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Psicologia & Sociedade; 16 (2): 47-58; maio/ago.

2004

QUEM VOCÊS PENSAM QUE (ELAS) SÃO? –


REPRESENTAÇÕES SOBRE AS PESSOAS
EM SITUAÇÃO DE RUA*.
Ricardo Mendes Mattos
Ricardo Franklin Ferreira
Universidade São Marcos

RESUMO: No ponto de encontro entre o conceito de identidade como metamorfose humana e a catego-
ria ideologia como forma de reproduzir relações sociais de dominação, o presente artigo discute a tipificação
das pessoas em situação de rua como vagabundas, sujas, loucas, perigosas e coitadas. Tal conhecimento
socialmente compartilhado acaba por legitimar a violência física contra estas pessoas, bem como servir
de referência para a constituição de suas identidades pessoais. Face a este universo simbólico perverso
que as acomete, são analisados a loucura (como fuga da realidade), o suicídio (como consumação
material da morte simbólica em curso) e a resistência, a partir da transformação social (opondo-se a esta
ideologia através da luta pelos seus direitos), como formas das pessoas em situação de rua elaborarem
estas representações oriundas de suas condições sociais.

PALAVRAS-CHAVE: psicologia social; situação de rua; identidade; ideologia; representação social.

WHO DO YOU THINK THEY ARE? – REPRESENTATIONS ABOUT HOMELESS PEOPLE.

ABSTRACT: In the rendezvous of the concept of identity as cause of the human metamorphose and the
category of ideology as a way to reproduce social domination, the present article discusses the labeling
of the homeless people as vagabonds, dirty people, crazy persons, dangerous or poor. This feeling shared
for many ends up to legitimate the physical violence against this people, as well as a bad reference in the
constitution of their personal identities. Besides this perverse symbolic universe which they’re submitted,
are analyzed the madness- as escape from reality, the suicide – as the material consummation of the
symbolic death, and the resistance against the social transformation- as an opponent to this labeling
through the fight for their rights.

KEY-WORDS: social psychology; homelessness; identity; ideology; social representations.

INTRODUÇÃO olham-nas com comoção ou piedade. Enfim, é co-


mum negligenciarmos involuntariamente o conta-
Quantos dentre nós, em meio às ativida- to com elas. Habituados com suas presenças, pare-
des corriqueiras, nos deparamos com a figura de ce que estamos dessensibilizados em relação à sua
um morador de rua? Considerando que eles habi- condição (sub) humana. Em atitude mais violen-
tam com freqüência vários logradouros públicos, é ta, alguns chegam a xingá-las e até mesmo agredi-
pertinente ponderar que todos nós já interagimos las ou queimá-las, como em alguns lamentáveis
com essas pessoas. casos noticiados pela imprensa.
Contudo, se refletirmos sobre a qualidade Observa-se, assim, a existência de repre-
destas interações, observaremos que comumente sentações sociais pejorativas, em relação à popula-
nós as olhamos amedrontados, de soslaio, com uma ção em situação de rua, que se materializam nas
expressão de constrangimento. Alguns as vêem relações sociais. Vagabundo, preguiçoso, bêbado,
como perigosas, apressam o passo. Outros logo as sujo, perigoso, coitado, mendigo... São designa-
consideram vagabundas e que ali estão por não ções comuns dirigidas às pessoas em situação de
quererem trabalhar, olhando-as com hostilidade. rua.
Muitos atravessam a rua com receio de serem abor- Estes conteúdos interferem na constituição
dados por pedido de esmola, ou mesmo por pré- da identidade destas pessoas: é conhecimento so-
conceberem que são pessoas sujas e mal cheirosas. cialmente compartilhado e utilizado como suporte
Há também aqueles que delas sentem pena e para a construção de suas identidades pessoais.
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Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. “Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua”

Trata-se de conteúdos simbólicos de cunho ideoló- mum ou ainda saber ingênuo, natu-
gico, na medida em que favorecem a cristalização ral, esta forma de conhecimento é di-
de relações de exploração e dominação ferenciada, entre outras, do conheci-
(GUARESCHI, 1996, 2002). mento científico (p. 22).
Guareschi (1996) faz alusão a algumas “es- As representações sociais organizam as con-
tratégias de operação da ideologia”, dentre elas a dutas e as comunicações sociais e intervêm na di-
“rotulação ou estigmatização” (p. 90). Uma das fusão e na assimilação dos conhecimentos, além
formas possíveis de se entender este mecanismo é de participar na definição das identidades pesso-
a partir do conceito de “esquemas tipificadores” ais e sociais.
(BERGER e LUCKMANN, 1985). Estes constituem Para Moscovici (1978), são referências que
um conhecimento socialmente compartilhado do “circulam, cruzam-se e se cristalizam incessante-
qual lançamos mão para apreender o outro nas mente através de uma fala, um gesto, um encon-
interações sociais. Segundo os autores, estes es- tro, em nosso universo cotidiano” (p. 41). Além
quemas pressupõem uma “anonimidade inicial”, disso, para Moscovici (2003), elas
na medida em que se trata de um pré-conceito para convencionalizam os objetos e pessoas e, além de
apreender o outro, que precede e “modela” a darem a eles uma forma definitiva, transformam-
interação com ele. Ao serem transmitidos para as nos em modelos de determinado tipo que passam
gerações seguintes, estes conteúdos, como qual- a ser partilhados pelas pessoas na construção de
quer institucionalização, acabam por ser revesti- suas ‘realidades’.
dos de um caráter a-histórico, surgindo como cons- Neste trabalho, as representações sociais
truções simbólicas “dadas, inalteráveis e eviden- como “modelos” compartilhados pelas pessoas em
tes” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 85). O ápice suas relações cotidianas, conforme a concepção de
da “tipificação” é a completa apreensão da pessoa Moscovici (2003), assemelha-se ao que entende-
como um “tipo”, somente pelos aspectos rotulados, mos como “esquemas tipificadores”, propostos por
negando sua humanidade e a transformação a ela Berger e Luckmann (1985).
inerente. A identidade como metamorfose Assim, a proposição aqui discutida é cla-
(CIAMPA, 1990), entendida como uma construção ra: as representações sociais sobre as pessoas em
ininterrupta a partir das relações sociais em um situação de rua reforçam a construção de identi-
contexto histórico determinado, surge assim sob a dades articuladas com valores negativamente afir-
aparência de uma “identidade reificada” (BERGER mados. Neste caso específico, as representações
e LUCKMANN, 1985, p. 126), manipulada pelas sociais podem ser consideradas ideológicas, pois
tipificações externas à pessoa e que, por sua vez, re-produzem e cristalizam relações concretas de
atrofiam sua possibilidade de autonomia. dominação (OLIVEIRA e WERBA, 2002). Em
A relação da ideologia com a identidade contrapartida, consideramos que as mesmas repre-
(CIAMPA, 1977) ou das representações sociais com sentações contêm em si o germe de sua superação,
a subjetividade (FURTADO e GONZALEZ REY, podendo servir como referências para o ingresso
2002) não são investigações simples, nem das pessoas em situação de rua no campo da rei-
tampouco recentes. Sabe-se que a construção da vindicação pelos seus direitos, constituindo, por
identidade está vinculada à totalidade das rela- conseguinte, identidades mais críticas e autôno-
ções sociais, recortada pelo conhecimento social- mas.
mente compartilhado e mediado por outrem A partir desse contexto, o objetivo deste
(CIAMPA, 1990; BERGER e LUCKMANN, 1985). artigo é traçar um breve esboço sobre como as re-
Assim, qualquer estudo sobre a identidade de uma presentações sociais acerca de pessoas em situa-
pessoa deve ser precedido do conhecimento das ção de rua repercutem na construção de suas iden-
representações sociais sobre a categoria na qual tidades.
está inserida. Para tanto, foram referenciados alguns de-
Compreendemos ‘representação social’, nes- poimentos de ex-moradores de rua que tiveram suas
te trabalho, como a categoria definida por Jodelet histórias de vida analisadas por Mattos (2003), em
(2001), ou seja, sua pesquisa sobre a identidade das pessoas em
uma forma de conhecimento, social- situação de rua. Utilizamos também nossa experi-
mente elaborada e partilhada com um ência e participação em alguns movimentos soci-
objetivo prático, e que contribui para ais articulados pela população em situação de rua,
a construção de uma realidade co- além de duas publicações sobre este contingente:
mum a um conjunto social. Igualmen- o Jornal “O Trecheiro: notícias do povo da rua”
te designada como saber de senso co- (em suas edições nº 98, 105 e 108) e a “Revista
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Boca de Rua” (especificamente os nºs 0, 1, 2 e 3). informais, são, sob a ótica do trabalho,
A publicação mensal do jornal “O freqüentemente consideradas como improdutivas,
Trecheiro: notícias do povo da rua” constitui um inúteis, preguiçosas e vagabundas.
excelente meio de comunicação realizado com e Segundo Di Flora (1987), a população em
para a população em situação de rua da cidade de situação de rua é assim estigmatizada, pois
São Paulo. “O Trecheiro” é editado pela Rederua escancara as contradições básicas do modo capi-
(www.rederua.org.br) com o intuito de dar “vez e talista de produção: a falácia de que todos possu-
voz” ao povo da rua, sendo um instrumento de em iguais oportunidades e a evidência de que,
comunicação dos acontecimentos vivenciados nas embora a produção seja social, a apropriação dos
ruas paulistanas. Possui uma linha editorial ganhos é sempre individual, sendo as pessoas em
calcada na denúncia e discussão de estratégias para situação de rua testemunhas vivas de que a explo-
a assistência à população em situação de rua. ração e a desigualdade estão no cerne deste modo
Destacamos, em nossa análise, os relatos de de produção.
diversas pessoas em situação de rua que compõem Neste sentido, estas contradições são sola-
o espaço denominado “Vida no trecho”. padas a partir de um mecanismo denominado
A “Revista Boca de Rua” possui toda sua “culpabilização” (GUARESCHI, 1999). Este meca-
linha editorial, matérias e reportagens realizadas nismo é considerado como uma legitimação ideo-
pelas próprias pessoas em situação de rua de Por- lógica que suporta a criação e reprodução das re-
to Alegre. Este projeto segue a mesma linha de lações de exploração e dominação no capitalismo.
iniciativas similares organizadas pela INSP, uma Frente à (pseudo) igualdade e à competitividade
Rede Internacional de Jornais de Rua, abarcan- inerente ao ideal liberal, qualquer problemática que
do, além de instrumento de conhecimento e di- envolva a inserção do indivíduo no sistema produ-
vulgação dos acontecimentos da rua, a venda da tivo é alvo de um reducionismo que o
revista como uma fonte de renda para este con- descontextualiza da sociedade e transfere-lhe a
tingente. Concentramos nossa análise em algu- culpa e responsabilidade por sua condição. Para
mas passagens do jornal que deflagram a postura Di Flora (1987), esta “culpabilização” advém de
crítica de seus realizadores sobre a vida nas ruas. um radical “psicologismo”, quando as causas são
Assim, a partir dos depoimentos de pesso- consideradas como individuais. Em função disso,
as em situação de rua, a presente exposição discu- a pessoa sem emprego formal é rotulada como
te algumas tipificações comumente infligidas às “anormal ou desviante”, ou seja, a culpa da au-
pessoas em situação de rua e aponta alguns de sência de trabalho recai sobre a própria vítima.
seus efeitos na constituição de suas identidades. Assim, ocorre a “tipificação” do indivíduo
em situação de rua como vagabundo, incapaz e
PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA “sujeito que não quer trabalhar” (DOMINGUES JR.,
COMO VAGABUNDA 1998, p. 14), pela sociedade no geral e até por ou-
tras pessoas em situação de rua. Aos cidadãos que
O trabalho (entendido em seu sentido pro- reproduzem estes estereótipos, o depoimento de José
dutivo de venda de força de trabalho e extração pode ajudá-los a repensar nos valores que possu-
da mais-valia) constitui uma das categorias res- em acerca da população em situação de rua: “O
ponsáveis pela coesão da sociedade atual pessoal que está aqui não é por falta de capacida-
(ENRIQUEZ, 1999; TOSTA, 2000), além de confe- de. Não é nossa culpa. Eles acham que não temos
rir ao indivíduo dignidade pessoal (VIEIRA, BE- aparência, mas não temos como nos cuidar”
ZERRA e ROSA, 1992). Dessa forma, o trabalho (TRECHEIRO, Ano X, nº 98, p. 03).
surge como fator primordial para a pessoa, por dois
aspectos: provém a subsistência física por meio dos PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA COMO LOUCA
rendimentos auferidos; e sustenta a subsistência
simbólica, dada a importância do trabalho (ou Como se não bastasse a corriqueira deno-
identidade profissional) na constituição da identi- minação das pessoas em situação de rua como va-
dade pessoal (JACQUES, s.d.; BAPTISTA, 2002). gabundas, há também o “discurso psiquiátrico”,
Releva-se ainda o fato de que o emprego formal e o segundo denominação de Stoffels (1977), que as
registro em carteira servem como legitimadores da identificas como “doentes mentais”, “loucas” e
identidade de trabalhador (embora quase a meta- “desviantes sociais”. Este conteúdo, difundido no
de dos trabalhadores atue no mercado informal). senso comum, assume que a mendicância pode ser
Desprovidas desta referência, as pessoas em situa- considerada, de modo geral, “como gênese e pro-
ção de rua, apesar de desenvolverem atividades duto de distúrbios de personalidade, doenças men-
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Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. “Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua”

tais ou psicopatia...” (p. 262). do à sujeira que deve ser jogada para “debaixo do
Permeado pelo critério psiquiátrico de pa- tapete”. Entretanto, o que nos deixa perplexos, e
tologia como sinônimo de anormalidade, em deve ser ressaltado, é que a grande maioria dos
contraposição aos indivíduos considerados “nor- indivíduos que habitam as ruas não compartilha
mais”, muitas vezes as pessoas em situação de rua destes atributos.
são vistas como “loucas” ou “casos de internação”. Nesse sentido, Sposati (1995) ressalta a
A caracterização das pessoas em situação de rua constante demanda dos cidadãos em solicitar a
como anormais, carrega em si a comparação com “remoção” de moradores de rua que estão localiza-
uma “normalidade” vista como forma legítima de dos perto de suas residências. Assim, realiza-se um
vida na sociedade. Assim, o diferente passa a ser trabalho baseado no “modelo filantrópico higiêni-
objeto de estranhamento e repulsa. A dicotomia co” ou “concepção asséptica” na qual “a orienta-
“normal” versus “anormal” homogeneíza as dife- ção do trabalho é segregar, esconder, higienizar”
renças com o intuito de “manter todos na linha”, (p. 90). O lema é: “vamos recolher as pessoas, va-
re-produzir uma dada ordem social. Ora, se morar mos dar banho, vamos tirar a sujeira” (p. 89).
em uma residência fixa, trabalhar formalmente e
constituir família são padrões sociais que caracte- PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA
rizam os indivíduos “normais”, logo, sem residên- COMO PERIGOSA
cia fixa, sem família e trabalho formal, as pessoas
em situação de rua são alvos de investidas ideoló- Ao analisar os “discursos ideológicos” que
gicas que acentuam suas “anormalidades”. rotulam as pessoas em situação de rua, Stoffels
Assim é que o “discurso psiquiátrico” asso- (1977) aponta o “discurso jurídico” e “crimi-
cia a população de rua à doença mental caracteri- nológico” que as apreende como “perigosas” e “cri-
zando-a pelos “desajustamentos sociais”, minosas”, sucessivamente (p. 38).
“psicopatias” e “distúrbios de personalidade” Nesse sentido, vejamos o depoimento de
(STOFFELS, 1977, p. 262). Jorge, um ex-morador de rua (MATTOS, 2003):
Elas tinham medo de chegar e se apro-
PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA COMO SUJA ximar. Eu acho que esse é o maior erro
do povo brasileiro... ter esse medo.
Magni (1994) oferece respaldo para a dis- Então eu acho que deveriam de ser
cussão sobre a tipificação das pessoas em situação cortadas essas barreira... Elas ficam
de rua associadas à sujeira e ao contágio de doen- com medo, como se a pessoa... você
ças – fato que subverte e afronta nossos hábitos de dar um choque se ela fosse falar com
higiene e preservação da saúde. Segundo a auto- ela. Porque ninguém mata, eu posso
ra, a clássica descrição dessas pessoas como “ar- conversar com determinada pessoa
quétipo do fedor” é um exemplo claro desta sem pegar uma doença e nem nada...
estigmatização: (p. 42).
O estereótipo do nômade urbano é Relata o medo das pessoas que passavam
clássico: roupa esfarrapada, pele na praça de conhecer e conversar com as pessoas
encardida com dermatoses, às vezes em situação de rua. Este medo talvez esteja relaci-
abrindo em feridas, corpo marcado por onado ao estigma do morador de rua como um
cicatrizes; unhas das mãos e dos pés criminoso em potencial, que pode assaltar, pedir
enegrecidas, compridas e, por vezes, esmola ou violentar quem quer que atravesse o seu
deformadas; dentes em parte caídos, caminho. As pessoas, ainda segundo Jorge, pen-
em parte cariados; cabelos ensebados, sam que vão levar um ‘choque’ aproximando-se dos
olhos congestionados, etc. São signos cidadãos em situação de rua. De fato, levarão um
genéricos que contam a trajetória so- ‘choque’: o ‘choque’ da desigualdade e
cial e tornam evidente que o indiví- desumanização do homem no seio da sociedade
duo faz parte da população pobre que brasileira.
habita as ruas (p. 134). Trata-se da vinculação mais geral da po-
Sempre que nos referimos a essas pessoas, breza com a violência e a delinqüência, o que vem
é comum automaticamente ocorrer a associação a favorecer que todos os cidadãos enxerguem o
com a difundida figura de um indivíduo sujo, mal- morador de rua como ‘socialmente ameaçador’ e
trapilho e aparência sórdida. Nesse caso, estamos um ‘criminoso em potencial’.
utilizando o “discurso higienista” que rotula e pro-
paga o estigma do morador de rua sempre associa-
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PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA des. São pessoas, portanto, negadas em sua huma-
COMO “COITADINHA” nidade: “homens e mulheres que não são mais vis-
tos como tais por seus semelhantes. E talvez já
Por fim, apesar de não dispormos de da- não se sintam também como tais” (p. 56).
dos na literatura, a partir de contatos que se de- Cléver, outro ex-morador de rua (MATTOS,
ram com pessoas em situação de rua, durante o 2003), nos dá o seguinte depoimento:
levantamento de dados da pesquisa de Mattos ...a rua é uma das fases mais cruéis
(2003), identificamos um outro tipo de discurso que podem existir no ser humano. Eu
que permeia as relações entre essas pessoas e os acho que depois da guerra eu acho
domiciliados - um discurso que denominamos de que a crueldade maior é ser um mora-
“discurso religioso”, que contém uma visão sobre dor de rua. É uma guerra contra o si-
as pessoas em situação de rua como aquelas dig- lêncio, contra o descaso, contra uma
nas de piedade. coisa que muitos passam e nem
É uma concepção que procura explicar a olham, nem tomam conhecimento de
situação de rua como uma oportunidade de expia- quem está deitado ali, quem não está
ção de erros cometidos em vidas passadas, ou seja, (p. 75).
como um modo de vida de sofrimento que pode No outro extremo, há uma atitude hostil
levar à salvação pessoal. Assim, a situação de rua de repulsa, nomeadamente a violência física, como
passa a ser vista como uma condição de “regene- atitude legitimada pela existência destas
ração da alma”. Mesmo existindo uma sincera pie- tipificações. Esta é a idéia discutida por Bursztyn
dade, o aspecto pernicioso que atua subjacente a (2000), quando pondera que a “desqualificação” e
esta concepção é o de contribuir para a constru- a “desvinculação” das pessoas em situação de rua
ção da identidade do indivíduo em situação de pode ser seguida da “eliminação” física à qual elas
rua como alguém inferior e digno de pena por suas estão suscetíveis. Buarque (2000) acrescenta que
mazelas, além de ser uma crença que dificulta a pode estar em andamento um processo de
criação de possibilidades para estes indivíduos con- “dessemelhança entre seres humanos”, marcado
quistarem suas saídas das ruas. É uma visão que pela imagem do cidadão em situação de rua como
favorece ações meramente assistencialistas e pali- alguém destituído do pertencimento à espécie hu-
ativas, o que, provavelmente, tende a manter o pro- mana.
blema. Cléver, participante da pesquisa de Mattos
(2003), na época que habitava o baixio de um via-
DA TIPIFICAÇÃO À VIOLÊNCIA FÍSICA duto próximo à favela de Heliópolis, em São Pau-
lo, relata que não dormia, em parte pelo medo de
O conjunto destas tipificações suscita nos que “vândalos” tentassem queimá-lo.
cidadãos domiciliados ações que trafegam no ex- Noticiários constantes também corroboram
tremo da total indiferença chegando até à repulsa a existência de muitos casos de homicídios de pes-
e à violência física. soas em situação de rua. Além do conhecido caso
O contato corriqueiro com pessoas em si- do assassinato do índio Galdino em Brasília, é muito
tuação de rua, que no início gerava espanto e in- freqüente a ocorrência de lamentáveis fatos como
dignação, vai gradualmente levando a uma este, embora não tenham a mesma repercussão.
dessensibilização para com sua condição social. Eis a tese de que a violência simbólica, que
De tão acostumados com suas mazelas, mesmo que por si só já acarreta danos intransponíveis através
involuntariamente, já não mais reparamos suas das atitudes e das palavras, legitima a ocorrência
presenças. Trata-se da disseminação da indiferen- de violência física, que pode chegar ao extremo da
ça que denota uma “naturalização” do fenômeno eliminação física.
pelos indivíduos sedentários: “as coisas são mes-
mo assim. O que posso fazer?” – exclamam. Assim, INTERIORIZAÇÃO DOS DISCURSOS: “SOU UMA
reproduzem uma visão que propaga a situação de PESSOA VAGABUNDA, LOUCA, SUJA, PERIGOSA
rua como definitiva, imutável, defronte à qual os E DIGNA DE PIEDADE?”
sujeitos históricos, que constroem a realidade so-
cial, nada podem fazer. Somente a existência destes atributos já
Nascimento (2000) relata que, subjacente pontua a ocorrência de uma violência simbólica
à indiferença, pode estar atuando a para com a população em situação de rua que,
desconsideração do outro da rua como igual, como como vimos, legitima a ocorrência da violência fí-
se fosse de outra espécie com poucas similarida- sica. Contudo, a faceta mais contundente é o fato
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Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. “Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua”

dessas pessoas utilizarem estes conteúdos como de agravando de tal forma que vai to-
referência para configurarem suas próprias identi- mando conta de todas as peças, ela
dades. vai enferrujando todas as suas partes.
Sob o prisma de Ciampa (1990), configu- Chega um determinado momento que
ramos nossa identidade a partir da interiorização esta peça não tem mais vontade pró-
de atributos pressupostos pelos outros em nossas pria, nem sequer ela lembra que teve
interações, tendo como pano de fundo o conheci- um passado. Ela começa a viver na
mento socialmente compartilhado. A existência de verdade aquele sub-mundo que ela
“esquemas tipificadores” possui a condição de pre- está vivendo e esquece que existe ou-
dizer e manipular as condutas individuais na me- tro mundo. Ela começa a ver as pes-
dida em que “define e constrói os papéis” e, por soas que vivem nesse outro mundo
conseguinte, “controla e prediz todas essas condu- como se fossem “ETs”, como se fos-
tas” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 93). Com sem pessoas superiores a ela ao máxi-
base nestes papéis objetivamente atribuídos, o in- mo. Por mais capacidade que essa pes-
divíduo constrói personagens subjetivamente apro- soa tenha, ela não consegue botar isso
priados. para frente, ela não consegue botar
Assim, os conteúdos simbólicos emergen- isso para uma mudança da própria
tes nas relações sociais construídas pelo indivíduo vida dela (MATTOS, 2003, p. 75).
com seus interlocutores tornam-se referências que Configurando sua identidade, a partir des-
passam a ser apropriadas intrapsiquicamente. Isto tes valores, acaba vivendo o que denomina uma
não quer dizer que o indivíduo aceite de bom gra- das mais cruéis fases que podem existir ao ser hu-
do tais tipificações, mas que as têm como conteú- mano. Justamente uma etapa na qual a própria
dos subjetivos em torno dos quais ele dá sentido humanidade lhe é negada. O cidadão em situação
às suas vivências e constrói sua identidade pesso- de rua não é visto como um igual, como integran-
al, mesmo que sejam por ele negados (MATTOS, te da mesma espécie, apenas não é visto, como se
CASTANHO e FERREIRA, 2003). fosse coisa. Como analisamos, o indivíduo pode
Diversos estudos e os próprios depoimen- apropria-se das representações sociais e passar a
tos de pessoas em situação de rua apontam que há ver-se como um objeto, ‘uma peça sem vontade pró-
uma apropriação das representações sociais a elas pria’.
atribuídas e, através delas, dão sentido às suas Além disso, a pessoa também pode se apro-
identidades e às condições sociais a que estão sub- priar do conteúdo ideológico da culpabilização e
metidas. acreditar que está nestas condições devido somen-
Nesse sentido, Cléver nos dá seu depoimen- te a imperfeições individuais, responsabilizando-
to: se integralmente (NASCIMENTO, 2000, p. 63). Sur-
O morador de rua não é só aquele que gem, então, justificativas, também parciais, segun-
está debaixo do viaduto, dormindo do as quais a pessoa está em situação de rua por-
debaixo de uma coberta, ou mesmo que não estudou, não soube abraçar oportunida-
num asfalto ou numa calçada fria, des de emprego ou não tenha pensado no futuro.
mas é aquele morador que um dia ele Por conseguinte, a pessoa pode incorporar
teve uma cama quente, um dia ele uma visão de si própria como digna de menos va-
teve um lar, ele teve uma cultura na lia, como um fracasso, ou seja: “vão pouco a pou-
vida dele. Mas como se fosse numa co adquirindo a identidade dos caídos, dos inú-
fração de segundos, como um vírus teis, dos fracassados” (ZALUAR, 1995, p. 55).
no computador, aquilo deu um “tilt” Segundo Stoffels (1977), na representação
na vida dele. E ele parou de funcio- que as pessoas em situação de rua concebem para
nar, e ele foi parar ali, como se fosse sua existência permeada pela pobreza, a dicotomia
um depósito de ferro velho. Sem ter pobreza/riqueza é vista como uma “contingência
alguém, um mecânico que fosse lá ten- da natureza humana” cuja naturalização extrapola
tar descobrir onde estava o problema, a atividade humana e é tida como uma força
tentar descobrir se tinha conserto ou extrínseca e estranha aos homens. Ocorre a ten-
não aquela peça... E cada vez mais, dência à culpabilização pessoal ou aos desígnios
quanto mais tempo a pessoa fica co- traçados por Deus, como demonstram os depoimen-
locada nesse depósito de ferro velho, tos de seus entrevistados: “A miséria existe por fal-
que é o mundo aí fora, as calçadas e ta de capacidade e oportunidade”; “O pobre é po-
as esquinas da vida, aquele defeito vai bre porque não usou a cabeça”; “Ricos e pobres?
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Isto daí existe desde o começo do mundo”; “Essa ções históricas. Outras vezes, contrapondo-se à
diferença não é culpa de ninguém. É assim” (p. tipificação de vagabundas, muitas pessoas em si-
208); “Desconfio que Deus já fez o mundo assim” tuação de rua reagem trabalhando com afinco em
(p. 209). alternativas de trabalho que valorizam o ser hu-
Por fim, “o indivíduo não-trabalhador é mano como centro de toda atividade econômica –
encerrado pela ideologia dominante numa situação tal como as experiências de economia solidária
periférica, e estigmatizado como ser desviante, analisadas por Hayashida (2003) -, ou mesmo par-
degenerado e residual. Ele se vê e sente como ticipando como trabalhadores em luta por impor-
elemento segregado, portador de uma identidade tantes modificações sociais como a reforma agrá-
atrofiada” (STOFFELS, 1977, p. 231). ria, ao ingressarem no Movimento dos Trabalha-
Tal fato repercute em diversos aspectos de dores Rurais Sem-Terra – como visto por
sua vida: sentimento de vergonha e humilhação Shimabukuro (2003) e Costa e Magalhães (2002).
que o faz se afastar do contato com familiares; ten- Di Flora (1987) analisa a interiorização da
dência ao isolamento ou formação de grupos que desumanização como um aspecto que faz com que
lhe confiram uma identidade estável. o cidadão em situação de rua não se sinta mesmo
Se muitos se calam resignados, incorpo- completamente humano: “a pressão da estrutura
rando os atributos de fracassados, outros negam social e econômica, ao determinar o ingresso do
tal prerrogativa e constroem seus sucessos pesso- indivíduo nesta categoria, condiciona-o à forma-
ais ao narrem suas biografias (ORTIZ, 2001; BAR- ção de uma nova identidade: a de mendigo social-
BOSA e PAULINO, 2003), permeadas por críticas mente estigmatizado e entendida como deteriora-
aos preconceitos sociais e à falta de oportunida- da, o que leva a não se sentir completamente hu-
des. mano” (p. 49).
Observa-se, então, também a possibilidade Com tudo o que foi dito, não é de se es-
de desenvolvimento de uma postura crítica na in- pantar o depoimento de Mário, um cidadão em
vestigação da realidade concreta das pessoas em situação de rua entrevistado por Nasser (1996):
situação de rua em edições por elas produzidas, É triste! As pessoas passam de ônibus
tais como a Revista Boca de Rua, utilizada como – pessoal de carro não olha muito – e
instrumento de denúncia das problemáticas que ficam olhando e pensam: rapaz novo,
margeiam a vida nas ruas de Porto Alegre – tais em fila de albergue, tomando sopa...
como a “invisibilidade” social e a violência polici- é vagabundo! Eles analisam assim.
al (ano I, nº 0), a drogadição (ano I, nº 1), a difi- Pensam que amanhã a gente vai sair
culdade de conseguir vagas em albergues (ano I, e vai roubar. Todo pessoal de alber-
nº 2) e a omissão de tratamento à saúde da popu- gue é injustiçado. Pensam que é la-
lação de rua (ano I, nº 3). drão, maconheiro, estuprador. A gen-
Entre as próprias pessoas em situação de te fica condenado. Quando a gente
rua, suas relações indicam também para uma re- vê, tem sempre umas pessoas olhan-
produção destes discursos ideológicos que confi- do. Por dentro, a gente fica magoado
guram a violência simbólica. Domingues Junior (p. 24).
(1998), que desenvolveu sua pesquisa com As duas histórias de vida analisadas por
catadores de materiais recicláveis, os quais, em sua Mattos (2003) indicam a existência nítida da re-
maioria, já estiveram ou estão em situação de rua, presentação ideológica da pessoa em situação de
espanta-se com o fato de existir a proliferação dos rua como suja. Cléver, um de seus colaboradores
valores dominantes até no âmbito das diversas ca- de pesquisa narra a seguinte vivência: “Com um
tegorias que compõem a população em situação simples olhar que te davam, você já se sentia en-
de rua: “portanto, se de um lado os catadores re- vergonhado pelo lixo que você era. Você se olhava
cusam a imagem que lhes é imposta, de vagabun- e perguntava: ‘será que eu estou fedendo?’ Porque
dos, que não querem trabalhar, etc, por outro, os com aquele olhar você sentia que era um olhar
catadores se conformam, reproduzem essa imagem repugnante, como você olha para um cachorro
realizada pela ideologia dominante, e repassam- sarnento” (p. 92). Jorge, o outro ex-morador de
na para a população de rua” (p. 110). rua entrevistado por Mattos (2003), revela uma
Entretanto, ao lado destes, muitos outra faceta da “tipificação” a que o cidadão em
catadores encabeçam movimentos sociais situação de rua está sujeito. Segundo ele, as pes-
protagonizados pela população em situação de rua, soas sabiam julgar, mas não conheciam estas pes-
tornando os cooperados uma espécie de vanguar- soas, não se aproximavam e até ficavam indiferen-
da nas lutas desta população por suas reivindica- tes ao vê-las. Vemos a ocorrência da indiferença,
53
Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. “Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua”

da negligência, da “invisibilidade social” dos indi- em situação de rua busque a alternação de sua
víduos em situação de rua. Simplesmente passam identidade, estes valores pejorativos permeiam suas
despercebidos. relações sociais e impedem-na de fazê-lo. Pode-se
Em contrapartida, ainda na fala de Cléver considerar, nestas circunstâncias, que, em casos
(MATTOS, 2003), pode-se perceber fervorosas crí- de “estigmatizações”, o indivíduo “... não tem vir-
ticas às pessoas que desrespeitam as atividades tualmente defesa subjetiva contra a identidade que
desenvolvidas por pessoas em situação de rua. lhe é atribuída”, ou seja, “é prisioneiro da realida-
Referimo-nos especialmente a uma passagem de de objetiva de sua sociedade...” (BERGER e
sua narrativa em que, trabalhando como catador, LUCKMANN, 1985, p. 217-218).
discute com uma cidadã cabeleireira que não per- Assim, a re-posição ininterrupta da identi-
mitira a ele remexer em um lixo no qual afirmava dade objetivamente atribuída pode cercear sua li-
haver “cocô de gato”: “ ‘Senhora, a senhora ganha berdade individual, fazendo com que a pessoa ca-
dessa profissão que a senhora está fazendo cortan- minhe em uma “réplica de si mesmo”. Embora seja
do o cabelo?’ - e a cliente olhando para a minha de sua vontade, a possibilidade do novo, de novas
cara, eu falei: ‘então eu vou meter a mão nesse personagens, faz com que adentre em um círculo
cocô de gato, porque é desse cocô de gato que eu vicioso da “crise do ator-sem-personagem”. Esta
tiro o meu sustento’. Eu abri o saco e peguei o que condição pode ser entendida baseando-se no que
eu queria. Então por aí você vê a discriminação Ciampa (1990) denomina como sendo uma
que sofre a pessoa” (MATTOS, 2003, p. 97). Em “mesmice de si imposta”. O indivíduo é levado a
outra ocasião reafirma sua visão crítica em relação reproduzir uma identidade involuntariamente por
às tipificações sofridas pelas pessoas em situação força dos processos sociais que o tem como “tipo”.
de rua nos albergues da cidade, pois, segundo ele, Esta negação da sua humanidade é veiculada a
muitas destas instituições funcionam como “depó- partir de interesses que fogem do seu controle. Nas
sito humano”, criando uma dependência palavras de Ciampa (1990):
institucional e não oferecendo condições para es- De qualquer forma, é o trabalho de
tas pessoas criarem suas próprias autonomias: re-posição que sustenta a mesmice.
“É nada mais nada menos que esse Outros são levados a essa situação,
homem que se acostumou a comer, involuntariamente, quando o seu de-
beber e dormir sempre na dependên- senvolvimento é de alguma forma pre-
cia dos outros. Porquê? Porque as en- judicado, barrado, impedido; na nos-
tidades, a prefeitura, e não sei quem, sa sociedade, encontramos milhões de
proporcionaram isso daí para ele. Dei- exemplos de pessoas submetidas a
xou para ele usufruir disso, não se condições sócio-econômicas desuma-
importou em pegar esse homem e nas; às vezes, mesmo com condições
reciclar ele. Fazer ele ganhar o pão sócio-econômicas favoráveis, milhares,
dele de cada dia” (p. 112). talvez milhões, de pessoas são impe-
Em outras ocasiões, vemos pessoas em si- didas de se transformar, são forçadas
tuação de rua que comparecem a encontros uni- a se reproduzir como réplicas de si,
versitários (MATTOS e TUCCI, 2003) para “mos- involuntariamente, a fim de preservar
trar suas caras” e “quem realmente são”, conforme interesses estabelecidos, situações con-
suas palavras. Assim, contribuem para a venientes, interesses e conveniências
desmistificação das tipificações e para a formação que são, se radicalmente analisados,
de profissionais mais engajados em causas sociais. interesses e conveniências do capital
Poderíamos citar vários outros exemplos, (e não do ser humano, que assim per-
tais como a mobilização da população em situa- manece um ator preso à mesmice im-
ção de rua em seu Dia de Luta (JORNAL “O posta) (p. 165).
TRECHEIRO”, ANO XII, n. 108), realizado anual- Por fim, entorpecida nestas condições, a
mente para reivindicar alguns direitos que são es- pessoa pode vivenciar “a mutilação de sua vida de
camoteados em virtude destas tipificações. diferentes formas”, o sofrimento ético-político, a
Analisando a identidade como o próprio “negação imposta socialmente”, enfim, a “dor que
processo de identificação, observamos que, além surge da situação social de ser tratado como infe-
da interiorização, a totalidade concreta das rela- rior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da so-
ções sociais também rege a re-posição da identida- ciedade” (SAWAIA, 1999, p. 104). Sawaia aponta
de impregnada destas tipificações. Nos casos de o suicídio como uma possível expiação deste sofri-
submissão a estes valores, por mais que a pessoa mento. Trilhando idéias similares, Ciampa (1990)
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Psicologia & Sociedade; 16 (2): 47-58; maio/ago.2004

pondera que na mesmice de si imposta, na crise do a elas essas mesmas oportunidades.


ator-sem-personagem, “... o ator caminha para a
morte, simbólica ou biológica. A loucura, neste sen- REFLEXÕES FINAIS
tido, é o esforço de criação de um novo universo –
louco porque singular, não compartilhado – con- No ponto de intersecção entre o conceito
seqüentemente fuga de uma realidade: a realida- de identidade como metamorfose humana e de re-
de quotidiana” (p.157). presentações sociais, discutimos o mecanismo da
Talvez por isso, vemos algumas pessoas em tipificação como forma de cristalizar e sustentar
situação de rua caminhando a esmo, de cabeça relações de dominação e exploração no âmbito da
baixa e expressão desconsolada. É possível surgir identidade pessoal. No que se refere às pessoas em
desta condição a loucura como forma de fugir da situação de rua, estas tipificações surgem sob a
realidade que nega-as em sua humanidade: “Afi- feição de apreendê-las como vagabundas, sujas,
nal de contas, se raramente você é o destinatário loucas, perigosas e coitadas – que suscitam atitu-
de qualquer atenção positiva ou é completamente des que vão da total indiferença à hostil violência
ignorado, criar e se isolar numa realidade privada física. Tal conhecimento compartilhado materiali-
que lhe dá percepções privilegiadas e status espe- za-se nas relações sociais destes indivíduos servin-
cial pode ser mais adaptativo do que parece à pri- do como material simbólico utilizado para a cons-
meira vista” (SNOW e ANDERSON, 1998, p. 340). tituição de suas identidades.
Ou mesmo recorrer ao suicídio e “ter vontade só de Com efeito, as maneiras com as quais as
morrer” como relata o ex-morador de rua Carlos pessoas em situação de rua elaboram estes conteú-
Donizete Duarte (TRECHEIRO, Ano XII, nº 105, p. dos foram analisados a partir da submissão, mate-
02), que se jogou na frente de um carro e, feliz- rializando a loucura e o suicídio, ou da práxis
mente, foi confundido como cego e auxiliado a transformadora, constituindo movimentos sociais
atravessar a rua. na luta por seus direitos e reivindicações históri-
Porém, como vimos, as tipificações sobre cas.
as pessoas em situação de rua possuem em si o seu Tal como as pessoas em situação de rua,
contrário, o germe de sua superação: se podem nós, pesquisadores e cientistas sociais, também
negar a humanidade destas pessoas, podem tam- podemos elaborar de formas distintas as tipificações
bém serem elaboradas de forma a possibilitar a ex- comumente fomentadas em nossa sociedade. Po-
pressão e afirmação de suas humanidades. Carre- demos, por um lado, em nossas pesquisas, nos re-
gando em si sua própria negação, tais tipificações signarmos a tais conteúdos e reproduzir relações
dão margem à “vozes dissonantes”, à causa revo- de dominação alinhadas aos ideais neoliberais:
lucionária de pessoas em situação de rua que ela- considerando que a culpa pela situação de rua é
boram tais referências negativas por meio da luta somente das pessoas que vivenciam tal condição e
pelos seus direitos. Fazem germinar daí a consti- que cabe a nós, “donos do saber”, orientá-las, sub-
tuição de suas autonomias como sujeitos históri- metendo-as aos nossos valores. Em contrapartida,
cos e autores de suas transformações sociais. temos a possibilidade de negar estas tipificações,
Desta forma, essas tipificações podem ge- atribuindo a essas pessoas a condição histórica de
rar a submissão e a reprodução da dominação: o lutar junto a nós para a transformação desta reali-
ato de alienar-se do mundo que as torna objeto e, dade social. Neste último caso, faremos realmente
por meio da loucura, criar um mundo imaginário uma Psicologia Social “enquanto práxis” (LANE e
no qual elas podem ser sujeitos humanos; ou mes- BOCK, 2003), como disciplina a serviço das clas-
mo abdicar da luta, e, já que não podem ser auto- ses populares para construir, junto com elas, uma
ras de suas vidas, que o sejam de suas mortes, com sociedade mais justa. Na primeira possibilidade,
o suicídio. Porém, podem utilizar-se de tais não obstante, não faremos senão reproduzir uma
tipificações como ensejo para atitudes de resistên- Psicologia “elitista”, ou seja, como disciplina sub-
cia e transformação social, negando a negação de serviente ao ideal neoliberal e “... instrumento de
suas humanidades nelas contida: indignar-se e lu- controle social das classes subalternas utilizado
tar, fazendo germinar a vida da possibilidade da pelas classes dominantes para perpetuar o sistema
morte. Trata-se, na concepção de Escorel (2000) vigente de dominação e exploração” (ANDERY,
de pessoas que “vivem de teimosas”, pois, mesmo 1984, p. 33).
vendo reduzido seus campos de possibilidades, rom-
pem estas restrições e criam novas oportunidades
de constituir-se enquanto protagonistas ativos da
constituição daquela mesma sociedade que nega
55
Mattos, R.M.; Ferreira, R.F. “Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua”

NOTA DI FLORA, M. C. Mendigos: porque surgem, por


onde circulam, como são tratados? Petrópolis: Vo-
*O presente artigo está atrelado ao trabalho de Iniciação zes, 1987.
Científica realizado por Ricardo Mendes Mattos, intitulado
“Processo de constituição da identidade do indivíduo em DOMINGUES JR., P. L. População de rua, coopera-
situação de rua: da rualização a sedentarização”, que pos- tiva e construção de uma “cidadania” (um estudo
sui a colaboração da Universidade São Marcos e o patrocí-
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Ricardo Mendes Mattos é graduando do


Curso de Psicologia da Universidade São Marcos;
colaborador do Fórum dos Estudantes Universitá-
rios vinculado ao CEPRUA (Centro de Estudos e
Pesquisa sobre a População de Rua da Cidade de
São Paulo) do Projeto Oficina Boracéia (Prefeitu-
ra de São Paulo). O endereço eletrônico do autor
é: ricardomendesmattos@ig.com.br

Ricardo Franklin Ferreira é Doutor em Psicologia


Escolar e do Desenvolvimento Humano; coorde-
nador e docente do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade São Marcos. Linha
de Pesquisa: Identidade - Formação e Transfor-
mação. O endereço eletrônico do autor é:
ricardo_franklin@uol.com.br

Ricardo Mendes Mattos e Ricardo Franklin


Ferreira
Quem vocês pensam que (elas) são?
Representações sobre as pessoas em
situação de rua.
Recebido: 1/3/2004
1ª revisão: 20/5/2004
Aceite final: 28/6/2004

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