por este motivo, poucos são ainda os que creem em destruição de tudo, inclusive de quem o pratica. É verdade que
fenômenos semelhantes. Embora a ciência e o progresso te- ele acredita poder prescindir da alma, negando-lhe a existência.
nham caminhado, a dor, se não cresceu, pelo menos não dimi- Mas o homem permanece um ser com alma. Ele não é um nú-
nuiu. Que descrédito! Se tais promessas materialistas do paraíso mero, uma máquina de produção, um cálculo econômico. É um
terrestre foram logo compreendidas e aceitas, a razão está em ser humano. As construções do racionalismo moderno são
que elas se dirigem aos instintos animais do homem. A via, a construções contra as quais a vida se rebela. E a vida esfranga-
princípio, como para todas as vias do mal, é fácil. Mas esses lha tudo que lhe constitua obstáculo. Certas leis que represen-
instintos não raciocinam e exigem satisfação. Desde que esta tam o pensamento e a vontade de Deus não podem ser plasma-
falte, verifica-se a revolta. O animal morde quando se vê mal- das por nenhum poder humano.
tratado, e o involuído, que é presa do materialismo, é feroz. É necessário que o espiritualista veja todos os aspectos da
Uma fé que origine esperança em qualquer coisa que supere vida e não se limite à repetição estereotipada das fórmulas da
a miséria cotidiana e a insatisfação humana e salve o homem da sua religião ou grupo, quaisquer sejam elas. Existem hoje males
desesperação das más horas, é necessária a ele. A fé possui essa gigantescos nesta nossa época convulsionada, são problemas
função biológica de defesa, de resistência e de recuperação. É formidáveis, mas eles já foram denunciados, sentidos, investiga-
uma verdadeira força para a luta, mesmo material. Destruir essa dos e enfrentados com vigor e nova fé. O materialismo é um as-
fé é perigoso, porque então se desarma a vida dentro da dor. Que salto que invade toda a nossa vida, opondo-se às forças do espí-
meios fornece o materialismo que possam compensar a perda de rito. Mas esse assalto serve justamente para despertá-lo e desen-
tais defesas? Que dizer, então, quando a compensação oferecida, volvê-lo. Jamais nasce tanta fé como nos tempos de descrença,
o paraíso terrestre, animalesco e vegetativo, não se realiza mais nem se formam tantos mártires e heróis como sob a opressão. Os
e, mesmo que se verifique, a alma, como é natural, não se en- dois movimentos, pois, de autodestruição do materialismo e de
contra satisfeita com ele e procura outro? Mesmo atingindo o reação do espírito, concorrem para a mesma meta.
bem-estar material, sabe-se que nem só de pão vive o homem. É Não se aflijam os bons, porque são os mais fortes. Carlyle
difícil saciar o homem, ainda que lhe dando todo o bem-estar. dizia no Sintomas dos Tempos: ―A verdade é que quem possui
Quando, pois, além disso, dissemina-se a luta e, por conseguin- uma sabedoria imensa, uma verdade espiritual ainda desconhe-
te, a dor, associando-se a uma filosofia ateia, o absurdo é evi- cida, é mais forte não do que dez mil homens, mas sim do que
dente. Sim, porque nunca é tão necessária a fé como na dor. todos os homens que não a possuem. Ele os supera com uma
Quem semeia a dor, ainda que seja ateu, justamente porque se- força eterna, angélica, como que empunhando uma espada for-
meia a dor, compele a uma fé em um paraíso situado algures, jada na harmonia dos céus, uma espada à qual não poderá efi-
porque, sem uma esperança de felicidade, cá ou lá, não se vive. cazmente resistir uma couraça ou uma torre de bronze‖.
Isto é instinto. Quem, pois, destrói Deus, para imperar com a É necessário que o evoluído, que é mais inteligente, observe
agressão, abre as vias do céu, que conduzem a Deus. Somente a as vias do mal e os métodos do involuído. Este, para dominar,
ingenuidade do involuído pode acreditar que uma fé se possa permanece encerrado em um sistema que o torna um projétil
destruir com a força. Oprimindo-se, cria-se a fé, porque esta sa- lançado para a autodestruição. A organização dos involuídos,
tisfaz a ânsia de pregar. Ouvi dizer: a este as coisas na terra de- para manter-se com a força, que é o seu meio, atrai e deve cer-
vem ter andado mal, para que se tenha voltado com tanto fervor car-se dos piores elementos da sociedade, destituídos de inteli-
a Deus. Nesse erro caíram os imperadores romanos, perseguindo gência, de cultura e de piedade. Que rendimento se pode obter
os primeiros cristãos, e caem os perseguidores de todos os tem- deles? Tal organização deve temer o despertar do senso de hu-
pos. Para cada mártir caído, nascem cem novos crentes. manidade que está na alma deles, e não o embrutecimento que
Mas a reação das massas pode assumir a direção oposta possa destruir a alma. O nosso tempo procura fabricar homens
quando se trata de involuídos. A dor pode, ao invés de elevar, em série, o homem-máquina para produção (o grande produto
embrutecer. Neste caso costuma-se atirar-lhes um cibo de ódio, da moderna técnica científica), no qual não é o espírito que co-
e a posição de domínio se salva, instigando-os contra uma presa manda a máquina para os seus fins superiores, mas é a máquina
humana cada vez maior. É um pedaço de pão que se dá a ex- que sujeita o espírito. É necessário atentar para esse homem,
pensas alheias, como primeira realização terrestre do paraíso que é imagem de Deus, ligado por Satanás à máquina. Seguin-
prometido. Porém a via é perigosa. Como todas as vias do mal, do Satanás, o mundo moderno conseguiria inverter este meio de
é fácil apenas no inicio, transformando-se em catastrófica no libertação, tornando-o um instrumento de escravidão. A vida
fim. Ela torna necessária uma inexaurível coorte de vítimas, possui limites de resistência e incríveis meios de reação. Quan-
122 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
tas almas agonizam, asfixiadas pelo materialismo moderno? fatalmente levado à autodestruição pelo seu próprio sistema não
Qual é o seu limite de resistência? Quando se despedaçarão elas é apenas filosófica, mas sim uma realidade prática. Satanás,
no desespero? E que reação nascerá deste desespero? Eis os mesmo quando opera racional e cientificamente, trabalha sem-
males recentes da história, o imponderável que se negligencia, a pre em perda, ainda que dispondo de todos os meios de riqueza,
invisível ação de Deus! As dores se somam, montanhas de mor- astúcia e força. No balanço final, a colheita dos esforços des-
tes se acumulam, a vida ulula desesperada, porque foi traída pendidos é uma traição. Satanás não paga senão em moeda fal-
com as promessas do paraíso da ciência materialista. Quando sa. Isto é dado pelo seu sistema. Apostar no mal é um mau ne-
irromperá o equilíbrio? É a vida que dirige a história, e nin- gócio. Este é o calcanhar de Aquiles do mundo moderno, ver-
guém pode resistir à vontade da vida, que não quer morrer. Ela dadeiro colosso de pés de barro. O complexo racionalismo do
não morreu no tempo e não pode morrer agora. A força bruta nosso tempo está excessivamente carregado de cultura e por
tenta conter cada vez mais a maré da reação. Mas esta sobe, so- demais encerrado na mecânica da sua lógica para compreender
be tácita e constante. Em um dado momento atravessará e rom- uma causa tão simples. Apoiar o próprio poder nos involuídos;
perá os diques. Será a destruição apocalíptica da fase atual. Ho- apostar nos piores, nos extratos inferiores da sociedade, iludin-
je, estamos na era da mitra e da bomba atômica, na era da des- do-os que sejam os senhores, quando antes deveriam ser educa-
truição. Uma certa percentagem de destruição e de mortes justi- dos para aquilo que não sabem fazer; não ter em defesa senão
fica-se com a vitória, que pode transformar a carnificina em sa- mandíbulas de lobo e procurar as soluções do problema no ven-
cro holocausto. Mas, além de um certo limite, frente a frente tre aberto do próximo – isto tudo não pode acarretar senão a ru-
com a catástrofe, não há idealização de morte e martírio que va- ína. A salvação e o futuro só podem estar no oposto disso, isto
lha. A morte aparece, então, na sua verdadeira e horrenda luz, e é, no apoio aos evoluídos, na aposta nos melhores, nas camadas
a vida se rebela; além de um dado limite, não há vitória que não econômica mas sim biologicamente mais avançadas, que
possa compensar e justificar as perdas, nem tornar razoável e têm consciência do duro encargo a assumir; em ter como defesa
útil o sacrifício. Este então se torna assassínio ou suicídio. Ora, a justiça e procurar a solução dos problemas no bem do próxi-
quando um sistema, para manter-se, coliga-se à necessidade de mo. Tudo isto é assim porque nenhum homem, por mais pode-
um sacrifício crescente, o limite da destruição deve cedo ou roso que seja na Terra, pode impedir, com uma situação inver-
tarde chegar. Refazer os passos não é mais possível, porque se- tida e artificial, que a vida queira e busque uma solução dada
ria necessário tragar toda a dor e morte semeadas, neutralizan- pelo tipo mais inteligente, mais trabalhador e produtivo, mais
do-se com renovada alegria e vida. Faz-se mister, pois, avançar, apto a colaborar, confraternizando em sociedade.
e avançar sempre para o abismo. É terrível não se poder parar, Concluindo, saudamos, na forma do pensamento e da ação
não se poder retroceder. Nas vias do mal, como nas do bem, que o materialismo nos deu, um instrumento de Deus para nos
marcha-se sempre até atingir o fundo permitido pelo sistema, e abrir as portas da nova civilização do espírito.
o progresso em tal caminho se faz cada vez mais perigoso, difí-
cil e catastrófico. O método implica uma função destrutiva, e a XV. O ATUAL MOMENTO HISTÓRICO
destruição chama a destruição. ―Abyssus abyssum invocat‖27.
Cada vez mais. É um afundamento satânico de tudo. Olhemos mais uma vez em nosso derredor. No atual mo-
E para que serve tudo isto? Deus o sabe, e a vida o expres- mento histórico existem dois estados: um aparente, superficial
sará. Certamente, o presente serve para forjar o futuro, pois, de e transitório, que é visto por todos e constitui a base de julga-
outro modo, não poderá ter sentido. E é para isto que serve, mento da maioria; outro real e profundo, dado pelo eterno de-
mesmo quando, na mente dos homens, ele pareça feito unica- senvolvimento das coisas. O primeiro é de destruição, miséria,
mente para si ou para destruir o futuro. De tantas imensas cons- mentira e ódio – um estado bestial, involuído. Aí, os melhores,
truções ideológicas, sociais, econômicas e religiosas de hoje, que, por serem os mais evoluídos, conquistaram os valores
talvez não reste senão algo de secundário, atualmente ainda não mais elevados da vida – que não são os materiais, única meta
previsto na verdade. São muitos os secretos fins da história, ig- dos involuídos, mas sim os espirituais, bens preciosos e pode-
norados pelos homens. A vida revoltar-se-á contra a máquina e rosos – são hoje perseguidos e deslocados pelos piores. Hoje é
buscará viver livre no espírito. A ciência com que a orientação exatamente a hora do mal, cuja característica é a negação e a
materialista quis trair o mundo inverter-se-á para demonstrar a subversão. Assim, os melhores se tornaram perseguidos, quase
alma e Deus e nos guiar, pelas vias do espírito, para a evolução. que obrigados a esconder-se, enquanto os piores conquistaram
Desprovido da coesão resultante dos ideais e metas superiores, tudo. Mas é natural que os revolvimentos necessários para pas-
o atual movimento materialista, traído pela força e pela riqueza sar de um estado de equilíbrio a outro, evolutivamente superi-
em que acredita, desagregar-se-á. Homens que não acreditam or, sejam também convulsivos. É natural que, para passar de
no sacrifício e no amor fraterno – valores que levam à compen- um estado de legalidade ao de uma legalidade mais completa e
sação – saltarão à garganta de outros homens idênticos. O utili- perfeita, seja necessário atravessar uma fase de ilegalidade,
tarismo conduz à traição. Homens e povos criam no seu pensa- que depois se refaz e coordena em uma nova ordem. Também
mento e ação um sistema de forças que, depois, os domina. Es- durante a Revolução Francesa, que teve os seus fins históricos
se sistema é uma nêmese que pesa sobre o mundo moderno. Foi e sociais, verificou-se a ascensão da escória. Mas, visto não
desejado e, daí por diante, é fatal, até o fundo. As religiões do corresponder a um valor intrínseco, é uma posição falsa e, por
ódio organizado, o método da destruição científica, uma seme- conseguinte, não pode durar. Então, em qualquer revolução, ou
lhante psicologia absorvida e vivida em ação por tanto tempo, seus filhos demonstram estar à altura da posição conquistada,
devem produzir os seus frutos, sem possibilidade de evasão. ou é a própria revolução que os mata, como matou Robespierre
Até quando a força bruta das armas bastará para suprir a fal- e seus companheiros na França. Mas o que, inversamente, en-
ta de inteligência para compreender que a vida social não se contramos em profundidade? Toda a verdade, pela lei do dua-
pode realizar sem confiança e colaboração? Um sistema basea- lismo universal, não está completa se não for vista em seus
do na violência não pode passar de instrumento de destruição, dois temas antitéticos e contraditórios, dos quais ela se compõe
sem nenhum valor como meio construtivo, e deve, pois, fatal- na totalidade. No outro extremo do fenômeno histórico atual,
mente dissolver-se no caos. Na prática, isto significar uma per- que aparece na superfície, temos um estado oposto, de prepa-
da progressiva. Como se pode ver aqui, a teoria de que o mal é ração subterrânea, de espera e maturação. Assim como se diz
que sob a neve está o pão, também é sob a tempestade que es-
27
―Um abismo atrai outro‖. (N. do T.) tão amadurecendo os germes de uma nova civilização. Para
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 123
compreender isto, seria necessário conhecer não só as leis his- ra o observador superficial, hoje dominante, é, pois, exatamente
tóricas mas também as leis biológicas, pois delas a história o mais verossímil e lógico para o observador profundo. Por isso
humana não é mais do que apenas uma parte. Quem compre- nos encontramos precisamente em uma noite que precede um
endeu essas leis não discute mais com os homens, que, em ge- novo dia, pois, na vida, é exatamente a noite que prepara o dia; é
ral, não sabem o que fazem nem por que fazem. Discute, isto a morte que anuncia o renascimento; é o mal, a destruição e o
sim, com as leis biológicas que os movem, leis às quais eles, martírio que anunciam o bem, a construção e o espírito. Encon-
que tanto creem comandar, não fazem mais do que obedecer, tramo-nos no fundo do vale da onda histórica, que deve necessa-
movidos, mais ou menos lúcidos e conscientes, pelos instintos, riamente, depois, reascender, como tornam a subir todas as on-
que são as forças por meio das quais as leis os manobram. Isto das. Conclusão: caminhamos para uma nova civilização do espí-
porque o caminho da história não se faz ao acaso, não está en- rito, para a nova civilização do Terceiro Milênio.
tregue ao capricho ou vontade dos povos e muito menos de Trata-se agora de saber como se conseguirá essa nova civi-
seus dirigentes. Quem faz a história são as correntes de pensa- lização. Naturalmente, porque é nova, ela deverá estar, por ra-
mento coletivo, que são inconscientemente sentidas e expressas zões de equilíbrio e compensação, nos antípodas do que hoje
pelas massas. E os dirigentes serão tanto mais capazes quanto denominamos a nossa civilização. Não se trata de retoques do
melhor souberem sentir essas correntes, interpretá-las, exprimi- que é velho, de novas ordenações políticas, com a habitual
las, encarná-las. Mas, se eles quiserem seguir outra via, substi- substituição, para vantagem de novas figuras ou classes; não se
tuindo-se às profundas impulsões biológicas, para desviá-las do trata de continuar, mas sim de iniciar outra, com princípios di-
caminho, elas se rebelarão e se libertarão deles como de um ferentes. Expô-los aqui é tarefa muito grande para um capítulo.
trambolho. O poder, para manter-se, não pode possuir finalida- Bastam-nos alguns acenos. Os atuais valores que se projetam
des egoísticas individuais ou de classe, visando domínio, deve acima do nível comum pertencem mais ao plano animal do que
representar em vez disso uma função biológica e ser compreen- ao plano que deveria ser humano. O homem atual é involuído, é
dido como uma missão a serviço da vida, caso contrário ela re- mais animal do que homem. Hoje vale a força e a astúcia. A
agirá, fazendo qualquer poder humano desmoronar. honestidade e o mérito, valores superiores, têm importância
Eis então que, no fundo das coisas, há algo bem diferente; mínima. A bondade e a inteligência voltada para o bem são as
estão aí o pensamento e a vontade diretora de Deus, que não qualidades menos úteis na vida social de hoje e chegam a ser
são apenas transcendentes nos céus, mas também imanentes em mesmo nocivas. Hoje, a importância é medida pela capacidade
nós e em nossas coisas, presentes com a sua incessante obra de prejudicar ou pela utilidade extraída, e não pelo valor pro-
criadora. Na direção da história há, portanto, uma outra obra, priamente . Isto acontece justamente porque a balança dos juí-
bem diferente da pobre e ignorante sapiência humana. Há a sa- zos humanos, mais que de um ser superior, é a de um animal.
bedoria de Deus. Que isto seja de grande conforto aos melho- Hoje, o poder não é compreendido como uma função biológica,
res, mais evoluídos, hoje expulsos e esmagados. cumprindo missão a serviço do povo, mas sim como uma con-
Quem está habituado a olhar com humildade e amor, pedin- quista com objetivos de vantagem individual, como qualquer
do e entregando-se a esse pensamento divino que tudo rege, outro meio. A seleção biológica de um tal tipo, tido como o
constata experimentalmente a existência de uma lei de ordem e mais forte, corresponde a estados primitivos, involuídos. A evo-
de amor que está no centro das coisas, que as alimenta e as lução impõe a passagem para formas de luta e de seleção bioló-
mantém em vida, mesmo deixando que na periferia, na forma e gica mais elevadas, dirigidas à formação de um tipo menos in-
na matéria, dominem a desordem e o mal. Assim como nas consciente, menos egoisticamente isolado. A vida caminha para
grandes tempestades oceânicas, a poucos metros abaixo da su- a formação de grandes unidades coletivas humanas, em que é
perfície das águas, observa-se a calma, também verifica-se na necessário compreensão e colaboração, e não mais subjugação
história, sob o grande rumor das revoluções, da queda das clas- e proveito. A época do senhor e do escravo já passou. Marcha-
ses sociais e dos tronos, do desmoronamento das enormes cons- se para novas formas de liberdade, que, porém, não significam,
truções políticas, a calma das grandes leis da vida, que, lentas como acredita o homem de hoje, abuso e licença, mas sim uma
mas seguras, vão preparando o futuro. Futuro garantido, como nova disciplina, mais elevada, uma ordem mais férrea e uma
garantida é a primavera, que deve (pelas leis da vida) trazer consciência capaz de compreender a utilidade disto e obedecer,
consigo a germinação das novas massas. Não podemos, de fato, ainda que seja por espírito utilitário.
presumir que a continuação da vida seja confiada aos homens e Hoje se crê no número. Basta uma maioria, não importa de
aos seus expedientes. E, se ela sempre triunfou e triunfa sem- que elementos, para formar uma verdade, um direito, para esta-
pre, como o demonstra o fato de haver chegado até aqui, isto se belecer uma norma de vida, uma lei. Ora, como pode a quanti-
dá justamente porque ela é protegida por essa sabedoria divina, dade fazer a qualidade? Não podemos formar nem ao menos
que a guia, a nutre e a mantém. uma única unidade reunindo um número de zeros, mesmo que
Abordemos agora a parte mais importante da questão. O que seja infinito. Isto é elementar. Hoje, a matéria é tudo. Ela é
é que a sabedoria das leis biológicas e, por conseguinte, tam- apenas meio, mas foi elevada a fim. A riqueza é o objetivo da
bém históricas e sociais nos está preparando para o futuro? A vida. Troca-se o continente pelo conteúdo. O trabalho material
história jamais caminhou uniformemente, mas sempre por vale mais do que o intelectual. O que decide na difusão de uma
ações e reações, por impulsos e contrachoques, progredindo no ideia não é o seu valor, mas a posse de meios materiais que po-
tempo não como um rio canalizado em margens feitas pelo ho- dem difundi-las. As opiniões fabricam-se mecanicamente. Bas-
mem, mas como um curso d‘água que, deixado livremente va- ta possuir a imprensa e o radio. A grande floração de meios de
gar pela planície, por ela serpenteia da maneira que o seu dina- que se enriquece a nossa pseudocivilização mecânica e utilitá-
mismo lhe permite. Este processo de ação e reação contraria o ria, nos fez esquecer o melhor. Eles absorveram toda a nossa
que presume o cálculo das probabilidades, de modo que ama- atenção, sujeitaram o nosso espírito, invadiram tudo, substi-
nhã pode suceder o contrário de hoje. Essa é a lei da vida, que tuindo-se a tudo e pretendendo bastar a tudo. Mas já sentimos o
não está baseada na continuação indefinida de estados idênticos vazio terrível que está em nós, a carência de diretivas, porque
e constantes, mas sim na compensação de contrários e no seu sentimos cada vez mais que somos incapazes de dirigir esses
equilíbrio. Sabemos que a oscilação entre contrários, isto é, en- meios, sempre mais poderosos. E o perigo é grave, porque, se
tre um extremo positivo e um extremo negativo, em que cada não soubermos dirigi-los com sabedoria, eles constituirão, em
fenômeno se inverte no seu oposto, é a base da luta, da evolução nossas mãos, um instrumento de destruição universal. Isto o
e da própria percepção. O fato mais inverossímil e fantasioso pa- mundo já viu e fez nestes anos. Basta continuar um pouco ainda
124 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
nesta loucura, e a humanidade será destruída ou, pelo menos, que será amanhã) ao seio de uma nova civilização, de tipo di-
reduzida ao estado de barbárie. Dir-se-á, porém, que, para al- ferente. A nossa já atingiu os seus fins. A nova atingirá outros,
cançar isto, urge um novo homem, consciente, justo, o que foi e mais elevados e complexos, servindo-se dos produtos do traba-
será sempre uma utopia. Ora, a história nos mostra com fre- lho executado pelo nosso tempo. A vida hoje diz: basta por es-
quência que é justamente a utopia que será a verdade de ama- te lado. E acrescenta: operemos a compensação, completando
nhã. Um exemplo disso é o cristianismo. Além do mais, há um o edifício pelo outro lado. Um vazio tremendo se formou exa-
fato positivo: a evolução. É necessário evoluir. Essa é a lei da tamente do lado espiritual. É, na multidão, uma atrofia perigo-
vida, que sempre fez pressão no íntimo das coisas, não só para sa para o equilíbrio, uma carência patológica que urge remedi-
se manifestar, mas também para subir a manifestações sempre ar. E as forças da vida se apressam hoje a preencher a falha,
mais perfeitas. Luta-se tanto, sofre-se e experimenta-se, mas convergindo a sua ação precisamente nessa direção, semelhan-
tudo por esse motivo. O amanhã deve, por lei, superar o presen- temente ao que fazem na defesa orgânica. Essas forças se pro-
te. Ademais, o homem atual alcançou um ponto crítico em que, põem agora a construir o novo homem do espírito. Atualmente
não sendo possível continuar com os velhos sistemas, impõe-se nos encontramos na profunda noite da matéria. O mundo está
uma mudança de rota. Os poderes hoje em suas mãos são muito desorientado, sem guia e com muito pouco senso. O espírito
superiores àqueles que ele possuía no passado. Isto implica a parece morto. Não existe mais arte. A música é um pandemô-
necessidade de uma proporcional sabedoria, para saber como nio de rumores irritantes. Hoje, a vida está tentando a constru-
empregá-los bem. O homem que possui a bomba atômica não ção de novos e grandes organismos coletivos, especialmente
pode agir com a mesma inconsciência e psicologia de ferocida- daqueles que têm por célula o indivíduo, nas colossais unida-
de empregada pelo guerreiro medieval, que não dispunha senão des biológicas. Este novo ser, do qual as massas constituem o
de uma lança ou pouco mais. Com essa psicologia, o homem corpo, ainda vaga incerto à procura da sua alma diretora, como
moderno destruiria a humanidade. se fora um antediluviano monstro paleontológico. Aturdido pe-
Como se vê, a utopia de uma nova civilização não se apoia lo rumor de quem mais grita e fere os sentidos e os seus instin-
em sentimentos de bondade e de altruísmo. Conhecemos o ho- tos, desconfiado e crédulo, arredio e esperançoso, rebelde e
mem, sabemos o que se pode obter dele e quais são as molas fraterno, esse corpo social das massas, ainda informe, procura
que o movem. Faz-se, pois, apelo ao terror que lhe inspirará a auscultar no seu instinto a longínqua voz da vida, seu único
perspectiva certa da autodestruição. Faz-se depois apelo ao seu guia. E a vida está pronta para gritar nesse seu instinto uma pa-
senso utilitário. Pede-se somente que o novo homem seja sufi- lavra nova, e as massas estão prontas para ouvi-la e segui-la.
cientemente inteligente para poder compreender a enorme van- Jamais como hoje, entre tanto esfacelo e atabalhoamento, os
tagem que pode advir para todos da valorização do fator moral espíritos estiveram tão preparados para se incendiar sob o in-
e espiritual na vida social, porque só assim se pode obter paz, fluxo de uma palavra ardente, feita de verdade verdadeira, sen-
confiança e aquela segurança que é a única garantia de qualquer tida, vivida, dita com seriedade. E a esperamos. Virá ao certo.
fruição do fruto das próprias fadigas. Se não se compreender is- Disto cuidam as sapientes leis da vida.
to, é inútil reconstruir. Com a psicologia do homo homini lupus,
com o sistema do revólver em punho, pode-se também fazer um XVI. UMA PARÁBOLA
inferno para os demônios e para os danados que vivem na Terra
e um purgatório para os justos, que assim se apressarão para Existiam muitos homens em uma certa terra, e cada um de-
procurar mundos melhores. Mas, na Terra, para quem nela tra- les, segundo a própria natureza, elaborou um plano de vida.
balha, nela possui e prolífera, só haverá desesperação. É neces- Um se propôs a triunfar no mais baixo e primitivo plano da vi-
sário compreender verdades elementares, entender que, quando da, tornando-se rei segundo a lei da fome e da egoísta conser-
se semeia violência e mal, não se pode colher senão violência e vação individual, isto é, vitorioso no mundo econômico dos
mal; que a reconstrução não se pode operar senão recorrendo-se bens e na posse da riqueza. Para isto, tudo sacrificou. Não viu
ao trabalho, o ato criador pelo qual o homem se torna operário outra coisa, nada mais quis e de nada mais se ocupou. E nesse
colaborador de Deus; que não convém jamais fazer mal aos ou- campo venceu. Trabalhou de corpo e alma, sem tréguas, em
tros, porque quem faz o mal nunca o faz aos outros como pare- prol dessa única meta. Casou-se pelo dinheiro, subordinando-
ce, mas o faz realmente a si mesmo. lhe o amor. Não teve filhos. Como fruto do seu esforço, obteve
Há leis na vida. Para se obter determinados resultados, co- extraordinário bem-estar. Chegou a ser mesmo estimado e res-
mo por exemplo o nosso bem-estar, é imprescindível seguir peitado, mas porque era rico e poderoso, e só por isto. Como
normas. Cada ato tem as suas normas, como cada fim tem o reflexo, ganhou igualmente autoridade honrarias e louvores.
seu caminho para ser seguido. Todos nós desejaríamos viver Mas foi pouco amado e, na realidade, foi apenas invejado. Du-
em um jardim, porém não deixamos de contribuir para fazer rante a vida, muitos lhe invejaram as riquezas e procuraram ar-
um campo minado. Que poderemos esperar, então? Mas cada rebatá-las. Na velhice, muitos desejaram seu fim, para apode-
um pensa que vencerá e se refará à custa do vencido. Não! Os rar-se dos seus bens e desfrutá-los. Ele morreu sem filhos, rico
vencedores não vencem desta forma. Apenas desempenham, e só, nem amado nem pranteado, e, mercê do fruto dos seus
através da sabedoria divina, uma função biológica diferente sacrifícios, outros gozaram. Tal foi a sua vida. Mas ele não ti-
daquela dos vencidos. Funções opostas, que se devem com- nha possibilidade de escolha, porque era esse o seu tipo bioló-
pensar e equilibrar para consecuções comuns, que a vida coli- gico, e não podia explicar-se porque era assim.
ma para todos, em formas diferentes e segundo as diferentes Um segundo se propôs a triunfar em um mais elevado plano
capacidades. O homem do futuro deverá ser mais inteligente, a da vida, tornando-se rei segundo a lei do amor físico e da con-
tal ponto que possa superar as ilusões psicológicas e não cair servação da raça, isto é, o vitorioso no mundo biológico da mul-
nos erros a que estas induzem. tiplicação da carne. A proteção dos filhos e da família o compe-
Concluímos agora nosso pensamento. O materialismo, fru- liu ao mesmo trabalho e argúcia do primeiro homem, mas com
to dos últimos séculos, fruto espiritual e material, já deu todo o uma finalidade que transcendia a sua própria pessoa, dado que
seu rendimento. Como filosofia, já se esgotou e agora é posto à esta se dilatara a ponto de compreender em si todo o grupo famí-
margem pela vida. Como técnica, deixou um produto útil, que lia, do qual ele era o centro. Casou-se por amor, teve muitos fi-
é o domínio sobre as forças naturais, postas em parte a serviço lhos, lutou, sacrificou-se por eles, trabalhou de corpo e alma,
do homem. Este resultado útil é o produto do nosso tempo e sem descanso, por essa sua única meta. E nesse campo venceu.
vai ser transferido (reduzido, porém, de fim que é hoje a meio Foi por eles amado, mas o seu patrimônio e o seu trabalho não
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 125
bastaram para tanta gente, e a pobreza dominou em seu lar. Teve homens voltou ao mundo com as qualidades do seu tipo bioló-
grandes afetos mas pouca estima, e nenhuma honraria, porque gico e, dado que não podia manifestar-se senão como era, tor-
não era rico e poderoso. Durante a vida não foi muito invejado. nou a agir como antes, isto é, procedendo de acordo com a na-
Na velhice, ninguém desejava a sua morte, porque nada havia a tureza da sua função. Porém, encontrando-se em um mundo
herdar. Morreu pobre, mas amado e pranteado. Tal foi a sua vi- mais evoluído, agora podiam funcionar organicamente.
da, mas ele não tinha possibilidade de escolha, porque esse era o Então o primeiro homem, utilizando a sua qualidade de tra-
seu tipo biológico, e não podia explicar-se porque era assim. balhador e a sua capacidade técnica, tornou-se um produtor útil,
Um terceiro homem se propôs a triunfar em um plano ainda não apenas para si, mas também para a sociedade. As condições
mais elevado da vida, tornando-se rei não segundo as leis da mais conscientes da vida do novo mundo não mais o constringi-
fome e do amor, mas segundo a lei da evolução, isto é, de con- ram a sacrificar tudo para poder alcançar a realização de sua
servação e criação dos valores morais que regem a vida. Quis personalidade; o rendimento das suas qualidades no cumpri-
ser o vitorioso no mundo espiritual, do amor fraterno, do bem e mento de sua função pôde realizar-se plenamente em benefício
da justiça. Tudo sacrificou para isto. Nada mais viu, outra coisa de si próprio e dos outros. Ele se tornou assim o rei do mundo
não quis e só disso se ocupou. Não cuidou de bens materiais e econômico dos bens e extraiu dele benefício para si e para to-
não se casou. Lutou, trabalhou de corpo e alma, sem quartel, dos. Foi também estimado e honrado, não porque era rico e po-
em prol dessa única meta. E neste campo venceu. Porém ele foi deroso, mas sim porque era capaz de poder formar e conservar
espoliado por todos e empobreceu. Não teve filhos nem afetos e a riqueza que possui valor coletivo. Ele pôde assim desfrutar
vagou solitário e triste. Não desfrutou de estima ou honrarias, também o amor dos outros, porque a riqueza que antes dedicara
porque era humilde e pobre. Durante a vida foi desprezado, a si, agora a dedicou também aos outros. A sua morte não foi
quando muito deplorado. Mas ele lutou pelo bem do próximo e esperada para que se apossassem dos bens, que agora já eram
sacrificou-se pela justiça e pela verdade. Por toda a parte, di- de todos. Ele representava um valor útil à sociedade e era ver-
fundiu luz e amor em derredor de si. A gente que em público o dadeiramente estimado, não pelo que possuía, mas pelo que
desprezava, intimamente o admirava. Por ocasião de sua morte, valia e produzia, por isso morreu amado e pranteado.
não deixou mais que as próprias dores, mas acabou amado e O segundo homem tornou-se o rei do amor terreno, utili-
pranteado por todos. Foi compreendido e venerado após a mor- zando o espírito adquirido de sacrifício e de dedicação à famí-
te, e reviveu no amor de uma grande família, a família dos seus lia, a sua capacidade de economia, de parcimônia e de trabalho
filhos espirituais. Tal foi a sua vida. Mas ele não tinha possibi- fecundo, não no campo diretivo, mas no executivo. Ele repre-
lidade de escolha, porque tal era o seu tipo biológico, e não po- sentou a carne honesta e pacífica, que, animada do espírito de
dia explicar-se porque era assim. bondade ativa, fez frutificar a terra e as fabricas, multiplicando
Esses três homens haviam trabalhado em três níveis diferen- as coisas com a sua atividade abençoada por Deus. Assim, a
tes, cada qual segundo uma das três leis biológicas fundamen- carne, ávida de multiplicar-se, como quer a vida, não foi cons-
tais, que alicerçam o funcionamento da vida e se exprimem pe- trangida a maldizê-la e a resvalar para o vício e para o mal. En-
los três instintos: 1) a fome; 2) o amor; 3) a evolução. Essas três tão reproduzir-se e multiplicar-se não constituiu mais um delito
leis, assim expressas, são os três planos ascensionais do edifício ou um perigo, e sim alegria de viver. Mas tudo isto foi possível
biológico do nosso mundo, onde cada um dos três tipos situa-se porque quem possuía a capacidade diretora, organizadora e
segundo sua natureza e com uma correspondente e diferente economicamente genética, não mais monopolizou apenas para
função. O homem da primeira lei pensa na conservação indivi- si o fruto das próprias qualidades, reservando o seu rendimento
dual, com o egoísmo. O da segunda lei pensa na conservação em vantagem da coletividade. Então, o amor são e fecundo não
coletiva, com a reprodução. Mas nem um nem outro cuida do se tornou uma couraça ou dissimulação; a família não represen-
progresso, de que só se ocupa o homem da terceira lei. Nós os tou mais um peso insuportável, qual agrupamento de lobos es-
vemos agir desorganicamente, como é o caso do mundo de ho- faimados, prestes a destruir os vizinhos; a classe operária não
je. São rivais e mantém-se separados. Cada qual possui a sua mais se arvorou em uma dinamite pronta a explodir em revolu-
personalidade, o seu instinto, a sua função, a sua recompensa, ções. Assim também esse tipo de homem pôde, recebendo o
cada um agindo por sua própria conta. As atividades ainda não que lhe faltava, dar o que possuía. Morreu tranquilo, sabendo
estão coordenadas. Cada um dos três tipos se acredita tudo e é que o futuro dos filhos estava assegurado.
levado a operar com espírito de exclusivismo e domínio, ainda O terceiro homem, segundo o seu tipo e capacidade, tornou-
que, à medida que o homem evolui, passe da primeira à segun- se ainda esta vez, o rei do mundo espiritual, o vencedor segundo
da e desta à terceira posição, superando assim a posição prece- a lei da evolução. Atingiu assim, com as suas qualidades, um
dente inferior. Por isso cada um, permanecendo no próprio pla- maior rendimento para o progresso coletivo, podendo manifestá-
no, encontra aí a recompensa que lhe cabe. O separatismo não las em um mundo então fraternalmente compreensivo! Quantos
impede a justiça. No primeiro caso, a recompensa foi medida e atritos, mal-entendidos e dores profundas evitados; quanto auxí-
restrita ao usufruto pessoal dos bens; no segundo caso, dilata-se lio na mais facilitada possibilidade de multiplicar, por meios
mais, polarizando-se na vida dos filhos; no terceiro caso, am- técnicos e econômicos, a expressão de si mesmo, para que a luz
pliou-se ainda mais e foi além, alcançando a vida espiritual da e o conselho, o amor e a bondade chegassem a todas as partes.
coletividade. Porém, quanto menos imediato e restrito for o re- Quanto tempo e energias ganhos e, por conseguinte, quanto
sultado, tanto mais se expande e dura. Cada um obteve segundo maior rendimento espiritual, ao poder libertar-se do inadequado
o critério de seu tipo, plano evolutivo de ação e função biológi- e ingrato trabalho de ter de se ocupar de bens materiais. A negli-
ca. As leis da vida são sempre justas, mas, no estado de separa- gência pela riqueza não produziu mais as desastrosas conse-
tismo que oferece o mundo humano egoísta e involuído, elas quências de antes. Ele não foi roubado nem se empobreceu; pe-
não podem funcionar senão isoladamente. lo contrário, não lhe faltou o necessário, que considerou mesmo
Esses três homens morreram e passaram. Depois de vários demasiado, ele que era a negação personificada da avidez. Natu-
milênios, retornaram ao mundo, que, entrementes, havia pro- ralmente era já tão rico em um nível superior, que não sentiu ne-
gredido de modo a conduzir a mente humana ao ponto de com- cessidade, na Terra, de tomar do fruto do trabalho alheio mais
preender o evangelho e aplicá-lo seriamente, como prática indi- que o mínimo indispensável. Quem é do espírito já possui a me-
vidual e cooperação social, realizando aquela coordenação fra- dida das coisas. Ele não foi desprezado e aviltado, porque negli-
terna de toda atividade, somente com a qual se pode realizar na genciava a posse. O estado de mais elevada consciência do
Terra um bem-aventurado reino dos céus. Cada um dos três mundo estava finalmente em grau de apreciar um homem pelos
126 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
valores espirituais, e não mais pelo critério da força ou da rique- novas formas. Os grandes criadores, portanto, nascem e operam
za. Desta maneira, ele foi compreendido e estimado. Não acei- agora, lançando essa semente.
tou honrarias, que não lhe serviam, mas, com infinita alegria, A civilização futura não é muito compreensível aos espíritos
viveu essa nova atmosfera de simpatia, que afetuosamente o de hoje. Pela observação de algumas formas mentais do nosso
aquecia e lhe enchia a triste solidão de antanho. O desenvolvi- mundo atual, verificamos que este, se é indiscutivelmente mui-
mento da gratidão, a concreta manifestação da resposta da vida to forte no campo da desorientação e da destruição, é, por outro
ao seu impulso na forma de confraternização com as suas criatu- lado, fraquíssimo no campo da compreensão. Como é possível
ras espirituais, a confirmação exterior da consciência íntima da dirigir povos, provocar e desencadear guerras, legislar, impor is-
própria utilidade coletiva, proveniente de um consenso amplo, to ou aquilo, agir em qualquer campo sem ter compreendido o
não só multiplicaram, para o bem dos outros, os recursos e ren- que seja a vida e a morte, a finalidade de cada coisa, o próprio
dimentos dele, mas também o transformaram num homem satis- plano do universo? O instinto, que tudo guia, basta para o bruto,
feito, feliz de ser um trabalhador do espírito, em plena eficiên- mas, ainda que, em grande parte, o homem esteja embrutecido, o
cia, e não mais num peregrino ou mártir, operário da dor. Ele problema da vida se tornou atualmente muito complexo para
não foi assim obrigado a esperar pela morte, para atingir nos ou- que esses instintos possam bastar. No mundo político, social,
tros a realização de si mesmo e dos seus ideais de bem. econômico, religioso e cultural, movemo-nos em um mar de
O que é que tivera tanto poder para alterar a posição desses contradições. Falamos de matéria, espírito, eletricidade, justiça,
três homens? Apenas uma atitude da alma, um fraternal espírito liberdade, direitos e deveres etc., sem compreender o que exa-
de compreensão e colaboração. Essa é a chave da felicidade que tamente sejam e sem saber colocar cada conceito no seu devido
está no reino dos céus. E este espera apenas uma forma de boa lugar, como parte integrante de um plano que logicamente tudo
vontade dos homens para descer à Terra. No fundo, cada um, se- englobe. Na cultura, somos muito fragmentários e divergentes,
gundo o seu tipo biológico, não pede senão para realizar-se a si perdidos em particularidades e em sutilezas inconcludentes. No
mesmo. Trata-se de uma sã e fecunda lei biológica. Mas, hoje, campo prático mata-se e rouba-se, agindo-se para o bem ou para
essa realização, para poder efetuar-se, deve assumir formas invo- o mal sem saber a exata consequência das próprias ações. E não
luídas, violentas e caóticas. Desse modo, a utilidade fornecida pe- o sabe nem quem faz o bem nem quem pratica o mal. Apenas
lo rendimento da própria personalidade não pode ser conseguida névoas. Existe a fé, mas a fé não é exata, é vaga. E a razão de
senão à custa de sacrifícios e danos individuais e coletivos. As- muito pouco vale. É imperativo esclarecer e demonstrar tudo,
sim, portanto, na terra está o inferno, e o reino dos céus está lon- para que o homem possa compreender tudo seriamente.
ge. E os homens de boa vontade são raros e esmagados. Bastaria Estranha transformação está sofrendo o materialismo! Escava
muito pouca coisa para tudo melhorar: ao invés de combaterem- e escava na matéria e eis que encontra o espírito, que havia nega-
se, os homens deveriam auxiliar-se reciprocamente! do. E as religiões, que clamam pelo triunfo porque veem na ciên-
Por esta parábola se vê como estes três tipos biológicos, se- cia uma confirmação, encontrarão uma alma individualizada, de-
gundo os quais é possível agrupar os homens, podem, somente signada com aqueles termos e conceitos que antes lhes pareciam
com a mudança da sua conduta recíproca, sem modificar sua tão adversos e demolidores. Hoje, todos se encontram divididos,
capacidade e atividade, transformar-se de modo a obter-se um sem conhecer a verdade pela qual lutam. Quem realmente luta
maior rendimento para cada um e para todos. Isto significa criar pela verdade, que é una, simples e única, não pode estar dividido.
a alegria e eliminar a dor. A evolução só pode levar-nos à feli- Quem está dividido está nas seitas, nos partidos, nos agrupamen-
cidade. E tudo isto está explicado pela presente parábola. tos e interesses humanos, no próprio egoísmo, mas não na verda-
de. Quanto ainda estamos longe de a haver compreendido. A
XVII. A DESORIENTAÇÃO DE HOJE unidade está no amor recíproco, filho da compensação que ainda
falta. Deus e a vida estão na unidade. No exclusivismo e separa-
Continuemos a descer das místicas alturas atingidas atrás, tismo está Satanás, isto é, a involução e a morte.
para vagar agora em nosso mundo, observando-lhe as condi- O ridículo e o horror da nossa atual situação serão compre-
ções atuais. Já dissemos no princípio do Capítulo X, ―Paixão‖, endidos pelas gerações futuras. Então se verá a imensa estupidez
que nos encontramos, aqui, na fase descendente do fenômeno de matar, porque se concluirá que não se mata uma pessoa des-
da personalidade oscilante, o que leva o autor a ver as verdades truindo-lhe o corpo. Os chamados mortos permanecem junto a
mais materiais da Terra e a focalizar, com respeito a elas, a nós, mais vivos do que antes e, segundo foram por nós tratados,
própria psicologia. assim também nos tratarão. Aqueles que se arvoram em juízes e
Uma das principais características do nosso tempo é a deso- justiceiros não o são senão por um momento, em que desempe-
rientação, qualidade negativa, expressão da atual fase involuti- nham, para fins que ele mesmos ignoram, uma dada função bio-
va. Enquanto a palavra de ordem do nosso tempo se mostra nas lógica. Eles serão, por sua vez, de acordo com o que fizeram,
diretivas conceituais de razão e análise, a da época que se se- julgados e mesmo justiçados. O papel de rico e pobre é instável,
guirá será de intuição e síntese. Se atentarmos para a palavra e o de vencedor e vencido é, como nos demonstra a história,
dos nossos homens de pensamento, observaremos que, apesar transitório para os povos. As revoluções quase sempre devoram
de estar ela carregada de erudição e ciência, sendo complexa e os próprios autores e filhos. Quem utiliza a espada perecerá pela
difícil, falta-lhe a orientação da suprema simplicidade da sabe- espada. Trata-se de equilíbrios de forças, equilíbrios que, obede-
doria e do verdadeiro. É uma complicação crescente, em mar- cendo a leis invioláveis, resolvem-se em esquemas que o ho-
cha para o caos babélico, em que, no fim desse século, encerrar- mem ignora e contra os quais nada pode. Como é efêmero para
se-á, mesmo no cérebro do dirigente, a nossa assim chamada quem quer que seja, em tal ordem de coisas, proclamar vitória.
civilização, para que, desta decomposição possa nascer uma Os próprios imperialismos, dissimulados sob mascaras di-
nova civilização, baseada em outros princípios, sustentada por versas, sempre iguais, não constituem senão uma forma de
outros cérebros, próprios de um tipo biológico diferente. obediência à Lei, que concede a palma ao vencedor apenas pa-
O corpo social desta corrente de pensamento, que já exauriu ra lhe confiar o encargo de, dominando, coordenar, nutrir e
o seu ciclo e completou a sua tarefa, com a atual civilização, es- permitir a evolução de outras nações menores. E estas, pela
tá se desfazendo. Nesta decomposição, prosperam todos os mesma Lei, deixam-se dominar, nutrir, guiar e instruir, até se
princípios patogênicos que têm função biológica de acelerar a tornarem adultas, para então rebelar-se e se tornarem, como se
destruição. Em todo campo, hoje, tudo é destruição. Mas é na diz, livres. É o mesmo fenômeno vivido pelos novos rebentos
putrefação do corpo morto que a vida depõe a semente das suas que crescem sobre o velho tronco, nutrindo-se da sua ruína.
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 127
Sempre o mesmo esquema: dualismo, centro e periferia, nú- XVIII. O ERRO DE SATANÁS E AS CAUSAS DA DOR
cleo positivo e elétrons negativos que giram em seu derredor,
pai e filhos. Crescidos os filhos, os pai nada mais tem a fazer. Observemos alguns dos grandes erros do nosso tempo, de-
O mesmo se passa com as nações imperialistas. E todos sem- vidos à sua desorientação.
pre servos da mesma lei, todos enquadrados no desenvolvi- Uma das graves consequências do pecado mortal dos nossos
mento dos ciclos históricos do tempo. É fatal. tempos – o orgulho – é a incompreensão do problema da dor,
Mas, hoje, não estamos numa época de compreensão e sa- do seu porquê e dos seus fins. Em nossa Terra, hoje, uma parte
bedoria. As ideias são magras e poucas, frequentemente erra- tende a infligi-la a uma outra parte, que vive sob a angústia de-
das; há trevas nas mentes e enormes vácuos. Que terríveis pro- la. Assim os piores, os involuídos, mais ferozes, não se cansam
vações serão necessárias para se chegar a compreender apenas de organizar aquilo que pode fazer sofrer tantos outros, que
pouca coisa. Mas é necessário, porque não se pode conquistar a formam a outra parte da humanidade e, ainda quando não che-
sabedoria com o esforço alheio, mas apenas com a própria dor. guem a sofrer, vivem sob a psicose do terror de vir a sofrer.
Assim progride lentamente o caminho da história. O destino Acreditou-se que tudo isto poderia ser justificado por meio da
é um desenvolvimento lógico, e, quando se lhe conhecem todos teoria da seleção do mais forte. Mas esta é a força do bruto, que
os elementos, visto que o efeito está fatalmente ligado à causa, se sobrepõe a todos pelo próprio egoísmo. Não se pode com-
pode-se prever o futuro para o indivíduo e para os povos. Então preender que proveito de um tal forte possa tirar a vida, em vir-
a história está toda no presente e o tempo assinala por si só a tude da base social já atingida no nosso planeta!
sucessão de quadros conhecidos; então também o tempo, di- Respondamos a pergunta: como é possível existir uma
mensão que a intuição supera, estagna no pensamento e tudo semelhante condenação de dor em um mundo regido por uma
aparece permanentemente no presente. O problema está em se lei divina, que é perfeita, boa e justa? Certamente, nada pode-
conhecer todos os elementos componentes do sistema de forças remos compreender se não houvermos concluído por aquilo que
formado pelo eu individual ou pelo eu coletivo do povo. todos os fenômenos revelam, isto é, que uma lei regula tudo. Se
Hoje se age ao acaso, em geral por interesses materiais e não estabelecermos uma conexão do nosso estado presente com
imediatos, pouco se cuidando do depois, que se ignora. Ouça- a série de fatos precedentes que se ocultam em nosso passado e
mos as últimas palavras de Buda aos seus discípulos: se, antes, não decifrarmos o enigma do nosso destino individual
―Semeia um pensamento e colherás uma ação. e coletivo, não poderemos decifrar o enigma da nossa dor. O
―Semeia uma ação e colherás um hábito. princípio de seleção do mais forte abandona o vencido à dor,
―Semeia um hábito e colherás um caráter. sem nada explicar das causas e finalidades do seu sofrimento.
―Semeia um caráter e colherás um destino‖. Mas, para quem compreendeu, não é possível acreditar que isto
Hoje, sabe-se pouco ou nada da realidade do imponderável, não possua uma razão e um objetivo. Nasce assim a dúvida de
onde se registra tudo quanto pensamos ou fazemos e de onde que, em um regime de ordem, como é indubitavelmente o uni-
tudo renasce. Mas hoje domina o involuído, tipo biológico que verso, o fraco esmagado, o vencido na luta pela vida, não seja na
vive na periferia e não procura o poder senão na matéria, na realidade um inferior derrotado para ser eliminado, porque, efe-
força e no dinheiro. O evoluído de amanhã viverá mais em de- tivamente, é um indivíduo que paga o seu débito à justiça divina,
manda do centro e procurará o poder no espírito, no mérito, na enquanto que o vencedor vence apenas momentaneamente, visto
convicção das almas. Ele será mais rico, porque estará mais vi- que, se não fizer bom uso da sua passageira posição, pode suce-
zinho da fonte da vida, que está no interior, no centro: Deus. der-lhe que venha por isso a endividar-se, tendo de pagar caro
Então, a conquista imperialista pela guerra será substituída pela amanhã uma vitória de que abusou. Que seleção dos mais fortes,
conquista das almas, pelo exemplo, pela iluminação, pela paz. qual nada! Vê-se por aí a que aberração pode conduzir a con-
Que imensos continentes inexplorados serão alcançados cepção materialista hodierna que regula o mundo.
pela ciência e pela mente de amanhã! É a descoberta da ver- Na realidade, as coisas se passam muito diversamente. Aqui,
dade do espírito, e não o utilitarismo de hoje, que cumprirá o devemos relembrar alguns conceitos já expostos. Comecemos
encargo de arredar todas as barreiras do medievalismo espiri- por Deus. Se bem que seja impossível definir o infinito e, na sua
tual que ainda nos asfixiam dentro do exíguo âmbito de suas essência, Ele permaneça para nós um superconcebível, a sua lei,
paredes. O pensamento moderno ainda está encerrado em cas- que O exprime e que nós vemos funcionar a cada passo em to-
telos torreados, que fazem guerra entre si. O futuro forçará as dos os fenômenos, diz-nos claro que Ele é ordem, justiça, bon-
portas e derrubará os muros. A vida está a céu aberto. As ar- dade, amor. Mercê da inteligência diretriz e vontade construtiva
quiteturas lógicas do passado são agora prisões, e não casas. dessa lei, em que se manifesta a presença de Deus em todas as
Quando se houver experimentalmente provado aquilo que coisas, nós e tudo o mais nos encontramos imersos em uma at-
agora a intuição me diz, isto é, que o espírito é um organismo mosfera continuamente saneadora e criadora. Na verdade, quei-
de forças individualizáveis por onda, frequência e potencial, e ramos ou não, Deus está realmente presente em toda parte, a to-
que a sua vida se exprime em oscilações dinâmicas ou vibra- do o instante. Esta é a potência interior que rege a vida e as coi-
ções de um comprimento de onda que se situa além dos raios sas, e, se ela cessasse, tudo desapareceria subitamente. Todos
ultravioletas, então se poderão construir aparelhos rádio- podem dizer: ―ela está presente no meu organismo, pois regula
receptores de tais ondas, que revelarão o pensamento incorpó- seu desenvolvimento e suas funções, que não são, por certo,
reo humano e super-humano. Então se poderá fazer mecani- produtos do meu querer e da minha consciência. Está presente
camente tudo aquilo que hoje poucos sensitivos o fazem, sós e no desenrolar do meu destino, cujos acontecimentos coordena
incompreendidos. Para se penetrar cientificamente no mundo para um fim, ainda que eu o ignore em particular‖. Ela está pre-
do espírito, é necessário atingi-lo através da decomposição do sente no encadeamento da história, cujos eventos guia para con-
sistema dinâmico nas zonas de máxima frequência, assim co- tínuas superações, fazendo o homem progredir segundo a lei da
mo, para atingir o mundo da energia, se decompôs o sistema evolução; está presente no ritmo que caracteriza e define todos
atômico da matéria nas zonas mais evoluídas, mais velhas e os fenômenos, do mundo físico ao mundo moral, fazendo do
mais complexas. No fundo da matéria, além da energia que já universo uma sinfonia. Deus está presente como disciplina de
encontramos nela, encontraremos o espírito. Isto é lógico e cada instante no movimento universal, disciplina da qual nasce a
análogo no físio-dínamo-psiquismo trino-monismo do univer- bandeira que, no campo do espírito, significa felicidade.
so. As descobertas já feitas serão, comparadas com as do Quando tivermos compreendido isto, deveremos compreen-
amanhã, coisas pueris. Eis o imenso futuro. der que Deus está sempre tão presente e operante em nós, que,
128 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
de modo nenhum, podemos nos separar d'Ele. Dado que Ele é dor. Aqui, o problema do amor se complica com o da liberdade,
amor, só Ele representa para nós a felicidade, cuja via está, pois que, sendo o homem livre, pode refutar o amor e escolher
pois, escrita na divina lei e cuja consecução só é possível se- o ódio, preterir o bem e preferir o mal, ainda que, desta manei-
guindo esta, isto é, fazendo nós o que entendemos por vontade ra, recuse com Deus a felicidade e aceite a dor com Satanás. A
de Deus. É difícil fazer com que o homem comum, subjugado liberdade é, pois, um dom perigoso, porém necessário para que
pela ilusão dos sentidos, compreenda que a felicidade, ao invés o homem não seja um autômato, mas sim um ser que busca es-
de se encontrar na satisfação destes, consiste na adesão à von- pontaneamente Deus, como requer o amor, que não pode e não
tade divina. É necessário que ele comece a observar e compre- deve ser forçado; um ser que conquista, livremente experimen-
ender a lei de Deus. Nós carregamos conosco o germe e o ins- tando, essa consciência de si mesmo e a sabedoria da vida que
tinto da felicidade, que é também um nosso direito absoluto. Deus pôs na Lei, que o homem obedece vivendo. Deus, pois,
Por que, pois, estamos tão longe de atingi-la? Será talvez, como deixa ao homem a liberdade de amá-Lo ou repudiá-Lo. Não o
poderia dizer o cético, devido a um refinamento tantálico de constringe. Ele quer ser amado espontânea e livremente, não
crueldade por parte da chamada bondade divina? Não! É por por coação, mas por compreensão. Quer que o reconheçamos
um refinamento do amor de Deus para com as suas criaturas. como Ele é – Pai bom e previdente. Como proceder então, nes-
O universo está baseado em dois princípios: amor e liber- sas condições, para persuadir de tudo isto um ser que é livre e
dade. Tudo o que existe, inclusive nós mesmos, mantêm-se a quis escolher as vias do mal? A intervenção de Deus onipresen-
todo o instante porque o Deus transcendente dos céus está pre- te é indireta. Ele então se afasta do pecador, não se vinga ou
sente e ativo, isto é, imanente em toda a sua plenitude. Ele, pune, como se costuma dizer, porque tais conceitos são absur-
pois, se encontra também aqui na Terra a lutar e a sofrer conos- dos em Deus, mas apenas se nega. Na verdade, não é exatamen-
co. O amor, que tudo gerou, tudo sustém e regenera a cada te Deus que se nega, porque Ele continua a proteger e assistir
momento. Mas Deus não nos ama apenas, porquanto Ele nos ao rebelde, mas é este que, em si mesmo, negou a Deus. Ora,
quer livres, e nos quer livres como Ele, isto é, feitos à sua ima- Deus é a fonte da vida, e quem O nega, de qualquer forma, ne-
gem e semelhança, elevados à dignidade de seres que possuem ga a si mesmo, expelindo-se da vida real e permanecendo então
uma consciência para saber o que fazem e poderem escolher li- abandonado a si mesmo, fora da Lei. A Lei não pode manter
vremente a via que preferem, entre o bem e o mal. em suas fileiras ordenadas um núcleo de desordem, um seme-
Observemos esses dois princípios. Do princípio de amor de- lhante bubão pestífero, e o isola, como igualmente faz no plano
riva o de dualidade, pelo qual toda individuação da existência é orgânico para qualquer foco de infecção.
dada por duas metades inversas e complementares, que se atra- O rebelde mantém-se então sob o jugo da lei que o seu eu,
em e se completam, e não se satisfazem enquanto não se fundi- que se substituiu a Deus, pretendeu criar para si e, portanto,
rem na unidade. Em todo plano, desde o mais material até o permanece na miséria da sua ignorância. A consequência é de-
mais espiritual, encontramos sempre esse mesmo princípio, sarmonia e, por conseguinte, dor. Se Deus não estivesse sempre
que, em essência, é o amor. Isto se verifica desde o mínimo par- pronto a operar indiretamente a salvação do pecador, esse seria
ticular até ao máximo: Deus e Criação, tudo segundo o esque- o caminho da sua destruição.
ma dualista. Deus e a Criação, em todas as suas infinitas for- Essa revolta do homem livre e a sua consequente queda na
mas, os dois termos contrários e complementares, o perfeito e o dor não é um sonho, mas uma realidade. Nisto se baseia a vida
imperfeito, o absoluto e o relativo, o centro e a periferia, atra- humana e o destino do homem. Este destino nos é narrado, des-
em-se e tendem irresistivelmente a unir-se, e não se satisfarão de a pré-história, pelo mito da queda dos anjos capitaneados por
enquanto não se fundirem na unidade. Deus e criatura são, por Lúcifer; pela narração bíblica de Adão, que, tendo comido o
conseguinte, feitos para amar-se. E a criatura, pela mesma lógi- fruto proibido da árvore do bem e do mal, foi expulso com dor
ca do sistema, não pode encontrar felicidade senão em Deus. do paraíso terrestre; depois, pelas vicissitudes do filho pródigo
Explicar isto ao homem atual, filho dos sentidos, fazê-lo com- que, reduzido à situação de saciar a fome com bolotas para por-
preender que a felicidade deve consistir em amar um supercon- cos, volta arrependido, sendo perdoado pelo pai, e assim por di-
cebível ou, pelo menos, a tremenda abstração que é Deus, é ante. Nos tempos modernos, esse destino de revolta e de dor é
empresa difícil. Isto deriva do exagero do conceito do Deus uma realidade tangível que o mundo deve viver. O motivo do
transcendente, o que conduz ao erro contrário de ter então que passado e do presente é sempre o mesmo: o ser é livre, mas,
humanizá-Lo, reduzindo-O a uma reprodução antropomórfica, quando se rebela e abusa da sua liberdade, surge então a neces-
que a bondade divina nos perdoará. Deus é também imanente sidade da dor. Porém não de uma dor pura e simples, uma ideia
em todas as suas criaturas. Podemos assim nelas, que são a Sua estéril em si mesma, mas sim uma dor que não possui e não po-
manifestação, sempre encontrá-Lo e amá-Lo. Nelas, podemos de possuir outro sentido senão o de instrumento de redenção, is-
verificar como Deus pensa e age, como dirige e faz mover o to é, de uma dor que nos reconduza a Deus e à nossa felicidade.
funcionamento orgânico do universo. A lei pela qual Deus se Eis a dor que não é vingança ou punição, nem apenas injustiça
exprime não é um segredo e, mesmo na Terra, é sensível. A indiferente, mas sim ato de amor de um Deus cioso do nosso
própria ciência esbarra com ela a cada instante e a perscruta ca- bem, ansioso para que nós, por contínuas superações, nos deci-
da vez mais, procurando aprofundar o seu conhecimento. Toda damos evoluir, para nos tornarmos assim aptos à união com
descoberta científica só é absoluta para o homem, porquanto é Ele, em seu amor, como é o Seu ardente desejo. Eis que surge
uma lei eterna, já feita por Deus. Não nos faltam, pois, manei- assim a ideia central da história do mundo: a redenção. Eis co-
ras de encontrar Deus também na Terra. E, para a nossa felici- mo a dor se santifica e se sublima como força criadora que nos
dade, O encontraremos sobretudo no mundo moral, derivando conduz a Deus. Eis o significado da paixão de Cristo. Estamos,
deste aspecto da Lei todos os sábios preceitos. Nas relações so- assim, bem distantes e bem mais acima do conceito terreno da
ciais, ela diz: amor, ou seja: ―ama o próximo como a ti mes- dor, que marca o insucesso do ser vencido na luta pela vida.
mo‖. Eis a chave da felicidade. Eis o meio prático para se fun- Assim sendo, ainda quando a dor nos fere, Deus continua
dir em Deus, atingindo-O através das Suas criaturas. Eis como sempre bom. Nada devemos jamais temer da parte d'Ele. Mes-
se realizam, até às suas últimas consequências práticas, em nos- mo no erro, ele está perto de nós e nos auxilia a conquistar a
so mundo, o princípio do amor. nossa felicidade, ainda quando a nossa insensibilidade e igno-
Observemos agora o princípio da liberdade. Ele é princípio rância clamam pelo azorrague. Tal método foi querido por nós
absoluto, inviolável, precioso dom, porém constitui arma de e, mal nos elevemos um pouco mais, desaparece, porque então
dois gumes, que, se mal aplicada, pode resolver-se em grande ele deixa de ser necessário. Mas, dado o nível em que vivemos,
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 129
ele prova sempre o amor de Deus, ainda que assumindo essa a ser elementos desta ordem, que nos reconduz à harmonia com
forma severa, contudo necessária. Ele prova o desejo de Deus a Lei, para participar da grande obra de Deus? Como temer
de nos atrair para nos unirmos a Ele, de nos fazer felizes em uma dor que nos constringe permanentemente a subir? A nossa
uma felicidade que não pode estar senão nele. Na dor que redi- insatisfação frente a qualquer conquista humana exprime essa
me, na dor onde se compreendeu sua grande função, sente-se o necessidade de ascensão.
amor de Deus, que a mitiga e a adulçora, até torná-la o alimento O plano da vida é nos conduzir para as grandes unidades. É
do santo; sente-se que Deus envolve a alma na Sua ação salva- necessário, pois, que o egocentrismo humano se dilate no altru-
dora, confortando a dor com o amor. Sente-se então, ainda que ísmo. Está no instinto do nosso tempo a alegria da superação
sofrendo, que Ele bate às portas da alma para poder entrar, tra- mecânica dos limites de esforço e tempo, superamento das ilu-
zendo vida e alegria; sente-se que Ele não pune, mas que faz sões da nossa atual fase de vida. Com esse superamento, tudo
pressão para nos erguer até Ele, onde, e só onde, poderemos ser tende a uma unificação maior. A vida social avia-se hoje, mais
felizes. Esta dor, que, na primeira fase mosaica, foi definida do que nunca, a funcionar por grandes unidades. Devemos pro-
como vingança e punição, revela-se em nossa fase, mais evolu- curar, em todo campo do pensamento e da atividade humana,
ída, como um ato de amor, um dom providencial de Deus, que tudo o que unifica, evitando tudo o que divide; insistir sobre os
Ele nos envia somente para nos fazer compreender o erro come- pontos que possam favorecer a coligação, fugindo de todos
tido e que, tão logo tenha completado a sua função educadora, aqueles que podem determinar cisão. As vias de Deus são as
não tem mais razão de existir. Desta maneira, o homem expe- que tendem à unificação. O progresso se realiza percorrendo-as.
rimenta a vida e constrói, através dos seus ensaios e consequên- Tudo o que nos divide e nos isola, qualquer forma de separa-
cias, a própria consciência, aprendendo que é necessário saber tismo, ainda que procedamos em nome de Deus e da verdade,
agir com justiça e disciplina, como está escrito na Lei. Quando leva-nos para a cisão, que é a obra de desagregação de Satanás.
tivermos compreendido isto, estaremos reunidos a Deus e se- Os homens se revelam sobretudo pelos métodos que usam,
remos felizes. Então a dor, sem causa que lhe dê nascimento, mais do que pela verdade que professam. Quando o método é
não terá mais motivo de existir. perseguição, terror, ódio e vingança, é certo que estamos na via
A vitória sobre a dor não se obtém, pois, atirando-a com de Satanás. É um grave erro acreditar que semelhante método
ódio sobre o próximo, infligindo mal a outrem, mas rebatendo facilite a vitória. Na realidade, ele é desagregador e conduz à
as suas causas com causas contrárias, isto é, irradiando bem e derrota. A rebelião na luta contra uma disciplina moral não sig-
amor. Na Terra, inversamente, acumulam-se as reações maléfi- nifica nos tornarmos livres para melhor vencer, mas sim coli-
cas, que se fortificam por meio de um vesgo senso de justiça, dirmos com a resistência da Lei, usando uma estratégia de pés-
pretendendo santificar a vingança. Desta maneira fez-se a vida simo resultado. Deus obra pelas vias opostas, da convicção, do
depender apenas da força e do predomínio, quer moral quer perdão e do amor. Quem verdadeiramente é de Deus não resiste
econômico. Assim, acreditamos nos libertar da dor, mas, ao in- ao mal com o mal, mas o neutraliza difundindo o bem. A uni-
vés, constatamos que ela aumenta. As culpas, então, aumentam, versal religião do espírito, que compreende todas as outras, pe-
e a Terra, tornada lugar de pena, transforma-se no reino do mal. de apenas que se ame a Deus amando o próximo como a si
Então impreca-se contra Deus, culpando-O. Mas a causa está mesmo. E bastaria isto para transformar o mundo. O grande er-
no homem e é a fatal consequência do seu espírito de revolta e ro de Satanás e de quem o segue consiste em acreditar que a vi-
de sua ação tresloucada. A dor é naturalmente a providência de da possa basear-se no egoísmo e no ódio e que o triunfo possa
Deus e constitui a única via de redenção e salvação. Esta tão assentar-se na força, quando, na verdade, a vida se baseia no al-
vasta dor humana deve ecoar bem longe dos restritos confins truísmo e no amor e o triunfo final pertence à justiça. Nenhum
terrestres, chegando até criaturas colocadas muito acima de nós, homem, por mais poderoso que seja, pode alterar esta lei.
mais aprimoradas, que, por amor, vêm juntar-se a nós, auxili-
ando-nos, por todas as formas, em nosso esforço de redenção. XIX. O ERRO MORAL
Por intermédio delas, parece que o próprio Deus padece da nos-
sa dor e, com isto, queira unir-se a nós, numa comunhão frater- Continuemos a passar em resenha os erros modernos.
nal de amor. Por certo, Ele está presente em qualquer estado do Uma das maiores conquistas do nosso tempo foi, sem dúvi-
ser, tanto na alegria como no pesar. A paixão do Cristo e a coti- da, a ciência. Mas, se bem que mostrasse uma atitude agnósti-
diana repetição do seu sacrifício no rito eclesiástico não nos di- ca, que queria ser filosófica e religiosamente imparcial, esta
zem exatamente isto? Porque, em verdade, no grande vínculo ciência, sem filosofia e religião, visto que a alma humana não
do amor, nós estamos n'Ele e Ele está em nós. pode fazer nada sem uma orientação qualquer, na realidade
A grande lei da vida é o amor. Em toda manifestação, ja- possuía a sua: o materialismo. O seu absenteísmo no campo
mais devemos seguir o caminho do egoísmo, que divide, mas o ético, campo que é impressionantemente conexo à vida, signi-
do amor, que unifica. Só este último nos conduz a Deus e à ale- ficaria, efetivamente, negação dos valores morais. O maior dos
gria. Não devemos resistir a Deus, à Sua potência onipresente; erros modernos é, pois, o erro moral, que orientou e utilizou
não devemos rebelar-nos com o orgulho, mas tornar nossa a mal uma ciência de per si benéfica. Erro profundo este, porque
Sua vontade. Não é possível fugir de Deus. Ele é a atmosfera fez das conquistas da técnica um meio de destruição material;
que todo o universo respira e de que tudo se nutre e vive. De erro grave, porque, no espírito das massas, que, mal sabendo
Deus não se foge, e a Deus não se pode destruir. Estar com pensar por si, sempre seguem a orientação da classe culta diri-
Deus significa participar da Sua potência. Estar contra Deus gente, resultou em espírito de revolta, desordem e destruição.
significa estar perdido em um deserto de trevas. Sem Deus, Em nosso século acreditou-se, em nome da ciência, ser possí-
nem mesmo o pecador pode viver, e, se ele continua vivendo, vel libertar-se dos tradicionais conceitos de Deus e de Sua lei,
isto significa que Deus ainda opera nele. O remorso e a dor ex- que regulam toda a vida, até o campo ético humano. Isto pare-
primem a necessidade de reencontrá-Lo. A revolta à Lei, obstá- ceu uma conquista e uma libertação. Podia sê-lo com respeito
culo à atuação Dele, gera um pequeno atrito na contínua obra às concepções filosóficas e religiosas que, tendo sido vividas e
criadora de Deus. A Lei não muda, mas algo no universo deve havendo dado seus frutos, requeriam uma superação. Mas su-
sofrer. Esta rebelião origina uma convulsão em alguma parte. O peração quer dizer atingir um conceito superior de Deus e de
plano da Lei é tornar o homem livre e consciente colaborador Sua lei, e não a destruição desse conceito. É certo que muitas
da divina obra da perene criação, um operário, um ministro de ideias haviam envelhecido e não correspondiam mais às novas
Deus. Como podemos maldizer uma dor que nos permite voltar formas mentais. Mas é perigoso destruir sem reconstruir, pro-
130 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
duzindo apenas ruínas; perigoso sobretudo no campo ético e mem, sempre sofrendo, deve aprender, como ser livre e consci-
ideal, onde se encontram as diretivas das nossas ações. O orgu- ente e, por conseguinte, responsável, a saber usar com prudên-
lho humano exagerou na destruição; alçou a bandeira do ate- cia o poder que Deus lhe concedeu. Mas hoje, dada a ordem do
ísmo e da desordem moral enquanto a incumbência estava em universo e visto que, nesta ordem, o homem age e pensa devi-
progredir no relativo e, ansioso pela autoafirmação, substituiu damente, a sua dor é lógica e plenamente justificada. Justificada
ao velho dogmatismo por um novo, demonstrando, com o não só como consequência punitiva mas também como condi-
mesmo espírito parcial, que o homem não muda. A verdadeira ção providencial, porque, com a dor, aprende-se a eliminar o er-
ciência continuou, com os seus gênios e os seus heróis, o tra- ro e, assim, com a dor de hoje diminuirá a dor de amanhã, isto
balho tenaz, rígido e objetivo, que produziu as maravilhas que é, com a dor se elimina a dor, visto que com ela se evolui.
contemplamos. Mas um fruto tão belo caiu em um mundo ne- Esses princípios gerais e sintéticos estão presentes nas suas
gador de Deus e de Sua lei, que fez péssimo uso daquele fruto. consequências até nas menores coisas de nossa vida contingen-
Arcou então com a culpa a ciência, que em si mesma, no en- te, dizendo-nos respeito muito de perto. Esta, em todos os seus
tanto, é inocente, tanto que hoje, continuando seu tenaz cami- particulares, está saturada de soluções falsas, que, por conse-
nho, progredindo sempre, é justamente ela, que no princípio se guinte, produzem o mal e a dor. Não sabemos agir ordenada e
tornara um estandarte do materialismo, que acabou por nos in- harmoniosamente e, por isso, através de pensamento e ação er-
dicar o espírito e nos levar de novo a Deus e à Sua lei. rados, semeamos em cada dia a nossa pena. Na procura tres-
Quantas coisas esta ciência ainda nos demonstrará é impos- loucada de gozo e liberdade, tornamo-nos cada vez mais es-
sível suspeitar! Mas é certo que os séculos futuros, bem mais cravizados de mil necessidades artificiais. Sofre com isso a
evoluídos, demolirão muitos erros do nosso tempo, que são nossa saúde, os nossos interesses, a nossa paz. Para elevar nos-
muitos, consequentes da orientação supramencionada, cujos so nível econômico, nos empobrecemos cada vez mais em
efeitos práticos ainda se farão sentir. Esses erros foram graves, substância. A supressão da disciplina moral não é, como se
e o mundo de hoje lhes paga as acerbas consequências. À lei de acredita, liberdade, mas escravidão. Pode-se rir dos emancipa-
Deus, que guia o universo, não se pode destruir. Hoje, o homem dos, mas as eternas leis da vida não se alteram, e nela a ordem
é ainda tão criança, que acredita poder, com o seu arbítrio e de elevação moral constitui a base do poder. O poder é con-
vontade, substituir-se a ela. Mas só os jovens, os ignorantes e quistado harmonicamente, evolvendo, e não desequilibrando
os inconscientes são em geral presunçosos. Os evoluídos são com a violência, que tende a reequilibrar-se retomando o mal,
sábios. O grande pecado do homem presente é o pecado de Lú- excitando uma proporcionada reação oponente. O hodierno
cifer: o orgulho. O mundo atual é todo um tremendo grito de grito satânico contra Deus, expresso pelo orgulho do ser e pela
rebelião a Deus e à Sua lei. Tentada a substituição de comando, adoração da força e da matéria, é servidão do espírito livre pa-
de consequências terríveis, que vemos tanto na paz como na ra com esses senhores. Na realidade, o homem perde todo o
guerra? Tal mundo se desfaz. Por que? Porque o orgulho cega, poder de autodomínio, e quem não for senhor de si não pode
faz perder a límpida visão das coisas, destrói o poder diretor e, ser senhor das coisas; quem não possui disciplina em si não
assim, acumula erros; porque o orgulho, afirmação do eu, é ne- pode determinar senão o caos em derredor de si. Para obter fe-
gativo perante Deus, logo o é perante a vida, de cujas fontes o licidade e prosperidade, não basta, como se supõe, apenas a
homem, desta maneira, afasta-se. Resulta disso uma ação dese- posse das coisas. Se nos aproximamos delas animados de ego-
quilibrada, contraditória, descendente ao invés de ascendente. ísmo e avidez, elas virão a nós envenenadas e, por isso, nos
O que é contra Deus e a Sua lei só pode operar destruição. En- envenenarão. Desta forma, ao invés de obtermos o gozo, do
tão o espírito rebelde à ordem divina volta-se para a forma, com qual a condição precípua é a paz, chegaremos à violência, à
sensualidade e avareza, e se perde no relativo do particular. Eis guerra e, consequentemente, à miséria e à dor.
o mundo de hoje, feito de avidez mórbida, de rivalidade san- Todavia a vida está imersa em um oceano de substância, e
guinária, de mente destruidora e caótica, caindo sempre, até nós, com tais atitudes, impedimos que esta nos alcance. Esta
atingir o fundo. Todo sistema possui uma lógica de proposições substância nutritiva, esta atmosfera vitalizadora em que o ho-
em cadeia, a qual, uma vez iniciada, deve desenvolver-se elo mem se move, é inexaurível em toda parte, pois é a onipotente
por elo, até às últimas consequências. divindade de que tudo nasce. A sua vitalidade e fecundidade são
O homem, acreditando poder desorganizar a lei de Deus, dadas pela circulação, pelas trocas, pela comunicação e pela fra-
pelo menos na Terra, para depois refazê-la a seu modo, com es- terna comunhão entre os seres. Quando, egoisticamente, conte-
se orgulho, não desorganizou senão a si mesmo e ao próprio mos o seu livre fluxo, procurando o entesouramento exclusivis-
mundo. A causa não está em Deus, mas no homem. A Lei é ta, erguemos barreiras que a tornam inerte e estagnante, então a
perfeita, é ordem e não falha. Ao homem, operário de Deus, foi sua potência dinamizante se extingue, Deus se nega e o homem
confiado, à imagem e semelhança da obra do Criador, um tra- é afastado da fonte vital. Não se enriquece, pois, com a avareza,
balho de criação na Terra. A Lei o deixa livre de errar, mas de- mas com a ilimitada e benéfica generosidade. Como o mundo
pois o constringe a pagar na mesma proporção do erro, para que faz o contrário, naturalmente empobrece. A lei de Deus colocou
possa compreender. A dor e o mal não estão em Deus, mas na uma riqueza inexaurível à livre disposição dos sábios, que dela
ignorância, na vontade, no erro do homem, e são eliminados sabem fazer uso, mas a exclui dos estultos, que agem em contrá-
através da sua dura experiência. Assim, pois, tudo isto diz res- rio à Sua ordem. Efetivamente, não vemos nós o mundo tornado
peito ao homem e é relativo à sua atual fase de evolução. O mal miserável justamente em razão da doida procura da riqueza, en-
não está em Deus e na Sua lei, que não se altera de modo al- fraquecido pela loucura do poder, escravo do desejo absurdo de
gum, apesar de todos os erros humanos. Pelo contrário, tudo domínio egoísta e, como consequência, da procura da mais in-
orienta maravilhosamente, não obstante eles. Então vê-se como disciplinada liberdade? A vida possui leis muita sabias, que fa-
o homem é guiado pela sabedoria divina e protegido pela divina vorecem o prudente e frustram o tolo, para que aprenda.
bondade, mesmo quando se rebela e, cego, arrisca-se a perder- Mesmo a prosperidade material tem as suas leis, mas quem
se. Enquanto o homem, abusando da sua liberdade, tenta, na as segue? Elas são continuamente violadas. A consequente e
própria insipiência, transtornar tudo, a lei de Deus está sempre contínua constatação da carência geral enraíza nas almas o ter-
intimamente presente e ativa na reconstrução. A destruição age ror da falta do necessário, estabelecendo-se então uma psicose
do exterior, a reconstrução do interior. A primeira é explosiva, e angústia perpétuas. Desta maneira, nos acreditamos escravos
desordenada cega e violenta; a segunda é tenaz, metódica, sábia do trabalho, sem o qual não se vive, e fazemos dele uma con-
e boa, sempre atenta a reparar as faltas. Desta maneira, o ho- denação na vida. Mas o trabalho é um ato criador, que nos põe
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 131
na condição de operários de Deus, colaboradores da Sua obra finita; ansiosos por tudo, onde Deus tudo provê com supera-
de criação! Ele exprime o nosso eu nas formas que Deus plas- bundância; escravos da matéria, quando o homem é feito para
ma consoante a Sua vontade e potência. Ele representa a nossa ser livre e senhor dela. Mas que imenso mundo se abre a quem
realização, constitui o meio pelo qual adquirimos experiência sabe sair de tal prisão. Trata-se de imponderáveis que também
para evoluir, é o sinal de fraternidade entre os seres. A potên- possuem peso decisivo e podem mudar a vida. Trata-se de sen-
cia do trabalho está na cooperação, que exprime a harmonia e a tir essa contínua presença de Deus, alimentadora de tudo. Se, de
ordem do universo. Em vez disso, hoje temos um trabalho ran- fato, num extremo, Deus é de tal modo transcendente, que nos
coroso, rebelde, rival do capital em vez de seu colaborador; um foge para o superconcebível – tanto que não é possível definir,
trabalho desagregante e feito de atritos, mais destinado a des- ou seja, encerrar no finito tal infinito sem mutilá-lo, de tal for-
truir do que a criar. Ao contrário, a força está na colaboração, e ma que a Sua definição é um absurdo – ao mesmo tempo, na
não na desordenada concorrência. Como todas as coisas, tam- outra extremidade do ser, Ele está tão imanente, que se encon-
bém o trabalho, para ser fecundo e criador, deve estar saturado tra presente e ativamente criador em cada momento particular
de amor. Ele deve, assim, ser executado não para produzir de da Sua manifestação, que é o universo. É verdade que nós vi-
qualquer forma, seja qual for a consequência, uma vantagem vemos na caducidade da forma, no relativo e periférico. Mas
egoísta, pouco importando o interesse alheio, mas sim para ser esta zona exterior da manifestação está sempre em comunica-
verdadeiramente útil ao próximo e, de tal sorte, que seja execu- ção com a substância eterna, com o absoluto central, fonte vital
tado da melhor maneira possível. A tendência moderna, con- de que tudo deriva e permanentemente floresce, sem a qual tu-
trariamente, é executá-lo mal, cabendo a palma da vitória a do se extinguiria. A ciência se encaminha hoje para também
quem melhor tenha sabido utilizar o próximo em seu benefício. compreender isto e amanhã o demonstrará. O orgulho e a revol-
Não se baseiam sobre tais princípios a propaganda e os méto- ta contra o divino princípio que tudo rege, não importando a
dos de tanta produção moderna? O objetivo não é, de fato, cri- imagem que cada um, segundo o seu poder intelectual, pode fa-
ar uma legião de consumidores, orientando as massas neste zer de Deus, constituem o mais grave erro moderno, pois traz
sentido, considerando-as um meio de ganho, onde se usufrui como consequência para o mundo o seu isolamento das fontes
do homem, fingindo-se servi-lo ? Ora, sejam quais forem a da vida, o que significa praticar o suicídio. Mas a sabedoria de
meta e a astúcia, quem viola o princípio moral, fraudando um Deus supera a ignorância do homem e o salvará a despeito dele,
serviço, deve colher o que semeou. através de uma dor proporcionada, a fim de que o bem triunfe.
O mundo econômico e comercial não pode fugir à atuação da
lei universal segundo a qual quem faz o bem o faz a si mesmo e XX. MEDICINA E FILOSOFIA
quem faz o mal é quem principalmente o recebe. Uma economia
agnóstica, que prescinde dos fatores morais é outro dos erros Atrás, explicamos que a culpa e o erro fundamental dos
modernos. A lei moral está acima de todas as outras leis humanas nossos tempos repousam no orgulho e na rebelião à ordem di-
e, por conseguinte, domina-as e penetra-as todas. O mundo de vina das coisas, de que derivam muitos males e muitas dores.
hoje não avalia quais sejam as verdadeiras fontes do bem-estar, Aqui, não mais falaremos desse erro moral em sua particular re-
mesmo as materiais, nem ao menos supõe que este derive de ín- lação com o trabalho e os bens úteis à vida, mas sim com rela-
timos equilíbrios espirituais em relação à lei de Deus. ção à nossa saúde física. Procuraremos precisar os efeitos da
A nossa economia moderna se baseia inteiramente sobre o moderna psicologia de independência, quando ela penetra tam-
―do ut des‖. Mas a lei do dar e receber é mais ampla na economia bém esse nobre ramo da ciência, que é a medicina.
da vida e não se limita apenas a recompensar quem nos deu e na Repassemos agora as ruinosas consequências a que uma ori-
medida em que nos deu. Na divina atmosfera alimentadora de tu- entação excessivamente materialista e hedonista conduziu a ciên-
do, as trocas são vastas e infinitas, e não nos devemos preocupar cia, enfrentando a urgente necessidade de conferir a esta uma su-
se não recebemos de quem foi por nós beneficiado e na propor- perior finalidade ética. O homem, que preferiu o seu eu a Deus e
ção do benefício. Dá e te será dado. A compensação não se sabe acredita tornar-se senhor e centro do seu mundo, por mais que
de quem, nem como nem quando virá, mas virá. É necessário queira manter-se objetivamente apegado apenas aos fatos e au-
compreender que a divina economia do universo é vasta, sempre sente e neutro em face de qualquer meta ideal, fixou, só por esta
comunicante, automática e inevitavelmente compensadora. O sua atitude, uma afirmação axiomática e dogmática que colorirá
benefício realizado por nós a um anônimo, que não se verá mais toda a sua concepção, ainda que tal premissa esteja oculta no
depois, tanto circulará pelas vias da vida, que deverá voltar a nós. subconsciente. Disto não pode nascer senão uma medicina que
Se nós, contudo, não nos enriquecermos com tais créditos, mas, tende a substituir-se à natureza e que prescinde do poder curativo
pelo contrário, acumularmos débitos em face aos equilíbrios da desta, a ponto de acreditar poder e dever corrigi-la e suplantá-la.
lei de Deus, o que então pretenderemos obter de retorno? Assim, hoje, enquanto a medicina se guarda bem de possuir uma
Eis de que maneira é movido o mecanismo da assim cha- filosofia, efetivamente tem uma, da qual depende a sua orienta-
mada Providência. Sem mérito, como poderemos esperá-la? ção. Também aqui não se pode prescindir do fator moral, que,
Então não nos resta senão a escassez de meios e a contínua pre- sendo superior a todas as leis humanas, as penetra todas, de modo
ocupação, que, como se vê, não se elimina de modo algum, an- a se encontrar em todas, ainda que seja negado. Igualmente aqui
tes aumenta por se ter procurado acumular riquezas. se verifica a habitual cadeia: ignorância, erro, mal, dor, também
Por tudo isto compreende-se como existe um mundo imenso com os mesmos resultados, como nos outros casos.
que está além do nosso e que rege e penetra a nossa realidade Encaremos o problema mais de perto. Nenhum outro campo,
contingente. Em nossa pequena vida cotidiana, vivemos o infi- como a medicina, que intervém em nosso mundo orgânico, é tão
nito, sem suspeitá-lo. No relativo, vivemos o absoluto; no áto- pejado de consequências nocivas devido a esse espírito moderno,
mo, a eternidade; nas pequenas alternativas de cada hora, cum- rebelde às leis da vida, o qual pretende erigir-se em plena auto-
primos o nosso destino, já por nós preparado no passado, en- nomia, para adaptá-la aos próprios fins hedonísticos. A saúde é
quanto forjamos um novo, pois, ainda que não o saibamos, es- fenômeno de longas e longínquas repercussões, é um equilíbrio
tamos em comunhão com Deus. Bem-aventurados os que sa- profundo das energias da vida, que o homem moderno perturba
bem disso e a sentem. Esses são os dominadores, que ultrapas- com extrema facilidade, levando uma vida contra a natureza, e
sam a ilusão humana, onde a maioria se conduz. Estes últimos que ele pretende depois restabelecer com a varinha mágica do
permanecem encerrados na prisão da miséria feita pela própria médico e da medicina, usando o milagre da descoberta científica.
natureza; afligidos pela necessidade em meio a uma riqueza in- Acredita-se facilmente nisto, pois agrada e é cômodo, além de se
132 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
prestar à exploração industrial e individual, havendo quem tenha Essa sua psicologia de batalha antimicrobiana lhe vem da
interesse em criar e manter tais credulidades. No entanto a vida é psicologia do século, que é de revolta, e não de adesão à sabe-
feita de maneira diversa, e não podemos alterá-la a nosso talante. doria das leis, ou seja, psicologia do homem ainda involuído. A
E se tentarmos tal empresa, as forças da vida reagirão, punindo- caça ao micróbio, se este é realidade, pode ser empirismo como
nos pelo erro. É certo que a imbecilidade das massas parece ili- orientação geral. Mas quem nos assegura que o micróbio não
mitada, e, biologicamente, é inevitável que os fracos sejam ex- seja senão o efeito, ao invés da causa da moléstia, visto que ele
plorados. O quanto isto é rendoso para os espertos, prova-o a surge quando o terreno orgânico já está preparado pelo morbo e
concorrência que existe hoje na indústria da exploração de tal que, neste mesmo terreno orgânico, ainda quando seja patogê-
imbecilidade, em todo o campo possível e imaginável. Mas é nico, não exercite funções particulares? Quem nos diz que o
verdade também que, dada a grande compreensão da maioria, doente não seja um ser que a vida coloca sob cuidado para cu-
nada pode educá-la melhor do que ter sido ela escarmentada com rá-lo, mais do que um ser que espera a extrema-unção humana
o próprio prejuízo. Em todas as esferas de ação, a vida adota esse para normalizar-se? Esta concepção desloca tudo, fazendo pas-
sistema para nos induzir a compreender, isto é, a progredir. sar para um primeiro plano a sabedoria da natureza e para um
O dano em medicina é grave, visto tratar-se de uma terapêu- segundo a do médico, visto que, hoje, as coisas estão invertidas.
tica desorientada, que, aplicada em larga escala, ameaça a cons- Mas a medicina consiste em seguir esta sabedoria, e não em
tituição orgânica, sobretudo das raças civilizadas, que dela fa- substituir-se a ela para coagi-la.
zem mais uso. É verdade que a vida é uma batalha onde cada O primeiro e verdadeiro grande médico é a natureza, grande
um deve combater com as próprias armas, com as próprias ca- concorrente da medicina oficial, médico que todos têm em si e
racterísticas e com os meios acumulados no tempo, e isto tanto que vigia e age continuamente. Ela representa a universal pre-
no campo orgânico como no espiritual. É verdade também que sença de Deus, sempre benéfica e restauradora. O conceito do
a vida possui poderes corretivos e de recuperação em face dos micróbio patogênico deriva do instinto de luta do homem ainda
piores erros e, por conseguinte, pode resistir aos maiores assal- involuído. É impossível seguir o bacilo e atingi-lo nas profun-
tos. Mas nós não estamos em grau de dizer quantas dores isto didades vivas do tecido, porque ele não se encontra aí como
custará ao homem moderno. uma intromissão estranha, mas sim como combinação de sim-
Hoje a terapêutica antimicrobiana domina e determina uma biose, que faz parte dos próprios equilíbrios da vida. Ele é nos-
intervenção contínua e difusa de produtos que, penetrando no sa própria vida, com funções vitais, e não se pode isolar nas in-
organismo, tendem a modificar a própria estrutura das células, finitas interdependências orgânicas. A natureza o utiliza na sua
determinando um progressivo declínio orgânico e consequente estratégia defensiva. Os micróbios não são os antagonistas da
decadência constitucional. A caça ao micróbio se reduz a uma vida, mas os seus colaboradores. Mesmo quando agem contra
conturbação, na qual se prejudicam as naturais forças defensi- ela, excitam-lhe as reações vitais.
vas e se produz uma crescente vulnerabilidade orgânica. Fre- Quando advém o assalto, a vida adota muitos meios, entre os
quentemente obter-se-á uma vantagem imediata, mas é necessá- quais ressalta a elevação da temperatura, que se chama febre. Ela
rio ver o que de nós custará pelas suas consequências. Não obs- representa um mais alto potencial elétrico celular, especialmente
tante a contínua floração de descobertas e de novos remédios, do sangue, uma posição mais enérgica para a batalha. Os medi-
os organismos resistem cada vez menos. Se os auxiliamos de camentos destinados a suprimir a mobilização desse dinamismo,
um lado, eles cedem de outro. É natural que eles se enfraque- expresso pelo processo febril, vão demolir as naturais defesas or-
çam na proporção da defesa que lhes é prestada. À multiplica- gânicas e paralisam a luta engajada pela natureza. A vida é um
ção dos remédios corresponde assim uma multiplicação de ma- inteligente princípio espiritual que quer a conservação do indiví-
les. Ademais, as enfermidades se tornam amorfas, atípicas, o duo, porque viver tem um escopo e ela quer atingi-lo. As molés-
que significa que se perturbou a lógica da estratégia posta em tias representam uma verdadeira estratégia de movimentos calcu-
prática pela inteligência da vida. Os organismos não reagem lados em intensidade e duração, conduzidos com um ritmo pró-
mais ou, se reagem, o fazem desordenadamente, o que significa prio, que se exprime pela sintomatologia. Elas representam, em
que a natureza foi induzida à desorganização. O difundido uso suma, uma inteligente operação de guerra. Se tais planos forem
dos produtos sintéticos significa o emprego de um mau sucedâ- transtornados, paralisando artificialmente a reação febril, toda a
neo, que, se possui as características químicas, não pode ter de defesa se desorganizará. Então, a natureza ou resiste à cura e tra-
modo nenhum as orgânicas, dado que a vida contém forças su- va a sua batalha da mesma forma, ou a transfere para uma outra
tis, que alcançam o próprio campo espiritual. ocasião. Entrementes nós poderemos ter tornado tão difícil o seu
Sem poder entrar aqui em particulares, este é o resultado da trabalho, que poderá suceder que a batalha seja perdida e o orga-
terapêutica moderna. Por querer ser imparcial e objetiva, ela ca- nismo sucumba. Altera-se assim, completamente, o conceito de
rece da orientação geral, que só uma filosofia da vida pode for- saúde. Esta não é dada tanto pelas boas condições do ambiente,
necer. Por permanecer positiva, escapam-lhe muitos imponde- quanto pela capacidade de resistência do indivíduo. Pelo contrá-
ráveis fundamentais. Não possuindo o senso da unidade cósmi- rio, se muito protegida, a vida se enfraquece.
ca, fogem-lhe também a percepção da unidade orgânica e, as- É necessário que nos exponhamos, que lutemos, para que
sim, o poder de síntese, ficando perdida na análise, na especia- devamos aprender a vencer. A célula só se torna passível de
lização clínica, no localismo patológico e no fracionamento sin- agressão por parte dos germes patogênicos quando o seu índi-
tomático. E, sem esse poder de síntese, não se chega a cumprir ce bio-físico-químico sofreu alteração. O estado de saúde não
o ato individual da intuição, que é o diagnóstico e o prognósti- deve, por conseguinte, ser esperado de um ambiente artifici-
co. Não se pode compreender um momento particular da vida almente corrigido, mas sobretudo de nós mesmos, e isto é o
se não se está antes orientado no todo, compreendendo primei- resultado de uma longa história individual e coletiva, história
ramente o funcionamento orgânico do universo. No estudo da em que a vida tudo registra de bom e de mal, com suma justi-
vida não se pode prescindir da ordem espiritual em que ela se ça e vontade de fazer o bem.
move, nem é lícito ignorá-la. Uma medicina materialista é, pela As nossas atuais concepções dependem de uma falsa orien-
própria natureza, incompleta e incompetente para julgar os fe- tação filosófica. Não está errada a ciência que observa objetiva-
nômenos vitais. Escapa-lhe a essência destes. Não obstante ne- mente, mas está errada a psicologia com que se aplicam os seus
gá-lo, ela possui, em realidade, a filosofia mais negadora da resultados. Em nosso caso, se é perigoso ser demasiado filósofo
substância da vida, como é o seu materialismo. Tal é a nossa e pouco médico, como sucedeu nos séculos passados, é perigoso
medicina analista, organicista e microbiana. também, como possivelmente por reação sucede hoje, ser dema-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 133
siado médico e pouco filósofo. Um pouco de filosofia também é vagamente exprimida com o simples termo religioso de alma.
necessário para superar o perigo representado pela dispersão re- Uma medicina, pois, total, mais completa e mais harmoniosa,
sultante do fragmentarismo analítico, em que a perda do sentido enquadrada no funcionamento orgânico do universo, e não iso-
unitário leva a um labirinto de fenômenos desconexos. Para re- lada dele e a ele rebelde; uma medicina que não pretenda criar o
sistir ao fracionamento da ciência na especialização, deve ocor- saber nem fazer leis, mas cuja maior sabedoria consista em pôr-
rer a síntese, a unificação, na orientação filosófica. A orientação se de acordo com as tão sabias leis já existentes.
materialista conferiu à nossa medicina um aspecto mecânico, Como se vê, não se trata de inovações particulares, mas de re-
frio, abstrato, em que a alma do paciente sente-se afogada. ferências à formação da mente atual, de que tudo derivou. Hoje
Da mesma forma que já dissemos com respeito ao trabalho, se fabricam médicos em serie, nas universidades, em que se apli-
também a medicina, assim como todas as manifestações da vi- ca, em qualquer cérebro, um verniz de cultura, aplicação que, re-
da, deve consistir, para ser genética e criadora, em um ato de forçada por um diploma, transforma-se em rendimentos e cre-
amor. O século futuro deverá aguardar na ciência a conquista dencia a atuação profissional, autorizando assim o funcionamen-
dessa nova qualidade, que pertence ao espírito e que falta intei- to da máquina cerebral confeccionada dessa maneira. A verda-
ramente em nosso tempo. deira medicina é, no entanto, um dote pessoal, uma vocação, um
sacerdócio; é o produto de qualidades biológicas intrínsecas, que
XXI. A CIÊNCIA DA ORIENTAÇÃO não podem ser improvisadas nem adquiridas apenas pela erudi-
ção. Não obstante, em nosso mundo, hoje se tende a fazer tudo
Continuemos a observar os erros do nosso tempo, sobretudo por via mecânica, enquanto o que vale é primeiramente o ho-
com respeito à orientação do cognoscível moderno, pois que a mem, o material com o qual, depois, tudo o mais se faz e sem o
nossa ciência, tão vasta e profunda, parece carecer exatamente qual nada se realiza. Assim, pois, para fazer o médico, é necessá-
do senso de orientação. rio, fato inacreditável, fazer o homem e, neste caso, mais do que
A carência de síntese é um dos males do nosso atual saber. A apenas um outro, um homem de tipo biológico ainda muito raro
análise, embora se tenha demonstrado hoje tão frutífera do ponto na Terra, isto é, o homem orientado e intuitivo, que tenha com-
de vista utilitário, arrisca-se a naufragar, se não for completada preendido todo o universo, ao menos nas grandes linhas diretivas,
por uma visão sintética que a discipline e organize, conduzindo- e que tenha alcançado, por evolução, qualidades de intuição e
a para metas mais elevadas. São ações opostas, que, no entanto, síntese que lhe permitam enquadrar as coisas com respeito ao to-
podem completar-se seguidamente, de modo que a ciência mo- do, para depois penetrar-lhes o significado e, assim, compreender
derna, de escopos prevalentemente práticos e utilitários, pode o estudo patológico no caso particular que ele deve tratar. É ne-
casar-se com uma orientação geral, que lhe falta e não lhe pode cessário o homem que, por evolução, seja mais sensível que o
advir senão de uma visão sintética unitária, em que tudo se re- atual, capaz assim de adotar na indagação o novo método do fu-
duz à unidade, tudo está conexo, formando um todo compacto, e turo: o método intuitivo. Esse homem, hoje, é esporádico, como
não pulverizado nas infinitas veredas do particular. que uma antecipação evolutiva. Os métodos da conquista do co-
Voltemos ao palpitante problema da medicina. Onde se nhecimento foram antigamente dedutivos, procedentes de edifi-
estuda a vida é necessário subir às fontes dela, que são interio- cações lógicas e racionais. Depois surgiu o método indutivo e
res, estão no espírito e são encontradas ao se caminhar para o experimental, e parecia que não existiam outros. Hoje, por evolu-
centro conceitual do universo. A medicina moderna seguiu a di- ção do instrumento homem, deve nascer o método intuitivo, que
reção geral da nossa ciência e, por isso, fechou-se na periferia, é a penetração do fenômeno por via de sintonização do dinamis-
na forma. É natural que, carregada de infinitas noções, ela tenda mo vibratório (comprimento de onda, frequência, potencial etc.)
à dispersão no particular, por falta da orientação que só um do sistema de forças do eu, com o dinamismo vibratório (idem...)
conceito unitário pode dar-lhe. O grande Hipócrates e os médi- do sistema de forças representado pelo próprio fenômeno. Mas
cos intuitivos da Antiguidade haviam concebido esta unidade e não é aqui que se pode desenvolver tais conceitos.
dessa maneira curavam. Ainda que a ciência nos tenha forneci- A nossa medicina é um setor da nossa ciência, que é uma
do um sem-número de meios de indagação e elementos de co- das manifestações do tipo de correntes do pensamento domi-
nhecimento, é necessário que tornemos, mas agora bem melhor nante em nossa fase histórica. Em cada século, o homem pensa
providos, aos métodos daqueles grandes vultos. Surgirá assim a de maneira diversa e assim se orienta. Tudo, pois, por ser pro-
nova medicina, que, sem ser empírica como a antiga, por ter gressivo, é relativo. Hoje, a orientação materialista invadiu to-
aprendido a observar objetivamente, será, como a antiga, orien- das as coisas. Daí a supremacia da forma sobre a substância, o
tada em harmonia com todas as leis da vida, e que, ao invés de ver, o existir, o trabalhar na periferia, e não na intimidade. O
erigir-se contra estas leis para submetê-las e dominá-las, irá método objetivo da observação e da experimentação é um mé-
aceitá-las e segui-las, vendo nelas uma profunda sabedoria. Ha- todo periférico, que dos efeitos sobe, por hipóteses e depois por
verá quem diga que isto não é medicina, mas sim filosofia da teorias, às causas, até estabelecer as leis. Este é o método que
medicina. Pois bem, acima do conhecimento científico, é im- está em voga, porque é sensório, mecânico, e pode prescindir
prescindível colocar essa filosofia, se não quisermos acabar em de um particular tipo evoluído de homem, hoje escasso, e ser
uma torre de Babel de especialistas que não se conhecem mais aplicado a todos ou quase todos. Em medicina também, isto
reciprocamente por se haverem afastado demasiado da origem significa uma ciência dos efeitos, e não das causas. É o mesmo
comum de todas as coisas. Este é o fim que nos espera se não que possuir um rio na desembocadura, ignorando o que se passa
nos apressarmos a formar uma ciência de orientação, que dê nas fontes e no percurso. O que sucede nas outras realidades
coesão e consistência e, com isso, uma direção ao conhecimen- que estão além da realidade material, a ciência o ignora.
to científico divergente da atualidade. A hodierna orientação da medicina espalha nesse campo a
Com todo o respeito que merecem as grandes conquistas já psicologia luciferiana da rebelião, hoje dominante em razão de
realizadas, sente-se a necessidade de enquadrá-las e coordená- nossa fase biológica involuída, em que a seleção se opera ainda,
las em um sistema único e universal que nos forneça a chave como no animal, através da força. É uma psicologia de luta e de
dos esquemas fenomênicos, chave com que poderemos melhor agressão, em que o eu afronta, armado de meios de indagação,
desvendá-los. Sente-se a necessidade de completar a medicina o fenômeno como se fosse um inimigo. É uma atitude egocên-
da matéria com uma medicina global, que inclua também o es- trica e utilitarista, que tudo pretende sujeitar a si mesmo, pon-
pírito e leve em consideração, além do organismo físico, tam- do-se como centro e lei do universo. Ora, este já possui uma lei
bém aquela outra parte tão importante do ser humano, ainda sábia e perfeita, e toda a sabedoria está em segui-la, em harmo-
134 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
nizar-se com ela, pois que ela exprime o pensamento de Deus. Mesmo a terapêutica, na prática, foi transtornada por esta
Só através dessa concórdia pode derivar a felicidade espiritual e corrente. É a massa que hoje faz tudo e, com a sua ignorância e
também a saúde física. Esta vontade de se erigir em lei própria, psicologia, estabelece o que se deve produzir para que possa ser
contra a ordem já estabelecida das coisas, esta elevação em an- vendido. É a procura que cria a oferta. O médico que quisesse
ti-Lei, substituindo à Lei a própria vontade, é patológica, asse- opor-se a essa corrente seria esmagado. A culpa é do público.
melhando-se à indisciplinada multiplicação celular do câncer Mas quando foi que o povo, soberano ou não, compreendeu o
em um organismo são, e não pode produzir senão mal e dor. que quer que seja? Calculou-se que as especialidades farmacêu-
Caminha-se, assim, seguindo um erro contínuo, que é de todo o ticas produzidas só nas nações europeias são em número de
pensamento moderno em todos os campos, pensamento que, mais ou menos de 50.000. Será isto ciência, indústria ou empi-
embora seja perspicaz, por ser invertido não pode criar o bem e rismo? O que decidiu é a propaganda, antigamente considerada
a alegria senão negativamente, ou seja, como mal e dor. E, as- charlatanismo. Ela, com o objetivo de vender, procura embair
sim, enquanto parece que se progride para a ascensão, verifica- os parvoeirões com a necessidade de tomar injeções e a ingerir
se que isto se dá somente na forma e que, na realidade, trata-se produtos inúteis, quando não prejudiciais, prometendo mila-
de um engano, porque efetivamente, na substância, anda-se pa- gres. Cria, desta forma, necessidades artificiais que se trans-
ra trás, em descida involutiva, para a barbárie e para a destrui- formam em hábitos, para estabilizar o próprio comércio. Isto
ção. Eis no que acaba a nossa ciência, por ser mal orientada e constitui um mal, não só para o bolso, mas também para a saú-
dirigida! Por conseguinte, cogitar da sua filosofia, como ciência de. Os medicamentos fundamentais, indispensáveis, são pou-
de orientação, não é coisa ociosa e inútil. quíssimos. Serão 50, no máximo 100. E por que tão grande có-
De tudo isto nasce uma medicina aparentemente maravi- pia de especialidades farmacêuticas? A razão está no interesse
lhosa, mas de resultados danosos, porque não cria saúde, mas em produzir o que a ingenuidade procura adquirir. E, assim, vê-
sim moléstia. Em face da sua direção, ela representa uma in- se que, no mundo, quase tudo é mentira. Mas tal é a necessida-
tervenção violenta, que, em vez de coadjuvar, viola a sabedo- de de confiança, a preguiça de não pensar por si mesmo e a pre-
ria divina, com o resultado de transtornar a ordem, ao invés de tensão de ser servido, que parece impossível a extinção da no-
facilitar-lhe as manifestações. Semeia, desta maneira, os pre- bre raça dos simplórios e seu renascimento com o homem.
cedentes causais de uma série de sempre novas formas pato- É bastante atentar para o tempo que duram o preço e a
lógicas amorfas, que cada vez mais nos atormentarão e aos forma desses produtos. Reina entre eles uma moda tão mutá-
nossos descendentes. Esta medicina de domador torna-se um vel e caprichosa como a feminina. O valor preponderante é
elemento a mais na degeneração das raças. Mas isto não nos dado pela novidade. Não significa isto que se procede por ten-
surpreende. Tudo hoje se encontra na via da descida involuti- tativas? E o que é isto senão empirismo? E o corpo humano
va, tendendo assim para o mal, a dor, a destruição e a morte. não é sempre o mesmo? No entanto as mesmas moléstias, ho-
O pensamento atual é um bulbo que a vida quer isolar para je, tratam-se com o branco e, amanhã, com o negro. O medi-
extinguir. Tudo – a arte, a música, a literatura, a filosofia, a camento, de início, faz milagres. Depois, parece que se exaure
política, a agricultura de exploração intensiva por meios quí- a sua carga de poder sugestivo conferida pela novidade, o sa-
micos, a técnica e a ciência utilitária, o homem como pensa- ber da descoberta, o nome estranho e exótico, então deixa de
mento, como organismo, como ação, as suas máquinas e todo curar e cai em descrédito. Por quê?
o seu poder – tudo caminha nesta vida. Assim também a me- Como se vê, o fator psicológico desempenha uma função
dicina, segundo o ritmo de nosso tempo. O sistema é por toda importante na terapêutica; assim, em grande parte, não é o re-
parte o mesmo: triunfos aparentes, promessas falazes, vanta- médio com os seus elementos químicos que curam, mas é ―la
gens vistosas e imediatas e ―aprés moi le deluge‖28. fois qui guérit‖29 (Charcot). É certo que, hoje, pretende-se fa-
Toda a nossa cultura é hoje divergente do centro, da unidade bricar esta fé com a psicoterapia, psicanálise e princípios afins.
e, por conseguinte, desagregante, ao invés de convergente para a Mas a fé faz parte de movimentos de força no organismo espiri-
unidade, isto é, construtiva. Afastamo-nos, assim, das fontes da tual, obedecendo a leis próprias, que não permitem obtê-la fa-
vida, que tudo alimentam, e permanecemos isolados e perdidos cilmente, à vontade, sob a ilusão de que se poderia conseguir is-
na especialização. É uma corrida louca de todo o pensamento to pela sugestão. Ela se verifica quando quer, e a vida sabe pro-
moderno. A humanidade, assim orientada por séculos de materi- teger-se. A fé salutar, que cura, não se fabrica em série, como
alismo, não pode mais parar e, por inércia, é fatal que ela só po- os medicamentos, mas faz parte da ―vis sanatrix naturae‖30,
derá conter-se quando colidir com a resistência das invioláveis constituindo um estado de dinamismo espiritual que se processa
leis da vida, constituídas por imponderáveis dinamismos de fer- quando as leis protetoras da vida o querem. Esta fé não se co-
ro. Choque apocalíptico, mas necessário. Quando esta humani- munica mecanicamente, por fórmulas estudadas, não sentidas
dade tresloucada, que avança estupidamente, em massa e por nem vividas por quem as quer impor. Deve-se dar muito mais, a
imitação, acreditando que a lei e a verdade se fazem somente própria vida, a si mesmo, e, para dar, deve-se possuir algo co-
com o número, quebrar a cabeça, então talvez compreenderá. E, mo força biológica. Mais do que nunca, aqui, o médico deveria
assim, as leis da vida a salvarão necessariamente. ser um sacerdote ou um taumaturgo.
O indivíduo não vê senão um meio de salvação: isolar-se A atual patologia e terapêutica limita-se ao corpo e ignora
em todos os campos dessa corrente, libertando-se o mais possí- em grande parte o espírito, de que, sobretudo, o homem é feito.
vel de todos os produtos de uma civilização transtornada. Re- Cura-se este como se procederia com um animal qualquer. Ora,
sistência passiva em vez de misturar-se ao rebanho. Em todos o princípio genético da vida está no seu íntimo, onde, por conse-
os campos: cultural, político, religioso, econômico, apenas do- guinte, encontra-se também o princípio regenerador e reparador.
mina o interesse, pelo qual a mentalidade moderna conduz à Por que o tempo cura? Por que? Porque é no tempo que se de-
formação de grupos para a exploração do próximo. Quem de- senvolve o ritmo do transformismo universal; porque, no tempo,
fende o indivíduo? Ninguém, e é lógico. Ele acredita em varias a divina potência que está na intimidade de todas as coisas, ani-
formas de defesa e na justiça, mas é necessário que aprenda por mando-as e guiando-as, pode aparecer e manifestar a sua vonta-
si a defender-se das infinitas mentiras humanas dominantes por de de bem, o seu inexaurível poder curador. Desta maneira, esta
todos os lados. No entanto, com que beata incoerência as mas- potência, através do canal de sua manifestação, que é a forma,
sas se deixam engazopar por todas as formas de propaganda!
29
―A fé que cura‖. (N. do T.)
28 30
―Depois de mim, o dilúvio‖. (N. do T.) ―Força curadora da natureza‖. (N. do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 135
pode chegar a agir terapeuticamente até à periferia material, que melhor, mas do tipo mais capaz de se impor egoisticamente.
o médico vê. As causas estão todas na profundeza, no espírito, Uma humanidade assim involuída não pode polarizar-se senão
de que seria necessário, pois, conhecer a história, a evolução, a em torno de um indivíduo ou de uma classe que, sobrepujan-
patologia. Os traumas físicos são antes traumas espirituais, e a do-a e vencendo-a, possa, por conseguinte, dominá-la segundo
sabedoria divina, que os cicatriza, começa a operar antes nestas o próprio tipo de forças que prevalecem nela. É lógico, pois,
causas, até atingir as consequências orgânicas. Como é possível que cada povo tenha o governo que merece e cada governo te-
curar sem saber estas coisas? A medicina completa é também nha os súditos que lhe correspondam. Em toda manifestação da
mística e religiosa. A patologia e a terapêutica verdadeiras deve- vida, apenas um indivíduo ou grupos de indivíduos, por vonta-
riam abarcar séculos da vida do indivíduo, segundo as alternati- de e inteligência, sobressaem um pouco da massa, mas não o
vas da sua longa caminhada no tempo. Que sabe a ciência da- bastante para distanciar-se completamente. Então ele se erige,
quela outra hereditariedade espiritual, que, pela universal lei de segundo o esquema universal dos fenômenos, em central di-
dualidade, age por um canal paralelo e complementar ao da he- nâmica autônoma, isto é, em sol ou núcleo em torno do qual,
reditariedade psicológica, que é a única hoje conhecida? En- como os satélites ou os elétrons, começam a girar as unidades
quanto a ciência não conhecer a biologia transcendental do espí- dinâmicas menores, de nível negativo com respeito ao dina-
rito e a anatomia, psicologia e patologia deste organismo dinâ- mismo central, que é positivo. Esta é uma lei própria de qual-
mico, ou sistema de forças, individualizado por comprimento de quer manifestação biológica, que se manifesta também nas re-
onda, frequência de rotação, potencial etc., não poderá compre- lações sociais, logo que estas devam ser disciplinadas em vir-
ender nem mesmo a patologia do organismo físico, que não é tude da convivência de muitos indivíduos. O conceito de auto-
senão a última consequência de tudo quanto nós mesmos prepa- ridade se baseia assim em um princípio de dinâmica biológica,
ramos com os nossos pensamentos, com a nossa vontade e ação, que, neste caso particular, é social. Em política sucede o que
no campo do imponderável. O diagnóstico hoje se faz, no entan- observamos com o galo no galinheiro, com o homem na famí-
to, à base da sintomatologia imediata e superficial denunciada lia, entre o núcleo e o protoplasma na célula, e, mais longe, na
mais ou menos pelo paciente, sob controle do médico, que não o intimidade do átomo e no sistema solar etc. Formado o poder
conhece e o vê pela primeira vez, tratando-o como corpo em sé- central, em seu derredor começa a rotação dos elementos saté-
rie, e não como indivíduo que ele é; como moléstia que se pre- lites. Da substancial natureza e valor biológico do núcleo deri-
sume mais ou menos igual para todos, e não como típico caso va o direito de comandar e o dever de obediência.
específico. Hoje, o utilitarismo prático e a lei do mínimo esforço A sociologia não é senão um ramo da biologia e só assim
impõem rapidez. Tudo é em série, em massa. Os homens, como pode ser compreendida. Ora, dado o atual nível evolutivo hu-
as máquinas, reparam-se em série, como se fazem as bicicletas. mano, e inútil procurar nela o elemento moral. A obediência
Concluindo, falta aos nossos tempos e suas produções a ori- dos muitos aos poucos baseia-se num princípio de fraqueza
entação que forneça a visão dos fins últimos a serem atingidos. É dos muitos e na necessidade de compensá-las com a força dos
uma verificação que não tem por fim desacreditar a ciência ou a dirigentes. É uma lei de complementação. A vida não rende
medicina. Existem médicos iluminados e honestos, e a ciência é homenagem senão ao mérito efetivo e, mesmo em tal caso, tra-
uma grande conquista devido ao esforço e à abnegação das gran- tando-se de um mundo involuído, o mérito pode consistir na
des mentalidades que a elaboraram, porque também ela possui os força brutal expressa pela dominação. Tudo depende da estru-
seus gênios e os seus mártires. Respeitemo-la, mas saibamos tura dinâmica do sistema, que requer do núcleo, sobretudo, a
também usá-la com sabedoria, só colocar o imenso poder que de- potência de reger os satélites.
la deriva em mãos de quem sabe dele fazer bom uso. Todavia, se Pela própria estrutura, faz-se necessária uma certa proximi-
a ciência sabe fabricar tantas coisas, não sabe ainda fabricar os dade qualitativa, uma afinidade entre governantes e governa-
cérebros que possam bem usá-la. Cheios de sapiência, falta-nos dos, pois, se quem detém o poder é demasiado evoluído e, as-
ainda a sabedoria. Possuímos todas as ciências, mas nos falta a da sim, se distancia demasiado da média, os pontos de contato
orientação. Assim, às vezes, a ciência se torna um mal, em virtu- não subsistem mais, e é impossível a troca dinâmica e a com-
de do que seria melhor que os cientistas não fizessem certas des- preensão. Então, os governados destroem o poder, que já não
cobertas ou, pelo menos, não as tornassem conhecidas. corresponde mais às suas necessidades e capacidades. Desta
Quando se pensa que hoje a humanidade está à mercê de maneira, um santo jamais poderá governar, mas apenas o indi-
poucos homens que possuem o segredo e os meios da bomba víduo ou a classe que possui as qualidades e também os defei-
atômica, e que os povos inermes, dada a mentalidade domi- tos próprio da involução da maioria.
nante, encontram-se sob a ameaça de ser por ela massacrados Quando, na ilusão própria da ignorância do atual estado da
sem remissão, conclusões amargas como esta poderão pare- humanidade, quem comanda acredita comandar por si, é porque
cer justificadas. ignora que na realidade é um servo da vida, que o utiliza para
os seus fins e o elimina quando não desempenha mais, como
XXII. O CONCEITO DE PODER EM potência, vontade e inteligência, a sua função social. O homem
BIOLOGIA SOCIAL atual, muito mais carne do que espírito, menospreza o chefe
que não seja um domador, porque necessita de ver nele a per-
Defrontamo-nos agora com o problema do comando, ob- sonificação do seu ideal de supremacia material e o vencedor na
servando o mecanismo psicológico que preside ao funciona- luta animal pela vida. Os membros exigem direção e proteção
mento das forças nas quais se baseia a autoridade, seja em do centro, o cumprimento, ainda que inconsciente, dos fins da
quem a exercita, seja em quem lhe obedece, e procurando pre- vida, que são de prosperar e progredir: bem-estar e progresso.
cisar também neste campo quais são os erros modernos e a sua O homem moralmente evoluído, o homem evangélico da bon-
razão de ser. Esses são erros de fundamentos, e de tal vastidão dade e do espírito, corresponde a outras funções biológicas, que
que é muito difícil se corrigir. Da mesma forma, o mal, aqui, não dependem de governo pelo domínio. Também ele servirá
não se encontra na perfeita lei de Deus, que tudo rege, mas no de núcleo que atrai satélites, mas não no campo das organiza-
espírito humano de revolta ções sociais que se baseiam na força material e econômica.
Qualquer que seja o sistema político e o período histórico Por esses princípios de dinâmica social, vê-se como os
escolhido para exame, o comando cabe ao mais forte. Esta é a eventos históricos são determinados por impulsos interiores,
base do poder na atual fase biológica da humanidade, em que a dos quais os atores principais não têm conhecimento. A histó-
seleção é dirigida não para o triunfo do elemento moralmente ria, pois, não avança como produto do conhecimento e da
136 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
vontade humana, mas sim movida por um dinamismo interior, função. Mudam assim as várias verdades políticas conexas em
de que os homens, mesmo os mais importantes, são em geral cadeia no caminho evolutivo da sociedade humana. Elas vão e
uma expressão inconsciente. Mais do que na inteligência de- vêm, contradizem-se e se combatem, transmudam-se no oposto
les, esse dinamismo parece situado no subconsciente das mas- a cada momento, no entanto não constituem na história senão o
sas, dado por uma espécie de alma coletiva inconsciente, que desenvolvimento de um único pensamento: o da vida, que o
sabe, por intuição, sem poder dar-lhes as explicações racio- guia. Todo governo se declara insubstituível representante do
nalmente, a substância da ação necessária a cada momento. bem público e, apesar disso, cedo ou tarde, vem a ser substitu-
Então esse dinamismo confia aos mais diversos indivíduos as ído. A verdade, feita para uso e consumo de cada um deles, se
mais variadas funções sociais, que eles cumprem segundo o inverte. E, assim, por ação e reação, compensam-se os exces-
próprio tipo biológico, porém ignorando cada qual a coorde- sos e os erros de cada um; por superações, desenvolve-se um
nação que se verifica, somente conhecida pela inteligência pensamento único, continuamente progressivo, aquele que a
que dirige a história. Não será esta a própria sabedoria de história, e não os homens, pensa e quer. Mudam os servidores
Deus, que opera além do nosso conhecimento, ao elevar o ní- da vida escolhidos para o bem público, e, através de tantas
vel térmico em nosso organismo, buscando defendê-lo pela formas e indivíduos, que acreditam combater um ao outro,
febre, quando assaltado pela enfermidade? Não se trata sem- mas, ao invés, equilibram-se, o bem público é e vem a ser por
pre da mesma fraternal e benéfica onipresença da sabedoria todos diversamente servido. Por isso se vê como na história
divina? E, assim, não estaremos nós, quer em nossa vida indi- reina a lógica e o equilíbrio, não obstante as aparências opos-
vidual, quer na social, confiados a essa sabedoria, que existe e tas, e que tudo nela, desde um incidente momentâneo até um
funciona acima da nossa consciência? grande evento, como a maturação e queda da civilização, é re-
É desta sabedoria e potência divinas que estão no funcio- gulado inteligentemente por uma lei. A essa lei se deve que a
namento da vida, que os homens recebem o poder. São elas que história caminhe, não loucamente como os interesses individu-
o dão, mas que também o tomam. É uma espécie de direito di- ais desejariam, mas para suas metas.
vino, mas em sentido biológico, isto é, que permanece enquanto Este é o estado atual do nosso mundo no seu nível ainda in-
justificado por uma função vital no corpo social, que representa voluído. Dado que a consciência coletiva se encontra na sua fa-
em outros termos o real cumprimento de uma missão. Um direi- se paleontológica de formação, ela possui expressões exterior-
to que cessa quando deixa de ser biologicamente útil e, portan- mente caóticas, cuja lógica só se encontra nas diretivas internas
to, justificado. Segue-se daí que, assim sendo, seria rapidamen- da história, a que, pois, tudo é confiado e que constituem uma
te eliminado um santo posto a governar, porque se bem adapta- zona situada fora da consciência e da razão do homem. Mas,
do a funções altíssimas, essa não é a sua, como também é eli- em um nível evoluído, uma vez formada uma consciência cole-
minado o involuído que abusa do poder, transformando-o em tiva, o homem terá conquistado o senso do dever e das funções
gozo para vantagem próprias. A vida exige uma utilidade em que cabem a cada um, dirigentes e dirigidos, no organismo so-
troca dos poderes que confere e, quando essa utilidade social cial. Então, todo poder será mantido não por meio da força, mas
vem a faltar, ela os retoma. sim pela consciência do cumprimento de função e missão, e,
Se as massas são involuídas, esses poderes serão exercita- sem uso de força, o cidadão capaz de compreender, o reconhe-
dos de forma proporcionalmente involuída, isto é, pela força, cerá e respeitará espontaneamente. Mas esta é uma meta dife-
que atinge as raias de ferocidade. Mas a função, não importa rente, um ponto a ser atingido. O ponto de partida é bem dife-
qual seja a forma que ela deva assumir de acordo com o grau rente, e o mundo atual está entre os dois.
evolutivo dos povos, deve estar sempre presente. Assim se ex- A autoridade, geralmente, nasce da força e da violência, as-
plica como alguns fortes, que polarizam em torno de si os po- sim como a propriedade, frequentemente, nasce do furto. Mas,
vos, tenham sido eliminados por outros mais poderosos, quan- com isto, o poder não cessa de desempenhar a função de uma
do, por opressão ou abuso, traíram através da tirania a sua mis- primeira ordenação e disciplinamento da sociedade humana.
são ou, por uma razão qualquer, deixaram de ter cumprido a Não é possível esperar mais de uma humanidade involuída.
função de dirigir e proteger, que a vida lhes confiou. Como se Em nosso ciclo histórico, o princípio da autoridade está ama-
vê, trata-se de reações biológicas automáticas, que todas as durecendo, de modo a passar da sua primitiva fase de violência
afirmações históricas de poder por direito divino não podem e opressão à fase futura de missão. Quantas lutas serão ainda
conter, mal a missão e a função cessem. No dia em que um go- necessárias para atingi-la! Através de cada forma política, a
verno e uma classe dirigente comecem a viver só para si pró- vida matura alguns dos diversos aspectos e faz uma conquista
prios e não mais para a nação, iniciam o próprio suicídio. diferente. O nosso tipo de poder ressente-se das suas origens e
Quem, pois, na essência, atribui e retira o poder não são os se apoia na força, sem a qual não se poderá manter, mas tam-
homens, não importa qual seja o sistema político, mas as forças bém possui o pressentimento do seu futuro. De fato, mal se te-
biológicas. Elas proporcionam o grau evolutivo dos governan- nha consolidado pela força, procura formar uma corrente favo-
tes ao dos governados e dispensam um servidor que tenha se rável de opinião pública, um consenso geral, porque já admite
tornado inútil, quaisquer sejam as defesas que a sua posição de o poderio de uma outra força, que se torna cada vez maior com
comando lhe tenha facultado acumular e usar para permanecer a formação da consciência coletiva: a força de persuasão. Mas
artificialmente no posto. A vida não nutre mais essas formas, isto só se dá em um segundo tempo, após a estabilização pela
disseca e as enfraquece interiormente, chamando à ribalta da força, seja esta bruta, econômica ou do pensamento diretivo,
história os elementos adaptados, que lhes dão o último golpe. mas sempre força, sem o que não pode haver conquista, por
Tais são as leis biológicas que regem a política de todos os mais que se queira mascará-la sob os mais diversos métodos.
tempos e lugares e a que todos estão sujeitos. Não há barreira É verdade que os governantes são os servos da vida, mas
legal que possa sustar o seu irrompimento, pois que, de uma aquele que hoje quisesse exercitar o poder sem uma porcenta-
forma ou de outra, elas prevalecem sempre. gem de egoísmo centralizador e impositivo, pretendendo em-
A primeira afirmação de todo novo governo é dizer: eu re- pregar apenas um método evoluído da função e missão, anteci-
presento a nação. E isto é verdade, até que apareça um outro par-se-ia demais à psicologia dominante e fracassaria. O tipo
mais forte e mais adaptado que diga o mesmo. Desta forma, os biológico atual médio não pode compreender os deveres, senão
homens e as classes sociais vão ocupando na história uma po- quando impostos pela força e pela ameaça em prejuízo próprio.
sição de autoridade que eles afirmam por si mesmos, mas que, O uso da espada, dada a imaturidade prevalecente, faz parte do
na realidade, despersonaliza-se e só subsiste e tem valor como poder. Este, como o centro e o núcleo, é de sinal positivo, ou
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 137
seja, é másculo. Assim sendo, elimina da sua função o espírito que admirar-se, então, que, em um tal mundo, quem haja con-
de amor e de sacrifício, que é feminil, isto é, próprio dos ele- seguido, só Deus sabe com que esforço, conquistar um poder
mentos que giram na periferia e possuem nível negativo. Esta ou um posto qualquer de autoridade, não seja levado a pôr em
não poderá ser jamais a vitalidade dos governantes, que devem primeiro plano o gozo do prêmio das próprias fadigas? A defe-
ter um viril espírito de justiça. E eis que o poder, ao lado da es- sa de infinitos rivais custa não pouco trabalho. A empresa é ar-
pada, não exibe um coração, mas uma balança. A ele não se riscada, a posição incerta. Como se pode, ao invés de procurar
pode pedir sacrifício e amor, pois que o instinto dos povos pede aproveitar-se logo, pensar no bem do povo e no exercício de
força e justiça. Os dirigentes, muitos temos, são hoje chamados uma função-missão? Isto exigiria uma estabilidade, um respei-
pelos fatos a esta realidade biológica, que é a base das respostas to, uma compreensão, uma consciência que o homem atual nem
e reações aos próprios atos da parte dos súditos. É lógico que o mesmo imagina ainda. Ao contrário, só a força comanda. Se
atual sistema do poder esteja ligado com a força e continue existe um poder forte, então há ordem, mas ela se chama tirania
com esta ligação. A força está sempre pronta a recair contra e sujeição. Se ele se desagrega, todos se sentem livres e, então,
quem a emprega (―quem usa a espada morrerá pela espada‖), surge a desordem, a luta, o caos. Como se pode pretender que
por isto quem possui o poder não tem outra defesa senão uma uma disciplina social possa agir, nesta fase evolutiva, sem um
outra força maior. Se não a possui, está perdido. É uma fatal absolutismo que se imponha pela força? Bela seria realmente
consequência do sistema que se move sobre tais elementos. uma ordem de seres livres!
Força de qualquer gênero, mas que mostre a sua real potência e Mas, para isto, o homem de hoje está ainda absolutamente
superioridade. Se faltar, outros extratos sociais surgem, para imaturo. A disciplina social necessária à vida das nações, qual-
operar a substituição. A primeira arremetida é dos mais involu- quer seja o seu regime de governo, não se pode obter, na fase
ídos, senhores somente da utilização da força bruta, pois, ainda atual de civilização, pelas vias da liberdade da consciência, mas
que possuam também a econômica, falta-lhes, para usá-la, a in- somente por meio da coação. A força é um elemento necessário
teligência organizadora. Eles duram pouco. De fato, em geral, à educação do homem inferior, incapaz de compreender outro
as revoluções devoram os próprios filhos. Estes, assim, exau- meio. Por isto a vida ainda a admite, porém não mais irá admi-
rem a função de aplainar o caminho para elementos mais adap- ti-la amanhã, com o homem evoluído. É elemento necessário
tados, da segunda ou terceira arremetida, que são os que resis- hoje, porque a disciplina, em qualquer organização de elemen-
tem e com mais critério permanecem. Em suma, a vida deixa a tos, quer se trate de homens, de átomos ou estrelas, é indispen-
função de comando à uma classe involuída o bastante para ter sável. Todo o universo não nos dá um exemplo patente?
afinidade com as massas, mas evoluída o suficiente para poder
assumir o encargo de fazê-las evoluir. XXIII. CRISE DE CIVILIZAÇÃO
A função está, pois, biologicamente aberta a todos, mas
é reservada pela vida ao mais adaptado. Este, ou bem a desem- Os erros humanos e as dores que naturalmente se seguem
penha, ou paga com a própria vida, sendo mantido na incum- dependem, em toda a sua multiplicidade, de um único erro fun-
bência enquanto pode executá-la, após o que é liquidado. Re- damental a que eles se podem reportar, erro dado por uma ati-
sulta disso um vai e vem de homens, um contínuo fluxo e re- tude psicológica de revolta às leis divinas que regem o mundo,
fluxo, uma cadeia de lutas redentoras, de quedas espantosas e a ponto mesmo de negar-lhes a existência. Instaura-se assim, na
de ascensões incríveis. Tudo isto não é fortuna, nem acaso. É Terra, em qualquer campo de atividade, um regime de desor-
função, é a lógica da vida. Mudam apenas as formas, os meios, dem e, consequentemente, de sofrimento, enquanto que a lei
as dimensões. O motivo, enquanto o homem não se elevar a divina é feita somente de ordem e a ela, que é base da felicida-
outros graus de evolução, é sempre o mesmo. Tudo se passa de, propende permanentemente. Essa lei restaura a cada passo
em turnos, porque, segundo a própria Lei, igual para todos, os as destruições que a ignorância do homem opera em dano dele
famélicos recém-chegados suavizam os próprios costumes e se próprio; procura, através das reações que infligem dor, fazê-lo
exaurem no próprio bem-estar, caindo por sua vez vítimas de compreender que só na ordem pode estar e estará a sua felici-
outros novos que chegam. Assim como as ondas do mar, as vá- dade; busca sua compreensão, como é necessário para um ser
rias formas políticas se sucedem e se sobrepõem no oceano da que deve permanecer livre e tornar-se consciente, não devendo
história. Assim se forma o tipo da atual seleção biológica hu- ser manobrado como um autômato. O erro e a dor dependem da
mana, operando sobretudo no plano animal; seleção ativa no liberdade, grande dom por Deus concedido ao homem, mas
campo político-social, bem como em todos os outros campos: grave perigo enquanto o homem, por não saber utilizá-la, dela
orgânico, econômico, intelectual etc. Desse modo, a vida mar- abuse. Liberdade que nos custa grandes dores, mas sem a qual
tela as multidões, a fim de que, ativas ou passivas, despendam não haveria experiência própria nem conquista de consciência.
centelhas criadoras e assim, na diuturna atividade afanosa, pe- Grande dom de Deus, com o qual Ele nos coloca no grau de
jada de conquistas, golpes e dores, elas evoluam. seus colaboradores na divina e eterna obra de criação, elevan-
A vida é sábia e justa. Faz sempre o melhor possível com o do-nos à dignidade de seus ministros. Mas quanto deverá sofrer
mínimo esforço, segundo os elementos de que dispõe, dados o homem antes de conseguir tornar-se digno d'Ele! E bendita
pelo grau evolutivo de cada povo. Ela não pode dar-lhe uma seja a irmã dor, que, para o bem dele, o educa e o impele, pelas
forma de governo superior ao que este pode compreender. Co- vias da liberdade da consciência, a seguir os caminhos que o
mo pode o cérebro evoluir por si só, para formas superiores, se, conduzirão à própria felicidade!
paralelamente, não evolui todo o corpo? Tudo é conexo e inter- É inútil repetir hoje estas coisas em nosso mundo. A maio-
dependente em uma nação. Méritos e culpas não constituem ria, que é involuída, não pode compreendê-las. Já se fizeram
jamais um fato isolado. Só um povo de santos poderia pretender muitas pregações a este respeito, e pouca atenção se lhes dá
um governo de santo. A involução é de todas as partes, e quem agora. A palavra cabe, neste momento, à irmã e mesma dor, pa-
acusa usa os métodos do acusado. O egoísmo está presente em ra que ela, azorragando a adorada carne, consiga desatar o espí-
todos. Dirigentes e dependentes estão habituados a considerar- rito e induzi-lo a refletir e compreender. Esta é a dura realidade.
se falsos e inimigos. Todos são adestrados para combater uns De nenhum resultado valerá pretender passar sobre ela com mil
contra os outros. As nações não se fabricam com poucos ho- astutos expedientes, à procura de evasão, porque ela depende
mens dirigentes, mas com as forças espirituais das massas. O das leis da vida, que ao homem não é dado alterar. Elas sabem a
que se pode pretender, se tudo se baseia na força, no direito de meta benéfica que se deve atingir, e, quando o homem não quer
conquista, e não na compreensão, disciplina e colaboração? Por compreender, certos desastres são necessários.
138 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
Já vimos os vários aspectos humanos desse erro fundamen- tes, desaparece a finalidade, falta o porvir, freia-se a evolução e,
tal, feito de orgulho e de rebelião, isto é: l o) O erro moral, de com a evolução, a vida. O ideal do ventre e do prazer não bas-
não compreender a lei divina; 2o) O erro científico, especial- tam para regê-la. O ―carpe diem‖31 é a renúncia ao progresso, é
mente no campo médico, do qual depende a nossa saúde física; a inconsciência sem esperança. Sente-se que hoje falta alguma
3o) O erro político-social, causa de guerras e de revoluções. Ve- coisa, ainda que imponderável: é a atmosfera em que o espírito
jamos agora o 4o aspecto: o erro intelectual, que desorienta todo respira e sem a qual sufoca. A filosofia materialista prosperou
o pensamento moderno. Eles são quatro formas de desordem no vasto terreno dos mais baixos instintos, fazendo largo e am-
que violam a Lei, do que derivam varias carências ou privações plo apelo à animalidade do involuído; engodou-o, iludindo-o
de bens, ou seja: 1o) Miséria material; 2o) Aumento de molés- com a libertação da fadiga de evoluir, ou seja, com a possibili-
tias; 3o) Destruição bélica e revolucionaria; 4o) Desorientação dade de construir um amanhã mais elevado e feliz sem trabalho,
espiritual, que atinge as raias da loucura. prometendo dar-lhe rapidamente um paraíso na Terra por meio
No campo intelectual, o erro moderno, baseado no orgulho, das conquistas sociais e da técnica científica. E tudo isto acabou
assume a forma de racionalismo. Esta é a forma mental do nos- em revoluções e guerras; paraíso nenhum, mas ódios e destrui-
so século, que nela se encerrou sem saber como sair. É uma ção infernais! O materialismo, atingindo as suas últimas conse-
forma que teve a sua grande função, na qual, porém, os recur- quências, fracassou por ter mentido. Está liquidado.
sos espirituais do homem não se podem esgotar. A razão repre- Urge mudar de rota. Esta crise não se resolve pelos velhos
senta, na fase relativa e transitória da personalidade humana, processos, destinando novas complicações de nacionalismos
um meio de construção da consciência, que deve ser abandona- guiados pelo mesmo espírito egocêntrico. Não se trata aqui de
do depois de conseguido o objetivo. Na realidade, possuímos novos sistemas racionais, mas da ruína desse tipo de sistema. É
um vir-a-ser psicológico relativo, em um contínuo processo de exatamente toda a orientação da faculdade humana especulativa
superação, vir-a-ser de que o racionalismo não é mais que um que está em crise. As tentativas atuais são apenas as últimas as-
particular momento, ao qual se pretende conferir um valor ab- persões de uma forma mental que se extingue. É necessário
soluto e definitivo. O racionalismo é uma forma de pensamento descer ainda em dor e treva. A sapiência do rebelde só pode
destinada a esgotar-se na sua função construtiva e que não pos- acabar na confusão babélica. O colapso é inevitável. No fundo,
sui valor senão relacionado a esta. Ora, em nada se vê tanto o esperam o caos, a loucura, a desesperação. É necessário reco-
aspecto luciferiano do espírito de orgulho e de rebelião quanto lher e comer os frutos envenenados do egoísmo e do ódio, se-
neste racionalismo, que substituiu o eu a Deus e o querer hu- meados pelo orgulho e pelo espírito de revolta, antes de poder
mano às leis da vida. Pretender-se-ia assim dominar a eternida- subir de novo pelas vias construtivas da fé e do amor. É neces-
de, reduzindo-a à forma do nosso presente, e o absoluto, redu- sário lançar-se em direção oposta, da periferia ao centro, da
zindo-o e encerrando-o nos termos do nosso relativo. O racio- forma à substância, retornando a Deus. O homem já experimen-
nalismo atual não é um racionalismo são, dirigido à compreen- tou nas idades pré-históricas o seu juvenil ciclo intuitivo instru-
são da lei de Deus, harmônico e sábio, mas um racionalismo tivo. Superou-o no ciclo de forma mental racionalista, em que
rebelde, que torna o homem centro e senhor de tudo, fazendo da conquistou o uso consciente do seu eu. Deve ainda superar este
vida um fim em si mesmo, e não um meio subordinado a metas ciclo em um novo, intuitivo-consciente, em que o espírito volte
superiores. A culpa não está em admitir que, se Deus nos deu ao contato com a divina essência das coisas, mas dando-se con-
uma inteligência, é justamente para que possamos usá-la no ta disto analiticamente, por meio dos poderes da racionalidade
pensamento. A culpa está no pensamento exclusivista, egocên- conquistada. É um caminhar para Deus não mais apenas através
trico e rebelde, no pensamento autônomo, que não se dirige pa- da fé, mas também através da ciência. O atual antagonismo en-
ra um conhecimento sempre mais profundo das leis do ser, ex- tre ciência e fé não passa da contraposição de um momento,
pressão do pensamento de Deus, para depois segui-las com sa- que não exprime senão o presente contraste entre Deus e o eu.
bedoria. Está na pretensão de descobrir essas leis com o fim di- Que grande coisa tornar-se-á a ciência quando este tão miserá-
tado por seu instinto animal de luta, que não se apercebe do es- vel contraste for superado e ela, não mais egocêntrica, isolada
pantoso erro em que recai e das terríveis consequências de sua em seu realismo, entrar em contato com Deus, para nos mostrar
atitude. A vida se transtorna por isto, e os resultados, sendo a grandeza d'Ele e do Seu amor, penetrando, com o estudo dos
movimento em direção contrária à da Lei, oferecem carência ao fenômenos, na profundeza do seu pensamento diretor! Que
invés de abundância. Acredita-se construir e, contrariamente, se quadro estupendo ela poderá então mostrar-nos do funciona-
destrói. Já vimos os mais tremendos absurdos devidos ao racio- mento orgânico do universo e, com que vantagem para nós, po-
cínio. Em face dessas raízes intelectuais, pode-se definir o nos- derá assim precisar, nesse universo, a nossa posição, atividades
so momento histórico como a face luciferiana da negação, a ho- e fins éticos, espirituais, sociais e biológicos. Os caminhos da
ra da desorganização social e da liquidação dos valores éticos, a razão, analítica e fragmentária na sua objetividade, são pouco
hora da aventura e da inconsciência, em que se antepõe o hoje adequados para nos levar mais alto, até Deus, sendo mais adap-
ao amanhã. É um mundo fadado a ruir na desordem. tados para nos fazer permanecer aderentes ao conceito, à forma
O movimento é profundo e grave. Ele possui um significado e à prática utilitária. Só os caminhos da intuição sintética e uni-
biológico de crise de civilização, de laboriosa conclusão de uma ficadora são capazes de nos aproximar da concepção e da sen-
fase evolutiva. Em nosso nervoso dinamismo parece que a vida sação de Deus. Quando o homem tiver superado o processo ra-
eleva a sua temperatura, para poder despender um esforço de- cional, tão relativo e indireto, e souber seguir, com método ci-
sesperado de superação. Na verdade, são ânsias do enfermo que entífico e maior maturidade espiritual, as vias da intuição sinté-
se debate na febre. Um outro erro está em acreditar que se trate tica e instantânea, quanto melhor poderá compreender Deus
de orientações particulares e de questões de detalhe, que podem onipotente! Não se trata de destruir a razão, laboriosa e preciosa
ser resolvidas com retoques no passado, utilizando os métodos e conquista que não se pode desperdiçar, mas de completar e con-
a psicologia do passado. Trata-se, ao invés, de uma crise da vida tinuar a evolução do racionalismo com os meios da fé, que se
humana, de fim do mundo atual e do início de um novo ciclo bi- tornará assim iluminada e consciente, fundida com a razão, que
ológico, baseado em princípio inteiramente diverso. permanecerá então como sua escrava.
A atual posição da psicologia humana exauriu a sua função, Conceber Deus com uma nova aproximação de precisão e
não tem mais amanhã, pois, como ela é, não pode mais evolver. profundidade; senti-Lo presente não mais vaga e instintivamente,
Sente-se este vazio de desconfiança, e procura-se por um ama-
31
nhã. O racionalismo materialista suprimiu os ideais, e, sem es- ―Aproveita o dia‖ (N do T.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 139
como na primordial fase pré-racional, mas ostentando todo o po- ruínas. A nossa é uma hora negativa, de inversão satânica de to-
der da fase racional, por tê-la atravessado, assimilado e superado; dos os valores, até à derrocada. A palavra de ordem é: destruir.
sentir Deus por intuição de fé confirmada e compreendida por Tal é o fruto da teoria do super-homem, expressão do século. O
consciência analítica e racional; usar o eu científico moderno sem paraíso do bem-estar material, ao invés de se aproximar, afas-
diminuí-lo, com toda a sua razão intacta, diante de Deus – esta é tou-se. Usamos da liberdade para caminhar contra, e não segun-
a grande orientação e conquista biológica do homem de amanhã. do a Lei. Agora ela está contra nós. Nada mais resta senão pagar
Que laboriosa época a nossa, em que, entre tantos desfazi- e recomeçar pela via oposta. Hoje, de novo, a razão crucificou
mentos, tantas novas sementes devam germinar; que profunda Cristo. Agora, a vida crucifica a razão, para nos reconduzir a
ansiedade hoje, na vida humana, entre a morte e a ressurreição! Cristo. Não se compreendeu que, crucificando-se a Cristo, não a
Momento histórico bifronte, híbrido, contrastante, feito de des- carne mas o espírito, crucificamos a vida e, com a vida, a nós
truição e criação. Os velhos arcabouços perderam a grande força mesmos. Não se compreendeu que, calcando aos pés a Lei e a
do espírito. Não se sabe se, assim, sem alma, ruirão ou se sabe- evolução, aprisionamos o nosso futuro e a nossa felicidade e
rão construir uma nova estrutura. Não se sabe se o espírito emi- que, traindo Deus, traímos o nosso bem. Esta é a traição de Ju-
grará deles e de que forma irá ressurgir. Desse oceano em ebuli- das, rebelde ao amor divino, e ela nos perseguirá no ódio e na
ção de tantos elementos velhos e novos, de frutos em putrefação violência, como nossa herança atual. Ela nos perseguirá, desfa-
e tenros germes, que irá a vida fazer, que nova ordem de tudo is- zendo os nossos laços sociais, porque violamos a lei do amor
to ela quererá hoje estabelecer, como do caos primordial que fraterno; punir-nos-á com a destruição, porque acreditamos na
construiu o nosso mundo atual – não o sabemos! Mas é certo força; com a miséria, porque adoramos a riqueza; com a servi-
que algo de apocalíptico está acontecendo. Enquanto as massas dão, porque abusamos da liberdade. Invertemos a direção da via
deliram, os poucos que veem contêm, tremendo, a respiração, aberta por Deus à necessidade de desenvolvimento e expansão
numa expectativa ansiosa pelo resultado desta apocalíptica aven- material, indo ao encontro do irmão, não com amor, mas com
tura da vida, de que depende a história dos futuros milênios. ódio. Assim, o homem, apanhado nas esferas de uma ilusão sa-
É certo que o espírito deverá vencer, mas é certo também tânica, para crescer e subir, encerrou-se em um cárcere erguido
que o pecado capital do nosso século foi grave. Ele foi o orgu- pelas próprias mãos. E a luta se torna cada vez mais desesperada
lho de Lúcifer. O homem quis desobedecer à lei de Deus, co- contra as paredes de aço. As portas da vida, que se abrem pelo
mer de novo o fruto proibido, isto é, tornar-se árbitro do bem e amor, cerraram-se com o ódio, e cada qual ficou aprisionado em
do mal, fazer-se Deus e lei. E agora é expulso e arredado ainda um isolamento desesperado. A vida imensa palpita vizinha, mas
a maior distância do paraíso, no inferno terrestre que desejou. é vedado participar dela, porque o eu, isolado em egoísmo, não
Andar não segundo a Lei, do eu para Deus, mas às avessas, de pode mais comunicar-se senão sob a forma negativa de ódio e
Deus para o eu, é também um grande erro biológico, que se pa- agressão. Todos se repelem, agridem-se, dilaceram-se. A Terra
ga com a morte espiritual do eu que pretende endeusar-se. se transformou no inferno. Os homens, tornados demônios, de-
Todo pecado traz a própria punição, voltando-se automati- batem-se cada vez mais e, quanto mais ofendem, tanto mais se
camente contra quem o comete. O Evangelho de Cristo não é defrontam com ofensas; quanto mais odeiam, tanto mais se sen-
uma consolação para os deserdados, uma substituição às alegri- tem odiados; quanto mais se agitam para libertar-se, mais sen-
as da vida, deslocadas no futuro e no céu, mas exprime uma re- tem que se aperta o nó que lhes constringe a garganta; quanto
alidade biológica, porque indica as vias da evolução. O amor mais difunde o mal, tanto mais encontra e recebe o mal. Assalta-
fraterno não é um sonho político, mas a base das futuras orga- se pela desesperada ânsia de evasão, e cada assalto volta-se con-
nizações sociais. Antepondo-se ao tipo biológico superior, tra- tra quem o realizou. A destruição contra o próximo torna-se au-
çado como ideal humano pelo Evangelho, o nosso tempo erigiu tonegação e suicídio. Assim, cada qual acaba por ferir-se a si
em bandeira um tipo de super-homem que representa a luciferi- mesmo e envenenar-se com o próprio veneno. A cada novo im-
ana divinização do eu e se substitui à sabedoria e bondade de pulso egoísta, o indivíduo se encontra mais prisioneiro de si
Deus, com os seus opostos instintos bestiais. É a divinização do mesmo, mais armado e feroz contra si próprio. Desta maneira, o
bruto. Nietzsche acreditou matar Deus e exterminou a Alema- circuito de forças tende a cerrar-se mais estreitamente, para re-
nha. Tal moderna psicologia de domínio destruiu a Europa e solver-se na catástrofe de quem se fez centro e senhor de tudo.
gerou o crepúsculo de sua civilização. Assim, perde-se o eu que a si sacrificou Deus.
Se o observamos de perto, em substância, esse super- Não se detém um projétil lançado. Os movimentos históri-
homem não passa de um paupérrimo e mortal burguês, ávido de cos, uma vez iniciados, possuem uma trajetória e transcurso fa-
bens terrenos, que se atira contra os bens do próximo, cúpido e tais. O homem, que acreditou crucificar a Lei e destruir Deus,
famélico, mas que, não sabendo deles saciar-se, não pode al- encravou-se por si mesmo em sua cruz e destruiu o seu eu. Não
cançar os mais nutritivos do céu. Fica assim a meio caminho, se pode mercadejar com o espírito. Os homens que só acredi-
impotente e insatisfeito. É um pobre homem ávido de evasão, tam na força eliminar-se-ão entre si pela força; aqueles que só
mas que a procura às avessas, não suspeitando, porque não pos- adoram a riqueza acabarão na miséria; os que creem no orgulho
sui a força moral necessária, da possibilidade de superação. serão atirados na humildade. Penitência que só depois poderão
Lama e miséria. Ele odeia a Terra e desejaria o céu, mas não o compreender e dela surgir purificados. Poder-se-á fazer que se
compreende e, porque não o compreende, também o odeia, calem os homens que assim falam, mas não se pode destruir as
permanecendo onde está e de onde desejaria sair. Está sedento leis da vida, que assim funcionam. O homem poderá viver na
de infinito, mas, com seu sistema, fechou-lhe as portas, perma- desordem, na aventura do ''carpe diem‖, mas não o pode a vida,
necendo escravo a ranger os dentes, impotente para se evadir. A que sabe o que faz e prepara sempre um amanhã. Quem inverte
trágica ironia de semelhante super-homem, que despreza a caminha às avessas, quem se faz Deus por Deus é punido. Nas
Deus e toda a moral, colocando-se além do bem e do mal, está misteriosas profundezas da vida jaz uma indomável vontade de
em que, na realidade, ele é um mutilado, cujo rugido leonino correção dos erros humanos a qualquer custo, para o nosso
não passa de um lamento de desespero que invoca a vida. É um bem. Então, a nova civilização que nos espera não pode deixar
fraco e um vencido, que estadeia potência e vitória para iludir- de ser a antítese da atual, um mundo novo. Não se trata de reto-
se a si mesmo, achando que as possui. ques, de uma civilização presente corrigida, mas de dois ciclos
Eis o campeão e os resultados da civilização da matéria. A antagônicos, ainda que complementares, duas épocas que se
evolução foi traída. Não se pode mais subir por tal caminho. A contrastam, a velha e a nova. Os seus representantes se medem
história foi assim ligada agora a um destino de involução e de e se batem. O fim e o princípio lutam pela vida. Naturalmente,
140 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
o novo, por lei de evolução, ainda que menos armado e experi- aventura, agindo ao acaso, desordenadamente, fazendo o que
ente, acabará vencendo o velho. A vida confia a cada século um pode e até mais do que pode. No entanto é evidente que a solu-
encargo especial. Ao nosso tempo cumpre a função de criar a ção do problema do sucesso não está no uso arbitrário e desor-
máquina e a técnica, para conseguir amanhã a emancipação do denado, ainda que enérgico e decidido, daquele quarto de ele-
trabalho material. Isto para que o tempo futuro possa desempe- mentos que dispomos, mas sim no conhecimento e, por conse-
nhar uma função diversa, que será a de, com todos os meios guinte, na sábia manobra dos elementos contidos nos outros
conquistados, criar no ilimitado campo do espírito, para onde a três quartos, que nos escapam. O que se encerra nesses três
evolução avança e onde está o futuro do mundo. quartos ignorados? É isto que é necessário conhecer.
Quisemos, assim, com estes capítulos sobre os erros huma- Quantas coisas imprevisíveis espreitam, para o bem e para o
nos (capítulos nascidos como uma série de artigos para revis- mal, como alegria e dor, nesse imponderável, que do mistério
tas), examinar o advento de uma nova civilização pelo seu lado guia grande parte da nossa vida! Ao lado da zona que enxerga-
negativo e preparatório, isto é, pela derrocada da atual, procu- mos bem definida, das coisas por nós pretendidas, quão vasto
rando observar os erros e perspectivas dados pela forma mental campo se estende, onde domina a assim chamada circunstância,
do nosso mundo presente, para poder melhor compreender qual surpresa, fortuna ou desventura! A maioria, ignara e simplista,
será o futuro que nos espera. atribui todas estas coisas ao acaso. Ora, quem diz acaso, con-
fessa a própria ignorância. Para quem sabe ver nas profundezas,
XXIV. COMO FUNCIONA O IMPONDERÁVEL a estrutura da vida surge bem diversa. Um tal abandono desre-
grado, uma semelhante falta de direção, um funcionamento tão
O mundo hodierno, inquieto e cético, não imagina a presença fora de leis, confiado à desordem, seria absurdo. A direção, que
do imponderável também em meio às coisas da vida cotidiana. É é ato positivo, não pode ser entregue a um elemento negativo,
a esse mundo que desejamos hoje falar disso, de maneira práti- que não se mantém por si mesmo e só existe como contraposi-
ca, segundo a sua psicologia. Do imponderável muito se falou, ção. A negação da vida não pode ter a força de reger a perene
especialmente durante a guerra, quase como de um elemento de afirmação criativa da vida. Assim como o nada não existe senão
vitória. Mas se falou com critério tão materialista, para finalida- relativamente, como condição do ser, o acaso também não é
de tão anti-humanas, com um tal falseamento do seu verdadeiro concebível senão como desordem enquadrada na função de
significado espiritual, como já sucedeu para a palavra mística e uma ordem mais vasta, que o circunscreve e, ordenadamente, o
outras, que a própria credibilidade desse imponderável acabou guia em demanda de finalidades superiores. Tudo no universo,
por ficar confusa e alterada, tornando-se ele também uma das mesmo o que parece indisciplinado e casual, é regulado por
muitas mentiras a que se reduziram hoje os mais preciosos valo- normas. Todas as forças se movem por concatenação em busca
res espirituais. Foi assim que desse tão invocado imponderável de uma precisa finalidade, segundo o princípio de causa e efei-
nada chegou a ser entendido, não se compreendeu, sobretudo, o to, mesmo onde elas surgem ainda no estado caótico, próprio
seu funcionamento, a ponto de, como vimos, depois de ter sido das fases mais involuídas, pois que, íntimos e ocultos, o pensa-
tão invocado em benefício próprio, ele funcionou precisamente mento e a vontade de Deus mantém as rédeas e regem o caos. É
no sentido oposto, justamente em prejuízo de quem mais o invo- só por este motivo que o chamado caos, em vez de se dissolver
cava. Isto mostra que não se pode brincar com o imponderável, num redemoinho infernal de forças inimigas, desfazendo-se em
pois ele é uma força poderosa e terrível, que pode estar conosco nada, evolui gradativamente, disciplinando-se em uma ordem
ou contra nós, segundo a posição em que nos colocamos em re- cada vez mais evidente, onde se manifesta a presença de Deus.
lação a ele. Procuremos compreender do que se trata. O imponderável não é, pois, o acaso ou a desordem, mas sim
Quando pretendemos realizar um objetivo qualquer, de um uma lei, uma ordem que não conhecemos.
lado existe a nossa necessidade e o nosso desejo e, de outro, um O problema consiste, pois, em penetrar a Lei nesse funcio-
plano instintivo e racional, ambos visando a conseguir a satis- namento por nós ignorado. O que é a vida de um homem? Não
fação do objetivo. Mas quanto esse plano não envolverá, face é certamente um fenômeno estático. É um feixe de forças em
ao oceano de incógnitas que nos circunda? E essas incógnitas movimento. Dado o princípio de causalidade, o problema resi-
são forças presentes, reais e ativas, de tal ordem que, a cada ins- de em conhecer a natureza e as características de cada uma
tante, podem desviar o transcurso dos nossos planos, interferir dessas forças, quais elas são hoje, e o caminho por elas percor-
na série de atos por nós coordenados, introduzindo-lhe novos rido até ao presente. Só assim poderemos saber aquilo que elas
impulsos, que, provindos do ignoto, são para nós imprevisíveis. poderão ser amanhã. Trata-se de conhecer a nós mesmos, co-
Para poder compreender e definir o imponderável, é necessário nhecer a personalidade humana em geral e, depois, a do pró-
penetrar esse ignoto. Os desvios por ele introduzidos, que nós prio caso particular. O homem não conhece nem uma nem ou-
não logramos prever, porque nos escapam seus elementos, mais tra. Trata-se de impulsos recentes e longínquos, muito distan-
poderosos do que nós, assediam-nos a cada passo, tanto nos pe- tes, de natureza e potência diferentes, sempre em contínuo
quenos eventos individuais de cada dia como nos grandes acon- movimento e desenvolvimento. Trata-se de forças nossas e
tecimentos da história, conferindo à nossa vida um contínuo to- alheias, entrelaçadas por uma contínua interdependência de
que de incerteza. Efetivamente, jamais estamos verdadeiramen- ação e reação, condensadas em determinismos, fixadas por
te seguros, quando colocamos em execução um projeto qual- longa repetição de atos em automatismos e instintos, mas tam-
quer, se conseguiremos chegar aonde pretendíamos ou se sere- bém de forças ainda livres, em formação, que só agora come-
mos levados a um ponto inteiramente diverso do fixado. Fre- çam a entrar no feixe dinâmico que constitui a personalidade
quentemente, uma coisa desejada com tenacidade e disputada humana, forças ainda fluidas, não cristalizadas no destino, que
com sagacidade não é conseguida, embora sabiamente prepara- continuamente construímos para nós mesmos. Como nos ori-
da, enquanto outras, que de início parecem apresentar-se com entarmos? Na verdade, o universo é indubitavelmente uma
mínima possibilidade de êxito, são às vezes, imprevistamente, grande orquestração de forças, imenso concerto em que, mais
coroadas de resultado pleno. Que, na realidade, os três quartos ou menos consciente, mais ou menos livre, segundo a sua evo-
dos elementos do sucesso nos escapam, é fato que todos conhe- lução e vontade, também o homem canta a sua nota. Cada ato,
cem. Nós nos agitamos, pois, às cegas, mantendo em nosso po- cada dia, cada vida segue e precede outro, como as ondas de
der apenas um quarto dos elementos do sucesso e, com tão um oceano interminável. Tudo está conexo no espaço e no
poucos trunfos na mão, tentamos conseguir tudo. Realmente tempo, tudo avança na grande marcha ascensional da evolução
tentamos. A maioria, que conhece essa incerteza, atira-se à para Deus, em demanda de fins individuais, porém objetivando
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 141
mais vastos fins coletivos, com uma hierarquia de finalidade amarelas e 25 verdes, a probabilidade de extração de cada um
orientando todos para o único centro: Deus! desses quatro tipos é de 25%. Se misturarmos 100 bolinhas de
Se o homem conhecesse todos esses elementos, que estão 100 tipos diversos, teremos a probabilidade de 1% para cada
nele e em seu derredor, por certo ele conheceria o seu futuro. uma delas. Uma outra observação. O cálculo de probabilida-
O conceito de acaso, caos e desordem não pode existir senão des nos permite admitir que a marcha do fenômeno no passa-
na forma mental do involuído. Somente nos graus de evolução do nos autoriza a crer em sua continuação no futuro, na mes-
superiores à humana pode-se possuir a capacidade de abarcar ma direção. No entanto o fato da vida basear-se no equilíbrio
tão vastos panoramas, que, ao homem do presente, dados os faz com que suceda exatamente o contrário. Quanto mais ve-
seus baixos instintos, são providencialmente vedados. Assim zes um fato se tiver verificado, menos se torna provável, pela
hoje, para ele, tudo o que se encontra fora do seu reduzido lei do equilíbrio, que ele continue a se verificar amanhã. Se-
campo de exercitações, necessárias ao seu progresso, confun- gundo uma universal lei de dualidade, a vida avança não pelo
de-se em um inextricável emaranhado, que o deixa em trevas acúmulo de casos, mas pela compensação dos contrários. Es-
profundas. Para ele, pois, a palavra imponderável só pode as- ta, e não aquela, é a verdadeira lei dos acontecimentos huma-
sumir um significado negativo, de ignoto e incognoscível, nos e é, pois, a lei do nosso destino. É a lei que vai desde a
quando, na realidade, ela encerra um conteúdo positivo e pre- grande compensação declarada por Cristo no Sermão da Mon-
cisamente definível. Mas, para alcançá-lo, é necessário ainda tanha ao fato de que, quanto maior número de vezes a sorte
evoluir, distanciando-se do atual estado de animalidade. O nos favorecer, mais difícil se torna continuarmos a ter êxito.
homem atual ainda não pode compreender isto porque ele se Estas são as leis da sorte, que de modo nenhum são cegas. O
encontra neste estado, que representa a sua forma mental, e homem comum supõe, no entanto, completamente o oposto.
um estado não pode ser percebido quando se está dentro dele, Quanto mais afortunado é, tanto mais adquire ares de ufania e
mas só quando se está fora ou quando se sai dele, iniciando confiança em si e mais se sente impelido a ousar, caminhando
um movimento de afastamento. Assim, pois, o homem do pre- assim em direção ao fracasso. Mas isto é exatamente conse-
sente navega num mar de incógnitas, onde a direção dos seus quência de uma lei a que ele inconscientemente obedece e que
eventos, individuais e coletivos, não pode ser confiada a ele, visa a estabelecer o equilíbrio. Assim, explica-se a derrocada
que é cego, mas é mantida pela sabedoria das leis de Deus. incrível de tantos e tão grandes triunfadores.
Todavia, para que lhe seja possível evoluir através de uma li- Sem querer entrar agora na questão, se um estado originário
vre experimentação, de maneira concreta e responsável, é dei- tenha oferecido, relativamente ao indivíduo, uma proporção de
xada a ele uma pequena fresta de luz, o quanto basta para ilu- 100% de felicidade e se deste estado ele tenha decaído a um
minar a estrada a ser percorrida. Nesta, ele compreende e es- percentual de 100% de dor, consistindo a evolução atual na re-
colhe, semeia e colhe, erra e paga, sofre as reações dentro das cuperação dos 100% de felicidade perdida, podemos hoje consi-
forças que possui, únicas que pode mover. O resto ele ignora e derar como ponto relativo de partida um estado de equilíbrio
não pode suportar. Tudo é determinismo fora do seu poder, atual em que, segundo a justiça, o destino de todo o homem con-
conhecimento e, por conseguinte, também responsabilidade, tenha 50 bolinhas brancas, ou probabilidades favoráveis de ale-
não lhe restando nada mais do que abandonar-se a Deus e à gria, e 50 bolinhas negras, ou probabilidades desfavoráveis de
Sua sabedoria. Ao homem foi confiado um determinado en- dor. Esta posição poderia ser, no estado atual de evolução, uma
cargo em um pequeno campo, para cultivá-lo, que é o seu pla- posição mediana de equilíbrio, para a qual a Lei tende hoje, não
neta. A direção do universo não lhe diz respeito senão na po- obstante qualquer desvio havido. Trata-se de uma ordem que,
sição de obediente espectador, pelo pouco que ele pode com- por mais variada que seja, inclina-se, automática e providenci-
preender. Completado o seu trabalho no âmbito estabelecido almente, a reconstruir-se. Não pretendemos indagar aqui se a Lei
pela lei de Deus, em favor da própria edificação, o resto per- pretende ainda mais, forçando a reconstituição dos 100% de fe-
tence a Ele, que distribui incumbências infinitas a uma infini- licidade. Aqui só interessa notar agora que a transformação do
dade de seres. Cumprido o seu dever, ao homem não resta se- nível dessa percentagem e os deslocamentos de equilíbrio po-
não entregar-se ao Pai Celeste, que demonstra imensa sabedo- dem ser operados pela livre conduta do homem. Era necessário,
ria na direção do universo, conduzindo-o são e esplêndido até para que o homem pudesse evoluir através da própria experiên-
aqui, como hoje o vemos, operando antes e sem o concurso do cia, que lhe fosse concedida a liberdade de violar a ordem, de
homem. E este, quando erra, deve aceitar de Deus a justa cor- modo que ele pudesse conhecer as consequências dolorosas do
reção, assim como fatalmente receberá a devida recompensa, erro e aprender a precaver-se. Em suma, a evolução visa a pro-
quando souber enquadrar-se na Sua ordem. duzir um ser consciente do bem e do mal, um homem que sabe,
Quando falamos de um imponderável cognoscível, devemos e não um autômato, por mais perfeito que seja.
referir-nos às incógnitas relativas ao homem, ao seu ambiente e Dado isto, sucede que, pela liberdade que Deus lhe conce-
ao universo, que se refletem nelas. Se nos contentarmos em es- deu, de abusar e errar para aprender, ainda que pagando por is-
quadrinhar esse imponderável que mais nos interessa, porque so duramente, o homem pôde distanciar-se mais ou menos do
está mais próximo de nós, relacionado com a nossa personali- equilíbrio da justiça divina, alterando nas suas diversas vidas
dade, maior será a possibilidade de alcançar o conhecimento. Já sucessivas a proporção básica do equilíbrio. O homem teve a
se tentou estabelecer, com os cálculos das probabilidades, a lei liberdade de deslocar, em seu risco e perigo, esses equilíbrios,
que regula o decurso dos acontecimentos. Mas esse cálculo se que tendem, no entanto, sempre a se refazer e aos quais a Lei
refere às formas mais simples, sendo uma abstração a que a rea- antecipadamente visa reconduzir. Sem atingir o caso limite da
lidade concreta está bem longe de corresponder. Nos aconteci- absorção completa, através da dor e da ascensão, das 50 boli-
mentos humanos, os elementos constitutivos são tantos e em nhas pretas, isto é, da felicidade absoluta em Deus, e sem tam-
tão grande parte ignorados, que aquele cálculo malogra comple- bém alcançar o caso limite oposto, da absorção completa, atra-
tamente no objetivo que colima. Reduzindo, todavia, o comple- vés do abuso e da queda, das 50 bolinhas brancas – ou seja, de
xo feixe de forças que constitui um destino à sua mais simples um lado a plenitude da vida voluntária e conscientemente con-
expressão, em forças favoráveis e contrárias, poderemos formar quistada e, de outro, a autodispersão no nada – atualmente, na
uma ideia de um provável desenvolvimento em uma dada vida. Terra, encontramos deslocamentos parciais de equilíbrio. Estes
Se misturarmos 50 bolinhas brancas e 50 negras, perfeita- deslocamentos são desequilíbrios que se fixam, ainda que transi-
mente iguais, a probabilidade teórica de extração de cada uma toriamente, no campo de forças do próprio destino, transmitin-
é de 50%. Se misturarmos 25 bolinhas brancas, 25 pretas, 25 do-se de vida em vida, na expectativa de correção. Formam-se,
142 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
assim, por nós mesmos fabricados, os destinos mais díspares, para conhecer qual será o êxito desta vida, saber os seus prece-
com desequilíbrios variados, para o bem ou para o mal. Estes dentes e, assim, conhecer a sua contabilidade no tempo, identifi-
destinos são o resultado final de todas as operações da vida, re- cando com que fardos de créditos ou débitos nascemos. Trata-se
sultado que se reflete intacto quando, com uma nova vida, se de coisa bem diversa de fortuna, de acaso ou de pura habilidade!
inicia uma nova conta. Assim, nascendo, cada um leva consigo o Compreender, compreender, compreender, eis o grande proble-
seu fardo. Seu, porque foi feito por ele, constituindo um peso ou ma. Mas o homem atual se ocupa de algo bem diverso. E, assim,
um auxílio, segundo o que praticou. O ponto de chegada de uma a Lei o guia e compele sem que ele nada compreenda.
vida é o ponto de partida da que se lhe segue. As conclusões de Que imensa bagagem de impulsos trazemos conosco, como
hoje tornam-se as premissas de amanhã. As convicções com que indivíduos e como povos! E isto em todo campo: moral, eco-
se encerraram a vida anterior formam o instinto com que, antes nômico, intelectual, orgânico e racial. Qualquer abuso, onde
de se dar conta, agirá na nova juventude. Desta forma, inconsci- quer que ele ocorra, gera a inversa, correspondente e proporci-
entemente, mas de acordo com o critério de justiça, plantaremos onada carência. Por isto, na Terra, todos sofrem, sentindo a fal-
a nossa nova vida nos fundamentos já amadurecidos em plena ta de coisas que abundam. Todo desenvolvimento unilateral de
consciência, tornando-nos consequência de nós mesmos. Tere- uma qualidade gera a necessidade de ser completado com de-
mos, assim, destinos felizes ou infelizes, destinos de alegria ou senvolvimento de uma capacidade oposta, através das experi-
de dor. Quem, por excesso de gozo, abusou da Lei pode contar ências. Por este motivo, na Terra, tantos se encontram desloca-
com um destino de 25 probabilidades de alegria contra 75 de dos, justamente para que possam experimentar e aprender em
dor, e assim por diante. Desta forma, construímos o nosso desti- campos que ainda são ignorantes. Eis o motivo por que tudo pa-
no livremente, vez por vez, carregando-o junto a nós, com toda a rece fora do lugar, dado que este não é o lugar de repouso, mas
nossa história nele inscrita, formando a base dos nossos créditos campo de treinamento; não é o lugar de colheita, mas de seme-
ou débitos. E, enquanto temos que fatalmente suportá-lo conti- adura. As nossas deficiências morais, tantas desgraças, a pobre-
nuamente, também podemos, continuamente, corrigi-lo a nosso za, a imbecilidade, mesmo as predisposições e vulnerabilidades
bel-prazer, para o bem ou para o mal no futuro. orgânicas, constituem outras tantas carências consequentes do
Eis como se pode fazer a análise do imponderável e penetrar abuso. O espetáculo do nosso mundo parece que pode ser intei-
no seu ignoto conteúdo. Tudo isto é verdadeiro tanto para os in- ramente resumido nestas duas palavras: abuso e carência. Tudo
divíduos como para os povos. Na realidade, o fenômeno não se aqui existe, mas mal distribuído. O abuso, tornando-nos sacia-
nos apresenta assim, reduzido para comodidade de observação, à dos, nos desgasta, nos enfraquece, abrindo as portas a todos os
sua mais simples expressão. Na prática, as forças que compõem assaltos patogênicos em qualquer campo, contra os quais não
um destino não possuem apenas duas cores, mas muitas outras. nos encontramos prevenidos pelas naturais defesas, que foram
Não se trata somente de alegria ou de dor, embora sejam elas por nós demolidas. O mau uso inverte os impulsos da vida, que
fundamentais, mas também de variadíssimas qualidades adqui- assim não estão mais conosco, mas se põem contra nós. Qual é
ridas, das mais variadas especializações e atitudes, segundo as o nosso passado humano? A história nos diz que ele, com fre-
atividades desenvolvidas e as tarefas a cumprir. É um fato que quência, é horrendo. Que podemos esperar da vida com seme-
os destinos, excetuando os cinzentos da nulidade, apresentam- lhante fardo às costas? Ademais, é o dinamismo íntimo da pró-
se-nos orientados, típicos, individualizados por uma cor própria pria personalidade que atrai as forças do ambiente e torna-se o
dominante, por uma tendência ou um dado gênero de experiên- núcleo em torno do qual se configura a veste material de for-
cias. Em outros termos, as forças constitutivas são diversamente mas, aquelas onde a nossa observação se detém e que conferem
coordenadas, formam um organismo com uma vontade de al- solidez e resistência concreta ao imponderável. Se este nos pa-
cançar uma dada direção. A realidade exterior, em que todos se rece inimigo e a Terra um lugar em que se pena, é também ver-
baseiam, não é mais do que uma veste, um cenário transitório, dade que ela pode ser um purgatório, ambiente de redenção. Se
que não serve senão para dar corpo a esse desenvolvimento de à Terra os involuídos podem realmente vir para gozar e os
forças. É natural, pois, que se defronte por fim com uma ilusão malvados para se arruinarem, imergindo cada vez mais no mal,
quem troque essa forma concreta por toda a realidade. é também verdade que os evoluídos podem vir para se purificar
Portanto, para poder operar a análise do imponderável, seria ainda mais através da dor e do amor, pois que, no purgatório
necessário saber penetrar a estrutura do próprio destino, conhe- terreno, é oferecida a cada alma a possibilidade de reconstituir-
cer a fórmula da sua composição, a natureza das varias forças se no bem e de preparar um futuro de felicidade, corrigindo,
componentes e a proporção em que elas participam. Seria neces- através de uma vida santa, o próprio destino.
sário, em outros termos, saber o que preparamos em nosso longo
passado. O homem atual ignora tudo isto e está a milhares de XXV. AMOR E PROCRIAÇÃO
quilômetros distante de imaginar que isto se possa saber, o que é
um bem, tão disposto está ele a fazer mau uso de tudo. A divina Passemos uma vista de olhos sobre o grande problema indi-
sabedoria não nos faculta conhecer senão na proporção em que o vidual e social da sexualidade e do amor, das suas funções re-
mereçamos. Seria necessário poder pesar méritos e deméritos, produtivas até às mais elevadas do misticismo, funções biológi-
medir e qualificar as forças adquiridas, os impulsos negativos e cas tão diversas e também tão necessárias a vida. Comecemos
contrários das culpas, os vazios, os desvios, assim como os es- pelo amor como procriação.
forços para o alto, as conexões, registrando todo o deve e haver Quanto mais baixo for o grau biológico ocupado pelo ser na
relativos aos desequilíbrios da divina justiça. Seria indispensável evolução, tanto mais o problema da proteção da prole reduzir-
conhecer o homem em geral e o seu caso em particular. É um se-á à mais simples expressão. Então ao ser que é menos valo-
trabalho de profunda penetração no próprio íntimo, que cada um rizado como qualidade a natureza protege com a quantidade e
pode fazer por si, estudando-se, reconstruindo-se – pois somos se exime, assim, de funções protetoras particulares, para que a
hoje como necessariamente devemos ter sido no passado – ob- seleção possa assim melhor cumprir-se. A medida que se sobe
servando analiticamente aquilo que os seus instintos atuais re- na escala evolutiva e se alcança a formação de um tipo biológi-
sumem em síntese, retraçando o caminho percorrido para atingir co mais perfeito, o problema da justiça se torna mais importan-
o ponto presente, decompondo o atual produto em seus vários te. Trata-se de um produto mais precioso, fruto de um longo
elementos constitutivos. Estabelecido tudo isto, ele poderá dizer processo evolutivo, de função mais laboriosa e, por conseguin-
que probabilidade terá hoje de vencer ou de perder, de gozar ou te, mais rara nos atuais exemplares. É lógico que a um valor
de sofrer, de ser, como se diz, feliz ou infeliz. É fundamental, maior a natureza proteja com maior cuidado. No homem, o re-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 143
cém-nascido, devendo desenvolver-se até alcançar funções su- cada vez mais para a proteção dos filhos e, de outro lado, a lu-
periores, tem necessidade de assistências ignoradas nos planos ta do indivíduo para evadir-se dessa disciplina, que o grava,
inferiores, das quais o procriador involuído se exime. Das con- pesam crescentemente sobre a procriação e, por conseguinte,
dições de civilização se segue, pois, que a procriação não é sobre os próprios filhos, que, assim, com o seu sacrifício em
mais aquele ato simples e instintivo como é entre os primitivos qualidade e quantidade, vêm a pagar pelos maiores cuidados
no estado animal, mas se torna um ato complexo e reflexo, pe- que eles custam aos pais e à sociedade. Também aqui, não se
jado de consequências e responsabilidades. pode ter tudo, e tudo se paga.
No animal e no homem inferior, a procriação se exau- Também o amor está sujeito em nossas sociedades civis à
re quase toda com o ato físico da geração, enquanto que, no necessidade do cálculo, e o cálculo é o primeiro passo da prosti-
homem que não vive no plano animal, ela penetra no campo tuição. Por outro lado, é natural que a sociedade humana, to-
moral e abrange também uma longa educação destinada à mando em consideração que o ato procriador é a base de sua
formação da personalidade. No plano animal, os procriadores constituição, tenha pretendido discipliná-lo. E as religiões, antes
podem logo desinteressar-se da prole e dela libertar-se, mas, do Estado, enquadraram e ordenaram o amor, equilibrando direi-
para o homem não no estado animal, os liames e serviço de tos e deveres na instituição do matrimônio. Mas isto é lei, disci-
assistência e de guia duram dezenas de anos. Daí a necessi- plina exterior, em que o homem permanece até onde quer e sabe.
dade de organizar e prever. E quando o homem não sabe e não quer, as mais excelentes ins-
É assim que, nas sociedades civis, o fenômeno da procria- tituições e a coação das leis não lhe podem impedir a evasão. E,
ção se encontra estreitamente conexo e unido ao fator econômi- assim, em perfeito regime de indissolubilidade, em que a inte-
co, que veio assim influir no fenômeno biológico da reprodu- gridade da família é mantida intacta, não se pode impedir que o
ção. Segue-se dai que, quanto mais alto for o nível de vida de matrimônio possa transformar-se em um mercadejo qualquer e
uma civilização, mais difícil se torna, por conseguinte, a manu- constituir a mais vantajosa forma de prostituição. Divórcio,
tenção de um indivíduo e mais severamente se estabelece o pois? A resposta é uma só: qualquer lei é inútil quando os indi-
controle da natividade. Dada a economia da natureza, grande víduos são corruptos; toda lei é boa quando eles são prudentes,
administradora, a qualidade se obtém a expensas da quantidade. mas, se o homem quiser fugir, toda regra é inútil e ele evade-se.
Então as condições mais refinadas e complexas de civilização Pior para ele, mas evade-se desde que o queira, porque é livre.
se tornam um freio à reprodução e se pagam com a pobreza Pagará, mas, apesar disso, evade-se. Então compreenderá, mas,
demográfica. Para voltar à quantidade, é necessário então des- por ora, não compreende. O que decide de fato é a vontade indi-
cer na qualidade. Tudo de uma vez não se pode ter. Ou a potên- vidual, e não a lei! Em todo campo é sempre assim: às leis hu-
cia, ou o domínio. Se um povo for rico e dominador, será pouco manas, por mais que provenham de instrumentos de coação,
numeroso, com tendência a rarefazer-se cada vez mais. Se for obedece quem quer. O valor das leis depende inteiramente de
pobre e dominado, invadirá o mundo com seus filhos. Sábios quem as maneja e de como são manejadas. Se a elas, exteriores,
equilíbrios da Lei, que nenhuma coação política pode alterar. A não corresponde o sentimento de uma maior lei interior, toda lei
luta, assim, entre a inteligência que alcançou o predomínio eco- humana é inútil e de escasso efeito. Assim, a questão do divór-
nômico e a carne, expressa pela massa demográfica, reduz-se a cio se reduz à legalização exterior de um fato que, sem divórcio,
uma distribuição de funções, até que a carne das massas amor- existe já de há muito. Negá-lo valerá como afirmação teórica e
fas, educada pela inteligência dos dominadores, subindo ao de princípio, mas, efetivamente, cada um já resolveu o problema
plano destes, os substituirá no grau biológico e nas funções. En- por própria conta, segundo a sua natureza e suas convicções. A
trementes, a qualidade dos povos dominadores, com seu eleva- negativa será um obstáculo que tem por objetivo impedir que a
do nível de vida, constitui uma conquista da evolução, um tra- atual geração de involuídos se lance desesperadamente para a
balho da vida, que, por isto, defende o produto do seu labor. anelada desordem a que dão o nome de liberdade, de modo a
Sabendo o que ele lhe custa, por leis da sua economia, a vida impedir que esta desordem seja exibida e fixada em palavra ju-
tende a mantê-lo a todo custo e, por isso, está disposta a sacrifi- ridicamente legalizada. Mas, neste caso, como em todas as coi-
car a abundância da sua produção. É assim que, para proteger a sas, a substância, o móvel, as consequências a pagar, são todas
qualidade, conquista preciosa, sacrifica a quantidade, que lhe pessoais e interiores, e as leis só alcançam ali até um certo pon-
constitui uma ameaça. Tudo se paga na natureza. Paga-se assim to. A questão não é tanto jurídica quanto moral.
a mortalidade menor, a cultura, a segurança, a proteção social, o Observemos em dois casos típicos em que pode tornar-se,
bem-estar, tudo enfim. Poder-se-ia assim atingir um nível de na nossa sociedade, o amor, quando submetido às pressões dos
desenvolvimento do qual os povos mais prolíferos e numerosos fatores econômicos e da luta pela vida.
estão excluídos, mas apenas até que estes atinjam o seu turno Primeiro caso. Uma esforçada jovem, religiosa, obediente
de se elevar, para então, sutilizando-se, substituir os mais evo- aos sábios conselhos paternos, fiel às normas sociais, prudente
luídos, repetindo o mesmo ciclo igual para todos. calculadora e ciosa da sua posição social, que não quer perder,
O progresso se desloca assim em vantagens dos filhos, que buscando muitos proveitos ao mesmo tempo, não consegue es-
cada vez mais pesam sobre os genitores e a sociedade. É natu- posar-se senão tarde. De outro lado, isto sucede porque a moça
ral, pois, que, pelo egoísmo protetor do indivíduo, este se es- é pobre e quer antes garantir uma posição, que, naturalmente,
quive a uma procriação que se torna cada vez mais agravada consegue apenas depois que a juventude fenece. Ela e o marido
de deveres e responsabilidades crescentes. Dadas as suas con- se unem com reflexão, com todos os cálculos relativos, com
sequências, sempre mais pesadas com o progresso da civiliza- plena permissão e consenso dos pais e parentes, das leis religio-
ção, a procriação se torna mais estreitamente controlada, fa- sas e civis, e absoluta concordância com todos e com tudo. Es-
zendo-se depender de cálculos. Ela é submetida à luta pela vi- posam-se, mas o amor não existe ou, em face de tantas refle-
da, que pode gravá-la ou até comprimi-la e sufocá-la. Assim, xões, não se sabe onde esteja aí colocado. Mas, em compensa-
o fator econômico se substitui ao biológico, que, deveria ser o ção, o equilíbrio está assegurado, os cônjuges estão tranquilos,
principal, mas passa, dessa forma, a ser relegado a um segun- a proteção dos filhos garantida, posição ideal, fruto de sacrifí-
do plano, prejudicando, assim, a seleção sexual e, por conse- cios previdentes, bem ganha também para os filhos. Ela foi
guinte, os próprios filhos. Para uma procriação sã e seleciona- prudente e honesta, soube esperar, sacrificar o instinto e se
da, o amor deveria permanecer livre do fator econômico e de apresentar ilibada. Finalmente, diante de todas as exigências
outras pressões sociais de todo gênero, para obedecer às suas sociais, tudo está em ordem. A sociedade aplaude, estima e res-
próprias leis. De um lado, a necessidade de disciplinar o amor peita. Tudo é conforme as regras e com todas as suas vanta-
144 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
gens. A reflexão, isto é, o cálculo, triunfou. A batalha pela vida os deserdados, então os filhos que parecem afortunados se tor-
foi vencida, e todos se inclinam. Há somente um pequeno fato, nam desventurados, e os que parecem deserdados acabam vito-
secundário em nosso mundo civil: as leis da idade do amor fo- riosos. Assim, a natureza justa restitui a esses, às expensas da-
ram violadas, o frescor vital feneceu, e o amor, dada a necessi- queles, quanto haviam recebido a mais, e a derrota econômica
dade de adaptação, não se sabe o que se tenha tornado. Os co- se resolve em uma vitória biológica.
rações, desiludidos pela longa espera, atiram-se aos últimos Estes não são senão dois típicos e opostos casos limites. Na
passos da juventude com voracidade inútil; os filhos ou não prática, as combinações são inúmeras. Eles demonstram que a
nascem mais ou, se nascem, são fracos, filhos de descontentes e nossa civilização, sob o tormento econômico, que é o seu pro-
de velhos, seres que não podem amar e gozar a vida, nascidos duto, tende a tornar-se um movimento antivital; mostram a ne-
cansados, que não poderão enfrentar e vencer na luta pela vida. cessidade, para os fins da evolução, de libertar o fenômeno bio-
Ganhou-se a batalha econômica, mas perdeu-se a batalha bioló- lógico dessa sua danosa dependência do fenômeno econômico.
gica. Esta é a história de tantos matrimônios de luxo, em que É um fato que hoje este último elemento influi na seleção sexu-
dois patrimônios se casam, não importando as pessoas que se al e na reprodução, nos sentimentos do amor e em todas as suas
ligam. Os filhos desvitalizados, para os quais justamente se pre- consequências. Sem dúvida, o tormento econômico é um assal-
tendera tudo preparar, pagarão por essa excessiva preocupação. to que a luta pela vida move contra a própria vida, assalto que
Certamente eles crescerão em meio aos confortos, protegidos antes era praticado pelas feras e pelos elementos. Mas, assim
pela riqueza e, em razão desta, serão estimados. Arredados arti- como o progresso atenuou esta forma de luta nas atuais menos
ficialmente da luta, acabarão por enfraquecer-se e imbecilizar- cruas e bárbaras, também a assistência estatal deverá desenvol-
se. E, automaticamente, perderão a riqueza que lhes proporcio- ver uma contribuição cada vez mais intensa à sociedade na de-
nou a inépcia. Assim vem-lhes custar bem caro quanto lhes foi fesa da sua procriação. Os casos do primeiro tipo descrito ex-
fornecido gratuitamente. A vida deve ser um campo de exerci- plicam-se pela pressão universal que exercem as necessidades
tações, e a natureza desaninha os parasitas e os protegidos. A materiais em tudo. O homem, sabendo bem que a natureza não
riqueza só vale quando ela representa uma nossa atividade para brinca, defende-se, apegando-se a tudo que pode. Em nosso
conquistá-la. Mas, assim que se torna instrumento de ódio e de grau de evolução, a luta se tornou incruenta, menos física e
parasitismo, passa a constituir um perigo. Nos casos mais gra- muito mais psíquica, mas nem por isto menos feroz. Ao homem
ves, a natureza chega mesmo a negar a reprodução. Mas, em que não enxerga senão a si mesmo, à própria família e à sua
todo caso, a vitória econômica é uma derrota biológica. exígua vida, a natureza, que objetiva fins complexos e distan-
Segundo caso. Uma outra jovem, rebelde aos conselhos dos tes, parece desapiedada, e é por isso que ele sacrifica a remota
pais e às normas sociais, temperamento passional, pouco pen- vitória biológica da raça à mais vizinha vitória econômica indi-
dor calculador, não se preocupando consigo e com a sua posi- vidual. No amor, nós vemos a vida em conflito consigo mesma,
ção social, disposta a tudo sacrificar pelo amor, esquece a auto- porque ela pretende alcançar duas finalidades que, neste mo-
defesa, deixa-se conduzir pelo instinto e, contrariamente aos mento, entram em conflito: a conservação do indivíduo e a con-
prudentes preceitos religiosos, morais e sociais, ama e concebe servação da espécie. E o egoísmo que defende o indivíduo de-
nova, realizando um matrimônio de amor, mas economicamen- fende-se do egoísmo da espécie, e este tende a esmagar aquele.
te desastroso, quando não fica só e abandonada. O seu destino O homem desejaria o mais possível eximir-se do grande es-
está selado por uma vida dura de trabalho e sacrifício. Não pos- forço de evolver, enquanto a natureza quer que ele trabalhe para
sui mais direitos e deverá tudo aceitar. Nenhuma proteção está progredir. O progresso custa tanto trabalho, tanta dor e sacrifí-
assegurada aos filhos. Ela não soube esperar, sacrificar o instin- cio de vidas, que o instinto de conservação individual se retrai.
to, ser prudente e honesta. Pais e parentes consternados e des- O homem desejaria a vida fácil de gozador, contudo o espera,
contentes, as leis religiosas e civis violadas. Formalmente, tudo ao invés, a vida dura da ascensão. A sociedade se agita para es-
está em desordem. Tudo está contra os preceitos, e dominam as capar a esse impulso e assume alternativamente atitudes diver-
desvantagens de uma posição péssima. A sociedade condena e sas, mas em vão. Nos períodos de bem-estar, quando dominam
despreza. Aqui triunfaram a sinceridade e espontaneidade do os regimes de ordem, a família é sã e a filiação protegida e es-
amor, mas a luta individual pela vida se perdeu, e todos desa- timulada, forma-se a pressão e o incremento demográfico, a
provam. Ela não foi hábil, não soube valorizar-se, protegendo- consciência coletiva se desperta na força e, com isto, o senti-
se legalmente com contratos na vida, não soube utilizar a lei em mento nacional, o amor pátrio, a fé, a disciplina. Esses períodos
sua defesa. É uma falida, é um refugo econômico, e, assim, jus- e regimes terminam todos em guerras de conquista com objeti-
tamente todos se rebelam, porque há um erro a ser pago, e ele vos de expansão. Se houver vitória, o povo que a conquistou
pesará sobre ela, justificando a necessidade de uma sua adapta- torna-se grande às expensas de outros povos vencidos; se hou-
ção. Dá-se, contudo, que o erro não foi de caráter biológico, ver derrota, ele se reduz em vantagens de outros povos vence-
mas sim econômico, e a sociedade parece que vê antes este do dores. Neste caso, despontam os regime fracos de desfazimento
que aquele. Não obstante tudo, aqui também existe um pequeno e de desordem, reina a miséria, a família se desgasta e se des-
fato, secundário em nosso meio civil, e este consiste em que as faz, a filiação não protegida diminui, retarda-se o desenvolvi-
leis da idade e do amor foram respeitadas. Os filhos consegui- mento demográfico, a consciência coletiva se atormenta e com
dos no vigor da idade e sob o impulso do amor são robustos, ela o sentimento nacional e o desejo de guerras expansionistas.
feitos para amar e gozar a vida, talhados para enfrentar e vencer Atinge-se assim a paz, mas ao preço do próprio deperecimento.
a luta pela existência. Perdeu-se a batalha econômica, mas ven- A natureza colima um só fim: a vitória. É por esta via que, mal
ceu-se a batalha biológica. Se a sociedade despreza, em com- se verifique uma exuberância de forças, ela lança os povos e,
pensação a vida aprova. Parece que esta pensa de modo muito por mais que este capital custe ao homem, não lhe permite
diverso daquela. Os pontos de vista e os objetivos são muito di- gozá-lo, mas o faz despender tudo para tentar a vitória. E, se
ferentes. Onde um condena, o outro premia. Certamente, os fi- perde, pior para ele. Se, no entanto, um povo se recusa a de-
lhos serão pobres, mas bem munidos pela natureza para lutar, e sempenhar esse jogo, então a vida o pune, liquidando-o através
a ausência de bens protetores os adestrará desde pequenos e do entibiamento, da servidão e da extinção. E o indivíduo, mo-
também os robustecerá, de modo que lhes será depois fácil le- vido pelo próprio instinto egoístico de conservação, ligado às
var a melhor sobre os entibiados filhos da riqueza, arrebatando- necessidades da própria defesa pelo peso de mil necessidades,
lhes os meios de proteção. Desta forma, a natureza restabelece repele para longe de si, o mais que pode, esta avalanche de ou-
os desequilíbrios, enfraquecendo os protegidos e fortalecendo tras necessidades biológicas, de que cuida bem pouco e, desta
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 145
forma, sacrifica e distorce o sentimento de amor e procriação, tação humana exprime a atual fase negativa, de destruição, de
sobre os quais a aspereza da luta pela vida vem assim a fazer involução, de descida. Caminha-se assim para uma dor sempre
incidir os seus signos funestos. De quem neste estado é a culpa? maior, e desta forma, com a ruptura que chamam liberdade,
Quando não há margem, é natural que o indivíduo pense pri- descer-se-á cada vez mais, até um tal estado de desesperado so-
meiro na própria conservação do que na qualidade da sua pro- frimento, que a própria desesperação imporá a reação, isto é, o
criação, antepondo a sua vitória individual e negligenciando a retorno à fadiga da ascensão. Não se pode conter a evolução.
biológica, menos urgente, da raça. As massas de hoje estão presas no vórtice e não podem enxer-
O amor, efetivamente, não é um sentimento somente para gar além deste. Deverão percorrer todo o ciclo da hora históri-
uso da prole, mas também o é para a satisfação dos genitores. ca. Cada um possui e sabe o que merece. Deus guia tudo. Pou-
Se é um fenômeno biológico demográfico e social, de interesse cos isolados e oprimidos seguem em dor e silêncio o caminho
coletivo, é também um fenômeno eletromagnético, hormonal e oposto, unindo-se a Deus em uma luta desesperada para salvar,
genético, de interesse individual. A troca de radiações de sinal nesta hora de destruição universal, especialmente os valores es-
elétrico oposto é um excitante do dinamismo nervoso, constitui pirituais, aquilo que de mais precioso e com trabalho imenso as
um ―do ut des‖, em que as duas cargas reciprocamente opostas civilizações conquistaram. A luta é desigual e desesperada. Mas
se descarregam do supérfluo e se carregam do necessário. A Deus, que tudo guia, está com eles. A vida, pela sua salvação,
troca hormonal, fenômeno ainda não bem compreendido pela está também com eles. A evolução, que não se pode frear, está
ciência e que aqui não é possível ilustrar, realizando-se através igualmente com eles. São profundas as trevas, mas com eles se
das mucosas, abastecendo a célula, influi como regulador e ati- encontra a luz. Em uma hora de inconsciência, eles possuem a
vador do metabolismo. Tudo isto é necessário e útil à vida dos consciência de serem os depositários e os guardas dos mais al-
genitores, independentemente da procriação. Por último e cone- tos valores da vida e, por conseguinte, os senhores do futuro.
xo aos precedentes, aparece o fenômeno genético, pelo qual,
através da nossa vida individual, uma outra vida se individuali- XXVI. SEXUALIDADE E MISTICISMO
za, até tornar-se autônoma, destacando-se dos procriadores. É
impossível explicar aqui a maneira pela qual o princípio espiri- Observemos agora as funções e o significado do amor nos
tual se encarna no feto e se liga à sua forma física segundo de- planos biológicos mais elevados, onde tudo e também ele se
terminadas leis, orientado por forças e afinidades. Entramos aqui transforma com a ascensão do plano vital.
no campo espiritual, em que se maturam os fins da vida e do Em face das graves afirmações de Freud, hoje em moda,
qual o organismo físico não passa de um instrumento de expe- segundo as quais a sexualidade constitui a base da personali-
rimentação. Pode-se dizer que não é possível compreender ver- dade e qualquer forma de amor não passa de uma extensão di-
dadeiramente o amor se não se compreender todos os problemas reta oriunda do amor sexual, propomos as perguntas que se se-
do universo. Mesmo considerando-o apenas como fato individu- guem: dado que o amor dos místicos apresenta características
al, ele é um fenômeno tão vasto, que alcança as próprias raízes de afinidade com o amor sexual, do qual conserva, a maioria
da vida. Aqui, podemos apenas explorar a sua complexidade. O das vezes, até as expressões, existirá realmente parentesco en-
homem tem a pretensão de dominá-lo com as suas leis, mas nem tre as duas formas e por que? Que relação haverá entre elas?
ao menos o conhece. Ele é regulado nas suas funções e conse- Será o misticismo uma forma patológica ou mesmo supranor-
quências por uma sabedoria bem diversa da humana. mal do amor sexual? Entendemos aqui por misticismo aquele
À medida que o ser evolui, o seu amor se torna cada vez fenômeno que não pertence somente ao cristianismo, mas às
mais espiritual. O involuído não sabe compreender o amor se- religiões, ou melhor, à vida, através do qual um indivíduo iso-
não na sua forma inferior, egoísta e carnal. A potência, a bele- lado experimenta em si, como fenômeno vital presente, a ima-
za, a liberdade, a alegria do amor espiritual constituem para ele nência do divino, do transcendente. Queremos aqui falar do
um inconcebível, porque estão fora das suas possibilidades per- misticismo verdadeiro, fenômeno biológico real, e não de cer-
ceptivas. Só no alto, onde os seres não amam carnal e egoisti- tos pseudomisticismos, que podem dar razão a Freud. Esse
camente, pode-se ter um amor que se sobreponha à traição, à misticismo verdadeiro é algo que a ciência deve encarar com
desilusão, à morte. Indiscutivelmente é trabalhoso subir, mas seriedade. Ele é tão sério, que, no dia em que os problemas a
caso se pretenda possuir esses resultados, é necessário enfrentar ele atinentes tiverem passado do campo teológico, religioso e
a ascensão. É árduo ascender, mas, segundo a Lei, quem sobe especulativo ao cientifico, objetivo e racional, poder-se-á dizer
caminha para a alegria e quem desce caminha para a dor. Infeli- que o materialismo científico terá ruído.
zes dos que, iludindo-se em poder gozar, precipitam-se para Aceitamos a orientação dos psicanalistas freudianos que, no
baixo. Instintivamente sentimos o paraíso no alto dos céus e o estudo da personalidade, emprestam grande valor ao elemento
inferno nas tenebrosas profundidades da Terra. Hoje, a huma- sexual. Mas teremos o direito de exagerar, como eles fazem, a
nidade é presa de um frenesi de evasão e de liberação. Acredita- importância desse elemento, a ponto de definir o místico como
se que, evadindo-se de toda norma, seja possível libertar-se da um grande amoroso que, por involuntária ou imposta renúncia,
dor. Formou-se assim um conceito invertido de liberdade, em vendo cerradas as vias normais do desafogo erótico, busca sa-
descida ao invés de ascensão. Mas o que não está invertido nes- tisfazê-lo anormalmente pelos atalhos do misticismo, que assim
sa era de involução? A verdadeira liberdade só se pode alcançar se reduz a um sub-rogado sexual? Sem dúvida, o misticismo
com a ascensão e com a luta para ascender. Este é o século das casa-se mal com a frigidez dos sentimentos, pois representa o
palavras falsas, feitas para enganar, para que tudo se transvie e desenvolvimento da potência do coração, em polo oposto ao da
se distorça. Hoje se difunde uma insana tendência para negli- razão. O fato de que os místicos poderiam ter sido grandes
genciar todos os deveres, libertar-se de todas as disciplinas, amorosos também no plano sexual, fez pensar que eles não ha-
acreditando-se que, com isso, aliviem-se todas as cargas. O re- jam sido senão libidinosos frustrados. Acreditou-se então poder
sultado é um egoísmo cada vez mais feroz, semeador de danos colocar o fator sexual na base do fenômeno místico e do seu
para todos, em uma luta cada vez mais acirrada e, portanto, desenvolvimento, podendo-se assim contrapor à sexualidade
uma vida cada vez mais dura. Esta queda na barbárie se chama normal uma sexualidade mística, interpretada esta como um
evasão e liberdade. Cada qual nega ao próximo o tributo do desvio, isto é, como uma sexualidade malograda e deformada.
próprio dever, e todos se empobrecem. Evadir-se das normas da O problema que nos propomos aqui é este: será patológico
moral e embrutecer-se no prazer pode parecer ascensão para a o caso do místico, será um desvio degenerado do normal, um
alegria, mas é, na realidade, descida para a dor. Toda manifes- sub-rogado qualquer compensatório e de valor inferior, ou re-
146 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
almente é uma verdadeira e própria tentativa de evolução que Para poder julgar um ser é necessário compreendê-lo, e, pa-
a natureza, em dadas circunstâncias e certos casos, realiza pa- ra compreendê-lo, é necessário saber viver no seu grau de evo-
ra chegar, através de uma superação biológica, a formas mais lução. Ora, a ciência e o pensamento humano da atualidade têm
evoluídas de sentir e de amar? É certo que misticismo e re- como tipo biológico modelo o involuído de hoje, possuidor de
núncia, na realidade, associam-se como que ligados por uma insensibilidade ilimitada e animado por instintos animais. A
mesma lei, pois as duas formas de amor, o sexual e o místico, moderna orientação materialista e utilitária não pode conceber
parecem rivais e com tendência a se excluírem reciprocamen- outro super-homem que não seja o de Nietzsche, isto é, o su-
te. Mas o problema está em estabelecer se a renúncia, ao invés perbruto, egoísta, violento e antissocial. Tudo depende da for-
de ser a causa, não seja senão o efeito do misticismo. Sem dú- ma mental e da medida com que se julga. É natural que o mate-
vida, o amor é um dos impulsos fundamentais da vida, e sa- rialismo freudiano não possa ver no homem senão o animal. É
bemos também que a natureza, grande e ecônoma, não des- certo também que, num mundo assim, o super-homem do espíri-
perdiça nada, utilizando tudo. Assim como ela utiliza a pró- to não possa deixar de aparecer como um anormal, um degene-
pria moléstia para robustecer e imunizar, poderia também uti- rado. Para julgar, faz-se mister ter compreendido o pensamento
lizar a renúncia, derivada de qualquer causa, para elevar as da lei que rege o universo e os fins da vida. Que o escopo desta
manifestações do amor e, assim, em temperamentos mais seja evoluir, é também uma hipótese que corresponde à observa-
adaptados pela maturidade biológica, tentar uma sublime as- ção e satisfaz a lógica das coisas e a razão humana. É lógico
censão a nível superior, utilizando o desafogo não empregado que, se existem seres que se movem em fase animal, no campo
no plano sexual animal para dirigir o seu impulso em deman- das leis da fome e do amor, ocupando-se somente das funções
da de vias mais elevadas. Dada a potência criadora do amor e vegetativas da conservação individual e coletiva, podem existir
a grande importância do fenômeno evolutivo, não é verossímil igualmente indivíduos que se movem no campo das leis da evo-
que a sabedoria da natureza se deixe tão facilmente fraudar lução, ocupando-se da função de progredir. Eis o herói, o gênio,
em face do cumprimento dos seus maiores objetivos, que são: o mártir, o santo, o místico, o super-homem do espírito, o pre-
criar, conservar, evoluir. Assim, não é verossímil também cursor da evolução, o pioneiro do progresso, tipo biológico que
que, antes de recair em uma distorção patológica, ela não ten- não é o produto de um tempo, de um lugar, de um povo ou de
te abrir caminho às suas forças e saída aos seus impulsos mai- uma religião, mas é universal, como produto da vida.
ores por vias superiores, realizando-se igualmente ao ensinar a Tudo depende, pois, do ponto de observação e consequente
amar em formas biológicas mais evoluídas. perspectiva. Para o homem involuído atual, que se coloca co-
Ora, entre fazer da renúncia um fato concomitante ao mis- mo modelo da vida, a sublimação das próprias qualidades não
ticismo e dela fazer a causa deste, ocorre uma imensa distân- parece ter muita importância, enquanto que tem muitíssima pa-
cia. É verdade que a natureza pode utilizar a renúncia para au- ra o homem que dele começa a destacar-se por evolução. Exis-
xiliar no desenvolvimento místico. Mas a renúncia apenas não tem dois modos de ver as coisas: observando-se da Terra, isto
basta para criar o místico. A elasticidade dos instintos, que fa- é, evolutivamente de baixo para cima; ou observando-se do
culta a adaptação, tornando suportável a substituição e a trans- céu, isto é, de cima para baixo. No primeiro caso, seremos le-
posição de objetos, é limitada. Visto que os instintos têm um vados a desprezar, relegando o fenômeno ao campo patológico
fim a atingir e se veem dessa maneira fraudados na consecução e anormal. No segundo caso, admirar-se-á o grau de sublima-
deste, o desvio do impulso não pode superar um certo grau de ção a que o misticismo conseguiu levar, fazendo-os evoluir, os
deformação, quaisquer sejam as necessidades impostas pela primitivos impulsos biológicos do instinto bestial. É natural
adaptação. Estas formas derivadas se conhecem por caracterís- que a visão egocêntrica que coloca o homem atual como pro-
ticas de semelhança, mas de uma semelhança tendente à dege- duto e modelo de vida, faça que ele considere um afastamento
nerescência, e não à superação no sublime. Não nos induza es- desse tipo, ainda que determinado pela evolução, como um
sa semelhança a erro, fazendo-nos confundir o anormal com o desvio encarado com desconfiança, sem interesse, quando não
supranormal. A faculdade de adaptação não nos autoriza a o seja com menosprezo. É natural também que, da posição bio-
acreditar possível um salto, como o que seria necessário para lógica do mais evoluído, as coisas pareçam bem diversas e se
superar o abismo que separa o amante carnal do amante místi- olhe o homem atual com piedade, como a um pobre ser inferi-
co. Amar espiritual e altruisticamente a Deus e, em Deus, o or que não suspeita ainda que infinitas possibilidades contém o
próximo, é muito diverso de amar sexual e egoisticamente a seu futuro desenvolvimento. Por isso os problemas do místico,
um semelhante. Se existem afinidades, é porque o amor no para ele fundamentais, não podem interessar à maioria, que se
universo é uno. Mas elas não bastam para fundir os dois fenô- aflige com a explicação do futuro e da evolução, coisas para
menos. Em verdade, a escala evolutiva é a mesma e tudo é uni- ela distantes em face do homem atual. Este, todavia, não pode-
tário em um universo monista, mas a distância que existe entre ria negar que à vida também deve interessar a evolução, pois
a fase humana e a fase sobre-humana é grande demais para ser que, se ela efetivamente produz indivíduos com tal função pre-
superada simplesmente pelo impulso de um desejo insatisfeito. cípua, quer dizer isto que esses indivíduos são igualmente in-
No misticismo, não atua apenas o elemento negativo de renún- dispensáveis ao trabalho do conjunto.
cia, mas age um elemento positivo que se distancia do mundo Mas nos levaria muito longe o desenvolvimento desses con-
sexual, na inversão dos valores, e que está implícito em tal su- ceitos. Devemos aqui, pois, concluir o aspecto atual. Se o amor
peração. No indivíduo há um fato evolutivo novo, uma maturi- universal é o fenômeno que liga sexualidade e misticismo e nos
dade que o eleva e potencia. A renúncia poderá ser um fato permite estabelecer as relações que vigoram entre eles, com isto
concomitante colateral ou mesmo uma negação inferior, neces- se estabelece a imensa distância evolutiva que os separa. Se é
sária para que possa agir a superação. Mas daqui a ser ela a certo que eles sejam duas formas do mesmo amor universal,
causa determinante do misticismo vai muita distância. É muito importa, no entanto, reconhecer em que grau diverso estejam
mais lógico admitir o contrário, isto é, que a renúncia se una ao pela pureza, alegria e potência. Isto nos diz também que os dois
misticismo no quanto este estado representa um tal esforço fenômenos podem ser comunicantes e entre si se influenciarem,
evolutivo, que absorve por si só todas as possibilidades do in- mas também que esse parentesco distante, que de resto existe
divíduo. No gênio, como no santo, que tanto se assemelham ao em todas as formas da vida, não basta para passar do amor se-
místico, vemos que a vida, que neles cumpre um trabalho ex- xual ao amor místico. Para se chegar a este, faz-se mister uma
cepcional supranormal, submete os fins da reprodução e da se- maturação evolutiva, a manifestação de qualidades novas, na
xualidade aos seus maiores objetivos criadores. verdadeira catarse biológica, uma superação de si mesmo. No
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 147
misticismo, se existem lembranças da sexualidade, há infinita- um outro pensamento, que o homem mal conhece, lei absoluta,
mente algo mais. Isto verificado, a orientação freudiana é abso- eterna, iluminada, divina. A mente humana, de fato, não guia o
lutamente inadequada para explicar um semelhante nascimento, universo, que sabe muito bem funcionar por si mesmo. Ao con-
fazendo que o mais surja do menos. Somente o fenômeno sexu- trário, a mente do universo guia o homem, sem que este o sinta,
al não é causa suficiente para determinar o verdadeiro fenôme- e, onisciente e onipresente, está de tal forma inculcada em cada
no místico. Se só bastasse uma forte sexualidade, por mais con- ser, que nada viveria sem ela. É um fato que a mais simples das
trariada que fosse, para gerar e explicar o fenômeno místico, os células do nosso corpo sabe executar, à nossa revelia, tais mila-
casos de misticismo seriam muito mais frequentes. A maior gres de bioquímica, que nós não apenas somos incapazes de re-
parte dos que renunciam forçadamente encontram uma com- produzir, mas nem ao menos conseguimos conhecer e compre-
pensação bem diversa, desviando-se para o patológico e para o ender. Uma pequena célula é mais sábia do que o maior dos ci-
anormal. O verdadeiro misticismo só é atingido pelas almas entistas. Essa consciência do universo aparece no homem sob
eleitas. Milhões que renunciam isolam-se nos conventos ou forma instintiva, não refletida, intuitiva, não racional. A consci-
alhures no mundo, mas quantos deles se tornam verdadeiros ência humana está ligada aos sentidos e constitui um sistema,
místicos? A maior parte dos exuberantes nem ao menos pensa um esquema lógico, uma forma mental em que o homem se en-
nisto. O tipo biológico normal imaturo, em tal caso, ou se rebe- contra encerrado. É o seu corpo mental. Ora, quando, por matu-
la destroçando os freios, ou se adapta à deformação do instinto, ração evolutiva, o eu consegue ultrapassar esses confins, pene-
ou enlouquece e se suicida. Para poder atingir o sublime, para trando, ainda que por pouco, a consciência universal, isto tam-
tornar-se um santo, devem interferir elementos bem diferentes, bém, enquanto é superação, distensão e expansão em uma vida
que de modo nenhum pertencem à sexualidade própria do plano maior, constitui alegria. Esta, repetimos, é índice de bem e de
animal humano. Para se atingir biologicamente tão alto, faz-se ascensão. Tudo na vida é uma contínua luta entre a necessidade
mister coisa bem diferente de uma deformação do tipo biológi- de conservação, que preside o instinto do egoísmo, e a necessi-
co normal! Para se conseguir viver a vida do tipo biológico su- dade de expansão, que preside o instinto altruísta do amor. Po-
pranormal, não são suficientes exuberância e renúncia, mas é der libertar-se da acanhada consciência individual, para entrar
necessário ter-se percorrido a longa via que conduz à própria no imenso consciente universal, que para o homem se encontra
maturação. É necessário ser evoluído, e não involuído. no inconsciente, poder senti-lo e atingi-lo, representa tocar o
sobre-humano, avizinhando-se de Deus. Correspondendo isto
XXVII. POR QUE AMOR É ALEGRIA aos mais elevados fins da Lei, que é progredir para o Alto,
constitui também a maior alegria do ser.
Que significado tem a alegria na vida? O que é o amor e Isto só se consegue por meio do amor. Mas compreendamos
por que ele, em qualquer grau evolução, desde a forma sexual bem, amor em seu significado maior, o amor universal, que
até à mais elevada, no misticismo, é prazer? Que relação há caminha da forma sexual à mística, até atingir Deus. Não é o
entre as duas formas? Pode esta pergunta nos levar à desco- racional cálculo egoísta, mas sim o abandono cego a Deus, a
berta do seu denominador comum, se é que ele existe? Será o submissão à vida, que nos abrem as portas a esses contatos com
amor talvez o grande motor da vida? E, em grau evolutivo o infinito e às alegrias que dele derivam. O fundo do supremo
mais ou menos elevado, trata-se sempre do mesmo amor? gozo místico, como de qualquer amante terreno, reside em se
Como evolve e a que tende esse amor universal que alcança a deixar ser absorvido além de qualquer lógica de interesse indi-
Deus? Como pode ele permanecer em prazer quando ainda se vidual e submergir-se no abismo divino, por mais irracional que
nos apresenta como renúncia a qualquer alegria terrena, como possa parecer um tal naufrágio do egoísmo. Mas por que moti-
dor e negação da vida animal normal? Como pode ele perma- vo, se é o eu que preside à conservação, é tão doce renegá-lo e
necer criação e sublimação, ainda quando, humanamente, pa- por que é tão agradável à mente humana perder-se na contradi-
reça destruição e insucesso? ção, no irracional? Em todo grau de amor, será tanto maior o
Respondamos a estas interrogações. É indiscutível que a vi- gozo quanto maior for a renúncia ao egoísmo. Eis que, no fun-
da procure a alegria. Por que? Porque ela foi criada para isto, do de todo amor, do sexual ao místico, existe o mesmo motivo
indicando a alegria onde está o bem. O bem é caracterizado pe- de renúncia. A razão está no fato de que a alegria é dada pelo
lo nível da alegria; o mal, pelo indício da dor. Alegrias momen- evolver, subindo para Deus, que é amor, e isto não se pode ob-
tâneas e fictícias poderão induzir-nos a erros, mas se elas mas- ter senão pelas vias do amor, que, se, de um lado, é jubilosa ex-
caram o mal, logo descobrimos a dor de que são feitas. Alegria pansão altruísta, é também, por outro lado, o oposto do egoís-
existe em tudo o que evolui, que caminha para Deus, que é o mo, negação de si mesmo, renuncia. Todas as vezes que nos en-
supremo bem. A vida é feita para evoluir, ainda que o faça tregamos, superando as barreiras do egoísmo, a lei de Deus nos
através da dor, para uma alegria cada vez maior. Todas as vezes aprova e no-lo diz, compensando-nos com uma alegria íntima.
que seguimos a lei de Deus, semeamos a alegria, ainda quando Isto é verdade para qualquer nível, do amor sexual ao amor
dela nos separe um abismo de provas e de dores. Todas as ve- místico. Então o eu se perde e a vida triunfa. O eu acredita en-
zes que agimos contra a lei de Deus, semeamos para nós mes- tão morrer, mas na verdade renasce na sua expansão, nos filhos
mos a dor, ainda que dela estejamos separados por um mar de ou no espírito, pois que Deus dá a quem dá, e nega a quem ne-
vantagens e de prazeres. Assim, há o prazer da mesa, que nos ga. Ao sacrifício e ao gozo segue-se a criação, multiplicação
diz que se deve nutrir o corpo porque ele deve viver. Um pouco material ou espiritual, que é manifestação de Deus. O princípio
mais acima está o prazer sexual, que nos diz que é necessária a é único. Eis o denominador comum dos dois fenômenos entre si
reprodução, porque a espécie deve viver. Mas há ainda, muito tão distantes: amor. Tanto num caso como no outro, a alegria é
mais acima, o gozo do trabalho e do pensamento, que criam, o dada pela mesma expansão, ainda que em forma e graus diver-
gozo do espírito e da ascese, para nos indicar que se deve pro- sos, na mesma adesão à lei divina de amor, que é base da vida.
gredir, porque o homem não necessita apenas viver e multipli- Então fala, além da consciência humana, a divina consciência
car-se, mas também evoluir. A cada fim a ser atingido, a Lei universal, constituindo-se, sem que o homem o saiba, na sua
propõe um gozo adequado. Cada coisa em seu lugar, segundo própria consciência, indo além da razão, do cálculo egoísta e
uma hierarquia funcional, que guia as nossas ações. Mas obser- dos interesses da sua conservação, até mesmo se opondo a eles.
vemos ainda. Se o homem possui uma consciência relativa, ra- Essa superação, esse abandono a um inconsciente instintivo, em
cional, refletida, transitória, limitada e adaptada aos escopos da que opera uma outra consciência mais elevada, que nos escapa,
vida e à evolução, é um fato que o universo funciona regido por esse extravasamento além dos confins do egoísmo, para viver
148 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
no todo e para o todo, representa o sacrifício que está conexo ao preendido com pureza, elevando-se sempre, até ao amor do es-
amor, pois o sacrifício cria em qualquer nível e, sem ele, não pírito. O próprio cristianismo fez do primeiro um sacramento,
existe nem verdadeiro amor nem gênese. É isto que provoca o colocando-o na base da família, com missão social.
delíquio da alma. Eis também por que motivos encontramos O amor é o estado sublime em que aparece e age a divina
nestes dois fenômenos, da sexualidade e do misticismo, os vontade que está em todas as coisas, como onisciente e secreta
mesmos elementos, ou seja, amor, sacrifício e gozo. alma do cosmo. Então ela se substitui ao eu e à sua razão; ma-
Enquanto o egoísmo contrai e disseca, o amor dilata e cria. O nobra-o à sua revelia, para os próprios fins e submete-o ao seu
primeiro, se impelido além da função conservadora, inverte-se comando, absorvendo-o na sua oceânica potência. O eu, sentin-
em forma destruidora. Assim, compreende-se como o amor de- do o extravio, percebe o perigo que envolve a sua segurança de
termina a inversão dos valores estabelecidos pelo egoísmo, como indivíduo, ao entregar-se sem refletir, e desejaria calcular, de-
o amante possa esquecer a si mesmo em favor do ente amado e fender-se, retirar-se. Mas o desfrute de um supremo gozo o fas-
como o místico possa viver de renúncia. Então a perda se torna cina e o arrasta para o sorvedouro, em que é tão doce deixar-se
ganho, ordenar se transforma em obedecer e o inconsciente triun- naufragar, que o egoísmo se esfrangalha desfeito pelo amor.
fa. A vida passa a uma fase evolutiva mais alta, e a lei de conser- Então, quer no amante terreno, quer no místico amante sobre-
vação do eu se sacrifica para que vença a lei do ensimesmamento humano, um fato se apodera do ser, que não pode mais resistir e
em um outro ser. Deus é unidade e tudo que irmana e unifica é assim arrebatado. Desta forma, assim como o enamorado da
conduz a Ele e d'Ele se aproxima. Dado que o amor é prazer, o criatura terrena afronta qualquer risco e sacrifício por ela, assim
homem pode abusar dele, eliminando o sacrifício que o eleva e o também o enamorado de Deus, tresloucadamente ousa, na re-
torna criador, fazendo assim do amor um estéril instrumento de núncia, a inversão evangélica dos valores humanos. E, assim, o
gozo. Não resta então senão ruína, um amor egoísta e, mesmo místico, que cria não na carne, mas no espírito, funde-se, sem
como alegria, mutilado, infecundo e traidor dos fins da vida. No reservas, na vontade de Deus. A divina potência criadora se
entanto, entre todas as culpas, as que menos distanciam de Deus manifesta neste impulso evolutivo do amor, que nos constringe
são as culpas de amor, já que o amor é sempre a Sua lei suprema. a esfrangalhar, com perigo da nossa própria segurança, as bar-
As piores são as do egoísmo, do ódio, da destruição. Dante colo- reiras do egoísmo, feitas para a proteção do eu. Este luta e se
ca os luxuriosos sempre distantes de Lúcifer, que constitui o cen- defende, a fim de permanecer no campo seguro da sua pequena
tro do ódio e do mal e que é a negação de Deus, ou seja, do amor, consciência racional. Mas, a um certo ponto, o inconsciente ins-
para colocá-los junto às portas do inferno e no ponto mais alto do tintivo e irracional, anelando os próprios fins, que o indivíduo
purgatório, na saída deste, próximo ao Paraíso. ignora, e metas superiores bem diversas, emerge com imensa
Tudo isto nos permite melhor definir as relações entre se- sabedoria e potência da profundidade do cosmo, para revelar o
xualidade e misticismo. Se, dada a unidade da vida, não se pensamento e a vontade de Deus, arrojando-se sobre a criatura
pode desconhecer uma necessária semelhança entre estas suas e arrebatando-a. Esta se debate ignara e desorientada; desejaria
manifestações, isto não impede a superioridade espiritual do resistir, mas não sabe como, cede por fim, triunfando mais aci-
fenômeno místico, que assim nos aparece bem diverso de uma ma, no sacrifício de si mesma, que é a derrota do seu egoísmo.
simples sublimação dos instintos sexuais, bem diverso de uma Essa derrota do eu egoísta dá nascedouro a uma vida nova, que
espécie de sucedâneo determinado por derivação compensa- é um dom que Deus concede a quem obedece ao amor.
dora, como quiseram que o fosse os psicanalistas freudianos. Esta é a hora criadora, em que a vida triunfa sobre a morte e
Não obstante a grande distância entre as duas formas, o seu o bem sobre o mal, a hora em que o indivíduo mortal se torna
elemento comum e fundamental, o amor, faz com que em am- imortal e a vida se santifica, posta em contato com Deus. Hora
bos os casos se encontre o sentimento do pudor. Cuidemos o sublime esta de amor, em que a natureza, tão parcimoniosa, tor-
seu significado. Este estado próprio do ato sexual, estado que na-se pródiga, porque então, abrindo-se nela a potência geradora
significa proteção do mesmo e de modo nenhum consciência de Deus, ela se sente muito mais rica. Então a vida se exalta no
de pecado, encontra-se também no artista, no momento da triunfo da sua maior festa, os sentidos comumente usados para a
concepção, em quem quer que cumpra com consciência um luta embotam-se como em um transe, a luz perturba e a palavra
ato nobre e altruísta e, por conseguinte, sobretudo no místico, emudece. Nisto se assemelham tanto as manifestações sexuais,
nos seus contatos espirituais. O pudor se manifesta na vida to- como os estados de inspiração artística, os mediúnicos e es mís-
das as vezes que se desempenhe um ato importante que é de- ticos. Parece que e fenômeno de transe verifica-se todas as vezes
feso, quase sacro, aos olhares dos profanos. Isto nos conduz que ocorre uma transmutação, mais ou menos acentuada, da
ao seguinte: quanto mais se sente a fé que se carrega viva, consciência racional à cósmica, isto é, toda vez que se saia de si
menos se é levado a exibi-la, mais repugnando as exteriorida- mesmo para, entregando-se, fundir-se no que há de maior ao que
des, e vice-versa. É raro que gostemos de pôr à mostra o mais está acima de si. A nota dominante é o desinteresse, a abnega-
precioso tesouro e, quando o exibimos, isto significa, geral- ção, a renúncia de si mesmo, a expansão do humano ao divino.
mente, que pouco o amamos. É sobretudo no caso do verda- Assim compreende-se como as mais elevadas atividades do ser
deiro misticismo que a natureza procura pudicamente prote- se cumprem além da vontade da consciência, por instinto e in-
ger-se dos normais involuídos, destruidores, ocultando-lhes as tuição. Atingem-se então planos de consciência superindividual
manifestações e o misterioso processo da gênese do super- e super-racional, como é a divina consciência cósmica. Se, em
homem do espírito. Então é a vida que protege o indivíduo verdade, isto contrasta com o egoísmo que nos defende e, por is-
que se lhe entrega, porque o eu abandona as próprias defesas so, parece trair-nos, levando-nos a um perigoso abandono, é, no
e, esquecido de si, permanece inerme. Tanto no fenômeno se- entanto, a maior e mais irresistível alegria da vida. Então a cons-
xual, como no místico, a consciência refletida fica em suspen- ciência normal permanece atrás, impotente para medir com a sua
so para perder-se na consciência cósmica, com a qual se funde. exígua unidade, devendo curvar-se ao que não compreende. É
A individualização do ser se anula na fusão com o objeto do assim que se vence na derrota e se fica rico na miséria, poderoso
próprio amor, seja ele criatura ou Criador. A vida permanece na obediência e douto na loucura, porque o centro da vida se
arrebatada por esse fato, tanto mais quanto mais ausente esti- deslocou, alterando com o ponto de vista todas as perspectivas,
ver a vontade individualista e egoísta do eu. O amor, em qual- quando a consciência dá um salto em direção a Deus.
quer nível, é uma exultação da vida cósmica, porque represen- Eis, então, porque amor é alegria. Isto é verdade em qual-
ta o cumprimento da sua primeira lei. Deus é amor e cria no quer nível, mas será tanto mais, quanto mais elevado ele for.
amor, em qualquer nível, desde o amor da carne, quando com- Porque ele é superação de egoísmo separatista, é fraterna uni-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 149
ficação com o todo através da unificação com o próprio seme- XXVIII. O PROBLEMA DA CASTIDADE
lhante, é a essência daquela evolução que nos aproxima de
Deus. Amor, alegria suprema do ser, porém continuamente No sistema do nosso mundo biológico, em que a sexualida-
negada e contrastada pela dor que se origina da dilaceramento de possui fundamentais funções de continuidade de vida, a cas-
do nosso egoísmo. O universo está divinamente invadido e tidade representa certamente uma posição negativa. E assim é
transbordante dessa alegria, pela qual todos anseiam. Ela está de fato nos casos de frigidez e patológicos, condições aberran-
sempre pronta a nos alcançar com a mesma ânsia com que nós tes em que a natureza excepcionalmente falha em seu objetivo.
queremos alcançá-la. Mas este é exatamente o grande drama Mas não é desses particulares casos da falha no plano animal
da vida: uma barreira de dor nos separa dela, barreira que é que aqui queremos falar. Ocupar-nos-emos de uma outra casti-
dada pelo despedaçamento de nosso egoísmo. Daí a trágica dade, daquela praticada pelo santo, pelo gênio, pelo herói da ca-
ilusão do mundo e o seu erro na procura da alegria. A verda- ridade, pelo místico, como sacrifício necessário em vista de
deira felicidade não está no prazer, mas além da dor, que é maiores realizações. Ora, essa castidade não se pode mais con-
necessário atravessar e superar. Este é o significado da inver- siderar como falha e negação de vida, visto que está conexa a
são evangélica dos valores do mundo, da consequente e fatal uma superação, a uma afirmação mais alta e poderosa. Cumpre-
necessidade de que a redenção de Cristo só poderá ser cum- nos, no entanto, indagar como é possível que ela possa deixar
prida através da dor. Para se transpor o inevitável linde, além de ser negativa frente aos fins da vida, como renúncia que muti-
do qual está a felicidade, é necessário inverter o egoísmo, des- la esta na sua fundamental necessidade de continuar-se; e saber
fazê-lo no amor, dilatá-lo e expandi-lo no altruísmo pelas como pode ela justificar-se em organismos físico-psíquicos
criaturas, até Deus. Isto pode parecer uma perda, mas não o é, normais, em que a sexualidade é representada por todo um sis-
pois não é destruição, mas sim dilatação e evolução do egoís- tema orgânico nervoso, base da personalidade.
mo. O universo, sendo egocêntrico em Deus, é, segundo um Respondemos que, antes de mais nada, semelhante renúncia
mesmo e único esquema, fundamentalmente egoísta em qual- não diz respeito senão a tipos de exceção, por conseguinte ela
quer das suas formas e criaturas. Esta é a lei pela qual tudo se não compromete de modo algum os fins da vida, pois que esta
conserva e se protege. Quando o egoísmo evolve, nós o cha- alcança esses fins, plenamente íntegra, na grande maioria dos
mamos altruísmo, mas aquele nada mais fez que dilatar o seu casos. Tudo isto faz, ao contrário, parte do seu plano, pois que
círculo. O egoísmo permanece sempre. Só que agora ele é um ela, assim, não faz mais que inteligentemente distribuir encar-
egoísmo mais amplo, que se dilatou até abraçar um maior gos e funções, confiando às massas a incumbência de multipli-
número de seres. É a evolução que leva o egoísmo a expandir- car-se na carne, e a poucos eleitos o trabalho de formá-las e
se em um egoísmo relativamente mais extenso, chamado de guiá-las espiritualmente. Esses eleitos, verdadeiros evoluídos,
altruísmo, em relação ao primeiro. Esta expansão toma o no- só podem sentir o amor de uma forma supersensível, universal,
me de amor, e ela nos faz subir. Evolver é, pois, dilatar o nos- base de uma fecundidade toda espiritual e de especial missão
so eu progressivamente, cada vez para mais próximo de Deus. que lhes confiou a vida. Esta não se esgota inteiramente no pla-
Quanto mais nos avizinhamos d'Ele, tanto maior será a unida- no animal humano, a que se limita hoje a observação científica.
de coletiva em cujo seio saberemos harmonizar-nos, tanto Outras formas de existências há acima desse plano animal. E é
mais vasto e profundo será o irmanamento que saberemos rea- no ingresso do ser em superiores fases de evolução que a natu-
lizar. É necessário, em suma, sacrificar o eu ao amor, não im- reza transforma, com o tipo biológico, também o fenômeno da
portando o que isto possa custar-nos. E sempre nos custa! Mas sexualidade. Tudo isto corresponde perfeitamente à economia
só são verdadeiras as alegrias determinadas pela fadiga da as- da vida, que não renuncia a algumas das suas atividades e ma-
censão. As comodidades da descida constituem uma mira- nifestações, senão para que essas cedam o lugar a outras que
gem... E é lógico que o seja. Deus, que é justo, não pode con- colimam fins que, pela importância, superam os precedentes.
ceder felicidade não merecida. O homem desejaria a via mais O que já dissemos com respeito ao amor pode ajudar-nos
fácil. Mas, queira ou não, outro caminho não existe, senão a muito a compreender o que diz respeito ao super-homem. Se no
vereda estreita e difícil, para alcançar a verdadeira alegria. plano animal humano domina a renúncia na castidade, no plano
Hoje, o mundo prefere as vias do ódio às do amor. E isto se espiritual sobre-humano triunfa a maior afirmação no amor
dá pelos bens materiais. Odiai, odiai, mas sereis infelizes, por- universal. A castidade que o caracteriza é algo bem diverso de
que o ódio é dor. Sem amor, por mais rica que seja a vida, ela é simples negação e renuncia. Ela é, ao contrário, condição de
estúpida, sem objetivo, destituída de sentido. Não há bem estar afirmação e superação, é um abandono do inferior, visando a
material que nos possa compensar da dor que o ódio nos acar- conquistas em níveis superiores. Na harmônica distribuição das
reta. Não é com o ódio, mas com amor, que se cria o bem es- atividades vitais, uma exígua minoria pode e deve subtrair-se à
tar. Na Terra, não nos resta senão o amor venal, prostituído pe- lei da maioria, para cumprimento de missões que esta não pode-
lo interesse. Esse fato nos torna desesperados, porque o amor ria assumir. Não se pode, pois, confundir a castidade negativa,
não é apenas uma necessidade da carne, mas, sobretudo, uma verdadeira mutilação quando aplicada ao involuído, destinado a
exigência do espírito. Hoje procura-se matar este, sufocar-lhe o viver no plano animal, com a castidade positiva do super-
grito no prazer da carne. Mas o homem, ainda que involuído, homem, que se liberta das formas animais de sexualidade, para
não é apenas o bruto; a libido satisfeita não basta para saciá-lo. conquistar novas, mais altas. Não faltam na história exemplos
Além da carne está a alma, que clama pelo amor. É a alma, que de semelhantes eleitos na castidade positiva, que não é morte,
não se sacia apenas com o prazer, que pede mais e que se de- mas triunfo do amor, casos de seres que ardem não mais nas
bate se não dermos. Ela se ergue do leito de prazer, cheia de paixões animais da carne, mas nas sobre-humanas do espírito.
náusea e de asco, e chora anelando pelo Alto. É sede de amor, Eles, evolvendo, superaram as alegrias, obrigações, desejos e
isto é, de qualquer coisa de santo e de sacro, daquela conjun- lutas do comum amor sexual e familiar. Neles, o egocentrismo,
ção mística que é a única centelha que vibra entre as almas. É a que no amor humano não supera em amplitude um egoísmo di-
necessidade do divino que nos falta e que é necessário à vida. latado no máximo ao grupo familiar, abraça aqui toda a huma-
O materialismo acreditou poder libertar-se de fastidiosos e su- nidade, todas as criaturas, todo o universo. O amor desses seres
pérfluos liames e pretendeu nos arredar das fontes da vida. O é demasiado elevado e vasto para que possa caber nas formas
mundo, hoje saturado de ódio, procura afogar o tormento dessa limitadas e egoístas do amor humano.
sua insatisfação no prazer. Mas isto é ilusão, porque, sem o Até aqui, tudo vai bem, cada um palmilhando o seu cami-
verdadeiro amor, não pode haver alegria. nho, com o seu tipo de amor e proporcionada função biológica,
150 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
segundo a natureza que lhe é própria. No entanto sucedeu que o não estiver amadurecido, isto é, apto a subir, poderemos veri-
tipo biológico supranormal foi tomado como modelo e proposto ficar, ao invés de um aumento de pressão que eleva, um au-
à imitação, especialmente no campo religioso. E também isto é mento que oprime e comprime, tendendo não a escapar por
em parte justo, visto que a educação só pode provir do melhor. cima, mas a romper impetuosamente por baixo. Assim vê-se
Porém ocorreu que, para tornar tal imitação possível, tentou-se como é difícil o sábio uso de tais virtudes. Quando o indiví-
forçar a evolução, impondo-se de fora um processo de assimi- duo atinge, por evolução, uma nova criação e conquista, ele se
lação da perfeição através de uma disciplina da castidade, adap- depara logo com uma bifurcação, ou seja, com a possibilidade
tada somente a temperamentos de exceção, e jamais a tipos bio- de se encontrar, de um lado, com o são e, de outro, com o re-
lógicos muito afastados do supranormal. Ora, cabe então per- verso patológico. Arrisca-se assim a descer, ao invés de subir,
guntar aqui em que se tornará essa disciplina e quais serão os a criar o vício em lugar da virtude, a contrair a vida em vez de
seus efeitos, quando aplicada em tipos imaturos, em tipos invo- expandi-la para Deus. A cada indivíduo é aplicada a lei do
luídos normais, desprovidos até de uma maturidade inicial, respectivo plano evolutivo e a regra à altura de sua compres-
despidos mesmo de um positivo instinto ou germe de superação são. Para os não chamados, que constituem a imensa maioria,
biológica? O que haverá, se tamanha carga for aplicada artifici- já é muito que possam seguir o amor carnal disciplinado no
almente, quaisquer sejam os motivos invocados, sobre os om- matrimônio e nobilitado pela família.
bros de semelhante tipo biológico, incapaz sequer de suspeitar Abordemos agora um outro aspecto da questão. Esta diz
no seu íntimo, diga-se o que se disser, da existência da vida es- respeito à conduta do evoluído, para o qual a castidade terá um
piritual? Evidentemente criar-se-á assim um ergástulo em plena significado, quando posto em contato com a massa dos involuí-
vida, gerando-se uma opressão capaz de produzir tipos aberran- dos, cuja psicologia é bem diversa. Aqui, no plano animal do
tes, ligados às mais baixas paixões. É um grave erro acreditar, amor sexual, encontramo-nos em pleno regime de luta e rivali-
como às vezes se acredita, que a virtude atinja os seus limites dade. O princípio vital anseia por individualizar-se na carne.
extremos somente com o seu aspecto negativo de renúncia e Mas existe a concorrência, pela qual todo indivíduo desejaria
que uma tal vontade, assim aplicada, possa criar o bem. Assim inteiramente a expansão criadora para si, sobrepujando os de-
encarada, ela se transforma numa fonte de dor inútil e prejudi- mais, de modo que, se uma única espécie, por ser melhor dota-
cial. Quanta infelicidade surgirá se lhe faltar o seu complemen- da, pudesse vencer, logo invadiria tudo, suplantando os outros.
to afirmativo criador de conquista e de amor! Infeliz daquele Ciúme e domínio fazem parte do amor animal. O conceito da
que tenta suicidar-se no plano animal, se é incapaz de ressusci- virtude, na prática, ressente-se de tais instintos. O involuído
tar no plano espiritual! Virtude dessa ordem é prejudicial. pode, por isto, facilitar as limitações terrenas do evoluído, por-
Qualquer negação da vida só é lícita em vista de uma afirmação que estas significam um rival a menos, em vantagem da própria
mais elevada. Deus não quer a vontade que disseca e mata, mas satisfação e expansão vital. O involuído pode estimar o evoluí-
a virtude que fecunda e caminha para a vida. Os super-homens, do, por que este, vivendo em um outro plano de vida, não pode
os verdadeiros eleitos são poucos, e que sucederá então? Os in- ser o seu natural inimigo. É verdade que, no consenso coletivo
divíduos que, no monasticismo de todas as religiões, isolam-se de veneração pelos seres superiores, que vivem de sacrifício,
na castidade dos conventos em comunidades monossexuais, se- existe no instinto das massas também algo de origem diversa,
rão todos eles seres superiores, capazes de utilizar tal mutilação que é uma intuição instintiva do seu valor e da sua função bio-
em vista de uma superação no amor universal? Ou, em verdade, lógica. Mas isto não impede que o senso utilitário leve em
esse tipo biológico será absolutamente incapaz de atingir, pela apreciação a ausência do rival. E nunca se tem motivo para odi-
própria altura, essa compensação de ordem superior? Então, a ar senão o rival. O nosso mundo está mais apto a compreender
que distorções, contradições e mentiras será ele obrigado pela no santo o lado negativo da renúncia à Terra e é levado quase a
própria disciplina que pretendia melhorá-lo? E assim esta, ao compensá-lo por isto, dado que lhe é útil, com louvores pela
invés de elevá-lo, inutilizá-lo-á. A evolução não se força e não sua virtude. Tal exaltação residiria no universal ―do ut des‖ da
se precipita. Impondo um ímpeto evolutivo com esforço des- vida, como uma compensação que o homem dá a quem não o
proporcionado ao grau e possibilidades existentes, provoca-se, molesta na qualidade de antagonista e lhe poupa um pouco do
como reação, a involução, e não a evolução. Então presencia- árduo trabalho de lutar. O místico é sempre um inimigo a me-
remos o triste espetáculo de seres destinados somente a mutilar- nos e, por isto, é inofensivo. Um inconsciente cálculo utilitário
se e diminuir-se, a sufocar a vida e a descer, forçados a subme- preside a todos os juízos humanos. Assim, quem é da Terra está
ter-se a tristes adaptações e a viver sem compensações. predisposto a um tributo de consolação, que pouco custa e que,
Bem diferente sucede com o indivíduo biologicamente por conseguinte, é um bom negócio, dado o baixo preço que lhe
adaptado, pelo menos de algum modo preparado. Então a casti- paga pelo que parece a outrem pesada renúncia. Mas o santo se
dade pode desempenhar a função de obrigá-lo a procurar desa- compensa com algo bem diverso. No seu egoísmo, porém, o in-
fogo em nível superior, uma vez que lhe estejam cerradas as voluído sente-se então em pleno direito de exigir virtude no
portas embaixo. A paixão sexual representa normalmente, no evoluído, isto é, qualquer forma de sacrifício que limite sua ex-
plano animal, a manifestação de uma força e a descarga de um pansão vital no plano humano-animal, procura sempre enxotá-
impulso, através do que a vida se exprime e busca atingir de- lo para fora desta região, porque é nela que se encontram os
terminados fins. Quando, artificialmente, é imposto um dique à seus tesouros, dos quais é cioso. Assim é que, enquanto o santo
natural manifestação dessa energia, dá-se com ela como que vive, o indivíduo normal suspeita de orgulho e de qualquer
uma compressão, uma concentração que implica um aumento afirmação, só se decidindo a render-lhe pleno tributo de honra
de potencial, levando o nível de suas manifestações a formas quando morre, porque só um morto lhe deixa seguro de que não
biológicas mais evoluídas. Passa-se o mesmo que em um reci- haja mais um rival na Terra.
piente que recebe água, sem que seja permitida a saída por bai- Como se vê, tudo se baseia em um mal entendido derivado
xo. O nível tende a subir, para sair por cima. Eis para o que po- do ponto de vista do involuído, inteiramente diverso do evoluí-
de servir a castidade: elevar o nível da água, isto é, do potencial do. O primeiro acredita que este último se sacrifique por ele,
nervoso, de maneira a determinar a gênese de manifestações de em sua vantagem, e esta é uma das primeiras condições para
vida e formas de paixões mais elevadas. que ele o aprove, pois que serve ao seu egoísmo. Pragmático,
Mas o problema é se estará a maioria dos indivíduos mo- não vai além. Porém um altruísmo absoluto, além de absurdo
dernos que praticam esta disciplina amadurecida para seme- para quem o desfruta, é um desperdício antivital e um absurdo
lhante evolução? Nisto reside a dificuldade. Se o indivíduo num universo que é egocêntrico em Deus e em tudo que se as-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 151
semelha a esse princípio. O santo, mesmo quando se torna um parecer anormal e patológico, também pode parecer, observado
mártir, não renuncia de modo nenhum ao próprio eu, não o des- de uma fase de evolução mais elevada, uma tentativa de estabi-
perdiça, mas é no próprio eu, cada vez maior, que ele compre- lização e fixação, nas formas da vida humana, de um novo tipo
ende e abraça fraternalmente homens e criaturas. O santo vive de amor supersexual, ativo somente em seu nível, e não mais
em um outro plano biológico, sob leis que o normal não com- naquele humano animal do presente. O lançamento de hormô-
preende, e, se cede muitas coisas a este, é porque delas não tem nios no mecanismo cardíaco não seria, assim, um desvio pato-
mais precisão. Isto mostra como, nas concepções dos ideais, lógico, mas apenas um meio de repercussão no plano orgânico,
existe na Terra, por utilitarismo egoísta, uma certa percentagem paralelamente à transformação do fenômeno do amor por evo-
de inquinamento, até ao ponto de considerar instintivamente a lução. Eis qual pode ser, em alguns casos, a justificação e o
virtude no próximo como meio de sufocar-lhes as manifesta- significado biológico da castidade. Do contraste entre o psico-
ções vitais no plano humano-animal. logia normal e a do evoluído, vimos de quanta incompreensão
Após haver considerado a função evolutiva da castidade e a é circundada a laboriosa ascensão biológica do místico, que,
psicologia com que o homem comum a julga no evoluído, se- vivendo em um plano diverso, defronta-se com leis de vida di-
gundo o seu ponto de vista terreno, abordemos agora, para ferentes. É assim uma renúncia que, para a maioria, não é ade-
concluir, um aspecto que a evolução do fenômeno sexual pode quada e, se imposta por força, pode ser prejudicial, mas que,
assumir em indivíduos em processo de maturação mística. Vi- no homem superior, constitui a primeira condição para a sacia-
mos já as relações entre sexualidade e misticismo. O momento ção de paixões mais elevadas e para a manifestação de um
de mais intensa manifestação da vida do místico está no êx- amor divino, mais amplo e poderoso.
tase. Trata-se de um arrebatamento, de um particular estado
que é afim com o transe mediúnico, mas do qual se distingue CONCLUSÃO32
nitidamente, porque o grande transe dos médiuns é inconscien-
te e passivo, enquanto que o rápido transe dos sensitivos deixa Detenhamo-nos ainda um pouco antes de deixar este volu-
intacta a personalidade e desperta a consciência. Isto deriva em me, ao fim desta sétima etapa, e primeira da III Trilogia. Este
parte do conteúdo teológico e transcendental divino que o tran- novo trajeto também está cumprido. Assisto a este meu cami-
se do místico pode assumir no êxtase. Ora, no momento cul- nhar fatal, que calma e constantemente avança em direção à
minante do êxtase místico, pode verificar-se o fenômeno do meta proposta. Quando antes se escolheu espontaneamente e se
angor místico, que parece relacionar-se ao fenômeno sexual. Já decidiu livremente, o caminho é depois fatal. Mais como espec-
observamos o significado profundo do amor e as fortes razões tador do que como ator, observo esse desenvolvimento de for-
pelas quais ele é alegria. A ciência nos diz que o angor místico ças que, uma vez postas em ação, querem, como que possuídas
é um fato pseudo-anginoso-cardíaco, um espasmo das artérias de uma vontade própria, alcançar a meta prefixada. E a matura-
coronárias como sucede nos casos patológicos de angina pec- ção continua em mim, nos escritos e no mundo. Já por estas
toris luética ou artério-esclerótica. Ele não difere dos outros três vias, o meu olhar, do caminho percorrido, projeta-se para a
espasmos fisiológicos que se acompanham de prazer, como o sua continuação. É a ânsia de subir, e a cada etapa a alma se
orgasmo sexual, senão pelo móvel e pela sede anatômica. Em lança para diante, em direção à seguinte, escruta o horizonte de
um temperamento espasmo-fílico, em caso de libido insatisfei- amanhã, ávida de explorar ainda o ignoto, que esta sua apoca-
ta, pode-se sensibilizar o plexo simpático cardíaco por hormô- líptica aventura no infinito sempre lhe reserva.
nios genitais espasmogênicos, que agem em tal caso como ex- O corpo segue a sua trajetória em descida, o espírito segue
citantes sobre os nervos e fibras cardíacas. Tudo, pois, é devi- a sua marcha em subida. Neste acende-se cada vez mais uma
do à projeção de tais hormônios no mecanismo cardíaco. É um juvenil alegria de viver, que o envelhecimento de um invólucro
fato, pois, natural, ainda que supranormal. Fato representado físico perturba cada vez menos, porque a distinção e o desta-
alegoricamente pela ―Kundalini‖ na Yoga hindu, em que a ser- que entre os dois acentuam-se cada vez mais. Pelas vias da as-
pente ―Kundalini‖ (libido) desperta e, do períneo, ascende su- censão espiritual, a independência do espírito em relação à
blimando-se através dos diversos Chacras (gânglios do simpá- morte do corpo, seu invólucro, torna-se sempre mais acentua-
tico, centros nervosos medulares), que se sensibilizam, até al- da. Os sentidos físicos se embotam. Estas portas da alma aber-
cançar o supremo Chacra no cérebro. Ora, se a ascensão do fo- tas ao mundo da matéria se atravancam de detritos, que obstru-
go ―Kundalini‖ e o angor místico se explicam fisiologicamen- em a rápida passagem das vibrações. Os sentidos intensivos,
te, a intuição, a fé e a experiência mística nos dizem que em tal porém, mais aguçados, estremecem de todo lado da prisão cor-
fenômeno concorreram também certos elementos de caráter pórea, produzem novas passagens nos muros desta e se lançam
transcendental, embora esses escapem à perquirição da ciência. ávidos para outros mundos, que começam a experimentar.
Esses especiais estados orgânicos e nervosos estão conexos a Uma das minhas maiores alegrias, confesso, está em repousar
particulares estados psíquicos, em que sentimos a presença es- do duro labor de viver na matéria e entrar em comunicação
piritual de correntes de pensamento e de afetividade, as quais com o mundo do espírito, sentir o infinito, auscultar em nosso
admitimos que sejam provenientes de seres extraterrenos, com contingente, tão vívida e próxima, real e tangível, a imanência
os quais, em tais sublimes momentos, o místico conseguiria de Deus, tão distante para nós na Sua transcendência, e poder
pôr-se em sintonia e, por conseguinte, em condições de resso- então admirar fascinado esse universo tão saturado de pensa-
nância para comunicações espirituais. Assim o fenômeno do mento, a fim de que eu ouça alguma coisa de tudo que ele diz e
amor se nos apresenta com um aspecto bem diverso do sexual, que sabe o que eu não sei, a fim de que me ensine a resolver
alcançando os mais excelsos estados espirituais. Eis que trans- tantos problemas que Ele resolve a cada momento por vias que
formações orgânicas e nervosas podem se unir à evolução da eu não sei compreender. Então não posso deixar de ouvir a voz
sexualidade, que alturas pode a vida alcançar, enquanto, no in- tonitruante de Deus, que fala da profundeza de todas as coisas.
ferior plano animal, ela parece mutilar-se na castidade. Então, Vejo, assim, que todos os seres têm a face voltada para Deus e
enquanto tudo emudece no plano passional humano, ascende- que quem a volta ao contrário morre. Desse modo, desperto e
se no plano espiritual para a ardência de um amor diverso, su- ressurjo em uma consciência maior, em uma vida que é eterna.
blime, agindo em formas diferentes, em mais altos níveis de É uma lenta ressurreição, viva e sensória, mas em outra parte,
vida. E, assim, o fenômeno orgânico parece que se torna amor-
tecido pelo fenômeno místico e que o espírito domine tudo. 32
A presente conclusão refere-se a este volume e ao anterior: Pro-
Então, também aquilo que, visto pela fase biológica atual, pode blemas do Futuro. (N. do A.)
152 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
mais distante, quem o sabe onde e como, no infinito. É como mos nas profundezas. Como estas verdades se revelaram a
que um abrir-se da alma para novas realidades inexploradas. mim porque busquei, podem revelar-se a todos os demais que
Ela, com outros olhos, fixa estupefata as novas maravilhas e queiram realmente buscá-las. Cada volume representa para
por elas é arrebatada, porque, em sua nova audição, ouve can- mim um dado trajeto psicológico no caminho de minha vida.
tar o divino, música indefinida, feita de silêncio. Assim, de fa- Este último, que se completa em 1950 33, teve, ademais, por seu
diga em fadiga, mas de alegria em alegria, continua a sua mar- particular conteúdo, também uma outra característica, de que o
cha, que não pode ser contida. meu pensamento quis aproximar-se dos problemas do espírito
Neste novo trajeto, que vai da Páscoa de 1945 (fim do vo- pela via de uma experimentação diferente, de caráter abstrato,
lume precedente) à Páscoa de 1950 (fim do atual), a minha ex- especulativo, resultante das conclusões de processos lógicos da
perimentação evangélica me demonstrou cada vez mais, no la- mais moderna físico-matemática. Essas conclusões, aceitas pe-
boratório da minha vida, em que analiso os fenômenos espiri- la ciência, forneceram-me uma base sólida, um elevado ponto
tuais e aplico experimentalmente as teorias expostas, a verdade de referência e de partida, sobre o qual se pudesse construir as
da doutrina do Cristo, tida por loucura pela maior parte do teorias do espírito, que depois se encontram no Evangelho.
mundo. Verifiquei que, quando a inversão evangélica dos valo- Com alegria, constatamos que mesmo a ciência, antes materia-
res é realmente aplicada, então funciona a economia do evolu- lista, está despertando e se prepara para fornecer uma séria con-
ído, a Providência, como descrito no 3 o volume da II Trilogia, tribuição à nova civilização do espírito. Esta nova ciência me
isto é, funciona até em nosso contingente esta nova técnica a impressionou e, nela, vi a nossa melhor aliada. Os próprios ci-
que nós, porque não a compreendemos, chamamos milagre. entistas que a divulgaram não puderam compreender a impor-
Neste período, desde que terminei o referido volume, A Nova tância do grito que eles, imersos nos cálculos, deixaram esca-
Civilização do Terceiro Milênio, submeti os princípios aí afir- par, como também não atinaram ainda com as suas consequên-
mados a controle experimental, obtendo resultados plenamente cias no campo espiritual. O mundo não compreendeu esses
satisfatórios, que me encorajaram crescentemente na difícil via grandes sintomas, que nos dizem que o caminho da vida está
de aplicação integral do evangelho. Em uma estrada que hu- mudando de direção, mudança pela qual as mentalidades de
manamente parece desastrosa, o prodígio da salvação se deu vanguarda são levadas a dirigir-se da matéria para o espírito.
regularmente no momento mais oportuno. Jamais poderei Assim, com o volume Problemas do Futuro, desenvolve-
desmentir esta confirmação experimental por mim obtida, até mos e aprofundamos a parte abstrata e científica de A Grande
hoje, na realidade do contingente. Em face de tais provas, o Síntese, como no precedente a ele o fizemos no que tange à par-
meu mais precioso e agudo espírito de observação e de autocrí- te prática e humana. Desta maneira, aquele pensamento que po-
tica, que me é tão necessário para controle, lado a lado à fé deria parecer não ortodoxo, esclareceu-se e tornou-se sempre
mais ardente, teve que se render. O risco do momento, como a melhor demonstrado como científica e racionalmente corres-
todos, também a mim pareceu muito grave, às vezes terrifican- pondente à realidade dos fatos. Destes novos volumes, A Gran-
te. Mas a coragem conferida pela fé apaixonada em Cristo des- de Síntese sai sempre mais reforçada. Eu mesmo, penetrando-
fez todas ao barreiras, que, uma vez enfrentadas, esbarronda- lhe cada vez mais o pensamento em profundidade, encontro
ram-se. Cristo, com quem me encontro sempre em contato, novas provas na vida e confirmações por todos os lados, quer
salvou-me a todo o instante. Tudo quanto foi afirmado no experimentando no campo moral, quer aprofundando-me no
mencionado volume é, pois, realmente verídico, e o tempo na- campo científico. Compreendo assim o que antes havia intuiti-
da mais fez do que confirmar. Cada vez se torna mais verda- vamente escrito, mas que não havia racionalmente compreendi-
deiro tudo quanto pretendi explicar analítica e racionalmente do. Se o volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio con-
sobre a técnica de tais salvações, a fim de que outros pudessem firmou A Grande Síntese no plano moral e social, os volumes
experimentá-las. Os princípios do Evangelho são leis biológi- Problemas do Futuro e Ascensões Humanas a confirmam no
cas de planos mais elevados de existência. Essas leis são real- plano psicológico e científico.
mente atuantes, quando nós as colocamos em funcionamento, Podemos assim, dizer agora, no fim deste novo volume, que
aplicando-as. De outra forma, não sendo aplicadas ou sendo foram aplicadas as palavras de A Grande Síntese (Capítulo
mal aplicadas, como sucede no mundo, é natural que elas per- XLII): ―A minha meta é a compreensão de uma lei mais eleva-
maneçam no campo da utopia. É compreensível que todo o da, de amor e colaboração, que a todos vos una num grande or-
mecanismo de forças, para pôr-se em movimento, tenha que ganismo animado por uma nova consciência universal e unitá-
ser tocado nos pontos motores, a fim de que funcione. É lógico ria. Não se trata, fundamentalmente, de uma sabedoria nova,
que, nas mãos do involuído ignorante, isto não pode suceder. pois apenas repito a boa-nova que já foi trazida há milênios aos
Fortalecido pelos resultados experimentais por mim obti- homens de boa vontade. Repeti-la-ei toda idêntica na substân-
dos, não somente no campo moral, mas também no psicológi- cia, mais ampliada para se ajustar ao campo mais vasto de vos-
co, quis expor nesses volumes estas novas realidades, para que sa mente mais amadurecida, a fim de que finalmente vos abale,
o leitor as descobrisse depois a seu modo, de si e por si, como vos ilumine, vos salve. Eis o meu objetivo: a palavra eterna, o
eu as descobri de mim e por mim. Descoberta esta que, se feita alimento que sacia, a solução de todos os problemas. E chegarei
em larga escala, poderia revolucionar o mundo. Guiar o ho- ao Evangelho de Cristo pelas veredas da ciência, isto é, chega-
mem em larga escala, poderia revolucionar o mundo. Guiar o rei ao Evangelho pelas mesmas sendas do materialismo, para
homem para elas creio que seja a maior contribuição que se fundir os dois pretensos inimigos: ciência e fé; para vos de-
possa dar para a ascensão em direção à nova civilização do es- monstrar não existir caminho que ao Evangelho não conduza;
pírito. São descobertas práticas, porque de resultados úteis, para impô-lo a todos os seres racionais, tornando-o obrigatório,
uma vez que facilitam o convívio humano, isto é, a coletiviza- como o é todo processo lógico. Ele é a nova lei super-humana,
ção da vida, que é a sua atual tendência. São úteis também no a superação biológica que a evolução da humanidade impõe
sentido de que elas não fazem apelo senão ao natural desejo neste momento histórico, em que está para surgir a civilização
humano de um proveito. Trata-se daquelas ideias-mães, extre- nova do III Milênio. Soou a hora em que estes conceitos, olvi-
mamente genéticas, porque representam uma centelha criadora dados e incompreendidos, pregados e não vividos, explodem,
da grandeza do pensamento. Elas têm o poder de gerar uma pelo seu próprio poder, no momento decisivo da hora do mun-
nova civilização, porque já estão escritas no livro da vida e fa-
zem parte do divino plano da sua ascensão. Eu quis ver nas 33
Aqui o autor também se refere ao volume anterior: Problemas
profundezas para lê-las e ensinar os outros a lê-las por si mes- do Futuro. (N. do A.)
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 153
do, fora do âmbito fechado das religiões, na vida onde o inte- sem se dar conta e cujos resultados ele aceita; há uma matura-
resse luta, a dor sangra, a paixão dementa‖. ção que a vontade humana não determina nem guia.
Os presentes volumes continuam a confirmar essa promes- A compreensão destes escritos, que tendem à espiritualida-
sa, que eu havia registrado, mas não havia avaliado, ignorando de, demonstra uma mudança da forma mental, é um sintoma da
que ela pudesse ter conduzido aos desenvolvimentos atuais. real aproximação do novo modo de conceber a vida, na nova
Depois de uma semelhante acumulação contínua de confirma- civilização do espírito. Isto sucede em meio ao desfazimento
ções, é evidente que se torna sempre mais absurdo renegar A dos valores da atual civilização da matéria. Nesta, todos os
Grande Síntese, cuja verdade, desde há tantos anos, estou con- princípios foram falseados e, por isso, cada vez mais estão per-
trolando a cada instante na vida cotidiana do mundo físico e dendo as suas significações precisas. À força de mentir a res-
espiritual e que cada experiência da vida confirma no plano peito de tudo, para daí extrair vantagens na luta pela vida, a
prático, moral, lógico e científico. Jamais logrei encontrar, na avalanche dos valores falsos postos em circulação em todos os
mais desapiedada crítica, um fato sequer que desminta esse li- campos está poluindo a atmosfera de todos. As ideias mais san-
vro. Quanto mais procuro os pontos fracos, tanto mais ele se tas são aproveitadas para camuflar os mais baixos valores. A
fortalece. A Grande Síntese me fez compreender tudo, deu-me delinquência e o vício apresentam os seus mártires, arvorados
forças para superar muitas provas, sustentou-me na dor, incul- em vítimas do ideal. Tudo se adota apenas com um objetivo uti-
cou-me esperança e fé, iluminou-me a mente e aqueceu-me o litário de aproveitamento. Estes escritos correspondem à neces-
coração. Centenas de cartas, repletas de gratidão, chegam-me sidade vital da reposição dos mais altos valores, que, na inver-
de todas as partes do mundo, repetindo-me essas mesmas afir- são verificada, passaram a situar-se no fundo.
mações. Não se pode negar tais fatos. A minha vida, assim Entre tantas cisões e partidos, mentiras e interesses, a palavra
como a vida de muitos outros, é um deserto de espinhos, mas imparcial e universal, sincera e desinteressada, reconstrutora de
agora possui oásis floridos, refúgios de paz. Pervagamos por valores elevados, conexa à verdade eterna, ainda que pareça fora
tantos problemas, e todos se orientam e encontram a sua solu- da psicologia do tempo, justamente porque cada vez mais rara,
ção em Cristo... que é a luz de A Grande Síntese e para quem torna-se sempre mais procurada. Quanto mais se difunde a injus-
ela está sempre apontada, em ascensão. tiça, mais se tem fome de justiça; tanto mais o ódio campeia,
Uma outra prova da verdade me vem da sua automática di- mais se tem sede de amor; quanto mais a malvadez nos atormen-
vulgação no mundo, apesar de quase nenhuma disponibilidade ta, tanto mais se valoriza a bondade. Especialmente os jovens,
de meios próprios. Ademais, sem nenhum plano de preparação que ainda devem viver uma vida na Terra e, mais do que todos
cultural científica, tenho em mãos um organismo conceitual, os outros, têm necessidade de um amanhã, sentem-se mais asfi-
que progrediu compacto até hoje, já no décimo volume 34, que xiados pelo vácuo resultante da destruição moral do que pela ru-
se encontra no nascedouro, em seguida a este. Tenho a sensa- ína material e econômica da última guerra, e assim procuram re-
ção de uma coisa querendo avançar quase que por vontade construir a alma devastada. Eis aqui um alimento de verdades
própria, para cumprir seu destino, porque ela é uma força en- eternas que nenhuma derrocada humana poderá destruir.
gastada em um sistema de forças que, encontrando-se em ple- É verdade que muitos, por se encontrarem encerrados nos
no desenvolvimento, deve, por conseguinte, fatalmente cami- castelos das próprias verdades particulares, podem olhar estes
nhar para a meta proposta. Então tudo parece caminhar por si escritos, pela sua imparcialidade, com desconfiança, ao não se
mesmo, tudo tende automaticamente ao êxito. Conheço por verem neles particularmente representados. Quem não repre-
experiência uma outra ordem de coisas que, por mais deseja- senta nenhum grupo humano, não sendo o expoente de nenhum
das, estudadas, procuradas e impelidas que sejam, mesmo sen- interesse, não é mantido e impelido por ninguém e deve pro-
do realizadas com todo o empenho, não conseguem atingir o gredir sem auxílios terrenos. Está só. Mas somente assim pode-
objetivo e tendem irresistivelmente a imergir em um mar de se alcançar uma verdade universal como a que requerem as
obstáculos. Se A Grande Síntese parece querer avançar por si grandes unificações sociais do nosso tempo, as quais não se po-
mesma, devo supor que a força que a mantém não pode ser ou- de atingir por meio de extensões imperialistas de centros parti-
tra senão o fato de ser ela segundo a Lei, e não contra, isto é, culares. Está só. Mas, justamente por isto, pode dizer a verdade
estar conforme a verdade, e não em erro. de todos, e não apenas a do grupo, da classe social ou do parti-
Tenho a sensação de que a maturação do momento históri- do ao qual se encontre exclusivamente ligado. Está só. Mas,
co o tornou faminto de soluções universais e apto a compre- desta forma, ele pode, melhor do que um conjunto de homens,
endê-las. Por isso eu me encontro na posição de ter sido in- representar a vida, as suas leis, traduzir-lhe a voz e ter para sua
conscientemente o intérprete de uma necessidade da mente sustentação e defesa as forças da evolução, muito mais podero-
moderna e de ter oferecido, sem querer e saber, precisamente sas que as de um grupo humano. Em nosso caso, tudo o que pa-
o alimento necessário à vida e por ela exigido. O que foi que, rece produto da inspiração de uma inteligência não humana de-
tão experiente de tudo isto, falou em mim e como pude sentir ve também difundir-se por forças e meios não humanos. Estra-
a forma mental da hora histórica? Não há processo lógico que nho método de conceber e de operar! No entanto é aquele que
possa dizer por que hoje domina uma corrente de ideias e vemos em plena ação. Estranho, porque está nos antípodas do
amanhã uma outra, ou prever qual será a corrente que vai do- método adotado pelo mundo. Este age de fora, reputa de pri-
minar mais tarde. Isto obedece a razões profundas, só conhe- meira necessidade a publicidade e os meios econômicos, ope-
cidas do pensamento que guia a vida. Ninguém sabe por que rando por vias exteriores, sensórias, superficiais. Aqui, inver-
hoje se pensa de modo diverso de ontem, e ninguém poderá samente, age-se de dentro, por vias interiores, de modo que pu-
saber como se pensará amanhã. Cada tempo tem a sua lingua- blicidade e dinheiro de nada servem. É o método de Cristo.
gem. O pensamento dos vários períodos históricos parece as- Tudo o que vem de Cristo parece estar impresso nesse méto-
sim funcionar no subconsciente coletivo, e o homem, mais do do, que repudia os meios humanos. Mas por que – poder-se-ia
que provocar este processo, parece sofrer seus resultados. Há objetar – sente-se justamente hoje a necessidade de uma de-
certamente na vida um outro pensamento, situado algures, monstração racional do Evangelho, como a que aqui se oferece,
mas não na consciência humana, que dele nada conhece. No isto é, a necessidade de um diverso método de divulgação,
pensamento coletivo, há um desenvolvimento automático e fa- quando Cristo, ao Seu tempo, não sentiu necessidade de recorrer
tal, com seus períodos, formas e leis, que o homem cumpre a ele? Ele, com isto, nos demonstrou que, para conquistar o
mundo, não há nenhuma necessidade de demonstração racional.
34
Aqui o autor refere-se ao volume Deus e Universo. (N. do T.) O mundo de hoje, porém, não é o mundo de então, e esse novo
154 ASCENÇÕES HUMANAS Pietro Ubaldi
meio é agora adotado porque possui maior eficiência na atuali- ra mim um ponto de partida para novos empreendimentos.
dade. Se o Evangelho é hoje assim apresentado, idêntico na Diz-se muita coisa, no entanto quase nada se diz. É verdade
substância, mas diferente nas palavras, é para que permaneça vi- que o passado se distancia cada vez mais, mas o futuro perma-
vo na alma moderna, transformada por evolução, e isto é uma nece no infinito. Olho, com uma sensação de temor, esse verti-
concessão à forma mental dos nossos tempos. Assim, oferecido ginoso infinito que nos espera a todos.
a esta o alimento espiritual na forma que ela exige, não terá ela Como não se pode frear a vida, para a qual existe sempre
mais o direito de recusá-lo. É uma concessão que implica uma um amanhã, assim como não se pode frear uma maturação bio-
grande responsabilidade para o mundo, porque se ele não quiser lógica, também não se poderá frear esse pensamento que em
aceitar o evangelho racionalmente demonstrado, não poderá va- mim continuamente nasce. E ele continuará a nascer, assim
ler-se de pretextos para mascarar a sua má vontade. A vida abre como a vida continuará sempre a nascer em mim e em todos.
hoje à humanidade as portas de uma nova grande civilização. As Sinto a atmosfera do meu aposento carregada de vibrações
tremendas consequências de uma recusa, que já não pode ser se- conceituais, ali já impressas de maneira imponderável, não
não conscientemente querida, terão que fatalmente ser sofridas. perceptível senão aos sentidos da alma. E esta, depois de ter
O produto oferecido por estes escritos é global, unitário, feito suas essas vibrações, assimilando-as ao próprio sistema
como todo desenvolvimento sempre orientado para o mesmo de forças, deve transmiti-las ao cérebro, para que as registre
centro. Unitário, porque os mais variados problemas, díspares em formas racional e analítica, depois as configure em pala-
e distantes, permanecem ligados por esta constante centraliza- vras e, por fim, por meio da mão comandada pelo cérebro e
ção, que os funde em uma única lei. Tudo aqui é regido por sistema nervoso periférico, materialize-as em forma escrita.
um universal senso unitário, pelo qual toda particularidade é Eis o meu trabalho! Assim este pensamento continuará a de-
sempre reconduzida ao mesmo centro. Unitário também por- senvolver-se em novos volumes, carreando-me para novos ho-
que se oferecem juntamente prática e teoria, o princípio e a rizontes, na direção em que sou impelido, isto é, desenvolven-
experimentação, sendo a lei exposta vivida por quem a expõe, do cada vez mais o processo de sublimação, que é o conteúdo
uma vez que todo verdadeiro filósofo deve crer na própria fi- desta III Trilogia. Esta sublimação opera o que pode parecer
losofia e vivê-la. Aqui, pensar e escrever significam viver. E também uma estranha transformação da personalidade. Antes
assim como para o autor, também para o leitor, a palavra deve de tudo, transformou-se em mim o método de registro concei-
possuir um mesmo significado de vida, e não pode ser com- tual, e é natural que o progresso evolutivo conduza a essas
preendida senão for transformada em vida. Ler sem viver sig- transformações. Enquanto, nos meus primeiros escritos, como
nifica poder compreender bem pouco. Isto porque a compre- Mensagens Espirituais e A Grande Síntese, tratava-se de re-
ensão é dada pela confirmação exterior da experiência e pela cepção direta, por via inspirativa, de uma fonte de pensamento
interior da voz da vida, que deve dizer ao leitor no seu íntimo: da qual eu era puro instrumento, ainda que em plena consciên-
Sim, é verdadeiro! Estes livros requerem, pois, esse novo mo- cia – tratava-se do registro de um pensamento já formulado,
do de ler, que não é comum. Ler para compreender não signi- que eu simplesmente recebia, não se tratando de mediunidade
fica aqui apenas uma penetração do pensamento, um árido ou ultrafania passiva em transe – agora, progredindo, tendo-me
processo racional, como é hábito no mundo cultural, mas sig- assenhoreado da técnica do método da intuição, a recepção su-
nifica compenetrar-se desde as profundezas, assimilar e viver cede não apenas como simples recepção, mas pela livre obser-
os conceitos, fazer deles a própria vida, para desenvolver em vação da substância das coisas, pela leitura do pensamento di-
si uma maturação biológica, a mesma que eles produziram em retor dos fenômenos, por visão direta, com uma nova capaci-
quem os escreveu. A dialética, as investigações, a potência de dade visual interior dos conceitos que presidem ao funciona-
argumentação lógica e polêmica, pertencem a outros planos. mento orgânico do todo. É assim que os quadros dos últimos
Aqui a luta, no sentido humano de supremacia, ainda que inte- volumes se apresentam não em forma inspirativa, mas como
lectual, é destituída de senso. visões em que simplesmente descrevo as minhas observações
O grau de evolução do indivíduo revela-se rapidamente pelo hipersensórias. Assim, explica-se a substituição da linguagem
método. O involuído polemiza, o evoluído organiza. O primeiro dos meus primeiros escritos, que não era minha, mas de natu-
é levado a firmar-se dominando, o segundo construindo. Um é reza transcendental, por uma linguagem racional e normal. Po-
particular, egocêntrico, separatista; o outro é universal, harmô- derá parecer, então, que a segunda parte, mais recente, da mi-
nico, altruísta. O primeiro compreende apenas pequenas verda- nha produção não passe de uma explicação racional da primei-
des parciais, em função de si mesmo; o outro abarca verdades ra. Não. Nenhum dos meus escritos é produção minha pessoal
universais, em função de todos. O primeiro é exclusivista e não ou criação da minha mente. Apenas se dilatou e aperfeiçoou a
admite senão as próprias verdades, declarando falsas todas as via da minha percepção. Se antes eu era instrumento, agora sou
outras. O segundo sente a possibilidade de uma infinidade de espectador, quando muito observador, mas jamais criador da
outras verdades, todas verdadeiras no universal, quais aspectos minha obra, que é de Deus e somente de Deus.
do absoluto. O evoluído pode compreender o involuído. Este Mas a sublimação também opera no meu caso uma outra
pode agredir aquele, mas não o compreende. A dialética é cor- transformação. Efetivamente devo atravessar, com a minha
rosiva, divide e não convence. A fé e o amor, a bondade e o sensação, a grande revolução biológica representada pela de-
exemplo convencem. Mais do que com a razão e a discussão, a molição do próprio eu como unidade egocêntrica. O altruísmo
verdade se conquista com impulso da mente e do coração. Se- e o sacrifício de si mesmo, além da lei de vida, em plano mo-
melhante conquista é, sobretudo, um abandono em Deus. Assim ral, o é também no biológico. A vida é uma transformação, e
como nós não criamos a vida, mas, se a vivemos, é porque a vi- querer paralisá-la em uma existência separada, para isolar-se
da vive em nós, assim também, se nós compreendemos, não é da corrente, encerrando-se no próprio egoísmo conservador,
porque nós tenhamos criado e descoberto a verdade, mas sim ao invés de abrir-se em um altruísmo inovador, acarreta ao ser
porque a verdade chegou em nós. a punição com o estiolamento até à extinção. A vida é feita de
Alcançamos assim o termo deste novo labor. Eis uma nova tal maneira que, enquanto tende egoisticamente a conservar-se,
série de experiências morais e materiais, vividas e realizadas compensa essa tendência com outra, oposta, pela qual ela se
nas vicissitudes cotidianas, alinhadas ao longo do caminho da empobrece ao se desejar conservá-la e se enriquece ao se que-
vida. Elas formam uma nova série de conceitos expostos neste rer dá-la. O egoísmo mata, o altruísmo é genético. Diz o Evan-
volume. Pode-se agora frear este pensamento? No passado, ca- gelho: quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á, e quem tiver
da ponto de chegada precedentemente atingido, tornava-se pa- perdido a sua vida (por causa do Evangelho, que é amor) a en-
Pietro Ubaldi ASCENÇÕES HUMANAS 155
contrará. A vida, fonte de tudo, nega-se a quem se nega a ela, e Eis o conteúdo da sublimação. A um certo grau de evolu-
entrega-se a quem se lhe entrega. Ela é uma troca. Tudo isto ção, o eu se despersonaliza e se funde na humanidade. Na
nos é dito pela célula, pois ela nos mostra que a vida que per- imensa dilatação de si mesmo em todos, é um egoísmo que se
dura é a impessoal. Isto nos revela uma grande lei do ser: para torna tão amplo, que abarca a todos. Parece que se perde, mas,
sobreviver, é necessário não isolar-se, com o fito de conservar- na verdade, conquista-se uma vida maior, que é dada pelo eu
se, mas perder-se, lançando-se na grande corrente da vida. É impessoal, o qual não pode perecer. Não se concebe mais o eu
necessário, assim, desindividualizar-se, despersonalizar-se, agressivo, que combate para vencer e esmagar, porque os ou-
como sucede no amor que se dá. Quem se coloca como centro tros se tornaram ele mesmo. Só conceberá assim o eu que ama,
separa-se e morre. Poderemos, pois, tanto mais usufruir da vi- luta e sofre para ajudar os outros, porque ele se tornou eles
da, quanto menos pensarmos em nós mesmos. mesmos. Então o eu separado morre, desaparece, e passa-se a
Sendo o universo construído em esquema de tipo único, en- sentir como própria a dor, a responsabilidade e o dever de as-
contramos essa lei verdadeira tanto na reprodução como no censão do mundo. É inútil se rebelar contra essa lei da vida, que
amor evangélico pelo próximo. Em ambos os casos, a vida se a um dado ponto do nosso caminho nos prende, assim como os
recusara a nós, se nós nos recusarmos a ela e não revivermos, jovens são presos pelo amor. É a vida que assim quer. Tudo é
quer no primeiro como carne, quer no segundo como espírito. biologicamente lógico. Então a existência só pode ser missão.
Em biologia é o não-indivíduo que permanece, e não o isolado.
O amor é a voz da vida total, que exige altruísmo para constitu- GUBBIO, PÁSCOA DE 1950
ir um eu mais vasto, do qual o ser vivente é uma célula e a sua
vida um momento, de modo que, como indivíduo separado,
como eu isolado, o ser parece mais uma negação, um limite à FIM
vida plena, que é eterna e universal.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 157
e as edições em italiano se vão tornando cada vez mais lentas,
DEUS E UNIVERSO em face das dificuldades sempre crescentes do ambiente. Essas
dificuldades locais não mais conseguirão conter a divulgação
PREFÁCIO da Obra, que se desenvolve no mundo. O importante é que tudo
seja logo escrito e publicado, não importa onde. Outras gera-
ções, depois, após outras provas, virão e compreenderão.
Numa grande reviravolta da minha vida e da vida do mundo,
Na sua última missiva, na primavera de 1951, Albert Eins-
nasceu este livro, subitamente, como uma explosão. Foi escrito
tein assim me escrevia de Princeton–NJ, a propósito do oitavo
em vinte noites, pouco antes da Páscoa de 1951, aproveitando- volume da Obra, Problemas do Futuro, que mais dizia respeito
me de uma bronquite que me forçava ao repouso, furtando-me à sua especialidade: ―I have studied part of your book and have
ao trabalho diurno normal, necessário para a manutenção de mi-
admired the force of the language and the vast extension of
nha família. Escrevi-o sob intensa febre, que facilitava a eleva-
your interest...‖ (―Estudei parte do seu livro e admirei a força
ção do potencial nervoso, na solidão gelada de Gubbio. Como de expressão e a vasta extensão de seus objetivos...‖). O presen-
aqui está registrada, a visão me apareceu, em vinte etapas ou ca- te volume, no entanto, está construído em outro terreno, a que
pítulos, nos imensos silêncios daquelas longas noites hibernais.
podemos chamar teológico, além da ciência atual. Por isso é
Qual explosão de pensamento e de paixão, este livro não mais vasto do que o primeiro livro, A Grande Síntese, que ele
poderia revelar-se a não ser à aproximação da Semana da encerra em si, como um seu momento, desenvolvendo-se em
Páscoa, após um longo e íntimo tormento preparatório. Sob a um campo que a visão de A Grande Síntese, encarando apenas
exposição fria e racional, que pretendeu, sobretudo, ser fiel às o nosso universo atual, não podia atingir. Com o presente vo-
visões, oculta-se e arde essa paixão, a ânsia do inexplorado, o lume, pode-se dizer que o ciclo dos grandes conceitos básicos
terror de debruçar-se sozinho sobre os abismos dos maiores está exaurido, atingindo-se a solução dos máximos problemas.
mistérios, a imensa festa da alma pelo conhecimento obtido. No Possivelmente, depois deste esforço de racionalismo cerrado, o
esforço aqui despendido para galgar os últimos cimos, como undécimo volume, por compensação, deverá assumir caracterís-
coroamento da Obra, há como que uma vertiginosa tica oposta, ou seja, de vitória da vida no espírito.
desesperação da alma, que se sente perdida e desfeita diante do ―Através da vida tenho caminhado, caindo e levantando.
lampejo de uma concepção que não é sua, que dardeja sobre ela, Através dos meus escritos tenho percorrido uma longa senda de
ofuscando-a e arrebatando-a para os vértices do pensamento, fadiga e de fé. Quantas etapas superei! O meu pensamento de-
onde tudo se faz uno, e para os vértices das sensações, onde senvolveu-se através de inúmeros conceitos, e a minha paixão
alegria e dor se unificam num imenso espasmo de êxtase. amadureceu de tanto sofrer. Ao fim de tanta ansiedade de alma
Este livro, que não é meu, apareceu assim como um re- e de coração, não restará mais que uma palavra, a última de tan-
lâmpago, para trazer a solução dos problemas últimos, em tas que foram ditas: Cristo. Sobre esta palavra, que é a síntese
meio a uma humanidade descontrolada, delirante com os so- suprema da conhecimento e do amor, eu me reclinarei satisfeito
fismas e os requintes da decadência, neste momento em que a e feliz, para morrer. Satisfeito como quem, superando todas as
história está procedendo à liquidação da velha civilização eu- ilusões humanas, reencontrou a verdade absoluta. Feliz como
ropeia. A hora é apocalíptica, porque é a hora da justiça, quem, vencendo todas as dores humanas, reencontrou a sua su-
quando todas as almas e os valores da humanidade devem ser prema alegria‖ (Do quarto volume, Ascese Mística – 1939).
joeirados, de uma forma implacável, a fim de que tudo o que Aventurar-se em um terreno teológico poderá parecer exces-
não seja vital se incinere. Estamos asfixiados por montanhas siva audácia. Mas eu não pude escolher o tema das visões, que
de falsidades, e a vida se rebela porque está faminta de verda- apenas registrei. Ademais, era necessário resolver tudo, também
de. E a verdade deve ser dita a qualquer custo, pois que o os problemas últimos, a fim de que o sistema se completasse.
mundo em breve será sacudido pelos alicerces. Ela deve ser Afinal, por que o teológico deve ser um terreno proibido? Por
dita antecipadamente, de uma forma clara, simples e una. Ur- que a indagação deve furtar-se aos cimos máximos e submeter-
ge lançar a semente da ideia que deverá reger o novo mundo se eternamente ao mistério? Por que relegar ao museu das coisas
do III Milênio, aquele que ressurgirá da destruição do atual. mortas certos problemas, apenas porque hoje se acredita na ci-
Este é o décimo volume desta Obra, que agora, depois de ha- ência, que sabe fazer descobertas úteis, mas não é capaz de for-
ver superado infinitos obstáculos, transborda pelo mundo e, de mular tais questões? Deveremos, então, cancelá-las de nossa
puro sistema de conceitos, está se transformando em vida. Predi- mente? A pesquisa da verdade, feita com sinceridade, com fé e
to com exatidão, ainda que proibido, torna-se realidade o mila- com respeito não tem sentido de culpa. Possuímos inteligência
gre, que consiste no fato de um homem sozinho, pobre, cruciado para usá-la, e esforçarmo-nos honestamente para compreender
de dores, votado à renúncia e esmagado sob o peso de um árduo até onde for possível tem mais valor do que a dormência passiva
trabalho, conseguir sobrepujar tudo isso e lançar uma ideia ao da crença. Além do mais, se o mundo e as religiões progrediram,
mundo. É que, em geral, onde existe o que, por ser humanamente isto se deve à paixão de conhecimento que almas sedentas e iso-
inexplicável, chama-se de milagre está Deus, e, onde Deus está, é ladas cultivaram com o próprio risco e grande tormento.
possível chegar-se até aos fundamentos. Há quarenta anos luto A este propósito, permitimo-nos citar algumas páginas de
com esta certeza, e os fatos de cada dia mais a confirmam. Em Giovanni Papini, Cartas do Papa Celestino VI aos Homens,
breve surgirão os volumes undécimo e duodécimo; aqui já estão páginas que ninguém taxou de heterodoxia:
lançadas as suas bases. Desta maneira, uma obra completar-se-á ―Por que é a divina teologia hoje tão pouco popular entre os
pela trabalho penoso e íntimo de um homem, a fim de que a fé homens? Por que a ciência suprema, a ciência de Deus, é hoje
seja demonstrada e a paz seja feita entre ideias e homens, permi- ignorada, mesmo pelos não ignorantes? Por que a vemos rele-
tindo que o mundo possa, afinal, enxergar claro todos os proble- gada, sobretudo em nossa Igreja, às classes dos seminários e
mas e, assim, ser levado, unicamente pela via da razão e do utili- aos estudantes dos mosteiros?
tarismo, a uma vida mais honesta e justa. ―Que aconteceu? Não aflige a vossa alma a dúvida que de
Quis, por isso, interrogar, por meio de recente contato dire- tão funesto desinteresse a máxima culpa vos cabe?
to, os povos mais jovens das Américas e encontrei-os melhor ―Interrogai a vossa consciência e respondei com franqueza
preparados para compreender as nossas ideias do futuro do que cristã. A responsabilidade desse abandono não é inteiramente
a velha Europa. Graças a isso, não devemos ficar preocupados vossa, mas é, antes de mais nada, vossa. As grandes coisas ja-
se, agora, a difusão destas ideias aqui se faz com mais lentidão mais são vencidas pelos adversários, mas pela fraqueza e infi-
158 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
delidade dos seus divulgadores. Que uso fizestes, de muitos sé- aos desígnios divinos e aos esforços humanos? Espero com fé
culos para cá, do patrimônio sobrenatural que vos foi confiado? uma outra idade de ouro da nossa ciência. Novas iluminações
Por que permitistes que outros (...) tenham tomado o seu lugar de santos, novas intuições de poetas, novas interpretações de
na atenção dos pensadores? doutores farão a teologia, como em tempos de antanho, a domi-
―A verdade, dolorosa verdade, é que a vida ardente e cria- nadora dos espíritos superiores (...).
dora do pensamento se afastou de vós. Depois de São Tomás. ―Mas é necessário que vos afasteis, teólogos, das batidas
(...) não fostes capazes de construir uma nova e poderosa sínte- estradas da repetição, da mecanicidade silogística, do
se teológica (...). pedantismo verbalístico e formalístico que tresanda demasiado
―De há muito tempo não aparece entre vós um gênio que sai- a ranço e mofo às narinas modernas (...).
ba, como os grandes escolásticos, conduzir à meta única por no- ―Saí algumas vezes ao ar livre (...), não desdenheis de
vos caminhos. Não soubestes acrescentar uma nova prova da aprender alguma coisa com os não-teólogos (...). Hoje, que es-
existência de Deus, depois das apresentadas por S. Anselmo e S. tais bocejando no mar morto da indiferença e da monotonia,
Tomás. Não soubestes oferecer uma ideia mais profunda da re- exorto-vos a ousar (...). Nas palavras da revelação pode-se en-
denção depois de Duns Scott, nem soubestes verter o vinho eter- contrar novos sentidos, possivelmente mais profundos do que
no da verdade em odres ardentes, em cálices de cristal mais puro. os que já se encontraram; aos dogmas, a esses dogmas pode-se
―A escolástica decaiu pelos excessos de sutilezas verbais e chegar por novas vias, ainda mais firmes do que as das velhas
pelo pedantismo sofístico dos occamistas1. Vós a depositastes estradas. (...) dos homens de estudo e de engenho depen-
decomposta no féretro lúgubre da repetição. Há séculos, vós, dem sempre, em última instância, as opiniões e os pendores das
teólogos, não sois mais que compiladores de sinopses, manipu- multidões. Se conseguirdes reconquistar as aristocracias do es-
ladores de manuais, registradores de lugares-comuns; não sois pírito, vereis, logo depois, que os povos as seguirão (...).
mais do que entediantes comentadores, glosadores, exumadores, ―Bastaria uma inspiração audaz e feliz para fazer convergir
postiladores, ruminadores de antigos textos venerados (...). Não de todos os lados os sequiosos. Muitos têm sede hoje (...)‖.
sabeis vós que os alimentos requentados em demasia despertam ◘◘◘
aversão até aos mais gulosos, e que as comidas cozidas e reme- Assim falou Papini. Transcrevemo-lhe as palavras apenas
xidas nas velhas panelas de barro, com os mesmos condimentos, porque, ditas por ele, catolicíssimo, encontram receptividade na
acabam saturando os mais pacientes paladares? Cada século Itália, enquanto, ditas por nós, seriam condenadas como heresia.
possui a sua linguagem, os seus apetites, os seus sonhos, os seus Embora este livro, por necessidades editoriais, deva vir a
problemas. Vós parastes o relógio da história no Século XlV e público primeiro em português, no Brasil, do que em italiano,
continuais a servir uma sempiterna sopa aos dóceis candidatos na Itália, foi ele, todavia, escrito na Itália, levando em consi-
ao sacerdócio, sem dar atenção aos cristãos que estão fora das deração as diretrizes do pensamento europeu, que não são
portas claustrais e que já agora estão habituados a acepipes mais idênticas às brasileiras. Levou-se, assim, em linha de conta,
apetitosos e saborosos (...). Essa inapetência obstinada, que já sobretudo o pensamento católico. Foram-lhe, todavia, acres-
dura alguns séculos, será devida somente ao gosto pervertido e centadas algumas páginas no Brasil, para que se colocasse
gasto dos leitores modernos ou também, se não mais, à vossa também, com imparcialidade e universalidade, diante do pen-
fastidiosa mediocridade de capciosos repetidores? Se entre vós samento espiritualista e espírita.
existisse uma estrela de primeira grandeza, bem elevada sobre o Com respeito a este último, podemos afirmar, a quem teme
horizonte, todos a veriam e a procurariam. Mas não passais de que este livro fuja ao seu ponto de vista estritamente ortodoxo,
círios mortiços, que, a grande custo, iluminam as trevas dos ora- que ele pode constituir uma das maiores provas da reencarnação.
tórios. Os antigos e majestosos ‗in fólios‘ dos teólogos dormem Realmente, o sistema aqui exposto admite e prova que houve uma
um poeirento sono entre almofadas de pergaminho e pele, nas criação única de espíritos. Estes, justamente em razão da queda
(primeiro, através da fase de descida – involução – e depois, no
estantes carcomidas das bibliotecas, onde, de raro em raro, os
decurso da fase de subida – evolução), sempre os mesmos filhos
leigos vão despertá-los. As obras dos teólogos modernos são
da criação única, devem infindas vezes reencarnar-se na matéria,
prontuários para uso interno dos clérigos, ou áridos tratados (...).
que é filha da queda, para espiritualizá-la novamente, através das
―Mas pode a ciência de Deus, se quer reconquistar o afeto
provas e da dor, para que tudo retorne e se reintegre em Deus.
dos desatentos e dos desviados, permanecer sempre sobre os
Uma grande vida eterna, qual foi na origem, agora fragmen-
fundamentos e nas portinholas do século XIII? Não poderá
tada na queda, em inúmeras vidas e mortes sucessivas na maté-
também a teologia, como todas as ciências, apresentar avanços
ria, é elemento necessário e fundamental do sistema, é a im-
e progressos? O próprio S. Tomás de Aquino não pareceu re-
prescindível condição do processo evolutivo.
volucionário em seu tempo, a ponto de suscitar oposições e
O sistema é todo sustentado pela ideia reencarnacionista,
provocar condenações? (...).
que tão firme se abriga no coração dos espíritas. Esta teoria
―Existem ainda, nas Escrituras, revelações maravilhosas,
encontra aqui, mesmo quando explicitamente nela não se fala,
que se poderiam mais amorosamente desvelar (...). Não é ver-
uma confirmação, uma prova, uma demonstração. Sem ela,
dade que tudo tenha sido dito e que tenhamos de ser porta-
cairia o sistema exposto neste volume, como cairia A Grande
vozes dos mortos. Cada século avança no caminho do espírito,
Síntese e também toda a Obra.
e possivelmente ver-se-á no futuro uma teologia de fulgor tão
E, se o leitor encontrar aqui conceitos que não são os habi-
brilhante, que a por nós herdada, não obstante a sua admirável
tualmente repetidos, recordará que, sobre o problema teológico
arquitetura, parecerá aos venturosos cristãos do futuro pouco
propriamente dito, a doutrina espírita ainda não se pronunciou
mais que um esboço, isto é, julgá-la-ão como os titãs da esco-
em definitivo, pois é uma doutrina em desenvolvimento, aberta
lástica julgaram os primeiros sistemas doutrinários dos pais da
sempre a novos aperfeiçoamentos, que a amadurecem e a fa-
Igreja. O gênero humano e o povo cristão foram educados por
zem evoluir sempre mais.
graduações, então quem ousará estabelecer confins de tempo
◘◘◘
1
Seguidores de Guilherme de Occam, filósofo inglês e franciscano
Na noite de 9 de maio de 1932, eu registrava, por via da ins-
de Oxford, para quem o saber verdadeiro é o sensível (empirismo). O piração, uma mensagem particular para Mussolini, que lhe foi
occanismo teve êxito nos séculos XIV e XV, declinando em seguida entregue na tarde de 5 de outubro do mesmo ano. Ele a leu e
e descambando para um formalismo lógico. Com ele termina a esco- agradeceu através de autoridades governamentais. Tudo está do-
lástica medieval. (N. do T.) cumentado, inclusive na imprensa. Eis algumas frases da mensa-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 159
gem: ―(...) trata-se de ajudar o nascimento da nova humanidade, deverá brevemente seguir nova orientação e necessita assim, ab-
que surgirá da convulsão do mundo (...). Evita, com todas as tuas solutamente, de novas e completas concepções, por meio das
forças, qualquer guerra. Não há razão humana que possa justifi- quais possa avançar. Para isto, é indispensável um sistema de
car hoje uma guerra que, com os hodiernos meios de destruição, conhecimentos que resolva e esgote todos os problemas até aos
significaria uma tal catástrofe, que poderia assinalar, através da fundamentos. Para que se possa ter uma orientação até à realida-
invasão asiática, o fim da civilização europeia e impeliria, enfim, de da vida, é necessário, portanto, resolver também os proble-
a civilização a emigrar, depois de tremendos cataclismos, para as mas últimos, reservados à teologia, hoje negligenciados como
Américas (...)‖. Outras mensagens, depois transmitidas, diziam, inúteis pelos espíritos adormecidos no materialismo.
entre outras coisas, o que se segue: ―(...) o momento histórico es- Na introdução do livro Problemas do Futuro, explicamos
tá maduro para grandes acontecimentos (...), o momento histórico que a terceira trilogia, da qual este volume, o décimo, constitui o
chegou, porque hoje fala a dor. O momento histórico é grave, segundo termo, é a trilogia da sublimação, enquanto a primeira
porque a dor falará ainda tremendamente, como jamais falou (...). trilogia foi a da explosão e a segunda, a da assimilação. Assim,
A civilização europeia, que é civilização cristã, ameaça ruir-se após o primeiro momento de simples espontaneidade inspirativa,
(...). A presente tranquilidade operante é a calma que precede as e superado o segundo, de introversão reflexa, agora assistimos
grandes tempestades (...). O mundo, hoje, joga tudo e por tudo‖. aqui ao desenvolvimento do terceiro momento, em que, por
Estava-se assim, em 1932, bem distante das condições meio de uma maturação cada vez maior, os motivos da primeira
mundiais que somente hoje começamos a ver claramente e que, trilogia são retomados, desenvolvidos e potencializados em uma
naquela ocasião, foram previstas com exatidão. Para quem tem sempre mais profunda compreensão, elaboração na qual eles se
olhos para enxergar, o plano de Deus é evidente. É vontade Sua completam e se consolidam definitivamente. É assim que o vo-
que, no ano dois mil, deva surgir uma nova civilização do espí- lume Problemas do Futuro retoma e aperfeiçoa a parte inicial,
rito, em que o Evangelho seja vivido seriamente, a fim de que filosófica-científica, de A Grande Síntese, enquanto o volume
Cristo não se tenha sacrificado em vão. E esta hora, já anuncia- seguinte, Ascensões Humanas, retoma e aperfeiçoa o problema
da há vinte anos, chegou, conforme foi mencionado aqui e em social, biológico e místico, desenvolvendo teses apenas acena-
outras mensagens já publicadas2. das em A Grande Síntese. Mas, a fim de que o plano do conhe-
Pode-se atingir esta meta por duas vias: corrigindo-se espon- cimento desenvolvido em toda a Obra pudesse ser executado,
taneamente, pela mudança para uma psicologia inteiramente in- urgia completar a concepção de A Grande Síntese, que encara o
tegrada no amor evangélico, ou então continuar a trajetória ini- universo em função do homem, enquadrando-a em uma concep-
ciada, com uma guerra que poderá destruir o Hemisfério Norte e ção ainda mais vasta, onde se encara o universo em função de
a sua civilização. Em qualquer caso, o plano de Deus se realiza. Deus. Se aquele livro nos dizia como é construído o universo,
No primeiro, pela rápida compreensão de seres inteligentes; no era necessário explicar por que ele é assim construído, e não de
segundo, por uma lenta compreensão dos seres involuídos, atra- outro modo. Era indispensável contemplá-lo não mais apenas
vés da dor, que sabe fazer-se compreender por todos. em relação ao homem, mas em relação aos fins supremos da
A humanidade padece a doença do materialismo e agora Criação. Impunha-se ultrapassar os confins de nosso universo,
caminha para a mesa cirúrgica. No ano dois mil, Deus terá para imergir no pensamento de Deus transcendente, que está
completado a operação. A bomba atômica será instrumento de além de toda a sua criação, por nós contemplada. Era imprescin-
liquidação da civilização materialista que a produziu. A des- dível alcançar a solução dos problemas últimos, diante do que a
truição bélica, se essa for a via que o mundo escolher, será a mente deve conter-se saciada, por haver ascendido até à fonte de
obra de Satanás, que terá a incumbência, assim como a traição tudo, às causas primeiras de que tudo deriva. Para tocar o extre-
de Judas preparou a redenção, de preparar a nova civilização do mo limite do conhecimento, era forçoso subir até ao plano teo-
espírito. Cristo afirmou que reconstruiria o Templo em três di- lógico, de modo que a visão de A Grande Síntese, assim, fosse
as. E a hora chegou, a fim de que a humanidade, com o III Mi- compreendida e colocada no seu justo lugar, na mais vasta visão
lênio, entre no seu terceiro dia, aquele em que Cristo ressusci- de Deus e Universo. O primeiro livro parte da Gênese para al-
tou. Assim, a velha civilização materialista deve ceder lugar cançar o homem; no segundo, contempla-se o pensamento e a
uma nova civilização, de tipo oposto. obra de Deus, mesmo antes da Gênese, e se atinge o solução úl-
Desta forma, se a humanidade não for suficientemente inteli- tima do problema do ser até aos confins do espaço e do tempo,
gente para compreender, será a própria guerra que, destruindo um onde a Criação terá atingido as suas metas.
pouco de tudo, lhe ensinará que ela não constitui o meio adequado Tudo isto confirma o caráter continuamente ascensional de
para resolver os problemas. Esta será a maior descoberta do sécu- toda a Obra, que agora supera as últimas etapas da sublimação.
lo. O tipo biológico condutor de exércitos, o ideal nietzscheano do O próprio método de recepção se faz mais completo e profundo,
homem da força, cada vez mais desacreditado hoje, já surge como e a intuição conceptual e inspirativa torna-se visão orgânica, que
um tipo falido, e uma nova guerra o sepultará definitivamente no resolve os últimos problemas do ser nos braços de Deus. Mas,
reino passado do involuído feroz. O novo homem de comando, nestas primeiras etapas da terceira trilogia, de sublimação, seja
assim como a classe dirigente, deverá ser cada vez menos guerrei- antes, no terreno científico, como depois, no teológico, a ascen-
ro e sempre mais inteligente, até à plena espiritualidade. são, assim retomada, mantém-se sempre no plano racional. Que
Neste momento histórico, nasce o presente volume, termina- forma tomará ela no terceiro volume, último desta terceira trilo-
do na Páscoa de 1951, logo após os dois volumes: Problemas do gia? A visão se lançará ainda freneticamente para frente, per-
Futuro e Ascensões Humanas, completados na Páscoa de 1950. dendo qualquer contato com a forma mental humana? Tratar-se-
Estamos nos dois primeiros anos da segunda metade do nosso á, então, não mais de sublimação racional, de intelecto, mas de
século, no qual se decidirá a sorte do mundo para o futuro milê- sublimação mística, num incêndio do sentimento? Será possível
nio. É neste momento que A Grande Síntese é ampliada e aper- levar ainda mais adiante tais assomos, surgidos nos atuais volu-
feiçoada no terreno teológico. E, após ter atingido, nos dois vo- mes? Não sabemos ainda se a maturação poderá alcançar novos
lumes acima mencionados, a solução de problemas parciais, cimos. Mas, sem ter atingido e transposto estes, como podere-
mais próximos a nós, aqui é oferecida a solução dos problemas mos chegar ao ultimo vértice: Cristo? Não podemos saber por-
máximos, de modo que se lance luz sobre tudo, já que o mundo que ainda não vivemos essas maturações. Mas é certo que as tra-
jetórias já estão traçadas, tanto na vida do indivíduo como na do
2
Referencia às primeiras das Grandes Mensagens (Messaggi Spiri- mundo, tudo devendo prosseguir e amadurecer. O tempo assina-
tuali), volume inicial da obra completa. (N. do T.) la, com o seu inexorável ritmo, o desenvolvimento dos destinos.
160 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Assim, esta grande tarefa encaminha-se para o seu término. I. COMO FALA A VIDA
Encontramo-nos nos últimos registros, sempre mais altos,
sempre mais distantes do inferno terrestre. Superando sozinho Escutemos a história de um homem que ouvia as vozes de
montanhas de obstáculos, consumiu-se uma vida, mas amadu- todos os seres e com eles conversava.
receu uma alma. Martírio de um homem, mas que se enxerta Um dia, o vento se enfurecia. E esse homem lhe falou:
no martírio da mundo, porque una é a lei para todos: se qui- ─ Cala-te, não vês que danificas a vida? Arrancas as árvo-
sermos redimir-nos, não resta senão a cruz de Cristo. E hoje, res, matas os animais, ameaças as pessoas. Modera a tua corri-
queira ou não, também a humanidade nela está pregada para a da! Ninguém te impede de andar e, com um pouco de calma,
sua redenção. Cristo fez a sua parte. Agora cabe a nós fazer- chegarás da mesma forma ao teu objetivo sem causar danos. Na
mos a nossa. Acima de todas as tempestades, impassível, Deus Terra, não existis somente tu e os demais elementos. Há tam-
observa e aguarda. A grande força do Evangelho está no fato bém a vida das plantas, dos animais, dos homens. Há lugar para
de que ele jamais é superado: pertence ao futuro e, por isso, todos, tanto para ti como para eles, porque todos devem viver.
não envelhece; está no fato de que ele constitui um ponto de Ah! O vento não podia ouvir a voz nem compreender os
chegada, e não de partida. conceitos, não sabia responder. Entretanto o vento não é coisa
Frequentemente, é necessária toda uma geração para com- morta. É energia, movimento, tem um corpo físico, embora ga-
preender um livro. A Grande Síntese só começará a ser com- soso, é vida. Há na profundeza de todas as coisas um pensa-
preendida pelo mundo depois de vinte anos. Somente uma no- mento oculto, que elas ignoram e que lhes guia a existência até
va geração compreenderá toda esta Obra. Entrementes, resta a nas formas mais simples das combinações químicas e movi-
quem a escreveu o ultimo encargo conclusivo de acompanhar mentos atômicos. À medida que o ser sobe na escala da evolu-
sua difusão no mundo. Depois, após a longa e exaustiva jor- ção, vai tomando pouco a pouco consciência desse pensamento.
nada, o repouso em Deus. Mas somente assim, vivendo para o Aquele homem sabia ouvir interiormente a voz desse
bem, vale a pena viver. pensamento, que, através do vento, como se ele falasse, lhe
Agora que o ciclo volve ao seu fim, podemos ver que tudo respondeu:
se desenvolveu com a calma das coisas pré-ordenadas por uma ―É fatal que eu assim aja, porque fui feito assim e porque
vontade superior, segundo um plano em que cada momento está fatal é a força que me impele e arrasta. Sou a expressão que
no seu lugar, na sua justa posição, ainda quando se defronta veste essa força e outra coisa não faço senão exprimi-la, porque
com obstáculos e quedas. Estas três trilogias se desenvolvem, ela é todo o meu eu. Quando ela quer e diminui o impulso, eu
assim, segundo o ritmo de um esquema muito mais vasto, pre- também paro, tornando-me carinhosa aragem para as plantas,
sente nos três dias após os quais Cristo ressurgiu e no desen- os animais, os homens e para tudo o que chamas vida e que
volvimento da Sua ideia nos milênios. desconheço. Sou surdo e cego no plano em que falas. Não sei o
que seja sentir. Para mim, somente o movimento é vida. Quan-
A primeira trilogia, explosiva, corresponde, pois, à primeira
do me falas das experiências desses seres, não sei o que estás
fase do cristianismo, que avança no ímpeto de fé dos mártires.
dizendo. Não compreendo o mal que tu lamentas que eu faça,
As próprias Mensagens Espirituais, com que se inicia a Obra,
como seja arrancar e matar‖.
surgem nos primeiros três anos que vão do Natal de 1931 à
O homem replicou:
Páscoa de 1933, e continuam com o XIX Centenário da Morte
− Mas por que não compreende?
de Cristo. Depois, assim como a Igreja se consolidou na Terra,
E a voz da vida respondeu:
após três séculos de perseguições, com o ato de Constantino e o
―O fato de não compreender é alguma coisa de que tens
decorrente reconhecimento oficial, A Grande Síntese, logo após
conhecimento para que fales dela, mas de que eu não tenho,
as Mensagens Espirituais, também lançou as bases cientificas
pelo menos para as coisas que dizes. Só conheço o que diz
do sistema, partindo da matéria. Tudo isso no princípio da pri-
respeito à minha existência; somente a ela, e não às outras. E
meira trilogia, como do I Milênio. tu, que aparentas compreender mais que eu, como não enten-
A segunda trilogia, de reflexão e assimilação, representa o des que não posso conhecer mais que a mim mesmo? Também
II Milênio, em que a ideia de Cristo é racionalmente desen- tu, conquanto mais adiantado do que eu, não podes conhecer
volvida pelos pensadores, assimilada em parte pelos povos, mais do que a ti mesmo.
incorporada aos hábitos e instituições. Mas Cristo ainda dor- ―Vê bem: só tenho uma alma elementar, mecânica, sem di-
me no sepulcro. reito de escolha, sem responsabilidade e sem outras coisas a que
A terceira trilogia é de sublimação e ressurreição no espírito. dás nomes que ignoro. Sou apenas um cálculo de forças, uma
Cristo ressurge. No terceiro dia, o templo é reconstruído. No III fórmula dinâmica, uma férrea concatenação de causa e efeito,
Milênio, o Evangelho, até agora à espera, começa sua atuação na como dirias. Cabe a ti, que tens o que não tenho – a inteligência
vida coletiva. Avizinha-se o pré-anunciado Reino de Deus. En- – como a denominas, estudar a minha realidade, que podes pe-
tramos na fase da luz e do triunfo. Assim, no III Milênio, o netrar em sua estrutura e significado, coisas minhas que certa-
mundo se unificará em um só rebanho, sob um só pastor: Cristo. mente existem e das quais eu nada sei, mas a que obedeço natu-
Não há dúvida de que é estranha esta impensada coincidên- ralmente. Ignoro quem o sabe por mim. Apenas obedeço. A ti
cia, seguramente não preparada, pela qual este ritmo de três cabe estudar e compreender-me, porque te sou inferior, não me
elementos se repete e retorna do período trienal das Mensagens cabendo penetrar-te, porque me és superior. Ignoro o que dizes
(fase preparatória) para estas três trilogias da Obra, seguindo o que eu faço. Para evitar o que chamas de males e, assim, salvar
ritmo da ressurreição e reconstrução do templo no terceiro dia e deles os seres de que me falas, compete a ti e a eles, que me sois
dos três milênios em que o cristianismo se afirma: o primeiro superiores, aprenderdes a defender-vos, não só porque sabeis
na matéria, o segundo na razão, o terceiro no espírito. Dante mais que eu, mas também porque interessa à vossa existência, e
também se fundiu neste ritmo, na Divina Comédia. E a terceira não à minha, usar os meios necessários de cautela. Cada um de-
trilogia nasce na Páscoa da Ressurreição de 1950, ano santo, ve aprender a sua lição, vivendo. Eu, a minha; vós, a vossa. E, já
centro do século, e se orienta para Cristo. Mas toda a Obra não que tendes à disposição mais recursos do que eu, deveis apren-
passa de um anúncio e de uma preparação, porque, na alvorada der coisas mais complexas e difíceis. Pareço estar na ociosida-
do III Milênio, Cristo romperá a pedra do sepulcro e ressurgirá de? Se me agito sempre, é porque também tenho o meu trabalho
triunfante. E a humanidade ressurgirá com Ele. a fazer, e estas forças, que são a minha alma, devem resolver
problemas e aprender soluções, transformações e equilíbrios que
Gubbio, Páscoa de 1951. ignorais e que têm a sua função na harmonia do Todo, em que
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 161
estais e de que tenho necessidade. Tenho a minha função, que rás modificar-nos, domesticando-nos. Todavia, permanecerás
cumpro na ordem das coisas. Não me podeis pedir mais‖. sempre distante, porque não podemos seguir-te‖.
Em seguida, o vento retomou a sua corrida, que era a sua Em seguida, o animal fugiu em perseguição da presa, se-
expressão de vida, e, sibilando, elevou-se aos espaços. guindo cegamente o seu instinto.
O homem voltou-se então para uma planta que, cheia de fo- O homem voltou-se, então, para um seu semelhante e lhe
lhas e de espinhos, havia invadido todo o espaço livre ao sol, disse:
sufocando as plantas vizinhas, e lhe disse: — Eis finalmente um igual a mim. Resumes todos os seres
— Por que és assim egoísta e malvada, prejudicando os teus com que tenho falado até agora. Tens as férreas leis físicas do
semelhantes vizinhos, para que tu sozinha possas viver? vento, a sabedoria vegetativa da planta, os sentidos e o instinto
―Malvada, egoísta?‖ – respondeu a planta e continuou: do animal, além de uma qualidade nova: a tua liberdade de es-
―Que significam estas palavras? É natural que eu cuide apenas colha no mundo moral, com as suas consequências. Tu, que
da minha vida, da mesma forma que os outros só cuidam das suas. dispões de tudo, por que não és perfeito, por que caís em culpa?
Não tenho que viver? Possuo o mesmo direito que os outros. Por E este lhe respondeu:
que deveria preocupar-me com eles, se não se preocupam comi- ―Caio porque não sou perfeito. Se peco, é exatamente por-
go? Por que evitar sufocá-los, se eles estão sempre prontos a fazer que possuo uma qualidade nova. Sou livre, tenho responsabili-
isso contra mim, em seu proveito? Se possuo os meus acúleos, é dade e o direito de escolher.
porque, por mim mesma, aprendi a formá-los, a fim de que os ―O animal é mecanicamente sincero na sua ferocidade e
animais não me comam e mãos como as tuas não me arranquem não peca, pois não dispõe de liberdade, não compreende e não
da terra. Como poderia agir de outra forma para defender-me e pode escolher. A sua visão não se eleva acima de sua lei, sim-
para vos fazer compreender o meu direito de viver, senão através ples, quase mecânica. Eu a domino porque vejo de mais alto,
do vosso dano, único ponto em que sois sensíveis? Caso se queira mas ele está encerrado nela. Menos sujeito a errar, é um autô-
viver, esta defesa é necessária. Por minha conta, tive de aprender mato movido por uma mais profunda sabedoria, que não é sua,
que não me resta outro modo para viver. Tudo isto foi o que a vi- mas que tudo sabe. Devo aprender a manejar uma potência di-
da, com a sua dura escola, me constrangeu a aprender, e tu sabes versa, diretora, o que implica lutas que o animal ignora. Devo
que todo ser deve aprender a sua lição‖. viver a lei de Deus, não como cego instrumento constrangido
O homem acrescentou: por impulsos íntimos, através dos quais a Lei se faz presente,
— Mas por que não procuras compreender, além da tua vi- mas devo vivê-la por livre escolha, para assim chegar a com-
da, também a vida dos teus semelhantes, para que haja lugar pa- preender a lógica e a bondade dessa lei e, dessa maneira, tornar-
ra todos e todos possam viver? me consciente dela. Esta é a minha experimentação e, se cada
E a voz da vida respondeu: ―Mas compreenderão, porventu- um tem a sua lição, esta é a lição que devo aprender. A Lei é
ra, os outros a minha? Somos inimigos, rivais. O lugar ao sol única para todos, mas é diverso, segundo os planos evolutivos,
existe para os vencedores. A vida certamente se defende, mas o conhecimento que o ser atinge dela. Os elementos, a planta e
através do meu trabalho, pois devo aprender a vencer por mim os animais aplicam-na em graus diversos, sem nada saber a seu
mesma. Essa é a lição que a vida me impõe. Não existem em respeito. Só o homem consegue conhecê-la, para, depois de ter
meu mundo o que chamas piedade e bondade. Há somente a fér- tomado consciência dela, livremente segui-la e tornar-se seu
rea justiça do mais forte. Este é o melhor entre os de seu nível, instrumento, seu espontâneo executor, porque compreendeu
sendo justo que ele vença. Se me transportares para um ambien- que só nessa ordem está o seu bem e a felicidade.
te protegido, então eu me domesticarei e perderei os espinhos. ―A minha vida é dura e difícil, repleta de fadigas e esforços,
Mas, assim civilizada, eu me enfraqueço e, se me abandonares, de abismos que a mecânica do instinto ignora. O animal obede-
morrerei. Desta forma, vês que a minha rudeza é necessária e ce cegamente, até à brutalidade, às leis da fome e do amor e não
obrigatória, pelo menos enquanto eu estiver entregue a mim pode superá-las. O homem, mesmo sentindo-as intensamente,
mesma. Cabe a ti, que te encontras em nível superior e possuís como as sente o animal, tem, pela superior natureza humana, a
meios para melhor compreensão, e não a mim, fazer com que possibilidade que aquele não possui, de sobrepor-se-lhes e sub-
existam no mundo piedade e bondade. Executo honestamente a jugá-las; pode completar a catarse biológica ignorada pelo ani-
minha parte de trabalho no organismo universal, produzindo a mal, do herói, do gênio, do santo, do místico, que o conduz a
síntese química da vida do mundo inorgânico. O resto exorbita um plano de vida ainda mais elevado, no qual as conhecidas ca-
ao meu labor. Cumpro assim a minha função na ordem das coi- racterísticas da animalidade são subjugadas e vencidas. Se no
sas, evidentemente no meu nível. Não me podes pedir mais‖. homem ainda sobrevive a besta, já existe em germe o anjo. O
O homem se voltou, então, para um animal que avida- homem sofre e luta justamente para desenvolver em si esse
mente espreitava a presa, dizendo-lhe: germe e tornar-se anjo. Essa é a fase evolutiva que me compete
− Por que este assalto contínuo? Vós, animais, sois superio- viver. Se, por isso, eu posso criar muito mais do que o animal,
res às plantas, tendes liberdade para correr e voar, possuís olhos porque sou livre também posso, sofrendo, aprender muito mais
e ouvidos, tato e olfato, muitos sentidos e possibilidades desco- do que ele, através de lições que de modo algum ele pode co-
nhecidas pelas plantas. Por que permaneceis sob a lei feroz des- nhecer. Enquanto a sabedoria do animal consiste em aguçar os
ta, que vos é tão inferior? sentidos e as possibilidades físicas, e nisto está toda a expressão
E a voz da vida replicou: de sua vida, eu aguço os sentidos, os meios morais e espirituais,
―Se nós somos superiores à planta e mais coisas podemos cuidando cada vez mais destes últimos. Quando o animal tiver
perceber, não temos, porém, liberdade para agir. A nossa vida conseguido ver e ouvir mais longe e farejar com maior delica-
acumula experiências sensórias, mas não temos, como tens, as deza, para assim vencer com meios cada vez mais perfeitos a
experiências que chamas de morais e espirituais. Não somos li- luta pela vida, então terá aprendido completamente a lição. Eu
vres para escolher, devendo seguir fatalmente a lei que nos im- terei aprendido a minha somente quando tiver conseguido ver e
pele sempre nesse caminho, fazendo-nos agir assim. Nós nos ouvir com maior bondade e justiça para todos, para vencer a lu-
alimentamos, procriamos e vivemos quase mecanicamente, ta pela vida, não destruindo o meu semelhante, mas com ele
como quer uma lei que desconhecemos. Esta é toda a nossa vi- coordenando-me e colaborando na ordem divina‖.
da, e outra não conhecemos. Que pretendes acrescentar? Esta é Então o homem que ouvia a voz da vida dirigiu-se a um an-
a nossa experimentação, é a lição que devemos aprender. Dessa jo e lhe disse:
forma, tudo vai bem para nós. Estando em plano mais elevado, — Ó tu, bem-aventurado que vives nos céus, distante do in-
podes viver assim. Se nos levares para vivermos contigo, pode- ferno terrestre, e que progrediste muito mais do que nós, por
162 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
que não nos ajudas? O animal se equilibra em sua ignorância, II. “EU SOU” – ESQUEMA DO SER
guiado apenas pelo instinto, parecendo estático. Mas o homem,
quanto mais sobe, tanto mais adquire consciência da Lei, para Caminhemos juntos à procura de Deus. Não certamente do
melhor ver que longa estrada ainda tem a palmilhar e quanto es- Deus absoluto – inconcebível para nós em Sua substância, não
tá atrasado no caminho para a meta final! suscetível de definição – o Deus transcendente, que ―é‖ além de
E o anjo explicou: toda a Sua expressão. Para nós, humanos, Ele é hoje o inacessí-
―Eu estou mais avançado do que tu, mas ainda muito dis- vel, o incognoscível, que a nossa mente não pode alcançar,
tante da perfeição infinita de Deus. Pareço bem-aventurado e além da Sua suprema afirmação no Todo, em que Ele nos apa-
o sou de fato, relativamente ao que representa a vida na Ter- rece e nos diz: ―Eu sou‖.
ra. Pareço-te bem-aventurado, despreocupado de fadigas e lu- Caminhemos, ao invés, à procura do Deus para nós conce-
tas, mas também nós as temos e grandes, embora elas só vi- bível, porque imanente, expresso na forma, que nos é acessível
sem ao bem. Justamente porque compreendo mais do que tu, porque sensorialmente vestido de uma expressão em nosso con-
meus deveres são maiores do que os teus. A fatal transforma- tingente. Eis um humilde arbusto solitário ao pé de uma mureta.
ção em que consiste a existência torna-se para nós, mais vizi- Que significa essa vida? Que pensa e deseja esse pequeno ser,
nhos de Deus, uma ascensão rápida. Vivemos mais direta- que pensamento contém? Deixemos de lado a botânica, a quí-
mente atingidos pelos raios divinos do amor, não podendo mica, a estrutura orgânica. Busquemos o mistério que das pro-
viver senão para os outros. Poderemos ser felizes, mas vimos fundezas anima essa vida. Esta pequena planta sabe muitas coi-
colher na Terra as vossas dores, que tornamos nossas, para o sas. Nós o deduzimos pelo fato dela saber fazê-las. Se não as
vosso bem, porque só assim podemos melhor sentir Deus. A sabe como consciência desperta e refletida, que as conheça
nossa não é uma beatitude ociosa. Esta é a nossa experiência conscientemente pela razão e pela análise, o fato de se compor-
e, se cada qual deve ter a sua lição, esta é a lição que deve- tar como se as conhecesse prova que deve saber de outra ma-
mos aprender. Quanto mais subimos, tanto mais nos torna- neira. Estranho modo este saber inconsciente, mas ele é habitu-
mos fortes operários, porque nos transformamos em mais po- al na vida! Entretanto, se possuímos os efeitos de uma sabedo-
derosos instrumentos de Deus na realização do Seu plano no ria, sinais evidentes que revelam a sua recôndita presença, e se
universo. O paraíso seria um inferno se abrigasse alegrias essa sabedoria não se encontra no consciente do ser, é necessá-
egoístas como as vossas. Sem um trabalho permanente, per- rio procurá-la algures. Onde? Essa consciência cobre apenas o
deremos as nossas qualidades e volveremos a formas inferio- campo da sua atividade, imprescindível aos fins da evolução.
res de vida. Aqui fervilha o trabalho do bem, como embaixo
Se, para o ser individualizado, o resto do universo é um oceano
se agita o do mal. Aqui se respira amor, como embaixo se
de mistério, sepultado no inconsciente, só o é relativamente a
respira ódio. E nós somos os canais do amor que recebemos
ele, e não em si mesmo, porque esse oceano de inconsciente é
de Deus, para fazê-lo descer até vós. Ele dirige a grande
formado de outros seres, cada um consciente do seu pequeno
harmonia da vida, a imensa sinfonia do universo, da qual nós
trabalho, com o Todo funcionando imerso em uma atmosfera
somos as notas mais altas, e vós, as mais baixas‖.
de pensamento que o guia e rege.
Então, o homem voltou-se para Deus e Lhe falou:
Quando, pois, cada ser nos demonstra que sabe resolver
— Senhor, agradeço-te me haveres dado, pelo Teu amor, o
todos os problemas inerentes às suas necessidades vitais, isto
supremo dom de existir. Tu me fizeste um ―eu sou‖, à Tua ima-
significa que por ele sabe e pensa o consciente universal, que
gem e semelhança, no seio do Teu infinito ―Eu Sou‖. Assim eu
existo em Ti, assim eu canto uma nota na grande orquestra do lhe transmite somente a conclusão do seu raciocínio, com um
Teu universo, sou um operário, embora ínfimo, da Tua obra – impulso, cuja análise o ser não sabe fazer, mas que lhe diz em
uma célula, ainda que diminuta, do Teu grande organismo. síntese: ―faça isto‖. Então ele, ignorante do funcionamento do
Enquanto assim orava, o homem volvia o olhar para todas Todo, passa a ser um instrumento inconsciente do consciente
as formas do ser e via as criaturas irmãs, hierarquicamente universal, que funciona por ele naquilo que não pode nem sa-
dispostas de acordo com os graus de evolução, cada qual em be atingir. Não se nega, com isto, que o instinto seja formado
seu lugar no grande edifício da criação, cada uma com a sua pela experimentação da vida, com a técnica dos automatis-
função na ordem universal, cada elemento útil no grande or- mos, como já dissemos em A Grande Síntese. Não falamos
ganismo do Todo. aqui dessa pequena inteligência a posteriori, e sim da superior
E, a cada uma, segundo a respectiva posição, a voz da vida inteligência a priori, que tudo guia, inclusive a formação do
lhe havia falado, conforme à lei dominante no plano em que instinto, imprimindo-lhe a direção necessária, de acordo com
cada ser se coloca, revelando limites e deveres proporcionais. o plano geral da evolução.
Mas, contra a fatalidade de permanecer encerrado, o esforço Os impulsos fundamentais de nossa vida, tanto os do desti-
próprio de trabalho e dor abre as portas, possibilitando ao ser no individual quanto os do destino coletivo, que se desenvolve
subir cada vez mais para a suprema glória do divino. Esta é a na história, não constituem um produto racional e consciente,
grande experimentação de toda vida, esta é a lição que cada sendo insuficiente para explicar-lhes a gênese somente um ins-
qual deve aprender. O divino freme nas profundezas de todo tinto puro formado pelas experiências do passado, pois derivam
ser. O espírito adormecido deve despertar para chegar até Deus. do consciente universal, que trabalha por nós onde ignoramos.
Em todos os níveis, dos mais baixos aos mais elevados, revela- Aquela pobre e ignorante plantazinha sabe, pois, viver por
se o animador e íntimo pensamento de Deus. si mesma; conhece os meios adequados para isso, proporcio-
Então, o homem sentiu que havia compreendido o universo nados ao seu escopo e ao ambiente; sabe escolhê-los e coorde-
e abriu os braços a todos os seres, cuja voz ouvia e disse: ná-los. Ela quer viver. Ela quer crescer e sabe crescer. Ela quer
— Aperto-vos todos no amor de Deus. Fundidos todos no reproduzir-se e sabe como fazê-lo. E, assim, cuidando não
mesmo amplexo. Subi comigo, subamos unidos para Ele. Vós mais da aparência sensória, e sim penetrando por intuição a
de cima, prodigalizando amor; nós, inclinando-nos para os infe- forma que ultrapassa essa aparência, nós vemos um pensamen-
riores e ensinando-os a subir; e os inferiores, aceitando o dom to sábio, que está além do consciente do ser, pensamento que
de sacrifício e amor dos superiores, que procuram ajudá-los a enfrenta e resolve problemas, opõe uma vontade decidida con-
conquistar com justiça a própria felicidade. Só assim, unidos tra qualquer obstáculo, transpondo-os a seu modo. É que den-
em um amplexo, nós, criaturas dispersas no infinito pulverizado tro desse humilde ser existe uma alma, embora sem o grau es-
da forma, poderemos encontrar-nos e, refundidos – através do piritual que atingiu no homem e ainda que não passe de um
amor – em um só organismo, reconstituir-nos no Uno-DEUS. esmaecido reflexo do consciente universal ou alma do Todo,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 163
cuja manifestação se estende à periferia na individualização Tornamos a encontrar aqui o conceito já desenvolvido nos vo-
particular, imersa no inconsciente. lumes precedentes, do princípio central único que, no universo,
Esta forma é um transformismo contínuo. Efetivamente, pulveriza-se no particular periférico das formas – sua manifes-
não a encontraremos jamais idêntica a si mesma. Periodica- tação. Mas permanece o esquema único da constituição do uni-
mente, a vemos morrer e reproduzir-se e assim, através da verso por individualizações.
morte e do renascimento, por meio de uma renovação contí- Assim se explica como cada ser assume uma forma típica,
nua, sobreviver sempre. Se a forma não pode existir senão as- definida, com os seus limites de desenvolvimento no tempo e
sim, continuamente renovando-se, então deve haver atrás dela no espaço. Se tudo isto já não estivesse estabelecido num es-
o imutável, um outro seu aspecto, que permanece constante, quema e não fosse conhecido, ainda que por um processo não
aquele sem o qual não se explica uma vida regida por um obje- consciente, pelo ―eu‖ profundo, que sabe, quer e permanece
tivo perene, caminhando através da incessante mutação de sua idêntico através da contínua mutação de forma, não haveria
existência. E, diante da forma material, qual pode ser esse ou- nenhuma garantia de ordem funcional e de desenvolvimento
tro aspecto do dualismo, inverso e complementar, como o regular. Assim tudo é típico. O universo é um edifício compos-
imóvel é diante do móvel, senão a sua imaterial ideia animado- to de infinitos ―eus‖, que, de um ―Eu‖ central do Todo, pulve-
ra, o pensamento, que sabe tantas coisas e que, imutável, se riza-se hierarquicamente, descendo para ―eus‖ sempre meno-
exprime revestindo-se de forma mutável? res. Isto desde o infinito galáctico ao nuclear, um ―eu‖ astro-
Penetremos ainda mais profundamente no íntimo dessa pe- nômico, geológico, físico, químico, espiritual, humano, ani-
quena planta e veremos, então, que o seu ponto central, assim mal, vegetal. Este ―eu‖ é sempre uma sabedoria e uma vontade
como o de todos os seres, ponto no qual tudo converge em sín- constante, inteligentemente dirigida para um dado fim, que ir-
tese para depois se irradiar analiticamente, pelo qual passa e se resistivelmente tende à sua exteriorização. Todos esses ―eus‖
manifesta o saber do consciente universal na vontade de viver e se reagrupam por unidades coletivas, dos menores aos maiores,
que permanece constante no transformismo, é o eu. O próprio alcançando das mínimas unidades atômico-nucleares às máxi-
homem – que foi ontem criança, é hoje adulto e será velho mas organizações galácticas, do simples psiquismo orientador
amanhã – sabe que tudo muda nele e em seu derredor, mas sabe das moléculas dos cristais ao homem e ao gênio. Todos esses
também que a única coisa que nele jamais muda é a existência ―eus‖ mantêm um sistema orgânico que é próprio a cada um,
desse centro pelo qual ele se chama e se sente sempre ―eu‖. En- evoluindo e funcionando sempre em cooperação com todos os
quanto no ser tudo nasce e morre, somente esse eu não morre outros ―eus‖. Esse principio, pois, não apenas conhece, quer,
jamais. O fato dele permanecer através de tão grandes trans- permanece constante e sabe reger o funcionamento individual,
formações, como são as que de um lactante fazem um homem e mas também sabe guiar-lhes a evolução e coordená-los com o
depois um velho, faz com que o ser, intuitivamente, sinta a ló- funcionamento de todos os outros ―eus‖.
gica de uma idêntica continuação da vida do ―eu‖ também atra- Tudo isto nos mostra que o universo é um todo que, ainda
vés desta outra mutação constituída pela morte do corpo, que, quando pulverizado em infinitas formas ou expressões de um
em toda a sua vida, jamais foi idêntico a si mesmo e não fez mesmo princípio central único, permanece organicamente com-
mais do que continuamente morrer e renascer. Por que, pois, só pacto, porque é construído segundo um esquema único, conso-
essa outra transformação deveria ter a força de destruir esse ante um idêntico modelo, que se repete ao infinito em cada uni-
―eu‖ que se revelou tão invulnerável a toda mutação exterior? dade menor, onde a maior se ramifica e se diferencia até à ex-
Se toda forma pode existir sem se desfazer no contínuo trema pulverização. O que torna compacto o universo é ser ele
transformismo que a constitui, resistindo compacta ao turbi- um ―eu‖, é o mesmo princípio unitário que mantém compacta
lhão das suas mutações, é porque no íntimo de todo ser existe toda forma, sendo esta, à semelhança da máxima, uma unidade
esse ―eu‖, firme centro na tempestade transformista. Todo ser coletiva resultante da coordenação orgânica de menores unida-
existe no tempo enquanto disser: ―eu‖. Di-lo o átomo, a molé- des de ―eus‖. Assim, tudo permanece unido porque coligado
cula, a célula, o mineral, a planta, o animal, o homem, a famí- por uma contínua atração de parte a parte, por uma confraterni-
lia, o Estado, a humanidade, a Terra, o sistema solar, os siste- zação dos ―eu‖ menores nas unidades maiores.
mas galácticos, o cosmo. No universo, tudo está sujeito a essa A observação da estrutura das formas no plano de nosso
necessidade de individualização. Ele é composto de seres di- contingente nos levou à verificação desse princípio universal
versamente diferenciados, mas todos dizem igualmente: ―eu‖. do ―eu sou‖, inserto em cada forma. Agora é a observação da
De um polo ao outro do ser, tudo é construído segundo esse estrutura de nosso particular que nos indica a estrutura do uni-
princípio, que é lei fundamental. É assim que toda força no versal. Assim como cada individualização particular do ser não
universo é individualizada segundo suas qualidades particula- pode existir senão enquanto diz: ―eu sou‖, isto é, em função
res, o que explica a instintiva tendência dos povos primitivos dele e como sua manifestação, também a individualização má-
para personificar as forças da natureza, atribuindo-lhes caracte- xima do ser, isto é, o universo, não pode existir senão enquanto
rísticas humanas. É também sob este aspecto que podemos ver diz ―eu sou'', ou seja, em função deste e como sua manifesta-
as forças do mal personificadas em Satanás e seus demônios, ção. Isto à semelhança do que constatamos em todo ser, inclu-
que, de resto, nós realmente vemos existir em nosso mundo, sive o homem, fato que cada um pode observar em si mesmo.
nas manifestações dos seres maus. Esta característica de indi- Se o ―eu sou‖ de cada individualização é o seu íntimo princí-
vidualização, que, em qualquer forma, é sempre indispensável pio animador e se o ―eu sou‖ do homem é a sua alma, o que
à existência de um ser; este princípio comum a todos, ideia- poderá ser o ―eu sou‖ do universo, o princípio animador da
mãe do universo e esquema fundamental do sistema; este prin- forma máxima, senão Deus?
cípio universal do ―eu‖, centro de todo o ser, é a única coisa Assim tornam-se compreensíveis para nós as relações entre
que pode manter-lhe constante a identidade em uma forma Deus e o universo, porquanto podemos observá-las refletidas
que, de outra maneira, não poderia encontrar-se a si mesma e em nós mesmos. Deus é o ―Eu sou‖ do universo. Este, no seu
se perderia no seu contínuo transformismo. aspecto dinâmico e físico, é a forma pela qual Deus exprime o
É este seu íntimo ―eu‖ que define toda a forma nas suas ca- pensamento, é como que um Seu corpo, onde podemos ver de
racterísticas particulares, forma pela qual ele concretamente re- Deus, mesmo na forma, também um semblante que pode espe-
aliza a sua expressão. Se todas as formas são diferentes, é por- lhar na fisionomia e expressão o seu íntimo pensamento anima-
que todo ―eu‖ é diferente, embora conserve, cada qual na sua dor. Assim como nós procuramos num rosto humano uma alma
diversidade, a característica universal comum de ser um ―eu‖. e assim como, em toda forma, procuramos o princípio inteli-
164 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
gente que nela se exprime, também podemos ver na criação a sim, pelo contrário, para vantagem dos elementos componentes,
fisionomia de Deus. E, quanto mais a nossa vista se torna pene- com a conservação de um organismo global, que é necessário e
trante pela intuição, tanto mais cada forma se fará transparente útil a todos. O Estado, como um chefe de família, pode ser util-
e lhe revelará sua íntima substância espiritual. Torna-se cada mente egocêntrico sem ser egoísta. Se todo ser, para existir, de-
vez mais patente, então, que o criado é a expressão de um seu ve dizer: ―eu‖ – o egocentrismo é uma necessidade de existência
íntimo pensamento nele imanente, no qual a transcendência de e, por isso, não pode haver culpa em se repetir os princípios do
Deus desceu e permanece sempre presente. Se, no seu aspecto ser, expressos no sistema do universo. É segundo a Lei, também,
transcendente, Deus permanece na Sua essência como um ―Eu que cada fragmento conserve interiormente a natureza do es-
sou‖, incognoscível para o homem, Ele, no seu aspecto imanen- quema consoante o qual o Todo-Uno é construído.
te, transferindo-se ao nosso relativo com a criação, fica, através Então, por que egoísmo é culpa? Procuremos compreender.
da forma que assumiu para os nossos sentidos, acessível ao co- Egoísmo e altruísmo são termos relativos ao grau de extensão
nhecimento humano. E em que consiste a progressiva indaga- que o ―eu‖ cobre com o próprio amor e compreensão. Enquan-
ção da ciência, que avança de descoberta em descoberta, senão to o egoísmo é o amor exclusivo com relação ao próprio ―eu‖ e
em contínuas e crescentes sondagens na profundeza do pensa- a nenhum outro, um altruísmo absoluto que renuncia a tudo,
mento divino? Ele está escrito no funcionamento orgânico do inclusive a si mesmo, sem vantagem nenhuma para um dado
universo, e quem o indaga procura ler o livro onde estão escri- ser ou grupo de seres, é loucura, é suicídio. Ambos os extre-
tas as leis do ser e busca compreender a ideia diretriz do Todo, mos constituem culpa. A virtude consiste no altruísmo razoá-
sua alma. O místico, por sua vez, é um sensitivo que, ainda vel, no sacrifício em favor de alguém, na dilatação do egoís-
quando não se dê conta consciente e racionalmente, move-se mo, isto é, na ampliação do princípio do egocentrismo, e não
atrás da mesma indagação por vias mais diretas, porfiando, na sua supressão. A virtude será tanto maior quanto mais ex-
através das suas visões e sensações místicas, alcançar a mesma tenso for o campo dominado pelo amor, que é a substância da
compreensão do pensamento de Deus. Lei. Efetivamente, o egocentrismo máximo do sistema em
Se nós, certamente, não podemos atingir o conhecimento de Deus não é senão um egoísmo que cobre todo o universo, dila-
Deus transcendente absoluto, podemos aproximar-nos muito de tado assim infinitamente no amor capaz de abraçar e defender
Deus imanente, vivo e presente nas formas que O exprimem, todas as criaturas até considerá-las como partes integrantes de
em virtude justamente desse esquema unitário do ―eu sou‖, se- si mesmo, sacrificando-se por elas.
gundo o qual todo o universo, até os casos infinitesimais, é Eis como se opera a progressão da abertura da concha do
construído à imagem e semelhança do caso máximo, analogi- egoísmo no altruísmo, finalidade da evolução. Esta consiste
camente. Podemos imaginar o nosso universo atual como um exatamente na confraternização, que, unificando os fragmentos
todo-uno que, qual um espelho, se tenha fragmentado em mirí- do Uno, reconduz os seres à unidade no centro – Deus. O ego-
ades de partículas. Cada uma destas, embora um fragmento em ísmo poderia então denominar-se egocentrismo involuído, fe-
relação ao Todo, conserva-lhe em particular as qualidades, de chado e limitado em si mesmo, enquanto o altruísmo seria ego-
modo que pode nos traduzir e mostrar a natureza do Todo, não centrismo evoluído, aberto e expandido no Todo. Efetivamente,
obstante haver perdido a unidade global com a fragmentação. o primeiro é separatista, desagregador, centrífugo; o segundo é
Desta forma, cada parte reproduz o universal esquema do ser, unificador, agregador, centrípeto. O primeiro se afasta de Deus,
isto é, cada criatura repete reduzidamente o divino princípio e o segundo se avizinha de Deus.
unitário, alma do Todo. Em outros termos, cada ―eu‖, com a O egoísmo se explica historicamente. Resultado da frag-
sua forma, é um caso menor, que repete em miniatura o motivo mentação do Uno em tantos outros ―eu‖ menores, separados e
cósmico, no-lo narra e no-lo explica. Sendo em si um pequeno separatistas, como veremos, é qualidade do ser involuído, ne-
universo, fala-nos do universo máximo. cessária à sua existência, pois que, no nível em que se encontra,
Ignoramos se tudo isto corresponde aos princípios mais necessita revestir esta forma de personalidade separada egoisti-
aceitos em teologia, filosofia, psicologia etc. Sabemos apenas camente, em guerra com todos, na ignorância da superior fase
que cada ser fala verdadeiramente de Deus e que o universo é orgânica que poderá irmaná-lo aos semelhantes em unidades
construído segundo esta realidade. maiores. Esse egocentrismo, biologicamente justificável, só o é,
todavia, para o passado, mas, se tentar prolongar-se no futuro,
III. O EGOCENTRISMO tornar-se-á cada vez mais condenável como egoísmo separatis-
ta, porque a evolução leva a humanidade a um mais vasto ego-
A esta altura, surgem muitas questões. Procuraremos res- centrismo coletivo. É assim que o egocentrismo separatista,
pondê-las aqui, para resolver, sempre procedendo em profundi- sendo uma forma de utilidade biologicamente superada, não
dade, o problema do conhecimento das últimas coisas. poderá reaparecer senão sob um aspecto cada vez mais retró-
Se o universo diz em Deus o seu: ―eu sou‖, como o diz toda grado e antivital. Tendo cada vez menos razão de existir na sua
criatura e, por conseguinte, todo homem, será possível então forma exclusivista e agressiva, cada vez menos também será
encontrarmos, no termo máximo, o principio de egoísmo que justificado, pois que deixou de ter função biológica.
existe nos seres inferiores e que é tão condenável no homem? Em Deus, o egocentrismo representa um egoísmo tão am-
É isto possível? Mas por que então o egoísmo humano é uma plo, que abraça todas as criaturas, tudo o que existe, de modo a
culpa? Por que ele existe, o que significa e quer? Em Deus, coincidir com o máximo altruísmo. E, quanto mais o ser evolve,
princípio centralizador unitário do universo, encontraremos en- tanto mais o egocentrismo tende a se aproximar ao de Deus,
tão o egoísmo máximo? que é o egocentrismo que todo ser sente com respeito aos ele-
É um fato que, sem egocentrismo, desde os sistemas planetá- mentos componentes do próprio organismo, constituindo uma
rios aos organismos celulares e sociais, não se mantém compac- necessidade para mantê-los todos compactos em unidades em
ta nenhuma unidade. Ele é, pois, necessário a todo ser. Egocen- torno ao ''eu‖ central, alma do Sistema. O egocentrismo de
trismo não é exatamente egoísmo. Este possui um sentido mais Deus é, pois, um egocentrismo perfeito, isto é, não constituído
de centralização com vantagem individual, de pendor separatista de um egoísmo separatista e exclusivista, como o dos seres in-
e exclusivista, de usurpação em detrimento de outros ou necessi- feriores, mas sim feito de amor, que reforça essa fundamental
tados ou com direito. O egocentrismo possui, ao invés, apenas lei do ser, porque Deus é centro, não para sujeitar, mas para
um sentido de centralização, destituído de senso separatista e atrair; não para absorver, mas para irradiar; não para tomar, mas
exclusivista, não com o objetivo de usurpar nada a outrem, mas para dar. Se, por sua vez, os ―eu‖ menores têm necessidade do
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 165
seu menor egocentrismo para manter o seu menor sistema, na- a agir contra o Todo, então os impulsos do conjunto orgânico se
quele egocentrismo também eles encontram o limite do próprio encontram contra ele, para expulsá-lo do Sistema. Veremos,
ser. Em tal limite, eles estão fechados, pois que ele forma o ho- dentro em pouco, como pode surgir essa atitude rebelde das cri-
rizonte da sua existência e compreensão, e só pela evolução po- aturas e quais as suas consequências.
dem sair dele, ampliando-o em outro mais vasto. Compreende-se, dessa forma, como o mundo de hoje, base-
Assim é a íntima estrutura do sistema do universo. O grande ando-se no egoísmo, esteja completamente fora da rota. Os mé-
modelo é Deus, que todos os seres, inclusive o homem, devem todos mais seguidos para a conquista da riqueza representam,
seguir. Esse Deus se encontra no núcleo do Sistema, tudo cen- mesmo do ponto de vista utilitário, um grosseiro erro psicológi-
tralizando em si, para tudo irradiar de si, e as criaturas devem co. Acumular com exclusivismo egoísta significa caminhar
existir à Sua imagem e semelhança, isto é, como outros tantos contra a maior corrente da vida, agir com prejuízo, significa
núcleos menores que irradiam para sistemas menores. E, assim, pôr-se em posição invertida, não obter senão resultados negati-
hierarquicamente, cada um, segundo o grau de evolução atingi- vos. E, quanto mais porfiadamente o homem lutar nessa dire-
do, cobre uma extensão maior ou menor do sistema relativo ao ção, buscando vencer por ela, tanto mais se afastará das fontes
seu raio de ação. Tal o modelo central, tal a lei do Sistema. Cer- do ser, para perder-se no deserto em que o isolarão as forças da
tamente, a criatura é livre e pode, pois, agir de modo contrário. vida, que dele se arredarão como de um pestilento. Deus é amor
Mas pode estar bem certa de que é lei também que todo o sis- e sempre dá. A divina corrente do Todo está baseada no princí-
tema se volte contra ela, para esmagá-la, como a um inimigo. A pio do dar. Agindo ao contrário, o homem pretenderia opor-lhe,
grande corrente da vida vai contra quem pretende inverter a rota como uma muralha, o oposto sistema do tomar! Então, a mura-
do ser, prejudicando-o. Ela o coloca frente ao dilema de rear- lha não susta a corrente, mas a corrente destrói a muralha. A
monizar-se com a Lei, enquadrando-se de novo nela, ou ser nossa economia, porventura, não está baseada no princípio ―do
eliminado. E os salutares golpes da dor, ainda que atenuados ut des‖3? Se a balança da justiça assim se apresenta, isto signi-
pelos impulsos de amor, não serão sustados enquanto não se ti- fica egoísmo, pelo que eu não darei se tu não deres. Se não tive-
ver conseguido a correção ou a destruição. O ser é livre para res para dar, morrerás, o que a mim não importa. E, se não de-
violar, mas somente em seu dano, e não tem nenhum poder para res, eu não darei. Este princípio de compensação, que são as
dobrar ou anular as leis da vida. bases reconhecidas da economia vigente, constitui a mais lídi-
Eis as razões remotas que explicam e impõem o ―ama o teu ma manifestação do egoísmo. Se tal é a atitude da alma, que
próximo‖ do Evangelho. Hierarquicamente, a unidade do Sis- salvação podem realizar os sistemas econômicos que se erguem
tema, por esquemas únicos, repetidos em todos os níveis, impõe sobre essas bases? Uma economia desse tipo, em face das mais
que o mais sábio e poderoso, porque em níveis mais elevados, profundas leis da vida, éticas e espirituais, das quais é ilusório
deve irradiar para os inferiores, de nível mais baixo, pois que os querer furtar-se em qualquer procedimento nosso, resulta tam-
níveis elevados recebem dos que se encontram em níveis mais bém utilitariamente negativa, isto é, contraproducente. Efeti-
elevados ainda do que eles, próximos a Deus. Obtém-se, assim, vamente, o mundo econômico-financeiro não passa de uma sé-
através da desigualdade, a justiça. Receberá dos irmãos maiores rie de crises em cadeia, que formam uma única perene crise in-
quem der aos seus irmãos menores. Quem mais possui, mais sanável, porque ela não se origina de um particular momento ou
deve dar. Quem menos tem, mais deve receber. Eis a perfeita posição, mas de todo o sistema.
justiça alcançada pelo amor, respeitando diferenças e desigual- Por que, então, o homem se comporta assim e não sai dessa
dades necessárias, que exprimem a posição atingida, cada qual posição falsa? Simplesmente porque a grande massa humana é
com sua fadiga e vontade de subir. Uma justiça perfeita, atingi- involuída e não compreende esses erros psicológicos, além do
da sem nivelamentos forçados, que podem constituir mutilações que, quando já se tomou uma direção, é muito difícil inverter a
para os mais evoluídos e apropriação indébitas para os inferio- rota. E aqui se trata precisamente da evangélica inversão dos
res. Eis a função da Divina Providência, já alhures estudada. valores, isto é, de pôr no cimo da escala destes os espirituais e
Assim se compreende o Evangelho, quando diz que não ganha no fundo os materiais. Mas hoje se verifica o inverso, colocan-
a própria vida quem a conserva egoisticamente para si, mas do-se em cima estes últimos em virtude do tipo biológico do-
somente quem a dá aos outros. Recordemo-nos que somos célu- minante na Terra não se encontrar ainda, por evolução, sensibi-
las de um grande organismo e que nenhuma célula pode crescer lizado a ponto de percebê-los e apreciá-los. Ele corre atrás dos
e viver isolada, pensando exclusivamente em si mesma e em valores fictícios do mundo sensório e corporal, ao invés de bus-
seu próprio benefício, mas somente pode fazê-lo em relação às car os mais consistentes do mundo espiritual e da alma. O tipo
outras, em favor do organismo inteiro. Uma célula absoluta- dominante não consegue ainda compreender esse novo hedo-
mente egoísta representa em qualquer organismo um germe re- nismo e apoderar-se dele em seu benefício. A nova vida é do
volucionário, uma revolta à lei do Todo, uma atividade perigosa bem, que opera honestamente, sem enganar, pedindo antes o
que é logo sufocada no interesse geral, um cidadão rebelde que trabalho e depois a recompensa. O homem ignorante prefere as
urge ser expulso da sociedade. vias do mal, que age desonestamente, enganando, prometendo
Tal é a grande parte da moderna humanidade materialista, dar muito e chegando mesmo a dar logo alguma coisa sem nada
para quem o egocentrismo é egoísmo separatista e exclusivista pedir, para mais tarde retomar o que deu e não dar o que pro-
de cada um contra o próprio semelhante. E, efetivamente, as meteu. O caminho feito de mentira é mais atraente para quem
leis da vida procuram isolar esse tipo biológico, como um can- crê ser bastante bravo para burlar as leis da vida, o que leva a
cro ou tumor, para destruí-lo. Com o próprio egoísmo, ele dese- cair facilmente numa armadilha. Cada qual atrai segundo a pró-
jaria sustar o livre fluxo da vida, como quer a divina lei de pria psicologia e obtém o que merece.
amor, e a vida o põe na encruzilhada: seguir a rota da Lei ou ser O homem comum, imerso em um mar de mistérios, não
esmagado por ela. O homem moderno não conhece esses prin- sabe se orientar, detendo-se nos efeitos imediatos. No altruís-
cípios, age como uma célula que quisesse viver exclusivamente mo, ele vê um sacrifício tangível, próximo, real. Vê nele um
para si, isolando-se da corrente de todo o funcionamento orgâ- perigo para si e para os seus, de modo que tem como um dever
nico de que é parte. Para quem compreendeu a vida, isto é sim- arrebanhar o mais que pode para si e para os seus. Em face do
plesmente a louca pretensão de um ignorante de tudo. Mas o altruísmo ele recua exclamando: ―E quem me garante a vida?‖.
Sistema tem como centro Deus, e não o homem, e ninguém po- O assalto permanente que sofre da parte do próximo, que ele
de alterar a realidade dessa estrutura do universo. E, assim,
3
quando um centro menor, fazendo mau uso da liberdade, tende ―Dou para que dês‖. (N. do T.)
166 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
deveria amar como a si mesmo, justifica em parte essa sua ati- truir o que já se encontra em nosso poder. Desta forma, escon-
tude e exigiria heroísmo ter que invertê-la no oposto. Para demo-nos em uma prisão. Bastaria saber abrir-lhe a porta, para
chegar a isto, teria que não apenas dar o seu sacrifício imedia- que nos evadíssemos. A porta, para que se abra, exige que re-
to, mas também, para manter-se, lutar sozinho contra toda uma cuemos um pouco, mas o homem prisioneiro, na ânsia de fu-
corrente inversa, formada pela sociedade humana. Todavia, pa- gir, ao invés de recuar um pouco para trás, avança sofregamen-
ra o homem altruísta, há uma grande força em sua defesa – te, buscando o exterior e, pensando em tudo, menos no que de-
coisa que, na Terra, bem raramente se tem em conta – pois ele, ve fazer para se libertar, mais e mais impele a porta do lado em
não sendo egoísta, é espoliado de tudo, porque tal é o resultado que ela se fecha, tornando, com o seu esforço, mais e mais di-
de uma guerra de egoísmos para quem não ataca nem se de- fícil a libertação. Ele é um louco. Para desfazer certas mira-
fende, e isto atrai as forças da vida, que acorrem, a fim de sal- gens e destruir outras tantas ilusões psicológicas, é necessário
vá-lo. Estas forças não constituem utopia. Elas regem o mundo ao homem a dolorosa elaboração de milênios.
e acorrem esse homem porque ele personifica a vontade o O raciocínio do homem atual parece verdadeiro, porque o é
maior interesse da vida, que é a evolução. Mas, para compre- apenas em parte, pelo menos onde ele alcança com seu conhe-
ender isto, é necessária uma sensibilização moral e psíquica cimento, isto é, no seu mundo concreto, que representa a perife-
que não existe na maioria, uma orientação conceitual precisa, ria do Sistema e que ele, ignorante do resto, supõe que seja tudo.
através da qual se tenha compreendido o funcionamento orgâ- Desfazer em altruísmo o próprio egoísmo é efetivamente uma
nico do universo; é indispensável, enfim, a prova resultante do perda, mas somente periférica e apenas em uma primeira fase.
controle experimental de toda uma vida. Porque, realmente, não é perda, mas sim ganho, quando em um
Na realidade, funcionam inúmeras forças que a maioria ig- segundo tempo o ser vem a pôr-se em contato com outras forças
nora. Deus, ao sensibilizado por evolução, é uma realidade não periféricas. Efetivamente, o altruísmo não é vantajoso neste
sensível. O caminho para se aproximar Dele, suprema alegria, mundo, quando outros seres estão dispostos a arrebatar-nos tudo
consiste na progressiva dilatação do próprio egocentrismo, que e valer-se de nosso sacrifício em proveito próprio, embora com
denominamos altruísmo, isto é, o fraterno amor evangélico. evidente perda para si. E esta é definitiva para o involuído, que,
Este constitui o método de ascensão para a felicidade, encur- em remotas conexões com o centro Deus, só é escassamente ir-
tando as distâncias entre o homem e Deus, porque, assim, a radiado e, por conseguinte, empobrecido e privado de novos su-
criatura, seguindo o exemplo divino, volta-se para trás a fim de primentos. E, dado que nos encontramos na periferia do Sistema
orientar as criaturas irmãs. Quando o ser se decide dessa forma e que a maioria é, por involução, pouco irradiada, a posição de
a funcionar segundo a lei do Todo e se dispõe a despojar-se do prisioneiro da pobreza e da dor, sem capacidade de evasão, é ló-
que possui em favor do necessitado, põe em movimento os im- gica e compreensível. Não há remédio imediato. Nada resta se-
pulsos do Sistema e faz com que este funcione em seu favor, não deixá-lo na posição que lhe cabe, segundo o seu grau de
de modo a ser de alguma forma provido e largamente compen- evolução, à espera de que os golpes da vida o elaborem até que
sado do que perdeu, dando voluntariamente. Em outros termos, ele compreenda o mecanismo do Sistema e consiga assim fazê-
ativa-se o princípio segundo o qual quem beneficia é benefici- lo funcionar em seu proveito. É inútil querer explicá-lo antes
ado e tanto mais beneficiado quanto mais beneficiou. Inicial- que ele amadureça, porque permanece incompreensível, pois
mente, punge o sacrifício de pôr em movimento essas forças, que não se aceita aquilo que não se mereça conhecer, por não se
mas o Sistema, pode-se dizer, é de uma tal precisão mecânica, ter feito ainda o esforço de conquistá-lo.
que, uma vez posto em ação por quem compreende e sabe, ma- Tudo será muito diverso para o evoluído. Desfazer em altru-
tematicamente dará resultado. ísmo o próprio egoísmo, também para ele, significa um prejuí-
Certamente, é necessário ter compreendido a estrutura cole- zo. Mas ele pode enfrentar com segurança esse sacrifício, por-
tiva do organismo universal; a universal imanência de Deus, que conhece a estrutura do Sistema e sabe, por isso, o que se
pela qual tudo ―é‖; a natureza orgânica do Todo, do qual cada seguirá a esse sofrimento. Espiritualmente ligado ao centro
indivíduo é parte que vive em relação e das relações com as Deus, não vive apenas de limitada vida periférica. Pelo contrá-
outras partes, célula que morre quando se isola. É necessário rio, é justamente este seu sacrifício de dar irradiando a força
evoluir para sensibilizar-se ao ponto de perceber essa irradia- decisiva que abrirá janelas que o inundarão de sol. É este o difí-
ção do centro, Deus, que rege inteiramente o Sistema, até à sua cil passo para trás, o único que lhe pode permitir abrir as portas
periferia, onde nós, menos evoluídos, nos encontramos. É ne- da prisão. Esta negação de si próprio em altruísmo, na periferia,
cessário compenetrar-se de que não existe pobreza na infinita é uma afirmação para o centro Deus, isto é, uma mobilização
riqueza de Deus e de que os bens são ilimitados e constante- das forças de irradiação que esperavam essa sua atitude para
mente irradiados, sempre prontos a saciar qualquer possível poder inundá-lo. Porque é o ser livre que deve encontrar a cha-
necessidade. Deste oceano, o ser, no entanto, não poderá cap- ve e com ela abrir o mistério da evolução. E, assim, em um se-
tar para si mais do que lhe permite a sua capacidade receptiva, gundo tempo, ele será largamente recompensado e enriquecido
que é dada pela sua evolução, pela sua aderência ao Sistema, pelo seu empobrecimento, que, na realidade, se reduz a perdas
ou seja, pela aderência à Lei ou vontade de Deus. É, pois, ne- diminutas na zona periférica do sistema universal, na zona da
cessário que ele funcione de acordo com a Lei, agir com amor, matéria e das ilusões. Defrontamo-nos assim, em verdade, com
sabendo irradiar, dispondo-se a dar e aplicando assim a norma um sábio cálculo utilitário, que, diferentemente do outro, con-
evangélica do ―ama o teu próximo‖. duzirá à plena satisfação com segurança de êxito.
O problema está em saber acionar os impulsos do Siste- Eis o raciocínio desse tipo de homem. Dirige-se a Deus, di-
ma, de modo a pôr em movimento essa irradiação. Se souber- zendo: ―Senhor, eu dou, empobreço-me materialmente, mas,
mos abrir as janelas de nossa alma, seremos inundados por es- com isto, eu me torno instrumento que adere à tua lei, vivo se-
sa irradiação. Mas, para economizar o esforço de abri-las, fa- gundo as linhas de força do teu sistema. Para o triunfo do teu
zemos prudentemente, quando não confiamos, os nossos cálcu- amor eu sacrifico o meu pequeno eu. Tu sabes que agir assim
los utilitários, para nada arriscar, encolhendo-nos em um can- na periferia, onde me encontro imerso na matéria, significa
to, e assim permanecemos no quarto escuro e frio de nós mes- empobrecer até à morte. Mas eu não existo mais para mim,
mos, a disputar com o vizinho, embora lá fora tudo exista num isolado, mas na vida universal, em que Tu ―és‖. Eu não quero
exuberante jorrar de vida, o pouco de luz ou de calor que, mais a mim mesmo, mas somente a ti, em Quem eu vivo. Que-
mesmo assim, coa-se para o interior. Mas tal é o nosso mundo, ro a tua lei. Faço parte do teu organismo. Sou uma célula dele,
onde as maiores guerras se fazem para disputar o que já possu- uma tua célula. Tu és o meu eu maior, em que agora existo.
ímos de uma riqueza que é infinita, conseguindo apenas des- Então a minha morte não é mais possível. Compete a ti e à tua
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 167
lei impedi-la, para que a vida me seja dada, pois que ao meu IV. A QUEDA DOS ANJOS
fraco poder de defesa eu renunciei para seguir a tua lei de
amor. Não é possível que, para seguir-te, eu deva perder a vi- Concluída a precedente ordem de conceitos, abre-se dian-
da. Sei que esta tem fins eternos a alcançar e que eles devem te de nós uma outra visão, numa ordem de conceitos afins e
ser alcançados. Ela não pode perder-se ao acaso, dependendo consequentes, que o leitor encontrará em germe, primeira-
apenas da minha pobre defesa do momento. Seguindo-te, eu mente em A Nova Civilização do Terceiro Milênio, Cap. X –
ganho a vida. E se também morrer, não perderei senão a minha ―O Problema do Mal‖, e Cap. XIII – ―Problemas Últimos‖, e
vida menor, porque ressurgirei na tua vida maior‖. depois, no volume Problemas do Futuro, Cap. XV e XVI –
Assim se compreende o Evangelho de São João (Capítulo ―Deus e Universo‖.
XII: 24-25), quando diz: No capítulo anterior, havíamos explorado, sem desenvol-
―Na verdade, na verdade, vos digo que, se o grão de tri- vê-lo, este tema: ―A criatura é livre, podendo, pois, agir contra
go, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dá o Sistema‖. Aprofundemos aqui, como antes não pudemos fa-
muito fruto‖. zê-lo, essa tese, desenvolvendo-a e analisando-lhe todas as
―Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo consequências.
aborrece a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna‖. Como ocorreu essa monstruosa revolta de algumas células
A luta entre o evoluído altruísta e o mundo egoísta, que não do grande organismo-universo, as quais, ao invés de funcionar
se preocupa senão de espoliá-lo e explorá-lo, é terrível. A situa- harmoniosamente nele, puseram-se contra ele, rebelando-se?
ção é tal que se procura, por todos os meios, eliminar o benfei- Onde se encontra a primeira raiz dessa anarquia na ordem? Im-
tor, e isto exatamente por parte daqueles a quem ele desejaria portante questão que se vincula ao problema da gênese do mal,
fazer o bem. Poderosa é a resistência que o involuído opõe a da sua presença no mundo e da sua solução final.
quem procura fazê-lo evolver para a felicidade, e trágica é na Para compreender, observemos a estrutura do Sistema. Ela
Terra a posição dos benfeitores da humanidade: posição de se baseia em alguns princípios fundamentais como o egocen-
martírio! É como querer abraçar por amor um tigre: fica-se trismo e a liberdade. A criatura, parte integrante do Sistema, foi
despedaçado. Porém a vida é terrena só em parte e não se exau- constituída como um esquema menor do esquema maior, cujo
re senão do ponto de vista humano. O trabalho desses homens é centro é Deus, de acordo com o princípio já mencionado dos
missão e interessa também ao céu. Dado que à vida, se pouco esquemas de tipo único. Porém, essa dádiva de Deus, por quem
interessa o indivíduo, muito interessa a função que ele personi- a criatura fora feita à Sua imagem e semelhança, constituía um
fica, sobretudo a evolutiva, que torna esse indivíduo sagrado, poder muito perigoso se não fosse bem usado, pois continha em
quando então forças superiores intervém para protegê-lo no sa- germe a possibilidade de um transviamento, possibilidade que o
crifício, até que a missão seja cumprida e se dê o milagre. ser, exatamente pelos princípios do Sistema, deveria enfrentar
Então, aciona-se o movimento da irradiação, porque o ser com as suas forças. E as consequências, quaisquer que fossem,
não mais a mantém fechada em si, mas lhe faculta o fluxo, tor- deviam ser suas, pois significa responsabilidade em um sistema
nando-se-lhe um canal que permite fluir no universo, de criatu- de ordem e justiça, a consequência do princípio de liberdade.
ra em criatura, a divina linfa vital. E a irradiação está pronta a A quem objetar que um sistema perfeito não deve conter a
lançar-se onde a passagem é livre, mas a desviar-se de onde há possibilidade de erro, deve-se contestar que essa possibilidade,
obstrução. Assim, os homens altruístas se tornam sempre mais que não é absolutamente necessidade, está implícita nos princí-
instrumentos da Lei, que nutre cada vez mais esses seus canais pios supracitados, como sua consequência necessária, de modo
e os exalta, enquanto funcionam segundo a direção do seu sis- que, para suprimi-la, seria imperioso suprimir os princípios que
tema de forças. Tudo isto significa dar cada vez mais ampla- dão causa, cujo valor não se discute. É natural que, onde exista
mente, um despojamento crescente, que aterrorizaria o involuí- um ―eu‖ livre, seja também possível o mau uso da liberdade. E
do, mas, ao mesmo tempo, significa um nutrimento sempre nem por isso o valor desta decresce. De outra forma, não nos
mais vigoroso de forças. Ser irradiado significa sentar-se a uma encontraríamos em um sistema de liberdade, mas de determi-
lauta mesa de recursos ilimitados. E o Sistema é tal que, quanto nismo, no qual as criaturas não passariam de autômatos. Ora,
mais aumenta o sacrifício em dar, mais cresce o dom que se re- Deus não criou seres dessa espécie, mas sim criaturas partícipes
cebe, porque, com isto, sobe-se na hierarquia dos operários do das suas próprias qualidades. Dada a estrutura do Sistema, gera-
Senhor, com a conquista de poder e sabedoria crescentes. se uma cadeia de férrea lógica, que conduz dos princípios a es-
Eis a estupenda realidade que está além das trevas que ocul- sas consequências. A criatura deveria, pois, necessariamente
tam ao homem comum a verdadeira estrutura do Sistema. O encontrar-se ante a encruzilhada da escolha.
Evangelho concorda com tudo isto, concluindo pela norma do O ser, portanto, dada a sua estrutura e a do sistema em que
―ama o teu próximo‖, sem dela dar explicações racionais. Essa existia, deveria achar-se diante da possibilidade do erro. Em ou-
conclusão tem sua grande confirmação no mundo atual, que, tros termos, o ser passava por uma prova, por um exame, de cujo
não podendo compreendê-la, a considera uma utopia. Estas resultado dependeria a sua futura posição, por ele livremente es-
concepções aqui expostas pelo autor, obtidas por visão com o colhida. Ora, que o Sistema contivesse a possibilidade de um erro
método intuitivo, foram submetidas a controle durante quarenta não significa absolutamente que ele tivesse sido construído erra-
anos, usando o método experimental, sem que elas, nos fatos do ou fosse defeituoso. Tanto é verdade, que ele, como veremos,
por ele vividos, jamais encontrassem um desmentido. Se isto ti- de fato não se arruinou pelo erro cometido; pelo contrário, por ser
vesse ocorrido, teria sido gravíssimo, porque os fatos, ainda que perfeito, tinha capacidade de autorregeneração. O Sistema estava
apenas um, teriam desmentido o Evangelho. Muito se deve acima do erro nele possível e fora constituído para permanecer
pensar agora, quando o Evangelho, que parece utopia, torna, se íntegro, inabalável, para qualquer acontecimento. Por isso podia
realmente vivido, tangível a verdade, que não falha. permitir em seu seio uma possível violação e desordem, sobretu-
Horizontes novos e ilimitados, inexplorados continentes do do porque essa possibilidade tinha a função de aprovar o ser,
espírito, repletos de riquezas ignoradas, vastidões abismais de dando-lhe, segundo o princípio de justiça, caso superasse a pro-
infinito sobre os quais a alma se debruça em vertigem! O ho- va, o pleno direito de aquisição da sua posição de filho de Deus
mem ignorante não suspeita qual o futuro que o espera ali. somente depois de havê-lo merecido. O Criador exigia da criatu-
Além do infinito astronômico, existe o maior infinito espiritual. ra uma livre aceitação do Sistema, um espontâneo reconhecimen-
E, nesta Terra, grão de areia cósmica, por um pouco de espaço to das recíprocas posições nele, para então poder conceder ao ser
e de bens, o homem, centelha divina, com que ferocidade e es- uma livre coparticipação em Sua obra, como o Sistema requer, o
tupidez mata, sem saber quem é e no que poderá tornar-se! que seria impossível com uma criatura escrava ou um autômato.
168 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
A prova da livre escolha não foi, pois, um capricho, um aca- momento, em que a criatura é quase chamada, com seu consen-
so ou um erro do Construtor, mas fez parte integrante da lógica timento, a colaborar. Parece enorme, absurda, tanta bondade.
do Sistema, como necessária consequência dos princípios que o Mas essa é a estrutura do Sistema; assim quer o amor de Deus.
constituem. A estrutura do edifício de conceitos e forças do Sis- Eis o ser diante de Deus. Apenas criado, ele ainda não falou.
tema, a natureza do Criador e a da criatura, os fins a atingir além Deve dizer agora a sua primeira palavra, que Deus lhe pede em
da prova, tudo isto conduzia à necessidade de que a criatura de- resposta ao Seu ato criador, a palavra decisiva. Deus lhe fala
vesse encontrar-se só e livre na encruzilhada da escolha. A pos- primeiramente: ―Olha, ó criatura, o que há diante de ti. Eu sou o
sibilidade de erro estava implícita no Sistema, não como uma Pai que te criou. Quis fazer-te da minha própria substância, um
imperfeição, prelúdio de fracasso, mas como um elemento defi- ‗eu sou‘, centro, livre como ‗Eu Sou‘. Fiz-te grande com a minha
nido e desejado para determinados fins, como sua força, e não grandeza, poderoso com o meu poder, sábio com a minha sabe-
como sua fraqueza. Veremos, efetivamente, que esses fins são doria. Fiz assim, espontaneamente, por um ato de amor para con-
igualmente atingidos também por outra via e que a obra da cria- tigo, minha criatura. A este meu ato falta somente um último re-
ção permanece igualmente como um triunfo no plano de Deus. toque para ser perfeito, e ele deve partir de ti. Espero-o de ti, que
Os dois princípios acima aludidos, egocentrismo e liberda- o farás com plena liberdade. Ofereço-te a existência como um
de, comuns também às criaturas, faziam delas tantos menores grande pacto de amizade. Ele é baseado no amor com que te criei
―eu sou‖, semelhantes a Deus, como tantos deuses menores em e a que deves o teu ser. Podes aceitar ou não este meu amor. To-
função de Deus. Deus quis a criatura assim, feita à Sua imagem do pacto é bilateral, toda aceitação de amor deve ser espontânea.
e semelhança. Nem o ser Dele saído poderia ser de natureza di- É absurda uma imposta correspondência de amor. Escolhe. Vê o
versa da Sua. Em um sistema de esquema de tipo único, a cria- que Eu já fiz por ti. Eu te precedi com o exemplo. Tu me vês.
tura não podia deixar de ser um ―eu sou‖, centro autônomo e li- Olha e decide. Qualquer pressão minha fará de ti uma criatura
vre, como é o Criador. Então, estando não só a estrutura do Sis- escrava, e Eu te quis livre, porque deves assemelhar-te a mim.
tema mas também a natureza da criatura baseadas no princípio Para que Eu pudesse amar-te como quero, devias ser semelhante
da liberdade, tudo quanto dissesse respeito à criatura não podia a mim. Não se pode pedir amor a um escravo, mas somente obe-
ter curso sem o seu consenso. diência imposta, o que está fora do meu sistema e seria a sua in-
Ademais, existia um terceiro princípio: o amor, fundamento versão. Vem pois, a mim, corresponde ao meu amor, que te cha-
do universo espiritual, mercê do qual Deus não é egocêntrico ma e te atrai. Confirma a minha obra com a tua aceitação. Por tua
senão para irradiar em amor. Assim sendo, o sistema de Deus livre escolha, consente, entra e coordena-te no meu sistema, do
não pode basear-se na coação, assim como, em virtude do prin- qual Eu sou centro. Subordina o teu ―eu sou‖ menor ao ―Eu
cípio de liberdade, não pode basear-se no determinismo, mas Sou‖, o Uno-Deus, supremo vértice que rege o todo. Reconhece
apenas na adesão espontânea. Deus, por ser amor, não pode que- a ordem da qual Eu sou o chefe. Promete obediência à Lei, que
rer a criatura forçadamente prisioneira do Seu amor. Ele limita- exprime o meu pensamento e vontade. Por amor te peço, pois
se a atraí-la. Eis uma nova característica do Sistema, que não que és meu filho, que me retribuas o amor com que te gerei‖.
pode admitir da parte da criatura senão uma correspondência de Após essas palavras, por um instante ficou suspensa a respi-
caráter espontâneo, sem a qual não há amor. Não é possível gra- ração do universo, enquanto as falanges dos espíritos criados
vitar-se forçadamente, em direção a Deus, por amor. Assim, to- oscilavam em cósmicas ondulações. O ser olha e pensa. Ele
do o Sistema, também por esse principio, impunha a livre esco- sente o poder que lhe vem do Pai, uma imensidade que o torna
lha, qual passagem obrigatória para valorização do ser, que de- semelhante a Deus. É livre, como um ―eu sou‖ autônomo, se-
via, antes de ser aceito, conquistar plenamente esse direito, de- nhor do seu sistema, das suas forças e equilíbrios interiores. A
monstrando livremente haver compreendido, aceitado e querido sua própria estrutura, permeada de divina grandeza, impele-o a
corresponder ao amor de Deus. Mesmo sob esse aspecto, a pro- repetir em sentido autônomo, separatista, o egocentrismo que
va corresponde à perfeita lógica, pois que o amor, para ser tal, ele continha do ―Eu Sou‖ máximo: Deus.
não pode deixar de ser espontâneo e recíproco. Estar o Sistema Mas do outro lado há uma força oposta, antiegocêntrica,
fundamentado no amor é outro fato a implicar que ele deve ba- tendente a neutralizar a primeira: o amor. Ele se manifesta co-
sear-se, também, na liberdade. Liberdade e amor são conexos. mo silenciosa atração que se impõe por bondade. Quem com-
Este pressupõe aquela. Um sistema que não se fundamentasse na preendeu esse apelo, verdadeiramente compreendeu Deus.
liberdade não o seria no amor. Os princípios que regem o uni- As duas forças, assim diversas, movem as falanges dos espí-
verso são estreitamente correlatos. Todos eles se podem reduzir ritos, que as examinam e pesam. Belo é o amor, mas acarreta
a um só, do qual todos estes derivam: o amor. Foi por amor que uma renúncia cheia de deveres, uma renúncia à plenitude total
Deus quis a criatura egocêntrica, feita à Sua imagem e seme- do ―eu sou‖; implica obediência, o reconhecimento de uma po-
lhança, partícipe das Suas próprias qualidades. Foi por amor que sição subordinada. Eis o perigo tentador: exagerar, em seu juí-
Deus quis a criatura livre, a fim de que ela livremente compre- zo, a própria semelhança com Deus e admitir uma pretensão de
endesse e retribuísse esse amor. identidade. Ao invés de seguir o caminho do amor, coordenan-
◘◘◘ do-se com obediência na ordem, tomar a via oposta. Desejar
Entendidas a necessidade, a lógica e a utilidade da prova, coordenar o próprio ―eu sou‖, reforçar sua autonomia, fazendo-
observemos como se comporta o ser neste momento supremo. se isoladamente centro do Sistema com sua própria lei. Imitar
Eis a criatura, substancialmente espírito, centelha de Deus, Deus somente para superá-Lo. Responder ao doce apelo de
apenas destacada do seio do Pai, que a gerou. Ela fita o Centro, amor com um desafio: ―Não Deus! Eu, criatura, sou maior do
do qual derivou por ato de amor, a que deve a sua existência. A que Tu. Eu sou Deus, não Tu!‖.
estrutura do Sistema impõe uma resposta sua a esse ato, a cor- Então, muitos ―deuses‖ menores, feitos de substância divi-
respondência de um recíproco ato com que essa criatura, por sua na, livremente decidiram tornar-se ―deuses‖ maiores, iguais a
livre aceitação, confirme ou renegue como queira, permaneça no Deus. A escolha foi feita por eles, e o universo, abalado até aos
Sistema ou dele se desligue, ponha-se dentro ou fora dele, agin- fundamentos, que estão no espírito, estremeceu, e parte dele
do livremente e definindo assim a sua posição. O Criador respei- desmoronou, involuindo na matéria. Mas não foi assim para to-
ta tanto a liberdade que Ele deu à criatura, fazendo-a à Sua ima- dos os seres. A balança em que foram colocados os dois impul-
gem e semelhança, que submete a Sua obra de Criador a essa sos, para uma outra multidão de espíritos se inclinou, ao invés,
criatura, como ocorre no consentimento necessário de duas par- para o lado amor, oposto ao da rebelião por orgulho.
tes num contrato bilateral. Somente quando a livre criatura tiver Eles reconheceram a superioridade de Deus e se fundiram
dito: ―Sim‖, a criação estará completa, aperfeiçoada até esse na Sua ordem, tornando-se Seus colaboradores, livremente
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 169
aceitando-a e compreendendo-a. Os primeiros não quiseram re- V. ORIGEM E FIM DO MAL E DA DOR
conhecer a Sua supremacia; destacaram-se da Sua ordem e se
transformaram em demolidores. Não quiseram aceitá-la e cor- Estes conceitos não estão fora de nosso mundo. O universo,
responder. Seu chefe foi Lúcifer. Precipitaram-se, assim, para repetimo-lo, é feito de esquemas de um único tipo, e, por isso,
fora do Sistema, em posição invertida, que lhes será a caracte- encontramos a cada momento e em todo ponto o esquema
rística de toda a existência. maior no menor, embora adaptado aos casos particulares. Tudo
É certo que a queda foi devida à falta de conhecimento das ecoa e se repete no universo. O eco desse primeiro ato do ser
consequências da revolta, mas também é certo que a criatura não se extinguiu. Ele revive nas formas da vida, que continua a
não poderia ser onisciente, igual a Deus. Porém, se ela igno- se desenvolver pela via então iniciada e traçada. O denomina-
rava, pode-se objetar, então, como lhe pode ser imputada a do pecado original, a ingestão do fruto proibido da árvore do
culpa de haver caído? Deus deveria tê-la dotado do conheci- bem e do mal, não simboliza o ato sexual, necessário à vida,
mento suficiente para compreender antecipadamente as con- mas a degradação do amor espiritual em amor carnal, do qual
sequências da desobediência, de modo a não incidir nela. A deriva apenas uma gênese falsa, destinada a acabar na morte.
tal objeção pode-se contrapor que a criatura assim teria segui- Esse pecado encobre um fato muito mais central e mais grave
do Deus unicamente no seu egoístico interesse, a fim de fur- – a revolta contra Deus. Ele foi efetivamente instigado por Sa-
tar-se a um dano, e não por amor. Ora, um ato de aceitação tanás, o anjo decaído 4 que pretendeu fortalecer-se com a con-
tão fundamental no Sistema, não poderia basear-se num inte- quista de novos prosélitos, ligando-os ao seu sistema de rebel-
resse nascido do egoísmo, isto é, em um princípio antípoda dia. Assim, o pecado de Adão não constitui mais do que uma
àquele que rege todo o Sistema, como é o amor. Ele deveria reprodução especial do processo de degradação já iniciado,
resultar de uma espontânea adesão por amor, ao compreender uma consequente queda do homem, arrastado por Satanás na
a bondade do Criador. Como é fundamental no Sistema o queda dos anjos, uma imitação que prolonga o fenômeno à
princípio do amor, prova-o o fato de o próprio Deus, no seu guisa de desintegração atômica em cadeia.
aspecto imanente, ter seguido o sistema desmoronado para re- Os motivos da grande queda sobrevivem a todo momento
construí-lo, jamais abandonando a criatura, por mais injusta e na Terra. Eles se inseriram na natureza do ser, que assim tor-
rebelde que fosse. E Deus não lhe pedia senão uma prova de nou-se corrompida e falaz. A gênese do mal e de nossas dores
amor! Os espíritos obedientes a deram, ainda que, em conhe- deve ser encontrada no desmoronamento tremendo que se se-
cimento, sendo iguais aos espíritos caídos. guiu à revolta, derrocada da qual agora devemos sair, tudo re-
Tiveram, então, início no ser decaído duas vias opostas, que construindo em nós e em nosso derredor, com as nossas mãos,
o distinguem. De um lado, o orgulho, o mal, a dor, as trevas, o empenhados no grande trabalho que se chama evolução. Assim,
caos e, consequentemente, a criação e vida na matéria. Do ou- pois, o fenômeno da queda dos anjos não é estranho à nossa vi-
tro, a obediência, o bem, a luz, a ordem e a vida perfeita do pu- da, nem está distante dela, mas é atual. O fundamental motivo
ro espírito. A queda é a involução, da qual se sobe redimido pe- psicológico de desordem continua vivo em nossa forma mental.
lo esforço da evolução, absorvendo o mal em dor, edificando-se Todos compreendemos o que representa a Lei e que seria lógi-
pelo sofrimento com a experiência da vida, assim desmateriali- co, justo e útil segui-la, quer no interesse coletivo, quer no in-
zando-se e espiritualizando-se na ascensão ao encontro de dividual. Apesar disso, sentimos a tentação de rebelar-nos, de
Deus, que não abandonou o ser decaído, mas apenas lhe disse: ludibriá-la, procurando atalhos que, por via mais breve, nos
―Destruíste o esplêndido edifício. Contudo continuas a ser meu conduzam aonde desejamos chegar. Mas ainda aqui, sem dúvi-
filho. Reconstruirás, porém, tudo com o teu esforço‖. da, obedecemos a uma lei da vida, a lei do mínimo esforço, que
◘◘◘ deve ser seguida com inteligência, levando em linha de conta a
Usamos neste capítulo a expressão ―queda dos anjos‖ porque estrutura do Sistema, em que todo ―eu sou‖ só se valoriza em
tradicional e de mais fácil compreensão. Todavia, é bom esclare- função do ―Eu sou‖ centro – Deus. E, assim como o primeiro
cer ser ela uma expressão antropomórfica, que reduz o fenômeno anjo rebelde, o homem hodierno, centralizador egoísta de todo
às dimensões inferiores da matéria. Ainda que acanhado, o an- o seu ―eu‖, preocupado somente com o triunfo próprio, separa-
tropomorfismo constitui uma necessidade, porque, embora con- damente realiza o mesmo processo de reviravolta do sistema,
tenha o defeito de desfigurar o real aspecto do fenômeno, tem o com a consequente inversão de si mesmo, terminando nas mor-
valor de aproximá-lo de nosso mundo, tão diferente. Cumpre- tes das guerras, na destruição e na dor.
nos, pois, aqui realçar que a expressão ―queda dos anjos‖ repre- Somos assim levados a nos valorizar como ―eus‖ indepen-
senta uma redução da realidade, na medida limitada da psicologia dentes, e não como ―eus‖ em função orgânica do Todo. É a
humana. Na verdade, o fenômeno ocorreu em planos de existên- exata repetição da primeira revolta.
cia tão elevados, que para nós se situam no superconcebível; di- A conduta dos eleitos é justamente a oposta, de completa
mensões onde as nossas representações de espaço e de tempo não adesão à vontade de Deus. Sua primeira característica é a obedi-
têm mais sentido. A imagem, pois, que tivemos de escolher re- ência à ordem. Este terrível instinto do ―eu‖, que se deveria con-
presenta uma mutilação, e não uma expressão da realidade. trolar pela obediência à lei de Deus, mas que, ao contrário, se
Se devêssemos explicar a um homem inculto um conceito deixa livremente explodir em revolta, não é também para o ho-
abstrato, um processo matemático, um desenvolvimento filosó- mem a causa principal de tantos males? E, assim como nas mãos
fico ou coisas semelhantes, seríamos constrangidos, se quisés- dos primeiros rebeldes se desmoronou a ordem no caos, nas
semos nos fazer entender, a apresentar tudo revestido de formas mãos do homem tudo continua a fragmentar-se, repetindo-se no
materiais, a usar expressões bem concretas, para nos adequar à tempo o mesmo processo originário, com o mesmo resultado de
psicologia desse homem, a ponto de os conceitos originais fica- destruição. Por isso, caso se pretenda novamente a elevação à
rem deformados, tornando-se quase irreconhecíveis. ordem, reconstruindo-se na unidade do Sistema, é imprescindí-
Mais verdadeiro é esse fato relativamente à ―queda dos an- vel saber dominar este ―eu‖ egoísta e prepotente, enquadrá-lo na
jos‖, em face da grande altura em que se deu o fenômeno e sua ordem, coordenando-lhe as funções no Todo; é necessário retifi-
distância de nós. Era, porém, necessário adaptá-lo à mente hu- car o seu inicial estado de revolta, mantendo-o na obediência ao
mana, caso se quisesse dar uma expressão ao fenômeno, deno- plano de Deus, porque só assim, em obediência à Sua ordem, la-
minando-o ―queda‖. Mais adiante será explicado o seu signifi- boriosamente, é possível unir de novo, uma a uma, as partes do
cado de desmoronamento de dimensões a partir de um ponto edifício desmoronado, reconstruindo-o na sua grandeza.
que, estando situado em planos altíssimos, na sua substância Este esforço exigido para a reconquista do paraíso perdido é
foge completamente à nossa compreensão. justamente a condenação da nossa humanidade. Justa condena-
170 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ção, mas também salutar remédio, pois é a via de salvação para mo; daquela dor de que o próprio Deus quis participar, inte-
a criatura, a quem o amor de Deus, apesar da ingratidão dela, grando-se por amor às próprias criaturas. Foi assim que o Pai
oferece a possibilidade de redenção. enviou Cristo à Terra, para que, com o seu sacrifício, desse à
No fundo da natureza humana está a tragédia da queda, em humanidade o maior impulso à redenção. Primeiro, a revolta,
razão da qual a alma, centelha divina, desceu para a ilusão da origem do mal. Depois, a dor do mundo, seu meio de recupe-
matéria e dos sentidos, num ambiente ingrato, onde a conquis- ração; o auxílio do Alto neste árduo caminho; a redenção ob-
ta do progresso lhe custa esforço permanente; num corpo vul- tida pelo sacrifício, que Cristo nos ensinou. Estes conceitos,
nerável a tudo e com mente acanhada, com o que, aos poucos, unidos em cadeia, confirmam estas teorias.
terá de buscar o conhecimento que antes possuía do pensamen- A humanidade percorre atualmente o caminho de retorno.
to de Deus. Daí o tormento da insaciabilidade, que revela no Só assim se pode compreender o conceito de redenção e o sig-
instinto humano o anseio pelo grande bem perdido; daí o afã nificado da vinda e do sacrifício de Cristo na Terra, motivos tão
pela maceração evolutiva sob o contínuo martelar da dor, a ân- centrais na história da humanidade. Só assim se pode compre-
sia de criar sobre as areias movediças de um mundo em que ender como a dor salva e o sacrifício redime e por que era ne-
tudo caduca. Eis a razão de ser da ignorância a vencer com o cessário que Cristo sofresse. O Seu exemplo nos indica, à evi-
esforço do pensamento, com as descobertas científicas, com o dência, que a via de retorno não se pode percorrer senão dessa
sacrifício dos mártires e com o amor de Deus, que, manifes- forma. Com a sua paixão, Cristo quis, diante do Pai, tomar so-
tando-se pela revelação, vem ao nosso encontro inspirativa- bre os ombros o peso da correção do primeiro erro, a revolta.
mente, permitindo que levantemos os véus do mistério. Eis Por aqui vê-se quanto Deus continua a mostrar-se ativo e pre-
Cristo, o mais perfeito filho de Deus, fazendo-se homem em sente na história do mundo.
nossa dor para nos ensinar a via da redenção. A psicologia que enxerga, não raro, no mal e na dor, indí-
Assim tudo se explica: a luta pela seleção, as guerras, as en- cios de um sistema falido, um erro de que pode ser acusado o
fermidades, as desgraças, o ódio, a mentira, todas as traições de Criador, como único responsável, nasce justamente do ponto de
que se entretece a vida. O nosso mundo assumiu o aspecto que vista representado pelo ―eu sou‖, que, colocado em posição re-
revela a estrutura do sistema desmoronado. Cada individualiza- versa, só desta forma pode ver as coisas. É psicologia corrente,
ção reproduz a originária inversão, pela qual todo ―eu sou‖ está dominante na vida comum, mercê da qual cada um procura ati-
inquinado do princípio oposto, negativo, destruidor do ―eu não rar a culpa, a causa de qualquer mal, nos outros, mas jamais em
sou‖, que tudo corrompe. Com ele, o incorruptível fragmentou- si mesmo. O homem conserva o seu originário instinto irrefreá-
se no corruptível. O princípio originário permanece, mas false- vel para a alegria, mas o faz em um sistema invertido, que, as-
ado, porque não mais oferece correspondência com os antigos sim, só lhe pode oferecer a dor. Não compreende o porquê, mas
valores. Foi a revolta originária que semeou no ser esse germe sente o tormento desta negação. Desmembrado da causa remo-
maléfico que continua a viver da sua vida. E assim, em nosso ta, irrita-se inutilmente contra as causas próximas, incapaz de
mundo, a negação está infiltrada em toda afirmação, a vida se enxergar mais longe. Compreende apenas que a dor fere, e agi-
casou com a morte, a enfermidade aninha-se em todos os cor- ta-se confusamente nas trevas em que caiu. Procura e não en-
pos sãos, a destruição é o guia de toda construção, o mal ofende contra, ignorando completamente que a salvação está na ascen-
o bem e Satanás se introduz por toda a parte, procurando trair são. É constrangido a evoluir, tangido pelo destino em passa-
Deus. O motivo da queda dos anjos e do pecado original repete- gens obrigatórias, preso à dura experimentação da vida, cheia
se a todo instante entre nós, em nossa vida cotidiana. Não se de alegrias, a fim de atraí-lo para o Alto, e carregada de dores, a
trata, portanto, aqui de elucubrações filosóficas relativas a fatos fim de afugentá-lo das regiões inferiores. Ele desejaria adaptar-
distantes, que não nos dizem respeito. Só a evolução, a ascen- se a este inferno para repousar, mas não lhe concedem tréguas,
são da matéria ao espírito, pode cicatrizar a grande ferida, de- de um lado, o desejo insaciável de alegria e, de outro, os inces-
sembaraçar o ser do cerco maléfico que desejou. Mas isso só se santes golpes de dor. É imperioso evolver.
completará após um caminho longo e doloroso. Só desta manei- A sensação de falência do Sistema é dada não somente pela
ra se explica o motivo de nossas posições atuais, de que só po- visão às avessas, seguida de uma posição invertida, mas tam-
demos evadir-nos subindo, embora sofrendo. Eis as origens da bém pela real imersão em um mundo invertido, satânico, sensi-
dor e do mal. O semblante da criatura traz o estigma funesto. velmente mais próximo deste mundo material do que do outro,
Ela continua a sangrar da primeira colisão com as colunas do real, divino. Os esforços para subir, muito comumente, termi-
Sistema. O ser decaiu, mas as colunas da Lei não se abalaram. nam no retrocesso de alguns passos, em virtude do terreno in-
Permaneceu intacta, e a dor tornou-se o sinal da alma rebelde, forme, movediço, no qual o pé não encontra apoio e a vontade
continuando a recordar-lhe a grande tragédia, que desejaria es- se despedaça. É o esquema da primeira queda que retorna em
quecer, abandonando-se ao originário instinto de felicidade, cada decaída subsequente, tendendo a repetir-se ao infinito. E
ainda vivo. Mas, entre a felicidade e ele, jaz uma nuvem que só então se exclama: ―A redenção do mal é utopia, a dor é inútil,
poderá dissipar-se através de uma longa luta de reintegração. jamais galgaremos o monte da perfeição‖. E se conclui: ―É inú-
Desejaria repousar, mas a dor o aguilhoa e o chama à dura til tentar. O Sistema faliu definitivamente. A obra de Deus é
realidade, e então, só então, ele desperta e indaga – por quê? mal feita, porque continha um insanável erro de construção!‖.
Por que nascer, existir, sofrer? Quem goza está bem, nada Mas, se o homem soubesse ouvir a voz de Deus, teria a
pergunta, continuando adormecido na inconsciência. Assim, resposta: ―Sim, criatura, podes pecar e negar à vontade, pois
pois, após a sua gênese, a dor desempenha a função de ins- que és livre. De qualquer forma, entretanto, alcançarás o triun-
trumento de evolução. A própria culpa gerou o remédio; a en- fo do bem e do meu amor, isto é, a realização do meu plano.
fermidade deu nascimento à sua medicina. A dor, oriunda da Poderias ter preferido, como o fizeram tantos espíritos, a via
revolta, esmaga e humilha, induzindo à obediência à Lei e, as- curta da livre aceitação, encontrando-te agora na minha ale-
sim, curando o ser. Dor implacável, mas salutar, que os invo- gria. Preferiste o caminho mais longo. Não importa. Desejaste,
luídos amaldiçoam, porque não lhe compreendem a função assim, a gênese do mal e da dor, fazendo delas a tua triste he-
criadora, e que os santos abraçam, não por insano masoquis- rança. Mas a mim chegarás da mesma forma. O resultado final
mo, mas porque sabem que ela significa a escada pela qual se não se altera por isso. Continuo o centro do Todo, e tu não te
sobe. É salutar o imperativo que impele ao trabalho benéfico evadiste do Sistema, porque nenhuma evasão é possível. Tu te
pela reconquista do paraíso perdido. Falamos também da dor inverteste, e não o Sistema. Todavia permaneces meu filho e
de todo universo, e não apenas da Terra; da dor cósmica, de endireitar-te é o que procuro, estimulando a livre criatura com
que a humana dor terrena não passa de um átomo em um áti- o uso de dois meios: a dor e o amor.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 171
―Nada está perdido. Podes reconquistar a antiga posição. o que nos mostra o esquema universal do fenômeno. A morte se
Mas deves sofrer, o que não é apenas justo, mas igualmente be- manifestaria pela anulação do indivíduo que quisesse permane-
néfico, porque, sofrendo, compreenderás. A dor te abrirá os cer sempre rebelde, isto é, pela sua expulsão do Sistema, ou se-
olhos, uma longa e dura experimentação te constrangerá, através ja, para o nada, posto que o Sistema é o todo. A cura é repre-
de muitas provas, a te reconstruíres qual eras antes que te demo- sentada pela reentrada do ser no Sistema (conversão ao bem).
lisses na queda do teu ser. Minha bondade te oferece, na evolu- Uma das mais fortes razões pelas quais o mal e a dor, por
ção, uma via de redenção do mal desejado e de evasão da dor. fim, têm de se anular é dada pelo fato de que eles nasceram jus-
Será duro, e não terás outro caminho, se quiseres sair do teu es- tamente de uma exagerada superestimativa, por parte dos espíri-
tado. Voltarás a percorrer em ascensão o que percorreste na des- tos rebeldes, do princípio divino do ―Eu sou‖. Foi exatamente
cida. Bem mereceste, ao te rebelares, este açoite em tuas carnes, esse exagero que, pela lei de equilíbrio, inerente ao Sistema,
e Eu o permito para que o teu espírito ensombrado desperte. produziu como reação uma contração desse princípio no oposto
―É para o teu bem, porque te amo e te quero ver feliz ama- do ―eu não sou‖, isto é, uma limitação na negação, ou inversão
nhã. Primeiro entenderás a lição da dor, para poder fugir dela. do bem em mal, da alegria em dor. Ora, insistir em tal via de ru-
Quanto mais tardares em compreendê-la, tanto maior será a sua ína significa marchar cada vez mais contra o princípio vital que
duração. A tua rebelião à minha ordem aumentará em propor- rege o próprio eu, isto é, caminhar contra si mesmo; significa o
ção à intensidade da pena. Continuas no Sistema, do qual Eu suicídio completo do ser. Será possível que ele pretenda avançar
sou o centro e no qual represento a alegria suprema do ser. Na sempre em tal caminho de autodestruição, negando a si próprio e
minha ordem está implícito que rebelião significa dor, e esta a própria vida, que representa o seu interesse máximo? Será pos-
tanto será maior quanto mais de mim te afastares. sível que um ser, baseado no princípio do ―eu sou‖, queira retro-
―Meu outro meio é o amor. Com ele te atraio sem cessar, ceder até renegar-se no não-ser? Poderá resistir uma lógica que
incitando-te a refazer o caminho para chegares a meus braços, se anula avançando para o absurdo? A existência é dada pela
neles repousares e te alegrares. É por esse motivo que te ofere- própria natureza do princípio do ―eu sou‖, que não pode vir se-
ço todos os auxílios possíveis para instruir-te por meio de espí- não do princípio positivo: Deus. Então, chegaríamos à completa
ritos superiores, meus operários no Sistema, que, com a palavra inversão também da lógica em extremo absurdo, em que a má-
e o exemplo, te indicam as vias da redenção. Compelido pelo xima realização de Satanás e, com ele, do mal e da dor, consiste
impulso negativo, tangido pela dor e atraído pelo impulso posi- em sua anulação. Uma vez que a vida só existe em Deus, quem
tivo, onde há alegria, não podes resistir à convergência destas é contra Ele, se quiser sobreviver, deve retornar a Ele.
duas forças. Como, de outro modo, induzir uma criatura livre, Mal e dor não podem ser eternos por uma outra razão tam-
mas cega, a reencontrar o próprio bem?. bém. Entre as ideias de mal e de eternidade há uma contradição
―Quis, assim, tornar quase fatal a tua salvação, sem jamais que não lhes permite a coexistência. A eternidade é alguma coi-
violar a tua liberdade. Mas, ainda que tu, no caso extremo, sa qualitativamente diversa do tempo, situada nos antípodas. Ela
quisesse, contra o teu interesse, o absurdo do teu prejuízo; não é um prolongamento de um tempo que, embora avançando,
ainda que, com inflexível revolta, quisesses a tua dor eterna; sempre está sujeito à duração. É um tempo imóvel, que não anda
mesmo diante da tamanha loucura de assim desejares para e jamais passa. É um não tempo. E o que é o tempo, senão um
sempre, também neste caso o Sistema perdura intacto e o meu produto do desmoronamento, um fracionamento do Uno, o imó-
amor triunfa. O edifício erigido pela rebelião contra mim será vel em fuga no transformismo? Com a queda, a eternidade, uni-
anulado até o último fragmento. E tu, criatura ingrata, se qui- dade indivisa, se faz tempo e o espaço, fração do infinito. O
seres persistir absolutamente na negação, caminhando de dor tempo existe somente como medida do transformismo (involuti-
em dor crescente, procederás com as tuas próprias mãos à tua vo–evolutivo), cessando quando este termina. Então, a fração
autodestruição, desaparecendo assim em tua negação final, cindida reconstitui-se em unidade no eterno, o finito no infinito;
como quiseste, no ―não ser‖. Anular-te é o meu último ato de a eternidade, despedaçada no tempo, se refaz no Uno, imóvel,
bondade e piedade para contigo, é o que tu chamas a minha integro, indiviso, e nele a corrida do transformismo, lançada em
vingança com o inferno eterno‖. busca da perfeição, se detém diante da perfeição atingida. O
Assim poderia falar a voz de Deus a quem soubesse ouvi-la, tempo, assim, volta a ser imóvel, sem mais transformismo, e se
pois, no final dos tempos, tudo se realizará plenamente, como faz eternidade. Com a evolução, ao passar da matéria à energia e
Deus quis. A revolta dos espíritos das trevas não terá passado desta ao espírito, vai-se tornando cada vez mais evidente o avi-
de um episódio impotente a perturbar a integridade do sistema zinhamento desta fusão final, paralelamente a uma progressiva
perfeito. E, como Deus o quis no princípio, Ele resplandecerá libertação do domínio do tempo fracionado até aos fenômenos
no fim, no triunfo do bem. O dualismo bem-mal em que hoje do pensamento, que são quase independentes dele. Pode-se dizer
está dividido o universo, como desvio transitório, e não como que ele existe antes e além do tempo, tanto que lhe escapa. E,
estrutura do Sistema, será no fim reabsorvido no monismo ori- como o tempo é relativo ao fenômeno particular, quanto mais
ginário, que a cada momento permanece só relativamente des- evoluído é este, tanto mais se liberta dele.
pedaçado, e o Uno triunfará. O mal e a dor, filhos da revolta De tudo isto se conclui que o tempo faz parte do sistema
contra Deus, por orgulho, não têm poder para fazer desmoronar desmoronado, do qual também fazem parte o mal e a dor. De-
o Sistema, mas significam apenas uma doença curável, que o vemos, pois, enfileirar de um lado as características do sistema
próprio Sistema sabe sanar. Doença somente do aspecto ima- perfeito, como a eternidade, o bem, a alegria; e de outro lado as
nente do Uno e que Ele, do seu polo oposto, observa e cura. propriedades e produtos do desmoronamento, como o tempo, o
Tudo permanece absolutamente perfeito, ainda quando não mal, a dor, aferíveis somente no sistema de estado imperfeito.
possamos observar senão a imperfeição em que estamos imer- Eis por que, entre mal, dor e eternidade, nada pode haver em
sos. Permanece perfeito, como o exigem a lógica e a razão. comum, porquanto existe entre os dois primeiros e o último uma
É evidente que, em um sistema gerado pelo amor e baseado inversão de posição que os mantém inexoravelmente separados,
neste seu princípio central, construído de bem e para a alegria, situando-os nos antípodas, em dois sistemas opostos. Cada coisa
o mal e a dor não possam ser eternos. Uma sua afirmação defi- devendo permanecer no seu sistema, o mal e a dor não podem
nitiva, ainda que em ínfimas proporções, significaria a falência entrar em conexão a não ser com o tempo, que passa, com o re-
do sistema de Deus. Mal e dor não constituem senão o seu as- lativo, com o limitado, características do Anti-Sistema. E o bem
pecto patológico, que não se pode tornar eternamente crônico, e a alegria não podem ligar-se a não ser com a eternidade, o ab-
sem resolver-se ou com a morte do enfermo ou com a sua cura. soluto, o infinito. Por isso mal e dor não podem ser eternos. Eles
O que acontece, em escala menor, em nossa saúde física, repete só se podem ligar com o tempo, sendo, como este, produtos do
172 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
desmoronamento, isto é, uma contração no limite do que, no es- po. É trágica a nossa posição a meio caminho. Sentimo-nos su-
tado perfeito, foi bem, alegria, eternidade. focar pela estreiteza da prisão de nosso egoísmo, mas rompê-la
Como se vê, tudo se enquadra em perfeita logicidade. É as- nos parece a morte do ―eu‖, e desejamos, portanto, reforçá-la.
sim que o mal se apresenta encerrado nos limites do tempo, Mas a vida só pode estar no retorno à circulação do Todo. Esse
acuado pelo transformismo, que tende a corrigi-lo, transfor- egoísmo nos mata. Assim, para podermos desfrutar a vida e nos
mando-o em bem. Por isto, o mal, dada a sua tendência em expandir, é imperioso que nos evadamos, que despedacemos a
conservar-se como é, tem pressa, pois sente a sua instabilidade, prisão em que sufocamos. É imprescindível, pois, encarar o sa-
a sua posição de desequilíbrio, de exceção, ao passo que a re- crifício do ―eu‖, e, para alcançar a alegria de uma vida maior,
gra do sistema incorrupto é uma posição de equilíbrio, de esta- importa enfrentar a dor, que quebra o egoísmo protetor do ―eu‖.
bilidade: o bem. Este, ao contrário, não tem pressa, não joga Para viver, é necessário, em parte, morrer, ou seja, é necessário
com efeitos imediatos como faz o mal; prefere na maioria das destruir-se como cidadão do Anti-Sistema, para ressuscitar ci-
vezes aguardar para realizar-se, concedendo ao mal a primeira dadão do Sistema. Eis por que Cristo disse que conservará a vi-
vitória, porque sabe que é, ao contrário deste, senhor do tempo. da pela eternidade, não quem a ama, mas quem a odeia neste
Assim, também as estratégias das duas forças, bem e mal, co- mundo. O nosso egoísmo tende a manter o estado de contração
mo é natural, são opostas. A estratégia do último é contraída, em que o Sistema ruiu. Do lado oposto, o amor vota-se a des-
curta, imediata, complicada, concreta. Já a do bem é ampla, a truir este separatismo negativo, para lançar-se no universal flu-
longo prazo, lenta, linear, de finalidades elevadas, por isso as xo do Todo e novamente nos colocar no originário estado orgâ-
suas energias são mais poderosas, movem-se mais calmas, po- nico, em que tudo era Uno. E a alegria que acompanha todo ato
rém, dirigidas com sabedoria superior, sabem erigir constru- de amor, desde a entrega desinteressada do próprio corpo, na
ções maiores e, sobretudo, mais sólidas. Por todas estas razões, geração física, aos mais elevados altruísmos pela humanidade,
na luta contra o bem, o mal se encontra em posição de inferio- nos indica que esse é o caminho da reconstrução e do retorno
ridade e vencido de saída. Sua inteligência é apenas de super- ao estado de origem, de amor, que somente gera bem e alegria.
fície, estupidez em profundidade, lógica consequência da per-
da de sua primeira inteligência, motivo principal que induz o VI. DESMORONAMENTO E
mal a engajar uma luta, sem probabilidade de vitória verdadei- RECONSTRUCÃO DO UNIVERSO
ra, contra o bem, mais forte e sábio.
Eis o quadro do fim do mal e da dor. Além deste aspecto Sinto encontrar-me diante da mais vasta e profunda dentre
negativo de sua eliminação e restabelecimento como elementos as visões até aqui observadas. Nos volumes precedentes havia
patológicos mais débeis, há ainda o aspecto positivo, isto é, há aparecido certo motivo fundamental, cujos delineamentos se
o impulso incessante do princípio básico da criação, do ele- vão agora precisando e dilatando em vastidão cósmica. Estamos
mento mais forte e sadio – o amor (cfr. Cap. IV – ―Queda dos diante da visão dos últimos problemas, diante das conclusões
Anjos‖, e Cap. XX – ―Visão-Síntese‖). Este princípio, do qual sobre o sistema do universo, diante do pensamento de Deus. A
tudo nasceu, deve finalmente triunfar, firmando-se como se- primeira obra de 12 volumes atinge aqui um vértice e se preci-
nhor absoluto, o que significa que o bem e a alegria, de que o pita para a sua conclusão. Conturbado pela potência apocalípti-
amor é feito, devem triunfar sobre o mal e a dor. E vemos o ca da cena que se me apresenta, não mais consigo existir qual
amor sempre em ação. Ele significa também unidade, consti- ―eu‖ isolado e nela penetro. Tenho uma sensação de vertigem,
tuindo a força que compele o universo à reunificação no Uno suspenso assim sobre as profundezas abismais do infinito.
originário. E, todas as vezes que o ser retorna para o Todo, ten- E este fala! Chegam a mim conceitos em um oceano de on-
tando uma reunificação parcial, encontrará a alegria, que lhe das, quais montanhas, e, como avalanche, me investem e agi-
exprime o consenso da vida. Assim deve ser, ainda que de tam. É ofuscante olhar no infinito pensamento de Deus, é ater-
forma para nós misteriosa, até aos mais recônditos recessos da rorizante senti-lo na sua potência. Mas é impossível parar
matéria, onde tantas forças atômicas se unem nas combinações quando se é arrastado pelo turbilhão. O pensamento não é ape-
químicas, como também sucede no congresso sexual dos cor- nas esmagador pela sua imensa massa, mas também ardente pe-
pos e, mais ainda, no espiritual das almas. la sua alta tensão. Elevada a semelhante potencial, a minha vida
Ao amor, impulso criador primordial, está confiada, pois, física vacila como se estivesse prestes a ser fulminada. Torna-
a função de reconstruir o universo. Pelo princípio dos esque- se impossível ao organismo humano resistir a descargas tão gi-
mas múltiplos e de tipo único, repetido em todos os níveis gantescas, que fulguram e estrondam como o relâmpago. E de-
evolutivos, o fato de o amor ser, também em nosso nível, ato vo saber funcionar como transformador que regule essas des-
de criação e de alegria, que ele repete e imita, prova que o cargas em uma luz moderada e igual. Moderada para que não
primeiro ato de amor originário de Deus foi de criação para a cegue, proporcionando-a à receptividade normal. Igual, diluin-
felicidade. Se, igualmente entre nós, tudo que nasce do amor é do a potência concentrada extratemporalmente e reduzindo o
alegria, também a primeira criação deve ter sido fruto alegre lampejo sintético da intuição à exposição sucessiva em termos
do amor. Indicam-no os fatos que nós continuaremos a repetir, racionais. É preciso, por isso, ter forças suficientes para impedir
ainda que com formas e resultados imperfeitos, mas sem po- que escape o indomável dinamismo do fenômeno e para regulá-
der esquecer o motivo de origem, mantido como esquema lo de modo a conduzi-lo ao plano normal, traduzindo conceitos
fundamental do ser. O nosso amor, havendo decaído, inverteu e sensações na linguagem comum, a fim de que também os ou-
parte da sua alegria em dor e, agora, só pode criar parcialmen- tros possam desfrutar o devido rendimento espiritual. É neces-
te, com sacrifício. Apesar disso, ainda que dolorosa, a criação, sário, ademais, tornar tudo acessível e compreensível. Na maio-
desde a física do animal, até à espiritual do gênio e do santo, ria das vezes, os místicos renunciam a tal empreendimento,
constitui sempre a maior alegria da vida. confessando que não existe na linguagem humana imagens e
O nosso é um universo contraído, da infinita liberdade e palavras adaptáveis a esse fim. É-nos necessário encontrá-las.
vastidão do amor de Deus, na prisão do nosso egoísmo separa- Impõe-se-nos exprimir o inexprimível.
tista, que lembra o acanhado campo cinético das trajetórias fe- É necessário saber fazer tudo isto sem interromper o traba-
chadas do mundo atômico da matéria (energia congelada). Ora, lho para viver, o que é dever de todos, significando saber man-
toda vez que o ser consegue completar o esforço para evadir-se ter exteriormente a conduta, frequentemente tão banal. Signifi-
da sua prisão, dilatando-se da contração da queda, ele percorre ca continuar provendo as necessidades do corpo, dominando
um segmento de ascensão e de libertação, desfrutando, assim, a muitas exigências que quereriam tudo para si, sem deixar tem-
originária alegria do amor. Deve gozar e sofrer ao mesmo tem- po nem lugar para o resto na alma. E preciso escrever à noite,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 173
porque de dia não sobra tempo e muitas coisas e pessoas exis- gia) e àquela ainda mais involuída  (matéria). Mas pode-se
tem, inúteis geralmente, que só sabem fazer-nos perdê-lo. E, partir e chegar, quer no processo de ida, quer no de volta, de
enquanto as infinitas mazelas do contingente continuam a nos fases superiores e inferiores a essas. Evitamo-lo porque, ainda
acabrunhar sem cessar, as cataratas do céu permanecem abertas, que possível como abstração filosófico-matemático, implicaria
pois se esgarçaram as névoas e, através dos dilacerados véus do conceitos além do nosso concebível, que não abarca senão as
mistério, o tremendo infinito continua a nos olhar. O pensamen- três fases , , , constitutivas de nosso universo.
to de Deus está presente, acumula-se e faz pressão. A mente en- O desmoronamento é para nós imaginável como a passagem
tumece e deve descarregar, exaurindo nos escritos os conceitos, de uma fase espírito a uma de energia e, depois, a uma de maté-
se não quiser explodir. Eles ardem, e não se pode contê-los por ria, com suas dimensões relativas: consciência, tempo e volu-
longo tempo na alma. São irrequietos, de um indomável dina- me, enquanto temos sob observação a evolução das dimensões
mismo, turbilhonam, esmagam, aturdem a mente, querendo ex- (A Grande Síntese, Cap. XXXV e seguintes) em sentido inver-
plodir e manifestar-se, e não dão paz enquanto não se fundirem so. Por outras palavras, vemos a matéria, completa na dimensão
no registro da palavra escrita. A voz interior troveja. Como fa- volume, evolver para energia (que se poderia denominar uma
zê-la calar? Todo o ser arde. Como parar? espiritualização em relação à matéria) situada na dimensão
Esta breve pausa é para que o leitor sinta em que atmosfera tempo, e a energia evolver para a fase vida, que culmina no
de incêndio nascem estes escritos. Podemos agora retomar o psiquismo humano, situado na dimensão consciência.
curso de nossa observação. Mas um desmoronamento a partir de dimensões superiores a
Quem tiver seguido todos os volumes da obra até aqui, po- estas e uma reascensão a partir de dimensões inferiores escapa
derá ter notado a crescente limpidez das visões e a precisão dos aos nossos meios conceptuais de representação. Evitamos, desta
seus delineamentos. Que extraordinário esforço de elaboração forma, recorrer a elas para não penetrarmos no inconcebível.
íntima foi necessário para chegar até aqui! De tudo quanto dis- É, todavia, necessário insistir que, na realidade, o desmo-
semos, pode-se concluir que nós, seres pensantes, enquanto ronamento não é apenas dado por , mas por +–,
corporalmente constituídos, situamo-nos no universo físico, que e, inversamente, a reconstrução (evolução atual) não é repre-
é o resultado do processo involutivo e, na criação, denomina-se sentada somente por , mas por –  +. A figura 2
matéria. Estamos situados naquela parte do Todo que represen- de A Grande Síntese examina apenas o curso ascensional do
ta o desmoronamento do Sistema, mas já dirigidos para o cami- fenômeno: –+, isto é, um pormenor que aqui não interes-
nho oposto, o evolutivo, de sua reconstrução. Como espíritos, sa mais seguir, pois que já foi estudado em A Grande Síntese.
somos filhos de Deus, centelha Sua sempre, e, ainda que almas O processo destrutivo e reconstrutivo do Todo, como aqui o
em expiação regeneradora, destinadas à redenção final, não estudamos, dilata os seus limites bem além daquele que ali, re-
permaneceremos indefinidamente em um universo desmorona- ferindo-se ao nosso universo, foi examinado em particular, isto
do para sempre. Ao contrário, essa centelha, que no fundo de é, ele é mais do que = (A Grande Síntese,
nosso espírito trabalha para voltarmos a Ele, tem função sanea- Cap. IX – ―A Grande Equação da Substância‖), em que  re-
dora. E em que consiste esse saneamento? Se a doença é repre- presenta o nosso universo. Ele é dado por =+–+,
sentada pelo processo 4, a cura representa o processo em que  exprime o Todo, organismo de universos. Conside-
inverso isto é, , a espiritualização, cuja fase evolutiva rando  em A Grande Síntese, observa-se apenas o progresso
culminante – a mística sublimação – estudamos aqui. evolutivo atual de nosso universo, isto é, –+. Somente no
A esta altura é necessário clarear a mente do leitor, no sen- presente volume – Deus e Universo – ser-nos-ia possível enca-
tido de que, se na queda dos anjos e desmoronamento do uni- rar todo o fenômeno completo no seu ciclo, que, partindo de
verso só levamos em conta o processo , foi somente +, completa-se pelo retorno a +.
para simplificar, tornando assim mais fácil a compreensão. Se Prossigamos. A queda do ser não significa somente desmo-
assim não fosse, poderiam surgir dúvidas em face da figura 2 ronamento de dimensões, mas também de todas as suas quali-
do Cap. XXII de A Grande Síntese, na qual, além das fases , dades na posição inversa. É, pois, natural que a primeira delas,
, , foram tomadas em consideração as fases superiores como a liberdade, se transforme em escravidão. Agora verificamos
+x, +y etc., assim como as inferiores –x, –y etc. Falando no precisamente isto: a característica da matéria, situada na dimen-
presente volume apenas de , , , fizemo-lo para que, com são inferior, volume, em que o espírito se despenha (forma es-
brevidade, tomássemos a grande equação somente na sua for- pacial), é justamente o determinismo; e a característica do espí-
ma mais simples (A Grande Síntese, Cap. IX). Desta forma, rito situado na dimensão superior, consciência, é exatamente a
ilustramos a fórmula do ciclo fechado, e não a mais complexa liberdade. Esta condição de determinismo na matéria represen-
do ciclo aberto (A Grande Síntese, Cap. XXIII), que nos per- ta, pois, a posição dos espíritos decaídos. Assim estes, de sua
mitiu, no gráfico da figura 3, a curvatura do sistema com a de- natural liberdade, são precipitados na prisão da forma, na con-
rivação da espiral pela linha quebrada. Todavia, havermos nós denação de não poder viver senão em um corpo. Evolver, espi-
limitado o campo de observação somente por comodidade de ritualizando-se, significa inverter a posição, isto é, aprender a
compreensão não impede que, saindo do ponto de vista espiri- viver sem ele, a dele desprender-se sem mais considerá-lo co-
tual para entrar no filosófico-matemático, possamos considerar mo a própria vida, mas apenas como uma negação desta. Se
a queda dos anjos a partir de fases superiores, como +x, +y, +z atentarmos para como esta é concebida em nosso mundo e que
etc., e a reconstrução, subindo de fases inferiores, como –z, –y, apego se tem neste pelo corpo e seus bens, compreender-se-á
–x. O fenômeno da queda e ascensão permanece idêntico qual- então quão longe ainda estamos de nos libertarmos do mal e da
quer seja a relação que se opere em suas oscilações interiores, dor. Para um espírito elevado, sujeitar-se a uma vida física hu-
pois que procede de + para – e ao contrário (como na refe- mana representa a maior pena, mas, mesmo assim, grandes es-
rida fig. 2), e isto se verifica entre o infinito positivo e o nega- píritos a aceitaram para nos ajudar a subir e redimir-nos. Ser
tivo, entre os quais podemos seccionar e assim isolar uma par- condenado a viver a vida eterna fragmentada em uma infinida-
te qualquer do fenômeno. Qualquer seja a amplitude que qui- de de pequenos ciclos, com a morte ao fim de cada um, é real-
sermos dar-lhe, ele se reduz sempre a um desmoronamento de mente a dor merecida para quem tentou despedaçar o Todo, ne-
dimensões e a uma reconstrução das mesmas. A queda dos an- gando a Deus e, por isso, a própria vida maior. Desta forma, ele
jos significa, em verdade, desfazimento do potencial da subs- se despedaça, sujeitando-se a despedaçar-se em cada morte.
tância da fase  (espírito) para a fase mais involuída  (ener- O desmoronamento do Sistema com a queda dos anjos
apresenta-se-nos como um processo pelo qual as criaturas são
4
 (alfa),  (beta),  (gama),  (vai para). (N. da E.) projetadas do centro à periferia, distanciando-se de Deus. E vi-
174 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ver na periferia do Sistema quer dizer perda e inversão das pró- como fatal é a reconstrução do sistema desmoronado. Quanto
prias e melhores qualidades. Em tudo isto domina uma lógica mais involuído for o ser, havendo perdido no desmoronamento
tão sólida, que parece mecânica. Se o Sistema representa liber- a própria liberdade, tanto mais está sujeito ao determinismo da
dade no centro, mais determinístico se torna quando caminha- Lei, que quer a evolução, isto é, tanto mais é compelido pelas
mos para a periferia. Se no centro está a vida, na periferia en- forças da Lei a evolver, em face da sua ignorância. Quanto
contramos a morte; se no centro está a verdade, na periferia há mais evoluído for o ser, tanto mais terá retornado à liberdade,
erro e mentira; se no centro há paz, na periferia há guerra. Estas tendo adquirido consciência da Lei, seguindo-a espontanea-
afirmações se evidenciam na realidade de nosso mundo. Efeti- mente, sem mais constrições, porque compreendeu que nela
vamente, quanto mais periférico for o ser, isto é, mais involuído estão seu interesse e felicidade.
e primitivo, tanto mais precária lhe será a existência. A vida su- Deus, que respeita o princípio de liberdade, jamais obriga
pre essa precariedade com maior fecundidade, que redunda em alguém a aceitar a Sua lei; entretanto, nos graus mais involuí-
mais rápido ritmo vida-morte individual, isto é, em um fracio- dos, após a liberdade haver desaparecido pelo desmoronamen-
namento mais acentuado da única vida eterna. A existência tor- to, Ele prossegue impulsionando.
na-se, então, menos segura e garantida, com o ser mais sujeito à Mal, porém, ela começa a reconstruir-se e a criatura pode
dor da morte. Mas tal é o seu reino. A única via de evasão é re- compreender, Deus faz com que, através da própria experiên-
troceder para o centro, pelo caminho evolutivo, ao longo do cia, ela conclua que na Sua lei residem o interesse e a felici-
qual a natureza corrompida reconstrói as suas qualidades origi- dade e que fora dela existe apenas a dor. Assim, pois, qual-
nárias. E, quanto mais o indivíduo evolve, quanto mais se alça quer seja a posição em que o ser se encontre, quer de involuí-
aos planos superiores da vida, tanto mais esta tende a ser longa do, quer de evoluído, da pedra ao santo, uma impulsão existe
e segura, menos sujeita à dor e ao despedaçamento pela morte. sempre, que atua constantemente no sentido de sua evolução.
Mas esta não é a única aflição que constringe o ser. A fe- O sistema desmoronado tende sempre automaticamente a re-
roz lei da luta pela seleção, dominante no mundo animal e constituir-se automaticamente, porque a presença de Deus é
vegetal, a que não se furta também o homem, não passa de imanente no Sistema.
uma consequência da posição periférica. Só assim se com- Eis os maravilhosos resultados da evolução: espiritualizar-
preende o porquê da sua existência e de que modo se pode se, desmaterializar-se, sensibilizar-se, transferir o próprio cen-
superá-la. A observação nos mostra que ela é mais feroz tro de vida consciente cada vez mais para a profundeza do ―eu‖,
quando se desce nas posições involuídas ou periféricas, onde onde está a centelha divina, que é a causa da existência.
é maior o separatismo, a cisão, o antagonismo, a agressivida- Que ensinam todas as religiões senão um afastamento
de, consequências da fragmentação do Sistema com o afas- permanente do mundo periférico, para que nos avizinhemos
tamento do princípio Uno: Centro-Deus. do centro? É necessário compreendermos o que isto significa
Matar ou ser morto é a única razão possível, seja para o e qual a utilidade da virtude para que devamos segui-la. Trata-
animal, seja para o homem involuído. Lógica terrível, porque se de nos afastarmos das ruínas de um universo desmoronado,
ao ser não resta outra forma de vida, senão na matéria. Um in- no qual nos encontramos imersos corporalmente, de nos des-
falível índice das qualidades involuídas de um indivíduo está tacarmos de sua forma de vida animal, para aprendermos a vi-
no seu espírito de agressividade. O litigante, ainda que goste ver uma vida diversa, a vida do espírito, que contém a parte
apenas de polemizar, é sempre um primitivo. O evoluído, ao íntegra do ser, tanto menos corrupta quanto mais nos aprofun-
contrário, sabe compreender o inimigo, sabe perdoá-lo, procu- darmos ativamente, em plena consciência, no interior do ―eu‖,
ra fraternizar com ele e foge de disputas. Ele julga e busca os até encontrarmos aí Deus. Despertar até esse ponto, eis o pro-
pontos de contato para unir-se. O involuído agride antes de blema. E nada mais há de melhor que a dor para despertar a
compreender, porque a sua lógica é unicamente a luta, não sa- alma que, na realidade, deseja esquivar-se às provas, furtar-se
be pensar senão com o assalto para conseguir compreender. O ao esforço e aguardar no ócio.
sistema de Cristo é evidentemente o do evoluído, o Evangelho Quanto mais se descer na via involutiva, tanto mais profun-
ensina-nos o caminho de retorno ao centro-Deus, reconstruin- damente Deus se oculta na intimidade do ser. De fato, quanto
do-nos e libertando- nos. mais se involve, tanto mais desaparecem as qualidades de
Assim, também a ciência analítica e o sistema racional são Deus: liberdade, sabedoria, amor, que reaparecem com a evolu-
mais periféricos que a síntese e o método intuitivo, que concebe ção. Subindo do mineral à planta, verificamos o aparecimento
por visão. É evidente o processo de unificação conceptual que se de uma vida vegetativa mais ampla; com o animal, surge a vida
obtém subindo da primeira forma mental, mais separatista e fra- sensória e o movimento mais livre; com o homem desponta a
gmentária, à segunda, essencialmente unificadora. Somente esta vida psíquica, que alcança um conhecimento maior, e assim por
orienta cada problema no seu conjunto, desde o início. E um diante. Torna-se evidente o processo de libertação do espírito,
problema bem orientado e enquadrado já está meio resolvido. que volta a encontrar as suas qualidades originárias, reconquis-
Em suma, o homem periférico está mais deterministica- tadas pouco a pouco. O férreo determinismo da matéria atenua-
mente sujeito à Lei, dado que a ignora e a ela se sujeita sem se e, paralelamente, cresce o livre arbítrio, com um campo de
conhecê-la. É, assim, menos livre, menos provido de livre arbí- ação cada vez mais vasto. A matéria é um ciclo fechado de
trio, qualidade do evoluído. Enquanto este é autônomo, as energia, nela coagulada e aprisionada. Com a evolução da ma-
massas humanas, contrariamente, são como rebanhos impeli- téria para a energia, esse ciclo se abre. É a libertação do férreo
dos pelos instintos, fios através dos quais a Lei as dirige. determinismo das trajetórias atômicas. O processo  é
Quanto mais evoluído for o indivíduo, tanto mais sabe manejar um processo de liberação e espiritualização, é a retificação da
estes fios que movimentam os instintos e paixões, dos quais é inversão e a reconstrução do edifício desmoronado. A ascensão
senhor. Desta maneira, torna-se independente da submissão e, culmina no estado , em que o edifício se reconstitui em unida-
se obedece à Lei, o faz porque a compreendeu e preferiu segui- de, como era no estado originário, o ponto de partida.
la. A sua harmonização na ordem é consciente e espontânea. Em todo esse processo, não nos esqueçamos de que Deus,
Obedece porque compreendeu. Torna-se ele, assim, um súdito que estava em todas as Suas criaturas, não cessou de existir ne-
de grau superior, que colabora conscientemente, não o fazendo las, mesmo na profundeza de sua decadência. Apenas Ele é
por força ou pelo temor de punição. Trata-se de uma posição mais ou menos latente nelas, está mais ou menos imerso no seu
inteiramente diferente na hierarquia dos seres, muito mais vi- íntimo, tanto mais distanciado de sua consciência ativa quanto
zinha do centro, resultando daí que todas as qualidades da cria- mais baixo elas se encontram, isto é, involuídas, mergulhadas e
tura se traduzem em bem e alegria. Esta transformação é fatal, presas em uma forma de matéria. A trajetória atômica fechada
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 175
exprime esse aprisionamento da liberdade de movimentos, que no multíplice, reconstitui-se pelo princípio das unidades cole-
é mínima aí, abre-se na energia e é máxima no espírito. É nes- tivas, refazendo-se com todos os fragmentos do multíplice no
sas trajetórias fechadas que a liberdade ilimitada do espírito Uno. Este processo é possível porque os fragmentos permane-
caiu e está aprisionada. A matéria, de fato, é o reino de Satanás, cem intimamente ligados por um fio, que é a imanência de
que aspira à Terra, e jamais ao céu, tendo-o Dante colocado no Deus. O segundo universo, o material, corrompido, não ficou
fundo, com seu inferno, no centro do planeta. Tudo isso tem um só, não foi abandonado por Deus transcendente, Que continua
significado, pois que para esse ponto convergem e nele se en- a considerá-lo o Seu universo e a trabalhar no seu íntimo para
contram todas as negações das qualidades de Deus e dos espíri- restabelecê-lo. O quadro é completo, o Sistema é perfeito.
tos eleitos, como sejam: escravidão, ignorância, ódio, trevas Somente com este quadro completo, colocado diante de
etc. O reino de Satanás está no relativo, no tempo, isto é, na nossa mente, podemos compreender tantos fatos, de outra
eternidade despedaçada. O reino de Deus está no absoluto, no forma inexplicáveis. Essa é indiscutivelmente a estrutura atual
eterno, fora do tempo que divide. do universo em que vivemos, são essas as razões que logica-
O desmoronamento do universo é, pois, a queda do espírito mente nos confirmam a gênese desse estado de fato. O dua-
na matéria, ou seja, a formação desse invólucro que aprisiona o lismo universal é a primeira consequência tangível que, assim,
espírito rebelde. A luta entre corpo e alma é, para o homem, a verificamos generalizada, cuja origem não se pode explicar a
luta evolutiva da sua liberação. Mais abaixo ainda existem seres não ser com os conceitos acima expostos. Desde a cisão má-
prisioneiros de formas bem mais densas, em que a escravidão é xima – Deus e Satanás, ordem e caos, amor e ódio, bem e mal,
cada vez mais pronunciada. Aí se encontram os animais, depois alegria e dor – até às mínimas coisas, cada unidade resulta
as plantas, depois as pedras. O homem está a meio caminho. composta de duas metades inversas e complementares. Já o
Outras criaturas, das quais os santos nos dão uma ideia, encon- havíamos afirmado, mas só agora podemos explicar a sua ra-
tram-se mais acima. Mas, em toda parte, mesmo no âmago do zão e a sua origem. É um fato que não se pode ter unidade se-
espírito de Satanás, Deus está presente e, com a Sua presença, não reunindo os dois contrários que a constituem, isto justa-
Ele impele todos os seres a retornar a Ele, estimulando-os, mente porque, pelo princípio dos esquemas de tipo único, o
atraindo-os, chamando-os. É esta Sua universal imanência que motivo fundamental da cisão se repete do caso máximo ao
torna possível o ser palmilhar de volta o caminho da evolução, menor caso, de modo que o motivo da queda retorna em tudo
para reconquistar o paraíso perdido. Toda a virtude do Sistema o que existe. Desta forma, o princípio fundamental do univer-
está em saber restabelecer-se. No íntimo da criatura, por mais so pode ser observado em qualquer parte, onde quer que
involuída, corrompida e entenebrecida que seja, por mais sepul- olhemos. E o fato de cada unidade, em todos os casos, só po-
tada que esteja na matéria, existe sempre a centelha originária der constituir-se pela união de dois opostos indica-nos justa-
de Deus – destacada do Pai, que a gerou – que constitui a razão mente que a unidade do universo, ou seja, o Uno, atualmente
de ser da existência. A antiga nobreza de origem pode estar re- cindido em matéria e espírito, não nos poderá ser dado a não
coberta de todas as imperfeições e de todas as culpas, mas per- ser pela união desses seus dois polos opostos.
manece indestrutível, porque é divina. Também o fato da ação humana assumir sempre a forma de
Tais são as criaturas! Eis o que é o homem! Por este moti- luta, que está presente em toda parte, tanto que parece ser este o
vo, todos os seres são irmãos, ainda quando o despedaçamen- único modo de afirmação, depende do conflito entre os dois
to do Uno no desmoronamento os tenha tornado inimigos. Ir- princípios contrários do universo. Assim, a percepção não é
mãos, pois tudo o que existe deriva de Deus e, gravitando em possível sem o contraste entre dois contrários. Tudo que é pací-
torno Dele, o centro, procura a Ele retornar. Deus, no Seu fico é estático, como coisa morta. E a gênese é luta, e esta é cri-
amor, não abandonou o universo – desmoronado por culpa da ativa, porque é exatamente no contraste que os dois universos
criatura – e continua a ser amor, apesar de tanta ingratidão. devem chegar a fundir-se, retornando ao Uno, centro genético.
Ao homem, ignaro, ávido apenas de gozo, desmemoriado da Sem dúvida, é de grande ajuda para a compreensão do sis-
revolta de que nasceu o mal e a dor, isto pode parecer vingan- tema do universo essa sua estrutura de repetição de esquemas,
ça e erro, ou injustiça de Deus. Porém a característica da invo- de modo que podemos reconstruir o máximo a partir dos meno-
lução é justamente a ignorância e a rebeldia. Ele desconhece res, feitos à sua imagem e semelhança e colocados sob nossos
como Deus está presente para defender-lhe a vida, para dosar- olhos. Podemos, assim, avizinhar-nos da compreensão do Todo,
lhe as dores de modo que o eduquem sem destruí-lo, para que, de outra forma, constitui para nós um sistema inacessível.
atraí-lo a Si, na felicidade eterna! Essa possibilidade, que aqui utilizamos largamente, seja para a
indagação, seja para a confirmação, nos mostra um outro aspec-
VII. A PERFEIÇÃO DO SISTEMA to do universo: a sua organicidade. Há no Todo uma grande
harmonia e correspondência de partes, que o mantém unitário e
Observemos, sob outros pontos de vista e sob outros as- compacto, não obstante a infinita multiplicidade das suas for-
pectos, a estrutura do sistema do universo, para melhor com- mas. Essa compactação deriva do fato de que a sua diferencia-
preender-lhe a perfeição. Esta representa o estado primeiro da ção, a que a vida tende, é uma ramificação que se inicia sempre
criação: o Verbo, isto é, o estado , um sistema espiritual na mesma raiz, onde está o tipo modelo da gênese, que, embora
pronto a transformar-se em ação,  (energia), e depois na se diversifique em particulares, permanece sempre aderente aos
forma concreta,  (matéria). Este é o estado em que nos en- princípios fundamentais que regem tudo. Assim, o pensamento
contramos hoje, depois da queda, isto é, em um universo ma- de Deus, que deu o primeiro impulso, ecoa no universo, chega e
terial. E nos identificamos tão profundamente com ele, que se repete em todos os seus recantos, por mais remotos que se-
supomos ser esta sua outra parte corrompida todo o verdadei- jam. Quanto mais periférico for o ser, quanto mais se distanciar
ro universo. Há, portanto, dois universos: o verdadeiro, de na- do centro, tanto mais o eco será amortecido e fragmentado em
tureza espiritual, perfeito; e uma contrafação sua, imperfeita, esquemas menores, mais relativos e mais particulares. Mas esse
de natureza material, em evolução para a perfeição. O primei- pensamento chegará sempre uno, na infinita multiplicidade, tu-
ro é absoluto, imóvel; o segundo é relativo, a caminho. Este do atraindo a si, e, assim, tudo, por mais pulverizado que esteja,
tanto ascenderá que, no final dos tempos, sobrepor-se-á ao mantém-se ligado à unidade.
primeiro e com ele coincidirá. Os dois universos existem para Quando um fenômeno, por evolução, chegou a se produzir
se fundirem, porque são um só que se despedaçou com o des- uma vez, esta nova posição se fixa na manifestação e o fenô-
moronamento e que agora volta à união. O Uno, fragmentado meno, quase que por lei de inércia (misoneísmo), tende a con-
176 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
tinuar reproduzindo-se (a ontogênese recapitula a filogênese) o mais poderoso, tanto que acaba vencendo. Este é o índice do
com um ritmo constante, isto enquanto a elaboração evolutiva, valor do Sistema, pois, apesar de tanto mal, o bem vence. Pode-
devido ao impulso divino interior, que compele à ascensão, rá parecer o contrário a quem vive imerso no momento de um
não o modificar através de pressão e martelamento constantes, caso particular. Mas assim não é nas grandes linhas.
vencendo, assim, o misoneísmo, que quereria persistir na linha O escopo, efetivamente, era levar o ser a Deus e, em ambos
de idêntica repetição. Assistimos, desta forma, a um ecoar fe- os casos, é atingido. No primeiro caso, isso acontece por via di-
nomênico, rítmico, musical que, mesmo nos contrastes, man- reta. A criatura reconhece o Pai, ama-O, segue-O e se harmoniza
tém uma harmonia maravilhosa, alcançando características es- com o Sistema. Temos o seu triunfo espontaneamente, em plena
téticas de suprema beleza. O dinamismo do universo assume, liberdade. No segundo caso, o fim é o mesmo, mas por via indi-
assim, formas que tendem a girar sobre si mesmas, em repeti- reta. A criatura rebela-se, separa-se, cai no caos, fora do Siste-
ção. E isto se dá por outra razão também: o retorno é o único ma. Por esse motivo ela sofre, aprende, expia, volve a subir e, se
meio pelo qual o absoluto pode continuar a existir no sistema não deseja morrer, deve retornar ao Sistema, isto é, coordenar-se
fragmentado do relativo, como um eterno retorno do espaço na sua ordem. Dessa forma, ela alcança igualmente a meta, ten-
sobre si mesmo, como espaço curvo – é a única forma pela do, todavia, de percorrer um caminho mais longo. O Sistema
qual o infinito pode vir a existir no finito. triunfa ao final. No primeiro caso, temos o ser que permanece
Assim, conjugando os pequenos esquemas do nosso contin- inocentemente perfeito. No segundo, teremos um ser igualmente
gente aos maiores esquemas do ser, podemos explicar a razão perfeito, mas que, chegando à perfeição através de uma via lon-
profunda de tantas coisas que todos fazemos sem saber e sem ga e dolorosa, conheceu o bem e o mal e se refez pelo sofrimen-
discutir, tomando-as por axiomáticas. Mesmo nós, em nosso to. No segundo caso, a evolução produzirá um anjo que, através
dinamismo moderno, agimos por repetição, rodando apenas de todos os erros e dores, chegará a ser conscientemente perfei-
mais velozmente do que no passado, em torno dos mesmos to, com uma sabedoria mais profunda do que a que possuiriam,
pontos. Toda a nossa vida percorre e volta a percorrer sempre se não se tivessem rebelado e Adão não houvesse comido o fruto
os mesmos círculos, repetindo vertiginosamente as mesmas proibido da árvore do bem e do mal. Sem tão dura experiência, a
coisas. Apenas turbilhonamos mais rapidamente, porém não criatura também seria perfeita, mercê de um conhecimento di-
nos deslocamos em substância, senão lentamente. Se atentar- verso, mas, com ela, o anjo decaído e redimido se torna detentor
mos para a imprensa, para o rádio, para o ciclo de nossa vida da prova do lado oposto do ser, do negativo. O Sistema é, pois,
individual cotidiana e para o das grandes cidades, assim como tão perfeito que, suceda o que suceder, o erro se transforma em
para o da agricultura nos campos e para os ciclos históricos, ve- conquista, a destruição em elemento criador, e o mal se trans-
rificamos que tudo é repetição, que nos movimentamos em der- muda em bem. Ele cria sempre o bem, mesmo no mal, na dor,
redor de certos pontos, para ficar ali. Parece que, ao lado da mesmo através de Satanás. Tudo o que nele pode aparecer de
curvatura do espaço, existe também uma curvatura do tempo, negativo, devora-se a si mesmo, destrói-se por si e gera o bem.
pela qual o que uma vez foi feito tende a ser refeito (tradição), Assim, o Sistema termina sempre na perfeição desejada. A pri-
ciclicamente voltando para si mesmo. meira, dada por um conhecimento intuitivo, sem a prova da dor;
Mas o aumento de velocidade de rotação não é estéril, por- a segunda, por um conhecimento experimental através do longo
que produz um mais rápido deslocamento dos pontos de refe- e estafante caminho da evolução. A primeira, permanecendo in-
rência, o que significa produzir a elaboração evolutiva, que antes tacta, imune à corrupção; a segunda, degenerando-se, para de-
era mais lenta. Se tudo tende hoje a repetir-se sobre o decalque pois curar-se. Não importa se o caminho é mais ou menos longo.
de velhos esquemas, o faz, no entanto, a maior velocidade, com Esta outra estrada conduz igualmente à meta.
o resultado de elaborá-los e determinar uma mais rápida matura- A própria queda dos anjos só pode ser atribuída à perfeição
ção de sua transformação. Isto porque, encontrando-nos no rela- Sistema, e não a uma sua imperfeição. Nas páginas preceden-
tivo, não é possível mudar um instinto, uma ideia de nosso ―eu‖, tes, assinalamos as seguintes palavras de Deus à criatura: ―Ofe-
ou seja, mudar o seu esquema, senão com este processo rotatório reço-te a existência como um grande pacto de amizade‖ (Cap.
em seu derredor, através de longa repetição, que nos transforma IV – ―A queda das anjos‖). O dom da liberdade, concedido por
por meio da aquisição de automatismos novos em lugar dos ve- Deus à criatura, para que ela se Lhe assemelhasse, era comple-
lhos. Hoje, corremos, pois, não por correr, o que de nada ser- to. Ela poderia aceitá-lo, grata, como poderia ter dito: ―Não!
viria, mas sim para aprendermos e maturar-nos mais rapidamen- não aceito‖. A revolta foi o primeiro passo no sentido desta re-
te, através de um acelerado ritmo de sensações e reações. cusa, visto que a tentativa de existência autônoma era, manten-
Voltemos, agora, a observar a estrutura do Sistema do-se negativa, uma primeira tentativa de não-ser. A insistência
sob o aspecto mais importante, que é o da sua grande perfei- definitiva na revolta significava o desejo de anular-se, ou seja, a
ção. Faremos isto em dois momentos, nos quais esta é posta recusa em aceitar o pacto da existência. É lógico que ficasse fo-
à prova e, por conseguinte, ressalta com mais evidência: ra do Sistema quem não aceitasse o pacto, no qual se anula a
primeiro no desfazimento da queda e, depois, na mecânica existência de quem não o aceita, retornando ao estado anterior à
da sua autorreconstrução. gênese, do não-existir. O existir significa a afirmação na ale-
No primeiro caso, a perfeição nos aparece na invulnerabili- gria, e o não-existir significa apenas uma negação crescente da
dade do plano, que, não obstante o erro, realiza-se da mesma alegria na dor. Pode o ser, mesmo livre, preferir a segunda via?
forma, persistindo intacto. O dano foi reservado somente à par- Tudo, pois, no Sistema, concorre para o seu bom êxito, pa-
te dos seres que o desejaram, prejuízo que, depois, em face da ra o triunfo do bem, mesmo o mal e o erro. Um sistema ex-
bondade inerente ao Sistema, reduziu-se a escola instrutiva aos pressão de um Deus perfeito não podia deixar de ser perfeito.
fins da reconstrução, em favor de quem praticou o mal. A per- A lógica impõe, de modo absoluto, a presença dessa perfeição.
feição do Sistema revela-se exatamente nesta retomada e auto- De outra forma, tudo se desmorona e nada mais se explica e
correção, neste sua arte de saber transformar um mal em bem. justifica. E, no fundo do universo atual, mesmo quando em
Isto demonstra que todo o Sistema é feito de bem, tanto que es- parte continue ele caótico, vemos uma sabedoria profunda, que
te é sempre seu resultado final, pois, ainda que o mal possa ter- rege a ordem e nela enquadra até mesmo esse caos, regulando-
se originado em seu interior, ele sabe reabsorvê-lo por comple- o. É a verificação dessa perfeição que nos impõe confiança,
to e reconduzi-lo ao bem. Justamente nesta luta entre o princí- porque nos diz que tudo quanto a criatura faça é por Deus uti-
pio negativo do mal, em que o Sistema se corrompeu, e o prin- lizado e guiado para o bem.
cípio positivo do bem, é que se vê ser este último o dominante, ◘◘◘
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 177
Verificada a perfeição do Sistema no desmoronamento da Estão em luta as duas forças, bem e mal, mas não perfeita-
queda, observemos agora a sua perfeição na mecânica da sua mente iguais. Pelo fato de que o bem é o centro, há uma superi-
autorreconstrução. oridade, posição da qual a revolta não o pode despojar. O atrito
O sistema de Deus é o sistema do ser, do ―eu sou‖, do qual desgasta os dois elementos, arrebatando do ―eu-centro‖ frag-
Ele é o centro. Dado este esquema do grande organismo, o po- mentos da sua parte periférica, detritos de substância espiritual,
sitivo, vemos que a rebelião tentou instaurar em seu seio, para dinâmica ou física, segundo o plano em que se observa o fenô-
submetê-lo, um sistema de esquema oposto, do não-ser, o nega- meno. Isto porque o modelo de cada elemento é feito de centro
tivo, que, sendo contrário, não podia representar senão a sua re- e periferia, repetindo-se, assim, no caso menor, o esquema do
viravolta, segundo o esquema do ―eu não sou‖. Então, deu-se a elemento máximo centro-Deus. Desta forma, quanto mais fortes
fratura. De um lado, o sistema do esquema ―eu sou‖, em Deus; o choque e o atrito, tanto mais acentuado o desgaste, o que re-
do outro, um contra-sistema do esquema do ―eu não sou‖, em dunda em pôr sempre mais a descoberto a natureza do centro do
Satanás. ―Eu sou o espírito que sempre nega‖, diz Satanás no sistema de cada elemento, ou ―eu‖, que assim, quando se trata
―Fausto‖ de Goethe. É a sua verdadeira natureza, isto é, a estru- de uma massa branca, faz-se sempre mais branco e, quando se
tura segundo o esquema do ―eu não sou‖, o princípio inverso, trata de uma negra, torna-se cada vez mais negro. O resultado
segundo o qual Satanás é construído, que lhe inquina o orga- do atrito desta luta é, pois, intensificar e fazer aflorar as caracte-
nismo até às raízes e que o mina sem cessar, impelindo-o à anu- rísticas, a verdadeira natureza de cada um. Assim, na luta, o an-
lação. Observemos a mecânica desse processo. jo se torna sempre mais anjo e o demônio sempre mais demô-
Este sistema rebelde é formado de muitos menores ―eu nio; o santo se aperfeiçoa e ascende, o mau piora e desce.
sou‖, que, ao invés de coordenarem-se hierarquicamente no Esse atrito é dor para ambas as partes. Mas a natureza ínti-
sistema de Deus, quiseram isolar-se, formando uma hierarquia ma, tão diversa para os dois tipos, faz com que as seus efeitos
oposta, de centros autônomos. Podemos imaginar o sistema sejam opostos, como opostos são esses tipos. Podemos ver o
positivo como um processo giratório dextrogiro. Ora, esses processo repetir-se na Terra, entre os seres que, tendo já per-
elementos rebeldes, constituintes do contra-sistema, podem ser corrido um certo trecho do caminho da ascensão, acham-se
imaginados como tantos outros centros menores que, em vez mais próximos dos elementos brancos. Sua dor, que decresce
de continuar rodando nesse mesmo sentido dextrogiro, como com a subida, é bendita e confortada por Deus, repleta de espe-
impunha o Sistema, harmonizando-se com o seu movimento e rança e sempre mais viva. Ela integra um sistema positivo, em
alimentando-o com o próprio impulso concordante, puseram-se que a dor está desaparecendo, enquanto o problema da felici-
a girar em sentido oposto, sinistrogiro, contra a corrente, dade se encontra em vias de solução, porque a vida está cami-
opondo-se ao seu movimento, na tentativa de gerar, assim, um nhando para Deus. Mais acima, os anjos não decaídos se apre-
movimento contrário, através do qual pudessem dominar o sentam imunes à dor, que adeja em torno de seus espíritos, in-
primeiro, para impor o próprio. Puseram-se, dessa forma, a capaz de excitar neles as dolorosas ressonâncias para as quais a
agir como freio, e não como impulso, intentando inverter a rota nossa natureza corrompida não pode fechar as portas. Contra-
das trajetórias, iniciou-se a desordem, a revolução, tendente a riamente, a dor dos espíritos inferiores, que permanecem na
transformar a ordem em caos, fenômeno que, daí por diante, revolta, é maldita, sem conforto, de esperança cada vez menor,
passou a repetir-se de acordo com o mesmo esquema, ainda dor que aumenta em cada queda do ser. Ela faz parte de um
que em escala menor, estando sob nossos olhos e reproduzindo sistema negativo, em que a dor se potencia e a felicidade se
o mesmo princípio, tanto no campo espiritual como no campo afasta, porque a vida está caminhando para Satanás. Duas do-
material, pois que ele continua o mesmo, agora como então. res opostas, em sentidos contrários. A do santo é sacrifício útil,
Os dois campos são conexos. E, como a criação física procede construtivo, de que se colhem frutos. A do mau é amarga con-
do pensamento, também o caos espiritual pôde logo transfor- sequência da destruição, que a carrega de mais ruínas. A dor
mar-se em caos físico, do qual nasce e continuamos a ver nas- do santo bendiz e cria; a do mau é feroz e destrói.
cer o nosso universo astronômico. Podemos agora imaginar essas correntes sinistrogiras do
A pretensão era inverter o Sistema. Mas esses elementos não mal navegando às avessas no Sistema, no sentido contrário às
eram o centro. Eram planetas, e não o sol. E, por mais que se dextrogiras do bem. Qual delas vencerá? Indubitavelmente a
coalizassem em um contra-sistema, não passavam do que eram, branca, porque é mais forte. A revolta padeceu de um erro fun-
isto é, centros menores, elementos periféricos. Por mais que pre- damental de estratégia: haver confundido semelhança com
tendessem ser sois, eram apenas planetas. Era, pois, impossível identidade. Deus, na Sua bondade para com a criatura e por
que o contra-sistema pudesse vencer o Sistema. Não lhes resta- amá-la, fizera-a semelhante a Ele, mas não idêntica, isto é, da
va, então, outra possibilidade senão funcionar como resistência, mesma natureza, mas não da mesma potência. A própria estru-
quais massas negras em um sistema de massas brancas. tura do Sistema implicava que Deus permanecesse centro, posi-
Continuemos. Resultou daí um atrito que representa perma- ção que nem mesmo Ele poderia ter cedido, ainda quando o Seu
nentemente a luta entre o bem e o mal. São estas as duas forças amor a tivesse desejado, porque então o sistema inteiro se teria
sempre em ação. O único sistema originário, positivo, transfor- alterado. O erro dos rebeldes estava justamente inserido em sua
mou-se então, reequilibrando-se em um duplo sistema, isto é, no natureza egocêntrica de ―eu sou‖, como uma consequência sua,
conhecido dualismo universal, que vai do plano espiritual ao fí- direta, pois consistiu na dilatação exagerada desta, a ponto de
sico, sistema que podemos conceber como uma quantidade de iludir a criatura, fazendo-a crer que semelhança pudesse vir a
massas negras navegando em um organismo dinâmico de mas- ser identidade. Efetivamente, a ela nada faltava como qualida-
sas brancas. Mas estas são mais fortes, porque o centro é branco. de, faltava porém como quantidade. Foi essa quantidade que o
É, porém, negro o anticentro, em torno do qual gravita o Anti- orgulho admitiu que pudesse criar por meio da potência do pró-
Sistema. Mas esse, pela própria natureza, só pode ser um centro prio ―eu sou‖, retirando-a desse ―eu‖ já tão divinamente pode-
negativo, isto é, periférico, uma paródia de princípio, um absur- roso. Porém enganou-se. Era absurdo o que pretendia. Mas a
do geométrico, que exprime exatamente, também no plano físi- identidade estava ali, a meio passo, tão vizinha da semelhança,
co, a ideia negativa do ―eu não sou‖. Este é Satanás! que o ―eu sou‖ da criatura se deixou arrastar pelo instinto inato
Agora que, com esta representação, uniformizando-nos de dilatar-se. Quis nivelar-se a Deus e, ao invés de engrandecer,
com uma lei de analogia, pudemos transportar para um terreno estourou. Eis o grande erro, causa da ruína. Tudo é lógico e
mais concreto o conceito abstrato da revolta dos anjos, veja- compreensível, especialmente a nós, criaturas, hoje numa situa-
mos o que sucedeu. ção que é oriunda desse erro, pelo qual, com tanta frequência,
178 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
somos ainda levados a repeti-lo, iludidos pela mesma ilusão do sistema, que fazem dele um ser enfermado de rebelião. Será
psicológica e colhendo os mesmos frutos dela. possível, então, que o ser possa resistir a todas as infinitas oca-
Isto esclarecido, podemos indagar que técnica é esta atra- siões que se lhe oferecerem, a todas as amorosas solicitações e
vés da qual o Sistema é tão bem capaz de reconstruir-se? A amparos, através dos quais os espíritos bons e eleitos se pres-
resposta, para ser dada, exige que, prosseguindo o exame inici- tam a sacrificar-se por amor à redenção daqueles seres que se
ado, perguntemos ainda aonde vai findar e a que ponto do Sis- transviarem? Será possível chegar a tamanho absurdo?
tema se dirige aquela parte de substância que, no atrito e na lu- Se isto se der, então o ser, que assim o quis, ficará no infer-
ta, se destaca da periferia dos ―eus‖ componentes? Ela assumi- no eterno da negação da existência, em que o ―eu‖ desaparecerá
rá naturalmente o sentido dextrogiro, que é a mais forte no Sis- consumido em pó e será refundido no sistema do bem. E, então,
tema, em virtude de ser a única alimentada pela irradiação di- assim como havíamos concluído que, na realidade, não existem
nâmica positiva do centro – Deus – que está pronta a atrair e dois sistemas contrários, mas um só – Deus – podemos concluir
arrastar em sua órbita tudo quanto ainda não se mantenha uni- também que o inferno eterno existe como possibilidade, mas
do à corrente oposta, visto que o contra-sistema também possui que, como disse um santo, não podemos estar certos de que ne-
o seu anticentro, antagônico, de ação inversa, cuja irradiação é le possa haver alguém. Ele existe, pois, como uma possibilida-
negativa, obscura, destruidora, atração invertida, que repele. de teórica do sistema, sem que estejamos em grau de saber se
Tal é Satanás. A substância, assim repelida pela atração nega- esta pode transformar-se em realidade (este assunto será melhor
tiva do anticentro, inverte a sua direção, tornando-se positiva, a desenvolvido no Cap. X – ―A teoria do desmoronamento e as
favor do sistema positivo (o primeiro germe destes conceitos suas provas‖). Sabemos, com certeza, apenas que Deus é a ab-
encontra-se no Cap. X – ―O Problema do Mal‖, no volume A soluta potência do bem. Devemos daí deduzir ser impossível
Nova Civilização do Terceiro Milênio). Sucede, então, que es- que, ao fim, o bem não sobrepuje todo o mal, tornando-se se-
sa poeira de substância que se destaca é atraída para Deus e in- nhor absoluto. Se do mal restasse um átomo que fosse, o plano
serida no circuito positivo do Sistema. O resultado final, assim, de Deus não teria vencido. Sabemos com segurança que Deus é
é que o contraste entre os elementos dos dois sistemas opostos bondade e que a criação é um ato do Seu amor, portanto, se um
só pode operar no sentido de um desgaste e empobrecimento só átomo lhe escapasse, Seu plano teria falido. Sabemos, assim,
crescente de substância do sistema negativo em favor do sis- ser impossível que, no fim, o Seu amor não vença a tudo e a to-
tema positivo, que cada vez mais ganha em substância. Isto dos, envolvendo no Seu amplexo todo o criado.
conduz o processo a propender fatalmente para o aniquilamen- ◘◘◘
to do sistema negativo e domínio absoluto do sistema positivo. A esta altura pode surgir uma objeção. É verdade que o
Como se vê, esta realidade é inerente à natureza do sistema po- universo está destinado à reconstrução e se reconstruirá. To-
sitivo, o primeiro a existir e o último a triunfar. O princípio e o davia, se o Sistema é perfeito, que garantia nos oferece ele
fim vêm, assim, a coincidir no imóvel absoluto do Deus trans- que a queda não se repetirá? Observemos. A parte caída está,
cendente, que está fora da forma e do tempo, independente da por enquanto, ligada ao processo evolutivo. Quem quisesse
Sua manifestação no universo criado. Em conclusão, podemos involuir, ao invés de evoluir, expor-se-ia ao aniquilamento
afirmar que não há dois sistemas iguais e contrários, mas, no como individualidade própria. Estaria, pois, eliminado. Mas
fundo, apenas um único sistema: Deus. temos visto (e ainda melhor o veremos no Cap. X) como o
Eis a maravilhosa técnica do processo de autorreconstrução egocentrismo de cada ―eu‖ deva terminar com a compreensão
do universo. Tudo desmoronou na caos, mas o caos sabe recons- de que este caminho é contraproducente e desvantajoso, já
truir-se na ordem. Que melhor prova existe para a imanência de que o ser está destinado à salvação.
Deus? O princípio positivo não abandonou o anti-sistema nega- Depois, há também a parte dos espíritos não decaídos, que,
tivo. De que outra forma poderia este, feito de substância nega- se permaneceram puros por obediência, aplicando em seu be-
tiva, somente capaz de destruição, reconstruir-se, isto é, agir in- nefício a sabedoria de Deus, que os guiava, estão agora assis-
teira e contrariamente à sua natureza? Assim, se o processo evo- tindo o calvário do ser decaído. Eles estão vendo as conse-
lutivo realmente funciona e determina o bem, o mal deve ser de- quências do desmoronamento e têm, diante de tal exemplo,
crescente. Este, vivendo, desgasta-se e tende a morrer. O bem, uma experiência própria adquirida indiretamente. Após essas
ao contrário, com a vida, revigora-se e tende à gênese. O mal duras verificações, é impossível que possam pensar em repetir,
pode parecer em crescimento num determinado ponto do univer- com seu prejuízo, uma tão terrível prova, sob a qual estão caí-
so, como a Terra, em consequência da ascensão e chegada de dos os espíritos seus semelhantes.
elementos inferiores. Mas, no todo, o mal, com a existência, de- Ao termo do processo reconstrutivo da evolução, a parte dos
vora a si mesmo, em razão da própria natureza e estrutura, e só espíritos caídos, agora redimidos, volta ao estado anterior atra-
mediante esta condição pode existir. O mal, assim como o bem, vés da experiência do bem e do mal, que serviu como exemplo
tanto no universo como na Terra, não está uniformemente distri- para todos, inclusive aos espíritos não caídos.
buído, e o aparecimento local do fenômeno pode iludir-nos Todos, pois, acabam adquirindo a mesma experiência. Ora,
quanto ao seu destino real, que está fatalmente traçado. a parte redimida não se cuidará de novas desobediências, por-
Então, surge naturalmente em nós uma última pergunta: que provou as suas consequências. Ela conserva um conheci-
qual a sorte final dos espíritos maus? O seu sistema os conduz mento direto. A outra parte – os não caídos – tem um conheci-
automaticamente ao aniquilamento, que representa o seu triun- mento indireto, reflexo. Não é possível que haja novas quedas,
fo, a morte da alma, verdadeiro inferno eterno, porque, para o embora todos permaneçam inteiramente livres. Chega-se, as-
ser, a pena máxima está no não-ser. E a criatura que renega a sim, a um determinismo superior, de um ser convicto, a quem o
Deus não pode ter outra sorte. Mas será possível que um ser li- conhecimento ensina que só há um caminho, também livre, a
vre queira, em seu prejuízo, fazer da liberdade um desastroso ser trilhado, que é a adesão à Lei.
uso? Será possível que ele queira agir tão loucamente, que pos- Podemos compreender tudo isto, reduzindo o fenômeno,
sa resistir à tortura crescente da dor máxima, que é a agonia es- que se situa para nós em planos inconcebíveis, às dimensões
piritual, sem mudar de rumo? exíguas da razão humana. Da maravilhosa perfeição do Sistema
O universo é um organismo em que, como no corpo huma- aparece-nos, então, um novo aspecto, onde o mal causado pela
no, uma solidariedade de todos os elementos componentes revolta se transforma em bem, o que constitui uma experiência
compele as células sãs e mais evoluídas a tentarem todos os vital também para os não decaídos, destruindo-se definitiva-
meios de conseguir a cura ou salvação das células patológicas mente ―para todos‖ qualquer possibilidade de novas quedas.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 179
VIII. SOLUÇÃO ÚLTIMA DO PROBLEMA DO SER ta-se de colocar, como no quadro de um grande mosaico, cada
peça no seu justo lugar, para obter a imagem perfeita.
Pouco a pouco, a nossa descrição progride, a visão se faz Por estas observações, o leitor poderá compreender como a
mais completa também no intelecto do leitor, a quem estamos exposição aqui realizada é uma tradução da visão em uma outra
aqui fazendo uma exposição racional. Não quisemos conferir a linguagem, adequada à forma mental racional. Poderá, ao mes-
esta uma forma sistemática, como sói acontecer quando se mo tempo, compreender que a psicologia de absolutismos axi-
apresenta um processo psicológico de quem escreve, cristaliza- omáticos, com que algumas afirmações são aqui feitas, não é
do nos seus resultados finais, sem demonstrar o seu desenvol- uma inconsistente pretensão de verdade, mas sim deriva da sen-
vimento genético. Preferimos aqui começar a descrever a visão sação do absoluto verdadeiro que se passa com todo aquele que
à medida que a observamos, de modo que o leitor pudesse se- contemple qualquer fato por percepção direta. Ora, quem aqui
guir o desenvolvimento segundo o qual ela, embora instantânea escreve não pode fazer sentir ao leitor esta sua sensação. Não
em sua natureza, apareceu progressivamente em nossa mente. lhe resta, então, outro recurso senão o raciocínio e a demonstra-
Assim procedemos não só para facilitar a compreensão, mas ção indireta, como quem tivesse de explicar a um cego um pa-
também para facilitar ao leitor acompanhar igualmente o fenô- norama que tenha diante dos olhos. O leitor poderá, assim,
meno psicológico do registro da visão, como ela ocorreu na rea- compreender quão estranho deve parecer, a quem se encontra
lidade. Tudo isto porque não significa que, por não ser sistemá- imerso em uma visão, ter de apresentá-la como hipótese de tra-
tica, a exposição não possua um encadeamento lógico, pois to- balho. Entretanto, ele deve saber exprimir-se também nessa
da a visão é substancialmente um processo lógico. forma, se quiser ser compreendido.
Certamente, a psicologia racional, que é a forma da menta- ◘◘◘
lidade hodierna e, por conseguinte, da maioria dos leitores, está Chegando a este ponto, podemos dizer que temos sob os
muito distanciada da forma mental intuitiva, por meio da qual olhos um quadro suficientemente completo da criação, para po-
as visões são percebidas. Por isso mesmo procuramos sempre der contemplá-lo no seu conjunto. Também A Grande Síntese
reduzir tudo aos termos da psicologia racional, a fim de nos co- nos apresenta esse quadro, mas dentro de limites mais restritos.
locarmos no plano mental do leitor. Na verdade, o crítico ex- Ela não vai além dos confins de nosso universo, não lhe aprofun-
tremado poderia objetar que os dois princípios fundamentais – da as origens. Comprovando a existência de uma lei cujo funcio-
amor e liberdade – sobre os quais se eleva o edifício conceptual namento e desenvolvimento estuda, não explica as razões pelas
atrás exposto, são absolutamente incontroláveis. Eles, aqui, são quais ele tenha tomado a sua forma atual. E, de A Grande Sínte-
aceitos como axiomas não demonstrados, consequência do mé- se, o volume Ascese Mística só aprofundou e desenvolveu o es-
todo intuitivo. Não é preciso demonstrar, a quem vê, que a luz tudo particular de uma fase da evolução: o superconsciente intui-
existe. Mas nós queremos aqui colocar-nos de acordo com a tivo, especialmente no misticismo. No presente volume, a visão
psicologia corrente. Limitamo-nos, pois, a aceitar a intuição se dilata para além da criação atual, da qual se veem os preceden-
apenas como hipótese de trabalho. Apresentar o pensamento tes, as causas e o significado, em um sistema mais vasto, qual é o
sob esta forma significa torná-lo mais compreensível e aceitá- sistema do absoluto, o sistema do Todo, o sistema de Deus.
vel em nosso tempo. Podemos, assim, encarar toda a visão co- Voltemos a contemplar a visão no seu conjunto, nos lampe-
mo uma hipótese de trabalho, onde o mais importante, indepen- jos da síntese. O homem racional, positivo, poderá tomá-la co-
dente da forma, é conseguir a exposição de um quadro comple- mo hipótese de trabalho, para fazer o seu controle nos pontos
to e pormenorizado, que resolva todos os problemas do ser. acessíveis ao homem, já que se trata de uma projeção análoga
Continuando a proceder com esta psicologia, poderemos di- do esquema universal em nosso plano de existência.
zer que só aceitaremos a hipótese como verdadeira quando os Fora do tempo, antes que qualquer coisa, nascida depois,
fatos a confirmarem. Teremos, assim, assumido a atitude que tivesse princípio, existia Deus, que foi, é e será sempre o Todo,
coincide com a psicologia hodierna, e o leitor poderá, então, ler ao qual nada se pode tirar nem acrescentar, mesmo em sua cri-
estes capítulos com esta mentalidade, sem que nada se altere. ação, que não pode estar acima ou além, mas sempre como Sua
Permaneceremos, desta maneira, obedientes aos requisitos cien- emanação. Sua característica fundamental é o amor, princípio
tíficos da pesquisa. O leitor que ama e escolhe esta forma mental pelo qual se exprime a natureza de Deus, de onde derivam to-
deverá, porém, admitir que, se tal via fosse seguida pelo escritor, das as outras qualidades: primeiramente a liberdade do ser e,
ele nada teria visto, chegando talvez a umas poucas conclusões depois, as demais, como o bem, a bondade, a harmonia, o po-
particulares, e quem sabe depois de quanto tempo! Se ele che- der, o conhecimento, a beleza, a felicidade etc., que exprimem
gou logo à visão completa do quadro resolutivo e das conclu- tudo o que de mais belo e melhor o ser possa imaginar. São
sões, é necessário aceitar que isto só se deu em virtude do méto- princípios que o homem encontra instintivamente em si mes-
do da intuição, através de concepções sintético-intuitivas, e não mo, aceita como axiomas e segue sem discutir, com ardente
analítico-racionais. A resultados tão amplos quanto estes não se anelo. Ninguém necessita de demonstração para obedecer a
chega nunca com a observação e a experimentação, através da tais impulsos, que são inerentes à natureza humana. Afinal, tu-
hipótese e da razão. É necessário admitir que, conquanto a solu- do isto faz parte do absoluto, que está além da razão e do qual,
ção dos últimos problemas deva aqui ser apresentada em forma com esta, só nos é dado controlar as consequências em nosso
racional, ela só poderia ser obtida por via intuitiva. relativo, que no-lo confirma. Admitido o princípio de amor,
Pode-se objetar, contudo, que a intuição também está sujeita tudo o mais procede logicamente. À razão não se pede mais do
a enganos, necessitando ser controlada e, por esse motivo, ela que admitir esse princípio, o que, aliás, é instintivo. É o quanto
não pode ser erigida em método de uso corrente. Mas também é basta para o desenvolvimento lógico ulterior.
verdade que o uso corrente bem pouco descobre de novo, limi- Deus, causa primeira sem causa, não tem princípio nem fim
tando-se frequentemente a demonstrar e a aperfeiçoar o que foi e tudo gera sem ter sido gerado. Deus simplesmente ―é‖, e tudo
apanhado pela intuição. Assim, só nos resta aceitar a intuição Ele ―é‖, não estando encerrado no limite de nenhuma dimensão.
quando o indivíduo sabe alcançá-la, submetendo-a depois ao As várias dimensões nascerão depois, entre as quais o tempo e
controle, para verificar se os seus resultados coincidem com a o espaço, apenas como limites do ser, enquanto Deus é o ser
realidade. Os exemplos que aqui aduzimos, retirados do mundo sem limites. Eis, então, que Deus transcendente, que ―é‖ acima
dos fatos, estão sempre a favor da visão. O leitor poderá buscar e independente de qualquer criação Sua, acima da atual, como
outros, contanto que antes cuide de compreendê-los bem, para de qualquer outra possível, eis que Deus realiza, com respeito à
enquadrá-los no sistema e verificar se há correspondência. Tra- atual, a Sua primeira criação, feita de espíritos perfeitos. Ele
180 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
destacou do Seu seio, por amor, seres feitos à Sua imagem e vel compreender ambas as metades da unidade e depois reuni-
semelhança, para amá-los, incluindo-os na Sua própria felicida- las. Compreender de Deus um só aspecto, qualquer seja ele,
de. Isto ocorreu segundo um sistema cujos princípios funda- significa atingir uma concepção falha e unilateral. Admitindo
mentais eram aqueles mesmos que observamos na natureza do Deus apenas como transcendência, o ser se defrontaria com
Pai, que os gerara. Neste sistema, tudo era feito à Sua imagem e uma abstração de tal forma destituída de expressão, que ela se
semelhança. Ele era único e tudo encerrava, nada havendo fora confundiria no nada. O universo lhe pareceria, então, um autô-
e além Dele e dos Seus princípios e perfeição. mato vazio de alma, um sistema estático, incapaz de reconstru-
Ora, dada a liberdade do ser, inata no Sistema, por ser da ir-se e reerguer-se até Deus. Admitindo Deus apenas como
natureza de Deus, de que ele proviera, essa primeira criação imanência, chegaremos a um universo preso num caminho sem
perfeita degenerou em consequência da revolta, examinada nos fim, não tendo ponto de partida nem de chegada, uma unidade
capítulos precedentes. Parte dos seres permaneceu íntegra, in- despedaçada, sem possibilidade de reconstruir-se.
corrupta, e assim se conservou sempre, mantendo-se no sistema É necessário compreender essa descida do Deus transcen-
perfeito originário, por haver aderido livremente ao Deus trans- dente na imanência, em seguida ao desmoronamento do Siste-
cendente; outra parte rebelou-se e, por isso, corrompeu-se, dan- ma. Quando este, por culpa da criatura, se cindiu em dois, Deus
do origem a um segundo sistema, derivado e imperfeito, inver- não quis abandonar o sistema invertido, conservando-se presen-
tido, de oposição a Deus, tendo o centro em ponto antípoda, em te nele (imanência), para poder realizar assim a sua salvação,
polo oposto, no anti-Deus, em Satanás. O sistema único cindiu- em um trabalho constante de reconstrução (criação contínua),
se então em dois – Sistema e Anti-Sistema – nascendo o dua- pelo processo que denominamos de evolução. Deus, em perfei-
lismo de dois sistemas opostos, um perfeito e o outro imperfei- ta coerência com o princípio fundamental do amor, acompa-
to, não mais segundo um esquema de unidade íntegra, como an- nhou o edifício desmoronado que permaneceu Ele mesmo, em-
tes, mas segundo um esquema de unidade cindida, que não po- bora em posição invertida, um Deus em negativo, como se Ele
de existir senão constituída de duas partes inversas e comple- mesmo se tivesse invertido. Desta maneira, Deus se faz, por
mentares, opostas e fundidas conjuntamente. De então por dian- amor, imanente e, neste Seu segundo aspecto, desce às formas,
te, a unidade não poderá mais ser obtida a não ser através da lu- à criação, que assim se tornam em Sua manifestação ou expres-
ta entre as duas partes contrárias, princípio universal, que en- são. Eis de que modo o universo é regido pelo pensamento de
contramos por todos os lados. Essa é gênese do principio da Deus (a Lei). No fundo do Anti-Sistema está sempre o Sistema,
unidade e dualidade, sumariamente exposto em A Grande Sín- no fundo dos espíritos decaídos está sempre a originária cente-
tese. Por esta razão o nosso universo é construído de acordo lha divina. Não pode existir no universo nada que não seja
com esse esquema, desde o caso máximo até ao caso mínimo. Deus. Será um Deus invertido, mas será sempre Deus.
Agora podemos compreender por que Deus transcendente, e Aproximamo-nos agora de nosso mundo fenomênico, mais
não somente pessoal, visto ser Ele um ―eu sou‖, assim como controlável pela observação. O desmoronamento do Sistema é
todas as criaturas feitas a Sua imagem e semelhança, mas que representado pelo processo involutivo, que procede de
também pode ser considerado acima e independente de qual- , isto é, do espírito à energia e desta à matéria. Assim
quer criação Sua, além do bem e do mal, isto é, fora do esque- nasce a matéria. Eis a criação de nosso universo dinâmico e fí-
ma dualístico em que está baseado o universo atual. O dualismo sico. Compreende-se, pois, como esta não foi a criação originá-
nasceu com o referido desmoronamento do Sistema em seu An- ria, perfeita, operada por Deus, mas apenas uma inversão e uma
ti-Sistema e está destinado a ser sanado, representando, portan- corrupção dela, operada pela criatura, em razão da sua liberda-
to, apenas um momento na Divindade. Deus ―é‖ sempre, antes de, e não por Deus. Porém Deus não abandona o ser aberrante,
do desmoronamento e depois da reconstrução, além deste perí- mas abre-lhe de novo os braços, apontando-lhe uma via de re-
odo dualístico. No absoluto, Deus ―é‖ simplesmente uno, acima cuperação e redenção. Desta forma, Deus o aguarda no ápice do
desta cisão, que concluirá na junção das duas partes e, por isso, caminho oposto, dado pela evolução, que se processa de
constitui apenas um episódio no divino e eterno existir. , o caminho de nosso universo no planos físico, dinâ-
Foi, então, justamente com o desmoronamento do Sistema mico e, para os seres mais evoluídos como o homem, espiritual
no Anti-Sistema que se formou a contraposição: transcendência (). Eis por que o nosso é um universo em evolução e o motivo
e imanência. Esta cisão do único aspecto, o absoluto, de Deus por que a lei de ascensão é a lei fundamental de nossa existên-
em Deus transcendente e Deus imanente representa justamente cia. Não basta, contudo, ter verificado o fato, como nos volu-
a cisão do Uno, que, como Uno absoluto, reúne em si os dois mes anteriores. Precisamos compreender por que este fato exis-
aspectos. Ele é ambos ao mesmo tempo, estando acima da ci- te nessa forma. Por isso a dor é herança da criatura, sendo a re-
são, sem poder ser um só deles, ou seja, não é exclusivamente denção através das provas da vida o seu necessário e fundamen-
transcendente nem exclusivamente imanente. Desta forma, tal trabalho. É por esta razão que Cristo desceu à Terra e consti-
compreenderemos que a visão dualística, do Uno bipartido, é tui a figura central na história da humanidade.
relativa à posição do ser no universo atual e no período da ci- Podemos agora compreender o nosso universo. Ele é uma
são, não possuindo valor absoluto. Em outros termos, se enca- criação negativa, não a originária, mas uma segunda, derivada e
rado do seio de nosso universo, Deus pode parecer à criatura corrompida, consequência da primeira. Aqui, o primeiro siste-
como imanente ou como transcendente, isto é, pode ser conce- ma se inverteu, e o vemos revirado. Aqui, o espírito eterno e
bido sob dois aspectos diversos; porém, desde que saiamos do perfeito se precipitou na matéria caduca e imperfeita. O amor
relativo para o absoluto, devemos admitir a existência de Deus tornou-se físico, de corpos prontos a entrar em decomposição.
em um Seu só e único aspecto, que está além de qualquer dua- Aqui, a existência eterna se despedaçou no ciclo, em que gravi-
lismo e criação, ao qual denominaremos Deus absoluto. tam como duas metades os dois opostos vida-morte, encerrados
O ser vive, presentemente, imerso na cisão. Se concebe a no tempo. A felicidade naufragou na dor, o espírito infinito se
transcendência, é porque se coloca no aspecto imanência e, se enclausurou no limite do finito. A medida originária, incorrup-
concebe a imanência, é porque se põe no ponto de vista da ta, do ser não é o tempo, mas a eternidade; não é o finito, mas o
transcendência. Uma presume a outra, e ambas são complemen- infinito; não é o relativo, mas o absoluto; e assim para cada
tares, como duas metades do Uno indiviso. O ser é incapaz de qualidade humana, das quais só restaram ruínas. Explica-se
conceber fora de relações. Desaparecida a contraposição dos desta forma por que o instinto mais forte e a maior alegria do
contrários, a sua percepção e concepção se anulam. Para com- ser sejam a superação do limite. É que eles significam a reapro-
preender, pois, o Todo Divino, o Deus absoluto, é imprescindí- ximação do centro e o reencontro com o originário infinito.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 181
O universo que a ciência estuda é exatamente este inverti- Vejamos, pois, o processo de desagregação do Sistema – a
do, em que o Uno está pulverizado na infinita multiplicidade involução – que, mais tarde, retificar-se-á no processo oposto, o
fenomênica do relativo. evolutivo. Movemo-nos, agora, apenas dentro dos limites de
Pretender, com essa poeira conceptual, reconstruir o princí- nosso universo, isto é, no interior dos dois sistemas dimensio-
pio unitário e o esquema universal, a síntese máxima, tomando nais trifásicos acima mencionados.
contato com o mundo fenomênico através da observação e da Eis que os espíritos puros rebeldes, isto é, colocados em
experimentação, é simplesmente uma louca pretensão. É isto o posição sinistrogira, no sistema dextrogiro, provocam uma
que deseja fazer a ciência. Já em outra ocasião o dissemos, mas contração ou curvatura cinética na substância, que estamos ob-
só agora podemos saber as razões de semelhante absurdo. servando sob o seu aspecto de movimento. Inicia-se, então, o
Uma das vantagens, e mesmo novidade, da presente con- desmoronamento do ser ao longo da escala das dimensões. A
cepção está em ser uma síntese que pode fundir em um só sis- intuição sintética (visão direta da Lei – pensamento de Deus)
tema unitário o mundo físico e dinâmico ao espiritual, até contrai-se na simples racionalidade analítica e sucessiva, à gui-
agora inteiramente distintos, isolados, senão inimigos (ciência sa de volume que se dissipa em uma superfície. Então esta di-
e fé) entre si, sendo o espiritual negado definitivamente pela mensão (consciência) contrai-se ainda na dimensão tempo,
ciência. Mas somente com estas concepções é possível com- como uma superfície que se desfizesse em uma linha. Tais são
preender de que maneira o desmoronamento moral possa ter- as primeiras três etapas da descida: a superconsciência (espíri-
se tornado físico; de que forma, de uma cinética de conceitos to) transmuda-se em consciência (vida), e esta em tempo
(revolta dos espíritos) tenha podido nascer uma cinética invo- (energia). Mais para cima existirão outras fases e sistemas di-
luída da energia, que, por sua vez, congelou-se na matéria. O mensionais, dos quais e através de que o espírito pode ter sido
desmoronamento é moral enquanto permanecermos na dimen- precipitado, mas que não nos é dado conhecer. Assim, o siste-
são , consciência. Ele torna-se dinâmico quando o Sistema ma mais elevado, o II Sistema Dimensional, é demolido, e a
involve na dimensão inferior (mais afastado de Deus) da consciência, reduzida à linha no tempo, precipita-se ainda para
energia. E, finalmente, transforma-se em físico quando o Sis- os confins do sistema dimensional inferior, o I Sistema Dimen-
tema involve na dimensão matéria. sional, e mergulha então no volume, que para ela significa uma
Eis como surgem e se resolvem múltiplos problemas, tanto não-dimensão, isto é, anulação como consciência. O espírito
espirituais como físico-matemáticos, tendo todos a mesma raiz deixa, então, de existir como espírito, isto é, perde a consciên-
comum, o mesmo tronco unitário, que os coliga à mesma sínte- cia, anula-se como tal. Isto não significa a sua destruição, mas
se e a um idêntico princípio. apenas a sua anulação como vida e consciência na sua atual
Observemos agora as particularidades desse desmoronamen- forma de existência, passando a um estado de latência, no qual
to, que vai do espírito à matéria por uma linha contínua. Desta permanece sepultado. Assim, chegamos à matéria.
forma, obteremos igualmente as características da fase atual, evo- Começa, agora, um segundo período de demolição. O vo-
lutiva, inversa da precedente, involutiva, apenas com a reviravol- lume se contrai na superfície e esta na linha, que se anula no
ta de posição. Para compreender o desmoronamento e o caminho ponto. Assim o sistema dimensional inferior é também destru-
por ele percorrido em descida, na demolição do Sistema, é neces- ído. Com isto anula-se o ser, não somente como consciência e
sário que nos reportemos aos capítulos que tratam da evolução vida, como foi atrás descrito, mas também como forma inferi-
das dimensões, exposta em A Grande Síntese (Cap. XXXVI – or de existência, único meio que lhe restava, no fim do des-
―Gênese do espaço e do tempo‖, e Cap. XXXVII – ―Consciência moronamento do sistema superior, para continuar a existir
e Superconsciência. Sucessão dos sistemas tridimensionais‖). Em ainda que em condições inferiores à da forma de vida. A ma-
nosso universo, o nosso poder de concepção não abrange mais do téria era o túmulo em que o espírito se sepultava como morto,
que dois sistemas dimensionais trifásicos que, escalonados em di- em letargia. Agora, o túmulo também se anulou, porque o sis-
reção ascensional (para Deus) ou evolutiva, são: tema espacial foi anulado no ponto.
I Sistema Dimensional Trifásico: Procuremos compreender esse processo, repleto de ensina-
(Início: Ponto – não dimensão, o nada espacial) mentos em qualquer campo. Os capítulos acima mencionados
1a dimensão – linha; (XXXVI e XXXVII) de A Grande Síntese nos explicam como
2a dimensão – superfície; se constroem evolutivamente as dimensões mais elevadas, er-
3a dimensão – volume. guendo-se das inferiores. Este é o caminho inverso ao que foi
II Sistema Dimensional Trifásico: acima examinado; é o caminho de retorno. Abordemo-lo, para
(Início:Volume – não dimensão, consciência nula) percorrer assim o processo em todas as direções. O ponto é a
1a dimensão – tempo (percepção = linha) dimensão espacial nula. O universo espacial, nesta fase, encon-
2a dimensão – consciência (razão, análise = superfície) tra-se no vazio. A 1a dimensão, a linha, obtém-se elevando-se
3a dimensão – superconsciência (intuição, síntese = volume) uma perpendicular sobre o ponto. Que queremos significar com
tal afirmativa, além de qualquer representação geométrica?
Dimensão 1a 2a 3a Queremos dizer que, quando o centro do Sistema, no seu aspec-
Sistema Dimensão Dimensão Dimensão to cinético em que é aqui considerado, isto é, como movimento,
Sistema Dimensional irradia um pouco de si mesmo até ao ser, transfunde neste parte
Linha Superfície Volume de sua natureza e atributo. Então o ponto se move, e desse mo-
Trifásico – I
vimento nasce a linha. É princípio geral que se passa da dimen-
Sistema Dimensional Super- são inferior à superior, em qualquer nível, através sempre deste
Tempo Consciência mesmo processo, que, geometricamente, representamos como
Trifásico – II consciência
uma elevação da perpendicular sobre a dimensão inferior, pelo
Além destes dois sistemas está o inimaginável para a mente que esta é abandonada. Isto significa tão-somente um desloca-
humana. Embora, como dissemos no início do Cap. VI – ―Des- mento, por imissão cinética, da dimensão inferior em uma nova
moronamento e reconstrução do universo‖, o desmoronamento direção fora dela, que a leva além dos limites que a constituem.
provenha de dimensões superiores ao superconsciente, não po- Basta mesmo um pequeno deslocamento, contanto que se pro-
demos lhe traçar a análise, porque, ainda que se possa em parte cesse neste sentido, para que sejam superados os limites da di-
atingir a abstração físico-matemática, o fenômeno nos escapa, mensão inferior e alcançada a dimensão superior. Este é o sig-
porquanto dele nos foge qualquer possibilidade de representação. nificado que emprestamos aqui à expressão geométrica empre-
182 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
gada – elevação da perpendicular – expressão que adotamos rizar-se, congelar-se; e as mencionadas perpendiculares se
porque é concisa e de mais fácil representação. abaixam, em vez de se elevarem. Tudo se inverte no negativo.
Eis que a 1a dimensão, linear, atinge a 2a, superfície, através Enquanto antes passava-se para uma nova dimensão superior
do mesmo processo – perpendicular elevada sobre a linha ou, por imissão, por irradiação, provinda do centro, de novas quali-
também, deslocamento da linha em uma nova direção, fora da dades cinéticas e, portanto, com um movimento em novas dire-
precedente e, por conseguinte, do seu limite linear, e isto sem- ções, agora, na fase involutiva, de desmoronamento do Sistema,
pre por imissão cinética, por irradiação do centro do Sistema, ocorre o contrário. Passa-se para uma nova dimensão inferior,
DEUS, motor universal. É facilmente imaginável, tanto no sen- não pela interrupção da irradiação central, pois que Deus é
tido físico como no moral, uma semelhante emanação dinami- sempre benéfico, para onde quer que irradie, mas sim por des-
zante que, alcançando o ser, seja qual for o plano em que este gaste do Anti-Sistema, em virtude justamente do atrito por ele
se situe, possa imprimir-lhe um novo movimento, que o eleva à sofrido nessa irradiação benéfica, de modo que o bem, para ele,
dimensão superior. Da mesma forma, é fácil imaginar que, agora, em posição retrovertida, transmuda-se em mal e a potên-
quando, ao contrário, o ser é posto à margem de semelhante ir- cia construtora torna-se destruidora.
radiação (veremos depois como), desenrola-se o processo in- Sob esse impulso dinamizante, assim invertido, em assalto
verso, dado pelo abaixamento da perpendicular, isto é, contra- destruidor para os anti-sistemas (cuja culpa só lhes cabe, por se
ção de dimensão, processo em que o ser cada vez mais se con- terem posto contra a corrente), eles, para continuar a existir, re-
fina nos limites do próprio plano, dos quais antes se estava li- sistem, conseguindo-o através da contração crescente em torno
bertando. Nasce, assim, a superfície. do seu centro, ―eu‖ do sistema. A universal substância anima-
Atinge-se a 3a dimensão espacial, volume, pelo mesmo pro- dora do Todo, que agora observamos na sua natureza cinética,
cesso. Eis o volume, estando completo o primeiro sistema. fica assim isolada nestes antissistemas, fechados em si mesmos
Da mesma forma, pelo princípio de analogia e dos esque- e arredados da universal fonte do ser: o centro – Deus. Não po-
mas de tipo único, segue o processo da construção do sistema dendo ela mais alimentar-se do exterior, porque o Anti-Sistema
trifásico superior. No volume ou matéria, dimensão espacial está fechado e isolado, a substância cinética busca alimento e
completa, a 1a dimensão conceptual superior é nula. Mas, ele- vida restringindo cada vez mais em derredor do único centro do
vando-se uma perpendicular sobre o volume, através da imissão qual possa recebê-lo e que representa tudo o que lhe restou da
de novo potencial cinético pelo centro radiante, o volume se divina potência de que se destacou. Mas ele não é Deus, e sim
move. Nasce a energia na sua dimensão tempo, a 1 a do novo um centro menor, que se exaure. Abaixam-se, por isso, progres-
sistema trifásico, correspondente à reta. Os esquemas se repe- sivamente, todas as perpendiculares, cuja elevação, sob a irra-
tem analogicamente nas fases correspondentes do sistema infe- diação divina, permitirá ao ser subir para Deus. O movimento
rior ao superior, seguindo os mesmos princípios. Chegamos, as- se retrai, involvendo; a substância tende a perder a sua originá-
sim, à consciência linear, que ainda não pode expandir-se além ria e divina natureza cinética, para congelar-se em uma imobili-
da linha do seu transformismo e só conhece o seu isolado pro- dade crescente. Os anti-sistemas ficam assim sujeitos a um pro-
gredir no tempo. Com o mesmo processo, que chamamos ele- cesso de contração progressiva. E que significa contração? Sig-
vação de perpendicular, isto é, por imissão cinética, atinge-se a nifica sempre maior curvatura cinética, isto é, curvatura das tra-
consciência (vida), correspondente à 2a dimensão do sistema jetórias constitutivas do sistema cinético de que se compõem
espacial: a superfície. Fase subumana e humana, em que a todos os seres, desde o plano físico ao espiritual. Eis a razão pe-
consciência linear se deslocou em novas direções laterais e pô- la qual o espaço é e deve ser curvo, posto que ele não represen-
de percorrer, além da própria, também o transformismo de ou- ta senão uma fase do ser, sujeito a esses processos. Eis por que
tros fenômenos; sabe distinguir-se deles, aprende a dizer ―eu‖, a ciência pode falar de espaço em expansão ou contração. Eis
projeta-se no exterior, observa e julga. Estamos na fase racional por que também o tempo deve ser curvo e retornar inteiramente
analítica. Movendo-nos ainda em novas direções, por meio do ao ponto de partida. Os retornos cíclicos e periódicos que se ve-
que chamamos elevação de perpendicular, isto é, imissão ciné- rificam por toda parte confirmam esse fato.
tica e novo movimento, entramos na 3a dimensão do sistema Agora podemos melhor compreender a técnica observada
conceptual, que corresponde ao volume. Atingimos o campo do no fim do capítulo precedente, pela qual se dá a destruição dos
espírito, da intuição sintética, da visão direta da Lei, do pensa- espíritos maus, nos quais se personifica o mal. Eles são anti-
mento de Deus. Por tudo isso, compreende-se como seja a ação sistemas que se isolam e se imobilizam cada vez mais, por
dessa irradiação do centro do Sistema, isto é, a imanência de progressiva curvatura, até se anularem. Há uma descida de di-
Deus nele, que opera a evolução, a reconstrução do universo, a mensão em dimensão, da fase superconsciência à nossa cons-
sua redenção. Vemos, assim, como a originária lei do amor ciência racional, à fase de consciência linear (tempo). Deste
atinge toda a sua plenitude e como o ponto de partida, Deus, modo, o espírito, reduzido de uma estrutura volumétrica à de
tudo reconduz ao ponto de chegada, Deus. superfície e, enfim, à linear, está definitivamente sepultado
O exame desse processo nos exprime claramente o desen- como consciência, anulado na matéria, sua última forma de vi-
volvimento do fenômeno. Podemos agora, invertendo o cami- da, sem consciência. Ele pode continuar a existir assim, nega-
nho, compreender melhor o processo oposto, do desmorona- tivamente, ou então, desde que o deseje, inverter a rota para
mento, do qual pretendemos ocupar-nos em detalhes, observan- subir e evolver. A fase humana do mal não é a dos níveis mais
do-o mais de perto. O Sistema é um edifício regido pela radia- baixos. Em qualquer deles, porém, o ser está sempre diante de
ção dinamizante que emana do centro. Quando, na ordem uni- uma alternativa: retroagir, voltando a subir para o bem e para o
versal dextrogira, os elementos se isolaram pela revolta, eles centro-Deus, ou então continuar a descer até ao aniquilamento.
então se tornaram sinistrogiros, arvoraram-se em centro, com a Neste último caso, por meio do habitual processo, abaixar-se-á
pretensão de irradiar, mas só conseguiram fazê-lo no exíguo a perpendicular, cuja elevação erguera da superfície ao volu-
círculo dos seus satélites ou elementos sequazes. A grande me, conduzindo de novo este, como por achatamento, à super-
emissão cinética dinamizante, emanada do verdadeiro e máxi- fície. Depois se abaixará a perpendicular que elevou a linha à
mo centro, Deus, não pode agir para eles como impulso dina- superfície, e esta, como que se achatasse, reduzir-se-á à linha.
mizante, pelo contrário, como eles se tornaram de sinal oposto, Finalmente se abaixará a perpendicular que elevou o ponto à
ela só pôde atuar como atrito, resistência, impulso frenador, isto linha, e esta, como que achatando-se, reduzir-se-á ao ponto.
é, como força não construtora, mas demolidora do Sistema. Estamos no final do processo. A contração se completou, o
Começou, então, ele a demolir-se automaticamente, plano por Sistema se anulou, todo o edifício se reduziu a um ponto, a
plano. Ao invés de expandir-se, contrair-se; em lugar de vapo- uma não-dimensão. O núcleo, último reduto do Anti-Sistema,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 183
continuará ainda como rebelde sinistrogiro, girando sobre si fenômeno expresso em termos geométricos espaciais. Mas, na
mesmo. Mas, por fim, mesmo essa reserva cinética será destru- realidade, a substância do fenômeno é abstrata; é um pensamen-
ída pelo atrito contra as radiações dextrogiras dominantes, e to reduzível a cinética, que pode involver no dinamismo linear
esta última substância componente também será retomada na da energia e aprisionar-se no dinamismo fechado da matéria.
corrente positiva do ―eu sou‖. É desta maneira que os anti- Então, o que se contrai nas demolições do espaço não é o volu-
sistemas que quiserem persistir como tais são submetidos a um me ou a matéria, mas sim a construção criada por esta ideia abs-
processo progressivo de achatamento até à sua destruição, en- trata e nela projetada. O que se contrai não é apenas o movimen-
quanto a substância que os compõe, sendo indestrutível, vem a to constitutivo da forma, mas o seu princípio abstrato diretivo, o
ser utilizada em favor do sistema Uno-Deus, pois que a des- pensamento que a isso preside. Como se vê, caímos em uma
truição é da individualidade (eu), e não da substância. terminologia que soa demasiado estranho à nossa mente habitu-
Essa é a técnica que garante a destruição do mal e a vitória ada a outras medidas e a outros conceitos. Estamos frente ao
final e absoluta do bem. inimaginável e inexprimível, isto é, à progressiva demolição do
◘◘◘ espaço por demolição do conceito diretivo do fenômeno espaço,
Para tornar compreensível um fenômeno substancialmente como se a fórmula matemática que o rege fosse gradativamente
abstrato, que abrange todas as formas do ser, do puro espírito à perdendo os seus elementos constitutivos, simplificando-se cada
matéria, recorremos a representações geométricas, que nos fa- vez mais, desprovida de seus componentes, até transformar-se
cultaram a possibilidade de formar uma imagem de tudo. Mas em ‗0‘. O zero seria o nada conceptual e matemático, o momen-
já é tempo de nos darmos conta de que elas não constituem a to final e conclusivo na anulação do desmoronamento do siste-
realidade, não passando de uma representação nossa. Cabe, en- ma sinistrogiro. Uma representação mais concreta do fenômeno
tão, indagar qual é a verdadeira fisionomia do fenômeno da é impossível. Esta é, talvez, uma prova em favor da tese aqui
destruição do edifício do ser, assim como a do fenômeno in- sustentada, pois nos diz que estamos absolutamente fora do an-
verso, de sua reconstrução. Será essa abstração facultada ao tropomorfismo, a que tudo tendemos reduzir para nossa como-
homem, de modo a fazê-lo apreciar o fenômeno em sua subs- didade de concepção. Na realidade, é lógico que as visões do
tância? Que haverá de verdadeiramente real por trás da repre- universo serão tanto mais verídicas quanto menos sejam antro-
sentação que dele demos? pomorficamente imagináveis. Assim deve ser para a demolição
Para sermos mais compreensíveis, tivemos de encarar o do espaço, visto que ela não ocorre na fase em que vive o nosso
Todo no seu aspecto cinético. Deste ponto de vista, o impulso universo e, como realidade inimaginável, está fora do alcance da
() representa um dinamismo livre em todas direções possí- experimentação e observação. Das coisas não podemos conceber
veis; a energia () representa um dinamismo encarcerado na a realidade absoluta, mas só em relação a nós mesmos.
transmissão linear por ondas; a matéria () representa um di- Concluamos. Embora por intermédio de representações de
namismo completamente fechado em trajetórias que retornam valor relativo, podemos formar uma ideia da real estrutura ín-
sobre si mesmas. Na realidade, então, também notamos um tima, funcionamento e transformismo de nosso universo e de
processo de curvatura do Sistema. Nas grandes dimensões, a nossa posição nele. Nós, seres humanos, estamos a meio cami-
energia segue linhas curvas até ao fim, e estas retornam ao nho, suspensos entre o abismo do aniquilamento e o cume da
ponto de partida. Assim, o espaço é curvo, como o é também a perfeição. Sendo livres, vamos para onde quisermos. Natural-
estrutura atômica e planetária. Portanto tudo é curvo, porém mente, vemos o universo consoante a posição que nele ocupa-
não com uma curvatura estática e constante, mas sim em ex- mos. Damos importância ao universo físico porque nele se
pansão e contração, por trajetória espiralóide. Eis a trajetória apoiam nossos pés, mas pouco discernimos o universo espiritu-
típica dos movimentos fenomênicos (vide A Grande Síntese, al, que, se quisermos evolver, representa a nossa vida de ama-
fig. 4, Cap. XXV). Tudo, pois, tende a expandir-se ou a contra- nhã. Mas, agora, em virtude do que dissemos, estamos aptos a
ir-se: esta é a respiração do universo, em dois tempos opostos. ter desta visão o panorama completo do Todo. Vejamo-lo.
E tudo isto confirma e explica a nossa precedente representa- Transpondo os limites da estreita visão focada somente no
ção geométrica. Mas o fenômeno, na sua substância, deve po- universo físico e dinâmico, veremos o Todo como um sistema
der assumir infinitas formas e ser susceptível de infinitas re- bipolar que – repetindo, como tudo o que existe, o esquema má-
presentações. Uma delas, porém, que tenhamos escolhido é su- ximo – pode deslocar-se para um ou outro dos seus polos e só
ficiente para nos fazer compreender o seu andamento e a sua existe realmente enquanto oscila entre os seus dois extremos
fisionomia. Qualquer seja o ponto de vista, trata-se sempre de opostos. O sistema do Todo possui, portanto, dois polos para os
uma inversão para o negativo, que pode manifestar-se como quais tende: um, para atingir a plena existência; outro, para atin-
congelamento ou solidificação cinética, como contração ou gir o aniquilamento. Esses polos podem chamar-se positivo e
curvatura do Sistema, como um aprofundar-se do espírito na negativo: do ser, em Deus; do não-ser, em Satanás. Ao primeiro
matéria, uma destruição da consciência, e assim por diante. se sobe evolutivamente, por . O sistema negativo não é
Certo é, no entanto, que pudemos aqui fundir em unidade to- senão a contraparte do positivo, com o qual forma uma unidade.
dos os fenômenos, desde o moral da queda dos anjos até à pro- Ele é, por sua natureza, destinado à anulação em favor do se-
gressiva demolição do espaço a um ponto; desde o da involução, gundo, que, por sua natureza, está fadado à afirmação e ao triun-
ou criação, até ao da evolução. Ora, o denominador comum en- fo final. O ser poderá oscilar, mas, no fim, deve tomar uma dire-
tre fenômenos para nós tão distantes um do outro, não pode dei- ção e sofrer as consequências da sua livre escolha. Os dois polos
xar de ser um conceito que, para ter valor universal, deve ser de são dois extremos a que tudo deve chegar. Quem sobe segue
natureza extremamente abstrata, além do concebível humano. uma curva que se abre, em expansão, dilatando-se a tal ponto,
Eis realmente o que existe por trás da representação que demos que atinge o infinito em Deus. Quem desce, segue uma curva
ao fenômeno: uma abstração que, para o homem atual, se perde que se fecha em contração e que, restringindo-se sempre, acaba
no superconcebível. A ciência se encontra em condições idênti- no vazio, em Satanás. Quer no positivo, quer no negativo, o Sis-
cas ao definir a substancial e última estrutura do átomo, só nos tema obedece ao mesmo princípio da curvatura cinética. Embora
podendo dar uma equação matemática. a representação geométrica não nos dê a substância do fenôme-
Deste modo, limitando-nos apenas à demolição do espaço no, ela, contudo, no-lo torna tão claramente imaginável, que po-
(volume) até ao ponto, o conceito de progressivo achatamento demos dele fazer um esquema gráfico. Devemos ao princípio
de dimensões é puramente representativo. Certamente é mais fá- das analogias e ao dos esquemas em tipo único a possibilidade
cil de imaginar, com a nossa psicologia concreta e sensória, um de reproduzir em nosso plano, ou seja, em nosso imaginável,
184 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
uma estrutura universal que, de outra forma, estando fora desta Como já foi dito em A Grande Síntese e pouco acima, em
idealização, na zona do inconcebível, seria para nós inacessível. nosso universo () e em nossa fase, que é a evolutiva (vai de
Temos, portanto, uma cinética, de um lado, em abertura e, – a +), os três estados sucessivos da substância S são: ma-
de outro, em convergência sobre si mesma, fechando-se. De um téria=, energia=, espírito=; que, com o simbolismo aqui
lado, o ser se dinamiza, potencia-se e se liberta. Eis o progres- adotado, serão respectivamente:
so, superação de dimensões (a técnica que progressivamente S0, S1, S2.
supera o limite espaço e tempo). Isto está no instinto e constitui
a alegria e o triunfo da vida. De outro lado, esta se contrai, con- O conjunto dos universos 1, 2, 3 etc. forma , que em
gela-se e imobiliza-se. Eis por que os anti-sistemas sinistrogiros símbolo será: =. Naturalmente, tudo isto não diz respeito à
se enfraquecem, por não poder, como negativos que são, usu- parte do Sistema que permaneceu íntegra, a que não desmoro-
fruir da divina irradiação positiva. Eles ficam, então, isolados nou pela revolta e queda dos anjos. Essa parte continuou na sua
no Sistema e imobilizados pela sua curvatura cinética progres- perfeição, sem tomar o caminho do vir-a-ser (transformismo
siva, acabando afinal desgastados pelo atrito contra a corrente, involutivo – evolutivo).
anulados e reduzidos ao ponto, não-dimensão. Assim consoli- Ora, pelo princípio de liberdade já admitido, que aqui é de
da-se a fratura e se dá a reabsorção do dualismo do Uno – triun- liberdade de movimento no transformismo em um instante
fo final do Sistema sobre o Anti-Sistema. Eis a visão completa genérico, encontraremos em  todos os estados possíveis des-
do universo uno, regido por um princípio único, que se inverteu de S– até S+. Mas entre eles haverá a seguinte diferença: na
em consequência da revolta da criatura, mas apenas para endi- 1a fase, descida involutiva, os estados da substância se trans-
reitar-se de novo; que se despedaçou, mas somente para reuni- formam segundo a lei supradita de S+ para S–; na 2a fase, de
ficar-se ou, onde o ser não quiser a existência, anular-se. ascensão evolutiva, os estados da substância se transformam
Desta forma, foi enquadrada e ampliada a concepção de A de S– para S+.
Grande Síntese, ficando completa a visão do Todo. Vimos que, em termos de dinâmica, a revolta consistiu em
◘◘◘ introduzir no sistema de forças originário dextrogiro (positivo)
Vamos agora retomar em síntese os conceitos até aqui ex- um vórtice de forças sinistrogiras (negativas), funcionando
postos, exprimindo-nos não com símbolos, mas com fórmulas como Anti-Sistema, menor no Sistema. Então, na 1 a metade do
matemáticas. Podemos, assim, contemplar de uma só vez toda a ciclo (fase involutiva, de desmoronamento) atua e domina o
visão da existência, do princípio ao fim. elemento negativo, tendente ao estado – (caos, plena realiza-
Todo o processo involutivo-evolutivo poderia ser represen- ção do Anti-Sistema), o que quer dizer que é este Anti-
tado por um círculo, cuja metade direita exprime o período ou Sistema, constituído de vórtices sinistrogiros, que desgasta em
fase de ida em descida ou desmoronamento do Sistema, e cuja seu favor o sistema dextrogiro de forças, enriquecendo-se com
metade esquerda exprime o período ou fase de retorno em as- esse desgaste. Atingido no ciclo, porém, o ponto crítico de sa-
censão ou reconstrução do Sistema. Neste, que é o ciclo do turação no negativo, o processo inverte-se. Na segunda meta-
transformismo, o ponto de partida e o de chegada coincidem. de, é ativo e domina o elemento positivo, oposto, tendente ao
Esse é o polo positivo do Sistema, do qual se parte e ao qual se estado + (ordem, realização plena do Sistema), o que signifi-
retorna, atravessando os seus antípodas no polo negativo. ca que é o sistema dextrogiro que desgasta em seu proveito o
Nas gravuras 1, 2, 3 etc. de A Grande Síntese, só foi anali- anti-sistema sinistrogiro, enriquecendo com o desgaste deste. E
sada particularmente a segunda metade do ciclo, a evolutiva, assim, após haver atingido no ciclo o ponto crítico de satura-
que vai de – para +, aquela que agora estamos vivendo, ten- ção no negativo, agora se alcança o correspondente no positi-
do sido deixado de parte o estudo da sua primeira metade, a in- vo, ponto que, como vimos, coincide com o de partida, mercê
volutiva, que vai de + para –. Mas o semiciclo evolutivo é do que, o sistema desmoronado acaba, finalmente, por encon-
composto de várias criações ou universos 1, 2, 3 etc., ex- trar-se em um estado em que tudo está perfeitamente refeito e
primindo-se por  o seu conjunto ordenado ou organismo de reconstruído. É natural que as duas fases de desgaste e pro-
universos (cfr. Cap. XXIII de A Grande Síntese e suas figuras). gressão devam ser inversas e complementares, como as duas
Tendo presentes as referidas figuras e conceitos, procuremos metades que se equilibram e compensam em um sistema único,
desenvolvê-los com formulação matemática. Indicando por S a dividido em dois períodos equivalentes, um de ida e outro de
substância e com o índice numérico colocado abaixo o estado retorno. Isto corresponde também a uma necessidade lógica e,
em que ela se encontra, substituamos os símbolos usados em A além de tudo resolver, satisfaz a razão.
Grande Síntese pelos seguintes: Todo o processo se reduz a uma elaboração íntima de , que
do estado de + transforma-se, pelo desmoronamento, até che-
–y=S-2 ; –x=S-1 ; =S0 ; =S1 ; =S2 ; +x=S3 ; +y=S4 ; etc. gar ao estado de – e supera este, autorreconstruindo-se, até re-
Então o processo involutivo no tempo (tempo que já defini- tornar ao estado originário +. E sabemos que + significa o
mos como ritmo do vir-a-ser ou do transformismo fenomêni- estado orgânico de perfeição, de ordem, da criação originária,
co), para um elemento isolado, poderá ser representado assim em que Deus, o bem a felicidade e o amor triunfam; como tam-
(deve-se ler a expressão da direita para a esquerda, apresentada bém sabemos que – expressa o estado de desorganização, de
desta forma para melhor compará-la com as semelhantes das imperfeição máxima, de caos do universo desmoronado, em que
linhas seguintes): Satanás, o mal, a dor e o ódio triunfam. Assim como a criação
de origem foi uma construção orgânica feita por Deus em Seu
S–  ...  S–2  S–1  S0  S–1  S0  S1  S0  S1  S2 seio (o Todo no Todo), também essa elaboração do desmorona-
 S1  S2  S3  S2  S3  S4  ... S+ mento e reconstrução, indo da ordem ao caos e do caos à ordem,
Esta expressão significa que o elemento substância se trans- ocorre sempre no seio de Deus (o Todo no Todo), ou seja, está
forma do estado de máxima evolução (S+) no de máxima invo- compreendida no âmbito da circunferência que fecha o ciclo de
lução (S- ). ida e volta. Em outros termos, é sempre a mesma substância do
De outro lado, o processo evolutivo poderá ser representado Todo-Deus que assume, nos vários estados de , nosso univer-
assim: so, as formas de , , , aparecendo-nos em cada um deles essa
substância segundo o seu estado de transformismo.
S–  ...  S–2  S–1  S0  S–1  S0  S1  S0  S1  S2
É assim, pois, que todo o processo se executa, aumentan-
 S1  S2  S3  S2  S3  S4  ... S+
do sempre no semiciclo involutivo a transformação de S+
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 185
para S– e, no semiciclo evolutivo, a transformação de S – IX. CONFIRMAÇÕES EM NOSSO MUNDO
para S+. Deste modo, ao término do semiciclo involutivo, a
substância de  terá assumido totalmente o estado S –; e, ao ―Portae inferi non preavalebunt‖ 5. Justo. Mas por que? Só
término do semiciclo evolutivo, a substância de  terá assu- agora podemos compreender as razões. A concepção dualística
mido totalmente o estado de S+ (ordem). acima exposta nos revela que, ao lado das forças boas do Sis-
Analisando então  nos instantes extremos (máximo e mí- tema, existem as satânicas do Anti-Sistema, que procuram in-
nimo) do ciclo e em um instante genérico situado tanto no se- verter todo o Sistema, para arrastá-lo igualmente na própria fa-
miciclo da sua involução como também no semiciclo da sua tal destruição. Mas em vão! A estrutura do Todo nos diz que o
evolução, que são representados com os símbolos: mal está irremediavelmente condenado em virtude da própria
(tp) = instante inicial (princípio) do ciclo de delta; posição por ele assumida no Sistema e pela própria natureza
(tgi) = instante genérico do semiciclo involutivo de delta; deste. O seu reino é periférico, está na forma. Ele pode encar-
(t max i) = instante máximo final do semiciclo involutivo niçar-se contra os efeitos, mas as causas primeiras estão além
e inicial do semiciclo evolutivo de delta; do seu assalto. Não ele, mas somente Deus detém o timão da
(tge) = instante genérico do semiciclo evolutivo de delta; grande nave do universo.
(t max e) = instante máximo final do semiciclo evolutivo e Na estratosfera do pensamento está, pois, a grande paz das
final também de todo o ciclo delta, instante em que tudo re- coisas eternas. Ali, Satanás não chega, e tanto mais lhe fugire-
torna ao estado inicial de perfeição; mos quanto mais subirmos. Mesmo no reino da matéria, a sua
vitória está encerrada no tempo. A eternidade supera e vence o
teremos os estados da substância de  nos vários instantes da- tempo. Mas, por ora, a Terra é um dos seus reinos. O nosso
dos por: mundo faz parte do universo desmoronado, e, por este motivo,
(tp) = S+; isto é, toda a substância se encontra no estado a vida se desenvolve aqui em uma atmosfera de revolta, de mal
S+; e dor. Aqui, as forças satânicas podem manifestar-se, isto é,
(tgi) = S+ ... S4  S3  S2  S3  S2  S1  S2  agir em sentido sinistrogiro, e, por isso, as vemos exprimirem-
S1  S0  S1  S0  S–1  S–2 ...S–; isto é, em um ins- se na pulverização de tudo no relativo. Dividir a unidade, fraci-
tante genérico de involução da substância, encontramos oná-la cada vez mais, até à sua destruição, este é o impulso de
contemporaneamente todos os seus estados, que se trans- Satanás, com objetivo de demolir o sistema dextrogiro, unifica-
formam em S-; dor, retificador, tendente à plenitude da vida. Eis porque na
(t max i) = S–; isto é, toda a substância do sistema des- Terra se eleva a barreira do limite a cada passo, sufocando a
moronado encontra-se no estado S–; alma anelante de infinito, de que nasceu e de que é feita. Eis o
(tge) = S– ... S–2  S–1  S0  S–1  S0  S1  S0 espaço dividido, que nos torna rivais. E o espaço em si mesmo
 S1  S2  S1  S2  S3  S2  S3  S4 ...S+; ou se- não tem limites! Eis o tempo seccionador, reduzido a medida de
ja, em um instante genérico de evolução da substância, en- esforço e de ganho (―tempo é dinheiro!‖) e o temor de que nos
contramos contemporaneamente todos os seus estados, que falte tudo. E o nosso espírito é feito para a eternidade! Eis a luta
se transformam em S+; pela riqueza e o anseio infinito da alma ligada às efêmeras ale-
 (t max e) = S+; isto é, toda a substância do sistema des- grias de um corpo caduco, quando riqueza e alegria são infini-
moronado exauriu o seu ciclo, atingindo o estado final S+, tas em Deus! Eis a um passo, ao alcance da mão, uma abundân-
para refundir-se, porque se tornou idêntica à parte do Sis- cia sem par, mas ser dela separado pela incapacidade de con-
tema que, não se tendo revoltado, não desmoronou. Em ou- quistá-la! Deus aí está e nos aguarda, no entanto não sabemos
tros termos, a conclusão de todo o processo, o resultado fi- alcançá-Lo por preguiça, ignorância e incapacidade de compre-
nal, é que toda a substância que se corrompera se restabele- ender! Que barreira tremenda é a nossa involução!
ceu, do estado S- para o estado S+. Isto significa o triunfo Estamos no reino da subversão dos valores. Tudo de calmo,
final do bem sobre o mal, de Deus sobre Satanás, com a eterno e estável faz-se agitado, fracionado, incerto. Tudo se torna
anulação do aspecto negativo e a afirmação absoluta do as- calculado, pensado, pesado, medido, disputado. Assim nascem a
pecto positivo da substância. miséria e a dor. Aí está o império do contingente, o afã de subdi-
Em termos matemáticos, todo o processo pode ser represen- vidir a atenção em particularidades, na análise sem fim do relati-
tado pelas duas expressões limites: vo. Eis o vórtice da civilização moderna, que, com espírito satâ-
nico, porfia por triturar o espírito entre as engrenagens de suas
máquinas; que, com a miragem de umas tantas vantagens materi-
Lim  = S– ais, destrói a maior riqueza da alma, que é a bondade. Vive-se,
assim, sob o terror de que falte tudo, quando tudo é infinito.
t  max i
Se fôssemos capazes de compreender que somos criaturas
de Deus, isto é, filhos do Pai Supremo, que o universo é cons-
truído para a nossa vida, primeira necessidade, e que esta é, por
consequência, sumamente protegida por nosso Criador, que nos
Lim  = S+ ama, não haveria razão para tantas e inúteis aflições.
t  max e É o Uno íntegro que aterroriza Satanás, que, não conseguin-
do destruí-lo, procura demoli-lo, subdividindo-o o mais que
pode. Percebe-se nisto uma íntima vontade de pulverização, pa-
A primeira nos representa o universo no polo Satanás, po- ra chegar à destruição. Fragmentar, triturar, dividir e atirar um
dendo ser chamada a fórmula do desmoronamento, que o pro- 5
cesso apenas atravessa. A segunda nos representa o universo no A frase foi extraída da VULGATA: ―Portae inferi non preavalebunt
polo Deus, podendo ser chamada a fórmula resolutiva do uni- adversus eam‖; ―As portas inferiores (do Inferno, do Hades) não preva-
lecerão contra ela‖, isto é, as forças inferiores, infernais não vencerão as
verso, momento em que o processo, que teve um início, terá um do bem. Ela faz parte do contexto evangélico de Mateus, 15:20, quando
fim, reintegrando-se tudo no estado perfeito de origem. Assim, Jesus Cristo se dirigiu a Simão Pedro, em misteriosa e solene revelação,
o princípio e o fim se reúnem em um ciclo que se fecha sobre si dando-lhe ciência de sua futura missão na terra. Aqui, Pietro Ubaldi atu-
mesmo, e o Todo, o infinito, Deus, permanece o que sempre foi aliza o conteúdo dessa remota revelação, reafirmando que as forças do
e será, e simplesmente ―é‖. bem jamais serão vencidas pelo mal. (N. do T.)
186 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
contra o outro, a dissensão, a contradição, a ânsia, o tormento, a pelo mal e a perfeição está no caos. A grande luta em nossa fa-
guerra, tal é o ideal subvertido de Satanás. se se trava entre os dois princípios e hierarquias, pela recons-
Se descermos das grandes visões sintéticas para a realidade trução do estado originário orgânico, partindo do estado inor-
quotidiana de nosso mundo, veremos que elas também são verí- gânico caótico, em que caímos e do qual evolvemos.
dicas aí, onde as teorias acima expostas encontrarão contínuas Por este motivo, as nossas hierarquias humanas são falsas e
confirmações. Nem mesmo se pode mesmo explicar e compre- fictícias, não correspondendo aos valores intrínsecos, pois, ge-
ender a nossa realidade a não ser em função delas. Por que, por ralmente, elas expressam mais a anti-hierarquia do Anti-
exemplo, o homem é tanto mais destruidor quanto mais involuí- Sistema do que a hierarquia do Sistema.
do? De onde deriva o instinto vandálico dos primitivos? É que Mas, também em outros campos, a evolução procede do ca-
quanto mais involuído o indivíduo, tanto mais próximo está do os à ordem. No plano social, o legislador humano repete o gesto
pólo negativo do ser e tanto mais afastado do positivo. Quanto de Deus, que enquadra a Sua criação na Lei. Legislador a prin-
mais for involuído, tanto mais na periferia do Sistema se encon- cipio armado de sanções ferozes e do terror das penas, para de-
tra o ser, tanto mais distante do centro genético de Deus, tanto pois apoiar-se, cada vez mais, na convicção, na consciência da
mais invertido no sistema oposto, de destruição. Assim pode-se utilidade de seguir a lei. Assim avança-se para a livre e espon-
compreender como era fatal que Cristo encontrasse o martírio na tânea observância, que substitui a coação. Quanto mais o indi-
Terra. Que mais pode encontrar aí quem, provindo do centro, se víduo é capaz de compreender, tanto menos severa se torna a
lança para a periferia, reino do Anti-Sistema? Aqui, a manifesta- disciplina, transformando-se sempre o legislador mais em ami-
ção do ser é a agressão e a destruição. Elas tiveram de defrontar- go que ajuda do que em um opressor. Assim também a ideia de
se com o amor de Cristo, que, com o amor, deveria vencê-las. Deus legislador abranda-se nesse sentido, com o progresso da
Que o princípio da destruição seja próprio da periferia do consciência dos povos. Desta forma compreende-se como o ter-
Sistema e o princípio genético seja próprio do centro, prova-o ror de um inferno feroz e eterno – ainda que, em Deus, essa
também o fato de que as formas da vida, para sobreviver, têm ideia ofenda o princípio fundamental do amor – tenha sido e se-
que, continuamente, travar luta, resistir a assaltos, suportar um ja uma necessidade psicológica para disciplinar o involuído.
ambiente hostil, em que se faz sentir uma ação destruidora em A visão do Sistema acima exposta explica-nos também um
seu exterior, enquanto, de seu interior, onde reside o princípio outro fato, ao qual já acenamos no Cap. III – ―Egocentrismo‖.
genético, que todo ser possui no íntimo, elas recebem continu- Por que o método do mal é oferecer primeiro a alegria e depois
amente recurso de reconstrução (defesas orgânicas, reparação afogá-la na traição da dor, enquanto o do bem, ao contrário, é
de tecidos etc.). A vida se manifesta, efetivamente, do interior exigir primeiro o esforço, para em seguida dar a justa e propor-
para o exterior: esta é a direção do fenômeno. Este se nos apre- cional recompensa? Tudo agora se torna lógico, pois se trata de
senta como uma floração contínua, por obra de um influxo posições opostas, nos dois polos contrários do Sistema. Os mé-
emanado de um imponderável no íntimo do ser, que faz pressão todos, efetivamente, são de oposição entre si. O primeiro con-
para manifestar-se no plano físico. Uma vez neste, fica sujeito a siste em sacar o gozo a crédito, sem a intenção de pagar; méto-
contínuos atritos e assaltos (sistema sinistrogiro), num desgaste do desequilibrado, desonesto, irresponsável, adaptado à consci-
lento até à morte, mas, sustentado por um íntimo impulso vital ência do involuído, que, em sua ignorância, é levado a fraudar,
(sistema dextrogiro), luta pela sobrevivência e prepara ao mes- pois crê ser isto possível e útil. O segundo antepõe o esforço à
mo tempo, com a reprodução, a imortalidade. alegria, a fim de que tudo seja merecido; método equilibrado,
Por tudo isso, a fadiga e a luta de viver são necessárias, por- honesto, de quem se sente responsável; método consentâneo
que da experiência nasce a evolução, que leva o ser a nível su- com a consciência do evoluído, levado, por haver compreendi-
perior. Encontramo-nos no ponto de atrito (dor) entre os dois do, a proceder com justiça, certo de que só isto é útil e que o
sistemas, devendo ser nosso o trabalho de reconstrução com o contrário é nocivo. No primeiro caso, gera-se a confusão tanto
desgaste do sistema sinistrogiro (o mal) em favor do sistema para o indivíduo como para o Sistema; no segundo, a sincerida-
dextrogiro (o bem). Devemos restaurá-lo, porque nós o destru- de está em toda parte. Cada qual coloca-se em um dado ponto
ímos. E a justiça de nosso domínio sobre os seres inferiores se do Sistema, segundo a própria natureza. Se for involuído, per-
explica pelo fato de que, com o nosso esforço, mais temos manece na periferia, com um tratamento relativo ao seu nível;
avançado no caminho da reconstrução. se for evoluído, ascende ao centro, com resultados opostos. O
Este árduo trabalho não pode ser executado pelo espírito Sistema subverte-se tanto mais quanto mais periférico for o ser.
senão nas zonas periféricas da destruição, onde a matéria ofe- Avizinhando-nos do polo negativo do ser, a livre lei moral
rece mais resistência e o ambiente é mais hostil. Ele, aí, tem do evoluído involve de tal maneira, que se precipita no deter-
que se submeter ao sacrifício e à dor, para promover a evolu- minismo da matéria. Já no fim do Cap. V, dissemos que Dante
ção, isto é, aquela elaboração para a qual as zonas mais calmas colocou Satanás no fundo do inferno, no centro da Terra. Aqui,
do centro não poderiam oferecer nem a oportunidade nem o a condensação física é máxima, como o é a pressão gravífica,
material. Mas outra razão ainda existe para isso. A queda foi ao passo que o purgatório se eleva no sentido oposto, utilizan-
no estado de matéria, e o ser deve ressurgir dela, através dela, do, como na técnica reconstrutiva do Sistema, o material pro-
carregando-a consigo, como seu corpo. A carga só poderá ali- duzido pela ação do mal, para caminhar rumo ao céu, ao bem,
viar-se pela sua purificação e reespiritualização, operada pela espiritualizando-se, à medida que se distancia da matéria. As-
dor. Decaído na matéria, ele deve reerguer esta parte decaída sim, também na concepção de Dante, o abismamento de Lúci-
de si mesmo, reconduzindo-a, com o próprio esforço, ao primi- fer é um meio para a formação do purgatório, instrumento do
tivo estado de pureza e perfeição espiritual. Por este motivo, a bem, meio de expiação. Desta forma, o mal, em última análise,
evolução do ser se processa na matéria. Por mais afastada que torna-se um meio utilizado para a libertação do próprio mal.
seja, essa projeção na periferia tende e serve para elevar o ser Os produtos da ação do mal, que escavou o abismo na Terra,
até ao centro. O Sistema, contra todas as resistências do Anti- servem para a edificação de um monte fora dela, no qual se
Sistema, é sempre construtivo. prepara a realização dos fins do bem.
Essa evolução procede do caos para a ordem, em todos os Se soubéssemos ver em profundidade, poderíamos bem dar-
planos. A primeira criação de espíritos foi um estado orgânico nos conta deste fato, que se repete em tantos eventos de nossa
perfeito, onde reinava uma ordem hierárquica. O desmorona- vida, pelo qual o mal acaba por gerar o bem.
mento convulsionou essa ordem em uma hierarquia subvertida, Os nossos juízos sobre a ação divina se detém na superfície
uma anti-hierarquia do Anti-Sistema, contraposta à hierarquia e se limitam ao momento, mas ainda assim pretendemos com
do Sistema. Na anti-hierarquia, o deus é Satanás, o bem é dado eles concluir a respeito de problemas que desconhecemos. Fre-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 187
quentemente, não se pode conseguir algumas construções a não Que sucede, podemos agora indagar, quando um homem
ser por reação ao mal, que é o impulso a que o involuído mais pratica o mal? A técnica do Sistema, como acima foi observa-
obedece. Então, a força mobilizada não pode ser o bem, mas do, diz-nos que ele, na sua ignorância, crendo praticá-lo em
apenas o mal. Por isso, as guerras, que parecem tão inúteis e seu favor, na realidade opera em seu detrimento. Praticar o mal
homicidas, são muitas vezes úteis para determinar entre inimi- significa dispor-se a marchar contra a corrente do Sistema, in-
gos, que de outra forma se odiariam, a necessidade de coalizão troduzir-se na corrente inversa, isto é, enveredar pela via da
com o objetivo de defesa comum, levando-os à unificação, uma autodestruição. A vantagem imediata poderá dar-nos a ilusão
das grandes vias evolutivas que nos conduzem a Deus. de vitória, mas é necessário ver o que se paga por ela, o que ela
A sabedoria da Lei se revela com frequência ao excitar as nos vem custar em nossa ruína espiritual, isto é, em demolição
nossas possibilidades latentes, para que o bem, que está dentro de nosso ―eu‖. Isto significa inverter todos os valores da vida,
de nós, possa aflorar pelo nosso esforço. Por isso os assaltos ex- significa ser expulso e isolado do Sistema e assumir nele, uma
teriores do mal e da dor agem sobre todos indiscriminadamente. vez que dele não se pode sair, porque ele é o Todo – nem
O efeito é que difere, dependendo sobretudo da reação que a na- mesmo Satanás o conseguiu – uma posição inversa, em que a
tureza de cada qual estabelece. Se o indivíduo for um involuído, riqueza se transmuda em miséria, o conhecimento em ignorân-
tudo para ele pode tornar-se instrumento de perdição; ao contrá- cia, a liberdade em escravidão, a alegria em dor etc. E, efeti-
rio, se for evoluído, tudo se lhe transforma em meio de elevação. vamente, os triunfos do mal são efêmeros, ainda que as apa-
O primeiro, vendo-se acuado pelo mal, reage com o mal, des- rências momentâneas nos iludam. Não nos estagnamos no pre-
cendo mais ainda. O segundo reage com o bem, elevando-se. A sente. A vida eterna é longa, e em sua extensão tudo se paga.
mesma força pode, assim, produzir dois efeitos opostos, con- Quem entra na corrente sinistrogira, por mais que seja o seu
forme o ser com que colide, mas, em qualquer caso, põe a des- poder como centro autônomo, está sempre em uma corrente
coberto a natureza do indivíduo. Isto significa tendência a refor- que tem contra si todo o universo. Nem mesmo Satanás, o má-
çar-lhe as qualidades, sejam quais forem elas, para assim resol- ximo rebelde, pode vencer Deus.
ver o dualismo da existência, quer para o bem, volvendo a Deus, Vitórias encerradas no tempo, maculadas de traição e pres-
quer para o mal, onde o ser se anula longe de Deus. Isto nos evi- tes a ruir, porque fazem parte do sistema da revolta e do desmo-
dencia que a fratura dualista do Sistema tende verdadeiramente a ronamento. ―Portae inferi non preavalebunt‖. Quem pratica o
consolidar-se, fundindo-se no Uno originário, que se reconstitui mal isola-se no Todo e é envolvido pelo Sistema para corrigir-
integralmente na sua primeira unidade. É verdade que o Sistema
se ou combatido para ser anulado, qual tumor patológico. Qual-
fracionou-se, mas em seu seio permanece a imanência da causa
quer que seja a vantagem aparentemente obtida, a posição que
primeira que o gerou, que representa um impulso permanente-
dela resulta é um grande malefício para o ser que a escolhe. Eis
mente ativo na sua reconstituição integral.
como o mundo moderno, por não haver compreendido nada da
É assim que tudo, inclusive as forças negativas, é compelido
estrutura do universo, está laborando em próprio dano. E terá
pelo Sistema a cooperar na reconstrução positiva. Qual maior
de pagar por si mesmo, como é lógico no Sistema. Ainda não
prova do que esta apenas aparente corrupção do Sistema, esta
aprendemos a compreender que toda infração da Lei é uma
sua permanente integridade substancial? Se, em seu aspecto ex-
subversão parcial do Sistema, que toda culpa que se repete es-
terior, o nosso universo parece degradado, na sua estrutura ín-
tabelece a inversão das correntes das forças do bem nas do mal,
tima ele é, contudo, são e poderoso, equilibrado e sábio, incor-
em nosso prejuízo. Não conseguimos ainda entender que assim
rupto e perfeito, mesmo que os seus elementos negativos pare-
çam funcionar como resistência. Estes, em última análise, agem nos ligamos cada vez mais à dor, colocando-nos em uma posi-
como elementos positivos, colaborando à sua maneira, com sua ção revirada, de que não é possível sair senão endireitando-a
natureza invertida, efetivamente para o restabelecimento e com o próprio esforço. Explicam-se assim tantos destinos car-
triunfo do Sistema. Eis a que função criadora está votado um regados de impulsos negativos, que não podem parar de nos
erro que poderia se nos afigurar irreparável! A íntima e divina atormentar enquanto não forem completamente exauridos.
potência criadora não se extingue e tudo sabe criar de novo! O conhecimento da estrutura do Sistema e de nossa posi-
Neste sentido, dizemos que, em nosso universo, a criação é ção nele, explica-nos o porquê da forma que assume em nosso
contínua, isto é, Deus, no Seu aspecto imanente, está permanen- mundo humano esse fator fundamental que é o amor. É natural
temente em atividade na obra da sua reconstrução. que, em um sistema corrompido, tudo ofereça o seu contraste
Que maior maravilha do que um sistema invertido no exte- em mal e dor. Do eterno e divino amor, ao qual se deve a gêne-
rior, na forma, mas que possui em seu âmago uma alma, repre- se de todas as coisas, só ficou, no grande naufrágio do ser, uma
sentada por Deus e por Suas criaturas obedientes, capaz de en- pobre caricatura dele aqui na periferia, onde nos encontramos.
direitá-lo e restabelecê-lo, fazendo de uma ordem decaída no O seu produto tornou-se caduco; a vida que ele gera não é a vi-
caos um caos que se reconstitui na ordem de um sistema orgâ- da eterna criada por Deus, mas uma vida fragmentada, sempre
nico? Haverá algo mais extraordinário do que, num universo ameaçada de precipitar-se na morte – a vida do corpo, a vida na
em que tudo está fragmentado e degradado, fazer dos escom- carne. Do amor humano, que é uma corrupção, uma derivação
bros um excelente material de construção e erguer das ruínas involuída do amor-divino, só pode emanar uma gênese imper-
um esplêndido edifício? O bem é tão central e forte no Sistema, feita, continuamente contrastada pelo mal e pela dor. Mas não
que será sempre o senhor. E o pobre mal rebelde, acreditando- nos esqueçamos de que no interior da forma remanesceu no ser
se vitorioso, é reduzido a banca de prova na oficina do bem. a originária centelha da gênese divina, o espírito ―que não nas-
Outra alternativa não lhe resta senão anular-se espontaneamen- ceu do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do
te, reconhecendo-se errado, para aderir ao bem, ou então con- homem, mas sim de Deus‖ (João: 1–13). O amor, quanto mais
sumir-se até a anulação, cedendo toda a substância de que se evolve da matéria e sabe subir da forma corruptível ao espírito,
constitui ao seu inimigo, o bem. A rivalidade só colima um ob- tanto mais se avizinha da incorruptibilidade originária. Somente
jetivo: a pacificação. É assim que o erro da criatura é honesta- os produtos do amor feitos mais de alma do que de corpo po-
mente guiado para a sua automática superação. A criação des- dem resistir à destruição que o ser encontra na periferia, por se-
moronou nas trevas, mas em sua profundeza permaneceu muita rem o resultado de um processo genético menos periférico, qual
luz. O espírito caiu no mal, mas em sua intimidade ficou o bem. a carne, e mais central, qual é o espírito, mais próximo de Deus.
Satanás desviou de Deus muitas almas, mas, no interior delas, Só o amor feito de alma pode sobreviver à morte do corpo.
Deus continua vivo, impulsionando-as para reconduzi-las a Ele. A própria forma que o amor assumiu na criatura nos fala de
◘◘◘ um universo desmoronado. Com a queda tudo se desmoronou,
188 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
inclusive o amor. O indivíduo é, assim, incompleto, uma meta- Nessa zona do ser, o amor também assumiu a cor dominan-
de. O ser completo forma-se de dois sexos, as duas metades que, te. Como se vê, há uma razão profunda pela qual o parto deva
reunindo-se, reconstituem a unidade cindida. Sozinho, o eu deve ser doloroso, mas não de ordem apenas fisiológica. É que a
sentir-se mutilado e perenemente à procura do termo oposto, gênese criadora não somente tem que dar ao ser uma vida fra-
somente com o qual pode completar-se, voltando a ser uno. Só gmentaria, mas também cumprir-se em posição negativa de
assim se pode chegar à recomposição da unidade partida, atin- dor, isto é, às avessas da originária em Deus, em que a gênese
gindo-se, através do amor, a gênese criadora. Quanto mais peri- é alegria. E o pouco de prazer que ficou no amor sexual não
férico o ser, tanto mais separatista e, portanto, mais egoísta no passa de uma ruína, de um fragmento, de uma antecipação da
amor, que assim é sempre menos amor. Quanto mais central for originária felicidade de criar em Deus. A alegria vem antes, e a
o ser, tanto mais é unificador e, portanto, mais altruísta no amor, dor depois, por isso mesmo que continua a repetir-se aqui o
que assim é sempre mais amor. O amor é o centro do universo! motivo originário da inversão, em que a divina alegria de criar
O amor evolve do egoísmo para o altruísmo, em vastidão, foi substituída pela dor da queda. A dor é ulterior, como uma
profundidade, potência e prazer. Ele deve tornar-se cada vez traição, tal qual se deu com a revolta, segundo já vimos ser a
mais semelhante ao amor de Deus e, quanto mais se lhe apro- regra na periferia, reino da ilusão, onde o mal nos embala pri-
xima, tanto maior o seu poder criador. O amor egoísta, pelo go- meiro com a miragem do prazer, para depois nos abandonar
zo próprio, que o caracteriza, é um amor separatista, é a contra- em um corpo que, apesar de mantido unicamente por este últi-
dição de si mesmo, é um amor degradado, encerrado em si pró- mo raio da divina emanação, corrompe-se e não resiste. O nos-
prio, em um mar de ódios, um amor que, distanciado de Deus, so mundo, tão ávido de prazeres, mas ignorante na arte de sa-
cresce em poder destruidor e involve para a autodestruição. ber buscá-los, não imagina absolutamente que o místico, em
Quanto mais a criatura inverter o modelo que deve imitar, tanto seus amores espirituais para com Deus e Suas criaturas, é o
mais ela se põe fora da Lei. Esta, então, se houve abuso do pra- mais sábio e o menos iludido entre os gozadores.
zer, contrai-se e nega o amor, que então fica fragmentado, tor- Eis a grande condenação do ser decaído: só poder partici-
nando-se o outro termo inacessível. Nascem, assim, em ambos par da divina alegria de criar através da dor. ―Crescei e multi-
os sexos, os invertidos, cuja personalidade tem os sinais opos- plicai-vos‖, porém não para gozar, como crê o mundo, mas sim
tos aos do seu corpo. Deste modo a Lei se revolta contra eles, para atravessar a dor e, assim, percorrer o duro caminho da as-
como eles se revoltaram contra a Lei. censão. Cresça e se desenvolva a vida! Esta foi a lei que ficou,
Qualquer violação, seja qual for o gênero, nos coloca em mas triturada na dor! Sede falanges, atados à roda da vida e da
posição inversa, condenados à carência correspondente ao morte, e que o ser aceite o prazer sexual, que o convida a su-
abuso. O ser se deforma, não a Lei. Ele permanece estropiado portar as agruras restantes! Deus bendiz a união dos sexos,
no patológico, portanto vulnerável. O mal fere aquele que o mas... existe o grande ―mas‖, para que o homem inconsciente
faz, não aqueles para os quais foi feito. Pretender gozar farta e não suponha que, ao casar-se, vai ao encontro de alegrias da
ilicitamente significa privação futura, consequente e proporci- vida, mas sim do sacrifício de evolver e fazer evolver. O ver-
onado sofrimento de recuperação. Impõe-se depois a recons- dadeiro conteúdo do matrimônio é levar o amor a evoluir da
trução na Lei, em que se deu a demolição, reconstrução com a sua forma egoísta, que pede prazer, à altruísta que, em dor e
própria dor, que outra coisa não é senão a originária alegria de tormento, dá por amor não a si, mas aos outros. É desta forma
existir, invertida pelo ser rebelde. A via da desobediência à que o amor se avizinha de Deus, elevando-se do plano animal
Lei é a autodestruição, pois que a Lei é a atmosfera de Deus, à função evolutiva de reconstrução espiritual do ser. Quem cria
sem a qual falta ao ser a respiração da vida. E o homem, por- apenas para o próprio prazer, mergulhará cada vez mais na dor,
que mais evoluído, portanto mais livre que o animal, pode pe- cada vez mais repelido para a periferia do Sistema. Quem usar
car muito mais e, por isso, sofrer mais, porque mais conhece e a inteligência, centelha divina, para fraudar a natureza, acredi-
mais ainda deve aprender a conhecer, tornando-se cada vez tando que espertamente lhe possa furtar prazer, inverter-se-á
mais ativo e responsável na Lei, cada vez mais investido na ainda mais dentro do Sistema, e agora sabemos o que isso sig-
função de piloto da própria nave. nifica. Eis como, do grande movimento da criação acima exa-
A morte e a dor são o tributo de todas as formas periféricas minado, chegamos aos casos da vida que mais de perto nos to-
de vida e, por conseguinte, também da vida terrena. Não existe cam. Vemos, assim, de que longínquas origens cósmicas pro-
outro meio de fugir dessas trajetórias extremas do Sistema, se- vém a lei moral que regula a nossa conduta de cada dia.
não restringindo-lhe as órbitas com o avizinhamento do centro, ◘◘◘
isto é, com a retomada da posição direita. Em nossa zona de vi- Repetimos nestes livros indefinidamente a utilidade da
da, a corrupção do Sistema não permite a afirmação do ―eu dor, único elemento de redenção. Ela é o nosso tributo, tam-
sou‖, que constitui a existência, a não ser pela negação intermi- bém no amor, que é, no entanto, a nossa maior alegria. O ins-
tente desta, que é a morte. Não se pode chegar ao ser senão per- tinto fundamental do ser é criar, eco longínquo do primeiro
correndo o não-ser em etapas inexoravelmente ligadas à própria impulso que Deus imprimiu a todos os seres e que é por eles
inversão, qual se desejou. Mas persiste o ser, que não pode repetido, revoluteando continuamente no mesmo ciclo e es-
morrer, porque é eterna centelha divina. Não pode morrer defi- quema fundamental do universo. Instinto que termina na dor
nitivamente como tal. Contudo, se deve viver, só pode fazê-lo e, no entanto, é irrefreável. Mais não se poderia dizer sobre
de maneira fragmentada, periodicamente submetido ao retorno este impulso que leva à alegria, mas fatalmente conduz ao so-
agoniante da morte e do nascimento. Eis a vida, originariamen- frimento, pois que este é o fundo da taça de todos os prazeres
te una e agora assim despedaçada. Essa precariedade, contudo, humanos. Uma força irresistível nos impele para a vida, com-
é a qualidade que lhe faculta a evolução, como único meio para pele-nos a gerar, mas lhe obedecemos apenas para alimentar a
que, a cada vez, ganhe em perfeição. O dano é assim, ao mes- morte. Não é este o último termo de toda a gênese humana?
mo tempo, remédio. Eis o doloroso ciclo incessante da vida e Esta é uma gênese que se exaure, que se cansa, porque está
da morte, das sucessivas reencarnações, de que só a evolução ruída a originária potência divina que lhe concedia indestruti-
espiritual nos poderá libertar. Na Terra, o princípio do ―eu sou‖ bilidade. Tudo na Terra se desgasta e exige contínua restaura-
(vida) mesclou-se ao do ―eu não sou‖ (morte). A Lei impõe que ção. Iludimo-nos pensando em reviver nos filhos e nos netos,
a unidade fragmentada se deva refazer laboriosamente, através mas o tempo se encarrega de tudo destruir, tanto nós indiví-
da dolorosa operosidade da existência: nascer e morrer, para re- duos como nossa progênie, e tudo se desfaz no pó de todas as
nascer e tornar a morrer. Esta é a lei atual. coisas, até à última recordação.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 189
O ser, aterrorizado em face do sacrifício de viver em uma nosso erro, que se chama culpa. A ideia do pecado nos leva à
existência despedaçada, em que o instinto originário é permanen- concepção de que ele implica uma punição, quase uma vingan-
temente traído, poderia furtar-se à vida. Mas também deste lado ça de um Deus que, com isto, egoisticamente defende a Sua or-
não é possível evasão. Estaria na condição de um faminto que, dem violada e a justiça por Ele representada, defendendo mais a
não podendo saciar-se na copiosa refeição que anseia, recusasse Si próprio do que a criatura. E assim, para nós, explica-se a dor.
uma côdea de pão e preferisse morrer de fome. Uma recusa à Isto, porém, não basta. Agora podemos compreender melhor
própria vida ou a gênese de outras significa distanciar-se ainda que se trata de um remédio que nos cura e de uma escola que
mais do centro e aproximar-se do anticentro negativo, pondo-se a nos instrui. A reação da Lei significa a salutar intervenção de
caminho do aniquilamento. É culposa, por conseguinte, uma cas- Deus imanente a infligir-nos uma dor proporcionada e adequa-
tidade egoísta, cujo escopo é conjurar encargos e enfados, mas é da ao fim, para que, através dela, o Sistema possa reconstruir-se
santa uma castidade física que sacrifica os prazeres do sexo, para precisamente no ponto violado e, assim, o ser possa reentrar no
dar-se à gênese espiritual, em que a criação passará dos corpos caminho da sua salvação. Todos os nossos males não passam,
para a alma, elevando-a para o centro – Deus. Somente nesta pois, de expedientes corretivos para retificar posições erradas,
condição é lícito retirar-se da vida, porque realmente a ela se re- assumidas por nós, e para nos ensinar a viver na ordem divina,
torna em escala ainda maior. Assim um ser pode ter milhares de onde só pode haver felicidade. Assim, em qualquer campo, este
filhos, pois que a renúncia alcançará então uma proliferação cuja impulso divino interior e restaurador nos acompanha para nos
intensidade a natureza desconhece. Desta forma, entramos em curar. A própria moléstia é uma sua reação para curar o nosso
uma trajetória mais vizinha do centro, onde as posições inverti- corpo. E, quando o dano ultrapassou os limites permitidos e, as-
das começam a endireitar-se. Nela, o sacrifício vem antes da ale- sim, a ordem (saúde) não pode mais ser rapidamente restabele-
gria e a gênese produz frutos que não temem a morte, porque eles cida, essa mesma força, que denominamos natureza, resolve
mesmos continuam a gerar indefinidamente no tempo. O homem igualmente o mal, de maneira mais radical, por meio da morte,
que lança uma ideia para o bem do mundo é um pai espiritual de que permite recomeçar a vida sadia de novo.
uma capacidade genética desconhecida no plano material. Desta forma, no campo moral, todo excesso é compensado
Estas são as leis da vida. Violá-las só pode acarretar dano ao por uma proporcionada e específica carência. Mas não basta
violador. A vida é irrefreável impulso divino. O suicida é o mai- dizer que isto é justiça e reconstrução da ordem. É necessário
or negador de Deus, pois quem atenta contra a Lei é assassino dizer também o que mais nos interessa, ou seja, a razão pela
também da própria alma. A vida quer expandir-se para voltar a qual a dor nos flagela, e essa reside na operação do reestabe-
ser o que era – infinita. A vida quer retornar à unidade. A união lecimento de nós mesmos, para nos fazer voltar à ordem, so-
dos sexos tem o seu rito próprio e celebra, ainda que em forma mente onde podemos ser felizes. Com o erro não violamos
profundamente reduzida, a conjunção final na unidade dos dois apenas uma lei que pertence a Deus, mas demolimos a ordem
semicírculos do grande ciclo do ser: o involutivo e o evolutivo, em nós, a ordem que é a nossa felicidade. E Deus não pensa
o momento supremo da reconstrução, o triunfo final da gênese egoisticamente na reconstrução da Sua ordem violada, mas
divina. É assim que os seres, por instinto de unidade, se atraem. sim em nosso bem estar, obrigando-nos, pela dor, a reconstru-
A solidão é terrível. Por isto a vida procura a vida, as multidões ir a ordem e a felicidade.
atraem multidões. A segregação do convívio humano, como no Há uma consequência prática importante de tudo isto. É ve-
cárcere, é punição e dor. Quanto mais involuído for o ser, por- rídico que devemos nascer e viver, como já dissemos, quase
tanto mais fracionado, tanto mais se sente só e mais procura uma sempre para sofrer, porque esta é a escola da necessária recons-
companhia. Quanto mais espiritualizado for ele, por conseguinte trução que nos incumbe. É certo, também, que esta dor não é
mais evoluído, tanto mais sente a vida universal por toda a parte uma vingança, mas sim uma lição, desejada por um Deus bom,
e menos se sente só em qualquer solidão aparente. visando não o Seu interesse, mas sim o nosso bem. De tudo isto
◘◘◘ se depreende que ela deve ser dosada, isto é, diminuir quando
Ao concluir este capítulo, procuremos compreender o superiores às nossas forças, pois a vida, que é sagrada, jamais
grande alcance das consequências práticas a que nos conduz a deve ser ameaçada. Isto porque a dor não é reação cega, puni-
concepção deste volume. Tudo nos demonstra a verdade do ção que esfacela, mas constrição ao esforço que educa e endi-
quanto acima dissemos, isto é, que, apesar do Sistema ter des- reita. Em nossas dores, devemos ter sempre presente que não
moronado, permaneceu no fundo dele a imanência da causa estamos tratando com forças inimigas e inconscientes, mas com
primeira que o gerou e que está em nós sempre presente e ati- forças boas, justas e sábias. A dor, pelo contrário, se bem com-
va, para reconstruí-lo. preendida, deve fazer-nos sentir mais próxima a presença ativa
No piano físico, efetivamente, o que é, em última análise, a e salvadora de Deus imanente, à qual mais nos devemos unir.
―vis sanatrix naturae‖6, senão a expressão de Deus imanente? Que maravilha para o intelecto e que conforto para o coração
Ele está em nosso interior sempre atento à restauração da for- chegar a compreender que a dor é um ato de amor com que
ma, que é protegida, porque é manifestação de vida no plano Deus nos agracia, para nos induzir a retomar o caminho certo
em que devemos elaborar-nos, para reerguer-nos. No fim do de nossa felicidade, que havíamos abandonado!
Cap. XV – ―À procura de Deus‖, concluiremos descobrindo o Então, o intelecto compreenderá, efetivamente, por que as
divino na profundeza do nosso ―eu‖. Sabemos que não é pos- provas jamais podem superar as nossas forças e como elas se
sível existir em nosso universo a não ser como um vir-a-ser. A desvanecem tão logo se tenha realmente aprendido a lição.
criação não é um fenômeno estático, mas de incessante forma- Compreenderá por que a Providência costuma tardar tanto,
ção, que não se pode reger nem se explicar sem esta permanen- salvando-nos somente no último momento, ao cairmos sob o
te e operosa presença de Deus no Seu aspecto imanente. Quem peso da cruz, pois é necessário esgotar antes todos os recursos
mais poderia assim tudo reconstruir? É verdade que a morte na aprendizagem da lição. Uma Providência que no poupasse
ameaça continuamente a vida, mas é verdade também que a tal esforço trairia o nosso restabelecimento e prejudicaria a
vida acaba vencendo, reduzindo a morte a um meio de renova- nossa evolução. Enfim, o coração encontrará em meio à dor o
ção, sendo justamente isto o que determina a evolução, que imenso conforto do amor, sentindo Deus a seu lado; Deus, que,
avança para a superação da morte. no Seu aspecto de Filho, em Cristo, ampara a nossa cruz e a ar-
Esta presença de Deus patenteia-se não só no campo físico, rasta conosco, compartilhando de nossa dor. Pois que Deus
mas também no moral. Fala-se de impulsos reativos da Lei ao imanente desceu a sofrer na forma, no íntimo do ―eu‖ da cria-
tura decaída, para reerguer-se nela ao Seu aspecto originário e
6
―A força curadora da natureza‖. (N. do T.) perfeito de Deus transcendente.
190 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
X. A TEORIA DO DESMORONAMENTO E princípio destruidor que se aninha em seu seio! Certamente o
AS SUAS PROVAS Sistema, concebido desta forma, deve parecer bem pobre e mal
feito! No entanto ele é pleno de obras que revelam uma sabedo-
Procuremos neste capítulo responder, por nós mesmos, a al- ria tão grande, que nem podemos compreendê-la no seu todo.
gumas possíveis objeções ao sistema acima exposto. Este é um Repugna, de maneira absoluta, a um instinto fundamen-
controle racional a que submetemos os produtos da intuição ou talmente peculiar a todo ser de mente sã, admitir em Deus a
da visão. Por um momento, proponhamo-nos rejeitar esta teo- criação do mal. Este só pode ter surgido depois, por outras ra-
ria, que podemos denominar simplesmente teoria do desmoro- zões. Não se podendo conceber duas criações e, assim, tendo
namento, como explicação de nosso universo. que aceitar um única, como explicar que não encontremos tu-
Devendo axiomaticamente admitir que Deus não pode ser do em perfeição e bem ou, então, em imperfeição e mal, mas
imperfeito e mau, mas sempre perfeito e bom, e que, por con- sim perfeição e bem misturados com imperfeição e mal? É
seguinte, criou por amor, e não por ódio, como se pode explicar evidente essa duplicidade de princípios exatamente opostos.
a presença do mal e da dor em nosso universo? E, uma vez que Isto não se pode explicar a não ser como a inversão de uma
não se pode atribuir, em absoluto, ao Deus-Criador estas reali- parte do Sistema. E como, no fundo da imperfeição, encon-
dades, impõe-se procurar-lhes uma outra causa que não pode tramos a perfeição, isto é, uma sabedoria que possui a força de
ser Deus. Mas aqui o dilema é fatal: ou essas tristes verdades salvar a imperfeição da autodestruição e de purificá-la, recon-
são devidas à criatura, sendo forçoso admitir a teoria da queda, duzindo-a ao estado de perfeição?
ou, se Deus-Criador foi causa de tudo, Ele é imperfeito e mau. Evidentemente, deve ter ocorrido que Deus haja criado os
Uma bem triste cadeia de males pesa sobre o mundo. Este espíritos puros, tirando-os de Si (a técnica da criação será pro-
fato é indiscutível. Queremos buscar-lhe a causa, o responsável. gressivamente exposta neste volume e, depois, definitivamente
Podemos até chegar à monstruosidade de nos tornarmos acusa- precisada no início do Cap. XX – ―Visão-Síntese‖). Este era o
dores de Deus, como causa de todos os nossos males, e nos sen- sistema perfeito. Mas uma parte, como vimos, rebelou-se, for-
tirmos autorizados a amaldiçoá-Lo, como inconsciente e mau. mando o anti-sistema do dualismo. Ora, a parte incorrupta fi-
Mas isto só poderá fazer quem segue Satanás, imerso no polo cou a mais forte, porque com ela permaneceu Deus, a Quem
negativo, na ignorância e no mal. Jamais o fará uma mente ilu- ela ficou aderente. A outra parte não tem Deus consigo, no
minada, que sentiu a sabedoria, a perfeição e a bondade que sentido de que a sua transcendência não pode funcionar, já que
reinam no funcionamento orgânico do universo. o ser o renegou. Por isto o mal não pode vencer. A vitória fi-
Mas, ainda que a teoria do desmoronamento fosse errada, nal, é lógico, não pode deixar de caber ao único senhor do Sis-
que significação possui a lenda, tão difundida no mundo, da tema: Deus. Não importa que no Todo se agitem forças opos-
queda dos anjos? Poderá ter ela nascido do nada? E, com a Sua tas! O Sistema tornou-se inquinado de culpa, sofre para resta-
paixão, que poderia redimir Cristo, se a culpa era mais de Deus belecer-se, mas continua Sistema. Ele não desmoronou no seu
do que do homem? Por essa paixão a humanidade se redimiu, conjunto. Apenas uma parte dele, em seu seio, decaiu.
então, mais da falha de Deus do que das suas próprias. Isto sim Mas pode-se, então, objetar por que Deus, se é sempre o
nos parece verdadeiramente um esboroamento do bom senso, mais forte, o Senhor do Sistema, não sana de vez o mal, anu-
ao ter que admitir que a humanidade deva sofrer tanto, em vir- lando-o? Não basta uma coisa ser cômoda para se tornar lógi-
tude da insciência ou maldade de um Criador irresponsável ou ca e justa. Há necessidade de que seja compreendida por
perverso. Este seria o mais escandaloso triunfo da injustiça. quem a criou. Nenhuma força pode ser destruída, mas apenas
Mas, desta forma, colocamos um conceito negativo no centro corrigida. Subsiste a lei de equilíbrio e justiça, na qual se ba-
do sistema positivo do ser; dessa maneira tudo se subverte: a seia o Sistema, que exige a sua reconstrução. Não é com a
vinda de Cristo à Terra carece de qualquer sentido, e, onde tudo psicologia da própria vantagem imediata, relativa e utilitária,
é ordem, estabelecemos o caos de um universo em delírio. En- que se pode resolver tais problemas. Recordemos que nós não
tão, o primeiro pecado original teria sido de Deus, e não do somos punidos pelas nossas culpas por um Deus vingativo,
homem, e a rebelião contra um Deus imperfeito, injusto e mal- mas sim, automaticamente, por essas mesmas culpas, isto é,
vado seria mérito, e não culpa. E a redenção, que é a retificação pelas forças por nós movidas e pelas posições que quisermos
de uma posição invertida, que teria retificado? Talvez a justa assumir no Sistema. O mal não se pode extinguir por um ato
revolta de Adão contra um Deus criador do mal e da dor? Co- arbitrário, pois que a onipotência divina não é jamais arbitrá-
mo se vê, cai-se em um redemoinho de absurdos, em que tudo ria, mas sempre segundo a Sua própria lei. O mal só se pode
se subverte em uma horrenda concepção satânica. extinguir por reabsorção, isto é, por retificação, pela recons-
Devemos axiomaticamente admitir em Deus também a uni- trução daquilo que ruiu. Só assim se explica como a dor pode
dade. Ora, o universo é inegavelmente dualístico. Como se po- redimir. Trata-se de um processo de cura. Eis por que a luta
de explicar essa estrutura dualística em um universo cuja base contra o mal é virtude, ou seja, é qualidade reconstrutora de
deve ser unitária, se não com a teoria do desmoronamento? bem. Se o nosso universo fosse, no estado atual, consequência
Quem despedaçou o uno, como e por quê? É absurdo um uni- pura do primeiro ato criador de Deus, ele deveria ser perfeito.
verso dualístico desde a sua primeira essência, em seu centro. Não o é porque a criatura introduziu nele outras forças. É da
Se assim fosse, pelo menos os dois termos do dualismo – bem e lógica, justiça e equilíbrio do Sistema que a correção seja ope-
mal – deveriam ser iguais. Como se explica que, ao contrário, o rada nas próprias criaturas que representam tais forças. Assim
bem é mais forte e acaba vencendo e que o Senhor é um só – como delas foi a revolta à ordem, é justo que o labor da re-
Deus? Também aqui, se excluirmos a queda, tudo se confunde construção lhes caiba. Somente assim elas poderão verdadei-
no caos. Então Deus se transforma em artífice de uma obra dia- ramente aprender a conhecer a Lei, cuja compreensão já reve-
bólica, e confunde-se Satanás com Deus. laram não ter desejado. Como se vê, tudo se desenvolve com
Abolindo a teoria do desmoronamento, não se sabe mais cabal lógica. Muitos desejariam Deus como seu servo e se la-
justificar a origem e a presença de Satanás. Quem é ele então? mentam porque Ele não lhes poupa o incômodo de trabalhar,
Que significa no sistema do todo? De que nasceu, para o que lutar e sofrer, por isso O acusam. Mas é fácil compreender
tende e como acabará? Em um sistema lógico, como pode man- quanto é absurdo colocar as nossas pobres comodidades como
ter-se esse anti-Deus? Em uma construção equilibrada, que sig- centro do Sistema. Não é com tais medidas que se pode medir,
nifica a hostilidade desse contínuo atrito demolidor? E que im- nem com semelhante psicologia que se pode compreender.
perfeito universo seria este, sempre sujeito aos assaltos de um ◘◘◘
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 191
Prossigamos no controle racional, que nós mesmos estamos senão continuamente se despedaçando, por efeito da queda. Bas-
fazendo, dos produtos da intuição ou visão. taria apenas isto para provar a reencarnação. Mas, no fundo da
Alguma vez perguntamos a nós mesmos por que o estado morte (Satanás), está sempre Deus, que é a vida, o princípio pelo
primordial do universo é o caos? Se tivesse sido obra de Deus, qual ela jamais se extingue. Assim como o imutável absoluto
deveria ser obra perfeita, e não caos. E, pela evolução, esse ca- desmoronou no mutável contingente – que justamente por isso
os é o ponto de partida de um longo caminho que avança para a faz presumir a existência do primeiro – a existência eterna tam-
ordem. Somente com a teoria do desmoronamento, tudo isto se bém se corrompeu na existência no tempo, que a mede e a pulve-
torna compreensível. Satanás está nos antípodas de Deus, assim riza em um ritmo interrompido por pausas opostas.
como o caos está nos antípodas da ordem. O universo atual vai Eis, porém, que Deus, a força restauradora presente na evo-
do primeiro ao segundo, os dois polos do ser. Só com a prece- lução, tende para a correção do desmoronamento. A vida, evol-
dência de um desmoronamento, isto é, com a existência da ou- vendo, transfere-se cada vez mais do plano físico para o espiri-
tra metade do ciclo, inverso e complementar, pode-se compre- tual. Desta forma, há também cada vez mais tendência ao desa-
ender tudo. Isto implica que apenas uma parte ruiu, e não todo parecimento do seu lado negativo – morte – e igualmente do
o Sistema, e que, no fundo do caos, Deus – a única força capaz mal e da dor, com o retorno a Deus, na reconstituída unidade
de reconduzir a desordem novamente à ordem – continua a es- íntegra da vida, que não tem mais morte.
tar presente. A reconstrução, ainda que seja operada de fato pe- Mas tudo rui por terra. Cada alegria ameaça inverter-se em
la dor purificadora da criatura, é dirigida por Deus, o que é pro- dor, parecendo ter nascido envenenada pela recordação do pri-
vado pela descida de Cristo à Terra. Unicamente assim se ex- meiro desmoronamento. Para continuar, a vida deve refazer-se
plica o porquê da evolução e sua direção, bem como a grande desde o começo, na semente, no filho. Tudo nos dá ideia de al-
equação da substância (A Grande Síntese, Cap. IX). guém que, subindo uma encosta em terreno resvaladiço a cada
Agora podemos compreender melhor a fig. 4 de A Grande três passos para diante, dá dois passos para trás. Recua, mas ga-
Síntese, que indica o desenvolvimento da trajetória típica dos nha sempre um passo, e assim a evolução avança, avizinhando-
movimentos fenomênicos. Esse diagrama sintetiza também o se cada vez mais, ainda que lenta e fadigosamente, da libertação.
atual caminho da evolução, para reconquistar, entre dores e É longa e dolorosa a elaboração evolutiva. Mas é verdade tam-
provas, o paraíso perdido. Este é o diagrama da ascensão. O bém que o elemento negativo está submetido a um atrito contí-
desmoronamento ocorreu de +–. A reconstrução aqui nuo, em face da resistência que opõe à força de Deus, mais po-
sintetizada é de –+, ainda que, para o nosso concebível, derosa, motora da ascensão. O elemento negativo, assim, des-
ela agora seja limitada ao trajeto γ. Na fig. 4, o des- gasta-se, autodestruindo-se e cedendo, como já vimos, da sua
moronamento das dimensões reduziu o Todo ao nada, ao substância à parte positiva. A sensação desse atrito de forças
ponto, sem dimensão. É este – (infinito negativo), o ponto opostas chama-se dor. Mas, por isto, ela redime, mata o mal,
de partida da evolução, a segunda metade do ciclo, que vi- ilumina as trevas, reconduz à alegria, à unidade, findando o dua-
vemos atualmente. O ponto de chegada é + (infinito positi- lismo, retificando o negativo em positivo. É este atrito que se
vo), sendo todo o processo dado pela dilatação do ponto, não chama dor, que reconstrói o lado desmoronado do Sistema e, por
dimensão, na dimensão máxima, o infinito. Eis o mais pro- isso, constitui a base da evolução, ascensão para a felicidade.
fundo significado da abertura da espiral. ◘◘◘
Mas a maneira como se processa o seu desenvolvimento nos Tudo isto evidencia a necessidade de aceitar a teoria do
diz algo mais. Na sua tendência periódica para volver sobre si desmoronamento. Só ela pode explicar o dualismo dá árvore do
mesma em direção ao centro (v. a mencionada fig. 4 – A Grande bem e do mal; o pecado original, continuação da revolta dos an-
Síntese), expressa também na fig. 2 pela descida da linha que- jos e consequente queda; o pecado cometido por Caim contra
brada, vemos um rítmico, ainda que parcial, retorno ao desmo- Abel, primeira personificação da cisão e da luta. Só assim po-
ronamento, como que uma recordação sua ou tendência a repe- demos compreender Cristo e a Sua obra de redenção, destinada
tir-se, que no-lo revela em ação, imiscuído no funcionamento do a sanar este dualismo, e entender a inversão operada pelo
universo, desde a primeira revolta e desmoronamento. Essa ca- Evangelho, que é uma retificação dos valores. Só assim é pos-
racterística, impressa indelevelmente, nos fala como uma teste- sível explicar por que a Terra é o reino em que o mal triunfa e
munha. Todavia o movimento retoma sua direção e, no conjun- os bons sofrem; por que a seleção é nela operada pelo critério
to, consegue subir, sempre contrastado e em luta com a descida. selvagem do mais forte. Sem a teoria do desmoronamento nada
A subida prossegue, isto é, a evolução vence, ganhando terreno se explica, tudo é caos e mistério.
em cada ciclo, ainda que, em todos os ciclos, o primeiro desmo- Todavia, ainda pode-se levantar uma objeção. Pretendemos
ronamento volte a se fazer sentir como um assalto do mal, que é, complementar aqui os conceitos expostos no fim do Cap. VII –
porém, depois vencido e superado. Assim é porque o Sistema, ―A perfeição do Sistema‖.
no seu conjunto, não é o sistema de Satanás, mas sim o sistema Admitida a liberdade individual e a revolta, deve-se admitir
de Deus. Deus, como vimos, permaneceu centro de tudo, en- também que um espírito possa conservar-se eternamente rebel-
quanto o sistema de Satanás tem por centro o –, o nada, o pon- de. Ele teria, então, o poder de macular definitivamente o Sis-
to não dimensão, razão por que, para ele, a existência só pode tema, frustrando-lhe o restabelecimento e toda a obra de salva-
significar anulação. O sistema positivo de Deus, embora conten- ção de Deus e dos redentores por Ele enviados. A obra de Deus
do o sistema negativo de Satanás, é mais forte do que ele. O ou- não seria, então, sanável e, em última análise, estaria falida.
tro sistema está contido e é mais fraco, irremediavelmente mi- Tudo isso é lógico. Bastaria que se verificasse o caso para uma
nado pelo seu negativismo. Por isso se pode dizer que o bem de- só criatura, e o mal, em definitivo aninhado no sistema de
ve vencer e: ―Portae inferi non prevalebunt‖. Deus, não seria vencido, tornando-se parcialmente vencedor.
◘◘◘ Conclusão absurda. A solução do dualismo deve, pois, ser
O motivo do desmoronamento imprimiu-se, assim, tão pro- completa e, por conseguinte, para que todo o Sistema seja re-
fundamente no Sistema, que o vemos ressurgir em todo lugar, a construído e tudo retorne ao Uno, impõe-se a destruição final
cada momento. Um estigma dualístico inquina e fragmenta toda a do mal. A anulação é a única expulsão possível de um sistema
nossa vida. A vida una íntegra, esboroou-se no ritmo alternado de que é o Todo e, fora do qual, nada pode existir.
vida-morte; ao dia se contrapõe a noite; à luz, as trevas; a cada Agora, surge a objeção da impossibilidade de admitir-se a
afirmação, a sua negação. A vida não se pode prolongar no tem- destruição ou anulação do espírito rebelde. A isto respondemos
po senão continuamente invertendo-se no negativo, que a mata; que, como já vimos (Cap. VII), a mecânica dessa destruição se
192 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
realiza por um processo de choques e atritos de forças, em que Considerando tudo isto, o leitor poderá agora responder por
perece não a substância divina, indestrutível, que forma o espí- si à questão acima proposta. Mas é evidente que a solução cabal
rito, mas apenas a sua forma de individualização como ―eu‖ de qualquer problema não pode ser obtida encarando-o isola-
distinto, e isto em favor do sistema do bem, que se enriquece damente, mas somente quando ele tenha sido enquadrado em
dessa substância. O que se anula é a individualização, a perso- todo um sistema de que venha a fazer parte e em que todos os
nalidade rebelde, o tipo de forma revestida pela substância, e outros problemas do ser sejam harmonicamente resolvidos.
não propriamente a substância que a constitui. Trata-se, pois, Procuremos, todavia, precisar os elementos do problema.
apenas de uma destruição relativa ao indivíduo, e não em senti- Assim como, em um espelho partido, cada fragmento re-
do absoluto. Destruição como sua individualização, e não como produz a natureza do espelho inteiro, trazendo também em si
substância. Isto torna possível a anulação no caso extremo de os indícios do estilhaçamento, cada unidade individual, no sis-
uma revolta indefinidamente prolongada. tema desmoronado, também carrega consigo os sinais do di-
A esta altura, podemos perguntar qual poderá ser a sorte de vino princípio do bem e dos satânicos princípios do mal. Bas-
Satanás e seus demônios. Após haver tratado do problema do taria este fato – que é possível verificar a todo instante em nós
fim do mal no Cap. X do volume A Nova Civilização do Ter- mesmos, visto se encontrar profundamente impresso em nossa
ceiro Milênio, lançando ali a semente dos primeiros conceitos, natureza – para demonstrar que, nas raízes deste nosso estado
desenvolvidos melhor no presente volume; e após haver preci- e como explicação desta nossa estrutura, não pode deixar de
sado a técnica da destruição do mal em geral no Cap. VII – ―A existir uma queda original, da qual se gerou este modelo de
perfeição do Sistema‖, deste volume, podemos propor-nos ago- tipo dualístico, que se repete em todas as individualizações
ra o problema específico da sorte de Satanás, a propósito da menores. É assim que o princípio da queda se conservou pre-
anulação dos espíritos rebeldes. sente em todo ser decaído. E é lógico e justo que cada ser, já
No Cap. II do presente tomo – ― ‗O eu sou‘, esquema do que é um momento do sistema desmoronado, carregue consi-
ser‖, acenamos para Satanás como personificação das forças do go os estigmas do desmoronamento e a estrutura do sistema
mal. Mas será ele apenas uma individualização fenomênica desmoronado. É por isso, justamente, que toda personalidade
qualquer em tudo que é personalizado, ou Satanás é uma verda- está dividida em duas partes opostas, ativadas por um dina-
deira personalidade? Como personalidade queremos significar o mismo inverso, um divino e outro satânico, em contraste no
que ela expressa para o ser humano. O leitor que compreendeu campo do ―eu‖. Foi assim que a indivisível personalidade do
os elementos constitutivos de nosso sistema, de onde a lógica ―eu sou‖ originário cindiu-se no seu íntimo dualismo, e é exa-
não nos permite sair, pode responder por si. Nós simplesmente tamente aí que Satanás se aninha.
lhe propomos o problema. A única e verdadeira criação foi a dos Analisemos tudo isto para melhor poder compreender o que
espíritos puros, que Deus realizou em Seu seio, distinguindo-se deveremos realmente entender por personalidade de Satanás.
interiormente em muitos ―eu sou‖, feitos à Sua imagem e seme- Ele é personificado no sentido de que existe em todo ser como
lhança. O nosso universo físico não foi uma criação, mas sim princípio negativo, equilibrando em contraste o princípio posi-
um desmoronamento da criação. Os espíritos puros eram outros tivo, com o qual está sempre em luta, para dele se desvincular e
tantos ―eu sou‖, semelhantes ao tipo originário – Deus – isto é, se libertar. Esta luta é a base da evolução. A personalidade de
individualizações pessoais, como é o próprio homem. Todos os Satanás está presente em todos os seres como princípio de tre-
espíritos eram assim, e não há razão para que fossem diferentes vas, enquanto Deus está presente neles como princípio de luz.
os que depois decaíram com a revolta. O próprio homem atual Treva significa inconsciência, matéria, prisão na forma, estado
estava entre eles e, tendo uma personalidade própria, distinta, involuído. Luz significa consciência, espírito, libertação, estado
mostra-nos o que significa personalidade. O tipo fundamental do evoluído. Em outros termos, em nosso universo não se encontra
ser, como ―eu sou‖, não podia mudar apenas pela queda, como apenas a presença de Deus imanente, nele descido de Sua trans-
de fato não mudou para o homem, que é justamente um espírito cendência para salvá-lo, mas existe também o princípio oposto,
decaído e, algumas vezes, chegou até ao grau de demônio. O filho da queda, isto é, a presença do mal ou Satanás imanente,
desmoronamento do Sistema podia alterar a disposição e posi- sempre operante para tudo destruir e perder.
ção dos elementos do edifício, mas não o material, que perma- Em todo ser defrontam-se, em permanente contraste, o divi-
neceu o mesmo, pois, se assim não fosse, o edifício não poderia no princípio do bem, fazendo evolver e subir, e o satânico prin-
ser reconstruído; podia ofuscar, mas não alterar a essência indi- cípio do mal, insistindo no desmoronamento e na descida. O úl-
vidual do ser, porque isto teria significado destruir o tipo mode- timo serve, assim, de resistência à evolução. É esta resistência
lo, fato fundamental da criação. Não é concebível que a queda que procura demolir todas as nossas conquistas e que nós temos
possa ter produzido uma despersonalização, pois isto significaria de vencer com o nosso esforço, intentando espontaneamente re-
uma anulação da personalidade, isto é, da individualização ―eu fazer em ascensão o mesmo caminho que livremente percorre-
sou‖, o que só pode ser o último resultado para um rebelde inde- mos em queda. Somente com a queda é possível explicar como
finidamente em estado de revolta, com sua liquidação final. Não o princípio do mal se aninhou no âmago do ser e lá permaneça
se pode antecipar a sua destruição, sem comprometer todo o vigilante para impedir a ascensão. Este princípio, onipresente
processo de reconstrução e redenção. É absurdo, exceto no caso em nosso universo e personificado como o lado de trevas em
de tal liquidação final, a dissolução desse núcleo ―eu sou‖, desse qualquer personalidade, é o que entendemos por personificação
centro em torno do qual se desenvolve todo o processo do des- de Satanás, princípio que pode revestir-se de uma forma qual-
moronamento e da reconstrução. Somente um ―eu‖ pessoal, de- quer, assumindo consistência real. Não se trata de uma vaga
finido nos seus atributos, pode involuir e depois evoluir; pode abstração, mas de algo concreto, presente como força individu-
reconstruir-se, se quiser, ou então ser reabsorvido no Sistema, alizada no ser, que, pelo menos na Terra, sempre apresenta uma
pelo seu progressivo desgaste no atrito do Anti-Sistema com o certa dose dele, maior ou menor. A percentualidade é que varia,
Sistema, consoante expusemos no citado Cap. VII deste volume. sendo santo aquele em que ela for mínima ou nula, e demônio
Unicamente um ―eu‖ pessoal pode ser objeto de salvação ou ins- aquele em que ela se aproximar da inteireza. No caso máximo
trumento da necessária anulação do mal, sem o que Deus seria deste último tipo, quem sabe em alguma forma cósmica de vi-
vencido; sem um centro pessoal, um ―eu‖, não pode haver méri- da, teremos a personificação concreta e real de Satanás.
to ou demérito, culpa, responsabilidade, experiência, evolução e Efetivamente, pode-se idealizar dele um tipo biológico
retorno a Deus, ou, no caso contrário, anulação. Sem um ―eu‖, mesmo na Terra. E isto realmente foi feito pelo homem, repre-
tudo se dissolve no vago e nebuloso. sentando o demônio com as características dos animais dano-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 193
sos, mais inimigos e involuídos, agressivos, com chavelhos, ideia continua a avançar na direção em que foi lançada, enquan-
garras ou bicos, traiçoeiros como as serpentes venenosas, escu- to não encontrar uma força que a desvie ou um atrito que a freie
ros e peludos como o urso, com dentes de lobo, olhos ferozes e – Deus, assim como Satanás, continuam, em nós, a gritar ―eu‖.
cauda, lançando chamas e enxofre, na representação de um É assim que cada um de nós, mais ou menos, pode personificar
mais antigo e elementar adversário, qual o fogo vulcânico da um ou outro, segundo o grau de evolução. E, quando o homem
Terra. Tudo isto é lógico e se justifica, porque Satanás simbo- desce até ao delito, nele encontramos uma sempre maior perso-
liza a involução, isto é, a animalidade, que é o nosso passado, nificação de Satanás. É fácil assim imaginar uma hierarquia na
ou seja, a matéria e o caos num reino subterrâneo, onde ele gradação dos valores invertidos em negativo, no mal, da mesma
sempre se aprofunda, como nas representações que fazemos forma que há uma hierarquia dos valores positivos, no bem.
dele. Inimigo da evolução, que é progresso em direção a Deus Poderemos, desta maneira, idealizar, no ápice da pirâmide in-
e à felicidade, também é um inimigo da vida, representando vertida, um Lúcifer, qual sublimação do mal elevado à máxima
tudo o que é agressivo e mau. potência, assim como no ápice da pirâmide positiva está Deus,
Onde está este inimigo? Está em toda parte, como Deus; sublimação infinita das potências do bem. É como se pode ex-
junto de Deus, como Sua negação, assim como junto da luz es- plicar racionalmente a ideia tão difundida do anti-Cristo.
tá a sombra, sem o que não sabemos o que é luz. Satanás é a Parecendo-nos, por ora, bastante clara esta argumentação
treva que se aninha em cada ângulo, onde se ocultam o mal e a sobre a personalidade de Satanás e seus demônios, concluímo-
dor, para nos golpearem traiçoeiramente. Satanás é o veneno la com a verificação de estarmos assim diante de uma nova ma-
depositado no fundo de toda taça, a dor sempre pronta para ravilha do Sistema. Nele, de fato, o princípio do mal e da dor,
macular as nossas alegrias. É a moléstia que assalta a saúde, é que se faz sentir em tudo, é utilizado como uma dificuldade a
a morte que espreita a passagem da vida. É a traição que está superar, como uma escola para aprender e ascender. A realida-
no fundo da amizade. É o ódio em que está prestes a transfor- de é que, embora Satanás e seu poder pareçam espantosos, o
mar-se o amor. É o princípio de destruição que secretamente nosso universo está inteiramente impregnado da presença de
mina todas as construções humanas. É o princípio do mal que Deus imanente, de modo que a vitória está garantida e as portas
sempre busca manchar a obra do bem. É um princípio que to- infernais não prevalecerão. Todo o grande assalto de Satanás se
ma forma concreta em atos e pessoas. reduz a um exame das forças do bem, a um sangrento banho de
Durante as trevas da Idade Média, houve o domínio, inclu- purificação, do qual o espírito sairá triunfante. Desta forma, en-
sive no terreno religioso (inquisição, guerras santas, bruxarias) contramos não somente uma justificação para o mal e a dor,
desse princípio de negação, em que Satanás prevaleceu. Por mas também o segredo para demoli-los, transformando uma in-
dois milênios ele tem reinado com o terror do inferno, constru- felicidade em um meio para conquistar a felicidade. Assim, o
ção sua. Tudo isto está escrito na hora histórica, para todos, e tremendo princípio do anti-bem e do anti-Deus se pulveriza em
teve a tolerância da Igreja. E, até hoje, mesmo no que respeita a nossas mãos, e, se formos sábios, dele nada resta em meio a
Cristo, atentou-se principalmente para o lado negativo e destru- tanta ruína, senão um instrumento de salvação.
tivo da criatura humana na crucificação, que foi um triste espe- A esta altura, nós nos perguntamos se será possível uma re-
táculo de carnificina, em vez de se olhar para o lado positivo e volta eterna e definitiva? Agora podemos compreender o que
construtivo da ressurreição, eterna vida do espírito. Isto de- significa essa indagação, isto é, a possibilidade da personalida-
monstra como Satanás está vivo entre nós, personificado em de macular-se até que o percentual dos elementos componentes
correntes, ações e pessoas. Satanás, embora como força inverti- positivos seja reduzido a zero e o percentual dos elementos
da e negativa, está presente entre nós, como o está Deus, e eles componentes negativos seja elevado a cem. Quando o ―eu‖ fica
se defrontam e se batem em nós, seu campo de batalha. Ainda assim reduzido, em sentido negativo, ele se anula (=0), isto é,
que Deus, pela própria natureza do Sistema, venha a ser o ven- se autodestrói. Quando, ao contrário, o ―eu‖ se refez todo em
cedor, esta batalha existe e a vivemos em nós, sem sabermos sentido positivo, ele atingiu a salvação. No primeiro caso, ocor-
que ela é a maior batalha do universo, que repercute em nós. reu a morte total pela completa negação de Deus; no segundo
Em cada ato nosso, através da escolha que soubermos fa- caso, foi alcançada a vida total em Deus.
zer, amadurece o nosso ser e avança a grande marcha da evo- De tudo isso encontramos um paralelo na vida de nosso or-
lução. Em virtude dos atos e da livre escolha de todos os ho- ganismo, o que é lógico num universo dirigido por um princípio
mens, opera-se o resgate e assim a salvação. É graças a essa in- unitário. Antes de tudo, a difusa presença do espírito satânico
tensa elaboração em que se empenham todos os seres, que se do mal não nos deve espantar mais do que a presença dos mi-
dá a regressão, a estagnação ou a redenção do universo. Sata- cróbios patogênicos em nosso organismo. Quando ele está são,
nás exige que lhe paguemos em moeda sonante de dor o tributo os micróbios não perturbam, mas quando as portas estão aber-
de nosso resgate, porque quisemos cair e, com a queda, nós o tas, eles penetram o organismo no seu ponto vulnerável, porque
abrigamos em nosso interior. débil. Também Satanás só pode entrar quando encontra uma
Satanás está em toda parte do sistema desmoronado, é a do- porta aberta no espírito, isto é, um ponto vulnerável, porque dé-
ença do Sistema, que o acomete e faz todos sofrerem. Também bil. Se formos sãos e fortes no campo orgânico e no moral, po-
a parte incorrupta não se pode furtar a esta dor e, como fez demos mover-nos sem perigo entre os micróbios patogênicos e
Cristo, ajuda igualmente com o seu sacrifício. Mas é a parte di- as forças do mal. Em qualquer setor, a vida nos quer sãos e for-
vina, a originária centelha de Deus, não extinta de todo e ainda tes, para que a evolução prossiga, seguindo a Lei, que quer o
presente em nós, que deve lutar para restaurar a parte enferma ser caminhando para a perfeição e a felicidade. Quem deve, pa-
ou satânica, da mesma forma que no organismo a parte sã luta, ga, sendo o ser colocado pela dor no caminho reto, o de sua
com os recursos vitais provenientes de Deus, para recuperar a salvação. Tanto no terreno orgânico como no espiritual, a Lei
saúde e reconstituir o equilíbrio. Quando em nós se defrontam acorre para salvar, impelindo com as suas reações dolorosas o
em ação duas motivações opostas de bem e de mal, em que se indivíduo a salvar-se. A Lei se vale, indiretamente, de todas as
pesam a vantagem, em forma de alegria, e o dano, em forma de constrições compatíveis com o respeito à liberdade individual.
sacrifício, estamos diante do maior drama do universo, que con- Mas quando, apesar de tudo, o doente, seja do corpo ou do espí-
figurou o nosso tipo de existência e que retorna, repetindo no rito, não quer de forma alguma salvar-se – desejando assim fi-
caso menor a apocalíptica luta do universo entre o bem e o mal. xar em sua personalidade uma permanente violação da Lei, que
Por uma lei de inércia, que é verdadeira também no campo é inviolável – então ele é por ela eliminado. Em outros termos,
moral – segundo a qual, de modo semelhante a uma massa, uma a vida mata os que se voltam contra ela.
194 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Se assim acontece, então nos perguntamos: que probabilida- em Deus a sua causa que, por conseguinte, só pode estar na cri-
de existe no Sistema para que possa verificar-se, não para o Sis- atura. Sem a teoria do desmoronamento, teria sido Deus quem
tema, que é invulnerável, mas para o indivíduo, um desastre, determinou o semiciclo involutivo, isto é, a inversão do espírito
qual seja a sua anulação pela revolta definitiva? Prontamente na matéria, da liberdade na escravidão, da luz nas trevas, da fe-
respondemos que, embora a destruição de um espírito seja pos- licidade na dor etc. Como poderia o próprio Deus chegar a esta
sível, a probabilidade de semelhante destruição, na prática, é absurda contradição de querer subverter o sistema que Ele
apenas teórica. É verdade que o sistema é construído de maneira mesmo criou? O universo é também um conjunto lógico, no
que possa chegar até aí, mas não está na lógica das coisas que qual não há lugar para absurdos.
um espírito se deixe arrastar até esse extremo. E há razões para Do ponto de vista da criatura, não teria sido injusto e mal-
isso. Ser destruído é contra o interesse e a felicidade do ser, é doso (duas qualidades que Deus não pode ter) condená-la ao
agir contra o princípio do ―eu sou‖, que o mantém em vida. É sacrifício da ascensão sem que ao menos fosse justificado o
verdade que o rebelde, tendo-se colocado no negativo, automati- seu erro inicial? As mentalidades que se rebelam à ideia de
camente propende para essa anulação. Mas a arma da revolta ele uma reação da Lei pela queda na dor, em virtude do erro de
crava na própria carne e, quanto mais ele a utiliza, tanto mais in- origem, perguntamos se não se revoltariam mais ainda contra o
tensifica a própria dor. Ele tem de suportar um esforço cada vez conceito de um Deus que haja querido uma criação imperfeita
maior, uma luta sempre mais feroz, para insistir nessa via dolo- e progressiva, impondo ao ser inocente o tremendo esforço de
rosa, para contradizer o seu próprio instinto de felicidade, para construir a sua felicidade através da dor, por um preço tão du-
afastar-se do que constitui o centro para todos e também para ele ro, quando sabemos que o princípio de Deus, ao criar, é o
– Deus. Poderão impeli-lo por essa via de perdição o seu origi- amor, isto é, doação por ato de bondade. Nós podemos variar
nário orgulho, o espírito de revolta, a força da inércia lançada de hipóteses, repelir escandalizados uma e outra, mas há fatos
como massa em ricochete, o mal e o ódio do que ele está feito. positivos que não se podem discutir ou abolir, tais como o mal
Mas o fenômeno deverá também atingir um ponto de saturação ao lado do bem, a dor ao lado da alegria, a imperfeição junto à
em que o interesse egoístico deverá prevalecer, porque a dor, in- perfeição, ou seja, a existência de um lado desgastado e enfer-
tensificando-se sempre, superará o limite individual de tolerân- mo, de algo de corrupto, que repugna atribuir-se a Deus, pois,
cia, e uma existência de ódio e de mal cada vez mais distante de de forma alguma, podemos conceber seja Ele incapaz ou mau.
Deus, o centro de felicidade, acabará por tornar-se impossível. É absurdo colocar no bem a causa primeira do mal; na felici-
Este será o momento crítico da inversão de rumo, da direção in- dade, a da dor; na perfeição de Deus, da imperfeição. A causa
volutiva para a evolutiva. Então o ser por-se-á no caminho da deve estar na própria natureza do efeito. Dos dois termos com
reconstrução, no qual, à medida que é percorrido neste sentido, a que nos defrontamos, a um dos quais deve caber a responsabi-
dor irá diminuindo, e não aumentando como na direção oposta. lidade, somente a criatura pode errar, jamais o Criador. Poderá
Além disso, temos ainda que levar em conta a presença de desgostar-nos a ideia de sermos culpados, mas outra hipótese
Deus, que está, como dissemos, no seio da parte desmoronada não existe para explicarmos as causas.
do Sistema. Esta presença é uma força em ação, que envia ape- Na equação cuja incógnita procuramos muitos termos são
los, auxílios e esclarecimentos. Em imensos períodos de tempo, tomados como pontos fixos, inamovíveis, tais como a bondade
pela convergência de tantos impulsos, é impossível o ser não e a sabedoria de Deus, porquanto Ele não poderia deixar de
compreender o absurdo de laborar apenas em seu próprio dano, querer e das Suas mãos não poderia ter saído senão uma obra
que ninguém, por pior que seja, pode desejar. perfeita. Por outro lado, temos a existência da dor e do mal, o
Existe, afinal, um outro fato. A unidade entre os involuí- contrastante dualismo de princípios opostos e, enfim, a atual
dos, na zona corrompida do Sistema, quanto mais se desce, fase de evolução, que, em um sistema de equilíbrio, implica a
tanto mais pelo negativo é obtida, isto é, não mais como amor lógica necessidade de uma complementar, inversa e precedente
que unifica, mas como ódio que desagrega, como luta recípro- fase involutiva. A única solução que concilia e resolve tudo é a
ca e cisão, ao invés de como paz e fusão. Enquanto o sistema teoria da queda. Se a eliminarmos, acaba-se em um mar de
de Deus é centrípeto, o anti-sistema de Satanás é centrífugo. contradições e nada se resolve. É evidente que à incógnita da
Este, pois, em vez de centralizador, é autodispersivo. Tudo isto equação não se pode emprestar outro valor a não ser o de que a
constitui uma fraqueza que mina cada vez mais o indivíduo, causa está na revolta e que o nosso é um universo desmorona-
isolando-o, e acelera a chegada fatal àquele limite, em que se do. O leitor que deseja eliminar a teoria da queda procure outra
impõe a inversão de rota. que igualmente resolva tudo sem dúvidas. Parece-nos lógico
De todo o exposto, podemos concluir que, na realidade, to- que tenhamos preferência por uma teoria que resolve tudo –
dos deverão, mais cedo ou mais tarde, salvar-se. Os mais rebel- aceita por força dos fatos, e não por influência de uma escola
des sofrerão mais e também alcançarão os braços salvadores de ou religião – e deixemos de lado as que não resolvem.
Deus, porque, se um só não chegasse, a obra de Deus teria sido A primeira vez que começamos a encarar essas questões
imperfeita e seus fins de amor seriam frustrados. em nossos escritos foi nos capítulos XV e XVI do volume
◘◘◘ Problemas do Futuro. Ali, começamos a tatear o terreno, ou-
Retomemos mais uma vez em exame a teoria do desmoro- vindo as teorias contrárias, porém nos limitando mais a fazer
namento, para discuti-la ainda sob o fogo de todas as possíveis interrogações do que cuidar de dar respostas. Os problemas
objeções, com o objetivo de esclarecer os seus mais recônditos foram, então, apenas esboçados e orientados sob um aspecto
significados. Observemo-la dos mais variados pontos de vista geral, como germens de conceitos que seriam posteriormente
e focalizemos todas as suas particularidades. Só assim pode- desenvolvidos no presente livro, para o qual estes dois capítu-
remos chegar à mais clara visão dessa teoria e à sincera con- los referidos podem servir de introdução. Neles, começamos a
vicção da sua veracidade. assentar e agitar o problema na forma psicológica, como mui-
Se, para alguns, a teoria da revolta e da queda repugna, ex- tos o propõem, e dizíamos que o mal parece uma força negati-
perimentemos eliminá-la. Que resta, então? O semiciclo involu- va, que atenta contra Deus, uma imperfeição devida a um erro
tivo necessariamente tem de permanecer, pois sem ele faltará o Seu e que Ele, em dado momento, encontra no Sistema, apres-
indispensável e lógico complemento do inverso semiciclo evo- sando-se a remediá-lo. Se há um outro Deus que limita o pri-
lutivo, que nós vivemos atualmente. O mal e a dor são realida- meiro, então cai o conceito de um Deus absoluto e perfeito,
des indiscutíveis e características do ser decaído em planos in- restando para o homem a dor, punição de um Deus vingativo.
feriores de vida. É uma necessidade lógica que não possa estar Essa dor deriva da culpa do primeiro rebelde, que certamente
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 195
não podia ter consciência completa do bem e do mal, pois, se ada por Deus, então Ele, se não é capaz de extingui-la, não é
a tivesse, não teria se prejudicado com a revolta e mergulhado onipotente. Se Ele a criou, foi criada uma obra muito imperfei-
na dor. E como pode um inconsciente ser responsável e puní- ta, logo Deus não pode ser perfeito (na realidade o mal não foi
vel, se, ao procurar o próprio bem, erra, sem o saber? E em criado por Deus, Que o vencerá).
nome de que justiça, Deus, que tudo sabe, que de tudo tinha No fundo, tudo se reduz a compreender a psicologia desse
presciência, mesmo desse erro, pode condenar um ser que er- erro. Será a nossa psicologia humana capaz de compreender
rou por ignorância a pagar com a dor? Quando uma criança uma psicologia tão distante de nós? Podemos admiti-lo, não só
inexperiente cai, a culpa é dos pais, que, sabendo de antemão, porque os homens se incluem entre os espíritos que fizeram a
deveriam prever a queda; é dos pais, que têm o dever de edu- revolta (não sendo deles inocentes descendentes) mas também
car antes de punir e, ainda assim, apenas proporcionalmente à pelo fato do universo ser regido por princípios únicos, repetidos
experiência adquirida pelo filho. Quando este não tem conhe- em todos os níveis. Ora, então é possível que as posições dos
cimento, os pais não podem punir. E, então, que deveremos primeiros espíritos pudessem não ter sido apenas as expressas
pensar de um Deus que, contrariamente aos seus princípios de no dilema. Pode-se dizer que algo é branco ou preto, porém po-
amor, bondade, lógica e justiça, comporta-se dessa maneira de também ser verde, isto é, nem branco nem preto. Assim as
para com a criatura? causas também podem ter sido bem diversas das acima expos-
Assim falávamos naqueles dois capítulos. Esta é uma primei- tas. Podemos bem entender o conhecimento dos primeiros espí-
ra e elementar forma de plantar a questão. Mas já ali se viam ritos como limitado, em face do ilimitado de Deus. De fato, os
como eram absurdas as conclusões, visto que se voltavam contra espíritos, nascidos de Deus, como uma divisão orgânica em Seu
Deus. Isto é um assalto à lógica, que o evoluído não pode acei- seio, não podiam possuir o conhecimento do Todo, que só Deus
tar. Mas a maioria dos homens é presa de ilusões de ótica psí- possuía, porque só Ele era o Todo, enquanto eles eram apenas
quica e de perspectiva mental, porque neles, mais do que a lógi- momentos da Todo. Eles eram, certamente, perfeitos, mas den-
ca e o raciocínio, impera o instinto de auto defesa na luta pela tro do limite dado pelo fato de serem uma parte, e não o Todo.
vida. Ora, na procura do responsável pelo mal, pela causa da Somente a totalidade que eles formavam, isto é, o conjunto or-
dor, repugna a este tipo biológico admitir e confessar a própria gânico do Todo, de que eles eram parte no Sistema, podia coin-
culpa, porque sua vida gira integralmente em torno da seleção cidir, também no conhecimento, com o Todo – Deus. É assim
animal do mais forte, que é aquele que sabe vencer, não impor- que cada um deles não podia ser onisciente, porque a parte po-
tando os meios. Então confessar-se culpável é perder; defender- de ter um conhecimento perfeito, nos limites do próprio ser,
se é necessidade, ainda que, em plano mais elevado, semelhante mas não pode alcançar o conhecimento do Todo. É óbvio, pois,
modo de proceder se reduza a absurdo. Assim, para não acusar a que, para seres assim perfeitos, mas limitados em face de Deus,
si próprio, chega-se até mesmo a acusar a Deus. É somente a fal- Que, como é lógico, devia ser mais do que eles, pudesse existir
ta de capacidade de raciocínio que permite imaginar um absurdo uma zona que o seu conhecimento não podia atingir. Essa zona
tão incrível, como o erro e a culpabilidade de Deus. do ignoto foi o campo da queda.
É aqui o caso de se perguntar se esta atitude mental não Essa zona desconhecida não somente faz parte da lógica e
constitui uma prova da queda, se ela não deriva da natureza do da estrutura do Sistema, mas também desempenhou um papel
rebelde e da persistência do originário espírito de revolta. Tudo específico em relação à liberdade do ser. A sua função foi servir
isto revela e confirma a perpetuação de uma corrente, de uma como meio de prova da amorosa obediência a Deus e da espon-
força que continua a manifestar-se na sua direção inicial. Ima- tânea e livre adesão à ordem da Lei, como era dever da criatura
ginar a possibilidade de culpa divina é prosseguir rebelando-se demonstrar para com o seu Criador. É lógico que a célula – fa-
em favor do próprio ―eu‖ e contra Deus, o que é culpa de ori- zendo parte de um grande organismo, nele e dele vivendo, co-
gem, o ponto de partida que torna e retorna na normal psicolo- mo sucedia aos espíritos puros no seio de Deus – deva aceitar e
gia humana de abuso. exercer as leis do organismo, mesmo quando, sendo limitada,
Diz-se também: ―Sim, o homem errou, mas a culpa é de não as pode conhecer e compreender. E, de fato, as células de
Deus, que o criou assim. Ele deveria criar um ser que não pode- nosso organismo humano, mesmo possuindo uma vida autôno-
ria errar‖. Como se vê, persistimos sempre na atitude de quem ma, obedecem à lei do conjunto orgânico – lei superior à delas,
pretende fazer uma escola para Deus, a fim de ensinar-Lhe a de simples células isoladas – e nelas se coordenam em obediên-
operar, sobretudo segundo as nossas próprias conveniências, cia. Obediência necessária, porque sem ela teremos uma anar-
que se cifram em gozar sem sofrer. Esta é uma concepção an- quia, o que faria ruir todo o Sistema. A coordenação na ordem é
tropomórfica, para uso e consumo exclusivo do homem. Encon- sempre indispensável em qualquer todo orgânico.
tramo-nos aqui nas últimas raízes da dor, nas suas causas mais Este confronto que fazemos aqui não é por acaso, porque a
profundas. Azorragado pela dor, o homem não quer compreen- estrutura de nosso corpo físico repete realmente o tipo de mo-
dê-la e, para livrar-se dela, sem nada haver compreendido, pro- delo originário, dado pela primeira criação, cuja estrutura nos
cura arredá-la de si e atirá-la nos outros, até mesmo em Deus, revela, ao mesmo tempo que nos explica, por que todos os or-
culpando-O. Como é raro encontrar o homem que reconhece ganismos, justamente por serem derivados do primeiro modelo,
em si as causas do próprio infortúnio, não as procurando nos são construídos segundo o mesmo esquema e correspondem ao
demais! A razão pela qual a tantos repugna a teoria da queda é mesmo princípio. É ele o princípio universal das unidades cole-
que ela humilha e nos induz a reconhecer os nossos erros. tivas, que já examinamos em A Grande Síntese. Este motivo
À medida que deixamos as causas acessórias e subimos pa- originário ou tipo construtivo fundamental da criação vai sendo
ra as mais remotas, o problema se concentra, por inteiro, no repetido, como um eco, em todos os níveis evolutivos, até nas
momento psicológico da revolta. Da forma como o homem menores criações, que são consequência da primeira, à guisa de
propõe comumente a questão, parece que não podemos fugir desintegração atômica em cadeia. É assim que as unidades
ao seguinte dilema: ou os espíritos eram sábios e, portanto, não maiores são formadas de agrupamentos de unidades menores, o
podiam cair, porque sabiam as consequências, ou eram igno- que explica o instinto de viver em sociedade, o espírito gregário
rantes e, então, não podiam ser culpados da queda nem respon- tanto entre os homens como entre os animais, para vencer na
sabilizados por ela; em outras palavras: ou Deus criou um espí- luta pela vida. É assim que, nas unidades maiores, as menores
rito que sabia e que, por isso, não podia cair, ou o criou insci- possuem funções menores, em que elas se especializam.
ente e, então, não o podia punir. Diz-se, igualmente, que o mal Foi assim, pois, que existiu para os espíritos puros uma zona
existe de fato, como força inimiga de Deus. Se ela não foi cri- situada além do seu conhecimento, zona reservada a Deus, na
196 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
qual eles não deviam nem podiam entrar, sem formar um estado mo para Deus, visto que assim Ele não cai no absurdo e na con-
de anarquia, que teria atentado contra o próprio Sistema. Era tradição, respeita a Sua lógica e, por conseguinte, a Si próprio.
essa uma zona em que se devia somente acreditar, obedecendo. Não sendo, então, possível, sem violar a ordem do Todo,
Ela possuía, desta forma, a função de propiciar um tipo de conceder um conhecimento direto e total, abrangendo também a
exame; um consentimento pedido e feito por amor, livremente; zona do desconhecido, Deus comunicara aos espíritos um co-
uma arguição em que o Criador interrogava a criatura, para que nhecimento indireto, isto é, advertira a respeito do que poderia
ela declarasse a sua aceitação, sem coação, permutando amor suceder. Por que os rebeldes não obedeceram? Por que não
com amor. Eis a zona em que podia nascer e nasceu o erro. acreditaram na palavra de Deus? Eis a culpa. Ademais, um co-
Alguns espíritos responderam com obediência, aceitando por nhecimento completo teria anulado a possibilidade de escolha,
amor e por fé, permanecendo fiéis a Deus, em Sua ordem. Ou- a prova, a aprovação, a aceitação por ato de obediência, en-
tros, todavia, sempre livres, desejaram ultrapassar o limite prefi- quanto a lógica do Sistema exigia uma aceitação livre, espontâ-
xado e, usurpando poderes, entraram no domínio proibido, re- nea, por obediência e por amor, porque era justamente sobre es-
servado somente a Deus. Eles quiseram usar a liberdade, o pode- ses alicerces que se erguia todo o Sistema e essas eram as con-
rio e a sabedoria recebidos de Deus para ainda ampliar o princí- dições necessárias para que se mantivesse. O ser era livre e sa-
pio do ―eu sou‖, que Deus havia colocado como base dos seres, bia, pois fora advertido. Ele, deliberadamente, não quis crer e
à Sua imagem e semelhança; quiseram ainda crescer, ao invés de obedecer. A escolha não estava vinculada a nenhuma força,
coordenar-se em obediência na ordem do Sistema; pretenderam porque Deus quis, acima de tudo, a liberdade do ser, para que
crescer além do limites da natureza de seu ser, que Deus lhes as- ele não fosse um autômato ou escravo. Nem era possível que do
sinalara. E o que sucederia se uma célula do corpo humano qui- Seu seio saísse uma criatura que Lhe fosse semelhante, se não
sesse equiparar-se ao nosso ―eu‖ e usurpar os poderes centrais, fosse livre. Com a revolta, faltaram ao edifício as bases da obe-
assumindo a direção de todo o funcionamento orgânico? Certa- diência, do amor e da ordem, e, onde eles faltaram, o edifício
mente, onde existisse desordem o Sistema desmoronaria. desmoronou. Então a zona de conhecimento que, sendo direta-
Não restou como um instinto fundamental da vida o impul- mente inacessível, fora indiretamente comunicada sob a forma
so de crescer além dos limites, invadindo, usurpando e impon- de advertência, para ser aceita por fé – zona que os espíritos
do-se? Assim ele se explica. E não sucede sempre a mesma coi- obedientes conquistaram por crer e obedecer – os espíritos re-
sa, isto é, que a Lei – o instrumento que exprime o pensamento beldes foram condenados a conquistar pela dor, através da dura
e a vontade de Deus – mantém todos os seres dentro dos devi- fadiga da reascensão pela evolução. Assim, o erro é reabsorvido
dos limites? Todos desejariam crescer ao infinito, como se pre- na dor, o mal é sanado, o edifício desmoronado é reconstruído.
tendessem escalar Deus, mas a Lei lhes serve de freio e os re- Por que é difícil a compreensão desse ato de revolta, se con-
põe em seus limites, disciplina-lhes o desenvolvimento, guia- tinuamente violamos a Lei, embora sabendo que devemos pa-
lhes a ação através dos instintos e os mantém no posto que lhes gar? Sabemos e, entretanto, nos iludimos, porque somos venci-
fora designado na estrutura orgânica do Sistema. E a realidade dos pelo instinto dominador e expansionista do ―eu‖. Como da
quotidiana da vida não repete aos nossos olhos as mesmas coi- primeira vez, o mesmo ato repercute e retorna em nossa experi-
sas? Nós também dizemos às crianças, ávidas de romper o freio ência cotidiana. E, por ventura, não comprovamos em nossas
do limite, para não fazer isto ou aquilo, a fim de evitar-lhes da- vidas que do erro nasce a necessidade de remediá-lo, nasce uma
no e, frequentemente, eles não obedecem e depois pagam com a dor pela qual expiamos e, expiando, aprendemos a não mais
dor, que é, quando erramos, a salutar lição para nos reconduzir cometê-lo? Não vivemos nós comprimidos nas malhas de uma
à ordem. Assim também, automaticamente, devem recair nos lei onde qualquer violação é erro, o qual pagamos com dolorosa
espaços vitais que lhes cabem todos quantos tentam evadir-se, experiência? Mas, apesar de tudo, continuamos a violar, sendo
violando a Lei. Quem espera vencer sem esforço, isto é, fora da a dor um tributo nosso. A Lei é perfeita, e quem a cumpre não
Lei, perde e paga. O prazer fora da ordem, no vício, acarreta so- pode deixar de ser feliz. Se a dor é um fato real, inserido em
frimento e obriga a pagamento. nossa vida como elemento inseparável e fundamental, isto só
Ora, os espíritos sabiam os seus limites e não deviam ultra- pode ser explicado como um erro proporcional à fundamental
passá-los; sabiam ser parte de um sistema a ser respeitado, com violação inicial da ordem divina.
cuja lei deviam harmonizar-se; sabiam que era dever não ir A dor é um fato inegável e tremendo, que, cedo ou tarde,
além dos limites assinalados nem invadir a zona reservada a atinge a todos, porque é inevitável. Sem a queda, a dor seria
Deus. Tudo isso sabiam bem. Não foi por ignorância que erra- uma condenação imerecida, o belo presente dado por um Deus
ram. O seu ato foi uma revolta consciente, feita, portanto, com que cria por amor! Seria, porém, um presente de ódio, ainda
plena responsabilidade. Os espíritos podiam ver escrita no pen- que nos servisse para pagarmos uma futura felicidade. A evo-
samento de Deus a norma que lhes era pedido – como seres lução é o necessário sacrifício da subida, se não quisermos
sempre livres, mas responsáveis – aceitar espontaneamente. agravar a nossa situação, descendo. Somente nesse sacrifício
Eles não a aceitaram. Ouviram a palavra de Deus e não quise- de ascensão está a salvação. Sem a queda, porque esse sacrifí-
ram acreditar. E nesse ponto deviam acreditar, pois não conhe- cio? Talvez para pagar a Deus o dom da vida? E onde está a li-
ciam todo o Sistema, já que o conhecimento total só cabia a berdade e o amor, quando se é constrangido pela força a pagar
Deus. Eles conheciam o Seu comando, a norma a seguir, mas tão caro essa vida, que o espírito não pediu a Deus? Mas que
uma coisa ignoravam, pelo menos por experiência própria dire- Deus seria esse que não saberia gerar senão na dor, não reser-
ta: a desobediência faria os rebeldes decaírem, gerando a dor, vando à criatura mais do que a dor?
que eles ainda desconheciam. Como se vê, se recusamos a teoria da queda, entramos nu-
Pode-se objetar: ―Mas Deus deveria ter dado esse conheci- ma insolúvel trama de contradições e absurdos, de que nasce
mento‖. Há, todavia, uma imprescindível necessidade lógica, uma triste ideia da divindade. O homem pode bem justificar-
que impede tenha o absurdo lugar no Sistema. Deus não podia se, fazendo do erro da criatura um erro de Deus, mas não há
tirar do Seu seio tantos deuses iguais a Si mesmo, pois, como quem não veja nisso um absurdo. Na vida, temos que nos re-
tais, seriam senhores de todo o conhecimento. Ele não podia de portar ao erro para explicar a dor, porque ele é essencialmente
Si mesmo, que era o Todo, tirar senão momentos menores que um estado de desarmonia na ordem da lei de Deus. Ora, pode-
o Todo, dotados, pois, de conhecimento menor e parcial, em fa- mos nós admitir um erro em Deus? Não, é absurdo. Então, on-
ce do Seu, o único que podia ser total. Tudo isto está implícito de poderá ele ter existido, senão na criatura? É inútil procurar
na lógica do Sistema e constitui, assim, uma necessidade, mes- mais, pois não há escapatória.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 197
Que resta, então, do dilema já proposto: ―Ou os espíritos existe justamente uma realidade para torná-las possíveis. E esta
eram sábios e, por conseguinte, não podiam cair, ou eram ig- realidade está em que o homem é realmente feito à imagem e
norantes e, nessas condições, não podiam ser culpáveis?‖. Que semelhança de Deus, porque é Seu filho, de origem divina e,
resta do outro dilema, pelo qual Deus não podia ser nem oni- ainda que filho degenerado, é sempre filho, semelhante ao Pai.
potente nem perfeito? Deus que nos salve dos dilemas, que pa- Ora, tudo o que houve na revolta e queda é igualmente pro-
recem uma tenaz de aço, mas que nada comprimem, porque, vado pelo fato de que, como também é lógico, tudo isso conti-
no fim, descobre-se que um dos seus braços era fictício. In- nua a ocorrer todo dia em nossa própria vida, em uma série de
cumbe-nos mostrar a lógica dos fatos. Os espíritos sabiam que maneiras de agir, verificada por motivos de um dado tipo, que,
a zona do ignoto era destinada à obediência. Eles sabiam, não de outra forma, ficariam sem ter explicação. Por que teria a con-
eram ignorantes, sendo, por conseguinte, responsáveis e culpa- duta humana assumido esta direção? Por que corresponde ela a
dos. Sabiam o quanto bastava para obedecer e não quiseram, tal ordem de princípios conhecidos, como o bem e o mal, a dor,
porque não acreditaram. Tudo foi merecido, segundo a divina o progresso, a ideia de Deus etc.? De onde surgiu este sistema,
justiça. Só assim poderia permanecer intacta a liberdade. E o que também é lógico para a humanidade inteira? Como explicar
amor de Deus persistiu, porque, no Seu aspecto imanente, Ele a gênese e o profundo significado de tudo isto? O hábito nos faz
desceu com a criatura, para ajudá-la a subir. Só assim se com- esquecer estas questões, por isso os simples não as propõem,
preende e justifica o sacrifício da evolução. Somente assim a achando tudo natural apenas porque sempre viram tudo assim.
dor nos revela a sua lógica gênese. Unicamente desta maneira Mas isto não basta para satisfazer a quem pensa. Somente este
se confere um valor lógico a todos os termos da equação, tor- conjunto de remotíssimos precedentes pode ter marcado a via e
nando possível coordená-los em um princípio unitário dentro a direção para um movimento ou desenvolvimento particular de
de um sistema orgânico. Caem assim apenas os rebeldes. Ex- fenômenos que, atualmente, por inércia, continuam a se desen-
plica-se então a gênese do universo físico, a evolução das di- volver justamente segundo o tipo com que nasceram. Somente
mensões, o espaço curvo em expansão, o processo evolutivo. assim podemos explicar porque continuamos a errar e sofrer ce-
Desta forma explica-se tudo; de outro modo, nada. O grande gamente, quando a felicidade está pronta na adesão à Lei. Con-
desmoronamento é um desastre, mas o Sistema é tão perfeito, tinuamos, porque somos filhos do erro.
que pode restabelecer-se. Tudo se reduz a uma lição instrutiva, Erro e dor são conexos em uma lógica de ferro. A dor é um
para que se aprenda a não mais errar. Compreende-se então o fato real. Há, pois, uma necessidade absoluta de admitir o seu
significado da dor, amarga medicina que cura o enfermo e eli- termo paralelo e complementar: o erro, sem o qual a dor não se
mina o mal, que restaura o ser no ponto em que se feriu ao er- explica e, num universo lógico, cairíamos num flagrante e in-
rar e o robustece nos lugares em que se revelou fraco e ignaro. concebível absurdo, um absurdo de tal ordem, que faria ruir a
Não é este o processo corretivo de todo erro nosso em cada re- lógica de todo o sistema, provocando o seu desmoronamento e
encarnação? Nada de vingança punição ou condenação, mas chegando mesmo a macular de maldade e incoerência o sem-
escola para a reconstrução da felicidade! blante de Deus. É tão grande a contradição, que nenhum ser ra-
Quisemos acrescentar tudo isto, mesmo repisando alguns cional poderá introduzi-la nas próprias conclusões. Entretanto
conceitos, a fim de que tudo seja exaustivamente controlado pe- se chega a ela, o que quer dizer que os termos em que foi colo-
la lógica e claramente demonstrado para todos. cado e desenvolvido o problema estão errados. A lógica tem
◘◘◘ suas exigências matemáticas, das quais o nosso pensamento não
Tudo que dissemos tem sua lógica. Logo, que as coisas se- pode fugir, porque ele se move num universo regido pelas ne-
jam assim, não padece dúvida. O nosso problema, aqui, reside cessidades matemáticas de tal lógica.
em fazer a psicologia moderna compreender que é realmente Compreende-se, todavia, que alguns se rebelem contra essa
assim, em termos que ela possa aceitar, dada a sua formação. teoria da queda e do desmoronamento. Para impressioná-los
Não há razão que nos leve a crer que o universo seja uma obra menos, poder-se-iam criar termos novos, mas seria trabalhosa
ilógica e que o pensamento de Deus, que tudo guia e sem o qual para o leitor uma terminologia nova. Contudo o conceito não
nada se explica, não deva ser um processo lógico. A mais avan- se alterará. Rebelam-se com razão, porque essa teoria foi até
çada ciência materialista, ela própria, já admite isto, que tam- hoje apresentada apenas como enunciado de revelação, e não
bém ressalta na presente obra. ―Mas que lógica?‖, poderemos explicada e demonstrada através de uma análise racional e ló-
indagar. A lógica de Deus não poderia ser um outro sistema de gica. Ela permaneceu, assim, como um ato de fé, como uma
lógica? O fato é que, em nosso universo, comprovamos um só lenda envolta no mistério.
tipo de lógica, que é também a humana, e é este fato que nos O problema, para sua explicação, foi enfrentado com as já
torna o universo compreensível. Se este correspondesse a um expostas objeções e dúvidas, que deixam tudo sem solução, qual
outro tipo de lógica, não lhe seriam aplicáveis os nossos siste- indagação feita pela metade na fase de interrogação, sem com-
mas matemáticos, aos quais, pelo contrário, ele corresponde plementar-se jamais na fase de resposta. É natural que, dessa
perfeitamente. Não existe, pois, razão alguma para crer que a forma, a teoria da queda permaneça como um esboço incomple-
lógica do pensamento de Deus deva obedecer a leis diferentes to, do qual se arredam entediadas as mentalidades racionais. É
daquelas a que obedece a lógica humana. Entre o pensamento cabível, então, que a elas repugne aceitar uma teoria que se
do homem, como função primeira do espírito (que vimos não apresenta vaga, incontrolável e contraditória. Responde-se: é
poder ter sido originado senão de Deus – espírito), e o pensa- mistério. Mas o fato é que a mentalidade racional moderna
mento de Deus deve existir um denominador comum, por mais abandona no vazio do incerto tudo o que ainda permanece inso-
remoto e profundo que seja, dado pela mesma substância que os lúvel, aceitando e tomando para exame apenas o que é positiva-
constituem. Há ideias axiomáticas, não demonstradas, com as mente compreensível, porque é racional. E aqui temos de falar
quais instintivamente toda a humanidade concorda. São concei- esta linguagem se quisermos despertar a mente moderna. É o
tos metafísicos, que não constituem resultado da experimenta- nebuloso, o desgaste pelo ilógico, que faz nascer nela fastígio e
ção biológica. O fato é que, no fundo do pensamento do ho- rebelião, quando ouve falar em queda dos anjos. É reportando-se
mem, quanto mais reto, evoluído e inteligente for ele, tanto aos velhos conceitos tradicionais que muitos ficam chocados.
mais fala o pensamento de Deus com a sua lógica. Na verdade, Mas aqui se trata de outra coisa. Nós não repetimos ideias
o homem tem de Deus uma representação à sua imagem e se- de nenhuma religião ou escola. Com o método da intuição, en-
melhança, criando-O dessa forma. Mas aqui se trata de uma das caramos os fatos – transcendentais, mas sempre fatos. Sem tê-
aproximações sucessivas, que só são possíveis quando sob elas los procurado, concordamos com os enunciados sumários da
198 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
revelação, o que é uma prova em favor, e não contra. Já que não da liberdade, pois que a criatura não podia ser um autômato, ain-
é possível dar ao leitor a sensação desta visão, procuramos des- da que perfeito. A prova era um exame lógico e necessário.
crevê-la com os únicos meios que temos à disposição: a lógica Pode-se objetar que Deus, por saber com antecipação que
e os argumentos, como só se pode fazer para explicar a luz a muitos falhariam na prova, devia impedi-la. Mas não se pode-
um cego. Acreditamos tê-lo conseguido. Mas se assim não foi, ria evitá-la, senão violentando a liberdade do ser, tornando-o
repetimos ainda: fatos são fatos. um autômato, incapaz de compreender e dirigir-se consciente-
Dizíamos que a Lei reage. Mas aquilo a que chamamos dor, mente. Significaria alterar todo o Sistema, abalando-o pela ba-
que crucia, é atribuído a Deus, a causa de tudo, culpando-O se. O raciocínio do homem preocupa-se, sobretudo, em como
também dela. Revoltam-se porque acreditam ver em tudo isto se poderia ter evitado a dor, que tanto o vergasta, mas não leva
uma punição, uma vingança divina. No entanto a queda não foi em consideração muitos outros elementos necessários. Como
vingança, nem punição. Deus é sempre amor. Deus jamais pu- podia Deus, logicamente, impedir pela coação semelhante ex-
ne. A punição é infligida pelo ser a si mesmo. Dada a estrutura periência? A prova consistia exatamente em uma livre adesão
do Sistema, ele, através da rebelião, lacerou as carnes com as por fé e obediência, na reciprocidade por amor. Se não entrava
próprias mãos. Quem compreendeu a estrutura do Sistema não na lógica do Sistema a possibilidade de tal constrição, Deus,
pode falar de vingança. Esta é uma concepção antropomórfica, que sabia da queda de muitos espíritos, não os deveria ter cria-
é como querer explicar o trovão como ira dos deuses. Se per- do então? Mas o Sistema é um organismo compacto, de férrea
demos o equilíbrio e quebramos a cabeça, não é porque as leis lógica, e nela não podia caber essa possibilidade, que teria sido
do equilíbrio e a gravidade nos tenham querido punir e vingar- um ato de flagrante injustiça. Por que tolher aos candidatos à
se. No campo moral é a mesma coisa. O universo é regido por queda o dom máximo da existência e a possibilidade de redi-
uma ordem, por uma lei. Quem a viola não violenta ou altera a mir-se, alcançando a felicidade eterna, ainda que através da
intangível ordem divina, mas gera apenas uma desordem em si dor? Que punição e que injustiça não teriam sido essas, pois
próprio; não subverte a Lei, mas inverte-se a si mesmo no seio que seria condenação antecipada de inocentes, antes de have-
da Lei. É necessário compreender que a criatura é livre, mas rem cometido qualquer erro! É lógico que Deus deixasse a es-
dentro de limites; livre para alterar-se a si mesma, mas não a ses espíritos a liberdade e a vida, que constituem sempre ato de
ordem universal. A criatura deverá, pois, sofrer as consequên- bondade e de amor, porque a escolha continuava entre a via
cias dessa alteração, que diz respeito só a ela, e sofrerá pela sua curta da felicidade pela obediência à ordem da Lei e a via lon-
desarmonia, que ela desejou, até reintegrar-se através do sacri- ga da redenção pela dor, após o erro da revolta.
fício na zona por ela violada, na ordem por ela alterada. Deus permitiu o erro justamente porque sabia. E sabia tam-
Dizíamos que a Lei reage. Mas aquilo a que chamamos rea- bém que esse não era um mal irreparável, mas apenas uma via
ção é uma sua resistência à deformação, uma resistência elásti- mais longa para alcançar a felicidade eterna. Vimos que o mal
ca que se pode comparar à da borracha, que cede, mas resiste, e ou se converte em bem, ou está destinado, pela férrea lógica do
que, quanto mais cede, tanto mais se retesa, para reconduzir tu- Sistema, à autodestruição. Deus sabia que a Sua criatura, qual-
do ao estado normal anterior. Assim a Lei, como norma, é invi- quer que fosse a via que tivesse escolhido para percorrer, alcan-
olável, determinística vontade absoluta de Deus. Mas essa Lei é çaria a felicidade. Eis que o amor, a bondade, a justiça, a lógica
dotada de uma certa elasticidade, no quanto basta para conter de Deus ressaltam sempre mais evidentes em cada caso. Fala-se
um dado âmbito no arbítrio e amplitude de movimento, que re- de vingança por cegueira, e não se vê que o amor de Deus foi
presentam a liberdade humana, isto é, a possibilidade de esco- tanto, que, como Filho, desceu ao nosso mundo para sofrer co-
lha e, por conseguinte, de erro, necessários para experimentar e, nosco e redimir-nos, ensinando-nos a subir! Foi tamanho esse
no caso de erro, para aprender. Compreende-se que a perfeição amor, que Ele quis descer dos céus, da transcendência à ima-
não pode deixar de ser determinística, no sentido de que só o nência, para permanecer em nosso contingente. Assim, o médi-
melhor absoluto pode ocorrer. Tal é o sistema incorrupto dos co vela e ajuda o enfermo de perto, até que ele se tenha restabe-
espíritos que não erraram e não caíram. Pode, pois, deste ponto lecido. Que mais se poderia pedir a este Deus, que muitos pre-
de vista, parecer mesmo que o arbítrio humano, além de ser um tendem acusar de injustas punições? Ao contrário, quanta sabe-
resíduo da liberdade originária, seja um produto da queda, visto doria, quanto amor, quanta bondade! Só mesmo uma grande ig-
que a escolha significa uma incerteza e uma procura do melhor norância pode concluir de maneira diversa.
absoluto, que se perdeu e ainda não foi reconquistado. Os ter- É o antropomorfismo que leva o homem a aplicar a Deus
mos do nosso estado de decaídos escalonam-se nesta ordem de os princípios do seu plano biológico. Repitamos: Deus jamais
sucessão: incerteza, escolha, experiência, erro, dor, prova, esco- pune. O que nos parece punição não é resultado de uma ativi-
la, conhecimento. Estes são os termos do desmoronamento e dade positiva de Deus contra a criatura – conceito absurdo –
reconstrução de consciência, termos que não podem existir no mas sim a automática consequência da ausência de Deus,
estado de perfeição e que a própria evolução, isto é, nosso re- quando Ele é repelido pela criatura. A causa determinante é a
torno a Deus, vai realmente reabsorvendo e eliminando com a recusa voluntária da criatura. Deus não inflige punições, mas,
progressiva conquista de consciência. No estado de perfeição quando a criatura O nega e repele, Ele respeita a liberdade que
dos espíritos que aderiram à Lei, só há uma liberdade possível: lhe deu e, assim, pela própria vontade, a criatura se afasta de
a absoluta adesão à Lei, que é a vontade divina; adesão livre e Deus, como se Ele se tivesse retraído. Ora, uma vez que Deus
espontânea, querida e consciente. Por este motivo os espíritos é vida, a maior punição é esse afastamento, porque significa
rebeldes deveriam ter obedecido e, como desobedeceram, caí- privação de vida. E, com a revolta, a criatura se privou da pró-
ram. Nessas alturas não podem subsistir os nossos conceitos an- pria vida, que é dada pelo espírito, tornando-se matéria, mas
tropomórficos de liberdade, arbítrio ou capricho. com possibilidade de ressuscitar da sua sepultura.
Mas esclareçamos ainda melhor. Quando Deus criou o ser Tudo isto demonstra como se fosse lógica e fatal a queda
puro espírito, deixou apenas um ponto incompleto na Sua obra, a após a revolta, porque esta significava um afastamento de
fim de que ela fosse completada pela livre adesão do ser. Este Deus, ou seja, da vida; significava, portanto, um suicídio, a
deveria, com a aceitação, harmonizar-se com o Sistema e, nele morte, ainda que a bondade de Deus lhe deixasse a possibili-
fixando-se em seu posto, dar prova de que sabia fazer bom uso dade de ressurgir para a vida, corrigindo o erro com a dor. Tu-
da liberdade e inteligência que Deus lhe dera, compreendendo do isto poderá agora nos permitir melhor compreender também
qual era o seu lugar na ordem da criação. Elevar o ser ao grau de aquilo a que já nos referimos precedentemente, no presente ca-
colaborador da obra de Deus foi ato de amor, ato paralelo ao dom pítulo, com respeito à anulação dos espíritos rebeldes, que in-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 199
sistem em permanecer na rebeldia. O espírito que recalcitra na orgânica, que a revolta não lhe afetou a perfeição, permitindo
revolta é anulado (ainda que o seja somente como individuali- que todos se salvem. Finalmente, desaparecerá qualquer traço
zação, e não como substância, porque esta, sendo de Deus, é de erro com suas consequências, sendo o mal e a dor elimina-
indestrutível), em virtude de que todo o afastamento de Deus dos do Sistema. A cruz que Cristo tomou sobre os ombros ino-
significa morte, porque Deus é vida. Negar Deus é o mesmo centes era o efeito do desmoronamento. Ele a carregou para
que negar a existência, porque só Deus é, e fora de Deus nada que todos, com Ele, reabsorvessem na dor a consequência do
mais pode ser. Deus é o Todo, e sair do Todo é cair no nada. erro. Que maior amor poderia revelar pela sua criatura um
Fora de Deus, que é o Todo, não pode existir senão o nada. É a Deus Que, após lhe haver dado a vida, desce a sofrer com ela
natureza de Deus e a própria estrutura do Sistema que, automa- para devolver-lha, quando ela já a havia perdido?
ticamente, sem nenhum ato ou intervenção de Deus, implicam É bom, é lógico, é satisfatório reconhecer no amor o centro
a morte de quem se afasta Dele. Somente em Deus é possível do Sistema. É este princípio de amor o princípio de coesão que
existir, no seu seio e na sua lei, e a Ele retornando, se a criatura mantém una a Divindade, ainda que, para criar, ela se cindisse
se afastou. Quem não estiver com Deus, afastando-se Dele e no seu íntimo (dizemos íntimo, porque nada se pode acrescen-
não mais retornando a Ele, perde a existência. tar ao Todo, e Deus é o Todo). É este princípio de amor que
A essência da queda não é, portanto, um ato de punição, também mantém unido o edifício desmoronado e o reconduz à
mas o afastamento de Deus, desejado pela criatura, que tem fa- salvação, mesmo que seja através da dor. Quanto mais se desce
tal necessidade de subir novamente a Ele, se quiser reencontrar nos planos da queda, tanto mais áspera é a dor e tanto mais
a vida. Como o edifício criado por Deus se poderá manter sem amarga de ódio. Quanto mais se sobe na evolução, tanto mais
Deus, seu princípio animador? Não será lógico o desmorona- dulcificada pelo amor ela será. Assim, a dor de Cristo na reden-
mento para os seres que se afastaram desse princípio? A revol- ção está baseada no amor, enquanto a dor de Satanás não tem
ta contra Deus significava revolta contra a própria vida do ser, esperança de ascensão e é baseada no ódio. Amor invencível,
contra a sua própria existência. O que poderia resultar desse que resiste à revolta da criatura. Amor que conserva, mesmo no
comportamento, senão a morte, um não-ser, como é para a universo decaído, o divino princípio positivo da reconstrução!
consciência (qualidade do espírito) a inconsciência (qualidade Amor que luta contra o satânico princípio negativo da destrui-
da matéria)? Assim a queda foi um desmoronamento de di- ção, e o vence. Amor que permanece, ainda que a revolta tenha
mensões em planos de vida inferiores, involuídos, em que to- sido a resposta da criatura com a sua negação! Amor que conti-
dos os dons de Deus se contraíram em um estado potencial, de nua a cimentar as partes do edifício desmoronado, fazendo dele,
latência, do qual só o sacrifício de ascensão do ser poderá reti- mesmo assim, um sistema orgânico como é o nosso universo!
rá-los, despertando-os para a atualidade. Ora, o ser, para curar- A criatura rebelde pretendeu atentar contra o Sistema para
se da desobediência, deve compensar a ordem com equivalente lhe alterar os planos hierárquicos, e ele, baseado em uma férrea
obediência à Lei, para que o equilíbrio seja restabelecido. Não lógica de amor, resistiu e a está salvando. E a pena para a re-
se pode em tal sistema restabelecer a harmonia de outra forma. volta é uma lição de amor, porque, se é dor, também é impulso
O homem deve, assim, provar o aspecto duro da Lei, mas esta e pressão para a reconquista da felicidade. O ser deverá sofrer
permanece sempre lógica, boa e justa. No fundo da descida es- até aprender a grande lição de amor, até saber como deveria
tá o inferno; no ápice da subida, o paraíso. De fato, quanto ter, no início, espontaneamente retribuído a Deus o amor que
mais se desce, mais aumenta o egoísmo separatista, a desar- de Deus recebeu. Sem o amor, o Sistema não se mantém, como
monia, a luta e a agressividade entre os seres, sempre dispostos efetivamente se verificou no desmoronamento, onde ele faltou.
a entredevorarem-se. Quanto mais se sobe, tanto mais a vida se Sem o amor, a criação teria sido uma cisão de Deus em partes,
harmoniza em paz e amor. e o Todo não poderia conservar-se, em Deus, um organismo
Eis, pois, tudo esclarecido até às origens. Assim se explicam uno. Daqui a necessidade absoluta da existência no Sistema da
as razões e as causas deste processo evolutivo, do qual, em A livre correspondência de amor, que era o conteúdo da prova
Grande Síntese, só se fez um exame objetivo, uma comprova- em que os espíritos rebeldes falharam. Tudo isto, repetimos,
ção do fato. A muitos poderá desagradar este destino de tão la- porque, sem amor, o Sistema não se mantém. Eis o que está
boriosa ascensão pela conquista da felicidade. Mas não está tu- em seu centro e lhe constitui a essência.
do agora lógico? A nossa miséria atual não é um defeito de cri- Temos observado o problema sob todos os pontos de vista e
ação, uma culpa de Deus. É uma mácula, uma chaga nossa, que sob o fogo de todas as objeções. Agora, o desígnio da obra di-
Deus está curando. A dor permanece, mas com uma interpreta- vina está claro. Dele, como a nossa mente exige, foi eliminado
ção tão otimista, que adquire um grande significado positivo e tudo que é negativo e absurdo, como erro, imperfeição, desor-
um poder construtivo em nossa vida. E a criação, que verifica- dem, injustiça, maldade, que não podem ser atributos de Deus.
mos ser contínua, é assim, na sua essência, uma obra de resta- Não restou senão o que é positivo e lógico, como perfeição, or-
belecimento contínuo, com a qual Deus auxilia o homem a re- dem, justiça, bondade, amor. Um sentido instintivo nos diz que
construir o edifício desmoronado. Assim, tudo se explica em é assim e não pode deixar de ser. Somente dessa forma o nosso
perfeita lógica de bondade. Se, nessa lógica do Sistema, colo- espírito se sente satisfeito, saciado e receptivo. Ele exige que a
carmos os conceitos fora do respectivo lugar, é natural que re- ideia de Deus se salve e se conserve. O resto não é explicação;
sultem quadros horríveis, monstruosos, como em um mosaico é blasfêmia! O princípio do amor está no vértice da criação, foi
em que as diferentes pedrinhas fossem assentadas ao acaso. o seu motor, é a força que rege. Deste vértice, o amor tudo
Mas respeitemos a lógica (o Sistema está saturado dela), e entre anima e sustém. Se em Deus existe o aspecto justiça, sabedoria,
nós aparecerá a maravilhosa beleza e perfeição do plano divino. bondade, lógica, ordem, poder etc., a última síntese do pensa-
Que maior maravilha do que o surgimento do aspecto ima- mento e vontade de Deus é dada pelo amor.
nência da Divindade, que assim permanece presente no univer- ◘◘◘
so desmoronado, nele descendo para animá-lo, curá-lo e salvá- Poderíamos, após o exposto, considerar exaurida a argu-
lo? Que perfeição no Sistema, fazendo com que um erro – a mentação e nada mais acrescentar. Queremos, todavia, ainda
revolta – ao invés de constituir um desastre irreparável, trans- esclarecer melhor qualquer dúvida, especialmente no que se
mude-se em um processo de restabelecimento semelhante ao refere à teoria, em que muitos creem, pela qual se admite, ao
que o poder curativo da natureza (imanência de Deus) exerce invés da queda dos anjos, uma criação progressiva, evolucio-
num organismo enfermo! Não. Não houve nenhum defeito de nista, no sentido de um universo criado imperfeito e a caminho
origem. Ao contrário, o Sistema é tão perfeito na sua estrutura de um aperfeiçoamento contínuo.
200 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Após ter submetido semelhante teoria a uma séria análise, sobre a criatura? O que se pode pretender de bom e o que pode
despidos de preconceitos, fomos obrigados a recusá-la, porque exigir o Evangelho de um ser criado em condições tão más,
ela nos levaria a cair numa série de absurdos, que nos permiti- quando a vida é uma condenação e a criação, um delito?
mos aqui sujeitar a exame. Não! Se verificamos que efetivamente a criatura sofre e pa-
Deus, sendo perfeito, não pode deixar de criar senão perfei- ga algo através de sua dor, devemos, por um senso de lógica e
tamente, mas teria feito uma criação imperfeita. Deus, Que é de justiça, admitir que ela deve pagar algo que lhe compete, um
Espírito e ordem, teria tirado diretamente da Sua essência a ma- erro ou uma culpa que seria absurdo atribuir à perfeição de
téria e o caos, que são o ponto de partida da evolução. Deus, Deus. Olhamos o efeito, e a sua natureza nos indica a causa que
que é tudo e representa toda a existência, pois fora Dele nada o produziu. Se tivesse sido o Criador a causa, Ele e ninguém
pode existir, faria derivar tudo do nada (a Sua negação, porque mais deveria expiar na dor. E como pode o Onisciente ter ne-
Deus é o ser), e a Sua grande obra criadora não passaria de uma cessidade da escola da dor para aprender?
inversão, restabelecimento ou reconstrução do Seu contrário. Como se vê, quanto mais se medita na teoria da criação
Isto presume um antagonismo, uma cisão e luta de dois princí- progressiva, mais se torna esmagador o acúmulo dos absurdos.
pios opostos na própria essência de Deus, independentemente e Se a alguém, por preconceito de grupo, pode desagradar a teo-
também anteriormente à criação. O ponto de partida desta esta- ria da queda dos anjos, apenas porque ela é admitida pela teo-
ria não em Deus, mas nos antípodas de Deus; não no absoluto, logia católica, incumbe-nos afirmar que nos preocupamos so-
no imóvel, no espírito, na perfeição – qualidades de Deus – mas mente em conhecer a verdade e que a aceitamos onde quer que
no relativo, no transformismo, na matéria, na imperfeição, que ela se encontre, desde que convença e satisfaça, independen-
são o oposto de Deus. É evidente que tudo isto não pode ser temente de qualquer preconceito de religião, escola filosófica
obra de Deus, pois Ele não pode errar, e sim obra de uma cria- ou grupo humano.
tura que podia e livremente quis errar. Tudo isto não podia nas- É oportuno indagar agora como pode ter surgido essa teoria
cer diretamente de Deus, mas somente em um segundo tempo, da criação progressiva, evolucionista, de um universo criado
posterior à primeira criação, por obra de um outro ―eu‖ e em imperfeito e em via de contínuo aperfeiçoamento.
consequência de uma outra causa. E, como tenha ocorrido isto, Essa teoria nasceu em virtude de corresponder à realidade do
procuramos logicamente demonstrar neste volume, de acordo que se observa, fornecendo-nos uma primeira explicação, embo-
com uma outra teoria, a da queda dos anjos, a única para nos ra superficial, do fato indiscutível da evolução, que realmente
salvar de tal cadeia de absurdos. leva o universo de um estado de imperfeição, caos, matéria, ao
Prossigamos no exame. Segundo a teoria da queda, Deus de perfeição, ordem, espírito. O fato existe. O erro está em sua
desce ao nosso universo por amor, para salvá-lo. De acordo interpretação. Ninguém ousará discutir o fato, porque é uma rea-
com a teoria da criação progressiva, Deus, Que é perfeito, põe- lidade. Se não quisermos, porém, cair nos absurdos menciona-
se – Ele, que é tudo – através de Suas criaturas, em um estado dos, impõe-se explicá-la não como consequência da obra de
de desmoronamento do ser, isto é, um estado em que a consci- Deus, mas como consequência do desmoronamento do Sistema,
ência, primeira qualidade de Deus, se anula na matéria. O ponto decorrente da queda por obra da criatura. O fenômeno da evolu-
de partida da criação progressiva seria um estado em que Deus ção não pode ser um absurdo e incompreensível caminho em
se autodestruiu nas Suas qualidades primaciais, estabelecendo a uma só direção, um semiciclo desprovido do seu semiciclo in-
própria negação na inconsciência, na dor e no mal, para iniciar verso e complementar, sem o que não se forma o ciclo completo
um penoso sacrifício de ascensão, cotidianamente imposto à e o fenômeno não se verifica nem se explica no equilíbrio divi-
criatura, certamente inocente de tudo isto. Os elementos fun- no. O fenômeno da evolução existe e é aceito, mas só se pode
damentais do Sistema, isto é, amor, bondade divina, liberdade compreendê-lo e admiti-lo como contraparte de um inverso pro-
da criatura, falhariam completamente desta maneira. E não se cesso involutivo, causado pela criatura. Esta devia necessaria-
poderia imaginar mais absurda violação da justiça no seio de mente ser livre, mas como não podia ser igual a Deus, era passí-
Deus, que não pode deixar de ser essencialmente justo. vel de erro e, por isso, embora advertida do perigo, quis por de-
O mal e a dor teriam sido, pois, obra direta de Deus e, por sobediência errar. É certo também que a criação é progressiva,
conseguinte, de Sua natureza malvada. Deste modo, a obra da mas não no sentido de uma nova criação, porque tudo já estava e
criação tornar-se-ia uma maldição para a criatura, uma conde- está em Deus sempre, e a Deus nada se pode acrescentar, assim
nação de que o ser inocente deve redimir-se à custa de um ili- como Nele nada se pode criar ou destruir. A criação é verdadei-
mitado tormento. Dever-se-ia dizer então não como escreveu ramente progressiva, mas no sentido de reconstrução de um edi-
São João: ―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com fício desmoronado, do qual estão sendo juntadas as partes desa-
Deus‖, mas sim: ―No princípio era o mal e a dor, e eles estavam gregadas e reedificados os planos afundados.
com Deus‖. A grande obra divina teria sido a criação de um in- Em nosso universo, é absurdo um fenômeno unilateral, de-
ferno, e à criatura só restaria o penoso encargo de redimir-se sequilibrado pela falta do seu complemento compensador; um
dele com a própria dor. E tudo sem liberdade de escolha, sem fenômeno que avance em uma só direção, isto é, apenas um
culpa alguma, como uma fatalidade sem apelo. Para condenar a semiciclo, um semicircuito, significando um semifenômeno.
criatura, Deus não lhe teria pedido permissão, nem lhe teria da- Todo fenômeno tem de volver sobre si mesmo para completar-
do a faculdade de escolher. Desta maneira, ela já se encontra no se, permanecendo sempre a mesma substância, ainda que mude
inferno ao nascer, sem saber por que, automaticamente. Se qui- a forma, porque ele é apenas um estado de vibração interior
ser e souber subir através de seu sacrifício, para lhe fugir, con- com finalidade de elaboração evolutiva, e não um deslocamen-
segui-lo-á; de outra forma, nele permanecerá para sempre. to real. A mobilidade é, assim, só aparente, situada no relativo
Mas eis que, um dia, desperto de tão horrível obra, exclusi- de um vaivém cíclico, enquanto, no absoluto, tudo permanece
vamente Sua, Deus se arrepende e, para remediar o mal, verifi- imóvel. Sabemos que o transformismo é filho da queda, pois
cando que o homem por si não consegue subir, envia Cristo, o em Deus não há mutação nem evolução, mas tudo simples-
filho dileto, também Ele inocente, para ser sacrificado por um mente é. Tudo, pois, no universo, deve completar-se no seu
Deus injusto e pagar um débito que ninguém contraiu, nem semiciclo e com ele volver ao ponto de partida, porém com um
Cristo nem a criatura, ambos inocentes. Como se pode então pequeno deslocamento, que constitui a evolução. Todos os fe-
negar razão ao homem que blasfema contra semelhante Deus, nômenos caminham em duas fases inversas e complementares,
quando Ele lhe é apresentado revestido de tais absurdos? Se o sem o que, no transformismo, não pode haver fenômeno. Efe-
mal e a dor foram criações diretas de Deus, como atirar a culpa tivamente, este pode ser definido como um momento particular
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 201
do transformismo evolutivo. Por esta razão o fenômeno não rá. O homem atual é analítico, vê as coisas da Terra e do plano
pode existir no absoluto. físico, que ele confunde com a realidade e acredita ser todo o
A própria teoria da reencarnação, realizando contínuas in- universo. Por ser periférico, vê o Sistema de uma posição peri-
versões entre vida e morte, entre erros e expiações, prova-nos o férica. De tal ponto de vista, tudo deve evidentemente parecer
princípio fundamental do ciclo completo, composto de dois se- invertido. Hoje, de fato, a superação é frequentemente tida por
miciclos: queda e ressurreição. Há absoluta incompatibilidade patológica. Tudo depende do ponto de referência, que, neste
entre a teoria da criação progressiva e a teoria da reencarnação. caso, é representado pelo tipo biológico corrente, ou seja, pelo
Uma exclui a outra. Se admitimos a reencarnação, temos que involuído. É natural, então, que a catarse biológica, que é supe-
abandonar o conceito de criação unicamente progressiva e acei- ração e sublimação, vista assim de baixo, de uma posição in-
tar a teoria da queda. Se aceitamos a criação apenas progressi- vertida, possa parecer deformação e regressão, quando é for-
va, é necessário abandonar o conceito de reencarnação. Isto mação e progresso de vida. Este problema já foi por nós exa-
porque, segundo o princípio de criação progressiva, que se de- minado no Cap. XXVI – ―Sexualidade e Misticismo‖, do vo-
senvolve apenas no sentido evolucionista, sem o precedente lume precedente, Ascensões Humanas.
semiciclo involucionista, o criado deve mover-se em uma única Para aprofundar o fenômeno da sublimação espiritual, co-
direção, devendo ser desconhecido no sistema, jamais apare- meçamos aqui a orientá-lo, enquadrando-o no esquema do uni-
cendo, o princípio do ciclo. Se este princípio surge em um caso verso atrás exposto, que aqui resumimos em relação ao fenô-
particular, num universo que sabemos construído num tipo úni- meno, submetendo-o ao habitual método da intuição.
co de sistema, depois repetido em todos os níveis e dimensões, Por criação entendemos aqui o processo , isto é, a
isto significa que o referido princípio do ciclo está também no transmutação da substância única divina, eterna, incriada e in-
caso geral do tipo-base do sistema. Se o fragmento que reco- destrutível, do seu estado de puro pensamento, no de energia e, a
lhemos reflete, verificamos claramente que a unidade de que seguir, no de matéria. Já examinamos esse fenômeno, através do
esse fragmento deriva era um espelho. qual Deus vem a manifestar-se na forma; o pensamento, na ma-
Concluindo, procuramos neste capítulo prever todas as ob- téria; o imutável no vir-a-ser; o uno, no multíplice, fenômeno a
jeções possíveis. Mas, na realidade, elas podem ser tantas quan- que se deve a existência de nosso universo. Assistimos a um
tas são as formas mentais humanas, o que é um número prati- movimento centrífugo que, do centro, projeta-se para a periferia,
camente infinito. Para as que não puderam aqui ser imaginadas, na matéria, invertendo todas qualidades do espírito. São muitos
asseguramos ao leitor que as coisas ocorrem como realmente os aspectos do processo, mas todos redutíveis ao conceito de in-
estão expostas neste livro e que, sobre estas bases, qualquer di- versão do positivo em negativo, ou de subversão de valores,
ficuldade pode ser logicamente resolvida. O leitor inteligente, conceito que se pode resumir em uma só palavra: involução. Es-
que se apossou da chave do sistema, poderá fazê-lo racional- ta pode apresentar-se a nós como um desmoronamento do uni-
mente, desde que pense sem preconceitos e sem pontos fixos verso perfeito, originado da primeira e verdadeira criação perfei-
inamovíveis. No entanto, já que uma das primeiras condições ta, e isto como resultado da revolta e queda, de que já falamos.
para a aceitação de uma teoria é a sua clareza de exposição e Deste modo, o universo perde e inverte a sua qualidade de ori-
facilidade de compreensão, procuramos aqui traduzir, na forma gem na atual. Podemos, assim, compreendê-lo melhor agora.
mais transparente e evidente possível, o pensamento recebido Tudo isso sucedeu em uma primeira fase, de ida. O universo
por intuição, que, provindo de outros planos, dificilmente se atual, em que existimos, encontra-se na fase oposta, de retorno,
traduz em palavras humanas. isto é, não involutiva, mas evolutiva, de forma que a verdadeira
criação que Deus, nela imanente, está processando agora, lenta-
XI. A CAMINHO DA SUBLIMAÇÃO mente, através da evolução, tendo todos os seres como operá-
rios, é a atual, e não a precedente e inversa fase de desfazimento,
Nos capítulos precedentes, fizemos algumas observações que, se observada de nossa posição periférica, onde a existência
sobre o nosso mundo, para comprovar a sua posição periférica, é material, pode parecer criação. Tudo depende do ponto de vis-
consoante o plano do universo. Os poucos fatos escolhidos não ta. O mesmo processo , se visto de , pode parecer des-
passam de uma exemplificação particular. Muitos outros pode- truição; mas, visto de , pode ser tomado como criação. E, real-
riam ter sido aduzidos para confirmar a concepção de que par- mente, o nosso universo, construído assim na forma física, pode
timos e que apresentamos aos racionalistas apenas como hipó- ser definido como uma criação, mas no sentido físico. É certo,
tese de trabalho. Procuremos agora, uma vez observado o Sis- porém, que, se considerado do ponto de vista central do Sistema,
tema na sua posição periférica, percorrê-lo em direção ascensi- é uma demolição como espírito, cuja inversão representa. É bom
onal. Isto é importante, porque ela representa a única via de esclarecer tudo isto, a fim de evitar mal-entendidos. O nosso ha-
correção do Anti-Sistema e de evasão das suas dolorosas con- bitual conceito humano de criação é, como todos os nossos con-
sequências. Avizinhamo-nos, desta forma, do problema central ceitos, relativo a nós. A primeira, única e verdadeira criação foi,
da presente terceira trilogia – o da sublimação (v. Introdução do não uma criação do nada, mas uma emanação do seio de Deus,
volume Problemas do Futuro). de puros espíritos, em que Deus, o ―Eu Sou‖ Uno, Criador, quis
Para poder enfrentá-lo e resolvê-lo, é necessário antes en- refletir a Si mesmo, nela amando uma Sua diversa individuali-
quadrá-lo em nosso atual e mais amplo esquema do universo, zação em miríades de ―eu sou‖, Suas criaturas.
como, aliás, seria necessário fazer para qualquer problema, O que depois nós passamos a chamar criação foi o des-
sem o que ele se torna de difícil compreensão e solução. E o moronamento na forma-matéria de uma parte, que se rebelou,
fenômeno da sublimação espiritual é agora, aqui, de um en- destes ―eu sou‖ criaturas. E o que chamamos de evolução seria
quadramento lógico em um sistema completo, harmonicamente a verdadeira criação, no sentido de reconstrução da originária
proporcionado em todas as partes componentes e aceitável pa- integridade espiritual, que foi, por sua vez, emanação, mais do
ra qualquer pessoa de bom senso. O fenômeno pode agora es- que criação do nada. Tudo isto está além das nossas habituais
tar situado logicamente no conjunto de um edifício conceitual, concepções, todas em função de nosso relativo. Assim é que,
do qual faz parte e que o sustém e demonstra. Isto não impede aqui, chamamos frequentemente o nosso universo de manifes-
que ele seja pouco consentâneo com a psicologia hoje domi- tação de Deus, o que pode ser verdadeiro para os nossos senti-
nante, porque esta constitui uma forma mental sediada em uma dos, relativamente à nossa posição periférica na forma-matéria,
fase particular destruidora de fim de um ciclo, ao passo que, que, ―para nós, é o que significa existir. Mas, para quem se en-
aqui, antecipamos a fase reconstrutiva que fatalmente se segui- contra no polo oposto, na posição central de puro espírito no
202 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Sistema, o nosso universo não é manifestação, e sim ocultação, mas somente lhe é oferecido um pão traidor, que não pode sa-
porque nele o espírito se aprofunda e é sepultado. Se este se ex- tisfazê-lo. E o pobre ser fragmentado tenta em vão, no amor fí-
terioriza nisto que chamamos de manifestação, parecendo, pois, sico dos dois sexos, a conjunção de ambos os semiciclos, em
tornar-se real, apenas o faz para os nossos sentidos, enquanto, que a unidade se cindiu. Ao contrário, o místico, que não teve
por si mesmo, o espírito entra na grande maya7 ou ilusão da vi- medo de atravessar a porta da dor, pelo menos através da re-
da corpórea. Aquilo que é verdade para quem é exterior, é men- núncia, pode celebrar bem mais no alto as suas núpcias de amor
tira para quem é interior. Tudo é relativo. O que para nós é vi- com Deus, isto é, a fusão bem mais perfeita das duas semicir-
da, para o espírito é prisão ou limite. Para ele, o nosso tempo é cunferências do círculo. Com isto, chegando ele, através da dor,
o fracionamento do eterno; o espaço, do infinito; o relativo, do a aproximar-se mais do centro, também alcança uma alegria
absoluto; o multíplice, do uno. A instabilidade do transformis- bem maior. Os pobres seres periféricos, apegados à forma, por-
mo, que deve sempre aperfeiçoar-se, envolvendo, é o desmoro- que não sabem sentir uma vida mais profunda, apegados assim
namento da originária e perfeita existência imutável. a uma existência de penas, alimento sobremodo escasso para
Esclarecidos, assim, estes conceitos, retomemos o nosso uma alma faminta de felicidade (alimento que entre si disputam
caminho. Se, na primeira metade do ciclo, temos o desmoro- encarniçadamente) – esses pobres seres fogem da sublimação e
namento na matéria, na segunda metade, em que ele se fecha a condenam, porque da sua posição periférica, situados na ma-
pelo retorno a Deus, ponto de partida, temos o processo inver- téria, a sublimação lhes parece anulação da vida, e não retorno
so, isto é, , ou seja, não de materialização, mas espiri- a ela. É natural que, para o ser subvertido, tudo pareça inverti-
tualização. Estamos na fase de reabsorção da forma em Deus, do, uma miragem traidora. Para enxergar a verdade, é necessá-
da matéria no pensamento, do mutável no eterno, do multíplice rio subir, atravessando a porta da dor!
no uno. Assistimos ao movimento centrípeto, que se projeta da Eis, pois, a posição agora do ser no universo atual: ele jaz
periferia para o centro, no espírito, invertendo todas as quali- entre as ruínas de si próprio, mas, em seu âmago, a originária
dades da matéria. Aqui, os valores subvertidos devem retificar- centelha de Deus – a alma – não está extinta e se conserva no es-
se segundo a Lei, de que o Evangelho é o código. Os aspectos tado de um anseio instintivo e irrefreável, com todas as caracte-
do processo são muitos, mas todos redutíveis à inversão do ne- rísticas originárias. Entre esse anseio, porém, e a sua realização,
gativo em positivo, conceito que se pode resumir em uma úni- existe a barreira da dor, interposta pela distância do centro à pe-
ca palavra: evolução. O transformismo tende à reconstrução, riferia, onde veio a cair o ser. A irresistível ânsia se bate conti-
de conformidade com o princípio das unidades coletivas (A nuamente contra essa barreira para evadir-se, no entanto é exa-
Grande Síntese, Cap. XXVII). Retornam à unidade todos os tamente através da barreira, isto é, através da dor, que se pode
fragmentos em que o Uno se havia pulverizado. O estado de evadir. Eis o grande drama do ser, vivido por todos em cada dia.
matéria transmuda-se no de energia, e este no de pensamento, Então Deus, que não nos abandona, vem ao nosso encontro
para retornar ao ponto de partida. para nos ajudar, enviando-nos em forma concreta, para que
Logicamente, é no plano desse segundo percurso, vivido possamos tocá-lo com as mãos, o exemplo vivo do método a
agora pelo ser, que ocorre o fenômeno da sublimação espiritual, usar para a evasão. É inútil debater-se. Não há outra via que
ou catarse biológica. O espírito não está morto. Ele é tão- não a do calvário para se atingir a redenção, e cada qual tem
somente prisioneiro. Deseja reconquistar consciência para re- que percorrê-la por si. Quem vencerá? As seduções do mal e o
tornar ao estado de origem. Por um instinto fundamental da vi- horror ao sofrimento, ou o grande anseio da alma, com seu ins-
da, ele odeia a prisão e quer a liberdade. Com esse impulso e tinto de ascensão e de vida, e o poderoso auxílio de Deus, que
para esse fim ele foi gerado: a liberdade foi a sua primeira qua- quer a salvação final? O caminho é longo. A criatura está retida
lidade. Tudo quer crescer, expandir-se, e toda a nossa vida so- entre as engrenagens de duas imensas rodas, triturada pelo atri-
mente triunfa com esse impulso. Este instinto fundamental do to dos seus dois movimentos contrários. Todavia as forças que
ser se debate contra todos os obstáculos que lhe opõe a sua po- as movimentam não são iguais, seus pesos não são idênticos. A
sição negativa em um sistema invertido. Mas eis que o amor, roda de Deus é a mais forte e tanto girará na eternidade, que
proveniente do centro positivo, vem em auxílio do ser no seu desgastará inteiramente a de Satanás, que terminará em pó.
esforço de redenção. Deus, do centro, estende-lhe os braços, di- A sublimação espiritual é o fenômeno pelo qual a evolução,
zendo-lhe: ―Sus, coragem, sobe, sobe! Eu te espero!‖. E os es- da fase biológica humana, através da catarse de todo o ser, con-
píritos não rebeldes e incorruptos descem com sacrifício, como duz a vida à fase super-humana. Já vimos que este é um mo-
Seus mensageiros, irmanando-se aos seres inferiores, sepulta- mento do grande processo de toda a ascensão, que vai de
dos na dor, abraçando-a juntamente com eles por amor. É assim . Isto é o que significa voltar a subir. São estas as
que a reconstrução do edifício desmoronado constitui um pro- grandes etapas, os degraus da escada que leva ao trono. Voltar a
cesso criador, através do sacrifício, de reabsorção do mal e do subir significa, pois, transformar-se da matéria em energia e
caos nascidos do desmoronamento. O amor permanece, porém desta em espírito, ou seja, um processo de espiritualização. Eis
invertido no sacrifício, que é amor na dor. Eis por que a reden- a que se reduz substancialmente todo o progresso. Esta é a fase
ção não pôde ser operada por Cristo senão através da paixão, e que a humanidade está vivendo. É verdade, sem dúvida, que ela
por que nenhuma redenção poderá ser operada de outra forma. ainda está imersa em noite profunda, mas nos encontramos em
Há, portanto, uma grande porta para a evasão de todos os so- uma grande volta da história, que anuncia iminente uma nova
frimentos do Anti-Sistema. Porta grande, mas pela qual nin- aurora. O homem hoje, pela primeira vez, sabe transformar a
guém quer passar, porque é feita de dor e esta afugenta. Afu- matéria em energia. Com isto, ele intervém nos processos cria-
genta justamente porque ela é o inverso da felicidade, para a dores de uma forma que se poderia chamar espiritualização da
qual o ser nasceu e para a qual se sente irresistivelmente atraí- matéria, que se volatiliza em energia. Processo que implica o
do. Mas o nosso não é um sistema pervertido? Portanto é natu- inverso da criação da matéria com a energia. Paralelamente, a
ral que, nele, a felicidade se tenha transformado em dor. Então, superação dos limites do espaço e tempo significa uma ascen-
o homem se atira ao encontro das derradeiras cintilações de são de vida em dimensões mais evoluídas. Ademais, o tipo bio-
alegria e de amor que o sistema desmoronado ainda contém, lógico se dinamiza, e a sua luta, de física, torna-se nervosa e
psíquica; as leis do ser passam a ser compreendidas; os misté-
7
Maya (maia) – vocábulo técnico sânscrito (a antiga língua Índia), rios se aclaram; aumenta o domínio sobre as forças naturais e
com a significação filosófica de ilusão, engano, aparência irreal da na- sobre a matéria; o indivíduo funde-se no conjunto de grandes
tureza ou envoltório fenomenal do Absoluto. (N. do T.) unidades coletivas. O homem, pois, embora recalcitrante, está
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 203
engolfado no tormento de novas criações e empenhado, no Reino dos Céus não é vã promessa que deva permanecer no
momento crítico, em uma catarse biológica. campo da utopia. Ele jaz no fundo das consciências e se realiza-
A luta pela vida sempre foi, mesmo na feroz fase animales- rá quando estas despertarem, quando nós pudermos compreen-
ca da seleção do mais forte, uma luta por subir. Ainda agora é der de que maravilhoso universo somos cidadãos.
assim. É a grande batalha da libertação da involução para o re- Trata-se de movimentos de grandes massas. Hoje, na Terra,
torno a Deus. Se, nos mais baixos níveis biológicos, essa bata- não existe mais uma classe social, uma aristocracia que se mo-
lha pela ascensão é imposta pela necessidade de viver em um vimenta para a conquista do domínio sobre camadas sociais
mundo em que vigora o lema ―comer ou ser comido‖, nos mais inertes e passivas. Hoje, a fermentação evolutiva investe toda a
elevados níveis da Lei, onde o ser se faz mais consciente, ela massa humana. Poder-se-ia dizer que ecoa no sentido  , is-
pode suavizar-se e, assim, realizar-se pelas vias da compreen- to é, da vida para o espírito ou para a espiritualização da vida,
são. É a evolução que nos liberta de tão duras necessidades e desde o plano , com a desintegração atômica. Parece que
sanções. Nós vivemos explorando todas as vias da libertação, ambos os fenômenos moveram-se paralelamente, obedecendo
que, na sublimação mística, escancaram-se para o céu. A luta é ao mesmo impulso de Deus imanente, que, fazendo pressão de
um meio de despertar a consciência. O ser, submetido a uma dentro para fora, impõe à velha forma que ceda passagem a
vida de permanente ameaça, aguça a inteligência. As provas e uma nova, capaz de exprimir novos estados interiores, que con-
os insucessos o adestram, preparando-o para maiores conquis- tínua pressão interior matura em milênios de silenciosa ativida-
tas, aquelas que nascem da experiência e se fixam no espírito. de. Tudo deriva do princípio da vida inerente aos seres. Hoje,
Quer embaixo ou quer no alto, a existência é sempre uma ela- este princípio se lança em novas rotas.
boração evolutiva, seja revestindo formas mais ou menos fero- Basta-nos aqui, por ora, antes de prosseguir além, haver en-
zes, seja assumindo aspectos mais ou menos espiritualizados. quadrado o fenômeno da sublimação neste processo de espiri-
Elaboração evolutiva é o trabalho da matéria, desfeita no caos e tualização universal , que é o processo evolutivo. A
integrada nos fenômenos cósmicos, como é também, no extre- sublimação mística não passa da fase mais elevada da espiritua-
mo oposto, a atividade espiritual do gênio e do místico, que, lização em nosso planeta. Este é um fenômeno, como vimos,
desvinculando-se dos instintos da carne, transforma-lhes a po- universal na vida. É por ele que o mineral se eleva a vegetal, es-
tencialidade em manifestações espirituais. Todo o universo está te ao animal, o animal ao homem, e este ao super-homem. Tra-
empenhado neste esforço penoso da própria maturação evoluti- ta-se de um processo de sensibilização, que, nos graus superio-
va, que o deve reconduzir a Deus. res, chama-se consciência, processo que vai desde a existência
Hoje, a vida tenta na Terra novas formas de expressão, com destituída de sentidos e encerrada em si mesma, como é a da
um tipo mais evoluído – o homem. A luta humana não está atu- matéria, a uma existência que se expande cada vez mais, em
almente confinada no tradicional plano animal-humano, como uma vida a princípio vegetativa, depois sensitiva, a seguir raci-
até ontem, mas se agita para sair dele. Ela não se resume mais onal e finalmente intuitiva. Trata-se de uma gradual floração do
na vitória de um grupo humano sobre um outro, permanecendo espírito, que volta a encontrar a si próprio, expandindo-se sob a
sempre no mesmo nível e sistema de vida, mas colima a vitória irradiação do centro-Deus. Agora pode-se compreender que,
de um princípio sobre o outro, para fugir ao atual plano e siste- tendo a involução consistido na formação de invólucros cada
ma de vida. Em outros termos, encontramo-nos não em período vez mais densos em torno à centelha do espírito, que neles
de estagnação, mas de transformação. Todo o esforço da vida permaneceu sepultada, a evolução consiste, contrariamente, na
concentra-se hodiernamente, não na sistematização e consoli- progressiva destruição desses invólucros, que se tornam cada
dação de suas posições, mas na tentativa de novas. É por isso vez mais tênues, até à completa libertação. O ―eu‖ eterno, com
que o seu dinamismo é febril e tudo parece esboroar-se. Mas é o desmoronamento do Sistema, não foi destruído, mas apenas
justamente porque a vida está possuída de uma ânsia de cons- envolvido no princípio oposto, em que se invertem todas as di-
truir que ela se apressa em libertar-se, por toda parte, das aca- vinas qualidades de origem. A evolução é um processo de ma-
nhadas fórmulas do passado, das quais, assim ampliada, extra- ceração que consome os casulos, é uma chama lenta em que se
vasa de todo lado. Tudo tende no presente à superação; por to- evola a sua materialidade, facultando a evasão da sua prisão.
dos os cantos se anda à procura de novas fórmulas, que possam Eis o que entendemos por espiritualização.
dar expressão a uma vida que já não encontra espaço nas ve- Mas o fenômeno pode ser observado também de outros pon-
lhas. Jamais ela fervilhou tanto em criações. Quem quer que tos de vista. Se concebemos o Centro no seu fundamental as-
possua olhos de ver e ouvidos de ouvir, sente que o mundo está pecto cinético, poderemos dizer que involução é progressiva
vertiginosamente lançado em direção a um transformismo evo- imobilização no limite e que evolução é desvinculação do limi-
lutivo de uma intensidade e rapidez sem precedentes. E a vida, te. O aspecto de estado cinético pode significar, sobretudo, es-
num crescendo, absorve as etapas para concluir, porque tem tado vibratório, e a este é possível reduzir aquele estado do es-
pressa de resolver o problema que a agita e atormenta. pírito que se chama consciência. O estado oposto, de imobili-
Vemos, pois, nesta hora histórica, a realização não só do dade, de congelamento da vibração, significa então o estado do
transformismo , com a desintegração atômica e a gênese espírito que se denomina inconsciência. Que mais significa pre-
da energia da matéria, mas também um transformismo paralelo, cipitar-se nas trevas, senão decair da sensibilidade até à ceguei-
, em que a vida, embora ainda primariamente, tende a tor- ra? Assim, o desmoronamento do ser consiste na inversão do
nar-se cada vez mais nervosa e psíquica, isto é, tende a espiritu- estado cinético vibratório, ou de consciência e conhecimento,
alizar-se. Assistimos a um universal processo de espiritualiza- máximo no centro – Deus, em um estado oposto, de inércia, ou
ção no sentido lato. A plena realização está ainda distante, mas inconsciência ou cegueira. Na periferia embotam-se as qualida-
o germe já está lançado. Muitos são incapazes de ver uma árvo- des dinamizantes e vivificantes, máximas no Centro. Não foi a
re na semente, não conseguindo aperceber-se da sua existência, matéria definida como energia congelada? A energia é também
a não ser quando plenamente desenvolvida. Não importa! Eles pensamento congelado. Lúcifer, como dissemos, é por Dante
chegarão a compreender mais tarde, mas chegarão. Toda se- colocado no centro da Terra, imerso nas trevas, encerrado na
mente é um explosivo da vida, no qual ela se concentrou, imensa prisão da matéria, imobilizado no gelo, negação da mo-
aguardando o momento para explodir, e explodirá por força de bilidade e do calor, elementos de vida. Para voltar a subir, o es-
lei. E, no fundo, o ser humano está à espera de despertar aquele pírito tem de tornar à ordem, a fim de fundir esse gelo, quei-
divino eu sou, que vem de Deus. Os novos e maiores continen- mando no fogo da própria dor as escórias da forma que o en-
tes do espírito aguardam os pioneiros que os conquistem, ex- carcera. Tem que, como elemento primeiro de vida, reacender
plorem e colonizem para a própria e nova grandeza. O esperado por si a chama que se extinguiu.
204 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Temos até agora observado o grande desmoronamento do São João iniciou o seu Evangelho com palavras estranhas,
universo, para encontrar a gênese e a explicação do universo refertas de profunda significação e geralmente incompreendi-
atual. Mas isto não basta. Dado que este é um estado bem dolo- das. Ciência e filosofia, não conseguindo alcançá-las, negli-
roso, o que mais interessa ao ser humano é, sobretudo, saber genciam-nas e as resolvem ignorando-lhes a existência. Entre-
como sair dele. Eis por que é importante, no seio do universal tanto elas contêm a chave do universo. João, ao certo, ilumi-
processo da espiritualização, conhecer o processo humano da nado por Cristo, as havia compreendido. Procuremos compre-
sublimação, porque ele representa para o homem a única solu- endê-las nós também.
ção do problema da dor. Que significa Verbo? Encontramo-nos em alturas vertigino-
Desperta, ó homem, no espírito, porque neste, em teu âma- sas. Tentaremos uma resposta no próximo capítulo. Para alcan-
go, está o infinito. Sepulto em todas as coisas está o pensamen- çá-la, necessitamos passar antes por alguns degraus. Partire-
to divino que as rege. Mas em nada, como em ti, ó homem, esse mos, pois, de nosso concebível, com respeito a nós mesmos.
pensamento se potencializou tanto na ascensão, desejando hoje Pelo princípio da unidade do Todo e dos esquemas de tipo
dar mais um passo avante. Em , o processo evolutivo é único, segundo os quais o universo é construído, principio já
uma reconquista e reconstrução do estado cinético vibratório, alhures esclarecido, não é absurdo ver, também em nosso mi-
ou de consciência e conhecimento, que se perdera. Jamais, co- núsculo contingente, os grandes esquemas do ser refletidos
mo atualmente, a batalha entre matéria e espírito foi tão encar- escalonadamente, até ao máximo de Deus. Observemos então
niçada. Mas o espírito é o princípio do movimento e da força. o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, e, de como
Ele, no ser, está apenas adormentado. Abençoemos as grandes ele age, poderemos formar uma ideia aproximada de como
dores dos nossos tempos, que o despertam. também Deus deve agir. Tudo isto nos é repetido pela inscri-
ção encontrada no frontispício do templo de Delfos: ―Conhe-
XII. OS TRÊS ASPECTOS DA SUBSTÂNCIA ce-te a ti mesmo e conhecerás o universo‖. Afinal, a corres-
pondência entre microcosmo e macrocosmo é conceito que
Orientemo-nos, antes de passar adiante. Iniciamos o estudo vigora desde a mais remota Antiguidade.
do conceito central do esquema do ser – o ―eu sou‖. Isto nos Como age o homem, através de que processo, quando, à
conduziu a observar o fenômeno do egocentrismo, cuja signifi- imagem e semelhança de Deus, constrói alguma coisa? Qualquer
cação quisemos esclarecer. Por esta via, chegamos às portas do realização humana é retirada do íntimo de quem deseja criá-la.
grande drama da queda dos anjos, devida justamente à rebeldia Ele a tira de si, do pensamento, da sua alma. Cada qual pode ob-
do ―eu‖, por excessivo egocentrismo desvirtuado. Detivemo- servar em si próprio o fenômeno. Há sempre uma primeira fase
nos, então, a contemplar as suas consequências, estudando as no processo criador – mesmo nas mais ínfimas realizações hu-
origens do mal e da dor. Mas isto nos colocou defronte ao pro- manas – que consiste na formulação mental da ideia abstrata, que
blema inverso, de seu término. Entramos, assim, na visão do depois encontrará a sua concretização na forma. Todos nós sa-
grande ciclo constituído pelo desmoronamento e reconstrução bemos que nada se cria e nada se destrói, mas isto apenas no que
se refere à substância eterna, e não quanto à forma em que a ideia
do universo, ciclo que se reconstrói em unidade pela junção das
abstrata venha a se manifestar. Quando a eterna e indestrutível
suas duas fases inversas e complementares: involução e evolu-
substância é plasmada pelo pensamento de um ―eu sou‖ em uma
ção. Adentramos, desta forma, a visão da estrutura do Sistema e
dada forma, então temos uma criação que, no sentido relativo,
dos processos íntimos de seu transformismo, admirando-lhe a
como tudo o é neste mundo, é criação do nada. Isto em relação ao
perfeição. Pudemos seguir esse transformismo universal até às
seu estado anterior, de não existência nessa dada forma, que ain-
suas últimas conclusões, que sintetizamos em duas expressões
da não nascera como tal. Neste sentido, o nosso universo foi cri-
limites, uma das quais resolutivas do sistema positivo, e a outra
ado do nada, como anunciou a revelação.
resolutiva do sistema negativo, com o triunfo final do bem so-
Faz-se aqui necessária uma observação para prevenir dúvi-
bre o mal e a reconstituição do sistema desmoronado. Pudemos,
das que podem surgir do confronto entre o que acabamos de ex-
desta maneira, encontrar a solução final do problema do ser. por e o que se encontra no Capítulo XI, ―A caminho da sublima-
Descemos depois ao nosso mundo, para nele encontrar confir- ção‖. Ali se esclareceu o valor, sempre com respeito a nós, que
mações e demonstrações e, afinal, aplicações na sublimação. pode ter o conceito de criação do nada, qual foi a verdadeira cri-
Com esta, como conclusão moral das visões precedentes, é ação, de como ocorreu o seu ulterior desmoronamento, que pas-
apontada ao ser humano a via das ascensões espirituais, da re- samos a chamar criação, e de como a verdadeira reconstrução é
construção do universo desmoronado, a única que o pode guiar representada pela atual fase evolutiva. Isto foi dito para que se
na reconquista da felicidade perdida. pudesse compreender como realmente se passaram as coisas.
Este foi o caminho que percorremos até aqui. Mas aqui, neste capítulo, voltamos a nos colocar sob o normal
Havendo chegado a esta altura e completado a precedente ponto de vista humano, o bíblico, do nosso relativo, apenas com
ordem de visões e de conceitos, vemos desenrolar-se diante de o intuito de facilitar a compreensão. Chamamos de criação, no
nós uma perspectiva diversa dos mesmos fenômenos, pela qual sentido corrente, o que, ao contrário, foi um desmoronamento,
observaremos o Todo já não mais em relação à sorte da criação denominando-se manifestação o que, inversamente, foi uma
e das criaturas, mas em relação a Deus e à Sua obra. Sintetiza- ocultação. O leitor está apto agora a compreender o verdadeiro
mos atrás a última conclusão da precedente ordem de conceitos, significado dessas expressões de uso comum. Podemos, portan-
em duas expressões resolutivas do transformismo universal. to, retornar à psicologia normal, como esta se expressa na con-
Uma significando a destruição do ser, 0=0, o inferno eterno; a cepção bíblica. A presença de Deus criador nesta criação dada
pena máxima para quem assim a quis, renegando a existência; pelo desmoronamento explica-se em virtude de Ele ter-se man-
destruição do ―eu‖ como individualização espiritual; morte da tido sempre como senhor do Sistema, de não tê-lo abandonado
alma, que, negando Deus, nega a si própria até anular-se. A ou- na queda e de ter continuado a regê-lo e guiá-lo através de Sua
tra, no polo oposto, significando a plenitude do ser, =, a fe- imanência nele. Ainda que o seja como espíritos decaídos, a as-
licidade eterna, a alegria máxima, o triunfo da vida, a afirmação sim chamada criação está sujeita a Deus, que nela está presente
do ―eu‖ em Deus. Iluminados por estas precedentes visões, em toda parte, como seu criador. Ocupando-nos aqui de enfocar
busquemos agora penetrar ainda mais no íntimo do fenômeno principalmente o processo criador, passando por alto sobre a re-
universo, contemplando-o, mais do que em seu transformismo, belião e a queda, após haver explicado alhures a gênese do mal e
na sua real essência, na sua mais profunda substância. da dor, observamos agora o processo diretamente em relação
◘◘◘ àquela que permanece como a sua primeira fonte: Deus.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 205
Procuremos agora avizinhar-nos da compreensão da natu- vez lançados pelo primeiro motor, vemos transmitir-se em nos-
reza íntima do chamado processo criador, até ao seu caso má- so mundo, com dinamismo segundo os princípios. Ajudar-nos-á
ximo em Deus, cuja ação, embora a incomensurável distância, a compreender o grande fenômeno da criação observar o que se
o homem busca imitar no seio do mesmo Sistema, seguindo o passa em nossa mente, quando ela desenvolve impulsos seme-
mesmo esquema. A matéria prima da criação, como já expli- lhantes na sua manifestação, imprimindo-os no mundo exterior,
camos em outra parte e esclarecemos nas páginas seguintes, é pois que ela, da substância pensante do Todo, não é mais do
uma eterna e indestrutível substância de natureza pensante, is- que um momento que se isolou em um sistema menor, em um
to é, que possui como atributos fundamentais a inteligência e ―eu sou‖ subordinado ao máximo ―eu sou‖: Deus. Antes de
o conhecimento. Este é o estado originário de que derivou o agir, todos pensam na ação a executar, e este é o primeiro mo-
universo: a mente de Deus, como qualquer obra humana deri- mento, a fase da construção do esquema diretor, com que se
va da mente do homem. imprimem às formas novos estados cinéticos.
Qual é o estado do Todo antes da criação? Por Todo de- Cada forma do ser se reduz a um estado cinético diferente.
vemos entender Deus, porque nada pode existir além Dele. Deus criou, pois, pela transformação da substância prima pen-
Talvez fosse melhor criar uma outra palavra, de um significa- sante, o espírito (), em energia (), que representa a fase ci-
do mais preciso, e não como essa – Deus – ligada a significa- nética da ação e é expressa por nós com os verbos, fase de
dos tradicionais. Mas, com isto, correríamos o risco de nos querer e pôr-se em movimento, para depois chegar enfim à
tornarmos ainda menos compreensíveis. O Todo estava, pois, terceira fase do processo, a matéria (), a forma, a criação, a
num estado de quietude, o estado em que o homem se encon- obra completada. Neste sentido, podemos dizer que o criado
tra antes de empreender qualquer realização. Este é o estado contém e exprime o pensamento de Deus, como podemos di-
contemplativo, da concepção, sem forma ou expressão ainda; zer que toda obra humana contém e exprime o pensamento do
um estado abstrato, feito de puro pensamento. Nele, apenas se homem que a realizou.
desenha a ideia-mãe, o esquema ou modelo da forma, no qual Assim, Deus, através do dinamismo , por Ele mesmo de-
esta poderá depois configurar-se, refletindo-se, a partir do senvolvido, pôde retirar da fase conceito (), a terceira fase
primeiro impulso conceptual, em uma infinidade de exempla- conclusiva do processo, a forma na matéria (). Nesta, o livre
res. Esta é a primeira fase da gênese, a conceptual, que se de- estado cinético da fase energia concentrou-se nas trajetórias
nomina de concepção. Nesta fase, a criação ainda não nasceu; fechadas dos seus átomos constitutivos, e o primeiro pensa-
está somente concebida. mento pôde assim encontrar a sua expressão. Semelhantemente
Como nascerá ela? Passamos agora para a segunda fase, age o homem quando, por uma ação menos interior, mais su-
para o segundo momento do processo criador. Até este ponto, perficial e secundária, modela as coisas apenas na sua estrutura
a eterna substância pensante do Todo permanece ainda no es- exterior, e não na sua íntima substância constitutiva. Medeia
tado de quietude, imóvel, sem nada ter retirado de si, isto é, naturalmente imensa distância, mas o tipo do esquema criador
sem haver manifestado as suas possibilidades cinéticas, nela é o mesmo. Para operar de qualquer maneira, o homem, uma
jacentes em estado de latência. Entre as qualidades fundamen- vez concebido o plano, põe-se em condições de executá-lo, di-
tais inerentes à natureza da eterna substância pensante que namiza-o na ação, passando assim de , o estado espiritual da
constitui o Todo, está a capacidade de transformar, passando concepção, para , o estado cinético criador. Deste deriva, fi-
com isto ao estado atual, as qualidades antes adormentadas, la- nalmente, a última fase do processo, o ato completo, resultante
tentes no estado de quietude. Este puro pensamento, não exis- dos dois primeiros momentos, a obra concreta, que, na forma,
tente no momento do princípio, mas sim antes dele, represen- exprime a ideia originária. O nosso universo, a criação, repre-
tava o caso máximo do princípio da semente ou germe, esque- senta esta terceira fase. De tudo isto ele conserva traços, sendo
ma segundo o qual continuou, continua e continuará a gerar-se guiado pelo pensamento, movido pela energia, constituído pela
o universo após a primeira gênese criadora. Sabemos que este matéria. Assim também se dá com o nosso próprio organismo,
é um sistema ecoante, com repetições de ações e de esquemas. feito de espírito (funções diretivas), depois de um metabolismo
Neste estado de pensamento puro existia, pois, em germe, a e movimento (dinamismo da vida) e, finalmente, de um orga-
possibilidade latente de todos os futuros desenvolvimentos, nismo físico (baseado na matéria) 8. E assim como o universo
quais existiram, existem e existirão. se desenvolveu da sua causa primeira: Deus, também o feto, o
Inicia-se, então, a segunda fase do processo criador. A subs- corpo e todo o homem desenvolveram-se da causa primeira,
tância pensante do Todo desenvolve no íntimo as suas qualida- motor primeiro de tudo: o espírito.
des cinéticas, retirando-as do estado latente para o atual. Em ◘◘◘
outros termos, após a fase de concepção abstrata, de formulação Esta concepção da estrutura do Todo e do processo criador
espiritual dos esquemas que deverão depois guiar a ação, esta encontra confirmação não só na constituição de nosso univer-
se inicia. Com isto, a ideia, a princípio apenas abstrata, começa so, na natureza do homem e dos seus processos criadores, mas
a realizar-se, configurando-se na forma, que é filha do movi- também em algumas das mais recentes teorias científicas, co-
mento. Neste ponto, poder-se-á melhor compreender a signifi- mo a do espaço-dinâmico, em que se concebe o espaço não
cação de tantas referências que fizemos nos precedentes volu- como uma extensão geométrica, mas substanciado de uma
mes ao estado cinético do Todo. Que outra coisa exprime o densidade própria e dotado de uma mobilidade, como um flui-
verbo em nossa psicologia corrente, senão uma ideia abstrata do. O homem atribuiu ao espaço, de forma inteiramente arbi-
que se põe em movimento, rumo à sua atuação? Quando dize- trária, os atributos de vacuidade e imobilidade, sem saber se
mos verbo, falamos de agir, que é a segunda fase, de ação, que eles efetivamente correspondem à realidade física. Há, entre-
presume a primeira, de idealização. Quando falamos: ―eu olho, tanto, uma única realidade constitutiva do universo físico: o
eu falo, eu vou, eu trabalho‖, executamos a transformação que espaço fluido e móvel e o seu movimento. Os movimentos cir-
vai da primeira à segunda fase, passando do estado imóvel da culares desta substância conformam os sistemas atômicos e as-
concepção ao cinético da ação. Este último está ligado ao pri- tronômicos, de que resulta a matéria. Os seus movimentos on-
meiro como uma sua consequência. Ele é o mesmo ato em um dulatórios constituem a energia. Assim todos os fenômenos se
segundo aspecto. Representa um segundo modo de ser, uma reduzem a uma mecânica universal, dada pelo movimento do
transformação em que desenvolve aquilo que antes estava la- espaço, derivando deste fenômeno fundamental único e básico
tente, em quietação, pondo-se em movimento. A substância
8
pensante do Todo continha já em si estes impulsos, que, uma Para maior esclarecimento veja cap. XI de A Grande Síntese. (N. do T.)
206 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
de que tudo emana no universo: o estado cinético do ser, em matéria – em oposição apenas porque situados nos dois polos do
que vimos sempre a gênese de todas as coisas. mesmo sistema. A necessidade de contrapô-los com finalidade
Eis, pois, um espaço-substância que não é vazio nem inerte, evolutiva, na luta pela nossa ascensão, não deve violar a con-
mas é, por sua natureza, genético da matéria, isto é, possui as cepção unitária do Todo e precipitar-se no dualismo de um uni-
qualidades aptas à formação, no seu seio, das condensações ou verso despedaçado, feito de fragmentos. Isto seria satânico.
concentrações de substância que se denominam matéria. Ora, Assim, a Substância pensante pode transformar-se em espa-
uma das conclusões a que chegamos no fim do volume Pro- ço fluidodinâmico, quando, para manifestar-se, a ideia entra no
blemas do Futuro, é que a própria ciência, penetrando nos mais estado cinético da ação, involuindo da dimensão superconsci-
íntimos recessos da matéria, verificou que ela se dissolve em ência e consciência () na de tempo () e, finalmente, na de es-
energia, perdendo-se, por fim, no campo abstrato do pensamen- paço (). Este último deriva da Substância pensante, que assu-
to puro. Efetivamente, o elétron, último elemento a que se che- miu a posição cinética, a fim de que depois, no seio do espaço
gou até hoje na decomposição da matéria, segundo as mais re- fluidodinâmico assim formado, surja a matéria. E não só esta,
centes indagações físico-matemáticas, não possui mais nenhum mas todos os fenômenos que derivam do movimento deste es-
conteúdo físico, representando apenas um feixe de ondas. O úl- paço, isto é, deste fundamental estado cinético da Substância.
timo termo da realidade não passa, pois, de uma concentração Todos eles podem ser, desta maneira, reconduzidos a um fenô-
de energia ondulatória, tanto mais fácil e exatamente localizá- meno único, enveredando para o monismo universal de A
vel quanto mais diferem entre si as frequências componentes do Grande Síntese, para reencontrar finalmente, não só nas infini-
diminuto feixe de ondas. Eis, pois, que o extremo corpuscular tas modalidades do contingente mas também na própria ciência,
da matéria, o elétron, se desfaz em ondas. A substância funda- a fundamental unidade do Todo. Pode-se, pois, coligar em um
mental, material de construção do edifício das coisas, é um pu- único princípio tanto os fenômenos físicos como os biológicos
ro campo eletromagnético, desaparecendo toda ideia de substra- e psíquicos, porque tudo nasce desse espaço-cinético, que não é
to material. Cai, assim, qualquer significado físico real, restan- mais do que o estado cinético da originária Substância-
do apenas o recurso lógico de representar a probabilidade ma- pensamento, que, com a criação, foi posta em movimento na
temática de que o elétron se encontre, em dado instante, em um incessante marcha universal do transformismo, essência de todo
determinado ponto do espaço. E, se o próprio elétron é hoje o fenômeno e de toda existência.
concebido como uma concentração de energia, no que então se É possível, deste modo, formar uma representação mental
torna a matéria que dele resulta, se a própria energia se concebe da técnica da criação. Podemos compreender como no espaço-
atualmente como uma abstração matemática: ―a constante de dinâmico, fase em que a Substância se pôs em estado cinético,
integração de uma equação diferencial‖? pode originar-se qualquer fenômeno, seja como energia ou seja
Tudo isto para demonstrar como a própria ciência tende a como matéria, apenas pela diversa aceleração desse espaço. É
reconduzir o material constitutivo do universo físico à sua úl- sempre o estado cinético que constitui a gênese de qualquer
tima realidade, que é a de ser uma substância pensante. O uni- forma na matéria. Assim, os sistemas galácticos, planetários ou
verso, com efeito, não é explicável senão quando reconduzido atômicos vêm a ser constituídos por campos de espaço flui-
ao seu termo extremo, termo este entendido como um puro dodinâmico, girando em torno de um centro, isto é, por vórtices
conceito, único capaz de nos exprimir a essência das coisas. de energia cuja rotação é determinada pelo estado cinético, se-
Assim a indagação científica percorreu o caminho inverso ao gundo o esquema universal, segundo o qual tudo, em qualquer
que Deus seguiu para, com a criação, chegar à manifestação nível do ser, tanto no espiritual como no dinâmico, roda em
do Seu pensamento. Desta maneira, a ciência da matéria re- torno ao centro: Deus. O núcleo do átomo repete no plano  o
tornou a Deus e, no fundo desta, encontrou o Seu pensamento esquema universal do ―eu sou‖, mas modificando, de caso para
animador, isto é, a presença de Deus imanente. Tudo isso cor- caso, o sistema único, fato de que depende a diversidade estru-
robora o processo acima exposto da criação e, ademais, nos tural dos diversos átomos. E todo o sistema material, do atômi-
auxilia a compreender, confirmando-a, a concepção de um es- co ao planetário e deste ao galáctico, é gerado como campo
paço-substância, por si mesma geradora da matéria, concep- centro-giratório, repetindo assim o esquema da gênese do uni-
ção que assim se enquadra em um sistema cósmico. verso, que se pode conceber como máximo centro-giratório,
Eis, pois, como, pelo físico-dínamo-psiquismo, concepção porquanto tem por centro Deus. Se, para o universo, no seu as-
fundamental de A Grande Síntese, podem ser orientadas, em pecto espiritual, Deus é o sol do sistema, que tudo gerou e tudo
um plano mais vasto, acessível apenas pela intuição, as últimas irradia – como o Sol em nosso sistema planetário – a esfera
conclusões parciais da ciência moderna, que da dispersão analí- central do espaço centro-giratório, na formação da matéria,
tica são reconduzidas à unidade, em estreito monismo. Pode- forma o núcleo central que gera e rege todo o sistema.
mos, assim, logicamente chegar ao conceito de espaço- Eis, pois, como , por sua exteriorização cinética, pondo-se
substância, derivando-o do conceito de energia-substância, e es- em ação, pode gerar , ou seja, o espaço fluidodinâmico, conten-
te do pensamento-substância. Temos, pois, uma eterna e indes- do em si os elementos para determinar em seu seio os vórtices de
trutível substância, que pode passar do estado de puro pensa- que nasceu a matéria (A Grande Síntese, Cap. LIII – ―Gênese dos
mento (espírito, ) ao de energia () e deste, finalmente, ao de movimentos vorticosos‖). Só neste sentido é possível dizer que o
matéria () involutivamente, e no sentido inverso, evolutiva- nosso universo nasceu do nada. Ele, embora existisse no Todo,
mente, permanecendo ela sempre a substância do Todo, o últi- como Substância em Deus, não existia na forma de matéria, por-
mo irredutível elemento da realidade, que só pode ser Deus, que a Substância estava no estado de pura ideia, de quietação,
centro do ser, princípio e fim de todas as suas transformações. não cinético, não fenômeno, não forma, não ser, não como nós o
Podemos, assim, compreender como a Substância, que agora concebemos de nosso relativo feito de matéria. Para o homem, o
escrevemos com S maiúsculo, de sua fase ou aspecto de puro que não é perceptível sob a forma de qualquer sensação ou regis-
pensamento, conceito abstrato, , pode mudar-se na sua segunda tro não existe. A criação do plano físico a partir do nada ocorreu
fase ou aspecto de energia, , e como desta transformação resul- quando a ideia, dinamizando-se, gerou centro-movimentos de po-
ta o espaço-cinético (a Substância-pensamento que se põe em tência variada, ou seja, vórtices ou condensações físicas de várias
movimento, encaminhando-se para a ação), de que deriva o es- densidades, segundo a grandeza dos impulsos transmitidos.
paço-matéria, fase conclusiva do processo criador. Só assim po- Eis no que consiste o processo criador. As suas três fases
demos abranger tudo o que existe em um só princípio unitário, são conexas por filiação, são três momentos de um mesmo fe-
máxima aspiração instintiva da alma. Somente assim podemos nômeno, três aspectos de um único princípio, indissolúveis,
conjugar em um e único ciclo os dois antagonistas – espírito e sem sentido se isolados; três modos de ser do Todo-Uno, que
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 207
não se podem cindir sem destruir todo o ser, como também não XIII. IN PRINCIPIO ERAT VERBUM
se pode separar no homem o pensamento idealizador da ativi-
dade operante e da obra executada. Cada momento está no ou- ―In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et
tro e é o outro. Os três momentos são iguais e distintos. Cada Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum. Omnia per
um é o Todo, e o Todo está em cada um. Um descende do outro ipsum facta sunt; et sine ipso factum est nihil quod factum est‖9.
por gênese, como o filho do pai. Procuremos agora responder à pergunta proposta no início
Chegamos assim, talvez, à solução do problema máximo do do capítulo precedente: Que significa Verbo?
conhecimento, isto é, à compreensão do mistério da Trindade. Somente agora, após as preliminares desenvolvidas neste ca-
Buscaremos confirmação desta visão nas palavras de São João, pítulo, nos é possível começar a compreender. Vejamos se as
com as quais ele, no início do seu Evangelho, revela ter alcan- palavras de João realmente confirmam a visão precedente, se es-
çado a mesma solução. ta que vimos é a chave para explicar o misterioso sentido daque-
Ignoramos se tudo isto corresponde às concepções teológi- las expressões. Isto nos dirá se o pensamento de João, no seu
cas e filosóficas aceitas. É certo, porém, que a mente não pode Evangelho, coincide com a nossa própria orientação. A verdade
deixar de satisfazer-se com o conteúdo lógico de todo o proces- é que, como logo veremos, se partirmos desta nossa concepção,
so, como também com a concordância destas concepções com a obscuridade daquela incompreensível linguagem subitamente
os mais recentes rumos da ciência. Também não pode deixar de se ilumina e adquire um significado evidente. Então, se ambas
persuadir-se pelo evidente paralelismo entre elas e o exemplo as visões se sobrepõem e coincidem, clareando-se e confirman-
de nossa atividade criadora humana, que nos diz respeito de tão do-se reciprocamente, segundo as linhas de um mesmo sistema,
próximo e, por isso, tão compreensível a nós. Quem houver aí está a prova de que elas se originam de uma mesma fonte de
compreendido a estrutura unitária e hierarquicamente escalona- pensamento, de modo que ou se aceitam as duas ou se rejeitam
da do universo, achará lógicos estes paralelismos. Tudo isto ambas. E, se a concepção de João exprime a realidade, então a
constitui uma confirmação e convence, mesmo porque sacia o nossa visão deverá concordemente corresponder a ela, a menos
desejo instintivo de unificação. De fato, por instinto, o homem que se queira negar a revelação do Evangelho.
sente uma misteriosa potência nas grandes concepções unitá- Vimos que, para o homem, verbo significa conceito que se
rias, porque elas nos dão o senso de Deus-Uno, elevando-nos a torna ação, isto é, significa a ideia abstrata, o esquema feito de
Ele. Poder-se-á objetar que é presunção e profanação buscar le- puro pensamento, que se dinamiza e assim transforma-se em
vantar os véus do mistério. Mas o mistério é treva, e o homem é ato, dirigido no sentido da forma, pela qual ele se manifesta e
feito para a luz e para a compreensão. Deus nos concedeu a in- que o exprime na realidade sensível e concreta. Qualquer coisa
teligência para que a usemos e possamos nos avizinhar Dele, e feita pelo homem existe, num primeiro momento, em estado de
não para ignorá-Lo. A ignorância é devida à obnubilação na es- esquema abstrato, que é dela o modelo ideal, a concepção que
curidão. O ser decaído é feito para evolver, emergindo de novo antecede à gênese, a ideia-mãe. Mesmo sem ter nascido ainda,
no conhecimento. O progresso é lei, e o homem não pode per- tudo já existe em germe no pensamento do homem que cria.
manecer em eterna ignorância, mesmo das coisas transcenden- Num segundo momento, a ideia começa a surgir, tomando for-
tais, das quais depende a sua vida e a sua conduta. Diz-se tam- ma através do processo construtivo da sua gênese, em razão de
bém que investigar deve significar orgulho. Pode-se indagar um estado cinético assumido pelo ―eu‖ pensante, que passou à
com humildade e pode-se compreender com respeito, até mes- ação. Quando, com esse processo construtivo, o estado cinético
mo ganhando em veneração, não com espírito de revolta, mas se mescla inteiramente à ideia-mãe, o modelo ideal adquire a
para alcançar, ao contrário, uma evidência mais patente e uma sua completa expressão na forma, seu terceiro momento, que
obediência consciente. É neste estado de alma que contempla- contém os dois primeiros, como também está neles contido.
mos estas visões, o que por si mesmo expressa uma respeitosa Já vimos que este é o mesmo esquema que encontramos no
percepção conceptual, que é justamente o oposto de uma vaido- caso limite máximo em Deus, na criação do universo. O Verbo,
sa e egocêntrica indagação racional. Aqui a alma não desafia os pois, de que fala João é o segundo momento do processo cria-
mistérios de Deus, mas, diante deles, ajoelha-se, ora em agra- dor, a fase da gênese, onde o conceito se torna ação, fase em
decimento pelo dom da compreensão concedido. que o esquema abstrato formulado na mente de Deus dinamiza-
Na grande curva histórica da atualidade, o involuído está pa- se e se transforma em ato. Que João se refere à gênese está pro-
ra tornar-se evoluído. Ele deve entrar no conhecimento da Lei, vado pela primeira frase: ―In principio‖, logo repetida. Ela vale,
que é o código do Reino de Deus, conhecê-lo por completo, assim, como ponto de referência, o que é necessário ao se in-
porque daqui por diante impõe-se dar-lhe cumprimento, pois que gressar no relativo, onde tudo só existe desta forma, em relação
também na Terra ele deve realizar-se. É por este motivo que ela a outros pontos, e não é concebível senão assim. Então, com
se tornou compreensível. Todos os seres racionais devem cum- efeito, entram no tempo todas estas coisas existentes no primei-
pri-la por necessidade. A fase do terror está superada. A obedi- ro momento da concepção abstrata, precedente ao da gênese,
ência à Lei não se pode mais conseguir com tais meios, apropri- momento situado no absoluto e na eternidade. E João, logo a
ados apenas ao involuído e irracional. Aquele que desperta no
seguir, particulariza: ―Omnia per ipsum facta sunt; et sine ipso
espírito, como o iminente novo tipo biológico humano, só sabe
factum est nihil quod factum est‖ 10. Este ―factum‖, repetido três
obedecer por compreensão e convicção. Ao involuído não era
vezes, nos projeta de imediato na obra completa, que, se, em
possível desvendar o mistério, não só porque ele seria incapaz
um primeiro momento, estava apenas no estado de conceito na
de compreendê-lo, mas também porque está sempre pronto a fa-
dimensão consciência e, em um segundo momento, encontrava-
zer mau uso de tudo. No entanto o evoluído, quanto mais sou-
se no estado cinético de atividade construtora, atinge agora, na
ber, mais se sentirá pequeno e humilde no grande universo,
dimensão tempo, o terceiro momento do processo, em que ela
comparado ao infinito poder de Deus. Quanto mais se progride
se realiza, assumindo a forma concreta na dimensão espaço,
conscientemente na Lei, tanto mais se é tomado de sacro temor.
com a gênese da matéria. Eis o que significa ―factum‖.
À medida que avançamos no conhecimento, menos nos sentire-
mos sábios, menos acreditaremos possuir a verdade, menos nos 9
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
apresentaremos diante de Deus com o orgulho do fariseu, que Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por Ele; e nada
crê poder julgar a si mesmo e à Lei. Não. A verdade não é uma do que tem sido feito, foi feito Sem Ele – João, 1: 1-3. (N. do T.)
cômoda paralisação em posições estabilizadas, mas é o próprio, 10
Tudo foi feito por Ele; e nada do que tem sido feito, foi feito Sem Ele
exaustivo e incessante caminhar ascensional para Deus. – João, 1: 1-3. (N. do T.)
208 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
João sabe que está falando ao homem. Preocupa-se, pois, palavra Verbo por dinamismo, ou ação; a palavra Todo por
principalmente com o universo em que ele vive e que, por isso, expressão, obra executada, ou criação – então o processo a
mais lhe diz respeito. Para tornar-se compreensível, estabelece que se deve a criação, dado pela íntima distinção do Uno,
logo na sua oração este ponto de referência. E, porque deseja Deus, nos Seus três momentos, torna-se compreensível, por-
permanecer compreendido, João diz em seguida: ―in principio‖ quanto o processo se repete diariamente no homem que age e
e ―factum‖. Mal, porém, sobe às causas, eis que é constrangido cria. Assim, tudo quanto existe encontra cabal explicação na
a referir-se ao conceito que as expressões aludidas implicam e sua gênese. Deus permanece sempre Deus, em cada um dos
somente do qual elas podem derivar: o Verbo. Este representa o Seus momentos. É Deus no Seu primeiro momento de con-
segundo momento, o da ação criadora, a que se deve a gênese cepção abstrata, como ideia. É Deus em Seu segundo momen-
mencionada aqui. Ele, como autor desta criação, é o sujeito na- to de ação, a gênese, como Verbo. É Deus no Seu terceiro
tural da oração. Temos, portanto, aqui três conceitos logica- momento de obra realizada, como o Todo criado.
mente conexos: ―Verbum, principium, factum‖ 11. Por isto os Eis como encontramos em João a confirmação da verdade
encontramos aqui reunidos na lógica de uma mesma oração. do princípio fundamental da trindade da substância, afirmado
João, entretanto, não pode deixar de fazer algumas rápidas em A Grande Síntese. O mistério é, assim, explicado da mes-
referências a origens mais remotas, enquadrando o ato criador ma forma que a gênese de nosso universo, reportada até às su-
do Verbo no esquema máximo, que abrange os três momentos as primeiras origens, e isto não só de acordo com a lógica de
mencionados. Assim, enquanto nos diz que no início de nosso nossa mente e consoante os princípios desenvolvidos em nosso
universo, para nós início do ser, existia o Verbo, ação criadora, modo de agir, mas também com as conclusões da ciência.
e tudo era feito por Ele, diz-nos também que o Verbo estava Além da confirmação de João, que representa a Revelação, o
junto de Deus: ―et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Ver- sistema se apresenta racionalmente completo e persuasivo.
bum Hoc erat in principio apud Deum‖12. Eis os três momentos: Não remanescem resíduos, e a criação física não é excluída,
1) A formação conceptual do modelo: a ideia; isolada fora do Sistema, o que significaria desequilíbrio e de-
2) O processo construtivo da gênese: a ação; sarmonia inadmissíveis. A criação situa-se no Sistema como
3) A expressão da ideia na obra executada: a criação. seu último momento, da mesma forma que o corpo, no sistema
do ser humano – também ele composto, uno e trino, à imagem
O Verbo representa o segundo momento, o da ação ou gê- de Deus – é formado dos mesmos três momentos: 1) alma,
nese. O terceiro momento é dado pela criação, que vemos ex- ideia: 2) vida, a energia criadora; 3) corpo físico, a última ex-
pressa em: ―Omnia per ipsum facta sunt‖ 13. As palavras de São pressão concreta, o momento final do processo, derivado dos
João mencionadas no parágrafo anterior referem-se ao primeiro dois primeiros. Em todo o caminho percorrido até aqui, a com-
momento e não podem ser compreensíveis senão neste sentido. preensão da estrutura do universo, tão orgânica e harmônica,
E João explica, efetivamente, que tal como o terceiro mo- claramente nos indica que o princípio de analogia não é arbi-
mento deriva do segundo, assim também o segundo deriva do trário, pelo contrário, o seu concurso é probatório.
primeiro. É claro que a criação deriva do Verbo, a ação; mas o
Só assim se compreende como as religiões estão com a ver-
Verbo – ação – deriva da ideia, mãe da ação. O Verbo estava
dade quando dizem que o universo foi criado do nada. E, quando
de fato junto a Deus, isto é, a ação estava junto da ideia. O
a ciência afirma que nada se cria e nada se destrói, também ela
processo construtivo da gênese estava ainda latente no estado
diz uma verdade. As religiões viram o processo antropomorfi-
de formulação conceptual do modelo. E a ideia era a ação,
camente, referindo-se ao segundo momento, à ação criadora do
porque já a continha em si, em germe. E, no princípio, quando
Verbo, pela qual o universo físico tem princípio como tal, por-
a ideia se moveu em ato, tudo isto estava junto da ideia, que
que, neste sentido, ele antes era o nada. A ciência, ao contrário,
continha em si os três momentos em germe, como quotidiana-
teve que ouvir a voz da realidade, como lhe indicava a experiên-
mente sucede em nossa atividade humana. Se, pois, no princí-
cia, e essa voz lhe fala na indestrutibilidade da substância. A ci-
pio de nossa criação existia o Verbo (a ação), antes do princí-
ência, que não é intérprete antropomórfica da revelação divina,
pio existia Deus (a ideia), e junto a Ele estava o Verbo (a
mas aderente aos fatos, onde está impresso o pensamento de
ação). E a ideia era a ação. As expressões de João são, assim,
Deus, teve de enxergar mais a fundo. Desta diversidade de pon-
claramente compreensíveis. Aqui ele, em poucas linhas, planta
tos de vista derivam as dissensões. E, quanto mais a ciência
magistralmente o problema Deus-Universo. Em outros termos,
avança, desantropomorfizando-se progressivamente, tanto mais
estabelece seu ponto de partida, o conceito base da Trindade
profundamente deverá encontrar-se com este divino pensamen-
do Uno, nos seus três momentos constitutivos.
Nestas primeiras linhas de João, temos efetivamente três to. Ele é o Deus imanente, que é a alma das coisas e representa a
conceitos: 1 o) Deus, 2o) Verbo e 3o) o Todo feito por seu in- sobrevivência do primeiro momento até ao terceiro, isto é, a so-
termédio. Estas três unidades estão conectadas. O Verbo, que brevivência da ideia na obra completa, o criado, sua derivação.
estava junto de Deus, fez o Todo. Aqui há um conceito de de- Retirando-se de todas as coisas este seu íntimo pensamento ani-
rivação, de descendência, de filiação no seio do Uno, que se mador – o Deus imanente – elas cessarão de existir.
transmuda nestes seus três momentos. Ele permanece, assim, Pode-se agora compreender como a imanência de Deus no
invariavelmente Uno, mesmo vindo a existir em três aspectos criado é uma necessidade lógica de todo o Sistema, dada a sua
diferentes, que são sempre Seus e nos quais Ele continua idên- estrutura trino-unitária, uma vez que significa apenas a perma-
tico a Si mesmo. Exposto desta maneira e assim apresentado à nência do primeiro momento, a ideia, no terceiro momento, a
forma mental humana comum, certamente o princípio do Uno- forma. E não pode ser de outra maneira, pois trata-se de um
Trino permanece incompreensível e não pode deixar de ser processo único, cuja subdivisão em três aspectos não fragmenta
considerado um mistério. Mas se substituirmos aos três con- de modo nenhum a unidade do Sistema. Neles, a Substância,
ceitos acima expostos pelo seu valor equivalente, de acordo embora mude seu modo de ser, não deixa de ser sempre a mes-
com a nossa forma mental racional, então tudo se torna evi- ma Substância. É por isto que a ciência teve de comprovar,
dente. Substituindo a palavra Deus por concepção, ou ideia; a também em nosso mundo físico, a indestrutibilidade da Subs-
tância, que é uma característica do eterno e do absoluto.
11
Verbo, princípio, fato. (N. do T.) Até este ponto nos trouxe inexoravelmente a lógica, e não
12
―E o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. Ele estava no podemos desmenti-la, a menos que queiramos renunciar a resol-
princípio com Deus‖ ver o problema e a compreender o mistério. Assim tudo está cla-
13
―Tudo foi feito por Ele‖. (N. do T.) ro. De outra forma, tudo se confunde nas trevas. Agora, é fácil
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 209
ver que estes conceitos até aqui expostos são os que se ocultam constituir-se, voltando a evoluir, isto é, reconstruindo-se em
sob as três palavras: 1) Espírito, 2) Pai e 3) Filho, usados nas re- unidade através deles. A paixão de Cristo não seria, então, mais
ligiões. O Espírito representa o primeiro momento da Trindade do que um momento dessa paixão muito maior.
do Uno, o puro pensamento, a ideia não em ação ainda. Dele de- Mas esclareçamos ainda melhor. Vimos acima que, sem a
riva o segundo momento, quando a ideia, dinamizando-se, en- imanência de Deus em tudo o que existe, nada poderia existir.
caminha-se para a atuação. Eis o Verbo gerador, o Pai, de que E mais adiante, no Cap. XV – ―À procura de Deus‖, chegare-
nasceram todas as coisas. Do Pai deriva o terceiro momento, a mos à confirmação e conclusão de que, na profundeza do pró-
obra completada, a forma concreta em que a ideia-mãe encontra prio ―eu‖, o ser possui o divino. Ora, a presença de Deus no
a sua expressão final, o Filho. Cada momento está no Todo, e o Seu aspecto imanente, como alma das coisas, representa a so-
Todo está em cada um. Eis as três Pessoas componentes do Uno, brevivência do primeiro momento, a ideia, até ao terceiro mo-
iguais e distintas, mas cada uma sendo também o Uno. mento, a forma. Sem a ideia que define, sem a energia que
Prossigamos então na leitura do Evangelho de João, para constrói, não pode haver forma. A existência não pode ser da-
nele encontrar novas confirmações. Para facilitar a sua compre- da nem pode ser mantida senão por esta íntima e última subs-
ensão, traduzimo-lo agora, repetindo as palavras já transcritas: tância, por este ―eu sou‖ menor, centelha do grande ―Eu sou‖,
―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o ou seja, emanação de Deus!
Verbo era Deus. Ele no princípio estava com Deus. Tudo foi Ora, esta necessária imanência de Deus, esta permanência
feito por meio Dele. Sem Ele, nada do que foi feito seria feito. da Sua presença em tudo o que existe, sem a qual nada pode
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. A luz res- ser, prova que Deus desceu com a criatura e na criatura, acom-
plandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam‖ 14. panhando-a em sua queda. Ainda que se conservando invulne-
Deus, como Verbo, é, portanto, o princípio da vida, aquilo rável e intacto em Seu aspecto transcendente, Deus desmoronou
que a medicina, retalhando os corpos, procura em vão, acredi- com o ser decaído, fundindo-se com ele na imanência, que re-
tando ser efeito, quando é a sua causa. Mas o princípio da vida presenta quase que um Seu aspecto de desfazimento, devido ao
é o Espírito, origem do ser, de cuja natureza a alma humana, desfazimento da criatura, emanação Sua, pois, não obstante tu-
que é uma centelha sua, conservou as características: pensar e do, Ele continua a existir nela.
conceber. Do Espírito derivou o Verbo, isto é, o dinamismo vi- Tal é a íntima afinidade entre Quem gerou e quem foi gera-
tal, a irrefreável potência criadora das formas. do, e o desmoronamento pela revolta não podia romper esta
Encontramo-nos ainda no início da criação: ―(...) Tudo foi substancial ligação. O anjo rebelde é sempre filho; não ficou ór-
feito por meio Dele (...), Nele estava a vida‖. Mas eis que, ape- fão nem foi relegado ao abandono. Os vínculos entre filho e pai
nas determinado no seio de Deus este impulso dinâmico, como ofuscaram-se, velaram-se, mas não foram destruídos. Não podia
segundo momento do Seu ser, João fala em seguida de luz e de ser permitido à revolta, pelo arbítrio da criatura, alterar o princí-
trevas. Por que? Aqui está o ser, recém saído do regaço da con- pio fundamental do Sistema: o amor. E o amor quis que Deus
cepção materna. Ele começa a viver, isto é, a existir como indi- seguisse a criatura na sua queda, para ajudá-la a ressurgir dela.
vidualidade autônoma. E este viver expressa o seu ser e é a sua Só assim é possível compreender por que Cristo encarnou na
luz, visto que, com a gênese, o espírito, tornando-se distinto no Terra e por que a sua paixão para redimir-nos. Ele, espírito puro
seio de Deus (cada um distinguindo-se dos seus espíritos ir- que não conheceu o pecado, Filho de Deus como nós, mas não
mãos), qual ―eu-sou‖, isto é, como indivíduo em si, adquiriu rebelde, emanação de Deus como todo espírito, quis seguir a
uma consciência própria. Eis que, tão logo isto ocorreu, ao lado criatura em sua queda, para redimi-la e permitir-lhe subir a
desta luz, que mal se acendera, surgiu a sombra, o oposto, o ne- Deus. E Ele, o Cristo, quis dividir o pão para sintetizar neste ato
gativo, que se contrapõe ao positivo. ―A luz resplende, e as tre- o seu sacrifício de, como criatura perfeita, seguir a criatura caída
vas não a compreenderam‖. Nasce no Sistema o Anti-Sistema, na imperfeição, no caso particular de nosso planeta e humanida-
a cisão, a queda dos anjos já descrita, o dualismo que dará de si de. Mas quis dividir o pão para nos dar em síntese a chave de
o cunho fundamental a esta vida que nasceu. Mal o Verbo entra um mistério ainda maior, para nos indicar um sacrifício mais
em ação, o Sistema se fraciona no dualismo luz-treva, bem-mal, amplo, do qual o Seu era apenas um momento: o sacrifício cós-
verdade-erro etc., e surge o nosso universo corrompido. mico de toda a Divindade, que divide a sua unidade nos seus três
Eis aqui enquadrada em visão ainda mais vasta, expressa pe- momentos; que se precipita do trono da sua transcendência, da
las palavras de João, as precedentes visões da revolta e do des- perfeição no absoluto, na imanência, no transformismo do rela-
moronamento. As trevas são os espíritos rebeldes que não com- tivo (v. início do Cap. – ―Visão-Síntese‖), que desce do seu as-
preenderam a luz. A palavra ―compreender‖ nos transporta, sem pecto de puro espírito até à forma, porque só esta Sua imanência
mais delongas, ao primeiro momento, o do puro pensamento, o pode operar a redenção pela evolução. Santa e bendita imanên-
do Espírito, em que os seres eram puras centelhas de Deus no cia por tantos negada, fruto de infinito amor, sacrifício cósmico,
Seu primeiro aspecto: a ideia. Neste primeiro momento, antece- ao qual a criatura deve a salvação. Tudo nos indica, juntamente
dente do segundo, o do Verbo, ocorreu a inversão da compreen- com esse ato de dividir o pão pouco antes do sacrifício, uma
são em incompreensão. Então podemos agora alcançar o mais paixão em que, mais do que Cristo na Terra pela humanidade, é
íntimo significado do Cap. XVI – ―Deus e Universo‖ (2a parte), Deus que se crava numa cruz cósmica para redimir o universo
do volume Problemas do Futuro, em que a presente e mais pro- desmoronado. ―O universo inteiro é a imensa cruz na qual está
funda intuição se encontra apenas em forma embrionária. Ali re- pregado o Pai‖ (G. Papini – Cartas do Papa Celestino VI).
cordamos que a Eucaristia, instituída com o partir do pão na Úl- Esta ideia do desmoronamento, em que a criatura arrasta
tima Ceia, representa a gênese. Esta distinção do Uno em três consigo na queda a divina centelha que a anima, pode parecer
momentos, pela qual o Espírito – a ideia – desce à ação, e esta à que não seja logicamente conciliável com a ideia da criação ope-
forma, pode coligar-se à divisão do pão, em que Cristo, o Verbo rada por Deus. Impõe-se compreender, porém, que, pelo contrá-
feito forma, o Pai no aspecto de Filho, dá-se em sacrifício. E po- rio, tal desmoronamento, confirmado por tantos fatos, implica
de representar também o mais amplo sacrifício da Divindade, justamente a ideia de uma criação operada por Deus, no sentido
que, seguindo na queda os espíritos rebeldes, fica entre eles; en- de que ele não foi abandonado a si mesmo, mas sim guiado e di-
trelaça-se ao seu trabalho de redenção, amparando-os e se unin- rigido sempre por Deus com a Sua imanência. Nela subsiste a
do a eles; deixa-se desmoronar na forma (imanência), para re- obra de Deus, salvadora por amor. Deus permitiu o desmorona-
mento de acordo com uma lei, que é a Sua imanência, a sua pre-
14
João, 1: 1-5. (N. do T.) sença salvadora. É este fato que faculta ao ser decaído reascen-
210 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
der do caos à ordem, reconstruindo o edifício desmoronado. precursor, que não era a luz, mas somente enviado de Deus para
Sem esta imanência de Deus no criado, o caos continuaria sem- testemunhar, aparece em nosso mundo, para alcançar a criatura
pre caos, ignorando não só o princípio da evolução, representado até ao fundo de seu desmoronamento, para atingir o espírito
pela presença de Deus nele, mas também o princípio da reden- aprisionado na matéria, eis que aparece na Terra a luz verdadei-
ção no sacrifício, como nos foi ensinado por Cristo. ra: o Cristo. Veio ao mundo, que fora feito por meio Dele, na
Fato maravilhoso é saber que, no fundo desse caos, está la- forma, que é a casa do espírito, habitação que o exprime, e essa
tente o princípio de ordem com a presença da lei de Deus, sem luz não foi reconhecida nem acolhida. Mas a quantos o recebe-
a qual ninguém atingiria a salvação. ram foi dado o poder de se tornarem filhos de Deus, isto é, os
O desmoronamento não ocorreu ao acaso, nem a criatura fi- espíritos que não nascem do sangue nem da vontade da carne
cou só. Deus guiou o desmoronamento com infinita sabedoria, ou do homem, mas somente de Deus, puderam assim redimir-se
permanecendo junto à criatura para reerguê-la até Ele. e refazer-se de sua posição invertida, retornando do Anti-
E tudo isto é a obra de Deus, é a grande maravilha da Sua Sistema, em que haviam decaído, ao Sistema pela via das as-
criação. censões espirituais, traçada por Cristo. ―Et Verbum caro factum
est, et habitavit in nobis; et vidimus gloriam elus‖16.
XIV. A ESSÊNCIA DO CRISTO Chegamos, assim, ao ponto central de uma questão tremen-
da: quem era o Cristo? Todos nós mais ou menos conhecemos a
Eis que, neste longo caminho, chegamos a esta grande figu- Sua figura humana, historicamente retraçável. Mas que haveria
ra central na história do mundo! Sinto que nestas páginas a vi- por trás dela? Eis o grande problema. Certamente, estes quesi-
são se avizinha da concepção da essência do Cristo em uma tos não se podem nem ao menos formular para a forma mental
primeira aproximação, prelúdio de uma compreensão mais da ciência moderna, pois, com os seus métodos de conceber,
profunda, que amadurecerá no último volume, com o qual será eles não são solúveis. As religiões não dão explicações racio-
coroada toda a Obra. Os escritores comuns das muitas histórias nais cabais e são obrigadas a recorrer aos únicos meios pelos
da vida de Cristo, que se fixam nos fatos da Sua existência fí- quais tais problemas se podem apresentar ao involuído atual: o
sica, sem ocupar-se do drama cósmico que está por detrás dela mistério e a fé. Procuremos, então, compreender.
e do qual esta não passa de uma ligeira emersão em nosso sen- A luz verdadeira é ―aquela que ilumina todo homem que
sível, não podem imaginar que falar de Cristo somente como vem a este mundo‖. É o espírito, a centelha de Deus, que se
documentação histórica ou obra literária ou filosófica é perma- manifesta como consciência, o saber-se ―eu‖, a fundamental
necer na superfície de abismos oceânicos. Para conseguir qualidade e sensação do ser. A treva é a inconsciência, a igno-
compreender um pouco da significação íntima da figura e das rância, que se torna cada vez mais densa à medida que se pre-
vicissitudes terrenas do Cristo, foi-nos aqui imprescindível ob- cipita no Anti-Sistema, involuindo na matéria. De onde pro-
servar antes a estrutura do universo através de muitos volumes, vém a luz verdadeira? De Deus, centro do Sistema, e ela o
percorrer em síntese o conhecimento humano e resolver os anima por completo. Ela é sinônimo de consciência e de vida,
maiores problemas do ser. Foi, assim, necessário o esforço de é o espírito, é a substância do ser, que permanece Substância
uma vida inteira e o auxílio de estados especiais de intuição. E em cada um dos seus três aspectos ou momentos. Cristo é,
nos encontramos ainda no limiar, sendo necessário percorrer pois, a luz irradiada por Deus, está conexo com Deus e provém
ainda outros volumes antes de nos ser permitido entrar no tem- do centro do Sistema. De fato, Ele mesmo, repetidamente, se
plo. E já a alma trepida consternada ante a potência titânica do declara Filho de Deus.
argumento e se abate no temor de ser por ele esmagada. Há vi- Mas não basta estabelecer essa origem e descendência,
sões supremas capazes de fulminar o ser, contudo impõe-se pois que todos os espíritos têm a mesma origem e descendên-
aceitá-las na hora que Deus quiser. cia. O difícil é precisar quais eram as relações entre Deus e
Eis, pois, que o nosso processo lógico nos conduziu até Cristo. Mas João acrescenta: ―E o Verbo se fez carne e habi-
Cristo. Também João aí chegou. Ouçamos as suas confirma- tou entre nós‖. Porém todo espírito se faz carne e anima um
ções. Do absoluto descemos até ao plano humano: ―Houve um corpo, e este, sem aquele, não tem sensibilidade nem consci-
homem enviado por Deus, cujo nome era João. Ele veio como ência, tornando-se um cadáver. Além disso, todos os espíritos
testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que por meio são filhos de Deus, visto que foram por Ele gerados e Dele
dele todos cressem. Ele não era a luz, mas veio para dar teste- provieram. Então que diferença há entre a natureza de um es-
munho da luz. Havia a luz verdadeira, aquela que ilumina todo pírito comum e o espírito de Cristo?
homem que vem a este mundo. Ele estava no mundo, e o mun- João fala claro: ―E o Verbo se fez carne e habitou entre
do foi feito por meio dele, mas o mundo não o reconheceu. nós‖. O espírito de Cristo era, pois, o Verbo. Já vimos que este
Veio à sua casa, e os seus não o acolheram. Mas a quantos o re- é o segundo momento da Trindade, em que a ideia (espírito),
ceberam, ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus; deu-o dinamizando-se, encaminha-se à ação, o momento da gênese,
àqueles que acreditaram no seu nome, que não nasceram do do Pai, de que nascem todas as coisas, isto é, de que deriva o
sangue nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, terceiro momento, a obra completa na forma. Mas o Cristo,
mas somente de Deus. E o Verbo se fez carne e habitou entre aquele que o homem viu na Terra, era o Verbo feito carne, isto
nós. E nós vimos a sua glória, glória como de unigênito do Pai, é, o Verbo não mais como o segundo momento, mas como ter-
cheio de graça e de verdade (...), ninguém jamais viu Deus; é o ceiro, ou seja, era o Pai imerso na Sua manifestação em nosso
mesmo unigênito que está no seio do Pai, que o revelou‖ 15. plano físico, não mais apenas dinamismo sem forma concreta,
Aqui entramos no terceiro momento, e os fatos se desenro- mas sim revestido de matéria. Ele é, pois, o Filho derivado do
lam no plano humano, concreto, sensorialmente perceptível, na Pai, o unigênito do Pai, como lhe chama João. Tudo isto cor-
forma, que todos veem, tocam e, pelo menos superficialmente, responde perfeitamente à estrutura do Sistema, como acima
podem compreender. Chegamos ao plano da execução material, descrito, e representa a sua fase mais periférica, mais distancia-
último momento, derivado dos precedentes e compreensível da do centro, Deus, aquela em que o espírito, provindo do cen-
apenas se visto nesta sua cósmica preparação no imponderável. tro, submerge nos antípodas, na matéria.
O Sistema já se dividiu no dualismo, e o espírito já desmoronou João acrescenta: ―Ninguém jamais viu Deus. O Filho uni-
na forma material. Em relação a tudo isto, e só em relação a isto gênito, que está no seio do Pai, foi quem o revelou‖. Trata-se,
compreensível, aparece a figura do Cristo. E eis que, depois do
16
"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e vimos a sua glória" –
15
João, 1: 6-18. (N. do T.) João, 1:14. (N. do T.)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 211
pois, de uma manifestação de Deus, do Seu primeiro aspecto, verso da mesma Substância. Tudo o que é forma, porém, cons-
do espírito que, através do seu segundo aspecto, o Pai, projeta- titui esse terceiro momento ou aspecto, é a expressão do pen-
se na forma, tornando-se sensível ao homem, que assim pôde samento de Deus, sem o que nada pode existir. Então a diferen-
ter uma imagem concreta do invisível Deus. Portanto, se Cris- ça entre o ser humano comum e Cristo, encarnado na mesma
to, visto do centro, pode representar uma imersão do espírito forma, só pode estar em que o primeiro representa a imperfeita
nas trevas e na imperfeição da forma física, Ele, visto da peri- expressão do pensamento de Deus, com um espírito que se
feria, onde está o homem, representa uma revelação de Deus. ofuscou pela queda, e corrompeu-se na sua posição periférica,
Trata-se, assim, do sacrifício do espírito, que vem encarcerar- que é o seu ambiente devido e merecido naturalmente, enquan-
se no relativo, agraciando o homem com o dom de uma porta to Cristo representa a expressão perfeita do pensamento de
aberta para o céu, como uma via de comunicação com Deus. A Deus, com um espírito perfeito, incorrupto, projetado apenas
descida de Cristo à Terra representa, por conseguinte, a pene- por amor e missão de bem à periferia, que está nos antípodas da
tração de um intensíssimo raio de luz nas trevas, que se dissi- sua posição natural. E dizer expressão perfeita de um espírito
pam ante o seu ofuscante lampejo. Efetivamente, quantos espí- perfeito é aproximar de tal maneira Cristo do Centro, Deus, que
ritos não se puseram depois a seguir as pegadas de Cristo, no indagar se Ele se identifica ou não com Deus constitui uma su-
caminho da ascensão para Deus! tileza superior ao nosso concebível, que não pode alcançar a es-
Quem tiver compreendido o processo acima descrito do sência de Deus. Baste-nos, pois, ver em Cristo o nosso Pai pro-
desmoronamento do Sistema no Anti-Sistema e sua reconstru- posto de nossa evolução. Para nós, Ele representa a aproxima-
ção, poderá dar-se conta da capital importância da intervenção ção máxima que as forças humanas intelectivas podem atingir
da Divindade na salvação da humanidade. Só assim podemos da infinita perfeição de Deus; representa para as nossas possibi-
compreender o significado da redenção. A história do mundo lidades o limite máximo concebível em altura de qualquer mo-
não é somente feita de guerras e de impérios, mas também de delo que possa ser proposto ao homem, além do qual a nossa
imponderáveis impulsos espirituais. Céu e terra se tocam. Mui- acuidade nada mais sabe indagar. E se quisermos indagar, per-
tos se preocupam em definir se Cristo é Deus ou apenas um pro- der-nos-emos no incomensurável dos céus, na vertigem do su-
feta. Trata-se possivelmente apenas de palavras, atrás das quais perconcebível. Cristo provém de um centro que é luz tão ofus-
se oculta unicamente a preocupação da supremacia absoluta do cante, que o olho humano nada pode distinguir.
próprio chefe espiritual sobre todas as outras hierarquias e reli- Um outro problema, contudo, nos aguilhoa. Por que desceu
giões. Preocupações humanas. Baste-nos por ora ter estabelecido Cristo à Terra e por que quis redimir-nos com a Sua paixão? É
o princípio da proveniência de Cristo. Estamos em regiões suti- evidente que Cristo, estando no Sistema, provém do Centro.
líssimas, onde não sabemos se os nossos pensamentos egocên- Por que então quis imergir no Anti-Sistema? Por que desejou
tricos de personalidade subsistirão ou se, em tais alturas, não se- descer ao reino da criatura decaída, onde o espírito está involu-
rá provável que de todos os nossos conceitos não reste mais do ído na matéria; por que projetar-se no relativo, no limite e na
que um princípio abstrato, irredutível às nossas formas mentais. dor? Quem compreendeu a estrutura do Sistema pode conceber
Com o progresso da ciência, que aponta a nossa Terra ape- a imensidão da distância percorrida. Por que então inverter-se
nas como um ínfimo grãozinho de poeira cósmica, torna-se ca- com os invertidos, deixar-se desmoronar no íntimo, até nós, fi-
da vez mais inadmissível o antropomorfismo, que pretendia fa- lhos desfeitos pela queda? Por que o Pai envia este Seu emissá-
zer dela o teatro dos maiores acontecimentos da criação. Não é rio, que tão intimamente O representa, mandando-O ao martí-
concebível que a vida possa estar toda aqui. E, se Deus enviou rio, com uma incumbência precisa, e por que Cristo tão piedosa
Cristo como seu representante, torna-se cada vez mais difícil e espontaneamente atende? Que representam estes movimentos
que Ele se tenha ocupado apenas de nossa humanidade, esse cósmicos espirituais na economia do Sistema e na obra de re-
Deus que deve sê-Lo não apenas para nós, mas para todo o in- construção do Anti-Sistema? Seriam eles necessários e úteis,
finito universo, que escapa a qualquer medida e compreensão segundo a estrutura lógica do Todo?
nossa. Por que devemos acreditar que Cristo tenha sido o único Há pouco relembramos o conceito da divisão do pão na Eu-
meio da intervenção de Deus para salvar o ser decaído, quem caristia. Lá, entrevimos uma paixão maior do que a de Cristo na
sabe em quantas e variadas formas? Por que admitir que Cristo Terra, que foi apenas pela humanidade terrena; entrevimos uma
tenha sido o único raio enviado pelo Centro para reanimar e re- paixão cósmica, pela qual a Divindade, seguindo no desmoro-
construir o universo desmoronado? Deve-se acreditar ter Cristo, namento todos os espíritos rebeldes, deixa-se arrastar com eles
eventualmente, desempenhado também em algum outro lugar a para salvá-los. No fundo, o próprio Deus era o Sistema e, com o
sua missão redentora ou, ainda que o campo por ele escolhido Sistema, de uma certa forma, Ele mesmo desmoronava, pois que
tenha se limitado à Terra, que se tenha valido de outros colabo- Ele estava em Sua obra. Mas isto não é suficiente para nos ex-
radores, com Ele enviados por Deus a todo o universo, que plicar uma tão tenaz aderência a ela. É que esta era algo mais do
igualmente deve ser repleto de vida. Como separar os fatos da que uma obra Sua. Na primeira criação espiritual, a verdadeira,
vida terrena dos acontecimentos da vida cósmica? Deus se havia dado a Si próprio e, assim, Ele mesmo permane-
No Evangelho de João (Cap. 17: 1-2,4) estão as palavras de cera no sistema corrompido, em sua profundidade, latente, se-
Cristo dirigidas ao Pai: pulto, mas sempre imanente, qual única centelha, sem a qual não
―(...) Para que o Filho Te glorifique a Ti, porque Lhe confe- há vida. Na obra, Deus se dera a Si mesmo, como o pai no filho,
riste poder sobre toda a humanidade‖ (...). mas o universo desmoronado continua a conter Deus, que é a
―Eu Te glorifiquei na Terra, consumando a obra que me sua vida. O Todo permanece vivo somente enquanto Deus está
confiaste para fazer‖. nele. É necessário compreender como Deus criou os espíritos,
O mesmo Evangelho de João se reporta às palavras de Cris- para depois poder entender o resto. Deus, sendo o Todo, não po-
to, dizendo: de criar senão tirando de Si mesmo. Os espíritos puros da pri-
―(...) Quem me vê, vê o Pai‖ (...) – Cap. 14:9. meira criação provieram do seio de Deus, derivaram Dele como
―(...) O Pai, que habita em mim faz estas obras. Crede-me filhos. Daí surge um fato de alta relevância: todo espírito é da
que estou no Pai e o Pai está em mim‖ (...) – Cap.14:10-11. mesma natureza de Deus, como o filho é da mesma natureza do
―(...) O Pai, que me enviou‖ – Cap. 14: 24. pai – natureza inalterável. Poderá ela ter-se desvirtuado, decaí-
―(...) Eu e meu Pai somos um‖ – Cap. 10: 30. do, ofuscado, aprisionado no limite e na dor, imergindo na igno-
De tudo isso se poderia deduzir que se trata de uma incum- rância e na inconsciência. Todavia a sua qualidade originária de
bência recebida do Pai com respeito à humanidade, e que a centelha de Deus, diante de um incêndio cósmico, qual é Deus, é
identidade com o Pai é dada por representar um momento di- indestrutível. E assim ela permaneceu.
212 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Ora, essa natureza divina do espírito não se destruiu quan- penas. A nossa inconsciência, treva do espírito, impede-nos de
do ele se rebelou, convulsionando o Sistema. Desta forma, o perceber esta realidade. Basta, porém, o despertar da alma para
desmoronamento do Sistema é, também em parte, o desmoro- se sentir invadido pela universal presença de Deus.
namento de Deus, evidentemente não na Sua absoluta trans- Somos, pois, pobres seres decaídos no mal e na dor. Triste
cendência, que é inviolável por estar acima de qualquer cria- tributo este, que é justo porque foi desejado. Mas Deus está jun-
ção Sua, mas no Seu aspecto de imanência. Se este significa a to de nós. Ele está junto de nossa humanidade no Seu aspecto
presença de Deus no universo desmoronado, isto pode de al- de Cristo, que conosco colabora na reconquista do paraíso per-
gum modo ser tomado como um desmoronamento de Deus, à dido. Na imensa obra de reconstrução, todo o universo está em-
semelhança do que pode suceder com o homem que, embora penhado, sob o comando de Deus, no curso desta longa estrada
sendo espírito acima das necessidades do corpo, se este adoe- traçada pela Lei: a evolução. Deus coloca-se ao lado do ser se-
ce, também sofre na alma. pultado na dor e, com ele, põe-se a subir. Na profundeza só
Levanta-se, então, uma questão ainda mais relevante: se existe uma dor, que Deus e a alma sofrem juntamente, numa
Deus tudo sabia, por que se expôs a tal perigo? Trata-se, assim união que adulçora qualquer sofrimento. Mas disso apenas os
parece, da falência de toda a Sua obra, naufragada na dor e no espíritos despertos têm consciência. No esforço da reconstru-
mal. Não! Tudo é lógico e perfeito. A equação parecerá insolú- ção, não estamos sós, mas colaboramos com Deus, que assume
vel enquanto não soubermos dar à incógnita X, chave do siste- o grande encargo desse difícil trabalho.
ma, o seu justo valor. E este valor é representado pela palavra No Sistema deve existir para o ser também uma grande for-
amor. Este foi o nosso ponto de partida no início destes capítu- ça de coesão, inserida nele desde o seu nascimento, que, em
los. Ele é agora o nosso ponto de chegada. Inicialmente, acei- qualquer caso e a qualquer custo, impede a sua desagregação,
tamos este conceito como um axioma não demonstrado. Agora força essa que liga o Criador à criatura, pela qual Deus vem a
ele está demonstrado completamente. Ele é o vértice para o colaborar diretamente na reconstrução e, no caso da Terra, en-
qual convergem todas as linhas do edifício. viar Cristo para encarnar-se na involuída forma humana, assu-
Deus sabia que a criatura poderia cair e que Ele, nela Se mindo-lhe todas as misérias. E o que poderia ser essa força, se-
havendo dado, deveria segui-la na queda, porque ela é subs- não o amor, do que nos fala o universo inteiro e a que nos re-
tância da Sua Substância. Sabia-o bem. Mas Deus amava a cri- conduz cada momento seu? Se é verdade que há tanto mal e
atura que tirara de Si e não poderia deixar de a querer livre tanta dor, é porque tais são as qualidades do Anti-Sistema. Mas
como Ele. Uma criação de espíritos que não aceitassem a exis- este, com a ajuda contínua de Deus, está reconstruindo-se no
tência pelo mesmo amor e não aderissem livremente a Deus Sistema. Esse mal e essa dor vão se reabsorvendo por obra do
pela compreensão espontânea, teria sido uma criação de inferi- amor, de que, não obstante tudo, o universo está saturado. É
ores, servos ou escravos, delito que só a nossa mente aprofun- verdade que Satanás se conserva rebelde, em luta. Mas ele está
dada no mal pode conceber. Que sucedeu então? Sucedeu que, na superfície, na periferia. E é verdade também que Deus é ain-
quando o ser rebelde se precipitou, o amor de Deus, jamais da mais ativo e está presente em toda parte.
desmentido, sempre coerente consigo mesmo, seguiu a criatura Cristo veio à Terra a fim de sacrificar-se por amor. A sua
decaída e com ela desceu na matéria, para com ela sofrer a sua paixão é toda um mistério de amor. A Eucaristia é feita de amor
redenção. Eis o amor, sempre o amor, levado até às suas últi- imperecível. As suas últimas palavras foram de amor: ―Isto vos
mas consequências. Amor que em Deus, pelo erro do ser, que mando: amai-vos uns aos outros‖ (João, 15:17).
devia ser livre, torna-se sacrifício. ―Assim como o Pai me amou, também Eu vos amei; perma-
A Eucaristia, dividindo o pão, nos fala claro da paixão de necei no meu amor‖ (idem, 15:9).
Cristo, do Seu sacrifício pela redenção da humanidade. Tudo is- ―O Pai vos ama, porque me tendes amado‖ (idem, 16:27).
to nos demonstra que Deus segue o ser decaído, põe-se a seu Este amor é o raio de Deus, que ilumina e vivifica o universo.
lado, sob o peso da cruz, na subida do monte das perfeições, de Por amor, Cristo desceu ao mundo, reino de Satanás, que fez
onde se precipitou. Só assim se compreende a paixão de Cristo, dele um tormento. Mas Cristo venceu em espírito.
enquadrando-a em uma paixão maior, que abrange todas as O fato de Cristo nos ter trazido amor demonstra que Ele pro-
humanidades do cosmo, paixão da qual a de Cristo na Terra não vém do Centro e que é um reconstrutor. O amor na periferia, em
é senão um caso particular. É verdade que o reino da criatura que nos encontramos, despedaçou-se em ódio, fragmentou-se nas
decaída é o do mal e da dor, onde impera Satanás. Estas são as rivalidades egoístas que Cristo nos ensinou a reconstituir em uni-
características naturais de um universo decaído. Mas há nele dade, amando-nos uns aos outros. Com este seu mandamento
também, como motivo fundamental, a divisão por amor, o sa- fundamental, Cristo quer fundir os fragmentos do Uno, desmoro-
crifício, a existência por toda parte da divina virtude reconstru- nado com a queda do ser. Com o Evangelho, a Boa-Nova anun-
tora, que se chama redenção. Nesta paixão maior de todo o uni- ciada aos homens de boa-vontade, Cristo representa para a hu-
verso, não é apenas Cristo que morre na cruz, mas qualquer es- manidade o toque de pôr mãos à obra, sob a Sua direção, na re-
pírito em que Deus viva e que, encarcerado nas dores de uma construção de um novo e mais elevado plano do edifício desmo-
existência inferior e pervertida, submete-se a uma crucificação ronado do Sistema. Fenômeno biológico, pois, que diz respeito a
cósmica, onde o grande Centro também sangra e padece. toda a vida, em marcha evolutiva! Cristo veio, assim, revelar-nos
Eis a que ponto chegou o amor de Deus! Eis até que ponto uma vida nova; veio manifestar-nos um mais profundo e, conse-
Deus quis respeitar no ser a liberdade! Deus atingiu o extremo quentemente, mais real aspecto de Deus – de amor – verdade an-
de querer intervir para salvar, pagando com o que era Seu, as- tes ignorada pelo homem, que não sabia conceber a não ser o fe-
sim como do que era Seu havia dado ao criar! Altruísmo máxi- roz, ainda que justo, Deus dos exércitos da Bíblia. Na época da
mo, coincidindo com o egocentrismo máximo, pois Deus é tudo vinda de Cristo, a humanidade começava a evoluir um pouco ou
o que existe. O ser, ainda que decaído nas profundezas espiritu- se preparava para tanto. Estava, assim, à altura de receber princí-
ais, não pode deixar de sujeitar-se a Deus, o Pai, sua origem. pios mais amplos, inacessíveis antes à sua inconsciência demasi-
Assim, tudo o que ele sente e vive deve estar sujeito a Deus. O ado involuída. Logo que o terreno ficou preparado, uma nova
Sistema implica conexão e relações entre centro e periferia. A semente foi lançada para fecundá-lo. Faz dois milênios que ela
criatura se comunica com Deus através da oração, transmitindo- jaz sepulta, dois grandes dias da história. E está próximo o des-
Lhe as suas aspirações – inclusive as suas alegrias e dores – pontar do terceiro dia, da ressurreição, em que a semente, matu-
sentidas e registradas na profundidade do espírito, onde Deus rada sob a terra, na elaboração das almas, deverá germinar e em
está. Deus, que se encontra em nosso íntimo, vive tão junto a que o Evangelho, apenas pregado, deverá ser vivido. E, assim, o
nós, que partilha conosco as nossas alegrias e sofre as nossas templo será realmente reconstruído em três dias.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 213
Cristo, provindo do motor fundamental central, o amor, XV. À PROCURA DE DEUS
dinamiza o esforço do ser em nosso planeta, acompanha-lhe a
maceração, auxilia o homem a sair do seu grosseiro invólucro “Et multum laboravi quarens Te extra me, et Tu habitas in me”17.
material para a vida do espírito, repleta sempre de alegria. (S. Agostinho)
Assim, Cristo se entranha em nossa vida terrena, como o
mais poderoso fator de evolução, operando nos nossos mais Fundimos em um estreito monismo, em um só sistema, o
elevados planos biológicos. Ele nos dá a mão na exaustiva Todo, desde o seu polo espírito, até ao polo oposto, matéria.
subida para o centro, do ódio ao amor. Ele quis ensinar-nos Terra e céu assim se tocam e se fundem em um único universo,
alegrias maiores, mais reais, libertando-nos do truque ilusio- em que o espiritual e o material não passam de momentos ou
nista, próprio do Anti-Sistema, onde nos encontramos. Po- posições da mesma Substância. Podemos agora dizer ao homem
nhamo-nos ao lado do Reconstrutor, colaboremos! É do nos- imerso nas trevas: desperta e sentirás que Deus está a teu lado,
so interesse subir para a alegria e nos desfazermos da dor, está dentro de ti, é a tua vida, a vida de tudo. A grande desco-
apanágio natural das regiões inferiores. Este trabalho de re- berta que desloca o eixo do ser e que a ciência nem de leve sabe
construção do Sistema reverte inteiramente em nossa vanta- conceber é descobrir a própria imortalidade, o divino que está
gem, porque significa a evasão do Anti-Sistema e de todas as em nós, e com ele aprender a viver eternamente; é despertar a
suas aflições. O Sistema somos nós mesmos, e, reconstruin- própria consciência adormecida, para compreender que somos
do-o, reconstituímos o nosso poder, a nossa felicidade. A Lei filhos de Deus, imensamente amados por Ele; é entender que a
é a nossa vida. Conhecê-la e executá-la cada vez melhor re- causa de todos os nossos sofrimentos não reside numa defeitu-
dunda em viver mais intensamente sempre. Endireitemos a osa construção do Sistema, mas em nossa incompreensão da
nossa posição invertida, isto é, amoldemo-nos à vontade de perfeição de sua construção; é convencer-se de que o tremendo
Deus, em plena e espontânea adesão, invertendo assim a pri- destino de dor que nos aflige depende, sobretudo, de nossa ig-
meira rebelião do ser. Deus quer a nossa livre aceitação do norância e que ele somente pode transmudar-se em um destino
Seu amor, Ele a quer por compreensão, e não por força. Endi- de glória se soubermos superar os nossos baixos instintos e nos
reitemo-nos, rebelando-nos, ao contrário, contra a vontade de evadir de nossa natureza animal inferior; é entender que a vida
Satanás, que é a lei do Anti-Sistema.
não pode estagnar-se, deixando de avançar, e que a guerra não
Não nos esqueçamos de que Deus está conosco, por mais terá fim enquanto o homem não empreender formas de luta e
malvados que sejamos.
seleção mais evoluídas; é compreender que Satanás, a quem to-
Assim termina esta visão, primeiro germe de visões mais dos gostam de seguir, porque nos engoda, é antes inimigo de
vastas, da essência do Cristo. Ele nos aparece assim definido nossa felicidade, e que Deus, a quem relutamos em acompa-
em relação a Deus e ao homem, neste quadro cósmico. A Sua
nhar, porque primeiro exige de nós o justo trabalho, para depois
vinda à Terra significa a retificação do homem, que deve retor-
nos dar a alegria, é o nosso primeiro amigo e outra coisa não
nar à posição ereta, depois da queda pelo pecado original. Eis o
quer ou procura senão cumular-nos de felicidade.
conceito de redenção. Entretanto o pecado original não foi se-
Até aqui, temos procurado explicar, com o máximo de cla-
não uma consequência e continuação da queda dos anjos, foi o
reza, o fim do mal, sua autodestruição. As teorias não são nos-
caso particular de nosso planeta e de nossa humanidade. Então,
sas, mas as lemos no livro da vida, e o Evangelho (Lucas, 11:
assim como por trás do pecado original houve um desmorona-
mento muito maior, igualmente por trás da descida do Cristo à 17-18) no-las confirma, quando nos diz: ―Todo reino dividido
Terra, para retificar o homem caído, deve ter existido uma des- contra si mesmo será destruído, e as casas cairão umas sobre as
cida com uma redenção muito maior, para a salvação de todo o outras. Se, pois, Satanás está dividido contra si mesmo, como
universo. E, assim como o pecado original foi a consequência e subsistirá o seu reino?‖. O mal, portanto, como provém do An-
continuação da queda dos anjos, também a descida e a paixão ti-Sistema, é força negativa e está condenado ao aniquilamento
de Cristo, com a redenção da humanidade, foi a consequência pela sua própria natureza e qualidade. Pela mesma fatal lei das
da maior descida e paixão de Deus pela redenção de todo o coisas, o próprio espírito de separatismo que anima Satanás
universo desmoronado. Com essa obra imensa se coordena também o desagregará. E com Satanás se extinguirão a dor e a
Cristo. Eis o significado daquelas palavras, transcritas por João morte, resultando na vitória da vida, cujo centro se situa no es-
em seu Evangelho, dirigidas ao Pai: pírito, centelha pela qual Deus se manifesta em tudo o que exis-
―(...) para que o Filho te glorifique a Ti, porque Lhe confe- te. Não deve a compreensão de tudo isso encher-nos de alegria
riste poder sobre toda a humanidade, para que dê a vida eterna a e de fecundo otimismo em meio a qualquer dor? Esta é a psico-
todos os que Lhe deste. logia da superação, que vai além do miserável contingente,
―Eu Te glorifiquei na Terra, consumando a obra que me dando-nos a paz das coisas eternas e a segurança do amanhã.
confiaste para fazer‖. Tudo isto está amplamente exposto no Evangelho e foi por
Eis como do ponto de partida, o amor, tudo se desenvolve nós tentado, racional e cientificamente, ser demonstrado nos
necessariamente com lógica, até à descida de Deus, que per- esquemas expostos, a fim de conseguir tornar compreensível
manece imanente na forma – como seu espírito animador, por- esta boa nova, já proclamada por Cristo e aqui repetida por nós
que ela possui um pouco da luz originária – para que se possa identicamente, porque ela é a maior alegria da alma. Deus está
voltar a subir. No fundo do quadro da paixão de Cristo, há a conosco. Quando uma espiga de trigo se multiplica em centenas
cósmica paixão de Deus, que não abrange somente a Terra, de espigas e as messes aluem os campos para nos dar o pão,
mas todo o universo; há a crucificação de toda a divindade, Deus está conosco. Quando os rebanhos se multiplicam, os
que não abandona o ser caído, mas o segue no desastre, con- animais que nos fornecem alimento se desenvolvem e tudo na
serva-se em seu interior até no plano físico, em meio à treva e terra germina e cresce fecundamente, Deus está conosco.
à dor, porque Ela sabe que somente a sua íntima presença, que Quando nossos filhos se tornam grandes, Deus está conosco.
é vida, pode salvá-lo, redimindo-o e reconduzindo-o à vida. Só Deus é esse irrefreável impulso de vida, mesmo que ele possa
assim, de fato, será possível a reconstrução do Sistema pelo ser feroz nos graus inferiores, porque os seres não sabem ainda
Anti-Sistema. Somente desta forma o desmoronamento não se- aprender lições mais refinadas. Avançamos, contudo, no cami-
rá uma derrota, mas uma vitória. Por esse motivo é que Deus o nho ascensional. Já muitos homens têm terror desta vida inferi-
permitiu, por saber que, em qualquer caso, o Sistema seria o
17
vencedor. E a vitória final de Deus em todo o universo será ―E muito me fatiguei, procurando-Te fora de mim, quando Te en-
expressa pelo triunfo do seu princípio fundamental: o amor. contras em mim‖. (N. do T.)
214 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
or, em que muitos se sentem bem. É fatal que a evolução avan- va e solene pergunta: onde encontrar Deus? E se é verdade que
ce e produza um novo e mais civilizado tipo biológico humano. Deus está no íntimo do ser, então por que não buscá-Lo dentro
Ele talvez seja, como hoje, dado apenas por um em um milhão. de nós, e não fora? E como se pode alcançar Deus por essa via?
Amanhã estará na proporção de um por mil, depois será um em Tratemos agora de resolver o problema da procura de Deus, um
cem, e assim por diante, até que o homem novo seja maioria e dos mais árduos e importantes para o ser. Como podemos subir
se afirme. A natureza procede por graus e, antes de realizar o ao Pai que nos gerou e nos pormos em comunicação com Ele?
novo em grandes séries, experimenta-lhe os exemplares em Para bem compreender, reportemo-nos às primeiras origens,
poucos casos, explorando o terreno. conceito que depois desenvolveremos (Cap. XVII – ―Imanência
Quando os judeus quiseram lapidar Cristo – narra João e Transcendência‖).
(Cap. 10:33-34) – a acusação era de blasfêmia: ―(...) lapidamos- Deus, antes de realizar o ato criador, era o Uno-Todo, que
te por blasfêmia, porque sendo tu homem, fazes-te Deus. Jesus deveria ainda tudo tirar de si. Sobrevindo a criação dos espíri-
lhes replicou: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Vós sois tos, o Sistema desmorona, como já vimos, e com ele, de certa
Deuses?‖. Quando descobriremos a grandeza desta nossa natu- forma, desmorona também Deus, que, sendo o seu íntimo ani-
reza divina, que se filia a Deus? Quando os místicos falam de mador, não devia e, por amor, não podia separar-se dele, hou-
união, provam que a atingiram, ou pelo menos se avizinharam vesse o que houvesse. Por isso nasceu de Deus o aspecto de
dela. No íntimo de nosso ser, no espírito, há uma profundidade imanência, que o torna presente no Anti-Sistema ou sistema
de infinito, e é neste sentido que a evolução progressivamente desmoronado, como igualmente vimos. Mas, em Seu aspecto
nos desperta. É neste infinito que o nosso pequeno ―eu sou‖ transcendente, Ele está além de qualquer criação Sua e dos fa-
funde-se com: o ―Eu sou‖ do Todo. Quando descobriremos que tos a ela referentes. E a sua divisão nestes dois aspectos repre-
somos Deuses, que somos, mercê de nossa centelha originária, senta também a divisão do Todo no dualismo, que será depois a
hoje decaída nas trevas, formados da mesma Substância de que característica desse Todo, cindido daí por diante em Sistema e
Deus é formado? Como poderia deixar de sê-lo um filho do Anti-Sistema, entre Deus e Satanás, que nasceu então como an-
Pai? E que mais, além disto, poderia significar a imanência? tagonista. O ato de partir o pão na Eucaristia já vimos que signi-
O Evangelho é uma contínua luta para se fazer compreen- fica exatamente a divisão do Uno no dualismo, prelúdio da ima-
dido pelos seres inferiores. E os judeus pensavam, como tantos nência, pela qual o princípio fundamental e originário do amor
outros ainda hoje, em um Deus déspota, obedecido porque po- não pode subsistir a não ser como sacrifício. Eis a lógica conca-
de mais do que nós, fazendo-nos pagar a desobediência; um tenação que liga a divisão do pão à paixão de Cristo, cuja desci-
Deus de uma outra raça, que nos domina, nada tendo em co- da à Terra, em corpo humano, é um caso e prova fulgurante da
mum conosco. Há, contudo, um denominador comum, um imanência de Deus no Anti-Sistema, onde nos encontramos.
fundo comum, ainda que muitíssimo remoto, entre Deus Pai, Sem imanência, não poderia existir a paixão e a redenção maior,
Cristo e o homem: a natureza divina. A diferença apenas é que, que Deus realiza em todo o nosso universo, como já expusemos.
no ser humano, essa íntima Substância se aprofundou tanto na E a Eucaristia, para o caso particular de nossa humanidade e de
inconsciência, após a queda, que o ser dela nada mais sabe e Cristo, que a preside, representa justamente esta imanência. Isto
não consegue imaginar Deus, seu pai e amoroso amigo, senão quer dizer que Cristo não quis descer à Terra por uns poucos
antropomorficamente, como senhor feroz, qual ele seria se anos apenas, mas quis aí ficar permanentemente presente em es-
porventura viesse a tornar-se Deus. Para o ser, não é possível pírito, na Eucaristia, que expressa a imanência de Deus em nos-
formar de Deus uma imagem superior a que o grau de compre- sa humanidade, com finalidade regeneradora (redenção).
ensão atingido pela sua evolução pode permitir-lhe. Assim, es- E esta, que é a via da descida, representa também o canal
ta não é a psicologia dos judeus apenas, mas do tipo humano da subida, o fio de comunicação com a divindade. Que signifi-
involuído, que hoje impera. ca imanência, senão que Deus permaneceu no fundo de nosso
Quando imergimos o olhar na essência das coisas, vemos re- ser como espírito, para animá-lo e fazê-lo evolver, reconduzin-
velar-se-nos um mundo inteiramente diverso do que comumente do-o a Ele? O espírito, como já afirmamos, é o fundo comum
nos aparece na superfície, são esses novos continentes do espíri- entre Deus Pai, Cristo e o homem, e só através desse fundo
to que estamos descobrindo nestes volumes, traduzindo o que comum é possível a comunicação. Isto confirma ainda que
tão natural e evidente surge ao olho da intuição, em linguagem Deus realmente não pode ser alcançado senão quando desce-
racional e científica, reduzindo tudo à forma mental corrente, a mos conscientes à profundeza de nosso espírito. Veremos a se-
fim de nos tornarmos compreensíveis, mesmo por aqueles que guir o que significa ―conscientes‖.
não sabem enxergar senão com os olhos da razão. Encontramo- Ouçamos as confirmações que nos enviam as grandes almas
nos diante das mesmas dificuldades que na Terra encontrou o que souberam percorrer esse caminho de retorno. Diz-nos
Evangelho, na mesma luta por se fazer compreendido. O atual Agostinho: ―Est Deus superior summo, interior intimo meo 18‖.
homem comum está tão habituado a conceber qualquer manifes- E acrescenta, falando de Deus: ―Et multum laborav, quaerens
tação do ser somente na sua extrema forma exterior e sensória, Te extra me, et Tu habitas in me‖. Agostinho testemunha, por-
está tão convencido de que esta é a realidade e toda a realidade, tanto, que Deus está na intimidade do ser e que não deve ser
que quando deseja orar a Deus, projeta Dele uma imagem mate- procurado fora, mas sim dentro de nós. Paulo afirma a respeito
rial, a única que ele pode formar de Deus, e a adora. Ela não é de Deus: ―In ipso vivimus, movemur et sumus 19 (...)‖, S. Paulo
mentira consciente. É uma tradução da linguagem espiritual, que em Atenas – Atos, 17: 28.
lhe é incompreensível, em uma linguagem concreta, a ele aces- A Beata Ângela de Foligno ouviu Cristo lhe dizer: ―Eu sou
sível. Assim pode ver e tocar as imagens de Deus. Esta é uma mais íntimo de tua alma do que ela de ti mesma‖. Os místicos
ingênua necessidade de involuídos, que não conseguem pensar e cristãos, experimentados em semelhantes indagações, dizem
orar a não ser com o corpo, e com os sentidos. Mas, certamente, que: ―Deus é a nossa superessência‖, isto é, algo de tão íntimo
para quem sente Deus em Sua universal presença e potência, isto e profundo, a ponto de parecer a nossa própria sublimação.
pode parecer uma profanação, ainda quando, nos casos mais fe- Eis a palavra que nos traça a via de retorno: sublimação, isto
lizes, constitua um lampejo capaz de reavivar a centelha da arte. é, purificação e elevação de nossa personalidade. Esta é a estra-
◘◘◘ da que reconduz o ser ao ponto de partida, lá onde, após deter-
Assim foi que, da visão dos grandes problemas cósmicos,
chegamos à visão do problema espiritual do homem nas rela- 18
―Deus está nas supremas alturas e também no meu íntimo‖.
19
ções da sua alma com Deus. Agora podemos formular uma no- Nele vivemos, nos movemos e existimos. (N. do T.)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 215
minados períodos, a ascensão atingirá a meta, que é o ponto de transmitida, qualquer coisa que pensa, quer e reage depois, por
chegada. Então, o Deus imanente, que por amor se mostra pra- meio de outros órgãos. Eis o espírito, que se une a Deus. Ele
zerosamente no sacrifício, lado a lado com a criatura, com ela põe-se em comunicação com o mundo exterior por intermédio
carregando a cruz, terá refeito todo o caminho da descida. E, dos órgãos do corpo, os quais lhe transmitem sinais que ele in-
assim, o ciclo será completado, e o aspecto imanente de Deus terpreta e que lhe permitem registrar uma limitada gama de vi-
terá alcançado o aspecto transcendente de Deus, o imperfeito brações (som, luz, calor), necessárias à sua vida terrena, além
ter-se-á tornado perfeito e poderá fundir-se nele, o Uno ter-se-á das quais ele nada percebe do mundo exterior. O resto do uni-
reconstituído e a cisão do dualismo estará sanada. verso terá também ele a sua sensibilidade, pois que é igual-
É evidente que, hoje, o Todo está dividido em duas partes: o mente animado de vida, isto é, de espírito, de Deus imanente.
perfeito, que ficou como recordação no fundo do ―eu‖, como Mas qual seja ela, não o sabemos. Não podemos saber se a ma-
seu anelo e instinto fundamental; e o imperfeito, que evolve pa- téria, quem sabe de que maneira, sente a sua estrutura atômica;
ra a sua perfeição. Ora, se o imperfeito avança sempre para o se um cristal percebe a sua vibração molecular; a célula, o seu
perfeito, na progressão para o infinito, ele deverá reduzir as dis- metabolismo; uma planta, o mundo exterior. Não podemos pe-
tâncias a quantidades cada vez mais infinitesimais, até sobre- netrar nessas formas do ser tão distanciadas de nós, mas ape-
por-se e coincidir com o perfeito. Isto porque, se Deus, de um nas nas biologicamente mais semelhantes e próximas a nós.
certo modo, desmoronou no Seu aspecto imanente, Ele perma- Ora, a evolução é uma espiritualização, isto é, um despertar
neceu perfeito, sem desmoronar, em seu aspecto transcendente. para a vida do espírito, que é interior; é um aguçamento, uma
Este é o ponto de chegada que aguarda o imperfeito. Este é o precisão, um aperfeiçoamento da sensibilização. Isto é cami-
eixo íntegro de todo o Sistema, aquele que deve salvá-lo, mes- nhar para a vida, sentindo que se vive cada vez mais intensa-
mo no seu momento negativo de Anti-Sistema. mente. Significa uma acentuação da vida, isto é, uma revelação
Como se vê, o problema da ascensão espiritual ou sublima- crescente do espírito. São qualidades que não podem nascer do
ção tem suas raízes no cosmo e não é solúvel a não ser em fun- nada, pois se constituem apenas em despertar no consciente o
ção do grande problema do ser. Há, pois, um grande fio condu- que estava adormentado no inconsciente, qualidades que repre-
tor para a ascensão, dado pela imanência de Deus, que deriva sentam um progressivo revelar-se de capacidade sensitiva, que
da Sua transcendência, o imperfeito que deriva do perfeito. Ora, forma a divina essência do espírito. Este, despertando, põe-se
este último termo do ciclo, no qual o dualismo é sanado e as em união com Deus. Certamente, entendemos aqui sensibiliza-
duas metades do Uno se reúnem, está no fundo de nós mesmos, ção no sentido lato, e não só sensório, dado que é possível re-
e é nesta direção que devemos caminhar, se quisermos atingi- ceber novas impressões não só do mundo exterior, mas também
lo. E como se deve proceder para caminhar em direção à pro- do espiritual e sobretudo do moral, que impõem normas de vida
fundeza de nós mesmos? Isto significa o que já havíamos dito cada vez mais aderentes à Lei de Deus.
antes, em outras palavras, ou seja, ―descer conscientes na pro- É por intermédio deste processo que conseguimos sentir em
fundeza de nosso espírito‖. Palavras igualmente enigmáticas, nós e nas coisas a presença de Deus. Compreendida de manei-
que não sabemos como traduzir no mundo da ilusão, que cha- ras extremamente diversas no contingente, esta é a essência e o
mamos realidade! Trata-se de passar de uma linguagem verda- último significado da evolução: despertar em nós o Deus ima-
deira, onde tudo se faz com o espírito – a única realidade – para nente, oculto na profundeza do espírito; tornar de novo consci-
uma linguagem falsa, onde tudo se faz com o corpo e com os ente e vívido aquilo que, tendo sido invertido pela queda, tor-
seus sentidos, que criam a ilusão. O leitor, todavia, vê como es- nou-se inconsciente e morto. Todo o trabalho da vida, o sucesso
tamos assediando e envolvendo a fortaleza em que o problema ou insucesso, a alegria ou a dor, através de infinitas provas, tu-
se entrincheira, até poder finalmente penetrar nela. Primeiro o do se reduz a isto. Chama-se catarse ou sublimação, sensibili-
encaramos do alto das posições máximas do ser. Abordamo-lo zação sensória, psíquica ou moral, maceração ou maturação
agora de baixo, partindo de nosso corpo físico. evolutiva, superação da treva ou da ignorância pela luz ou co-
A primeira qualidade do existir, que chamamos de vida, é o nhecimento. Trata-se sempre do mesmo fenômeno, de infinitas
sentir. A insensibilidade é característica da morte, ausência do formas. A hierarquia dos seres é dada pelo grau deste despertar,
espírito. A sensibilidade é atributo do espírito, que é o existir. pois é ele que marca o seu valor, representado pela capacidade
Espírito significa o que é. Onde falta o espírito, não há exis- conseguida de vibrar; é dada pelo grau de consciência alcança-
tência, porque Deus é espírito, isto é, a plenitude do ser. A do, que os avizinha mais ou menos de Deus.
sensibilidade, ou seja, a aptidão de perceber, como nós a pos- As almas vão, assim, lentamente despertando, compelidas
suímos, é qualidade exclusiva da alma. Uma vez que esta se pela Lei, que expressa a imanência de Deus entre nós. Os invo-
destaca do corpo, este não mais sente, ainda que os seus órgãos luídos não passam de pobres adormecidos. Entretanto Deus es-
estejam intactos. O místico, arrebatado em êxtase, não percebe tá tão próximo, que realmente é o ―interior intimo meo‖! Co-
mais através dos sentidos, porque a alma está ausente deles. mo fazer, então, isto ser compreendido por seres que O sen-
Quando estamos distraídos, a mensagem sensória chega regu- tem, ao invés, tão distante, que chegam mesmo ao ateísmo?
larmente à alma, mas esta não a registrou e, assim, vendo, não Em que consiste essa proximidade e distância? A verdade é
enxergamos e, escutando, não ouvimos. Sabemos que os nos- que esta sensação possui um sentido de interioridade espiritual,
sos vários órgãos sensoriais não são mais do que aparelhos de e não espacial. Não é em quilômetros, como na Terra, ou em
captação e transmissão de ondas, nada além. Isto implica que anos-luz, como para as estrelas, que se pode medir essas dis-
existe um ponto de chegada da transmissão, ao qual estão liga- tâncias. O espírito não vive na dimensão espaço, mesmo que
dos esses aparelhos. O sistema central (cerebral) para o qual venha a manifestar-se nele.
converge o periférico, é apenas um órgão de seleção e coorde- Para compreender é preciso reportar-se à natureza do espí-
nação, ainda situado na dimensão espacial, enquanto o ―eu‖ rito, que não é matéria espacial, mas um imponderável, só de-
possui a faculdade de juízo e de síntese, próprias de outras di- finível, portanto, com outras mensurações. A presença de Deus
mensões, a que não pertencem nem o sistema central nem o no universo é dada pelo estado cinético, que vimos ser a nova
periférico. Trata-se de um ―eu‖, princípio unitário de todo o posição que Deus assume do absoluto imóvel, projetando-se na
organismo, que, como tal, permanece inalterável, não obstante gênese. A vida do universo se manifesta como estado mais ou
o crescimento e envelhecimento deste, que está sujeito a um menos complexo e evoluído, mas sempre com esta íntima na-
contínuo transformismo. Nesse princípio está o abstrato, o su- tureza. A vida do espírito é representada, então, por um estado
persensório, algo de qualitativamente diverso da vibração vibratório. E a vibração, pois, mais ou menos complexa e evo-
216 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
luída, é também a medida que o define. Ora, a proximidade ou Assim, tudo o que existe, inclusive os homens, escalona-se
distância entre uma alma e Deus é dada pelo grau de afinidade por degraus ao longo da escala evolutiva, representando a re-
de vibração atingido por ela em relação a Ele. Em outros ter- construção dos vários planos do sistema desmoronado. A escala
mos, a vizinhança é uma sintonização, uma vibração do mes- do que conhecemos vai da matéria ao super-homem. E tudo es-
mo diapasão, que, para os místicos, termina na unificação. Ora, tá a caminho. O termo fixo de comparação, o absoluto que, na
o involuído não vibra de modo algum com a vibração do divi- relatividade do Todo, permite estabelecer as distâncias é Deus.
no, isto é, não está fundido na Lei com toda a alma e, se vibrar, No mineral, o divino está tão profundamente sepultado em es-
vibra ignorando Deus, frequentemente contra Ele. Eis no que tado de inconsciência, que não se pode, de maneira nenhuma,
consiste a imensa distância. falar de consciência e espírito, pois que eles jazem como que
Daí os místicos sentirem a sua personalidade desfazer-se em anulados. Sem liberdade de escolha, nem luz de compreensão,
Deus, onde se anulam como egocentrismo separado, porque o ser aí se movimenta no determinismo que a Lei, completa-
vêm a assumir, cada vez mais, a vibração do Centro. E, assim, mente ignorada, impõe. Todavia a individualidade atômica,
quanto maior o progresso neste sentido, tanto mais difícil se molecular, química, planetária ou galáctica tem as suas caracte-
torna distinguir a si como ―eu‖, mas, em compensação, o ―eu‖ rísticas inequívocas, que lhe conferem como que uma persona-
se sente viver mais como Deus, isto é, como vastidão, potência lidade. E esta exprime uma estrutura tão complexa, que o ho-
e unidade. Por isso Paulo pôde dizer: ―Não sou eu que vivo, mem ainda não a decifrou. Há, pois, aí também, um grande
mas é Cristo que vive em mim‖20. É assim que a divindade pode pensamento, que não pode deixar de ser o de Deus imanente,
despertar em nós. Eis os resultados da evolução. E, quanto mais ainda que, por certo, essa individualidade o ignore por comple-
ela avança, tanto mais o egocentrismo separatista do ―eu‖, filho to. Não podemos admitir que o átomo saiba calcular a sua velo-
da fragmentação do Uno, atenua-se, irmanando-se em unidades cidade interior e trajetória. Ele é ligado a uma lei de ferro, da
coletivas cada vez maiores, e tanto mais se reconstitui a grande qual não tem consciência. Estamos nos antípodas do centro-
harmonia unitária do Sistema, rompida na queda. Deus, onde existe a plenitude da liberdade e da consciência. O
Eis o que significa o despertar de Deus dentro de nós. A ser deve reconquistar essa plenitude, que, neste caso extremo,
vibração Dele, estado cinético da vida, mantém-se em inativi- inverteu-se em uma carência completa. Evolvendo, ele deve re-
dade no involuído. Neste, a verdadeira vida está apenas latente, construir-se. Assim, sobe-se gradativamente. Na progressiva
em estado de inércia, à espera de desenvolvimento, como um conquista de mobilidade e de sensibilidade há uma libertação.
instrumento musical cujas cordas estão mudas. A vida do invo- A consciência, qualidade divina, revela-se cada vez mais, por
luído é uma vida animal, inferior, que a cada passo é contida graus, até ao plano do homem e do super-homem. Contudo ve-
pela morte e pela dor. Não é a vida verdadeira. Trata-se aqui mos que a inteligência de Deus existe mesmo nos graus ínfimos
de um despertar de consciência, que é justamente o estado ci- do ser. A diferença é que as formas, quanto mais ascendem na
nético, qualidade do espírito; trata-se de entrar cada vez mais evolução, tanto mais vêm a se tornar partícipes dessa inteligên-
nesse estado cinético, o que significa desmaterializar-se (sair cia, enquanto, nos níveis inferiores, embora ela exista dentro
da inércia da matéria), para espiritualizar-se (entrar no dina- dele, o ser encontra-se excluído dela. E o que mais significa en-
mismo do espírito). E retornar ao espírito significa retornar ao contrar esta inteligência senão tornar-se consciente, isto é, des-
divino, nosso estado originário, volvendo a ser consciente, vi- pertar no ser o Deus que, com o desmoronamento, permaneceu
vo e vibrante até na profundeza, onde está Deus. Eis qual é a nele imanente, mas sepultado na inconsciência?
via para reencontrar Deus. Quando o homem tiver se tornado É grave e de transcendental importância a conclusão deste
consciente da presença de Deus em si, o caminho da evolução capítulo, especialmente para quem está em condições de senti-lo
estará completado, o edifício desmoronado estará reconstruído, inteiramente, porque atingiu por si mesmo, através da própria
a natureza rebelde terá volvido ao Criador. maturação, a visão desta consciência. Constitui uma descoberta
O homem comum está em poder do jogo das suas ilusórias revolucionária chegar a saber que, na profundidade do próprio
sensações de superfície, ignorando que maravilhosos tesouros ―eu‖, possui-se o divino e que Deus, ignorado pelo animal e ne-
repousam inexplorados na intimidade do seu ser. Mas aqui estão gado pelo ignorante, está tão junto de nós. É deveras emocio-
descritos de forma racional as profundas mutações ocorridas na nante saber-se eterno cidadão do universo! É uma conclusão de
alma, quando um homem se torna santo. Poucos as reparam, incomensurável alcance, mas, por isso mesmo, perigosa, se não
porque a maioria vive de sensações das quais escapam tais inte- for encarada sabiamente, motivo pelo qual não pode ser dita in-
rioridades. Estes não estão em nível de compreender e admitir, discriminadamente a todos e manuseada pelo involuído. Quem
em absoluto, uma distância qualitativa – evolutiva – de tal natu- não estiver preparado, não pode receber a luz da verdade, tão
reza de tipo de vibração, e permanecem a uma imensa distância excessivamente ofuscante. A verdade deve ser dada proporcio-
de algo que, no entanto, nos é tão intimo. É inútil, pois, falar de nalmente a quem a recebe. Tais conceitos, postos na mente do
uma incompreensível imanência de Deus em todas as coisas e, involuído, são transviados e podem ser entendidos às avessas em
sobretudo, na profundidade de nossa alma. Quem não possui relação à sua posição, de modo que, ao invés de estimularem
meios para registrar uma vibração acredita que ela seja inexis- uma anulação do próprio egocentrismo, na fusão com Deus, po-
tente e a nega. Essa incompreensão, porém, explica-se facilmen- dem levá-lo a exalçar-se, erigindo-se em anti-Deus. A primeira
te. Da periferia, onde se está situado em posição invertida, é di- rebelião está sempre pronta a explodir de novo no Anti-Sistema.
fícil mover-se à procura de Deus. A ciência, em última análise, O indivíduo pode, assim, ser levado a crer-se Deus. Esta inter-
nada mais faz do que tentar essa procura. Ela não o sabe, embe- pretação, embora satânica, inversa da conclusão verdadeira, será
vecida pelas habituais miragens, mas, na realidade, é esse o seu quase certa. É por esta razão que o conhecimento de um fato de
verdadeiro e substancial objetivo. Na periferia, todavia, em meio tal alcance, como é a presença do divino em nós, é vedado à
a um sistema fragmentado em uma infinita poeira fenomênica, maioria, enquanto não houver alcançado o grau de evolução ne-
ela se perde no particular, condenada ainda à ausência de uma cessário. Ai de quem entender em sentido inverso a presença de
síntese total. Para voltar a encontrar Deus, seria necessário re- Deus em nós, porque, então, tudo isto, ao invés de servir para a
constituir no Uno essa infinita pulverização do ser, o que é im- ascensão, contribuirá para uma descida ainda maior. O místico
possível. Não é, pois, à ciência que podemos pedir tais resulta- jamais se ensoberba com essa descoberta; pelo contrário, vê nela
dos. São necessárias outras vias para que isto se dê. um motivo a mais de obediência e humildade. É necessário fazer
Deus crescer em si, mas não pelo caminho oposto da exaltação
20
Gálatas, 2:20. (N. do T.) do ―eu‖. Deus está em nós como princípio de amor, para que fa-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 217
çamos Dele o nosso centro, e não para que façamos de nós um to o homem, evoluindo, não passar a uma forma de atividade
centro contra Ele. Caso contrário, Deus se negará cada vez mais, biologicamente construtiva e superior. A Lei nos dá sempre,
em lugar de dar-se, e o ser precipitar-se-á ao invés de subir. segundo o nosso grau de evolução, aquilo que merecemos. Ora,
Estamos na Terra, em um reino periférico do Anti-Sistema, o evoluído, biologicamente mais avançado, não pode manifes-
onde é comum subverter a verdade no erro. Assim é fácil, neste tar a sua vida espiritual da forma que a maioria criou para si. À
reino, conferir à nossa fé e intuição da imanência de Deus uma parte a má fé de pseudos super-homens que, presumindo-se
interpretação de panteísmo impessoal, confundindo-o com o iluminados, pretendem evadir-se das formas comuns, mas inca-
unilateral, que exclui de Deus o aspecto pessoal e transcenden- pazes de qualquer vida espiritual no seu íntimo, a discrepância
te. Esta foi efetivamente a interpretação que emprestaram aos acima referida pode nascer. Quanto mais se avança, porém, tan-
volumes precedentes, especialmente em A Grande Síntese, da to mais se penetra nas realidades espirituais e tanto mais perde
qual este e os demais tomos não são mais do que o desenvolvi- importância a forma e ganha a substancial essência. Quanto
mento e a explicação. Ora, Deus estar em nós, presente em to- mais se progride, tanto melhor se compreende, mais tolerantes
dos os seres, pois sem Ele nada pode existir, é uma certeza, nos tornamos para os irmãos menores, que são incapazes de
uma realidade que jamais poderá se negada por quem a atingir conceber. Por isso jamais há luta nestes casos, ainda que seja só
por intuição. Depois, se corretamente interpretada, ela não leva polêmica. Pelo contrário, surge, no pleno respeito às formas,
a uma soberba deificação do nosso eu ou da natureza, mas de- mesmo quando se sabe que estas só servem para os seres menos
termina a fusão de nossa alma e do criado com o Criador aí evoluídos, uma nova vida espiritual, que lhes dá como conteúdo
imanente, sem o que tudo estaria órfão. Os conceitos acima ex- uma nova substância, que as vivifica, enchendo aquele vazio
postos não levantam o ―eu‖ contra Deus, mas tendem a diminu- substancial que elas geralmente revelam na alma de quem não
ir o ―eu‖, para deixar que Deus desperte nele e viva nele em lu- sabe pensar, sentir e manifestar-se a não ser com os sentidos e
gar do ―eu‖ separado, filho do desmoronamento. Não é mais o com o corpo. Surge, em outras palavras, o culto interior, dirigi-
―eu‖ rebelde que agora predomina, mas o ―eu‖ em sacrifício, do também no rito ao espírito, fugindo às manifestações religi-
aos pés da Lei. ―Os últimos serão os primeiros‖, isto é, quem osas rumorosas e profanas, que mais atraem as multidões. O
quiser ser o primeiro no Sistema deve ser o último no Anti- culto interior é um estado de alma que pode subsistir em qual-
Sistema, ou seja, servo do próximo, não em soberba, mas em quer forma, mesmo nas comuns, mas que não se exaure em
obediência e em humildade. Desta maneira não se aumenta a manifestações físicas, vocais ou impressões sensoriais e tende a
cisão, mas a unificação; não se caminha para o triunfo do ―eu‖, atingir no fundo do espírito a sensação da presença de Deus.
mas de Deus. É evidente que a via acima traçada não leva a Sa- Ocorre então um estranho fato: caem os absolutismos, a in-
tanás, mas sim conduz a Deus. transigência, a convicção de que o próprio ponto de vista possa
É assim evidente também o que diz o Evangelho sobre a ser o único para avaliar o infinito. Assim, da verdade se obtém
necessidade de se decidir na escolha, porque não é possível um conceito novo, no qual ela é algo de não codificado nem
servir a dois senhores ao mesmo tempo, isto é, prosperar con- codificável, mas infinito, para cuja aproximação é imperioso
comitantemente no Sistema e no Anti-Sistema. Se quisermos trabalhar e sofrer em cada dia. Concebe-se, desta maneira, a
realmente vencer, é de nosso interesse seguir o primeiro, e não verdade não mais como um cômodo assento em que nos refes-
o segundo. É natural, pois, que Cristo e o mundo sejam inexo- telamos para repousar, como o fizeram os nossos ancestrais,
ravelmente inimigos, mas também que Cristo, Senhor do Sis- mas como uma íngreme ladeira que importa galgar com a pró-
tema, vença o Anti-Sistema. Cristo não sofreu porque fosse pria boa vontade. Mas não é só, pois, ganhando em substância,
fraco ou vencido, como acreditou a estupidez dos seus algozes, podemos melhor compreender o valor relativo e transitório das
mas em razão de livre e deliberado sacrifício de amor. A pai- formas e nelas enxergar cada vez menos uma razão para dissen-
xão de Cristo situa-se logicamente no plano de salvação do sões ou antagonismo, isto é, para aquela cisão que representa o
universo, no plano de reconstrução do Sistema com o Anti- desmoronamento do Sistema e que justamente vai sendo absor-
Sistema em que ele desmoronou. vida na unidade. O evoluído, de fato, é um ser que subiu mais
Senhor deste plano, desdenhando os pobres meios humanos em direção a Deus, que é unidade, uma ascensão que não pode,
de ataque e defesa, Cristo, o cordeiro pacífico e inerme, ven- pois, deixar de implicar unificação.
ceu o mundo. Essa ascensão inclui naturalmente também uma conquista
em liberdade. Está na lei do processo. É liberdade que ao invo-
XVI. A PRECE luído pode parecer anarquia espiritual, mas que, contrariamen-
te, acarreta uma disciplina mais severa, não mais exterior, e sim
É natural que, para quem chegou à grande descoberta do interior, onde ela é mais rígida e sentida. O homem comum po-
―Tu habitas in me‖21, a vida espiritual se transforme. Nos vo- de, assim, muito bem acreditar ter cumprido todos os deveres
lumes anteriores, temos contraposto, nos campos mais díspa- espirituais, seguindo algumas práticas e observando uns tantos
res, as manifestações do tipo biológico evoluído às do involuí- preceitos, após o que sente-se livre para retornar aos seus ins-
do. Observemos agora como se conduz este mais adiantado ser tintos mais ou menos animalescos. O evoluído, ao contrário,
humano, ao qual pertence o futuro, nas suas relações para com sente sempre a presença de Deus e deve viver noite e dia em fa-
Deus. O nosso mundo e a sua ciência não se ocupam, embora ce de tal presença, que ele sabe que significa viver em contínuo
seja ele o problema central do ser, da maneira como pôr-se em controle de si mesmo e no domínio da própria natureza animal
contato com a fonte suprema e atingir os mananciais da vida. inferior. Ele pode, pois, assumir liberdades formais, que não
Podemos agora indagar se as formas de manifestação espiritual devem ser concedidas ao tipo comum, porque este, não pos-
praticadas pelas grandes massas são adaptadas a quem sente suindo na própria consciência o sentido da Lei, faria mau uso
Deus como acima descrevemos. delas. Quem possui esse sentido conhece as tremendas conse-
É evidente que, ligando-se a vida espiritual ao infinito e quências decorrentes de qualquer erro, porque, se o pode velar
sendo, pois, susceptível de evolução, a grande maioria tenha aos homens, não é possível ocultá-lo de Deus; sabe que é inútil
feito dela um tipo de expressão que indica o seu nível de de- procurar enganá-Lo com ardis ou escapatórias; sabe que é livre,
senvolvimento e se lhe adapte. Assim é para todas as coisas. por isso responsável, e que é impossível furtar-se às justas san-
Por exemplo, a guerra, assassínio legalizado, subsistirá enquan- ções. Se é verdade que ao indivíduo mais evoluído podem ser
permitidas mais liberdades formais, assim é porque também
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―Tu moras em mim‖. (N. do T.) menos liberdades substanciais ele se permite. Evidentemente, o
218 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
primitivo, que não sente as forças espirituais, deve ser enqua- evolução conduz a substanciar cada vez mais o culto exterior,
drado em normas materiais, sua única regra de vida, pois que as que é veste, com o culto interior, que é alma. Tal é o futuro do
puramente espirituais lhe superam as suas qualidades percepti- homem e, por conseguinte, também das suas religiões, até que,
vas. Na evolução da vida espiritual sobrevém a inversão que no indivíduo espiritualizado, preponderará o culto interior. A
comprovamos na ascensão da matéria para o espírito, ou seja, evolução leva cada vez mais a sentir Deus não apenas trans-
uma desmaterialização, mercê da qual, quanto mais se conquis- cendente mas também imanente, até que o indivíduo espiritua-
ta em substância, vale dizer, em verdadeira espiritualidade, tan- lizado sinta a presença Dele não somente em si, mas em torno
to mais perde importância a forma. Tanto mais se tem necessi- de si. Então se descobrirá que Deus está em toda parte, que o
dade da forma, quanto menos se conquistou e se possui de Seu templo é tanto o universo como a alma, e que o Seu altar
substância, isto é, de verdadeira espiritualidade. pode ser o coração do homem.
A razão pela qual as religiões não podem e não devem con- É certo que o tipo do futuro buscará e orará a Deus de outra
ceder liberdade, mas sim exigir observância de disciplina, ainda maneira, obedecendo-Lhe com mais amor e convicção. Quem
que formal, está no fato de que a maioria é involuída e, para tal sente o Deus imanente sabe que Ele está sempre presente em to-
tipo, a forma é tudo. Suprimida a expressão material, única ca- das as partes, e não só nos templos, por conseguinte sabe que
pacidade de manifestação, nada mais fica. Todo ato do involuí- não é possível evadir-se à Sua Lei. A vida, assim, entranhada do
do é físico, mesmo tendo um conteúdo moral, que, sem um re- divino em cada ato e momento, transforma-se em algo diferente.
vestimento concreto, é inconcebível para ele. Por isto são ne- Como guia, está sempre presente no íntimo e afasta os perigos
cessárias nas religiões as representações sensórias, até mesmo do livre exame. O porvir está na interioridade, no desenvolvi-
as mais bombásticas, introduzidas pelo rito. As massas exigem- mento do ―eu‖. Hoje é necessário que os conceitos sejam encap-
nas, porque realmente necessitam delas para compreender al- sulados no invólucro protetor da forma, porque, sendo por natu-
guma coisa e encontrar nelas uma forma de expressar o seu sen- reza evanescentes, eles assim ficarão de algum modo fixados em
timento religioso. O homem normal não está ainda maduro para nosso mundo. Muitas vezes, porém, nem isto basta, porque a
o culto interior, feito sem atos sensoriais e físicos, que, para ele, evanescente e animadora espiritualidade, somente pela qual se
poderia desembocar na anarquia do livre exame. Se, todavia, justifica a forma, evapora-se e se esvai. E quando não arde no
não é possível conceder tais liberdades, ninguém sofre por isso, íntimo essa chama que dá vida às coisas, a forma se torna um
já que o espírito é livre por natureza, pois ninguém pode inter- cadáver. Então, novas formas de espiritualidade devem baixar
ferir nas relações diretas entre a alma e Deus. Ninguém pode, do céu, porque as religiões se fizeram necrópoles.
portanto, impedir que o indivíduo, evolvendo, possa sentir e A potência da vida interior dos santos nos mostra que a es-
praticar, ao lado do culto exterior, também e sempre mais o cul- sência da religiosidade está no espírito, na vida interior.
to interior, dando assim uma mais potente substância à forma. Quando o homem, evolvendo, atingir e fizer sua essa essên-
Quem realmente sente Deus, O vê e encontra por toda parte, cia, então cairão todas as divergências que dividem, e todas as
mesmo no contingente cotidiano. Quem não sente Deus, se não diferenças de superfície encontrarão a unidade no profundo.
for enquadrado em normas estabelecidas, não sabe o que fazer, Neste, que é o esperado Reino dos Céus, Deus residirá nas
pois não encontrou nela, com o despertar da consciência, o sen- almas e se manifestará nas obras do homem, que cumprirá
tido da Lei. É difícil estabelecer a medida das concessões, e es- consciente e espontaneamente a Lei. Também as religiões
ta deveria ser diferente de alma para alma, porque dois são os evolvem, pois as relações entre a alma e Deus, que elas ex-
escolhos em que é fácil colidir: de um lado, o materialismo re- primem, aperfeiçoam-se. Se bem que a cristalização do farisa-
ligioso e, do outro, a anarquia do livre exame. No primeiro caso ísmo seja a última fase do seu ciclo vital, o hálito divino sem-
se cai no farisaísmo, formalismo e politeísmo, ou até mesmo no pre sopra da profundeza dos espíritos, onde ele está, para rea-
íntimo ateísmo. No segundo, cai-se na desordem espiritual, no cender a sagrada chama, sem a qual tudo é cadáver. Assim, se
orgulho e na revolta. A regra é que uma disciplina é necessária as religiões passam, a ―religião‖ jamais passará.
para tudo, mesmo para as atividades espirituais. Dado isto, não ◘◘◘
é lícito libertar-se de uma forma de disciplina, senão no caso de Que é a prece? Que significa orar? Em que se tornará este
se ter conseguido uma outra mais avançada e poderosa, como é ato para atingir a vida interior? Orar significa colocar-se nu-
a interior. O primitivo não pode ser deixado em liberdade, por- ma atitude íntima, em que a alma busca comunicar-se com
que ainda não sabe dirigir-se por si, sendo perigoso conceder- Deus. Então ela, dirigindo-se a Ele, como uma planta para o
lhe qualquer autonomia espiritual. Por liberdade ele não sabe sol, que lhe dá a vida, inclina-se da periferia para o Centro. A
entender senão a sujeição aos seus baixos instintos animais. Ele prece é, pois, a posição espiritual orientada neste sentido,
não sabe conceber senão um Deus tirano, a que deve obedecer aquela que o ―eu‖ humano assume quando procura pôr-se em
apenas pelo temor das sanções, um Deus dotado dos sentimen- contato com o ―Eu‖ do universo, com a infinita consciência
tos humanos de domínio e vingança. A repugnância de tantos cósmica do Todo. E vimos que ela não é exterior, mas íntima
espíritos em admitir a imanência de Deus e a tendência em con- às coisas e a nós. Depois de tudo quanto dissemos, podemos
cebê-Lo somente em Seu aspecto pessoal e transcendente, deri- compreender que a verdadeira prece não se dirige ao exterior,
va desta forma mental, em que a imanência representa uma mas ao nosso interior. Se ela se dirige para o exterior, o faz
pulverização ilimitada no nada, uma incompreensível presença por concessão à materialidade humana, que tem necessidade
onde os sentidos não veem nem tocam nada mais do que maté- desta via mais longa, mas, para a alma que evolui, vai se tor-
ria bruta. E tanto mais se assemelha a absurdo a imanência na nando irreal como ilusão psicológica.
Terra, onde não se encontram senão seres que são constituídos A prece é um anelo da alma, instintivamente ansiosa por re-
por uma individualidade pessoal. encontrar Deus. Corresponde a uma necessidade de evasão e de
Assim, por mais que as religiões ditem normas iguais para ascensão, é a ânsia de luz que o cego busca distendendo os bra-
todos e todos possam igualar-se na forma, as profundas e subs- ços, é o anseio pela felicidade e conhecimento perdidos. A prece
tanciais diferenças existentes de alma para alma não podem se faz grito de invocação no perigo e na dor, clamando pela sal-
impedir que cada qual sinta e intimamente viva a religião de vação; transmuda-se no abandono entre os braços pródigos da
maneira diversa, segundo sua natureza, que vai do carola ao Lei, que nos dá paz e repouso; explode no pranto de nossas cul-
santo. A igualdade exterior cobre variadíssimas gamas de mo- pas, que mais ainda nos arredam de Deus, ou modula-se no can-
dos de sentir. Quem tem os pulmões conformados para o meio to de gratidão pelo amor e alegria recebidos. Ela se plasma e se
material, não pode respirar na atmosfera rarefeita dos anjos. A configura em cada ato de nossa vida, em cada atitude de nosso
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 219
espírito. Então, cada qual a seu modo, nós confessamos todo o Então resta um só sentimento: amar. Perdidamente se ama
nosso ―eu‖ de pobres criaturas perdidas no abismo da queda, no a Deus, em si mesmo e em suas criaturas, que são sua expres-
turbilhão da vida infinita, aprisionados no mistério; confessamo- são. Esta pequena palavra, Deus, que tantos pronunciam com
nos quais somos, como podemos, com o que somos, ao único indiferença, mesclando-a a tudo, e que tantos chegam mesmo a
que tudo sabe e que pode, por conseguinte, tudo compreender. insultar e blasfemar, esta pequena palavra revela tão podero-
Os modos de orar são muitos e diversos, ainda que a forma samente o seu profundo significado às almas sensibilizadas pe-
que os reveste possa ser igual para todos, porque cada ser está la evolução, que as convulsiona, como fazem a tempestade e o
diante do Absoluto apenas como um pobre relativo, que não sa- turbilhão para a pobre árvore só e indefesa. E a alma está só e
be além do seu ―eu‖ particular e não sabe, pois, dizer a Deus o indefesa porque Deus é o mais forte. E, na luta entre o ―eu‖
que ele sente e é. A mente do pensador penetrará o infinito, a da egoísta, que desejaria defender-se na forma, isolando-se, e
pobre velhinha pedirá graça para sua casinhola e para o netinho. Deus, que quer trazer para si a criatura, vence o mais forte.
Apesar disso, não obstante a acentuada diferença de substância Forte de bondade infinita, que deseja apenas desfazer a onero-
espiritual, velada sob as mesmas fórmulas da regra, cada oração sa bainha isolante, a prisão do ―eu‖, para tomá-lo por comple-
possui sempre um fundo inconfundível, comum a todos: o to, permeá-lo e saturá-lo com a divina linfa vital do seu amor.
mesmo anelo para com o divino. Seja qual for a posição do in- É o bem que quer triunfar e que, para benefício da criatura, usa
divíduo em face de Deus, ela é sempre uma aspiração, débil e da violência, sacode-a e a convulsiona, a fim de que o divino,
indistinta ou poderosa e consciente, para o infinito. Ela repre- oculto nas suas profundezas, desperte nela sob a forma de
senta sempre um apelo à presença de Deus e um brado da pro- consciência, e assim a alma reencontre Deus.
fundeza para reconduzir o ―eu‖, além de todas as ilusões da A tão potentes contatos com Deus, a prece abre a porta para
forma, a esta grande realidade do espírito. as almas amadurecidas; uma prece que se torna qualquer coisa
Deus! que palavra incomensurável! Como é oceânica, como de estranho para o homem comum. Ele não sabe, de fato, con-
é íntima, como é viva! Ela tenta a síntese do inexprimível e nos ceber este ato nesta nova forma, que oferece mais do que pede;
deixa estupefatos e embevecidos. Como é pejada de mistério! E que ouve mais do que fala; que é um estado de abandono e de
no mistério há tudo; há o terror das sanções que seguem o mal recepção mais do que uma atitude de conquista de bens futu-
praticado; há a alegria do bem praticado, que nos dá paz ao co- ros; um estado de expansão e de desfazimento do ―eu‖ em
ração; há toda a nossa infinita ignorância, que não nos espanta Deus mais do que de egocentrismo que pretende tomar Deus
porque a ignoramos; há o enigma do nosso destino, quase sem- para si. Como se vê, trata-se de atitudes opostas, porque, ao se
pre mais pejado de dores do que de alegrias; e há a grande tor- passar para um plano superior de vida, tem-se uma verdadeira
rente de muitos destinos, todos em marcha para Deus. inversão de valores. Não se pode pretender que o homem co-
Ora-se de modos diversos e por muitas coisas diferentes. Há mum ore assim. No entanto esta é a verdadeira prece, a que
quem não saiba fazê-lo senão com os lábios, desfiando uma lon- nos põe em contato com Deus, a única em que se ouve a res-
ga mecânica de repetições, apenas para conseguir formular um posta e com que se pode estabelecer um colóquio. A comum é
pouco de pensamento; há quem não o consiga senão mascarando um monólogo, uma exposição de desejos, sem conhecimento
o vazio interior com o manual de preces formais; há quem assis- de confirmação. Ela nos deixa a sensação de estarmos sós, di-
ta ao profundo simbolismo do rito como a uma representação ante do mistério, que emudece. Deus permanece então um
cujo significado não apreende, mas do qual tem, contudo, neces- enigma, o inatingível transcendente, que não é imanente entre
sidade para concentrar a atenção e localizar o pensamento que nós. Assim se explica, como acima dissemos, a repugnância de
vagueia pelas imagens do templo; há quem só saiba orar por su- algumas almas em admitir a imanência.
as pequenas coisas: a família, os negócios, a saúde, rogando al- Dessa oração superior, feita com o espírito, e não com o
gumas alegrias e alívio de pequenos males. São insignificantes corpo, nos fala o Evangelho (Mateus, 6: 5-8): ―Quando orardes,
coisas terrenas, e nada além. Certamente, o olhar de Deus é bas- não sejais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas si-
tante poderoso para, em visão microscópica, tudo observar e nagogas e nos cantos das praças, para serem notados pelos ho-
prover. Mas também há quem não saiba, não consiga orar assim, mens. Digo-vos, em verdade, que já receberam a sua recom-
não podendo pronunciar a palavra Deus sem sentir-se invadido pensa. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta
de uma sagrada perturbação. De quantos modos ela pode ser e ora a teu Pai em secreto, e o teu Pai, que vê em secreto, te da-
pronunciada! Mas há também os que a apoucam tanto, que po- rá a recompensa. Orando, não multipliques as palavras como
dem misturá-la em todas as minudências contingentes, de igual fazem os gentios, que deveras pensam extravasar virtudes pela
para igual, como se todas fossem da mesma grandeza. sua loquacidade. Não vos façais, portanto, semelhantes a eles,
À medida que a alma evolve, a ideia de Deus se amplia e se pois que o vosso Pai sabe o que vos é necessário, mesmo antes
potencia na multiplicação ao infinito de todos os grandes atribu- que lhos peçais‖. Palavras estas que nos apontam a prece interi-
tos concebíveis. Então, o despertar do divino, sepultado em nós or (em segredo), com poucas exteriorizações vocais e sem mui-
sob a forma latente, torna sempre mais pronunciada a sensação to rogar, porque Deus já sabe de que precisamos.
da presença de Deus, até que ela invade os horizontes do ser. As- Na prece, cada qual revela a própria natureza, isto é, de-
sim, para algumas almas, essa ideia se torna tão ofuscante como monstra neste seu ato para com Deus todas as qualidades do seu
o sol, poderosa como as massas cósmicas, tonitroante como o tipo biológico. O involuído não pode orar senão como involuí-
primeiro impulso da gênese, vertiginosa sobre todos os abismos do. Ele se faz centro de tudo. Para este ato, ele transportará,
do mistério, suspensa sobre a profundidade do inconcebível. A portanto, a sua normal psicologia de luta e de interesse, feita de
prece se transforma à medida que o ser evolui. Então, não poderá cálculo e desejosa de entesourar, mesmo no espírito. Para ele, é
mais ter importância a pequena graça a ser pedida, conexa a inte- inconcebível o absoluto desinteresse de lutar para arrebatar al-
resses terrenos aqui, na vida transitória de nosso pequeno ―eu‖. guma coisa. Ignora que a ascensão espiritual consiste exata-
Quando se superou o egocentrismo, anulando-se em Deus, essa mente no oposto dessa psicologia e que a alma evoluída se re-
psicologia não tem mais sentido. Não pode mais interessar nem conhece justamente por essa atitude diversa. O homem comum
ao menos o problema, tão inquietante para todos, da própria sal- ora encerrado na couraça do seu egocentrismo, que lhe parece
vação pessoal, do cálculo utilitário da recompensa ou da punição uma defesa, quando é uma prisão. O místico ora em um estado
e de tudo o que constitui apenas um egoístico interesse, ainda que de expansão, em que o ―eu‖ se afigura desfeito, mas somente
ultraterreno. Mal se sobe para Deus em espírito, essa psicologia, assim ele consegue atingir a sensação de Deus. O próprio inte-
inteiramente humana, se desfaz ao calor do incêndio divino. resse egoístico, que está em toda manifestação da vida da maio-
220 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ria, perde aqui qualquer sentido, porque a conquista se cumpre a morte. Se ele não enveredar pelo caminho oposto, que se ori-
expandindo-se em Deus, que é um pai que sabe de todas as nos- enta em direção à vida, ao que o seu próprio interesse deverá
sas necessidades, é riquíssimo e não deseja mais do que nos tarde ou cedo induzi-lo, receberá cada vez menos dela, até que
prover. O entesouramento não tem mais razão de ser quando o não mais despertará e passará por completo ao polo oposto de
―eu‖, expandindo, perde-se no ―eu‖ cósmico, que é senhor de Deus, isto é, passará do ser ao não ser, pois que o vazio e o na-
tudo e conosco tudo compartilha. da são a plenitude do Anti-Sistema. A punição de Deus consis-
A prece alcança então vastidão cósmica e profundidade te na perda de Deus. A expulsão do sistema afirmativo para o
transcendental, torna-se um turbilhão que arrebata, sublimando invertido ao negativo, até à anulação, eis o inferno eterno, o
em alta tensão toda a potência da inteligência e do coração, até mais terrível, lógica conclusão de uma vontade tenaz que, de-
tornar-se êxtase. A oração passa a ser uma coisa imensa, que liberadamente, quisesse negar Deus através de uma infinita sé-
nenhuma das formas de religião consegue mais contê-la, trans- rie de vidas. Há, então, entre punição e culpa, a proporção que
formando-se em algo de tão universal, que abrange toda aspira- não existe entre uma sanção eterna e uma só breve vida, por
ção superior da alma, seja do crente, do artista que cria, do ci- mais malvada que seja. Inferno não antropomórfico, mas meta-
entista que indaga, do gênio que desvenda o mistério, do herói físico, o mais implacável, dado pela morte da alma, pela extin-
que triunfa, do mártir que se sacrifica, do santo que tem a visão ção do ser no não-ser, no nada. No extremo oposto do dualis-
de Deus! Neste nível, tudo se muda em prece. A alma se avizi- mo, o santo caminha para o paraíso eterno. Aproximando-se
nha de Deus, e a criatura olha o Criador e Lhe estende os bra- cada vez mais das fontes da vida em Deus, ele se expande gra-
ços, sequiosa por fundir-se Nele e dilatar-se do pequeno cons- dativamente na plenitude do ser, afirmando-se no sistema posi-
ciente individual no infinito consciente cósmico. tivo, até ao triunfo da felicidade eterna em Deus.
Se esta é a verdadeira e grande prece, que aproxima a alma
de Deus, e se pode também haver uma prece menor, em que as XVII. IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA
almas menos desenvolvidas fazem o que podem, que será dos
espíritos tão involuídos ou decaídos, que não conhecem ne- Levados por outros fios condutores, não foi possível, nos
nhuma oração? Que será daqueles que não oram mais ou jamais capítulos precedentes, abordar o problema da imanência e
oraram e que nem ao menos sabem conceber o que seja dirigir- transcendência, senão em relação com outros. Cuidamos agora
se a Deus? Que sorte aguarda esses ―eus‖ separatistas do ―Eu‖ de retomá-lo, para encará-lo diretamente, aclarando-o com mais
central, fonte da vida? Como poderá viver isoladamente, confi- exatidão. Antes, porém, de entrarmos em suas particularidades,
ado apenas em seus próprios recursos, esse fragmento rebelde, quisemos aplicar as concepções precedentes, orientando-as
expulso do Sistema? Como tal, ele é paupérrimo, logo extre- também como experiência, na vida espiritual de cada um.
mamente ávido. Somente quem está ligado ao Centro é rico. Ao Voltemos às primeiras origens, que já esfloramos no início
rebelde falta qualquer conhecimento da vida eterna, e a sua do Cap. XV – ―À Procura de Deus‖.
existência é somente a do corpo físico. E quem não possui se- Como já dissemos, antes de criar, Deus era o Uno-Todo,
não uma vida tão pobre, desesperadamente se apega a ela com que ainda tudo devia tirar de si. Não havendo ainda a criação,
feroz egoísmo, sendo capaz de qualquer delito para defendê-la. não nascera nem o Sistema nem o Anti-Sistema, isto é, não ha-
Pobre ser recluso no relativo e no tempo, sem esperança de in- via dualismo de aspectos, mas somente o Uno. Com a criação,
finito! Está sempre famélico, acuado pelo tempo, que foge e o Uno se distinguiu em Criador e criatura, então puramente es-
que lhe rouba a vida. O seu reino é a forma, a ilusão, o caduco. piritual, e nasceu o Sistema. Mas, com a queda, ele se dividiu
As suas construções esboroam-se sempre, e ele, porque tão dis- em dois: Sistema e Anti-Sistema, em que a criatura espiritual
tante do centro genético, tem que reconstruí-las continuamente. caiu na prisão da forma, ou corpo. Ora, acima de tudo isto,
Os tesouros desse reino não perduram como os situados no permanece o Uno no seu aspecto absoluto, que é, além de qual-
eterno. Ele se sente perdido, porque, destacado do Centro-Deus, quer criação ou manifestação. Este é o Deus no seu aspecto
fonte do ser, sua existência vai dissecando-se dia a dia. Na sua transcendente, sem dualismo e acima dele, invulnerável e per-
desesperação, ele se alheia a tudo, contanto que se conserve vi- feito. Deus, no seu aspecto imanente, não poderia existir a não
vo no corpo, único meio de alegria e de vida. ser em algo que não constituísse Ele mesmo, porque é óbvio ser
Mas a extinção o espreita. Ele está agora voltado para o polo imanente em Si mesmo. E Deus imanente se encontra na cria-
negativo do ser e, com isto, autocondenado. E sente que não há ção, quer no sistema conservado íntegro, onde Ele está em Sua
escapatória. Para salvar-se, ele teria não só que inverter a rota, perfeição, quer no sistema desmoronado, onde Ele, por amor,
mas também percorrer em subida todo o caminho feito em des- desceu à imperfeição, para reconduzi-la à perfeição originária.
cida e, então, após tanta faina, tentar comunicar-se de novo com Mais exatamente, a imanência e o dualismo transcendência-
a fonte da vida, para ser alimentado. Eis a oração. Mas o rebelde imanência nasceram no ato da criação. Somente se costuma
recusa-se justamente a curvar-se ante Deus; é exatamente essa chamar imanência à presença de Deus no nosso universo decaí-
harmonização com o Todo que ele não sabe e não quer fazer; é do, porque somente este percebemos, ao passo que a imanência
justamente essa sua posição de dependência do Centro-Deus que abrange também o universo feito de puros espíritos, conservado
ele não quer reconhecer. Deste modo, a descida precipita-se, e o perfeito. Em outras palavras, a imanência não é senão a perma-
pobre espírito, centelha de Deus, se não se resolve a inverter o nência do Criador na Sua criação, pelo que Deus permaneceu
caminho, então, de delito em delito e de desesperação em deses- presente tanto no Sistema como no Anti-Sistema.
peração, em agonia de alma, gradativamente tende a extinguir-se A coordenação destes conceitos, observando-os agora fron-
em nada, porque insistir no erro e, assim, confirmar a revolta de- talmente, e não, como nos capítulos anteriores, em perspecti-
fine a sua vontade de ser autodestruído. Que ele possa, depois, vas obliquas, em função de outras visualizações, aclarará me-
obstinar-se em persistir laborando inteiramente em seu dano, é lhor o nosso pensamento.
uma possibilidade teórica que já examinamos no Cap. X – ―A A transcendência é, pois, o princípio de natureza abstrata
teoria do desmoronamento e suas provas‖. que, no aspecto imanência, descerá às formas para animá-las,
O ateu, negando a Deus, nega a si próprio. Deus não pode mas que, como aspecto transcendência, permanece inalterado,
ser atingido pela negação do ateu. É golpeado apenas quem acima de qualquer criação. O fato de que, nesta criação, não
nega. Negando a fonte da vida em Deus, ele não saberá nem pode existir forma nem qualquer fenômeno, senão em conso-
conseguirá mais alcançá-la. Negando a vida depois da morte, nância com um princípio que lhe oriente o transformismo, de-
ele permanecerá inconsciente e não terá sensação de vida após monstra a existência de Deus transcendente. E o fato de que o
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 221
princípio transcendente não pode atuar a não ser assumindo pressão do Pai. Não que o nosso universo físico seja o Filho,
forma em qualquer ser ou processo fenomênico, revela a exis- mas, como forma material, ele é a expressão e a manifestação
tência de Deus imanente. É que o transcendente dirige o ima- da atividade genética do Pai aí imanente, que é um momento
nente. É o perfeito que guia o imperfeito, para levá-lo à perfei- derivado da Ideia, situada no Espírito. Eis o Todo coligado em
ção. Eis a razão e o íntimo significado do fato que verificamos estreito monismo, desde o Espírito, origem de todas as coisas,
em nosso universo, isto é, que ele está em evolução, ou seja, é a todas as coisas Dele originadas.
uma imperfeição que caminha para a perfeição. Assim se ex- Tais conceitos não podem ser entregues às mãos do invo-
plica como, em razão de sua estrutura, o universo se mantém e luído, que, julgando tudo sensorialmente, é capaz de dizer que
só pode manter-se devido à presença nele de um contínuo im- o Filho é a matéria. As mais recentes concepções da ciência,
pulso criador. Assim se explica também a individualização do que da última substância do mundo físico fizeram uma fórmu-
ser em infinitas formas, preestabelecidas segundo esquemas la abstrata, nos ajudam a compreender tudo isso. Foi assim
abstratos, que não existem no contingente, a não ser na última que, quando se quis ver a essência, a matéria foi reconduzida
fase da sua expressão material. Onde estarão elas antes de ma- ao Espírito. É necessário recordar que ela é uma pura ilusão
nifestar-se, senão no transcendente, que com elas se põe em dos nossos sentidos.
contato através do imanente? Quem estabelece no tempo os Por mais que possa parecer audaciosa semelhante concep-
ritmos de adolescência e velhice, a duração da vida de cada ti- ção, os fatos depõem em seu favor. A vida, expressão de Deus
po, o seu limite de desenvolvimento orgânico? imanente, tem um caráter inteiramente interior. Ela germina in-
Deus, pois, não apenas criou no princípio o seu universo de cessantemente, e só graças a essa imanência é que o ser pode
um estado de nada ―relativamente‖ ao novo estado, não deu viver, vencendo o desgaste imposto pelo ambiente. A medicina
somente o seu primeiro impulso de origem à gênese, mas per- não examina senão as manifestações desse Deus imanente, es-
maneceu depois nesse universo, não exteriormente, mas inti- tudando as formas construídas pela Sua inteligência. No cadá-
mamente, continuando incessantemente a criá-lo com a Sua ver, a medicina estuda os restos de uma vida que se retira de
presença. Esclarecemos, no fim do Cap. XIII – ―In principio sua manifestação. A vida lhe escapa, porque é de natureza espi-
erat Verbum‖, as razões e as origens dessa imanência. Ela é de- ritual, campo que ela ignora.
vida ao princípio fundamental da criação – o amor – pelo qual Toda forma provém do interior, de um germe, e se desen-
um verdadeiro Pai não abandona jamais o filho, faça ele o que volve em torno dele, por crescimento. Todo germe é filho de
fizer, e, justamente para salvá-lo, segue-o, livremente, em qual- outro germe e assim por diante. O ato originário da primeira
quer desventura em que ele tenha recaído, porque assim o exige gênese se repete no mesmo modelo, em continuação. O fato de
o amor. Essa imanência, ou presença de Deus, é o que se chama que tudo não pode existir a não ser por filiação, nos diz que o
vida, mas em senso latíssimo, pois é vida que anima igualmente nosso universo é regido pelo princípio do Filho. Todo esse pro-
a orientação das moléculas nos cristais, como o funcionamento cesso genético permanece, porém, um enigma indecifrável, se
atômico da matéria. Tirai de tudo o que existe essa vida, que não nos reportarmos ao primeiro ato genético, executado pelo
representa a imanência de Deus, e o universo recairá no nada, Pai. A vida é atributo da alma, que é interior ao ser. Aí está o
isto é, em um estado de não-ser ―relativamente‖ ao atual. Deus centro e a síntese de todas as sensações. Tudo caminha do am-
não criou, pois, como o faz o homem, mas de uma forma muito biente para o espírito e do espírito para o ambiente, e esta é a
mais profunda, isto é, não lavrou a Sua obra de fora, para de- base da experiência pela qual o ―eu‖ pode crescer e evolver. É
pois destacar-se dela, mas de dentro, para nela permanecer in- no interior da matéria que se encontram os velocíssimos circui-
destacavelmente. As obras do homem são, efetivamente, mortas tos atômicos que lhe emprestam a solidez. O crescimento por
e têm necessidade sempre de novas intervenções, que constitu- multiplicação celular, como a cicatrização das feridas por re-
em a manutenção. Somente as obras de Deus são vivas, e, se construção dos tecidos lacerados, provém do interior. A ―vis
parecem andar por si, é porque dentro delas está o Deus ima- sanatrix naturae‖22, que preside à conservação de nosso orga-
nente, que, como vida, age continuamente. Se deixarmos uma nismo, e todas as sábias diretivas de nosso funcionamento or-
casa, com tudo o que possui, entregue a si mesma, encontrare- gânico – tão automático, que o desconhecemos – tudo provém
mos após muitos anos tudo em decadência. Se deixarmos plan- do interior, dessa presença de Deus imanente. Esse pensamento
tas, encontraremos um bosque; se animais, um rebanho. De on- diretor está tão bem oculto nas profundezas, que a ciência não
de vem essa capacidade de multiplicação, senão de Deus ima- soube ainda encontrá-lo. Embora tendo sob as vistas sua ex-
nente? De onde promana a vida, a não ser dessa fonte que ali- pressão, só lhe encontra os efeitos. Ele está tão oculto, que se
menta todo o criado? Que imperfeita imitação da obra de Deus lhe ignora a presença, apenas porque se furta à análise sensória,
são as obras do homem! Mas mesmo estas, para conservar-se, dita objetiva, ao passo que nada é tão pouco objetivo quanto
reclamam aquela assistência que se chama de manutenção, que ela. E desta forma se chega até ao ateísmo, enquanto se mergu-
constitui uma espécie de imanência do homem nelas. lha nessa atmosfera divina, na qual se respira e se vive.
Podemos agora melhor compreender tudo isto, confrontan- Esta interioridade do Deus imanente em seu universo, que,
do com o que foi dito no Cap. XIII – ―In principio erat Ver- embora sendo imanente, nós concebemos como material, por-
bum‖. Deus, no Seu aspecto transcendente, é o Espírito, o pri- que a materialidade é uma ilusão, nos leva a considerar as rela-
meiro momento da Trindade do Uno, o puro pensamento, a ções entre a alma e o corpo no homem. Também este é a ex-
ideia ainda não em ação, anterior e acima de qualquer criação e pressão de um espírito animador, que se reveste de forma físi-
suas vicissitudes. Deus, no Seu aspecto imanente, é o segundo ca. Que assim seja, é lógico pelo princípio dos esquemas de ti-
momento da Trindade do Uno, aquele em que a ideia entra em po único. Da mesma forma se poderia conceber Deus, no Seu
ação e o Espírito se fez Verbo gerador, o Pai. Do Pai deriva o aspecto imanente, como a alma do nosso universo. Em ambos
terceiro momento, a criação, quer a que permaneceu perfeita os casos, a forma-matéria está na periferia, no exterior, alimen-
nos espíritos puros, o Sistema, quer a desmoronada na imper- tada do interior, em que se encontra o princípio: a vida. Em
feição da forma material, o Anti-Sistema. A imanência, surgi- ambos os casos, tudo é inteligentemente orientado e guiado do
da no segundo momento com o ato criador, que o conduz ao interior; a forma é gerada pelo espírito, isto é, o corpo humano
terceiro, a obra realizada, revela-se nesta. E nela vemos que o é constituído pela alma, seu princípio vital, como o universo
aspecto de imanência existe e tudo rege. A forma concreta de físico foi formado pelo Verbo, o Pai. A alma humana, como o
tudo o que existe em nosso universo não é mais do que a ex-
22
pressão de tal imanência. Em outras palavras, o Filho é a ex- ―A força curadora da natureza‖. (N. do T.)
222 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Deus imanente, estariam tão entranhadas na forma, que o fato relativo, na matéria, então conceberíamos o viver na matéria
de a primeira não poder viver senão em um corpo não repre- como um não-existir. Nestas condições, a atual criação nos
senta nada mais do que um caso particular da universal ima- pareceria a passagem do ser para o nada, porque não seria a
nência de Deus, que ela representa e constitui no seu caso par- transformação que se opera no sentido de nosso tipo de exis-
ticularizado. E que é essa substância pensante, matéria prima tência, mas algo que caminha para a sua negação. Se superar-
de nosso universo, senão o espírito? mos, porém, a relatividade destes pontos de vista, veremos
Prossigamos na observação do paralelismo. Suprimamos a que o referido término do universo físico e biológico não pas-
alma no homem, e teremos um cadáver. E que poderia restar do sa de uma mudança de forma, para retornar ao originário esta-
universo, se dele desaparecesse a projeção da inteligência dire- do espiritual, ponto de partida do atual universo desmoronado.
tora (o Espírito) e cessasse a presença do princípio vital (o Pai)? Concluímos, então, que só em nosso plano relativo é possível
De modo semelhante, ao fim da existência na forma, a alma ser ou não ser, e isto relativamente a uma dada forma assumi-
humana se retrai para o interior da sua manifestação, como o da naquele momento pelo ser. Mas o Todo – Deus – jamais
Deus imanente, ao término da vida do cosmo, retrair-se-á para pode não-ser na sua substância. Somente no relativo pode
o íntimo dessa Sua manifestação, para coincidir no fim do ci- ocorrer o não-ser, isto é, um não-existir parcial em relação a
clo, como já dissemos, com o ponto de partida: o Deus no as- outras formas de existir. O absoluto, que é tudo, não pode
pecto transcendente. E, assim como todo o universo, evolven- deixar de ser tudo eternamente.
do, exprime o gradual retorno da imanência à transcendência, O paralelismo entre a unidade alma-corpo e a unidade Deus
também a alma, evoluindo, aproxima-se sempre mais, em cada imanente-universo, ajuda-nos a compreender as relações entre
morte, do Deus transcendente, da perfeição de que se avizinha Deus transcendente, origem primeira de tudo, e esta sua inco-
gradativamente a imperfeição, para alcançar, na fonte primeira, mensurável criatura coletiva, que é o universo. Embora, neste
nova energia para uma nova vida. Isto porque, com a queda, os seu último aspecto, Ele seja invulnerável, acima de qualquer
espíritos se precipitaram na periferia, e não lhes é possível se- criação sua e de suas alternativas, é também através desse as-
não uma vida fragmentada, sendo necessário assim, a cada mor- pecto de imanência que Ele pode permanecer presente, agir,
te, que é inevitável nesse plano, voltar ao centro, para conseguir guiar e, assim, tudo reconduzir do imperfeito, em que o Sistema
um novo impulso dinâmico, sem o que não se suporta uma ou- desmoronou, para o perfeito, em que Ele ―é‖. Assim, torna-se
tra vida. Como já vimos, esta é a razão pela qual o desenvolvi- compreensível também a ação à distância, inimaginável de ou-
mento jamais ultrapassa as dimensões estabelecidas no esque- tro modo, que nos poderia mesmo induzir a pensar em um Deus
ma de um dado tipo de ser, portanto podemos também compre- ausente, desinteressado da sorte de uma criação abandonada a
ender agora porque a carga vital recebida – que o espermato- si mesma. Desta maneira explica-se também a imperfeição, o
zoide e o óvulo contêm, mas que não geram, porque a recebem estado de contínua formação e o fenômeno da evolução, que
do espírito para desenvolver-se – é de uma duração limitada, reinam em nosso universo. E compreende-se, então, que esse
exaurindo-se depois, na morte. transformismo é um estado transitório, decaído, impróprio do
Esses paralelismos nos permitem compreender também o ser perfeito, entrevendo-se a meta que nos espera a todos, o
porquê deste cíclico retorno da juventude e velhice, em todas as ponto de chegada de tanto trabalho.
formas da vida, seja no indivíduo, seja na família, nas nações, Pode-se agora alcançar a definição de uma importante ques-
nos impérios, nas civilizações ou na humanidade. Não se trata tão, perguntando se Deus é pessoal ou impessoal. O aspecto
senão de repetições, em dimensões menores, do ciclo máximo do transcendente leva à primeira concepção; o imanente, à segun-
aspecto imanência de Deus, que torna a coincidir com o Seu as- da. No primeiro, Deus é centro, um ponto, um ―Eu sou‖, o To-
pecto transcendência. Quanto menor a unidade da individualiza- do-Uno, possuindo todas as características da personalidade,
ção tomada para exame, tanto menor também o seu ciclo e mais semelhantes às que encontramos no menor ―eu‖ humano. No
rápida a sucessão deles. Mas, em cada caso, do homem às na- segundo, Deus é periferia, imerso na sua manifestação, pulveri-
ções, à civilização, à humanidade, ao universo, o esquema é zada em infinitos ―eu sou‖ menores, resultado do fracionamen-
sempre o mesmo. Temos, assim, dois momentos: no primeiro, é to do Todo-Uno no desmoronamento do Sistema, possuindo,
o espírito que trabalha para fazer uma forma para si, organizando portanto, todas as características do impessoal, como aquelas
uma expressão sua no plano exterior (o homem organiza um cor- que encontramos na massa de células componentes do corpo
po, as nações um governo, as civilizações uma ordem, as huma- humano. Tudo isto corresponde exatamente à universal lei do
nidades uma sede planetária, o universo um organismo cósmico); dualismo, pela qual toda unidade é constituída de duas partes
no segundo momento, inversamente, é a forma física que se con- inversas e complementares. E assim seria por toda parte, desde
some em favor do espírito, enriquecendo-o de todas as experiên- Deus-Universo até à alma-corpo.
cias realizadas na vida. Assim como, na juventude do indivíduo, A esta altura, poder-se-ia, contudo, objetar: existem então
temos um período de construção física, também temos no univer- dois Deuses? Respondemos: existirão, talvez, duas Terras só
so a formação de um substrato feito de matéria; e tal como, no porque a nossa tem dois polos? Existirão, porventura, dois seres
indivíduo, temos depois, com a velhice, o declínio da forma em em um homem, por ser ele feito de alma e corpo? E, se assim é
benefício do desenvolvimento da consciência, igualmente verifi- a constituição do esquema do ser, não nos é dado mudá-lo. De-
camos no universo um período de destruição física e de paralela vemos limitar-nos a comprovar que assim é. Caberia, contudo,
expansão vital, sempre maior, no plano espiritual. ainda objetar se o universo físico então é o corpo de Deus? De
Isto confirma o que já dissemos algures, afirmando que o novo respondemos: o que é o corpo para a alma, senão o seu
universo físico acabará por desintegração atômica () e o veículo e meio de expressão? Impõe-se, ao certo, conferir então
universo biológico (vida) findará com a espiritualização da à palavra corpo um sentido tão mais amplo, que nem ao menos
forma física (). Essa espiritualização pode parecer um poderíamos concebê-lo. E esta foi exatamente uma das conse-
fim para o ser situado na matéria, mas tudo é relativo ao ponto quências erradas do imanentismo: perder de vista o Deus-Uno e
em que se coloca o observador. Nós chamamos de existência vê-lo definitivamente fragmentado no panteísmo, como se do
a vida na matéria, porque a nossa vida se desenvolve na peri- ―Eu sou‖ central não tivesse restado mais do que uma poeira de
feria. Assim, também chamamos de criação, isto é, passagem Divindade, ficando ela dispersa em infinitos ―eu sou‖ menores,
do nada ao ser, à transformação que se opera em nosso tipo de sem possibilidade de reconquista do Uno e de conexão com
existência. Mas se estivéssemos situados no centro, no absolu- Ele. Mas o leitor já viu quão longe estamos de semelhantes
to, no espírito, ao invés de nos encontrarmos na periferia, no concepções (vide o fim do Cap. XV – ―À procura de Deus‖).
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 223
Trata-se, pois, apenas de duas posições diversas da Divin- ―Deus cria a cada instante o mundo apenas com o pensa-
dade. No polo transcendência, temos de Deus o aspecto unitá- mento (...). O pensamento da criação nos é familiar, mas o que
rio e estritamente pessoal. No polo imanência, temos Dele o nos é menos familiar é o pensamento da criação contínua, que é
aspecto multíplice, um pan-psiquismo, uma presença dada por a conservação do mundo. Pensamos demasiado frequentemente
uma pulverização no particular, até ao panteísmo, concepção que Deus criou este magnífico universo no princípio dos tem-
que é o resultado natural da cisão no desmoronamento. Pante- pos, limitando-se em seguida a dirigi-lo e governá-lo, como se
ísmo de fato significa presença de Deus na multiplicidade, ou ele pudesse subsistir por si, de modo mais ou menos indepen-
seja, na imanência. O erro está em se ter querido contrapor, ao dente de Deus. Ao contrário, a conservação do mundo é uma
invés de conjungir, estas duas verdades complementares, fei- criação contínua, que a cada instante pressupõe uma potência
tas para completar-se reciprocamente, único modo de recons- igual à que originariamente criou todas as coisas (...). Medimos
truir completamente o conceito de Deus. Resultou daí uma Deus pelo nosso gabarito...
unilateralidade de visão, fonte de polêmicas destituídas de ou- ―Quer executemos uma obra de arte, quer construamos
tro sentido que não seja alcançar, através da luta entre opos- uma edificação, uma vez completadas, estas coisas subsis-
tos, a compreensão da relatividade das nossas concepções. É tem independentemente de nós. No máximo, velamos pela
certo que Deus transcendente, situado acima de qualquer cria- sua conservação e manutenção. Da mesma forma, para mui-
ção, representa a centralização máxima no ―eu‖ pessoal. Mas tos homens, o mundo, uma vez criado, existe por si, não ca-
é também certo que o desmoronamento do Sistema, arrastan- bendo a Deus senão conservá-lo e defendê-lo. Na realidade
do consigo Deus transcendente na imanência, necessária para Deus faz o mundo a cada instante e cria sem cessar (...). Que
manter e salvar o Anti-Sistema, explica e justifica o panteís- ideia tão mais exata e benéfica teríamos da Potência Infinita,
mo. Este é verdadeiro, mas apenas no polo imanência, ao pas- se considerássemos o mundo sob este aspecto! Como sentirí-
so que é erro quando admitido no polo transcendência, como amos melhor a nossa dependência de Deus e a nossa neces-
também é verdadeiro o oposto princípio da personalidade, se sidade de gratidão, se tivéssemos maior consciência dessa
admitido apenas no polo transcendência, constituindo erro ação continuamente criadora de Deus sobre tudo o que nos
quando concebido no polo imanência. Afinal, o ser humano, rodeia, como sobre nós mesmos...
feito à imagem e semelhança de Deus e seu universo, reflete ―Deus fez e faz sem cessar todas essas maravilhas apenas
bem estes conceitos, mostrando-nos o ―eu‖ espiritual, pessoal com o Seu pensamento repleto de amor. Deus pensa e ama to-
e central, e o corpo físico, onde, em cada célula, esse ―eu‖ es- das essas coisas com um amor que cria. Pelo próprio fato Dele
tá imanente, como a origem das sensações e da vida. E tudo, pensá-las e amá-las, elas recebem o ser (...). Deus pensa todas
do caso máximo ao mínimo, corresponde à lei universal das essas coisas; cria, só com o pensamento, este mundo imenso...
unidades coletivas, lei pela qual todos os elementos compo- ―Todo o universo é o Seu pensamento...
nentes do Sistema convergem hierarquicamente para um único ―Vós somente, meu Deus, produzis, criais, fazeis existir
vértice, estritamente individualizado. Trata-se, pois, apenas de com o Vosso pensamento apenas (...). O mundo inteiro é um
dois aspectos, como sempre dissemos: o transcendente ou poema magnífico animado pelo Vosso pensamento...
inexpressado, e o imanente ou expresso na criação, que natu- ―Ele está presente em cada criatura (...), e para conservá-la
ralmente deve conter Deus, pois que é Dele a expressão. Te- no ser(...). Mas há uma coisa mais surpreendente ainda e bem
mos um caso semelhante no homem, que pode ter uma ideia e pouco conhecida. O Espírito Infinito, o ser sem limites, que
não expressá-la ou então projetá-la fora de si, na ação, e de- cria todas as coisas com o pensamento (...), não se separa da
pois na forma, podendo, assim, essa ideia coexistir ao mesmo sua criatura, que, sem o seu auxílio, cessaria de existir. A In-
tempo no aspecto inexpresso e expresso. Podemos muito bem finita Inteligência está e permanece no fundo de toda criatura,
conceber Deus não imerso na concatenação causal, na suces- no fundo de cada pensamento seu. Vem a ela, circula nela,
são dos atos no tempo, como é o homem antes de traduzir em embebe-a e a inunda de Si mesma a cada instante, mas Deus,
ato a sua ação. Os dois aspectos são conexos por toda parte. imanente e transcendente ao mesmo tempo, está na Sua criatu-
Assim é construído o Todo. Eles efetivamente assemelham-se ra (...). Todo ser é como um tabernáculo de Deus (...). Quan-
a dois amantes separados, uma unidade dividida, desespera- tos poucos, ó meu Deus, são aqueles que têm consciência dis-
damente desejosos ambos de um recíproco amplexo, para re- so! (...). A criação inteira é como um templo do Altíssimo,
constituir a unidade. Parece que o imanente persegue o trans- três vezes santa. Tudo está repleto de Deus, tudo está impreg-
cendente, cuja imobilidade atingirá após uma ilimitada corri- nado Dele (...). Deus inunda cada coisa. Como uma esponja
da. Ele parece uma imensa carência, que só findará quando se imersa no oceano, o universo inteiro está envolto na imensi-
completar na transcendência. É o vazio que está faminto do dão do pensamento de Deus.
pleno, é o pleno que tem necessidade de encher o vazio. É a ―Cada coisa é a obra-prima de Deus! (...), nada de imperfei-
universal complementariedade dos dois opostos do dualismo, to (...). O Deus que não posso ver daqui de baixo (...), está, to-
sobre o que se eleva a unidade. Como o macho e a fêmea, o davia, em toda parte. Ele me circunda no mundo (...). Eu estou
imanente corre e o transcendente aguarda. Aí está o princípio imerso Nele, o grande oculto e o grande presente‖.
das trajetórias espiralóides, que continuamente se reduzem, Não se poderia descrever melhor o que é o nosso monismo
até que, como se passa no correspondente esquema do plano e o nosso imanentismo, que foi confundido com panteísmo. O
físico, o imanente se precipitará no transcendente, anulando- nosso conceito, acima exposto, de um universo-manifestação é
se na identificação com ele. Então, o Deus transcendente terá mantido pelo Cardeal Nicola Cusano Venerável nestas suas pa-
reabsorvido em si a sua manifestação, que terá retornado pela lavras: ―Quid est mundus nisi invisible Dei apparitio, quid est
universal reespiritualização ao seio do Uno, do qual nascera, Deos nisi visibilium invisibilitas?‖23. E poderemos repetir vá-
desaparecendo a distinção entre os dois aspectos. rias citações já transcritas no Cap. XV – ―À procura de Deus‖.
Nada mais nos resta, para concluir a argumentação, senão Não faltam, pois, mesmo no campo ortodoxo, confirmações
ouvir a confirmação de tudo isto numa voz inteiramente orto- de nosso ponto de vista. Sem este conceito da imanência de
doxa, que reproduzimos de uma página da obra de Paulo de Ja- Deus, se entendido sem as aberrações do panteísmo, não se
egher S. J. – Confidência (Meditações), tradução do francês, explica o amor de São Francisco de Assis por todas as criatu-
vol. I, Ed. Marietti, tipografia pontifícia, da S. C. dos Ritos,
1934 (o escrito é de 1929, com Imprimatur). 23
―Que é mundo, senão a aparição invisível de Deus; quem é Deus,
O Cap. XIV, pág. 273 e seguintes, diz: senão a invisibilidade visível?‖. (N. do T.)
224 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ras, nem que Cristo pudesse repetir dos livros sagrados que nós funcionamento do grande organismo do universo, segundo es-
somos Deuses. É toda a lógica do Sistema, portanto, que prova se pensamento; pode, em outras palavras, ―sentir‖ a Lei. Estra-
a imanência. Ela aí está escrita, e não se pode deixar de lê-la. nho modo de explorar o ignoto! Método aqui regularmente
Além do mais, a criação contínua, que significa manutenção da usado, que está nos antípodas do método objetivo e experimen-
própria obra, de modo algum exclui uma criação originária e, tal da ciência, método que até agora nos forneceu, para qual-
no sentido relativo acima exposto, pode-se admiti-la também quer problema, aquela orientação geral que a ciência não pode-
do nada, sem lesar com isso o princípio da indestrutibilidade rá atingir com os seus meios. Mas é dos princípios gerais e da
da Substância. Também dissemos isto porque a alguns espíri- essência de nosso caso e do fenômeno da intuição que aqui
tos repugna admitir a imanência. Mas, assim como se obser- queremos falar, e não do seu aspecto contingente, que já foi
vam os olhos de uma pessoa para perscrutar-lhe a alma, assim contemplado na introdução do volume Problemas do Futuro.
como cada ser possui um semblante que exprime o espírito O fenômeno inspirativo apresenta-se-nos, pois, composto de
animador de sua forma e nos diz da vida que o anima, também tais elementos morais e espirituais, que a ciência moderna é in-
perceberemos, olhando o rosto e os olhos deste nosso universo competente para julgá-lo, já que ela ignora esses elementos nas
ilimitado, o seu princípio animador que tudo move: Deus. suas observações. A ciência da matéria não pode admitir nem
compreender a do espírito. Ela só se ocupa de especiais fins
XVIII. O FENÔMENO INSPIRATIVO imediatos, sem cogitar se a consecução destes é depois um bem
ou um mal para o progresso da humanidade. Não trabalha, as-
Desçamos das alturas do capítulo precedente para um terre- sim, pelo fim supremo para o qual trabalha a vida, que é a evo-
no mais vizinho nosso, do qual poderemos melhor compreen- lução. Em face da convergência de todo o criado com o fim de
der-lhe a estrutura, se a virmos à luz dos fatos mais elevados, ascender a Deus, a ciência permanece agnóstica, o que significa
acima descritos. Queremos agora focalizar a nossa atenção no sem orientação, porque não compreendeu qual é a meta de to-
fenômeno inspirativo, que, visto assim, tornar-se-á mais inteli- das as atividades do ser. No fenômeno inspirativo culmina, ao
gível. Só agora, depois de tais preliminares, estamos em condi- invés, o movimento da vida, na catarse biológica da sublimação
ções de aprofundar e resolver tão árduo problema. Em geral, é mística, a operar uma das suas maiores criações. Para julgar tais
inútil examinar uma questão isoladamente, porque ela perma- fenômenos de alma, não bastam os meios técnicos ou matemá-
nece insolúvel se não for antes orientada no todo e precedida da ticos, mas é indispensável um instrumento de igual natureza do
solução dos problemas fundamentais do ser. fenômeno. O espírito não se pode aquilatar senão pelo espírito.
O fenômeno inspirativo diz respeito às relações entre o ―eu‖ Para controlar um fenômeno de sublimação mística, como é o
individual e o ―eu‖ cósmico, entre a alma e Deus. No Cap. XV – da inspiração, seria necessário um santo, único competente na
―À procura de Deus‖, vimos como a evolução é um processo de matéria, porque só ele conseguiu atingir aquele grau de purifi-
desmaterialização ou espiritualização, que percebemos como um cação e, por conseguinte, de sensibilização imprescindível para
fenômeno de nossa sensibilização, liberação da forma física, poder perceber e medir as qualidades espirituais.
conquista de mobilidade e de consciência, revelação do Divino Dissemos aqui acima que o fenômeno inspirativo diz respei-
que em nós jaz latente. Esta é a via do retorno a Deus, que cha- to às relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmico. Esclare-
mamos sublimação. A todos estes conceitos, já desenvolvidos cemos também, no Cap. XV – ―À procura de Deus‖, que o grau
aqui, está conexo o fenômeno inspirativo, que deve ser observa- de proximidade entre a alma e Deus é dado pelo grau de afini-
do em função deles. Assim, ele fica enquadrado e inserido no fe- dade de vibrações conseguido em relação a Ele, isto é, de con-
nômeno da sublimação, da mesma forma que este, no início do sonância ou sintonização. Ora, a inspiração exprime a comuni-
Cap. XI – ―A caminho da sublimação‖, foi enquadrado no es- cação exatamente por consonância, que é uma sintonização pelo
quema do universo. A inspiração nos surge, então, como um caso despertar em nós daquele estado cinético da vida que, embora
de evolução, estreitamente conexo com a catarse biológica da su- originário, congelou-se na inconsciência (não vibração), com a
blimação; aparece-nos como um fenômeno ligado à ascese mo- queda ou desmoronamento do Sistema. Em outros termos, a ins-
ral, ao movimento centrípeto do espírito para o Centro-Deus, ao piração é um despertar consciente na profundeza em que está
misticismo. Assim, podemos dizer que o fenômeno inspirativo Deus. Então se atinge a sintonização, e esta é a base das visões
não passa de um momento ou aspecto de tudo isto e que só pode que nos revelam os grandes esquemas do pensamento divino. A
ser compreensível em função da sublimação mística. Ele faz par- visão é, pois, um problema de aproximação qualitativa. Eis a ex-
te do despertar da consciência e do retorno da alma a Deus. trema importância do aperfeiçoamento moral, da purificação.
Esta nossa colocação do fenômeno destaca-o definitiva- Falamos aqui do fenômeno inspirativo em relação justamente
mente dos símiles com os quais ele foi por outros até agora com o problema central da terceira trilogia: a sublimação.
confundido, pelo menos em nosso caso. Ele nada tem em co- Mas esse fenômeno pode ser observado também sob outros
mum com a mediunidade física, nem tampouco com a comum aspectos. O ―eu‖ individual aproxima-se do conhecimento do
ultrafania, em que o ser é instrumento passivo. Em nosso caso, pensamento do ―eu‖ cósmico pelo fenômeno inspirativo justa-
na sua fase atual, não se é mais inconsciente aparelho registra- mente porque a evolução pode ser concebida também como
dor de algum conceito, ainda que ele provenha dos mais eleva- uma expansão do primeiro no segundo. Esse despertar de zo-
dos planos do pensamento, mas se trata de um processo intei- nas interiores da consciência pode dar um sentido de expansão,
ramente diverso. O sujeito registra por si, com os próprios de dilatação do ―eu‖ individual no ―eu‖ universal. Assim,
meios intelectivos, visões que ele atinge justamente através do quanto mais o espírito do indivíduo se harmoniza com a Lei,
processo de espiritualização ou sublimação mística ou catarse isto é, sintoniza-se e entra em consonância com a vontade de
biológica, a que nos referimos acima. Então o despertar dos Deus, tanto mais, então, ele participa do pensamento da Lei.
profundos estados de consciência, antes latentes e adormecidos Quanto mais a alma se abre, tanto mais ela é inundada pela luz
no inconsciente, como se dá para a maioria, leva o eu a pôr-se que o Centro irradia sobre todo o Sistema. Conseguir sintoni-
desperto em dimensões conceptuais superiores, menos perifé- zar cada vez mais, pode significar também ascender em dire-
ricas e mais centrais no Sistema. Desta forma, ele vem a en- ção centrípeta, da periferia para o centro. Eis as múltiplas vias
contrar-se mais iluminado do que normalmente pelo pensa- que levam à inspiração. Em outras palavras, pode-se dizer que
mento de Deus, do qual assim pode perceber e ilustrar aspectos o superconsciente é mobilizado, ou seja, posto no estado ciné-
novos e inéditos, ainda ignorados pelo homem. Deste modo, o tico (consciente) ou vibratório do consciente universal, que é
sujeito pode contemplar, em visões sucessivas, a estrutura e o Deus imanente, adormecido no profundo de nosso espírito, cu-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 225
jo despertar constitui a evolução, que nos reconduz a Ele, nos- A esta altura podemos compreender a diferença entre o in-
sa meta. Então, deste ponto de vista, o fenômeno inspirativo tuitivo e o homem positivo de ciência. Este último, sobretudo
nos aparece como uma expansão ilimitada do pequeno consci- quando é matemático, procede encerrado em uma férrea lógica
ente individual no infinito consciente universal. É uma supera- e não concebe e admite senão o que pode ser aferido pelos mei-
ção de limites, no que consiste todo fenômeno evolutivo; é um os exatos de mensuração e demonstração. Mas nem todo o uni-
desembocar da forma-prisão na infinita liberdade do espírito. verso é suscetível de ser reduzido aos termos dados por esta
O fenômeno inspirativo pode então ser definido como: ―o fe- forma mental. Existem e valem também as ideias vagas, inafer-
nômeno da catarse biológica ou espiritualização ou sublimação ráveis como a névoa em formação, as quais, não podendo ainda
mística, visto no seu aspecto consciência‖. ser reduzidas e fixadas em medidas exatas e fórmulas definiti-
Ora, nem todos os fenômenos inspirativos são iguais, justa- vas, nos escapam para o superconcebível. E é este estado intui-
mente porque eles constituem um índice do grau evolutivo tivo e fluido da concepção a primeira fase da construção con-
atingido individualmente, pois, quando o limite do consciente ceptual, mesmo para o cientista ou matemático. Todavia, pela
individual ou forma-prisão se desfaz, a sua dilatação no consci- sua forma mental, tudo nos pode parecer mais visão de artista
ente universal se dá apenas na proporção da potência que o do que de cientista. Só assim posso explicar-me o juízo emitido
―eu‖ reconquistou por evolução, e esta é dada pelo grau de con- por Einstein em sua última carta, a respeito do meu volume de
sonância conseguido em relação a Deus, centro de vida. Se, na caráter científico, Problemas do Futuro: ―The danger in such
verdade, os vários fenômenos inspirativos são diferentes, o seu philosophical entreprises is that the word becomes dissociated
princípio e técnica, contudo, são idênticos, e todos são um mo- form the world of experience, so that the whole structure im-
mento do universal fenômeno da evolução. Por aqui se vê que presses me more as an independent work of art than as an intel-
profundas raízes na vida, mesmo nos seus planos superiores, lectual interpretation of something else‖ 24.
tem o fenômeno inspirativo. A este propósito poder-se-ia observar que o trabalho inspi-
É natural, então, pela sua estrutura, que a inspiração possa rativo, além de ser o mais livre e independente da vontade, é
representar um precioso método de indagação, ainda que a ci- também o menos exaustivo. Ele fatiga muito menos do que o
ência não o aceite, precioso porque ele pode revelar-nos coisas trabalho consciente, obrigado ou espontâneo. No primeiro ca-
que não estão no consciente individual, algo que nos permite so, somos como que rebocados pelo próprio trabalho, que nos
ultrapassar os limites deste, que é, todavia, axiomaticamente arrasta para onde quer. No segundo, temos de querer, impor-
colocado como medida de todas as coisas. Poder atingir o cons- nos, afadigar-nos. Poder-se-ia concluir daí que, para não nos
ciente cósmico – que, para o homem, está habitualmente sepul- cansarmos, bastaria que trabalhássemos com o subconsciente,
tado no inconsciente e representa, pois, um inatingível mistério isto é, no campo do consciente adquirido (ideias inatas), por
– e, por inspiração, até onde seja possível, apanhar-lhe o conte- automatismos. E é verdade, mas o problema consiste em pos-
údo e traduzi-lo em forma racional, acessível a todos, tudo isto suir um subconsciente que saiba trabalhar em um plano digno.
pode assemelhar-se a explorações efetuadas nas profundezas Todos sabem trabalhar com o subconsciente, mas ele é uma
abissais dos mares ou na estratosfera. E não se pode jamais sa- sobrevivência limitada e atávica de animalidade, e não um am-
ber o que isto poderá revelar-nos. plo despertar interior, pelo qual o ―eu‖ pode atingir o pensa-
Aliás, as intuições do gênio, os produtos da arte ou as des- mento cósmico. Geralmente confunde-se no próprio inconsci-
cobertas do cientista, quando representam uma desenvoltura do ente, fora da consciência normal, o subconsciente revivido do
pensamento no sentido da sua orientação original, constituem passado com o superconsciente, antecipação do futuro. Só este
sempre algo atingido não no consciente individual humano, é um despertar consciente na profundeza em que está Deus.
mas no consciente cósmico, que se encontra latente naquele, em Todos sabem trabalhar sem fadiga com os meios da primeira
estado de inconsciência. Efetivamente, quem alcança tudo isto espécie de inconsciente. Não é a ele que está confiado o nosso
por inspiração tem a sensação de defrontar-se com um pensa- funcionamento orgânico? Quanta gente, ademais, utiliza, sem
mento de estrutura e dimensão diversas do normal, com um esforço algum, tal patrimônio adquirido, nos atos instintivos da
pensamento que não se apresenta por sucessão lógica, mas por vida, que todos sabem fazer sem mestre! Assim, diariamente,
instantaneidade, como se estivesse além da nossa dimensão todos praticam um sem-número de atos que constituem tam-
tempo, limite que aqui é superado. O ―eu‖ então, na inspiração, bém uma forma de atividade, gratuitamente. Mas, para poder
não concebe mais sucessivamente, em encadeamento conclusi- trabalhar sem fadiga, com os recursos do inconsciente, é ne-
vo, como ao longo de uma linha, ainda que livre de mover-se cessário possuí-los, tê-los conseguido antes com o esforço da
na superfície, mas no lampejo de um conjunto, como que se en- aquisição. E ter adquirido tais recursos significa ter construído
contrando no interior de uma massa de conceitos que o envol- qualidades. Ora, esse difícil trabalho só o pode executar, com
vem por todos os lados ao mesmo tempo. E, assim, para tradu- esforço e tenacidade, o consciente, introduzindo, com sua or-
zi-los em termos racionais, ele tem de passar da dimensão vo- dem, hábitos novos no subconsciente e aí fixando-os pela repe-
lumétrica à linha e exprimir-se consecutivamente. Para recons- tição, até que eles sejam assimilados como automatismos.
truir o pensamento deste volume na sua primeira fase inspirati- Educar e transformar um subconsciente que resume impressos
va, o leitor teria que imaginá-lo reduzido a um relâmpago ins- em si impulsos atávicos, consolidados por experiência milená-
tantâneo, que iluminasse um globo dentro do qual, simultanea- ria e oriundos da animalidade, não é fácil. Para alguns seres
mente, está escrito e se lê todo o volume. mais evoluídos, como os santos, isto representou uma luta vio-
Nestas condições, querer indagar, refletir, concatenar ou lenta e terrível. Por certo, no fundo de nós está Deus, mas
controlar é impossível. Devemos limitar-nos a observar e regis- quem sabe despertar nessa profundidade, onde tudo jaz imerso
trar. Levados os produtos do superconsciente para o consciente, em um sono profundo? É inútil, pois, dizer que poderemos
teremos feito o mesmo trabalho que executa o cientista que car- poupar-nos o esforço do trabalho, confiando-nos ao nosso in-
rega os frutos das suas explorações abismais ou estratosféricas consciente. A maioria, pelo contrário, tem de lavrar no consci-
para o seu laboratório. Só aí poderá começar a analisá-los. Por ente, isto é, nas zonas de aquisição de novos instintos – zona
isso não podemos oferecer senão sínteses. Incumbe, depois, ao
pensador racional, controlar com os seus processos lógicos e 24
―O perigo desse tipo de reflexão filosófica é que a palavra se torna
experimentais esses produtos. Então, só então, podem intervir dissociada do campo cientifico, de forma que todo o seu conteúdo me
as faculdades humanas de vontade e atenção, que, na inspira- dá a impressão de um trabalho independente, mais de arte do que uma
ção, inversamente, possuem poderes negativos, inibidores. interpretação intelectual de alguma coisa mais‖. (N. do T.)
226 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
de vontade e de esforço – as qualidades e ideias inatas. Não se meno inspirativo, a consciência humana normal, naturalmente
podem usufruir os frutos do despertar interior, senão fazendo limitada às necessidades da sua vida e incapaz de compressões
preliminarmente o esforço de provocar semelhante despertar. mais amplas do que as adstritas à satisfação das suas necessida-
Agora que compreendemos, com a conclusão ―Tu habitas in des humanas, transpõe esse seu limite natural, para entrar no
me‖, que Deus é interior, e não exterior a nós, poderemos atinar consciente cósmico, de que faz parte, apropriado a um funcio-
o que se deve entender por fonte inspirativa. No volume As namento de muito maior envergadura, e pode assim, de forma
Noúres, a imaginamos como um transmissor, do qual o indiví- mais ou menos completa, tomar conhecimento também dele. Eis
duo era um receptor. Mas, após o caminho percorrido até aqui, o que representa o fenômeno inspirativo nas relações entre o
podemos ser bem mais precisos. ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmico, entre a alma e Deus.
Temos falado, nos capítulos precedentes, da interioridade De tudo isto se depreende a importância que pode assumir,
do Deus imanente, que se encontra também em nós. É, pois, pa- para o progresso da humanidade e para a defesa de sua vida,
ra esta interioridade que a inspiração se dirige; a entidade uma expansão além do limite da compreensão normal e a con-
transmissora é espírito e o espírito se alcança sempre andando tribuição que ela pode dar ao grande problema do conhecimen-
para o interior da forma física, que constitui a periferia, o seu to. Porque pouco conhecido e muito pouco adquirido e utiliza-
revestimento externo. Vimos também que as características da do, a humanidade não se dá conta de que resultados esse fe-
personalidade, do ―Eu-Centro-Uno‖, são encontradas no aspec- nômeno é capaz de oferecer na indagação do inexplorado, so-
to transcendente de Deus, em que Ele é centro de tudo, e que as bretudo no campo mais dificilmente explorável, porque mais
opostas características da impersonalidade são encontradas no distanciado de nosso contingente, como é o campo das grandes
polo oposto do ser, no aspecto imanente de Deus, em que o sínteses e das supremas abstrações, dificilmente acessíveis aos
Uno se pulverizou em infinitos ―eus‖ menores. meios da racionalidade comum. E a ciência é incapaz de, com
Eis o que então sucede ao nosso ―eu‖ humano. Se, na ver- seus métodos, atingir tais sínteses universais, que lhe são tão
dade, ele é pessoal relativamente ao seu pequeno ―eu‖ próprio, necessárias como orientação. Uma hipótese de trabalho possui
no mundo em que está imerso, na periferia do Sistema, ele re- muito mais probabilidades de estar nas pegadas da verdade
presenta, contudo, a pulverização do Uno, uma centelha de quando assim orientada; caso contrário, torna-se mera tentativa
Deus. Quando, pois, o nosso ―eu‖, pelo ato inspirativo, dirige- lançada ao acaso. Tudo isto é verdadeiro, pois não temos ne-
se para o centro, ele se desloca para o aspecto transcendente e nhum direito de acreditar que o método usado pela ciência de-
pessoal de Deus. Ora, esse centro, para ele que é periférico, re- va ser o único e o mais apropriado para alcançar a compreen-
presenta a reunificação, isto é, a reabsorção no Uno da sua per- são da natureza dos fenômenos. O fato de a ciência nos ter for-
sonalidade distinta, de modo que, na inspiração, o ―eu‖ perde as necido grandes resultados utilitários não é suficiente para dis-
suas qualidades, que como tais o distinguem e separam dos ou- sipar a suspeita de que o domínio exclusivo da experimentação
tros ―eus‖, e cada vez mais tende a fundir-se em Deus-Uno. As- pode mais facilmente afastar-nos do que aproximar-nos da vi-
sim se explica a anulação da própria personalidade na inspira- são da essência das coisas.
ção, tanto mais acentuada quanto mais poderosa for esta, e Enfim, tudo isto pode também interessar diretamente à vida.
também se compreende que todas as inspirações, embora diver- Possuir uma orientação pode ser a chave para resolver proble-
sas, se ligam a um único transmissor: o Centro-Deus. mas cuja solução, especialmente em dados momentos como o
Como se vê, o problema inspirativo tem as suas raízes na atual, é imposta pela evolução à humanidade como questão de
profundidade do Todo e não é solúvel a não ser em função do vida ou de morte. A vida, no seu desenvolvimento, propõe ao
Todo. Agora podemos compreender por que, nos seres elevados, ser sempre novos quesitos, e do saber respondê-los adequada-
é difícil, e tanto mais quanto mais elevados, encontrar os ele- mente pode depender a continuação ou o fim, bem como a for-
mentos distintivos da personalidade, como os entendemos em ma, da existência. Algumas espécies tiveram de desaparecer
nosso mundo. Quanto mais se ascende para Deus, tanto mais por não terem sabido resolver certos problemas. O conhecimen-
aumentam as Suas características de personalidade (da imanên- to é uma das armas mais poderosas para vencer também no ter-
cia=impessoal, para a transcendência=pessoal), e tanto mais di- reno biológico da luta nela vida.
minui a distinção, ou seja, a personalidade dos ―eus‖ destacados. Antes de encerrar este capítulo, analisemos a significação e
Então, pelo princípio das unidades coletivas, eles se reagrupam, valor do fenômeno inspirativo em face do problema do conhe-
formando esses ―eus‖ cada vez mais vastos e poderosos. A essas cimento. O homem utilizou três métodos para atingir o conhe-
alturas, não encontramos mais ―eus‖ isolados, que pensam sepa- cimento: 1o) a revelação (recepção mais ou menos passiva no
radamente, mas correntes de pensamento, Noúres, próprias de fenômeno inspirativo – método intuitivo); 2o) a lógica (constru-
espíritos sintonizados, consonantes, o que, para um espírito, sig- ção abstrata por esforço mental de pura racionalidade – método
nifica ser de igual natureza, porque o que define o espírito é o analítico); 3o) a experiência (controle pela observação da reali-
seu tipo de vibração. E quem é de igual natureza coincide com dade exterior – método sensorial).
os idênticos e neles se funde no mesmo ―eu‖, como duas notas O primeiro é o método aqui acima descrito. O segundo é o
idênticas formam a mesma nota. Isto corresponde à progressiva método dos processos matemáticos. O terceiro representa o
unificação, pela qual o Uno, que se fracionara no Anti-Sistema, único contato direto de que dispomos para alcançar a realidade.
vem a reconstituir-se integralmente no Sistema. Deixando de lado, porém, o método da intuição, que é inteira-
O fenômeno inspirativo, sendo a expressão da sublimação no mente excepcional, pode-se também enfrentar a realidade com
seu aspecto consciência, segue esse processo de unificação, que o pensamento puro. O conhecimento pode derivar não somente
é inerente à sublimação, culminante na união mística da alma da observação, mas também do esforço de construção lógica do
com Deus. Então aquela expansão do pequeno consciente indi- puro pensamento. Mas é sempre necessário que os seus resulta-
vidual no infinito consciente cósmico – o que constitui o fenô- dos sejam transportados e aprovados no plano da realidade ob-
meno inspirativo – pode ser comparada ao caso em que a cons- jetiva, que, embora ilusão sensória e limitada, exprime no seu
ciência de uma célula isolada, consciência naturalmente limitada plano uma verdade, ainda que relativa a ele. É necessário, em
apenas ao seu funcionamento, pudesse ultrapassar este seu limite suma, controlar tudo, observando o que corresponde aos con-
natural para alcançar a consciência de todo o organismo humano ceitos abstratos no terreno concreto. Depois, no sentido inverso,
do qual ela faz parte, consciência própria de um funcionamento as observações são interpretadas, correlacionadas e destiladas
mais amplo, e pudesse assim tornar-se mais ou menos comple- no essencial pela elaboração lógica da racionalidade, superando
tamente consciente também deste. Semelhantemente, no fenô- às vezes a própria racionalidade. E, para atingir o plano abstrato
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 227
da lei geral, o todo deve ser reconcebido em lampejos pelo mé- normal, tenta avizinhar-se do ―eu‖ cósmico, para coincidir o
todo da intuição. Os três métodos, sendo contíguos, podem mais possível com o pensamento e a vontade de Deus.
fundir-se e auxiliar-se mutuamente. Eis o que deveria ser a voz da consciência, para nos apontar
O certo é que o experimentador jamais poderá elevar-se ao a perfeita adesão à lei de Deus. Esta é a verdade que se encontra
campo das puras abstrações e generalizações, onde labora o teó- em nossa profundidade, porque Deus está em nós. Ora, o pro-
rico, terreno quase filosófico das formulações matemáticas, no blema então é saber quem é capaz de despertar, além da super-
qual somente aparecem as grandes leis unitárias. Assim como fície, em tais profundezas; quem consegue tornar-se consciente
numa casa de dois planos, também a teoria de Einstein da rela- da verdade universal? E, assim sendo, que aproximação essa
tividade generalizada, que abrange a gravitação, ergue-se e de- sincera voz interior – que chamamos voz da consciência e à
senvolve-se sobre a teoria da relatividade restrita. O valor de qual sentimos o dever de obedecer, como a qualquer coisa de
uma hipótese ou teoria está, pois, em poder abranger, com um sagrado que vem de Deus – representa e nos dá da verdade ab-
mínimo de axiomas, um máximo de conteúdo experimental. soluta, que está em Deus? Certamente, deveremos admitir que
Sobe-se, assim, do aspecto analítico e particular para uma con- não se pode tratar senão de aproximações maiores ou menores,
cepção sempre mais sintética e universal, até que, da mesma e estas dependem da evolução conseguida por cada um, isto é,
forma que a experiência deve ceder lugar à racionalidade, esta dependem do grau de sensibilização alcançado, que permite vi-
deve cedê-lo à intuição, se ainda quiser subir mais para o sinté- brar em sintonização com verdades sempre mais profundas,
tico e universal. Quanto mais se sobe, porém, tanto mais se ga- despertando consciente no interior divino.
nha em vastidão e tanto mais se perde em segurança experi- Se observarmos, então, ao redor de nós e atentarmos para o
mental na abstração; quanto mais se desce na realidade concre- nível espiritual da maioria humana, devemos afirmar que, não
ta, tanto mais se restringe o campo das nossas conclusões. podendo esta, dado o seu grau de involução, alcançar senão es-
Os dois caminhos são inversos: o primeiro vai da periferia cassas aproximações da verdade, a voz da consciência não re-
ao centro do sistema universal, para o absoluto; o segundo vai vela desta mais do que aspectos fragmentados, pequenas ver-
do centro à periferia, para o relativo. O primeiro certamente dades particularizadas, relativas a cada um, limitadas no con-
caminha para a verdade; o segundo, para a ilusão. Mas, ao se tingente e transitórias no tempo. Se, teoricamente, a voz da
subir, a verdade vai nos escapando, torna-se vaga, abstrata, in- consciência é sagrada, porque tende a dirigir-se para o Centro-
controlável, perdendo para nós, relativos que somos, a força da Deus, na maior parte dos casos é bem difícil que o atinja. Esta
verdade. Ao se descer, ela se torna mais palpável, mais concre- voz pode, então, ser apenas aquela da vida individual, claman-
ta, digamos mais verdadeira, ao mesmo tempo que nos encer- do somente em sua defesa e de seus interesses. Pode mesmo
ramos mais no limite do contingente e na ilusão do sensório. ser um longínquo eco da voz de Deus, porque todos têm o di-
Somos, desta forma, circundados por barreiras que nos obsta- reito e o dever de viver. Mas quanto estamos distanciados da
culizam o conhecimento por todos os lados. Nada mais nos universalidade do pensamento central, que protege toda a vida,
resta a não ser valer-nos dos três métodos, procurando a con- mesmo com o sacrifício da vida individual, pensamento que
cordância entre eles dos resultados obtidos com cada um e fa- está imensamente afastado do egoísmo exclusivista!
zendo com que cada qual forneça a contribuição de que é ca- É assim que estas ―verdades‖ individualizadas, particulari-
paz, ou seja: 1o) as diretrizes máximas da ordem universal, pe- zadas, embora sendo sinceras vozes de consciência, podem
lo método intuitivo; 2 o) a coordenação das observações e as di- entrar em conflito, provocando, em nome da verdade, o de-
retrizes menores, como uma ponte entre o primeiro e o tercei- sencadeamento de choques fratricidas, cada qual agindo em
ro, pelo método racional analítico; 3 o) o controle do resultado plena consciência. Bem poucos são aqueles que, no exemplo
dos outros dois, pelo método experimental. máximo de Cristo, sabem fazer coincidir a voz interior da
É certo que o governo do universo, a inteligência e o poder própria consciência com a voz do consciente cósmico, Deus,
que assumem a direção do funcionamento deste grande orga- voz que, mesmo procurando se fazer ouvir da profundidade,
nismo ou coletividade, não é exterior como o governo das quando tantos a interrogam, permanece às vezes sepultada e
nossas coletividades estatais, mas está no interior dos seres ou tão longe da normal consciência desperta, que dela não resta
fenômenos, de onde os guia. É indiscutível que o essencial, o senão um débil sussurro. Dela não nos chega, porque somos
que mais vale para o conhecimento, é o abstrato, dado que a surdos e involuídos, senão um balbucio tão incerto e às vezes
assim chamada realidade objetiva é superficial e secundária. contraditório, tão tímido e fragmentário, que mal percebemos
A verdadeira realidade não é exterior, mas sim interior, e tan- a voz de Deus e, mesmo assim, de tal forma humanizada atra-
to mais verdadeira e real se torna quanto mais interior, quanto vés de nossa consciência, que não conseguimos nem ao menos
mais distante da solidez do concreto. A chave dos mistérios reconhecê-la e a confundimos com os nossos desejos, que
está na abstração das grandes sínteses e não pode ser encon- qualificamos, então, como voz da consciência. E justamente
trada senão pela intuição. Assim, pois, os três métodos se es- os que assim a ouvem são os que mais alto gritam para melhor
calonam em três níveis diversos, como três graus do conheci- serem ouvidos! Daí, certa legítima desconfiança das autorida-
mento, com funções e resultados diferentes. Cada um necessi- des religiosas a respeito da voz interior, que, se em princípio é
ta ficar no seu plano, para fornecer, segundo a sua natureza e e deve ser sagrada, pode representar na prática apenas um ge-
potencialidade, o rendimento que pode dar. Eis a significação nuíno produto do ―eu‖ individual.
e o valor do fenômeno inspirativo em face da ciência e do É difícil julgar em tais casos. Mas é certo também que,
problema do conhecimento. existindo almas superiores, capazes de ouvir na própria cons-
Antes de deixar este argumento, observemos, transportando- ciência a voz de Deus, isto é, uma voz que se identifica, acima
nos para o terreno moral, um caso particular do referido fenô- do próprio egoísmo, com a vida universal, essas almas devem
meno, caso que podemos chamar de voz da consciência. Fenô- saber superar todas as resistências e obstáculos – indispensá-
menos de inspiração, pode-se dizer que se verificam todas as ve- vel barreira interposta a essas exceções para prová-las – cria-
zes que alguém consulta o próprio ―eu‖ profundo, para conhecer dos com a norma estabelecida pela maioria humana, que é de
a verdade em torno da própria conduta. Dissemos acima que as involuídos. De outro lado, as autoridades religiosas, que jul-
inspirações se ligam a um centro único – Deus – e que Deus é gam a matéria, defrontam-se com dificuldades nada pequenas.
interior, e não exterior a nós. Trata-se de uma ampliação da pe- É verdade que a voz da consciência é sagrada, mas, se exage-
quena consciência individual no consciente cósmico, na qual o rarmos na liberdade, caímos na anarquia do livre exame. É
―eu‖ superficial, feito de contingente, isto é, a nossa consciência também verdade que, frequentemente, o que denominamos de
228 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
voz de consciência pode ser um puro juízo pessoal. Urge, É este pensamento uno que reconduz as infinitas formas à
pois, uma norma à qual a consciência seja submetida, limitan- unidade do Todo e constitui a universalidade da Lei-Una. En-
do assim a sua liberdade. Mas, igualmente, se exorbitarmos na tão, que diferença existirá, por exemplo, entre a pedra, a árvo-
disciplina, caímos na tirania. É lógica, pois, a atitude inicial re e o gênio? Ela reside no grau em que a individualização do
de suspeita mantida pelas autoridades religiosas em relação a ser, segundo seu plano evolutivo, consegue participar desse
quantos se digam inspirados. A estes incumbe demonstrar, consciente universal, isto é, consegue despertar consciente-
depois, através de toda a sua vida, que a voz interior não os mente, ou seja, em consonância, no seio do pensamento de
enganou. É um controle necessário para eles mesmos. E se a Deus. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o universo é
voz realmente vem de Deus, ela encontrará tanta força nos fa- inteiramente feito dessa primordial substância conceptual, que
tos e sabedoria nos conceitos, que se imporá a todos, tanto ao é o pensamento de Deus, qual infinito oceano vibrante, em cu-
inspirado quanto aos juízes. E não faltam os exemplos que nos jo seio, porém, cada individualização do ser não vibra da
demonstram quantas vezes estes últimos tiveram, embora tar- mesma forma, sendo mais ou menos desperta e participe como
diamente e contradizendo as suas primeiras condenações, que estado de consciência dessa vibração. Em tudo o que existe,
reconhecer a verdade da inspiração. há a possibilidade de poder atingir toda a vibração do pensa-
mento de Deus, mas tal vibração não existe em atividade, ela
XIX. A ALMA E DEUS está latente, adormecida, à espera de gradual despertar. É a es-
te despertar que se denomina evolução.
O estudo do fenômeno inspirativo nos leva agora a conside- Podemos agora melhor compreender o significado dos con-
rar as relações entre a alma e Deus. Nas páginas precedentes, ceitos de subconsciente, consciente e superconsciente, já expos-
comparamos a expansão do pequeno consciente individual no tos no volume Ascese Mística. O consciente é a zona de traba-
infinito consciente cósmico, que constitui o fenômeno inspira- lho (com a experiência da vida), em que o ser desperta, para en-
tivo, com o caso em que uma célula individualizada pudesse al- trar em vibração no consciente universal. A evolução não é, as-
cançar a consciência de todo o organismo humano. Cabe agora, sim, um avanço cego, mas um despertar vibratório, segundo es-
aqui, indagar se estas relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ quemas pré-existentes, por conseguinte pré-estabelecidos, no
cósmico, isto é, entre a alma e Deus, serão as mesmas que ocor- consciente universal. O subconsciente é a consonância, a sinto-
rem entre uma célula e todo o organismo? nização já adquirida com esse consciente e estabilizada nos au-
É certo que, desde o átomo até à molécula, ao cristal, à célu- tomatismos (instintos, ideias inatas etc.). Ele abre o campo já
la e a todas as formas de vida individual e coletiva, se cada indi- explorado pelo ser na experiência realizada na vida, é sua pro-
vidualização do ser revela saber quanto lhe basta para existir, priedade e expressa suas qualidades. Ele coincide com o pen-
não tem, todavia, de modo algum, consciência do todo. O pró- samento de Deus, mas nos mais baixos planos de sua expres-
prio homem, que se situa no ápice da evolução biológica, não são, sendo, pois, guiado pelo consciente, que já começa a vibrar
tem consciência senão de uma parte mínima da sua vida, da qual nos planos mais elevados. O superconsciente é o pensamento
só possui muito limitadamente as diretrizes. Temos, então, que de Deus, ainda latente e adormecido no ser, que ainda não se
atribuir ao consciente universal esse conhecimento que as indi- pôs a vibrar em zonas evolutivas mais elevadas. Ele está, pois,
vidualizações isoladas do ser não possuem propriamente. Assim para o ser, ainda em estado de não-consciência.
se delineiam as relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmi- Poderemos dizer com o suave Virgílio: ―Mens agitat mo-
co, isto é, entre a alma (tomada no sentido lato, inclusive como a lem‖25, no sentido de que, dentro de cada forma e atrás de toda
alma das coisas) e Deus. Ora, imaginar que cada uma das várias aparência, há um proporcionado despertar, com relação ao di-
individualizações do ser representa a sede de uma íntima ima- vino, de um estado vibratório que a rege. Veremos, então, atrás
nência neles, no fundo e além do seu relativo consciente, do da hierarquia das formas, uma interior hierarquia de consciên-
consciente do ―eu‖ universal, que sabe e pensa em cada ser, den- cias, constituída pelos graus de consonância atingidos pelo ser
tro dos limites de sua natureza, provendo-lhe a vida – imaginar em relação com o pensamento divino. Desta forma, no consci-
tudo isto é mais plausível e convincente do que conceber um ente do indivíduo vão surgindo problemas cada vez mais vastos
universo regido, não se sabe como e por que meios, por um e complexos, à medida que ele sobe. A uma planta bastará re-
consciente ―eu‖ universal que lhe é exterior e estranho. Vimos solver o problema da assimilação e respiração. O gênio sentirá
que Deus não é exterior, mas íntimo do ser, e concluímos pela necessidade de resolver o problema do universo.
Sua imanência neste. Isto tanto mais se tornará convincente Assim, pois, vemos que as posições de subconsciente, cons-
quanto mais percebermos que ela, se parece conduzir-nos à im- ciente e superconsciente são relativas ao grau de evolução de ca-
pessoalidade de Deus e ao imanentismo panteísta, de fato não da ser. Para o homem racional, o subconsciente representa apenas
exclui nem lesa o conceito do Deus pessoal e transcendente. o pensamento sensitivo do animal e vegetativo da planta. Para o
O consciente universal é, pois, íntimo ao ser, representan- animal, é subconsciente este último, enquanto para a planta é
do o imenso fundo de sabedoria que guia toda a sua vida, sem subconsciente o pensamento molecular, isto é, aquele que preside
que ele se aperceba de nada. Neste campo se incluem o funcio- à construção e funcionamento dos elementos químicos compo-
namento orgânico e tudo o que é guiado pelo instinto, como o nentes; para estes, o subconsciente é o pensamento atômico, que
desenvolvimento das alternativas coletivas que constituem a his- estabelece os diferentes edifícios eletrônicos componentes.
tória. Também se incluem a Lei, que enquadra os nossos atos li- E, na direção oposta, podemos dizer que, assim como, para
vres na férrea concatenação causal e depois se desenvolve no o homem racional, o superconsciente é o pensamento intuitivo
destino individual e coletivo, e a oportuna intervenção da Provi- sintético do super-homem, o superconsciente, para o animal, é
dência, como guia e ação situadas além do conhecimento e das o pensamento racional humano; para a planta, é o pensamento
forças humanas, e assim por diante. Se o universo foi gerado, sensitivo do animal; para a molécula da química inorgânica, é o
como vimos, por uma substância pensante, o que vale dizer, feito pensamento celular vegetativo da planta e, para o átomo, é o
de divina imanência, então todo ser, justamente por esta razão, é pensamento molecular da química. Assim se pode compreender
por ela constituído, ou seja, é pensante na sua profundidade. Se o sentido que está no fundo das palavras de Sertillanges: ―na
ele não tem disso consciência, não importa. De como ele vive e natureza tudo tende a subir. A apoteose da matéria está no ve-
funciona devemos deduzir que este pensamento está nele, mesmo getar; a do vegetal, no sentir; a do animal, no pensar‖.
que ele não o note, como também está até nas mais involuídas
25
formas da matéria bruta, e não apenas nos seres evoluídos. ―O espírito move a matéria‖. Eneida, VI: 727. (N. do T)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 229
Como se vê, o ser, da mesma forma que o homem, move-se de todos os esplendores do concebível. Estamos encarcerados
em um ilimitado oceano de pensamento, em que o seu próprio na matéria. Em torno, tudo nos empareda nas barreiras de nos-
avança e se expande mais ou menos, conforme o estado de sa insensibilidade. E o involuído não arde senão na ânsia de re-
consonância que ele, evolvendo, consegue atingir. O pequeno focilar na lama das suas baixezas, porque aí estão os seus atra-
―eu‖ individual tem de se haver sempre com este consciente tivos, porque essa é para ele a vida. Que pobre vida, quando
universal, que é o Deus imanente, onde ele está imerso, como somos feitos de infinito e para o infinito! Pobre involuído, ma-
em uma atmosfera de pensamento, que ele respira com o seu nobrado como um fantoche pela Lei, crendo comandar, quan-
pensamento e com o qual se comunica por um contato que do, no fundo, mais não faz senão obedecer, porque é ela que o
constitui a vida. Para o homem, o Deus imanente é uma zona comanda e deve comandar como a um títere, pois ele nada sa-
ilimitada, situada além da sua consciência, e qualquer processo be e não pode de fato nada dirigir!
evolutivo, até à fulguração do gênio, constitui uma aproxima- Mas observemos ainda as relações entre o ―eu‖ individual e
ção Dele por progressiva consonância. Estamos circundados o ―eu‖ cósmico. Já idealizamos o consciente individual, sedia-
pelo mistério. Mas a evolução consiste justamente na expansão do no consciente universal, como as células no organismo hu-
de nosso consciente individual no infinito consciente cósmico. mano. Já conhecemos a estrutura hierárquica piramidal dos se-
Poderemos imaginar o primeiro como uma pequena circunfe- res, pela qual, consoante o principio das unidades coletivas,
rência que, partindo do mesmo centro, se dilata no seio da in- passa-se a um número crescentemente reduzido de individuali-
finita circunferência do consciente universal. Podemos tam- zações sempre mais sintéticas, partindo de uma incomensurá-
bém representar a substância pensante do Deus imanente, vel quantidade de individualizações, tanto mais particulariza-
constitutiva do Todo, por um inflamar-se de estados vibrató- das e analíticas quanto mais descemos na escala dos seres. As-
rios mais ou menos intensos e complexos em vários pontos, sim, da célula se desce à molécula, depois aos átomos, aos elé-
que formam, deste modo, os centros pensantes que constituem trons etc., ao passo que se sobe para o órgão, para o organismo
o consciente dos vários ―eu‖ individualizados. O fenômeno completo, para o grupo familiar, nacional, para a humanidade
inspirativo não passaria, então, de um índice que nos revela etc. O mesmo se dá no plano da matéria inorgânica e na cons-
haver sido realizado pelo ser, através de um despertar vibrató- trução dos universos estelares. Esta, em cadeia, é a técnica
rio, mais um lanço evolutivo, uma dilatação de consciência, construtiva dos edifícios do ser.
expressão de uma catarse biológica. Ora, dissemos que, por trás dessa estrutura física, existe
O que espera o homem ao despertar no superconsciente é o uma outra mais real que a rege, a espiritual, animadora dessas
Deus imanente, o consciente cósmico. Ali já está escrita a res- unidades, uma estrutura hierárquica piramidal, feita de pen-
posta a todos os porquês, feitas estão todas as descobertas, evi- samento. O universo não será inteligível se, atrás da hierar-
dentes são todos os mistérios. Segue-se daí que o problema do quia exterior das formas, não enxergarmos essa outra hierar-
conhecimento é, sobretudo, uma questão de maturação bioló- quia de motivos conceptuais ou de modelos abstratos, que são
gica. É principalmente esta, e não as elucubrações racionais, aqueles segundo os quais as formas se plasmam. Por trás dos
que inflama o lampejo ao gênio, porque, sendo evolução, leva planos biológicos existem planos conceptuais que se sobre-
o homem a vibrar harmonicamente mais próximo do pensa- põem e se escalonam ascendentemente, numa hierarquia de
mento de Deus. Então, entrando num plano de vida mais alto, princípios espirituais que culminam em Deus, vértice da pi-
nasce uma nova sensibilização espiritual; o que antes era um râmide ou centro da circunferência. Segue-se daí que, com o
superconcebível, torna-se espontaneamente inteligível e se re- progresso da evolução, se a forma muda é porque, sobretudo,
vela. Quando não é o indivíduo isolado que avança (o gênio), muda a natureza do pensamento que ela expressa, assim como
mas um grupo ou mesmo a massa humana, então o fenômeno muda a consciência do ser em consequência da elaboração do
inspirativo se generaliza segundo a potência de cada um, sur- viver. O que existe, portanto, de substancial no substrato da
gindo a era das conquistas do pensamento, os grandes séculos evolução e no que a rege é o progressivo despertar do ―eu‖ em
construtivos, as descobertas em cadeia, como hoje. Tudo ex- um estado vibratório cada vez mais elevado.
plode, assim, em um surto evolutivo, em todas as partes do Estamos, agora, em condições de encarar a evolução de
mundo, quase contemporaneamente, acreditando cada célula um modo mais substancial, isto é, mais correspondente à ver-
da humanidade haver feito uma descoberta com seu engenho. dadeira realidade, que é interior à forma. A evolução não é,
Todavia trata-se apenas de uma maturação biológica geral. Es- pois, um aprimoramento de organismos, a não ser como últi-
ta é a razão pela qual somente hoje se fizeram descobertas an- ma consequência. Ela corresponde, pelo contrário, a um con-
tes julgadas impossíveis e inconcebíveis pelo homem. E logo ceito metafísico: despertar o espírito, mobilizando as qualida-
chegarão novas orientações sobre aquilo que atualmente é to- des adormecidas e latentes no inconsciente, para, com isto, re-
mado por superconcebível. No fundo, trata-se tão somente de construir, através da experiência na matéria, o sistema espiri-
sensibilizações progressivas, de que nascem mais elevadas tual desmoronado, até que o Deus imanente, nele incorporado,
consonâncias ou sintonizações com o pensamento de Deus. retorne ao estado de origem e coincida com o Seu aspecto
Toda a evolução se reduz, assim, a um problema de sensi- transcendente. Assim, a formação das unidades coletivas em
bilização nesse sentido. As janelas de nosso consciente sobre o dimensões cada vez mais vastas, não constitui apenas uma
mundo hoje são limitadas. E é preciso ser bastante involuído, agregação de elementos, mas uma organização dos mesmos,
isto é, adormecido, para sentir-se bem satisfeito em uma casa de modo que cada unidade superior represente uma perfeição
tão pequena e escura. A conquista da verdadeira liberdade não maior, conseguida por efeito de mais profunda manifestação
está na liberdade de mostrar-se animalesco, mas em despertar a do espírito, mais profundamente desperto.
consciência, que nos permite sair da tremenda prisão da igno- Não se trata, pois, de ver no universo somente um infinito
rância e da inconsciência. Quantas mensagens, constantemen- oceano de pensamento, uma infinita atmosfera pensante, de que
te, o consciente universal não enviará ao nosso minúsculo tudo vive. Isto é verdade, mas é insuficiente. Nela se formaram,
consciente individual! Maravilhosos apelos, e nós continuamos como dissemos, núcleos de consciências individuais, assim co-
surdos, sem compreender! Tudo vibra de pensamento e freme mo no espaço cósmico, paralelamente, formaram-se núcleos de
de vida em derredor de nós, e não sabemos pôr-nos em contato matéria. Ora, em nosso universo, o aspecto mais preciso do
com este maravilhoso universo saturado de Deus, porque não Deus imanente, que não pode ser uma uniforme e informe at-
estamos sensibilizados, não sabemos vibrar em uníssono, para mosfera pensante, é estar individualizado em infinitos núcleos
ouvir e responder. E permanecemos mudos e inertes no vórtice de consciência ou ―eus‖ pensantes.
230 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Eis no que consiste a imanência de Deus em nosso universo: aspecto negativo de sacrifício. Este, de fato, representa para a
ter querido, por amor, seguir o Sistema no seu desmoronamen- criatura decaída a única forma de verdadeiro amor construtivo.
to! Eis no que consiste a maior paixão de Deus por todo o seu O amor-gozo é apenas uma recordação da sua origem; gozo li-
universo: a sua encarnação e crucificação além do Gólgota! Eis mitado, fugaz, ilusório, quase que somente tolerado como mera
como se explica o ―Tu habitas in me‖, como a presença de introdução ao amor-sacrifício, que não é efêmero nem ilusório,
Deus é íntima a nós e às coisas! Eis porque Cristo pôde dizer: mas o único verdadeiro e construtivo. Fragmentação, reunifica-
―Vós sois Deuses‖. Poderá parecer audaciosa esta concepção, ção. Deus está sempre presente, é sempre o Todo. Reunificar-se
mas é a única que tudo aclara em profundidade. é o grande propósito de todo o universo, porque no fundo de
Vemos, efetivamente, que cada unidade coletiva superior todas as formas há um pequeno fragmento de Deus, que tem
não representa somente a soma das suas unidades componen- fome de voltar a ser Uno. Se o universo é todo um desencade-
tes, mas alguma coisa a mais. Nela há coordenação e organiza- amento de antagonismos, desde o plano físico ao espiritual (re-
ção da atividade dos elementos constitutivos, criação, por con- pulsão-ódio), ele é também um anseio de amplexo em todos os
seguinte, de qualidades que eles não possuem isoladamente, planos (atração-amor). Fragmentação significa a revolta e o
execução de encargos que eles, sozinhos, não poderiam reali- desmoronamento, terminando no caos. Reunificação significa a
zar. Com a fusão das unidades menores em unidades coletivas, obediência e a reconstrução, terminando na ordem do Uno.
nasce algo de novo, que antes não existia em nenhuma delas e Este é também o caminho de nosso mundo. Se descermos
que elas somente conseguem com essa união. Isto tem um pro- aos graus e tempos mais involuídos da humanidade, encontra-
fundo significado. Antes de tudo, o nascimento dessa qualquer remos aí o politeísmo. Deus estava fragmentado também como
coisa de novo não pode deixar de ser um desenvolvimento do concepção e vinha sendo, desde os tempos da Grécia e de Roma,
latente, como vimos, porque, de outra maneira, ele seria inex- adorado por fragmentos. Mas deu-se a superação na unificação,
plicável. E desenvolvimento do latente não pode significar se- passando-se ao monoteísmo. Então a humanidade volveu o olhar
não maturação evolutiva no espírito, isto é, o despertar do ser mais para o alto, deixando a dispersão divina pelo Centro-Uno,
no seio do Deus imanente, como vimos. Mas há mais. É que e, mais amadurecida, pôde compreender melhor a unificação.
tudo isto só se verifica com a técnica das unidades coletivas. Mas não basta. O politeísmo está para o monoteísmo, como este
Logo, esse desenvolvimento do latente e o despertar do Deus para o monismo. Atentemos para este fundamental conceito do
imanente no espírito de cada ser não ocorre senão por reunifi- Uno, e não apenas para o significado que se pode dar a esta pa-
cação dos fragmentos de um sistema desmoronado, senão por lavra, por ter sido usada por esta ou aquela escola filosófica.
irmanação e fusão, em organismos superiores mais vastos e Monismo aqui significa ter compreendido não somente a unida-
orgânicos, dos diversos ―eus‖, em que o Ser-Uno se fragmen- de de Deus, mas também a unidade do Todo, pela qual tudo o
tou originariamente. Podemos então dizer que a lei das unida- que existe forma um sistema único, do qual Deus é o centro.
des coletivas, por nós algures mencionada e demonstrada, nos A vida do indivíduo se torna grande quando ele compreende
prova que a reunificação é o sistema de reconstrução, assim que é, no sentido exposto, o filho de Deus. Grande coisa se torna
quem se reunifica se reconstrói. Eis, portanto, a técnica do re- a organização da sociedade humana, quando é concebida como
torno do Anti-Sistema ao Sistema. um momento do processo de reorganização do universo, que se
Concluímos, agora, com uma grave afirmação, levando até está reconstituindo para retornar a Deus. Eis o grande sentido
às últimas consequências os motivos acima assinalados. As di- teológico que se pode conferir à política e ao Estado moderno. O
ferentes almas individualizadas são fragmentos do Espírito e indivíduo é uma célula sua, e esse Estado é uma célula da hu-
constituem cada individualização decaída em toda forma exis- manidade, que é célula da vida. E ai de quem falsear os valores
tente. O que anima o ser e sem o que não pode haver existência substanciais e usurpar, perante a hierarquia que se inicia em
é a doação por amor do Deus-Criador, que não abandonou a Deus, uma posição que não corresponde aos valores intrínsecos.
criação, mas nela permaneceu em seu aspecto de Deus imanen- Permanece para todos, crentes ou ateus, a imanência de Deus, e
te. Foi dessa doação por amor que nasceram os diferentes espí- quem forja mistificações ou falseamentos experimenta na pró-
ritos, não apenas os incorruptos do Sistema, mas também os pria carne o punhal da dor. Mas nem por isso a reconstrução es-
corruptos do Anti-Sistema. E estes, no plano humano, somos taca. Perde-se o indivíduo, mas o Sistema se reconstrói da mes-
nós, homens, como almas. Quando, pois, chamamos estas de ma forma, porque esta é a Lei. O ser tem de se reconstruir plano
centelhas divinas, devemos subentender fragmentos de Deus. E, por plano. E quando dizemos ser, dizemos a nossa alma, ou seja,
enquanto os espíritos incorruptos permaneceram unidos em centelha de Deus em nós imanente. E sofremos juntamente com
Deus, nós, espíritos rebeldes, ficamos isolados. Cada espírito Deus, porque, em sua profundeza, o nosso espírito é Deus. A
entre nós é um fragmento do Espírito-Deus, que, pulverizado alma sofre em Deus, e Deus sofre na alma.
em nós, no Anti-Sistema, precipitou-se conosco na forma. Eis Mas, cada vez que uma alma se irmana a uma outra, é um
em que sentido nós somos Deuses. E o somos! fragmento de Deus que se uniu a outro fragmento, e um passo
Explica-se, desta forma, por que essas centelhas têm tanta foi dado para a reunificação. O incêndio originário começa as-
fome de unidade, atraindo-se e rejubilando-se quando, superadas sim a reacender-se aqui e acolá pelas fagulhas semiextintas. Ca-
as resistências do Anti-Sistema, conseguem irmanar-se, como da duas chamas que se unem não ardem por duas, mas por qua-
recomenda o Evangelho. E a razão é justamente que, por mais tro. Satanás, força do Anti-Sistema, desesperadamente lança
que a rebelião do Anti-Sistema queira o contrário, elas se sentem água no fogo com a cisão, procurando frear a reconstrução, por-
dispersas, insuladas, e procuram na união recuperar a potência, a que esta significa o fim do seu reino, que é o caos. Mas, ascen-
inteligência, a vida. Por isso a unificação é criadora, pois ela é, e dendo assim, com a elaboração de cada célula e a fusão com ou-
só agora podemos entender, a reconstrução do universo desmo- tras células, as consciências individuais se reorganizam para re-
ronado, ou seja, do Deus-Uno, que se fragmentou em infinitos construir o ―eu‖ cósmico, a consciência do universo. Como dis-
―eu‖ menores e, do Seu aspecto imanente, reunifica-se para semos, cada consciência inferior, em face da superior, é sempre
atingir novamente o Uno, representado por Deus no Seu aspecto de caráter analítico, enquanto a superior, diante da inferior, é de
transcendente. Todo o grande drama do ser decaído pode, assim, caráter sintético. A superior adquire funções de coordenação pa-
resumir-se em duas palavras: fragmentação e reunificação. ra fins mais elevados, antes ignorados. Uma célula se torna dife-
Fragmentação, reunificação! A potência reconstrutora do rente quando faz parte de um organismo, assim como um ho-
Todo é dada pelo mesmo amor que caracterizou a primeira gê- mem, quando integra um exército ou qualquer organização soci-
nese, mesmo quando, na reconstrução, ele devesse assumir o al. Ele então age e produz de outro modo. Há uma sublimação e
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 231
valorização do seu ―eu‖, assim enquadrado em funções mais al- lutivas, já que menos ferozes ele não sabe praticar, e as atuais
tas, flanqueado por outras funções que o completam na colabo- são as de que ele necessita, sendo elas proporcionadas ao seu
ração. Colaborar é muito mais do que trabalhar, quer pelos fins, grau de inconsciência. Porém, quem tem ouvidos para ouvir
quer pelos meios, seja pela unidade coletiva, seja pelo indivíduo. que ouça e quem tem intelecto para compreender que compre-
Quanto mais orgânica se torna a vida, tanto mais altos, vastos e enda, pois que o quadro da visão do ser está completo e é che-
poderosos são os fins que se podem atingir. gada a hora em que a verdade será dita abertamente sem véus,
Com esta orientação cósmica, podemos apreciar o valor de pelo menos aos mais evoluídos, que podem compreendê-la.
cada ato nosso, quer como indivíduos, quer como sociedade. Quem chegar a compreender tudo isto, sabe que é uma eter-
Tudo evolve, e nós evolvemos como indivíduos e como socie- na, indestrutível, centelha de Deus. Sabe também que, no seu
dade, em demanda de sínteses mais vastas, profundas e com- aspecto imanente, Deus está presente em nosso universo, até
preensíveis. Nós, centelhas de Deus, somos os operários de em nossas menores coisas, e que nós não só podemos senti-Lo
Deus para a reintegração do Deus imanente. A nossa vida não espiritualmente, mas igualmente vê-Lo. Se não nos é dado con-
pode ter significação a não ser quando nos colocamos em fun- ceber o Deus transcendente, podemos, no entanto, ver o sem-
ção desta reconstrução. O Deus imanente dorme em nossas pro- blante do Deus imanente, pois que toda forma de existência é
fundezas. Despertando-nos ou ressurgindo Ele – o que é a uma expressão do pensamento e da vontade Dele, é uma mani-
mesma coisa – na profundidade do nosso espírito, reconstruir- festação do seu ser. Certamente, sendo Ele um infinito, nós não
se-á o estado de consciência daquele universo (o Espírito) que podemos limitá-lo no relativo de uma forma particular. Ele
agora jaz no estado de inconsciência em que o homem se en- permanece um infinito e tem, pois, infinitos rostos, que vere-
contra hoje. Isto não significa que o ser, o nosso minúsculo mos expressos em tudo o que é beleza, bondade, floração de vi-
―eu‖, se torne Deus, mas sim que Deus volta a ser qual era an- da e de alegria. Esta é, efetivamente, a manifestação do Sistema
tes do desmoronamento do Sistema. Não somos nós, insignifi- no lado positivo do ser. Esse sistema, tão logo floresce, já é mi-
cantes homens, que de novo nos devemos encher de orgulho, nado pelo Anti-Sistema, negador e destruidor de beleza, de
mas é Deus que em nós deve despertar cada vez mais, a fim de bondade, de vida, de alegria. É assim que tudo se estiola, cor-
que o nosso ―eu‖ desapareça reabsorvido Nele. Por isso, nos rompe-se e morre. Mas o Deus imanente, sendo a alma das coi-
capítulos precedentes, insistimos na atitude a assumir, e que o sas, continua do íntimo delas a manifestar-se numa incessante
místico assume, pela qual o desenvolvimento do ―eu‖ humano floração, e, assim, embora tudo feneça, corrompa-se e morra,
consiste na sua anulação em Deus. Isto porque, compreendamo- tudo de novo refloresce e revive. Desta forma, o Sistema, não
lo bem, não é o nosso ―eu‖ egoísta e separatista, filho do Anti- obstante os contínuos assaltos do Anti-Sistema, venceu, vence e
Sistema, cindido e rebelde a Deus, que devemos desenvolver; vencerá sempre, sendo o mais forte.
devemos, isto sim, despertar justamente o nosso outro ―eu‖, di- Esta é a significação de tudo o que existe em derredor de
vino, que dorme nas profundezas de nosso espírito. Se agirmos nós, de tudo o que nós mesmos vivemos. E, quando o homem
noutra direção, caminharemos, ao invés, para a destruição, e peca, ele se coloca no campo do Anti-Sistema, ao sabor das su-
não para a reconstrução; em lugar de seguir a via: ―fragmenta- as forças, das quais nada mais pode esperar, senão dor. Toda
ção, reunificação‖, seguiremos a oposta: ―fragmentação, frag- vez que praticamos o mal, renovamos a primeira revolta com as
mentando-nos mais ainda‖. suas consequências. E temos de subir até nos havermos reequi-
Concluindo, procuremos penetrar esta estupenda realidade librado na Lei, reingressando na sua ordem, por ter seguido as
em profundidade. Todos os seres são uno, isto é, na íntima es- suas normas de harmonia e de amor.
sência espiritual de todas as individualizações existe uma Somente o homem que sabe tudo isto, compreendendo a vi-
substância que as funde em unidade, pela qual todas elas re- da, orienta-se no Todo, deixando de ser um cego entregue a
tornam ao centro comum, que tudo irradia e tudo atrai, o Cen- forças ignotas, para se tornar senhor de si e do seu destino.
tro-Uno, Deus. No fundo de todos os seres está este centro, no
qual cessa qualquer distinção e a infinita pulverização dos XX. VISÃO SÍNTESE
―eus‖, separados na periferia do Sistema, reencontra a sua
unidade em um só ―Eu‖. Por isto, amando o seu próximo, o Antes de terminar definitivamente esta argumentação, fa-
indivíduo caminha para Deus; por isto a via que o conduz a çamos um seu resumo completo, a fim de que fique inteiramen-
Deus é a unificação. O ser avizinha-se tanto mais do Centro- te claro o nosso pensamento em uma visão de conjunto, em um
Deus quanto mais sente que a sua alma e a dos outros seres panorama sintético, partindo do começo.
são uma só coisa. Assim, pois, evolução, espiritualização e Já vimos que três são os aspectos da Substância, ou três são
unificação caminham paralelamente. Hoje, quem ama a Deus os momentos da Trindade de Deus: 1o) o Espírito: a concepção;
O ama em todas as criaturas, e quem vive em todas as criatu- 2o) o Pai: o Verbo, a ação; 3o) o Filho: a criatura. Todos são o
ras vive em Deus, ao passo que, quanto mais egoisticamente mesmo Deus em Seus três momentos. No primeiro momento, a
se vive, tanto mais se vive distanciado de Deus. criação é concebida; no segundo, executada; no terceiro, acaba-
Não se deveriam dizer estas coisas abertamente ao mundo da. Neste terceiro momento, o incêndio de todo o ser como que
involuído de hoje, porque ele está sempre pronto a dar a elas se dividiu em infinitas centelhas: as criaturas. Temos de recor-
uma interpretação às avessas, satânica. Não se deveria dar ao rer a essas representações antropomórficas, para tornar inteligí-
público a solução dos mistérios obtida aqui por intuição, ina- vel o processo. O que nós, filhos do relativo no espaço-tempo,
cessível pela via racional, solução que deveria ser, pois, natu- apresentamos como uma divisão, deu-se por amor, que é o di-
ralmente proibida. Poder-se-ia repetir: ―não atireis pérolas aos vino princípio da criação. Já vimos (Cap. IV) que foi só e ex-
porcos, a fim de que não as pisem com os pés e se voltem con- clusivamente neste único princípio de amor que se baseou a
tra vós, para dilacerar-vos‖26. Por isto tais coisas são ditas em criação, a ele podendo-se reduzir todos os outros, que nada
livros de complexa concepção, que os cérebros preguiçosos e mais são do que derivação dele. Por criação entendemos aqui a
ignorantes repelem e que a maioria dificilmente penetra, justa- originária dos espíritos perfeitos, e não a nossa atual, que é uma
mente para que poucos as conheçam, mas as possam encontrar deformação daquela. Nessa primeira criação ―perfeita‖, as cria-
prontas quando hajam amadurecido. Ademais, é necessário dei- turas, centelhas em que o incêndio divino se dividiu por amor
xar o mundo de hoje entregue às suas ferozes exercitações evo- (criação), continuam ―Uno‖, porque estão fundidas em um só
organismo unitário – Deus – que se cindiu para dar por amor o
26
Mateus, 7:6. (N. do T.) ser às criaturas espirituais, mas cindiu-se apenas no Seu interi-
232 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
or, permanecendo como um todo orgânico, uno e indivisível, do espírito, energia, matéria, para depois se recompor no trans-
qual as criaturas, espíritos perfeitos, fazem parte. formismo evolutivo: matéria, energia, espírito. (Para nós, seres
Até aqui, a unidade do Deus trino, nos seus três aspectos, decaídos, o espírito é também o ponto de chegada, por isso o
está intacta. A criação puramente espiritual ocorreu no seio do concebemos por último na Trindade).
Todo-Uno, e nele permanece. Deus quis multiplicar-se em in- Somente agora poderíamos chegar a compreender a origem
finitos seres, permanecendo ―uno‖. Com tudo isto, as concep- e a significação das três formas: , , , expostas em A Grande
ções antropomórficas, relativas à nossa posição humana, que é Síntese. Elas, realmente, nada mais são que uma posição inver-
completamente diversa, nada tem a ver e obstaculizam mais do tida e decaída da primeira e originária Trindade perfeita. Fala-
que facilitam a compreensão. Em outras palavras, poderemos mos aqui da primeira criação e também da segunda, sua contra-
imaginar esse processo criador como uma elaboração íntima fação, advinda com o desmoronamento do Sistema após a que-
pela qual um Deus uniforme, indistinto, se transformou em um da, quando vimos (final do Cap. XIII – ―In principio erat Ver-
organismo que, permanecendo ―uno‖, diferenciou-se no seu ín- bum‖), na distinção de Deus-Uno em três momentos sucessi-
timo em elementos diversos, mas tão exatamente coordenados vos, o Seu sacrifício cósmico por amor à criatura, precipitando-
em hierarquias e funções, que mais contribui para reforçar do se com ela e nela, no Seu novo aspecto de imanência, nos antí-
que para demolir a originária unidade de Deus. Poderemos podas da Sua originária transcendência.
conceber esse processo criador como uma passagem, no seio É assim que até ao nosso universo se projeta o originário
de Deus, de um estado homogêneo e simples do Todo para ou- sistema uno da Trindade, conservando o seu esquema originá-
tro, diferenciado e orgânico, fato do qual deriva a estrutura or- rio, em forma de contrafação e inversão, como que contraído no
gânica do Sistema, que vemos conservar esse tipo de esquema sistema cindido, que foi expresso em A Grande Síntese, segun-
em todas as individualizações menores. Essa primeira criação, do a grande equação da Substância, pela fórmula:
puramente espiritual, consistiu, pois, justamente numa trans- =, que exprime a imensa respiração do trans-
formação do Todo em sistema orgânico e hierárquico, princí- formismo do universo. Só aqui poderíamos expor tudo isso, ha-
pio estrutural esse que depois todo ser repete, princípio do qual vendo amadurecido estes conceitos. E somente agora se pode
ele nos põe a prova sob os olhos, demonstrando-nos também compreender o verdadeiro valor dado à palavra Trindade (isto
que todo ser é feito à imagem e semelhança de Deus. Mas a es- é, ), em A Grande Síntese, em que , ,  representam
trutura orgânica e hierárquica da criação originária não é pro- a projeção invertida – portanto cindida em três momentos di-
vada apenas pela estrutura semelhante que cada individualiza- versos – no Anti-Sistema, da Trindade una do sistema íntegro.
ção do ser repete depois, em ponto menor, mas também pelo Assim desmoronaram também as centelhas de Deus, da cri-
fato de que, nos antípodas, o Anti-Sistema, em que tudo se in- ação de origem, que continuam ainda a animar a criação cor-
verteu, oferece, justamente na maior profundidade de seu des- rupta. Desmoronou, também em parte, o terceiro aspecto, o Fi-
moronamento, as evidentes características do caos. Só assim lho, agora não mais incorrupto, uno com o Pai, mas junto às
este se explica como polo exatamente oposto ao estado orgâni- criaturas decaídas; um momento cindido, que se esforça e sofre,
co-hierárquico do originário sistema íntegro. com a ajuda de Cristo na Terra, Ele próprio Filho de Deus, para
Esta trindade compreende, pois, a primeira criação perfeita reascender à antiga perfeição, como nos aponta a cruz do Gól-
de puros espíritos existentes no seio de Deus. Dela faz parte gota. Compreende-se, deste modo, como Cristo, um dos espíri-
Cristo, Neste sentido é compreensível como Ele seja o Filho e a tos perfeitos – todos são o Filho – conservando-se unido com
terceira Pessoa ou momento da Trindade. Somente assim é Deus, tenha querido fundir-se na dor humana, encarnando na
compreensível que Ele seja Deus e uno com o Pai, que é o Ver- criatura terrestre imperfeita, ou seja, no Filho, aqui não mais in-
bo criador, a ação a que o Filho deve a sua gênese. corrupto e uno com o Pai, mas separado Dele, na humanidade
Até aqui temos, pois, três momentos. No primeiro, o Espí- de seres decaídos, exilados na matéria. Cabia não ao Espírito
rito pensou e concebeu; no segundo, o Pai, ou Verbo, agiu, cri- Santo ou ao Pai, mas ao Filho perfeito, socorrer o Filho imper-
ando; no terceiro, o Filho, íntima multiplicação, por amor do feito, criatura decaída, mas sempre criatura irmã.
Deus indistinto, teve existência. Mas tudo se deu sempre no Por essa razão Cristo nos ensinou a orar: ―Pai Nosso‖, en-
seio de Deus, que assim se conservou ―Uno‖, o Todo, intacto. quanto ele chamava: ―Pai Meu‖, com a mesma palavra que ex-
A referência contínua de Cristo ao Pai, com sentido de unida- prime a mesma relação de filiação perante o Pai comum, pelo
de, o retorno ao seio Dele, após a descida à Terra, nos dizem qual todos foram gerados. Assim, o Filho perfeito, sem culpa,
que os espíritos perfeitos estão sempre em Deus, no Seu tercei- quis permanecer irmão do filho decaído, para redimi-lo e fazê-
ro aspecto de Filho. Até aqui, tudo é Deus e perfeito. Logo lo retornar à antiga perfeição.
Cristo é espírito perfeito, é Deus, mesmo sendo Filho, o tercei- Isto implica a imanência de Deus também em todo o uni-
ro aspecto ou momento. verso, que deve ser dirigido e redimido por uma encarnação
◘◘◘ mais vasta do que a de um só espírito perfeito em favor de
A esta altura intervém um fato novo, acima descrito. Em uma só humanidade, ou seja, encarnação de todo o Filho (ter-
virtude do mau uso que a criatura fez da sua liberdade, ocorreu ceira pessoa da Trindade-Una, constituída pelos espíritos per-
a queda dos anjos. Parte dos espíritos se rebelou contra o Sis- feitos do sistema íntegro), para a salvação de todo o Filho
tema. O nosso universo não é a criação, mas o desmoronamen- (terceira pessoa da Trindade fragmentada, constituída pelos
to da criação, que foi espiritual e se tornou material; que foi de espíritos imperfeitos, pelas criaturas do sistema desmorona-
caráter infinito, mas decaiu na involução de dimensões cada do), de modo que o universo possa assim reerguer-se como
vez mais limitadas. Entendamos bem este conceito, pois que Filho, terceiro aspecto, do estado de Filho decaído e imperfei-
ele pode aparentemente parecer contradição com o que disse- to ao originário estado de perfeição, ou seja, do estado de Fi-
mos no final do Cap. XIII – ―In principio erat Verbum‖. A lho separado ao de Filho-Uno em Deus.
primeira criação, a verdadeira e perfeita obra de Deus, foi a ◘◘◘
espiritual. A nossa, material, é uma segunda criação, posterior Desçamos agora ao nosso universo. Ele, em sentido absolu-
e imperfeita contrafação da primeira. Na material, a originária to, não é o Todo, porque além dele há Deus, nos seus três as-
Trindade, em que Deus permanece Uno nos três momentos, pectos. Trata-se aqui de um organismo imperfeito no seio do
como já dissemos, se subverte em unidade fragmentada, cujos maior e perfeito organismo do Todo-Uno-Deus; trata-se de uma
três momentos: 1) a concepção, 2) a ação e 3) a obra, separam- unidade cindida, enferma, de uma criação destorcida, corrupta,
se em um transformismo sucessivo; primeiramente involutivo: desmoronada na forma-matéria; trata-se de uma criação contra-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 233
ída por involução e que, por evolução, deve novamente expan- Sem este mínimo de prazer (gula na alimentação e sexo para a
dir-se até Deus, de quem tentou destacar-se. Aqui, a originária reprodução), a carne recusar-se-ia a viver, não podendo, conse-
centelha espiritual está envolta nas trevas da forma-matéria, da quentemente, preencher a necessidade de sofrer. Deixemos,
qual deve, evoluindo, ressurgir, libertando-se dela. pois, os ingênuos crerem que viver seja alegria e que dar a vida
Somente assim é possível compreender o nosso universo seja dar alegria. Não! A vida é dor. O seu primeiro objetivo é
como uma contração de , em que o estado cinético evoluir, que é sofrer, ainda que para conquistar a felicidade. É
ondulatório da energia se enclausurou, fechando-se em si necessário viver, mas somente porque é necessário sofrer. Entre
mesmo, no estado cinético vorticoso, gerando a matéria, con- pais e filhos só há um traço de união: a comum dor humana. Ao
centração do espaço-fluido-dinâmico. Houve, assim, o desmo- corpo são concedidos alguns prazeres para estimulá-lo a viver e
ronamento das dimensões, de que nasceu primeiro o tempo e a sofrer. E os ingênuos, que não entenderam a estrutura do Sis-
depois o espaço, que se pôde contrair até ao ponto. Os fenô- tema, acreditam poder basear neles a sua felicidade. Ilusão! Os
menos de nosso mundo, os que a ciência objetiva toma pôr ba- prazeres, tão cobiçados na Terra e pelos quais tanto se luta, são
se e que reputa verdade, são posições contraídas, involuídas, por sua natureza limitados ao bastante para fazer viver e sofrer,
contorcidas e falseadas da verdade, que só se encontra no espí- o que parece uma traição. Mas como o escopo é evoluir, com a
rito em estado de perfeição em Deus. O que a ciência estuda é reconquista da felicidade perdida, deixa de haver traição. Por
o universo desmoronado em dimensões involuídas, é um esta- aqui se vê quanto otimismo há no fundo de nosso pessimismo.
do particular contraído do ser decaído. Somando os totais do cálculo utilitário das consequências de
Fundamentar-se no concreto como em uma base segura e tudo isso em relação ao homem, podemos dizer que, se a posi-
objetiva, denuncia uma fase espiritual involuída, que não sabe ção da criatura em um universo desmoronado é bem dura, por-
conceber senão em função da ilusão dos sentidos, aprofundan- que o seu destino é a dor na obrigatória fadiga de evoluir para
do-se assim nos mais baixos planos de vida, nos planos satâni- redimir-se, todavia, por mais decaída que ela esteja, resta-lhe
cos. E esta é uma razão pela qual a ciência permanece encerra- sempre o dom supremo da existência, que lhe ficou intacto,
da na análise e no relativo, sendo incapaz, pela própria nature- apesar de tudo, além da liberdade de aceitá-lo ou não. Na sua
za, de atingir as grandes sínteses universais com o seu método dor, ela é assistida sempre por aquele amor, permanente e divi-
de orientação. A ciência, fechada com o seu positivismo neste no princípio do ser. Ela pode recusar, se quiser, a existência,
universo, jamais poderá, sem o lampejo intuitivo que lhe revele mas certamente essa recusa lhe custaria o que chamamos de in-
conceitos para ela inacessíveis, compreender e admitir que o ferno, isto é, muita dor, com afastamento de Deus e imersão
mundo que ela aceita por verdadeiro não é senão um mundo às cada vez mais no mal, de modo que ela veria a conveniência de
avessas e negativo. Sem as grandes orientações, acessíveis só mudar de rota, recomeçando o esforço da ascensão. Todavia lhe
por intuição, ela tateia sempre no escuro. resta também a evasão da existência, ainda que não convenha,
Só assim tudo é logicamente inteligível. O egoísmo repre- com a precipitação no vazio. Mas à criatura, mais que essa li-
senta a contração do Sistema, que do infinito se fragmenta no berdade de escolha, reserva-se-lhe o dom da existência, tão
finito, em partes cada vez mais isoladas, isto é, egoístas, quanto grande que, se ele hoje, por causa da revolta e do desmorona-
mais ele se afunda no desmoronamento, na direção de Satanás. mento, significa dor, implica de outro lado a possibilidade de
Os espíritos não rebeldes, que se mantiveram perfeitos, ficaram recuperação, representando um absoluto direito à alegria. Ale-
fundidos em união com Deus. Os espíritos rebeldes fragmenta- gria remota, mas direito inalienável.
ram essa unidade em múltiplos ―eus‖ separados, até Satanás, Eis a posição do homem diante de Deus. Ela é o que é, e
que, no polo oposto de Deus (dualismo), representa a máxima ninguém pode mudá-la. O ser é livre e pode escolher. Há muita
contração do ser no egoísmo separatista. E o retorno a Deus é dor, mas existe a escada para subir, muito auxílio de amor, mui-
um afastamento de Satanás, expandindo-se no altruísmo. ta felicidade no alto. Há igualmente a escada para descer, que
A prisão em que desmoronou o espírito do homem é o seu nos dá uma ilusão de evasão, mas que, ao contrário, agrava a
corpo. Para reascender a Deus, o espírito do homem deve con- dor, até à infinita dor da anulação.
sumir na dor este seu invólucro, feito de carne-matéria, que é a (Só nesse sentido se pode falar de inferno eterno).
sua animalidade, a sua parte inferior, que pertence aos planos ◘◘◘
mais involuídos da existência. Temos vergonha de nossa nudez Quisemos, deste modo, esclarecer melhor e resumir o nosso
porque ela descobre a nossa animalidade, que nos torna seme- pensamento sobre o tema deste nosso livro, Deus e Universo,
lhantes aos animais, e a velamos para esconder e idealizar a em um quadro sintético, que vai de Deus ao homem, numa úl-
nossa miséria. No caminho evolutivo, há luta entre essa anima- tima síntese, que abrange e enquadra no infinito A Grande Sín-
lidade, que se encontra na cauda, e o espírito, que está na cabe- tese, nosso primeiro volume.
ça. A dor é o sacrifício da ascensão, que finda na libertação do
espírito. À animalidade é concedido, contudo, um pouco de
prazer, necessário para induzir a carne a viver. E a sua vida é FIM
necessária, a fim de que possamos suportar essa dor criadora.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 235
A CONDENAÇÃO – Nesta parte, é tratada a questão da
COMENTÁRIOS condenação ao Índex dos dois volumes: A Grande Síntese e
Ascese Mística. Não o apresentamos com espírito ou finali-
PRIMEIRA PARTE – O FENÔMENO dade de polêmica, sentimentos que não existem, em absolu-
to, no ânimo do autor. Se aqui desenterramos e resumimos
PREFÁCIO esta questão espinhosa, é com o único objetivo de uma do-
cumentação exata, feita na forma mais objetiva e imparcial,
Com o presente trabalho, Comentários, apresentamos o com duas finalidades:
1 o volume da ―Introdução à Segunda Obra‖, que chamamos 1) Fornecer aos leitores, reunido neste volume, um comple-
brasileira, porque nasceu e se desenvolveu no Brasil, depois to e preciso material para julgamento, porque é preciso esclare-
que para cá se transferiu seu instrumento humano, em de- cer tudo. Assim poderão julgar melhor, tendo diante dos olhos
zembro de 1952. os mais variados elementos, cujo conhecimento é indispensável
Explicaremos no princípio do 2o volume desta obra, Profe- para chegar a uma determinada conclusão.
cias, como ela nasceu em 1955 e 1954, o seu novo estilo, sua 2) Fixar num livro estes elementos, imparcialmente e sem
significação e conteúdo. preconceitos, de modo que outros, mais tarde, não se apos-
Esta nova Obra surge seguindo o esquema da primeira, de- sem deles, desvirtuando-os, para chegar em conclusões que
senvolvendo o mesmo pensamento em novos aspectos, ao não existem de forma alguma no pensamento do autor. Ne-
mesmo tempo em que acompanha o desenrolar-se da missão nhuma questão que lhe diga respeito ele deixou em estado
por ela expressada e o amadurecimento do espírito de seu ins- nebuloso e à mercê de interpretações alheias. Não são poucos
trumento, assim como do destino do mundo. os casos em que, por espírito de partidarismo, acontecimen-
◘ ◘ ◘ tos como esses são deformados, porque usados como bandei-
Esta segunda obra é a continuação da primeira, com a qual ra de reações e em defesa de ideias preconcebidas. Enquanto
se funde, formando uma obra maior, que representa não apenas o mundo procura reação e polêmica, o autor busca em toda
a construção de um sistema científico-filosófico-ético, como parte compreensão e união. Com esta documentação, deseja
ainda o amadurecimento do destino de um homem que é seu prevenir qualquer tentativa alheia de exploração do caso, pa-
instrumento, e do destino do mundo na hora histórica atual. ra fins particulares, contra esta ou aquela instituição, qual-
Se o leitor, aqui também, não viver esta maturação, dificil- quer que seja ela, pois, de acordo com os seus princípios, ele
mente poderá compreender e recolherá fruto bem mesquinho de não se sente inimigo de nenhuma delas.
sua leitura. Ater-se apenas à estrutura conceptual significa per- ◘ ◘ ◘
manecer na superfície, sem penetrar o sentido destes escritos, Assim, poderá o leitor brasileiro achar neste livro uma his-
que representam a ascese do homem para Deus, o progresso tória documentada do período incandescente da gênese e explo-
são do fenômeno inspirativo do sujeito, história muito diferente
cósmico do ser que evolve; observá-la sem vivê-la, não produ-
desta no atual período brasileiro. Desenvolveu-se ela num am-
zirá fruto. Aqui, não apresentamos literatura nem erudição. Es-
biente em que o Kardecismo era quase desconhecido e os pon-
tes livros foram todos vividos, foram escritos com sangue, dian-
tos de referência e de julgamento eram a ciência, a psicologia, a
te de Cristo, numa vida de tormento e de holocausto, numa hora
metapsíquica, a filosofia, o catolicismo etc. Era esse o ambiente
de redobrada dor para o instrumento e apocalíptica para o mun-
europeu, e o sujeito não podia modificá-lo.
do, ele também pregado, por causa de seus erros, à cruz da dor,
Poderemos, assim, nestas páginas documentárias, reviver
única que o pode redimir e salvar.
esta história, que, mesmo pertencendo ao passado, lança, no
Nestes novos volumes, o fenômeno intuitivo do instrumento
entanto, muita luz no presente preparado por ela e o explica,
– primeiramente enquadrado na mediunidade, a seguir na ultra-
mesmo sendo este tão diverso. História útil para fazer com-
fania, mais tarde como inspiração livre e consciente, que se tor- preender que outra longa e complexa história viveram estes
nou verdadeiro método de pesquisa filosófica e científica através livros antes de entrar no ambiente brasileiro, em que outro
de visões – tende cada vez mais a concluir-se numa catarse bio- mundo se moveram e que outros ambientes os influenciaram.
lógica, em que toda a personalidade do sujeito, ao emergir do História útil para mostrar a dificuldade que existe em incluir
plano normal evolutivo humano, se sublima na dor, por meio do e encerrar exclusivamente no espiritismo kardecista brasileiro
misticismo, que é sua fase final. Portanto a conclusão lógica de uma obra absolutamente universal, reduzindo esta a um sim-
toda a Obra que escreveremos será a ideia de Cristo, assim como ples produto mediúnico e o seu instrumento a um médium
a unificação com Ele é o objetivo final da vida do instrumento. adaptado à doutrina; história útil para demonstrar, a quantos
◘ ◘ ◘ acreditam que o mundo todo seja igual ao seu país, o grande
Procuremos, agora, resumir o significado e o conteúdo do esforço de adaptação que o sujeito teve de fazer para transfe-
presente volume, Comentários. Divide-se ele em três partes: rir-se, material e espiritualmente, para este hemisfério, que
O FENÔMENO – História e crítica. Nesta parte, está re- está, na realidade, nos antípodas do setentrional, tanto física
sumida a história da primeira manifestação do fenômeno, das como espiritualmente.
mensagens mediúnicas de terceiros que acompanharam seu Por isso, no limiar desta nova e Segunda Obra, que pertence
nascimento, além dos estudos críticos da Sociedade Italiana de ao período brasileiro, quisemos, antes de nela entrar, resumir e
Metapsíquica e de outros técnicos a respeito do fenômeno e do documentar o período precedente, concluindo-o com este vo-
sujeito e das relações entre A Grande Síntese e a última teoria lume, que pode assim definir-se como o elo de união entre as
de Einstein. duas, a Primeira e a Segunda Obra.
CRÍTICAS – Nesta parte, recolhemos todo o material aces- Com o volume que a este se seguirá, Profecias, deixaremos
sório, como o prefácio às várias edições das Grandes Mensa- para trás esse mundo passado, a que pertence a Primeira Obra,
gens e de A Grande Síntese, as apreciações e os principais co- e entraremos decididamente no período brasileiro, que constru-
mentários da imprensa. Poderá assim o leitor conhecer o pensa- irá a Segunda em novo ambiente, com novos elementos e psi-
mento dos outros a respeito destes escritos e também, em parte, cologia, trabalho inédito, que, no entanto, é sempre o desen-
uma interpretação sua, procurando orientar-se entre os diversos volvimento lógico e necessário, consequência do anterior tra-
julgamentos. Reunimos tudo aqui, para não sobrecarregar A balho já realizado.
Grande Síntese com outros textos fora de seu próprio conteúdo. São Vicente, Natal de 1955.
236 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
HISTÓRIA DE UM CASO VIVIDO A ideia central da revelação aparecera-me, mas eu ignorava
os pormenores: como harmonizar esse transformismo em seus
Nasci na terra franciscana da Úmbria, em Foligno, a 18 de pontos extremos, como definir as passagens, preencher as
agosto de 1886, às 20:30 h. Era eu desconhecido de Mário imensas lacunas, como tecer toda a trama deste conceito gigan-
Guzzoni Segato, de Turim, quando, ele, baseado na data e na tesco e afirmar tudo em termos exatos, diante de uma ciência
hora do meu nascimento, extraiu um horóscopo, em que me re- cega e inconcludente? No âmago da filosofia indiana, através
tratou com surpreendente exatidão. A primeira sensação de vida da teosofia, eu intuía verdades profundas, mas apareciam-me
humana de que me recordo (teria talvez três anos) foi de vazio e escondidas numa terminologia exótica, que as afastavam de
tédio. Desde criança não me identifiquei com meu corpo físico, mim e de meu mundo.
que sempre explorei como veículo de minha viagem. Parecia- Comecei timidamente a expressar-me num opúsculo que
me estranho e oprimente o vínculo do tempo, que liga os fenô- saiu em trechos na antiga revista Ultra, de Roma, de maio de
menos e seu desenvolvimento em sucessão. Nasci sensitivo, 1928 a dezembro de 1929, mais tarde editado, em 1932, em
tendo no coração, por instinto, o Evangelho; nasci para amar e Buenos Aires pela Casa Editora Constancia: ―Evolução Espiri-
perdoar. É óbvio que, no mundo humano, a vida para esses tual‖ (Veja o volume Fragmentos de Pensamento e de Paixão).
temperamentos só pode constituir um lento martírio. Minha Entretanto, sentia nascer em mim, gradativamente, A Gran-
personalidade era demasiadamente complexa para poder ama- de Síntese, através da lenta incubação de 20 anos. Entendamo-
durecer rapidamente e brilhar superficialmente, seja na escola, nos. O amadurecimento não veio por meio de verdadeiros estu-
seja fora dela. Era medíocre, muito medíocre. Olhava para mim dos realizados, porque sempre li ao acaso e apenas como pre-
mesmo, observava, refletia, e nada me escapava: eu julgava. Era texto para escutar-me. A Síntese não me veio de livro algum,
lenta a maturação espiritual, porque desde os primeiros anos mas surgiu toda do mistério de minha alma. Eu li, é verdade,
sentia confusamente subir em mim mesmo as camadas profun- mas nada encontrei que já não existisse em mim. Reconheci nas
das da consciência. Na escola, estudava apenas para passar nos leituras o que já sentira ser verdadeiro, e repudiei o que já sabia
exames, porque não acreditava naquilo que me ensinavam, e que ser falso. É verdade que, durante alguns anos, escrevi várias
eu sentia truncado, inútil, sem base substancial. A verdade esta- páginas de apontamentos, mas eram caóticos, discordantes e fo-
va em mim, eu a procurava dentro de mim. Rebelde a qualquer ram julgados uma tempestade que ameaça e nunca desaba.
guia, lançava-me aos conhecimentos humanos ao acaso, procu- Além disso, foram escritos quase sempre à noite, motivados
rando secretamente a minha verdade. Narro minha história inte- mais por um impulso interior invencível do que por minha von-
rior, porque a exterior é insignificante. Tive sempre o instinto de tade, num estado de consciência todo especial. Eram meus pri-
olhar o mundo e as coisas por dentro, nas causas e nos princí- meiros exercícios; o impulso me submetia a uma escola de pre-
pios, e jamais nos efeitos e nas utilizações práticas. Da mesma paração e treinamento, para a grande recepção, escola que devia
forma que os volitivos e práticos podem considerar-me incom- formar em mim o instrumento. Aquele manuscrito foi apenas
petente na exploração utilitária da vida, posso eu considerá-los coleta de material e, quando escrevi a Síntese, senti náuseas da-
incompetentes diante da solução dos problemas da consciência. queles primeiros abortos de pensamento e que muitas vezes re-
Minha primeira revelação interior me foi feita ao ouvir meu neguei por completo. Sofrido aquele processo de maturação e
professor de ciências, no Liceu, proferir a palavra ―evolução‖. após alguns anos de inatividade, meu pensamento recomeçou
Meu espírito teve um sobressalto; brotara ao vivo uma centelha, tudo desde o início, seguindo um fio seu, interior, e não outro.
sentira uma ideia central. Tornei-me, a seguir, estudioso de Esta verdade, eu a quis dizer, mesmo arriscando-me aos que
Darwin, mas só para completar seu pensamento. acreditam que eu haja preparado a Síntese através de estudo.
Na Faculdade de Direito, em Roma, disseram-me um dia Venho, ao contrário, demonstrar a verdadeira natureza de mi-
que, antes de agir e viver, era necessário conhecer os princípios nha mediunidade inspirativa e intelectual. Esta, nascida comi-
e orientar-se, sem o que não se poderia realizar com consciên- go, mas mínima, se agiganta com o tempo. Mediunidade a prin-
cia e retidão o mínimo ato. Mas, então, como agiam meus se- cípio rudimentar, intermitente, a lampejos, como se vê pela nar-
melhantes sem sabê-lo? Por instinto, como os animais. Eu esta- ração de meus primeiros anos, porém progressiva, até tornar-se
va, pois, sozinho e em trevas. em mim uma qualidade estável, uma segunda natureza.
Defendi com louvor o doutorado, por ser de tema livre, mas Essa progressividade é a característica fundamental que de-
não acreditava no Direito, nas teorias jurídicas, nem na orienta- fine o meu fenômeno. E isto é lógico e corresponde aos princí-
ção filosófica e científica da época. Antes de doutorar-me, pios da ascensão espiritual das religiões, assim como aos da
aprendi rapidamente, como se recordasse um sonho longínquo, evolução biológica Darwiniana. Portanto a mediunidade, em
o francês, o inglês e o alemão. Realizara particularmente meus meu caso, significa não o fenômeno isolado, sem raízes e sem
estudos de piano. Na música e nos músicos, assim como na arte razões, de manifestação do supernormal, mas de amadureci-
e na poesia, eu acreditava profundamente. Chopin e Wagner, mento profundo e revelação de minha personalidade eterna e de
como Dante e Goethe foram revelações para mim. suas capacidades. Religando-me aos conceitos conhecidos e
Começou a vida. Fiz uma longa viagem aos Estados Uni- aceitos da evolução biológica Darwiniana, eu, na Síntese, con-
dos da América do Norte, até o Pacífico. Casei-me. O turbi- tinuei essa evolução no campo espiritual – pois seria truncada e
lhão das existências exteriores batia sem trégua, reclamando a absurda se assim não fora – harmonizando a afirmação da ciên-
atenção de meu espírito, que, ao contrário, queria viver a vida cia com a afirmação da fé, sustentando a ascensão espiritual.
verdadeira. Acumularam-se as experiências humanas, quase Esta minha progressividade de mediunidade inspirativa é, pois,
todas duríssimas. A dor martelava minha alma; sob seus gol- para mim, um fenômeno biológico normal, porque está coloca-
pes, era feito o amadurecimento. Um dia, à beira-mar, em Fal- do na linha de evolução psíquica que os homens, antes ou de-
conara, contemplando o encantamento da criação, senti com pois, percorrerão naturalmente, enquanto eu me acho percor-
evidência, numa revelação rápida como o raio, que tudo tinha rendo agora, apenas antecipando um pouco a maioria. A me-
de ser Matéria, Energia e Conceito ou Espírito, e vi que esta diunidade intelectual é para mim o estado normal de um futuro
era a fórmula do universo: psiquismo mais sensibilizado, de uma percepção anímica direta
(M=E=C)=S supersensória mais apurada, é uma fase superior de consciência
em que M = Matéria, E = Energia, C = Conceito ou Espírito e S e dimensão conceptual perfeitamente normais na evolução, mas
= Substância. E esta é a grande equação da substância, isto é, o que hoje, na Terra, constitui posição de exceção em virtude do
mistério da Trindade, em que se move toda A Grande Síntese. estado relativamente involuído da raça humana.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 237
Portanto nada há de anormal, de extraordinário ou milagro- sinceridade e simplicidade, incapaz de definir melhor, para di-
so. É questão de caminho percorrido. Coloquei o problema as- zer: a voz daquele que ouço.
sim, porque assim o vivi e o resolvi. Caminho aberto a todos e Ela mesma me dizia naquela sua linguagem: ―não perguntes
que se percorre através de uma purificação de espírito e de meu nome, não procures individualizar-me. Não o poderia, nin-
corpo, de pensamento e de nutrição, que impõe um regime es- guém o poderia; não tentes hipóteses inúteis‖.
piritual e dietético em que as substâncias psíquicas e físicas de Em outro lugar (volume As Noúres) estudamos o problema
nível inferior, de vibração lenta e grave, devem ser expulsas. da individuação da fonte e da paternidade da Síntese.
Medicina e misticismo devem colaborar neste ponto. Purifica- Avizinhara-se aquela voz, falando-me como falava no
ção que se atinge lançando-se a própria natureza inferior ani- Evangelho a doce voz do Cristo, aconselhando-me e guiando-
mal e seus instintos e paixões no fogo lento do desapego, da me. Mas era interior, pelo menos eu a atingia por caminhos
sublimação e sobretudo da dor. interiores, íntimos. Manifestava-se em mim como uma audi-
A dor sempre teve uma parte importantíssima em minha vi- ção interior de conceitos, num contato tão direto, que estes
da, cobrindo-a, muitas vezes, quase totalmente; e posso afirmar nem sequer eram formulados em palavras. Sem dúvida, era
que ela foi o fator mais ativo na formação de minha inspiração distinta de mim, de minha consciência normal cotidiana, por-
e espiritualidade. Parece impossível, mas foi a dor, mais do que que me guiava, governava, pregava, e meu eu normal seguia e
a cultura, que me esclareceu a mente, que me deu ideias, justa- obedecia; porque surgiam também discussões e divergências
mente porque tudo já estava no fundo de minha alma, e bastava entre as duas personalidades, nas quais meu eu normal cedia
torná-la transparente para que elas aflorassem. sempre, vencido e convencido por uma superioridade esma-
Foi justamente a dor que, aparecendo na forma mais intensa gadora de bondade e sabedoria. E, naquele inverno siciliano,
e profunda, preparou e determinou a passagem desta fase ob- na solidão de minha dor, aquela voz esteve sempre perto de
servada por nós até agora, que pode chamar-se ―preparatória‖ mim, único amigo a sustentar-me a cada passo e a guiar-me
de minha mediunidade, à fase de sua explosão decisiva. É atra- em todos os atos, impondo muitas vezes novas doações e re-
vés da dor que o fenômeno entra no período de sua plenitude. núncias, naqueles pontos em que minha natureza humana não
Essas relações entre sofrimento e mediunidade confirmam mi- o desejaria. Uma correspondência frequente com a Senhora
nha interpretação anterior: trata-se de um fenômeno evolutivo Luísa Carocci Govean, de Turim, está cheia de narrações des-
de mediunidade progressiva, em que o espírito revela seus po- sas minhas primeiras impressões virgens e maravilhosas. Esta
deres interiores através da purificação de seu veículo humano, e Senhora apresentou-me, na primavera de 1932, à escritora
tanto mais claramente se manifesta quanto mais este se torna Laura Lègrange Bussolin, diretora da revista Alfa, de Roma,
sutil e deixa transparecer sua luz. na qual se iniciou imediatamente a publicação das Mensagens.
Estava em Assis, em 1931, quando os maiores golpes me Com efeito, ―Sua Voz‖ sempre teve essa característica: ao
atingiam em cheio. Devo observar aqui que a Divina Provi- mesmo tempo em que ditava a mensagem, abria os caminhos
dência é, para mim, uma força real e sábia, cujos impulsos nas para sua divulgação. E a divulgação foi rápida, pois eu, des-
vicissitudes de minha vida senti continuamente. Se ela, para conhecido como escritor, vi essas Mensagens saírem nos prin-
minha evolução, deixou sempre a porta de meu destino escan- cipais centros do mundo, espalhando-se por sua força intrín-
carada à dor, no entanto sempre dosou as provas, que jamais seca, sem que eu quase nada pudesse fazer para isso.
superaram minhas forças, e, no momento da real necessidade, Era por certo um fenômeno já muito surpreendente para
enviou a ajuda indispensável. Verifiquei que essa força não mim, ser arrastado, sem preparação e de surpresa, por um fio de
quer ociosos; procura constranger ao progresso, mas jamais conceitos que se desenrolavam automaticamente, como por im-
abandona, ainda que dando o auxílio mínimo necessário, para pulso próprio. Agora somava-se outro fenômeno: sua divulga-
que este não seja um estímulo ao ócio. Minha hipersensibili- ção rápida, abrindo-se as colunas das revistas mais longínquas e
dade toca essas forças do imponderável, que parecem inexis- inacessíveis. No entanto eu duvidava, temia enganar-me e pedia
tentes para muitos que não as sabem perceber. Durante o ve- conselhos; mas constantemente, de todos os lados, desde aquele
rão, minha família transferiu-se para o campo, em Colle Um- princípio, só me vinha encorajamento. Nunca uma dissonância.
berto di Perugia, e eu, deixando Assis, a cidade de Francisco, Levantava-se em redor de mim um coro de vozes concordes
que eu tanto amava, abandonando minha casa, ninho de paz, e (veja mais adiante: ―Mensagens mediúnicas dirigidas a P.
afastando-me da família, de que tanto gostava e pela qual con- Ubaldi‖). Da primeira gênese dos conceitos à sua difusão au-
tinuei sempre a velar, caí, pobre e sozinho, no fundo da Sicí- tomática, até à concórdia dos aplausos, movia-se tudo numa
lia, em Módica, triste, destruído. Conhecendo o inglês e di- harmonia que parecia obedecer a um plano pré-estabelecido.
plomado em leis, vencera no verão um concurso e obtivera Todavia eu só tinha conhecimento disso dia a dia, no momento
aquela longínqua cátedra de língua inglesa. Tendo renunciado da realização. O pensamento de ―Sua Voz‖ começava a reali-
aos bens hereditários, tive que ganhar minha vida. Caí num zar-se; surgiam fatos concretos em redor de mim, provas evi-
quarto paupérrimo, entre pessoas ávidas, desprovido de tudo, dentes, e eu me dei conta que havia passado imediatamente do
aturdido, acabado. Só então meu espírito pôde revelar-se. E, campo do pensamento ao da ação.
debaixo do tremendo golpe, explodiu. Foi esse o período dos mais íntimos e afetuosos contatos
Era a noite Santa, Natal de 1931, e minha pena começou a com ―Sua Voz‖, assim como também dos maiores sofrimentos
primeira Mensagem: e isolamentos do mundo. Foi também o período em que se tra-
―No silêncio da sagrada noite, ouve-me. Deixa toda a sabe- çou a rede que me prende indissoluvelmente, há tantos anos, a
doria, as recordações, a ti mesmo, esquece tudo, abandona-te à esta fonte de vida.
minha voz, inerte, vazio, no nada, no silêncio mais completo do Mister se torna contar tudo, para esclarecer o fenômeno e
espaço e do tempo. Neste vazio ouve a minha voz que diz: le- seu desenvolvimento; o fenômeno desta minha mediunidade
vanta-te e fala. Sou eu... Não temas; escreve (...)‖. inspirativa e consciente, progressiva e ativa, porque aqui co-
Aniquilado, eu tremia. Depois levantei-me transfigurado. meçam a delinear-se as características típicas que mais tarde a
Havia em mim uma força nova e eu tinha que segui-la. Final- definirão.
mente explodira minha mediunidade em sua plenitude, e desde Rapidamente, eu fixava nos escritos minhas impressões, a
aquele dia eu firmei ―Sua Voz‖. fim de que não se perdesse nada do que ocorria dentro e fora de
Chamei assim a essa fonte de pensamento, de vontade, de mim. Como continuação da ―Evolución Espiritual‖, publicada
ação e de afeto, que me inundava todo; chamei-a assim, com na revista Constancia, de Buenos Aires, e a seguir em volume
238 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
separado, publiquei na mesma revista, como apêndice ao volu- pobreza, a renúncia, a perfeita alegria de Francisco, que tanto
me, um artigo: ―Experiências Espirituais‖ (veja o volume Fra- amara em Assis. Eram contínuos os colóquios íntimos com Sua
gmentos de Pensamentos e de Paixão), em que estudava objeti- Voz, agigantava-se seu poder, seu amor me sustentava. Conse-
vamente o comportamento das forças espirituais que tão decisi- guira descobrir, fora da cidade, numa colina, mirrada moita de
vamente intervieram, modificando a linha de meu destino. Sen- alfarrobas, que, entre gigantescas figueiras da Índia e muros
tia com evidência que operavam em mim forças superiores e baixos divisores de campos, proporcionavam um pouco de
observava, procurando compreendê-las. sombra e a ilusão de um bosque. Para lá me retirava a orar. Já
Mas tinha que me apressar, porque o amadurecimento se de outra vez, nos suaves campos da Úmbria, em Perúgia, depois
precipitava. Às ―Experiências Espirituais‖, publicadas em de- de uma grande promessa, sentira tão perto de mim o espírito de
zembro de 1931, enquanto Sua Voz já ditava sua primeira Cristo e de Francisco, que fiquei sem saber se suas diáfanas
Mensagem, seguiu-se logo um artigo em Constancia, de Bue- formas corpóreas caminhavam plenamente a meu lado, num
nos Aires: ―Como oí Su Voz‖ (Como ouvi Sua Voz), em feve- trecho de estrada do bosque. Fazia uma prece imensa, à qual
reiro de 1932. O rápido suceder-se dos acontecimentos não toda a criação respondia; anulava-me, para sentir-me renascer
me dava tempo de publicar esses trabalhos, mesmo na Itália. em todas as coisas. Lá escrevi o ―Canto das Criaturas‖, visão
Nesse artigo, expus minhas primeiras impressões, fixando- poética, publicada em Milão e Buenos Aires. A inspiração fran-
lhes as notas básicas. Dizia: ―una voz interior me habla, me ciscana exprime bem minha alma. Hoje, na vida tão diferente
dicta, me ordena de escribir. Siento que me dictará muchas do mundo, muitos podem sorrir deste misticismo. Parece que a
cosas que tendré de escribir‖. Essa publicação era composta sociedade trabalha depressa e com força, a fim de destruir em
de duas partes: a primeira, ―Mi razón‖, observava e explicava seu seio estes sensitivos, dando a vitória aos volitivos imperio-
o que acontecia; a segunda, ―Su palabra‖, transcrevia a pri- sos e egoístas. Mas é um fato: quem mais aparece, menos vale;
meira Mensagem de Natal de 1931. Estava feita a primeira quem mais grita, menos pensa; quem mais se impõe, menos
afirmação. Não podia mais retroceder. sente; quem mais se afoba no campo da atividade exterior, se
Desde o princípio de 1932, saía a mesma Mensagem em ita- acha mais vazio e arruinado no campo das construções internas
liano, inglês, francês, nos principais centros do mundo. Vasta do espírito. Este período das Mensagens pode ser chamado o do
correspondência crescia em torno de mim, em que figuravam sentimento e do coração, ao passo que a Síntese representa o
Bozzano, Schaerer de Bruxelas, professores de Universidade, período da mente e do pensamento. Primeiro calor, depois luz;
médicos, entre os principais expoentes do mundo espiritualista. primeiro amor, e depois vontade; primeiro o coração, depois a
A 1o de junho, escrevia-me Bozzano: ―A Mensagem obtida com inteligência. Sua Voz tocou todo o meu ser humano. Admiro
sua mediunidade provém indubitavelmente de origem transcen- também essa sua riqueza de formas, essa sua plenitude, essa to-
dental, e mais ainda, de elevadíssima inspiração‖. E mais tarde, talidade de seu poder. Período este de profundas emoções. E eu,
a propósito da Mensagem do Perdão: ―Estupendo! Há nela tre- enquanto me abandonava a ele, ia realizando a minha atividade,
chos sublimes em sua grandiosidade única, que provocam qua- sem perceber que desenvolvia um plano lógico.
se um sentimento de sagrada surpresa‖. Eu orava. Naquele refúgio campestre e solitário houve um
E Bragadin escrevia, em sua revista Ali del Pensiero, em fe- dia um colóquio profundo, íntimo, que não sei descrever, en-
vereiro de 1934: ―Enquanto as coisas fortemente queridas e te- tre Sua Voz e eu, de alma para alma, um daqueles colóquios
nazmente preparadas, muito raramente têm no mundo o êxito que não se esquecem mais por toda a eternidade. Chorei. A
merecido, um médium desconhecido, não preparado, cético por vontade que está no centro do universo estava perto de mim,
muito tempo de sua mediunidade, sem meios nem apoio, sem fulgurante e boa; inclinava-se para mim em homenagem ao
nenhum objetivo de interesse, viu em pouco tempo suas men- seu princípio: liberdade e responsabilidade do ser. E pediu o
sagens, numericamente reduzidas, darem volta ao mundo e di- meu consentimento. Mergulhei naquele mar de resplendores e
fundirem-se rapidamente, automaticamente, sem nenhuma in- anulei-me numa promessa incondicional, numa dedicação
tervenção sua, como que dotadas de uma força secreta própria, completa. Respondi: Sim! Desde aquele dia, minha vontade
emanada daqueles trabalhos‖. foi a Sua, e não mais podia desobedecer. Iniciada aquela rota,
E verdadeiramente sentia-me cada vez mais aniquilado e teria que continuá-la até o fim.
tímido, e teria voltado atrás se, ao contrário, Sua Voz não me Eu ressuscitara. Possuía-me a potência dessa nova persona-
houvesse impelido para frente. lidade. O destino flagelava, impassível, com a dor. Era um ven-
Mas abandonemos esta história exterior, de que a contragos- to frio que me enregelava, enquanto no coração ardia um in-
to tive de falar, e voltemos à história interior, menos conhecida cêndio. O amor dos místicos é um fato real, conhecido, tão fre-
e mais importante. A fase preparatória fora superada. Achava- quentemente vivido, que ninguém deve admirar-se disso. Só
me, plenamente, no primeiro período das manifestações, que uma ciência com premissas materialistas e, portanto, incompe-
pode chamar-se das Mensagens. Ele vai do Natal de 1931 à tente nesse campo da espiritualidade pode contentar-se, para re-
Páscoa de 1933 e aqui se fecha para entrosar-se e transformar- solver o caso, com uma negação sumária. Mas também esse
se no que chamaremos de A Grande Síntese. amor tem um seu pudor sagrado, em que se escondem os segre-
A verdadeira história, a mais poderosa e mais trágica para dos mais profundos das leis da vida. E eu me calo.
mim, é a interior. Quem a preparara? Como podia nascer assim, Retomava a primavera. Certa noite fria, entre 9 e 10 de
do nada, um mundo novo, denso de atividades e acontecimen- maio de 1932, pelas duas da madrugada, na hora antecrepuscu-
tos? Não houvera nenhuma preparação visível. Até o verão de lar dos maiores silêncios, acordei bruscamente, por causa de
1931, eu estudara literatura inglesa e alemã, preparando-me pa- uma movimentação insólita de conceitos em minha psique. Li,
ra o concurso a ser realizado. A dor que me golpeara e a pobre- maravilhado, dentro de mim. Tinha que escrever, e escrevi rá-
za a que me havia devotado não eram, de certo, uma preparação pido e com segurança, na sonolência, como quem copiasse um
cultural. Sigamos esta história íntima, em que se encontra a texto, duas mensagens breves, incisivas, poderosas. Uma era
fonte de tudo, das Mensagens e da Síntese; procuremos, agora, para Mussolini, outra para o Sumo Pontífice; pessoais, particu-
permanecer próximos ao princípio genético do fenômeno, de- lares, que eu devia enviar e que diziam respeito a cada campo
pois que lhe observamos os efeitos. de ação política e religiosa (Veja nas páginas seguintes: ―Men-
Estava ainda em Módica, no quente inverno siciliano. Em sagens particulares de P. Ubaldi‖). Tendo escrito, readormeci
torno a mim, insipidez, tristeza e desolação de espíritos selva- no meu cansaço pelo trabalho do dia. Depois, no dia imediato
gens, desolação de campos verdes. Eu obedecia. Realizara a e, enfim, à noite, reli-as. Eram belas. Fiquei maravilhado. Co-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 239
mo haviam nascido? No dia anterior, ocupara-me de coisas in- tenário das Grandes Mensagens. Essas harmonias só foram no-
teiramente diversas; à noite, até às 23 horas, ficara corrigindo tadas e compreendidas depois que tudo ficou terminado.
exercícios e tirando médias escolares. A coisa tomara-me de Nessas Mensagens – apelos supremos ao mundo – numa
improviso, e agora atemorizava-me a ordem: ―Entrega-as‖. linguagem que seria loucura atribuir a mim, são tratados os
Mas ―como posso fazê-lo?‖, perguntava. ―Os caminhos serão pontos nevrálgicos dos mais atuais e vivos problemas religio-
abertos diante de ti‖, respondia-me a Voz. E, o que é surpreen- sos e políticos, com conexão e desenvolvimento lógico, de
dente, por si mesmos se abriram os caminhos, e as mensagens, modo completo e com um conceito central diretivo que eu,
estas e outras sucessivas, chegaram ao seu destino. O chefe de acompanhando separada e particularmente, só pude descobrir
governo, na Itália, a 2 de março de 1933, agradecia-me publi- depois de tudo terminado. As Mensagens são um apelo direto,
camente e comigo se congratulava por meio do Prefeito de Pe- um toque de recolher, que, harmonizando-se em perfeito equi-
rúgia e do Chefe Municipal de Gúbio, onde então me achava. líbrio entre temporal e espiritual, culminam no problema da
Meus escritos mediúnicos, produzidos de modo tão estranho, salvação espiritual do mundo. Palavras inequívocas dão vivís-
não eram, pois, o resultado de desequilíbrio nervoso. sima impressão – confirmada especialmente pela imprensa da
Após breve intervalo, voltei ao trabalho das Mensagens pú- América do Sul – de tratar-se de uma fonte que, não sabemos
blicas, nascendo então a segunda, a ―Mensagem da Ressurrei- por quais caminhos e de que forma, se prende ao pensamento
ção‖, na Páscoa de 1932. A mesma divulgação rápida. Esta che- de Cristo. E foi isso o que senti. Afirmar algo mais seria audá-
gou, por si mesma, até Saigon, na Indochina, onde foi publicada. cia; quanto a mim, seria presunção. Neste campo, devo humi-
Terminado o ano escolar, deixei Módica e voltei a Perúgia lhar-me, calar, obedecer. Esta fase está terminada. Sobrevive
(Colle Umberto) com a família, no campo, sendo depois apenas o eco dos comentários da imprensa.
transferido em setembro para Gúbio, onde ensinei durante Não finalizara ainda esse período, mas em seu declínio
vinte anos. transformava-se em outro, que vinha sendo preparado desde
No verão, nasceu a ―Mensagem do Perdão‖, no dia do per- 1932. Podemos chamá-lo período de A Grande Síntese. Não
dão da ―Porciúncula‖ de São Francisco de Assis, a 2 de agosto mais sentimento, mas sabedoria; não mais apelo, mas revela-
de 1932. Fui tomado de improviso pela manhã, com tal ímpeto ção. No outono de 1932, conheci a nova revista que surgia: Ali
de emoção, que, entre lágrimas, mal conseguia ver o papel em del Pensiero (Asas do pensamento), de Milão, e seu diretor, Sr.
que escrevia. Escrita, como as outras, de jato, completa, sem M. A. Bragadin. Em mim nasce um impulso gigantesco: reto-
qualquer arrependimento, nítida e segura desde a primeira có- mar a ideia base das Mensagens e desenvolvê-la em profundi-
pia, esta é a mais bela, a mais vibrante e poderosa das Mensa- dade. Essa ideia me domina, me entusiasma e lanço-me ao tra-
gens, e em pouco tempo fez também a volta ao mundo (calcula- balho sem plano algum, sem refletir; ai de mim se tivesse refle-
ram que tivesse aparecido meio milhão de cópias). tido e compreendido o que devia fazer: teria ficado esmagado.
Na Páscoa de 1933, XIX centenário da morte de Cristo, em Sua Voz mandava e guiava. E eu estava calado. Minha natureza
Gúbio, nasceram juntas duas Mensagens: a ―Mensagem aos apaixonada pelo Cristo, por Seu amor, por Sua dor, por Sua
Cristãos‖ e a ―Mensagem aos Homens de Boa Vontade‖. bondade, transforma-se em grande máquina de pensamento que
Fechava-se, assim, o primeiro período das Mensagens. As abarca todo o saber humano, o supera, o contém. Sucede à lin-
revistas me pediram depois outras. Mas elas correspondiam a guagem do sentimento, às horas de emoção (Mensagem), a fria
um plano bem diferente do que a simples colaboração de im- e cortante linguagem da ciência, a hora da profunda absorção
prensa. Não nascem a pedido, mas quando querem. da visão imensa do infinito. Muda o plano de ação. Falo agora
Neste ponto, cabe falar de outra Mensagem, transmitida na ao outro mundo, científico, filosófico, religioso, intelectual.
Páscoa de 1943, após dez anos de silêncio. Trata-se da ―Men- Preciso saber tudo, resolver tudo, mas Sua Voz me orienta, e eu
sagem da Paz‖, escrita exatamente na noite de Quinta-Feira caminho seguro. De Milão, Bragadin escreve-me que conhecia
Santa, no monte sobre o Santo Sepulcro (Arezzo), diante do a médium Valbonesi e que ela havia recebido uma comunica-
Verna1. Apareceu em plena guerra mundial, para fazer ouvir, ção de seu espírito guia, chamado ―O Mestre‖, dizendo que eu
entre o ribombar da destruição universal, a palavra equilibrada devia colaborar por meio de comunicações de ordem científica.
de paz, de orientação, de encorajamento. Nossos pensamentos, encontrando-se sob um guia único, apre-
Após outros dez anos de silêncio, apareceu a última, cha- sentavam coincidência que dava o que pensar. Ainda não co-
mada ―Mensagem da Nova Era‖, no Natal de 1953, no Brasil, nhecia a revista nova de Bragadin, que não me conhecia e mui-
na praia de São Vicente, em Santos-SP. Com esta, fecha-se a to menos sabia da minha maturação, no entanto tudo se harmo-
série das sete Mensagens. nizou com coincidências de ambos os lados, que faz crer terem
Observemos sua harmonia. As primeiras cinco estão dispos- sido criadas para reunir-se.
tas em três anos, de 1931 a 1933, isto é, com a primeira, revela- Sem dúvida, bem estranha coincidência foi esse encontro e a
se Sua Voz, na noite de Natal de Cristo, em 1931, para anunciar série dos fatos, aparentemente casuais, que, no entanto, soube-
a ideia central da Obra; depois um grupo de duas, no ano se- ram convergir para a publicação de A Grande Síntese. Para mim,
guinte, e as últimas duas, unidas como uma estrela dupla, na foi sempre um fato humanamente inexplicável que o diretor da
Páscoa de 1933, XIX centenário da morte de Cristo. Assim, do revista Ali del Pensiero, sempre tão severo e prudente para acei-
seu nascimento à sua morte, completou-se o primeiro grupo, em tar colaborações, tenha tido para mim, desconhecido, a mais ab-
três anos, e, pode dizer-se, em três termos. soluta e imediata confiança e tenha aceitado um trabalho aparen-
Sobre este primeiro ritmo ternário, fundamental, desenvol- temente utopístico, não escrito ainda, mas apenas imaginado, e
ve-se outro ritmo ternário mais amplo; sobre este primeiro gru- tenha empenhado, com tão poucos elementos em mãos, a si
po de base, eleva-se como segundo termo, após um silêncio de mesmo e sua revista, numa obra que poderia ter naufragado após
dez anos, na Páscoa de 1943, a ―Mensagem da Paz‖, e a seguir, poucas páginas. E sua confiança, ainda que ilógica, foi logo total
um terceiro termo, também, depois de dez anos de silêncio, pa- e completa, mesmo depois de lhe haver revelado eu que não sa-
ra concluir, no Natal, como no Natal começara, em 1953, com a bia qual o futuro desenvolvimento do trabalho. Sem essa confi-
―Mensagem da Nova Era‖. Assim, neste segundo e terceiro ança, que tanto me sustentou, não teria tido a coragem de em-
termos, ecoa o primeiro grupo e se fecha e termina o ciclo sep- preender e levar a termo uma obra de tão grande monta.
Comecei, em janeiro de 1933, na Ali dei Pensiero, a publi-
1
A colina do Verna foi onde São Francisco de Assis recebeu os estig- cação de A Grande Síntese, tendo em mente apenas o esquema
mas da Paixão de Cristo. geral. No início, foi publicado um roteiro muito sumário, mas
240 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
abandonei-me ao fio do novo pensamento. Durante quatro anos A médium Valbonesi, em várias mensagens, encorajava-me,
ocorreram regularmente a publicação e a compilação do texto. aprovando e sustentando-me. Uma mensagem de outubro de
Só pude dedicar-me ao trabalho de escrever nos dois meses de 1932, da parte do ―Mestre‖, dizia entre outras coisas: ―Ouves... e
férias de verão, único período em que a escola me deixava livre tu que escutas a ordem, vai e dize aos povos que Cristo ressusci-
e era possível concentrar-me em paz. Utilizei, assim, mais três tou. Serás o apóstolo simples, que opera a caridade em nome de
verões de férias para completar o trabalho: de 1933, 1934 e Cristo (...). Assim diz aquele que envia tua voz ao mundo‖. Mé-
1935. O verão de 1936 dediquei-o a escrever As Noúres. diuns de incorporação e médiuns psicógrafos confirmavam-me
Com A Grande Síntese verificou-se, quase automaticamen- sempre o caminho iniciado. A médium Giselda Smiles, de Ro-
te, o mesmo fenômeno de divulgação que ocorrera para as ma, foi constrangida a mandar-me uma mensagem assinada:
Mensagens. Concomitantemente com a edição italiana, na re- ―The Spirit of Innocence‖, em que afirma uma missão minha.
vista de Milão, surgia a edição espanhola na revista Constancia, Traduzo o texto inglês: ―O Espírito daquele que multiplicou os
de Buenos Aires, e as duas edições portuguesas do Rio de Ja- pães e os peixes está contigo, dentro de ti, em redor de ti. Estás
neiro, no Correio da Manhã, diário de grande circulação, e no agora unificado com Deus, com o bem existente em toda a cria-
Reformador, mensário da Federação Espírita Brasileira, que, ção. Sê fiel à promessa que a Ele fizeste, de seguir Sua inspira-
paralelamente, publicou a primeira edição da obra acima citada. ção. Não temas, pois que és Pedro, a rocha novamente escolhi-
Outras edições se fizeram também na Europa. da, sobre a qual Ele edificará uma nova fundação e Sua ressur-
O novo caminho de A Grande Síntese estava traçado, que se reição, e nada prevalecerá contra ela. Sua Luz derramará Seu
inicia com estas palavras: resplendor em tua mente (...). Em nome do mesmo te abençôo, ó
―Em outro lugar e de outra forma (v. Grandes Mensagens), Pedro, e através de ti Ele abençoa o mundo. (...). The Spirit of
falei especialmente ao coração, usando linguagem simples, Innocence, in the name of † (O Espírito de Inocêncio, em nome
adaptada aos humildes e aos justos, que sabem chorar e crer. de †)‖. Que significam esses rodeios em torno de mim, com
Aqui falo à inteligência, à razão cética, à ciência sem fé, a fim mensagens encorajando-me, provenientes de um ambiente de
de vencê-la, superando-a com suas próprias armas. Foi proferi- médiuns, entre os quais eu era totalmente desconhecido?
da a palavra doce que prende e arrasta para si, porque comove. Paralelamente, Bozzano, indiscutível autoridade mundial
Indico-vos agora a mesma meta, mas por outros caminhos, fei- nessa matéria, acalmou minhas dúvidas, garantindo-me a ori-
tos de ousadias e potência de pensamento, pois quem pede isso gem transcendental dos escritos e aproximando minha mediu-
não saberia ver de outra forma, por faltar-lhe a fé ou por inca- nidade da de Miss Cummins, a médium pela qual se manifesta
pacidade de orientação para compreender‖. a famosa e extraordinária personalidade de Patience Worth. O
Estas palavras unem a Síntese às Mensagens, como continu- professor Schaerer, de Bruxelas, escrevia no Bulletin du Con-
ação de trabalho e de programa. Explicava-me depois, a mim seille des Recherches Métapsychiques que eu era ―um médium
mesmo, estas orientações, em dois artigos: ―Apresentação‖ e extraordinariamente dotado para recepção de comunicações de
―Programa‖, que apareceram na ―Revista Espírita do Brasil‖, ordem científico-filosófica‖. A comunicação de A Grande Sín-
do Rio de Janeiro, em maio e dezembro de 1934, e que foram tese trata de uma concepção monista-naturalista de caráter estri-
inseridos no livro Fragmentos de Pensamento e de Paixão. O tamente científico, cujo valor, indiscutivelmente, ―é muito
plano diretivo continuava, portanto, a desdobrar-se, guiando-me grande‖. No entanto, por outros, A Grande Síntese era definida
e preparando os meios. No volume As Noúres, estudamos o fe- como ―uma nova e completa revelação‖. Em seu volume Espi-
nômeno e os escritos que foram por ele produzidos, olhando-os ritismo Moderno – Os Fenômenos, Trespioli fala a meu respei-
de dentro, como os vivi, para que nos revelassem o segredo da to em várias páginas, que eram publicadas em revista especiali-
técnica da recepção mediúnica inspirativa. Mas, aqui, queremos zada. O mesmo Bozzano me escreveu, em outubro de 1935: ―eu
notar e afirmar a contínua correspondência entre todos estes fa- soubera com que admirável constância e a custa de quanto sa-
tos interiores e exteriores, para lembrar que o subconsciente e o crifício e dispersão de energias físico-psíquicas, conseguira sua
patológico – se alguém quiser recorrer a semelhante explicação nobre finalidade. Não se lamente, pois realizou obra meritória,
do fenômeno – não podem conter a presciência de um plano ló- cujo valor científico, filosófico, metapsíquico aumentará com o
gico, nem podem os fatos exteriores e a vontade alheia concor- passar do tempo... Mas A Grande Síntese é tão densa de pen-
dar em colaborar com eles. Essas concomitâncias, também têm samento, de ciência e de sabedoria, que não é possível pronun-
seu peso científico. Não me dirijo ao público leviano dos nega- ciar a respeito um julgamento sumário, enquanto não for publi-
dores fáceis; falo aos cientistas sérios que, por mil fatos objeti- cada em volume‖. Na carta de fevereiro de 1935: ―... a onda su-
vos, são induzidos à persuasão de que nos circunda um mundo pernormal inspiradora foi a que lhe ditou a mais extraordinária,
imenso que ignoramos e de que nada se pode negar ―a priori‖. concreta e grandiosa mensagem mediúnica de ordem científica
Há outras concomitâncias menores, mas comprobatórias, e que se conhece na casuística metapsíquica‖.
que me incitaram: médiuns longínquos, desconhecidos, que Não é para engrandecer-me que recorro a estas citações,
apareceram num átimo em meu horizonte, só para dizer-me pa- mas para dar-me o apoio moral que necessito no meu trabalho,
lavras de confirmação e depois desaparecerem. Quem os mo- em que apenas tenho fadiga; para aliviar um pouco a grande
veu? Tenho que contar tudo, ainda que a simples título de crô- responsabilidade moral que, sem dúvida, assumo; enfim, para
nica, deixando toda apreciação ao leitor. A médium Marjorie I. esclarecer melhor, com julgamento de quem é mais sábio do
Rowe, em junho de 1932 recebeu uma mensagem dirigida a que eu, este estranho fenômeno de mediunidade, esta vida no
mim, de ―Imperator‖ (veja-se nas páginas seguintes: ―Mensa- imponderável, em que já agora me movo habitualmente, tão in-
gens mediúnicas dirigidas a P. Ubaldi‖), e a endereçou-me para tensa que entontece um homem normal.
Módica. Como me achou? Nela me confirmava todo o trabalho Nestes casos, para não se perturbar, é mister tal força ner-
que tinha de fazer, acrescentando, como prova, revelações de vosa, tal equilíbrio moral e tal objetividade científica, que nem
pormenores íntimos, que só eu sabia e que era absurdo que uma sempre se encontram no tipo médio. Isso porque, nesse mundo
pessoa desconhecida, em Londres, pudesse imaginá-los. Falava de realidades materiais, eu tinha que permanecer objetivo. No
do lugar acima descrito, em que eu me retirava no campo para entanto iniciei a obra A Grande Síntese num estado de comple-
orar, incluía palavras em que eu reconheci meu pai, já falecido, ta confiança para com o invisível, abandonando-me a um fio
e me predizia: ―(...) a desordem do mundo faz parte daquilo que condutor que também se poderia ter rompido; empenhei-me
escreverás (...). E uma entidade mais alta concluía: Sejas aben- moralmente a desenvolver um programa imenso, só sabendo
çoado, meu filho, que ouviste minhas palavras‖. com segurança que dispunha de muito pouco tempo e de pou-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 241
quíssimas forças. E, coisa única para um escritor ainda não co- MENSAGENS PARTICULARES DE PIETRO UBALDI
nhecido, quatro editores se empenhavam, de um hemisfério a
outro, na publicação em larga escala, antes que eu escrevesse o As duas mensagens particulares mencionadas no capítulo
texto, antes que eu mesmo pudesse imaginar exatamente o que ―História de um caso vivido‖, neste volume, dirigidas uma ao
haveria de escrever. Mas esta certeza de divulgação, o empe- Pontífice e outra a Mussolini, foram escritas de improviso na
nho que me prendia, a certeza de que cada palavra escrita seria noite de 9 de maio de 1932 e a eles remetidas. Esta última foi
publicada sem modificações e seria ouvida no mundo, tudo is- entregue na tarde de 5 de outubro de 1932 ao destinatário, que a
so só podia impelir-me ao esforço intenso, realizado enquanto leu. Seu conteúdo e estes fatos estão documentados em cartas e
um trabalho ingrato para ganhar a vida me sufocava e atordoa- pela imprensa de então. A estas seguiram-se outras. Eis algu-
va meu espírito com barulheira absurda. Minha fé, a fé dos mas frases mais importantes:
editores, a fé de quem me compreendera me sustentavam; ―(...) Trata-se de ajudar a nascer a nova humanidade que
sempre é a fé a base da criação de tudo. nascerá da conturbação do mundo (...). Evita com todas as tuas
Agora, eu amo a Síntese como uma criatura que veio de forças qualquer guerra. Não há razão humana que possa justifi-
Deus, mas que pôde nascer aqui só através de minha dor e de car hoje uma guerra, que, com os meios modernos de destrui-
meu amor, a criatura pela qual daria a vida, para que triunfe. ção, poderá ser uma destruição tão grande, que assinalará o fim
Escrevi esse livro com meu destino, e ele jamais será cancela- da civilização europeia e atrairá a invasão asiática, forçando a
do, por toda a eternidade; essa é a produção que me valoriza to- emigração, após tremendos cataclismos, para as Américas (...)‖.
talmente; por sua causa, não vivi em vão; ele é o pensamento e Outras continham certas frases proféticas, como estas:
a paixão em que meu pensamento e minha paixão sobreviverão ―(...) O momento histórico está maduro para grandes acon-
à minha morte. Admiro e exalto esse livro, como se pode exal- tecimentos (...). Soou a hora histórica, porque hoje fala a dor. É
tar a obra de outra pessoa, apenas pela alegria de sua beleza, no grave o momento histórico, porque a dor falará ainda tremen-
entanto há nele muito de mim, porque nele me empenhei todo damente, como nunca (...). A civilização europeia, que é a civi-
inteiro. A verdade é que ele é um penhor de aliança entre mim e lização cristã, ameaça ruir (...). A presente tranquilidade apa-
as forças superiores; ele é o sinal que permanecerá da passagem rente é a calma que precede as grandes tempestades (...). Hoje o
delas por mim e de nossa união secreta, é o cadinho de fusão de mundo joga tudo por tudo (...)‖.
almas. No silêncio de meu gabinete, ninguém poderia traçar a Estes conceitos confirmam os extraídos de outros trabalhos
gênese da Síntese, nem saber a técnica particular de minha re- e mensagens, reunidos no Capítulo XVIII, ―Comentários e pre-
cepção; e eu teria podido facilmente fazer passar o livro como visões‖, do volume A Nova Civilização do Terceiro Milênio.
obra de minha sabedoria. No entanto aqui estou a humilhar-me Citamos, enfim, alguns conceitos de A Grande Síntese, para
diante da fonte de meu pensamento, porque isto é mais verda- esclarecer àqueles que quiseram ver aqui espírito partidário,
deiro, é maior, é uma potência que supera toda afirmação hu- enquanto, ao contrário, trata-se de princípios gerais da vida,
mana. E, se deixo louvarem e se louvo a Síntese, é para oferecer aplicáveis a todos os tempos: ―São as forças biológicas, que
este novo tributo àquela fonte a que tudo devo, após ter-me ofe- conferem o poder, as mesmas que o tiram logo que termine a
recido a mim mesmo por inteiro. sua função‖, Cap. XCIX – ―O Chefe‖. ―(...) As forças biológi-
Só se podia realizar aquele trabalho apoiado no sentido de cas não garantem o homem, mas a função, e o derrubam logo
missão, na força que vem apenas da pureza de intenções e no- que ele não mais corresponda a ela (...). Por isso a história sem-
breza de objetivos, numa paixão pelo bem. As finalidades hu- pre chama os seus homens (...); rejeita-os sem lamentações logo
manas não têm o poder de manter a tensão necessária ao esfor- que cesse sua função, ou então logo que caiam no abuso ou na
ço para sustentar o espírito naquela atmosfera; as compensa- fraqueza (...). Só quem tenha substância de valores intrínsecos
ções humanas tornam-se irrisórias, desproporcionadas a um sabe compreender e constranger as forças que o circundam, ao
trabalho em que se empenham todos os recursos da vida e se invés de ser arrastado por elas (...) Assim Napoleão foi jogado
navega no infinito. Quando somos tocados por esses aniquila- fora pelo destino como um trapo, logo que esgotou sua função‖
mentos sublimes da mão de Deus, não mais se pode caminhar (...), Cap. CXVI – ―Concepção Biológica do Poder‖.
pelas tortuosas estradas humanas nem mais pensar em si mes-
mo. Logicamente não tenho merecimento por isso. O ser fica MENSAGENS MEDIÚNICAS DIRIGIDAS
mudado após esses anos de contato com o infinito. Quem tre- A PIETRO UBALDI
meu sozinho diante dos abismos do mistério em novos estados
de consciência, superou as dimensões de nosso universo e teve Trechos de mensagens mediúnicas recebidas pela médium
uma visão direta da verdade, não pode novamente descer à vida Gisela Smiles (Via Aureliana, 63 – Roma) e transmitidas a Pie-
normal, mesmo se for constrangido a viver nela e a servir-se de tro Ubaldi, em Gúbio (tradução do inglês).
sua psicologia, sem dar a seus pensamentos, a seus atos e às ―Pedro, a luz do Espírito Santo te ilumina. Assim diz o
coisas um valor diverso. A visão foi vivida e permanecerá eter- Espírito.
namente em minha retina. ―Pedro, o Espírito de Cristo vive em ti, e tu te tornaste com-
Hoje, tudo isso constitui uma recordação, em que novamen- pleto porque ele afastará o mal do teu centro e de tua família. O
te mergulho para vivificar-me. A grande hiperestesia superou Espírito daquele que multiplicou os pães e peixes está contigo,
seu clímax. Aquela primeira fase foi vivida, mas ainda conti- dentro de ti e de tudo em redor de ti, aumentando em ti a subs-
nua. Sobrevive como que um eco daquele trabalho realizado e o tância e te provendo de todas as tuas necessidades. Estás agora
desejo intenso de progredir cada vez mais no caminho iniciado. unificado com Deus, com o bem existente em toda a criação, e
Agora, a Síntese pertence ao mundo, a quem a ofereci. Em mim sua vontade para ti é prosperidade e bom êxito. Pedro, tu és rico
permanece a expectativa obediente, porque do mistério do ser porque teu Pai celestial é rico. Não és governado por nenhuma
continuarão a nascer ordens e auxílios para que a missão seja lei de temor, doença, limitação ou falência. O princípio do bem
desempenhada até o fim. te governa, a ti e a tua vida, providenciando tuas necessidades.
Neste capítulo, delineamos com sinceridade total a história Lembra-te que, para os que o amam, todas as coisas cooperam
interna e externa do fenômeno, no período de sua gênese e em para o bem. Sê fiel, pois, à promessa que fizeste: seguir suas
seus primeiros desenvolvimentos. É a história daqueles primei- inspirações; então, e somente então, a vida será tão clara como
ros anos, escrita na Itália, em ambiente tão diferente do atual o meio-dia; mesmo se houver escuridão, ela será mais clara que
brasileiro, história que no presente volume documentamos. a manhã. Não tenhas ansiedade por coisa alguma.
242 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
―Porque és Pedro, a rocha de novo escolhida sobre a qual ―A prova de fogo supera-a e mantém-na. As centelhas do
Cristo construirá Seus novos fundamentos e Sua nova ressur- Eterno descem agora; apanha-as como se apresentam. Leão!
reição, e nada prevalecerá contra ela. Sua luz derramará seus Leão! Não fiques pasmado! És tomado como instrumento não
raios em tua mente e está iminente em sinal exterior que te será inconsciente, mas consciente da missão. Confia, porém, Naque-
dado: verás com os olhos internos. Ele revelará a ti teus verda- le que opera.
deiros recursos espirituais, e te alegrarás imensamente em sua ―Abraço-te‖.
generosa bondade. Sê, pois, fiel a Ele e não temas nada. Mensagem recebida em 7 de abril de 1935.
―Eu, o Espírito Inocência, em nome de †, ao nosso amado ―O porvir espiritual é o eterno presente que pulsa. Quando
Pedro‖. os braços eternos envolvem, só uma coisa se deve fazer: aban-
Mensagem recebida em Roma, em julho de 1932. donar-se. Tu, filho do Pai, colocado no enredo do tempo, so-
―(...) Sê forte e não duvides. Foste guiado nas grandes estra- fres necessariamente as contorções da vida humana. E o marte-
das da luz e da justiça. Teu objetivo é olhar em frente, para a res- lo ―tempo‖ que bate, quebra as energias e quase as quer destru-
plendente meta que sem dúvida atingirás (...). Lembra-te da cer- ir. Mas sabes que outro martelo poderoso bate continuamente
teza de que Sua Voz te deu. Vive contente, para que não se perca, para consolidar a estrutura de tua alma. Não perguntes: o que
nem te venha a faltar, ainda que seja a menor partícula da sabe- farei? Já te disse: abandonas-te em Cristo. Receberás outras
doria que te envolve de todos os lados. Não temas, mas deixa ordens. Repetir-se-á a ti o ‗vai, Francisco, (...). Restaura minha
resplandecer toda a riqueza da coragem dos santos em teu rosto, casa‘ (...). Portanto, restaurarás o que o Eterno disser. Teu re-
como um sol flamejante. Sê poderoso com a grande energia das fúgio é inabalável, um nicho luminoso espera-te; é a fulgura-
forças que são enviadas para tua renovação, pelo supremo amor ção de Cristo Jesus, o Ressuscitado, Aquele que está com o
(...). Se foste escolhido, por que temes? E por que caminhas tre- Pai, Aquele que está no Pai e é Pai de amor. Podes gritar, pois:
mendo? Acaso te abandonará ou deixará de proteger-te o Centro tenho uma casa que é um palácio, pois o Eterno aí colocou seu
da Luz Maior? (...). Tudo o que te foi dito é, e jamais será pisado ouro. Esse ouro chama-se a verdade!‖
e ridicularizado pelas almas que conhecem a realidade da vida Mensagem recebida em 13 de outubro de 1935.
eterna. Deixa os outros que ainda estão vivos na Terra e não nas- ◘ ◘ ◘
ceram pelo espírito, rirem em sua ignorância e zombarem de ti. A ―E agora digo a ti (Pietro Ubaldi): Amigo, da aspereza saíste
noite deles já passou, e está próxima a aurora do nascimento es- renovado, da fadiga saíste para entrar na obra eterna. O mundo –
piritual; então compreenderão e verão a luz que agora rejeitam, por necessidade humana – te reterá durante o tempo em que de-
porque não são capazes de discerni-la, e ainda não é chegado o ve ser dada tua contribuição de homem. Tomou-te o Eterno, ba-
seu tempo. Fica tranquilo e sente a eterna presença daquele que é tizou-te com Seu fogo, e a chama está acesa; chama de filho tra-
balhador. Por vezes, arderás consumindo-te dentro do próprio
nossa vida e nosso sol, a vida e o sol de tudo o que é criado. Em
calor desse fogo; gritará tua carne pelas queimaduras, enquanto
nome do mesmo, eu te abençôo, Pedro, e, através de ti, ele aben-
o espírito cantará os louvores do Eterno. Revestirás o pensamen-
çoa o mundo, com o poder de seu amor espiritual.
to que chega a ti com a palavra que o Eterno colocar em tua
―Eu, o Espírito Inocência, em nome de †, ao nosso amado
mente, e daí a passarás aos homens, que são muito duros de ou-
Pedro‖.
vir. E assim, viandante amado, continuarás o teu caminho.
Mensagem recebida em Roma, em 26 de dezembro de 1932.
―(...) Não ficarás isolado; os poucos, os amados do Pai, vi-
◘ ◘ ◘
rão a ti sempre. Acharás almas compreensivas. Arderás, mas
Trecho de Mensagem mediúnica recebida pela Senhora não consumirás a parte intrínseca. Quando o mundo tiver entra-
Marjorie I. Rowe (35, Lindore Road, London, S.W. II – Ingla- do na fase de maior dor, mais do que nunca hás de gritar a to-
terra), da entidade ―Imperator‖, em 12 de junho de 1932, para dos: ‗néscios, não ouvistes! O aviso foi dado a tempo, lamentar
Pietro Ubaldi e transmitida a ele de Londres, sem ser solicitada, agora não adianta‘. Haverá um átimo de possibilidade de reco-
e sendo ele desconhecido da médium. Tradução do inglês. meço, e tu o dirás, enviando tua palavra para cá e para lá, nos
―(...) Há uma grande luta em redor de ti (...). Deves liquidar pontos designados pelo Eterno. Envolve-me em Meu Amor de
dúvidas nas mentes de muitas almas que necessitam de chuva es- Amigo; usa de Mim, Eu te estou próximo‖.
piritual no árido deserto de suas vidas (...). O Cristo aparecerá em Pergunta de P. Ubaldi – ―És tu a Sua Voz?‖.
toda a Sua Majestade aos que prepararam suas vestes nupciais Resposta – ―Eu Sou Aquele que Sou, amigo, e tu o sentes.
(...). Amigo, o ‗maelstrom‘ (o vórtice) das condições mundiais Sentir-me-ás, assim, um pouco mais materialmente, porque
faz parte do assunto sobre que escreverás. Assim fui mandado desço entre os homens que estão em luta. Não podes parar, tu o
para dizer-te. E já registraste muitos pensamentos a esse respeito. sabes e o vês; a hora é intensa. Rever-nos-emos, rever-me-ás,
Desejo dar-te ulterior mensagem de amor e aproveito este ensejo mas não assim; ver-me-ás como luz e, quando me vires, tua al-
para entrar em contato contigo (...). Minhas palavras são de vida ma ficará queimada. Mas isto não é dor – é glória. Permanece
e são a essência da Graça Divina. Sou a voz que fala das belezas na humildade, na simplicidade, e deixa que o mundo espiritual
do universo, do Reino de Deus na face da Terra, ainda que os em convulsão, grite. Tu permanecerás firme, lembra-te...‖.
homens a considerem uma arena de lutas. Bendito sejas, meu fi- Pergunta de P. Ubaldi – ―Quem sou eu?‖.
lho, que ouves minhas palavras. Cristo abençoe a ti e a mim‖. Resposta – ―Quem és? Donde vens? Qual é tua passagem
◘ ◘ ◘ mais intensa? Eu disse uma vez: Leão, mas és alguma coisa
Trechos de Mensagens mediúnicas recebidas pela médium mais dentro de ti mesmo. É preciso retroceder no chamado
Bice Valbonesi, de Milão, para Pietro Ubaldi, transmitidas pela tempo, e então te recordarás de ter-me visto, de ter-me ouvido,
entidade ―O Mestre‖. de ter-me amado‖.
―Ouves (...). Obra conscientemente, como homem que sabe Pergunta de P. Ubaldi – “Como e quando Te vi?‖.
muito; usa a sabedoria. A fonte inspirativa que possuís te diz Resposta – ―Neste momento não podes orientar-te; tornarás
tranquilidade. Eis que a voz diz: os mortos estão ressuscitados. a pensar nisso e te acharás de novo. Por que perturbar-te então,
E tu, que ouves a ordem, vai e dize aos povos que Cristo res- se as pegadas são claras? Muitas coisas ignora o teu eu quando
suscitou (...). Serás o apóstolo simples, o que faz a caridade em está fechado em ti mesmo. O que não sabes e não assimilaste,
nome de Cristo (...). Eis teu trabalho; procura os necessitados e desfolharás, assimilarás e então te acharás‖.
feridos pelo peso da vida e dá a eles o pão. Assim diz aquele Pergunta de P. Ubaldi: – ―Também caí mais em baixo?‖.
que manda a ‗Sua Voz‘ ao mundo‖. Resposta – ―Por isso te disse: ressuscitaste. Pagaste e estás
Mensagem recebida em 19 de outubro de 1932. pagando. Deves servir ao Eterno e então, servindo ao Eterno,
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 243
tornar-te-ás instrumento de eleição. Todas as vezes que titubea- tunidade para revelar-se, porque o nativo tem mais merecimen-
res e estiveres para precipitar-te, Eu virei ao teu encontro (...)‖. tos e qualidades do que ele mesmo sabe. É um pioneiro em
Pergunta de P. Ubaldi – ―Por que fui escolhido?‖. qualquer coisa por que se interesse. É afirmativo, independente,
Resposta – ―Francisco dizia: ‗Por que eu? Por que eu? Por ativo. Terá fama durante a vida. Dentro de três anos, fatores físi-
que eu?‘. Repete-o também tu, com a mesma dedicação, e então cos e psíquicos se harmonizarão e Deus falará nele.
verás que o Eterno, para maior confusão dos homens, escolhe ―(...) Seus companheiros são Jesus e João. Ele estará ligado
seus instrumentos entre eles. Dá graças ao Eterno‖. ao despertar da humanidade. Deve unificar-se com Deus através
Pergunta de P. Ubaldi – ―Mas eu não me sinto digno‖. da dor. É um espírito doente que, numa vida precedente, deso-
Resposta: – ―Por que queres repeti-lo ainda? Sabes que o bedeceu ao Eterno, perturbando as leis de amor, de harmonia e
Eterno vai e procura a ovelha transviada: os justos já estão sal- de compaixão, e que deve sofrer para recuperar o equilíbrio per-
vos. É o pecador que o Eterno procura, é o doente que precisa dido e servir para regressar à luz que se tinha escurecido‖.
de médico, é para ti que vem o Seu amor‖. O mesmo Senhor Mário Guzzoni Segato colocou em mãos
Pergunta de P. Ubaldi – ―Que acontecerá comigo?‖. da Senhora Pia Reggidori uma carta de Ubaldi e teve a seguinte
Resposta: – ―Não temas. Não podes vê-lo, ainda que te es- resposta mediúnica (em transe), ditada ao senhor Segato e diri-
forçasses. Não ergas um muro diante de ti, mas quando estiveres gida a Pietro Ubaldi, por uma entidade não identificada:
para cair e tiveres medo de bater, então o muro cairá. Vês que ―Quem és tu? Vejo-te no deserto, com as mãos voltadas pa-
não tem limites o campo que deves arar; então trabalha (...)‖. ra o Sol, cheio de aspiração a Deus, com uma sede insaciável
Mensagem recebida em 5 de março de 1937. de amor divino, longe da vida e das coisas. Vestes um hábito
―(...) E Pedro, que fará? Há ainda algumas perplexidades a branco e estás desfigurado; tens imensa sede de amor. Amas o
superar. Vencer! Vencer! Arrancar os tentáculos que refreiam Cristo e o invocas. És profeta da Palestina. Esta sede da tua vi-
os passos, para que, quando vier o dia de prova para Pedro, ele da te persegue; aguardas, é um tormento. Mas o Deus que invo-
não venha a repetir: Senhor, não Te conheço! O selo está posto. cas tanto está em ti e te dirá várias vezes: ‗estou aqui‘ (...). A
Ai de quem o romper antes que chegue o anjo!‖. matéria te pesa porque a renegaste, mas, ao invés, Deus quer
Referindo-se a Pietro Ubaldi: ―Não indagar muito sobre ti luz através dela (...). Muitos homens voltarão a ti e tu voltarás
mesmo; humilha-te. Renascerás por virtude substancial. Disse como profeta (...). Cristo e João são teus amigos‖.
aos maus: sois usados como instrumentos, quando o espasmo ◘ ◘ ◘
da humanidade tiver chegado à convulsão. Assim te digo: o Trechos da mensagem mediúnica (ultrafânica), ditada e ta-
nome não tem importância, é a ação que cinzelará sobre ti a fi- quigrafada em presença de Pietro Ubaldi, recebida pela Senhora
gura, é a ação que fará de ti o servo do Senhor. Reedificar de M. Guidi (Via Labicana, 134, Roma), em 14 de julho de 1946,
acordo com a ordem, erguer as colunas minadas na base. O de uma entidade não identificada:
cristianismo está a descoberto, entre o céu estrelado e a Terra ―Irmão, que chegaste de longe, eis que te digo, em verdade,
ameaçada. Então, soldado de Cristo, não terás espada; terás fo- que estas palavras não são novas para ti, que vibras sem cessar.
go e o vomitarás segundo a Vontade Eterna. Enquanto aguar- Acreditas, às vezes, que seja teu cérebro que as recolha; elas,
das, purifica-te; deixa falar os que estão a teu lado, mas não ve- porém, são luz, a minha luz mesma que desce sobre ti e que,
em nem ouvem! Aguarda! Repito-te: a rede está pronta; lançá- através da palavra e da pena, tu transmites. Muito fizestes, mas
la-ás onde te for indicado; não por alucinação, mas pela reali- estás apenas no início de tua tarefa; muitas verdades foram por
dade (...). Não é hora de repouso; trabalha para o Eterno, e a ti compreendidas, muitas daquelas verdades que transcreveste
mercê descerá do céu. Por isso estás vinculado àqueles que são são justas e, se os homens te ouvissem totalmente, então tería-
também os meus escolhidos. Não poderás voltar atrás, não po- mos o início de uma nova era de fé, que prepararia a nova alma
derás escapar. Para e ouve-me! A Voz continuará‖. luminosa, que será verdadeiramente transmitida aos homens de
Mensagem recebida em 25 de abril de 1937. amanhã (...). Não temas, porque os homens não poderão fazer-
◘ ◘ ◘ te mais mal do que já te fizeram (...). E digo-te: Pedro, tu tam-
Julgamentos a respeito de Pietro Ubaldi, tirados do horós- bém és pedra milenária da nova fé que arrastará os homens de
copo que lhe foi enviado em abril de 1935, sem ser pedido, pelo amanhã. Escreve; receberás ainda mais profundamente, com
Senhor Mário Guzzoni Segato – Via Saluzzo 23, Turim – que harmonia infinita. Lembra-te de que os acontecimentos urgem e
não o conhecia, nem sabia nada sobre ele. tu o predisseste; tu o sentes (...). Deter essa onda de ódio que
―Pietro Ubaldi, nascido a 18 de agosto de 1886, às 20h e envolve a humanidade é a tarefa de teus escritos; não pares,
30min, em Foligno, L. 42o57‘. Tipo zodiacal: Áries, com in- mas, ainda hoje, lança tuas mensagens (...). Em verdade, não
fluência de Leão. Tipo Planetário: Marte-Lua. Planetas domi- pares (...). Continua. Continua. Preciso de ti (...). Olha que, den-
nantes: Saturno, Urano e Júpiter. Aura: vermelha brilhante. tro em pouco, outra tentativa será feita, a fim de parar tua pena.
―(...) O princípio vital da força solar que passa pelo Leão, Não pares, não temas. Estou perto de ti e te darei tal força, que
torna-o de bom coração e generoso. Profundas emoções e cons- teu ser físico melhorará. Estás ainda cansado e esgotado‖.
tantes procura de harmonia (...). Caráter interiormente generoso, ◘ ◘ ◘
sincero, ardente, perseverante e muito inclinado a aperfeiçoar- Mensagem transmitida, sem ser solicitada, a Pietro Ubaldi,
se. Há um grande amor pela justiça (...). Educado, não combati- pelo Professor Salvato Carmicelli (Rua Prof. Gabizo 295, Rio
vo, mas persistente, será quase irremovível nas próprias opini- de Janeiro), recebida em 28 de setembro de 1946, de uma enti-
ões. Tende ao ocultismo, inclina-se para o lado místico da vida, dade não identificada.
tem os meios para descobrir o encanto do destino dos homens. O ―(...) Diga a Pietro Ubaldi que sua missão é de transmitir
Sol testemunha esplêndidas qualidades mediúnicas, mas estas se ao mundo os prolegomenos da Nova Era. A Grande Síntese é
resolvem através de terríveis sofrimentos, com dores e penas obra ditada pelo alto. É realmente a voz do todo que fala. Ele
verdadeiramente tantálicas. O nativo pode adjudicar-se uma co- é um instrumento e, como tal, tudo deve fazer pela divulgação
lossal máquina psíquica, que entra em ação através da dor. Dor de todas as outras obras. Elas constituem os novos livros da
física, que pode dizer-se aparente, se bem que tremenda, mas na Nova Era. Vários são os canais (...). Trata-se de erigir o edifí-
realidade será um bem. Tendência ao isolamento e à solidão, cio de um mundo novo. Pense, Pietro Ubaldi, que a Obra foi
que trará grandes frutos espirituais. Sente alegria quando pode toda ditada pelo alto e deve ser divulgada em todo o mundo e
dar felicidade a outros. Trabalha muito para desenvolver uma em todas as línguas‖.
missão alta. Há muita coisa que está latente e espera uma opor- ◘ ◘ ◘
244 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
Trechos de mensagem mediúnica recebida pelo médium Ser luz para as sombras, fraternidade para a destruição, ter-
Betti, sob a direção do Senhor Sante Crosara, em Livorno, em nura para o ódio, humildade para o orgulho, bênção para a
23 de dezembro de 1945, de uma entidade não identificada. maldição.
―(...) A coletividade espiritual do sujeito (P. Ubaldi) é consti- Ama sempre.
tuída por uma esfera muito elevada, onde os chamados santos É pela graça do amor que o Mestre persiste conosco, os
vivem em harmonia. Desta constituição entélica, partiu a perso- mendigos dos milênios, derramando a claridade sublime do
nalidade de Ubaldi (...), que já conseguiu e desempenhou o pró- perdão celeste onde criamos o inferno do mal e do sofrimento.
prio programa (...). Aquele ‗quid‘ que constitui a manifestação Quando o silêncio se fizer mais pesado ao redor de teus pas-
terrena de Ubaldi é apenas uma missão espiritual que tomou sos, aguça os ouvidos e escuta!
forma e personalidade num indivíduo. Este, no entanto, parece A voz Dele ressoará de novo na acústica de tua alma, e as
um ser comum e normal, mas já desempenhou determinada mis- grandes palavras, que os séculos não apagaram, voltarão mais
são, pela qual os germens disseminados em sua esfera terão pro- nítidas ao círculo de tua esperança, para que as tuas feridas se
lificação estupenda e tangível, para glória do Eterno (...). Quan- convertam em rosas e para que o teu cansaço se transubstancie
do tiver desencarnado, voltará a retomar seu posto e, desta vez, em triunfo.
numa esfera verdadeiramente superior e digna (...). Em pouco O rebanho aflito e atormentado clama por refúgio e segu-
tempo, abandonará vosso ambiente, mas somente depois que ti- rança.
ver desempenhado aqui, completamente, sua tarefa (...). O so- Que será da antiga Jerusalém humana sem o bordão provi-
frimento é o esporão e o principal incentivo de seu fervor ope- dencial do pastor que espreita os movimentos do céu, para a de-
rante (...). Assim a Mente Criadora prodigaliza, através de Ubal- fesa do aprisco?
di, a graça do conhecimento supranormal (...). As sensações que É necessário que o lume da cruz se reacenda, que o clarão
ele percebe são inerentes ao seu grau de consciência, que não é da verdade fulgure novamente, que os rumos da libertação de-
mais infantil, mas adulta, e mesmo diria velha, ou seja, carrega- cisiva sejam traçados.
da de experiência e de maiores percepções e considerações. Ora, A inteligência sem amor é o gênio infernal que arrasta os
tratando-se de uma consciência velha, é mister que suporte essas povos de agora às correntes escuras e terrificantes do abismo.
vibrações de perturbação e de desânimo, porque ela está às por- O cérebro sublimado não encontra socorro no coração em-
tas da Luz, no limiar de nova existência, imensamente superior; brutecido.
está diante de uma porta fechada, além da qual sabemos existir A cultura transviada da época em que jornadeamos, relega-
uma escada luminosa que leva à extrema felicidade, isto é, à Luz da à aflição, ameaça todos os serviços da Boa Nova, em seus
Suprema do conhecimento e da verdade. Essas sensações devem mais íntimos fundamentos.
ser aceitas com serenidade e até com alegria, porque é prenúncio Pavorosas ruínas fumegarão, por certo, sobre os palácios
de uma promessa certa e próxima de bem supremo. Há uma cer- faustosos da humana grandeza, carente de humanidade, e o ven-
teza maravilhosa, ofuscante. Aceita-se o fenômeno com sereni- to frio da desilusão soprará, de rijo, sobre os castelos mortos da
dade e com a certeza de que constitui uma promessa segura de dominação que, desvairada, se exibe, sem cogitar dos interesses
uma passagem sublime. Já desempenhou sua tarefa dignamente, imperecíveis e supremos do espírito.
e quando estiver diante do dia do desencarne, sua obra e sua É imprescindível a ascensão.
missão estarão definitivamente realizadas‖. A luz verdadeira procede do mais alto, e só aquele que se
instala no plano superior, ainda mesmo coberto de chagas e roí-
MENSAGEM DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS do de vermes, pode, com razão, aclarar a senda redentora que as
gerações enganadas esqueceram.
Pedro, Refaze as energias exauridas e volta ao lar de nossa comu-
O calvário do Mestre não se constituía tão somente de secu- nhão e de nossos pensamentos.
ra e aspereza... O trabalhador fiel persevera na luta santificante até o fim.
Do monte pedregoso e triste jorravam fontes de água viva O farol no oceano irado é sempre uma estrela em solidão.
que dessedentaram a alma dos séculos. Ilumina a estrada, buscando a lâmpada do Mestre, que ja-
E as flores que desabrochavam no entendimento do ladrão e mais nos faltou.
na angústia das mulheres de Jerusalém atravessaram o tempo, Avança... Avancemos...
transformando-se em frutos abençoados de alegria no celeiro Cristo em nós, conosco, por nós e em nosso favor é o cristi-
das nações. anismo que precisamos reviver à frente das tempestades, de cu-
Colhe as rosas do caminho no espinheiro dos testemunhos... jas trevas nascerá o esplendor do Terceiro Milênio.
Entesoura as moedas invisíveis do amor no templo do coração!... Certamente, o apostolado é tudo. A tarefa transcende o qua-
Retempera o ânimo varonil, em contato com o rocio divino dro de nossa compreensão.
da gratidão e da bondade!... Não exijamos esclarecimentos.
Entretanto, não te detenhas. Caminha!... Procuremos servir.
É necessário ascender. Cabe-nos apenas obedecer, até que a glória Dele se entroni-
Indispensável o roteiro da elevação, com o sacrifico pessoal ze para sempre na alma flagelada do mundo.
por norma de todos os instantes. Segue, pois, o amargurado caminho da paixão pelo bem di-
Lembra-te, Ele era sozinho! Sozinho anunciou e sozinho vino, confiando-te ao suor incessante pela vitória final.
sofreu. O Evangelho é o nosso código eterno.
Mas erguido, em plena solidão, no madeiro doloroso por Jesus é o nosso mestre imperecível.
devotamento à humanidade, converteu-se em eterna ressur- Agora é ainda a noite que se rasga em trovões e sombras,
reição. amedrontando, vergastando, torturando, destruindo...
Não temos outra diretriz senão a de sempre. Todavia, Cristo reina, e, amanhã, contemplaremos o celeste
Descer auxiliando, para subir com a exaltação do Senhor. despertar.
Dar tudo, para receber com abundância.
Nada pedir para nosso eu exclusivista, a fim de que possa- Esta Mensagem foi psicografada por Francisco Cândido
mos encontrar o glorioso NÓS da vida imortal. Xavier, dirigida a Pietro Ubaldi em 17 de agosto de 1951, na
Ser a concórdia para a separação. residência de Dr. Rômulo Joviano, em Pedro Leopoldo, MG,
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 245
na presença de doze pessoas, ao mesmo tempo em que, sentado pois sabes que também isso é necessário, a fim de que se
à mesma mesa, Pietro Ubaldi recebia a mensagem de SUA cumpra tua missão. E isso bastará para transformar esta tua
VOZ. (Nota de C. T.) nova dor em alegria.
Teu corpo cansado desejaria repousar. Quão grande o cami-
MENSAGEM DE “SUA VOZ” nho já percorrido e quão grande a distância ainda a percorrer! A
vida, porém, é uma caminhada contínua. Tens sobre os ombros
Pedro, não só tua vida, mas também a de muitos outros, que amas e de
Estás sentindo aqui, nesta noite, minha presença. Aquele cuja salvação quiseste assumir a responsabilidade. Aceita, pois,
que está diante de ti2 e que, ao mesmo tempo que tu, está escre- tudo por amor de mim. Aceita-o, ainda que os três votos de re-
vendo, sente neste instante o meu pensamento, e o que ele es- núncia e de dor agora se transformem, tomando posições opos-
creve to confirmará. Ele sente contigo a minha presença. tas, isto é, não mais de renúncia, porém de afirmação.
Pedro, não temas. Estás cansado, eu o sei, como também sei Pedro, confio-te esta nova terra, o Brasil, a terra que deves
quanto te esforças por sentir-me neste ambiente tão novo para ti cultivar. Trabalho imenso, mas terás imensos auxílios.
e distante de onde estás habituado a ouvir-me. Estás exausto pe- Estou contigo e as forças do mal não prevalecerão.
lo muito falar e viajar. Estou contigo, porém, junto a ti e ―Eu‖ Agora, uma palavra também para os teus amigos, uma pala-
sou a grande força que sempre te tem sustentado. Agora me es- vra de gratidão e agradecimento, uma palavra de bênção por
tás sentindo com a mesma potência com que já me sentiste no sua cooperação, com que eles, ajudando-te, tornam possível a
momento da 1a Mensagem de Natal, de 1931. E isso porque, realização de tua missão. Falo neste momento ao coração de
agora, a uma distância de vinte anos, se repete o início do cada um deles, sem que lho digas por escrito.
mesmo ciclo num plano mais elevado. Una-vos a todos minha bênção, no mesmo amor, para vossa
Já me ouviste na noite de 4 de agosto, quando, pela primeira salvação e a salvação do mundo.
vez, falaste em S. Paulo e se iniciou a tua vida pública de apos-
tolado. Estavas cansado e não tinhas certeza. Mas, hoje, és por Esta Mensagem foi recebida por Pietro Ubaldi, a ele mes-
mim impulsionado e já não podes deter-te. Já te disse, antes de mo dirigida, em 17 de agosto de 1951, na residência de Dr.
tua partida, que aonde não pudessem chegar teu conhecimento Rômulo Joviano, em Pedro Leopoldo, na presença de doze pes-
e tuas forças, chegaria eu, e encontrarias tudo preparado. E vis- soas, ao mesmo tempo em que, sentado à mesma mesa, o mé-
te que tudo quanto te havia predito realmente aconteceu. dium Francisco Cândido Xavier psicografava a mensagem de
Tremes, eu o sei, diante de um plano cuja vastidão te sur- São Francisco de Assis. (Nota de C. T.)
preende. Quarenta anos de humilhações e de dores foram ne-
cessários ao teu preparo para esta missão e deixaram em tua na- SOBRE DEUS E UNIVERSO DE PIETRO UBALDI
tureza humana uma sensação de desânimo e uma convicção
profunda de tua nulidade. Hoje, porém, é chegada a hora, e eu Introdução
te digo: Ergue-te! Há vinte anos eu te disse: ―No silêncio da
noite sagrada, ergue-te e fala‖. E agora te digo, no silêncio da É meu primeiro impulso. Sinto-me devedor a DEUS, antes
noite tranquila de Pedro Leopoldo: ―Ergue-te e trabalha‖. Eis de tudo, do inestimável prêmio de ser contemporâneo de Pietro
que se inicia uma nova fase da tua missão na Terra e, precisa- Ubaldi e, mais ainda, de haver sido o primeiro brasileiro, tal-
mente, no Brasil. É verdadeiro tudo quanto te foi dito, eu to vez, a conhecê-lo pessoalmente em Gubbio, onde fui para lhe
confirmo, e assim sucederá. apertar a mão e lhe ouvir a palavra.
O Brasil é verdadeiramente a terra escolhida para berço des- Alguns espíritas compreenderão de pronto o motivo desta
ta nova e grande ideia que redimirá o mundo. Agora tua missão ufania mística.
é acompanhá-la com tua presença e desenvolvê-la com ação, de Para os homens amadurecidos de nossa geração, Pietro
forma concreta. Todos os recursos te serão proporcionados. Ubaldi não é só um homem que toda a gente pode conhecer. É
Ama com confiança estes novos amigos que eu te mando. também o gênio que teve a missão de sintetizar a filosofia re-
Tudo já está determinado e não pode interromper-se. As forças ligiosa do porvir, cujos primeiros fundamentos foram lança-
do mal vos espreitam e desejariam aniquilar-vos. Sabes, porém, dos de 1857 a 1869 em Paris, por outro gênio missionário, Al-
que as do bem são mais poderosas e têm de vencer. Confia-te, lan Kardec. O gênio só alguns espíritas podem conhecer, pois
pois, a quem te guia e não temas. Confirmo tudo o que tens es- isso não depende de vontade, mas de amadurecimento. Não
crito, não o duvides. basta, de fato, ser chamado à crença espírita para conhecer o
Dentro de poucas horas se completarão 65 anos de teu nas- nosso missionário, mas ser escolhido. Sei de muitos que tei-
cimento. O tempo assimila com o seu ritmo o desenvolvimento mam em ignorar o valor da obra de Pietro Ubaldi e o refutam.
dos destinos. Esses, naturalmente, ignorando o assunto, não compreenderão
Pede-te a Lei, agora, esta outra fase de trabalho, diferente e o motivo de minha ufania. Nem lerão estas linhas, aguardando
nova para ti, tão distante da precedente, que te surpreende. Acei- o seu ensejo. É para estes que escrevo, dizendo-lhes quem é o
ta-a, como antes, no espírito de obediência, aceitaste a outra. Não autor e a obra ainda marginada.
tem sido tua vida uma contínua aceitação? Não tem sido comple-
ta tua adesão à vontade de Deus? Não recordas nosso grande co- O autor
lóquio de Módica, na Sicília, há vinte anos? Tua própria razão
não pode deixar de reconhecer a lógica fatal de tudo isso. Segue Principiou a ser conhecido de nome nos meios literários íta-
pois confiante o caminho assinalado. Não te admires se tudo em lo-brasileiros em 1914, quando editou A Expansão colonial e
torno de ti se contraverte, se a dor se transforma em alegria, se te Comercial da Itália para o Brasil, desenvolvimento da tese de
arranco do silêncio de Gubbio para lançar-te no mundo. doutor em Direito que ele defendeu com distinção em 1910 na
Não representa isso a realização daquilo para que nasceste e Universidade de Roma.
por que tens vivido e sofrido? No mundo filosófico apareceu em 1928, com L'Evoluzione
Eu sei: a glória, os louvores do mundo, a notoriedade te Spirituale, ensaio publicado em série na revista romana Ultra.
repugnam. Compreendo que isso te é uma nova dor. Aceita-a, Conquanto os espíritas experimentados já pudessem aí perce-
ber o ―médium‖ e a sua ―crença espirítica‖ – pois o articulista
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Referência a Francisco C. Xavier. afirmava ser ―tangido a escrever em virtude dum impulso inte-
246 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
rior misterioso e indefinível‖, e sentir ao escrever que ―as idei- No mais completo silêncio do tempo e do espaço.
as lhe acudiam como a revelação duma recôndita entidade‖ E assim, vazio, escuta a minha voz,
existente dentro ―dele‖, como revelação dum ―arcano íntimo‖, Ela te fala: ―Surge! E diz: sou eu‖.
conservado na memória subconsciente ou anterior à vida atual Foi assim que principiou o seu mandato. ―Surge‖. E ele sur-
– a explicação do seu fenômeno e da sua crença podia encon- giu de fato nessa obra. Esta primeira e outras Mensagens Espi-
trar-se, conforme o próprio autor do ensaio, dentro da filosofia rituais lançaram Pietro Ubaldi à missão reveladora. E isso se
clássica, da psicologia comum ou, se mais, do misticismo reli- deu – como estava previsto na história oculta e ainda inédita do
gioso. Sua vocação missionária de médium revelador só se espiritismo kardecista – ao fim da terceira geração espírita. Pu-
tornou positiva três anos depois. Antes e primeiramente, ele blicada em março de 1932, na revista Alfa de Roma, essa en-
teve de fazer duas renúncias. Renunciou aos bens da fortuna, cantadora comunicação, cujas primeiras linhas traduzimos aci-
que passavam de uma centena de milhões de liras, bem conso- ma, assegurou desde logo a Pietro Ubaldi lugar de destaque na
lidados, abrindo mão de seus direitos de coerdeiro, entregando vanguarda do movimento espírita mundial. Analisada especi-
seu quinhão de herança à família, a fim de ficar, ele só, fran- almente pelos dois mais abalizados e doutos espiritualistas da
ciscanamente pobre e cristãmente livre para seguir a Jesus. Itália – Bozzano e Trespioli – foi considerada, pelo conteúdo e
Renuncia ao múnus de advogado, que seu título de doutor em pela forma, de pura origem espirítica e de elevada procedência
Direito lhe assegurava em qualquer foro italiano, a fim de me- espiritual, acima da fonte comum. Daí por diante, a fama do
lhor servir ao Mestre, sem outros clientes. E, assim, pobre, so- médium foi de ―crescendo em crescendo‖. A segunda mensa-
zinho, sem profissão privilegiada, confiando em sua intuição, gem, na Páscoa de 1932, e sobretudo a terceira, no dia do ―Per-
partiu certa manhã como um apóstolo, levando apenas a túnica dão da Porciúncula‖ (2 de agosto de 1932), ressoaram de ma-
e a sandália. Partiu no mesmo dia em que deliberou a dúplice neira inusitada. Jornais e revistas profanos e folhas espíritas e
renúncia. Subiu para o seu misterioso destino, em que só ele na espiritualistas de vários pontos da Europa transcreveram essas
Terra acreditava. E o mundo o julgou a seu modo, segundo a comunicações superiores, atribuindo-as sem a menor reserva à
aparência. E, como simples peregrino penitente, ganhou ao en- inspiração de Jesus. A própria Igreja Católica, por seus mais al-
tardecer a estrada de Colle Umberto, destinada a entrar para a tos dignitários italianos, as aprovou. No Brasil – onde se dará a
história do espiritismo com o mesmo signo de luz da Estrada eclosão da Reforma – tiveram ampla e profunda repercussão.
de Damasco na história do cristianismo. Essas três Mensagens, depois de transcritas no Correio da Ma-
Pela madrugada, exausto de forças físicas, sentou-se numa nhã, em A Pátria, noutros diários estaduais e em quase todas as
pedra do caminho. E orou. Estava só, dentro da noite estrelada folhas espíritas do país, apareceram em livro em 1934, editado
e do silêncio ambiental, e sem rumo. Abrindo depois os olhos pela Federação Espírita Brasileira e espalhado gratuitamente.
úmidos, para contemplar o céu imensamente distante, viu des- Na Itália, a exemplo do Brasil, também se enfeixaram num fo-
cerem duas estrelas que, ao pousar no chão, tomaram a forma lheto em 1935. Mas, a par das Mensagens, que falavam ao co-
humana, transcendente e luminosa. As duas entidades celestes ração, começou Pietro Ubaldi, em janeiro de 1932 (início da
caminharam em direção a ele. Não tardou a reconhecê-las, quarta geração espírita), a receber e a publicar em série, na re-
graças à memória espiritual. Foi a sua primeira visão na série vista milanesa Ali del Pensiero (Asas do Pensamento), a obra
missionária. Convidado, caminhou entre elas, tendo à direita monumental e inigualável intitulada A Grande Síntese, com a
Jesus e à esquerda Francisco de Assis. E, caminhando, ouviu qual ingressou brilhantemente no rol dos grandes filósofos da
bem nítida e inconfundível a voz do Cristo, que, daí por dian- atualidade e dilatou as bases científicas do espiritismo. A pri-
te, em seus escritos, passou a designar ―Voz Dele‖ ou ―Sua meira edição italiana, em 1937, esgotou-se rapidamente e cons-
Voz‖. Ficou desde então garantido quanto ao alimento do es- titui hoje preciosidade de colecionadores. Vieram em seguida
pírito. Para ganhar o pão diário do corpo ―em trabalho materi- outros livros, outras mensagens, outros escritos, tudo visando à
al‖, obteve em concurso a cátedra de inglês, em ensino secun- exegese e à complementação dos diversos tratados existentes
dário. E foi designado para o Liceu de Módica, no sul da Sicí- em gênero ou em germe em A Grande Síntese. E agora foi im-
lia. Ali, sozinho, completamente desconhecido por fora e sem presso no Brasil, em primeira mão, a obra marginada, Deus e
se dar a conhecer interiormente a ninguém, era para todos Universo, décimo livro da série, que acabo de ler em original,
uma figura apagada, um simples mestre-escola ginasial. Um por finíssima gentileza e alta deferência do autor.
modesto ―Chico Xavier‖ italiano. O que veio a lume com o título Deus e Universo, é uma
E ali esperou ordens do Mestre, para iniciar a missão esbo- grande ―síntese teológica‖, cuidando das causas primeiras e fi-
çada na estrada de Colle Umberto. Nas horas vagas, afastava-se nais. A meu ver, constituirá o ―elo central‖ que ligará A Gran-
do centro para um horto distante, onde se quedava, pensando em de Síntese ao livro prometido, ainda não escrito e intitulado
Jesus e nos grandes problemas teológicos ainda a resolver. Um Cristo. Esses três livros monumentais – A Grande Síntese,
dia, quando ali orava a Ave Maria, o Mestre lhe apareceu e lhe Deus e Universo e Cristo – serão, penso eu, os vértices do tri-
falou. Conversaram. Selaram uma aliança. Trabalhariam em so- ângulo religioso da III Revelação, que será simultaneamente
lidariedade, um no Céu, outro na Terra, visando ao preparo da científica, teológica e cristã.
humanidade ―espiritualizada‖ e destinada a ingressar no Tercei- De tal livro, minha estultícia não me leva sequer ao ponto
ro Milênio Cristão. Na noite de Natal de 1931, Ubaldi recolheu- de tentá-la.
se a seu quartinho de pensão familiar; no qual havia apenas uma
cama, uma cadeira e uma pequena mesa. O frio era forte, e a ce- A Crítica
la não tinha lareira. Pensou em deitar-se para desprender-se. Deus e Universo é obra acima de minha capacidade de
Mas veio-lhe o impulso irresistível para escrever. Sentou-se à compreensão. Cada homem tem seu limite de entendimento. E
mesinha e orou. E suas ideias se foram dissipando como trevas o meu limite é demasiado estreito para apreender em espírito e
espantadas suavemente por uma luz que se aproxima. De repen- verdade as lições profundas desse trabalho transcendental. Li-o
te, ouviu aquela voz inconfundível, a ―Voz Dele‖. com emoção crescente. Li-o mais com o coração que com os
―No silêncio da Noite Sacrossanta, olhos. Reli-o mesmo em parte; continuarei a lê-lo na tradução.
Escuta-me! Relaxa tudo o mais, Mas (ai de mim) como o transeunte pobre que para extasiado
O saber, as lembranças, a ti próprio. diante duma vitrina de joalheiro, não sabendo sequer avaliar o
Esquece tudo! Entrega-te vazio, preço das preciosidades, namora-as por fascinação; cobiça-as
Sem nada, inerte, à voz que é minha, por ambição; pode até pensar em furtá-las. E afasta-se pesaroso,
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 247
com a mente cheia de fantasias, ciente de que não tem a moeda ―leitura‖ dos objetos (criptestesia pragmática). E isto se realiza
necessária para a aquisição. Sinto, porém, que todas as lições de vários modos: com objetos pessoais, com fotografias e com
são da mais pura qualidade. textos manuscritos. Vários indivíduos, incluindo quiromantes,
E sei, por intuição e pela história oculta, que vieram uma a radioestesistas ou grafólogos, são verdadeiros sensitivos, capa-
uma, diretamente do Céu, trazidas ao mundo pela própria ―Voz zes de descrever as personalidades alheias integralmente, ainda
Dele‖, destinadas a enfeitar um dia o templo espiritual que o que as modalidades técnicas com as quais se explicam as suas
Cristo erguerá no Terceiro Milênio. Templo onde ―Sua Voz‖ faculdades divinatórias sejam diversíssimas. Citemos o caso do
será ouvida por muitos, e não, como hoje, apenas escutada por grande e bem conhecido grafólogo Padre A. M. Moretti, do
Pietro Ubaldi. E, ao ouvi-la, muitos crentes ficarão em dúvida qual nos servimos com resultados brilhantes em muitos casos.
se escutarão a voz do ―Eu sou‖ – ego central do universo, ou o Naturalmente, é necessário proceder com muita cautela e
―Sou Eu‖ – ego do Cristo. Pois um e outro serão talvez a mes- experiência, para evitar fáceis erros, fugas sensoriais, param-
ma pessoa para a humanidade espiritualista e remida do porvir. nésia, truques etc., bem conhecidos de quem experimenta no
(a) Canuto De Abreu terreno parapsicológico. Consultando mais indivíduos sensiti-
vos, observo uma determinada pessoa. Ao registrar as diversas
A VERDADEIRA E INTEGRAL respostas com o magnetofone ou estenograficamente, obtém-se
REALIDADE DE PIETRO UBALDI um quadro poliédrico dessa pessoa no seu ambiente habitual e
POSTA EM EVIDÉNCIA COM O MÉTODO nos seus aspectos mais diversos (cada indivíduo revela de pre-
PARAPSICOLÓGICO – PSICODIAGNÓSTICO “BLASI” ferência um aspecto ou vários lados da personalidade consci-
ente e subconsciente). Portanto, comparando os vários dados
Dr. Gaetano Blasi, médico cirurgião e parapsicólogo. Ex- obtidos e confrontando-os entre si e com a realidade, podemos
sócio fundador da S. I. M. (Sociedade Italiana de Metapsíquica) estabelecer um juízo positivo do valor objetivo deles e possuir
e Diretor do Centro Experimental de Roma. Sócio correspon- um quadro completo da personalidade sob exame, integral tan-
dente da Associação Médica Metapsíquica Argentina. ―Láurea to do aspecto consciente e subconsciente como das caracterís-
d'onore‖, em medicina cirúrgica, Universidade de Roma, 1915. ticas da eventual qualidade de mediunidade que ela possui.
Professor do Curso Internacional de Parapsicologia da Funda- A ninguém pode escapar a importância que assume tal mé-
ção Científica Romana Humiastowska. Professor do Curso Bi- todo, seja do ponto de vista científico, teórico, pragmático ou
enal de Parapsicologia da Universidade Popular Romana. empírico. Informamos acerca de algumas das experiências re-
alizadas diretamente por nós em Roma, no centro experimen-
Preâmbulo tal da S. I. M. (Sociedade Italiana de Metapsíquica), com a as-
sistência e colaboração de distintas e qualificadas personali-
Dados sobre o Método Comparado “Blasi” de Psicodiagnose dades: Profs. Pende, Ponzo, Mendicini, Cantelli, do Ateneo
Paranormal. Romano; Leleza da Universidade Polaca; Canavesio da Uni-
O problema gnoseológico e psicológico do descobrimento versidade da Argentina; P. Alighiero Tendi S. J., Vice presi-
objetivo da personalidade humana integral (consciente, social e dente da Universidade Gregoriana.
o eu subconsciente profundo) não se resolve com os métodos da
psicologia normal (testes e similares), nem com os psicoanalíti- A Personalidade Integral Do Professor Pietro Ubaldi.
cos, já que ambos se limitam aos extratos superficiais do eu, ou Nota: Peço licença ao ilustre amigo por me ver obrigado a
são condicionados pela boa vontade do sujeito e pela interpreta- referir o seu caso detalhadamente, porque comprova, fora de
ção subjetiva dos dados por parte deste ou daquele investigador. toda a possibilidade de dúvida, a eficácia do meu método, dado
Para obviar tais inconvenientes, idealizamos e experimen- a prova testemunhal que nos proporciona.
tamos em muitos casos e durante vários anos um novo método A experiência iniciou-se há vários anos, isto é, 1948, em
parapsicológico, que nos permite o estudo objetivo da persona- forma inopinada. Não conhecia pessoalmente Ubaldi. Ignora-
lidade humana e não requer o concurso direto do sujeito, a ela- va tudo acerca dele ou da sua vida privada. Por meio de pes-
boração subjetiva dos dados e, portanto, não está sujeito à inse- soas conhecidas em comum, entrei em relações epistolares
gurança aleatória dos mesmos. Os dados que nos proporciona o com ele, oportunidade em que me solicitou que lhe desse, a tí-
nosso método são positivos, objetivos e controláveis. O pro- tulo de prova, os resultados de um exame metagnômico de
blema gnoseológico assinalado permanece dentro daquele co- seus escritos e de uma fotografia sua da juventude (os dados
nhecimento intuitivo paranormal ou metapsíquico mais geral, que forneço são essenciais – por razões de brevidade omito os
que postula a existência potencial na psique humana subconsci- de menor importância).
ente de novas funções de E. S. P. (percepção extrasensorial) pe- a) Minha resposta grafológica a um escrito autógrafo de
la qual todo o real (psicológico e físico) pode ser conhecido in- Ubaldi, quando ainda não o conhecia pessoalmente:
tuitivamente. O nosso método dá ótimos resultados, seja nos ―Profundidade de intelecto que penetra minuciosamente nos
casos normais de personalidades ordinárias, seja naqueles mui- problemas, quase cinzelando o pensamento, que se destaca pela
to mais difíceis, paranormais, de personalidades complexas ou pulcritude e comunicabilidade, com equilíbrio, equanimidade e
múltiplas histéricas-sensitivas-médiuns. objetividade nos juízos sobre os demais. Tendência à especula-
O método pode definir-se: ―Psicodiagnose Paranormal‖ do ção com poder inventivo e construção lógica; muita memória,
tipo metodológico-qualitativo-comparativo-múltiplo de E. S. P, não apenas conceptual, mas também verbal, o que o torna apto
em contraposição ao quantitativo Rhüne. Este se vale precisa- aos estudos de idiomas (ignorava que ensinava o inglês, sabia
mente daquelas funções de E. S. P. (intuitiva – metagnômica – apenas que era um literato).
telepática – criptestésica – pragmática – psicométrica) que hoje ―Muita sensibilidade e delicadeza de sentimento, com ten-
muitos indivíduos sensitivos ou médiuns apresentam de modo dência à sensualidade, corrigida e sublimada com a tenacidade
mais ou menos destacado e especializado, utilizáveis facilmente de uma vontade superior. Pode haver mudanças e ceder até a
por um perito parapsicólogo, quando tenham sido dirigidas e um certo ponto a sugestões alheias mais fortes. Preponderân-
oportunamente fundadas ou especializadas na descrição da per- cia dos fatores psíquicos do inconsciente, com introversão de
sonalidade, seja isto diretamente, colocando o sujeito na sua tipo místico‖.
presença, seja indiretamente, através de um objeto ―testemu- Com relação à fotografia da juventude, a minha resposta foi
nho‖ que haja pertencido à pessoa – método psicométrico ou de a seguinte:
248 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
―Personalidade dupla, olhar penetrante. Forte vitalidade, enquanto a outra personalidade, a social, a que ele mostra, é
através das oposições! Mas quanta tristeza! Nota dolorosa. fria, e ele sofre porque não pode conduzir-se e viver conforme a
Fronte alta, espaçosa, que fala por si mesma; há nela uma luz; sua personalidade verdadeira, mais bela, que – fato estranho –
contraste com a firme acentuação labio-mental, índice de forte tem megalomania, mas apenas com finalidade benéfica; queria
vontade e energia vital também em sentido físico‖. ser grande somente para fazer muito bem à humanidade. Tem
b) Resposta da sensitiva (curandeira) M. Lombardi, tendo muito discernimento. Agora parece ter-se tornado mais inteli-
presente Ubaldi, mas sendo-lhe este absolutamente desconheci- gente e refinado espiritualmente‖.
do. Encontrava-se por casualidade de passagem e tinha vindo O presente ensaio foi publicado pela Revista Le Vie Dello
pela primeira vez à minha casa. Spírito, (ano IV No 1, 2, 3, 1947, Roma), com o título: ―O co-
―É uma pessoa que lutou e sofreu muito por injustiças pade- nhecimento metapsíquico e o método comparado de psicodiag-
cidas; aos 9 anos salvou-se por milagre de morrer afogado em nose da personalidade‖, onde se referem mais detalhadamente
água não corrente, num lago ou no mar; tiraram-no pelas per- às particularidades relacionadas com a luta espiritual de Ubaldi
nas; vejo sua mãe que lhe queria muitíssimo. Em 1941 grande e com as autoridades eclesiásticas, individualizadas com exati-
susto, e luta por acusações injustas. Em 1942, fora de sua casa, dão pela Senhora Lombardi.
teve uma desgraça que o fez sofrer muito. Todos os anos tra-
zem vicissitudes e desgraças que sobreleva; sofrimentos com Análise Comparada Das Várias Respostas Parapsicológicas.
um pouco de luz. Também agora está em luta espiritual; não As várias respostas parapsicológicas – as minhas, as de
sabe o que fazer; muitos projetos para realizar. Por agora silen- Lombardi e de Menozzi – concordam nos dados em muitos
cia, depois virá a luz. Há uma entidade do além que o ajuda. pontos, o que, mesmo prescindindo das declarações do próprio
―É são e viverá muito tempo. Conduziu-se sempre bem, mas Ubaldi de que resultam verdadeiras quase em 100%, comprova
foi mal recompensado. Encontra-se no caminho justo, mas terá que elas não são somente o resultado de uma indução conscien-
que lutar muito. Encontra-se entre a bigorna e o martelo, que te do plano racional, mas também um conhecimento paranor-
golpeia sobre a bigorna abrasadora. Tem uma força de espírito mal, intuitivo, diapsíquico e, caso se queira, telepático, metag-
excepcional, com uma luz que desce do alto e o guia. Luz den- nômico, por parte dos sujeitos sensitivos, pelos quais o ―livro
tro da cabeça que sairá como uma auréola; mas não de santo. da vida‖, a constelação pessoal e a personalidade integral de
Esforça-se por despojar-se da materialidade e elevar-se espiri- Ubaldi são revelados na sua realidade vivida, independente-
tualmente sempre mais. Vejo-o subir por uma escada que chega mente das limitações cronotópicas espaço-temporais do conhe-
ao Céu, conduzido por um anjo. No alto espera-o Jesus com os cimento normal racional. A afirmação de que não se pode reba-
braços abertos, que lhe diz: ―Vem, cumpriste bem a tua mis- ter não é válida, muito embora as condições em que se desen-
são‖. Como os eleitos, traz a imagem de Cristo no peito. A for- volveram as experiências com os diversos sensitivos (ignoran-
ça espiritual o sustém, mas teve que se adaptar a penitências‖. tes por completo de qualquer dado sobre a personalidade de
c) Resposta psicométrica do sensitivo C. Menozzi, sobre um Ubaldi e independentes uns aos outros) não se possa contestar,
manuscrito de Ubaldi: porque tem sua validez paranormal indiscutível. Outra é a ques-
―A letra é corrente, e isto me diz pouco. Escrita de noite, tão da fonte da qual os sujeitos extraíram as suas informações
numa grande mesa, com lâmpada portátil que dá pouca luz, pelo paranormais, que entra no caso geral ontológico do conheci-
que distingo pouco o ambiente, uma grande sala com móveis cor mento metapsíquico. Perguntamos: trata-se de uma fonte trans-
de mogno. Enquanto escreve, respira fatigosamente. Chamam- cendente da entidade sobre-humana ou de uma visão ―in specu-
no, levanta-se e sai. Escreve com facilidade, pessoa culta. En- lum Dei‖, segundo a explicação espírita ou teológica (de místi-
quanto escreve, tem um gesto habitual característico: volta a ca- cos-profetas)? Ou vem do plano natural do ―psiquismo coleti-
beça de lado, para o lado direito e para cima, como para ver algo vo‖? Ou como é nossa tendência, da comunicação interpsíquica
que não distingue e que chama a sua atenção (Imagem de Cristo humana, conforme a qual a ―Mônada Leibniziana‖ não é mais
que crê o acompanha como seu guia). Vejo a figura de um mor- incomunicável, mas tem no plano do inconsciente as suas boas
janelas do subconsciente? Os fatos tornam mais atendível a ex-
to, de cuja morte se entristeceu pouco por crer que passou a me-
plicação da ―comunhão dos vivos‖, destacada no campo religi-
lhor vida. Vejo um lago, não sei a que se refere. A sua mãe está
oso pelo conceito do ―corpo místico de Jesus‖. Esta vai integra-
aqui, não é alta, tem ainda muito cabelo, muito ligada ao filho‖.
da com a doutrina do subconsciente e com a da ―Imago‖ 3 psi-
d) Segunda Resposta de Menozzi, sobre um escrito de
canalítica de Jung, completada por mim com a ―memória cós-
Ubaldi, mas desta vez compilado em estado inspirativo:
mica‖, gonzos, da ordem cósmica e do mecanismo do universo.
―Grande transformação na personalidade do escritor, o que
É um dado positivo e comprovado experimentalmente que
o faz parecer outra pessoa. É uma mudança que não foi devida
todo acontecimento, em cada fato físico ou psíquico, em deter-
à diferença do tempo, mas ao modo de encarar a vida. A do
minado ambiente, através de um ato ou um gesto, num estado
primeiro escrito é mais dura, menos elevada do que esta, que
de consciência, pensamento ou imagem, não se anula; pelo con-
trata, dentro dos limites do possível, de fazer o bem. A primei-
trário, deixa uma marca perene no tempo, suscetível de ser cap-
ra apresenta-o como mais nervoso, devido às preocupações,
tada ou reevocada, vivida ou vista e percebida paranormalmen-
fastios e quebra-cabeças que o fazem descontente. De caráter
te pelo sujeito humano sensível.
fechado, não ri mais; sempre desgostoso, encontra-se desloca-
Nos estados hipnóticos, no sono normal, no transe e nos
do; perdeu a fé em si mesmo, está à espera de um aconteci-
êxtases místicos, o psiquismo humano subconsciente entra, por
mento, de uma mudança.
uma parte, em relação com o psiquismo subconsciente dos ou-
―Agora encontra-se no seu estado de ânimo atual. Tornou-se
tros indivíduos da coletividade humana e, por outra, em certos
muito mais sensível do que antes, até ao paradoxismo, quase
casos de indivíduos particularmente dotados, que chamamos
mórbido, e sofre tremendamente; mas não é um neuropático;
todo espiritualidade, cada vez mais complexa. Só por momen- 3
O termo ―Imago‖, que se refere ao conceito psicanalítico introduzido
tos é assim tão sensível. Então tem duas personalidades: a ver-
por Jung, daquela representação ou complexo psíquico ―dominante im-
dadeira, íntima, é como uma personalidade de sonho, da qual é presso no inconsciente‖, altamente dinâmico e auto-sugestivo que, com
muito zeloso e que não quer de maneira alguma dar a conhecer. meios paranormais, trata a todo o custo de realizar-se e se realiza em
Uma pessoa que já não é jovem, mas de características juvenis. muitos casos forjando o nosso destino, que de certo modo vem ―pré-
Creio que esta seja a sua verdadeira personalidade: requintada- estabelecido por tal determinismo interior‖ (Allendy). A imago de Ubal-
mente boa, altruísta, generosa, espírito apaixonado realmente, di é a Missão Crística‖. (N. do A.)
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 249
sensitivos ou médiuns, com o plano transcendente no campo Ubaldi, que sobe e leva a ―Imago‖ crística no peito, com a par-
psíquico interindividual e memória cósmica. Daí toda a reali- ticularidade percebida em visão – exatamente por Menozzi – do
dade fenomênica, presente, passada e, em alguns casos, futura gesto habitual de Ubaldi de olhar de lado para contemplar uma
(para esta há outra explicação exposta por nós noutro lugar) es- ―Imago‖ que o acompanha sempre. Ubaldi precisou que tem a
tá impressa, e o sensitivo é capaz de revelá-la, assim como pa- sensação de uma ―presença mística‖ que o acompanha e que ele
ra a memória mecânica ou cibernética ocorre com a fita mag- atribui a Cristo, motivo por que tem esse gesto habitual, feito
nética dos magnetofone ou na máquina eletrônica. As vibra- por ele e sendo zelosamente escondido e, por conseguinte, ig-
ções etéreas luminosas, radiantes, viajam no espaço intereste- norado de todos. Também a visão simbólica da Senhora Lom-
lar milhões de anos-luz, praticamente um tempo infinito, e são bardi, do martelo que golpeia sobre a bigorna candente, está
suscetíveis de serem reveladas por um detector adequado; cha- certamente em relação, conforme referiu o próprio Ubaldi, com
pas fotográficas, radiotelescópios etc., com os quais nós, os uma mensagem da famosa médium Valbonesi, que, no distante
terrestres, alcançamos a imagem viva e real de uma estrela ano de 1935, lhe falou do martelo que golpeia a bigorna para
longínqua dos confins do universo quando esta talvez não exis- consolidar a estrutura de sua alma. A concordância de palavras
ta mais. Assim pode ocorrer com o sensitivo que se colocou, e significado são, portanto, características para excluir a coinci-
com o seu psiquismo inconsciente, em relação ao plano psíqui- dência fortuita entre as duas mensagens, e surge da visão atual
co cósmico, com as vibrações registradas nele pela personali- de uma realidade mnemônica passada, registrada no subconsci-
dade vivente (longínqua ou morta) – psicofísicas – e deixadas ente de Ubaldi. O mesmo pode dizer-se sobre o dado particular
em tal plano da memória cósmica; é como se estivera ainda vi- e significativo acerca da ―Luz‖ mística que ilumina a mente de
va e, por conseguinte, susceptível de uma quase contingente Ubaldi, estabelecido por mim e pela senhora Lombardi, que
ressurreição integrada pelos elementos psicológicos do sensiti- pode vincular-se, como depois me afirmou Ubaldi, a uma men-
vo que a captou, personalizando-a. sagem mediúnica recebida em 1932 – ―A Luz do Espírito Santo
O mistério do conhecimento paranormal com o meio cha- te ilumina – A sua Luz espalhará os seus raios na tua mente‖.
mado impropriamente ―psicométrico‖ ou da leitura do objeto Confirmando a nossa teoria ―psicométrica‖, está o fato de
―testemunha‖ (criptestesia pragmática), que, de algum modo, que Menozzi individualizou exatamente a influência diversa
registra ou facilita a comunicação paranormal com as citadas que tem o objeto testemunha, em nosso caso os escritos de
vibrações da realidade psicofísica fenomênica passada, não po- Ubaldi, sobre as qualidades das informações paranormais que
de interpretar-se senão mediante esse mecanismo das marcas ou proporciona. O primeiro escrito, corrente, sem alma, diz pouco
vibrações mnemônicas cósmicas, que implicam um ―campo à sua intuição; ao passo que o segundo, carregado de espiritua-
psíquico‖ transcendente, uma influência direta do psiquismo lidade, revela-lhe plenamente a dupla personalidade de Ubaldi.
sobre a matéria, assimilada por Panghestecher e outros, a uma Julgamos, então, que nosso estudo é merecedor de medita-
impregnação psíquica da matéria. ção. Será justo, ou pelo menos oportuno, que uma personalida-
A nossa interpretação natural do fenômeno metagnômico, de ―delicadamente boa, espiritualmente elevada, que traz em si
compartilhada pela grande maioria dos parapsicólogos, encontra a imagem de Cristo‖ – coisa que se não poderia afirmar, com
confirmação no caso de Ubaldi, quando Menozzi, na sua respos- tanta segurança, de muitos religiosos – deva ser rejeitada da
ta, afirma: ―(...) Não vejo a cor da gola da pelica que veste a mãe comunhão dos fiéis? Isto somente porque, obedecendo ao seu
de Ubaldi, porque a sua mente não está nela‖. E assim são todos impulso interior, que vem de tão expressiva ―Imago‖, expande
os numerosos dados positivos, reais, concordantes nas várias sua alma em obras que ele mesmo não atribui a seu merecimen-
respostas. O aspecto físico juvenil (como aparece na fotografia to pessoal. ―O Espírito do Senhor sopra quando quer e onde
de há mais de 20 anos), observado em visão pelos sensitivos no quer‖, e este é o caso de Ubaldi. Ubaldi também, em sua opini-
momento da experiência, se exprime por uma ―leitura‖ quase ão e na dos sujeitos, tem missão a cumprir no curso de sua vida,
mecânica, como se, perante a visão de cada um deles, visão inte- missão apostólica que lhe foi confiada pelo Alto. Os céticos
rior ou ―espelho‖ anímico subconsciente, fosse exibido um filme podem considerá-la como autossugestão, mas a personalidade
eletrônico registrador da individualidade psicológica de Ubaldi, fundamental de Ubaldi, como nos foi provado pela pesquisa
da qual, no entanto, eles não percebiam senão fragmentos de ân- metapsíquica, é de nível ético-religioso tão superior, que nos
gulos visuais diversos a cada um, conforme as suas equações deixa perfeitamente tranquilos quanto às consequências de seu
pessoais, especializações e afinidades psicológicas. apostolado, mesmo se ontologicamente não transcendente. O
Daí que a Senhora Lombardi, sujeita de tendências místicas, mesmo não se pode dizer quanto ao que se refere indubitavel-
haja posto bem em relevo o lado místico da personalidade de mente à mediunidade profissional, quando estamos diante de
Ubaldi, a sua luta interna de ascetismo espiritual e a luta externa ―sujeitos‖ que escondem personalidade muito equivoca e peri-
num período particularmente crítico nas suas relações com o gosa, coisa que ocorre com grande maioria dos médiuns de
ambiente hostil, principalmente religioso oficial, e não destacou, efeitos físicos e mesmo com alguns ―ultrafanos‖ (...).
como o fez Menozzi, as características psicológicas da dupla
personalidade de Ubaldi. A descrição exata das particularidades Conclusões
do ambiente – gabinete de estudo, gesto, aspecto físico de Ubal-
di e da mãe – feita por Menozzi é devida à sua particular sensi- Concluímos nosso trabalho julgando haver demonstrado que
bilidade perceptiva e à instrução que lhe dei de permanecer o o método de psicodiagnose comparada metapsíquica, proposto
mais possível no terreno dos detalhes positivos controláveis. A por nós, dá resultados satisfatórios e de alto valor técnico psico-
senhora Lombardi precisou que, quando Ubaldi tinha 9 anos, lógico, susceptíveis de aplicação prática em todo campo que
ocorreu o perigo de afogar-se num lago, sendo salvo pela mãe, requeira o exame da personalidade humana, através de exame
enquanto que Menozzi viu apenas a imagem mental de um lago por sensitivo e por médium, bem como de qualquer outra per-
e da mãe, sem compreender a relação e o acontecido. Tudo isto sonalidade que também interesse do ponto de vista teológico,
não será talvez uma prova evidente de que, em ambos os casos, jurídico e social, e não apenas científico.
tratou-se de uma visão paranormal da mesma imagem virtual, No caso específico de Ubaldi, já que não se pode conside-
vista parcialmente, com ―lentes‖ diferentes, por dois sensitivos? rar definitiva a condenação ao Índex de dois livros seus, pois
Particularmente instrutivo e importante do lado teórico é a a autoridade eclesiástica não possui os dados suficientes para
concordância através da visão da senhora Lombardi, da escada fazer um julgamento de toda a sua personalidade como nós a
mística (escada de Jacob) com Jesus no Alto, que espera por possuímos, convidamos os que têm autoridade na matéria a
250 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
exprimir seu julgamento sobre nosso trabalho e a respeito das ver a personalidade de Pietro Ubaldi em sua verdadeira luz.
conclusões que dele tiramos. Com essa expectativa e esse propósito, entramos no assunto.
Baseados na pesquisa científica metapsíquica que referimos, Quem é Pietro Ubaldi? Há quem o defina um santo, outros
concluímos que Ubaldi possui duas personalidades, das quais a um médium, alguns um gênio, outros ainda um visionário. Fisi-
mais importante, a verdadeira, tem alta espiritualidade e mora- camente é alto, fronte muito desenvolvida, algo encurvado, ati-
lidade comparável à dos maiores místicos e ascetas. Concluí- tude humilde e austera, expressão doce e triste, olhar vivo e pe-
mos que ele não é um médium no sentido comum; antes, suas netrante. Homem que, para seguir o ideal evangélico nas pega-
manifestações exteriores e sua constituição psíquica mais pro- das de Cristo, renunciou a todos os bens econômicos, que a sorte
funda diferem totalmente, mesmo no inconsciente, daquela que lhe concedera abundantes, e vive de modesta renda proveniente
costumamos encontrar nos médiuns. do ensino da língua inglesa no ginásio de Gúbio. Passa os dias
Não há automatismos nem privação de vontade para subme- no trabalho e na meditação, na renúncia quase completa a todas
ter-se a influências psíquicas extrínsecas perniciosas, com subs- as alegrias terrenas. Escreve muito. Prova-o sua copiosa produ-
tituição de personalidade: a personalidade mediúnica e de transe. ção literária. Temperamento profundamente místico desde tenra
Mesmo no estado inspirativo-criador, ele permanece sem- idade, dos místicos se diferencia pelo caráter próprio de raciona-
pre consciente, em relação com o ambiente que o cerca, e, se lista sem preconceitos, rigorosamente objetivo. Pode afirmar-se
sua personalidade aparece transformada, não é nova personali- ser sua exaltação mística do mesmo grau de sua potência racio-
dade que se impõe de fora, mas a sua própria, que ordinaria- nal. Nele, misticismo e racionalismo, ao invés de se excluírem,
mente está encoberta pela personalidade fictícia e social. Não completam-se e se vivificam mutuamente. Tem poucos amigos,
se exclui uma influência transcendente que se exerça às vezes vive vida prevalentemente solitária, mas não chega a ser misan-
nele, mas, de qualquer modo, dados os frutos que lhe advêm, tropo. Alma doce e tempestuosa a um tempo, temperamento ir-
não pode ser de natureza perniciosa e ―vitanda‖. Admitida essa requieto e voltado constantemente para Deus; passa entre os
influência, pode ser considerado um verdadeiro asceta-místico, homens sofrendo, dando-se todo a eles, na forma permitida por
ou então um místico natural. sua natureza, para realizar o que julga ser sua missão.
(a) Gaetano Biasi Com isto, pouco dele se diz. Notável contribuição para seu
conhecimento é-nos dada por sua obra História De Um Ho-
UM CASO DE BIOLOGIA SUPRANORMAL mem, cujo protagonista é ele mesmo. Mas essa obra é pouco
romanceada para podermos avaliá-lo bem. Não porque aí seja
A personalidade de Pietro Ubaldi velada a personalidade do autor ou, menos ainda, alterada, mas
Este artigo foi publicado nas revistas: Constancia – Buenos unicamente porque descreve o fenômeno biológico da criatura
Aires, de 1o de junho a 16 de novembro de 1949; La Idea – Bu- sem subir às causas do próprio fenômeno; e, sem elas, este não
enos Aires, outubro e novembro de 1948, e Estudos Psíquicos – pode explicar-se. As Noúres, A Grande Síntese e Ascese Místi-
Lisboa, de março a julho de 1948. ca, todas obras suas, lançam, porém, muita luz sobre as causas
Certo dia de outubro de 1945, num modesto restaurante de e permitem individualizar muitos aspectos da personalidade do
Gúbio, encontramos pela primeira vez Pietro Ubaldi. Foi um autor. Mas o leitor dessas obras ver-se-á logo a braços com no-
dia inesquecível, um daqueles que parecem amadurecer o desti- va e embaraçante dificuldade. A concepção científica e filosófi-
no de um homem. Acháramos o amigo da alma, a luz procurada ca, tal como é delineada, por exemplo, em A Grande Síntese,
por toda a existência. que, sem dúvida, é a obra mais importante, é de tão grande al-
Com a mente educada na ciência e na filosofia, dotados de cance, que torna difícil o enquadramento nela do autor e a in-
temperamento racional e místico ao mesmo tempo, rebeldes a terpretação do mesmo.
qualquer imposição ideológica, não podíamos aceitar uma fé re- Tendo como base essas obras e servindo-nos de nosso co-
ligiosa dogmática, porque a isto se rebelava nossa consciência. nhecimento pessoal com o autor, proporcionado por longa e
Pedíamos inutilmente à ciência e à filosofia que nos dissessem profunda amizade e simbiose espiritual mútua, esperamos tê-lo
a verdade, mas nosso grito perdia-se em infinitos labirintos e bem compreendido, e ele nos confortou respeitando nossas
becos sem saída; sangrava a alma em estrada sem objetivo. convicções a seu respeito. É óbvio que, para interpretar a per-
Aproximava-se o desespero. Tínhamos vago pressentimento de sonalidade de alguém, mister se torna enquadrá-la dentro de
que um dia acharíamos a luz da verdade, mas não sabíamos uma concepção ideológica séria e aceitável, a fim de que sua in-
quando nem de onde viria. Sentíamos, no entanto, que só a ci- terpretação seja lógica. Tudo isso tem importância fundamental,
ência poderia dar-nos resposta e não nos enganamos. Através porque a personalidade estudada adquire valor muito diverso de
da ciência, Pietro Ubaldi guiou nossa mente à verdade, lançou acordo com o sistema ideal em que seja enquadrada. Já que as
um raio de luz nas trevas, e nossos olhos extasiados enxerga- concepções humanas da verdade são infelizmente disparatadas
ram. Entrava em nossa mente aquela luz que tanto buscáramos, e mais ou menos limitadas, as definições que do estudado se
descia em nosso coração a paz para a qual dolorosamente es- podem dar, podem ser várias. A concepção dos ignorantes e
tendíamos os braços há longos anos. presunçosos pode defini-lo um louco; a concepção cristã-
◘ ◘ ◘ católica, um herege condenável; a ciência experimental, um in-
Feita esta premissa, seja-nos permitido dizer algo sobre Pie- divíduo interessante para estudos de psicanálise; e outras final-
tro Ubaldi. Perdoe-nos ele se nossa palavra não for adequada, e mente, um gênio, um santo, ou um visionário.
perdoe-nos o leitor se nossa linguagem for insuficiente para sua Estudá-lo-emos à luz da concepção geral de A Grande Sín-
mente e seu coração. Particularmente difícil é o assunto que nos tese e dos poucos mas seguros bruxuleios que nos oferece a ci-
propomos tratar, sobretudo porque rebelde às palavras comuns. ência. Como toda a ciência moderna experimental é acolhida
De qualquer forma, pode o leitor ficar certo de que tudo o que em A Grande Síntese, o julgamento mais amplo e cabal será
diremos deriva de profunda convicção pessoal, que, portanto, dado com base na concepção ideológica dessa obra. À luz da
ainda que não seja aceita, ao menos deve ser respeitada. Neste ciência, diremos apenas o que nos for dado dizer, pois nessa es-
trabalho, falaremos da personalidade de Pietro Ubaldi, diremos trada não se pode necessariamente esgotar o assunto. Julgamos
tudo o que sabemos e pensamos dele. Cremos útil para conhe- razoável caminhar nessas duas estradas, porque estamos persu-
cimento objetivo deste homem, que é pouco compreendido. Jul- adidos de que são as mais seguras, por estarem iluminadas pela
gamos poucos terem colocado Ubaldi, até aqui, na posição que mais viva luz, e porque abertas para horizontes sem limites.
lhe cabe. Esperamos fazer-nos compreendidos por quem deseja Rapidamente mostraremos as razões, persuadidos de que o lei-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 251
tor só poderá compreendê-las por si quando, para além da letra, a linguagem humana mais adequada à finalidade, e julgou opor-
tiver penetrado o espírito de A Grande Síntese. Dela não fala- tuno empregar a linguagem científica, por ser a mais séria e evo-
remos, por ser de natureza que não se pode explicar e, muito luída. Falou nessa linguagem e foi compreendido por muitos.
menos, resumir. Diremos apenas que nela achamos uma con- Teve o mérito de tornar acessível a muitos o que era privilégio
cepção da verdade que satisfaz plenamente a razão e o coração, de poucos iniciados, revelou o que o ocultismo de todas as épo-
concepção que, na Terra, nem a ciência, nem a filosofia, nem a cas e lugares conhecia, mas escondia. Nada de novo disse, por-
religião destroem. Nela, cada aspecto do pensamento humano que a verdade é una e indivisível. Compreendeu que a mente
acha seu lugar no plano que lhe compete. O conjunto resulta humana saiu da menoridade e está em grau de olhar o mistério e
harmônico, lógico, perfeito, indestrutível. Se fosse possível cri- estudá-lo. Com efeito, a ciência bate à porta dos mistérios, e
ar uma linguagem em que cada conceito correspondesse a uma Ubaldi, com sua obra, apresenta a chave à ciência.
palavra apenas e vice-versa, se compreendêssemos que só no Portanto a função biológica do escritor é muito importante.
absoluto existe uma verdade absoluta – enquanto no relativo, Mas, do mesmo modo e pela mesma razão que os grandes artis-
em que necessariamente vivemos, só existem verdades relativas tas são compreendidos por poucos, assim Ubaldi, até agora, foi
e progressivas – se, com segurança, compreendêssemos tudo is- insuficientemente e, sobretudo, mal compreendido. Claros e in-
so, seria fácil perceber que o erro é uma verdade parcial, muito dividualizáveis são os motivos. Sua concepção ou é compreen-
frequentemente um equívoco. Se cada palavra contida em A dida em suas linhas essenciais, ou não é absolutamente com-
Grande Síntese fosse interpretada em seu verdadeiro sentido, preendida. Para compreender suas linhas essenciais, é necessá-
todos ficariam persuadidos, como nós. Os homens não se en- rio ter o preparo do homem de ciência e, ao mesmo tempo, as
tendem, especialmente porque falam linguagens diferentes, ou faculdades psíquicas do místico. Sabem todos quão difícil é en-
seja, conceitos muitas vezes diversos são expressos com a contrar em igual medida e de forma acentuada as duas qualida-
mesma palavra. Todos sabemos pronunciar a palavra DEUS; des. O místico desconhece a ciência, e o cientista não compre-
mas o conceito é diversíssimo, conforme saia da boca de um ende e não aprecia o misticismo. Pode dizer-se que os dois se
místico ou de um involuído. O que deste conceito dissemos, repelem. Há entre eles o mesmo contraste que existe entre ma-
pode aplicar-se a todos os outros, que constituem os tijolos com terialismo e espiritualismo, de que tanto se fala hoje com con-
que se constroem os edifícios filosóficos, religiosos e mesmo vicção ou má fé, ou seja, o contraste entre matéria e espírito.
científicos. Infelizmente, não é possível realizar universal inter- Considerando-se bem, esse contraste, que cria entre os homens
pretação de todos os conceitos, dada a impossibilidade de todos ódios e lutas por vezes ferozes, deriva apenas da ignorância do
os homens realizarem os conceitos em si mesmos, já que alguns próprio homem ou de seus equívocos. Que matéria é essa que
só podem ser compreendidos à proporção que o indivíduo for se dissolve nos laboratórios da ciência, e que espírito é esse,
evoluindo. Por exemplo, o conceito de Deus, para um santo, só inimigo da matéria? Cremos que esse contraste nasce apenas da
pode ser compreendido por outro santo. Poderíamos continuar a insuficiência da mente humana. Fala-se com efeito de matéria e
discorrer, mas talvez não seja necessário. de espírito sem que se tenha o justo conceito de matéria e de
Voltando ao livro A Grande Síntese, acrescentaremos que espírito. É uma luta absurda, porque nem existe a matéria nem
não é difícil experimentar essa concepção, achá-la resistente e o espírito, mas apenas a substância, sobre cuja natureza nin-
totalmente satisfatória, quer através da análise como da síntese, guém sabe dizer a última palavra. Infelizmente, porém, na men-
seja pelas infinitas provas de dedução como de indução. Muitos te dos homens, se agita essa luta absurda, que leva à divisão
não se persuadirão, mas isso não admira; admiraria o contrário. também absurda dos ânimos, de que derivam as lutas visíveis,
Nela não faltam lacunas e incertezas, mas de valor não substan- sobretudo em nossos tempos, com o que lucram apenas a deso-
cial, que não infirmam, pois, as linhas mestras da própria con- nestidade e a ignorância. É mister destruir esse dualismo absur-
cepção e, muito menos, as destroem. É uma concepção vital do, só então o cientista poderá levantar seu olhar para o céu do
que traz luz à mente e paz ao coração e que nada destrói, mas misticismo e crer, e o místico poderá olhar para a ciência com
tudo vivifica, porque é universal. De qualquer forma, no fim olhos fraternos, e ambos, abraçados, poderão suscitar com esse
deste estudo, trataremos da personalidade de Ubaldi à luz da ci- abraço de amor a centelha divina que iluminará o mundo e en-
ência, embora pouco seja possível dizer, porque as conquistas sinará aos homens seu grande destino.
da ciência são muito limitadas. Só então poderá o pensamento de Ubaldi ser compreendido
◘ ◘ ◘ em sua natureza íntima. Tem muitos admiradores em todas as
Dito isso, procuremos interpretar a personalidade de Ubaldi partes do mundo. Mas quantos o admiram porque o compreen-
à luz da concepção geral de A Grande Síntese. Mas antes é mis- deram verdadeiramente? Ubaldi mesmo reconhece que pou-
ter distinguir bem a personalidade do escritor e a daquele ―Eu‖ quíssimos o compreenderam de fato. Muitos fizeram dele uma
que fala em A Grande Síntese. A voz que troveja e repreende em ideia contrastante com a realidade. Imaginam-no um semideus,
A Grande Síntese não é a voz de Pietro Ubaldi, mas a voz im- enquanto é apenas um homem. Estes provavelmente ficariam
pessoal da verdade. Desta voz, o escritor foi apenas o receptor e muito surpreendidos se o conhecessem pessoalmente, não por-
o tradutor fiel e eficaz. Em outras palavras, Ubaldi escreveu A que ele seja um homem de pouca valia, nada disso, mas porque
Grande Síntese por força inspirativa. Nas fases de máxima ex- incorreram no erro de formarem dele um conceito fantástico e
pansão de consciência, ele viu (intuiu) a verdade em suas linhas irreal. Tem períodos de depressão psíquica, durante os quais so-
mestras, perlustrou horizontes imensamente vastos e traduziu no fre de modo inaudito. Toca a beatitude do êxtase místico e o
papel e com linguagem humana, conforme a dialética da razão abismo da dor mais atroz, sai dos excelsos cumes da especula-
também humana, a verdade que vira. Traçou o quadro geral após ção da mente e desce ao abismo da sufocação de consciência.
a visão direta do mesmo, assim como o artista reproduz e mate- Observamos nele o homem dotado de poder psíquico gigantes-
rializa a própria visão estética e a torna acessível aos outros co e o homem fraco. Jamais, porém, se observa vulgaridade e,
através de estímulos aptos a impressioná-los pelos sentidos. As- muito menos, imoralidade. Notamos que apresenta dúvidas e
sim como a visão estética, se não fosse materializada na obra de incertezas que, no entanto, são resolvidas com absoluta clareza
arte, desapareceria secretamente na mente do artista e nada dela em A Grande Síntese. Mais de uma vez convidamo-lo a escla-
se escoaria para fora, igualmente a visão da verdade se teria recer as próprias dúvidas lendo suas obras, e muitas vezes o
apagado na mente de Ubaldi, nada dela saberíamos, se ele mes- confortamos com o conforto que dele recebêramos.
mo a não tivesse materializado e exteriorizado de tal maneira Mas, bem considerado, isso não deveria admirar. Ele, como
que a tornasse acessível à nossa mente. Esforçou-se ele em achar qualquer de nós, embora em planos diferentes, não é nunca
252 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
igual a si mesmo. Seu dinamismo biopsíquico é cíclico e, por- quico e, em certos momentos de esforço máximo, parece esfa-
tanto, sujeito a fases espetaculares de subida e descida. Segue- celar-se. Isto não ocorre nem pode ocorrer, pela razão que,
se daí que o mesmo acontece com suas faculdades conscientes, atingidos os limites extremos de resistência, ele reage automati-
ou seja, intelectivas e sentimentais. É um homem cuja persona- camente e cede, arrastando consigo o organismo psíquico, ana-
lidade está ligada à terra e ao céu ao mesmo tempo. Sua perso- logamente ao que ocorre na fase mística.
nalidade biopsíquica oscila, vibra, segundo um movimento cí- Nestas fases realiza-se a maior e mais elevada produção li-
clico ondulatório irregular, mas não casual. Em seu eterno di- terária ubaldiana. Nestas fases, o organismo físico sofre esfor-
namismo, sobe e desce de acordo com uma trajetória cujo vérti- ços e conturbações verdadeiramente apocalípticos, e, em certos
ce positivo está no plano místico e o negativo no plano huma- momentos, tudo parece desmoronar e incinerar-se. Isso não
no. Sobe e desce de um a outro plano, passando, naturalmente, ocorre pela automática autorregulação de que falamos. A sua
através de planos intermédios de que falaremos. produção literária nasce prevalentemente nesses momentos e
Esse fenômeno não deveria maravilhar ninguém, porque é representa um parto muito doloroso. As páginas de seus livros
comum à psique humana. Todos nós temos estados de ânimo são pedaços de carne, são escritos com seu sangue, são momen-
diferentes, períodos de sensibilidade e insensibilidade, de oti- tos de vida vivida em grandeza e dor excepcionais. Nem sem-
mismo e pessimismo, de expansão e compressão de consciên- pre ele escreve nesses momentos particulares, porque às vezes
cia; não obstante, estamos em ato ou em potência sempre suas condições psíquicas não lhe permitem escrever. Frequen-
iguais a nós mesmos. Ele difere de nós unicamente por maior temente confia à pena a lembrança fiel de uma visão preceden-
acentuação do fenômeno. A potencialidade biopsíquica dele te. Indispensável acrescentar que, no âmbito dessa fase, sua
viveu, naturalmente, momentos diversos mesmo no passado, e consciência não se mantém estática, mas está sujeita a flutua-
os viverá no futuro. Em sua presente vida, conheceu momentos ções mais ou menos intensas, pelo que ele vê em lampejos, e
psíquicos diferentes. Começou com a inconsciência da vida não continuamente. Atravessa momentos de máxima exaltação
embrional, passando daí à fase de consciência média normal e e momentos de repouso. Nem poderia ser diversamente, por
aos poucos à mediúnica, à ultrafânica e enfim à fase mística. que a economia biológica o impõe. Naturalmente, ele também
No atual período de sua vida, seu dinamismo biopsíquico osci- não pode subtrair-se de todo à influência do ambiente, que age
la da fase de consciência normal à de consciência mística. sobre ele, embora em medida e com efeitos mais limitados do
Concluindo, a evolução biopsíquica de Ubaldi é caracterizada que normalmente. Basta então um momento ocasional, ainda
por uma trajetória progressiva ondulatória. Trajetória análoga, que mínimo, para suscitar ou para acelerar nele um determina-
ainda que em proporção diversa, caracteriza o dinamismo bi- do estado de consciência, pois, às vezes, basta uma leve força
opsíquico da generalidade dos homens. externa para completar maturações íntimas adiantadas.
Dissemos que Ubaldi, em seu dinamismo biopsíquico, osci- Da fase de ultrafania, por processo natural de compressão
la entre o plano biopsíquico humano normal e o plano biopsí- de consciência, Ubaldi desce à fase ―de mediunidade‖, onde
quico místico, atravessando os planos intermédios. Agora dire- adquire as faculdades próprias do médium. Não tivemos ocasi-
mos que sensações ele experimenta nos diversos planos de ão de observar pessoalmente nele essa fase e, por isso, não es-
consciência e quais são suas manifestações externas. Comece- tamos em condições de ilustrar convenientemente suas manifes-
mos da fase mística. É a fase de máxima expansão da consciên- tações específicas mediúnicas. Não obstante, cremos poder
cia. Dura pouco, porque se durasse muito tempo, o mataria fisi- afirmar que pertencem à ordem dos fenômenos mediúnicos
camente. É um estado de suprema beatitude, de suprema cons- normais, a respeito dos quais está à disposição do leitor uma li-
ciência e de supremo amor. O organismo físico permanece au- teratura copiosa e com os quais se ocupa seriamente uma nova
sente da consciência dele, mas sofre as consequências do for- ciência, a metapsíquica. Resta-nos apenas salientar que as fa-
midável desequilíbrio que se produz em tais momentos entre culdades mediúnicas são contidas e disciplinadas pelo equilí-
ele e o organismo psíquico. É como se fora imerso numa chama brio e pela superioridade moral do próprio Ubaldi e que, de
que o queima sem dor, mas que o consome. Segue-se daí que, qualquer forma, elas são um estado biopsíquico de breve dura-
atingido o esforço limite, ele rui e, em seu desmoronamento, ar- ção e estranho, como veremos, à característica biológica pre-
rasta consigo o organismo psíquico, porque o organismo psíqui- dominante de Ubaldi. Não nos delongaremos neste argumento,
co e o organismo físico representam respectivamente o polo po- mesmo que pareça a muitos leitores ser o mais sugestivo, pri-
sitivo e o polo negativo do organismo humano, os quais devem meiro porque nada temos que acrescentar de novo ao que já se
coexistir em complementaridade harmônica. Na fase mística, o conhece dos fenômenos de mediunidade, e também porque,
organismo físico sofre e se adapta, em virtude de sua notável como dissemos, não tivemos a possibilidade de fazer observa-
elasticidade, à extrema tensão psíquica. Mas, atingidos seus li- ções pessoais e particularizadas neste assunto. A gigantesca
mites extremos de elasticidade, reage violentamente e rui, arras- personalidade psíquica e o superior equilíbrio intelectual e mo-
tando consigo o organismo psíquico. Portanto os momentos mís- ral de Ubaldi não o consentem. De outra parte, exibir essas fa-
ticos são breves, mas de intensidade máxima. Esses momentos culdades seria atrair a vulgar e patológica curiosidade do públi-
são possíveis apenas em condições de quietude, de recolhimento co. Tudo isso pode adaptar-se a um médium de salão, mas não
e isolamento. Deles, ele sai fisicamente esgotado e se precipita se adequa certamente à figura gigantesca de Ubaldi.
nos planos mais baixos de consciência. Não pudemos observar Do estado de mediunidade, por ulterior compressão de
pessoalmente o escritor em seus momentos místicos e, portanto, consciência, decorrente da diminuição do potencial biopsíqui-
não estamos em condições de dizer mais do que isso. co, ele desce ao estado próprio à generalidade dos homens.
Na fase de ultrafania, Ubaldi apresenta excepcional sensibi- Nesse estado, personifica sucessivamente os tipos biopsíquicos
lidade e potência de gênio. Tem a visão direta e consciente da humanos que, em progressão regressiva, unem o plano biológi-
verdade, participa intimamente da vida do universo, e sua cons- co mediúnico ao biológico médio normal humano. Adquire, por
ciência dilata-se em horizontes sem limites. Desses momentos isso, primeiro as características e manifestações do homem de
inspirativos saiu, de jato, A Grande Síntese. Nos momentos de gênio, ou seja, notável poder racional puramente humano, viva-
inspiração ou de ultrafania e sobretudo nos místicos, a natureza cidade de inteligência, a que se seguem características menos
humana de Ubaldi acha-se superada. De humano, sobrevivem pronunciadas, isto é, menor potência racional e intelectiva. E,
apenas as funções reduzidas do organismo físico, que, obvia- assim, gradativamente descendo, chega a adquirir as capacida-
mente, não pode subtrair-se de todo às leis que o governam. O des intelectivas do homem médio normal. Não nos consta tenha
organismo físico acompanha dolorosamente o organismo psí- ele jamais descido abaixo desta última.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 253
Importa acrescentar que tudo o que dissemos refere-se uni- zaria com este, desmaterializando-se e fixando-se em estado
camente ao potencial biopsíquico ou de consciência. No que diz evoluído mais avançado. Parece que fenômeno semelhante nos
respeito ao estado afetivo e sentimental, ou seja, a seu estado de seja dado observar nas funções físicas e psíquicas da biologia
felicidade ou de dor, a coisa se passa diferentemente. Com efei- do homem normal. Nem de outro modo poderia ser, pois a lei
to, ao dizermos que, no plano humano, Ubaldi apresenta facul- que governa a vida dos homens é una, universal e necessária.
dades racionais e intelectivas puramente humanas, não significa É mister observar ainda que, superado o vértice negativo da
que experimente estado de ânimo próprio da generalidade dos onda biológica, Ubaldi sobe mais forte e mais seguro, conquista
homens normais. Grave erro seria supô-lo, erro que impossibili- mais luminoso estado de consciência e volta novamente à visão
taria uma avaliação realística do mesmo. Quem compreende da verdade. Retoma o dinamismo biológico que lhe é próprio,
perfeitamente o fenômeno biológico que ele vive, chegaria por atingindo com menor esforço possibilidades superiores às que
si às mesmas conclusões. O estado de felicidade e infelicidade, antes alcançara. Indispensável agora precisar o que entendemos
de alegria e dor, próprio a cada ser humano, tem causa em sua por visão da verdade. O vidente não vê a verdade com os senti-
relatividade. É universalmente sabido que a dor deriva de ne- dos humanos normais, mas com a percepção extrasensorial, ou
cessidade insatisfeita, bem como a necessidade só surge da ex- seja, a vê dentro de si, sintonizando o próprio EU psíquico com
periência. Quando uma experiência agradável falta em nosso a própria verdade, mediante um sexto sentido que a evolução ne-
ânimo, nasce a necessidade de repetição da mesma. Essa neces- le criou. Considerando o organismo humano um aparelho recep-
sidade insatisfeita é, por sua vez, causa de sofrimento. Por tor, pode dizer-se que o organismo de Ubaldi é um aparelho
exemplo, quem experimentou o prazer de vida cômoda e abas- mais aperfeiçoado, mais sensível, isto é, apto a perceber sensa-
tada, sofre quando perde a comodidade e a abastança. Muito ções que, por sua natureza, um aparelho normal não pode perce-
menos sofre quem não fez essas experiências, ou mesmo nada ber. O aperfeiçoamento dos sentidos humanos está em relação
sofre. Igualmente, quem experimentou as alegrias do afeto hu- com as necessidades biológicas correspondentes ao plano evolu-
mano sofre quando este lhe falta. Menos ou nada sofre quem tivo e ao ambiente próprio de cada plano. Sabe-se que o ambien-
nunca as experimentou. Citamos dois exemplos, mas podería- te e a função criam o órgão; é lei universal e, portanto, vale tam-
mos continuar indefinidamente. bém para o ser que estudamos. Resulta que, exercitando ele uma
Dito isto, que dizer de quem experimentou a felicidade su- atividade biológica precipuamente psíquica, própria dos planos
prema, isto é, o êxtase místico? Evidentemente, nenhuma outra biológicos supranormais, e tendo-se subtraído à influência do
experiência pode proporcionar felicidade tão grande, e daí se ambiente propriamente humano, participando de um ambiente
deduz que quem experimentou essa suprema felicidade está super-humano, conquistou diversas características e possibilida-
condenado a não mais achar felicidade em coisa alguma. Quem des biológicas diversas das nossas. As suas características bioló-
viu, por um instante sequer, o Paraíso, jamais poderá esquecê- gicas harmonizam-se, portanto, com as leis da natureza e nelas
lo e procurará sempre revê-lo. Compreende-se, portanto, que têm sua justificação e explicação. Então, durante a fase de ex-
Ubaldi jamais poderá saborear as alegrias desta Terra. Só é feliz pansão da consciência, quando os centros psíquicos estão em
quando vive no plano místico. No plano ultrafânico é parcial- função, ele tem percepções extra-sensoriais da verdade, nela se
mente infeliz; aumenta sua infelicidade no plano mediúnico e funde em simbiose mútua, que se vai tornando aos poucos de fa-
se torna máxima no plano humano normal. E, como os momen- cultativa em obrigatória. Vive em harmonia com a lei universal,
tos místicos, únicos capazes de fazê-lo feliz, são de duração isto é, com o pensamento de Deus; supera a própria natureza
breve, segue-se que ele vive prevalentemente na dor. Ele paga a humana e realiza uma natureza super-humana. Vive uma reali-
visão fugaz do paraíso com longas e persistentes fases de pro- dade que não pode ser compreendida por homens normais, nem
funda dor, que mantém em ebulição todo o seu ser. Esta sua dor expressa pela linguagem comum. Análogo a isto é o que ocorre
imensa é, por sua vez, causa de sua progressiva catarse espiri- aos cegos de nascença, que não podem compreender a natureza
tual, catarse que o leva cada vez mais para ulterior superação de das diversas cores, por mais que lhes sejam descritas.
si mesmo. Está, pois, destinado à dor, cortou as pontes atrás de O fenômeno biológico vivido pelo nosso estudado é indubi-
si, e não mais pode tornar a viver nesta Terra nem obedecer às tavelmente muito interessante e revela-nos até que ponto pode
leis biológicas que a governam. Está suspenso entre o céu e a avançar o poder psíquico. A Grande Síntese foi escrita de jato,
terra. O paraíso apresenta-se-lhe só por instantes fugazes, a Ter- sem que o autor possuísse adequada preparação científica. Pode
ra lhe é inóspita. Drama tremendo e grandioso ao mesmo tem- parecer um prodígio, mas é apenas um fenômeno natural, ainda
po. Ele vive sua suprema ventura biológica. que raro; é a realização de uma possibilidade humana normal.
Atingindo a profundidade da fase humana, após período Não há prodígios na natureza, mas existe uma lei biológica de
mais ou menos longo de dor, a onda biológica de Ubaldi se in- que apenas conhecemos pequena parte. Ilimitadas são as possi-
verte e retoma seu ciclo ascendente. Ele regressa aos primeiros bilidades da ascensão humana, a força que as gera é aquela cen-
planos de onde descera, reproduzindo o fenômeno biológico telha divina que arde em cada um de nós, os motores são a dor
idêntico e inverso ao descrito. Qual a íntima razão biológica de e o amor. É necessária a força corrosiva da dor para quebrar o
tudo isso? Não a conhecemos. Indubitavelmente, isto se relaci- invólucro que nos mantém prisioneiros, assim como o fogo do
ona com as leis que governam a evolução nos planos biológicos amor para fundir a enorme couraça que nos separa da verdade.
supranormais, e difícil é percebê-las com clareza. Julgamos que Rasgam-se os véus do mistério só pelo mágico toque do amor,
as fases de depressão de seu dinamismo biológico sejam um êx- e vão seria agir diversamente. Característica peculiar dos pro-
tase; após a expansão, uma contração necessária para a consoli- dutos mais elevados da evolução humana é, com efeito, a nota
dação de seu organismo físico e psíquico, em novo equilíbrio dominante do amor, de um amor sobre-humano e ilimitado. Es-
de forças, através das íntimas reações biológicas, ligadas às sa é a característica fundamental de nosso estudado. Amor e dor
funções de trocas, portanto fenômeno comparável ao cansaço são a inesgotável fonte de sua grandeza
que se segue a um estado de intenso trabalho, que impõe ao or- Dito isso, compreende-se que seu poder intelectivo e vital
ganismo o estado de repouso e que, ao mesmo tempo, determi- está caracterizado por notáveis variações e que as experiências
na o refazimento dos órgãos que trabalharam. Tratar-se-ia então que o interessam são de natureza diversa e contrastam entre si
de um trabalho involuntário, que se desenrola na intimidade do vivamente. É fácil imaginar que desse contraste se origina um
organismo físico-psíquico para consolidar um equilíbrio bioló- complexo de ações e reações psíquicas e físicas que o mantêm
gico mais elevado. O organismo psíquico se consolidaria numa em estado de perene dinamismo, motivo de evolução e razão de
fase biológica mais adiantada, e o organismo físico se harmoni- alegrias sobre-humanas e de sobre-humanos sofrimentos. Com-
254 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
preende-se ainda quanto sofre ele no plano humano, quando sua rança, é sem dúvida notável. Sabemos, além disso, que ele
consciência experimenta participações medonhas. Não admira permanece no plano ultrafânico durante metade de seu tempo,
que, em tal estado de consciência, ele duvide, que considere es- ou seja, em um ano, permanece seis meses em estado ultrafâni-
tranha a verdade vista e descrita; não admira que seja atormen- co. Na outra metade de seu tempo, está em condições normais,
tado por incertezas, incorra em erros e despreze a si mesmo. mediúnicas e místicas. Não podemos precisar quanto tempo
Tudo isso pode parecer desequilíbrio patológico. Na realidade, permanece em cada uma dessas três fases. De qualquer forma, é
é desequilíbrio, mas criativo, porque sua personalidade o com- certo que as experiências místicas são de duração breve e de in-
preende, o enquadra e o domina, e dele se serve para a própria tensidade excepcional. Com esses poucos elementos, é sem dú-
subida. Demonstra-o sua autocrítica, serena e sincera. vida impossível deduzir conclusões precisas. Aliás, esta ativi-
Percebe-se ainda que, dada a particular excepcionalidade do dade biológica particular de Ubaldi não se presta a medidas e
drama, bem dificilmente pode Ubaldi receber válido auxílio dos análises mais minuciosas, pois, embora possíveis, de pouco
homens. Estes não o compreendem nem o podem, porque a serviriam ao nosso objetivo, desde que os momentos biológicos
compreensão só é possível entre os semelhantes, e ele é muito têm valor próprio intrínseco, que não pode ser apreciado pela
diferente de todos. Ubaldi vive uma vida que os outros desco- medida do tempo. Poucos minutos de suprema tensão mística
nhecem e deve amadurecer sozinho sua grande aventura. En- têm um significado biológico que transcende qualquer aprecia-
trou só nesse atalho árduo, cujo objetivo é uma vida maior. ção humana e não podem ser avaliados em confronto com os
Cortou as pontes atrás de si e não pode voltar. Seu único con- momentos de atividade biológica normal.
forto são entidades superiores, e a elas estende dolorosamente Tudo considerado, cremos poder concluir que a atividade
os braços. A visão de Cristo sustenta-o no esforço sobre- biológica do ―sujet‖ transcende a atividade biológica do homem
humano. Poucos homens o compreendem, ainda que muitos o normal. Além disso, julgamos não ser arriscado afirmar que a
exaltem, e só os primeiros podem trazer-lhe um pouco de refri- evolução biológica da personalidade estudada superou de modo
gério à sua grande paixão. Os segundos, com sua exaltação in- notável o plano biológico próprio do homem normal e que, por-
considerada, muito frequentemente lhe fazem mal. tanto, nos achamos diante de um caso interessante de homem
Ilustrado o fenômeno cíclico da vida de Ubaldi, aparecem supranormal. Não estamos em condições de dizer com precisão
lógicas e justificadas todas as manifestações de sua personalida- até que ponto supera ele o plano normal, mesmo porque não
de. Erros, dúvidas, incertezas, gênio, mediunidade, ultrafania, conhecemos a unidade relativa de medida, nem sabemos – co-
vertiginosas ascensões místicas, santidade, tudo isso constitui o mo talvez nem ele mesmo o saiba – a que grau de amadureci-
conteúdo do caso biológico de Ubaldi, assim como sentimentos, mento esteja ele chegando. Para não incorrer em erros prová-
possibilidades intelectuais e volitivas diversas, constituem a per- veis de avaliação, limitamo-nos, pois, a definir Pietro Ubaldi
sonalidade de cada um de nós. Se observarmos objetivamente e como um tipo biológico super-humano.
de perto a vida dos grandes homens que a humanidade venera e Pietro Ubaldi é um super-homem. Definir Pietro Ubaldi um
coloca nos altares, mesmo neles achamos também grandes e pe- super-homem talvez pareça arriscado. Talvez alguns se escan-
quenas coisas. Segue-se que, por causa das múltiplas e contras- dalizem. Não é razoável, porém, que isso aconteça, como não o
tantes manifestações de sua personalidade, nosso estudado pode seria se disséssemos que o homem civilizado é um super-
parecer, conforme o aspecto em que seja considerado, um santo, homem comparado ao troglodita, ou que fulano é mais evoluído
um gênio, um médium, um homem normal ou um doente men- que sicrano. O super-homem não é um ser privilegiado que sur-
tal. Pode, pois, inspirar admiração, amor ou compaixão. Essas giu prodigiosamente neste mundo, dotado de qualidades e me-
definições estarão certas se as olharmos em seu conjunto. Então, recimentos excepcionais por concessão do Alto. É um homem,
quando quisermos fazer um juízo sintético e realístico de Ubal- apenas um homem, que, em sua evolução, precedeu os seus
di, precisamos considerar suas múltiplas e contrastantes mani- semelhantes, porque, mais que eles, soube lutar e sofrer, pelas
festações, sem considerar o tempo de cada uma delas. Só assim mesmas razões que nos fizeram seres mais evoluídos que os
teremos uma visão objetiva e sintética dele. Fora disso, nos per- selvagens. Ele pagou e paga duramente o preço de sua superio-
deríamos num labirinto do qual seria muito difícil sair. Julgá-lo- ridade. No altar da Divindade, sacrificou sua personalidade
emos, pois, em função de todos os seus atributos, ou melhor, se- humana, para realizar a super-humana. Tem o que deu, nada
gundo a soma algébrica, se assim podemos dizê-lo, de seus valo- mais, porque a Lei é justa. Qualquer um de nós pode chegar
res positivos e negativos. Não é fácil esse cômputo, inútil dizê- aonde ele chegou e superá-lo no curso da evolução individual.
lo, sobretudo porque é extremamente difícil estimar o valor bio- Todos podemos transformar-nos gradualmente em santos e an-
lógico de cada qualidade, tratando-se de avaliações muito incer- jos, todos podemos realizar nossa natureza divina. Todos a rea-
tas e totalmente subjetivas. Não obstante, tentaremos uma apre- lizaremos, e então terá descido à Terra o Reino de Deus.
ciação desse gênero; ainda que não seja exata, será pelo menos Tudo o que até agora dissemos de P. Ubaldi só tem valor,
suficiente para orientar o julgamento num plano que se afaste o naturalmente, enquanto não sejam falsas suas manifestações ex-
menos possível da realidade. Esclareçamos que nossa apreciação ternas. Se mentido houvera, tudo quanto dele dissemos automa-
se refere à sua personalidade tal qual se apresenta no momento, ticamente cairia, e quem julgamos um super-homem seria, ao
sem nenhuma relação com o passado. invés, o mais miserável dos homens. É possível que P. Ubaldi
Dissemos que a personalidade de Ubaldi oscila entre o pla- nos tenha mentido? Decididamente o recusamos. Tudo dele se
no normal e o plano místico. Acerca deste, fazem prova as vi- poderá pensar, menos que tenha mentido toda a sua vida. Para
sões e estados de êxtase. Convenhamos que não existe um pla- atingir um ideal de vida evangélica, voluntária e consciente-
no místico do qual se possa tratar em sentido bem definido e ao mente abraçou uma vida que seria rejeitada por qualquer ho-
qual nos possamos referir, pois, como ensinam as doutrinas mem normal nesta Terra. Aceitou uma vida de dor e sacrifício,
esotéricas, existem muitos planos místicos, sendo eles mesmos consumiu sua vida em nome de um ideal. Que aspiração pura-
planos biológicos. Não estamos em grau de estabelecer até que mente humana teria podido impeli-lo até este ponto? Cremos
plano místico tenha Ubaldi subido e portanto, prudentemente, que, qualquer coisa que dele se pense, não se pode pôr em dú-
queremos supor que seu potencial biopsíquico possa erguer-se vida que ele seja um homem inteligente. Ora, como poderia um
até ao primeiro plano místico. Aceita essa suposição, segue-se homem inteligente abraçar uma vida de dor, só pelo gosto de
que sua personalidade pode considerar-se oscilante entre o pla- mentir? Poderia ter escrito tudo o que escreveu, se verdadeira-
no normal humano e o primeiro plano místico. A distância entre mente não o tivesse sentido? A dor arranca do rosto qualquer
esses dois planos, mesmo se não podemos apreciá-la com segu- máscara; quem sofre não sabe mentir. De qualquer modo, não
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 255
seria racional levar a desconfiança até este ponto, mesmo por- doenças e os em perene estado patológico são em pequeníssimo
que não há provas que autorizem uma suspeita, e ainda porque número, ao passo que a grande maioria é constituída de pessoas
não basta negar uma verdade para destruí-la. que adoecem irregularmente. Sabemos mais, que os indivíduos
◘ ◘ ◘ fortíssimos e os fraquíssimos são exígua minoria, enquanto a
Passemos, agora, a examinar sua personalidade à luz da ra- grande maioria se compõe de indivíduos medianamente robus-
zão normal e da ciência. Este é um método de pesquisa particu- tos. Poucos são os gênios, os santos, os imbecis, e os delinquen-
larmente seguro, mas de possibilidades muito limitadas. Admi- tes, numerosíssimos os medianamente bons e medianamente in-
tindo que a ciência aceita a evolução biológica de todos os seres teligentes. Análogo fenômeno estatístico deve ser necessaria-
vivos, é mister, para avaliar o valor biológico de P. Ubaldi, es- mente encontrado também em relação com a potencialidade bi-
tabelecer se ele pode ser considerado um tipo biológico desti- ológica, na qual se exercita o trabalho seletivo que realiza a
nado a ser esmagado pela evolução, ou para triunfar com ela. evolução. A expressão gráfica do fenômeno é uma curva em
Tem isto importância fundamental. Aliás, nisto reside todo o forma de sino, também chamada Curva de Gauss.
problema. Não é fácil apresentar uma resposta aceitável, por Daí se deduz que, em cada raça, existem três grupos de in-
muitas e óbvias razões, mas sobretudo porque atualmente é di- divíduos, entre os quais um pequeno, constituído por indivíduos
fícil, senão impossível, conhecer as características biológicas dotados de baixo potencial biológico, destinados a serem esma-
do homem que será criado pela evolução. De fato, não se pode gados pela evolução e a extinguirem-se; um segundo grande
saber a priori como será o homem do futuro, como há séculos grupo, constituído por indivíduos dotados de potencialidade bi-
atrás não teria sido possível imaginar as características do ho- ológica média, destinados à conservação da raça; e, enfim, um
mem do século vinte. Tão pouco conhecido é o homem, tão terceiro pequeno grupo, dotado de potencialidade biológica su-
obscuras as leis e causas da evolução, que qualquer previsão te- perior, destinado a criar lentamente uma raça superior, isto é, o
ria sempre sabor pessoal e seria, portanto, muito incerta. Nos produto da evolução. Verificado isso, deduz-se que os pioneiros
organismos humanos há caracteres recônditos e forças poten- da evolução pertencem à anormalidade, ou seja, são anormais.
ciais de que nenhuma pesquisa poderia hoje fazer o levanta- Visto que existe uma anormalidade positiva e uma negativa,
mento e a interpretação. Possui a ciência formidável método de resta-nos examinar quais são as manifestações biológicas que
pesquisas, conquistou posições soberbas, mas – mister é reco- caracterizam as duas anormalidades opostas. Uma descrição de
nhecê-lo – ainda é criança, tem as possibilidades de um infante, caráter geral seria quase impossível e não adiantaria nem à cla-
a quem pertence o futuro, mas que ainda está relativamente reza, nem à exatidão. Seria mister então descer à particularida-
inexperiente e mesmo, às vezes, teimosa. Defeitos da juventude de de cada raça e de cada indivíduo, e aí fazer as próprias ob-
que o tempo liquidará, mas defeitos notáveis, especialmente servações e apreciações. No estado atual de conhecimento da
quando se lhe pede a explicação de problemas da natureza do matéria, cremos não seja possível agir de outra forma.
que estamos estudando. Feita esta necessária digressão de caráter geral, retomemos o
Dito isso, conclui-se que existem raças e indivíduos que es- estudo de nosso ―sujet‖. Não há dúvida de que as manifestações
tão destinados a ser eliminados pela seleção da evolução, por- biológicas deste, e de modo particular as psíquicas, pertencem à
que são fracos, e outras raças e outros indivíduos que, ao con- mais nítida anormalidade. Achamo-nos, então, diante de uma cri-
trário, estão destinados a sobreviver, porque são dotados de su- atura que representa o produto ou o refugo da evolução. A qual
periores possibilidades biológicas. Desde que as novas raças das categorias pertence ele? Não é possível dar uma resposta
dominantes, lentamente, surgem das raças pré-existentes e do aceitável se antes não o analisarmos em todas as suas peculiares
seio destas saem triunfantes, por fenômeno natural da seleção, é manifestações biológicas. É o que agora tentamos fazer, por meio
claro que em cada raça existem indivíduos de possibilidade bio- de um exame atento de suas características físicas e psíquicas.
lógica superior e outros de potencialidade biológica inferior, ou O funcionamento do organismo físico de P. Ubaldi não se di-
seja, que existem exemplares destinados a propagar-se no futu- ferencia de forma acentuada dos homens normais. No entanto
ro e outros destinados a desaparecer. A potencialidade biológi- existe uma diferenciação, mas de caráter positivo: ele é particu-
ca dos indivíduos que constituem qualquer raça é, pois, muito larmente resistente aos agentes patógenos e aos esforços físicos.
diversa, e os próprios indivíduos, a esse respeito, são distribuí- Tem sessenta anos completos e goza de ótimas condições de saú-
dos na raça de acordo com uma gama de valores biológicos de. Prova-o o fato de que, normalmente, jamais se utiliza de mé-
progressiva ou regressiva, como se queira chamá-la. Estudando dico. Seu aspecto exterior não denota nenhum depauperamento,
estatisticamente o fenômeno, pode observar-se, além disso, que mas, ao contrário, tem características relativamente juvenis. E is-
em cada raça existe um grupo muito numeroso de indivíduos to, não obstante o regime dietético extremamente parco e o maior
dotados de características biológicas médias e dois outros pe- descuido com que trata seu organismo. É fora de dúvida que
quenos grupos com caracteres opostos, porque de qualidade su- qualquer organismo humano normal sofreria inevitável depaupe-
perior ou inferior aos do grupo biológico médio. Os indivíduos ramento orgânico se fosse explorado tanto e tão sumariamente
pertencentes ao primeiro grupo são os chamados normais, os alimentado e tão mal guardado. Surpreende em verdade, como,
componentes dos outros dois grupos, anormais. nessas condições, possa seu organismo manter ótimo seu funcio-
O que ficou dito vale para as características morfológicas e namento. Normalmente, alimenta-se apenas uma vez por dia. Sua
as funcionais. Cremos, pois, razoável estender a apreciação alimentação é muito frugal, e podemos testemunhá-lo, porque,
também pelo que diz respeito à potencialidade biológica dos durante vários meses, sentamos com ele à mesma mesa. Trata-se
indivíduos. Mesmo sendo dificilmente apreciável e cognoscível de uma refeição rigorosamente racional, segundo as leis dietéti-
a potencialidade biológica dos exemplares de uma raça, acredi- cas e a preço fixo. Às vezes toma, à noite, uma xícara de leite ou
tamos que, analogamente ao que se observa nos caracteres mor- pouco mais, às vezes nada. A quantidade de calorias que fornece
fológicos e funcionais, possa afirmar-se que em cada raça exis- a seu organismo é, indubitavelmente, uma fração exígua do mí-
te um grupo muito numeroso de indivíduos de potencialidade nimo necessário para o homem normal. Isto não o impede de ser
biológica normal e dois pequenos grupos de potencialidade bio- dinâmico mesmo fisicamente, e de suportar esforços materiais,
lógica anormal, de valor oposto. Tudo isso teria de verificar-se como o de ir visitar sua família, pedalando setenta quilômetros de
necessariamente, dada a relação de estreita interdependência bicicleta, de Gúbio a Santo Sepulcro.
que parece existir entre os caracteres morfológicos e funcionais Desenvolve concomitantemente três profissões, cada uma
e os caracteres biológicos mais profundos, que individuam cada das quais poderia bastar para um homem: 1 o) o ensino; 2o) a
personalidade. Sabemos todos que os indivíduos não sujeitos às produção literária e o cuidado da impressão de seus trabalhos
256 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
no mundo, com uma correspondência epistolar em seis línguas por isso, aliás de pouco valeria se esse homem não soubesse
diferentes, em média com cinquenta cartas por semana; 3 o) o viver as ideias que professa e se elas não fossem capazes de in-
trabalho doméstico para si mesmo, pois vive só, sem emprega- fluenciar outros homens. Vive Ubaldi suas ideias e são elas
dos. Desprovido de todo auxílio, de toda assistência, tem que compreendidas e vividas por outros homens? Sem dúvida. To-
fazer tudo por si mesmo. Quando tem febre ou qualquer indis- da sua vida é a exteriorização prática das mesmas, o plebiscito
posição, suporta seu mal sem ir à cama, em plena atividade. de concórdia e amor que a ele chega de homens de todas as
Muito raramente, e só em casos graves, resigna-se a ir para o partes do mundo, demonstra que essas ideias já tiveram sua
leito. Suporta indiferentemente calor ou frio. No inverno, ja- grande função biológica. Denota isso que elas não são apenas
mais aquece sua casa, apesar do excepcional rigor da localidade literatura ou força potencial de possibilidades problemáticas,
em que habita, particularmente fria e sujeita a neves. Vive em mas já são uma força real em ato. Sem dúvida, elas caíram em
pobreza voluntária, abolindo até as mais elementares comodi- quem, por sua natureza psicológica, estava preparado para per-
dades, não só para atingir seu ideal de vida evangélica, como cebê-las; mas isso não impede que uma ação específica possa
pela satisfação de vencer todas as dificuldades. Seu caráter é igualmente a elas atribuir-se, ainda que como função comple-
indubitavelmente forte, e seu organismo também. É evidente, mentar. É suficiente um lampejo nas trevas para nos indicar o
pois, que possui qualidades intrínsecas que o diferenciam da caminho, e isso tem grande importância, mesmo se o resto do
normalidade no sentido positivo. caminho tiver que ser percorrido com nosso esforço. As quali-
Sobretudo, porém, surpreende como seu sistema nervoso dades morais de Ubaldi são certamente muito diferentes das do
possa manter, sem quebrar, o ingente trabalho a que está sem- homem normal de hoje e de ontem. A vida que exterioriza na
pre submetido. Bastará recordar que só conhece o repouso das substância dos atos é a vida segundo a moral evangélica, a prá-
horas de sono, muito pouco aliás, pois, durante todo o tempo tica cotidiana e inteligente das bem-aventuranças anunciadas
restante, fica submetido a incessante tensão, que enfraqueceria por Cristo na montanha. Pode mesmo dizer-se que a concepção
qualquer sistema nervoso normal. Trabalha durante várias horas ideológica e moral de Ubaldi é a concepção profunda e subs-
à noite, que para ele são as melhores, porque todos dormem e tancial do cristianismo, do cristianismo bebido em suas fontes
estão em silêncio. Só de vez em quando lhe aparecem pequenos mais puras, livre das mortais dentadas dos dogmas, das tradi-
períodos de cansaço, dos quais prontamente sai sem chegar a ções e dos formalismos, que, através da letra, matam o espírito.
ter verdadeiro esgotamento nervoso. Esses momentos de de- Essa concepção não contrasta aliás, antes, harmonizam-no, em
pressão verificam-se após períodos de trabalho intelectual ex- suas linhas essenciais, com as profundas concepções esotéricas
cessivamente intenso; às vezes os precedem, como se a vida se de todas as religiões da Terra. Caminha na esteira moral dei-
preparasse por si mesma, ao esforço que depois terá de fazer. xada pelos santos e iniciados de todas as crenças do mundo.
Tudo considerado, pode verificar-se que nele prevalece o traba- Com esta afirmação, permanece bem afastado de nós a inten-
lho intelectual e espiritual, sustentado por um sistema nervoso ção de enquadrá-lo em qualquer grande organismo religioso, a
particularmente poderoso, resistente e hipersensível. Lembre- fim de valorizar-lhe a personalidade a preço baixo. Pensamos
mo-nos também que, durante os períodos de atividade mística, em fazer apreciações críticas dessa forma de moral, para pes-
seu sistema nervoso é obrigado a suportar fortes comoções, em quisar se ela é a moral dos homens superiores ou a dos homens
virtude dos grandes deslocamentos em seu potencial, em con- fracos, que vivem à margem da coletividade como refugo pato-
sequência do que, ao sair deles, se encontra parcialmente per- lógico. Observemos de perto esses homens, chamados santos,
turbado e alterado, tal como sucede a qualquer sistema nervoso estudemo-los no ambiente biológico humano, tal como a nós
normal submetido à ação de poderosas comoções emotivas. se apresenta neste ambiente em que vivemos.
Após longas e intensas experiências místicas, o sistema nervoso O ―modus vivendi‖, o hábito moral, as aspirações e as idei-
apresenta anomalias e alterações particulares, as quais, entre- as desses homens excepcionais, são totalmente opostos aos dos
tanto, desaparecem em pouco tempo. homens normais. Ao egoísmo, à violência, ao ódio, à busca
Falou-se de neurose. Mas que é neurose e, sobretudo, a neu- dos prazeres materiais, eles contrapõem o altruísmo, a mansi-
rose de nosso estudado? Julgamos que qualquer neurológico dão, o amor, a busca das alegrias espirituais. É uma verdadeira
capaz e honesto, em semelhante caso, seria ao menos prudente e própria inversão de valores, é a revolução moral, cujo conte-
antes de exprimir um diagnóstico conclusivo e uma apreciação údo está substancialmente traçado nas bem-aventuranças
do mérito. Cremos que seja mister muita cautela ao sentenciar a anunciadas por Cristo. Eles, voluntariamente, renunciam aos
respeito desta matéria, porque podemos incorrer no erro de prazeres que outros, com ingentes sacrifícios, buscam, e, acima
considerar patológico o que seja natural manifestação biológica desta renúncia, procuram e encontram alegrias espirituais co-
supranormal. Do que dissemos, conclui-se que o organismo fí- nhecidas só por eles. São homens dotados de grande força de
sico de P. Ubaldi pode ser considerado, por motivos óbvios, caráter, de máxima sensibilidade, bondade e poder de intuição.
mais do que normal e dotado de qualidades intrínsecas que o di- E já que esses homens têm necessidades, desejos, aspirações e
ferenciam de modo positivo do homem normal. finalidades opostas aos da generalidade dos homens, segue-se
Feito este breve exame das qualidades físicas, passemos a daí que entre as duas partes não há razões para luta e hostilida-
observar suas qualidades psíquicas. Diga-se de início que as ca- des. O santo apresenta-se à sociedade como ser inócuo; pode
pacidades intelectuais do mesmo podem considerar-se, sem despertar incompreensão ou desprezo, mas, materialmente, não
sombra de dúvida, superiores às que são próprias do homem é combatido. Esta é uma forma de incolumidade que represen-
normal médio. A esse respeito, racionalmente não se pode duvi- ta privilégio de grande valor. Como seria possível combater
dar. Por exemplo, a concepção geral de A Grande Síntese, qual- um homem que passa entre nós amando e beneficiando, que
quer que seja o juízo que dela se faça, é sem dúvida o produto de nos ama quando o odiamos, que faz o bem mesmo quando lhe
uma mente incomum. Já que universalmente é conhecido e acei- fazemos mal, que tudo dá sem nada pedir para ele? Poderemos
to que o poder do gênio é um fator de importância primordial e considerá-lo um louco, mas não teremos motivos para comba-
ao mesmo tempo índice do valor intrínseco do homem, segue-se tê-lo e, muito menos, para liquidá-lo.
daí que, mesmo sob este aspecto, ele apresenta uma nítida supe- Só em circunstâncias particulares pode ocorrer que eles se-
rioridade em comparação com o homem normal. jam combatidos ou até liquidados. Isso aconteceu no passado e
Reconheçamos que não basta alguém saber escrever um li- poderá ocorrer no futuro. Diz-nos a história que alguns desses
vro ou livros diversos e geniais, para que se possa considerar homens extraordinários sofreram o martírio, e as razões são evi-
superior aos outros. O valor de um homem não é constituído só dentes. Santos particularmente dinâmicos, com imenso amor aos
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 257
oprimidos, encontraram-se com os opressores e pagaram com a ção. É óbvio que se o não fora, estaria errado tudo quanto
vida. Outros suscitaram sentimentos novos na massa, de equida- acima afirmamos. Preciso é notar, antes de tudo, que homens
de e justiça, contrastando com privilégios de organizações soci- desta espécie não podem ser considerados parasitas da socie-
ais particulares, que reagiram suprimindo ou perseguindo o ad- dade, pois que trabalham e, com seu trabalho, ganham o pró-
versário. Sucedeu ainda que esses homens colidiram contra os prio sustento. São homens que trabalham com inteligência e
privilégios ou a corrupção de comunidades eclesiásticas e foram abnegação, que dão de si mesmo, contentes por ter apenas o
por estas direta ou indiretamente suprimidos, perseguidos, ou de quanto lhes basta para viver modestamente. Não são, portanto,
qualquer forma impedidos de agir. Mas que ocorreu quando eles contemplativos estéreis, mas ótimos trabalhadores, voltados
subiram ao patíbulo ou foram perseguidos? Nesse momento, para o progresso. Estamos também persuadidos de que uma
eles conquistaram a coroa do martírio, que, com sua ressonância sociedade constituída por homens que trabalham com muita
sentimental nas massas, assinalou a condenação dos opressores. vontade e inteligência, em que cada um ama seu próximo co-
Portanto, ou não são perseguidos e gozam do privilégio da imu- mo a si mesmo; em que cada um dá tudo aos outros, só pre-
nidade, ou são combatidos e, então, conquistam os louros do tendendo o estritamente necessário; onde se ama e ajuda a
martírio, fator psicológico de poder inimaginável. Temos que quem sofre; onde não se mata nem se rouba; onde existe li-
considerar, de fato, que os princípios morais encarnados nesses berdade e fraternidade; onde o pensamento é livre; onde a dor
homens são, consciente ou inconscientemente, sentidos pela é recebida como instrumento de libertação e de evolução; on-
consciência das massas, que intuem neles a presença de um de se sofre com o sorriso nos lábios; onde se desconhece a vi-
―quid‖ imponderável, que as sugestiona poderosamente. A his- olência e se ignora o arbítrio, estamos persuadidos de que só
tória ensina que, quando um santo sobe ao palco do martírio, as- essa seja a sociedade perfeita; a sociedade que todos os ho-
sinala esse dia o seu triunfo e a derrota dos carrascos. mens bons e inteligentes da Terra queriam realizar para si e
Tais seres, portanto, não podem ser golpeados eficaz e im- para seus filhos. Estamos persuadidos de que uma sociedade
punemente. Isso representa para eles uma vantagem digna de assim constituída seja aquele paraíso perdido, para o qual se
nota. Os homens normais não a têm. A moral praticada por es- voltam todas as ânsias da humanidade atormentada desta Ter-
tes os leva ao ódio, à luta, à supressão e à neutralização recí- ra. Considerado tudo isso, parece-nos razoável concluir que o
proca estéril. Poderão objetar que as massas sentem o fascínio tipo biológico representado por P. Ubaldi seja um tipo que a
desses homens porque são ignorantes ou supersticiosas; mas is- evolução não pode destruir, mas terá de conservar.
so é falso e não subsiste diante da realidade evidente de que o De outra parte, não será difícil observar que a humanidade,
progresso da civilização humana conduz a um aperfeiçoamento mesmo através de seus erros e torpezas, tende a envolver para
moral que faz apreciar cada vez mais o amor, a bondade, o al- este tipo biológico. Pode observar-se, com efeito, que, no cora-
truísmo, características predominantes nos santos, em propor- ção das massas humanas, surge consciente ou inconscientemen-
ções excepcionais e heroicas. te uma necessidade cada vez mais sentida de bondade, de bele-
Mas há mais ainda! Só entre esses homens achamos os tau- za, de verdade. Sob as agitações da superfície, as grandes leis
maturgos, ou seja, os homens que conquistaram o poder de fazer biológicas exercitam um trabalho subterrâneo preparatório e de
os chamados milagres. Convenhamos que esses poderes perten- maturação e, cada vez mais, exteriorizam a necessidade de
cem à biologia natural, mas precisamos convir que também eles bondade, de amor, de altruísmo. Hoje, mais do que nunca, po-
são o índice de um poder biológico extraordinariamente superi- demos constatá-lo, se, sobrepujando as aparências, penetrarmos
or, que a generalidade dos homens ainda não possui. Notemos, na realidade mais profunda que agita o coração das massas. Os
ainda, que só esses homens têm, por vezes, possibilidades profé- políticos, os demagogos, os agitadores, só acham eco duradouro
ticas e outras manifestações de clarividência. São manifestações entre as multidões quando fazem brilhar uma miragem de amor,
que maravilham profundamente e que, por sua vez, são o índice de bondade, de liberdade, de altruísmo, de fraternidade. Os ho-
de possibilidades intelectivas verdadeiramente superiores. Esses mens bons, altruístas, sábios, gozam de respeito e da veneração
poderes ultrafânicos não podem ser apreendidos através da cul- universal. O homem hipócrita veste-se com esses atributos para
tura, e isto também demonstra que eles pertencem à ordem das ocultar suas misérias morais e tornar-se agradável a seus seme-
características biológicas intrínsecas, próprias apenas desses lhantes. As multidões anônimas e silenciosas trazem essa ne-
homens extraordinários. E a pessoa que estudamos é dotada de cessidade no coração. E elas compreendem a quase totalidade
poderes ultrafânicos. A produção de A Grande Síntese, escrita dos homens. Comovei-as com a palavra que vem do coração e
de jato, sem adequada preparação científica, as previsões da da alma, falai-lhes de amor e fraternidade, agi de modo a so-
guerra recente, contidas nessa mesma obra e na Ascese Mística, brepujar sua instintiva desconfiança, fruto de seculares enga-
são prova disso. A avultada anormalidade que encontramos em nos, e as vereis chorar comovidas.
Ubaldi pertence, por suas características específicas, à natureza No entanto estes são os tempos em que triunfam os assassi-
própria dos homens de que vimos falando. Julgamos, pois, que nos, os prepotentes, os ladrões, os hipócritas, os astutos, os de-
possa considerar-se uma anormalidade de caráter positivo, ou sonestos de todas as formas e cores, em que se troca por dinhei-
seja, uma anormalidade que se tornará normalidade, quando a ro tudo o que é sagrado, em que nada mais parece ser respeita-
evolução humana tiver caminhado mais um pouco. do. Mas este, como dissemos, é um fenômeno visível de super-
Concluindo: considerando-se que Ubaldi apresenta qualida- fície; a realidade profunda é diferente. Do atual espasmo surgi-
des físicas mais do que normais, poder intelectual superior ao rá a reação, e a última palavra será dita pela alma coletiva. Os
normal, qualidades psíquicas e morais de natureza tal que o maus serão destruídos por seus próprios delitos. O ódio e a
subtraem quase completamente das influências negativas do maldade geram ódio e maldade, que se destroem mutuamente; a
ambiente e o fazem dominar sobre elas; considerando-se que bondade e o amor são por sua vez a gênese de mais elevado
ele não pode ser eficazmente golpeado, mas, ao contrário, pode amor e de mais generosa e iluminada bondade. Pode-se dizer
exercitar sobre os homens uma profunda função biológica, que perfeitamente que o mal tem uma função biológica negativa e
interessa à parte mais importante da natureza humana, ou seja, destruidora, e que o bem tem uma função biológica positiva e
a psique, pode-se racionalmente concluir que nos achamos di- criadora. É por isso que estamos persuadidos de que o trabalho
ante de um caso de anormalidade positiva, isto é, de verdadeira da evolução conservará as qualidades biológicas do santo e des-
e própria superioridade biológica. truirá as opostas. Concluamos, portanto, que nosso estudado
Ocorre agora perguntarmos se uma sociedade de homens pode considerar-se um pioneiro da evolução.
desse gênero seria compatível com o progresso e a civiliza- ◘ ◘ ◘
258 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
Estamos no fim deste estudo, e só falta dizer o que pensa que humana. Muitas de suas partes parecem dirigir-se mais aos
Ubaldi dele mesmo. Substancialmente, ele tem consciência de homens do futuro do que aos de hoje. Mas as profundas verda-
representar o que até agora dissemos dele. Ele se aprecia ou de- des expostas pertencem a todos os tempos. A nota chave do li-
precia, de acordo com o termo de sua comparação: o homem ou vro é a ascensão espiritual.
Deus. Diante do homem normal, ele se considera superior; di- O Professor Bozzano, que vem acompanhando a mediuni-
ante de Deus, uma coisa bem miserável. Não deve surpreender- dade de Ubaldi desde seus primórdios, tem a mais elevada opi-
nos, pois, que ele fale aos homens com a linguagem do mestre nião do homem e de sua obra. Escreveu ele: ―Está redigida em
e, ao mesmo tempo, se humilhe e aniquile diante de Deus. Tudo termos rigorosamente científicos, estando de completo acordo
isso é profundo conhecimento e autocrítica serena e objetiva. com as atuais concepções filosóficas, matemáticas e geométri-
Que função biológica julga ele ter? Ajudar aos homens em cas sobre o mesmo assunto‖.
sua evolução para uma vida superior. Ele vive para cumprir es- O Dr. Estoppoloni, professor de Anatomia da Universidade
se seu extraordinário dever que as leis da vida, o pensamento de de Camerino, escreveu: ―Essa publicação feita por quem pouco
Deus, lhe teriam confiado. Consome-se nessa função, que, com ou nada sabe de química, é verdadeiramente espantosa, porque
sua linguagem mística, chama de missão. Crê firmemente nesta as ideias são realmente científicas, tais como podiam ser formu-
sua missão e nela empenha todas as suas forças. Com o exem- ladas por competente estudioso de química‖.
plo de sua vida, dá testemunho de tudo quanto diz; fala pela O Professor Schaerer, filósofo belga, confirmou: ―Conside-
imprensa e raramente de viva voz aos amigos e discípulos. Ao ro-o utilíssima demonstração de que as comunicações mediúni-
conversar, jamais assume o tom de pregador. Sua linguagem é cas podem produzir obras de alto valor científico e racional‖.
dialética. Discute com muita seriedade e paixão; gosta mais de Grande foi o esforço para receber as comunicações, tendo
ouvir do que de falar. Sua dialética é serena e persuasiva, seu Ubaldi a princípio duvidado de seus poderes; mas diversos mé-
pensamento é límpido, sem preconceitos e profundo; capta o diuns dele desconhecidos recebiam espontaneamente mensa-
pensamento do interlocutor com perspicácia e intuição surpre- gens incitando-o e encorajando-o a continuar a todo custo a
endentes. Dir-se-ia que sabe compreender até o pensamento que obra para a qual havia sido chamado; e ele prosseguiu, a des-
não foi expresso. Gosta de ouvir o opositor, jamais se detém em peito das dificuldades de toda ordem; vivendo com simplicida-
posições preconcebidas, é verdadeiramente um livre-pensador. de franciscana, ganhando seu pão cotidiano como mestre-
Às vezes, mostra-se feliz por haver achado algo que aprendeu e escola, passando longas horas sozinho nas fraldas da montanha,
toma notas. Interessa-se com grande paixão pelas questões ci- escrevendo à noite e nas férias estivais. Assim foi produzida A
entíficas, que ele interpreta e enquadra com máxima precisão na Grande Síntese, volume de cem capítulos e quase quatrocentas
vasta visão da verdade que nele está presente por visão intuiti- páginas. Sempre muito consciente, Ubaldi teve a capacidade de
va. Confia à imprensa toda sua personalidade, seus pensamen- observar minuciosamente e analisar sua própria mediunidade,
tos, suas visões, seus dramas. Com a copiosa literatura, dá sua tendo já publicado outro volume, As Noúres, no qual relata
alma à humanidade e a projeta no futuro. Seus escritos estão, já pormenorizadamente como A Grande Síntese foi escrita.
agora, lançados em todas as partes do mundo, traduzidos nas Julga que seu tipo de inspiração muda de acordo com sua
línguas mais difundidas, são acolhidos e compreendidos por própria evolução espiritual. Afirma que as faculdades intuiti-
homens de todas as raças. Um plebiscito de amor e de gratidão vas, cujo uso em criações artísticas e poéticas é um fato acei-
levantou-se para ele. Muitos foram os beneficiados, e quem es- to, também devem ser usadas em estudos científicos, pois só
creve isto, está entre eles. Arrastado por esta sua tarefa de bem, por meio delas podem ser resolvidos os maiores problemas
que se tornou a finalidade de sua vida, movido por este ideal de da filosofia científica. O espírito humano deve sintonizar-se
bem e de amor, dá-se todo com ardor. Sua pessoa humana se com as correntes mais altas (noúres), sendo indispensável a
consome queimada nessa chama de amor, e só sobrevive a al- fusão da fé com a ciência.
ma, que encontramos palpitante em todos os seus escritos. Ele Para receber e transmitir ao papel as mensagens das esfe-
se dá a si mesmo por um ideal grande; sua alma pertence à hu- ras mais altas, o médium deve sensibilizar-se até ao mais alto
manidade e a Deus. E caminha dolorosamente entre os homens, grau, viver uma vida de renúncia e purificar-se de toda man-
amando e beneficiando, criatura celestial mais do que humana, cha de materialismo. Ubaldi crê que o sofrimento é o grande
com o olhar dirigido às estrelas. elemento purificador, e ele mesmo muito tem sofrido ao per-
Verona – Itália, Páscoa de 1947. seguir seu ideal.
(a) Paolo Soster Quanto à entidade inspiradora, que assina com ―Sua
Voz‖, foi dito ao médium: ―não pergunte meu nome nem
PIETRO UBALDI E SUA OBRA procure identificar-me. Nem você nem ninguém poderia fazê-
lo‖. Acredita que as mensagens se originam de esferas muito
Da Revista Light – Londres (Inglaterra), 27 de janeiro de elevadas e são transmitidas não por um só comunicante, mas
1938. por um grupo. Sua participação na obra é manter o canal
Em modesta casa, às margens de um desfiladeiro, logo às aberto, com a elevação de suas próprias vibrações, de modo
portas da cidadezinha medieval de Gubbio, vive Pietro Ubaldi, que possa encontrar seus comunicantes. Diz ele: ―É ousadia
o médium cuja obra inspirada vem suscitando grande interesse pensar na normalização desses métodos, mas estou convenci-
na Itália e no estrangeiro, nestes últimos seis anos – e não só do de que a cultura, no futuro, consistirá numa sensibilização
nos círculos psíquicos, mas também entre os cientistas, por cau- da psique, a fim de receber ondas de pensamento‖, ou seja, os
sa do livro A Grande Síntese (recentemente publicado num vo- fenômenos inspirativos, experimentados hoje por poucos mé-
lume, após ter aparecido em série em Ali dei Pensiero). É pro- diuns altamente desenvolvidos, como ele próprio, será um dia
dução deveras notável, tratando de modo científico de assuntos o método normal de obter conhecimento. ―A nova filosofia
de que o autor pouco ou nada conhece em sua vida normal. da ciência está ligada tanto ao pensamento religioso como ao
O conteúdo desse livro não pode ser resumido em poucas científico – tanto com a Gênese Mosaica quanto com a Evo-
palavras, pois oferece solução plausível a todos os problemas lução Darwiniana. É uma verdade; unificação, a ascensão é
do universo: desde a estrutura do átomo e a composição quími- progressiva. O mineral se orienta; a planta sente; o animal
ca da vida, até aos métodos de ascensão mística; desde o pro- percebe; o homem raciocina. Podíamos continuar com as hie-
blema matemático da relatividade e a gênese do cosmos, até às rarquias dos seres mais elevados‖.
mais novas questões religiosas e sociais e os mistérios da psi- (a) Isabel Emerson
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 259
PIETRO UBALDI, PROFETA DO ESPÍRITO bria, de Perúgia (31 de janeiro); La Setímana, de Piacenza (13
de março); a revista Quaderni dei 2000, de Milão (mês de ju-
Da Revista La Fraternidad, Buenos Aires – Argentina, lho); na revista Estudos Psíquicos, de Lisboa, Portugal (mar-
maio de 1949. ço/abril de 1950), apareceram ―De Ubaldi a Einstein‖ e ―O Ca-
Nos campos da filosofia universal apareceu, aproximada- so A Grande Síntese e a nova teoria de Einstein‖; o jornal Diá-
mente há duas décadas, a inconfundível figura de Pietro Ubaldi, rio de São Paulo (2 de julho de 1950) publicou: ―Antecipação
que provocou verdadeira revolução na teoria do conhecimento. mediúnica da descoberta da chave do universo por Einstein‖; a
Segundo o parecer de eminentes críticos, entretanto, esse pensa- revista La Idea, de Buenos Aires, Argentina (maio de 1950),
dor não pode ser comparado ao homem que filosofa, atendo-se apresentou: ―El Caso La Gran Síntesis‖; a revista Constancia,
unicamente às essências racionais das coisas. Mais do que filó- também de Buenos Aires, e outras dos Estados Unidos, deram
sofo, Ubaldi é um profeta que revela o conhecimento, e não um amplo destaque ao fato. Este caso foi intitulado ―A Grande Sín-
forjador de conceitos e dilemas metafísicos. Nisto consiste a tese e a Nova Teoria de Einstein‖. Vou resumi-lo, apoiado nas
original característica que tanto o distingue dos pensadores con- revistas e jornais acima, além de A Grande Síntese.
temporâneos, que muito poucas vezes se arriscaram ao que po- Uma notícia sensacional percorreu os jornais nestas últimas
deríamos chamar Filosofia da Revelação. A obra filosófica sem- semanas: o grande matemático Einstein formulou uma teoria,
pre foi considerada puro fruto da inteligência racional ou do es- pela qual se teria descoberto o elo que faltava para a concep-
forço pensante. E, se alguma vez aparecesse um pensador que ção unitária do universo. Com sua famosa teoria da relativida-
pudesse refletir formas de conhecimento que ultrapassassem os de, só mais tarde experimentalmente confirmada, Einstein já
métodos comuns, imediatamente o colocavam no campo da ilu- demonstrara, por meio da matemática, a estreita relação qua-
minação mística. Deste modo, a filosofia da revelação era quase dridimensional entre as duas dimensões: espaço e tempo. Fal-
sempre excluída dos quadros clássicos da metafísica, porque se tava ainda, entretanto, a demonstração matemática da relação
julgava que a obra filosófica pertencia apenas ao mundo do ra- entre todas as forças cósmicas e, portanto, de sua unidade. Isto
cional, que era considerado a única fonte de saber humano. En- foi conseguido com a nova teoria que Einstein definiu: ―teoria
tretanto, como uma faísca de fogo, Ubaldi incide nas formas generalizada da gravitação e teoria do campo unificado‖, que
conceptuais, transfigura a natureza em puro espírito e se lança a conclui com quatro equações todas iguais a zero. Com ela,
um trabalho que reúne num só feixe os instrumentos do conhe- quer explicar a origem de todo o movimento do universo.
cimento, até ao ponto de unificar definitivamente as duas gnose- Achou-se, dessa forma, uma relação íntima entre a eletricidade
ologias fundamentais da humanidade: a ciência e a religião. Seu e a gravitação, que assume então um conceito completamente
trabalho profético, entrosado com os planos divinos da história, novo, que não é mais o da física mecanicista Newtoniana, ad-
torna-se uma prolongação do Logos, ou Verbo Encarnado, rea- mitida por todos até ontem. Essa afinidade faz da eletricidade e
firmando dessa forma, com heroica habilidade, o mesmo traba- da gravitação duas forças afins, irmãs, derivadas de um único
lho de São Tomás de Aquino, que, da mesma forma que ele, re- princípio unitário. Eis o elo que faltava para poder demonstrar
conciliou para todos os tempos a fé com a razão. a concepção monística e unitária do cosmos.
Mas a originalidade de Ubaldi consiste no fato de que ele Em nosso caso, o fato é simplesmente o seguinte: o que os
―possui outro mundo sobre seus ombros‖, do qual está totalmen- jornais anunciam ter sido descoberto agora pelos caminhos da
te consciente. Sabe que sua natureza metafísica não opera com matemática, já fora descoberto pelos caminhos da metapsíqui-
elementos racionais apenas, mas que há, em sua criação filosófi- ca há 18 anos, e publicado pela primeira vez na revista Ali del
ca, uma poderosa intervenção do espírito, que faz sua pena dizer Pensiero, de Milão, em 1932, na obra que depois apareceu em
verdades não comuns para a inteligência racional do homem. volume, A Grande Síntese, e que agora está editado em Roma,
Creio firmemente que Ubaldi representa em nosso século em terceira edição, além de em Buenos Aires, no Rio de Janei-
uma ressurreição dos antigos profetas de Israel, que tiveram a ro e outros lugares.
missão de preparar o terreno para a chegada do Cristo encarna- Ora, qualquer pessoa pode verificar que lá está desenvolvi-
do. O filosofo de Gúbio executa, em nosso tempo, trabalho si- da não só a teoria da evolução das dimensões, que filosofica-
milar: prepara as inteligências para a recepção do Cristo invisí- mente completa e enquadra, em toda a escala das dimensões, a
vel, que há de reunir em um só rebanho e um só pastor a huma- concepção matemática de Einstein, do ―contínuo‖ espaço-
nidade da Terra, já que o fim dos tempos, isto é, o fim da histó- tempo, mas também a própria afinidade entre eletricidade e
ria, se aproxima apocalipticamente. gravitação; desta última até a íntima natureza já havia sido ex-
Em nosso tempo, Ubaldi representa uma demonstração real plicada. No capítulo XXXVIII de A Grande Síntese – ―Gênese
da unidade que deverá existir entre a religião e a ciência e, ao da gravitação‖, vamos encontrar:
mesmo tempo, uma antecipação dos novos caminhos que serão ―Eis-nos às primeiras afirmações, novas em vosso mundo
seguidos pelo espiritualismo moderno. Em sua correspondên- científico. A gravitação, mais exatamente a energia gravífica, é
cia, manifesta-me sempre que seu espiritualismo é cristão e que a protoforma do universo dinâmico. Sendo energia, é radiante e
toda a sua produção filosófica desemboca na sabedoria cristã. se transmite por ondas. Tem uma velocidade sua de propagação
Com efeito, Ubaldi não lega apenas um saber filosófico às ge- (...), máxima no sistema. Aqui são completados os conceitos da
rações atuais; ele entrega ao espírito contemporâneo uma sabe- teoria de Einstein. A gravitação é relativa à velocidade de trans-
doria, isto é, a sabedoria da revelação. Por isso Ubaldi ―não é só lação dos corpos. A massa varia com a velocidade, de que é
um fato ou processo científico, mas um verdadeiro ato místico e função. O peso aumenta por novas transmissões de energia e
religioso‖, fundamentado nas eternas realidades do espírito. vice-versa. O conceito de transmissão instantânea cai para todas
Buenos Aires, maio de 1949. as forças. A gravitação emprega tempo, ainda que mínimo, para
(a) Humberto Mariotti transmitir-se; ela tem, como todas as formas dinâmicas, um
comprimento típico de onda, que lhe é próprio.
A GRANDE SÍNTESE E ―A lei de Newton, da gravitação universal, apenas indica o
A NOVA TEORIA DE EINSTEIN (Esclarecimentos) princípio que mede a difusão da energia gravífica, o qual é ape-
nas um aspecto do princípio que regula a difusão de qualquer
Tenho diante de mim vários jornais italianos, de 1950, forma de energia e que demonstra sua origem comum: o princí-
abordando ―Il Caso La Grande Síntese e la nuova teoria di pio da onda e de sua transmissão esférica. As radiações conser-
Einstein‖. La Nazione, de Florença (26 e 31 de janeiro); L'Um- vam todas as suas características fundamentais de energia ciné-
260 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
tica, da qual nasceram, e é essa identidade de origem que esta- explica porque A Grande Síntese pôde atingir as mesmas con-
belece entre elas essa afinidade de parentesco. Outra prova des- clusões 18 anos antes, pois, pela rapidez, a intuição está para o
sa afinidade entre as formas dinâmicas reside na qualidade da raciocínio como a luz está para o som. Mas é inegável que as
luz, próxima derivação, por evolução, da energia gravífica. teorias de A Grande Síntese tiveram uma confirmação podero-
Nesta forma de energia radiante luminosa, achais, em parte, as sa com o raciocínio einsteniano, ainda que esse raciocínio es-
características da forma originária da energia radiante gravífica pere, agora, a confirmação experimental, que, para ambas as
(...). Poder-se-á dizer que a luz pesa, ou seja, a luz sofre o in- formulações, que agora estão emparelhadas, será decisiva. Isto
fluxo dos impulsos atrativos e repulsivos de ordem gravífica; e pode forçar à reflexão quem, a princípio, julgou A Grande Sín-
que existe uma pressão das radiações luminosas. Direi mais: tese cheia de erros. Enquanto isso, a formulação filosófica
todas as radiações exercitam, ao propagar-se, uma pressão de prova a formulação matemática, porque a enquadra num siste-
natureza gravífica e apresentam fenômenos de atração e repul- ma universal, em que achamos posta, orgânica e logicamente,
são em relação direta com sua proximidade genética, na suces- a explicação de todos os fenômenos conhecidos; em contrapar-
são evolutiva, com sua protoforma dinâmica, a gravitação‖. tida, a formulação matemática, rigidamente conduzida pela ló-
Esse capítulo assim concluía: ―dirigi as pesquisas neste sen- gica do grande cientista, prova a formulação filosófica. Ambas
tido, analisai com o cálculo estes princípios (...)‖, quase pre- parecem completar-se e complementar-se.
vendo que, só com o cálculo, seria possível iniciar a demons- Devo agora focalizar outro ponto, o mais complexo. Como
tração, como agora ocorreu. cheguei a esta formulação filosófica sem possuir os meios cul-
Neste ponto, a imprensa que se ocupou com o caso pergun- turais de Einstein? Que se entende por método de intuição? A
tava-se como tinha sido possível uma tal antecipação de con- Grande Síntese apareceu, em seu tempo, como devida a um fe-
clusões, mas não pôde dar uma resposta satisfatória. Senti-me, nômeno inspirativo, super-racional. Apareceu como um produ-
por isso, no dever de expor diretamente meu ponto de vista. to de estados de consciência supernormais, enquanto, por mi-
Disseram: como é possível que um homem desprovido de cul- nha conta, eu continuava indagando e controlando com a mais
tura específica matemática e científica, que não estava ao cor- severa crítica psicológica e científica, para ver se explicava o
rente dos processos einsteinianos, pôde antecipar dessa forma fenômeno. Percebi de imediato não só que este fenômeno era
suas conclusões? Falou-se de intuição filosófica. Que podemos mais complexo do que parecia mas também que a concepção
entender com isso? espírita de uma entidade que transmitia e de um indivíduo que
Aqui há dois problemas a esclarecer: o matemático e o psi- recebia, mais ou menos em transe, era por demais elementar pa-
cológico. Quanto ao primeiro, para evitar equívocos e exageros ra poder explicá-la. Eu mesmo iniciei o estudo deste meu caso
reclamísticos, digamos logo que ninguém pretende que A Gran- no volume As Noúres e, desde então, muito tenho progredido,
de Síntese tenha dado a fórmula matemática expressa por Eins- seja pela evolução do próprio fenômeno inspirativo, que, no
tein, em sua ―Teoria generalizada da gravitação e teoria do cam- meu caso, está em contínua ascensão, seja pelos meios cada vez
po unificado‖. Nossa atitude nada tem de polêmica, nem preten- mais completos de pesquisa que esse fato me dava. Hoje, a so-
de reivindicar prioridades neste campo. Cabe a A Grande Sínte- lução corrente de mediunidade não se adapta mais, nem é sufi-
se, ao invés, a formulação filosófica dos mesmos princípios, e é ciente. Precisamos, aqui, não de uma solução isolada do pro-
nesse sentido que se deve compreender sua prioridade. Trata-se blema, mas sim em função da solução do problema cósmico,
da descoberta e exposição das mesmas verdades, mas de forma em que todos os outros se equacionam e se resolvem. E isto,
diversa, o que pode ter alcance e consequências diversos, até muito mais para o problema do espírito, que resume em si tan-
maiores, não, de certo, no campo físico-matemático, mas no fi- tos outros, como numa síntese. Nenhum problema se resolve
losófico. Aqui não é possível aprofundar isto, mesmo porque a isoladamente, e, para compreender este, tive antes, em sete vo-
imprensa não deu a conhecer as particularidades das novas teo- lumes até hoje, que resolver muitos outros. Procuremos pois,
rias einsteinianas. No entanto é certo que a formulação que elas hoje, superado o simplismo do conceito mediúnico, resumir em
realizaram é muito mais profunda nos particulares e está de- poucas palavras a complexidade do fenômeno.
monstrada, ao menos como processo lógico-matemático. Em A mais avançada ciência moderna leva-me, de todos os la-
compensação, só a formulação de A Grande Síntese está enqua- dos, à mesma conclusão (veja-se Problemas do Futuro, ―a úl-
drada num sistema filosófico universal, que está preso aos fe- tima substância do universo é de natureza abstrata, é um pen-
nômenos, justifica e prova aquela formulação filosófica, mesmo samento, aquilo que as religiões chamam Deus‖). Este pensa-
do ponto de vista racional e científico e, assim, indiretamente, mento, que agora a ciência, pesquisando cada vez mais no fun-
prova também a formulação matemática de Einstein. Isto até ao do, foi obrigada a encontrar, está escrito em todos os fenôme-
ponto em que, enquanto esta espera sua confirmação experimen- nos, está no âmago das coisas, é o princípio vital que tudo ani-
tal para ser provada, a nós ela já aparece perfeitamente verdadei- ma, é a consciência do universo, é o Deus transcendente que,
ra, tanto que pode desde agora ter a segurança de que os fatos no ato em que Ele tudo rege e guia, assume o aspecto imanente.
com que entrará em contato só poderão demonstrá-la. Ora, a pequena consciência individual é um pequeno círculo
Esclareçamos agora o outro problema, o psicológico, que que, como ―eu‖, evolui e se distingue de todos os ―eus‖ dos ou-
mais de perto diz respeito ao caso atual e à gênese. O fato é tros seres, neste ―todo‖ pensante. Por isso ele se dilata e extra-
que ambas as formulações são devidas a um processo de intui- vasa cada vez mais na consciência universal, que normalmente,
ção. Na profundidade das operações da lógica matemática de para ele, está fora de seu consciente, ou seja, é para ele uma zo-
Einstein, há um ato de intuição que sustentou e guiou o racio- na de inconsciente, embora manifestando-se através dele por
cínio dele até o fim. O mesmo ato de intuição, levado até ao sínteses e comandos, como os instintos, as intuições etc.
método super-racional, foi usado regularmente ao ser concebi- Que é então a inspiração? É um extravasamento da consci-
do e exposto o sistema filosófico-científico de A Grande Sínte- ência individual em expansão, por evolução, nos campos do
se. Só com a lógica racional, demonstra-se, mas não se cria. Se consciente universal, Deus. Evolução implica sensibilização.
há alguma diferença entre os dois casos, é que, nos processos Esta implica em novos olhos, que se abrem para ver mais longe.
einsteinianos aparece a lógica matemática, mais do que a intui- E olha-se não em transe, mas de forma altamente consciente e
ção; ao passo que, em A Grande Síntese, dominam os proces- duplamente atento. O pensamento desta consciência universal
sos intuitivos, usando-se a demonstração racional como uma já está escrito em todos os fenômenos, que, com seu funciona-
descida necessária para fazer-se compreender numa dimensão mento, mostram-no a quem saiba abrir esses novos olhos do es-
conceptual inferior, que é a do homem atual. É por isso que se pírito. As descobertas já estão todas feitas e se encontram em
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 261
ação no universo, os problemas estão todos resolvidos, porque outros nove volumes – o décimo está em preparação e outros a
tudo está funcionando como consequência. As descobertas apa- eles se seguirão. Experimente lançá-los em 18 anos, por entre
recem concomitantemente, nos pontos mais diferentes do glo- uma guerra como a última, nos dois hemisférios, em várias lín-
bo, porque são o resultado de intuições dadas pela maturação guas e edições, que, para alguns escritos, atingiram meio milhão
biológica. O mistério existe apenas em nossos olhos míopes. Às de cópias. Faça isso sozinho, sem preparação e sem meios, des-
vezes, não é raciocinando nem estudando nos livros, mas abrin- conhecido e estorvado, sem representar nenhum interesse nem
do esses novos olhos, por evolução – muitas vezes feita apenas grupo humano que o lance e sustente como seu expoente. Expe-
de dor e maceração – que se pode chegar a ver. Então, é por ca- rimente conceber um plano do universo, em que os problemas
tarse do ―eu‖ que se fazem descobertas. Eis a intuição. do espírito estejam resolvidos ao lado das últimas concepções fí-
É este o meu caso. Estudando-o, vi como funciona a evolu- sico-matemáticas e, mais tarde, se enquadrem também, de per si,
ção e os processos intuitivos que com ela estão conexos. A nas teorias de Einstein. Experimente fazer tudo isso e poderá en-
princípio, utilizei-os instintivamente, ou seja, sendo eu mano- tão, somente se tiver êxito, rir destas coisas. Porque os fatos são
brado como instrumento do consciente universal, sem que eu fatos e não são destruídos pela psicologia materialista com um
soubesse exatamente como. Mas, observando e examinando sorriso cético. E, excluindo a intervenção de forças super-
cuidadosamente, consegui perceber a técnica do fenômeno. humanas, como explica isso a psicologia materialista?
Tendo-a assim analisado, formulei o que hoje chamo o ―método Gúbio, março de 1950
da intuição‖, que, ao menos para mim, constitui hoje um ins- Pietro Ubaldi
trumento regular de pesquisa e produziu um original sistema
orgânico que já está em seu nono volume. Achei com isto a ENCONTROS COM EINSTEIN (I)
chave de todos os problemas do universo. (O Homem)
Só assim posso explicar-me como minha pesquisa científi-
ca caminha ao lado da espiritual e como os problemas einstei- Estava no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, de saída
nianos estejam, para mim, conexos e coordenados com os do para o interior, quando os jornais trouxeram a notícia da morte
misticismo. Goste-se ou não da palavra ―monismo‖, o fato é de Einstein.
que o pensamento de Deus é uno. Goste-se ou não das palavras Até a chegada do avião, foi uma contínua tempestade em
―mediunidade‖, ―ultrafania‖, ―inspiração‖ etc. (as palavras são minha mente. Quantas lembranças! Ele tinha tido a paciência de
palavras), o fato é que a maceração evolutiva está operando ler alguns de meus livros e de manifestar, nas suas cartas, o seu
neste caso a catarse biológica que leva minha consciência in- julgamento a respeito. Pensei nesse meu grande amigo que, no
dividual a realizar um ainda que mínimo extravasamento além século da ciência experimental, tinha ido além do telescópio e
da média normal, na consciência universal. Assim, sem estudo do microscópio, tendo por único laboratório o seu cérebro. Com
específico nem processos racionais, nasce no indivíduo um re- ele, o homem havia voltado a vencer no terreno do pensamento
lance de visões que ele, simplesmente olhando com esses no- puro, na forma da lógica matemática, que é sempre lógica como
vos olhos espirituais de sensibilizado, registra com rapidez. aquela dos maiores pensadores, filósofos ou teólogos do mundo.
Nascem assim os meus volumes em continuação, um depois do E isto aconteceu em nosso mundo moderno, para esclarecer a ci-
outro, sem preparação e sem pausas. Nesses, não sou eu que ência positiva, demonstrando-nos que se pode chegar ao conhe-
falo, mas é a vida, é essa consciência universal, como acontece cimento não somente pelo caminho da observação e experimen-
todas as vezes em que o homem cria na Terra coisas novas, tação, mas também pelas abstrações do pensamento puro.
porque elas só podem provir daquela fonte. É natural, então, Além disso, Einstein lançou a ideia da relatividade. Só ele
que a ciência que daí nasce esteja saturada de sentido religioso demonstrou matematicamente que não há uma medida absoluta
e místico e dos estados de consciência a ele inerentes, e que a de tempo e espaço, porque os corpos no espaço estão em mo-
exposição possa chegar a todos os campos e resolver todos os vimentos relativos uns aos outros; e este princípio veio conta-
problemas sempre orientada dentro do todo. Eis a síntese, por- giar os princípios afins e se espalhou até atingir um sentido
que o pensamento parte do Uno. Trata-se de um pensamento mais universal a respeito de todos os nossos conhecimentos. A
que está nos antípodas da ciência atual e que poderá ajudá-la a ideia, que já aparecera com Bergson, acabou por nos fazer, as-
salvar-se da especialização, que, tendendo a dispersá-la nos sim, admitir que não podemos conceber senão verdades relati-
particulares e nos múltiplos, constitui o reino satânico da pul- vas em evolução.
verização do Uno e está em seu antípoda. Demonstrando-nos que as leis que regem os mínimos elétrons
Concluo. Eu tinha o dever de dizer isso, já que, na imprensa são as mesmas que regem os sistemas planetários e galácticos,
e numa multidão de cartas, muitos vão admirando em mim – ele nos guiou à ideia da unidade do todo, unidade conclusiva e
quem sabe – algum engenho. Porém nada há de engenho. A substancial, decorrente de ser a matéria, nas suas próprias con-
única coisa que faço é ler no livro da vida, e sou apenas um po- clusões, apenas uma forma de energia. A sua Teoria Geral da Re-
bre amanuense que procura transcrevê-lo fielmente. Isto será latividade constitui o maior triunfo da mente humana até hoje.
supernormal, mas apenas em relação ao normal humano. Dian- E esse homem teve a paciência de ler alguns dos meus li-
te, porém, do consciente universal, do infinito pensamento de vros e a humilde bondade de me escrever. Eis como aconteceu,
Deus, o que é um infinitésimo a mais? porque ele não costumava, nem o poderia, responder às cente-
Estas minhas conclusões, provenientes da infinita miséria nas de cartas que lhe chegavam pelo correio.
que, naturalmente, todo ser deve sentir de si mesmo quando se Um dia – era 12 de março de 1951 – estava escrevendo no
avizinha do pensamento diretivo do universo, podem ser uma meu quarto solitário de Gúbio, na Itália, quando um rapaz bateu
prova da genuína realidade do fenômeno. Trata-se, se assim à porta para me informar que no hotel da cidade havia chegado
possa chamar-se, de um caso natural de evolução, que, como é um casal norte-americano à minha procura. Fui para lá, pensan-
lógico, é lei igual para todos e a todos espera amanhã, pois a do que precisassem de um intérprete. Mas não era isso. Eles
evolução significa justamente expansão da consciência indivi- haviam lido alguns artigos meus numa revista de Londres e em
dual na universal, ou seja, ascese da alma para Deus. outra de New York, e quiseram ver a cidade de Gúbio. Tratava-
Quem quiser sorrir ceticamente destas coisas, que lhe pode- se de Mr. Gerold M. Lauk, de New York, que tinha outro apar-
rão parecer loucuras segundo a psicologia materialista hoje em tamento em Nassau Street, Princeton, New Jersey.
voga, experimente antes ler as 3.000 páginas dos nove volumes Assim fomos, no carro dele, visitando as antiguidades da
já publicados, compreendendo-as. Depois experimente escrever cidade de Gúbio e logo nos tornamos amigos. O que mais me
262 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
interessou nele foi vir a saber que vivia na cidade de Princeton, ma. Também perante as maiores verdades do espírito, ele perma-
nos EUA, onde morava o prof. Albert Einstein. Era seu amigo e necia um matemático, um grande matemático que não podia re-
tomava chá na casa dele e da filha, Margot Einstein, na Mercer solver as grandes equações do espírito. Assim explicam-se as su-
Street. Começou, assim, a relatar-me uma porção de pormeno- as duas cartas. Mas, de outro lado, ele respeitou e admirou as re-
res da vida de Einstein, dizendo-me que este não pensava em ligiões como a coisa mais nobre. E quem respeita, como verda-
dinheiro e ficava sempre abstrato, na maior simplicidade de há- deiro cientista, que não pode aceitar o que não é demonstrado po-
bitos e de roupas, parecendo por fora um homem qualquer. Ein- sitivamente, merece, pelo fato de respeitar, todo o nosso respeito.
stein, que Mr. Lauck chamava ―o professor‖, lecionava na Assim, sem procurar, tive a sorte de conhecer o Prof. Eins-
―School of Mathematics of the Institute for Advanced Study‖. tein. Visitei depois, novamente, em Roma, Mr. Lauck, estrei-
Pouco a pouco eu ia, assim, conhecendo mais de perto, pe- tando sempre maior amizade. Entregava-lhe os meus livros e
las palavras de um seu amigo, esse homem extraordinário e, cartas para o Professor Einstein, e ele entregava tudo nas mãos
cada vez mais, alimentava maior simpatia para com ele e maior dele, ou colocava-as sobre a sua mesa de trabalho. Eu ficava ar-
admiração pela sua simplicidade, pelo seu gênio. Se eu fosse a repiado, especialmente pensando que meu inglês, talvez, fosse
Princeton, Mr. Lauck ter-me-ia apresentado ao Prof. Albert errado; se teria ele colocado o seu cachimbo para marcar as pá-
Einstein. Assim me prometera. ginas, como era de seu hábito, perto do quadro negro cheio de
Embora, no terreno puramente matemático, eu nada enten- fórmulas matemáticas, sobre a grande desordem dos papéis es-
desse de suas teorias, só acessíveis a cientistas especializados, palhados na mesa de seu escritório. Penso com tristeza nesse
eu percebia que concordávamos plenamente no terreno filosófi- grande desaparecido, que teve tanta bondade e humildade, a
co, filosofia da ciência, não obstante ele não chegasse ao plano ponto de se interessar pelo meu trabalho tão pobre.
espiritual, que estava além de suas pesquisas. Pietro Ubaldi
É assim que se explica como Einstein tivesse gostado dos ◘ ◘ ◘
meus livros nas partes em que eu ficara no terreno positivo da
ciência e como os julgasse, no mais, qual obra de arte, leve e Cartas de Albert Einstein a Pietro Ubaldi
estranha, quando se tratava de problemas espirituais.
Explica-se, pois, perfeitamente, a sua primeira carta, de 2 de The Institute for Advanced Study
maio de 1951, que aqui reproduzimos, traduzida do inglês, no Princeton, New Jersey – May 2nd, 1951
final deste capítulo. Nela, ele me agradece um livro meu que School of Mathematics
Mr. Lauck lhe havia entregado em mãos, dizendo-me que havia Prof. Dr. Pietro Ubaldi
estudado parte dos meus livros e ficara admirado pelo poder da Gubbio, Italy
linguagem e a vasta extensão dos assuntos tratados (ele era mais
analítico que sintético). Mas, quando não se refere mais, como Caro Professor Ubaldi,
aqui, à parte puramente científica, porém à outra, filosófica e es- O senhor Lauck foi muito gentil trazendo-me seu livro e
piritual, concluiu na mesma carta que não sabe se concorda ou sua carta. Estudei parte dele e admirei a força da linguagem e a
não com ela, porque, tratando-se de um trabalho filosófico, me vastidão dos assuntos ali tratados. Inicialmente, achei uma es-
afastava do mundo do controle da experiência, de modo que o pécie de pessimismo em relação à filosofia de Herbert Spencer
assunto parecia-lhe um trabalho independente, de arte. e uma ênfase bastante acentuada na evolução do homem atra-
Esta ideia está confirmada na outra carta, de 2 de julho de vés do esforço individual. Creio que este tipo de apresentação
1952, também aqui traduzida do inglês e publicada no final des- não faz justiça ao fato de que o homem é, predominantemente,
te capítulo. Os dois livros de que ele fala não tratavam de as- um animal social. Com seu empenho para encontrar uma solu-
suntos científicos, mas principalmente filosóficos, morais, reli- ção geral, em um nível mais abrangente, não me é fácil con-
giosos e espirituais. E ele conclui com estas palavras: ―Para o cordar ou discordar. O perigo de tais tentativas filosóficas está
meu velho cérebro, treinado no racionalismo, tudo isto me pa- em que as palavras se tornam dissociadas do campo experi-
rece estranho, porém agradável‖. mental. Toda a estrutura me impressiona mais como um traba-
Falei de tudo isto, dando provas, para explicar a mentalida- lho de arte independente, como uma interpretação intelectual
de dele, incrivelmente poderosa no terreno positivo, racional de alguma coisa a mais. Cordialmente seu
matemático; verdadeiro gênio aí, mas homem comum fora dis- (a) Albert Einstein
so. Ele foi assim um verdadeiro filho de nosso século, isto é, o
cientista profundo e especializado, mas primeiramente analítico The Institute for Advanced Study
e só depois sintético; grande matemático, cuja maior grandeza é Princeton, New Jersey – July 2nd, 1952
de ter a honestidade e sinceridade de reconhecer que o seu cé- School of Mathematics
rebro está treinado pelo racionalismo, campo além do qual, ele Professor Dr. Pietro Ubaldi
não se acha num terreno que possa aceitar como positivo. Mas Gubbio, Italy
isto não nos deve surpreender, porque esta é a forma mental de
nosso pensamento científico moderno. Caro Professor Ubaldi,
Apesar disto, a matemática é tão alta, que se poderia chamar Muito obrigado pelos dois livros que o senhor Lauck, gen-
também filosofia, porque ela se dirige no fim a alcançar a solu- tilmente, me entregou. Tentei ler seu livro sobre filosofia da vi-
ção de problemas filosóficos. A Teoria dos Quanta, de Planck, da. Para meu velho cérebro, treinado no racionalismo, tudo isto
havia ensinado que o universo físico seria feito de pequenas me parece estranho, porém agradável.
porções (quanta) governadas não por uma causa feita de ordem, Com minhas recomendações. Cordialmente seu,
mas pelo acaso. Einstein reagiu dizendo: ―Eu não posso acredi- (a) Albert Einstein.
tar que Deus esteja jogando dados com o universo‖. E sempre
procurou demonstrar a unidade do todo e, com isso, a presença ENCONTROS COM EINSTEIN (II)
de um único princípio central dirigente. (O Pensamento)
Ele penetrou na profundidade dos maiores mistérios do ser
com olhos de matemático. Mas os mistérios são os mesmos para Aproximando-me do Prof. Einstein e de seu pensamento,
todos. Mr. Lauck dizia-me que Einstein, muitas vezes, dava a compreendi uma coisa: a alta matemática está muito próxima
impressão de não poder aceitar a doutrina da imortalidade da al- das especulações filosóficas. Isto, para mim, estabeleceu uma
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 263
ponte entre a ciência e o espiritualismo. Desde então encarei os todas as forças do universo. Encontrou-se, assim, íntima rela-
problemas do espírito não somente como biológicos, sociais, ção entre a eletricidade e a gravitação, que, dessa forma, assu-
artísticos, místicos, espirituais, filosóficos, religiosos etc., mas me um conceito completamente novo, muito diferente daquele
também como problemas estritamente científicos. dado pela física mecânica Newtoniana, que, até hoje, havia si-
Comparando os resultados atingidos por Einstein com os do aceita por todos. Essa afinidade faz da eletricidade e da
atingidos pelos outros cientistas modernos, cheguei à conclusão gravitação duas forças afins, irmãs, derivadas do mesmo prin-
de que, de tanto aprofundar as suas pesquisas, a mais adiantada cípio unitário. Eis o elo que faltava para demonstrar a concep-
ciência materialista haveria de encontrar o espírito. Achei que a ção monística e unitária do cosmos.
ciência, estudando sempre mais a fundo o nosso mundo psico- Em nosso caso, o fato é simplesmente este: aquilo que os
dinâmico, não poderá deixar de descobrir nele o pensamento jornais disseram ter sido então descoberto pelos meios matemá-
que o dirige, a inteligência que a lei dos fenômenos nos revela. ticos, já havia sido afirmado pelo caminho metapsíquico, dezoi-
Einstein ensinou-me que a nova física deve confiar sempre to anos antes, sendo publicada a descoberta em 1932, pela pri-
mais nos matemáticos, que elaboram sobre abstrações, afastan- meira vez, na Revista Ali del Pensiero de Milão e, depois, inse-
do-se do velho conceito do materialismo científico. A ciência rida no volume A Grande Síntese, bem difundido na Europa e
atual, de fato, abstrai-se cada vez mais da realidade sensória, nas Américas do Norte e do Sul.
numa constante diminuição de contatos, construindo numa es- Todos podem verificar que ali estão desenvolvidas não só a
pécie de vácuo, feito de uma realidade mais verdadeira, porque teoria da evolução das dimensões, que, filosoficamente, comple-
mais profunda, na forma da lógica matemática. Este progressi- ta e enquadra em toda a escala das dimensões a concepção ma-
vo afirmar-se do pensamento puro, denota uma efetiva elevação temática de Einstein do ―continuo‖ espaço-tempo, mas também
em direção ao espírito; quer isto dizer que a ciência está che- a própria afinidade entre a eletricidade e a gravitação, que, com
gando, por si só, sem intervenção espiritualista, a admitir que a a íntima natureza desta última, já tinham sido explicadas no
última realidade do universo é o pensamento, um pensamento Cap. XXXVIII de A Grande Síntese: ―Gênese da Gravitação‖.
cósmico, em que o homem está mergulhado, de que faz parte, Ali, entre outras coisas, diz-se: ―As radiações conservam
mas que existe independentemente dele. todas as características fundamentais da energia cinética que
Esta é a revolução que se está operando no próprio seio do lhes deu movimento e é essa comunidade de origem que estabe-
materialismo; este é o maior valor das descobertas modernas, lece entre elas afinidade de parentesco. Outra prova do paren-
porque nelas se encontra completa a semente de um futuro de- tesco das forças dinâmicas está na qualidade da luz, derivação
senvolvimento da ciência no espiritualismo. Este não se apoi- próxima, por evolução, da energia gravífica (...). Poder-se-ia
ará mais apenas sobre a fé e a revelação, mas alicerçar-se-á dizer que a luz pesa, isto é, que a luz sofre o influxo dos impul-
em provas positivas, racionalmente demonstradas. Hoje, che- sos atrativos e repulsivos de ordem gravífica; existe uma pres-
gamos a um ponto que não oferece outra saída; eis que o últi- são das radiações luminosas. Direi mais: todas as radiações
mo elemento da matéria, o elétron, é reconhecido como um exercem, em sua propagação, uma pressão de ordem gravífica;
aglomerado de ondas, provando que a última substância da re- apresentam fenômenos de atração e repulsão, em relação direta
alidade é mera concentração de energia ondulatória. Qualquer com as suas proximidades genéticas, na sucessão evolutiva,
substrato material desaparece, e a solidez sensória do mundo com a sua protoforma dinâmica, a gravitação‖.
físico fica assim reduzida, por puro processo lógico, a uma E conclui assim: ―Orientai as vossas pesquisas neste senti-
simples representação relativa à possibilidade de nossa per- do; analisai por meio do cálculo estes princípios, e a ciência
cepção, também relativa. Hoje se compreende que a última chegará a descobertas que a revolucionarão‖. Isto como se pre-
essência da matéria é abstrata, um imponderável, puro pensa- visse que só pelo cálculo se poderia iniciar a demonstração,
mento da mente diretiva do universo, o pensamento que pode como depois aconteceu.
criar, como sua expressão, o universo físico. O controle experimental, realizado com as medidas tomadas
Assim a concepção materialista ficou reduzida a quase na- e nas fotografias batidas em vários eclipses do Sol, confirmaram
da, por obra do próprio realismo, e não do idealismo. Pene- tudo isso, junto com a teoria de Einstein, isto é, que os raios lu-
trando em maior profundidade, o materialismo acabou por se minosos ficam curvados pela atração gravitacional. Embora hoje
confundir com o espiritualismo. No fundo, há apenas um o Dr. Freundlick, já colaborador de Einstein no observatório de
―quid‖ que, quando assume a forma sensória, chama-se maté- Potsdam, ache que a curvatura dos raios luminosos supera de
ria. E, um dia, a ciência verá que esse ―quid‖ é o puro pensa- 30% a previsão teórica, o principio geral fica sempre o mesmo.
mento, que constitui o elemento genético da criação da matéria Também, embora hoje pareça que a luz emitida em campos
de nosso universo físico. gravitacionais intensos seja deslocada na direção do vermelho
Foi Einstein que me mostrou essa ponte lançada pela Física do espectro, e o valor da derivação seja diferente daquele pre-
no campo do espírito. Daí nasceu a possibilidade de uma con- visto pelas fórmulas de Einstein, o princípio geral permanece
cordância entre as conclusões dele e as do sistema explanado também sempre o mesmo.
nos meus livros. E, embora a teoria da relatividade generalizada esteja adqui-
◘ ◘ ◘ rindo maiores desenvolvimentos com os retoques dos novos ci-
No começo do ano de 1950, os jornais publicaram uma no- entistas, a primeira grande descoberta de Einstein nunca perde-
tícia sensacional: O grande matemático Einstein descobriu rá o seu valor fundamental.
uma nova teoria, pela qual teria sido encontrado o elo que fal- Aqui, por amor à verdade, preciso esclarecer, para evitar
tava para a concepção unitária do universo. Com a célebre teo- equívocos, que ninguém afirma que A Grande Síntese houves-
ria restrita da relatividade, Einstein já havia demonstrado, por se antecipado a fórmula matemática expressa por Einstein na
meios matemáticos, mais tarde confirmados experimentalmen- sua Teoria Generalizada. Ninguém quer reivindicar a priorida-
te, a estreita relação quadridimensional entre as duas dimen- de nesse campo. A Grande Síntese só focalizou os conceitos fi-
sões – espaço e tempo. No entanto, faltava ainda a demonstra- losóficos dos mesmos princípios e, tão só nesse sentido se en-
ção matemática da relação entre todas as forças cósmicas e, tende a sua antecipação. Trata-se da descoberta e enunciação
por conseguinte, da sua unidade. Isto se conseguiu com a nova da mesma verdade, mas por forma diferente, uma no campo fí-
teoria, que Einstein chamou ―Teoria generalizada da Gravita- sico-matemático, outra no campo filosófico. A primeira é um
ção‖ e ―Teoria do Campo Unificado‖, que termina com quatro produto particular de uma profundíssima especialização, a se-
equações todas iguais a zero. Essa teoria explica a origem de gunda faz parte de um sistema e fica enquadrada numa filoso-
264 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
fia universal. Assim as duas conclusões se apoiam e demons- polo negativo da destruição no mal e do esmagamento do espí-
tram uma à outra, a analítica de Einstein e a sintética de A rito nas trevas da matéria. Esta pode ser chamada a fórmula da
Grande Síntese. Assim concordaram, chegando ao mesmo descida ou da derrocada.
ponto, quem seguiu o caminho do raciocínio e aquele que es- A segunda expressão representa o mesmo universo, que, no
colheu o caminho da intuição inspirativa. Dessa forma, a lógi- extremo limite da segunda metade do ciclo, evolutiva, chegou
ca matemática concordou com os processos intuitivos, e ambos ao polo positivo (que foi ponto de partida e agora é de chega-
se compreenderam reciprocamente. da), o polo da reconstrução cumprida no bem e da libertação do
Por dois caminhos diferentes, a alma humana procurou espírito das trevas da matéria, na luz da verdade, no seio de
atingir o mesmo centro da unidade do todo, seja por meio da Deus. Esta pode ser chamada a fórmula da subida ou reconstru-
formulação filosófica, seja por via matemática. Isto quer dizer tiva. Ela é também a fórmula resolutiva do universo, porque, no
que todo pensamento provém do ―uno‖ e que não pode ficar final, o fim e o princípio coincidem no mesmo ponto, reunindo-
orientado senão numa direção: a do ―uno‖. se em um ciclo só, que se fecha sobre si mesmo.
Assim, antes de ler A Grande Síntese, (1951), o Prof. Einstein A primeira fórmula pode-se ler assim: no limite do universo
confirmava com a demonstração matemática um dos conceitos ou organismo de universos () a substância, pelo vir-a-ser, ou
fundamentais do sistema filosófico desse livro. Quando, no ano transformismo fenomênico, chegou no instante máximo final
de 1950, Einstein deu a conhecer a sua nova ―Teoria Generaliza- do semiciclo involutivo (inicial do semiciclo evolutivo), onde
da‖, numerosos jornais trataram do caso. O agora falecido Enrico ela se acha toda no estado de infinito negativo.
Fermi, da Universidade de Chicago, ―Institute for Nuclear Studi- A segunda fórmula pode-se ler assim: no limite do universo
es‖, numa carta pessoal, deu confirmação da demonstração ma- ou organismo de universos () a substância, pelo vir-a-ser, ou
temática, reportando-se à supra citada antecipação filosófica. transformismo fenomênico, chegou no instante máximo final
Mas o ponto final, para ambos os pensamentos, era a ideia do semiciclo evolutivo (final também de todo o ciclo, instante
central da unidade do todo. A ideia última, alvo tanto de Einstein em que tudo retorna ao estado inicial), onde ela se acha toda no
como de A Grande Síntese (permito-me essa aproximação, uma estado de infinito positivo.
vez que esse livro não é obra minha), é a mesma, embora expres- Assim as duas fórmulas, a primeira, da destruição, e a se-
sa em fórmulas diferentes. Pelo desenvolvimento dos conceitos gunda, da reconstrução, completam-se num só ciclo, feito de
de A Grande Síntese no volume Deus e Universo, também foi duas metades inversas e complementares.
possível chegar até uma fórmula matemática que é sintética e Desse modo, a pesquisa científica do grande matemático da
conclusiva de todo o sistema filosófico universal de A Grande teoria restrita e da teoria geral da relatividade, aprofundando o
Síntese. De modo que podemos confrontar, uma perto da outra, seu olhar racionalista nos abismos do mistério, alcançou a
estas duas fórmulas matemáticas que, num espaço mínimo, ex- mesma unidade e percebeu um lampejo da Verdade, pela mes-
pressam, concentrados, os mais vastos e poderosos conceitos que ma presença da inteligência de Deus, quando ele concluiu com
sintetizam os maiores processos fenomênicos do cosmos. este pensamento: ―A minha religião consiste numa humilde
Einstein concentrou as conclusões da sua teoria generaliza- admiração pelo ilimitado Espírito Superior, que se revela nos
da com as quatro equações seguintes, todas iguais a zero: mínimos pormenores, que nós podemos perceber com as nossas
frágeis e fracas mentes‖.
São Vicente – abril de 1955
Gik,s = 0 Ti = 0
Pietro Ubaldi
Rik,l + Rkl,i + Rli,k = 0
Rik = 0 SEGUNDA PARTE – CRÍTICAS

Encontrando-se, assim, íntima relação entre a eletricidade e GRANDES MENSAGENS (I)


a gravitação, explica-se a origem comum de todas as forças.
Desse modo, eletricidade e gravitação são dois fenômenos co- Prefácio da segunda e terceira edições italianas, publicado
nexos, filhos do mesmo princípio único, sustentando assim a na revista Ali del Pensiero – Milão (Itália), 1935 e 1958.
concepção unitária do universo. Aqui está a chave dos segredos A mediunidade de Pietro Ubaldi explodiu no outono de
da constituição da matéria e da descoberta da energia nuclear. 1931, como coroação de provações e grandes dores. Em de-
Mas não podemos explicar mais em um só artigo. zembro do mesmo ano foi recebida a ―Mensagem de Natal‖,
De outro lado, a fórmula conclusiva do sistema do cosmos é que pode considerar-se como introdução à obra subsequente, e
expressa em duas expressões limitadas, que sintetizam em fór- que, de imediato, foi traduzida em cinco idiomas: na Alfa, de
mula matemática o processo involutivo e evolutivo, que consti- Roma – (Itália), no International Psychic Gazette, de Londres
tuem as duas metades do ciclo do universo. Esta fórmula se (Inglaterra), na Revue Spirite Belge, de Liége (Bélgica), e em
acha no livro Deus e Universo, Cap. VIII, ―Conceituação do Constancia, de Buenos Aires (Argentina). Apareceu a seguir,
problema do ser‖. Quem quiser conhecer o processo matemáti- com as outras mensagens, no Reformador e no diário Correio
co usado para chegar a essa conclusão sintética, leia aquele li- da Manhã, no Rio de Janeiro, e nas primeiras revistas e jornais
vro, no capítulo acima. do Brasil e também em opúsculos separados.
Eis as duas expressões limites que, na fórmula simbólica da Na Páscoa de 1932, ―Sua Voz‖ transmitiu a Mensagem da
linguagem matemática, sintetizam o ciclo de todo ser. Ressurreição, verdadeiro e poderoso apelo ao mundo, que,
além de em todas as revistas e jornais citados, foi publicado na
lim  = S+ Revue Caodaiste, de Saigon (Indochina).
t  max e A 2 de agosto de 1932, no dia do ―Perdão da Porciúncula‖
de São Francisco de Assis, o médium (que se encontrava perto
de Perúgia), foi improvisadamente forçado, por uma força fe-
lim  = S+
bril e irresistível, a escrever rapidissimamente, em breves minu-
t  max e
tos, aquela sublime ―Mensagem do Perdão‖, que teve notabilís-
sima e totalmente espontânea difusão em todo o mundo, quer
A primeira expressão representa o universo, que, no extre- aparecendo em inúmeras revistas e mesmo em jornais diários
mo limite da primeira metade do ciclo, involutiva, chegou ao estrangeiros, quer nas edições especiais, feitas por numerosís-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 265
simas associações sul-americanas. Calcula-se que tenha apare- Estas mensagens foram escritas sem preparação alguma,
cido em todo o mundo cerca de meio milhão de cópias. Esta em etapas sucessivas, que são datas significativas e importan-
mensagem é verdadeiramente um grande toque de reunir, vibra- tes, ou seja, o Natal de 1931, a Páscoa de 1932, 2 de agosto de
ção possante de majestosa autoridade. 1932, até culminar na Páscoa de 1933, XIX Centenário da
Finalmente, aa Páscoa de 1933, comemoração do 19 o cente- morte de Cristo, e continuam como um eco, dez anos depois,
nário da morte de Cristo, foram divulgadas as duas mensagens, na Páscoa de 1943. São como um toque de reunir, um primei-
ou melhor, a dupla mensagem ―Aos Cristãos‖ e ―Aos Homens ro clangor de trombeta, um supremo apelo ao mundo na vés-
de Boa Vontade‖, de conteúdo essencialmente religioso. pera de acontecimentos apocalípticos. Cada uma dessas men-
Todas essas ―mensagens‖ são dirigidas ―ao coração‖, ou sagens, afinando-se com a data em que foi escrita, possui um
melhor, ao coração das massas. Mas, desde o fim de 1932, ―Sua conteúdo próprio e particular. Quem os compilou, só pôde ve-
Voz‖ transmite uma obra orgânica, de concepção grandiosa e rificá-lo após terminar o trabalho.
de desenvolvimento concatenado, com bases e fins racionais e Essas mensagens tiveram larga difusão, traduzidas no exteri-
científicos: A Grande Síntese, cuja publicação foi imediatamen- or, da Europa à Indochina, mas sobretudo na América do Sul.
te iniciada (e continua ainda) em Milão, na revista Ali del Pen- Calcula-se que só a ―Mensagem do Perdão‖ (escrita perto de
siero; em Buenos Aires, na revista Constancia, e no Rio de Ja- Assis, no dia do Perdão da Porciúncula de São Francisco de As-
neiro, na revista Reformador e no Correio da Manhã, o maior sis) tenha tido cerca de meio milhão de cópias, em divulgação
diário do Brasil. Como que irradiando-se no mundo, partindo espontânea. Certa revista comentava assim este caso: ―Raramen-
de dois polos diversos, sobre os dois hemisférios. Outras edi- te obtêm tão rápido e espontâneo êxito, no mundo, outras coisas
ções estrangeiras estão sendo preparadas. fortemente queridas e habilmente preparadas. Neste caso, ao in-
Concomitantemente às mensagens que aqui publicamos, vés, um homem desconhecido, sem preparação, durante muito
uma série de comunicações particulares era transmitida e che- tempo hesitante a respeito da oportunidade de divulgar sua pro-
gava às mãos de Mussolini e do Pontífice, nos respectivos cam- dução, sem meios e sem apoio, modestíssimo e fugindo da noto-
pos político e religioso. riedade, sem qualquer fim interesseiro – viu sua produção, ofe-
Raramente obtêm tão rápido e espontâneo êxito, no mun- recida timidamente, fazer com rapidez a volta ao mundo e di-
do, outras coisas fortemente queridas e habilmente prepara- fundir-se em pouco tempo, automaticamente, como por uma
das. Neste caso, ao invés, um médium desconhecido – sem força própria. Neste fato, muitos poderão descobrir uma prova‖.
preparação, durante muito tempo hesitante a respeito da opor- Aqui se torna necessário um esclarecimento. Pietro Ubaldi,
tunidade de divulgar sua produção, sem meios e sem apoio, em Gúbio, que escreveu estas mensagens, não quis colocar seu
modestíssimo e fugindo da notoriedade, sem nenhum fim inte- nome no fascículo, desejando que sua pessoa desapareça no si-
resseiro, antes até constrangido a uma vida de martírio para lêncio e que só o fruto de seu trabalho permaneça para consola-
exteriorizar seus invulgares dotes mediúnicos – viu sua pro-
ção do próximo. Existirá, então, um autor mais alto, que fala
dução, oferecida timidamente, fazer com rapidez a volta do
aqui às inteligências e aos corações, na atual hora histórica,
mundo e difundir-se em pouco tempo, automaticamente, co-
apocalíptica e solene? Se a imensa divulgação prodigiosa, já
mo por uma prodigiosa força própria . Neste fato, muitos po-
rapidamente conseguida, sem pressão de ninguém, pode consti-
derão descobrir uma prova.
tuir uma prova de que a ação da Providência e da vontade de
Quem é a ―Sua Voz‖, essa anônima ―entidade‖ que transmi-
Deus esteve presente a tudo isto, a maior prova a sentirá, em si
te escritos tão elevados e poderosos? Fizeram-se muitas conje-
mesma, cada alma ao ler e ouvir a poderosa vibração, irresistí-
turas inúteis e absurdas a esse respeito, mas não é aqui que de-
veremos discutir. Diremos porém: a verdade é una, e pouco vel porém doce, profunda de pensamento mas palpitante de
importa, a quem tem sede, de que fonte se tenha haurido a sentimento e de bondade, que parece emanar das palavras das
água. O que interessa é que a água seja límpida e pura e possa mensagens. A verdadeira prova das origens desta inspiração
abrandar a sede das afogueadas almas de hoje. que ditou as presentes mensagens, cada um a achará em si, na
Milão, junho de 1935 resposta, na emoção, na convicção que sentirá nascer espontâ-
OM-AR nea no profundo de sua consciência.
Mas o leitor perguntará: Quem fala, dizendo ―Eu‖, num tom
GRANDES MENSAGENS (II) tão alto? A inspiração não é coisa nova, especialmente na reli-
(Prefácio da quarta edição italiana) gião. É possível, portanto, neste caso, e não podemos negá-la a
priori. Mas sabe-se, também, que Deus costuma manifestar-se,
Edição aprovada pela autoridade eclesiástica, lançada pela mais frequentemente, indiretamente, por meio de instrumentos;
casa editora ―Cultura Religiosa Populare‖ – Viterbo, 1945. e não é novidade que, em semelhantes casos, não costuma dar de
Estas mensagens, escritas em 1931–1933, sem nenhuma imediato provas tangíveis, porque parece querer exigir a nossa
preparação nem premeditação organizada, apresentam-se, toda- fé e preferir fiar-se e confiar-se apenas a quem segue seus cami-
via, com sucessão lógica, pois cada parte aparece a seu tempo e nhos. E que direito temos de pedir a Deus, a cada passo, a exce-
lugar, enquadrada num organismo conceptual. Embora seu es- ção e o prodígio, para acreditar em suas palavras? Não nos deu
critor, então, não o pudesse ter sabido nem sequer presumido, Ele o sentido da verdade na consciência, para reconhecê-las?
estas mensagens estão em plena coerência com o desenvolvi- Aproximemo-nos, portanto, delas com alma pura e reconhece-
mento sucessivo da atual hora histórica, que se desenrolou exa- remos se são falsas ou verdadeiras. Esta é a prova de fogo.
tamente no sentido previsto. Os motivos dominantes nestas O instrumento inspirado que as escreveu, no-las oferece
mensagens são a expectativa de nova civilização do espírito, a sinceramente com a fé de quem as sentiu, deixando a cada um o
aproximação de grandes mudanças em todos os campos e de julgamento. Nada mais sabe ele dizer-nos senão isto: sentiu que
um cataclismo mundial, que agora se realiza. É um fato que, essas mensagens descem da direção de Cristo, chegando às ve-
depois de dez anos, cumpriu-se aquela nítida previsão, em zes a uma relação tão imediata e transparente, que lhe dá a sen-
acontecimentos que hoje dominam o momento histórico. Trata- sação da presença, num contato de alma, do próprio Cristo. De
se de previsões nas grandes linhas, passando por cima dos por- acordo com sua potencialidade ou pureza, cada consciência in-
menores da realização. Isso tudo faz prever que o vaticínio con- dagará de si esse mistério e, de acordo com sua capacidade, há
tinuará a verificar-se. Esta visão da hora atual e de seus pro- de vibrar e de sentir, encontrando em si mesmo uma resposta,
blemas mais profundos é um anúncio de nova era e preparação especialmente em relação a Cristo.
para a sua chegada. A Editora
266 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
O REGRESSO AOS DIAS CRIATIVOS DO atribuída a natureza desconhecida ou ao demônio, de acordo
DIVINO PENTENCOSTES ATRAVÉS DA com a mentalidade do teólogo. ―Por isso‖, mesmo catolica-
MEDIUNIDADE INTELECTUAL mente, podem atribuir-se as obras presentes ao bom anjo, ou
seja, ao espírito superior, tanto mais que elas nenhuma heresia
Das revistas: Il Mistero – ano III, no 24, setembro 1935, e contém, nem diante do cristianismo católico-romano, nem di-
Mondo Occulto – ano XVI, no 2, março – abril 1936. ante do protestante e evangélico. Portanto o espiritualista pie-
Ao ler as presentes obras, conseguidas pela mediunidade doso conserva, depois de sua Bíblia cristã, em sua estante, com
do sincero e grande ―médium‖ Prof. Pietro Ubaldi, mereci- estima, as supracitadas obras.
damente já célebre e amado, durante muito tempo permaneci Quem é o autor?
pensativo e fascinado. Meditei que isto é um belo regresso ao Não nos importa: basta-nos seu divino e eterno verbo que
proto-cristianismo, quando, após o sacrifício do Divino Jesus nos conduz, a nós modernos, a Deus e à santificação...
sobre o Gólgota, durante três séculos, as multidões viveram
de forma perfeita e heroica a doutrina de Cristo, com os dou- Luciano Giuseppe Chiareilo
tores e profetas em contínua e alta comunicação ―mediúnica‖
com o ―além‖ espiritual, com os sacerdotes e pastores, de vi- A PROPÓSITO DA “MENSAGEM DO PERDÃO”
da sublimemente místico-ascética, a ajudar, com as santas DO PROF. PIETRO UBALDI
comunidades crentes, a ―sacrossanta‖ mediunidade dos profe-
tas e dos doutores, no pleno domínio da ―liberdade‖ de pen- Da Revista Constancia – Buenos Aires, ano LV, no 2368, 3
samento e de consciência trazida pelo cristianismo, que ainda de novembro de 1932.
não degenerara. Senhor Prof. Dr. Pietro Ubaldi.
Mais tarde, com a chegada do cristão Constantino, as multi- Querido Ubaldi,
dões pagãs profanas entraram em massa na Igreja Cristã; os sa- Pede-me você um julgamento sobre a ―Mensagem do Per-
cerdotes dos deuses e o vulgo idólatra, transplantando para a dão‖. Ei-lo em poucas palavras: ―Estupendo! Contém passa-
nova Igreja as antigas dignidades e a velha mentalidade, paga- gens tão sublimes em sua cósmica grandiosidade, que infundem
nizaram o sagrado ambiente cristão, afastando o verdadeiro quase uma sensação de sagrado temor‖.
―Reino de Deus‖, anunciado no Evangelho; Pergunta-me também se, pelo texto, será possível identificar
Depois, com a descida dos bárbaros, a queda do Império a entidade comunicante. Parece-me que dela transparece clara-
Romano e a destruição da gloriosíssima civilização greco- mente quem é que se manifesta: ―Deus, perdoa-os, não sabem o
romana, terminou na Igreja e na sociedade a diretriz evangélica, que fazem (...)‖; ―Por vós me deixaria crucificar outra vez (...)‖;
cessaram as ―mediunidades‖ e o ―profetismo‖; durante séculos, ―Não queirais renovar-me as angústias do Getsêmane (...)‖.
o ―espírito‖ de Cristo e o ―verdadeiro espírito‖ da Igreja per- Infere-se que deve tratar-se nada menos que de Jesus Naza-
maneceram na sombra; ausente das consciências das pseudo- reno. E, do ponto de vista da investigação científica, isto consti-
cristãs nações do mundo. tui o ponto crítico da natureza destas mensagens, que deixam
Ao ressurgir a Europa na Idade Média, a Igreja ressurgiu, perplexo o ânimo do leitor, porque se revestem de sublimidade
Cristo voltou e a humanidade se tornou grande, recomeçando a semelhante às que você recebeu.
comunicação direta entre o mundo terreno de provas e lutas e o Tratando-se de investigadores que, como eu, já estão con-
além celeste, nossa verdadeira e eterna Pátria... vencidos experimentalmente da verdade irrefutável das comu-
Sim, voltou o Cristo e ressurgiu a Igreja, porque Cristo reina nicações mediúnicas com entidades de desencarnados, é possí-
e a Igreja vive e governa apenas onde a liberdade e civilização vel convencer-se com facilidade da veracidade da fonte de onde
são a vida das nações e do povo. emanam as mensagens, todavia isto ocorrerá sempre por força
Isto prova que Cristo é o enviado de Deus, que a Igreja é di- de um ―ato de fé‖, embora, neste caso, esta se baseie na experi-
vina e santa como seu Fundador. Com efeito, olhai as nações e ência adquirida nas investigações mediúnicas.
os homens da Terra: onde Cristo menos reina e onde a Igreja Infelizmente, todavia, se desejamos convencer o mundo,
menos vive e menos dirige, a liberdade e a civilização não po- mormente os homens de ciência, a respeito do importantíssi-
dem subsistir para elevar povos e indivíduos. mo fato da existência e da sobrevivência do espírito humano,
Considerei isso e o disse para demonstrar que o espiritua- fazem falta fatos, induções e deduções verdadeiras. Foi a este
lismo experimental, base positiva da religião e prova científica último sistema de investigação positiva sobre o mistério do
do além celeste, nasceu em período de liberdade e de civiliza- ser, que eu me dediquei invariavelmente. Isto não impede, no
ção, quando Cristo e a Igreja tinham achado no mundo civiliza- entanto, que esse sistema possa aperfeiçoar-se e completar-se
do sua estrada mestra e suas funções mais elevadas. com o acréscimo dos ensinamentos e da luz espiritual, que
A mediunidade intelectual, além disso, é a alma do espiritu- podem trazer-nos mensagens mediúnicas de tão grande eleva-
alismo experimental, é a prova do ignóbil engano das hipóteses ção, que se impõem à razão. É este, precisamente, o caso das
naturalistas contra o espiritualismo experimental e ―o divino‖ mensagens recebidas por você.
do espiritualismo moderno. Você me pede um conselho sobre se deve continuar ou, ao
As presentes obras, fruto da mediunidade intelectual, obti- invés, suspender o exercício de sua mediunidade, orientada
das por intermédio do médium Ubaldi, são a manifestação mais nesse sentido. Respondo: ―Cada um tem sua própria missão.
importante que a história antiga e moderna registra. A minha era contribuir, na medida das minhas forças, para
Para achar dignos confrontos, para fazer crítica adequada, convencer os homens de ciência, com base nos fatos; a sua
para compreender seu ―pathos‖ criador, é mister recuar nos parece ser a de trazer à humanidade pensante mensagens ele-
séculos até a era proto-cristã, até à gloriosíssima grandiosida- vadíssimas, de ordem moral e espiritual, e que estão destina-
de da era apostólica, permeada de suprema mediunidade inte- das a tornar-se um dia, as únicas importantes para a evolução
lectual criadora. espiritual dos povos‖.
Observe-se que, também para a teologia católica, desde a Prossiga, portanto, em sua missão.
mais inovadora até à mais reacionária escolástica, admite-se Afetuosas saudações,
que a mediunidade intelectual pode existir, comunicando-se o Savona, 14 de outubro de 1932
homem com o bom anjo, de modo diferente da física, que é (a) E. Bozzano
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 267
PIETRO UBALDI – A GRANDE SÍNTESE Mas ―Sua Voz‖ o arrasta ainda, e ele é obrigado a escrever
(estamos na Páscoa de 1932) a ―Mensagem da Ressurreição‖.
Querido Ubaldi. Verdadeiro e próprio apelo ao mundo, a palavra é mais definida
Você deseja um parecer global sobre A Grande Síntese. Ta- e mais poderosa. A mediunidade de Ubaldi se está evidente-
refa difícil, porque se trata de uma obra demasiado densa de mente desenvolvendo e fortificando, e o próprio médium come-
pensamento e demasiado variada em seus temas, para que se ça a adquirir maior segurança em seus dons de receptividade. E
possa sintetizá-la num parágrafo global. agora, quase por encanto, esta mesma mensagem é imediata-
Apesar de tudo, eis o parágrafo: mente traduzida e publicada pelo mundo: Inglaterra, Argentina,
Pedem-me um parecer confidencial sobre A Grande Síntese Bélgica, Itália e Indochina.
de Pietro Ubaldi. Respondo: sumamente favorável sob todos Eis então que Ubaldi começa a ver suas dúvidas atenuadas
os aspectos. Trata-se, realmente, de uma grande síntese de todo ou dissipadas. Vários médiuns, que ele desconhecia, recebem
o saber humano, considerado do ponto de vista positivamente espontaneamente mensagens espirituais endereçadas a ele, nas
transcendental, em que se estudam todos os ramos do saber, quais ele é instigado, aconselhado, encaminhado, e onde tam-
sendo esclarecidos e resolvidos numerosos problemas até hoje bém se lhe prediz qual é o caminho que está traçado para ele.
insolúveis, com o acréscimo de novas orientações científicas, Também o Prof. Ernesto Bozzano – sem dúvida a mais alta
além de considerações filosóficas, científicas, religiosas, mo- e indiscutível autoridade mundial nesta matéria – o alenta e as-
rais e sociais a tal ponto elevadas, que induzem a reverente as- segura; a 1o de junho escreve-lhe: ― (...) a mensagem recebida
sombro. É uma obra que fará época na história das revelações por sua mediunidade é indubitavelmente de origem transcen-
mediúnicas, tanto mais que esta é a primeira vez que é ditado à dental e, mais ainda, de elevadíssima inspiração. Provem, pa-
humanidade um grande tratado realmente original, de ordem tentemente, de um grande mestre espiritual (...). Observo que a
rigorosamente científica. forma de sua mediunidade – que consiste numa voz subjetiva
Cordiais saudações, que lhe dita a mensagem – é idêntica à de Miss Cummins, a
Savona, 12 de outubro de 1937 médium por meio de quem se manifesta a famosa e extraordi-
(a) Ernesto Bozzano nária personalidade espiritual de Patience Worth. Termino en-
corajando-o a perseverar em suas experiências, das quais espero
A “SUA VOZ” algo de análogo aos Spirit Teachings, de Moses‖.
Eis que a 2 de agosto de 1932, no dia do famoso perdão da
Da revista Ali del Pensiero – Milão, ano III, no 2, fevereiro Porciúncula de Francisco de Assis, o médium (que se achava
de 1934. perto de Perúgia), é como que arrastado por uma força superi-
Há mais de um ano, vêm os leitores de Ali del Pensiero usu- or, febril e irresistível, e, em poucos minutos, escreve de jato
fruindo a apurada e profunda palavra que emana de A Grande aquela sublime ―Mensagem do Perdão‖, que já fez a volta ao
Síntese, transmitida ao mundo pela peculiar mediunidade de Pi- mundo. Aqui temos, verdadeiramente, o grande toque de reu-
etro Ubaldi e proveniente de uma entidade que se faz chamar nir, a palavra vibrante e poderosa, envolvida em majestosa au-
anonimamente como ―Sua Voz‖. Chegou agora o momento em toridade. O pensamento está permeado de puríssimo sentimen-
que os leitores, tendo tido a prova irrefutável da importância to e desce para comover as cordas mais delicadas do coração.
dessa comunicação (embora não esteja ela ainda nem na meta- É a explosão de uma personalidade espiritual que se revela e
de), tanto sob o ponto de vista científico como moral, conhe- anuncia com toda segurança o objetivo de sua intervenção e de
çam um pouco da história humana dessa ―Voz‖ sublime e de sua missão. Essa mensagem foi imediatamente publicada na
sua surpreendente difusão em todos os recantos da Terra. Argentina, na Bélgica, na Itália; mas seu caminho não termi-
A ―Sua Voz‖ (e o próprio fato de que a entidade não declina nou aí, porque passa, por incrível força própria, de mão em
nenhum nome ―humano‖ prova sua elevadíssima origem e po- mão, de cidade em cidade, e mesmo recentemente soube-se
sição espiritual) começou a manifestar-se por meio de Ubaldi que, sem que o próprio médium disso tivesse conhecimento, a
apenas no outono de 1931. Em dezembro daquele ano, transmi- ―Mensagem do Perdão‖ está circulando em milhares de cópias
tiu sua primeira mensagem geral, ―A Mensagem de Natal‖, que por todos os recantos do Brasil, por iniciativa quer da Federa-
foi imediatamente publicada em quatro línguas, na Itália, na In- ção Espírita Brasileira, quer de sociedades espíritas do Paraná,
glaterra, na Bélgica e na Argentina. Era uma espécie de intro- de Porto Alegre e da cidade de Itu, tendo ainda sido publicada
dução ou advertência, em estilo ainda tímido, devido talvez ao num grande matutino do Rio de Janeiro!
ceticismo que (note-se bem) o próprio médium recebedor tinha Milhares de pessoas ficaram fascinadas e comovidas com
sobre suas próprias qualidades mediúnicas, e à reação que, por aquela palavra sublime. O próprio Bozzano escreve: ―Estupen-
isso, ele opunha ao livre afluxo da recepção ultrafânica. do! Há trechos tão sublimes em sua cósmica grandiosidade, que
O médium era, então, completamente desconhecido no mun- incutem quase uma sensação de sagrado temor (...). Foi ao sis-
do espírita e espiritualista, italiano e estrangeiro; não tinha ne- tema de investigação positiva sobre o mistério do ser que me
nhum apoio e vivia, material e espiritualmente, quase isolado dediquei invariavelmente. Isto não impede, no entanto, que esse
num pequeno centro da Sicília. Somos obrigados a ver uma in- sistema possa aperfeiçoar-se e completar-se com o acréscimo
tervenção superior no ―caso‖, raríssimo, de que o médium tenha dos ensinamentos e da luz espiritual que podem trazer-nos estas
podido fazer publicar imediatamente aquela mensagem em cin- mensagens mediúnicas, dotadas de tão grande elevação, que se
co revistas de cinco nações diferentes, Alfa, de Roma; Internati- impõem à razão. É este, precisamente, o caso das mensagens
onal Psychic Gazette, de Londres; Constancia, de Buenos Aires; recebidas por você (...)‖.
La Revue Caödaiste, de Saigon; Revue Spirite Belge, Liège. Entretanto, Ubaldi, consciencioso até ao extremo, ainda du-
Não obstante isso, Ubaldi foi então torturado pelas dúvidas; vida de si mesmo e de sua mediunidade, e pede também, além
sozinho como estava, seu pensamento e sua consciência se re- do parecer do Diretor desta Revista, que o tranquiliza totalmen-
moíam na perplexidade; sente em si o impulso irrefreável que o te, um conselho a Bozzano, que lhe responde: ―Você me pede
arrasta, no entanto ele mesmo procura opor-se com toda a sua conselho sobre se deve continuar ou, ao invés, suspender o
força, com todo o seu ceticismo, com toda a sua racionalidade. exercício de sua mediunidade, orientada nesse sentido. Respon-
Não quer convencer-se de que seja médium, tem medo de se es- do: cada um tem sua própria missão. A minha era a de contribu-
tar iludindo e, puro de coração como é, sente calafrios só ao ir, na medida de minhas forças, para convencer os homens de
pensar que talvez esteja ludibriando os outros. ciência, com base nos fatos; a sua parece ser a de trazer à hu-
268 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
manidade pensante mensagens elevadíssimas, de ordem moral na e superior o guia, usando-o como instrumento, dele se ser-
espiritual, que estão destinadas a tornar-se, um dia, as únicas vindo para a realização de admirável missão, de que agora só
importantes para a evolução espiritual dos povos. Prossiga, por- podemos ver o início?
tanto, em sua missão‖. Os próprios cientistas, sempre prontos à crítica depreciativa
Quase concomitantemente nasce A Grande Síntese, cuja pu- contra o transcendente, não puderam opor-lhe uma só palavra,
blicação foi imediatamente iniciada (janeiro de 1933) em Ali porque ―Sua Voz‖, usando suas mesmas armas, desceu ao nível
dei Pensiero e em Constancia (Buenos Aires), como de dois deles, perfeitamente dentro da lógica e da racionalidade. Muitos
polos que, nos hemisférios opostos, deveriam irradiá-la em tor- mesmo ficaram intimamente impressionados, talvez atordoa-
no de si. Já falamos nesta revista deste maravilhoso e surpreen- dos, pelas afirmações e revelações que ―Sua Voz‖ soube fazer
dente tratado, mas agora, quando está em pleno desenvolvimen- com autoridade seguríssima, resumindo suas próprias conquis-
to a publicação da parte mais propriamente científica – que, por tas e delas partindo. E alguns, os mais sinceros e sem precon-
sua profundidade e importância, é necessariamente menos aces- ceitos, o quiseram mesmo reconhecer e testemunhar. Sem falar
sível à generalidade dos leitores – seja-nos permitido recordar de Bozzano, de quem já falamos e cuja capacidade de julga-
que a finalidade deste tratado é justamente a de falar em parti- mento nesta matéria é irrefutável, basta-nos citar o cientista e
cular à ciência, antes resumindo e depois superando o estado filósofo belga Prof. Schaerer, que nos escreveu: ―(...) A Grande
atual do cognoscível humano. É uma ―nova e mais completa Síntese continua a interessar-me apaixonadamente (...). Julgo
revelação‖, em que se lançam as bases científicas, filosóficas e muito útil demonstrar que as comunicações mediúnicas podem
conceptuais de uma nova sociedade, no entanto, em sua potên- proporcionar trabalhos de tão alto valor racional e científico
cia dominadora, o escrito é frio, objetivo, cientificamente exato. (...)‖; e, no Bulletin du Conseil de Recherches Métapsychiques,
O próprio Bozzano, autoridade máxima, escrevia a Ubaldi: ele mesmo escreveria: ―(...) a interessantíssima comunicação
―(...) o conteúdo de A Grande Síntese já aparece e promete tor- mediúnica recebida por Ubaldi, que é um médium excepcio-
nar-se grandioso, de vez que está de pleno acordo com tudo nalmente dotado para receber comunicações de ordem científi-
quanto ensina ou intui a ciência humana‖; ―(...) está concebida co-filosófica (...), A Grande Síntese trata de uma concepção
em termos rigorosamente científicos e encontra-se perfeitamente monista naturalista de estrutura estritamente científica, cujo va-
concorde com as hodiernas concepções filosóficas, matemáticas lor é indiscutivelmente enorme‖.
e geométricas a respeito do mesmo assunto (...). Esperando reler E ainda o Prof. Dr. Stoppoloni, catedrático de Anatomia
e comentar à altura a poderosa mensagem transcendental, quan- Descritiva, Histologia e Embriologia na Universidade de Came-
do tiver a possibilidade de fazê-lo com a obra terminada‖. rino, que escreveu a Ubaldi: ―(...) Sua magnífica mediunidade
Por volta da Páscoa de 1933 aparece, enfim, a dupla e subli- terá seguramente importância no campo científico e poderá fa-
me ―Mensagem aos Homens de Boa Vontade‖ – ―Mensagem zer revelações científicas da maior importância para nós, espe-
aos Cristãos‖. Lendo-as, não se pode evitar um temor quase sa- cialmente num campo tão obscuro (...). Tudo o que foi publica-
grado; tão elevado é o pensamento, poderosa a expressão, gran- do em Ali del Pensiero, por você, que pouco ou nada sabe de
diosa a forma. Desta vez, o conteúdo é exclusivamente religioso. química, é verdadeiramente surpreendente, porque os conceitos
Esta é uma simples exposição cronológica da afirmação de emitidos são realmente científicos e, portanto, de profundo co-
―Sua Voz‖ no mundo; mas não a transcrevemos apenas a título nhecedor de química (...). Em sua série estequiogenética, é dito,
de crônica, e sim para que, por ela, o leitor possa tirar todas as com clareza, que o número atômico 43, ocupado pelo tecnécio,
conclusões evidentes e altamente instrutivas. com peso atômico 99, deveria ter os caracteres dos corpos aló-
Enquanto as coisas buscadas com mais força e mais tenaz- genos, ou seja do bromo e do iodo, que ocupam o número VII
mente preparadas, rarissimamente conseguem no mundo o êxi- do sistema, e também do flúor e do cloro, do primeiro e do se-
to merecido, um médium desconhecido, sem preparação, cético gundo setenário. Florêncio e rênio, ainda não conhecidos em
por muito tempo de sua própria mediunidade, sem meios e sem seu peso, volume atômico e valência, deveriam ser parentes
apoio, modestíssimo e fugindo de todo desejo de notoriedade, próximos dos alógenos, não excluindo o número 85, que ainda
sem nenhum fim interesseiro, conseguiu ver, em curto tempo, permanece vazio (...). Esta parte está muito bem feita, clara e
suas mensagens, numericamente poucas, fazerem a volta ao extraordinária porque escrita por um leigo (...)‖.
mundo e, mesmo sem nenhuma intervenção sua, difundirem-se O leitor cético ou curioso perguntará então: Mas quem é
rápida e automaticamente, assim como se o fizesse por uma ―Sua Voz‖? Há alguns que, através dos textos das próprias
força secreta própria, que emanava dos próprios escritos. mensagens, acreditam poder atribuir a proveniência direta nada
Deste mesmo médium, rebelde no cumprimento da missão menos que à mais alta das personalidades espirituais, o que pa-
para a qual era impulsionado, saiu aos poucos uma produção ra outros é um absurdo espiritual e racional, por razões que não
em que já se verifica hoje, olhando-se para trás, um programa cabe discutir neste artigo. Bastará, também aqui, trazer a pala-
orgânico definido, perfeitamente lógico, e isto sem que o pró- vra autorizada de Bozzano, que escreveu muito bem: ―(...) é
prio médium o percebesse, pois ele sempre ignorou e ainda ig- melhor, portanto, concluir com as palavras do Prof. Mead a
nora o objetivo a que tende sua produção. Devemos até ser-lhe respeito das manifestações de Confúcio, através do médium
muito gratos pela vida de rígida severidade espiritual a que se Margery Crandon: é mesmo indispensável admitir a interven-
submeteu Ubaldi, em seu foro íntimo, para a exteriorização de ção direta de Confúcio? Qualquer que tenha sido o espírito
seu particular dom mediúnico. comunicante, provou que é um profundo orientalista e um au-
Esse mesmo homem, de cultura e capacidade comum, pro- têntico literato chinês. Repetirei o mesmo conceito a propósito
duz uma obra mediúnica da mais profunda competência em to- deste outro caso, em que se fala de um nome muito mais ex-
dos os campos, de tal forma que ela se dirige, e os faz pensar, celso que o de Confúcio; lembrando, a este propósito, que a
aos mais competentes de cada matéria, embora, ao mesmo tem- personalidade mediúnica de ―Imperator‖ explicara ao Reve-
po, seja vibrante, apaixonada, quase poética. Nessa produção, rendo W. Stainton Moses que, quando se manifestavam perso-
os cientistas acham a solução para os mais árduos problemas nalidades espirituais que forneciam os nomes dos grandes filó-
científicos e os humildes choram de sublime comoção. sofos ou de outras eminentes personagens vividas em épocas
Não é tudo isso, já em si mesmo, uma prova, uma grande remotas, devia entender-se quase sempre que se tratava de dis-
prova. Pode ser somente o homem Ubaldi que tenha em suas cípulos que, não sendo conhecidos e não podendo fornecer da-
mãos os fios de tão emaranhada tessitura? Ou não será preciso dos de identificação pessoal, mas querendo assim mesmo con-
reconhecer – disto estamos convencidos – que uma força exter- correr para dar aos viventes provas positivas da existência de
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 269
um mundo espiritual, manifestavam-se em nome e com o con- A HISTÓRIA DE UM NOVO GRANDE
sentimento de seu grande Mestre, com o qual estavam espiritu- MOVIMENTO ESPIRITUAL
almente em relação por lei de afinidade‖.
E nós acrescentaremos: a verdade é uma só. Por que, en- (Como “Sua Voz” se espalhou por todo o mundo)
tão, personalidades espirituais indubitavelmente e comprova-
damente elevadíssimas como ―Sua Voz‖, por Ubaldi, ou Da Revista The International Psychic Gazette – Londres,
mesmo o ―Mestre‖, pela Sra. Valbonesi, deveriam (ou poderi- NQ 247, vol. 22, abril 1934.
am) falar uma linguagem diferente daquela usada pelos mé- Sinto o dever de informar aos espiritualistas britânicos a
diuns, se eles estão muito próximos de nós? Mas daí, para de- respeito da difusão pelo mundo das produções mediúnicas da
duzir a identidade, seria como dizer que cada pessoa que repe- entidade ―Sua Voz‖ durante os dois últimos anos. Já os leitores
te a palavra de Cristo, fosse o próprio Cristo! Além disso, que da International Psychic Gazette estão familiarizados com ―Sua
necessidade há de tal identificação? Muito bem escreve Ali Voz‖, porque publiquei em suas páginas as duas primeiras
del Pensiero, quando disse que ―ao sequioso, não importava mensagens que recebi, ou seja: a primeira, ―Mensagem sobre o
saber a fonte donde proviera a água‖; o que importava é que progresso do mundo‖ (março, 1932) e a segunda, ―A Aurora
ela fosse pura e cristalina. do Novo Milênio‖ (junho 1934).
Entretanto, ―Sua Voz‖ prosseguirá em sua missão mundial, Outras mensagens chegaram, ainda não publicadas na Ingla-
que agora já está seguramente provada como da mais alta im- terra. Todavia são muito importantes, porque falaram ao mun-
portância. Que cada um de nós queira cooperar no trabalho be- do, e o mundo as escutou. Foram publicadas em quatro idiomas
néfico de sua difusão. e divulgadas em muitas cidades, de Roma a Buenos Aires, de
―Assim é mister, onde quer que se possa‖. Liège (Bélgica) a Saigon (Indochina). Enviadas a altas persona-
Marc'antonio Bragadin lidades, como sua Santidade o Papa e o líder do fascismo italia-
Diretor da Revista Ali del Pensiero, de Milão. no Sr. Mussolini, foram lidas por eles.
A terceira mensagem, ―Mensagem do Perdão‖, escrita em
Nota da Redação – Este artigo já estava na tipografia,
2 de agosto de 1932, aniversário do famoso ―Perdão‖ de São
quando soubemos que a Revue Spirite Belge publicará breve
Francisco de Assis, espalhou-se pelo mundo por sua própria
um estudo sobre A Grande Síntese e sobre a mediunidade de
força, sem qualquer interferência de minha parte. Milhares de
Ubaldi. Outro estudo, sobre o mesmo tema, foi anunciado pe-
exemplares foram impressos e distribuídos gratuitamente no
lo Prof. Schaerer, no Bulletin du Conseil de Recherches Mé-
Brasil e reproduzidos nos grandes jornais do Rio de Janeiro.
tapsychiques e no periódico Pour lá Vérité; todos os periódi-
Tenho que assinalar que minha mediunidade irrompeu subi-
cos são belgas.
tamente, em fins de 1931. Na época da ―Mensagem do Perdão‖,
Além disso, uma análise laudatória e penetrante do mesmo
tinha sobre ela muitas incertezas e dúvidas. Pensei de início que
assunto, com breve resumo de alguns capítulos da Síntese, foi
estivesse louco e estivesse sendo obrigado por desconhecida
feita pelo Prof. Trespioli em seu livro Os Fenômenos, aparecido
por estes dias. Entre outras coisas, afirma Trespioli: ―Esta obra força, a que não podia resistir, a dizer mentiras.
profunda e cheia de conceitos, que produz certa sensação de Devo citar o fato de que o médium inglês, Miss Marjorie I
surpresa e de verdadeiro atordoamento, escrita por Ubaldi sem Rowe, de Londres, enviou-me na primavera de 1932 – embora
o saber e sem que o soubesse, pode ser submetida à crítica e à não me conhecesse nem se relacionasse comigo, nem mesmo
admiração do mundo dos doutos; estes aí acharão, sem dúvida, por correspondência – uma maravilhosa mensagem de ―Impera-
‗coisas conhecidas‘, mas que Ubaldi ignorava, e das coisas co- tor‖, descrevendo pormenorizadamente minha vida e coisas que
nhecidas verão deduções e conclusões ‗desconhecidas‘, talvez só eu conhecia, predizendo uma missão mundial que me cabia
jamais, nem sequer imaginadas pelos competentes... Não co- executar, em obediência à ―Sua Voz‖; tudo confirmado, embora
mento e muito menos julgo seu mérito; não saberia fazer. Mas naquela época parecesse impossível.
o fato derrota indiscutivelmente as tolas afirmações de todos Quase ao mesmo tempo, o Sr. Bozzano escrevia-me da
aqueles que, querendo rabiscar sobre fenomenologia, tomam Itália, dizendo que minha mediunidade era semelhante à de
como ‗modelos‘ as ingenuidades e tolices desfraldadas pela Miss Cummins (médium de Patience Worth) e que eu devia
pseudo-mediunidade de neuróticos. Pode ser que a transmissão prosseguir, porque ele esperava de minha obra algo assim
por meio de Ubaldi nem sempre seja perfeita, o que não impede como os ―Spirit Teachings‖, de Stainton Moses (carta de 1 o
que abundem as boas qualidades em A Grande Síntese, de tal de junho de 1932).
forma que lhe conferem real valor científico‖. Outras mensagens mediúnicas (inclusive uma de Mrs.
Chega-nos também um artigo de D'Aragona, ―Os cantos de Smiles, de Roma), todas espontâneas e provenientes de pes-
um cisne‖, que brevemente publicaremos, a respeito da difusão soas a mim desconhecidas, falavam da grande missão dessa
de ―Sua Voz‖ na América do Sul, artigo que apareceu a 12 de entidade ―Sua Voz‖.
janeiro, no Correio da Manhã, o maior diário do Brasil. Após a publicação da ―Mensagem do Perdão‖, pedi a opini-
Julgamos que era nosso dever acrescentar todas estas notí- ão sobre ela do Sr. Bozzano, que me respondeu: ―Estupendo!
cias ao artigo acima, mostrando ao leitor que todos estes fatos Há trechos tão sublimes em sua grandeza cósmica, que infun-
novos e inesperados, acontecidos enquanto a revista estava no dem quase uma sensação de sagrado temor‖. Esta mensagem eu
prelo, no breve espaço de uma semana, não podem deixar de a escrevera desprevenido e sob profunda emoção.
surpreender-nos como esse movimento se desenvolve e cami- As duas últimas mensagens – ―Mensagens aos cristãos‖ e
nha com a regularidade e a segurança das coisas poderosamente ―Mensagem aos homens de boa vontade‖ – são de caráter reli-
predispostas e predestinadas. O que vem confirmar o que foi di- gioso e apareceram na Páscoa de 1933, XIX Centenário da
to no artigo precedente. Morte de Cristo.
Enquanto no prelo, soube-se ainda que saíram no Correio Termina aqui o ciclo destas mensagens, fortes alertas ao
da Manhã, em 2 de fevereiro, outros dois artigos: ―O ciclo me- mundo. Só mais tarde compreendi seu plano de desenvolvimen-
diúnico‖ e ―Ruit Hora‖, e que, sobre o mesmo assunto, aparece- to, que antes não conhecia. É muito lógico e toca a fé, a políti-
rá longa série de artigos, não só no Correio da Manhã, como no ca, a religião, o coração e a inteligência. Foram lançadas as ba-
Reformador – Revista de Espiritismo Cristão, no Mundo Espíri- ses de um grande movimento sem que eu nada percebesse. Es-
ta e nos melhores órgãos da imprensa brasileira. tas mensagens fazem parte da Obra.
270 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
A GRANDE SÍNTESE utilizada como novo e poderoso meio de investigação científi-
ca e, assim, este novo método de intuição, usado por mim,
Em 1932 principiei um novo livro. Intitula-se A Grande Sín- pode conduzir a descobertas surpreendentes, que permanece-
tese e foi classificado pelo Sr. Bozzano como ―poderosa men- riam ocultas para sempre se só usássemos nossos atuais méto-
sagem mediúnica (...), concebida rigorosamente de acordo com dos científicos. É talvez esse estudo que se propõem fazer os
a ciência e as modernas concepções filosóficas, matemáticas e Professores Dr. Schroder, de Berlim; Richet, de Paris; e Scha-
geométricas‖. É realmente um tratado de aproximadamente 300 erer, de Bruxelas. Tenho muita satisfação em dar toda e qual-
páginas, das quais cem já foram publicadas em italiano, na Re- quer informação aos cientistas ingleses ou de outros países, e
vista Ali del Pensiero, e em espanhol, em Buenos Aires, na Re- me coloco à sua disposição.
vista Constancia. Está sendo preparada uma edição em portu- Tudo isso nos leva a crer que este movimento está, realmen-
guês e em outras línguas. te, ascendendo do nível dos fenômenos materiais ou testes a um
Constitui esta obra não só a síntese de toda a ciência e co- plano espiritual mais alto, em que a mediunidade pode signifi-
nhecimento humano, mas também uma ―Revelação‖ mais com- car descobertas, revelações de novas verdades para o progresso
pleta, cujo objetivo é assentar os alicerces de uma nova socie- da humanidade, tanto no campo moral como no científico.
dade – a Nova Civilização do Terceiro Milênio. A Entidade fala Terminarei este artigo traçando o significado do desenvol-
com profundo conhecimento de tudo e resolve harmonicamen- vimento de ―Sua Voz‖ no mundo. Temos de admitir que, embo-
te, por um único princípio, todos os problemas existentes, desde ra eu, como médium, tudo desconheça de antemão e simples-
a constituição da matéria até a formação da personalidade hu- mente siga uma inspiração de momento a momento, todas as
mana; desde a evolução dos sistemas siderais até a evolução coisas se desenvolveram como uma construção na qual cada
das formas da vida e da alma humana; desde a origem da gravi- pedra está em seu lugar exato, em um movimento mundial con-
tação e derivação de todas as forças, até os problemas psicoló- creto de grande importância científica e social, durante os dois
gicos, religiosos, sociais e econômicos. últimos anos, em que minha mediunidade está em ação.
Citarei pouquíssimos fatos. O Sr. Maurice Schaerer, o tão Se eu não o compreendo é porque a causa deste efeito inte-
conhecido cientista e filósofo belga, disse em seu Bulletin de ligente deve estar alhures, em outro mundo, que não vemos,
Recherches Métapsychiques del Belgique (Bruxelas, outubro, diferente do nosso. E esse movimento caminha por si só; nada
1933): ―A Grande Síntese é uma concepção monística naturalis- sei sobre seu futuro e devo confessar que, querendo ou não,
ta, rigorosamente científica, cuja importância é muito grande‖; duvidando ou não, esta força me arrasta e me arrastará aonde
dizendo-me também, numa carta endereçada a mim, que a lê ela bem quiser. Tudo vem a seu tempo próprio e em seu devido
apaixonadamente. Brevemente ele publicará um estudo crítico lugar, independente de minha vontade e de minha compreen-
de A Grande Síntese e da minha mediunidade, em seu ―Bulle- são, e o mais admirável é que todas as estradas estão abertas
tin‖ e na Revista Pour la Vérité. O Sr. Lhomme fará o mesmo para o avanço de ―Sua Voz‖. Não posso deixar de me pergun-
em sua Revue Spirite Belge, de Liège. tar aonde conduzirá o mundo e a mim, se continuar assim.
As revistas espiritualistas italianas escreveram ultimamente Diz a Entidade, em A Grande Síntese, que esse tratado é
sobre A Grande Síntese, e o novo livro de Trespioli sobre Espi- uma nova revelação, que conduz à fundação da Nova Civiliza-
ritismo Moderno trata dela em minúcia. A Síntese será breve- ção do Terceiro Milênio. Se eu dissesse isso por mim mesmo,
mente publicada em português, no Brasil, e está sendo publica- eu me consideraria louco. Mas as melhores revistas e os cientis-
da em espanhol, em Buenos Aires. A imprensa espiritualista do tas do mundo o dizem e os povos nisso acreditam.
mundo está tomando conhecimento desta nova produção. Estes são os fatos. Em cada semana ocorrem novos aconte-
Não escrevo isto para fazer propaganda minha, que não me cimentos. Nos últimos dois meses, o Brasil inteiro repentina-
interessa, mas porque é meu dever divulgar ―Sua Voz‖ e infor- mente se entusiasmou, e sabemos que, lá, 40 por cento da popu-
mar aos espiritualistas britânicos um fato muito importante no lação é espiritualista. Artigos vêm sendo publicados agora no
mundo espiritual e também no científico, religioso e social. Se maior jornal do Rio de Janeiro, o Correio da Manhã, onde di-
qualquer editor inglês quiser interessar-se na publicação desta zem que ―Sua Voz‖ está ligada ao Cristo e que o Brasil é o país
obra na Inglaterra, eu mesmo poderia traduzi-la, o que lhe traria escolhido para a primeira divulgação da nova revelação ao
bom proveito, pois disso jamais pedirei pagamento. mundo. Muitas são as revistas espiritualistas da América do Sul
Não me posso deter aqui na descrição deste único fenômeno que o repetem. As mensagens são impressas aos milhares e dis-
mediúnico. Direi apenas que não entro em transe e que sinto es- tribuídas gratuitamente.
se pensamento diferente, com uma espécie de novo sentido, co- Tenho que admitir estes fatos e que o movimento, tanto
mo dizem, uma espécie de sensibilização e recepção de ondas- quanto o posso compreender, é muito mais do que um simples
pensamento, vindas do espaço. Recebo, em geral, somente à noi- fenômeno de mediunidade e significa mais do que qualquer
te, mais ou menos de 21 horas às 2 da manhã, quando, embora conjunto de literatura mediúnica. Seu objetivo é salvar o mundo
não esteja dormindo, sinto que minha consciência normal é de sua atual crise moral, religiosa, social e econômica.
abandonada e sou arrastado por força desconhecida. Não a vejo Pietro Ubaldi
nem toco, mas a sinto assim como um pensamento que está em
minha mente, sentindo-a no meu coração à semelhança de força O FIM DA SÍNTESE CÓSMICA (A Grande Síntese)
e energia, através de todo o meu sistema nervoso. Sei que ela
tem todas as características de uma personalidade humana. Da Revista Constancia – Buenos Aires, ano LX, no 2495,
Nesta estrutura mental, outro ―eu‖ (another self) desperta setembro de 1937.
em mim para sentir esta entidade, e compreendendo as coisas No próximo número terminará a publicação desta monu-
não através da razão, mas da intuição. Ou seja, vejo a verdade mental obra que, durante vários anos, vem aguçando a mente
diretamente; tenho a sensação da verdade. Por outro lado, mi- dos estudiosos e espiritualistas do mundo.
nha personalidade humana é hesitante, tímida e desalentada. Obra de esforço gigantesco. O homem comum, e mesmo a
O estudo do fenômeno é outra parte de minha Obra. Escrevi generalidade dos espiritualistas, não pode chegar a compreen-
um artigo sobre ele para a revista Zeitschrft fur Metapsychische der, entretanto, o tormento que representa uma recepção medi-
Forschung, de Berlim. única dessa natureza, tão extensa, tão densa de pensamentos e
O fato novo, que surge no estudo deste tipo de mediunida- conceitos novos. Mister se torna um constante e fatigante traba-
de exclusivamente inspirativa e intelectual, é que ela pode ser lho de contenção e de tensão ao mesmo tempo. De contenção,
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 271
para impedir que forças materiais, demolidoras do ambiente, al- trabalhos mediúnicos, e o Prof. Bozzano sugeriu ao desconhe-
terem o sistema neuro-receptor do médium, e de tensão, para cido médium que se dirigisse a mim.
manter sem desvio o fio através do qual desliza a corrente Foi assim que os invisíveis fios do ―acaso‖ me puseram em
transmissora, de sutilíssima potência, dolorosamente incitante. contato com Pietro Ubaldi e assinalaram o início de uma cola-
Obra monumental de revelação, de ensinamento insuspeito, boração que, sem dúvida, trouxe frutos notáveis.
profundamente científico e eminentemente moral – essencial- Li algumas das ―mensagens‖ enviadas por Ubaldi e fiquei
mente moral – porque do conteúdo de sua inesgotável sabedoria impressionado com o conteúdo profundo delas, e mais ainda com
transluz a pureza de uma elevação que assombra, aguça e incita a poderosa ―nota‖ que, mesmo através das incertezas daqueles
a alcançá-la, impele a ascender, obriga a superar-se, emergindo primeiros escritos, vibrava inconfundível e majestosa. Enquanto
da imperfeição humana. organizava alguns trechos daquelas ―mensagens‖ para publicá-
Não há assunto que não seja tratado, nem tema que não seja los na data de 28 de outubro de 1932, Ubaldi me acenou, pela
elucidado, nem fenômeno que não mereça ser analisado desde primeira vez, com um tratado mais importante que se sentia im-
sua origem e fase íntima, recôndita, até à evidência das conse- pelido a escrever. Em sua carta, dizia-me textualmente: ―Será um
quências derivantes. verdadeiro e grande tratado dos mais profundos problemas da ci-
Certamente não iremos comentar o conteúdo científico des- ência, da origem e evolução da matéria e da vida. Será um estudo
sa obra, por nos faltar tempo e preparação – para isso seria mis- do processo genético do cosmos, uma síntese completa do co-
ter um homem equivalente à grandeza e profundidade da mes- nhecimento, desde a matéria até às mais altas formas de consci-
ma – mas temos que nos arriscar a confessar que a quantidade ência. Aí estará resumido o cognoscível humano e o que a huma-
de novos e estranhos conhecimentos que expõe e abarca, difi- nidade possui mediante revelação, para que este edifício seja, no
cilmente será compreendida pelo nível mental atual dos ho- momento atual de desenvolvimento científico, integrado e orga-
mens, pois os conceitos que encerra não se acham ainda ao al- nicamente fundido numa síntese completa. Aí estarão expostas
cance da compreensão geral, nem mesmo dos cientistas, que fi- várias teorias, como a dos movimentos vorticosos, da estequio-
carão perplexos e desorientados e, portanto, preferirão rechaçá- gênese, do físio-dínamo-psiquismo e outras, com técnica e estilo
los como insustentáveis diante do que já constataram. científico. Haverá um estudo sobre a quarta dimensão aplicada ao
Isto porque o saber humano se acha num estado crepuscular tempo e à consciência humana. Tratar-se-á de umas cem páginas,
por enquanto, todavia isto não deve constituir motivo para re- e haverá alguns esquemas para imprimir (...)‖.
traimento e muito menos para recusa de tudo o que é novo, pois Nas palavras dessa longínqua carta, os leitores reconhece-
se algo de novo chega até nós – como é o caso desta Mensagem rão o resumo de uma parte da obra hoje terminada. Mas, na-
– é porque já há princípios mais evoluídos, que tornam aptos os quela época, a proposta representou para mim uma grave preo-
seres para maiores e mais elevadas compressões. cupação. O programa era, sem dúvida, atraente, mas quem o
Então será apenas questão de tempo compreender o que é representava era uma pessoa desconhecida, de longe, com a
novo na obra de Ubaldi; questão de longas horas de meditação, qual eu apenas trocara algumas cartas. Da obra só estavam es-
de dias ansiosos de espera, até que o substrato espiritual de nos- critas, por enquanto, algumas páginas de introdução, nem o
sa mente abra suas portas para as ressonâncias extraterrenas e manuscrito estaria pronto tão cedo, porque Ubaldi, sendo pro-
aqueles conhecimentos se identifiquem com nosso sentimento e fessor de língua inglesa no Ginásio de Gúbio, não tinha nem
se encrostem em nosso entendimento. tempo nem possibilidade de pôr-se nas condições especiais de
Essa obra, portanto, é uma antecipação em nossa evolução, ambiente e de espírito requeridas por sua mediunidade especi-
antecipação que prepara desde já uma modificação total do es- al, a não ser no período das férias de verão. E mesmo que o
tado ainda materializado demais do saber humano. início fosse de fato promissor, teria Ubaldi a força e a capaci-
Como espiritistas, devemos sentir-nos enaltecidos pelo fato dade? Perduraria sua faculdade inspirativa, para levar a cabo
de que esses conhecimentos tenham chegado através de um dos um programa que se anunciava tão grandioso? (Aliás, esse
fenômenos mais discutidos e mais combatidos da atualidade, programa, como o podem verificar os leitores, teve desenvol-
porque ele dará, afinal, por ser incontestável, carta de cidadania vimentos muito mais amplos e imprevistos). Aceitar, nessas
ao processo espírita. condições, entre tantas dúvidas, significava assumir uma grave
Chegue, portanto, nossa gratidão ao abnegado receptor que, responsabilidade diante dos leitores de Ali del Pensiero.
―através de seu amor e de seu martírio‖ (como diz Sua Voz) No entanto aceitei... Assim nasceu A Grande Síntese. Acei-
tem sabido derramar, por antecipação, muitos benefícios e deu tei porque senti enraizar-se em mim, de modo inexplicável e
novo impulso ao saber humano, apressando sua ascensão. providencial, a certeza de que a obra superaria todas as dificul-
Buenos Aires, 16 de setembro de 1937 dades e chegaria a um termo feliz, e que Ali del Pensiero tinha
(a) F. Villa a tarefa de publicá-la.
Não é com indiferença que hoje recordo todas as ânsias e
NASCIMENTO DE A GRANDE SÍNTESE preocupações, as dificuldades de toda espécie, as incertezas, os
esforços defrontados e superados, durante quase cinco anos de
Da revista Ali del Pensiero – Milão, outubro e novembro de ininterrupta publicação em série de A Grande Síntese. As ―cem
1937. páginas‖ previstas inicialmente, tornaram-se, ao caminhar, qua-
Saíra o primeiro fascículo de Ali del Pensiero há poucos di- trocentas. O manuscrito, que deveria estar todo pronto no verão
as apenas, quando – a 15 de agosto de 1932 – chegou-me uma de 1933, ocupou, ao invés, três verões inteiros, e só foi termina-
carta de um senhor desconhecido, de uma pequena cidade da do no outono de 1935. Durante esses anos, além disso, o próprio
Úmbria, o qual se declarava dotado de uma forma de mediuni- Ubaldi atravessou violentas crises espirituais, ligadas com o de-
dade inspirativa que começara a afirmar-se justamente naqueles senvolvimento intrínseco de sua sensibilidade pessoal, mística e
meses, com algumas ―mensagens‖ de conteúdo espiritual. Essas inspirativa, que descontrolaram seu sistema psicológico com
―mensagens‖ tinham sido imediatamente apreciadas no exterior profundos desencorajamentos e desorientações. E mais, o esta-
e publicadas em várias revistas estrangeiras, enquanto que na fante trabalho psíquico e físico – efeito e condição, ao mesmo
Itália eram quase desconhecidas, pela falta de um periódico que tempo, daquele estado de ânimo necessário para a ―audição‖
se interessasse por publicações dessa ordem. Mas, justamente inspirativa – provocaram várias vezes nele o terror de não poder
naquele tempo – coincidência ou acaso? – nascera Ali dei Pen- mais resistir, com as consequentes e agudíssimas crises nervosas
siero, que em seu programa incluía também a divulgação de e o esgotamento físico, até o ponto de despertar sérios cuidados.
272 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
A correspondência bastante volumosa que troquei com A palavra ―bastante‖, usada acima, não pareça irreverência
Ubaldi naqueles períodos atormentados, lança muita luz sobre a contra esse estudioso, que despertou toda a nossa admiração.
excepcional psicologia do homem, sobre as modalidades intrín- Com a palavra ―bastante‖ queremos, em nosso ponto de vista,
secas através das quais ele pôde tornar-se instrumento para a sublinhar as seguintes observações: no oceano das noúres,
produção de uma obra tão vasta, e sobre as ―fontes‖ reais desta. Ubaldi se abandona, ao passo que nós ousamos afirmar que,
Mas talvez seja interessante que isto constitua o objeto de um no oceano das noúres, é indispensável saber escolher o pró-
exame especial, em próximo artigo. prio roteiro. Ele se entrega confiante às correntes que sente
Por estes breves relances, compreenderão os leitores o serem benéficas, enquanto acrescentamos a advertência de
grande alívio que experimentei – e o próprio Ubaldi comigo – que é mister, ao invés, saber avaliá-las bem, pesá-las, escolhê-
quando me chegou às mãos o último capítulo de A Grande Sín- las, antes de seguir essas correntes. Ele, atingindo o inefável,
tese, obra de tão admirável organicidade e complexidade e, no sem dar-se conta de ―como‖ o atinge, nele mergulha, dele ―re-
entanto – pareceria impossível – composta com tantas interrup- cebe‖ conceitos, ao passo que nos permitimos dizer que é ne-
ções, em condições de espírito e de tempo tão diferentes, sem cessário, às vezes, saber manter-se no inefável, saber mergu-
que seu ―autor‖ soubesse com segurança qual seria o conteúdo lhar ―à vontade‖ no ambiente pré-escolhido, saber discernir
de cada capítulo que iria escrever. Bastaria conhecer de perto a entre domínio e domínio de conceitos. Eis a diferença: não
atmosfera particular em que nasceu essa obra, para convencer- ―receber‖, mas ir buscar. É isso: faz-se necessário justamente
se, ou ao menos para suscitar a dúvida, de que em redor dela saber ir ao inefável, com o propósito definido de colher aí ora
houve algo de incomum, algo que verdadeiramente transcende esta flor, ora aquela, e de colher voluntariamente os arcanos
os habituais métodos, concepções e obras humanas. que ele encerra para as idades vindouras.
Hoje que A Grande Síntese terminou a publicação em série e Dissemos ―é preciso‖ não só porque Ubaldi, no oceano das
aparece reunida num volume, lançado por Ali dei Pensiero sob noúres, é um indefeso, mas também para ajudar o encaminha-
os auspícios do editor Hoepli, seja-me permitido agradecer a mento das faculdades de percepção do hiperfísico para o co-
Ubaldi pela ingente prova que ele superou, tendo por único fim nhecimento da natureza, dos objetivos, do poder do próprio hi-
a esperança de fazer um trabalho útil aos ânimos sofredores de perfísico, e colocar muitos estudiosos em grau de não só perce-
nosso tempo. Ainda hoje, Ubaldi pede para ser esquecido como ber as noúres, mas também saber defender-se do acaso, ou va-
―autor‖, para ficar na sombra, a fim de que só a ideia, só a obra, ler-se delas, ou subjugá-las se não forem dignas.
de que ele deu testemunho, atraiam a atenção dos leitores. Estamos verdadeiramente satisfeitos de que nossos conhe-
A palavra ―Fim‖ apareceu sob a última frase da obra. Mas cimentos a respeito do aparelho divino possam oferecer aos es-
esta não ―terminou‖. Terminou sua impressão, não a missão. A tudiosos não só a explicação do magnífico fenômeno Ubaldi,
grande síntese que o livro quer realizar só agora é que começa. mas também os conhecimentos necessários para superar a me-
A semente foi apenas lançada no sulco e brotará e se multipli- diunidade passiva e chegar à conquista do hiperfísico em plena
cará. Abre-se agora a fase de elaboração, de difusão e de dis- consciência.
cussões, mesmo entre o público profano. Muitos se preocupa- A purificação que Ubaldi compreendeu ser indispensável e
rão só com o ―fenômeno‖ através do qual A Grande Síntese foi que fortemente impõe a si mesmo, é sem dúvida fundamental
produzida. Outros deter-se-ão na letra da obra e pôr-se-ão a ca- para alcançar a percepção de escalas vibratórias mais sutis,
çar supostas falhas ou lacunas. Outros, ainda, descuidarão tudo mas, como o organismo humano é bem mais importante em su-
isso e procurarão penetrar a essência mais escondida, unica- as partes hiperfísicas do que nas físicas, já foi formulada com-
mente onde reside o valor real da obra. pletamente uma doutrina de treinamentos para colocar o estudi-
Muitas partes dela, aliás, parecem mais dirigidas aos ho- oso na possibilidade de fazer vibrar suas partes hiperfísicas em
mens do futuro que aos de hoje. Mas as verdades profundas que escalas cada vez mais puras, mais transubstanciadas, de modo
lá estão elaboradas, esclarecidas, reveladas, não podem ter me- que possam vibrar por afinidade, por harmonização, limpida-
didas de tempo. O caminho evolutivo traçado por elas está todo mente, em sintonia com aquelas que o inefável cósmico emana
estendido para o futuro. Cabe ao leitor saber segui-las até ao continuamente.
ponto mais avançado possível. A ciência da percepção do hiperfísico já está formulada, já
O tempo, inexorável demolidor de obras superficiais, poupa lançou suas bases, e sobre elas ergueu uma primeira e esquemá-
de exaltar aquelas que têm verdadeiro valor substancial. tica formulação de leis.
(a) Marc'antonio Bragadin Um dos campos que os estudiosos de biosofia se esforçam
por iluminar já foi plenamente aprofundado pelo que escreve-
O FENÔMENO UBALDI mos e que estamos sempre prontos a esclarecer, com os conhe-
(Examinado segundo a ciência do aparelho divino) cimentos relativos ao ―aparelho divino‖. Damos, pois, à nova
―ciência do além‖ a licença de exprimir-se.
Da revista Ali del Pensiero – Milão, dezembro de 1937. O homem está unido ao cosmos todo mediante um filtro,
A voz corrente é unânime e não podia deixar de sê-lo: as um verdadeiro ―transformador‖ hiperfísico, que tem a função
obras de Ubaldi são estupendas. E queremos acrescentar uma de captar primeiro e depois transformar as forças cósmicas em
pedra à coroa de louvores oferecida pelo mundo a Ubaldi, di- forças de alcance humano.
zendo que o valor real do fenômeno consiste no próprio Ubal- Esse transformador – o ―aparelho divino‖ – está colocado
di, que soube elevar toda a sua vibração interna à realeza da- ao alto da cabeça de todo homem e é o produto de turbilhão de
quelas captações. forças hiperfísicas individuais e de outras naturezas.
O fenômeno Ubaldi é – pelo que nos consta – uma das mai- Como o descobrimos, isto dissemos alhures; mas, para evi-
ores conquistas no fato de percepção hiperfísica, porque Ubal- tar mal-entendido àqueles estudiosos que confundem o ―apare-
di, mesmo não conhecendo a ―ciência do além‖, conseguiu to- lho divino‖ com os ―Chacras‖ aos quais ele está ligado, aqui
davia libertar-se das encruzilhadas da passividade mediúnica e acrescentamos que a glândula pineal do cérebro – que muitas
manter-se bastante desperto no oceano das noúres. vezes é indicada como o órgão receptor das noúres – é a con-
Estabelecendo um paralelo, embora banal, Ubaldi pode ser traparte física do Chacra que está colocado no alto da cabeça, e
comparado a uma criança prodígio que faz arte mesmo sem sa- não a contraparte física do aparelho divino; o órgão receptor
ber o que seja arte; Ubaldi conseguiu magnífica conquista no das noúres é pois o aparelho divino, e não a glândula pineal;
campo da ciência, mesmo sem conhecer a ciência do além. esta tem uma função auxiliar, útil quando as forças já estão no
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 273
corpo físico, mas não tem a função especial de ―receber‖, pois tanto, entre os dois, é preferível o primeiro, porque permite al-
esse trabalho é apenas hiperfísico, no aparelho divino, que é cançar a fonte mergulhados na própria corrente. Isto dá ao ex-
também hiperfísico. perimentador uma colheita mais completa de conhecimentos, e
O aparelho divino não tem – repetimo-lo – contraparte físi- asseveramos que, quando Ubaldi se acha naquela zona de con-
ca; ele é um verdadeiro e próprio órgão todo hiperfísico, é um ceitos, da qual descreve a poderosa vastidão, ele aí chegou –
vórtice turbilhonante de matérias hiperfísicas, dúplice em sua mesmo não conhecendo sua técnica – por meio da primeira des-
função: com uma de suas partes transmite ao hiperfísico as tas possibilidades; quando, ao contrário, seu coração mergulha,
emanações humanas, com a outra transmite ao organismo hu- perdendo-se a si mesmo, nas sublimes bondades do reino ilimi-
mano as emanações do hiperfísico. O turbilhonar destas forças tado de Deus, ele – mesmo não conhecendo sua técnica – va-
produz como efeito dois vórtices, cuja energia cinética lhe leu-se da segunda de suas possibilidades.
agrega as matérias, produzindo a impressão de duas formas Exorbita do âmbito de um artigo dizer como seja possível
cônicas, com vértices opostos, compenetrados e coexistentes, atingir a conquista e o conhecimento das correntes hiperfísicas,
fundidos, irradiantes. aliás isto seria apenas repetir o que dizem nossas obras; o im-
Cada homem tem no alto da cabeça um Chacra (classificado portante é apenas apontar hoje aos estudiosos o caso de Ubaldi
em nossas obras com ―N. I‖) e cada homem tem, ligado a ele, como caso-tipo para ser tomado como modelo de uma liberta-
uma antena turbilhonante cônica, que se lança ao hiperfísico. ção natural do jugo da mediunidade, por maturidade evolutiva
Em Ubaldi, esse ―cone‖ deve ser, por certo, resplandecente conquistada, e prender a atenção dos estudiosos de biosofia na
e rutilante, dotado de maravilhosa potência de expansão. Mas ciência do aparelho divino, mediante a qual, além da libertação
nem todas as pessoas o tem assim; apenas os fatores evolutivos consciente da mediunidade, podem ser feitas tantas conquistas
dão esse caráter ao aparelho divino. Quanto mais adiantada é a maravilhosas no campo do hiperfísico.
evolução humana, tanto mais permite ao cone aberto para o al- (a) Emma Tedeschi e Mário Brandi
to, o do aparelho divino, que funcione em todas as sucessivas
dimensões, ainda ignoradas pela massa. A GRANDE SÍNTESE
As forças que partem do Chacra colocado ao alto da cabeça PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ITALIANA
de Ubaldi, lançadas, sem que ele o saiba, ao incógnito hiperfísi-
co, produzem o ―cone‖ aberto em direção ao alto, do seu divino A Grande Síntese, 1a edição, Editor Ulrico Hoepli – Milão,
aparelho, o seu ―cone‖ pessoal. Sem dúvida, esse cone lança 1937.
para o desconhecido belíssimas e elevadas vibrações, de natu- A Grande Síntese é hoje oferecida ao público italiano reu-
reza nobre e de exímia finura. Mesmo não conhecendo os mei- nida em volume, depois de haver aparecido em fascículos em
os científicos para produzir conscientemente o fenômeno, Ali del Pensiero, revista de Biosofia, de Milão, e de ter susci-
Ubaldi sabe colocar esta parte de seu aparelho divino, ainda tado vivo interesse, não só na Itália, mas de modo notável
desconhecido a ele, em sintonia com escalas vibratórias que também no estrangeiro. Tanto assim que, desde o início, as re-
não têm atributos pessoais, porque não provêm de instrumentos vistas Constancia de Buenos Aires e Reformador do Rio de
pessoais; estas escalas vibratórias lhe chegam de um vórtice de Janeiro empreenderam sua tradução e publicação, enquanto o
forças hiperfísicas, quase sempre de natureza cósmica ou de na- Correio da Manhã, o mais importante diário do Brasil, divul-
tureza super-humana (mesmo que ele não as perceba como pro- gou grande parte numa seção especial. Agora estão para apare-
venientes de seres super-humanos). cer em volume, também, a edição espanhola em Buenos Aires
No elemento superior do aparelho divino (o que se abre para e a portuguesa no Rio de Janeiro, enquanto se está fazendo a
baixo) de todos os homens, giram vorticosamente correntes hi- tradução para outras línguas.
perfísicas de natureza gloriosa; mas, como o outro elemento, o Portanto querer apresentar esta obra seria fora de propósito,
que se abre para o alto, não está nem sabe colocar-se em sinto- uma vez que sua primeira edição é lançada – caso bem raro –
nia com elas, o ser humano não as percebe. Em Ubaldi, ao in- depois de já haver ela percorrido muitas estradas pelo mundo, e
vés, com a luz da ―ciência do além‖, vemos um ser humano cu- de seu eco já se ter feito ouvir em todos os principais centros
jo elemento inferior do aparelho divino – o que se abre para o europeus e sul-americanos, ultrapassando, por sua própria for-
alto – está dotado da possibilidade de colocar-se em sintonia ça, fronteiras e oceanos. Além disso, a vastidão e profundidade
com as vibrações do elemento superior, que continuamente ir- dos conceitos abarcados em A Grande Síntese se tornam impos-
radia emanações cósmicas. sível de abordá-los em uma breve introdução, que só tem por
As grandes inspirações chegam todas por esse caminho e objetivo a sintetização do conteúdo daquela obra.
assim sempre chegaram e sempre chegarão, mas os homens não Este livro quase não é filho de nosso tempo, não só por sua
conheceram, antes da ―Dispensação‖, o órgão hiperfísico recep- ousada e avançada concepção, como também porque não se
tor e sua respectiva técnica; o apogeu que todas as escolas eso- dobra ao apressado e míope hábito hodierno, que julga as obras
téricas atingiram foi a ciência dos Chacras, ao passo que a ciên- pelo estilo e pela forma, em vista da incapacidade de penetrar
cia do aparelho divino representa a sabedoria sucessiva, a ―do- sua essência. Não é apenas uma síntese doutrinária de ciência
se‖ seguinte do arcano revelado, oferecido pelas forças evoluti- humana, nem um simples sistema filosófico. Sua substância su-
vas ao mundo, a fim de que este penetre as ciências de amanhã: pera todas essas aparências, das quais emerge em todo o seu
as ciências do hiperfísico. eterno esplendor, de suprema realidade vital.
Só conhecendo esta prodigiosa ciência do aparelho divino Não é possível, pois, analisar esta obra com os métodos ha-
podemos responder à pergunta insolúvel sobre o que sejam as bituais da crítica douta, nem trazê-la para as tradicionais cate-
noúres que Ubaldi percebe. As noúres são as forças vorticosas gorias do saber, já que ela transcende e completa os conheci-
que lhe provêm do elemento superior de seu aparelho divino, e mentos atuais. É uma vibração do pensamento irradiado pelos
lhe podem chegar porque ele, com o trabalho de purificação superiores planos conceptuais, embora necessariamente cons-
que se impôs, coloca, sem o saber, o próprio aparelho divino trangido nos limitados esquemas das palavras; é força viva, que
naqueles ―planos‖, onde a vibração é impessoal, gloriosa, ine- opera no profundo da alma humana. É doutrina em seus ele-
fável. E aqui podemos dizer mais: a percepção de uma corrente mentos, é fé em seu conjunto.
hiperfísica pode ocorrer quer seguindo-lhe a corrente, penetran- Por isso A Grande Síntese tem uma força própria, que a
do em seu centro, quer separando uma seção. Ambos os modos fez e a fará caminhar por si mesma no mundo, espontanea-
são possíveis com o uso consciente do aparelho divino, no en- mente. Força que transparece através de um estilo e de uma
274 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
entonação desusados, que talvez poderão desconcertar o leitor trabalho, que foi sintético e analítico, universal e individual,
novo. Que ele não pare, todavia. Penetre seu texto como cons- concepção abstrata e vivida, obra de pensamento e de amor, tu-
trução conceptual racional e objetiva do todo. Depois, se qui- do sustentado e fundido numa finalidade de bem.
ser, poderá indagar a respeito do ―fenômeno‖ e de sua gênese. A primeira ―Mensagem de Natal‖ nasceu no Natal de 1931.
Por que A Grande Síntese, independente da substância que a Este prefácio escrito no Natal de 1938 celebra o sétimo aniver-
anima e dos objetivos visados, é também o ―fenômeno Sínte- sário dessa data.
se‖. Mas isto é uma questão à parte, colateral e de natureza Hoje, as Mensagens Espirituais estão na terceira edição ita-
muito diferente, independente – é bom repetir – do tratado liana e já deram a volta ao mundo. Algumas atingiram meio mi-
considerado como objetivo e racional. lhão de exemplares.
O ―fenômeno‖ implica, ao invés, a transferência a pontos de A Grande Síntese, já teve uma edição em Buenos Aires e
vista supernormais, obriga a enfrentar problemas psicológicos outra no Rio de Janeiro. Estão sendo preparadas as edições in-
que nossa ciência – confessemo-lo – não sabe resolver. Por isso glesa, francesa e indiana (Marathi). Na Itália, estamos na se-
o próprio Ubaldi fez disso o objeto de um especial e separado gunda edição, pois em poucos meses esgotou-se a primeira.
exame, no volume As Noúres (edições Hoepli, 1937), ao qual As Noúres já está sendo publicada em fascículos em Buenos
enviamos o leitor que deseja, após tê-la lido, conhecer a técnica Aires, e está sendo preparado o mesmo ciclo de divulgação com
genética e formativa a que se deve A Grande Síntese. a recentíssima Ascese Mística.
Baste ainda observar, aqui, que este livro se coloca na linha Estes são os fatos. ―Raramente, no mundo‖ – diz o primei-
das grandes correntes mundiais que operam em nosso tempo ro prefácio das Mensagens, em 1935 – ―obtêm tão rápido e
para a salvação dos valores espirituais da humanidade. E que espontâneo êxito outras coisas mesmo fortemente queridas e
ele assume o peso e a responsabilidade dessa luta – fato que é habilmente preparadas. Neste caso, ao invés, um médium des-
também um vaticínio – no momento em que o mundo oscila de- conhecido, sem preparação, durante muito tempo hesitante a
sorientado, entre o fim de uma civilização já decrépita e o nas- respeito da oportunidade de divulgar sua produção, sem meios
cimento de outra nova e maior. e sem apoio, modestíssimo e fugindo da notoriedade, sem fim
A palavra da ciência, por vezes fria, é apenas o meio sen- algum interesseiro, mas até constrangido a uma vida de martí-
sível, adaptado à psique raciocinante de nossa época, de uma rio para exteriorizar seus invulgares dotes mediúnicos – viu
realidade vibrante e viva, que opera e vence para o bem dos sua produção oferecida timidamente, fazer com rapidez a vol-
homens. ta ao mundo, e difundir-se em pouco tempo, automaticamente,
Marc'antonio Bragadin como por força própria prodigiosa. Neste fato, muitos poderão
descobrir uma prova‖.
A GRANDE SÍNTESE Pode forçar-nos à meditação, também, o fato de que estes
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO ITALIANA sete anos foram os mais dolorosos da vida do autor, que foi es-
magado por sofrimentos, por trabalho, por tempestades, por re-
A Grande Síntese, 2a edição italiana, Editor Ulrico Hoepli – núncias, por preocupações bem graves. Isto indica que o espíri-
Milão, 1939. to, muitas vezes, sabe manifestar-se apesar disso, e até nas con-
Não se trata de apresentar este volume, já agora conhecido dições mais adversas; prova isto que verdadeiramente a fé re-
no mundo, mas de resumir aquilo que poderíamos chamar sua move montanhas, ou seja, sozinha pode realizar muitas coisas,
história. Permanecemos, pois, no campo das comprovações ob- independentemente dos meios humanos, nos quais todos colo-
jetivas, dos fatos, que não são uma opinião. Não se pode deixar cam sua confiança absoluta.
de reconhecer a coisa concreta, que se toca com as mãos. As Não é possível analisar aqui esta obra, nem o fenômeno es-
palavras proféticas que acompanharam a publicação dos fascí- piritual de que nasceu. De A Grande Síntese ocupou-se ampla-
culos desta obra, desde seu princípio, verificaram-se totalmen- mente a imprensa italiana e estrangeira, mesmo nos países em
te, e isto ocorreu segundo um plano lógico e orgânico de de- cuja língua não foi traduzida ainda. Do fenômeno, o próprio au-
senvolvimento, que não foi preparado nem previsto pelo autor. tor fez a mais cabal análise, e o podia fazer melhor do que nin-
Por isso, tal como ele mesmo expressamente declarou (veja As- guém, porque o vivera. Para esta análise, remetemos o leitor
cese Mística, Cap. XIII – segunda parte) jamais atribuiu a si – aos dois volumes: As Noúres e Ascese Mística. Esse fenômeno,
apesar das acusações de orgulho que lhe foram feitas – nada do que temos de renunciar a definir aqui, é muito complexo e tão
que de bom possa ter conseguido fazer. pluridimensional, que não se pode facilmente enquadrar e en-
Hoje, no princípio de 1939, achamo-nos diante de uma obra feixar, como alguns o quiseram, em dada terminologia e em
completa de cerca de 1000 páginas (que precisamos ler inte- dada escola. Caminhou sozinho, individuado como todas as
gralmente para serem compreendidas), um ciclo de quatro mo- formas de vida, acima das artificiais distinções humanas. O
mentos, uma tetralogia, ou seja: próprio autor usou as palavras que achou no plano linguístico
1) As Mensagens Espirituais, conciso e vibrante apelo ao atual. Infelizmente não existe um material de expressões vir-
mundo, um clangor de trombeta, uma chamada à sabedoria. gens, que não tenham sido usadas e abusadas no passado. Mas
2) A Grande Síntese, ou seja, a doutrina, o pensamento cien- esperamos que o leitor inteligente se detenha só no pensamento
tífico-objetivo e ao mesmo tempo filosófico-ético, para explicar substancial, sem preocupar-se com a forma relativa que o re-
a fenomenologia universal e para guiar a conduta individual e veste. Diga-se o mesmo para alguns termos filosóficos usados
social. Este volume é o ponto mais alto da tetralogia. em A Grande Síntese, que já induziram alguns, que mais se
3) As Noúres, introspecção reflexiva, escrito como comentá- atêm à letra do que ao conceito, a observações que o tempo
rio sobre A Grande Síntese; explicação da técnica intuitiva ins- demonstrará terem valor relativo.
pirativa, a que se deve a gênese dessa obra. Entretanto, para fazer-se mais bem compreendido pelos fi-
4) Ascese Mística, estudo da evolução dessa técnica e desse lósofos e teólogos, que estão mais presos à forma, o autor, no
fenômeno até à fase mística. Estas duas últimas, obras de in- seu desejo claramente expresso nas Noúres e ainda mais na As-
trospecção e autocrítica, de íntima e objetiva indagação psico- cese Mística, de permanecer fiel à verdade da igreja católica,
lógica, em que o autor quis oferecer todos os elementos de jul- gostaria de retocar alguns termos e expressões que, nas psico-
gamento para os numerosos pontos de vista, segundo os quais logias que têm outra orientação, podem gerar confusão; gosta-
possa ser considerada sua obra. Com isto, todo o seu pensamen- ria, mesmo não modificando em nada o conceito, de esclarecer
to é claramente exposto, e ele julga fechado o atual ciclo de seu mais extensamente algum ponto expresso por demais sintetica-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 275
mente. Mas o autor está sobrecarregado de demasiado trabalho, tempo em que ocorre. E mostra até à evidência as razões do
mesmo para executar esse, que ele julga um dever, ou seja, ga- comando e as razões da obediência, ambas subordinadas à vi-
nhar o pão de cada dia. Não dispõe de tempo, de paz e de ener- são das unidades parciais que se agrupam harmonicamente no
gia, o que alguns críticos parecem poder usufruir largamente. caminho da unidade definitiva, meta gloriosa de nossa viagem.
Na urgente pressão do tempo, ele não pode hoje tornar a mer- ―Os que verdadeiramente compreenderem essa verdade, es-
gulhar na profundidade dos complexos problemas tratados nes- tes, e não os outros, serão dignos de constituir as aristocracias
tes volumes. Para isso, seria mister que Deus lhe concedesse do amanhã. Ao lado dos autênticos chefes, ao lado e quase invi-
menos pesadas condições de vida e lhe tornasse a dar as forças síveis, mas seguros conselheiros, estarão os outros nobres, para
gastas com o trabalho excessivo. os quais foram ditadas obras do gênero de Ascese Mística‖.
A crítica de Fermi, em Gerarchia, em abril de 1938, assim Fizeram críticas, com especial amplitude e autonomia de
conclui: ―No caso Ubaldi, resta explicar um fato singular. Um pensamento, a Revista Internacional de Filosofia do Direito, de
homem que, após ter feito o curso de Direito com má vontade, Roma, julho/outubro de 1938, a revista Light, de Londres; a Set-
após ter viajado para ver o mundo e aprender línguas, dedica- timana Cattolica, de Adria; a Ricerca Psichica, de Milão; Libro
se a ensinar inglês num pequeno ginásio da província e não se e Moschetto, de Milão; The Observer, de Filadélfia (USA); Pro-
ocupa nem de estudos nem de leituras científicas – pois bem, blemi Mediterranei, de Palermo; Ali del Pensiero, de Milão; Re-
esse homem, de improviso, toma a pena e escreve Mensagens ligio, de Roma; IL Resto dei Carlino, de Bolonha; La Chimica,
impressionantes, que ele afirma lhe terem sido sugeridas por de Roma; L'Ala d'Italia, de Roma; Lliustrowanego Kuryera Co-
Seres Superiores. Passados dois anos, e sempre atribuindo à dziennego, de Cracóvia; IL Loto, de Florença; O Reformador, do
mesma proveniência, escreve um volume de 400 páginas – que Rio de Janeiro; Constancia, de Buenos Aires; La Revue Spirite,
foi por mim criticado – perfeitamente organizado e coerente, de Paris. O volume do Ministro Plenipotenciário D'Alia, Máxi-
que, pode dizer-se, enfrenta todos os problemas mais delicados mas de Arte e de Ciência Política, cita A Grande Síntese quase
que dizem respeito à ciência e à vida, mostra-se informado cem vezes; o volume Espiritismo Moderno, de Trespioli, co-
(mas por caminhos extraordinários) dos últimos resultados, menta aquela obra amplamente. E enquanto estamos em curso
acha conexões inéditas e antecipa descobertas teóricas. Tudo de impressão, essas mesmas revistas tornam a tratar do assunto,
isso, numa forma literária irrepreensível, lúcida e elegante; a propósito do último volume Ascese Mística.
com um tom elevadíssimo, uma espiritualidade ardorosa e pu- Não é possível aqui citar a série de mais de cem jornais e
ra, uma humanidade palpitante. revistas que, nos dois hemisférios, fizeram a crítica ou falaram
―É claro que ele, com esta e outras publicações que se en- de A Grande Síntese, como também de As Noúres, nem publi-
contram no prelo, esclarecerá melhor seu pensamento religioso car as apreciações feitas em cartas ou a viva voz, por pessoas
e dissipará dúvidas, ao exercer seu nobre apostolado, chamando particulares, sobre estes volumes. O fato é que A Grande Sínte-
seus contemporâneos a um gênero de vida mais racional e dig- se despertou interesse nos campos mais disparatados (vejam-se
no. Abstenho-me de entrar neste campo, para não ultrapassar os as revistas supracitadas), obtendo de todos os lados um apoio
limites dentro dos quais se mantém Gerarchia. De outro lado, unânime. Algumas raras exceções secundárias, devidas a in-
não hesito em convidar os homens de pensamento e boa vonta- compreensões, mais tarde corrigidas, confirmam a regra. Tan-
de, sobre os quais pesa a responsabilidade do bem público, a tos espíritos já se agruparam em redor deste autor, que o vaticí-
tomarem em muito séria consideração, ao menos teoricamente, nio da afirmação já se pode considerar cumprido. Poder-se-á
as mensagens que há oito anos Pietro Ubaldi não se cansa de discutir algum termo, algum pormenor, poder-se-á levantar a
lançar ao velho e ao novo mundo, com um resultado imprevisto acusação de alguma inexatidão, mas já não se pode mais duvi-
na América do Sul. Enquanto vai exercendo essa missão, não dar do conjunto, da profundidade da visão universal, de sua or-
espera nem deseja nenhuma vantagem. Ao contrário, está pron- ganicidade, que corresponde à realidade do fenômeno, da since-
to a sacrificar sua pessoa. Pois ele sabe que não é digno de tra- ridade das intuições, da força da paixão, da bondade dos fins.
balhar por uma grande causa quem não esteja pronto a suportar Se, para os ânimos fechados na própria moldura psicológica, é
por ela – se necessário – até o martírio‖. falso tudo o que estiver fora dela, para os ânimos honestos e
O próprio Fermi, torna a tocar no mesmo argumento em re- abertos há em tudo isso algo que comove a consciência e induz
centíssima crítica, a propósito do volume Ascese Mística, em a refletir seriamente; há, num quadro organizado e universal, a
Gerarchia, de fevereiro de 1939: solução de muitos problemas até agora insolúveis; há uma ade-
―Em A Grande Síntese, que aqui foi comentada, confiando rência evidente à realidade dos fenômenos, mesmo que alguma
justamente no seu grande poder intuitivo, o autor traçou um filosofia particular possa por vezes negá-lo. E, no confronto en-
quadro de filosofia científica e de antropologia ético-social que tre a voz divina da natureza e a voz humana da filosofia, temos
deixa muito atrás experiências semelhantes do último século, de acreditar que a primeira seja a mais verdadeira. É esta voz
pela amplitude da contextura e pela particular novidade do mé- divina que o autor não poderá corrigir, porque é uma só, e cada
todo que utilizou na obra e no plano que seguiu: a intuição, co- vez que procurasse sondá-la, só poderia ouvi-la idêntica a si
mo disse. Esta não veio ao mundo com ele, pois existe desde mesma, mais clara e mais forte.
tempos imemoriais, entre artistas, sábios e videntes; mas jamais A todos aqueles que quiserem reduzir exclusivamente a um
foi empregada com uma técnica tão rigorosa, clara e consciente. plano racional este volume – que é sobretudo um ato de fé, e de
E ele a descreveu com análise precisa, objetiva, indubitavel- fé cristã, tendente à exaltação do espírito através do sacrifício –
mente científica, em outro volume, As Noúres. recordamos que sempre foi mais fácil discutir uma doutrina do
―Quem é iniciado na filosofia da história e atentamente ob- que decidir-se a sacrificar-se pelo bem. A discussão não é so-
serva os fatos que se desenrolam sob seus olhos, não duvida de frimento nem exemplo e pode ser vontade de afirmar uma ban-
que entramos num ―período orgânico‖. Uma lei superior, cujo deira em que nos colocamos a nós mesmos. Hoje, o mundo ne-
ritmo foi acelerado pela insipiência de quase todos os intelectu- cessita de doação e amor, não de sabedoria filosófica; necessita
ais, está concluindo seu período crítico. Este, útil e até necessá- do Evangelho de Cristo. Os caminhos são diversos; felizes os
rio quando surgiu, acabou desencadeando-se loucamente sobre que já acharam as estradas dirigidas pela fé. Mas, para os racio-
os bens mais preciosos que a humanidade recolhera e entesoura cinadores, atacados pela doença analítica do século, era neces-
com mil esforços e heroísmos. sário usar a linguagem científica, para atingi-los, pois eles tam-
―Pois bem, a concepção biológica e, portanto, orgânica de bém são filhos de Deus; era indispensável dar à ciência o
Pietro Ubaldi vem ao encontro da comprovada exigência do exemplo da síntese, nobilitando-a mediante sua elevação a fina-
276 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
lidades éticas, e, ao mesmo tempo, oferecer à fé a contribuição Na hora atual, que os videntes sabem ser terrivelmente in-
da ciência, para aprofundar e resolver problemas aonde a reli- tensa, ele quis olhar para Cristo com maior intensidade, o que
gião ainda não penetra; era necessário, para arrancar as almas não acontece hoje em dia, entre cristãos e não cristãos. Can-
do materialismo – que é a grande ameaça do século, porque re- sado de todas as lutas no plano humano, transferiu para outro
nega o espírito, base da civilização – falar uma linguagem dife- campo sua vida e seu esforço, e mostrou esse outro mundo tão
rente da teológica, que já agora as mentes não mais estão habi- distante daqui. Entretanto soube resistir à tentação de voltar-
tuadas a compreender. Poderá a Igreja condenar uma obra as- lhe as costas, renunciando o repouso de seu sonho no paraíso,
sim toda voltada para um fim de bem, tão aderente ao espírito e retornou a imergir-se na dor do mundo. Agora, os críticos
do Evangelho, desenvolvida tão sinceramente e com tanta pai- analisarão; a cega psicologia racional procurará compreender
xão, fruto, enfim, de tanto sacrifício, mesmo sendo esta obra sua visão com os meios do tato. Trabalho lento. O autor, en-
modelada pelas diversas vias psicológicas requeridas pela hora tretanto, pode morrer tranquilamente. Pois isto é derrota só
e por alguns espíritos? Poderá a Igreja fazer isso, sem negar-se para os que têm objetivos humanos.
a si mesma e sem agravar a crise de tantas consciências hones- De seu lado, a ciência julgou ver em A Grande Síntese cer-
tamente necessitadas de conhecer algo mais? Talvez alguns es- to desprezo por ela e por seus métodos, e ausência de novas
perem, justamente, que a Igreja a condene, para fazer desta obra revelações com relação às soluções de problemas técnicos par-
uma bandeira de rebelião. Não é isto que o autor deseja. Ao in- ticulares. Ora, o objetivo desta obra é totalmente diferente: é
vés, devemos perguntar que prejuízo ou que imenso bem ad- objetivo de síntese, de unificação, de orientação; o escopo é a
viria à sociedade, se fossem aplicadas as conclusões deste es- elevação moral, que sobrepuja qualquer finalidade utilitária, e
crito? E qual a culpa de ter dado a elas uma base racional e ci- até mesmo prescinde dela. E o desprezo, ou digamo-lo melhor,
entífica, de tal forma que se tornem obrigatórias mesmo aos a reprovação, não é pela ciência, mas só por sua forma materi-
incapazes de fé, ao menos para que deem o primeiro passo que alista, agnóstica, amoral, que ela assumiu, demolidora do espí-
os arrancará do materialismo? Pergunto: se os fatos não esti- rito. Esta reprovação está unida a um grande respeito, admira-
vessem de acordo com a filosofia e a teologia, como se faria ção e até veneração por quem tenaz e sinceramente trabalha
para modificar a voz dos fenômenos, a fim de conciliá-los à em seus setores para chegar à visão das leis da natureza, nas
força com as construções do intelecto humano? Num simples quais fala o pensamento de Deus. A ciência não é combatida,
prefácio, não é possível ir além destas razões mais rudimenta- mas apenas o materialismo, sua premissa dogmática. Isto se dá
res. Mas que nos sirva de esclarecimento o caminho percorrido com a finalidade de elevá-la a mais altos planos, para profun-
pelo autor, que rapidamente superou a estrada da razão, segui- dos campos de compreensão. O mal-entendido é fundamental.
da por necessidade e quase a contragosto; e tomou imediata- Achamo-nos sempre diante do intelectual utilitário, que procu-
mente – não por merecimento seu, mas guiado por Deus – as ra uma ideia ou vantagem a mais, sem nunca pensar em colo-
estradas profícuas da dor (veja Ascese Mística), demonstrando car-se na estrada cansativa que pratica o bem.
com os fatos que, após haver estudado e compreendido, é pre- A quem pense que esta obra poderia ficar limitada ao cam-
ciso pôr-se a caminho, porque certas verdades só são plena- po biosófico ou em outro semelhante, só pelo fato de que aí
mente alcançadas com o sacrifício, e não com o raciocínio. E, surgiu, verá que era indispensável que ela, que exorbita das di-
na verdade, muitas vezes a discussão é orgulho. Cristo não dis- visões comuns do pensamento, daí emigrasse para levar fruto a
cutiu, mas carregou a cruz e amou. campos mais vastos e, assim, teria que necessariamente de-
Este é o espírito da presente obra, esta a sua substância, que sembocar nas vastidões dos horizontes morais e filosóficos
quer ser a substância do Evangelho, que é fé, mais do que sabe- próprios do cristianismo, que constitui, mesmo para quem ig-
doria erudita; paixão, mais do que demonstração racional; ato nora seu lado divino, sempre um colosso de pensamento bimi-
de amor, mais do que ato de inteligência. É impossível que o lenário e a base da civilização europeia.
leitor dotado de sensibilidade não descubra, por trás do esforço Outros, ao invés, sentados em outros compartimentos do
da redução da verdade ao plano racional, como o requer a psi- pensamento e da imprensa (ah! Parece que todos estão irreme-
cologia do homem atual, quanto existe desse espírito de amor e diavelmente divididos!) se escandalizarão de um espírito real-
de fé nesta obra e que é esta, justamente, a vibração que a ani- mente cristão ter atravessado certos campos mais ou menos
ma e a sustenta totalmente. Quem quer que a enfrente com cri- proibidos. A estes dizemos que a verdade não é monopólio de
térios puramente teológicos e escolásticos, demonstrará que não classe, que o sol resplandece para todos e sobre todos e que as
sente o espírito do Evangelho, que está bem longe de tudo isso. obras de fé e de bem são necessárias e obrigatórias em qualquer
Não nos detenhamos na letra, mas subamos ao espírito. A hora parte e sob qualquer forma.
é por demais grave para nos demorarmos em eruditas discus- A quem se admirar do ―novo‖, lembremos que nesta obra há
sões. A Grande Síntese evitou qualquer referência a teorias filo- o esforço de fixar um pensamento, confiado apenas como depósi-
sóficas humanas e não citou o pensamento de quem quer que to, à geração presente, mas destinado a outras mais evoluídas e
seja, para não agredir, para não entrar em discussão, para não civilizadas; recordemos que esta obra é uma antecipação de uma
demolir ninguém, reservando para si apenas a tarefa de criar, corrente de pensamento que, aliás, já se vem delineando, e bem o
dando o exemplo de paz. Quer manifestar apenas harmonia, que demonstra a divulgação que o livro encontrou em todos os cam-
é a lei dos planos mais elevados em que ela se movimenta. Por pos. Em acordo com ele acharam-se médicos e economistas, filó-
isso limita-se a expor, como que narrando, o estado dos fatos: sofos e psiquiatras, sociólogos e espiritualistas, homens de ciên-
voz sincera, natural, simples, evidente. Repetimo-lo: a descida cia e homens de fé. Todos sentiram que é a voz da nova hora.
ao plano racional e demonstrativo foi uma necessidade triste, Algumas ousadias nas soluções não devem surpreender; a hipóte-
mas indispensável. Terá a Igreja, que é feita de fé, a tal ponto se se mística de hoje é, com frequência, a tese científica de amanhã.
afastado da luz, reduzindo-se à função raciocinante, que não te- O conhecimento tem limites que são continuamente ultrapassa-
nha mais o espírito do Evangelho? Se assim fora, seria terrível. dos; a verdade é um contínuo desenvolvimento. A própria Igreja
Quando não se conhece mais o timbre da voz de Cristo, é mis- não utilizou largamente os filósofos gregos? E o paganismo não
ter recomeçar tudo. A autorização solene do ―Tu es Petrus‖, pode ser considerado uma propedêutica sua? Não soube tornar
não é incondicional, mas implica a manutenção constante do seu o que de melhor a intuição do gênio foi arrebatando aos pou-
espírito, da chama acesa do Evangelho. O autor não condena, cos, só mediante seu sofrimento, ao mistério do infinito?
nem jamais condenará; mas se tudo isso acontecer, chorará A palavra ―revelação‖ não deve surpreender assim como as
amargamente. E, infelizmente, não vai chorar sozinho. referências a ela, especialmente no volume As Noúres. O mártir
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 277
São Justino e o próprio Clemente Alexandrino não afirmaram Ao invés, o elemento fundamental nas ascensões do espírito é o
que a primitiva revelação jamais cessou, ainda que aqui ou ali próprio esforço, justamente o que se quer evitar. O esforço mo-
tenha sido abalada ou diminuída? ral é o único itinerário da alma para Deus. Temos de reconhecer
Nem devem surpreender certas palavras de A Grande Sínte- a superioridade do espírito sobre o pensamento, da intuição so-
se, como ―monismo‖, desde que elas são aí usadas em sentido bre a lógica, da fé sobre a razão. Só penetrando em si mesmo
próprio, e não no sentido materialista, como outros o fizeram no pode o homem aproximar-se daquele ponto pelo qual se comu-
passado. Há tanta coisa que se herda do passado! Não era possí- nica com Deus‖. (Muito sofri, procurando-Te fora de mim, e Tu
vel fazer aqui um dicionário novo. É por demais evidente a habitas em mim – Santo Agostinho).
crença firme do autor no dogma de que a conservação do uni- Concluindo, A Grande Síntese propõe duas coisas: unificar
verso é uma contínua criação. E um ato conservativo-criativo, os ânimos, concordando a ciência com a fé – elevando a pri-
continuamente novo e sempre presente, tem que conferir, forço- meira ao anseio filosófico sintético e à finalidade ética da se-
samente, e confere, às coisas, um grau mais elevado e profundo gunda; oferecendo à fé, contra os negadores, a sólida contri-
de ser, uma aproximação mais imediata e atual da ideia de Deus, buição da ciência, assimilada em contato com os fenômenos,
uma presença Dele mais viva, mais real e contínua. Portanto só que, sem dúvida, exprimem o pensamento de Deus, para obter
os espíritos superficiais, que se apegam à letra, poderão fazer assim uma explicação mais cabal dos ―porquês‖ que existem
acusações de materialismo. Ao contrário, nesta obra, o conceito em todas as consciências (quando a ciência e a fé falarem a
de Deus – agente sempre ativo, realmente presente todos os mesma linguagem, cairão por terra muitas discórdias vãs e in-
momentos em todos os lugares, como alma de Sua criação – é cômodas) – e, finalmente, reavivar a fé, recordando à teologia
algo de verdadeiramente digno e imenso. E os fenômenos falam, suas originárias formas intuitivas.
de fato, neste sentido, ou seja, de um espírito ou pensamento que É justamente nessa intuição, a que tanto volta o autor, que
os anima de dentro deles mesmos, e não de um Deus que obra achamos as origens do cristianismo. Em Ascese Mística especi-
em determinado momento e depois abandona a criação a si almente, mas também em muitos outros pontos, ele mostra pre-
mesma. Só assim poderemos compreender um Deus onipresente ferir – sempre que o permita o trabalho racional executado – em
no espaço e no tempo. Sabe-se que Deus é um infinito e que a vez da razão as vias do coração e o esforço imposto pela dor.
ideia que Dele podemos fazer continuamente se dilata, progre- Por isso A Grande Síntese não aspira a ser um tratado doutriná-
dindo de acordo com o progresso de nossas capacidades espiri- rio, isolado num campo de discussões áridas, que se fecha e es-
tuais. Por que será que certos espíritos têm tanto medo que a gota em si mesmo, mas pretende ser férvida semente de matu-
ideia de Deus se agigante em formas cada vez mais vastas e dig- rações do espírito, uma ideia acesa a progredir, uma propedêu-
nas? Por que se rebelam contra as concepções que superam seu tica à ação e à vida. É fácil condenar um homem, mas nele se
limite conceptual? Por que temem que Deus se aproxime, numa condena um princípio vital, uma orientação hoje necessária,
presença cada vez mais imediata e atual? Será tão frágil a posi- deixando-se insolúvel o problema do espírito, que predomina
ção das verdades reconhecidas, que teme qualquer sussurro? Ou sobre todos, iminente e amedrontador, na hora atual, que é uma
estamos tão pouco convencidos, que só sabemos confiar no encruzilhada crucial na história. É fácil condenar um homem.
apoio do número, base da supremacia material? E, se uma autoridade obrigasse o autor a calar-se, ele talvez –
Quanto à fácil e superficial acusação de panteísmo (seria se por um só momento pudesse esquecer sua missão, lembran-
mais exato dizer, em nosso caso, panateísmo) pode responder-se do-se apenas de sua maior necessidade, que é o repouso – pode-
com as palavras de São Paulo: ―Nele mesmo (Deus) nós vive- ria ter neste fato um motivo de desculpa diante de Deus para
mos, nos movemos e existimos‖ (atos dos apóstolos, discurso no desertar do campo, no momento de maior cansaço. E, na verda-
Areópago); ou de santo Agostinho: ―Deus é superior ao mais al- de, o egoísmo não pediria nada melhor. Mas, se não o quisesse
to e é interior ao mais íntimo‖; ou do Venerável Cardeal Cusa- e fosse forçado pelo dever da obediência, poderia achar paz,
no: ―Que é o mundo, senão uma invisível aparição de Deus; e talvez, em sua consciência? Do mesmo modo, poderia achá-la
quem é Deus, senão a invisibilidade das coisas visíveis?‖; ou aquele que fosse a causa e que, portanto, deveria assumir diante
com as palavras dos místicos cristãos, que dizem que ―Deus é a de Deus a terrível responsabilidade?
nossa superessência‖. Este é o significado mais profundo que eu quis extrair de A
O equilíbrio é uma posição média do caminho. É unilatera- Grande Síntese, que já agora está lançada e seguirá por impulso
lidade isolar-se na atitude exclusiva da transcendência, tanto próprio, como força viva em ação. Estes aspectos mais profun-
quanto na da imanência; é necessário, portanto, juntar os dois dos só podem ser confiados à intuição do leitor. Trata-se de
princípios, ambos indispensáveis, porque complementares: o madureza, de contatos de alma, de choques interiores, nas
absoluto do conceito e o relativo da aspiração. Só esta harmonia grandes vias que conduzem a Deus e que só podem ser seguidas
pode permitir o reequilíbrio dos dois extremos, que são dois pe- através do supremo esforço e do próprio martírio.
rigos: a descrença religiosa e a fé cega. Pietro Ubaldi
Neste ponto delicado, temos de penetrar em todo o pensa-
mento do autor, que, verdadeiramente inspirado por Deus, pro- A GRANDE SÍNTESE
cura reerguer a fé, mesmo contra aqueles que a queiram destru- PREFÁCIO À QUARTA EDIÇÃO ITALIANA
ir. Se à razão foi dado este tratado, foi apenas por necessidade
imposta pela psicologia corrente. Mas o autor esforçou-se em A Grande Síntese, 4a edição italiana, Editor Ergo – Roma,
fugir dela e, no próprio tratado, anseia a todo momento atingir 1951.
outros planos bem diferentes. Como no Evangelho, ele se colo- A Grande Síntese, publicada pela primeira vez em série
ca contra a doutrina, que mata a verdade, para torná-la racional. numa revista, de janeiro de 1933 a setembro de 1937, teve sua
Hoje, que está terminada sua última obra, a Ascese Mística, primeira edição Hoepli, em 1937; depois também a segunda
transparece a evidência disso. Escreve M. Zbdiechowski, a pro- Hoepli, em 1939; e a terceira edição Ergo, Roma, em 1948.
pósito de Mickiwicz: ―A verdade deve ser procurada com toda Agora apresenta-se na quarta edição italiana, pela mesma edi-
a alma, e só é achada a troco de esforços e dores, elevando-se tora Ergo.
além do mundo das aparências. Toda verdade é filha da dor. Estas duas últimas edições não apresentam prefácio, a fim
Mas, uma vez atingida a verdade, surge de imediato a doutrina, de não perturbar com comentários humanos a atmosfera do tex-
que diz não mais ser necessário nenhum trabalho, que tudo está to. Por isso este prefácio à quarta edição é publicado com os
em nossas mãos, que a humanidade só precisa abrir um manual. demais neste volume, Comentários.
278 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
Entre a primeira e as últimas duas edições, muitas coisas valores espirituais. O homem precisa do alimento eterno, da
aconteceram. Primeiro, a condenação ao Índex. O autor falou verdade que não muda no tempo e no espaço; que não muda
disso no Capítulo XVIII, ―Condenado‖, em História de um como partido ou nação que vence; que existe não em função,
Homem, e voltará a falar no fim deste volume, resumindo obje- mas além dos interesses humanos. A hora que urge não nos
tivamente toda a questão. Depois veio a guerra mundial. Parece permite negar uma contribuição de salvação, para ficar olhan-
que a história quis sublinhar o supremo apelo das ―Mensagens do sutilezas, que não escandalizam ninguém, porque poucos
Espirituais‖ e preparar, com a dor e a destruição, renovando as compreendem. Há outra imprensa bem diferente, de uma
coisas e espíritos, uma compreensão e uma divulgação maiores baixeza bem acessível, e que triunfa sempre.
para A Grande Síntese. Quando a besta, hoje dominando o mundo, tiver assassina-
Em todas estas suas edições, o texto do volume permane- do tudo, que vida lhe poderá restar, se não souber caminhar
ceu intacto. Como foi possível que o autor, tão respeitoso em sofrendo, mas arrependida – pela estrada da redenção que
relação a qualquer autoridade, não só não tivesse corrigido os Cristo lhe mostrou de sua cruz? Que fará o homem, quando se
erros teológicos que lhe foram imputados, mas ainda tornasse achar diante da catástrofe que ele quis e realizou, se não esti-
a publicar o texto sem modificações? Essa questão será trata- vermos em condições de fazê-lo compreender, com a sua lin-
da na terceira parte, no capítulo: ―Condenação ao Índex‖. guagem moderna, a subversão evangélica, isto é, que o triun-
Aqui, falamos disso para esclarecer melhor. Além dessa con- fador não é quem vence na Terra – pois assim cada vez mais
denação, ocorreu também outro fato novo entre as duas pri- se encadeia a este inferno – mas é o que se liberta, superando
meiras e as duas últimas edições. O autor esclareceu e preci- esta fase biológica, numa vida mais alta? É evidente que bem
sou melhor o pensamento que ele registrara somente em gran- cedo não sobrará para o homem outra grandeza senão a de
des linhas na Síntese. Isso o fez em volumes posteriores, onde Cristo pregado na cruz, que é a dor que redime. Sabemos que
pôde aprofundar a questão, porque não lhe fora possível num hoje, como ocorreu para os próprios apóstolos, a cruz signifi-
quadro sintético unitário. Julga, assim, ter feito tudo o que ca escândalo e vergonha, que a dor que redime é julgada der-
podia para esclarecer o mal-entendido e ter com isso realizado rota. No entanto que fará o homem após o desastre, se não
tudo quanto lhe permitiam sua consciência e seus deveres di- souber ressurgir na loucura da cruz, aprendendo, com a dura
ante de Deus. A autoridade que condenou talvez leve em con- realidade, que a única salvação consiste na ascensão através
ta esta tentativa, que não sabemos se alcançou seu objetivo, da dor? O homem atual não compreendeu nada de Cristo. Ou
mas que indubitavelmente é um sinal de boa vontade de obe- compreende e O segue, ou será seu fim. Hoje, no dealbar do
decer sem violar deveres maiores de consciência. Terceiro Milênio, a história prega a humanidade toda sobre a
Mas houve outros fatos. Os tempos se tornam tão graves, a cruz de Cristo, de acordo com o exemplo que Ele deu. Esta-
solução dos grandes problemas do ser revela-se tão urgente, mos na noite profunda, justamente porque a aurora está pró-
os ânimos têm tal necessidade de soluções definitivas e de xima, a aurora da manhã de ressurreição. Repete-se para o
orientação racional diante dos últimos ―porquês‖, sob o flage- mundo, em milênios, o mesmo ritmo da vida, antecipado e
lo da dor que acossa, que não é mais possível repousar tran- concentrado em três dias por Cristo, que, depois da segunda
quilamente no leito das tradicionais concepções da verdade. noite no sepulcro, ressuscitou na alvorada do terceiro dia. E a
Elas não bastam mais à mente moderna. Os velhos edifícios humanidade, em dores, deve ressurgir, como Ele no seu ter-
do pensamento humano são inadequados diante das vertigino- ceiro dia, que é para ela o Terceiro Milênio.
sas maturações novas. E a vida acelera seus tempos com tal Tudo hoje está arrastado pelo impulso da hora que amadu-
pressa de concluir a atual hora apocalíptica, que as acusações rece. Este volume, com toda a obra que o acompanha, a está
de doutrina heterodoxa passam para segunda linha diante de acompanhando. Por que julgar? Não se podem tirar as conclu-
tais necessidades. Assim, A Grande Síntese, que a elas satis- sões do que seja, enquanto tudo não se tiver realizado, en-
faz, embora não perfeitamente ortodoxa, não pode ser impedi- quanto não tiver terminado a vida do autor e a história não ti-
da de realizar a função para que nasceu, como supremo apelo ver falado, para confirmar. No entanto um fato pode tornar-
aos homens para que voltem a seu juízo, na orla da destruição nos perplexos. Este livro é divulgado como por força própria
universal. Quando a casa está ardendo, qualquer pessoa que o no mundo. Quem lhe dá essa força? E se esta viesse do Alto,
possa tem o dever de tentar apagar o incêndio, mesmo que não exprimindo a vontade de Deus? Quem então quererá assumir a
o saiba fazer com as regras usuais, e isto é o que parece hete- responsabilidade moral para detê-la? O autor não se sente com
rodoxia. Como calar, quando pode ser culpa ficar calado? força bastante. Pode perfeitamente surgir a dúvida de que se
Muitos estão de acordo em dizer que este livro faz bem, orien- queira obstaculizar uma obra de Deus. Na incerteza, é ao me-
ta na dor, volta a dar esperança e fé, e com isso traz para mui- nos prudente deixar as coisas tomarem o curso que elas pare-
tos a coragem de viver. Como recusar-se a isso? cem querer. Quem pode conhecer os desígnios de Deus? En-
Novas e imensas destruições parecem inevitáveis para o treguemo-nos à Sua vontade, para segui-la sempre, seja ela
mundo, porque o homem só pode compreender por experiên- hoje se manifestando nesta direção ou, amanhã, em sentido
cia própria. Esta, para cada um como para os povos, tem que evidentemente oposto. Deus não tem boca, mas fala; não tem
ser pessoal. É, pois, inevitável e necessário o cataclismo mun- mãos, mas trabalha; não lhe faltam meios de se fazer compre-
dial. Ora, se este livro não o pode evitar, ao menos ajudará a ender quanto ao que Ele quer de nós.
compreendê-lo, de modo que, ao sair dele, o homem, aterrori- Permanece assim esta Grande Síntese como a pedra fun-
zado por aquilo que fez, já encontrará escrito um novo modo damental de toda a obra de 12 volumes, como a expressão
de viver e as bases da demonstração lógica da utilidade dele, mais imediata da fonte inspiradora. Todos os outros volumes a
que só então – e não hoje – poderá ser compreendido. O ho- confirmam. O edifício, paulatinamente, levanta-se, como se
mem só poderá deixar de acreditar nas miragens que agora o obedecesse a um plano pré-estabelecido, que o autor antes ig-
iludem, de felicidade egoísta e materialista, se quebrar a cabe- norava, para culminar nos céus, até Cristo, vértice da pirâmide.
ça com elas. Urge, portanto, preparar desde hoje, para o mun- Embora ainda não ultimada a obra, todo o seu plano já está ho-
do, o pão do Evangelho, não um pão convencional, mas vivo je traçado, num sistema unitário que se ergue como um bloco,
pela evidência da demonstração, alimento adaptado à nova em trilogias sobrepostas, num edifício harmônico, em que o
forma mental moderna. A doutrina de Cristo deve penetrar na autor sobe com o mundo, seguindo o mesmo processo da ca-
vida de forma universal, pois, após a destruição de tantos va- tarse biológica que quer levar todos, com o novo milênio, ao
lores materiais, só ela poderá salvar-nos, com a chegada dos limiar da Nova Civilização do Espírito.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 279
Para o leitor a quem tudo isto possa parecer orgulho, o autor A GRANDE SÍNTESE – MENSAGEM DE EMMANUEL
conclui: ―Ajuda-me a desprezar-me, peço-lhe; porque a ne- (Inserida em todas as edições brasileiras)
nhum ser na Terra desprezo tanto quanto a mim mesmo. Isto,
não por humildade, mas pela própria lógica de todo o sistema, Quando todos os valores da civilização do Ocidente desfa-
porque é coisa natural para quem o compreendeu, porque esta é lecem numa decadência dolorosa, é justo que saudemos uma
minha convicção diante de Deus. Mas que o leitor saiba, tam- luz como esta, que se desprende da grande voz silenciosa de A
bém, que, por trás de mim, está Cristo, que é extremamente sá- Grande Síntese.
bio e poderoso, embora eu, pobre instrumento, seja extrema- Na mesma Itália, que vulgarizou o sacerdócio romano, eli-
mente ignorante, fraco e falaz; está Cristo, mesmo se eu, que, minando as mais belas florações do sentimento cristão no mun-
por irresistível paixão, tenho a presunção de querer imitá-lo, do, em virtude do mecanismo convencional da igreja católica,
não o consiga de modo algum. Procure, então, esse leitor, an- aparelhos existem da grande verdade, restaurando o messianis-
dando mais além do que este pobre instrumento, alcançar mo, no caminho sublime das revelações grandiosas da fé.
Aquele que realmente fala nesta Grande Síntese; procure racio- A palavra do Cristo projeta nesta hora as suas irradiações
cinar com Ele, e não comigo, sem dar a mim valor maior do enérgicas e suaves, movimentando todo um exército poderoso
que o que pode merecer um pobre amanuense‖. de mensageiros seus dentro da oficina da evolução universal. O
Pietro Ubaldi momento é psicológico. As nossas afirmativas abstraem do
tempo e do espaço, em contraposição às vossas inquietudes;
A GRANDE SÍNTESE mas, o século que passa deve assinalar-se por maravilhosas re-
PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO ESPANHOLA novações da vida terrestre.
As contribuições exigidas serão bem pesadas. Todavia uma
A Grande Síntese, 1a edição espanhola, Editora Constancia alvorada radiosa sucederá às angústias deste crepúsculo.
– Buenos Aires, 1937. Aqui fala ―Sua Voz‖, divina e doce, austera e compassiva.
Ao apresentar aos leitores de língua espanhola uma tradu- No aparelhamento destas teses, que muitas vezes transcendem o
ção, em volume, da obra Síntesis Cósmica, do Professor Pietro idealismo contemporâneo, há o reflexo soberano da sua magna-
Ubaldi, a Editorial Constancia está convencida de cumprir um nimidade, da sua misericórdia e da sua sabedoria. Todos os de-
dever moral para com todos os que se interessam pela explica- partamentos da atividade humana são lembrados na sua exposi-
ção do grande problema da vida e do conhecimento. ção de inconcebível maravilha!
Seus capítulos, densos de profunda filosofia, já foram apre- É que, sendo de origem humana a razão, a intuição é de ori-
ciados em todo o seu valor pelos numerosos leitores da revista gem divina, preludiando todas as realizações da humanidade. A
Constancia, órgão oficial da Editorial Constancia, veterana da grande lição desta obra é que o Senhor não despreza o vosso
imprensa de caráter espiritualista da República Argentina, em racionalismo científico, não obstante a roupagem enganadora
cujas páginas foi publicada em série, num período longo de se- do seu negativismo impenitente.
manas e meses. O interesse que esta obra transcendental do Na sua misericordiosa sabedoria, Ele aproveita todos os
ilustre pensador italiano despertou, quer nesta parte do conti- vossos esforços, ainda os mais inferiores e misérrimos. Toma-
nente americano, quer nos países europeus, foi enorme. Hoje, o vos de encontro ao seu coração augusto e compassivo, unge-
nome de Ubaldi é tão amplamente conhecido nos ambientes in- vos com o Seu amor sem limites, renovando os Seus ensina-
telectuais, científicos e espiritualistas, que seria supérflua uma mentos do Mar da Galileia.
apresentação de sua personalidade, particularmente para os po- Vede, pois, que todos os vossos progressos e todos os vos-
vos de língua espanhola, que já puderam apreciar a profundida- sos surtos evolutivos estão previstos no Evangelho. Todas as
de de seu pensamento, a elevação de seus conceitos e a origina- vossas ciências e valores, no quadro das civilizações passadas e
lidade de sua inspiração, através da bela monografia que, com o no mecanismo das que hão de vir, estão consubstanciados na
título de ―Evolução Espiritual‖, publicamos com grande satis- sua palavra divina e redentora.
fação como absoluta novidade. A Grande Síntese é o evangelho da ciência, renovando todas
Obra destinada a revolucionar o pensamento moderno, sob as capacidades da religião e da filosofia, reunindo-as à revela-
seus múltiplos aspectos de filosofia, de ciência e de ética, a Sín- ção espiritual e restaurando o messianismo do Cristo, institutos
tesis Cósmica reveste-se de excepcional importância, por causa da evolução terrestre.
de sua gênese, da fonte misteriosa de sua inspiração, que com o Curvemo-nos diante da misericórdia do Mestre e agradeça-
nome sugestivo de ―Sua Voz‖, parece guiar o esforço intelecti- mos de coração genuflexo a sua bondade. Acerquemo-nos deste
vo deste grande místico moderníssimo, que é Pietro Ubaldi, altar da esperança e da sabedoria, onde a ciência e a fé irma-
iluminando sua mente e abrindo diante de seus olhos o maravi- nam-se para Deus.
lhoso panorama do universo e das leis que o regem, panorama E, enquanto o mundo velho se prepara para as grandes
fechado para a enorme maioria dos homens, cujos olhos estão provações coletivas, meditemos no campo infinito das revela-
velados sob o peso da matéria, que nos toma escravos e cujo ções da Providência Divina, colocando acima de todas as pre-
jugo tanto nos custa sacudir. ocupações transitórias, as glórias sublimes e imperecíveis do
Pode bem afirmar-se que Ubaldi adquire assim a figura de espírito imortal.
um iluminado ou de um apóstolo da humanidade futura, à qual Pedro Leopoldo, outubro de 1938
procura fazer compreender a grandeza de seu destino, falando (Mensagem recebida por Francisco Cândido Xavier).
ao seu coração com a linguagem doce do sentimento e conven-
cendo a razão com a linguagem autorizada da ciência. AS NOÚRES – APRECIAÇÃO DE FERMI
Dita sua palavra num momento de grande crise mundial, em (Videntes, Filósofos, Cientistas)
que todos os velhos valores estão se precipitando, enquanto os
homens invocam uma âncora de salvação, este livro de Ubaldi Da Revista Gerarchia – Milão (Itália), janeiro de 1938.
parece cair do céu como o maná no deserto, para os errantes fi- Dizem as pessoas superficiais que, ao menos a partir de
lhos de Israel. 1500, está desaparecendo da atmosfera italiana aquela especial
Que suas páginas possam orientar todos os seres do mundo condição de espírito que dá origem aos místicos e videntes. Ao
para o caminho da verdade e da salvação se falar de um tipo nebuloso e fantasioso, que se retempera no
(Editorial Constancia) indeterminado e no indefinido, podemos dizer que isso sempre
280 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
repugnou aos italianos. A luminosidade clara, apesar de não ve- pensamento, que se ergueria, assim, a uma visão superior das re-
emente, de nosso céu, a limpidez de nossos horizontes não o alidades últimas. Uma moral elevada, mas ainda não cristã.
permitiriam. De outro lado, porém, esse tipo pertence mais a No caso de Ubaldi, os autores precedentes que analisei po-
um misticismo deteriorado e turvo, para não chamar espúrio, deriam, abstratamente, ter exercido uma influência metapsíqui-
mas, em todos os tempos e países, podemos encontrar modelos ca e quase telepática, ou então relegada ao subconsciente. En-
fulgidamente serenos do autêntico misticismo. tretanto, eu a excluo. Não porque ele tinha lido poucas páginas
Temos que incluir na nobre fileira destes últimos um mo- de Blavatsky, da qual difere totalmente por temperamento, gos-
desto professor da Úmbria, mais conhecido já na América Lati- tos, senso ético etc., mas pelo fato de que se move em outro
na do que entre nós: Pietro Ubaldi. plano, muito diverso. Além disso, sua preparação literária, filo-
Ocupar-me-ei, nestas publicações, de A Grande Síntese, As sófica e teológica era e é limitadíssima.
Noúres e Ascese Mística. Mas antes, como é de meu hábito, Ele confessa: ―quando jovem não acreditava no que ensi-
desejo falar do duplo fato, cognoscitivo e psicológico, coloca- navam, sentindo-o falho, inútil, sem bases substanciais. A ver-
do perante nós, tal como se nos apresenta na história dos últi- dade estava em mim; eu a procurava dentro de mim (como
mos dois séculos. admitia Santo Agostinho). Rebelde a toda direção, lançava-me
Anteponho, com as palavras de Marc Mario, uma rápida re- sobre o cognoscível humano ao acaso, procurando secretamen-
ferência a uma doutrina e um método que se aproximam dos uti- te a minha verdade. Olhava o mundo e as coisas por dentro,
lizados pelo autor: ―A doutrina espírita, embora recente na for- nas causas e nos princípios, e não nos efeitos e em sua utiliza-
ma que lhe deu seu fundador (Allan Kardec), se liga por alguns ção prática. Assim como os positivos e os práticos podem con-
de seus princípios às religiões mais antigas. A velha doutrina da siderar-me um incompetente na exploração utilitária da vida,
Índia, dos magos do Egito, Caldéia e Pérsia, conhecia a arte de eu também posso considerá-los incompetentes diante da solu-
evocar a alma dos desencarnados e admitia que a parte espiritual ção dos problemas do conhecimento‖. E ainda: ―o turbilhão
do ser – o espírito – agia sobre a matéria por meio de um fluido das exigências exteriores batia sem tréguas, impondo-se à
sideral. Professava a existência de um corpo astral, composto de atenção de meu espírito, que queria viver sua vida. Acumula-
elementos fluídicos cósmicos, invólucro do espírito, que é jus- vam-se as experiências humanas, quase todas bem amargas. A
tamente o perispírito. As reencarnações sucessivas, até ao dia dor martelava minha alma com seus golpes. Apressava-se a
em que o espírito tenha atingido a perfeição definitiva, faziam maturação. Um dia, nas praias de Falconara, olhando as mara-
parte de seus dogmas. Aquela doutrina defende a existência de vilhas da criação, senti com evidência a revelação, rápida co-
guias espirituais, que são chamados no espiritismo de espíritos mo um raio: o todo só podia ser Matéria, Energia e Conceito
tutelares. As diversas moradas ou etapas das almas, necessárias ou Espírito (M = E = C) = S (isto é, Espírito)‖.
para purificá-las, existem em todas as religiões‖. Ubaldi chama à sua doutrina ―monismo‖. É necessário ter
Veremos em seguida onde e como Ubaldi se afasta de certas cuidado para não atribuir o sentido usual a essa palavra. Nem
escolas teosóficas, que têm pontos de contato, em geral, com a Spinoza, nem Hegel, nem Haeckel têm que ver com a sua filo-
Índia e com as doutrinas e práticas medievais ocultistas, rosa- sofia. Quem atentamente o lê e não tem a mente ofuscada por
crucianas, cabalistas, ―sufis‖ etc. e que, nos últimos séculos, prevenções e preconceitos; quem com ele se relaciona e o co-
depois que muitos teólogos da contrarreforma tinham desacre- nhece bem, fica convencido de que ele não professa de modo
ditado o misticismo (como perigoso à crença ortodoxa e à dis- algum o materialismo nem o panteísmo, sendo esta primeira
ciplina), aos poucos tomaram pé entre os heterodoxos, especi- acusação especialmente ridícula. Além disso, sem sabê-lo, ele
almente no Norte. Paracelso, o modelo mais ilustre da sabedo- tem a mesma concepção dos grandes místicos cristãos e católi-
ria oculta na época do Renascimento, teve famosos seguidores: cos, que definem Deus como a ―superessência‖ de todas as coi-
por exemplo, Boëhme na Alemanha e Swedenborg na Escandi- sas e o declaram ―mais intimo em nós que nós mesmos‖.
návia. Deste último, muito aprenderam Goethe, quando jovem Quanto a uma visão escatológica, na qual Ubaldi se aproxi-
e, ainda mais, Saint Martin, o mestre dos românticos, de Schel- ma de São Gregório Nisseno, falaremos em seguida.
ling e do próprio Baader, que procurou adaptar a doutrina de tal ◘ ◘ ◘
forma que ela pudesse concordar com a Igreja Católica. (Deve Qual é o ―organon‖ subjetivo que o autor põe em prática na
recordar-se aqui que, para Newman, haverá sempre elementos busca da verdade? É a intuição. Como esta pode ser entendida
esotéricos no ensinamento católico). de muitos modos, é necessário precisá-la, isolando este caso das
Estes, é lógico, acreditavam num mundo supersensível, po- várias noções correntes, através do próprio fato que lhe deter-
voado de seres mais elevados e poderosos do que nós, e na pos- mina a inequívoca noção.
sibilidade de comunicar-se com eles, em certas condições. Dizem os filósofos:
Depois de 1870, prevaleceu na Europa uma teosofia de cará- ―A intuição é a concepção evidente dum espírito são e aten-
ter indiano e tibetano, e quem deu o impulso inicial foi a russa to, que nasce apenas da luz da razão e é mais pura (porque sim-
Blavatsky. Unindo-se a ela em 1889 (Blavatsky morreu em ples) do que a derivada do raciocínio‖ (Descartes e, com ele,
1891), outra mulher rica de fantasia e de entusiasmo, Annie Be- Spinoza e Locke).
sant, continuou sua obra, tendendo ainda mais para as doutrinas ―Todas as verdades primordiais, de razão e de fato, são in-
dos mestres da Ásia. Besant não cessou de escrever e de propa- tuitivas‖ (Leibnitz).
gar seus pontos de vista até 1933, ano de sua morte. O afasta- ―A intuição é um ato da reflexão interna, da qual o indiví-
mento de Krishnamurti, que, segundo ela, é a última reencarna- duo colhe uma realidade livremente produzida, em que o inteli-
ção de Buda, entristeceu-lhe os últimos anos, diminuindo-lhe o gente e a coisa intuída coincidem plenamente‖ (Schelling).
longo prestígio, quase oracular. Trabalhara a seu lado, por al- ―É a visão imediata da mente que, fixando como ato origi-
gum tempo, Rudolph Steiner, que depois bruscamente se afas- nário, simples, imediato, o ente (possível – real) assume a po-
tou, seguindo suas concepções particulares, acreditando corres- tência ou forma do intelecto, que torna possível o conhecimento
ponderem a um cristianismo católico esotérico. A ―antroposo- das coisas‖ (Rosmmi – Gioberti).
fia‖ de Steiner, que aparece como um sincretismo indo-gnóstico- ―Oposta ao intelecto, por sua natureza abstrata e descontí-
neoplatônico, é orientada na direção da teologia cristã. A antro- nua e, portanto, não adaptada à originalidade absoluta e à con-
posofia, que enfrentou nos últimos anos as questões sociais e po- tinuidade do real, está a intuição, que é a síntese do instinto
líticas, buscava a purificação do homem, obtida prevalentemente orgânico e da reflexão consciente; por ela o espírito se trans-
com o exercício da meditação e dirigida ao esclarecimento do fere ao âmago do objeto, para coincidir com o que este tem de
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 281
único e, portanto, inexprimível. E, desde que o objeto é a rea- ―O que é verdadeiramente admirável no homem simples,
lidade absoluta, o ato da intuição se eleva a órgão da Metafí- que ainda não se destacou da natureza e que, portanto, não in-
sica‖ (Bergson). terrompeu ainda os fios misteriosos que o enlaçam à Divindade,
―A intuição é a forma teorética primeira, mais ingênua ou é aquele sentimento de amor que penetra tão bem no presente e
auroral do espírito. Distingue-se seja do sentimento bruto e do que é tão rico de adivinhação. Esse amor leva a alma que o nu-
conhecimento lógico, que procede por conceitos universais, se- tre acima dos lugares e tempos, eleva-o àquela região aonde
ja da percepção e do juízo histórico – porque permanece aquém vão terminar todas as comunhões. Tudo o que aí se sente é atu-
da discriminação do verdadeiro e do falso‖ (Croce). al: é a única atualidade verdadeira, porque imediatamente sen-
Das famosas lições na Ecole de France, de 1840 a 1844, tiro tida... Mas que tem de comum esta segunda vista com os pro-
alguns pensamentos que a ela se referem: blemas que hoje pesam sobre a humanidade? Em que, porven-
―Donde lhe derivam (a Carlos Magno) o saber e o poder, tura, esse dom, esse espírito de intuição nos poderia ajudar a
mediante os quais estendia sua atividade a uma esfera tão am- orientar-nos na Terra? Como consegui-lo?
pla? Descia profundamente nele mesmo e de lá tirava força pa- ―Aquele dom é apenas um dos momentos mais conhecidos
ra elevar-se mais acima. Napoleão, quando se lhe perguntava aos artistas, aos soldados, aos intuitivos por pureza; momentos
de que circunstâncias dependia uma vitória, respondia que de inspiração em que nos sentimos repentinamente mais fortes
nasce de uma centelha moral, ou seja, de um momento particu- e mais perspicazes, mais videntes que de costume, mais seguros
lar de intuição. de todos os meios que possuímos, mais confiantes em usá-los.
―Assim, todas as coisas belas e grandes da história nos le- ―E qual é esse momento de inspiração? É o arrebatamento
vam àquelas regiões que chamamos intuição, ou seja, para a re- da alma a uma região superior. Porque, se nos sentimos repen-
gião interior da alma. tinamente cheios de uma força desconhecida, que não deriva
―O sentimento de admiração pela arte, pela natureza, pelo absolutamente de nossos hábitos e supera nossos meios ordiná-
heroísmo, parte de uma mesma e única fonte: a intuição. E a fi- rios, ela só pode ter vindo a nós de uma região invisível e im-
losofia está hoje no dever de atingi-la. palpável. A inspiração provará sempre, a um homem de boa fé,
―Se, para produzir esses efeitos (ardor, arrebatamento, en- a existência desse mundo invisível e misterioso, que o cristão
tusiasmo), é mister ser inspirado; para senti-los necessita-se aceita como um dogma e ao qual um filósofo de boa fé é inven-
uma alma elevada, capaz de seguir os homens inspirados em civelmente conduzido pela própria lógica‖.
seu voo para o futuro. É preciso o que Schelling chamava ‗um ◘ ◘ ◘
órgão especial‘. Passemos, agora, a examinar As Noúres de Pietro Ubaldi.
―Para compreender a arte e a filosofia e para adivinhar o fu- Aqui – o veremos em seguida – projeta-se um novo método
turo, é indispensável extrair no âmago de nós mesmos aquela de pesquisa científica por intuição e ―uma nova técnica de pen-
nota divina que aí está oculta. samento, que circunda os problemas por tipos concêntricos,
―Uma Nação que esteja pronta a captar os altos pensamen- aperta-os por ângulos visuais progressivos, enfrenta-os em vi-
tos, a tornar-se com eles fervorosa e pô-los em prática, deve es- sões e concepções poliédricas, até desnudá-los em sua essên-
tas qualidades a uma longa tradição de lutas, sacrifícios e abne- cia‖ (Noúres, Cap. I: ―Premissas‖).
gação. E não poderia conservá-las em si e aperfeiçoá-las sem Revelando assim seu método próprio, Ubaldi não ignora o
reconduzi-las continuamente às emoções fundamentais, sem en- efeito de escândalo que vai suscitar. ―Conheço esse método (o
trar a cada momento no lar tradicional, para colher a centelha racional e objetivo da ciência moderna); conheço a psicologia
que daí salta e comunicar-se com ela de longe. sufocante dos chamados intelectuais de profissão, da cultura
―Só colocando-nos neste ponto de vista, estaremos aptos a que eternamente reproduz o passado, que comenta e analisa,
distinguir os homens do passado dos homens do porvir. O indi- que nada cria, que pesa, que mata o espírito. Eu estou nos antí-
víduo incapaz de comover-se com a ideia das coisas grandes e podas‖ (idem).
divinas não é dos nossos. Entretanto, Ubaldi está bem longe de tomar a atitude de re-
―O homem que sofre, o homem que aspira, o homem livre velador de uma fé incontrolável, que se impõe a intelectos dó-
de espírito, o homem que não procede por pequenos sistemas já ceis, satisfeitos com o ―Ipse dixit‖ (Assim se diz). Com uma
feitos: este é o povo. análise introspectiva – cândida, perspicaz e perfeita até na for-
―Eis porque o povo, em certos momentos decisivos, apanha ma – introduz o leitor nos seus segredos mais íntimos, segredos
tão depressa e com um infalível sentido a verdade. pessoais e técnicos. Assim, não só ele dá valor à sua filosofia,
―Até agora, dado que ninguém o ajudava a assimilá-la, para revelando-nos suas raízes ocultas e vivas, não só acrescenta um
ele era dificílimo pôr-se naquele estado de espiritualidade em que capítulo inédito à Psicologia e à Metapsíquica, posterior e me-
a verdade se revela pronta e clara. Era necessário que o povo lhor do que W. James, Richet, O. Lodge, Osty, Bozzano etc.,
vencesse as resistências de sua organização física, rompesse os mas se oferece para iniciar quem quer que o deseje, desde que
hábitos de sua vida diária; e só conseguia isso em raros momen- seja idôneo, a basear-se numa forma novíssima de alpinismo in-
tos, ajudado por circunstâncias excepcionais; foram os seus mo- telectual, ou melhor, espiritual.
mentos de liberdade. Estrondos de trovão, tiros de canhão, cla- No segundo capítulo de As Noúres, o autor disseca o ―fe-
mores de assembleias públicas, eram necessários para arrancar a nômeno‖ de que ele é objeto, ao mesmo tempo que se faz críti-
alma do povo de seu letargo, pois os doutores da lei, os mestres co atentíssimo e incorruptível, além de espectador. Por que ca-
oficiais, esquecidos de sua missão, o haviam abandonado etc. minhos se provoca e estimula a tão falada intuição? Antes de
―Uma luz nova só auxilia àqueles que se acham prontos a tudo, encontrar um ambiente propicio: ―Eis-me em meu peque-
recebê-la. no escritório, ambiente de paz, em que os objetos têm algo de
―Chegou o tempo, diz Emerson, de dar uma base mais larga mim mesmo, em que a atmosfera ressoa com as minhas vibra-
e profunda aos nossos conhecimentos, mas para isso impõe-se ções, e tudo, por causa da vida em comum, está sintonizado
ampliar-nos e reformar-nos interiormente. É preciso começar com o meu temperamento. Eu mesmo, aí permanecendo duran-
nova vida, fazer-se uma consciência nova, aspirando novas te muito tempo para pensar e escrever, embebi as paredes, a
energias daquele espírito universal que anima e reanima tudo. mobília e os objetos de um tipo particular de vibrações, que
―Que é uma quantidade de nova luz, de novo calor? É o agora voltam a mim, como uma música que harmoniza meu
Verbo da época, o Verbo que cria, depois que a dor, inteligente pensamento. O primeiro problema é este, da harmonização, que
e moralmente, tenha quebrado os laços da alma. me permite a seleção das correntes (ou noúres) e a imersão ne-
282 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
las; delicadíssimos estados de consciência que não posso atingir nor e na especialização (...). Urge dar de novo a dignidade à
senão num oásis de paz, por meio de um primeiro processo de ciência, que decaiu no utilitarismo, reerguendo-a às descober-
isolamento vibratório do barulho violento do mundo‖. tas no campo do espírito (...). Urge erguer a ciência ao nível da
A HORA – ―É noite, cerca das vinte e duas horas, a melhor fé, para que com ela se funda e unifique o pensamento humano
hora, em que se intensificam minhas capacidades receptivas, (...). O método da intuição é o método da síntese, dos princí-
até cerca de uma hora da madrugada. Gosto das luzes suaves, pios, do absoluto, é o método interior da visão e da revelação.
coloridas, que deixam vagar os objetos nos contornos indefini- O método indutivo, experimental, é o método da análise, do re-
dos da penumbra (...). Aqui, o público está materialmente lon- lativo, o método exterior da observação. Este é prático, utilitá-
ge, mas espiritualmente está presente e próximo, e eu o sinto rio, mas dispersa o conhecimento; aquele é abstrato, teórico,
imenso, num burburinho de mil vozes: a alma do mundo. Mi- mas atinge a verdade absoluta, os princípios universais que di-
nha solidão está cheia dela (...). Em minha sensibilidade, o pen- rigem os desenvolvimentos fenomênicos‖.
samento adquire a potência do relâmpago, as correntes espiritu- O caso Ubaldi (estranho à vulgar mediunidade física e psí-
ais do mundo são tangíveis, essas forças sutis são reais, e entre quica) é por ele compreendido como ―uma sublimação normal
elas caminho manobrando minha embarcação (...)‖. de todo o ser‖. Não é um simples caso pessoal. ―Demonstra que
A COR INTERNA – ―Não se pode imaginar que poder de a verdadeira ciência, a ciência profunda que atinge a verdade,
harmonização emana de um ato de bondade; esta é uma música não pode ser alcançada senão pelos caminhos interiores, através
que eu respiro e que docemente me impele à corrente. Esta vi- de um processo de harmonização da consciência com as leis da
bração de bondade, e não só de sabedoria, é perfeição moral. vida e com o princípio divino que tudo dirige; demonstra que os
Para conquistar o conhecimento, tenho de atingir um estado de caminhos do conhecimento só podem ser os caminhos do bem,
purificação que é leveza espiritual (...). Basta imergir nas noú- que a sabedoria é um equilíbrio do espírito, que a revelação do
res para poder alcançar todo elemento energético e conseguir o mistério só ocorre de acordo com a fase de relativa perfeição
isolamento das correntes inferiores (...)‖. moral que se alcançou (...). Demonstra enfim que a ciência só
A MÚSICA – ―Procuro ajudar-me com um processo de pode ser uma ascensão cultural e espiritual, tendente à unifica-
progressiva harmonização, que opera de fora para dentro (...). ção de tudo: arte, filosofia, religião, na sabedoria em Deus, pois
Utilizo a música como primeiro degrau no caminho do bem e a lei de evolução é também lei de purificação‖. No entanto é
da ascensão do espírito. Então, lentamente (...), as harmonias natural que ―a individualidade, subindo a superiores dimensões
musicais do ouvido se transformam nas mais profundas harmo- conceituais, seja reabsorvida na unidade. Chegando a esses pla-
nias de conceitos. Luzes brandas, em tons menores, tudo em nos, sinto apagar-se a distinção entre o eu e o não-eu, sinto-me
torno, trevas. Minha alma é uma chama que arde na noite (...). desfazer e fundir, para ressurgir numa unidade mais alta e pode-
Minha consciência adormece externamente, meu eu morre às rosa; sinto realizar-se a unificação entre mim e o princípio ani-
coisas do dia, mas renasce numa realidade mais profunda (...)‖. mador dos fenômenos (...). Meu ser, então, de tal modo já se
A EPOPÉIA – ―Adormecidos e quase anulados os sentidos, harmonizou no funcionamento orgânico do universo, que não
a vida e a personalidade ressurgem num plano novo. O pensa- se sente mais distinto dele e nele se unifica; funde-se e perde-se
mento volta, mas com uma sensação titânica, com uma lucidez no grande incêndio de luz da Divindade‖.
cortante de visão, com uma rapidez vertiginosa de concepções, Isto não priva o inspirado de sua individualidade nem de sua
sentido despido de palavras, em sua essência. Tenho então a responsabilidade de cooperador, ao menos nesta causa. ―Há,
sensação de leveza e de libertação de véus e limites, sinto possu- pois, não apenas dois centros, um irradiante, transmissor, e um
ir em mim o poder da intuição e o domínio de uma nova dimen- que registra ao receber; mas há também duas atividades, porque
são conceitual (...). Então, eu vejo o que está além da realidade aqueles estão laboriosamente estendidos em direção um ao ou-
sensória do mundo exterior, isto é, as forças que o movem e tro, para alcançar a unificação‖.
mantêm seu funcionamento orgânico. Estas forças tornam-se vi- Que são as noúres em si mesmo? São correntes conscien-
vas (...), cada forma reveste um hálito divino de conceito, que eu tes, que conservam as qualidades típicas e, neste caso, consci-
respiro; então sinto verdadeiramente que o universo é um grande entes do centro genético (...). Seu campo é vasto como o uni-
organismo regido pelo pensamento de Deus (...). Desenvolve-se verso, que se torna todo noúres. Então, realmente, tudo o que
nesse momento o colóquio interior que eu registro, porque des- existe emana pensamento, e é assim que eu sinto o universo
pertaram todas as criaturas irmãs e me olham dizendo: ―mas nestes estados mediúnicos, como um poderoso organismo
quem és tu, que ouves? Escuta-nos, nós te falamos‖. Então o co- conceitual; a verdadeira grande noúre que eu capto e registro
lóquio torna-se um imenso amplexo, um perder-se por aniquila- é a emanação harmônica e orgânica do pensamento infinito de
ção dentro de uma luz refulgente, a ciência é um canto e uma Deus (...). Nestas minhas superelevações de dimensão de
oração, e nesse instante abre-se o abismo do mistério, e eu olho: consciência, tenho a visão, no fundo de um abismo infinito,
é uma visão, um êxtase. Não sei dizer outra coisa‖. deste centro conceitual (...). Chego assim a saltar em um
Observa ainda o autor: ―É um fato que gerou um efeito, que mundo maravilhoso. Possuo, então, uma nova vista, todo um
deve ter uma causa, um organismo conceitual lógico e profun- feixe de novos sentidos, sem órgãos físicos, um poder de per-
do (...). Se o efeito revela a natureza da causa, se é uma cons- cepção anímica direta, supersensória (...). Então, não vejo
trução racional completa (veja-se A Grande Síntese), não se mais o fenômeno em seu aspecto exterior, mas sinto o princí-
pode colocar como sua origem o acaso ou a anormalidade psi- pio que o move; não vejo, por exemplo, a semente em suas ca-
cológica e patológica; se a obra transcende o poder cultural e racterísticas morfológicas, mas vejo-a na íntima estrutura de
intelectual do escritor (estranho realmente à cultura acadêmi- seu ser, como vontade de desenvolvimento, como presciência
ca) deve haver em algum lugar uma fonte de onde provenha do ambiente (instinto) e do objetivo a atingir; vejo, mais pro-
tudo isto (...). Esses meus estados psicológicos representam fundamente, o ritmo das infinitas formas do passado e a von-
uma nova técnica do pensamento, novo método da indagação tade de fazê-las evolver e, mais longe, sinto o grande princí-
filosófica e científica (...). Eu o chamo método da intuição e o pio da vida que naquele tipo palpita e se exprime (...). Minha
proponho, tal como o adotei, como método mais poderoso do ascensão de dimensão conceptual permite-me subir da proje-
que o indutivo-experimental. Julgo que esse já deu o seu maior ção concreta à substância espiritual (...), derrubar os véus e
rendimento e que uma mudança de sistema seja necessária, se superar os símbolos para trazer à luz da compreensão aquela
a ciência quiser progredir em profundidade, se quiser tornar a verdade que, por motivos pedagógicos, neles era obrigada a
achar sua unidade, que ameaça agora pulverizar-se no porme- permanecer escondida (...). No mundo dos fenômenos históri-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 283
co-sociais vejo, atrás dos acontecimentos, a trama sutil em A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DE FERMI
que se entrosa a causalidade, projetada para o efeito; vejo o (Videntes, filósofos, cientistas)
progresso de um conceito para seu objetivo; vejo o fio que
une, como um colar, a série de episódios e o desenvolvimento Da revista Gerarchia – Milão, abril de 1938.
lógico que guia o desenrolar-se do fenômeno histórico. No A trajetória percorrida pelos seres criados – segundo Ubal-
mundo da matéria orgânica, sinto o turbilhonar interior dos di – é de essência biológica; de um indício, de um germe, de
átomos, sua atração e repulsão, seus amplexos por afinidade, um princípio de vida, sobe-se até à plena elaboração, à cele-
o dinamismo de suas correntes elétricas, o combinar-se e o bração da vida. Esta é movimento que parte de dentro e cami-
apertar-se de seus movimentos planetários, em fusões que dão nha para fora, para o alto, para depois regredir um pouco. Não
os diversos tipos das individuações químicas (...). Cada fenô- segue em sua caminhada a linha vertical, mas a espiral, como
meno, para não multiplicar os exemplos, traz escrito em si to- em A Grande Síntese. A natureza dessa espiral implica breve
da a sua lei, e basta escutá-la. O método experimental me dá a retorno do ser sobre si mesmo, como parada, pausa, a fim de
impressão da cegueira, que tem de recorrer ao tato. No âmago retomar o impulso para uma corrida mais rápida.
das coisas há indiscutivelmente um princípio que dirige; este Eis novas implicações da vida. Se, nos organismos inferio-
princípio eu (...) o atinjo pela percepção, dirigida através de res, o impulso vital, centrípeto ou centrífugo, é favorecido ou
um sentido meu da verdade (...). O uso deste método, inicial- movido pelo prazer (ao passo que a dor é a sanção dos atos an-
mente intuitivo, depois dedutivo, é necessário hoje (...) para tivitais), acrescenta-se no homem o motivo ético, ou sentimento
contrabalançar a dispersão do conhecimento (...) senão cada do dever, ligado com a noção do bem, do mal e da liberdade.
vez mais se acentuará o isolamento do cognoscível na espe- Surge aqui, necessariamente, uma complicação, causa de
cialização e na desorientação diante das causas‖. graves conflitos. O prazer (maquinismo biológico importantís-
Seguem-se declarações e confissões pessoais, que explicam simo) para os indivíduos espiritualmente não evoluídos, ao in-
a extrema delicadeza de sua tarefa, as precauções que se devem vés de meio, torna-se um fim em si mesmo, e em si mesmo
tomar, os perigos que se devem evitar; numa palavra, a deonto- procurado; por exemplo, a nutrição (centrípeta), a sexualidade
logia do intuitivo que queira conduzir a bom termo seu empre- (centrífuga). Uma perversão, como se vê, que frustra os fins su-
endimento. Pois ele deve, antes de tudo, purificar e enobrecer a periores, nos quais está colocado o bem de cada um e de todos.
si mesmo, corpo e alma – na dieta física e espiritual, na vigilân- Neste caso, os que colocam o prazer como bem e dele cons-
cia dos sentidos, na escolha dos ambientes e das companhias – tituem um ídolo, sofrem suas consequências, mais ou menos
para que o delicadíssimo instrumento do conhecimento intuiti- voluntariamente. ―Pois do próprio seio do prazer, surge o remé-
vo se mantenha idôneo. Plotino fazia, em substância, a mesma dio, que por outro lado é muito amargo‖ (Lucrécio).
recomendação. Em todos, sem exceção de nenhum, os grandes Ubaldi, que bem a experimentou, eleva à dor – remédio
providencial – hinos triunfais. Ele sente, em medida consenti-
místicos e contemplativos – genuínos e máximos intuitivos –
da a poucos, o ―Beati qui lugent‖ (jamais será adulador dos
puseram isso em prática.
que gozam).
Os Capítulos II e III ligam-se ao V, que exemplifica autobi-
Os hedonistas, que odeiam o cristianismo como qualquer
ograficamente a técnica noúrica, ao passo que o IV é prevalen-
outra filosofia austera, opõem que a dor (portanto, logicamente,
temente histórico, todo consagrado aos ―grandes inspirados‖
o dever, o esforço, o sacrifício) é antiorgânico, antivital, mortí-
(...). Essas páginas, não muito numerosas, são mais ricas de
fero. Isto é verdade no sentido de que o elemento inferior se de-
compreensão e mais verdadeiras do que os volumes de Biotot e
teriora para permitir o desenvolvimento do superior: do eu mais
de E. Schuré, que trazem título semelhante. O autor, após des-
alto. Da mesma forma, e pela mesma razão biológica, a maté-
crever o fenômeno inspirativo observado na pessoa dos profetas ria, depois que atingiu a maior potência nuclear e eletrônica, se
máximos do Velho e do Novo Testamento e na história da Igre- desagrega, irradiando-se.
ja, em particular São Francisco de Assis, passa a demonstrar aí, O progresso evolutivo implica uma degradação progressiva
como a sua própria teoria recebe precisa ilustração e confirma- de potencial. Na natureza do transformismo evolutivo está a ra-
ção inequívoca na história de Joana D‘Arc, a partir do momento zão profunda destes fenômenos. O próprio enfraquecimento ci-
em que ouviu, adolescente, as primeiras vozes, que lhe foram nético progressivo, na fase ―energia para vida‖, como na de
inspiração e guia no breve mas condenadíssimo período em que ―vida para espírito‖, é apenas a constante e substancial caracte-
se desenrolaram suas façanhas épicas e trágicas. rística do fenômeno evolutivo.
Deste capítulo e de todo o livro, aconselho vivamente a lei- Isto porque a evolução, reduzida à sua substância funda-
tura a todos os que não sejam hipercríticos e grosseirões, na mental, é movimento, ou seja, um processo de descentralização
certeza de que encontrarão prazer e aproveitamento, que não se cinética, uma expansão do princípio que se dilata para a perife-
encontram com facilidade juntos, num livro moderno. ria, uma subida que se opera através do esgotamento de um im-
◘ ◘ ◘ pulso, filho de outro precedente e contrário impulso involutivo
No próximo número de Gerarchia apresentarei uma apreci- de concentração cinética e condensação dinâmica, de centrali-
ação clara da obra capital A Grande Síntese, comparando-a zação de potencial da substância, a que agora se contrapõe o
com os dados fundamentais da ciência moderna, tal como é cul- processo inverso de subida. Com efeito, a ―degradação biológi-
tivada em todo o mundo civilizado, com métodos e resultados ca é parte integrante do fenômeno evolutivo e existe como con-
convergentes; é um empreendimento temerário, muito superior dição do processo genético do psiquismo‖.
às minhas forças, mas do qual não posso fugir. Enfim, direi A lei aplica-se maravilhosamente à vida ética – constituindo
candidamente minhas impressões. mesmo a sua substância – no indivíduo e na sociedade.
Desde já, faço votos que outros, muito mais competentes Observe-se a atividade fisiológica (nutritiva e sexual), eco-
e melhores que eu, apresentem-se para julgar uma tentativa nômica e social. Os excessos e os vícios que a moral e a reli-
tão grandiosa, indo atrás das minhas pobres pegadas, para gião condenam são, para quem os considere bem, fatos involu-
apagá-las. tivos e antissociais. A dor que produzem terá, de qualquer mo-
Uma coisa me parece certa: a história humana do pensa- do, a força de emendá-los.
mento, de acordo com a história civil, está voltando sua proa Segue-se daí que a dor e toda forma de castigo se transfor-
para outros portos, seguindo caminhos diversos dos que até mam em redenção e se tornam preciosos instrumentos de pro-
aqui percorreu. gresso social; mas aparecem aos olhos do vulgo como pouco
(a) Fermi menos do que escórias e refugos.
284 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
Portanto é necessário aceitar a dor (se incurável) e conside- totalmente inepto a viver num regime de colaboração, em que a
rar o trabalho como dever e missão. Eis uma atitude razoável; consciência mais evoluída sente necessidade de multiplicar-se.
seria irracional e absurda a rebelião contra a natureza das coi- Pois bem, essa consciência civilizada é gigantesca força,
sas. Esta favorece os voluntariosos e esmaga os renitentes. justamente a força do homem civilizado. Aqui o autor condensa
Então, se a evolução significa conquista de consciência, de a ideia que circula em toda a sua obra.
liberdade, de felicidade, e a involução significa o contrário, na ―Vimos (Desenvolvimento do Princípio Cinético da Subs-
baixeza de nossa natureza está a causa de todos os males, e na tância) a lei guiar a energia e redobrar-se sobre a matéria, para
ascensão espiritual está todo o remédio. É justa a aspiração à animá-la com seu impulso e elevá-la ao nível da vida; depois
alegria, e a felicidade pode existir, mas é indispensável subme- impor à vida, filha da energia, que elabore a matéria até ao psi-
ter-se ao trabalho de conquistá-las. O Evangelho é uma estrada quismo. Essa mesma lei de coesão, que impõe um recomeço de
espinhosa, mas só por ela se pode seriamente alcançar o paraí- movimentos inferiores, para que revivam em oitavas mais altas,
so sobre a Terra. e faz dobrar o alto para o baixo, para que este seja retomado pe-
―Toda concepção hodierna da vida está aqui deslocada, e lo ciclo evolutivo e jamais possa ser abandonado fora do círcu-
sois obrigados, por vossa ciência, cuja linguagem sempre falei, lo e apodrecer no fundo, fora da grande caminhada progressiva,
a compreender e efetuar por coerência esta deslocação. essa lei, que quer assim, é a mesma que impõe ao super-homem
―Na verdade, o homem só pode existir imerso na grande lei (santo, herói, gênio) que se sacrifique pelos irmãos menores, é
divina. Isto faz tornar-se absurda qualquer culpa, qualquer bai- o movente de seu instinto irresistível, de altruísmo e martírio‖.
xeza: torna utilitária a estrada da virtude‖. Por esse caminho, superadas as fronteiras e deitadas no chão
Portanto, ao conceito limitadíssimo de uma força nossa in- as barreiras de toda espécie, o super-homem pratica uma ética
dividual, que guia os acontecimentos, precisamos substituir o internacional e prepara um direito internacional.
conceito vastíssimo de uma justiça que impõe seu equilíbrio e Não se creia que Ubaldi reduza a virtude a um egoísmo refi-
suas compensações no destino. nado. Cristão até à medula, aponta o Evangelho como o código
A Providência, compreendida assim, é um momento da supremo da moral e a moralidade social definitiva na lei: ―ama
grande lei, permeada de equilíbrio, que adere ao mérito, susten- teu próximo como a ti mesmo‖. Esta forma uma unidade com o
tada por compensações contínuas – é a justiça em ato. amor de Deus, e só ele pode ordenar o amor aos inimigos.
Mas a Providência não justifica uma espera inerte e passiva; As relações sociais são grandemente econômicas. Ora, a ci-
age sobretudo no justo que quer o bem e que, lutando, o impõe ência oficial cometeu um erro duplo: 1) forjou um ―homo eco-
com seu esforço. nomicus‖, isolando-o dos outros aspectos e funções de humani-
Quando passamos ao campo social, apresenta-se o proble- dade: um ente que não existe na natureza; 2) codificou o ego-
ma da força, que a história parece identificar com a justiça. A ísmo, reconhecendo a legitimidade do princípio hedonístico,
primeira é necessária tensão da vida, imperial e tirana, mas de- anticolaboração por excelência, isto é, antissocial. Os dois erros
grau de ascensão. O caótico choque das forças, ainda à procura justificam todo o egoísmo de indivíduos, grupos, classes, na-
dos equilíbrios superiores do direito, expandindo seus impul- ções, interesse de todo o gênero. Será uma guerra geral, da qual
sos interiores, prepara o amadurecimento da unidade coletiva. só pode derivar a destruição.
Enquanto reina a força bruta, o melhor é o mais forte (Áries = Ao contrário disso, a evolução tende, como sempre, a redu-
Marte, donde Aristos). É uma justiça proporcional à baixeza zir, sitiar, eliminar os impulsos egoísticos. Ao passo que o
do nível e não pode ir além da seleção natural. A vida é uma mundo econômico, edificado sobre a santidade do egoísmo, es-
expansão de egoísmo e é só dilatando-o que o coordena com os tá cheio de crises inevitáveis, sem remédio. A solução dos con-
egoísmos limítrofes, para que possam fundir-se. O indivíduo, flitos não está na criação de um rebanho de irresponsáveis,
impelido a elevar-se pelo impulso biológico, descobre metas mantidos pelo Estado (bolchevismo), mas, ao invés, de respon-
cada vez mais altas, trata de alcançá-las melhor na coletivida- sáveis, que saibam manejar conscientemente as grandes forças
de, e então o ciclo infeliz, que se chama ignorância, egoísmo, econômicas, não com mutilação, mas com acréscimo de cons-
força, luta, dor, mal, tende a despedaçar-se. É a gênese da ciência, liberdade, confiança, responsabilidade: uma revolução
guerra. Dadas as condições atuais (não futuras) a guerra é ne- ética em grande estilo.
cessária. No entanto esse mal de transição já se inverte num re- ―Na direção dessa renovação só pode estar o órgão máximo
florescimento de bem, porque ensinou ao homem feroz a matar da consciência coletiva: o Estado. O fenômeno econômico es-
também por uma ideia, a dilatar o próprio egoísmo até à cole- pera da autoridade central do Estado – como personificação
tividade, a sacrificar-se pela pátria. concreta da ética humana – cada vez mais enérgicas infusões
Então, seguindo o mesmo impulso, passa-se da força ao di- de fator moral, com obrigações e retoques que purifiquem a
reito, do egoísmo ao altruísmo, da guerra à paz. atividade econômica e a riqueza, dirigindo-a para fins mais
Foi assim que nasceu o direito: primeira centelha de coor- elevados. Cabe ao Estado intervir e corrigir, introduzindo um
denação e de força social, do centro à periferia, do indivíduo à mínimo de ética cada vez mais alta no fenômeno econômico,
coletividade, em suas expressões cada vez mais vastas de direi- guiando por dentro e por fora o cruel equilíbrio das trocas, para
to privado, público, internacional. um regime de colaboração, que não é apenas compensação,
Neste sentido, direito é uma ideia mais exata da justiça, o mas compressão de egoísmo; não só coordenação, mas fusão
mal é o passado, o bem é o futuro. Pois culpa é todo regresso num organismo econômico universal. Uma ciência econômica
voluntário, que a lei corrige reconstruindo o equilíbrio por meio consciente da Lei não deve surgir sobre bases hedonísticas,
da reação da dor; virtude é tudo o que acelera o progresso, e mas colaboracionistas, pois numa sociedade adiantada, a fase
portanto é premiado. ética e utilitária é cooperação‖.
O homem de pensamento deduz daí que ―a evolução provo- Esta função econômica não é certamente nem a única nem a
ca a demolição progressiva do egoísmo, após havê-lo sitiado e mais delicada função do Estado. Qual é então a essência filosó-
obrigado a render-se‖. fica do Estado? ―É o organismo, situado no centro do organismo
O ser moralmente elementar, mesmo se inteligentíssimo, vê social, centralizador do poder diretivo de todas as funções de um
apenas o pequeno ―eu‖ (o ―eu‖ superficial!) e se fecha, como o povo. Compreendido assim como poder, ele é o órgão psíquico
primeiro Fausto, no átimo que foge. Ele não se sente como vi- promotor e coadjuvador das maturações biológicas individuais e
vendo no tempo e na humanidade; em sua miopia psíquica, iso- sociais. Sua função é construir o homem, impulsionar as ascen-
la-se no próprio bem mesquinho, fora do grande bem coletivo. É sões humanas; seu mais alto objetivo é criar no campo do espíri-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 285
to‖. Visto assim, do alto, o comando supremo é apenas o traba- Nesse organismo, obedecer não é servir, mas valorizar-se. O no-
lho e a função suprema, a capacidade psíquica e volitiva supre- vo Estado terá o monopólio da força, na medida em que o impé-
ma, a responsabilidade, o perigo, o peso supremo. Esta é posição rio da força se torne necessário pela animalidade não subjugada.
de dever, posição de obediência aos princípios da Lei. Não será agnóstico; deverá ter uma concepção sua, ampla, da
―Em cada idade, tem o Estado sua tarefa precisa. A Idade vida, e fazê-la compreender, para que se realize. Deve conhecer
Média, em suas condições sociais involuídas, só podia oferecer o homem. No princípio, o centro se deterá num puro enquadra-
ao indivíduo um sonho de libertação individual pelo caminho mento das massas, mas o futuro consistirá na penetração das al-
da renúncia mística. Titânica ebulição de almas, mesmo assim a mas. Neste novo Estado, o indivíduo realiza sua maturação bio-
Idade Média lançava no campo da arte, da política, da ciência, a lógica para a fase do super-homem, todas as forças sociais são
semente das maiores construções espirituais. Amanhã, a grande disciplinadas para um objetivo de elevação coletiva. Os instintos
revolução da humanidade (agora iniciada), filha de um amadu- inferiores atrofiam-se por não serem usados, os elementos mais
recimento biológico substancial, trará à luz o advento político involuídos são domesticados, porque absorvidos na corrente que
da intelectualidade consciente, amadurecida na raça, construto- os orienta para metas espirituais superiores.
ra de instintos mais altos, que tornem o homem um ser escolhi- ―Valorizadas as atitudes, eliminadas as rivalidades, impedi-
do por seleção para o ofício social do mando – uma escolha in- dos os desperdícios de riquezas e energias, o povo realiza len-
substituível por qualidades próprias e eminentes – como o sis- tamente as grandes assimilações espirituais e, compacto, avança
tema nervoso nos organismos animais superiores. Então, será para a conquista de seus ideais. O trabalho, iluminado por fina-
mais nítida e orgânica a divisão do trabalho, por especificação lidades superiores, não é mais uma condenação, mas é triunfo
de capacidade, base do corporativismo moderno. cotidiano sobre a matéria, triunfo da vontade e do espírito, viril
―Hoje, por obra do Estado, retoma-se o ciclo romano das ato de domínio. O Estado impelirá os cidadãos através da célula
construções e conquistas coletivas; não se pode mais conceber corporativa, num fecundo amplexo produtivo.
o indivíduo isolado dele, mesmo se santo, na fuga mística do ―No novo Estado, as anarquias econômicas devem ser eli-
consórcio humano, mas apenas o indivíduo com ele fundido em minadas, o individualismo não é admitido, por ser desordem.
colaboração fecunda. Agora podemos mais exatamente definir O homem futuro que ele quer construir, não será uma simples
o poder como a central psíquica e volitiva de uma nação. máquina de fabricar dinheiro, apenas uma hipertrofia volitiva,
―Hoje, ao retomarem-se as tentativas de 1600 – grandiosas, mas um homem completo mesmo em seu lado espiritual, no
mas desviadas por ambições dinásticas e parasitismos de corte- desenvolvimento harmônico de todas as suas faculdades (...).
sãos – o Estado se torna cada vez mais orgânico, progredindo O Estado aspira e emana, centraliza e descentraliza, é o cora-
em profundidade, não para sitiar o indivíduo, mas para valori- ção que a cada instante lança todo o seu sangue, para que cir-
zá-lo e levantar-lhe a consciência e, deste modo, enriquecer ca- cule em seu organismo.
da vez mais as suas funções... Agora, o Estado já não é mais ―Gravíssimo erro do marxismo foi o de ver só os aspectos
apenas um poder central sobreposto a um povo... Hoje, não obscuros e deteriorados da convivência humana; uma concep-
mais se admitem essas superposições. E não sendo mais o Esta- ção negativa e aniquiladora, semente de destruição, e não de
do um poder central dominador, ele é o cérebro de seu povo, e construção. Hoje, o Estado sente o dever de anular a luta de
só pode ser a expressão de uma consciência nacional, de uma classe, antieconômica e imoral, que domina os antagonismos
unidade de espíritos, baseada numa unidade étnica. econômicos.
―O Estado hodierno, democrático e aristocrático ao mesmo ―Mas estava nas leis da vida a ascensão e uma fusão e soli-
tempo, representa a fusão de dois princípios de centralização, dariedade de todas as forças da produção, sem opressões e su-
ambos necessários. Em sua função totalitária, ele cria uma co- pressões, dando lugar a todos, para que todos dessem sua con-
letividade mais compacta, em cujo seio o indivíduo não é mais tribuição. E todas as classes encontram, no colaboracionismo,
o membro desordenado de um rebanho também desordenado, reconhecimento e proteção; o agricultor, o soldado e o operá-
mas é o soldado de um exército em marcha, em que vibra a rio. Colaboração, e não luta de classes. A propriedade é base
alma do chefe. Pela primeira vez, na história, o Estado faz do natural do edifício econômico, como a família o é do edifício
povo um organismo, em cujo centro, fundido com ele, faz-se a social; é, como esta, uma lei da natureza, própria ao mundo
síntese de vontades e de poderes. No Estado moderno, o povo animal. Destruir estas unidades primordiais insubstituíveis é
não é mais o rebanho governado, que deve apenas dar e obede- demolir a natureza humana.
cer, mas é o corpo do cérebro central (o governo), o organismo ―Às revoluções destruidoras, sucedeu uma revolução cons-
daquela alma dirigente, que o penetra por todos os lados e o trutiva, que enquadra todas as forças e delas forma uma unida-
vivifica com seus tentáculos e ramificações nervosas. Não de; às revoluções que sobem – de baixo – para demolir, suce-
mais um chefe ou uma maioria que governa para si, mas uma deu uma revolução que desce – do alto – para construir; descida
doação de deveres na cooperação, uma fusão completa, num das aristocracias do pensamento para erguer os humildes, subi-
trabalho e num objetivo comuns. da dos humildes para compreender. A tarefa das classes não é
―Entre as funções do Estado, a primordial é a de ser instru- eliminar-se, mas dividir entre si os frutos da própria civilização,
mento de ascensões humanas. Pela altura e intensidade com que dirigindo-se à compreensão recíproca. O papel da classe diri-
tiver sabido educar, mede-se o valor de um governo. Nas ativi- gente não é dominar, mas educar a plebe tumultuosa, velho ins-
dades individuais e sociais realiza-se o princípio da Lei que diz: trumento de vinganças, muitas vezes vítimas das repressões,
ordem. Move-se tudo ao longo de uma linha de coordenações e sempre massa ignorante, amorfa e cega; para transformá-la em
de harmonizações (...). Por esse caminho, o centro, atingida a povo que ascende para mais alta consciência coletiva‖.
periferia, volta ao centro; este se reforça pela aderência do indi- Um leitor apressado, versado na história das religiões, se-
víduo, o indivíduo se valoriza na coletividade, acentuando seu ria induzido a acreditar que em A Grande Síntese revivem as
rendimento. O Estado entoa a música da cooperação, prevê e tendências gnósticas, tão insidiosas contra o cristianismo que
une no espaço e no tempo, antecipa e providencia, garante e pro- nascia e, por isso, condenadas desde o primeiro instante pela
tege. Só ele pode criar uma atmosfera ética em que podem flo- Igreja, tanto quanto pelo bom senso. Já São Paulo se insurgi-
rescer as delicadas produções do espírito; só ele pode elevar as ra imediatamente, e não só ele, contra estas ―aniles fabulae‖
superiores atividades intelectuais, que de outra forma escapam à (velhas histórias).
consciência coletiva, sendo condenadas à extinção pelo princí- Para quem não tem as ideias claras sobre a matéria, traduzo
pio hedonístico. Nele nada se perde, cada um tem sua função. uma página de A. Lulicher (um douto racionalista): ―Não exis-
286 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
te um ensinamento gnóstico fundamental. Os gnósticos autên- clarações repetidas e decisivas de Ubaldi – de quem ninguém
ticos só têm em comum o fato de quererem alcançar os objeti- pode contestar a sinceridade e o desinteresse – nas quais afirma
vos da religião, isto é, a liberação do espírito da servidão da sua plena e filial adesão ao cristianismo. Essa necessidade de
matéria mediante o ensinamento de uma ciência oculta, que, pertencer a uma sociedade visível que, no decurso de uma his-
antes de tudo, consiste em especulações cosmogônicas e, de- tória bimilenária, desenvolveu o drama único da espiritualidade
pois, em preceitos e normas para facilitar o processo de divini- cristã, é característico (não digo exclusivo) dos italianos.
zação. Os gnósticos cristãos, em particular, não se apresentam Ele, portanto, nem sonha pregar uma nova religião, nem
como filósofos que esperam demonstrar racionalmente sua fundar igrejolas, nem deixar sem freio seu enorme poder de in-
doutrina. Ao contrário, dão-se o ar de apóstolos ou profetas de tuição, de forma a tirar-lhe qualquer controle. Esta a relação de
uma nova sabedoria revelada, que eles, conforme os gostos, Ubaldi com a religião católica.
receberam, ora de iluminados contemporâneos, ora de desco- Passemos à ciência. Na questão particular da física atômica,
nhecidos discípulos dos apóstolos, ora de uma literatura anti- temos uma confissão recentíssima do ilustre Heisenberg. Diz
quíssima que estava escondida (o último processo ainda está ele: ―Pelo que diz respeito às forças que mantém as partículas
em uso em certas igrejolas). Quase sempre se descobre aí uma elementares, prótons e nêutrons, no núcleo, sobre sua espécie e
marca forte das concepções babilônico-persas, que, nos cultos origem, nós ignoramos quase tudo; mas aqui se apresentam os
misteriosos daquele tempo em que florescia o sincretismo reli- problemas mais importantes para a física hodierna (...). Não
gioso, se haviam misturado singularmente às ideias gregas. Por poderemos conhecer de nenhum modo a natureza do ferro, se
isso, na base das doutrinas, encontra-se um grosseiro dualismo, não chegarmos a compreender a relação com outros fenômenos
mas dissimulado por arabescos politeísticos, pelo qual o espíri- da física atômica etc.‖. (Veja Scientia, 1o fevereiro 1938).
to é matéria, Deus e o mundo aparecem como antíteses absolu- Então, é útil pôr em confronto fenômenos e fenômenos,
tas, o processo esotérico apresenta-se ligado à devastação das próximos e remotos, mentais e físicos etc. Não basta, pois, a
forças morais, os indivíduos surgem como meros espectadores simples observação dos fatos físicos, nem o cálculo matemáti-
passivos do drama das forças que movem o mundo‖. (Die Rel. co, que invadiu tudo e se tornou arrogante como a velha meta-
lesu und die Anfange des Shristentums). física – pois o número não é tudo, graças a Deus. Aliás, sabe-
Ora, compare-se a gnose com o fundo doutrinal de Ubaldi: mos as lacunas, as incertezas, as hipóteses contraditórias e ge-
―Eis o mecanismo secreto da Lei: o psiquismo animador das ralmente efêmeras que ofuscam a face da ciência, especialmen-
formas, sede da centralização dínamo-cinética da substância no te quando se passa do inorgânico ao orgânico, da mecânica à
nível α, exprime – no instinto fundamental da vida, que é a insa- biologia, e desta à psicologia e à moral; do homem indivíduo
ciabilidade do desejo de evoluir – o impulso irresistível para a aos fatos sociais, econômicos, étnicos, políticos, estéticos. A
descentralização. O desejo nascido dos movimentos íntimos da pretensão de uma continuidade ininterrupta entre os fenôme-
alma, cria a função, a função cria o órgão, que por sua vez con- nos faliu miseravelmente.
solida a função. Tudo no universo grita a paixão de exprimir sua Já mostrei as incongruências, os delírios, a confusão que tor-
potência interior, a paixão do ―Eu‖ que luta para aparecer à luz e nam o campo das ciências sociais desagradável, quase sempre
revelar-se. É o cotidiano esforço da evolução que fixa em órgãos estéril, quando não infestado por ervas maléficas. O que mais
a expressão de um desejo tenaz e vitorioso, órgãos que fazem o impressiona, e dolorosamente, é a desorganização que impera
psiquismo tornar-se motor, dando-lhe a possibilidade de mover não só nas relações entre grupo e grupo de ciências afins, (me-
os corpos. Este, uma vez estabilizados seus meios, serve-se de- nos a astro-físico-química), mas também entre disciplinas diver-
les para exprimir-se ainda, cada vez mais longe, aperfeiçoando- sas e até nas partes contíguas de uma mesma disciplina. A filo-
os e multiplicando-os. Acossando os órgãos está sempre este sofia, que, depois da teologia, reinava soberanamente sobre as
impulso, esta indomável necessidade do desejo da alma, que não ciências subordinadas, condenando-as, agora, pela força das coi-
se deterá jamais na evolução, porque não tem confins‖. sas, deixa que estas sigam imperturbáveis em seus caminhos.
Aqui não há segredos, não há fantasias, nem misturas sincre- Teremos, então, de resignar-nos a uma anarquia, que, por
tistas. Ao contrário dos gnósticos, longe de todo dualismo, Ubal- agravar-se com o progresso em cada campo, aumentará for-
di retoma, dando-lhe outro sentido, a palavra desacreditada ―mo- çosamente.
nismo‖ e, em consequência, reconhece na natureza, na matéria, a As condições da filosofia não são mais alegres. A imagem
mente e a mão de Deus. Dessa certeza se desprende um otimismo hierática quase do antigo sábio (Pitágoras, Heráclito, Empédo-
são e iluminado, que induz a uma luta viril até a morte. cles) que passa pela multidão, ou se ergue no meio de uma elite
O método, não obstante insólito, é conhecido pelos filósofos de discípulos, venerado quase como um revelador descido do
e psicólogos e está ao alcance de todos, desde que sejam apli- céu, já foi feita em pedaços. Deixando de lado epigramas dos
cadas as condições pedidas pela própria natureza das coisas, escarnecedores e o sacudir dos ombros dos céticos vulgares,
pois a ―intuição‖ é uma faculdade concedida a todos, mas, sen- achamos que, agora, o valor intrínseco da filosofia parece quase
do poder eminentemente espiritual, requer necessariamente reduzido a zero a não ser para os escolares ingênuos. Para Win-
uma disciplina interior, um treinamento, uma catarse e uma ten- delband ―os valores pessoais de criação, expressos em Platão,
são, acessíveis a pouquíssimas pessoas. É o método que cele- em Descartes ou em Hegel são (...) vivas entidades espirituais,
braram e praticaram não só os iogues, os neoplatônicos e os que atuaram na fórmula dada por eles para o problema do uni-
―sufis‖, assim como os maiores santos e místicos cristãos. verso e do homem‖. Para Bréhier, ―as doutrinas filosóficas va-
A Igreja, que repeliu em todos os tempos tudo o que aparece lem em razão do impulso espiritual que as criou; não são coi-
como fantasioso, ocultista, histérico, tudo o que separa os indi- sas, mas pensamentos, temas de meditação propostos ao futuro
víduos e os grupos da comunidade, inspirando aos primeiros o etc.‖ (de Z. Zini). Estes são filósofos autênticos e, além disso,
orgulho de uma superioridade insubsistente, não me parece ter otimistas. Imaginemos os outros.
motivos para condenar Pietro Ubaldi. E o silêncio que ela vem As tentativas, feitas desde 1860, para ressuscitar os quatro
mantendo há cinco anos (A Grande Síntese saiu em série desde Chefes de Escolas alemães, para fazer frente ao positivismo,
1932), dá bem a medida de sua grande prudência, tão diversa da obtiveram fracos resultados e contribuíram para aumentar as
atitude dos fanáticos, que gritam escandalosamente, logo que divisões.
lhes chegue aos ouvidos uma frase que soe diversamente do Os neoescolásticos, no louvável propósito de reivindicar o
que decoraram, sem compreendê-lo. Aliás, não há necessidade ―objeto‖ – que a idiossincrasia dos alemães, inclinados a absor-
de recorrer a interpretações benévolas de amigos; temos as de- ver tudo no ―sujeito‖, havia rejeitado – não deveriam esquecer a
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 287
sábia exortação de Leão XIII: ―Fazei vós também o que São vera lhe terem sido sugeridas por seres superiores. Dois anos
Tomás de Aquino faria se vivesse em vosso tempo‖. Se não, depois, e sempre acusando a mesma proveniência, escreve um
sua influência não sairá dos próprios claustros. volume de 400 páginas – do qual fiz a apreciação – perfeitamen-
É boa a teoria de Rickert: a verdadeira realidade é a que as te orgânico e coerente, que, pode dizer-se, enfrenta todos os
ciências do espírito nos revelam, ao passo que a natureza é ape- problemas mais delicados pertinentes à vida e à ciência, mostra-
nas uma imagem abstrata e abreviada dela, criada pela necessi- se bem informado (mas por caminhos extraordinários) dos últi-
dade que tem o homem de dominar, classificando e tornando mos resultados desta, achando conexões inéditas e antecipando
uniforme a infinita variedade dos ―indivíduos‖ de que consta descobertas teóricas. Tudo isso, numa forma literária irrepreen-
sua experiência. sível, lúcida e elegante; com um tom elevadíssimo, uma espiri-
Entretanto, é muito mais cômodo ter à disposição arquivos tualidade cálida e pura, e uma humanidade palpitante.
mentais bons, do que lançar ao cérebro um monte de conceitos, É claro que ele, com esta e outras publicações (a que melhor
ainda que sejam vazios. E são muito incômodas as ―filosofias esclarecerá seu pensamento religioso e dissipará equívocos está
dos valores‖, quando impõem a coerência entre os atos e as teo- no prelo) pensa exercer um nobre apostolado, conclamando os
rias. Há cerca de um século os filósofos e literatos se lançam contemporâneos a um gênero de vida mais razoável e digno.
contra toda ideia de obrigação moral, que é condição ―sine qua Abstenho-me de entrar neste campo, para não ultrapassar os li-
non‖ de toda vida associativa. mites dentro dos quais se move Gerarchia. Mas, de resto, não
Bergson e Blonde deram séria atenção ao fenômeno ―vida‖, titubeio em convidar os homens de pensamento e de boa vonta-
―energia‖, que quase escapou aos velhos filósofos (excluindo de, aqueles sobre os quais pesa a responsabilidade do bem pú-
Leibnitz, Vico e pouquíssimos outros) e reuniram em redor de blico, para que tomem em seríssima consideração, ao menos te-
si certo número de discípulos, como aconteceu na Itália com oricamente, a mensagem que há oito anos Pietro Ubaldi não se
Groce e Gentile, ligados ainda, especialmente o primeiro, a um cansa de lançar ao Velho e Novo Mundo, com um resultado
subjetivismo nórdico, no qual, entretanto, não é fácil achar o imprevisto na América Meridional. Enquanto ele vai cumprin-
―subjectum inhaesionis‖ do Absoluto, se não é Deus vivo e do esta sua missão, não espera nem deseja vantagens de qual-
verdadeiro. Mas as quatro escolas, mesmo que se unissem às quer espécie. Até está pronto a pagar a missão com a sua pró-
estrangeiras e não estivessem, além disso, ferozmente dividi- pria pessoa. Pois sabe bem que não é digno de trabalhar para
das entre si, constituiriam, ainda assim, uma minoria de pouca uma grande causa quem não está pronto a suportar por ela – se
eficácia no público. necessário – até o martírio.
Com efeito, os cientistas, por exemplo, não querem saber de Com isto, disse implicitamente meu pensamento (firmemen-
tantas filosofias em voga. E, quando têm veleidades metafísi- te orientado para uma filosofia que usa a intuição para construir
cas, então muitos se formam num pan-matesismo ou panaritmi- a personalidade), se isso pode por ventura interessar a alguém.
smo (peço perdão pelos feios neologismos) cósmico, que supe- (a) Fermi
ra o panlogismo de Hegel.
Estamos, portanto, como nota Külpe ―num período patoló- ASCESE MÍSTICA – APRECIAÇÃO DE FERMI
gico de transição, em meio a uma verdadeira anarquia filosófi- (Videntes, Filósofos, Cientistas)
ca‖. E isto tem de levar a efeitos catastróficos, especialmente de
ordem moral e social, pois o bacilo do ceticismo acha aqui a Da revista Gerarchia – fevereiro de 1939.
cultura mais favorável e os efeitos são os mais desastrosos. R. C. Adhikary, da Universidade de Calcutá, escreveu para
Qual é a culpa? Primeiramente, as divisões, as rivalidades Scientia (1939) um quadro da filosofia indiana, donde extraiu
religiosas, que dilaceraram a unidade espiritual da Europa; de- algumas afirmações: ―Eles (os autores dos Upanishad) tinham
pois, a vitória dos interesses materiais, que desviaram o ho- chegado a esta explicação do mundo (como derivado de Deus);
mem dos superiores interesses espirituais, criando filosofias em parte, como consequência de observações empíricas, con-
sem interioridade, superficiais, efêmeras, conhecidas hoje e duzidas durante muitos séculos, e, em parte, como resultado de
esquecidas amanhã. iluminações intuitivas, fruto também de um modo santo de vi-
Além disso, voltando à Idade Média, encontramos a tendên- da‖. Depois, enumerados os principais sistemas, diz do 2 o, ou
cia racionalística inerente a um aristotelismo mais ou menos seja, do Yoga: ―Ele é, do princípio ao fim, um sistema prático
sensista, mais ou menos ligado a Averroes. E, enfim, o indivi- de disciplina mental, com uma metafísica reduzida ao mínimo.
dualismo endêmico, desenfreado, que o regime burguês- Objetiva a disciplinar o corpo, o espírito e a alma, controlando
capitalista glorificou. a dieta, o regime do pensamento e o modo de meditar, com o
Necessitar-se-á, pois – ai de mim! – mudar de vida e mudar que se cria a atmosfera mais apta para que o espírito finito pos-
de rumo. sa complementar o Infinito, o Eterno, o Divino. Embora o sis-
Para mudar as vidas, só a religião. O rumo (do pensamento), tema Yoga se ocupe essencialmente de disciplina, esta é aplica-
cada um pode escolher por si, até certo ponto. Pietro Ubaldi si- da como elemento comum (note-se bem) em todos os sistemas
tuou-se no caminho da intuição, quase abandonada há séculos, ortodoxos de pensamento entre os indianos. Isto distingue a Ín-
com intransigente resolução. E recusou para si qualquer outro dia do Ocidente. No Ocidente, a filosofia é um gênero acadê-
meio de conhecimento. mico de especulação. Na Índia é uma questão de vida e de mor-
Agora não me proponho mostrar os benefícios do método. te, pelo que são tomados em consideração os meios práticos de
Mas faço observar que um cuidadoso exame do ―senso íntimo‖ ensinar aos homens a evasão das escravidões materiais, das ilu-
(o ―sensus abditus‖ de Campanella) provoca o aparecimento na sões dos sentidos, da obscuridade, das incertezas, da dúvida‖.
consciência de uma série de elementos heterogêneos, que trans- Se Adhikary quer referir-se ao ocidente moderno, tem ra-
cendem os ordinários meios de aquisição, e desvenda as raízes zão. De outra forma, não. Na Antiguidade, Pitágoras e Platão,
irracionais da chamada razão. os estoicos, os cínicos e os próprios epicuristas, sobretudo os
No caso de Ubaldi, resta explicar um fato estranho. Um ho- neoplatônicos, com Plotino à frente, não fizeram especulações
mem que, depois de haver estudado leis, de má vontade, de ter acadêmicas e, portanto, não fecharam os olhos aos problemas
viajado para ver o mundo e aprender línguas, dedica-se a ensinar práticos: éticos, pedagógicos, políticos. Enfrentaram também o
inglês num pequeno ginásio de província, e deixa de ocupar-se aspecto prático deles.
com estudos e leituras científicas; este homem, de improviso, Torna-se mais decisiva minha reserva quanto aos filósofos
toma a pena e escreve mensagens impressionantes, que ele asse- cristãos, a partir de Orígenes e Justino; aliás, desde São Paulo,
288 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
que a seu tempo e lugar enfrentou e resolveu problemas especu- Para fazer cessar as usuais caretas das pessoas sabidas,
lativos altíssimos, sem jamais separá-los da vida vivida. Ubaldi faz suas as palavras de Goethe: ―Nenhuma produção de
Subestimaria os meus leitores se me pusesse a expor as qua- ordem superior, nenhuma invenção, foi jamais devida ao ho-
lidades do filosofar de Santo Agostinho, platônico, mas ainda mem, mas todas provieram de fonte ultraterrena. O homem,
mais cristão. Este nada recebeu dos pais orientais (os dois Gre- portanto, deveria olhá-la como um dom inesperado do Alto e
górios, Basilio etc.), já tão elevados, mas também práticos. E ob- deveria aceitá-la com gratidão e veneração. Nestas circunstân-
jetivou, não menos que estes, uma sabedoria inteira e coerente. cias, o homem é apenas o instrumento de uma potência superi-
Depois, nos primeiros albores da Europa civilizada, nosso or, como um vaso, que foi achado digno de receber um conteú-
Anselmo de Aosta (1033–1109) acendeu a primeira chama do do divino‖ (Conversa com Eckermann).
pensamento refletido no Monastério de Bec, na França e, mais É o pensamento dos profetas, dito quase com as mesmas pa-
tarde, na Inglaterra, com a autoridade que lhe vinha da santi- lavras. Entretanto, se para Goethe a inspiração (artística, cientí-
dade, da inteligência, da posição elevadíssima de Primaz, na fica, filosófica) era um lampejo repentino que o homem sofre
sede de Cantuária. Seguiram-no os Vitorinos, na França (ao passivamente, sem poder preveni-lo nem solicitá-lo de modo
tempo de Pedro Lombardo, arcebispo de Paris), os seguidores algum, para Ubaldi, ao invés, há uma disciplina superior, uma
de São Francisco, especialmente na Inglaterra (R. Bacon, verdadeira ―ars regia‖, que, mediante prévio conhecimento das
Duns Scott etc.) e na Itália (São Boaventura). Todos estes fo- leis cósmicas e da estrutura do espírito humano, ajuda a sinto-
ram filósofos e místicos, para os quais o ―affectus‖ era mais nizar este com as primeiras, para alcançar e exprimir muitas
importante do que a ―cognitio‖. Este era apenas o primeiro verdades inauditas ou então, caso se tratasse de verdades co-
dos três graus: ―cogitatio, meditatio, contemplatio‖, que ti- nhecidas, circundá-las de deslumbrante luz, geradora de evi-
nham por objeto a matéria, a alma, e Deus (Fiorentino). Mas,
dência e inefável consolo.
até na Alemanha, aquele misticismo especulativo não se fe-
Aqui reproduzo, uma relação graduada, em forma algébrica,
chou numa torre de marfim; objetivou, ao contrário, assidua-
dos modos sucessivos de conhecimento, que bem interpretam
mente a própria elevação e a melhoria do povo (Eccard,
sua gnoseologia nas várias articulações:
Tauler, Suso, foram eminentes e incansáveis pregadores).
Entre os Dominicanos, tal como os últimos citados, Alberto x² = plano de consciência sensória
Magno e Tomás de Aquino foram sumos pensadores e ao x³ = plano de consciência racional-analítica
mesmo tempo dedicados ao ministério sagrado. Nem ocorreu x4 = plano de consciência intuitivo-sintética
isto só com os homens, pois algumas mulheres, eleitas do sé- x5 = plano de consciência místico-unitária
culo XII ao XVI cultivaram um misticismo elevado, rico de x6 = plano inexplorado etc.
calor e também de graça, muitas vezes viril: Gertrudes e Mati- O plano x² pertence à humanidade global, que ainda não
lde, Ângela de Foligno e Margarida de Cortona, Catarina de saiu da fase animal; ao passo que x³, que é a fase da ciência
Sena e Teresa de Ávila. atual – empírica, hipotética, analítica – é puramente racional,
Pode dizer-se, em geral, que semelhantes testemunhas ja- exterior, de superfície.
mais decaíram, especialmente entre os católicos. Malebranche Entre este e o plano sucessivo da tabela, não poucos filóso-
e Fenelon, Gratry e Newman, que floresceram nos últimos sé- fos achariam um hiato, pois, para eles, o plano racional implica
culos, têm fama mundial. De outra escola, mas respeitáveis e síntese. Ao passo que, para Ubaldi, a razão limita-se a traçar
igualmente conhecidos, foram Boehme e Swedenborg, Law e esquemas, desenhos lineares, diagramas. É uma geometria pla-
Buniam, Hamann e Saint Martin, Emerson e Carlyle. Nem de- na. A síntese, ao invés, é (para ele) ato vital, cálido e palpitan-
ve ser esquecido o grande poeta católico F. Thompson, mais
te. É obra de arte pessoal, ainda que não seja arbitrária nem in-
sublime que R. Browning e mais cálido que Shelley. O misti-
dividualista. Desenvolve-se em determinada linha, para objeti-
cismo de Verlaine, Schuré, Meterlink e de Russos, dá lugar a
vos que são comuns a todos os espíritos, de acordo com nor-
não poucas reservas.
mas gerais e leis cósmicas.
Entretanto, se nos referirmos aos filósofos de profissão, e a
O plano x4 é uma zona evolutiva já supranormal e excepcio-
partir do século XV, depois da morte de Nicolau Cusano e com
nal para a média humana de hoje, que ainda se acha na fase x³.
raras exceções, (Campanella em sua outra fase e Malebranche),
Neste ponto e em dadas condições, o espírito emancipado da
Adhikary tem toda a razão. E assinala uma lacuna que deveria
fazer pensar a nós europeus, pois as consequências da incúria animalidade torna-se apto a ―perceber, por ressonância, as ema-
das coisas espirituais são desastrosas. nações de zonas de consciência ou planos psíquicos evolutiva-
A censura não se dirige, felizmente, a Pietro Ubaldi, que re- mente mais altos‖. Aqui, por introspecção, atinge-se a verdade
toma de sua Úmbria a luminosa tradição interrompida por cinco por dentro, fora das ilusões: toca-se a realidade. Com este uso
séculos. E aqui me convém novamente falar dele, em vista de da ―intuição‖ surgiu A Grande Síntese, que é ―verificação (no-
sua publicação, por estes dias, da Ascese Mística (edição, Hoe- te-se bem) por visão interior e sintonização (como acima) da
pli); um volume não muito grande, mas de imensa significação. realidade ultrassensória da verdade fenomênica‖.
Esquivo e familiarizado consigo mesmo, de leitura fácil. Indife- Experiências e tentativas ulteriores levaram Ubaldi ainda
rente àquelas coisas de pouco ou nenhum valor que costumam mais acima, onde o mundo cognoscitivo passa para segunda li-
excitar sem tréguas os homens de sua condição social, ele, há nha, para ceder lugar à penetração, à posse íntima, por comu-
cerca de oito anos, dá ouvidos às suas ―vozes‖ ou, se preferi- nhão profunda e inefável com a realidade, unificando-se com
rem, ao seu ―gênio‖, do qual espera revelações verídicas. ela por meio do amor; um amor supersensível, transcendental,
Em A Grande Síntese, que já apreciamos, confiando justa- mas de uma transcendência que assalta, conquista e possui os
mente em seu enorme poder intuitivo, traçou um quadro de fi- recursos inexprimíveis da imanência.
losofia científica e de antropologia ético-social, que deixa para O plano do conhecimento foi superado; não o conhecimen-
trás as tentativas semelhantes experimentadas no último século to em si mesmo, que, pelo contrário, subindo para esfera mais
pela amplidão da trama e pela singular novidade do método que alta – verdadeiramente empírea – transforma-se em chama lu-
seguiu, a intuição, como já disse. Esta não veio ao mundo com minosíssima.
ele, tendo agido ab immemorabili entre artistas, sábios e viden- Assim, Ubaldi, ―ainda que arrastado como por um turbi-
tes; mas jamais foi empregada com técnica tão rigorosa, clara e lhão‖, mostra que ―sabe dominar e descrever analiticamente‖,
consciente. Ele a descreveu com análise precisa, objetiva, indu- com precisão técnica e linguagem comum, os fatos extraordiná-
bitavelmente cientifica, no outro volume, As Noúres. rios que se desenrolam em sua alma.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 289
O conhecimento – sabemo-lo – pretende introduzir-nos tanto ciência. A consequência disso é uma tarefa excelsa confiada ao
quanto é humanamente possível na essência, na realidade da saber científico e filosófico.
coisa conhecida, mais do que nos caracteres. Explica-nos este d) O bem privado e o bem público coincidem. Esclarece-se
anelo o mito platônico das ideias eternas, o racionalismo aristo- aqui: 1) a natureza do dever em quem manda e em quem obe-
télico retomado pelos escolásticos, as disputas medievais acerca dece; 2) a gênese do poder nos chefes e nas aristocracias.
das ―species rerum‖ e a engenhosa ―haecceitas‖ de ―Duns e) A psicologia da introspecção convenientemente treinada
Scott‖; a dúvida de Descartes e Hume, que desemboca numa su- (Índia antiga, Europa medieval, Tibet) descobre não apenas
peração subjetiva para o primeiro, e na mais subjetiva e coerente abismos medonhos (no subconsciente) mas rotas excelsas e lu-
síntese a priori de Kant para o segundo. Finalmente, a elimina- minosíssimas (superconsciente), ou seja, aqueles mundos que
ção hegeliana da coisa e a reabsorção do número por parte do trazemos em nós mesmos, ignorando-os: a consciência subli-
ser pensante. Mais atilados e profundos, os místicos – e agora minal e a superliminal. Mas, além disso, revela contatos e inter-
Ubaldi com mais consciência científica – firmados na intuição ferências com correntes arcanas, que formam uma espécie de
(excepcional) de uma realidade-amor, transcendente e imanente, troposfera espiritual, que nos circunda de todos os lados, nos
não se limitaram a explorar à distância a chamada essência das exalta e deprime, perturba e arrasta os imprevidentes, mas traz
coisas, do não-eu. Com ímpeto corajoso e sublime, arrojaram-se auxílio de primeira ordem aos que o querem, para acelerar as
ao ―Sancta Sanctorum‖, ajoelharam-se e, depois, levantando-se, ascensões que lhe são destinadas ou permitidas (Noúres).
abraçaram o divino simulacro, apertaram-no ao coração, fundi- f) O último degrau que Ubaldi atingiu é a experiência mís-
ram-no com o calor íntimo e o tornaram translúcido. Operada tica, à qual está dedicado mais especialmente o volume que es-
assim a admirável compenetração e transmutação, o eu tornou- tou examinando. Aqui se cala a astrofísica do macrocosmo e a
se tu-eu – como dizia Ângela de Foligno, repetindo, sem sabê- química do átomo, pois o espaço e o tempo foram transcendi-
lo, a mais alta expressão da sabedoria indiana. dos. Fala e canta, exulta e se perde, no ―miro gurge‖, o espírito
As páginas que refletem as efusões da Extática de Foligno recebido, por graça, temporariamente, na Esfera que só tem
e de Rysbrock, o Admirável, são o que de mais excelso produ- por limite Amor e Luz.
ziu talvez a mística medieval. E não temem comparação com Aqui, a experiência dos sentidos, do intelecto raciocinante
as mais luminosas páginas do Upanishad, de Platão, dos ―su- (discursivo) e da própria intuição deixou apenas traços na lin-
fis‖ e dos maiores poetas modernos (veja Le Trésor des Hum- guagem, que adquire graça de arte e vigor dialético, mas perten-
bles, de M. Meterlink). ce à forma. A substância de tão rara experiência está no dina-
mismo incendiário e vulcânico do espírito que, chamando à reu-
Dante está separado pela amplitude do conteúdo humano e
nião seus poderes e apertando-os num feixe, os dirige com orgu-
divino, que os literatos recusam reconhecer, talvez pelo medo
lhosa alegria para a realidade eterna, para que os acenda e quase
legítimo de ficarem ofuscados.
os destrua, a fim de que renasçam mais puros, belos de fulguran-
Mas, que ensinaram aos homens os antigos videntes?
te beleza, tal como o poeta os viu em Matilde e Beatriz:
Nada aos materialistas, aos hedonistas. Mas tudo, ou quase,
Não se poderia dizer com palavras a transumanização.
aos homens desejosos de lançar o olhar, o coração e a vontade
Pietro Ubaldi empenha-se com frequência numa luta titânica
para fora da caverna platônica (República – I. VII).
para superar esse limite fatal. Deve reconhecer-se que não é raro
Visões ofuscantes de verdades eternas para uns; sonhos de
que vença. A prosa deste volume é mais colorida; se não mais cá-
enfermo, quimeras, para outros. lida, mais variada de tonalidades e matizes, que não se encontram
Ubaldi renovou em parte as afirmações dos testemunhos nas páginas às vezes ofuscantes, mas um pouco monótonas e
que citei no curso deste artigo, mas de modo original e pessoal. monocrômicas, dos maiores místicos medievais. Essa vantagem é
Aproximou-se deles, muito pouco e tarde, de maneira a não devida à maior messe de experiência que Ubaldi pôde recolher
comprometer sua espontaneidade; mas até (o que mais importa) nas viagens, em sua vida civil e doméstica, em campos variadís-
acrescentou novo peso às antigas testemunhas, que concorda- simos de observação, que faltaram àqueles antigos reclusos.
vam, ou quase, no essencial metafísico, de forma independente, ◘ ◘ ◘
o mais das vezes, um do outro. Demonstrar a utilidade excepcional de publicações como
Muito acrescentou ele de seu. esta a pessoas inteligentes e cultas, não perdidas na noite dos
Recolho o ensinamento de Ubaldi de alguns capítulos, onde sentidos, é ingênuo, mais do que supérfluo.
existe a novidade, nem sempre nas partes, mas nos motivos, nas Faço apenas uma observação.
concordâncias e na estrutura geral: Quem é iniciado na filosofia da história, que A. Comte teve
a) O universo, como o concebemos, tem uma constituição a sorte de deduzir de Vico, e observa atentamente (o que não
trifásica, que se desenvolve em três planos de existência: Maté- faz Roosevelt) os fatos que se desenrolam sob seus olhos, não
ria (), Energia (), Espírito (). O infinito ascendendo ao mé- duvida que tenhamos entrado num período orgânico. Uma lei
dio e este ao supremo pelo intensificar-se da ação conservadora superior – de que a insipiência de quase todos os intelectuais
divina, que é uma criação incessante. acelerou o ritmo – está concluindo o período da crítica. Esta,
Portanto o perene suceder-se da vida, que se transforma da útil e mesmo necessária, quando surgiu, terminou por desenca-
primordial cegueira rude e passiva em consciência e liberdade, dear-se estultamente sobre os mais preciosos bens que a huma-
fazendo seus e traduzindo-os em norma espontânea, porque nidade recolhera, entesourara com mil esforços e heroísmos.
consciente e aceita, os motivos do desenvolvimento, que é rit- Pois bem, a concepção biológica e, portanto, orgânica de
micamente encaminhado para a unitotalidade. Pietro Ubaldi vem ao encontro da comprovada exigência do
b) O seguro avançar dos seres para a unidade, por meio de tempo que ocorre. E demonstra, até à evidência, as razões do
encontros, contatos, comunicações e comunhões crescentes em comando e as razões da obediência, ambas subordinadas à vi-
intensidade, constituindo harmonias cada vez mais vastas, mu- são das unidades parciais que se reagrupam harmonicamente na
sicais, etéreas, libertando-se aos poucos das prisões do espaço e estrada da unidade definitiva, meta gloriosa de nossa viagem.
do tempo. A lei moral coincide, como os Gregos haviam adivi- Os que verdadeiramente compreenderam esta verdade, es-
nhado, com a elevação, o aperfeiçoamento e a felicidade pesso- ses, e mais ninguém, serão dignos de constituir as aristocracias
al (o paraíso terrestre nos últimos cantos do Purgatório). de amanhã. Ao lado dos autênticos dirigentes, afastados e quase
c) Segue-se daí que o conhecimento da grande lei cósmica invisíveis, mas inspiradores seguros, estarão os outros nobres,
se converte em moralidade, comando que se aceita sem hesitar, para os quais são escritas obras semelhantes à Ascese Mística.
com alegria, porque é interiorizado e ditado pela própria cons- (a) Fermi
290 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (I) alcance também social e se insere como força viva na renova-
ção espiritual para a qual o mundo se prepara laboriosamente.
Da revista La Ricerca Psichica – Milão, ano XXXVII, fase. Quem ler esta obra, nessa profundidade, ouvirá ecoar aí as
II, novembro, 1937. grandes correntes de pensamento, as titânicas forças cósmicas
Pietro Ubaldi – A Grande Síntese (Síntese e solução dos do imponderável que circunda o mundo e é ativo na preparação
problemas da ciência e do espírito) – primeira edição, 1937 – de seu futuro próximo e remoto.
Ulrico Hoepli, Editor Milão. Não é possível entrar aqui, em breve nota, no pormenor do
Não é fácil criticar um volume de tanta amplitude conceptu- tratado. É mister lê-lo, e cada alma responderá à leitura segun-
al, de tamanha vastidão e profundidade de argumentos, de tão do sua capacidade de vibrar e de responder, de sentir e de entrar
nova técnica de pensamento e tendo sido escrito em processo em sintonia, com aquele mundo imenso que se abre, nessa obra,
tão original. Por sua séria mas rica apresentação tipográfica, pe- ao nosso olhar. Os problemas tratados são muitos e vão da es-
la sobriedade de seu prefácio, não se supõe, à primeira vista, o trutura do átomo ao problema da dor; das questões astronômi-
imenso mundo interior e o profundo fenômeno espiritual de que cas, químicas e matemáticas às sociais da hora presente; da re-
ele saiu. Mas seu estilo sempre límpido, simples, acessível – latividade einsteiniana ao corporativismo; dos complexos pro-
embora com uma tonalidade desusada hoje – revelam imedia- blemas da gênese da vida aos fenômenos econômicos; da ori-
tamente ao ouvido que bem distingue, um sabor de supranor- gem dos universos ao homem, ao gênio, à arte, ao amor, a
mal, atrás do qual se sente o fenômeno metapsíquico. Deus. O universo aparece aqui em seu funcionamento orgânico
O prefácio não entra, nem podia fazê-lo, em pormenores e na lei suprema que o guia.
para explicar o gênero; estes são dados em outro volume, As Cada leitor sairá desta leitura iluminado por uma nova cer-
Noúres – Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento, teza, melhor para si, para sua família, para sua pátria.
do mesmo autor. O fenômeno da gênese de A Grande Síntese (a) L. F.
foi tão complexo e tão minuciosa e analiticamente vivido pelo
próprio indivíduo que o viveu, que pôde oferecer material e A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃODA IMPRENSA (II)
argumento para um volume inteiro. E o próprio autor nos
anuncia que continuou o estudo do fenômeno inspirativo em Da revista Il Loto – Florença, ano VIII, no 6, novem-
evolução em outro volume terminado há pouco. Sem falar, bro/dezembro de 1937.
pois, do conteúdo ideológico de A Grande Síntese, ela se apre- Esta obra, verdadeiramente excepcional, tanto pelo valor ci-
senta como o produto de um fenômeno que foi amplamente es- entífico quanto pelas novas concepções ultramodernas que nela
tudado; aparece com linhas originalíssimas; é apresentado pelo são expostas, com um estilo elevado e ao mesmo tempo claro e
autor como uma nova técnica de pensamento e método de in- convincente, é sem dúvida uma das mais importantes que te-
vestigação filosófico-científica, e trata, sobretudo, do campo nham aparecido nestes últimos anos.
das ciências psicológicas e, em particular, de nosso campo da Explicar seu conteúdo em poucas linhas não é possível, da-
metapsíquica. O próprio ilustre Prof. Bozzano acompanhou da a importância do argumento e a absoluta novidade do con-
com admiração esta obra, que durante cinco anos encheu as ceito. Limitar-me-ei a algumas indicações de caráter geral e a
páginas da revista Ali del Pensiero, de Milão; Constancia, de todos aconselharei a leitura ou, melhor ainda, o estudo, para
Buenos Aires; Reformador, do Rio de Janeiro; e as colunas do que possam todos aí haurir precioso ensinamento. É certamente
maior diário do Brasil, o Correio da Manhã. um livro de ciência, mas não de ciência fria e temerosa, de
A Grande Síntese é, portanto, um sistema de filosofia cientí- olhar muito distante, como estamos habituados a ver.
fica e assim aparece em sua mais simples expressão. Todo o Esta é uma ciência cálida, dinâmica, entusiástica e viva, que
cognoscível humano é aqui recolhido numa síntese orgânica se arrisca sem medo o mais alto e mais longe que pode, voando
unitária, completado nas lacunas deixadas pela ciência, recon- com asas seguras além do convencionalismo e dos horizontes
duzido ao mais compacto monismo e elevado das divergências apertados; reconduz todo o criado a uma unidade grandíssima,
analíticas a uma síntese universal, até tocar a essência dos prin- que é Deus. É aceita qualquer fé, desde que sincera, e procura-
cípios que estão no absoluto. Fica assim plenamente justificado se seja ela reconciliada com a ciência.
o subtítulo do volume: ―Síntese e solução dos problemas da ci- Fala como cientista a cientistas, para conduzi-los à espiritu-
ência e do espírito‖. Esta obra colossal e universal tem, pois, alidade, servindo-se de seus próprios métodos.
vários aspectos e significados e pode ser lida em diversas pro- Fala aos intelectuais, para fazê-los achar o caminho do co-
fundidades. Interessa, antes de tudo, à ciência moderna e à filo- ração, servindo-se do intelecto, e abre para todos a estrada para
sofia, porque soube reconduzir à unidade a ciência e dela fez o infinito, despertando neles a intuição.
um sistema filosófico. Mas este sistema é uma concepção pro- É vivificada e reforçada, com os mesmos materiais de cons-
fundamente espiritual; está, pois, no centro de nossa fé espiritu- ciência humana comum, a nossa consciência latente, que é a al-
alista, como de qualquer fé no espírito, e de todas as religiões, ma eterna, que preside ao nascimento e à morte do corpo físico.
que se baseiam justamente nisso. O espiritualismo moderno re- Quer o autor que a nova civilização do Terceiro Milênio se
cebe hoje, com esta obra, um novo endereço científico; adquire erga do materialismo, para conduzi-la à espiritualidade; ob-
uma plataforma racional e objetiva, que lhe faltava, e não só de serva que as próprias religiões esconderam a originária cente-
casuística analítica, que ainda não chegou à sua definitiva fase lha divina e que hoje nenhuma fé sincera sustenta as massas,
sintética. A fé no espírito é aqui fato demonstrado, e a ciência até mesmo aquela de Cristo – que ele julga a mais completa e
materialista, que o negava, é levada, por sua evolução e com perfeita – não conseguiu comovê-las nem arrastá-las. Hoje o
seus próprios meios e métodos, a este plano mais elevado, em espírito caiu na indiferença, e o autor tenta neste volume,
que o espírito aparece evidente. Tudo isso é uma concepção, cheio de entusiasmo e paixão, reerguê-lo e endereçá-lo para a
um estilo, um endereço novo, que nos leva imensamente mais espiritualidade. Julga que agora os tempos estão maduros e
alto. Desta nova orientação já se encontram traços nas revistas, novas descobertas da ciência comum levam a novas orienta-
fatos que nos demonstram que isso já foi sentido e assimilado. ções, a novas concepções.
Mas A Grande Síntese tem também um conteúdo ético. É Em sua exposição, parte do exterior para atingir o interior,
uma obra benéfica em larga escala, equaciona e resolve a tarefa da superfície para entrar no âmago, da multiplicidade fenomê-
de iluminar as consciências num momento histórico decisivo de nica para descobrir o princípio fundamental que é ―Uno‖ e que
grandes amadurecimentos em todos os campos. Tem, pois, um ―dirige tudo‖. Esta seria A Grande Síntese.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 291
Estes ensinamentos servem para dar ao homem uma nova mem um novo mistério do ser‖. E não é a revelação deste novo
consciência cósmica, mais vasta e mais universal, que lhe será mistério do ser que esperam tantos corações atentos, sentinelas
útil, não só para aprender, mas sobretudo para agir. vigilantes dispersas na solidão espiritual de nosso pobre mundo
Diz-nos como a Lei regula o universo, que é ordem e equi- em luta? Seremos nós preconcebidamente hostis à Grande Sín-
líbrio. tese, tornando-nos rígidos nas velhas categorias conceituais,
Analisa detalhadamente Matéria, Energia e Espírito, e a que, no entanto, sentimos serem insustentáveis, mas às quais
passagem de um a outro estado; explica-nos os motos fenomê- nos apegamos por um senso de ―fidelidade‖ mal compreendido,
nicos, que, com ritmo cada vez mais acelerado, conduzem ao que, no final das contas, é um simples e pobre conservadoris-
super-homem, glorioso resultado de um trabalho gigantesco, mo? Penso que A Grande Síntese deve ser lida e meditada com
para o qual todos – querendo ou não – temos de contribuir. O o coração puro e a mente pura. Coisa verdadeiramente rara nos
homem, então, guiado pela intuição, poderá, diz ele, atingir livros desse gênero, ela não se mantém nas esferas inacessíveis
verdadeiramente a felicidade. Este objetivo radiante da vida – da intuição pura, mas fala à inteligência, à razão cética e – traço
esta conquista maravilhosa – exalta de tal forma o autor, que de grande originalidade, que é como o selo das obras verdadei-
ele consegue exprimir-se em estilo verdadeiramente inspirado e ramente geniais – apresenta seus argumentos com critérios ci-
poderoso, e se arrisca até a indicar-nos as realizações que deve- entíficos, e até põe a ciência e suas conquistas ao serviço de
rão ocorrer no próximo milênio, para evitar o perigo da destrui- uma grande obra de espiritualidade.
ção da civilização atual. Porque a finalidade primeira e última de A Grande Síntese
Mesmo que estas não se realizem inteiramente, permane- é justamente esta: instaurar no mundo o Reino do Espírito, re-
cem, contudo, baseadas na lei eterna, que dirige a evolução, velar ao homem ignaro ou obstinado na negação, afogado no
portanto mesmo as que então se realizarem terão de derivar da materialismo científico, destruidor de toda fé, que tudo, em
mesma lei suprema, à qual as coisas e os homens jamais pode- nosso mundo, tudo nos vastos universos, é obra do espírito, do
rão subtrair-se. qual procedemos e ao qual todos, consciente ou inconsciente-
(a) C. A. S. mente, tendemos. Mas este espírito e seu reino, que progride,
não são abstrações impalpáveis, etéreas, ondulando nos im-
A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (III) ponderáveis e às vezes incompreensíveis paraísos da fé. Não: o
espírito é uma realidade. Mais até: ―depois das descobertas da
Da Revista Religio – Roma, vol. XIV, no 4, de julho de desintegração do átomo e da transmutação da individualidade
1938. química por explosão atômica, a descoberta da realidade do
A Grande Síntese – Sabemos que não é costume de Religio espírito é a maior descoberta científica que se espera, a desco-
apreciar livros de inspiração mediúnica, nem ocupar-se daquele berta que revolucionará o mundo, iniciando uma nova era‖. Eis
conjunto de doutrinas conhecido com o nome de ―ciências ocul- a mensagem confortadora. E é evidente que, orientada por ob-
tas‖. Até a orientação da revista é absolutamente contrária à jetivos tão elevados e ousados, A Grande Síntese não pode
mediunidade e às ciências ocultas. Mas A Grande Síntese de deixar intactos os valores religiosos e as categorias teológicas,
Pietro Ubaldi (livro devido à mediunidade inspirativa), repre- tais como o homem os forjou. Ela olha para a vida e a vê como
senta um tão imponente volume de pensamento e de fé, equaci- uma troca ininterrupta, como uma corrente que não se detém,
ona e resolve – no âmbito de suas premissas – um conjunto tão um turbilhão maravilhoso em que nasce o pensamento, a cons-
grandioso de problemas, que pode perfeitamente justificar uma ciência, o espírito, e avisa que todas as formas de vida são ir-
exceção à regra. O embaraço talvez – embaraço enorme – para mãs da nossa e, como nós, elas também lutam por ascender pa-
o crítico, é que, nutrido por essas doutrinas, dificilmente poderá ra a mesma meta espiritual, que é a finalidade de nossa vida
conservar rígida objetividade Mas a crítica não é quase sempre, humana. E, na base de toda vida, coloca a evolução e esclarece
ou sempre, de caráter subjetivo? Não se julga, porventura, uma que a evolução é palingênese, é libertação, afirmando que o
obra de acordo com os próprios conhecimentos, as próprias ori- progresso da espécie orgânica não é retilíneo, como o viu
entações intelectuais e com grau de espiritualidade que atingi- Darwin, mas é alternado, por contínuos retornos involutivos.
mos? E, ademais, poder-se-á chamar ―crítica‖, no sentido vul- Lei cíclica, portanto, que se repete no campo da consciência
gar do termo, quando se trata de um livro que procura dar um individual e coletiva, que regula o desenvolvimento e o pro-
objetivo a tudo o que a nossa vida contém – arte, direito, ética, gresso das civilizações. Mas esta evolução não poderia verifi-
luta, conhecimento, dor – encadeando e fundindo tudo na mes- car-se sem a reencarnação, pois a reencarnação é uma necessi-
ma estrada das ascensões humanas? dade para a evolução; ela corresponde ao princípio de expan-
Do outro lado, muitos dos assuntos tratados em A Grande são e de contração dos ciclos evolutivos, é uma condição da lei
Síntese, por quanto sejam interessantes e atraentes, escapam da de equilíbrio e consequência do princípio de indestrutibilidade
competência de uma revista de estudos religiosos. Não podemos e transformismo da Substância. Evolução é libertação. Frase
descer, por exemplo, com o autor ao âmago profundo da maté- felicíssima. E eu acrescento: evolução é resgate, é redenção, é
ria, para aí buscar a organização atômica, eletrônica e nuclear. posse. Não o disse Cristo. Eu sou o caminho?
Limitar-nos-emos a projetar os principais aspectos de um Olha para Deus e o aponta como a direção, a tendência, a as-
problema que é a razão de ser de nossa revista: o problema reli- piração a meta; mas avisa – a propósito da criação do homem
gioso. Digamos de imediato que a posição de A Grande Síntese segundo a Gênese – ―não deis um corpo e sopro à Divindade,
diante deste problema – como, aliás, em todos os que equaciona compreendei que, nessas palavras, só pode haver uma humani-
e resolve – é nitidamente revolucionária, e isto, parece-me, de- zação simbólica de uma realidade mais profunda‖. E qual é essa
veria bastar para assegurar ao autor e ao livro nossa fraternal realidade profunda? ―Deus não é uma potência exterior a nós,
simpatia de homens que se esforçam, humildes mas fervorosa- mas íntima a nós, como é íntimo a todas as coisas, e é no íntimo
mente, por arrancar as estranhas e tenebrosas ―vendas que co- que Ele opera profundamente, expandindo-se até dominar, sobe-
brem os olhos humanos de manhã à noite‖ da visão radiante do rano e sem oposição‖. E explica: ―Deus não é e não pode ser al-
verdadeiro rosto de Deus. go a mais e externo, algo distinto da criação. A concepção hu-
Trata-se, pois, de nova revelação? Sim, se entendemos co- mana de Deus, que cria fora e além de si, acrescentando algo a
mo revelação não só aquela que lança fundamentos de uma re- si, é uma concepção antropomórfica absurda, que acaba redu-
ligião, mas também ―todo contato da alma humana com o ínti- zindo o absoluto ao relativo(...). Não vos façais centro do uni-
mo pensamento que está na criação, contato que revela ao ho- verso; aplicai a vós os conceitos de espaço, quantidade, medida,
292 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
movimento, perfectibilidade; não deveis medir a Divindade co- O amigo Vingiano deu-se conta perfeitamente da delicade-
mo vos medis a vós mesmos, não tenteis defini-la, tanto menos za de sua tarefa, de falar de obras ocultistas, como as de Pietro
com aquilo que só é próprio para definir a vós mesmos, por mul- Ubaldi, em Religio, revista por definição histórica e positiva.
tiplicação e expansão de vosso concebível‖. Deus é, pois, para A Mas, com elegância e tato, de que lhe somos gratos, executou
Grande Síntese, a infinita alma que está no centro do universo; sua tarefa, exprimindo, como convinha, a sua admiração, que é
não centro espacial, mas centro de irradiação e de atração. também a nossa, pela profunda espiritualidade que vivifica as
―Não vos façais centro do universo‖. Eis o sapientíssimo páginas de Ubaldi, sem com isso ferir, de nenhum modo, os
aviso. Afinal, que temos nós feito de Deus? Reduzimo-Lo a métodos críticos e realísticos em que se inspira a compilação
conceitos feitos à nossa imagem e semelhança, pretendendo fa- deste periódico.
zer de nossa razão a medida de todas as coisas. Mas separamos E. B.
todas as coisas totalmente de nós. Erro gravíssimo. Porque a
alma do homem e a alma das coisas são como diversas expres- A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (IV)
sões de Deus, em planos diversos de evolução, e ambas tendem
para Deus, obedecendo à única lei, aquela lei que é a ideia cen- Da revista La Veritá – Roma, ano 39, no 9, setembro de
tral do universo, o sopro divino que o anima, o dirige, o move. 1938.
E que é essa lei? A Lei é Deus. Ela manifesta-se em mil aspec- Para compreender A Grande Síntese de Pietro Ubaldi não
tos diferentes, mas permanece sempre uma lei de bondade e de bastam os argumentos ordinários de uma crítica benévola; é
justiça. E qual é a mais alta expressão da Lei que podemos con- mister alargar-se, com elementos científicos, dentro e fora da
ceber? ―O Evangelho de Cristo, cuja compreensão significará a vida que vivemos neste microscópico ponto do universo, que
realização do Reino de Deus‖. chamamos Terra. É necessário elevar-se e manter-se em contato
A primeira impressão, perante esta resposta, é perguntar imediato com a natureza e com todas as suas leis férreas.
que tem a ver o Evangelho de Cristo diante desta nova revela- Já o insigne Heráclito, cinco ou quatro séculos antes de
ção monística, que procura dar ao homem uma consciência Cristo, intuiu que, na natureza, tudo se desenvolve segundo
cósmica. No entanto, por estranho que pareça, A Grande Sín- leis taxativas, e concebeu as coisas e os seres como um jogo
tese faz do Evangelho uma afirmação de humanidade mais al- de forças da própria natureza, jogo que compreenderia tam-
ta no divino, e o alcança pelas próprias estradas do materia- bém o espírito e a alma, só existindo entre mundo inorgânico
lismo, demonstrando que não há caminho que não conduza ao e orgânico uma diferença de estrutura, e não de essência. Hi-
Evangelho, para impô-lo a todo ser racional, tornando-o obri- pócrates também viu que a natureza é de tal forma, que basta
gatório, como o é todo processo lógico. E o Cristo? Para saber por si mesma aos animais, e que sabe tudo o que lhes é neces-
exatamente o que é o Cristo para o autor, é preciso referir-se a sário, sem necessidade de ninguém para ensinar-lhe, tanto que
outra publicação, As Noúres, que ilustra e torna compreensí- a pôde chamar de justa, como se fora provida de razão e de
vel a gênese de A Grande Síntese. Mas, mesmo sem As Noú- senso moral. Para Aristóteles, nada é produzido contra a natu-
res, percebe-se logo que também o Cristo – e é natural – perde reza, eterna e necessária; e para seu contemporâneo Mêncio, a
aqui toda característica antropomórfica, para aparecer como lei moral é paralela à lei universal, que governa todas as coi-
um ―espírito radiante, centro de atração espiritual, em torno sas; donde viver segundo a virtude significa viver conforme a
ao qual giram os mundos‖. Portanto, um Cristo cósmico. natureza. A Plínio, o velho, tampouco escapou que a natureza
Ubaldi (e aqui entramos no verdadeiro lado ocultístico da nada produz e nada faz sem grandes motivos. Para Leonardo
obra) apresenta sua mensagem tal como se lhe revelou. Mas, da Vinci também, a natureza jamais rompe sua lei, e toda ação
ao mesmo tempo, ―Sua Voz‖ avisa: ―A nova revelação não natural é feita pela natureza do modo mais breve e no menor
vem para destruir a verdade que possuís, mas para repeti-la tempo possível, sem prolongamentos nem abreviaturas, con-
numa forma mais persuasiva, mais evidente, mais adequada às trários às suas leis. Segundo Galileu, enfim, para terminarmos
necessidades da mente humana que progrediu‖, e traça o neste grande italiano, a natureza é a única mestra, necessária,
grande caminho da conciliação entre ciência e fé. Compreen- imutável, eterna, inexorável, não ligando a mínima importân-
de-se que uma conciliação só se realiza com renúncias de am- cia que suas recônditas razões e suas manifestações sejam ex-
bas as partes. Portanto, se, de um lado, a fé tem de renunciar postas ou não à capacidade dos homens.
àquele seu caráter de irrealidade, que ela mostra diante da ob- A natureza, pois, é realmente tudo. É tal, que as descobertas
jetividade do positivismo científico, a ciência precisa, de ou- científicas mais recentes nos demonstram e confirmam que na-
tro lado, deixar de fazer uma autoapresentação de soberba, à da há na natureza que não seja matéria, que matéria e energia
procura da utilidade e da especulação, únicos ideais de suas são sinônimos. E a matéria tem uma alma, um coração, uma
pesquisas. E, como a ciência não deve permanecer um produ- sensibilidade, vivendo, vibrando e palpitando sempre, desde
to árido do intelecto, assim a fé não deve permanecer unica- suas maiores concentrações até ao átomo, os prótons, os nêu-
mente produto do coração, que não sabe dar as razões profun- trons e os elétrons, positivos e negativos, que acabam dissipan-
das à mente que quer ver. Mas a ciência não deve mais igno- do-se todos no elemento cósmico primordial: o Éter difuso que
rar um fator, que agora de propósito ignora: o fator moral e enche todo o espaço, a energia em sua forma originária, a es-
espiritual; e o cientista não deve ser apenas um paciente cole- sência final de todas as coisas. Dissipando-se, e não morrendo,
cionador de observações, mas também, e sobretudo, uma porque a vida jamais morre no universo, nada morre nunca, e
grande alma que saiba olhar na profundidade de si mesmo e tudo é matéria em incessante movimento e transformação con-
na profundidade dos fenômenos, ou seja, que saiba sentir, tínua, ora agregando-se ora desintegrando-se, para depois agre-
através da forma, a substância que nela se esconde. Assim, gar-se de novo, e assim sempre, eternamente, com uma conca-
espiritualizando a ciência, e reconduzindo a fé ao campo raci- tenação que não tem lacunas, nem paradas, nem descontinuida-
onal, é possível reconciliar essas duas forças invencíveis de de, nem princípio, nem fim, nem tempo.
evolução, estes dois aspectos de uma só verdade. Sendo esta a natureza, ignara de repouso, de mentiras, de
Numa palavra, A Grande Síntese pretende, como o disse eu subterfúgios, e sempre, como diz Bruno, essencialmente igual a
de início, dar ao mundo a ciência do espírito, a fim de que o si mesma, deduz-se que ouvi-la, senti-la e conformar-se às suas
homem seja digno de penetrar o mistério da vida, superar a dor, leis, jamais violando-as nem violentando-as, é o único meio
vencer a morte. possível de vida para a humanidade. E o autor desse volume
Gluseppe Vingiano não só o sente, mas também é constrangido a ouvi-lo.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 293
Ubaldi, em sua A Grande Síntese, aparece-nos como um tando presente e operando em toda a parte no universo, com
ser que permanece continuamente aderente à natureza; um ser precisão matemática, certamente também está presente e opera
a quem a natureza manda suas ondas eletromagnéticas, suas nas células vivas dos organismos humanos. O instinto é sinto-
mensagens, para serem captadas pelo organismo ultrassensí- nia psicofísica universal, que se torna força positiva criadora no
vel que possui e, depois, comunicadas a nós, por meio de suas homem, diante da razão, que seria uma força discriminadora.
publicações. É graças a esse instinto e é com ele que Ubaldi pode tratar
A origem destas mensagens, porém, pode ser considerada os mais variados argumentos e fenômenos do universo sem per-
dúplice: ou diretamente do elemento cósmico primordial, ou de turbar-se, sem confundir-se, ao mesmo tempo em que, de sua
outros organismos humanos, mesmo se colocados a milhares de ermida de Gúbio, em que é professor, tudo quanto ele sente e
quilômetros de distância. Dúplice origem que nos leva à con- diz é quase sempre cientificamente exato.
cepção única do universo. O valor e a importância de A Grande Síntese de Ubaldi – à
Se as mensagens chegam a Ubaldi diretamente do elemento parte as evidentes erudições do autor do volume – está justa-
cósmico primordial, ele é sem dúvida um dos mais singulares mente na estreita correlação e harmonia entre a natureza e seu
intérpretes da natureza, que o escolheu para dizer-lhe suas leis, instinto, isto é, entre a natureza e a constituição de sua indivi-
seus axiomas, suas máximas, e assim fazê-lo receber a vontade dualidade psicofísica, a tal ponto que nos faz desejar (para que
dela e os seus pensamentos, como poderia e deveria um patrão nos dê novas provas dessa harmonia) que perdurem nele, o
ou rei fazê-lo a um dependente ou súdito, e, portanto, às vezes maior tempo possível, as condições favoráveis que essa har-
com calma e sem esforço, às vezes com sobressaltos e esgota- monia determinou.
mento de todo seu organismo. Nesse ínterim, mostramo-nos gratos a Ubaldi pelo que ofe-
Se as mensagens chegam a Ubaldi de outros organismos rece aos leitores dos dois mundos, mesmo por vezes parecendo
humanos, sempre através do Éter cósmico, achamo-nos igual- que a natureza não se lhe tenha revelado o bastante, ou que ele
mente diante de um ser dotado de um sistema nervoso excepci- não tenha podido captar bem as ondas eletromagnéticas e o
onal, comparável a uma verdadeira central radioelétrica, que re- pensamento dela.
cebe e transmite ondas eletromagnéticas com a mesma frequên- A Grande Síntese deve, pois, penetrar o espírito e a alma de
cia e comprimento. quem a ler, mesmo nas traduções, tanto quanto penetrou nossa
É sabido, com efeito, que o homem, por meio do sistema alma e nosso espírito, que várias vezes relemos aquela Síntese,
nervoso, recolhe os estímulos que lhe chegam do ambiente ex- não tanto para estudos de caráter retórico ou filosófico, mas de
terno e a eles responde de modo adequado, com os músculos e absoluto neopositivismo, mesmo político.
todos os órgãos. Roma, setembro de 1938
É sabido ainda que o cérebro, a parte mais importante do (a) Antonio D'alia- Ministro Plenipotenciário da Itália
sistema nervoso, está provido de bilhões de células, constituí-
das por uma floresta de filamentos, que se comportam como an- O autor deste artigo, Antônio D'Alia, Ministro Plenipotenci-
tenas da telegrafia Marconi. ário da Itália, é conhecido no mundo cultural por suas múltiplas
Os fios nervosos, condutores de rádio-ondas nos dois senti- obras, poderosas por seus pensamentos profundos e originais.
dos, estendem-se e se alongam, com papilas microscópicas, Sua competência reconhecida em ciência política torna autori-
quase além da superfície do corpo, para captar as sensações ex- zadas estas impressões e julgamentos, nascidos de uma afinida-
ternas e canalizá-las ao cérebro ou para lançar as sensações e de de seu pensamento com o de Ubaldi, especialmente no cam-
vibrações do cérebro fora dele. O sincronismo entre dois cére- po político, histórico, econômico e social, por uma orientação
bros e organismos humanos é fulmíneo, tal como acontece para filosófica comum, que ascende às mais profundas raízes bioló-
as radiações do gênero e da velocidade das ondas eletromagné- gicas e cósmicas daqueles fenômenos.
ticas e da luz, iguais a 300.000 Km por segundo (sete vezes a Por isso D'Alia quis citar Ubaldi, bem umas cem vezes, em
volta na Terra na mesma fração de tempo). seu alentado volume ―Máximas de Arte e de Ciência Política‖,
Tudo o que o cérebro recebe, sente, vê e irradia é, pois, o publicado em Roma.
resultado das vibrações das pequenas antenas cervicais. E, co- A Redação
mo sabemos que as vibrações se propagam ao infinito no uni-
verso, elas formam assim, logo que saem de nosso cérebro, um A GRANDE SÍNTESE – APRECIAÇÃO DA IMPRENSA (V)
complexo de irradiações que continuam a vibrar no tempo e no
espaço, de tal maneira que podem perfeitamente ser recolhidas Da revista La Verità – de Roma, agosto, 1939.
por outro cérebro que tenha o mesmo comprimento de onda e A Grande Síntese, obra filosófica de nosso culto colabora-
com o qual se ache em perfeita sintonia e ressonância. dor Pietro Ubaldi, publicada em língua italiana pelo editor Ho-
Ora, quer Ubaldi receba as mensagens diretamente do Éter epli, foi recentemente traduzida em língua espanhola e publica-
cósmico primordial, quer as receba de poucos ou de uma multi- da pelo Editorial Constancia – Buenos Aires (Argentina), com
dão de cientistas e de especialistas, o fato é que ele não sabe o o título de Síntesis Cósmica.
que a natureza quer precisamente dele, mas sabe que lhe não Do prefácio da editora extraímos com alegria o seguinte tre-
pode escapar e que deve ouvi-la, como a ouve, escrevendo e fa- cho: ―O interesse despertado por esta obra transcendental, do
zendo-se ler na Europa e nas Américas. ilustre pensador italiano, tanto nesta parte do continente ameri-
O autor desse volume diz justamente que o homem crê go- cano como nos países europeus, foi enorme. Hoje, o nome de
vernar, mas, ao invés, obedece sempre, constrangido pelo ins- Ubaldi é tão amplamente conhecido nos ambientes intelectuais,
tinto à vontade da natureza. científicos e espiritualistas, que seria supérflua uma apresenta-
O instinto, com efeito, não é, como nos dizem todos os filó- ção de sua personalidade. Obra destinada a revolucionar o pen-
sofos que não sabem fazer entender-se, o sentimento interior, o samento moderno, sob os múltiplos aspectos de filosofia, ciên-
movente interno, o impulso natural que dirige os animais em cia e ética, a Síntesis Cósmica se reveste de capital importância
sua conduta para fazer as coisas sem que haja intervenção da por causa de sua gênese‖.
reflexão etc. (o que seria muito pouco e muito vago). O instinto Do livro de Ubaldi apareceu também a tradução em portu-
é de fato a própria natureza, que se revela nos animais e especi- guês, A Grande Síntese, num belo volume encadernado em pre-
almente nos indivíduos e nas sociedades humanas, em sua nua to e dourado (5.000 cópias), publicado pela Federação Espírita
virgindade e realidade. O instinto é a energia cósmica, que, es- Brasileira – Rio de Janeiro.
294 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
o
Os leitores que de perto conhecem o pensamento do autor, Da revista La Ricerca Psichica, ano 39, n 9, setembro de
através de apreciados artigos por ele publicados nesta revista – 1939.
e estamos certos de que, conosco, compreenderam de imediato Pietro Ubaldi, Ascese Mística, Editor Hoepli – Milão, 1939.
achar-se diante de um pensador original, de um italiano que Sem dúvida, não é fácil apreciar as obras dos místicos, por-
honra seu país, e de um escritor militante e combatente, para que se sabe que o místico não ―demonstra‖, mas ―afirma‖, base-
afirmar-se vitorioso com os valores do espírito – poderão apre- ado em luzes que, segundo ele, lhe chegam de um plano superior
ciar ainda mais completamente o valor de sua concepção da vi- ao humano. Por isso muitos dos que foram chamados para mani-
da, aproveitando-se da procuradíssima edição italiana. festar seu juízo a respeito desta obra, verdadeiramente interes-
(a) A. S. sante e merecedora do prêmio que lhe foi adjudicado, recusa-
ram-se a fazê-lo, concluindo que ―há obras, como estas, que são
VÁRIAS CRÍTICAS recebidas como se apresentam, indiferentes e invulneráveis à
crítica, porque ou se acredita nelas, ou não se acredita‖.
Das revistas: Ricerche Filosofiche e Palmi (Reggio Cala- Este é um conceito geral, aplicável a todas as categorias e
bria) – outubro/dezembro de 1937. formas de misticismo, mas, no caso presente, a questão da ―in-
Pietro Ubaldi – As Noúres, Editor Hoepli – Milão, 1937. vulnerabilidade‖ se torna ainda mais séria, quando se pensa que
Neste livro, além de serem encontrados pensamentos já co- Ubaldi apenas descreve suas próprias experiências psíquicas e
nhecidos no campo filosófico e científico, bem acolhidos aqui – dá razão pública de seus estados de alma.
valor da consciência intuitiva, purificação ética e arrebatamento Nós, que até agora não tivemos a sorte de nos elevar-nos às
simpático por um mais profundo, objetivo e amplo conheci- sublimes alturas a que parece ter chegado o autor, não estamos,
mento, princípio animador de todas as coisas, sugestão do am- para falar francamente, autorizados a analisar e criticar o que
biente – encontram-se também páginas literariamente vivas e por sua natureza transcende a lógica ordinária e a crítica. De
vibrantes, como aquelas sobre a história espiritual de Joana qualquer forma, procuraremos pôr em relevo rapidamente o que
D‘Arc, sobretudo um importante testemunho psicológico. A nos parece mais utilizável, neste volume, para os fins da educa-
originalidade da ultrafania do autor consistiria: ção espiritual e da investigação psíquica.
a) No fato de que ele determina ativamente, por si, as Apresenta-nos o autor a inspiração como o resultado da evo-
condições (ascensão) para encontrar as correntes de emanação lução da mediunidade, que, de passiva e incipiente, sobe a maior
espiritual (Noúres), as quais tendem a manifestar-se e exprimir- altura espiritual ao se tornar ativa e consciente. Tem importância
se na dimensão humana do inteligível, mediante um processo muito particular o que escreve a respeito da técnica da inspira-
de transformação de dimensões; ção. Esta ocorreria mediante o contato entre os dois termos: o
b) Em que, durante a recepção, ele se mantém consciente centro emanante (onda-pensamento) e a consciência do médium.
e, portanto, capaz de passar continuamente do estado super- Quanto mais perfeito for este trabalho de sintonização e harmo-
normal ao normal, e vice-versa. Durante essa passagem, pode nização, tanto maior é a eficiência da emanação dos centros noú-
―registrar‖ as mensagens, o que lhe permite, outrossim, dar-se ricos (das noúres) em relação às consciências individuais.
conta plenamente do fenômeno e, portanto, descrevê-lo. Notemos, a este propósito, que a ideia do sujeito, que sobe
Se, no entanto, fossem pedidas provas do autor, mesmo ló- com poderoso esforço volitivo até ao objeto de sua contempla-
gicas (seu próprio testemunho é apenas uma prova subjetiva e ção, e do objeto, que responde a esse contato com descida aná-
psicológica), que sua mediunidade seja verdadeiramente inspi- loga, constitui o núcleo do ensinamento místico. A teologia
rativa, isto é, provas de que ele recebe de correntes estranhas a cristã canonizou esse estado com a teoria bastante conhecida da
ele e sobretudo – como afirma – impessoais, mesmo que elas graça eficaz. Deus faz descer os raios vivificantes de Sua bon-
emanem como todas as outras que percorrem o cosmos do úni- dade, particularmente, nas almas que não só põem em funcio-
co centro que é Deus, não se acharia a resposta. namento todas as suas energias espirituais, para tornarem-se
Estando no terreno da recepção, poder-se-ia admitir que, dignas de sua origem divina, mas também que se enchem de
num estado de hipersensibilidade, pode-se captar irradiações de amor e o expandem.
outros seres vivos pensantes, talvez mesmo habitantes de outros Belíssimas palavras nos dá a ler o autor quando exalta o al-
planetas, num estágio evolutivo muito superior ao nosso, para truísmo e condena o egoísmo, pois o altruísmo se acha em cons-
explicar que o produto é superior – como o afirma o autor – às tante comunicação com o todo, ao passo que o egoísta vive a
suas capacidades intelectuais e culturais (as quais, não obstante, expensas do todo. O primeiro identifica o próprio bem com o de
neste livro se mostram bastante amplas), quando não se queira seus semelhantes e neles revive; o segundo opera uma contração
pensar em elaborações que afloram de uma herança culta ou – o das forças espirituais, tira a respiração da psique e a sufoca.
que é mais conveniente – de uma inspiração subjetiva proveni- Digna de especial consideração parece-nos a teorização,
ente das próprias condições de pureza e de sugestão em que o quase geométrico-matemática, dos planos de consciência.
autor consegue colocar-se; mas a impersonalidade só pode ser Afirma o autor, de fato, que sentiu e viveu os estados místicos
uma ilusão subjetiva, também devida talvez à falta de aprofun- que o conduziram à aquisição de uma noção adequada do me-
damento do processo despersonalizador, universalizador e obje- canismo da evolução, o que ele julga poder fixar em diagramas,
tivante do pensamento teorético (com efeito, o autor refere-se para maior evidência. Com estas projeções diagramáticas de
ao modo como escreveu A Grande Síntese). sua intuição, Ubaldi quer colocar-nos nas mãos a chave para
Quanto ao fato de ser difícil a tradução das correntes noúri- compreender as grandes linhas da evolução espiritual: a ascen-
cas (em que o autor sair da consciência normal à supernormal) são do ser a planos superiores de vida, em consequência da qual
na estorvante e inadequada linguagem humana – trata-se apenas verifica-se uma dilatação correspondente da consciência, com
de um resumo – representa na minha opinião um processo típi- uma progressiva superposição de individuações e fusão de
co de criação espiritual, quando se verifica não ser fácil expri- consciências em forma de existência coletiva.
mir o que se intuiu e pensou numa tensão ardente de consciên- A doutrina das ―consciências coletivas‖ é, sem dúvida, ou-
cia e procura-se voltar ao ponto focal da inspiração, ou seja, tro dos traços mais importantes da intuição do autor, mas acre-
tornar a colocar-se naquela tensão e intensidade de consciência, ditamos que ela necessite ulterior explicação, pois nos parece
na qual se passa e repassa num contínuo esforço, sobre o qual que a harmonização a que devem as consciências constante-
Bergson escreveu páginas admiráveis, em Deux Sources. mente tender, não seja muito compatível com a ―fusão‖ de que
(a) D. A. Cardone ele fala. Com efeito, dois ou mais campos de força e de consci-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 295
ência que se fundem, perdem, ou pelo menos enfraquecem, os novos e mais íntimos da verdade única. Nesta acepção, A Gran-
traços característicos pelos quais se distinguem, de tal forma de Síntese que Pietro Ubaldi, de Gúbio, escreveu por mediuni-
que o campo A seja algo diverso do campo B e, sendo diverso, dade inspirativa é, incontestavelmente, uma nova ―revelação‖.
possa harmonizar-se com ele. Está bem que, apesar desta, a in- Muitas críticas foram feitas à obra e ao autor – que antes
dividualidade se conservará, pelo fato de que a zona de não- deveríamos chamar seu fiel e entusiasta amanuense – não tanto
coincidência (1/2 – 1/4 – 1/8 – 1/16 etc.) jamais se anula, mas pelo conteúdo, que encontrou, na Itália e no exterior, geral
parece-nos que a lei de atenuação do separatismo entre unida- aprovação e admiração, como pelo método de compilação, por-
des de consciência e a correspondente lei de fusão de individu- que até homens de reconhecida elevação intelectual, enregela-
ações seja desvantajosa ao verdadeiro e próprio princípio da in- dos nos velhos sistemas conceituais, não admitem que A Gran-
dividuação, que pode ser considerado como o pressuposto da de Síntese seja um livro escrito por ―mediunidade inspirativa‖,
harmonia e do amor, aos quais Ubaldi levanta hinos em termos como o esclarece o próprio autor.
tão profundamente apaixonados. Numa palavra, o caminho do Não é num artigo de apreciação que convém demonstrar o
espírito não pode ficar assinalado por um enfraquecimento da engano de certas proposições. Parece-me, porém, que assim
individualidade, embora com aplicação mais vasta da boa von- faz-se a política do avestruz: cobrem-se os olhos para não ver a
tade por parte de cada ser consciente. luz. Em sua mais pura simplicidade, a situação é esta: Pietro
É fácil perceber – ficando no domínio do racional – que os Ubaldi é um professor de língua inglesa num Real Ginásio de
termos: ―amor, altruísmo, sacrifício‖ e também ―coletividade‖ província. Com a láurea em jurisprudência, não possui nenhu-
implicam por si sós na existência e pluralidade das consciên- ma competência específica de problemas científicos, políticos,
cias, sendo representantes apenas dos vínculos morais que li- artísticos, sociais, religiosos, e eis que ele escreve de jato, sem
gam umas às outras. É verdade, também, que quando duas ou consultar textos, um livro que tende a dar objetivo a tudo o que
mais pessoas se amam desesperadamente, costuma dizer-se que contém nossa vida empírica: arte, direito, ética, luta, conheci-
―suas almas se fundem‖, mas aqui trata-se de figura retórica e mento, dor etc. Tudo fundindo-se e canalizando-se no mesmo
expressão poética. caminho das ascensões humanas! Além disso, o que deveria
No entanto merecem louvor incondicional os propósitos do aparecer como valor comprobatório a quem não conheça por
autor, de guiar a humanidade aos planos espirituais mais eleva- longa experiência esse fenômeno inspirativo de que Ubaldi é
dos, de ajudá-la a penetrar no domínio do ―superconsciente‖. Ele um testemunho magnífico, é a sua sinceridade e modéstia. Nu-
exalta o amor e as mais altas virtudes, e o faz com tal linguagem, ma época em que é moda revestir-se com as penas do pavão e
que produz certamente impressão bem profunda, especialmente cobrir-se a própria nulidade com cínica desenvoltura do saber
naqueles que sentem a sugestão da ―florescência‖ mística. alheio, Ubaldi tem a humildade de declarar que A Grande Sín-
É preciso, sobretudo, apreciar estes trabalhos em vista do tese não é propriedade sua, mas que ele foi um instrumento in-
bem e do conforto que trazem a uma parte da humanidade, de teligente e consciente nas mãos de forças que o sobrepujam.
modo particular quando ameaças graves pesam sobre ela. E, se Ora, se apreciamos e admiramos o conteúdo do livro, pela altu-
nos colocamos deste ponto de vista, temos de constatar que a ra e nobreza dos conceitos de que trata, pela profundidade dos
expressão favoreceu otimamente a intenção do escritor. raciocínios e a genialidade das soluções, além do que pela ele-
Às vezes Ubaldi cede de maneira excessiva ao próprio entu- gância segura do estilo, e se o autor confessa e demonstra em
siasmo e, por assim dizer, carrega um pouco as tintas, e esse seu outro livro, As Noúres, que foi apenas uma antena que re-
―heroico furor‖ místico-pedagógico nem sempre é simpático. cebeu correntes de pensamento, temos o dever de reconhecer
Mas esta é uma simples observação, que não diminui o valor da que esse livro apresenta uma mensagem que nos vem de fonte
obra de que tratamos. misteriosa e invisível, como um ensinamento e um aviso.
(a) R. Fedi Que nos diz essa nova mensagem? Não é possível dar o
resumo, nem mesmo esquemático dele, porque A Grande Sín-
UM LIVRO REVELADOR tese é um livro que se lê, mas não se resume, nem mesmo se
critica. A matéria tratada é tão vasta e profunda, representa
Do Jornal Fronte Unico, Roma – 30 de junho de 1939, e da tão imponente massa de pensamento e de fé, tão rico e gran-
revista Il Loto – Florença, no 4, julho/agosto 1939. dioso equacionamento e solução de problemas, que o trabalho
Já lera A Grande Síntese quando, ditada por ―Sua Voz‖, apa- de quem faz a apreciação é deveras difícil. O que se pode e se
recera em série na revista Ali dei Pensiero de Milão. Reli-a com deve dizer é que A Grande Síntese nos liga intimamente à tra-
novo júbilo interior quando apareceu pela primeira vez em vo- dição mil vezes milenária do ocultismo, entendido não como
lume, publicada pela benemérita Casa Hoepli; tornei a lê-la pela um empirismo em que se retemperam tantos desocupados ma-
terceira vez, nesta segunda edição, saída a pequeno intervalo da níacos de aparecer aureolados de mistério, mas como uma
primeira, totalmente esgotada. E, de cada vez, pareceu-me ler concepção eminentemente aristocrática do saber e do poder
um livro novo, ofuscante de esplendor, livro harmonioso, que humanos, reservados a poucos seres de exceção, capazes de
tem o poder de unir as profundidades abismais da Terra com as penetrar além dos limites das realidades sensíveis e chegar ao
insondáveis alturas dos céus, que é como a demonstração prática conhecimento integral das leis e ao domínio inteligente e be-
e científica do trimegistiano: ―o que está em baixo é como o que néfico das forças que regem a vida universal.
está em cima‖. Ler este livro é como fazer uma viagem fantásti- Isto justifica ainda mais o que antes disse, isto é, que A
ca do mundo atômico ao mundo galáctico, do microcosmo ao Grande Síntese é uma revelação no sentido de que nos dá uma
macrocosmo, e depois repousarmos, alegres e gratos, nos pater- parcial ―desocultação‖ de certos conceitos e de certas leis que
nais braços divinos. Surge então, no leitor atento e livre de pre- eram, há tempo, o apanágio cioso das assim chamadas ciências
conceitos doutrinais, a convicção de que este livro representa ocultas; e isto é um sinal manifesto de que, efetivamente, a vida
para nós uma nova ―revelação‖. Não porque diga coisas novas é una, como una é a verdade, que já é toda contida na sabedoria
em si, mas porque revela à nossa humanidade contemporânea antiga e vem aos poucos revelando todo o seu esplendor, pro-
um novo mistério do ser. Porque ―revelação‖ não é apenas aque- porcionando-o à inteligência dos povos, cada vez mais aberta e
la que lança as bases de uma religião e que constitui infelizmen- receptiva. Da teoria atômica à doutrina da preexistência das al-
te o rosto imutável diante da perene mutação das coisas; revela- mas e à pluralidade das existências terrenas; da teoria da evolu-
ção é também todo contato da alma humana com o íntimo pen- ção cíclica do universo à conciliação entre ciência e fé, entendi-
samento que existe no criado e que revela ao homem aspectos das como dois aspectos de uma mesma verdade, como duas for-
296 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
ças invencíveis da evolução, A Grande Síntese desenvolve uma impede de considerar Ubaldi como um profeta deste nosso
série de conceitos e de doutrinas que todos os ocultistas conhe- atormentadíssimo século, se por profeta entendemos aquele
cem muito melhor que Ubaldi, mas que jamais tinham sido ―de- que, em tempo de crise moral e espiritual, fazendo-se eco do
socultadas‖ e apresentadas ao público em palavra simples e con- pensamento do Eterno, leva aos homens nova mensagem, reve-
vincente, na refinada genialidade de demonstração com que la aos corações ansiosos um novo mistério do ser.
Ubaldi as apresenta neste valiosíssimo livro. Mas poderão obje- O que dá eficácia e valor a um livro é sempre a nobreza de
tar-me que tudo isso – que a organização da matéria seja con- seu ensinamento e a altura dos objetivos que se propõe atingir.
forme à disposição planetária de nosso sistema solar; que a evo- Pessoalmente julgo A Grande Síntese como um livro que deve
lução humana se desenvolva segundo uma lei cíclica que com- ser lido e meditado com pureza de coração e de inteligência.
porta fases alternadas de involução e evolução cada vez mais Sem dúvida, muitas coisas são por ele demolidas, mas são de-
amplas, determinando a progressiva ascese dos indivíduos e as molições impostas pela necessária e urgente cura de nossa
fases de decadência e de ascensão dos povos; que todas as for- consciência moral e espiritual. São demolições que alargam o
mas da vida sejam irmãs da nossa, lutando como nós para as- horizonte de nossa concepção e permitem que nossa alma se-
cender à mesma meta espiritual, que é o objetivo da vida huma- denta se inebrie de uma luz mais pura e mais vivida.
na – já fora intuído pelos filósofos da idade clássica, desde Tales (a) G. V.
de Mileto a Zenon de Elea, desde Leucipo de Abdera a Platão de
Egina, que antecipam de 2.500 anos, mais ou menos, as conquis- MISTICISMO MODERNO
tas da ciência moderna. Isto é verdade. Mas o valor de A Grande
Síntese reside justamente nisto, que ela endossa a hodierna psi- Do opúsculo Comentários da Imprensa às Obras de Pietro
cologia científica como a única expressão susceptível de fazer Ubaldi, da Sociedade Tipográfica Oderiso – Gúbio, 1940.
compreender aos homens deste século a beleza inefável e a res- Pode parecer anacronismo piegas falar de misticismo em
plendente realidade dos mistérios que foram intuídos pelos filó- pleno século vinte e, mais particularmente, nesta nossa pertur-
sofos da época clássica, que a ciência oficial só agora começa a bada e atormentada época, tão ávida de gozos fáceis, tão clara-
revelar e que A Grande Síntese esclarece e desenvolve. mente orientada para um materialismo utilitário e, mais ainda,
Falei de mistérios. Evidentemente, entrando nesta atmosfera, tão saturada de ódios e egoísmos. No entanto nada é mais natu-
A Grande Síntese não pode deixar de tocar num problema de ral, nada é mais perfeitamente coerente e harmônico. Os perío-
importância primordial e fundamental, que é o problema e até o dos de decadência espiritual, de crise social, de crasso materia-
mistério por excelência: Deus. Em todo o desenvolvimento de A lismo, são os que melhor preparam o aparecimento de aspira-
Grande Síntese, Deus está sempre presente. E é a meta luminosa ções místicas, criando aquelas poderosas ondas de renascimen-
para a qual conduz. Mais até, é ao mesmo tempo a vida e a meta. to espiritual, que devem depois salvar da inevitável ruína das
Mas, aqui, Deus perde aquelas características antropomórficas civilizações apodrecidas os mais altos valores que elas produzi-
tão queridas às religiões tradicionais e, não sendo absolutamente ram. Nenhuma surpresa, pois, que a Casa Editora Hoepli publi-
algo de externo, de distinto, de estranho à sua criação, torna-se a que a Ascese Mística de Pietro Ubaldi, a quem devemos o livro
grande alma que está no centro do universo, uma potência ínti- mais orgânico, mais completo e substancioso de nossos tempos:
ma a nós e a todas as coisas criadas, onde opera profundamente, A Grande Síntese.
expandindo-se até dominar soberana e sem contraste. Já Ubaldi nos dera As Noúres, explicação da técnica intuitiva
Para Ubaldi, ou melhor, para ―Sua Voz‖, a alma do homem e e inspirativa que originara e produzira A Grande Síntese. Em
a alma das coisas estão em planos diversos de evolução, expres- Ascese Mística, Ubaldi estuda a evolução progressiva do fenô-
sões diversas de Deus, pois ambas tendem igualmente a Deus, meno inspirativo até à fase mística, que ele viveu plenamente. O
obedecendo a uma única lei, essa lei que é a ideia central do livro está dividido em duas partes distintas: uma de caráter teó-
universo, o sopro divino que o anima, o dirige, o move. Essa lei rico, em que o autor analisa a si mesmo em função da grande
– que é Deus – mesmo manifestando-se em mil aspectos dife- corrente evolutiva em que se sente enquadrado, esquematizando
rentes, permanece sempre uma lei de bondade e de justiça, que, com muita clareza o fenômeno místico no mundo conceitual
em nosso concebível, acha sua mais digna e genuína expressão moderno e expondo, com apoio de uma representação diagramá-
no Evangelho de Jesus Cristo, cuja substancial compreensão por tica das várias fases da ascensão espiritual, o seu aspecto técni-
parte da humanidade significará a realização do Reino de Deus. co-científico e a técnica profissional. Na segunda parte, median-
Assim colocado o problema humano, cósmico e divino, é te um trabalho de introspecção, o autor descreve sua experiência
fácil imaginar as orientações e desenvolvimento que A Grande pessoal, ou seja, aquele processo que o levou do íntimo e lanci-
Síntese dá ao problema artístico e ao ético, ao social e ao da au- nante tormento da carne à mais alta felicidade espiritual.
toridade a ele ligado, e ao problema econômico. Seria interes- É preciso dizer que Ubaldi, mesmo enquadrando-se na lon-
santíssimo examiná-los um a um, mas isto excederia os limites ga teoria dos místicos cristãos, que a Igreja oficial elevou às
de uma crítica. Limito-me a dizer – e é intuitivo pelo que até honras do altar, se destaca nitidamente daquele misticismo está-
agora escrevi – que todos os problemas que interessam à vida tico, passivo, deprimente, dissolvente, com cilícios, em suma
associativa, desde o altíssimo e nobre da arte ao mais humano e negativo, que caracteriza os místicos medievais. Espírito pro-
atormentado como o econômico, desenrolam-se e se resolvem fundamente latino e homem de seu século, Ubaldi foge de tudo
num desenvolvimento harmônico com o problema espiritual, à o que é negativo, porque percebe com sensibilidade finamente
sombra de uma lei benéfica, única em sua essência e multíplice cristã que o ―isolamento do mundo e de seus semelhantes é
em suas manifestações, não estranhos, mas intimamente ligados sempre um pouco de isolamento de Deus‖. Segue-se daí que
a toda a complexa vida fenomênica; daí transparece evidente seu misticismo não é uma estéril concentração mental, que rou-
que toda atividade, desde a do homem à dos astros, através de ba à sociedade uma alma e uma atividade, mas uma fecundação
mudanças alternadas de derrotas e vitórias, de quedas e ascen- operada pelo Divino no homem, para que se expanda o que é
sões, de involuções e evoluções, converge para o mesmo alvo: humano e se multiplique por sua ascensão. Trata-se, pois, de
unificação com o primeiro princípio, o Eterno. Falou-se de pro- um misticismo ativo, vibrante, dinâmico, tal como convém a
fetismo. E por que não? Se não estivermos cristalizados na um homem do século vinte, que age, portanto, não como uma
ideia de que, também no século XX, um profeta tenha de ser agressão à vida, mas como um auxílio à mesma.
necessariamente um homem que se veste com pelos de cabra e À primeira vista, parece que deva haver nítida e radical in-
se nutre de mel silvestre e gafanhotos, como o Precursor, nada compatibilidade entre misticismo e dinamismo. É que não sa-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 297
bemos imaginar hoje, após séculos de deformado e absurdo en- lógicos, iludidos ao pensar que alcançaram certos níveis espiri-
sinamento católico, um misticismo que não ache seu alimento tuais, que são apenas produto de sua emotividade? Para mim, a
na solidão e no mais mortificante automartírio, tanto estamos resposta é clara e nítida: sim, é possível. Nossa incredulidade é
nós longe e esquecidos do ensino de Cristo, que jamais disse a função de nossa ignorância das leis que governam a vida, nas
seus discípulos: ―abandonai o mundo, e vossos irmãos, e sede quais um ensinamento filosófico religioso, falseado desde as ra-
eremitas em tétrica furna por amor ao meu nome‖. Não! Disse ízes, não nos permite penetrar. Se todos os homens nascem em
exatamente o contrário. A seus discípulos deu um grande man- condições de perfeita igualdade moral, intelectual e espiritual,
damento: ―ide e pregai‖. Portanto o verdadeiro discípulo de como explicar que em idênticas condições de tempo, de lugar e
Cristo, aquele que tem intenção de segui-Lo em sua senda e re- de ambiente, desenvolvam-se de modo tão desigual, produzindo
alizar totalmente a ordem soberana de amar o próximo como a o culto e o ignorante, o forte e o fraco, o ladrão e o filantropo, o
si mesmo, deve viver no mundo. Mas, vivendo no mundo, não violento e o santo? Isto deve levar-nos à reflexão. E como po-
precisa ser do mundo. Esta é a clara e severa ordem que o divi- dem os que creem num Ente Supremo, que é justiça, harmonia,
no mestre galileu deixou a seus sequazes e nisto reside o segre- amor, admitir que a justiça, a harmonia e o amor possam gerar
do da verdadeira vida mística. Portanto traem clara e conscien- ódio, desarmonia, injustiça? Aqui está o ponto. Se a árvore boa
temente esta ordem aqueles que, na intenção de seguir o ensi- dá bom fruto, e não pode dar mau fruto, quer dizer que nossos
namento crístico, abandonam o mundo e se isolam de toda ati- conhecimentos na matéria estão errados. E o estão mesmo. A
vidade humana. Longe de seus próprios semelhantes, como po- antiga sabedoria, à qual viramos as costas com muita desenvol-
dem amá-los? O amor não é simpatia estéril, mas ação inces- tura, afirma a preexistência das almas e a pluralidade das exis-
sante. Eram místicos, e verdadeiros místicos cristãos, ou seja, tências, esclarecendo luminosamente o mistério da vida huma-
ativos, vibrantes e dinâmicos, cada um em seu próprio caminho na e seu desenvolvimento natural.
e sua missão a cumprir, Francisco de Assis e Joana D‘Arc. Diz-se que nosso mundo é grande e severa escola para os
Sem dúvida, lendo este livro, pode-se medir o caminho per- homens. E é verdade. E tal como em nossa organização escolar,
corrido por Ubaldi desde as primeiras Mensagens Espirituais e também na escola da vida há vários graus de instrução e, em ca-
da própria A Grande Síntese. Com a Ascese Mística, Ubaldi se da grau, diversas séries, que vão desde o jardim de infância, dos
transfere para uma zona de espiritualidade ardente, que escapa, povos primitivos e selvagens, até às faculdades universitárias,
até como fenômeno, a demonstrações científicas e a especula- dos povos de alta civilização. Cada regresso nosso, regulado pe-
ções conceituais. Para poder entendê-lo e compreendê-lo com- la Lei, traz-nos à Terra, com a nossa bagagem de experiências
pletamente, seria preciso estar sintonizado com suas mesmas vi- adquiridas anteriormente, que nos permite ingressar numa classe
brações, ter chegado a seu plano de evolução. Quando, ao seguir superior àquela em que antes exercitamos nossa capacidade, ten-
Ubaldi em sua subida espiritual, passando de esplendor em es- tando conseguir adiantamento e promoção. E será assim até
plendor, de fervor em fervor, chegamos com ele ao círculo abra- chegarmos a um alto grau de civilização, não só – evidentemen-
sado do amor e avistamos o medonho desmoronamento de tudo te – industrial, mecânica e intelectual, mas também, e mais par-
o que é humano na unificação da alma com Deus, que o torna ticularmente, moral e espiritual. Assim compreendido, o fenô-
uno com o Todo, onipresente no espaço e coexistente no tempo, meno Ubaldi não nos parecerá nem impossível, nem digno de
que funde sua vida na vida de todas as criaturas, nos pobres ho- uma clínica neurológica. Muito provavelmente, Ubaldi tem lon-
mens ―naturais‖, ansiosos mas incapazes de atingir esferas tão go passado de profundas experiências religiosas; por isso, reto-
adoráveis, só podemos admirar em silêncio reverente ou sorrir mando em nosso plano, com uma consciência mais ampla e com
de compaixão. Porque, de acordo com o nosso modo de sentir, forças mais substanciais, o seu caminho, ele se destacou da mas-
temos que definir Ubaldi como um santo ou como um louco. sa, não pelo fato de receber divinas graças extraordinárias, mas
Ora, dada a imperante mentalidade positivista e racionalista, por íntima capacidade evolutiva, a fim de servir a nós, à massa,
compreendo perfeitamente como é dificílimo a muitos homens de exemplo, de incitamento e de aviso. Assim explico o fenô-
de nosso tempo – mesmo se acreditando sinceramente – admitir meno Ubaldi e não creio possa ser diversamente explicado.
que um seu semelhante, que toma parte em sua vida mesma Tendo dado minha plena adesão a Pietro Ubaldi e testemu-
turbilhonante e atormentada, que tem uma família para manter nhando-lhe mais uma vez minha simpatia fraterna, tenho de le-
e uma profissão para exercitar, possa ter sido verdadeiramente almente fazer algumas observações a respeito deste último li-
―arrastado na esteira luminosa de Cristo‖, possa ―ter visto o ros- vro. Cada homem tem os defeitos de suas virtudes. Ubaldi, que
to divino do Mestre‖ e ter ouvido, como já Moisés no Horebe, a evidentemente não vive e, logicamente, não pode viver em es-
voz doce e terrível do Eterno. Na melhor das hipóteses, dá-se- tado de perene inspiração, cometeu alguns erros de caráter es-
lhe uma piedosa comiseração. Pessoalmente, mesmo se não es- pecificamente humano, que, embora não atinjam a substância
tivera intimamente convencido de que um homem como nós, de do livro, serão fielmente anotados.
nosso tempo, pode perfeitamente chegar à plena unificação com Para narrar a sublimidade de suas visões, Ubaldi julgou
o Eterno, devo confessar lealmente que não me sinto com o di- não houvesse na linguagem e na mente humana palavra bas-
reito de dizer a um meu semelhante, que com simplicidade e tante bela e imagem suficientemente luminosa e escreveu com
sinceridade me dissesse ―eu vi‖ ou ―eu ouvi‖: não é verdade! E uma harmonia pictórica, de exuberante riqueza, a qual, a meu
só porque eu não estou em grau de ver e de ouvir o que ele ver, prejudica um pouco a narração de sua experiência, que
afirma ter visto e ouvido. Nem se pode duvidar de sua sinceri- talvez lucraria mais se houvera sido exposta em estilo mais
dade e perfeita boa fé. Senão era preciso admitir-se que este simples, mais grave portanto. De outro lado, obrigado forço-
homem mentiu durante dez anos seguidos, e continua mentindo samente a falar de si mesmo em quase trezentas páginas do
com muita perseverança, com inteligência retilínea e com muita volume, Ubaldi dá a impressão não só de querer impor sua
sabedoria, produzindo obras que sua cultura empírica não con- doutrina como único e geral meio de ascese, mas também as-
seguiria justificar sozinha, mas todas trazendo a marca inequí- sume – no fervor de sua exaltação – o ar de novo messias, de
voca de uma espiritualidade viva e profunda. novo salvador da humanidade. Sei bem que não é este o pen-
E qual é dos leitores de Mensagens Espirituais, de A Gran- samento de Ubaldi, cuja natural modéstia e simplicidade são
de Síntese, de As Noúres e de Ascese Mística, que sente poder garantia da pureza de suas intenções. Aliás, ele mesmo, ao ve-
afirmá-lo? Então, vem espontânea a pergunta: é possível que rificar esse perigo, procura humilhar-se profundamente a cada
um ser humano possa atingir alturas espirituais tão inefáveis, ou passo. Mas quem lê tem infelizmente essa impressão, e isso
talvez tenhamos de considerar esses místicos como fatos pato- tem o efeito de nuvens num céu sereno.
298 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
Mas há algo de mais substancial, em que não concordo ab- místico feito por um homem a si mesmo, terminando com uma
solutamente com Ubaldi, e é a oportunidade e conveniência ascensão espiritual que faz pensar em Francisco de Assis.
discutidíssima de revelar ao mundo o terrível segredo. Que ele Um homem que nasce rico, que poderia gozar dos bens da
tenha feito um voto solene e supremo na tumba de Francisco de Terra, mas que vê deles o aspecto repugnante, os pútridos fru-
Assis; que tenha oferecido sua vida ao Eterno, pela salvação da tos, a força corruptora, a ofensa à Divindade, e deixa que lhe
humanidade, é coisa tão sagrada, que ele não pode mais dispor carreguem tudo e arrasa a própria riqueza, de modo a achar-se
dela. Toda oferta feita ao Eterno, ao Eterno pertence, não mais um dia pobre, sabendo-o e querendo-o, e isso após haver bene-
aos homens. Também aqui, Ubaldi deve ter-se equivocado ficiado a muitos, material e espiritualmente; este é o esqueleto
quanto aos seus contemporâneos, pensando que eles podiam da História de um Homem.
compreendê-lo e receber seu dilacerante grito de alma! Se ano- Numa época materialista como a nossa do século XX, tal
to estas faltas, não é, evidentemente, para pôr a cruz sobre os modo de agir seria depressa definido – ou melhor, diagnostica-
ombros de Ubaldi. Ele pressentiu para si um destino trágico, e do – como doença mental. Mas, quando o homem que consci-
lendo-se certas páginas comovidas de Ascese Mística, tem-se a entemente se abandonou a essa ―doença‖ consegue, com os
exata impressão de que para isso ele se preparou com firmeza próprios esforços, superar as dificuldades da vida mediante um
de coração. Talvez seja mesmo chamado a dar um grande tes- trabalho assíduo, sabendo que a ele apenas, e só a ele, deve o
temunho, não de palavras apenas, mas de ação. É indispensável, conforto da família e o próprio; quando um homem encontra
por isso, sustentá-lo com o nosso respeito e a nossa simpatia. nesse resultado o objetivo ansiado, que o aproxima cada vez
Tudo o que até agora ele escreveu para o nosso aprendizado mais de um tipo de perfeição espiritual que a maioria evita se-
e nossa elevação é supremamente belo, mas permanece no quer procurar, então pode-se dizer que esse homem não está
campo teórico. doente. E não podemos ter compaixão dele – como a temos dos
Faço votos de que bem rapidamente possa documentar aos doentes – porque nesse sacrifício, que para ele foi alegria, é que
incrédulos, mas não apenas aos incrédulos, com obras de vida, a encontrou o próprio ideal, a justificação da própria vida.
genuína pureza de sua espiritualidade e a altura de sua missão. Poder-se-ia pensar, ao lê-lo com espírito cético, que os esta-
(a) G. V. dos concretos materiais e sociais, as situações de pessoas e as
◘ ◘ ◘ visões de ambiente descritos no livro, fazem compreender um
Publicamos, com prazer, o artigo junto, mas fazemos algu- modo todo particular de encarar a vida. E é assim mesmo. Mas
mas reservas quanto às conclusões a que chegou seu autor. Pare- não é o modo de encarar a vida e de agir de uma pessoa que é
ce-nos, de fato, que a esplêndida e real contribuição que Pietro vítima de certo estado de alma; ao contrário, é o de uma pessoa
Ubaldi dá ao mundo com suas obras não pode ser considerada que domina e dirige esse estado de alma.
apenas testemunho de palavras, e não de ação, e que, portanto, a Poder-se-á objetar também que as mesmas coisas aparecem
elas devem seguir-se ―obras de vida‖, como documentação. A diferentemente a pessoas diferentes. Não resta dúvida. Mas é
nosso ver, parece que foi esquecido ou ficou ignorado o enorme mister investigar qual seja o certo ou, em todo caso, qual seja o
esforço interior, moral e espiritual, vivido por Ubaldi, do qual as melhor modo de ver. Justamente pelo fato de que somos todos
próprias obras são justamente a manifestação e expressão exte- diferentes e cada um julga e obra de modo próprio, o julgamen-
rior; parece-nos que isso é não sentir o poderoso hálito da vida to de uma parte das pessoas sobre esse estado de alma particu-
que promana de suas próprias obras, como magnetismo sutil, lar vale só para elas, não para as que sentem à maneira do escri-
provocando exatamente a ressonância nas almas alheias! Que tor. A subjetividade domina toda nossa vida psíquica, mas nisto
sejam ainda poucos, e muito poucos, infelizmente, os que po- Ubaldi teria uma superioridade, porque ele domina o próprio
dem vibrar em uníssono com a poderosa vibração que permeia e eu, e não é dominado pela materialidade; esta pode ser instru-
exala das páginas de A Grande Síntese e de Ascese Mística, isso mento necessário de medida para quem viva materialmente,
é dolorosamente compreensível; se assim não fora, não se acha- mas não para quem viva espiritualmente. O modo de escolher a
ria o mundo no estado em que se encontra; mas não considerar própria estrada, de bem colocar o próprio tesouro, segundo a
essas obras como reais ―obras da vida‖, por parte daqueles que parábola de Jesus, é diferente para cada um de nós, e ninguém
sentem e lhes apreciam o poderoso influxo espiritual, parece-nos pode fazer sobre os outros julgamentos que não sejam subjeti-
diminuir e desconhecer a importância e o valor da real contri- vos e, portanto, parciais e viciados.
buição trazida por Ubaldi. Não podem escrever-se páginas da- Sem dúvida, a figura de homem que Ubaldi representa co-
quelas, descrever semelhantes experiências interiores, se elas re- mo ele mesmo, é uma figura de alta exceção; seu plano moral é
almente não foram vividas – e ainda mais, se a vida comum co- absolutamente superior; sua expressão é elevadíssima. Neste li-
tidiana não estiver em perfeita harmonia com o espírito, no qual vro, escrito de forma impecável e com uma força de sentimento
se realiza semelhantes experiências – e é justamente esse ele- de comover, achamos, para nosso tempo, uma figura mais do
mento de vida vivida o espírito real e profundo que permeia as que proeminente; alguma coisa que tem sabor de legendário pa-
obras de Ubaldi e, por isso, tem o poder de agir em profundida- ra a maioria dos contemporâneos e que, portanto, escapa à
de sobre as consciências alheias. E tal ―ação‖, no mais alto plano apreciação com os meios de que dispõe nossa época.
do pensamento e do espírito, não será talvez coisa essencial aos Mas o que é preciso dizer ao leitor, para que não pense ser
fins da evolução espiritual humana, digna, portanto, de ser con- esta obra uma das habituais biografias, mais ou menos trans-
siderada como verdadeira ―obra de vida‖? cendentais, é que, nela, a análise de si mesmo, de sua alma, é
A Redação continuamente feita e refeita, cem vezes, com palavras e pontos
de vista diferentes; é o exame de um ser sob os mais variados
HISTÓRIA DE UM HOMEM pontos de vista e com todas as variantes do espírito, onde elas
são mais numerosas de quantas possam encontrar-se na mais
Da revista Risanamento Médico – Roma, no 2, novembro, complicada e abstrusa fórmula matemática. Livro de apostolado
1942. de uma ideia e de um ideal; livro de combate ao revés, em rela-
O livro de Pietro Ubaldi que traz o título acima não é ro- ção à corrente mundana; livro de profunda psicologia analítica
mance, é mais do que romance ou drama vivido. Não é biogra- introspectiva, em que se vê a alma retorcer-se, atormentar-se
fia, a não ser que seja considerada inversamente, ou seja, como como uma serpente no fogo que a consuma, mas onde a vemos
negativo diante do positivo fotográfico. É uma paixão, uma sé- também libertar-se do fogo, elevar-se, aperfeiçoar-se aos pou-
rie de ascese intercaladas com breves paradas; um processo cos, para um tipo de sublimidade que só achamos na história
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 299
dos mártires do passado. Junto a isso, uma profunda filosofia, UBALDI CONDENADO PELA IGREJA
que não esquece as distâncias entre religião e humanidade e
mostra as proporções entre elas, bem como entre a divindade e Da revista Light – Londres, 22 de fevereiro de 1940.
o homem. Um martírio procurado, que se torna apoteose. Caiu sob a excomunhão da Igreja aquele sensível e altamen-
A Redação te espiritualizado escritor, Pietro Ubaldi, e suas duas últimas
obras, A Grande Síntese e Ascese Mística, foram condenadas. A
Da revista La Veritá, Roma, 31 de outubro 1942, no 10. última foi publicada há alguns meses apenas, mas a primeira
Pietro Ubaldi – História de Um Homem, Editor Bocca – Mi- teve sua segunda edição antes que fossem descobertas suas qua-
lão, 1942. lidades perigosas (?).
Com História de um Homem, Pietro Ubaldi escreveu seu Realmente, quando pensamos na sinceridade de Ubaldi e em
melhor livro. Também porque, falando de si mesmo e das mais seu profundo sentimento religioso, em sua vida de renúncia e em
dolorosas provas de sua vida espiritual, soube achar acentos de sua simplicidade franciscana, admiramo-nos da mesquinhez de
tão profunda paixão, que conseguiu dar-nos muitas páginas em pensamento dos que nos dias de hoje podem censurá-lo.
que o pensamento e o artista se completam, num equilíbrio Entretanto os que cometem o atentado de querer silenciar
quase perfeito. os pioneiros do ensino espiritual, colhem geralmente o efeito
Parece-nos, também, que as vicissitudes de que este livro é oposto ao que desejavam e, neste caso, eles liderarão um au-
o reflexo tenham contribuído para esclarecer e pôr no ponto mento de interesse em torno de Ubaldi e de suas obras.
exato o pensamento do autor, que, nos livros anteriores, podia O seguinte trecho pitoresco apareceu num artigo, que é evi-
parecer aqui e ali um pouco incerto e confuso. dentemente da autoria de um eclesiástico, na Gazzetta di Folig-
Ao narrar, porém, os desenvolvimentos psicológicos e filo- no: ―Desde que, nos assuntos religiosos, o pensador não é – se-
sóficos que o conduziram à visão das coisas e da vida, apresen- gundo a metáfora comum de Ubaldi – uma ‗estação transmisso-
tada nestas suas recentes e entusiásticas páginas, Ubaldi dá de- ra‘, mas apenas uma ‗estação receptora‘, segue-se que o sistema
masiada importância à passividade passional de episódios exte- destrói a base dogmática da religião católica, que tem a origem
riores, que, para um pensador e filósofo, ao contrário, não deve- da sua revelação em Deus, e não na hipotética criação do inte-
riam ter nenhuma. lecto humano. O autor expressa a esperança de que ‗o escritor‘
Por exemplo, a condenação ao Índex de duas obras suas se submeterá com docilidade à sentença, reconhecendo e deplo-
precedentes não deveria perturbá-lo, nem produzir-lhe aquele rando os erros de sua mente poderosa que, sem intenção de pe-
choque nervoso que o faz escrever páginas belíssimas do lado cado, foi envolvida nas nebulosas abstrações do Kantismo, da
mediunidade e da ultrafania‖.
artístico, mas deploráveis para um homem de pensamento todo
Tudo isto, em flagrante contraste com um artigo publicado
dedicado a resolver as razões últimas da vida e da realidade.
num jornal do governo italiano, Gerarchia, que entusiastica-
Sem falar que já não estamos mais no tempo de Giordano
mente aponta Ubaldi como o verdadeiro sucessor dos místicos
Bruno, especialmente depois do episódio de Galileu, a condena-
medievais, dizendo que ele reviveu a tradição da Úmbria depois
ção ao Índex, mesmo para um crente, não pode ter valor defini-
de um silêncio de cinco séculos.
tivo, tratando-se de um órgão falível da Igreja, e que já várias
A Redação
vezes reconheceu seus erros e voltou atrás em suas decisões.
Dado que Ubaldi esclareceu tão notavelmente seu pensa-
A GRANDE SÍNTESE NO ÍNDEX
mento, esperamos dele agora uma obra filosófica serena e defi-
nitiva, que o leve às conclusões das fecundas premissas anunci-
Da revista Reformador – Rio de Janeiro, novembro de 1939.
adas até aqui.
Em telegrama de 14 do corrente, da ―Cidade do Vaticano‖,
A Redação noticiaram os jornais cariocas que a Suprema Congregação do
Santo Ofício (o ofício é mesmo santo) resolveu pôr no ―Ín-
TERCEIRA PARTE – A CONDENAÇÃO dex‖ ou inserir na lista dos livros proibidos as duas obras: A
Grande Síntese e Ascese Mística, de Pietro Ubaldi, que tratam
CONDENAÇÃO DO SANTO OFÍCIO de questões teológicas. Será mesmo disso, na acepção católica
(Decreto da Suprema Congregação dos termos, que tratam as duas obras citadas? Afirmando-o co-
Sagrada do Santo Ofício) mo o fez, segundo a notícia acima, somos levados a crer que a
Suprema Congregação as condenou ―por palpite‖ ou, o que é
Do Osservatore Romano – Roma, 15 de novembro de 1939, mais provável, porque leu e não entendeu.
no 268, segunda edição. Não nos interessam, porém, os motivos da condenação, nem
São condenados dois livros escritos por PIETRO UBALDI. temos tempo agora para apreciá-los. Registrando o fato, sem
Quarta-feira, dia 8 de novembro de 1939. comentários, que ficarão para depois, queremos apenas prevenir
Na reunião geral da Suprema Congregação Sagrada do Santo do perigo a que se acham expostos, se lançarem inadvertida-
Ofício, os Eminentíssimos e Reverendíssimos Senhores Carde- mente os olhos sobre as mencionadas obras, aqueles de nossos
ais encarregados de zelar pelas coisas da fé e dos costumes, ten- irmãos cujos espíritos, com a Igreja em pleno século vinte, con-
do ouvido o voto dos Reverendos Senhores Consultores, conde- servam-se dentro da Idade Média, e congratularmo-nos com os
naram e mandaram inserir no INDEX dos livros proibidos dois que já se evadiram da prisão espiritual de tão remota época, pe-
livros escritos por PIETRO UBALDI, cujos títulos são: la consagração real que do seu valor altíssimo e da sua sabedo-
Ascese Mística e A Grande Síntese ria profunda obteve A Grande Síntese, cuja segunda edição na
E, no dia seguinte, quinta-feira, 9 do mesmo mês e ano, o Itália já se acha quase esgotada, pouco faltando para que se es-
Santíssimo Senhor Nosso Pio XII, Papa pela Divina Providência, gote a sua primeira edição brasileira.
na habitual audiência concedida ao Excelentíssimo Senhor As- Quanto à outra obra condenada pela Suprema Congrega-
sessor do Santo Ofício, aprovou, confirmou e mandou publicar a ção, no seu santíssimo ofício de condenar, a Ascese Mística,
resolução dos Eminentíssimos Padres, apresentada a Si mesmo. embora de muito menor porte do que aquela, é também um
Dado em Roma, no Palácio do Santo Ofício, no dia 10 de trabalho digno da ―consagração‖ que acaba de obter, como os
novembro de 1939. nossos leitores não tardarão a verificar, pois que em breve en-
Romulo Pantanetti cetaremos a sua publicação em nossas colunas.
Chanceler da Suprema Congregação Sagrada do Santo Ofício A Redação
300 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
A CONDENAÇÃO DE A GRANDE SÍNTESE REFLEXÕES
Lançando um olhar, ainda que sumário, às grandes escolas
Da revista Constancia – Buenos Aires, 1o de março de filosóficas, afastando as de conteúdo expressamente anticatóli-
1940. co, que poderíamos relegar para as expressões de pensamento
A notícia da inclusão no ―Índex‖ das duas obras de Pietro polêmico ou sectário, perguntamo-nos se a substância e a forma
Ubaldi, A Grande Síntese e Ascese Mística, embora pressentida, da filosofia escolástica fazem parte integral do dogma, ou se
não deixou de ocasionar certa perplexidade e desagrado nos são possíveis orientações de pensamentos diferentes, sem afas-
meios espíritas desta parte da América. tar-se das verdades fundamentais da Igreja Católica.
Desagrado não tanto pelo fato violento em si, mas porque Ninguém nega a São Tomás a sólida base da concepção fi-
feriu sentimentos muito nobres e dignos de serem tidos em con- losófica, nem a nega a todos os neo-escolásticos, que, nas pe-
ta, coisa que a Cúria – devido a sua rigidez – não soube consi- gadas do grande Aquino, formaram na disciplina do pensamen-
derar, apesar de seus constantes protestos de amor e compaixão. to várias gerações da Idade Média, da era moderna e da filoso-
Perdeu a Igreja uma bela ocasião de atrair simpatias, uma fia escolástica contemporânea. Mas, que podemos dizer?!
circunstância propícia para procurar fazer olvidar muitos res- São Tomás terá sido mais do que um gênio, digamos mes-
saibos, unindo todas as forças espirituais dispersas, e, em vez mo mais que um grande gênio, mas sempre com as limitações
de unir, tornou a aumentar as distâncias. do gênio humano. Aqui não se trata de ―revelação‖, que exorbi-
Compreenderemos que não podia proceder de outro modo – ta das capacidades individuais ou coletivas do poder humano.
dado seu absolutismo – pois, apesar de algumas boas intenções Trata-se de uma corrente de pensamento, a qual, ainda que
e grandes desejos de entender-se com uma parte do mundo que coincidindo com a revelação, não é revelação. É corrente de
hoje lhe é contrária, está presa a seu passado, que pesa e obriga. pensamento, assim como o foram as de Aristóteles, de Sócrates,
Ela o sabe e também o teme. de Platão, de Santo Agostinho, de Scott, de Bacon, de Galileu,
Sabe também que, ao condenar essas obras, que foram li- de Hobbes, de Locke, de Descartes, de Leibnitz, de Hume, de
das com ânsias de febricitantes sedentos de verdade, ela se Rousseau, de Kant, de Hegel, de Spencer, de Lotze, de Benede-
condena a si mesma, pois basta que a condenação se espalhe tto Croce, de Gentile, para não falar senão dos maiores.
pelo mundo, para que o mundo, aguilhoado por impulso de Ora, que a Igreja se defenda contra aquelas correntes de pen-
curiosidade, se lance à leitura dos dois livros; mesmo muitís- samento, que põem em sério perigo a organicidade de seu con-
simos de seus adeptos (não tenha dúvidas o Santo Ofício) – teúdo doutrinal, isso é tanto mais natural e legítimo quanto deve
apesar do extremo rigor que será usado – hão de ler suas pá- ser. Mas com isto não se quererá dogmatizar a filosofia escolás-
ginas furtivas e secretamente, tão grande é o anseio de sair do tica e especialmente o sentido fixado de suas fórmulas. Assim
caos de misérias e vilezas em que hoje se debatem as almas. teríamos de supor que a Revelação não terminou com São João
E, não obstante as tenazes resistências ou rebeldias, algo des- Evangelista, mas se tenha prolongado até são Tomás de Aquino.
sa leitura ressoará no âmago das consciências. Esse pouco se- E sabemos que a Igreja considera isto heresia. E então?
rá suficiente para fazer tremer profundamente a estreita urdi- Se Kant, que não julgamos nem polemista nem sectário,
dura de dogmatismo tecida em seu redor. Essas consciências mas puramente filósofo, afastou-se da orientação escolástica e
já não serão tão servis nem tão presas. abriu caminho ao criticismo, fazendo florescer, no vasto campo
Lamentamos sinceramente a medida extrema. Lamentamo- do pensamento humano, tantas e tão diversas tentativas para
la porque, silenciosamente e com a timidez das almas simples atingir a verdade, não o reputamos, por isso, réu de abuso raci-
que esperam e anseiam – anseiam sempre o bem – confiáva- onal, mas simplesmente um ousado inovador, e não vamos por
mos numa digna e realmente religiosa reconsideração de um isso colocar-lhe a cruz às costas. E a propósito de cruz (―croce‖
passado prenhe de responsabilidades. Novamente esvaiu-se em italiano), se Benedetto Croce pôde tumultuar o mundo com
toda a esperança. sua concepção neo-hegeliana, em evidente contradição com o
Muitos diários e revistas italianas e do mundo inteiro fi- pensamento tomista, nem por isso pode ser colocado entre os
zeram ouvir suas vozes e seus clamores, coincidindo todos hereges, desde que não teve intenção de pronunciar-se contra o
na afirmação de que se procedeu com critério muito pouco patrimônio teológico-dogmático da Igreja, mas simplesmente
cristão. sim de responder a uma preocupação de sua razão em busca da
A Redação verdade. Passando deste a Giovanni Gentile, que se diz ter des-
truído toda verdade objetiva, tão teimosamente mantida pela
AS OBRAS DE PIETRO UBALDI NO INDEX escolástica mediante o caminho dos sentidos, nem ele também
deve ser colocado entre os hereges, porque jamais se pronunci-
Da Revista La Verità Roma, dezembro de 1939, no 12. ou contra as fórmulas dogmáticas da Igreja Católica.
O Santo Ofício condenou as obras A Grande Síntese e Asce- A filosofia não pode levar em conta, como tal, limitações e
se Mística, de Pietro Ubaldi, nosso apreciado colaborador. inibições da teologia, que tem sua base sólida na fé. Mas tanto
A condenação surpreendeu profundamente, de modo parti- Kant como Croce e Gentile, assim como qualquer outro cultor
cular, a quem, como nós, conhece, além das obras, o próprio das disciplinas filosóficas, são expressões claras de sistemas
autor. tendencialmente transitórios, nem mais nem menos de quanto o
Porque Pietro Ubaldi – é útil que também os leitores o sai- foi o filósofo Aquino.
bam – é um cristão convicto e ardente seguidor de São Francis- Por que querer ligar o fenômeno ―revelação‖ ao fenômeno
co de Assis. razão, a ponto de dogmatizar uma expressão de caráter pura-
O ―fenômeno Ubaldi‖ merece toda a atenção dos homens de mente humano, que a experiência e a evolução científica podem
estudo e de pensamento. Um fato positivo, irrefutável, que nos sobrepujar? E, então, os séculos que passaram depois de São
deixa verdadeiramente pensativos, é que as obras de Ubaldi não Tomás, com seus grandes pensadores, nada puderam trazer de
são frutos de sua capacidade doutrinal. E então? verdadeiro e de bom? Custamos a acreditar nisso. Proclama-
No século do rádio e da televisão, quando os problemas mos, ao invés, a contínua ascensão do pensamento humano,
do espírito tornam a interessar um grupo cada vez maior de mesmo permanecendo fixado o termo da ―revelação‖, pelo
adeptos, não basta uma condenação à revelia para confutar e simples fato de que esta se limitou a determinado ciclo históri-
persuadir. co, ao passo que o progresso do pensamento humano continua
A Redação com a história e forma ele próprio, em grande parte, a história.
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 301
Após estas considerações de caráter geral, vamos ao caso rama terrestre e celeste. E aí se acham, desse modo, páginas
particular de Ubaldi, deste forte e genial expositor do pensa- sublimes, reavivadas por uma fraseologia ardente e cortante,
mento, que absolutamente não pensou em criar novo sistema fi- como justamente convém ao tema, e que não é fácil achar em
losófico e, muito menos, valorizar outros sistemas precedentes, outras tentativas desse gênero, com tanta densidade de pensa-
mas simplesmente fazer vibrar seu pensamento irradiado de mento e elevação de forma.
planos superiores conceituais; estes, sem ligar aos estreitos li- Os corteses críticos dos erros de Ubaldi, que lhe consegui-
mites de velhos e modernos sistemas, derrama-se ousadamente ram a condenação do Supremo Tribunal da Cúria Romana, não
num mundo quase novo, sintetizando harmonicamente os cam- deixarão de dedicar sua mais vigilante e objetiva atenção a es-
pos explorados do passado e adivinhando o futuro. tas páginas de cristalino ardor, remodelando-se com o conhe-
Ubaldi não pretendeu nem demolir princípios nem criar pre- cimento íntimo e talvez pessoal do autor, que, a um intelecto
cisos e determinados campos racionais. Colocado diante da são e a um coração de ouro, une harmoniosamente uma alma
própria consciência, arcanamente reveladora, evitando o fracio- profunda e sentidamente cristã.
namento de uma batida análise experimental, acumulando tudo (a) Lapis
quanto a ciência, de um lado, e a introspecção mental, do outro,
lhe puderam fornecer, penetrou os mais graves e delicados pro- UMA “CONDENAÇÃO”
blemas cosmológicos, históricos, psicológicos e éticos, buscan- Há vários anos vêm sendo publicadas obras de Pietro Ubal-
do uma fórmula sintética de tudo o que pode interessar a função di – o místico da Úmbria – primeiro em série na revista Ali dei
conceitual do intelecto humano. Pensiero, no Correio da Manhã do Rio de Janeiro, na revista
A suprema tentativa de Ubaldi não pôde subtrair-se ao fe- Constancia de Buenos Aires, e depois em volumes, traduzidos,
nômeno religioso, especialmente ao evangélico, que ele viu, desde 1933, em muitas línguas.
tratou e, como as outras compreensões intuitivas, enquadrou no As obras são: As Noúres, A Grande Síntese e Ascese Mística.
seu vasto e complexo sistema ―em síntese‖. Mister dizer de imediato que Pietro Ubaldi não vendeu seus
Para Ubaldi, a integridade do homem não pode cindir-se direitos autorais; cedeu-os gratuitamente, permitindo publica-
numa oposição de individualidades separadas em relação aos ções sucessivas em volumes; pelo que, hoje, suas obras não são
diversos fenômenos humanos; ao contrário, ele a coloca inteira mais propriedade do autor, mas divulgadas em todas as nações
e compacta diante de todo o mundo fenomênico, tirando daí ati- civilizadas, tendo-se tornado de domínio público.
tudes novas e sinteticamente harmônicas com a verdade e com Dizemos ―domínio público‖, quando nos referimos à pro-
o bem que o homem deve conquistar através das ilusões e desi- priedade intelectual, perdida agora pelo autor; mas diremos que
lusões, quer da parte do intelecto, quer da vontade. Em A o domínio público é restrito a limitadíssimo círculo de leitores,
Grande Síntese, Ubaldi não poupou uma atitude laboriosa e ci- se nos referimos ao conteúdo dos próprios escritos.
entificamente objetiva, para os últimos resultados cosmológicos É conhecido e reconhecido que a produção intelectual de
e biológicos, obtendo o aplauso incondicional de peritos de va- Ubaldi não só não se adapta – absolutamente – à possibilidade
lor, para tudo o que diz respeito às suas conclusões experimen- de ser entendida pela massa amorfa de leitores, mesmo que esta
tais e suas intuições racionais. tivesse mais gosto pelas fábulas que pela verdade, mas não se
Os primeiros 63 capítulos de A Grande Síntese dedicam-se acomoda nem sequer às mentalidades medíocres, às criaturi-
ao complexo estudo da cosmologia, para passar ao da psicolo- nhas superficiais que até talvez a achassem atraente.
gia e desta à ética, nada descuidando quanto à religião e ao Es- Só as mentes de pensamento elevado e profunda cultura fi-
tado, com os próprios cânones naturais e positivos, que serão losófica podem ler as obras de Ubaldi com aquele plácido espí-
impostos e sancionados, cada um em seu próprio campo, na rito de observação e crítica, como convém aos que se dedicam
consciência individual e coletiva do homem. a conhecer e julgar uma nova obra, uma nova orientação espi-
Páginas cheias de pensamento e vazias de floreados retóri- ritual, sobre a qual podem levantar-se vozes concordes ou sur-
cos, que cingem o leitor a um exame ponderado e nada fácil a gir dissensões, mas sobre a qual sem dúvida, foi chamada a
respeito das conclusões do autor. A frase assume colorido e ca- atenção e o interesse e promovida a pesquisa das mais altas
lor de novidade e, por isso, de especial dificuldade, exatamente atividades do espírito.
interpretativa. Nesta comunidade intelectual e internacional, suscitou sur-
A materialidade da expressão verbal nem sempre, de fato, presa e não pôde ser justificada a condenação repentina e rude-
decide clara e univocamente para determinado sentido. Intelec- mente expressa pela Congregação do Santo Ofício, que em seu
tualmente formado pelas conclusões analíticas de vários siste- decreto de 8 de novembro de 1939, colocou no ―Índex‖ os dois
mas filosóficos, Ubaldi quis audaciosamente destacar-se deles, livros: A Grande Síntese e Ascese Mística.
para conceber grandioso quadro sintético, que, elaborado em Os vários apologistas e comentadores da condenação,
seu espírito, ele fixou nas páginas de A Grande Síntese, trope- mesmo exaltando por dever de ofício ou de missão o ato, não
çando aqui e ali na acidentalidade dos termos. Evidentemente, puderam calar e negar, a si mesmos e aos outros, que algo de
por causa dessa transplantação para o campo da materialidade bom e de verdadeiro há nas obras de Pietro Ubaldi, mesmo
da expressão sonora, ele teve de servir-se de termos que, dada quando, no ardor da polêmica unilateral, transcreveram, com
a mentalidade de diversas orientações filosóficas, trouxeram censura e escárnio excessivos, trechos destacados e avulsos de
tal confusão, que Ubaldi, para permanecer fiel à verdade da um conjunto, atribuindo-lhes um significado e um objetivo
Igreja Católica, várias vezes projetou e desejou corrigir, adap- que não estão de acordo com as intenções de quem teve a ins-
tando-os ao sentido preciso e comum da teologia católica. No piração. Entretanto o próprio fato da distinção específica im-
livro igualmente condenado, Ascese Mística, parece-nos que o plica o reconhecimento de que, ao menos, não é a obra toda
autor esteja maduro, mais do que por ocasião do frio raciocínio que é repudiada e condenada.
de A Grande Síntese, a equilibrar-se no alto, muito alto, nas es- Daí não poder causar surpresa o fato de que a condenação,
feras do sentimento, do dever e do amor. Esta é sua fase de as- ocorrida seis anos depois da publicação inicial da obra, obteve
censão final, para a qual transporta toda a sua introspecção efeito totalmente contrário ao esperado, ou pelo menos deseja-
profundamente psicológica, no deleite da verdade atingida com do. De fato, foi e será feito um vazio em redor das obras de
a mais elevada dedicação ao bem, entrevisto nos ensinamentos Ubaldi por parte daquelas mentes que estão impossibilitadas de
e exemplos do Cristo. Em Ascese Mística, pode-se dizer que entender e julgar, por incapacidade íntima, e que se entregam
terminou o esforço da subida racional realizada em A Grande caladas e submissas ao julgamento alheio. Todavia a condena-
Síntese, para repousar e enlevar-se na contemplação do pano- ção excitou, ao invés, o interesse e despertou a observação e a
302 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
investigação de todos aqueles que, com o ânimo isento de pre- ORIENTAÇÃO
conceitos doutrinários e de excessos de supina e cega submis- Esclarecimentos sobre a condenação de
são, estão em condições espirituais de entender e apreciar a A GRANDE SÍNTESE e ASCESE MISTICA ao Índex
obra que provocou os rigores dos tutores da fé.
Mas, se é fácil e simples impor proibições ao rebanho inco- Da revista La Verità – Roma, fevereiro de 1940, no 2.
lor e uniforme, que tem apenas a força de resistência da massa, ―Que conteúdo mais alto pode dar-se à vida, senão o de lu-
mas não a energia criadora, não é outro tanto simples nem fácil tar e sofrer por um ideal?‖.
embargar o caminho às forças do espírito, que, só elas e en- Esta máxima resume meu estado de alma atual. O público,
quanto tais, não podem ser contidas nem comprimidas numa que esperava de mim uma explicação após a condenação ao
mordaça estática, em limites fixos e invariáveis, de acordo com ―Índex‖ de meus dois volumes, A Grande Síntese e Ascese
concepções e objetivos egoísticos e utilitários, de uma negação Mística, compreende que eu não podia falar senão no fim, com
oposta como princípio absoluto. a pendência resolvida ou a situação definida, para concluir.
Dessa forma, sempre que aparece contraste entre a resistên- Mas nem hoje posso fazê-lo, enquanto lentas e complexas se
cia estática e a evolução do espírito, o obstáculo é abatido, com desenvolvem as negociações para esclarecimento, entre Roma
grave, evidente e permanente dano do oponente. E a história de e Gúbio, minha cidade. Este, portanto, é um artigo apenas de
todas as conquistas espirituais e científicas deveria estar presen- orientação, à espera das conclusões, um artigo em que, nesta
te às mentes dos julgadores. minha hora veemente, procuro uma focalização mais exata de
Já transcorreram três séculos da condenação de Galileu Gali- minha obra, tão diversamente discutida e julgada, especial-
lei por parte da Congregação do Santo Ofício, no entanto, entre mente hoje. E coloco sinceramente, sobre a mesa, todos os
os muitíssimos erros, essa sentença é sempre recordada como elementos de que posso dispor.
uma prova inegável da cega teimosia e do egoísmo doutrinário Por outra razão calei e em alguns pontos quero calar, porque
cada vez que a ciência e a fé, uma ideia e um sistema, o espírito o público não sabe tudo nem deve compreender tudo. Trata-se
e a matéria, formaram objeto de exame dessa congregação. de uma matéria grave e palpitante, que não pode ser oferecida
Ao menos desde essa época, adeja em torno dessa congre- totalmente ao seu olhar apressado e distraído. O público não
gação uma auréola de surpresa incrédula, de desinteresse gene- tem direito de assistir – às vezes por pura curiosidade – a uma
ralizado, de disfarçada irreverência, que ofendem ainda mais a polêmica à custa da Igreja que eu respeito, julgando, por prin-
majestade da congregação; a fé e o sentimento religioso de to- cípio, ser dever de todo homem de bem o respeito à autoridade.
dos nós que, como católicos convictos e praticantes, desejaría- Minha finalidade é o bem e limito-me ao bem. Meu método é o
mos que todos os valores representativos de nossa santa religião
Evangelho: o amor fraterno. Tenho o dever de informar aos ho-
não sofressem intromissões, restrições nem observações de es-
nestos em todos os campos, e não de dar satisfações aos vãos,
pécie alguma; de todos aqueles que, na pátria e fora dela, com a
curiosos e agressivos. Tudo em meu derredor deve manter-se
pena e com a voz, sempre repeliram e combateram a ofensa, o
no plano de espiritualidade, de onde estão excluídos os baixos
escárnio e os sarcasmos que chegaram como consequência dos
sentimentos de todo gênero.
erros e das resistências cegas, como justificação das separações
Este tempo de espera – que me impus severamente à minha
e dos desvios pelos quais a vida da Igreja do Redentor sempre
consciência, quando é humano saltar em defesa própria, especi-
foi atribulada e ferida em todos os tempos.
almente quando se sente que se está com a razão – foi para mim
Não é pois necessário aumentar o número dos que duvidam,
dos que desconfiam, dos dissidentes, sobretudo quando a sepa- uma hora trágica e palpitante, em que voltei ao meu âmago, on-
ração tende a verificar-se não somente na massa incolor e iner- de Deus fala, para sopesar tudo de novo diante Dele, particu-
te, mas nas aristocracias do espírito e do saber. larmente as minhas responsabilidades, porque costumo começar
Muitas vezes, no curso de sua história, a Igreja de Cristo foi pelos meus deveres, e não pelos dos outros. Tremendo esforço
salva pela paixão e pela fé dos humildes de coração mas eleva- de espírito, hoje pouco em moda, mas necessário para preparar
díssimos no espírito e na doutrina; e estes jamais condenaram aquela psicologia heroica de martírio, sem a qual nada de sério
nem excomungaram, mas pregaram e persuadiram. Contudo es- pode fazer-se na vida.
tes humildes não se confundiam com a massa, com o número, Espalhei pela imprensa diária vários artigos explicativos,
pois elevavam-se sobre todos, em alturas espirituais inacessí- mas certa imprensa não convergente dispersa o pensamento. Fiz
veis, de ascetismo e inspiração divina, em que a praxe dogmáti- minhas afirmações fundamentais no capítulo ―Minha Posição‖,
ca e a mesquinhez doutrinária tem apenas artificioso e restrito do volume Ascese Mística. Não fui compreendido. Inútil repetir
direita de permanência. essas coisas. Meu caso é complexo e foi mal-entendido por
E, agora, contemplando as obras que Ubaldi escreveu, sem muitos, porque é um fenômeno em rápida evolução e está fora
dúvida não por própria sabedoria – pois ele confessa não possu- das formas comuns do pensamento de nosso tempo. Fui defini-
ir o conhecimento intelectual e científico a essa altura – temos do como médium, espiritualista, estudioso, homem de ciência,
de concluir que, se aquelas páginas contém só erros e sacrilé- filósofo, inspirado e, enfim, místico. A psicologia moderna
gios, a condenação chegaria tarde e não teria efeito algum, por- compreende e quer o especialista que se tranca numa gaveta do
que a consciência dos crentes já as teria repelido e reprovado; cognoscível já conhecido, e não quem se acha diante desses fe-
se, ao invés, aquelas páginas contêm mais ―verdades‖ que er- nômenos dinâmicos em rápida ascensão. A mentalidade domi-
ros, então a condenação não só se revela inútil, arbitrária e ve- nante analítica e racional exclui essa universalidade sintética e
xatória, mas consegue efeitos exatamente contrários aos visa- intuitiva. Assim, cada um me viu com seu olho particular e me
dos pelo ato condenatório, porque, naquelas páginas, o julga- catalogou – pensando que definitivamente – no seu campo, en-
mento de todos os que têm força intelectual para compreender o quanto eu o atravessava, e pescou-me com a rede de sua classi-
valor delas já foi expresso e confirmado. ficação, da qual, pouco tempo depois, eu já havia saído. Isto,
Mais uma vez se mostra, aí, como a violência contra o espí- quanto à medicina, à economia, à sociologia, à filosofia, à arte,
rito deve ser substituída, na defesa da fé, pelo amor e pela per- à ciência, à mediunidade, ao espiritualismo, à religião. Daí os
suasão, pelo caminho em direção à luz, pela compreensão dos mais variados julgamentos. Mas eu sou apenas eu, um fenôme-
humildes de coração. no em movimento. Neste trajeto, tive a sensação viva de quan-
De outra forma, aquela violência, ―cobrem habet, substanti- tos podem ser, no relativo, os aspectos em que refrange a uni-
am veronullam‖ (―tem aparência, mas nenhuma substância‖). dade da verdade absoluta, que não pode ser sentida pela razão
(a) B. G. nem pelo estudo neste plano, mas só por intuição num plano
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 303
superior, como eu a experimentei. Fui medido, assim, pelos me- ceis, artificiosas, enfeitadas de erudição. Sinto para mim que, se
tros mais diferentes, e cada um disse a sua medida. Cada um a razão pode demonstrar, também pode errar; que o coração não
aprovou ou condenou, conforme os comprimentos coincidissem demonstra, mas não se engana, apesar do que dizem os doutores.
ou não com a medida usada. A verdade é ampla, e vejo que pode abarcar os dois extremos,
―Last but no least‖ (―Por fim, nem por isso com menor im- não contrários, mas complementares. Esta é a posição dos místi-
portância‖), chegou a Escolástica. E todo o meu trabalho é cos. Há lugar, portanto, para todos, para se completarem, e não
medido também com o metro teológico. Em minha orientação para se excluírem e demolirem.
simples, prática, aderente à vida, isto não estava previsto. Não Fui definido um místico. É esta, com efeito, minha última
via empregada corretamente, nas medições sociais, aquela uni- fase. Hoje se abusa tanto da palavra místico, que não se sabe
dade de medida, que me parecia, antes, colocada em grande mais o que ela signifique. O materialismo – cor psicológica do
honra, entre as coisas históricas, exumadas nas escolas pelos século – espalha sua cor sobre tudo, tornando incompreensí-
estudiosos. Instintivamente segurava-me à vida, à natureza veis certas atitudes de espírito, em que muitos se sobressaíram
operante em que tão vivamente sinto Deus presente, à natureza em outros grandes séculos. Nenhuma posição mais delicada e
que faz e conclui tão bem, sem necessidade de laboriosas cons- ousada do que a minha, mais passível de ser mal-entendida
truções racionais. Instintivamente me achei mais preso à forma em nosso mundo, que exalta outros valores. Aparecerei, pois,
mental hodierna, que é científica, mesmo porque devia falar a como fanático, alucinado, rebelde, sei-o bem. A incompreen-
ela. Jamais, pois, tive intenção de fazer um tratado teológico são me vem de todo o meu tempo. Falamos duas linguagens
ou escolástico, nem pretendi absolutamente entrar naquele diferentes: uma, eu; outra, o mundo. E não nos entendemos.
campo em que, sinceramente, por mais que houvesse perscru- Mas é um fato que a psicologia de determinada fase não pode
tado, nada havia achado que me tivesse impressionado e sacia- compreender a psicologia de uma fase mais elevada. No en-
do. Será talvez um erro crer que se possam compreender os fe- tanto o místico, bem compreendido, é o tipo ao qual tende a
nômenos naturais, como a vida e a morte, a dor e a culpa e evolução. Experimentei-o, senti-o, vivi-o. Depois, achei a
também a moral e a ascese, o bem e o mal, simplesmente ob- confirmação disso na leitura das experiências dos místicos.
servando-os e perguntando a eles somente o ―porquê‖ deles? Mas trata-se de sentidos, de capacidade intuitiva, de formas de
Deus não é onipresente? E todos eles, não são, então, a expres- vida psíquica, diferentes das comuns. Houvera aqui espaço
são do pensamento de Deus? Olhei tudo isso com o amor apai- para citações, e enviaria o leitor, por meio do argumento pre-
xonado de São Francisco pelas criaturas. E vêm dizer-me que cedente, aos direitos da consciência diante da autoridade, à
isso é panteísmo. Mas eu sinto e amo Deus nas criaturas. Por carta que o Cardeal Newman escreveu, em 1874, ao Duque de
que pretender demolir com acusações filosóficas esta minha Norfolk e a inúmeros trechos da Sagrada Escritura e de escri-
alegria? Então São Francisco era panteísta? tores eclesiásticos. E, neste assunto, gostaria de citar as pala-
Aparecem, desse modo, as razões da não-coincidência com vras de J. G. Fichte, em suas lições na Universidade de Ber-
esse metro. Meu caminho é intuitivo, de místico; aquele é cami- lim, em 1813. Ele explica como não se pode fazer os cegos
nho de razão. Com todo o respeito por aquela sutil técnica con- compreenderem as cores: eles buscarão tocá-las e se iludirão
ceitual, que é o pensamento aristotélico, que só o gênio e a san- de tê-las compreendido por caminhos indiretos, ao passo que
tidade de um Tomás podiam assimilar a uma Igreja filha do apenas estropiaram, falsearam e alteram seu conceito.
Evangelho – francamente, eu, por temperamento místico e pelo Que é, pois, um místico? Devo definir claramente minhas
método intuitivo, sinto-me mais próximo das formas de verdade relações com o mundo. Existem aqui indivíduos espiritualmen-
primordiais do cristianismo do que das sucessivas, deduzidas. te isolados em seu egoísmo, feitos de desejos, de direitos, agru-
Aliás, se a filosofia do mundo oscila entre a forma mental de pados por interesses em choque, instintivos, ignaros do porquê
Platão e a de Aristóteles, isto é, entre a intuição e a razão, como da vida. Sabemos quem é o homem; o que vamos fazer com es-
a vida entre o coração e o cérebro, ou a própria Igreja entre San- se material? O místico sabe do funcionamento orgânico do uni-
to Agostinho e São Tomás, é evidentemente lógico que, a algu- verso, com o qual está em consciente relação de colaboração.
mas mentalidades místicas – e não só a elas – repugne tremen- Ele existe em função do todo, só tem vontade em função do to-
damente toda coação lógica de razão em matéria de fé, que elas do, isto é, só tem como vontade própria a vontade de Deus.
sentem antes como uma doação de si, espontânea e total, a Deus, Possui uma vontade altruísta e universal, pacífica e orgânica.
por ato de amor, e não como uma conclusão racional. A estas Não é mais separatista, mas se harmoniza com o todo. É o tipo
mentes, aqueles silogismos, que parecem acrobacias e bravuras, que a evolução biológica prepara para o futuro, hoje antecipado
podem despertar uma santa repugnância, como algo de irreligio- irregularmente, mesmo do fundo da atual descida involutiva
so, como uma negação de espírito de amor do Evangelho, como materialista. O mundo atual não se está arruinando todo por fal-
uma contrafação do sentimento de Cristo, que queria convencer ta desse espírito unitário? Os seres de antecipação o preparam,
por meio de amoroso exemplo, e não por força de argumenta- como base para a porvindoura civilização. Qual a tendência das
ção. Não foi Ele o inimigo dos doutores e dos sábios? Compre- leis, senão levar o indivíduo de uma vontade individualista de
ende-se, todavia, que certas formas mentais e métodos tenham desordem para uma vontade coletiva de ordem? O místico não
sido necessários para desempenhar a função histórica de salvar a olha, pois, apenas o fenômeno religioso e espiritual, mas tam-
Igreja em outros tempos, quando, na Idade Média, a vida era bém o fenômeno biológico e social. Como homem total, ele é
confiada à espada, fazendo-se necessária a força, até dos argu- lutador viril e dinâmico até nos mais altos planos do espírito. A
mentos, para proteger a verdade. Mas, se os tempos tivessem sociedade precisa de células como essas.
mudado e, hoje, a coação lógica, ao invés de persuadir, afastas- O místico bem sabe que o mundo existe para voltar a Deus,
se? Diz-se que nenhum silogismo jamais persuadiu ninguém. e que a Deus só se volta através da dor. Portanto, diferentemen-
Parece, ao contrário, que a convicção seja um estado psicológico te do mundo, que teme, foge e combate a dor, o místico a abra-
que não resulta de puros elementos racionais. Seres eminentes, ça e a ama, como um meio de libertação. Estamos nos antípo-
como São Francisco e o próprio Cristo, persuadiram muito mais das. Enquanto o mundo se atordoa, engolfando-se cada vez
por meios simples do que por força de argumentação. Aliás, é mais na matéria, na ilusão, no relativo (ciência analítica e utili-
também conforme à justiça divina que a verdade não seja patri- tária), o místico vai por estradas opostas e liberta-se dela, até à
mônio apenas dos eruditos, mas de todos. Cristo empregou o sis- união com Deus. Vivi e descrevi isto em Ascese Mística, e não
tema da descida do Espírito Santo. Parece-me que as coisas di- fui compreendido. Para o místico, o mundo é cego; para o
vinas devem ser simples e puras, sinceras e ardentes, e não difí- mundo, o místico é louco. Eu bem o sei. Mas sempre houve luta
304 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
entre os solitários antecipadores e a maioria, que visa esmagar minhas obras, em relação à recente nota. No próximo número
os primeiros pela inércia da massa e pela quantidade numérica. da revista, espero poder dar, quanto ao mérito, pormenores
No entanto ensina-nos a história que o progresso – isto é, a ação mais preciosos, resumindo os acontecimentos, mesmo na sua
divina que impele à evolução, que é o retorno fatal do universo repercussão na imprensa estrangeira. Espero, enfim, poder con-
a Deus – se opera sempre através desses canais de exceção. Es- cluir, esclarecendo diante de Deus, da Igreja e do mundo a mi-
tes, porque bem sabem qual a função biológica que executam nha posição atual.
em sua posição de antena, sentem Deus, seu pensamento e von- Pietro Ubaldi
tade, melhor que os outros e se sacrificam alegremente para ex-
pressá-los. O tipo comum, que necessita de certezas para seu CONCLUSÕES SOBRE A CONDENAÇÃO
repouso e segurança, tem horror e terror desses lampejos sobre
tais certezas para ele seguras, lampejos que os lançam no abis- Do opúsculo Comentários da Imprensa às Obras de P.
mo do infinito. A vertigem o descontrola, e ele se rebela. Estes Ubaldi, por ocasião da condenação do Santo Ofício, da Socie-
estados e correntes psicológicas influem inconscientemente so- dade Tipográfica Oderiso – Gúbio, maio de 1940.
bre todas as manifestações do espírito. A massa inerte odeia o ―Tudo o que se faz contra a consciência, prepara a condena-
esforço e o risco do inexplorado, assusta-se com aquelas des- ção‖ – 4o Concílio de Latrão.
continuidades da certeza levada à dúvida, que implica no tor- É hora de resumir e concluir, conforme prometi.
mento de achar uma nova certeza, ainda que mais alta, portanto Numa tarde de 15 de novembro do ano passado (1939), fe-
coloca obstáculos a estes impulsos criadores em que Deus se riu-me repentinamente a leitura do decreto de 8 de novembro
revela. Eterna luta da luz contra as trevas. Querer-se-ia deter o de 1939, condenando ao ―Índex‖ meus dois volumes: A Grande
progresso. Mas parar é morrer, e a vida o sabe, estremece e Síntese e Ascese Mística. Golpe duro, após tantos anos de fadi-
avança. O místico, como o herói, o gênio, o mártir e o santo, é ga. Tal entre filho e mãe, condenar uma obra é também um
um tipo de antecipação e tem essa função. O homem normal, pouco matar o autor. Mas, quando há equilíbrio dentro da cons-
medindo as coisas com a unidade da quantidade numérica, quer ciência tranquila, diante de Deus, as reviravoltas exteriores têm
nivelar o que está fora dela, fora da massa, fora da vida. Julga pouco poder. O que faz adoecer não é tanto o ataque do micró-
que sua vida seja toda a vida, de todos e para todos. A antena bio, que existe em toda parte, quanto a vulnerabilidade orgâni-
que perscruta o amanhã e o antecipa não interessa à maioria, no ca. Assim, no campo moral, o que abate não é tanto o ataque
entanto a antena é o cérebro, e a maioria é o ventre do mundo. externo, quanto a fraqueza de uma consciência que trabalha
Pode ser irreligioso esse tipo de homem? É concebível um sem Deus. Um novo e intenso exame rápido interior foi feito.
ato de autoridade e de condenação contra ele? É evidente que Tudo em harmonia com Deus. Nada pois que temer. E, de ime-
um ser desses não pode ser atingido pela vontade de um homem, diato, voltou a paz, a alegria, a confiança.
a não ser até o ponto em que isto exprima a vontade de Deus, de É preciso perdoar ao reverendo Padre M. Cordovani um arti-
quem ele vive. É inútil procurar negá-lo: quando se está num go que foi julgado por todos os que o leram áspero e excessivo.
plano espiritual e se faz questão unicamente de consciência, o Perdoar porque certamente o creio de boa fé, e, pelo modo como
ser é livre, humanamente incoercível. E isto constitui uma justi- se exprime, transparece evidente que ele está absolutamente ig-
ça de Deus, porque é merecido prêmio de grandes esforços. O naro da realidade dos fatos. Por isso, se aquele artigo devesse ser
espírito não pode ser atingido por meios humanos, mas só por compreendido como interpretação oficial do decreto (já que apa-
caminhos divinos. O homem poderá infligir dor, mas o místico receram ambos lado a lado), sem dúvida que ele tenderia mais a
ama a dor, conhece-a bem, emprega-a constantemente para seu demoli-lo que a explicá-lo. Tomando como base de julgamento
progresso. Não a teme. Assim lhe é oferecido um precioso ins- só a letra, apenas uma pequena parte da letra, e nada absoluta-
trumento. A luta se baseia numa incompreensão originada por mente do espírito, provoca-se assim um mal-entendido funda-
uma linguagem diversa. O mundo assalta, o místico sofre, a sen- mental, que nos acompanhará até o fim. Agradeço ao reverendo
sação da presença de Deus faz-se cada vez mais forte e o torna padre Fr. M. Gaetani, S. J. por ter honrado A Grande Síntese
cada vez mais feliz. Ele está a postos. O mundo se afoga e mais com sua crítica, na aula inaugural do Instituto de Cultura Supe-
tarde se arrepende. Foi sempre assim. Como se pode lutar contra rior Religiosa, na ―Gregoriana‖, de Roma. Agradeço a uma de-
tal indivíduo, como constrangê-lo, se ele ama a dor como meio zena de revistas e jornais católicos, por terem comentado a con-
de redenção e nela aceita com alegria a vontade de Deus? Como denação, e a cerca de 60 jornais italianos, que trouxeram a notí-
se pode julgar este e suas obras? Para julgar, é mister usar a cia. Propaganda não solicitada, gratuita, vantagem para o editor,
mesma medida segundo a qual a obra foi construída, colocar-se não para mim, pois não ganho nestas coisas, pois sabe-se que o
no mesmo plano em que ela foi concebida. De outra forma, co- público, que não é santo, gosta mais das coisas proibidas que das
mo fazer um julgamento exato? E serão os métodos de razão lícitas. Mas a culpa não é minha. Nem mesmo tenho culpa de
competentes para medir os produtos da intuição e da inspiração? me terem chegado centenas de cartas, que me traziam um cla-
Para julgar um místico é necessário subir num plano mais eleva- mor de solidariedade a meu favor, que não pedira. Mas, nos que
do que a razão, no plano em que fala o espírito. Será a razão su- haviam sido beneficiados por aquela leitura, a reação era espon-
ficiente para compreender as coisas de Deus? tânea, como a de um ataque à própria fé que os salvara e à qual
Dir-me-ão: tudo isso é orgulho. Velha acusação, para deter- se haviam apegado por terem sentido um grande bem.
me; conheço-a. No entanto, nestes dias, realizei a máxima humi- Eu observava, meditava e calava. Eu não o quisera. Então
lhação da minha pessoa que me era possível (mais não podia pe- assim quis Deus, para fins mais altos. Não surgia em mim o di-
la minha verdade). Pergunto agora: enquanto eu nego a paterni- lema: obedecer ou rebelar-me. Mas surgia o problema de con-
dade de A Grande Síntese, declarando-a obra não-minha, escrita seguir fazer chegar à grande autoridade a minha pobre voz, para
por inspiração (e portanto não retratável), como se insiste em fazer compreender o grande mal-entendido. E me impus este
negar esta inspiração, para atribuir-me essa paternidade, que, pa- novo esforço, mas obriguei-me ao silêncio na imprensa. Agora
ra mim, constituiria o mais monstruoso orgulho? Então não sou não posso deixar de explicar-me, pelo mesmo motivo pelo qual
mais orgulhoso e tudo me é concedido, quando isto torna fácil a escrevi Ascese Mística, ou seja, porque o que diz respeito ao
demolição de minha obra? Por que não existe, nos julgamentos meu caso não é mais coisa minha, mas do público. Uma primei-
que de mim fazem, aquela coerência que eles me pedem? ra ―declaração de obediência‖ partia de Gúbio para Roma, no
O leitor viu, assim, surgir diante do mundo e diante da Igre- Natal de 1939. Foram motivos dela: 1o) A minha fé é sincera e
ja a questão da consciência, a questão da origem inspirativa de meu objetivo é o bem das almas (não tenho, portanto, o direito
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 305
o
de escandalizar o rebanho); 2 ) Julgo dever de todo homem reto dadeiro em meu palpitante caso, respondem-me com o mesmo
o respeito à autoridade em todos os casos (ninguém poderá ne- pedido de retratação, formulado de outra maneira. No entanto
gar que este seja um princípio de ordem necessário à vida soci- eu ignoro os erros que deveria rejeitar. Eu o pergunto, mas não
al); 3o) Sinto-me cristão, isto é, seguidor de Cristo a todo custo tenho direito de sabê-lo. Há um grande número de almas sim-
(como se pode deixar de admirar Cristo e o Evangelho?). Por ples que se escandalizam com uma desobediência, e elas mere-
estes três motivos, eu dizia: ―humilho minha pessoa aos pés da cem respeito. Trata-se do bem das almas, de meu constante e
Igreja‖. O objetivo é, desde agora, e será até o fim, fazer o bem. maior motivo. A maioria, que nada sabe, exige um grande ho-
Com isto, abaixava o meu orgulho, o que era a necessidade locausto, porque os maiores devem viver e sacrificar-se pelos
mais urgente. Aliás, de minha pessoa sou dono, e ninguém po- menores. Este é um argumento que me faz estremecer: o bem
derá dizer-me que não posso dispor dela. Mas isto não bastou, e de certas almas. De qualquer forma é preciso realizá-lo. Mas há
tornou-se necessária, embora oferecida como simples retoque outro grupo de espíritos que acreditaram nas verdades que eu
da precedente, uma nova e explícita declaração de ―reprovação disse, que nelas acreditam e delas tiram proveito. Se eu as retra-
e retratação‖ dos erros contidos nos dois livros citados. E, ao tasse, eu lhes furtaria uma conquista e autorizaria estas almas,
mesmo tempo, pediam-me para retirar do mercado todas as edi- que do materialismo haviam tornado à fé, do desolado ceticis-
ções, mesmo as estrangeiras, de que perdi todo o controle. mo à esperança, a não mais acreditarem em nada e tornarem a
Esta, que me vinha apresentada como mera formalidade e se jogar na lama. Não posso fazer esse mal. E quem está mais
simples questão de palavras, era para mim, ao invés, gravíssima perto de Deus, quem merece mais atenção: quem O procura
questão de substância. Abria-se assim uma nova fase, em que mesmo ansioso e dolorosamente, ou quem O recebe passiva-
se me impunha, não provocado por mim, o problema de consci- mente, sem esforço, pela ensino da autoridade?
ência, que para mim era gigantesco. E eu tinha que enfrentá-lo Mas precisemos. Minha atitude diante da Igreja, delineada
em cheio, enquanto perdurava o mal-entendido. Se eu podia em Ascese Mística e no prefácio à 2a edição de A Grande Sínte-
submeter minha pessoa, de que sou dono, não podia ―reprovar e se, não é de hostilidade, embora possa tê-lo parecido; ao contrá-
retratar‖ uma verdade que não era minha, mas fora recebida por rio! E daqui vem o mal-entendido. Por que interpretar a adver-
inspiração, uma verdade que eu sentira com sincera e profunda tência apaixonada de um amigo como censura agressiva de um
convicção, que não podia renegar sem mentir. Dediquei os vo- inimigo? Não dei prova de submissão? Um inimigo não faz is-
lumes As Noúres e Ascese Mística a explicar isto e não o repito. so. Compreendam-me. A minha luta não é contra a Igreja, mas
Poder-se-á não ver e negar, mas para mim tudo continua sendo apenas contra uma particular atitude filosófica escolástica, e is-
um fato objetivo, experimentado, controlado, solenemente de- to porque ela se me apresenta como uma forma mental que eu
clarado há tempo, convicção inabalável. Como é possível, nes- sinto ser um perigo, diante dos gravíssimos tempos iminentes.
sas condições, desmentir tudo, sem sentir-se culpado diante de Aliás, não declarava São Paulo que não se apoiava em argu-
Deus, diante de Quem sempre trabalhei (obtendo a aprovação mentos humanos, mas sim na força do espírito? Diz a Imitação
mesmo de venerandas personalidades eclesiásticas) e de Quem de Cristo: ―Que nos importam gêneros e espécies‖? E São Ber-
―vi‖ o auxílio prodigioso contínuo? Retratar seria, aqui, apro- nardo conclui que a filosofia de Aristóteles é a oficina do diabo.
priação indébita, seria trair a missão aceita. A quem obedecer: à Naquela forma mental, o ardor da fé – cotidianamente necessá-
Igreja ou a Deus? Não se pode negar, no meu primeiro ato – ria para a ascese, que é a vida das almas – adormece na ilusão
que espero venha a demolir a acusação de orgulho – toda a mi- da segurança que provém da conquista racional conseguida. Es-
nha espontânea boa vontade de obedecer. Não sou, pois, um re- ta atitude leva à inércia, aos acomodamentos terrenos, à crista-
belde. E por que deveria aparecer como se o fora? Em Ascese lização do espírito, à imobilidade do sono, que não é paz, segu-
Mística, no capítulo ―A Minha Posição‖, disse: ―Prefiro morrer, rança ou grandeza, mas pode ser morte. A vida caminha, e o
a pensar que eu possa deixar de manter as minhas afirmações‖. que não caminha morre. Abate-me esta idolatria da letra, que
Se eu mudasse uma palavra, seria, portanto, perjuro. Até que está nos antípodas das grandes paixões do espírito. E em mim
ponto deve pois chegar meu sacrifício? É possível que haja só se viu a letra. Já expliquei no artigo precedente a psicologia
apenas condenação para quem busca os caminhos da dor, para o do místico. Com isto, não nego a grande função da Igreja, de
bem alheio? Realiza-se, então, a cena final daquele livro: ―Pai- conservar. Mas há também elementos ativos e criativos, porque
xão‖? Levanta-se em mim uma tempestade de problemas, e len- a vida religiosa é dada não só pelo elemento social (hierarquia)
ta se arrasta minha tortura moral. Sou apenas um instrumento. e pelo elemento intelectual (teologia), mas também pelo ele-
Obedeci antes e continuo a obedecer, mas a quem o farei agora? mento espiritual (profetas, místicos, santos), e só está completa
Como podem ser abaladas convicções tão profundas, que se com os três elementos. Descuidar e desconhecer a contribuição
formaram diante da sensação de Deus presente? Durante este inspirativa do místico tem o mesmo peso que o erro teológico e
trabalho interior, entretanto, amadurecia meu espírito: trabalho a rebelião à hierarquia. As religiões, como ciclos de vida hu-
precioso. Meu lema era: sinceridade e fé. mana – pois também o são – cansam-se, esgotam-se e ameaçam
Continua o drama interior. Acho-me entre Cila e Caribdes. – após superar certa maturidade de pensamento e desenvolvi-
Não retratar-me já é uma atitude de rebelião, mas fazê-lo é mento – cair no farisaísmo, contra o qual justamente Cristo tan-
mentir, atribuindo-me intenções que não tenho. Retratar-me é to lutou. O perigo já apareceu no fim do século IV a São Jerô-
trair uma verdade afirmada sem reservas. De qualquer modo nimo, que escrevia: ―Vae nobis, in quos vitia pharisaeorum
que eu faça, resta uma mentira, uma dor, um mal, única com- transierunt‖ (Ai de nós em quem passaram os vícios dos fari-
pensação de tanto trabalho. Como se pode constranger a própria seus). É necessário de vez em quando, especialmente nos mo-
convicção, sincera e profunda? Nem a própria vontade pode mentos mais críticos, um novo lampejo de espírito, e os místi-
tanto. Ou rebelde ou traidor; ou traidor ou rebelde. Não podia cos são feitos para isso. Será verdade isso que se diz, ou seja,
achar forças para impor a mim a negação de uma verdade pela que o sentimento seja um elemento perturbador, e a consciência
qual daria a vida. Estou onerado e cansado, no entanto o repou- pessoal uma perene emboscada? Pode ser assim para a massa
so está a um passo, e poderia chegar a ele saturado de bênçãos inerte e rebelde, mas não em casos particulares, excepcionais. É
eclesiásticas. Mas diz-me a consciência que não se pode ceder a preciso compreender bem a exceção. Além disso, mesmo em
outrem, a ninguém, ao menos nos casos como o meu, a respon- sentido geral, será o cristão apenas um soldado para ser enqua-
sabilidade do próprio modo de agir. drado, ou é também uma alma viva que deve ser elevada? O es-
Nessa conjuntura, informo a Roma sobre meu caso de cons- pírito dos Evangelhos está muito longe de coações racionais e
ciência, e, como se nada houvera dito e nada houvesse de ver- exteriores, e, para São Paulo e os grandes místicos, o ―affectus‖
306 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
está sempre acima do ―intellectus‖. ―Nosso Deus não é um teo- Quem se apresenta à frente, para prepará-las? E devemos calar?
rema de geometria‖, escreveu Pascal. Não nego a necessidade Não pode ocorrer que a iminência dos tempos gravíssimos jus-
do enquadramento racional e hierárquico; mas ai de nós se es- tifique a explosão dessas vozes isoladas e desusadas? Por que
quecermos que o objetivo dele é o espírito. Move-se a Igreja deveriam ser elas imediatamente sufocadas? Por que impor a
entre dois extremos, que são duas necessidades, mas também esses seres um doloroso caminho de condenações, para que
dois perigos: de um lado, a hierarquia, a escolástica, a raciona- possam cumprir seu dever?
lização da verdade, o transcendentalismo, que podem degenerar Meu mal-entendido é, portanto, fundamental; é um mal-
em cristalização, farisaísmo, materialismo religioso; do outro, o entendido de uma época. Este é o meu drama, de que os dois li-
misticismo individualista, o imanentismo, que pode ser disper- vros no ―Índex‖ são apenas um episódio, talvez querido por
são e chegar até à rebelião e à anarquia do livre exame. A unila- Deus, para que eu enfrentasse em público este problema muito
teralidade é um perigo. É indispensável o equilíbrio entre os mais grave. Quem se inflama nas grandes paixões de espírito,
dois termos complementares. Um organismo organicamente treme diante da idolatria da letra. Tenho a sensação de que,
perfeito pode desmoronar por falta de forças espirituais. quem está atento a distinguir e a catalogar conceitos, não pode
Estas não são acusações, mas verificações benévolas, para o levantar-se para agir. O mal-entendido aqui está no duelo entre a
bem de todos, porque a Igreja é patrimônio universal, que deve forma e a substância, entre a letra e o espírito. Mas quem se in-
ser salvo a todo custo. Gostaria de citar o que Giovanni Papini flama não liga às palavras, como nelas não pensavam os márti-
escreveu em sua História da Literatura Italiana, vol. I, a res- res cristãos. Quanta largueza de formas, neles, mas quanta seve-
peito de Santa Catarina de Siena. Mas prefiro trazer as palavras ridade na substância! Estes dois fatores parecem estar em razão
do Abade Henrique de Tourville, num opúsculo: A Piedade inversa, como na arte estão a inspiração e a técnica. No fim de
Confidente, edição da ―Opera della Regalità di N. S. Gesù Cris- cada ciclo evolutivo, a letra tende a substituir-se ao espírito, e
to‖. Diz o autor: ―As coisas ocorrem igualmente em toda a par- sobrevém a ameaça do farisaísmo. Não podemos acreditar que
te no mundo, no clero e na vida religiosa; há um conflito entre ele constitua um perigo constante para todas as religiões, ou até
o que convinha às necessidades antigas e o que é indispensável mesmo uma fase ultramadura de sua evolução, fase de que não é
imperiosamente às necessidades novas, inteiramente opostas. A possível emergir senão com novos contatos com o Divino, com
grande massa, assim como os carneiros, ainda se alinha de injeções de espírito vivificante na letra morta? Estes ciclos estão
acordo com o que fazia dantes; emerge uma minoria muito li- nas leis da vida. Em todos os organismos, quer físicos ou espiri-
mitada (...). Mas é justamente dessa minoria que devemos fazer tuais, há um perigo final de massificação, de onde a vida só po-
parte, quando Deus nos colocou aí, por vocação interna e por de ressurgir recomeçando desde o princípio, alcançando nova-
atitudes naturais (...). Deus semeia no mundo, em todos os tem- mente Deus. Nesse período, a letra se substitui e quer julgar o
pos, precursores que agem por conta própria ou ao menos sa- espírito. Mas a razão está para a intuição como a superfície para
bem, dentro deles, as coisas que acontecerão (...). Ninguém é o volume. E me pergunto: teologia e escolástica, sendo um pro-
pioneiro por achar-se repentinamente numa grande companhia duto da razão aplicado ―a posteriori‖ à revelação, podem apli-
(...). Estamos numa época de transição, em que muitas coisas car-se como unidade de medida aos produtos de inspiração?
separam o presente – particularmente o futuro – do passado É necessário equilibrar-se entre estes dois extremos, que são
(...). O grande interesse deste tempo é que o mundo se renove forma e substância, letra e espírito, razão e intuição, autoridade
(...). Neste século, tudo temos de refazer, mesmo aquilo que em e consciência, Terra e Céu. É indispensável que nenhum dos
si mesmo não muda. Haverá talvez mudado a natureza? No en- dois impulsos contrários e suplementares sobrepuje o outro e
tanto vedes que, em vossa química e em vossa física, mudou a nos empurre para uma das calçadas, quando temos de caminhar
maneira de estudá-la. Os métodos melhoram, e as mesmas coi- no meio da estrada. É mister respeito recíproco entre autoridade
sas se veem melhor; é justamente isso que se requer na fé‖. e consciência, porque a ambas está confiada uma tarefa sagra-
E como não mudou a natureza, então não se combate nem da. A autoridade existe como função da consciência, que é o
se discute os dogmas, mas busca-se esclarecê-los e torná-los objetivo, e a consciência deve reconhecer na autoridade a fun-
mais razoavelmente aceitáveis. Não pode ser heresia, creio, ção da conservação. Autoridade e consciência, disciplina e li-
precisar pontos não resolvidos, mesmo contra a opinião corren- berdade, obediência e independência, não podem separar-se
te, que não é um dogma. Há sem dúvida imenso material cientí- sem que a segunda, por libertar-se, caia no abismo do arbítrio e
fico, formado depois da escolástica, que pode ser utilizado. da fantasia, e a primeira, por dever de conservação, termine na
Uma Igreja que conseguiu assimilar Aristóteles, pode assimilar letra morta, na cristalização formal, no esmagamento e na dis-
também coisas bem diferentes. Mas por que a opinião da gran- secação das consciências, que culmina naquele indiferentismo,
de massa inerte dos fiéis deve pesar tanto, mesmo nos dirigen- chaga bem merecida de nosso tempo. Não é possível entendi-
tes iluminados, a ponto de torná-los medrosos de toda inovação, mento entre quem usa a linguagem da forma e quem usa a da
fazendo que as forças da vida não possam confiar essa iniciati- substância e do espírito. O julgamento sobre os dois volumes
va senão a pessoas isoladas e a preço de martírio? Mas a Igreja condenados deve ser confiado não apenas a um exame crítico
vive e caminha... De fato, ela não se completou assim, assimi- racional, por sua forma exterior, mas também a um ―sentido es-
lando de todos os lados? piritual‖, por sua substância. Poderia dizer, com São Paulo, que
Desse modo, meu drama de espírito move-se no cenário da ―o homem físico não entende as coisas do espírito‖. A inspira-
intensa hora histórica, das grandes maturações espirituais do ção é responsável pela violenta chama interior que lança as
século, e talvez as sintetize e resuma. Sinto que, na minha ân- ideias, e o autor é responsável pela fidelidade de seu instrumen-
sia, repercute a ânsia do mundo, que está diante de novas e to, que deve entregar-se à obra com todos os seus recursos. E
formidáveis interrogações. Por vezes, tenho a visão terrível de isto eu fiz. Para mim, a roupa é a roupa, mas o corpo está ali,
uma multidão cega e inconsciente, lançada contra imenso abis- inteiro. ―A letra mata, o espírito vivifica‖. Minha verdadeira pa-
mo. Vejo aí os monges bizantinos, que – enquanto os turcos, lavra é de esforço, de dor, de dedicação e de amor. A roupa é
que haviam entrado em Constantinopla, queimavam tudo a fer- humana, transitória, relativa; mas a substância – e quem tiver
ro e fogo – continuavam a disputar se a luz do Tabor era criada sentido espiritual a capta – não pode ser renegada.
ou incriada. Vejo a corte da França, que, na vigília da revolu- Neste ponto de minha discussão, chega-me a nova fórmula
ção, fazia questão de etiqueta. Grita-se que eles são loucos, de retratação de que falei. Ela me coloca apenas diante da reve-
mas, em redor, estão as forças do mundo, ansiosas por precipi- lação, e nada mais. Ora, nenhuma fonte necessita tanto da in-
tar-se às conclusões do ciclo milenário de nossa civilização. terpretação da substância, de preferência à literal, quanto a re-
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 307
velação. Com efeito, vindo de Deus a revelação, não pode ha- pos, tiverem a vontade e a força de atingi-lo. Quanto a mim, es-
ver nenhum antagonismo entre ela e a verdadeira inspiração. tou fortissimamente sustentado pela minha consciência, por ha-
Então, a concordância é implícita. Portanto, nada que retratar. ver lutado e sofrido pelo bem. Talvez a obra já tenha terminado
Dessa forma, o mal-entendido chega ao fim. e seja indestrutível acima de toda a minha vontade. Tudo está
Examinada assim a questão em profundidade, saber agora lançado e não mais se pode deter. Quanto a mim, não fui defi-
se virá ou não o ato formal da retratação tem muito menos in- nido como um místico? Não olho, pois, para as coisas da Terra
teresse. Porque o mal-entendido permanece, faça-se o ato ou senão como uma missão, nem tenho já agora outras relações
não. Que valor substancial teria ele? Não tenho o dever de res- sociais, a não ser de dever e de sacrifício. De outra forma, após
peitar a autoridade? Pois bem, como já me submeti, agora me estes golpes, seria fácil perder a fé. Todas as minhas alegrias
retrato. Não tenho o dever de não perturbar as almas simples? estão e estarão sempre no céu. Este é o meu caminho. A psico-
Como me submeti, retrato-me, agora. Aliás, não sou um rebel- logia humana, sabe-se, é bem diferente, e eu me afasto dela ca-
de e meu primeiro ato o demonstra; e por que deveria parecer o da vez mais. E me entrego tranquilo nas mãos de Deus, para a
que não sou? Tenho o dever de testemunhar também esta parte Ele obedecer, sempre.
da verdade, para não cair na falsidade. E assim se executaria o A publicação deste último artigo, já composto para a im-
ato. Agora, coloco a questão moral e jurídica, se será válido pressão na revista La Verità, de março de 1940, foi proibida,
um ato de vontade dirigido para um objeto desconhecido. Já como foi proibido, em toda a imprensa, que eu ou qualquer pes-
disse que não pude, não obstante meus pedidos, saber quais soa escrevesse sobre este assunto.
são os erros a retratar. Não tenho motivos para crer que nos Esta foi a resposta e o esclarecimento que consegui.
dois volumes haja erros contra o dogma, mas apenas contra Diante de tais atitudes, não me resta hoje, em consciência,
opiniões correntes, que não constituem obrigação de fé. Assim, senão o silêncio.
a retratação teria apenas um sentido de genérico ato de respeito Com isso, verificou-se e continua a verificar-se tudo quanto
à autoridade, coisa já feita, repetição inútil. Afirmei sempre, na foi claramente pressentido, quando ainda não se falava em con-
imprensa, a origem inspirativa de minhas obras, repeti agora a denação, no volume Ascese Mística, especialmente nos capítu-
afirmação e expus à autoridade todo o meu caso de consciên- los ―Paixão‖ e ―A Minha Posição‖ e no fim do prefácio à se-
cia. Responderam-me como se nada disso existisse. Eu respei- gunda edição de A Grande Síntese, em língua italiana.
to a autoridade, porque me submeti, mas a autoridade respeita Pietro Ubaldi
a consciência? Isto é grave, máxime quando o acusado faz ape-
lo, a cada passo, ao testemunho de Deus, o que é um contínuo PIETRO UBALDI E A IGREJA
juramento de verdade. A autoridade – é justo, pois que ela o é
– decide e ordena; não discute nem entra em negociações. O Da revista Alba Spirituale – no 3, março de 1948.
jeito é obedecer. Mas os fatos permanecem e não são tidos em A Congregação do Santo Ofício, com o decreto de 8 de no-
conta. Eu não posso dispor do que não é meu, do que está fora vembro de 1939, condenou e colocou no ―Índex‖ as duas maio-
de meu poder de disponibilidade, do que está acima de qual- res obras de Pietro Ubaldi: A Grande Síntese e Ascese Mística.
quer ato meu de aceitação ou retratação, coisa sobre a qual mi- Seguiram-se à condenação apaixonados debates de numerosa
nha vontade nada manda. Cada retratação é substancialmente imprensa, na Itália e no estrangeiro. A católica, mais ou menos
nula para mim, quando estou convencido de estar com a ver- qualificada, fazia coro com as decisões do Santo Ofício, assu-
dade. Uma convicção sincera, formada na presença de Deus, é mindo às vezes uma linguagem particularmente áspera e ofen-
inviolável, porque não pode obedecer nem sequer à vontade do siva; a espiritualista independente tomava, ao invés, a defesa do
próprio indivíduo, sendo humanamente impossível impor-se condenado, contra-atacando também asperamente.
uma convicção diferente da que espontaneamente se tem. E eu A linguagem de ambas as partes, de qualquer forma, era ex-
não sei mentir. A força dessas posições está toda em encontrar- cessiva e pouco condizente com a delicadeza da controvertida
se totalmente no plano do espírito, acima da razão e da maté- questão.
ria. Enquanto, em A Grande Síntese, naquele primeiro tempo, A condenação colheu de surpresa o autor e lhe provocou
tivemos de recorrer à demonstração científica por necessidade surpresa e profundo sofrimento. No Natal de 1939, ele envia-
de nos fazermos compreender pela mentalidade materialista de va a Roma uma primeira declaração de obediência, na qual
nossa época, só agora, que estou diante da Igreja, em posição e humilhava-se diante da Igreja. Declarava que sua fé era since-
em momento diferente, posso formular este supremo apelo às ra, que seu objetivo era o bem das almas, que respeitava a au-
forças do espírito e à substância das obras. toridade da Igreja, que se sentia profundamente cristão. Mas
Eis minha atual posição diante de Deus, da Igreja e do mun- isto não bastou. Foi-lhe pedida declaração explícita de repro-
do. Até agora, a imprensa inglesa e sul-americana que às mi- vação e retratação dos erros contidos nos dois livros. Exigia-
nhas mãos tem chegado, comentou deplorando a condenação. se dele, além disso, que retirasse do mercado todas as edições,
Não é culpa minha se as coisas assim se apresentam. Quando mesmo as estrangeiras, de que ele havia perdido o controle.
um pobre homem sincero se encontra diante de um emaranhado Impunha-se ao autor um problema de consciência. Ele pediu
desta ordem, apresentado a ele pela sociedade humana ou ao que lhe fossem indicados os erros para que os pudesse retra-
menos por uma parte dela, com tão bem combinadas contradi- tar. Ou seja, pediu que se discutisse. A Igreja não aceitou a
ções, nada mais pode fazer senão confessar-se em público, co- discussão. Assim, Ubaldi não se retratou, e os dois contendo-
mo o fiz, e simplesmente responder-lhe: eis o que fiz, o que sei res encerraram a pendência com o silêncio.
fazer e o seu valor. Agora, julgue-se como quiser. Que resulta- Feita esta premissa, passemos agora a examinar o compor-
do se obteve na minha consciência e na consciência dos outros? tamento das duas partes e procuremos penetrar suas razões. A
Cada um responda por si. Uma ―nota de redação‖, no fim de Igreja foi coerente com seus princípios. Ela devia condenar,
um dos muitos artigos a meu respeito, ventilava a hipótese de sem faculdade de defesa nem de apelação para o condenado. Os
eu ser um ladino trapaceiro. E é naturalíssimo, pois, em pleno e princípios teológicos da Igreja são conhecidos, estão codifica-
civilizadíssimo século XX, esta é a primeira ideia que o próprio dos em dogmas bem definidos, que se aceitam ou se rejeitam;
semelhante desperta nos outros. É tão normal hoje em dia, tão de qualquer modo, nenhum católico os pode aceitar sob condi-
universalmente presumida, que não ofende mais. Isto demons- ções ou com reservas, mas só integralmente e sem discutir. A
tra que estamos imersos na mentira até o pescoço. Mas peço Igreja se declara infalível, e qualquer dúvida no mérito pode ser
apenas que se vá até o fundo, se meus juízes, em todos os cam- considerada heresia.
308 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
Pietro Ubaldi terá sido coerente na mesma medida? Aparen- uma magistratura interna própria, e, quando o pode, serve-se
temente, parece que não. Mas, examinando mais profundamen- também do braço secular. Ela luta arduamente para manter o
te o caso, teremos de concluir que, também de sua parte, houve próprio domínio sobre as massas. Porém o meio mais poderoso
coerência. Ubaldi humilhou-se diante da Igreja, declarou obedi- de domínio é o controle das mentes dos homens, fazendo-os
ência a ela, mas não se retratou. Como se concilia isso com a pensar segundo suas ideias. Quem diverge de suas ideias traz
coerência? A resposta só pode vir depois que tiverem sido confusão à mente dos homens e ameaça sua existência, portanto
compreendidos o pensamento e os sentimentos do autor. ela o condena inexoravelmente. É preciso reconhecer que o
Comecemos afirmando que Ubaldi é cristão. É um místico pensamento filosófico de Ubaldi, expresso nos dois volumes
cristão, que vive uma atividade religiosa muito intensa, que condenados, contrasta em muitos pontos com o pensamento
constitui a nota dominante de sua vida. Quem conhece suas oficial da Igreja. Dessa forma, esta não podia deixar de conde-
obras e conhece de perto sua pessoa não pode pô-lo em dúvida. ná-lo. Bastaria sua concepção monística e imanentista do uni-
A igreja católica, como todas as igrejas de quaisquer confissões verso, para criar um contraste insanável com a Igreja.
religiosas, cristãs ou não, vive uma atividade religiosa de trípli- Apesar de tudo isso, Ubaldi fez ato de submissão à Igreja.
ce natureza: a mais importante é a mística, que tem sua origem Por quê? Ubaldi sente-se profundamente cristão, individua no
nas forças da alma e do coração; segue-se uma segunda ativi- corpo místico da Igreja o anelo de sua alma de místico, está
dade, a teológica, que constitui o invólucro intelectual da pri- perfeitamente consciente da função vital dessa instituição mile-
meira, que tem sua origem na razão; vem depois a terceira ati- nar e, portanto, sente o dever e a necessidade de respeitar a
vidade, externa às duas primeiras, e é a litúrgica, que tem sua Igreja. Ela tem, verdadeiramente, uma alta missão; é um orga-
origem numa necessidade dos sentidos. A atividade mística é o nismo que, no interesse da vida, merece ser conservado e aju-
conteúdo essencial de toda atividade religiosa, é a alma vital de dado a viver. Massas ingentes de fiéis haurem na Igreja guia,
qualquer confissão religiosa digna desse nome. Alonga as pró- conforto e inspiração. Não se pode deixar de levar em conta tu-
prias raízes bem no âmago da alma, onde Deus fala; enxerta-se do isso, pois constitui um benefício imenso para os fiéis e para
nas fontes arcanas da vida. Este é, portanto, o conteúdo essen- toda a sociedade, enquanto uma educação inspirada pelos prin-
cial da vida religiosa da Igreja. Ela perderia toda a sua vitalida- cípios cristãos reforça os sentimentos de bondade, de altruísmo,
de se não haurisse nessa fonte sublime. Deus fala aos homens de honestidade e de convivência pacífica entre os homens. Por
através dos grandes místicos; são estes os intérpretes e traduto- isso Ubaldi fez ato de submissão à Igreja. É uma homenagem
res do pensamento de Deus, o maravilhoso elo que une o Céu à justa à autoridade daquela Igreja, que ele respeita, da qual se
Terra. Os místicos falam uma linguagem extraordinariamente sente filho espiritual; Igreja que se compenetra da alma mística
eficaz; levam-nos a um plano em que o contingente cessa e o de Cristo, que é também vida e conforto de sua alma. Não po-
universal domina. Neste plano está a vitória do verdadeiro, do dia rebelar-se sem, ao mesmo tempo, rebelar-se contra tudo o
bom e do belo, que se acham fundidos em admirável harmonia, que há de mais sagrado nele, sem perturbar as consciências de
que ilumina a mente e dá paz ao coração. Todos os místicos da todos quantos creem na Igreja e da Igreja recebem consolo.
Terra, de todos os tempos, de todas as religiões, vivem as mes- Mas, então, por que não se retratou?
mas experiências místicas, falam a mesma linguagem, enunci- Não podia retratar-se por três motivos importantes. Primei-
am os mesmos princípios morais. No plano místico, calam to- ro, ele teria realizado um ato contrário à sua consciência, por-
das as controvérsias religiosas e estabelece-se aquele ponto de que está persuadido de estar com a verdade. Sem esta profunda
contato que liga e irmana todas as religiões professadas no convicção, ele não teria escrito, nem escreveria. Além disso, re-
mundo. No plano místico não há lugar para a discórdia, para a tratando-se, ele teria transgredido também um princípio da pró-
divisão, para a intolerância; não há lugar também para a conde- pria Igreja, que foi sancionado pelo 4o Concílio de Latrão. Diz
nação, para a luta. Aí reina o amor, a paz, a concórdia. ele: ―quid quid fit contra conscientiam, sedificat ad gehennam‖
Ubaldi é um místico e, como tal, não podia ter sido conde- (Tudo o que se faz contra a consciência, prepara a condenação).
nado. Mas a Igreja o condenou da mesma forma, pois o julgou Segundo, a condenação foi, em grande parte, efeito de um mal-
um falso místico. Baseada em que considerações, pôde a Igreja entendido. Olhou-se a letra, e não o espírito dos livros. Ele es-
exprimir um julgamento tão grave? A resposta a este quesito foi clareceu seu pensamento em obras posteriores, desconhecidas
dada pela imprensa católica: o misticismo de Ubaldi se afasta de quem o condenou. Para ele, a imanência não exclui a trans-
dos princípios teológicos do catolicismo, por isso foi condena- cendência. Ele diz com Santo Agostinho: ―Deus est superior
do. Mas o que é a teologia, e de onde tira seus princípios? A te- summo, interior intimo meo‖ (Deus é o ser supremo, e é o mais
ologia representa o pensamento filosófico da Igreja, ou melhor, íntimo do meu ser). Terceiro, ele está plenamente convencido
dos padres da Igreja, de seus doutores. A teologia é um produto de que tudo quanto há de místico e de conceitual em suas obras,
do pensamento humano e só tem relações indiretas com a mís- não pertence às suas faculdades pessoais, mas tem origem ins-
tica; portanto não está isenta de todos os defeitos do pensamen- pirativa, que parte de um plano conceitual que o transcende, de
to humano, sendo o primeiro deles a falibilidade. Analisando-se onde se comunica uma sublime entidade que ele chama ―Sua
bem o caso de Ubaldi, podemos verificar com facilidade que a Voz‖. Julga que falou por virtude inspirativa, e tudo quanto dis-
Igreja quis condenar o pensamento não ortodoxo dele. Mas, pa- se não lhe pertence. Não tem, portanto, a faculdade de se retra-
ra condenar o pensamento, devia também condenar a alma mís- tar; se o fizesse, trairia a Divindade. Achou-se ele então em
tica. A Igreja não pode admitir que um homem seja bom cris- tremendo dilema: ou trair tudo quanto para sua alma havia de
tão, sem que também participe de seu pensamento teológico. mais sagrado, ou rebelar-se contra a Igreja. Ele não pode ser
Por quê? Porque no pensamento teológico se ergue o edifício traidor nem rebelde. Se traísse, cometeria uma monstruosidade
social da própria Igreja – derrubem o edifício teológico e des- que mataria sua consciência; caso se rebelasse contra a Igreja,
moronará todo o edifício social da Igreja. Ubaldi tocou a teolo- cometeria um matricídio espiritual. Ele é cristão e não quer per-
gia e, portanto, tocou diretamente esse edifício social. A Igreja turbar as consciências dos fiéis à Igreja. Não está aqui para tra-
defendeu-se, condenando. Através de uma experiência de milê- zer a guerra e dividir, mas para trazer a paz e unir, sobretudo
nios, a Igreja formou a sua atual estrutura, que ela julga a mais para unir, que é o imperativo dos novos tempos.
condizente para a sua conservação e o cumprimento de sua Por que a Igreja quer impor uma coisa que contrasta com a
missão entre os homens. Tem uma sólida organização hierár- liberdade de consciência, sancionada por ela mesma no 4 o Con-
quica, experimentada durante séculos, grandes meios financei- cílio de Latrão? Por que a Igreja, atualmente, vive esse contras-
ros, escolas, partidos políticos que a protegem externamente, te? O absolutismo, a intolerância teológica, chocam-se às vezes
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 309
contra a consciência do homem. A Igreja é prisioneira da teolo- deria ser utilizada para demonstrar cientificamente a transcen-
gia e de sua filosofia particular em que se formou a teologia ca- dência da vida e a imortalidade do espírito humano, para con-
tólica. Então, o caso Ubaldi adquire um valor que o transcende forto e apoio do ensino religioso?
e se torna um dos tantos casos que condenam a atitude da Igre- É supérfluo recordar aqui os contraditórios julgamentos dos
ja, em confronto com todo o pensamento moderno. homens que encarnam a Igreja na distância dos tempos, como
A filosofia da Igreja, como toda a escolástica, está permea- por exemplo, a respeito do conceito heliocêntrico do universo,
da do pensamento aristotélico. Mas São Bernardo não concluía aceito por Copérnico e condenado por Galileu Galilei.
que a filosofia de Aristóteles era a oficina do diabo? Não decla- O Professor Ubaldi fez bem em ser coerente com sua cons-
rava São Paulo que não se apoiava em argumentos humanos, ciência, não retratando o que escreveu sob inspiração mística; e
mas na força do espírito? Não diz a Imitação de Cristo: ―que a Congregação do Santo ofício talvez tivesse feito melhor se
nos importam os gêneros e as espécies‖? Os grandes místicos não cometesse o excesso de zelo dogmático, pondo no ―Índex‖
disseram que ―Deus é mais íntimo a nós, do que nós mesmos‖, os dois livros que tanto conforto deram às consciências cristãs e
que ''Deus é a superessência de nossa alma‖. Indubitavelmente, despertaram a fé em outros que a haviam perdido !
o ―ipse dixit‖ da escolástica perdeu seu valor, porque, depois de
Aristóteles, o pensamento humano caminhou muito e continua O PONTO DE VISTA TEOLÓGICO
a caminhar. Como pode considerar-se errado um pensamento só
pelo fato de que conclui partindo de premissas e com método Para que a documentação de tudo o que ocorreu até hoje se-
diversos do de Aristóteles e da escolástica? Não vemos nisto ja completa, e para que o leitor reverente à Igreja Católica saiba
nada de herético, mas apenas um pensamento humano que, im- que erros, do ponto de vista teológico, ele pode achar no texto
pelido pelo amor à verdade e ao bem, caminha pela estrada da de A Grande Síntese, aqui trazemos a resposta sobre os mes-
evolução. Razão e consciência levam a concluir que podemos mos. Ela nos chegou às mãos em 14 de agosto de 1940, alguns
ser bons cristãos, mesmo não aceitando determinado pensamen- meses depois da publicação dos artigos precedentes (confronte
to filosófico, embora seja este abraçado oficialmente pela Igre- as datas). Esta resposta compõe-se de duas partes:
ja. Trata-se, com efeito, de um pensamento que, por sua nature- I – Uma carta da autoridade religiosa, da qual extraímos os
za e origem, pode errar ou ser insuficiente. Não escapa, porém, trechos mais importantes;
à verificação de que – como acima dissemos – a teologia católi- II – O anexo pró-memória, da mesma autoridade (o Bispo
ca nasceu sobre aquele pensamento, e dela saíram os dogmas e de Gúbio), que reproduzimos na íntegra, traduzido do latim as
as instituições da Igreja. Portanto, uma vez derrubado esse pen- partes referentes aos dogmas católicos.
samento, a Igreja se acharia numa posição insustentável e deve- Quanto aos erros contidos no volume Ascese Mística, tam-
ria renovar-se ou então morrer. bém condenado, nada podemos dizer, pois até agora nada nos
Mas, se os tempos estivessem realmente maduros para uma chegou sobre o mesmo.
renovação, e de fato fosse necessário o emparelhamento da
Igreja com o progresso dos tempos que correm, não seria da- Trechos da Carta do Bispo de Gúbio
noso para a própria Igreja insistir em posições indefensáveis?
A resposta será dada pelo tempo. Fazemos votos para que a Diante das afirmações contidas em A Grande Síntese, estão
Igreja tenha uma justificação que a nós escapa. Mas, se tal não assinaladas aquelas contrárias às ensinadas pela Igreja Católica.
acontecer, poderá ser uma desgraça para o cristianismo e para A doutrina católica foi extraída dos Símbolos, das Defini-
a humanidade. ções, Declarações e outros documentos autênticos do Magisté-
(a) Paolo Soster rio Eclesiástico, colecionados sistematicamente para facilitar
sua procura num Manual (Henchiridion), de Denzinger (...).
NOTA DA REDAÇAO – O artigo do Dr. Soster é interes- No ―pró-memória‖, não foram transcritas todas as proposi-
sante, pois nos faz conhecer a personalidade do Professor ções contrárias ao dogma católico. Há muitas outras, mas creio
Ubaldi em seu aspecto místico, em contraste com a Igreja cató- inútil catalogá-las, porque, em vosso livro, é a substância que
lica. A ela, porém, não deve ser atribuída a responsabilidade se opõe à doutrina católica, e aí existe a mais estreita coerência
dos julgamentos que os homens que a representam pronuncia- entre princípios e consequências: derrubados aqueles, desmo-
ram em certos períodos da história; os julgamentos desses ho- rona todo o resto.
mens foram às vezes enganosos e injustos, até cruéis além de Dois são os princípios dos quais se originam vossas teori-
injustos, porque o sentimento da justiça estava obscurecido ne- as: o primeiro é o do panteísmo evolucionista, por vós aber-
les pela consciência dogmática. A esse respeito, é necessário tamente professado, e não menos abertamente condenado pela
lembrar que a maioria dos místicos que a Igreja santificou tive- Igreja, como podereis ver no ―pró-memória‖; o segundo é o
ram suas manifestações intelectuais ditadas pela inspiração, da imanência filosófica e teológica, condenada na Encíclica
além daquelas duas linhas com que Krishnamurti representou ―Pascendi‖, contra o modernismo, definido como a ―síntese de
as religiões dogmáticas, que assinalam a existência das almas todas as heresias‖.
comuns no caminho da vida... Se, de fato, quereis ter o trabalho de ler aquela Encíclica,
Também Santa Teresa de Ávila, que definiu o paraíso e o aí achareis condenado todo o vosso livro, porque ele repete,
inferno como modos de ser das almas, e não lugares, podia ter quase que literalmente, a filosofia e a teologia modernista. Por
sido, da mesma forma, condenada pela Igreja, e não o foi... que arriscar-vos assim, sem uma adequada preparação, no
Quem leu os dois livros de Ubaldi condenados pela Igreja, problema religioso?
compreendeu facilmente a razão da condenação: o conceito da Não é o caso de insistir sobre a pretendida revelação divina,
imanência divina, que inspira os dois livros, é o que a Igreja re- a vós pessoalmente feita, de certas verdades. Tratar-se-ia de
jeita, porque contraria a concepção dogmática da Divindade. uma revelação interna, em oposição à revelação externa, de que
Diante dessa condenação, pronunciada num momento de a Igreja é a depositária. E então recaís no erro dos modernistas,
trágica luta da espiritualidade contra o materialismo ateu, a con- condenado na Encíclica ―Pascendi‖; e naquele pseudo-
denação dos dois livros de Ubaldi, que são a apoteose do espíri- misticismo já condenado no século XVII em Miguel Molinos,
to, poderá parecer, mais do que inoportuna e injusta, paradoxal! que sustentava justamente haver nele uma luz superior a todo
Mas não é igualmente paradoxal a atitude dos homens re- conhecimento humano e teológico, que lhe fazia conhecer a
presentantes da Igreja diante da ciência metapsíquica, que po- verdade com certeza interna; luz que, certamente, chegava a ele
310 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
do alto, porque ele a recebia com a certeza de que tal luz provi- também o universo físico, pois que este é apenas um átimo de
nha de Deus, e não lhe deixava nenhuma dúvida em contrário seu eterno tornar-se, em que Ele se manifesta (...). Deus é o
(...) (cfr. Denzinger, 1273). Como vedes, certas atitudes mentais princípio e a sua manifestação (...). Deus é conceito e matéria,
não são nada novas, e a Igreja, fiel à sua divina missão, sempre princípio e forma, causa e efeito, cerrados, incindíveis‖.
interveio imediatamente para chamar os que erram ao sulco lu- É negada a possibilidade da criação a partir do nada: ―(...) é
minoso e seguro da revelação e tradição cristã. Pensai que caos absurda, como sempre, uma criação a partir do novo‖ (Trechos
haveria nos espíritos, se a qualquer indivíduo fosse lícito im- de A Grande Síntese).
pingir-se como termo de uma revelação ou inspiração divina! DOUTRINA CATÓLICA
É de fé que ―Deus praedicandus est re et essentia a mundo
Pró-Memória do Bispo de Gúbio Distinctus‖ (Deus é distinto do mundo por seus atributos e por
sua essência), de acordo com a Constituição Dogmática do
Das principais afirmações contrárias ao dogma católico – e Concílio Vaticano, supra citada. E o Concílio de Latrão, 4 o
portanto à revelação – contidas na obra A GRANDE SÍNTESE (1215): ―O qual (Deus), por Sua onipotente virtude, concomi-
de Pietro Ubaldi. tantemente, desde o princípio do tempo, criou do nada a criatu-
Premissas – A linguagem nova torna a obra de interpretação ra, espiritual e corporal‖ (Denzinger, 428).
não muito fácil. Muitas afirmações, oportunamente esclareci- A Bula ―Cantate Domino‖, de Eugênio IV: ―(...) Firmissi-
das, poderiam também conciliar-se com os princípios da fé ca- mamente crê (...) que Deus (...), Criador de todas as coisas, o
tólica. Destas não nos ocupamos, mesmo reconhecendo que, qual criou todas as criaturas, porque do nada foram feitas‖
tomadas no contexto da obra, é bem difícil interpretá-las no (Denzinger, 706).
sentido da Igreja. Limitar-nos-emos, por isso, a notar apenas o CONHECIMENTO DE DEUS
que abertamente é contrário à doutrina católica. Deus não pode ser conhecido com a razão, mas apenas com
DEUS a intuição: ―(...) este é o único meio que leva ao conhecimento
O autor professa abertamente um panteísmo evolucionista. do Absoluto (...), deixareis de lado (...) aquela vossa psique ex-
―(...) conceito de um Deus que ‗é‖ a criação (...). Este é o terior e de superfície, que é a razão, porque só com esta psique
conceito mais completo de Deus (...), a grande Alma do univer- interior, que está no âmago de vós mesmos, podereis compre-
so, centro de irradiação e de atração; Aquele que é tudo, o prin- ender a realidade mais verdadeira, que está no âmago das coisas
cípio e as suas manifestações‖. (...). Falei-vos da vossa razão (...), afirmando (...) sua insufici-
Deus imanente na natureza: ―(...) a mão de Deus (...), é um ência, como meio para a conquista de conhecimento do Absolu-
conceito que é a alma das coisas; (...) adoro-Te, recôndito Eu to‖ (Trechos de A Grande Síntese).
do universo, alma do todo (...)‖. DOUTRINA CATÓLICA
Todas as coisas emanam de Deus: ―(...) Quem serás tu, en- Ela é de fé contrária, Concílio Vaticano, Sessão III, Capítu-
tão, se já me arrasa a incomensurável complexidade destas lo II, Cânone 1o: ―Se alguém disser que Deus único e verdadei-
Tuas emanações? (...) Eu Te adoro, supremo princípio do todo, ro, nosso Criador e Senhor, não puder ser conhecido pelas coi-
em Tua veste de matéria, em Tua manifestação de energia, no sas que foram feitas, com certeza, pela luz da natural razão hu-
inexaurível renovar-se de formas sempre novas e sempre belas, mana, seja condenado‖ (Denzinger, 1806).
eu Te adoro. Conceito, sempre novo e belo, Lei animadora do CONHECIMENTO DOS MISTÉRIOS
universo(...)‖. (Trechos de A Grande Síntese). Em muitas outras É negada a existência dos mistérios propriamente ditos:
páginas o autor desenvolve os mesmos conceitos. ―(...) o que antes, por outras formas intelectivas, devia ser for-
DOUTRINA CATÓLICA çosamente dogma e mistério de fé, será questão de puro racio-
Ela é diametralmente oposta. As afirmações acima são heré- cínio, será demonstrável‖ (Trecho de A Grande Síntese).
ticas porque contrárias aos dogmas da fé católica definida: DOUTRINA CATÓLICA
(Concílio Vaticano, Sessão III, Cânone 3): Ela é de fé contrária, Concilio Vaticano, Sessão III, Capítu-
―Se alguém disser que é uma e a mesma substância ou es- lo IV, Cânone 1o:
sência de Deus e de todas as coisas, seja condenado‖ (Denzin- ―Se alguém disser que, na revelação divina, nenhum verda-
ger, 1803). deiro e próprio mistério é contido, mas que todos os dogmas da
Cânone 4: ―Se alguém disser que as coisas finitas, quer fé podem ser compreendidos e demonstrados, pelos princípios
corporais, quer espirituais, ou mesmo apenas as espirituais, naturais, por uma razão devidamente culta, seja condenado‖
emanaram da substância divina, ou a essência divina, pela (Denzinger, 1816).
manifestação e emanação de si, torna-se todas as coisas, ou E na Constituição Dogmática do mesmo Concílio: ―Isto
finalmente, que Deus é o Ser universal ou indefinido que, de- também é o perpétuo consentimento da Igreja Católica, que
terminando-se, constitui a universalidade das coisas, distinta manteve e mantém: é duplo o plano do conhecimento, não só
nos gêneros, nas espécies e nos indivíduos, seja condenado‖ distinto pelo princípio, mas também pelo objeto; pelo princípio,
(Denzinger, 1804). porque conhecemos de um lado pela razão natural, de outro pe-
Além disso, na Constituição Dogmática, do mesmo Concí- la fé divina; pelo objeto, porém, porque, além daquelas coisas a
lio do Vaticano, foi dito: que pode chegar a razão natural, devem ser propostos a nós pa-
―A Santa Igreja Católica Apostólica Romana crê e confessa ra crer nos mistérios escondidos em Deus, os quais, se não fo-
haver um só Deus vivo e verdadeiro (...) que, como é uma subs- rem divinamente revelados, não podem ser conhecidos‖ (Den-
tância espiritual única, singular, simples absolutamente e inco- zinger, 1795).
mutável, deve ser confessado distinto, na coisa e na essência, O SOBRENATURAL – OS MILAGRES
do mundo, em si e por si felicíssimo, e inefavelmente elevado Da premissa de que ―Deus é a Criação‖, deduz-se logica-
acima de todas as coisas que podem conceber-se e que existem mente a negação do sobrenatural e do milagre, tomado este no
além dele‖ (Denzinger, 1782). sentido católico de fato maravilhoso que ocorre fora da ordem
A CRIAÇÃO estabelecida e comumente observada nas coisas. Com efeito:
A criação, como obra de Deus ―ad extra‖; é absurda: ―(...) a natureza é expressão divina, e não pode haver um ―quid‖
―A vossa concepção de um Deus que cria fora de si e além acima dela (...). Sobrenatural e milagre são conceitos absurdos
de si (...) é absurda concepção antropomórfica; Deus não pode diante do absoluto, aceitáveis apenas dentro do vosso relativo,
ser algo de mais e de externo, de distinto da criação (...). Deus é aptos a exprimir vossa maravilha diante do novo, para nós, e
Pietro Ubaldi COMENTÁRIOS 311
nada mais (...). Esta (a Divindade) é superior a todo prodígio e TODAS AS RELIGIÕES SÃO BOAS?
o exclui como exceção, como retorno ao já feito, retoque ou ar- Assim parece: Religião sintética do futuro, feita com a for-
rependimento e sobretudo como vontade de desordem no equi- ça do espírito e com a bondade. ―(...) meu sistema aceita fra-
líbrio da Lei (...)‖ (Trechos de A Grande Síntese). ternalmente qualquer fé, desde que seja fé, e não condena ne-
DOUTRINA CATÓLICA nhuma, desde que seja sincera (...). Todas as religiões se apro-
O conceito do sobrenatural é fundamental para a teologia ximaram da verdade; a de Cristo mais do que todas; mas a ver-
católica e é base de fé: dade não poderia ter sido plenamente atingida nem pela de
Pio V condenou, em 1567, a proposição de Miguel Bay, que Cristo... As religiões – imperdoável erro – (...) todas em luta
assim dizia: ―A sublimação e exaltação da natureza humana em entre si, exclusivistas na posse da Verdade (...). Eu não venho
consórcio com a natureza divina, deve ser chamada natural, e para combater nenhuma religião, mas para coordená-las todas,
não sobrenatural‖ (Denzinger, 1021). como tantas aproximações diferentes da verdade, que é Una
Pio IX, na carta ―Gravissimus inter‖, de 11 de dezembro de (...). Coloco, porém, no mais alto posto, na Terra, a revelação e
1862: ―(...) como os fins são certíssimos e conhecidos por todos, a religião de Cristo, como a mais completa e mais perfeita en-
além dos quais a razão, por sua capacidade, nunca passou nem tre todas (...). Mais perfeita parece a religião proposta, e que se
pode passar. E a dogmas desta espécie se referem todas aquelas poderia chamar a religião do Monismo. (...) como do polite-
coisas, máxima e claramente, que dizem respeito à elevação so- ísmo passastes ao monoteísmo, isto é, à fé num só Deus (mas
brenatural do homem, e à relação sobrenatural com ele, e as coi- sempre antropomórfico, enquanto faz sua criação fora de si),
sas reveladas são conhecidas para esse objetivo. E, sem dúvida, agora passais ao monismo, isto é, ao conceito de um Deus que
estando dogmas acima da natureza, naturalmente não podem ser e a criação‖ (Trechos de A Grande Síntese).
atingidos pela razão nem pelos princípios naturais. Nunca, com DOUTRINA CATÓLICA
efeito, pode tornar-se idônea a razão, com seus princípios natu- A doutrina católica ensina que é uma só a verdadeira reli-
rais, a tratar desses dogmas com sabedoria. E se eles ousarem gião, a cristã-católica, revelada como tal por Cristo-Deus, que
asseverar temerariamente estas coisas, saibam que eles não estão contém toda e somente a verdade, guardada e ensinada pela
se afastando da opinião de alguns doutores, mas da doutrina co- Igreja, a quem Cristo a confiou, como a mestra infalível.
mum e jamais mudada da Igreja‖ (Denzinger, 1671). Portanto o erro condenado no Sílabo: ― É livre a todo ho-
O Concílio Vaticano, Sessão III, Cânone 4: ―Se alguém dis- mem abraçar e professar aquela religião, que, pela luz da razão,
ser nenhum milagre poder ser feito e, portanto, que todas as alguém for levado a crer verdadeira‖ (Denzinger, 1715).
narrativas acerca dos mesmos, ainda que contidas nas Sagradas Se nem a religião de Cristo ensinou toda e somente a verda-
Escrituras, devem ser relegadas entre as fábulas e os mitos; ou de, mas é apenas uma aproximação mais perfeita desta, então,
que nunca se poderão conhecer com certeza os milagres nem por consequência lógica, dever-se-á negar a divindade de Cris-
provar por eles a origem divina da religião cristã, seja condena- to, o magistério infalível da Igreja etc., ou seja, os dogmas fun-
do‖ (Denzinger 1813).
damentais do catolicismo (...), portanto outros tantos erros con-
A SS. TRINDADE
tra a verdade de fé definida (Denzinger, 40, 86, 1793 etc.).
Eis como se pretende explicá-la: ―Ômega = Deus. Alfa (es-
Se por Monismo se entende ―o conceito de um Deus que é a
pírito), Beta (energia), Gama (matéria): três modos de ser de
criação‖ caímos no panteísmo, como se disse acima, porque se
Ômega‖.
Deus ―é a criação‖, então todas as coisas são Deus (...), são
―Assim a equação da substância sintetiza o conceito da
emanações de Deus (...) etc. (Veja condenação do Concílio Va-
Trindade, isto é, da Divindade una e trina, que já vos foi reve-
ticano, Sessão III, Cânones 4 e 5, em Denzinger, 1804).
lada sob o véu do mistério e que achais nas religiões. A Lei de
ALMA HUMANA
que falamos e o pensamento da Divindade, seu modo de ser
como Espírito. O pensamento que é concomitantemente von- A alma é o resultado da evolução: ―Vimos como, na evolu-
tade de ação, energia que obra, tornar-se que cria, é seu se- ção, o ser, ascendendo da matéria ao espírito (...). A evolução
gundo modo de ser (...). Uma forma de matéria em ação é seu ascende da matéria à energia, à vida, ao espírito (...)‖. O concei-
terceiro modo de ser; é o criado que existe, o universo físico to é ratificado, pode dizer-se, a cada página e é consequência
que vedes. Três modos de ser distintos e, no entanto, identi- lógica do sistema.
camente os mesmos‖. A alma não é criada: ―é absurda, como sempre, uma criação
Volta-se ao mesmo conceito (Trindade da substância) e é a partir do novo, mesmo na gênese da personalidade humana‖.
reafirmado o mesmo pensamento, onde se acrescenta: ―(...) eu A alma eterna: ―(...) a existência de um princípio psíquico é
exponho à vossa maturidade intelectual, com evidente demons- evidente, ele deve ser imortal; e imortalidade só pode ser eter-
tração e com exatidão científica, o que às mentes primitivas não nidade (...), se tudo o que existe é eterno, vós, se existirdes,
podia ser dito senão sob forma de imagens e sob o véu do mis- sois eternos (...). Vossa consciência latente é vossa verdadeira
tério (...). Com a ciência demonstro e confirmo o mistério‖ alma eterna, aquela que preexiste ao nascimento e sobrevive à
(Trechos de A Grande Síntese). morte corpórea‖.
DOUTRINA CATÓLICA Pré-existência e reencarnação: ―(...) alma eterna, que pre-
Eis o dogma católico: Um só Deus em três pessoas iguais e existe ao nascimento (...). Sobrevivência do espírito é sinô-
distintas (pessoas, porém, não modos de ser), espirituais (não nimo de reencarnação‖. Conceitos semelhantes, consequên-
matéria e energia), coeternas (não evoluindo uma da outra). cias do sistema, acham-se ainda a cada passo da obra A
Inumeráveis são os documentos da Igreja que ilustram a sua Grande Síntese.
doutrina a esse respeito. Basta citar, em lugar de todos, o céle- DOUTRINA CATÓLICA
bre Symbolum Athanasianum (Denzinger, 39) e se verá como É de fé que a alma humana não é produto da evolução.
a explicação da Trindade dada acima é simplesmente herética, Condenada a proposição 20, de Rosmini: ―Não repugna que a
porque contrária a uma verdade revelada, e como tal proposta alma humana se multiplique pela geração, de tal forma que se
pela Igreja à crença. compreenda que ela procede do imperfeito, isto é, do grau sen-
Além disso, já dissemos que é de fé que há mistérios que não sível, ao grau intelectivo‖ (Denzinger 1910). Com tanto mais
podem conhecer-se, e muito menos demonstrar apenas com a razão, a condenação vale para a tese que pretende a evolução da
razão natural. É absurda, pois, a pretensão de querer expor, com matéria ao espírito.
evidente demonstração, o primeiro e maior mistério da religião A alma é criada por Deus a partir do nada: ―Cremos que a
católica, que é justamente o mistério da Santíssima Trindade. alma do homem não é divina substância, nem parte de Deus,
312 COMENTÁRIOS Pietro Ubaldi
mas dizemos que a criatura é criada pela vontade divina‖ (Den- ―Mas, por causa de diversos erros, introduzidos pela ignorân-
zinger, 20). ―Creio que a alma não é parte de Deus, mas criada cia de alguns e pela malícia de outros, diz e confessa: (...) que
do nada‖ (Denzinger, 348). A alma não é eterna, justamente as almas daqueles que, depois de terem recebido o Santo Ba-
porque é criada. tismo não incorreram em nenhuma mancha de pecado e tam-
A alma não preexiste: ―Se alguém diz ou pensa que as al- bém aquelas que, depois de terem contraído a mancha do pe-
mas dos homens preexistem, como tendo sido antes mentes e cado, ou permanecendo em seus corpos, ou dos mesmos des-
santas virtudes, e terem gozado da sociedade da divina contem- vestidas, como acima ficou dito (sobre o Purgatório) e estão
plação, e terem-se tornado piores e, por isso, se terem resfriado limpas, são recebidas imediatamente no Céu. As almas daque-
do amor de Deus e daí se chamarem em grego ―psyche‖, ou se- les, porém, que morrem em pecado, ou só com o original, des-
ja almas, a terem sido lançadas nos corpos por causa do sofri- cem imediatamente ao inferno, mas são punidas, porém, com
mento, seja condenado‖ (Denzinger, 203). ―Se alguém diz que penas diferentes‖ (Denzinger, 464).
as almas humanas primeiro pecaram na habitação celeste e por
isso foram lançadas nos corpos humanos na Terra, como disse Pietro Ubaldi
Prisciliano, seja condenado‖ (Denzinger, 236).
A reencarnação é insustentável e inconciliável com a dou-
trina católica: ―Está decretado que o homem morre uma só FIM
vez, e depois disso vem o julgamento‖. Concilio de Florença:
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra ―evolução‖. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício ―Iguaçu‖, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício ―Nova Era‖ (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – ―Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra‖): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

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