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A LIBERDADE INTERIOR

Jacques Philipe

ÍNDICE

INTRODUÇÃO

PRIMEIRA PARTE
Capítulo 1
LIBERDADE E ACEITAÇÃO
Capítulo 2
A ACEITAÇÃO DE SI MESMO
Capítulo 3
A ACEITAÇÃO DO SOFRIMENTO
Capítulo 4
A ACEITAÇÃO DO OUTRO

SEGUNDA PARTE
Capitulo 1
O INSTANTE PRESENTE
Capitulo 2
O VERBO AMAR SÓ SE CONJUGA NO PRESENTE
Capitulo 3
SÓ É POSSÍVEL SOFRER POR UM INSTANTE
Capitulo 4
O DIA DE AMANHÃ CUIDARÁ DE SI MESMO
Capitulo 5
VIVER E EXPECTATIVA DE VIVER
Capítulo 6
A DISPONIBILIDADE AO OUTRO

TERCEIRA PARTE
Capítulo 1
O DINAMISMO DA FÉ, DA ESPERANÇA E DO AMOR
Capítulo 2
AS TRÊS EFUSÕES DO ESPÍRITO SANTO
Capítulo 3
A VOCAÇÃO E O DOM DA FÉ
Capítulo 4
AS LAGRIMAS DE PEDRO E O DOM DA ESPERANÇA
Capítulo 5
PENTECOSTES E O DOM DA CARIDADE
Capítulo 6
DINAMISMO DAS VIRTUDES TEOLOGAIS E O PAPEL
CHAVE DA ESPERANÇA
Capítulo 7
O AMOR NECESSITA DA ESPERANÇA,
A ESPERANÇA SE FUNDAMENTA NA FÉ
Capítulo 8
PAPEL ESSENCIAL DA ESPERANÇA
Capítulo 9
DINAMISMO DO PECADO, DINAMISMO DA GRAÇA
Capítulo 10
ESPERANÇA E PUREZA DE CORAÇÃO

QUARTA PARTE
Capítulo 1
A GRATUIDADE DO AMOR
Capítulo 2
A EMBOSCADA CONTRA A FÉ
Capítulo 3
APRENDER A AMAR: DAR E RECEBER

QUINTA PARTE
Capítulo 1
POBREZA ESPIRITUAL E LIBERDADE
Capítulo 2
ORGULHO E POBREZA ESPIRITUAL
Capítulo 3
AS PROVAS ESPIRITUAIS
Capítulo 4
A MISERICÓRDIA COMO ÚNICO APOIO
Capítulo 5
O HOMEM LIVRE: AQUELE QUE NADA MAIS TEM A PERDER
Capítulo 6
FELIZES OS POBRES

A liberdade interior
A força da fé,
da esperança e do amor

INTRODUÇÃO

Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade. São Paulo1


1. 2Cor 3,17

"Ofereceremos a Deus nossa vontade, nossa razão, nossa


inteligência, todo o nosso ser pelas mãos e o coração da Santa
Virgem. Então nosso espírito possuirá esta liberdade preciosa da
alma, tão contrária à ansiedade, à tristeza, à depressão, à angústia, à
estreiteza de espírito. Navegaremos no abandono, libertando-nos de
nós mesmos para nos apegarmos a Ele, o Infinito."
Madre Yvonne-Aimée de Malestroit.2
2. Citado em Uma amizade desejada por Deus, Paul Labutte, ed.
François-Xavier de Guibert

Este pequeno livro aborda um tema fundamental da existência cristã: a


liberdade interior. Seu objetivo é simples: parece-me essencial que cada
cristão descubra que, mesmo nas circunstâncias exteriores mais
desfavoráveis, cada um dispõe em si mesmo de um espaço de liberdade que
ninguém lhe pode usurpar, pois é Deus a sua fonte e seu fiador, Sem esta
descoberta, estaremos sempre infelizes e jamais experimentaremos a
verdadeira plenitude. Pelo contrário, se aprendermos a descobrir em nós
esse espaço interior de liberdade, muitas coisas, inevitavelmente, nos farão
sofrer, mas nada poderá verdadeiramente nos oprimir nem nos paralisar.
A afirmação fundamental que desejamos desenvolver é simples, mas
importante: o homem conquista sua liberdade interior na medida exata em
que a fé, a esperança e o amor se fortificam nele. Esclareceremos de forma
concreta como o dinamismo do que se chama classicamente de "virtudes
teologais" é o coração da vida espiritual e manifestaremos também o papel
fundamental da virtude da esperança no nosso crescimento interior. Tal
virtude só pode desenvolver-se se ligada com a pobreza de coração, o que
significa que nossa obra pode também ser considerada como um
comentário da primeira das bem-aventuranças: Felizes os pobres de
espírito, pois deles é o Reino dos Céus3.
3. Mt 5,3

Retomaremos e aprofundaremos alguns temas dos livros precedentes,


sobre a paz interior, a vida de oração e a docilidade ao Espírito Santo4.
4. Recherche la paix et poursuis-la, Du temps pur Dieu, À 1'Ecole de 1'Ésprit
Saint, ed. Dês Béatitudes

Neste início do terceiro milênio, desejamos que este livro seja uma
ajuda para aqueles que desejam fazer-se disponíveis à maravilhosa
renovação interior que o Espírito Santo quer operar nos corações, e, assim,
alcançar a gloriosa liberdade de filhos de Deus.

Primeira parte
Capítulo 1

LIBERDADE E ACEITAÇÃO

1. A busca da liberdade

A noção de liberdade pode ser um lugar de encontro privilegiado entre a


cultura moderna e o cristianismo. Este propõe-se, com efeito, como uma
mensagem de liberdade e libertação. Para convencer-se disso, é suficiente
abrir o Novo Testamento, no qual as palavras "livre", "liberdade", "libertar"
são utilizadas com frequência: A verdade vos libertará, diz Jesus em São
João5. São Paulo afirma: Onde está o Espírito do Senhor, aí está a
liberdade6 e mais adiante: É para sermos verdadeiramente livres que Cristo
nos libertou7. A lei cristã é chamada por São Tiago de lei de liberdade8.
Precisamos conhecer qual é a verdadeira natureza desta liberdade.
5. Jo 3,2
6. 2 Cor 3,17
7. Gl 5,1
8, Tg 2,12

A cultura moderna é marcada, há séculos, como facilmente se pode


constatar. Sabemos, entretanto, como a noção de liberdade suscita
ambiguidades e pode conduzir a desvios que têm produzido alienações
terríveis e causado a morte de milhões de pessoas. Disso o século XX dá
infeliz testemunho. Apesar disso, o desejo de liberdade continua a
manifestar-se em todos os domínios: social, político, econômico,
psicológico, o que se deve, sem dúvida, ao fato de que, apesar de todo
"progresso", tal desejo permanece insatisfeito.
No plano moral, tem-se a impressão de que o único valor que goza
ainda de uma certa unanimidade neste início de terceiro milênio é o da
liberdade: todos estão de certa forma de acordo sobre o fato de que a
liberdade é uma norma ética fundamental. Evidentemente, trata-se de um
valor mais teórico do que real (o liberalismo ocidental torna-se cada vez
mais autoritário ao seu modo) e pode até mesmo ser uma simples
manifestação do egoísmo de fundo do homem moderno, para o qual o
respeito da liberdade de cada um seria menos o reconhecimento de uma
exigência ética que uma reivindicação individualista: "que ninguém se meta
a me impedir de fazer o que eu bem quiser!"

Liberdade e felicidade

É preciso, portanto, ressaltar que esta aspiração à liberdade, tão forte no


homem contemporâneo, mesmo se traz em si uma boa dose de ilusão e se
realize, por vezes, por caminhos errôneos, traz em si algo de muito justo e
nobre.
Na verdade, o homem não foi criado para ser escravo, mas para dominar
sobre a criação. O livro do Genesis o diz explicitamente. Não foi feito para
levar uma vida inexpressiva, mesquinha, fechada em um espaço estreito.
Foi criado para viver livre. O confinamento lhe é insuportável,
simplesmente porque foi criado à imagem de Deus e assim tem em si uma
necessidade irrepreensível de absoluto e de infinito. Esta é sua grandeza e,
algumas vezes, sua infelicidade.
O ser humano manifesta tamanha sede de liberdade porque sua
aspiração mais fundamental é a de felicidade e ele percebe que não existe
felicidade de amor, nem amor sem liberdade; o que é perfeitamente correto.
O homem foi criado por amor e para o amor e só encontrará a felicidade ao
amar e ser amado. Como diz Santa Catarina de Sena9, o homem não saberia
viver sem amar. Seu problema vem do fato de que frequentemente ele ama.
de forma equivocada, ama a si mesmo, egoisticamente, e, assim, frustra-se,
pois somente um amor autêntico pode preenchê-lo.
9. "A alma não pode viver sem amor. Precisa sempre de algo para amar, pois ela
é feita do amor e é por amor que eu a criei". Diálogo, ed. Téqui, capítulo 51

Se é verdade que somente o amor pode preencher o homem, é também


verdade que não há amor sem liberdade: um amor que venha da opressão,
ou do interesse, ou somente da satisfação de uma necessidade, não merece
este nome. O amor não se aprisiona. Muito menos se compra. Só existe o
amor verdadeiro e, portanto, feliz, entre pessoas que dispõem livremente
delas mesmas para dar-se uma à outra.
Pressente-se, assim, o valor extraordinário da liberdade: ela é o preço do
amor e o amor é a condição fundamental da felicidade. Não há dúvida de
que e a intuição, ainda que confusa, dessa verdade que faz com que o
homem dê tamanha importância à liberdade, e deste ponto de vista, tem
toda razão!
Mas como atingir esta liberdade que permite o desabrochar do amor?
Para ajudar aos que desejam atingi-lo, começamos por evocar algumas
ilusões bastante disseminadas, das quais ninguém está imune, mas as quais
é necessário abandonar para gozar de uma verdadeira liberdade.

Liberdade: reivindicação de autonomia ou


acolhimento de dependência?

Se, por um lado, a ideia de liberdade pode ser, conforme dissemos, um


local de encontro entre o cristianismo e a cultura moderna, é, também,
talvez o ponto onde eles divergem de maneira mais radical. Para o homem
moderno, ser livre significa frequentemente poder desembaraçar-se de todo
limite e de toda autoridade: "Nem Deus nem patrão". Para o cristianismo,
ao contrário, só se pode encontrar a liberdade em uma submissão a Deus,
na obediência da fé da qual nos fala São Paulo10 11. A verdadeira liberdade,
mais que uma conquista do homem, é um dom gratuito de Deus, um fruto
do Espírito Santo, recebido na medida em que nos colocamos em uma
dependência de amor diante do nosso Criador e Salvador. Aí se manifesta
plenamente o paradoxo evangélico: “Quem quiser salvar sua vida vai
perdê-la; mas quem perder sua vida por minha causa, vai salvá-la". Em
outras palavras: quem quiser, a todo preço, preservar e defender sua
liberdade, vai perdê-la, mas quem aceitar "perdê-la", colocando-a
confiantemente nas mãos de Deus, a salvará: ela lhe será restituída
infinitamente mais bela e profunda, como um maravilhoso presente da
ternura divina. Como veremos, nossa liberdade é, na verdade, proporcional
ao amor e à confiança filial que nos unem ao nosso Pai do Céu.
10. Rm 1,5
11. Mt 16,25

A experiência de vida dos santos encoraja-nos: eles se entregaram a


Deus sem reservas, desejando fazer unicamente a Sua vontade e, em troca,
receberam progressivamente o sentimento de gozar de uma imensa
liberdade, que nada no mundo lhes poderia roubar, razão de sua intensa
felicidade. Como isso é possível? Vamos tentar compreender passo a passo.

Liberdade exterior ou interior?

Uma outra ilusão fundamental com relação à noção de liberdade é a de


fazer desta uma realidade exterior, dependente das circunstâncias e não
uma realidade antes de tudo flor12. Neste domínio, como em muitos outros,
reproduzimos o drama experimentado por Santo Agostinho: "Tu estavas
dentro de mim e eu estava fora e era fora que eu te procurava."13
12. Há, aqui, uma evidência muito simples, mas que levamos tempo para
compreender enquanto nosso sentimento de maior ou menor liberdade depender
de circunstâncias exteriores, é sinal que não somos ainda verdadeiramente livres.
13. Confissões, livro 10.

Expliquemo-nos. Frequentemente, temos a impressão que o que limita


nossa liberdade são as circunstâncias que nos cercam: os limites impostos
pela sociedade, as obrigações de todo tipo que os outros colocam sobre nós,
esta ou aquela limitação da qual somos prisioneiros com relação ao nosso
físico, nossa saúde, etc. Para encontrar nossa liberdade, seria preciso, então,
eliminar estas barreiras e limitações. Quando nos sentimos cerceados pelas
circunstâncias que nos aprisionam, atribuímos nosso incomodo às
instituições ou pessoas que nos parecem causá-lo. Quanto ressentimento
acumulamos, desta forma, para com tudo o que não está de acordo com
nossa vontade e nos impede de ser como desejaríamos!
Esta maneira de ver as coisas tem, certamente, um lado de verdade. Há,
algumas vezes, certas limitações que precisam ser corrigidas ou barreiras a
serem ultrapassadas para conquistar-se a liberdade. Mas há também uma
grande dose ilusão que é necessário desmascarar, sob a pena de jamais
gozar da liberdade verdadeira. Mesmo se tudo o que nós consideramos
impedimento à liberdade em nossas vidas viesse a desaparecer, isso não
seria nenhuma garantia de encontrarmos a plena liberdade à qual
aspiramos. Nem bem ultrapassamos uma barreira, encontramos outras logo
adiante. Desta forma, ao nos fixarmos na problemática que descrevemos
acima, arriscamos a nos embrenhar em um processo sem fim em uma
insatisfação permanente. Encontraremos sempre limites dolorosos.
Podemos nos libertar de alguns deles, mas será apenas para encontrarmos
outros maiores: as leis da física, os limites da condição humana, a vida em
sociedade...

Libertação ou suicídio?

O desejo de liberdade que habita o coração do homem contemporâneo


traduz-se, assim, frequentemente, por uma tentativa desesperada para
ultrapassar os limites dos quais se considera prisioneiro. Queremos ir cada
vez mais longe, mais depressa, ter um poder cada vez maior de transformar
a realidade. Isso aplica-se a todos os domínios da existência. Cremos que
seremos mais livres quando o "progresso" da biologia nos permitir escolher
o sexo dos filhos. Imaginamos encontrar a liberdade tentando sempre
ultrapassar nossas possibilidades. Não contente de praticarmos o alpinismo
convencional, lançamo-nos no alpinismo radical, até o dia em que vamos
longe demais e a excitante aventura acaba em uma queda mortal. Este lado
suicida de um certo tipo de busca de liberdade é evocado de maneira
significativa pela cena final do filme Le Grand Bleu: o herói do filme,
fascinado pela liberdade de movimento dos golfinhos nas profundezas do
oceano, acaba por segui-los. O filme deixa de dizer o que é evidente: ao
fazê-lo, ele se condena à morte certa! Quantos jovens mortos pelos
excessos de velocidade ou overdose de heroína por causa de uma aspiração
à liberdade que não soube encontrar os caminhos autênticos para realizar-
se!
Mas será que a liberdade não passaria de um sonho ao qual seria melhor
renunciar para contentar-se com uma vida medíocre e sem graça?
Certamente não! É preciso descobrir a verdadeira liberdade em si mesmo e
em um íntimo relacionamento com Deus.

Estreito é vosso íntimo

Para ajudar compreender a natureza deste espaço de liberdade interior


que cada um traz em si e que ninguém pode usurpar, gostaria de contar uma
pequena experiência que tive com Santa Teresinha do Menino Jesus e que
me tez crescer bastante.
Há muitos anos, Santa Teresinha é uma amiga muito cara e,
pessoalmente, aprendi imensamente em sua escola de simplicidade e
confiança evangélicas. Há dois anos, em uma das primeiras ocasiões em
que suas relíquias deixariam o Carmelo para veneração nas cidades que as
haviam solicitado (creio que na cidade de Marseille), eu me encontrava em
Lisieux. As irmãs carmelitas haviam pedido aos irmãos da comunidade
Beatitudes para ajudar a transportar o pesado e precioso relicário até o
carro que o conduziria a seu destino. Ofereci-me como voluntário para a
agradável tarefa e isso me deu uma oportunidade inesperada de entrar no
claustro do Carmelo de Lisieux e descobrir, com alegria e emoção, os
locais onde Teresinha viveu: a enfermaria, o coro, a lavanderia, o jardim
com a alameda de castanheiras. Locais que eu conhecia através dos escritos
da santa em seus Manuscritos Autobiográficos. Na visita, um detalhe me
impressionou: os locais eram bem menores do que eu havia imaginado. Um
exemplo: Teresinha, ao final de sua vida, evoca com humor suas irmãs que
passavam e faziam questão de dar-lhe uma palavrinha quando iam recolher
o feno. O grande campo de feno que eu havia imaginado, entretanto, era do
tamanho de um lenço de bolso!
A evidência inesperada da pequenez dos locais onde havia vivido
Teresinha me fez refletir muito. Percebi a que ponto ela havia vivido em
um mundo bastante reduzido aos olhos humanos: um pequeno Carmelo no
interior, de uma arquitetura banal, um jardim minúsculo, uma pequena
comunidade formada de religiosas cuja educação, cultura e maneiras
frequentemente deixavam a desejar, um clima no qual o sol nem sempre
aparecia... E uma existência tão breve neste monastério, dez anos! No
entanto - e este é o paradoxo que me impressionou - quando se leem os
escritos de Teresa não se tem de forma nenhuma a impressão de uma vida
passada em um mundo estreito. Muito ao contrário. Se ultrapassarmos
certas limitações do seu estilo, percebemos em sua maneira de exprimir-se,
em sua sensibilidade espiritual, uma impressão de amplidão, de
maravilhosa dilatação. Teresa vive em horizontes largos: os da misericórdia
infinita de Deus e de seu desejo ilimitado de amá-Lo. Sente-se como uma
rainha que tem o mundo inteiro a seus pés, uma vez que ela tudo pode obter
de Deus e, pelo amor, estar em todos os pontos do universo onde um
missionário necessite de sua oração e de seus sacrifícios!
Seria necessário um estudo filológico sobre a importância dos termos
que em Teresinha exprimem a dimensão iluminada do universo espiritual
no qual ela se move: "horizontes infinitos", "desejos imensos", "oceanos de
graça", "abismos de amor", "torrentes de misericórdia" e assim por diante.
O manuscrito B em particular, no qual Teresa conta a descoberta de sua
vocação no coração da Igreja, é muito revelador. Naturalmente, o
sofrimento também está presente em seus escritos, assim como a
monotonia do sacrifício, mas tudo isso é ultrapassado e transfigurado pela
intensidade da vida interior.
Por que o mundo de Teresa, humanamente tão estreito e pobre, dá o
sentimento de ser tão amplo e dilatado? Por que uma tal impressão de
liberdade se difunde de sua descrição da vida do Carmelo?
Muito simplesmente porque Teresa ama intensamente. Ela está abrasada
do amor por Deus, de caridade para com as irmãs. Abraça a Igreja e o
mundo inteiro consigo com uma ternura de mãe. Eis o seu segredo: ela não
se sente prisioneira em seu pequeno convento porque ela ama. O amor
transfigura tudo e dá um toque de infinito às coisas mais banais. Todos os
santos fizeram a mesma experiência: O amor é um mistério que transfigura
tudo o que ele toca em coisas belas e agradáveis a Deus. O amor de Deus
faz a alma livre, uma rainha que não conhece o peso da escravidão,
exclama Santa Faustina em seu Diário Espiritual14.
14. Petit Journal, Santa Faustina Kowalska, ed. Jules Hovine, p. 319

Refletindo sobre isso, veio-me à mente uma frase de São Paulo aos
cristãos de Corinto: Não é estreito o lugar que ocupais em nós. Estreito isso
sim, é o vosso íntimo15.
15. 2 Cor 6,12

Muito frequentemente, nós nos sentimos mal, sem liberdade em uma


determinada situação, em nossa família, nosso ambiente. Mas talvez o
problema esteja em outro lugar: é de fato em nosso coração que não nos
sentimos bem, não nos sentimos livres. É nele que está a origem de nossa
falta de liberdade. Se nós escolhemos amar sempre, o amor dará dimensões
infinitas à nossa vida e nós não nos sentiremos mais aprisionados.
Não quero dizer que não haja, às vezes, situações objetivas a serem
mudadas, circunstâncias opressoras ou angustiantes que precisam ser
remediadas para que o coração desfrute de uma real liberdade interior, mas
creio que bem frequentemente desenvolvemos uma certa ilusão. Acusamos
o ambiente, enquanto a verdadeira questão está em outro lugar. Nossa falta
de liberdade vem de uma falta de amor: pensamos ser vítimas de um
contexto desvantajoso e, no entanto, o verdadeiro problema (assim como a
solução) está em nós mesmos. É nosso coração que está prisioneiro de seu
egoísmo ou de seus medos e que deve mudar, aprendera amare deixar-se
transformar pelo Espírito Santo. Este é o único meio de sair do sentimento
de mal-estar e falta de liberdade que nos invade. Quem não sabe amar se
considerará sempre injustiçado e se sentirá pouco à vontade onde quer que
se encontre. Quem sabe amar não se sentirá mal ou pouco à vontade em
nenhum lugar. Eis o que me ensinou Teresinha. Além disso, fez-me
compreender outra coisa importante, da qual falaremos mais tarde: nossa
incapacidade de amar vem muito frequentemente de nossa falta de fé e de
esperança.

Um testemunho para o nosso


século: Etty Hillesum

Gostaria de contar brevemente um outro testemunho, mais recente, de


liberdade interior, a um tempo muito diferente e muito próximo do de
Teresinha do Menino Jesus e que muito me tocou. Trata-se do testemunho
de Etty Hillesum, uma jovem judia morta em Auschwitz em setembro de
1942, cujo diário foi publicado em 198116. Sua "história de uma alma"
desenrola-se na Holanda no momento em que se intensifica a perseguição
nazista contra os judeus. Graças a um amigo psicólogo, também judeu, ela
descobre (sem jamais se tornar explicitamente cristã) valores
profundamente cristãos: a oração, a presença de Deus no seu interior, o
convite evangélico a abandonar-se confiantemente à Providência. É im-
pressionante constatar como esta jovem, afetivamente frágil, mas animada
de uma forte exigência de verdade quanto a si mesma, aplica-se a viver
estes valores e, no momento em que todas as liberdades exteriores lhe são
progressivamente retiradas, descobre nela mesma uma felicidade e uma
liberdade interior que ninguém lhe poderá tirar. Oportunamente citaremos
mais algumas passagens de seus escritos. No momento, transcrevemos um
texto muito significativo de sua experiência espiritual:
16. Une vie bouleversée. Journal (1941-43), Etty Hillesum, ed. Du Seuil, 1985

"Esta manhã, contornando de bicicleta o Stadionkae, fiquei


encantada de ver o vasto horizonte que se descobre nas fronteiras da
cidade enquanto respirava o ar fresco que ainda não conseguiram
racionar. Em todo lugar, os cartazes proíbem aos judeus caminhar
pelos pequenos caminhos que dão acesso à natureza. Abaixo deste
trecho de estrada que nos resta, o céu é imóvel, tranquilo. Ninguém
pode fazer nada de mal contra nós. Nada. Podem nos tornar a vida
dura, nos despojarem de certos bens materiais, tirar-nos alguma
liberdade de movimento exterior, mas somos nós mesmos quem nos
despojamos de nossas melhores forças por uma atitude psicológica
equivocada ao nos sentirmos perseguidos, humilhados, oprimidos; ao
experimentarmos ódio; fazendo-nos de corajosos para esconder
nosso medo. Temos o direito de estar tristes e abatidos, de vez em
quando, pelo que nos fazem suportar: é humano e compreensível. E,
no entanto, a verdadeira espoliação somos nós mesmos que nos
infligimos. Considero a vida imensamente bela e sinto-me livre. Em
mim há céus que se alastram tão vastos quanto o firmamento. Creio
em Deus e creio no homem, ouso dizer sem falsa vergonha (...) Sou
uma mulher feliz e canto os louvores desta vida - sim - no ano do
Senhor - agora e sempre do Senhor - 1942."17
17. op. cit. p. 132

A liberdade interior: liberdade de crer,


de esperar, de amar

Na linha do que viveram Teresinha e Etty, a ideia que desejo


desenvolver agora é: a verdadeira liberdade, aquela liberdade soberana de
quem crê consiste em que ele disponha em toda circunstância, graças à
assistência do Espírito Santo, que vem em socorro de nossa fraqueza18, da
possibilidade de crer, de esperar e de amar. Ninguém jamais poderá
impedi-lo. Sim, eu tenho certeza: nem a morte nem a vida, nem os anjos
nem as dominações, nem o presente nem o futuro, nem as potências, nem
as forças das alturas, nem as das profundezas, nem outra criatura alguma,
nada poderá separar-nos do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo,
nosso Senhor. 19
18. Rm 8,26
19. Rm 8,38s

Nenhuma circunstância no mundo poderá jamais me impedir de crer em


Deus, de colocar nele toda a minha confiança, de amá-lo de todo meu
coração e de amar meu próximo. A fé, a esperança e a caridade são
soberanamente livres, pois se estão bem enraizadas em nós, têm o poder de
nos alimentar exatamente daquilo que a elas se opõe! Se me querem
impedir de amar através da perseguição, tenho sempre a possibilidade de
perdoar os meus inimigos e transformar a situação de opressão em um
amor ainda maior. Se querem abafar minha fé tirando-me a vida, minha
morte torna-se a mais bela confissão de fé que se possa conceber! O amor,
e somente ele, é capaz de vencer o mal pelo bem, e tirar do mal o bem.
Todos os capítulos que se seguem querem ser, a partir de diferentes
pontos de vista, uma ilustração desta verdade tão preciosa, uma vez que
aquele que a compreende e pratica atinge ima liberdade soberana. O
crescimento na fé, esperança e amor é a única via de acesso à liberdade.
Antes de aprofundar este assunto, examinemos um ponto importante
concernente às diferentes modalidades segundo as quais a liberdade pode
ser exercida concretamente.

A liberdade em ação: escolher ou acolher?

Devido a uma visão inadequada sobre liberdade pensa-se


frequentemente que o único exercício verdadeiro da liberdade consiste em
escolher entre diferentes possibilidades aquela que mais convém. Pensa-se,
portanto, que quanto mais amplo for o leque de opções, mais se é livre. A
medida de nossa liberdade seria, assim, proporcional à amplitude deste
leque de opções possíveis.
Esta noção de liberdade, que cedo conduz a impasses e contradições, é
muito presente de forma inconsciente. Gostaríamos, em todas as situações
da vida, de ter a oportunidade de escolher. Escolher onde passar as férias, o
tipo de trabalho, o número de filhos, seu sexo e a cor de seus olhos.
Sonhamos com a vida como uma espécie de imenso supermercado no qual
cada prateleira apresente um grande estoque de possibilidades e onde se
pudesse pegar à vontade o que fosse do nosso gosto e deixar o resto... Para
tomar uma outra imagem bem atual, gostaríamos de escolher nossa vida
como se escolhe uma roupa em um espesso catálogo de venda por
correspondência.
Que o uso de nossa liberdade nos leve frequentemente a optar entre
diferentes possibilidades é verdade e isso é bom. No entanto, seria
perfeitamente irrealista tudo analisar a partir deste ângulo. Há uma
multidão de aspectos absolutamente fundamentais de nossa vida que nós
não escolhemos: nosso sexo, nossos pais, a cor de nossos olhos, nosso
temperamento, nossa língua materna. Os elementos da existência que nós
escolhemos são de uma importância bem menor que aqueles que não
escolhemos.
Além disso, se, no momento da adolescência, a vida pode apresentar-se
diante de nós como um leque largamente aberto de possibilidades entre as
quais escolher, com o passar do tempo é preciso reconhecer que este leque
tende a fechar-se... É preciso, de fato, fazer escolhas, mas o mero fato de
elas se apresentarem já reduz, por si, a gama de possibilidades disponíveis.
Casar-se é escolher uma mulher e, portanto, excluir todas as outras. Entre
parênteses, poderíamos nos perguntar se verdadeiramente escolhemos a
mulher com quem nos casamos: o mais frequente é nos casarmos com
aquela por quem nos apaixonamos, o que não significa, verdadeiramente,
uma escolha. Mas isso não é um mal...
Vem-me à lembrança uma brincadeira que diz que a escolha do celibato
pelo Reino e a do casamento cristão são, afinal de contas, muito próximas,
porque se o celibatário escolhe renunciar a todas as mulheres, aquele que se
casa renuncia a todas as mulheres exceto a uma o que, do ponto de vista
numérico, não é uma diferença significativa!
Quanto mais avançamos em idade, menos dispomos de possibilidades
de escolha: Em verdade, em verdade eu te digo, quando eras jovem,
amarravas o teu cinto e ias para onde querias; quando ficares velho,
estenderás as mãos e um outro atará o teu cinto e te conduzirá para onde
não quiseres"20. O que sobra de nossa liberdade se nossa visão for a da
"liberdade de supermercado" que descrevemos há pouco?
20. Jo 21,18

Esta falsa concepção da liberdade tem repercussões profundas sobre o


comportamento dos jovens de hoje. A atitude com respeito ao casamento
ou outras formas de compromisso é significativa: retarda-se ao máximo as
escolhas definitivas, pois cada uma é percebida como uma perda de
liberdade. Resultado: não se ousa decidir, logo, não se vive. O que ocorre é
que a vida escolhe em nosso lugar, pois o tempo passa implacável...

Ser livre é também acolher aquilo


que não escolhemos

Se o exercício da liberdade como escolha entre duas coisas possíveis


tem seu valor, é fundamental, entretanto, sob a pena de nos expormos a
dolorosas desilusões, compreender que existe também uma outra maneira
de exercer sua liberdade. É uma forma menos grandiosa à primeira vista,
mais pobre, mais humilde, mas, na verdade, bem mais cheia de vida e
revestida de uma fecundidade humana e espiritual imensa. Trata-se de não
somente escolher, mas também acolher aquilo que não escolhemos.
Quero evidenciar como esta forma de exercer a liberdade é importante.
O ato mais alto, e mais fecundo da liberdade humana reside antes na
acolhida que na dominação. O homem manifesta a grandeza de sua
liberdade quando transforma a realidade, mas o faz mais ainda quando a
acolhe com confiança da forma como ela se apresenta dia após dia,
É natural e fácil acolher as situações que, sem que as tenhamos
escolhido, apresentam-se de uma forma agradável e prazerosa. O problema
ocorre quando nos defrontamos com aquilo que nos causa desprazer, que
nos contraria, que nos faz sofrer. No entanto, é justamente aí que somos
chamados, para nos tornarmos verdadeiramente livres, a "escolher" aquilo
que não desejamos e que por vezes não desejaríamos de forma nenhuma.
Existe aí uma lei paradoxal da existência: só nos tornamos verdadeiramente
livres quando aceitamos não ser sempre livres!
Eis o ponto que desenvolveremos agora, e que tem uma grande
importância: aquele que quer conquistar uma verdadeira liberdade interior
deve exercitar-se em aceitar em paz e de bom grado coisas que parecem
contradizer sua liberdade: acolher seus limites pessoais, suas fragilidades,
sua fraqueza, esta ou aquela situação que a vida impõe, etc. Temos
dificuldade em fazê-lo porque temos horror espontâneo a situações sobre as
quais não temos controle. No entanto, a verdade é a seguinte: as situações
que verdadeiramente nos fazem crescer são exatamente aquelas sobre as
quais não temos controle21. Veremos muitos exemplos concretos desta
realidade.
21. “A grande ilusão do homem é o desejo de controlar a própria vida... Ora, a
vida é um dom que, por sua própria natureza, escapa a toda tentativa de
controle". Viens vers le Père, Jean-Claude Sagne, ed. de l'Emmanel, p. 172

Revolta, resignação, acolhida

Antes de continuar, é bom esclarecermos: diante daquilo que nos


desagrada em nossa vida, nossa pessoa, nossa situação, daquilo que
consideramos negativo, há três atitudes possíveis.
A primeira é a da revolta. Por exemplo: eu não me aceito tal como sou,
revolto-me contra Deus que me fez desta forma, contra a vida que permitiu
este ou aquele acontecimento, contra a sociedade, etc.22
22. A revolta nem sempre é negativa. Pode ser uma primeira reação psicológica
inevitável em certas situações de sofrimento brutal, desde que não se paralise aí.
A palavra “revolta” pode ter, também, um sentido positivo: a recusa de uma
situação inadmissível, que nos faz agir positivamente com motivações justas e
meios legítimos e proporcionais. No texto acima, referimo-nos à revolta como
recusado real.

A revolta é frequentemente a primeira reação diante do sofrimento.


Porém, o problema é que ela nunca resolveu nada adequadamente. Tudo o
que consegue é somar um mal a outro mal. É fonte de desespero, de
violência e de ressentimento. Um certo romantismo literário fez a apologia
do revoltado, mas basta um pouco de bom senso para entender que nada de
grande ou de positivo jamais foi construído a partir da revolta: seu único
efeito é propagar ainda mais o mal que deseja remediar.
À revolta pode vir a suceder a resignação: ao dar-me conta de que não
posso mudar uma situação ou a mim mesmo, acabo por resignar-me. A
resignação pode representar um certo progresso se comparada à revolta
quando conduz a uma atitude menos agressiva e mais realista. No entanto,
ela é insuficiente. A resignação pode até ser uma virtude filosófica, mas
não é uma virtude cristã, pois falta-lhe a esperança. A resignação é uma
confissão de impotência. Nada mais. Ela pode ser uma etapa necessária,
mas se não passa disso, é estéril.
A atitude conveniente é a da acolhida. Comparado à resignação, a
acolhida leva a uma disposição interior completamente diferente. A
acolhida me faz dizer "sim" a uma realidade percebida em um primeiro
momento como negativa, porque me vem o sentimento de que algo positivo
pode surgir da situação. Há, então, uma perspectiva de esperança. Posso,
por exemplo, dizer sim ao que eu sou apesar de maus desafios porque me
sei amado por Deus. Porque tenho confiança de que a partir de minha
pobreza o Senhor é capaz de fazer coisas maravilhosas. Posso dizer “sim” à
realidade mais pobre e decepcionante no plano humano porque creio que "o
amor é tão poderoso em obras que sabe tirar proveito de tudo, do bem e do
mal que encontra em mim"23 para citar Teresinha.
23 Ver Manuscrito autobiográfico A, 53.
A diferença decisiva entre a resignação e a acolhida vem do fato de que
no consentimento, mesmo se a realidade objetiva na qual me encontro
continue idêntica, a atitude do coração é muito diferente. Já é habitada
pelas virtudes de fé, de esperança e de amor, ainda que em estado
embrionário. Por exemplo, acolher em minha pobreza é confiar em Deus
que me criou como sou. Neste ato de consentimento, há, portanto, fé em
Deus, confiança nele e, portanto, amor, pois confiar em alguém é amá-lo.
A presença da fé, da esperança e da caridade faz com que a acolhida
adquira um valor e fecundidade muito grandes. Pois, como não nos
cansaremos de dizer, já que existem a fé, a esperança e a caridade, há,
automaticamente, disponibilidade à graça divina, acolhida desta graça e,
cedo ou tarde, efeitos positivos. A graça de Deus jamais deixa de dar frutos
quando é acolhida. Pelo contrário, é sempre extraordinariamente fecunda.

Capítulo 2
A ACEITAÇÃO DE SI MESMO

Deus é realista

Veremos agora vários domínios de nossa vida nos quais somos


chamados a viver este caminho, por vezes difícil que, da revolta ou da
resignação, nos conduz à acolhida, levando-nos a "escolher o que não
escolhemos".
Vamos começar por nós mesmos e dizer algumas palavras sobre a lenta
aprendizagem do amor a si mesmo, isto é, este trabalho necessário para nos
aceitarmos plenamente como somos.
Em primeiro lugar: o mais importante em nossa vida não é tanto o que
nós podemos fazer, mas como podemos deixar Deus agir. O grande segredo
de toda a fecundidade e crescimento espiritual é aprender a deixar Deus
agir: sem mim, nada podeis fazer, diz Jesus. Pois o amor divino é infi-
nitamente mais poderoso que tudo o que possamos realizar por nossa
própria sabedoria ou forças. Ora, uma das condições mais necessárias para
permitir à graça de Deus agir •m nossa existência é dizer "sim" ao que
somos e às situações que encontramos na vida.
Na verdade, Deus é "realista". A graça divina não age no imaginário, no
ideal, no sonho. Age no real, no concreto da existência. Mesmo se o tecido
de minha vida de cada dia não me parece muito glorioso, isso não significa
nada se eu me deixo tocar pela graça divina. A pessoa que Deus ama com a
ternura de um Pai, que ele deseja encontrar e transformar por seu amor, não
é a pessoa que eu gostaria de ser ou que eu deveria ser, mas é aquela que eu
sou, simplesmente. Deus não tem amor por pessoas "ideais", por seres
"virtuais". Ele só ama seres reais, concretos. Não se interessa pelos santos
dos vitrais, mas pelos pecadores que somos.
Perdemos, às vezes, um tempo enorme em nossa vida espiritual,
queixando-nos de não sermos como fulano ou sicrano, lamentando-nos de
ter tal defeito ou limite, a imaginar todo o bem que poderíamos fazer se, ao
invés de ser o que somos, fôssemos alguém menos ferido, mais dotado de
qualidades ou virtudes e assim por diante. Tudo isso significa tempo e
energia perdidos e retarda o trabalho do Espírito Santo em nossos corações.
Muito frequentemente, o que bloqueia a ação da graça divina em nossa
vida não são tanto os nossos pecados ou erros, mas a falta de acolhida com
relação às nossas fraquezas, recusas mais ou menos conscientes daquilo
que somos ou de nossa situação concreta. Para "liberar" a graça em nossa
vida e para permitir as mudanças profundas e espetaculares talvez fosse
suficiente dizer simplesmente "sim" (um "sim" inspirado pela confiança em
Deus) a aspectos de nossa existência diante dos quais mantemos uma
atitude de recusa e rejeição interior. Não admito ter esta pobreza, esta
fraqueza, nem ter sido marcado por este ou aquele acontecimento no
passado, ter caído em pecado e assim por diante. Sem dar-me conta,
esterilizo a ação do Espírito Santo, o qual só toma para si minha realidade
na medida em que eu mesmo a aceito. O Espírito Santo jamais age sem a
colaboração de minha liberdade. Se eu não me acolho tal qual sou, não
permito que o Espírito Santo me aperfeiçoe!
De forma análoga, se não acolho os outros como eles são (se, por
exemplo, passo meu tempo a querer que correspondam às minhas
expectativas), não permito ao Santo Espírito agir positivamente em minha
relação com eles nem fazer desta relação uma ocasião de mudança para
eles. Mais tarde retomaremos esse aspecto.
As atitudes que acabamos de descrever são estéreis porque marcadas
por uma "recusa do real" que se enraíza na falta de fé em Deus e na falta de
esperança, que geram a falta de amor. Tudo isso nos fecha à graça e
paralisa a ação divina.

Desejo de mudar e acolhida do que somos

Acabamos de falar da necessidade de "consentir, acolher o que somos",


com nossas pobrezas e limites. Alguém poderia objetar: isso não seria
passividade e preguiça? Onde está o desejo de crescer, de mudar, de se
ultrapassar para melhorar? O Evangelho não nos convida à conversão: Sede
perfeitos como vosso pai celeste é perfeito"24?
24. Mt 5,48

O desejo de nos aperfeiçoarmos, de tendermos incessantemente a nos


ultrapassarmos para crescer em perfeição é evidentemente indispensável e
não se deve nem pensar em renunciar a ele: parar de progredir é parar de
viver. Aquele que não deseja tornar-se santo não o conseguirá. Deus nos
dá, afinal, o que desejamos, nem mais nem menos. Mas para nos tornarmos
santos, é preciso nos aceitarmos tal qual nós somos. As duas atitudes são
contraditórias apenas na aparência. Ambas são necessárias, completam- se
e se equilibram. Devemos viver uma aceitação de nossos limites, mas não
uma resignação à mediocridade. Devemos ter um desejo de mudança, mas
não uma recusa mais ou menos consciente de nossos limites e uma não-
aceitação de nós mesmos.
O segredo, muito simples, é compreender que não se pode transformar o
real de maneira fecunda senão através da aceitação de si mesmo como
primeiro passo. É preciso, igualmente, a humildade de reconhecer que não
podemos nos modificar por nossas próprias forças, mas todo progresso,
toda vitória sobre nós mesmos é um dom da graça divina. Não terei a graça
de mudar se não o desejar, mas para receber a graça que me vai
transformar, é igualmente necessário acolher a mim mesmo e me aceitar
como sou.

A mediação do olhar do Outro

O trabalho de aceitação de si é bem mais difícil que parece. O orgulho,


o medo de não ser amado, a convicção de nosso pouco valor têm raízes por
demais profundas em nós. Basta ver o quanto vivemos mai nossas quedas,
nossos erros, nossos fracassos e o poder que eles têm de nos desmoralizar,
de nos culpar, de nos inquietar.
Creio que só se pode verdadeiramente chegar a aceitar a si mesmo
plenamente se for sob o olhar de Deus. Para amarmos a nós mesmos,
precisamos de uma mediação, do olhar de alguém que nos diga como o
Senhor pela boca de Isaías: Te aprecio e és valioso. Eu te amo 25. O texto
evoca uma imagem humana bem comum: uma jovem que se considera feia
(como ocorre, curiosamente, com muitas jovens, mesmo belas!) começa a
pensar que ela não é, afinal, tão horrorosa assim no dia em que um jovem
se apaixona por ela e a olha com o terno olhar dos apaixonados!
25. Is 43,4

Temos uma necessidade vital da mediação do olhar do outro para nos


amarmos e aceitarmos a nós mesmos. Este olhar pode ser o dos pais, de um
amigo, de um pai espiritual mas, acima de todos eles, é o olhar de Deus,
nosso Pai. É o dele o olhar mais puro, mais terno, mais amoroso, mais
cheio de esperança que existe. E eu creio que o maior presente que recebe
aquele que busca a face de Deus perseverando na oração é que um dia ou
outro perceberá este olhar divino a repousar sobre ele. Então, se sentirá tão
ternamente amado que receberá a graça de aceitar-se profundamente.
O que acabamos de dizer tem uma consequência importante: quando o
homem se separa de Deus, ele se priva, infelizmente, de toda a verdadeira
possibilidade de amar a si mesmo26. Inversamente, aquele que não se ama,
distancia-se de Deus, como vimos acima. No Diálogo dos Carmelitas, de
Bernanos, a velha priora dirige as seguintes palavras ao jovem Blanche de
la Force: Acima de tudo, não te desprezes Jamais. É muito difícil
desprezar-se sem ofender Deus em nós.
26. Isso se verifica facilmente na evolução da cultura moderna. O homem,
separando-se de Deus, acaba por perder o sentido de sua dignidade e se odiar. É
impressionante constatar na mídia, por exemplo, como o humor torna-se cada
vez monos um humor ingênuo, de ternura e compaixão, para tornar-se um humor
de escárnio. A arte, por seu lado, é, hoje em dia, frequentemente incapaz de
representar a beleza do rosto humano.

Gostaria de concluir este assunto citando aqui uma pequena passagem


do belo livro de Henri Nouwen, A Volta do Filho Pródigo27:
27. Ed. Paulinas, p. 117.
"Durante muito tempo considerei a imagem negativa que tinha de mim
mesmo como uma virtude. Tinha sido tão frequentemente advertido contra
o orgulho e a vaidade que acreditava ser bom depreciar a mim mesmo.
Agora percebo que o verdadeiro pecado consiste em negar o amor primeiro
de Deus por mim, e ignorar minha beleza original. Porque se eu não me
apoio neste amor primeiro e nesta beleza original, perco contato com meu
verdadeiro eu e me destruo"

Liberdade de sermos pecadores,


liberdade de nos tornarmos santos

Quando descobrimos a nós mesmos sob esta luz do olhar de Deus, é


maravilhoso constatar o quanto experimentamos uma grande liberdade.
Uma liberdade em dose dupla: a de sermos pecadores e a de nos tornarmos
santos.
Liberdade de sermos pecadores: evidentemente, não quero dizer que
somos livres para pecar tranquilamente e sem consequências (o que não
seria liberdade, mas irresponsabilidade). O que quero dizer é que não
podemos ser esmagados por nossa condição de pecadores, que temos, de
certa forma, o "direito" de sermos pobres, o direito de sermos quem nós
somos. Deus conhece nossas fraquezas e nossas enfermidades, mas não se
escandaliza delas e não nos condena: Como um pai se enternece por seus
filhos, assim o Senhor se enternece por seus fiéis. Pois ele conhece nossa
condição e se lembra de que somos barro?28.
28. Sl 102,13

Ao olhar para nós, Deus nos convida à santidade, estimula-nos à


conversão e ao crescimento, mas sem jamais provocar a angústia de não
consegui-lo, sem provocar esta "pressão" que por vezes sentimos sob o
olhar dos outros ou devido à maneira como julgamos a nós mesmos: jamais
estamos suficientemente "bem". Estamos permanentemente insatisfeitos
conosco e nos sentimos sempre culpados de não corresponder atai
expectativa ou norma.
Não é porque somos pobres pecadores que devamos nos sentir culpados
por existir, como é o caso de muitos, frequentemente de forma
inconsciente. O olhar com que Deus nos olha nos faz aceitarmos a nós
mesmos com nossos limites e insuficiências. Dá-nos o “direito de errar” e
nos liberta, por assim dizer, desta forma de constrangimento, desta obri-
gação da qual somos, as vezes, prisioneiros (obrigação que não se origina
na vontade divina mas em nosso psiquismo ferido); deste ter que diferente
do que somos.
Na vida social, somos frequentemente presas de uma espécie de tensão
contínua por desejar corresponder ao que os outros esperam de nós (ou que
imaginamos que esperem!). Esta tensão pode ser esmagadora a longo
prazo.
Nosso mundo esvaziou o cristianismo, seus dogmas e mandamentos,
sob o pretexto de que é uma religião culpabilizante e, entretanto, jamais o
homem se sentiu tão culpado como hoje: todas as jovens se sentem mais ou
menos culpabilizadas por não serem tão belas quanto a top-model da moda,
enquanto os homens se sentem culpados por não conseguirem tanto sucesso
quanto o dono da Microsoft, e por aí vai. Os modelos de realização pessoal
veiculados pela cultura contemporânea são bem mais pesados e
esmagadores que o apelo à perfeição feito por Jesus, que nos diz no
Evangelho: Vinde a mim, vós que andais cansados e curvados, e eu vos
aliviarei. Tomai meu jugo e aprendei de mim, que sou tolerante e humilde,
e vos sentireis aliviados. Pois meu jugo é suave e minha carga é leve29.
29. Mt 11,28-30

Sob o olhar de Deus, nós somos libertados da opressão de termos de ser


"os melhores", de "vencermos" sempre. Podemos viver uma profunda
tranquilidade, pois não temos que fazer esforços contínuos para sermos
elogiados, nem dispensar uma energia prodigiosa para aparentarmos o que
não somos: podemos muito simplesmente ser quem nós somos, nem mais
nem menos. Não existe melhor "relax" que este: repousarmos como
pequenas crianças na ternura do Pai que nos ama como somos.
Nossa dificuldade de aceitar nossas limitações e fraquezas vem do
sentimento de que elas nos impedem de sermos amados: como somos
deficientes em determinado aspecto, não merecemos ser amados. Viver sob
o olhar de Deus nos faz perceber que esta ideia é falsa: o amor é gratuito,
não é fruto de merecimento. Nossas pobrezas não impedem em nada que
Deus nos ame. Pelo contrário! Somos libertados do terrível e desesperador
dever de nos tornarmos alguém "bom" para merecer sermos amados.
No entanto, quando nos permitimos sermos nós mesmos, sermos pobres
pecadores, o olhar de Deus nos permite também todas as audácias no
desejo da santidade: temos o direito de aspirar aos cumes, de desejar a
santidade mais alta, porque Deus assim o quer e assim no-lo concederá.
Então, não ficaremos jamais fechados em nossa mediocridade, nem
constrangidos a uma resignação morna, mas teremos sempre a esperança de
progredir no amor.
Deus é capaz de fazer do pecador que eu sou um santo. Sua graça pode
fazer este milagre. Posso ter uma fé sem limite no poder do seu amor. A
pessoa que cai todos os dias e, apesar disso, se levanta dizendo: "Senhor, eu
te agradeço porque tenho certeza de que farás de mim um santo!" dá alegria
a Deus e receberá, cedo ou tarde, aquilo que dele espera.
A atitude apropriada diante de Deus, então, é a seguinte: por um lado
uma aceitação muito tranquila, muito sem tensões de nós mesmos e de
nossas enfermidades e, ao mesmo tempo, um desejo imenso de santidade,
uma forte determinação de progredir, embasados em uma confiança sem
limite no poder da graça divina. Esta atitude parece-me bem expressa na
passagem abaixo, extraída do diário espiritual de Santa Faustina:
"Desejo vos amar mais que ninguém vos tenha jamais amado. E, apesar
de minha miséria e pequenez, ancorei minha confiança em águas profundas
do abismo de vossa misericórdia, meu Deus e meu criador! Apesar de
minha grande miséria, não tenho medo de nada, mas guardo a esperança de
cantar eternamente meu canto de louvor. Que nenhuma alma duvide,
enquanto vida tenha e ainda que ela seja a mais miserável do mundo, poder
tornar-se uma grande santa. Porque grande é o poder da graça divina”.30
30. Santa Faustina, op. cit., p. 140.

"Crenças limitantes" e proibições

O que acabamos de dizer permite evitar uma falsa compreensão da


aceitação de si e de suas pobrezas. Ela não consiste em nos fecharmos nos
limites que cremos ter e, como frequentemente se pode constatar, na
realidade não existem. Devido às nossas feridas, da educação (pessoas que
nos disseram: "Você não vai conseguir", "Você não faz nada direito" e
assim por diante), devido a certos fracassos e também à nossa falta de
confiança em Deus, temos uma forte propensão a trazer inscritos em nós
todo um conjunto de "crenças limitantes", convicções que não
correspondem à realidade e que, entretanto, nos persuadem que não somos
capazes de fazer isso ou aquilo, de enfrentar esta ou aquela situação. Os
exemplos são inesgotáveis: "Não vou conseguir; sou incapaz, vai ser
sempre assim". Tais afirmações não têm nada a ver com a acolhida de
nossos limites de que falamos antes. São, na verdade, os frutos de nossa
história ferida, de nossos medos, de nossas faltas de confiança em nós
mesmos e em Deus, Precisamos desmascará-las e decidir não consentir
com elas.
Aceitar a si mesmo significa acolher-se em suas pobrezas, mas também
em suas riquezas e, assim, permitir que se desenvolvam todas as nossas
legítimas possibilidades e reais capacidades. Antes de me exprimir como:
“não consigo fazer isso ou aquilo”, é preciso discernir se esta afirmativa é o
fruto de um realismo espiritual sadio ou uma convicção de natureza apenas
psicológica que precisa de cura.
Por vezes, também, temos a tendência a nos proibir ter aspirações
sadias, auto-realízações e felicidade lícita devido a mecanismos
psicológicos inconscientes segundo os quais nos consideramos culpados e
nos impedimos de ser felizes. Isso pode decorrer, às vezes, de uma falsa
representação da vontade divina, entendida como uma privação sistemática
de tudo o que é bom na vida! Isso não tem nada a ver com o realismo
espiritual de aceitação dos limites de que falamos antes. Deus nos chama,
por vezes, a sacrifícios e renúncias. No entanto, é também verdade que ele
nos liberta dos medos e das falsas culpas que nos aprisionam e, assim, nos
restaura a liberdade de acolher lentamente o que em sua sabedoria ele
deseja nos dar de bom e gratificante a fim de nos estimular e de manifestar-
nos sua ternura.
Se existe um campo no qual nada jamais nos será proibido é,
certamente, o da santidade, sob a condição de não confundi-la com aquilo
que ela não é: perfeição exterior, heroísmo, impecabilidade, etc. Mas se
compreendemos a santidade como ela verdadeiramente é: a possibilidade
crescer infinitamente no amor a Deus e aos irmãos, podemos estar
convencidos que, neste domínio, nada nos será inacessível. É suficiente,
para tanto, que jamais nos desencorajemos ou resistamos à ação da graça
divina, colocando nela nossa inteira confiança.
Nem todos temos a têmpera de um sábio ou de um herói. Entretanto,
pela graça divina, temos todos a têmpera de um santo: revestimo-nos da
veste batismal no sacramento que nos tornou filhos de Deus.

Aceitar a si mesmo para aceitar os outros

Uma outra observação importante: há uma relação profunda e de mão


dupla entre aceitação de si e aceitação dos outros. Uma favorece a outra.
Frequentemente não conseguimos aceitar os outros porque no fundo não
aceitamos a nós mesmos. Quem não está em paz consigo mesmo estará
necessariamente em guerra com os outros. A não-aceitação de si cria uma
tensão interior, uma insatisfação, uma frustração que frequentemente
projetamos sobre os outros, que se tornam bodes expiatórios de nossos
conflitos interiores.
Um exemplo: quando estamos de mau humor, frequentemente é porque
somos descontentes conosco. E jogamos sobre os outros o nosso
descontentamento! Etty Hillesum escreve: "Começo a me dar conta de que
quando temos aversão por nosso próximo devemos procurar a raiz no
desgosto consigo mesmo”: “ama teu próximo como a ti mesmo31".
31. Etty Hillesum, op.cit. p.81.

De forma inversa, o homem que fecha seu coração aos outros, que não
faz nenhum esforço para amá-los como eles são, que não sabe reconciliar-
se com eles jamais terá a graça de viver esta profunda reconciliação
consigo mesmo da qual todos necessitamos. Na verdade, todos nós
terminamos por ser vítimas de nossa falta de generosidade para com o
próximo, de nossos julgamentos e durezas32.
32. Mais adiante retomaremos este importante assunto.

Capítulo 3

A ACEITAÇÃO DO SOFRIMENTO

Acolher as contrariedades

Após termos falado da aceitação de si, gostaríamos de abordar a


aceitação dos acontecimentos. O "princípio fundamental" é o mesmo: não
podemos mudar eficazmente nossa vida a não ser que comecemos por
acolhê-la integralmente e, assim, acolher todos os acontecimentos
exteriores com os quais somos confrontados.
Não é difícil, evidentemente, acolher o que consideramos bom,
gratificante, positivo. O que nos custa é aceitar as dificuldades e
sofrimentos de todos os tipos. Vamos designar todas estas realidades
percebidas como negativas com o termo "contrariedades".
Este assunto é um pouco delicado. Não se trata de nos tornarmos
passivos e "engolir tudo" sem reagir. Todos nós fazemos a experiência de
que, não importa quais sejam nossos projetos ou planos bem elaborados, há
situações que não conseguimos dominar e uma multidão de acontecimentos
que contrariam nossas previsões, que frustram nossas aspirações e desejos e
que somos obrigados a aceitar.
O que me parece importante é não nos contentarmos em aceitá-los de
mau grado, mas de realmente acolhê-los, Mão simplesmente suportá-los,
mas de certa forma "escolhê-los" (mesmo se não tivermos outra escolha e
se for o próprio acontecimento que nos contrarie!). Escolher significa, aqui,
fazer um ato livre que nos permita não somente nos resignar, mas também
acolher positivamente a situação.
Isso não é fácil, sobretudo quando se trata de provações dolorosas. No
entanto, é o melhor método e nós devemos procurar adotá-lo sempre, em
uma atitude de fé e de esperança. Se temos fé suficiente em Deus para crer
que ele seja capaz de tirar um bem de tudo o que nos acontece, ele o fará:
Seja feito conforme tua fé, diz Jesus várias vezes no Evangelho.
Esta é uma verdade absolutamente fundamental: Deus é capaz de tirar
proveito de tudo, do bem e do mal, do positivo e do negativo. É nisto que
ele é Deus, que é o Pai Todo- poderoso o qual confessamos no Credo. Tirar
um bem do bem não é difícil. Qualquer um é capaz. Mas somente Deus, em
sua onipotência, seu amor e sua sabedoria, pode tirar um bem mesmo do
mal. Como ele faz isso? Não nos cabe demonstrá-lo nem explicá-lo
inteiramente (nenhum filósofo, nenhuma reflexão teológica é plenamente
capaz de fazê-lo). A nós cabe crer, baseando-nos nas palavras da Escritura
que nos convidam à confiança: Tudo concorre para o bem dos que amam a
Deus33. Se cremos nisso, nós o experimentaremos. Santa Teresinha de
Lisieux, relendo sua existência alguns dias antes da morte disse: "Tudo é
graça".
33. Rm 8, 28

Faremos agora algumas reflexões sobre este ponto, a fim de nos ajudar a
ingressar nesta atitude de fé e de esperança diante de toda dificuldade.

O sofrimento que mais nos


faz mal é aquele que recusamos

É importantíssimo compreender uma coisa: quando estamos em uma


situação de sofrimento, o que nos faz mais mal não é tanto o sofrimento em
si, mas nossa recusa em acolhê-lo. Juntamos à dor este outro tormento: a
nossa recusa, nossa revolta, o ressentimento, as inquietações que o
sofrimento provoca em nós. Há em nós como uma tensão feita de rigidez,
de não aceitação do sofrimento e que tem o poder de aumentá-lo. Quando
temos a graça de aceitar e acolher um sofrimento, ele se torna,
instantaneamente, muito menos doloroso. "Um sofrimento vivido na paz
não é mais um sofrimento", dizia o Cura d'Ars.
Quando uma dor nos atinge é evidente normal que a remediemos tanto
quanto possível. Se estou com dor de cabeça é preciso tomar um remédio
que me possa aliviar. No entanto, haverá sempre sofrimentos sem remédio.
Neste caso, a atitude sábia será nos esforçarmos para aceitá-los com
tranquilidade e paz. Não se trata de masoquismo ou "dolorismo", muito
pelo contrário. Na verdade, a acolhida de um sofrimento fê-lo bem mais
suportável que a crispação na recusa.
Tal fato é verdadeiro mesmo no plano físico: quem leva um golpe com a
musculatura endurecida e tensa vai senti-lo mais do que quem o recebe
com a musculatura relaxada. Desejar eliminar um sofrimento a todo preço
cria, algumas vezes, sofrimentos interiores bem mais difíceis de suportar.
Fico muito impressionado de ver quão facilmente as pessoas se tornam
infelizes na vida de cada dia, devido à mentalidade hedonista de nossa
sociedade para a qual todo sofrimento é um mal e deve ser evitado a todo
custo. Quem adote como linha de conduta habitual fugir de toda dor,
aceitar somente o que é gratificante e confortável e recusar o resto, colocará
sobre si, cedo ou tarde, cruzes muito mais pesadas do que as daquele que se
esforça para acolher de bom grado os sofrimentos que não consegue
eliminar. Na adesão ao sofrimento, encontramos uma força. As Escrituras
não nos falam do pão das lágrimas34? Deus é fiel e dá sempre a força
necessária para assumirmos, dia após dia, o que é pesado e difícil em nossa
vida. Etty Hillesum diz: "Sempre que me mostrava pronta a afrontá-las, as
provas se transformavam em beleza”. 35
34. Sl 80, 6.
35. Etty Hillesum, op. cit. p. 199

Por outro lado, não temos a mesma graça para suportar os sofrimentos
adicionais que provocamos a nós mesmos através de nossa recusa de
acolher as provas normais da vida.
Há ainda uma coisa: o verdadeiro mal não é tanto o sofrimento, mas o
medo dele. Se nós o acolhemos na confiança e na paz, o sofrimento nos faz
crescer, nos educa, nos purifica, nos ensina a amar de forma desinteressada,
nos faz pobres, humildes, doces e compassivos para com o próximo. O
medo do sofrimento, pelo contrário, nos endurece, nos enrijece em atitudes
autodefensivas e autoprotetoras e nos conduz frequentemente a escolhas
irracionais cujas consequências são nefastas: "Os piores sofrimentos do
homem são aqueles dos quais ele tem medo", diz Etty Hillesum36. O
sofrimento que nos causa mal não é o sofrimento vivido, mas aquele
representado, aquele que invade a imaginação e nos leva a atitudes
inadequadas. O que nos traz problemas não é a realidade (que é
fundamentalmente positiva, ainda que com seu lado doloroso), mas nossa
representação da realidade.
36. Op. cit. p. 230

Recusar-se a sofrer é recusar-se a viver

A cultura difundida pela publicidade e pela mídia em geral não cessa de


nos propor seu "evangelho": tome como regra de vida fugir da dor a todo
custo e buscar somente o prazer. Ela esquece-se de dizer que não há meio
mais seguro de tomar-se infeliz que adotar esta conduta. Não quero fazer a
apologia do sofrimento: precisamos aliviá-lo tanto quanto possível. Mas ele
faz parte da vida. Querer eliminá-lo completamente é suprimir a própria
vida. Recusar-se a sofrer é recusar-se a viver e, no fim, recusar aquilo que a
vida pode nos dar de belo e de bom: Quem desejar salvar sua vida, perdê-
la-á, mas quem aceitar perdê-la salvá-la-á, diz-nos Jesus em seu Evangelho,
incomparavelmente mais digno de confiança que o "evangelho" da
publicidade.
Evidentemente, não tenho nada contra o prazer, que é algo bom e que,
também ele, faz parte da vida. Se não existisse o prazer, não se poderia "dar
prazer" a alguém, o que é a forma mais normal de manifestar amor a uma
pessoa!37 Impressiona-me sobremaneira constatar no comportamento de
muitas pessoas a frequência com que, ao fugirem de um pequeno
sofrimento (normal e possível de ser acolhido) acabam por infligir-se
outros bem maiores.
37. O prazer é bom, mas não é feito para ser "retido" egoisticamente, mas para
ser dado e acolhido.

Vi, por exemplo, pais desolados durante anos simplesmente porque não
haviam aceitado a vocação de um dos filhos. Recusamos o sofrimento de
uma separação, de uma escolha diferente da que esperávamos e, desta
forma, nos Infligimos anos de sofrimento. Os exemplos seriam inume-
ráveis, o que mostra que a aceitação do sofrimento e do sacrifício (claro,
quando são legítimos) não é uma atitude masoquista ou suicida, antes pelo
contrário. Ao aceitarmos os sofrimentos que nos são "propostos" pela vida
e permitidos por Deus para nosso progresso e purificação, escapamos de
nos infligirmos outros mais pesados.
É preciso ser realista e parar de uma vez por todas de sonhar com uma
vida sem dor e sem combates. Isso é reservado ao Paraíso, não à terra. É
preciso tomar corajosamente a cada dia sua cruz no seguimento de Cristo e,
assim, sua amargura se transformará, cedo ou tarde, em grande doçura.
Precisamos, então, estar atentos às nossas atitudes interiores, cujas
consequências, a longo prazo, são mais importantes do que parecem à
primeira vista. Quando somos confrontados com o sofrimento quotidiano,
"sob o peso do dia e do calor", sob o peso do cansaço, é preciso evitar estar
a se maldizer interiormente ou a desejar ardentemente que tudo passe,
sonhando a toda hora com uma vida diferente. A sabedoria está em aceitá-
lo verdadeiramente. A vida é boa e bela tal como ela é, inclusive com o
peso de dor que ela comporta. Quando Deus criou o homem e a mulher,
colocou sobre toda a vida humana uma imensa bênção, que jamais foi
retirada, apesar do pecado e seu cortejo de sofrimentos, pois os dons e
chamados de Deus são irrevogáveis38, sobretudo o primeiro dom e o
primeiro chamado que é o chamado à vida. Toda existência, mesmo
submissa à dor, é infinitamente abençoada e preciosa.
38. Rm 11,29

Esta atitude nos fixa na realidade e economiza muita energia que


perderíamos a nos lamentar, a exigir que as coisas fossem diferentes, a
sonhar com o impossível etc. Esta maneira de acolher o sofrimento é ainda
mais legítima se considerarmos que nós, enquanto cristãos, temos a certeza
de que uma eternidade de felicidade nos espera: Uma felicidade sem!imite
iluminará seus rostos39. Não temos nenhuma razão válida para nos
queixarmos das dificuldades desta vida, Guardemos em nossos corações as
palavras de São Paulo que nos asseguram que as leves tribulações de um
instante nos preparam, excessivamente, para uma eternidade plena de
glória.
39. Ap 22,5

Não existe nada no mal além do próprio mal:


o lado positivo das contrariedades
É também preciso admitir que as contrariedades, por mais dolorosas que
sejam, não têm inconvenientes. Por vezes, têm muitas vantagens.
A primeira é que nos impedem de nos apropriarmos de nossa vida, de
nosso tempo. Impedem-nos de nos fecharmos em nossos programas, planos
e sabedoria pessoal. A verdadeira prisão que nos encerra e da qual
precisamos absolutamente ser libertados é nós mesmos. Nossa estreiteza de
coração e de julgamento: Assim como o céu dista da terra, assim os
pensamentos de Deus distam dos vossos, dizem as Escrituras 40. A pior
coisa que nos poderia acontecer na vida seria tudo correr bem segundo
nossa visão. Isto leria o fim de todo crescimento.
40. Is 55, 8-9

Para que possamos ingressar pouco a pouco na sabedoria divina, que é


infinitamente mais bela, mais rica, mais fecunda, mais misericordiosa que a
nossa41, é preciso que nossa sabedoria humana seja seriamente questionada.
Não para ser anulada, mas para ser elevada e purificada e não mais ficar
prisioneira de seus próprios limites, pois ela é sempré marcada por uma
dose de egoísmo e de orgulho, de falta de fé e de amor mais ou menos
conscientes. Há em nós muito mais estreitezas de coração e de julgamento
que precisam de cura para que possamos progressivamente acolher a
sabedoria divina e viver uma renovação profunda e um profundo
alargamento de nossas mentalidades. O pecado é estreiteza, enquanto a
santidade é dilatação do espírito e grandeza de alma.
41. Ver o hino à sabedoria divina de Rm 11,33-36

Da posse ao abandono: a purificação da inteligência

Em uma situação de prova, o que nos é frequente mais difícil não é tanto
o sofrimento, mas o não saber por que sofremos. A dor em si mesma é, por
vezes, menos desafiante do que o fato de não entender seu sentido. A pior
provação é a da inteligência, quando ela se vê diante de "porquês" sem
resposta. Ao contrário, quando a inteligência está saciada, a dor é muito
mais facilmente acolhida e suportada. Mesmo se o remédio me faz mal ao
me curar, eu não quero parar de tomá-lo porque compreendo muito bem
que é para a minha cura.
Esse assunto merece uma pequena reflexão sobre o papel da inteligência
na vida espiritual.
Como todas as faculdades de que Deus nos dotou a inteligência é
profundamente boa e útil. Há no homem uma sede de verdade e uma
necessidade de entender com a razão que fazem parte de sua dignidade e
sua grandeza. Desprezar a inteligência, suas possibilidades, seu papel na
vida humana e espiritual seria injusto42. A fé não pode prescindir da razão;
e não há nada de mais belo que esta possibilidade dada ao homem de
cooperar com a obra de Deus pela sua liberdade, seu entendimento e todas
as suas outras faculdades. Estes momentos de nossas vidas nos quais a
inteligência apreende o que Deus faz, aquilo a que ele nos chama, qual é
sua pedagogia para nos fazer crescer, são muito positivos, pois nos
permitem somar ao trabalho da graça divina toda a nossa colaboração.
42. A encíclica de João Paulo II, Fé e Razão nos lembra isso.

Tudo isso é, sem dúvida, da ordem das coisas desejadas por Deus, que
não fez de nós marionetes, mas pessoas livres e responsáveis, chamadas a
dar a seu amor o consentimento de sua inteligência e a adesão de sua
liberdade. É, então, bom e legítimo querer entender o sentido de tudo o que
vivemos.
No entanto, é preciso reconhecer que nossa necessidade tão imperiosa
de tudo entender comporta ambiguidades e precisa ser purificada. De fato,
o desejo de entender pode ser inspirado por motivações mais ou menos
conscientes que nem sempre são justas. Há um desejo de entender que é
sede de conhecer a verdade para acolhê-la e conformar a ela nossa vida,
que é absolutamente legítimo, mas há também um desejo de entender que é
desejo de poder. Entender é dominar, reter, ser o senhor da situação. Tudo
aquilo que tem em nós um desejo de dominação, de instinto de
propriedade, pode alimentar inconscientemente a necessidade de entender.
Este último pode também provir de uma outra fonte, igualmente impura:
nosso fundo de insegurança. Entender é estar seguro pelo sentimento de
que, uma vez que entendemos, estaremos aptos a controlar a situação. No
entanto, esta 6 uma segurança humana, frágil, decepcionante, que poderá
sempre fracassar mais cedo ou mais tarde. Enquanto que a verdadeira
segurança que temos nesta vida não é nossa capacidade de controlar pela
inteligência os acontecimentos i muito menos prevê-los, mas a certeza de
que Deus é fiel e não poderá jamais nos abandonar, pois sua ternura de Pai
é irrevogável.
Em uma situação de prova, nossa necessidade de entender o que está
acontecendo é1, por vezes, simplesmente a expressão de nossa incapacidade
de nos abandonarmos a Deus com confiança e a busca de seguranças
humanas. Ora, precisamos nos purificar disso. Só poderá usufruir uma
plena liberdade interior aquele que sabe livrar-se progressivamente da
necessidade de apoiasse em seguranças humanas experimentando que é
Deu£ e ele somente seu "rochedo", como nos ensinam as Escrituras.
Para que nossa inteligência seja libertada dos dois principais defeitos
que acabamos de descrever (desejo de dominar, necessidade de seguranças
humanas devido à falta de abandono), é necessário atravessarmos certas
fases em nossas vidas (e estas são, sem dúvida, as mais dolorosas) nas
quais, malgrado nossos esforços de reflexão, permanecemos incapazes de
entender a razão do que nos acontece. É muito doloroso porque, como eu já
disse, uma prova cujo sentido entendemos é fácil de ser aceita. No entanto,
quando a inteligência fica como que perdida na noite, tudo é muito mais
difícil.
Há períodos da existência dos quais precisamos a todo custo tentar
entender o que vivemos (pela reflexão, oração, conselho de pessoas sábias),
pois é graças a esta luz e em colaboração com o que entendamos que
podemos progredir. Mas há também momentos nos quais é preciso
renunciar a decifrar o que se passa, pois é o tempo não mais de agir, mas de
abandonar-se a Deus com uma cega confiança. A luz virá mais tarde: O que
faço não entendes agora; entenderás mais tarde, diz Jesus a Pedro43.
43. Jo 13,7

Procurar entender a todo custo o que se passa nos momentos; de prova


nos faria, assim, mais mal do que bem. Aumentaria o sofrimento ao invés
de apaziguá-lo e exacerbaria nossas dúvidas, nossas inseguranças, nossos
medos, nossas interrogações sem lhes dar nenhuma resposta. Não le trata
miais de satisfazer a inteligência encontrando uma resposta, imas fazer atos
de fé e abandonar-se a Deus. A única coisa que nos pode acalmar não é
termos a resposta a nossas perguntas, mas a oração humilde e confiante, a
atitude expressa pelo profeta Jeremias: É bom esperarem em silêncio a
salvação que vem do Senhor44.
44. Lm 3,26

Entendimento da vontade de Deus

Devido a esta necessidade de segurança, gostaríamos, em particular, de


termos sempre certeza de que estamos fazendo a vontade de Deus. É
normal, evidentemente, ter em nós este desejo de conhecer a vontade divina
para nos conformarmos com ela. Se a buscamos com um coração sincero,
teremos habitualmente a luz que nos permitirá compreendê-la. Mas é
preciso saber que não acontece sempre desta maneira. Mesmo se fizermos
tudo o que pudermos para conhecer a vontade de Deus em dada situação
(pela oração, a reflexão, o acompanhamento espiritual) nem sempre
teremos uma resposta clara ou, pelo menos, não imediatamente. Isso ocorre
por duas razões: primeiramente porque Deus nos trata como adultos e
porque há situações nas quais ele deseja simplesmente que decidamos por
nós mesmos. A segunda razão é a purificação: se nós tivéssemos sempre a
certeza de fazer a vontade divina e estar na verdade, chegaríamos bem
depressa a uma presunção que seria perigosa e que se transformaria
facilmente em orgulho espiritual. O fato de não estarmos sempre
absolutamente seguros de estarmos fazendo a vontade de Deus é uma po-
breza dolorosa, mas que nos protege: ele nos mantém pequenos e humildes,
em constante busca e não nos permite nos apoiarmos em nós mesmos e
atingirmos uma espécie de falsa segurança que nos dispensaria do
abandono.
Neste tipo de situações de incerteza quanto à vontade divina, é também
muito importante dizer-se o seguinte: Mesmo que haja alguns aspectos da
vontade de Deus que me escapem, há outros que eu já conheço com certeza
e nos quais posso investir sem nenhum risco de me enganar, sabendo que
este investimento tem um lucro: fazer meu dever de estado atual, viver os
pontos essenciais de toda vocação cristã. Por vezes, caímos em um engano
que é necessário reconhecer e evitar: estando na obscuridade sobre a vonta-
de de Deus quanto a aspectos importantes (por exemplo, o discernimento
de uma vocação ou uma decisão grave) passo o tempo a fazer
questionamentos ou entro em um certo desânimo que faz com que eu não
invista suficientemente naquilo que é para mim a vontade de Deus no dia a
dia: orar com fidelidade, permanecer confiante em Deus, amar as pessoas.
Quando não há respostas sobre o futuro, o melhor meio de se preparar para
recebê-las é viver intensamente o dia de hoje.

Ninguém me tira a vida, eu a dou livremente

É conveniente que nos exercitemos, como dissemos anteriormente, não


somente a suportar as contrariedades, mas, de certa forma, a escolhê-las.
Isso não significa dizer provocá-las! Mas, quando se apresentarem, acolhê-
las de bom grado por um ato positivo de nossa liberdade que nos faz passar
(e quanto antes melhor) da reação mais ou menos violenta de amargura a
um consentimento fundado na confiança.
Teresa de Lisieux, como cada um de nós, não gostava de ser perturbada.
Por vezes se lhe confiavam tarefas que lhe exigia uma certa dedicação
(pintar ou redigir uma peça de teatro para a comunidade) e ela tinha pouco
tempo disponível no exigente horário do Carmelo, quando, enfim, ela tinha
a possibilidade de ter uma ou duas horas para trabalhar, entrava no seguinte
estado de espírito: eu escolho ser perturbada. Se uma irmã corajosa o
suficiente para tanto vinha solicitá-la para um serviço qualquer, ao invés de
despedi-la secamente, Teresa se esforçava por acolhê-la de bom grado: era
isso o que havia escolhido. E se ninguém lhe vinha perturbar, ela
considerava o fato como um belo presente do bom Deus e ficava muito
agradecida. Assim, não importava o que acontecesse, Teresa vivia tudo
tranquilamente, na paz e jamais se contrariava: encontrava em todas as
situações o meio de fazer sua vontade, já que sua vontade era tudo aceitar...
Quando enfrentamos combates neste campo, pode ser bom para nós
meditarmos esta palavra de Jesus: Ninguém me tira a vida; eu a dou
livremente. Esta palavra é paradoxal. Com efeito, tiraram a vida de Jesus:
ele foi acorrentado, condenado, arrastado ao suplício e crucificado. Mas
como diz a liturgia, ele "abraçou livremente a paixão". Em seu coração ele
tinha esta aceitação profunda, esta adesão à vontade do Pai, graças à qual
Jesus permaneceu' soberanamente livre em sua morte. Fez dela uma
oferenda de amor. Pela acolhida livre e amorosa, sua vida tirada tornou-se
uma vida doada.
Encontramos um exemplo luminoso desta atitude no testemunho de
Jacques Fesch. Preso pelo assassinato de um policial, depois de um sonho
um pouco louco de mudança de vida (ele tenta um assalto a mão armada
para comprar um barco e atravessar o oceano), ele passa três anos na prisão
antes de ser executado a 1º de outubro de 1957 com a idade de vinte e sete
anos. Em sua cela ele encontra o Cristo e vive um belíssimo itinerário
espiritual. Veja o que ele escreveu alguns dias antes de morrer:

"Felizes são aqueles que Deus honra através do martírio! O sangue que
corre tem sempre um grande preço aos olhos de Deus, sobretudo o sangue
oferecido livremente. Eu não sou livre. No entanto, se hoje me oferecessem
a liberdade em troca de uma ofensa feita a Deus, eu recusaria, preferindo a
morte. Coopero, então, com esta execução aceitando-a de toda a minha
alma e ofertando-a ao Senhor. Morro, assim, um pouco menos
indignamente"45.
45. Dans 5 heures je verrai Jésus. Journal de prison, Jacques Fesch, ed. Le
Sarment-Fayard, p. 296.

Nossa liberdade tem sempre este poder maravilhoso: fazer daquilo que
nos é tirado (pela vida, pelos acontecimentos, pelos outros...) algo que é
ofertado. Exteriormente, não se vê nenhuma diferença, mas interiormente
tudo é transfigurado: o destino torna-se escolha livre, o constrangimento
torna-se amor, a perda torna-se fecundidade. A liberdade humana é algo de
uma grandeza inaudita. O homem não tem, por sua liberdade, o poder de
mudar tudo ao redor dele, mas por ela ele dispõe (o que é bem melhor) da
faculdade de dar um sentido a tudo, mesmo ao que não tem sentido!
Nem sempre temos o domínio sobre o desenrolar de nossa vida, mas
sempre somos os senhores do sentido que nós lhe damos. Devido à nossa
liberdade, não há nenhum acontecimento de nossa vida que não possa
receber um significado positivo, ser expressão de amor, tornar-se abando-
no, confiança, esperança, oferta... Os atos mais importantes, os mais
fecundos de nossa liberdade não são tanto aqueles através dos quais nós
transformamos o mundo exterior, mas aqueles pelos quais modificamos
nossa própria atitude interior para dar um sentido positivo a cada coisa,
apoiando-nos, em última instância, no recurso da fé, segundo a qual
sabemos que de tudo, sem exceção, Deus pode tirar um bem.
Há aí um tesouro inesgotável, uma riqueza sem limites a ser explorada,
que faz com que nossa existência não tenha mais nada de negativo, nada de
banal nem de indiferente, porque nós damos um sentido a tudo. O positivo
torna-se motivo de gratidão e alegria, o negativo, ocasião de abandono, de
fé e de oferta: tudo se toma graça. Devemos agradecer muito a Deus pelo
dom preciosíssimo da liberdade.

A impotência na prova e a prova da impotência:


a liberdade de crer, de esperar e de amar

A todos nós acontecerá, mais cedo ou mais tarde, nos encontrarmos em


uma situação de prova, de dificuldade, que nos atinge pessoalmente ou às
pessoas que nos são queridas e na qual não haverá nada a fazer: analisamos
a situação sob todos os ângulos, pensamos nela noite e dia e não há nada
que possamos fazer. Sentir-se tão pobre, tão desarmado, tão impotente é
uma grande prova. Sobretudo quando se trata de alguém de quem somos
próximos. Ver uma pessoa que amamos na dificuldade e não ter nenhum
meio de socorrê-la é, sem dúvida, um dos sofrimentos mais agudos desta
vida. Muitos pais a conhecem cedo ou tarde. Quando um filho é pequenino,
sempre há um meio de intervir, de ajudá-lo em seus problemas. Quando é
crescido e independente e não escuta mais os conselhos que lhe são dados,
pode ser terrível para os pais verem um de seus filhos se jogar no mundo
das drogas ou em aventuras afetivas destruidoras e, apesar de seus imensos
desejos de ajudar, sentem-se por vezes totalmente impotentes para fazê-lo...
Em situações assim, é preciso saber que, mesmo se não se tem
aparentemente nenhum domínio sobre a realidade e nenhum meio concreto
de intervir, resta sempre a possibilidade de continuar, apesar de tudo, a
crer, a esperar, a amar. Crer que Deus não abandona esta pessoa e que a
oração por ela trará frutos no tempo apropriado. Esperar tudo da fidelidade
e do poder do Senhor. Amar continuando a levar no coração e na oração
esta pessoa, perdoando-a suas ofensas ou o mal que lhe é feito e toda outra
expressão de amor possível segundo as circunstâncias. Amor que não pode
traduzir-se em atos visíveis, mas que se exprime em confiança, abandono,
perdão. Amor tanto maior e mais puro quanto mais pobre. Mesmo quando
não podemos fazer absolutamente nada no plano das ações conservamos
esta liberdade interior de perseverar em amar, que nenhuma circunstância,
por mais trágica que seja, poderá nos tirar.
E isso deve ser para nós uma certeza muito forte, certeza libertadora e
consoladora na prova da impotência: mesmo que eu não possa fazer nada,
desde que eu creia, que eu espere e que eu ame, algo acontecerá de forma
imperceptível e os frutos cedo ou tarde se manifestarão, no tempo da
misericórdia divina. O amor, mesmo pobre e aparentemente impotente, é
sempre fecundo e não pode deixar de sê-lo, pois participa do próprio ser e
da própria vida de Deus: A esperança não decepciona, pois o amor de Deus
foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado46.
46. Rm 5,5

Capítulo 4

A ACEITAÇÃO DO OUTRO
Acolher os sofrimentos que nos são infligidos pelos outros

Fizemos anteriormente o convite a não "resistir" diante das


contrariedades, mas acolhê-las de boa vontade. É necessário que
continuemos este assunto falando das contrariedades que nos advêm não
dos acontecimentos materiais, mas devido a erros de outrem. Como nos
comportar diante de todos os sofrimentos provocados pelos que nos
rodeiam? A linha de conduta será a mesma: esforçar-se por consentir com
eles e acolhê-los.
Também aqui não se trata de sermos passivos. Por vezes, é uma
necessidade irmos ao encontro de uma pessoa cuja conduta nos faz sofrer
para ajudá-la a tomar consciência disso e corrigir-se. Há circunstâncias em
que é um dever reagir firmemente contra certas situações de injustiça e se
proteger ou proteger outras pessoas contra comportamentos destrutivos. No
entanto, sempre restará uma parte de sofrimentos que nos vem das pessoas
com quem convivemos e que não podemos nem evitar nem corrigir.
Somos, então, convidados a aceitá-los em uma atitude de esperança e de
perdão.
É mais difícil para nós aceitar esta situação do que as contrariedades
materiais. Aceitar sem cólera perder um compromisso porque meu carro
enguiçou é mais fácil que aceitar que minha esposa me faça chegar
atrasado porque ficou uma hora ao telefone com uma de suas amigas. Os
aborrecimentos causados por outras pessoas são mais difíceis de aceitar que
aqueles a nível material, porque no primeiro caso há liberdades em jogo e
chega-se facilmente à conclusão que as coisas poderiam ter sido diferentes
se as outras pessoas não tivessem agido como fizeram. Ressentimo-nos
mais com os problemas que nos causam as pessoas do que com as
circunstâncias impessoais!
Ainda que não seja fácil, é preciso saber perdoar aos outros por nos
terem feito sofrer, de nos decepcionarem e até mesmo aceitar como uma
graça e um benefício os problemas que eles nos criam. Esta atitude não é
nem espontânea nem natural. E, no entanto, é a única adequada se nós
queremos conquistar a paz e a liberdade interiores. Vejamos algumas
observações para nos ajudar a avançar neste sentido.

Levar em conta as diferenças psicológicas


Uma primeira coisa a ser dita é que, nos sofrimentos que os outros nos
causam, não devemos crer sistematicamente que houve má vontade de sua
parte (como, em geral, somos levados a acreditar). Muitos problemas de
relacionamento entre pessoas, sobre as quais desejamos aplicar critérios
morais, são, frequentemente, simplesmente dificuldades de comunicação e
mal entendidos. Devido a nossas maneiras diferentes de nos expressarmos e
a nossos filtros psicológicos, temos dificuldade de perceber as verdadeiras
intenções ou motivações do outro.
Cada um de nós tem psicologias bem diferentes, sensibilidades e
maneiras de ver as coisas que se opõem. É preciso reconhecer este fato com
realismo e aceitá-lo com bom humor. Há os que querem tudo em ordem e
se sentem inseguros em meio à desordem. Há os que se afligem em um
contexto muito previsto e ordenado. Os que desejam tudo em ordem
sentem-se pessoalmente agredidos pelos que tiram do lugar um objeto,
enquanto que o que tem temperamento oposto se sentirá agredido por quem
exige sempre a mais perfeita ordem. E logo serão levados a fazerem consi-
derações morais um sobre o outro, enquanto que aqui trata- se apenas de
diferenças psicológicas.
Todos nós temos uma forte propensão a chamar de "bem" o que nos
agrada e de "mal" ao que nos causa repulsa. Teríamos incontáveis
exemplos. Se não estivermos atentos a isso, nossas famílias e comunidades
correm o risco de se tornarem campo de guerra permanente entre os
defensores da ordem e os da liberdade, os partidários da pontualidade e os
que acham que não faz mal chegar um pouco atrasado, os que amam a
calma e os exuberantes, os que se levantam cedo e os que se deitam tarde,
os falantes e os taciturnos e assim por diante.
É preciso, então, educar-nos a aceitar os outros como são, a
compreender que a sua sensibilidade e seus valores não são os mesmos que
os nossos, a alargar e tornar mais maleáveis nossos corações e pensamentos
com relação a eles47.
47. Isto tem sua importância principalmente no relacionamento entre homens
mulheres. Após alguns decênios de uma ideologia dominante que, confundindo
igualdade com identidade, postulou que o homem e a mulher são absolutamente
a mesma coisa, estamos a descobrir, felizmente, as profundas diferenças
psicológicas entre os sexos. Veja-se, por exemplo, o agradável livro de J. Gray,
Homens são de Marte, Mulheres são de Venus.

Isso não é fácil, pois elevemos revitalizar nossa sabedoria, ser pequenos
e humildes, saber renunciar ao orgulho que quer sempre ter razão e que
muito frequentemente nos impede de penetrar no pensamento do outro,
reconhecimento que significa, por vezes, uma morte a nós mesmos que nos
custa terrivelmente.
No entanto, só temos a ganhar. Felizmente os outros nos contrariam
com seus pontos de vista. É assim que temos alguma chance de sair de
nossa mesquinhez para nos abrirmos a outros valores. Eu vivo em
comunidade há vinte e cinco anos e sou obrigado a reconhecer que, afinal
de contas, muito provavelmente recebi mais das pessoas com quem me
entendi mal do que daquelas com quem me relacionei bem. Os primeiros
abriram meus horizontes a outros valores, livrando-me de me fechar e só
frequentar as pessoas que tivessem a mesma sensibilidade que eu.
Algumas reflexões sobre o perdão
Há casos em que o sofrimento que me causam os outros se deve a um
verdadeiro erro da parte deles. A atitude a tomar com relação a eles não
será mais somente esta maleabilidade e compreensão na aceitação das
diferenças da qual acabamos de falar, mas é aquela mais exigente e difícil
do perdão.
A cultura moderna (veja-se, por exemplo, o cinema) não faz muito para
valorizar o perdão e muito frequentemente legitima o rancor e a vingança.
Mas será que isso contribui para diminuir o mal no mundo? É preciso
reafirmar fortemente que a única via para diminuir o sofrimento que pesa
sobre a humanidade é a do perdão.
"Ao anunciar o perdão e o amor aos inimigos, a Igreja tem consciência
de introduzir no patrimônio espiritual de toda a humanidade uma
modalidade nova de relacionar-se com os outros; uma modalidade
certamente trabalhosa, mas rica em esperança. Para fazer isso, ela sabe
poder contar com a ajuda do Senhor que jamais abandona aquele que o
invoca em momentos de dificuldade. A caridade não guarda rancor (I Cor
13,5). Nesta expressão da primeira carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo
lembra que o perdão é uma das formas mais elevadas do exercício da
caridade48."
48. Mensagem para a Quaresma de 9de fevereiro de2001, João Paulo II.

Não queremos tratar aqui da questão do perdão, que é fundamental, mas


complexa. Nosso propósito é simplesmente reafirmar que se não
compreendermos a importância do j perdão e não o interamos em nossos
relacionamentos com os outros jamais chegaremos à liberdade interior e
seremos \ sempre prisioneiros de nossos rancores.
Quando recusamos perdoar devido a um mal do qual fomos vítimas, o
que fazemos é somar um mal a outro mal e não resolver a questão.
Aumentamos a quantidade de mal no mundo e olhe que já temos males
suficientes. Como nos pede São Paulo, não nos deixemos vencer pelo mal,
mas vençamos o mal pelo bem49.
49. Rm 12,21

Vejamos como retirar certos obstáculos que fazem o perdão mais difícil
ou impossível.

Perdoar não é ser conivente com o mal

O que por vezes torna o perdão tão difícil é que pensamos de maneira
mais ou menos consciente que perdoar a tal pessoa que nos fez sofrer pode
lhe fazer pensar que ela não fez nada de mal e que isso seria chamar de
"bem" um mal, ser conivente com uma injustiça, o que é inaceitável.
No entanto, perdoar não é admitir um mal ou fazer de conta que é justo
o que na realidade não é. Isso seria, evidentemente, inaceitável: a verdade
existe e não pode ser injuriada. Perdoar significa: esta pessoa me fez um
mal e, apesar disso, não desejo condená-la, identificá-la com seu erro, nem
fazer justiça com minha própria conta. Deixo a Deus, o único que sonda os
rins50 e os corações e que julga com justiça51 a tarefa de pesar seus atos e
fazer justiça. Não quero tomar a mim mesmo esta tarefa por demais difícil
e delicada que pertence tão somente a Deus. Ademais, não quero aprisionar
quem me fere em um julgamento definitivo e sem apelação, mas quero
preservar meu olhar de esperança sobre ele. Creio que algo pode mudar e
evoluir nele e continuo a desejar o seu bem. Creio também que, do mal que
me foi feito, ainda que pareça irremediável no plano humano, Deus pode
tirar um bem... Só nos é possível perdoar verdadeiramente porque Cristo
ressuscitou dentre os mortos e esta ressurreição é a garantia de que Deus
pode curar todo mal.
50. Ap 2,23
51. 1 Pd 2,23

A prisão do rancor

Devemos também compreender que, quando perdoamos a alguém, se,


em dado sentido, fazemos o bem a esta pessoa (quitando-lhe uma dívida),
fazemos um bem maior a nós mesmos: reencontramos uma liberdade que o
rancor, o ressentimento nos faziam correr o risco de perder.
Nossa liberdade pode, por vezes, ser alienada por laços afetivos
demasiadamente fortes, por uma dependência com relação a uma pessoa
que amamos demasiadamente (e mal) e que se torna para nós indispensável
a ponto de nos fazer perder uma parte de nossa autonomia.
Tanto quanto a dependência afetiva, a recusa de perdoar nos liga à
pessoa com quem estamos magoados e aliena nossa liberdade. Tornamo-
nos, então, tão dependentes das pessoas que detestamos quanto daquelas
que amamos de forma exagerada. Quando guardamos rancor para com uma
pessoa, pensamos nela todo o tempo e somos habitados por sentimentos
negativos que roubam uma grande parte de nossa energia. Investimos tudo
no relacionamento e isso não nos deixa psicológica e espiritualmente
disponíveis para viver o que precisamos viver. O rancor rouba as forças
vivas da pessoa magoada e lhe faz muito mal. Quando alguém nos fez
sofrer, nossa tendência espontânea é guardar ciosamente conosco a
recordação do mal sofrido como uma "fatura" a ser cobrada no momento
devido*e assim acertar as contas e fazer o outro pagar o que nos deve. O
que não percebemos é que estas faturas acumuladas acabam por aprisionar
nossa própria vida. É mais sábio perdoar toda dívida, como nos convida o
Evangelho. Em troca, tudo nos será perdoado e nosso coração será livre.
Todos nós já experimentamos, também, que o fato de alimentar
ressentimento para com uma pessoa faz-nos perder nossa objetividade com
relação a ela. Só conseguimos enxergar seus pontos negativos e nos
fechamos completamente ao que ela nos poderia trazer dê positivo apesar
daquilo que nela nos fez sofrer.

A medida que usardes para os outros será usada para vós

Uma das passagens acerca do perdão mais belas do Evangelho é o texto


de Lc 6,27-38. Vale a pena reler uma parte, pois é um texto fundamental
que deve guiar-nos em nossas atitudes com relação aos outros:
Amai vossos inimigos, tratai bem os que vos odeiam; bendizei os que
vos maldizem, rezai pelos que vos injuriam. A quem te bater numa face,
oferece-lhe também a outra, a quem te tirar o manto não lhe negues a
túnica, ao que te pede, dá; ao que te tira algo, não o reclames. Como
quereis que os homens vos tratem, tratai vós a eles. Se amais os que vos
amam, que mérito tendes? Também os pecadores amam seus amigos. Se
fazeis o bem aos que vos fazem o bem, que mérito tendes? Também os
pecadores fazem isso. Se emprestais quando esperais cobrar, que mérito
tendes? Também os pecadores emprestam para recuperar outro tanto.
Antes, amai vossos inimigos, fazei o bem sem esperar nada em troca. Assim
vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo que é generoso
com ingratos e maus. Sede compassivos como vosso Pai é compassivo. Não
julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados.
Perdoai e vos perdoarão. Dai e vos darão; recebereis uma medida
generosa, calcada, sacudida e transbordante. A medida que usardes será
usada para vós.
Estas palavras são muito exigentes, mas devemos entender esta
exigência como um magnífico presente que Deus nos quer dar. Deus dá o
que ele ordena e este texto contém em detalhe a promessa de que Deus
pode transformar nosso coração ao ponto de nos tornar capazes de amar
com um amor tão grande, tão gratuito, tão desinteressado quanto o seu.
Deus quer nos dar a graça de perdoar como ele, pois Deus nunca é tanto
Deus quanto quando ele perdoa.
- Poder-se-ia dizer que todo o mistério da redenção em Cristo por sua
encarnação, morte e ressurreição consiste nesta troca maravilhosa: no
coração de Cristo, Deus nos amou de forma humana a fim de tornar nossos
corações de homens aptos a amar divinamente. Deus se fez homem para
que o homem se torne Deus, isto é, como só Deus é capaz de amar, com a
pureza, a intensidade, a força, a ternura, a paciência infatigável próprias do
amor divino52. É uma extraordinária esperança e uma grande consolação
saber que, em virtude do trabalho da graça divina em nós (se permane-
cemos abertos a ela e perseveramos na fé, na oração, nos sacramentos), o
Espírito Santo transformará e dilatará nossos corações a ponto de fazê-los
um dia capazes de amar como Deus ama.
52. Citemos este belo texto de São João da Cruz sobre as “qualidades” do amor
Divino que a alma pode experimentar quando é transformada em amor e unida a
Deus: “De fato, quando uma pessoa ama e faz bem a outra, age segundo a sua
própria condição e natureza: desde modo, teu Esposo, estando em ti como quem
é, assim te faz suas mercês. Sendo onipotente, ama-te e faz bem a ti com
onipotência; sendo sábio, sentes que te faz bem e ama com sabedoria; por ser
infinitamente bom, sentes que te ama com bondade; sendo santo, sentes que te
ama e te agracia com santidade: sendo justo, sentes que e ama e faz mercês com
justiça. Por ser misericordioso, piedoso e clemente, sentes sua misericórdia,
piedade e clemência; sendo ele forte, sublime, e delicado em seu divino ser,
sentes que te ama com força, elevação e delicadeza. Como é simples e puro,
sentes com pureza e simplicidade te ama; como é verdadeiro sentes que te ama
com verdade. Sendo liberal, conheces que te ama e beneficia com liberalidade
sem interesse algum, só para fazer-te bem; como é a virtude da suma humildade,
com suma humildade e com suma estimação te ama, chegando a iguarlar-te com
ele e revelar-se a ti nestas vias do conhecimento do seu divino ser; e o faz
alegremente, com a sua face cheia de graças, dizendo-te nesta união de seu amor,
não sem grande júbilo teu: eu sou teu e para ti, e gosto de ser tal qual sou para
ser teu e dar-me a ti". Chama Viva. 3.6

A passagem do Evangelho que acabamos de ler contém uma das leis


fundamentais da vida espiritual (em uma palavra, da vida humana!): A
medida que usardes para os outros será usada para vós. Uma interpretação
superficial diria o seguinte: Deus recompensará largamente aqueles que são
generosos quanto ao amor e ao perdão e recompensará pouco os que são
mesquinhos para com seu próximo.
Este versículo, entretanto, tem uru sentido mais profundo que o de uma
punição ou uma recompensa da parte de Deus em função de nossas
atitudes. Na verdade, Deus não castiga, é o homem que pune a si mesmo.
Este versículo enuncia simplesmente uma "lei" imanente à existência hu-
mana: aquele que se recusa a perdoar, que recusa amar será, cedo ou tarde,
ele mesmo, a infeliz vítima de sua falta de amor. O mal que fazemos ou
desejamos aos outros acabará sempre por retornar a nós. Quem tem uma
atitude mesquinha para com o seu próximo será ele mesmo vítima desta
mesquinhez.
Ao aprisionar o outro em um julgamento, no desprezo, rejeição, rancor,
é a mim que me aprisiono em uma rede que acabará por me sufocar. As
aspirações mais profundas que trago em mim: aspiração ao absoluto, ao
infinito, se estancarão diante de barreiras intransponíveis e não se realiza-
rão. Pela falta de misericórdia para com outrem, eu me fecho em um
mundo estreito, um mundo de cálculos e de interesses no qual eu mesmo
me sufocarei. Basta um pouco de lucidez e realismo para constatar esta lei
e sua característica implacável: Dali não sairás antes de teres pago até o
último centavo53.
53. Mt 5,25

O perdão nos faz sair desta maldição. Pela remissão de todo débito, ele
torna de novo possível um relacionamento baseado sobre a gratuidade, o
que é indispensável para que exista o amor autêntico, imprescindível para
que tenhamos a vida verdadeira.
Quando não "estamos bem" em nosso coração, frequentemente a única
razão é a seguinte: nosso coração tem disposições mesquinhas com relação
ao próximo e recusa-se a amar e a perdoar com generosidade. A generosi-
dade no amor e no perdão, a benevolência quanto ao julgamento, a
misericórdia fazem de nós "filhos do Altíssimo" e nos fazem navegar em
um universo de gratuidade, nos oceanos ilimitados do amor e da vida
divina, no qual as aspirações mais profundas de nosso próprio coração
serão um dia realizadas. Se tu amas teu próximo, diz-nos Isaías: então tua
luz brilhará como a aurora, tua ferida se curará rapidamente... tu serás
como um jardim bem irrigado, uma fonte borbulhante cujas águas jamais se
extinguem54.
54. Is 58,10

O benefício a ser tirado das faltas dos outros

No campo das faltas e imperfeições de nossos próximos, como no caso


das outras contrariedades, é bom ter em conta que "não há nada no mal
além do mal": os comportamentos discutíveis dos que convivem conosco e
que nos causam sofrimentos não são somente negativos, mas trazem
vantagens certas!
Temos uma tendência fortemente enraizada a procurar no
relacionamento com o outro aquilo que pode suprir nossas carências,
especialmente as de nossa infância. As imperfeições dos outros, as
decepções que nos causam obrigam-nos a nos esforçarmos por amá-los
com um amor verdadeiro e estabelecer com eles uma relação que não fique
fechada na busca inconsciente de satisfação de nossas próprias
necessidades, mas tende a tornar-se puro e desinteressado como o próprio
amor divino: Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito55.
55. Mt 5,48

Elas nos ajudam também a não esperar deles uma felicidade, uma
plenitude e uma realização que só podemos encontrar em Deus e nos
convidam a nos "enraizarmos" nele. É, por vezes, graças a uma decepção
no relacionamento com alguém de quem esperávamos muito (sem dúvida,
esperávamos demais...) que aprendemos a mergulhar na oração, no
relacionamento com Deus e a esperar dele esta plenitude, esta paz e esta
segurança que somente seu amor infinito nos pode garantir. As decepções
com relação ao outros nos fazem passar de um ardor “idolátrico" (um amor
que espera demasiadamente do outro) a um amor realista, livre e, portanto,
feliz. O amor romântico será sempre ameaçado por decepções; a caridade,
jamais, pois ela não busca seu próprio interesse56.
56. 1 Cor 13,5

O pecado dos outros não tira nada de mim

Uma das maiores dificuldades que temos de perdoar vem do seguinte


fato: temos o sentimento de que, devido a um acontecimento doloroso, ou
ao comportamento negativo de uma pessoa envolvida em nossa história
pessoal, fomos ou ainda somos privados de algo que consideramos impor-
tante, vital. Nosso rancor é frequentemente alimentado por este sentimento
difuso de ter sido privado, devido ao erro de alguém, de bens que nos
seriam necessários. Pode-se tratar de bens materiais, afetivos, morais (não
recebi o amor ao qual tinha direito, a estima que me era necessária, etc.) ou
bens espirituais (por causa daquela autoridade de minha comunidade e de
seu comportamento, não posso me desenvolver espiritualmente...).
Para estar pronto a perdoar, viver pacificamente e sem ressentimento
mesmo quando os que convivem conosco são causa de sofrimento para nós
com seus comportamentos decepcionantes, é necessário ter consciência de
algo importante: o sentimento de .frustração descrito há pouco precisa ser
radicalmente reavaliado, pois não corresponde â realidade. Devo-me deixar
renovarem minha mentalidade e meu julgamento para chegar a
compreender quais são os verdadeiros bens e perceber assim que em
verdade o pecado dos outros, o mal que deles provém não me priva de
nada. Não tenho, portanto, nenhuma razão válida para lhes querer mal.
Naturalmente, os outros podem me privar de muitas coisas, no plano
material e humano. Mas não podem me privar do essencial, do único bem
verdadeiro e definitivo: o amor que Deus me dá e aquele que posso dar-lhe
e a felicidade que disso resulta. Ninguém poderá jamais mó privar da
possibilidade que tenho de crer em Deus, de esperar nele, de amá-lo em
todo lugar e toda circunstância. Ninguém poderá jamais me tirar este bem
essencial e verdadeiro e, assim, tirar de mim o que há de mais profundo e
definitivo. Pois é essencialmente através do exercício da fé, da esperança,
do amor que o homem se constrói. Todo o resto é secundário e relativo e
dele podemos ser privados sem que isso seja um mal absoluto. Existe em
nós algo de indestrutível que é garantido pela fidelidade e amor de Deus: O
Senhor é meu pastor, nada me falta... Ainda que eu caminhe por vales
escuros, nada temo: tu vais comigo. Tua vara e teu cajado me sossegam57.
57. Sl 22

Ao invés de perdermos nosso tempo e desperdiçar nossa energia a


acusar os outros do que não vai bem na nossa vida, a reprová-los por aquilo
de que acreditamos que eles nos privam, é preciso nos esforçar para
adquirir uma autonomia espiritual aprofundando nosso relacionamento
pessoal com Deus, única e inesgotável fonte de todo bem e crescendo na fé,
na esperança e no amor desinteressado. Devo convencer-me uma vez por
todas de que o fato de que os outros são pecadores não me impede de
tornar-me santo, que ninguém me priva de nada e que no crepúsculo de mi-
nha vida, diante de Deus (que não me deixa jamais faltar o que me é
necessário para crescer espiritual e humanamente) seria infantilidade acusar
os outros de minha falta de progresso espiritual.

A armadilha da imobilização

Em alguns momentos de combate, quando estamos particularmente


preocupados com coisas que não vão bem ao nosso redor, na nossa
comunidade, nossa família, nosso meio eclesial e por causa disso somos
tentados a nos desencorajar e baixar os braços é preciso nos dizer que não
importa o que aconteça, sejam quais forem os erros e faltas cometidas, isso
não tira, rigorosamente, nada de nós. Ainda que eu suponha que vivo em
meio a pessoas que cometem pecados mortais do amanhecer ao anoitecer,
isso não pode me impedir de amar o Senhor e servir meu próximo, nem me
privar de nenhum bem espiritual, nem me impedir de tender à plenitude do
amor. O mundo poder-se-ia desmoronar em torno de mim e isso não me
retiraria a possibilidade de orar, de colocar minha esperança em Deus e de
amar.
Não digo que seja preciso nos fecharmos em uma torre de marfim e nos
tornarmos completamente indiferentes ao que se passa ao nosso redor, ou
ficarmos sempre passivos. Quando há problemas em nosso meio, devemos
com certeza desejar que se resolvam e discernir o que Deus nos pede: devo
ou não intervir? Tenho a possibilidade real e concreta de fazer alguma
coisa? Se a resposta for sim, seria um pecado de omissão nada fazer.
Mas digo que é absolutamente necessário, mesmo se tudo parecer ir mal
ao nosso redor, preservar esta liberdade de continuar a esperar em Deus e a
servi-lo com alegria e entusiasmo. Na verdade, o demônio procura
frequentemente nos desencorajar, nos imobilizar, fazer-nos perder nossa
alegria de servir o Senhor e um dos meios privilegiados que ele utiliza para
isso é fazer-nos inquietos com relação a tudo o que acontece ao nosso
redor.
Suponhamos que eu faça parte de uma comunidade: o demônio, para me
fazer perder todo o dinamismo e energia espiritual providenciará para que
eu perceba uma multidão de coisas negativas em minha comunidade, as
atitudes injustas das autoridades ou dos irmãos e irmãs, seus erros, suas
faltas de fervor, suas faltas por vezes graves, etc. Isso fará cair sobre mim
um peso de inquietação, de insegurança, de tristeza, de desencorajamento
que pouco a pouco me fará perder meu élan espiritual: para que me esforçar
para rezar e para ser generoso com tantos problemas em minha
comunidade? E em breve nos teremos tornado mornos...
É preciso discernir esta tentação e a ela reagir dizendo: não importa o
que se passe, não tenho nada a perder. Devo manter meu fervor, continuar a
amar a Deus, a rezar com todo o meu coração e a amar as pessoas com
quem eu vivo, ainda que eu não saiba o que acontecerá a partir desta
situação. Não perderei meu tempo nem vou me enganar se tentar continuar
amar a cada dia. Este amor jamais será em vão. "Onde não há amor, ponha
amor e colherás amor", diz São João da Cruz58.
58. Carta a Madre Maria da Encarnação Epistolário 47, Obras Completas de São
João da Cruz - p. 982 -Ed. 1998.

Ao contrário, se me entristeço e perco meu fervor por causa dos


problemas que me circundam, não resolvo nada. Só conseguirei juntar um
mal a outro mal. Se o pecado que me circunda me conduz à inquietação e
ao desencorajamento, só faço acelerar a propagação do mal. Só podemos
vencer o mal pelo bem e só podemos frear a difusão do pecado pelo fervor,
a alegria e a esperança, fazendo hoje o bem que está ao nosso alcance, sem
nos preocuparmos com o que acontecerá amanhã.

O verdadeiro mal não está fora de nós, mas em nós

Uma outra coisa a nos dizermos nestes momentos de combate é que a


conversão com que devemos nos preocupar não é a dos outros, mas a
nossa. Não temos chance de ver a conversão do próximo se antes não nos
dedicarmos intensamente à nossa própria conversão. O que se segue é
muito realista e encorajador: tenho muito pouco domínio sobre a vontade
dos outros, minhas tentativas de mudá-los têm raras chances de sucesso.
Ainda mais que, na maior parte do tempo, queremos que os outros mudem
segundo critérios e prazos que provêm mais dos nossos pontos de vista
humanos que dos desígnios divinos. Se eu me ocupo prioritariamente de
minha própria conversão, parto da esperança de que as coisas deem certo.
Vale mais procurar reformar seu coração que reformar o mundo ou a Igreja.
Será mais fecundo para todos.
Para encorajar o leitor nesta linha de conduta, gostaria de propor uma
reflexão a partir da seguinte pergunta: Em que medida o mal que me
circunda pode me atingir? Peço perdão àqueles que eu possa escandalizar,
mas creio dever afirmar o seguinte: o mal que me cerca (o pecado dos ou-
tros, da Igreja e da sociedade) não me atinge, não se torna um mal para
mim a não ser que encontre em mim uma certa cumplicidade, a não ser que
seja eu que o deixe penetrar em meu coração.
É normal que o mal que me cerca me faça sofrer: não se trata de isolar-
se ou tornar-se indiferente, muito pelo contrário. Quanto mais somos
santos, mais sofremos por causa do mal e do pecado que existem no
mundo. No entanto, o mal exterior não me faz mal a não ser na medida em
que eu reajo a ele de forma inadequada: pelo medo, pela inquietação, pelo
desencorajamento, pela tristeza, pela desistência de lutar, pela agitação em
encontrar soluções precipitadas que nada resolvem, pelo julgamento, por
alimentar amarguras e rancores, por recusar perdoar, etc. Como diz Jesus
no Evangelho de São Marcos: Não há nada fora do homem que, ao entrar
nele, possa contaminá-lo. O que sai do homem é que contamina o
homem59. O mal não provém das circunstâncias exteriores, mas da maneira
interior como reagimos a ele. "O que arruína nossas almas não é o que se
passa fora, mas o eco que isso suscita em nós”60. Podemos, então, afirmar
que em verdade o mal que me fazem os outros não vem deles, mas de mim.
Ninguém é jamais ferido a não ser por si mesmo, já diziam os padres da
Igreja.
59. Mc 7,14
60, Du bon usage des crises, Christiane Singered.Albin Michel, p. 102.

Nossas cumplicidades reforçam o mal

Devemos pedir ao Senhor a graça de nos esclarecer sobre todas estas


cumplicidades secretas com o mal (especialmente no campo da palavra!)
pelas quais, longe de o resolvermos, fazemo-lo crescer.
Quando fixamos demasiadamente nossa atenção sobre o que não
caminha bem, quando fazemos disso um tema privilegiado de nossas
conversas, quando nos lamentamos de problemas e nos inquietamos com
eles, acabamos por dar ao mal maior consistência do que ele na realidade
tem. Há, por vezes, uma maneira de deplorar o mal que só faz reforçá-lo.
Recentemente ouvi um padre dizer: "Não vou passar minha vida a
denunciar o pecado, pois isso seria dar-lhe demasiada importância. Prefiro
encorajar o bem a condenar o mal.” Creio que ele tem razão.
A atitude preconizada aqui não é a do avestruz que recusa encarar a
realidade frente a frente, nem uma recusa à ação, mas é aquele otimismo
próprio da caridade, do amor desinteressado que permite mobilizar todas as
suas energias para o bem: O amor não se irrita, não guarda rancor, não se
alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo desculpa, tudo
crê, tudo espera, tudo suporta61.
61. 1 Cor 13,5s

Isso é verdadeiro no relacionamento consigo mesmo: avançamos de


maneira mais segura e eficaz ao nos doarmos profundamente ao bem de
que somos capazes apesar de nossas falhas que nos inquietando
exageradamente acerca delas. Além disso, favorecemos mais a conversão e
o progresso de uma pessoa através do encorajamento do que ele vive de
positivo do que apontando todos os seus erros. O bem tem mais
consistência e realidade do que o mal. Quando é desenvolvido é capaz de
triunfar sobre este último.
Ainda mais grave é a satisfação perniciosa que por vezes temos em
detectar e evidenciar o mal, como que para justificar nossos rancores e
amarguras. É uma maneira cômoda de descarregá-las sobre os que nos
cercam, enquanto sua verdadeira causa é o vazio espiritual que nos habita e
a insatisfação que o gera. Noto frequentemente que as pessoas mais críticas
são as que trazem em si mesmas o maior vazio espiritual. Acaba-se por se
perguntar se algumas pessoas (a exemplo de ideologias como o marxismo)
não têm necessidade de fabricarem para si inimigos a fim de justificarem
sua existência, tão grande é seu vazio interior.

O mal preenche o vazio de amor e de fé

Jesus foi mergulhado em um oceano de mal, de ódio, de violência, de


mentira. Seu coração foi ferido e transpassado. Ele sofreu mais que
qualquer homem jamais sofreu e, no entanto, não foi aprisionado pelo mal.
O mal não penetrou nele porque seu coração estava repleto de confiança
com relação ao Pai, repleto de abandono, de amorosa oferta. Devemos
seguir suas pegadas. Não havia pecado nem foi encontrado engano em sua
boca; injuriado não respondia com injúrias, padecendo não ameaçava 62. O
mesmo se pode dizer da Virgem Maria aos pés da cruz. Ela bebeu um
cálice de dor, mas seu coração permaneceu puro: nenhum traço de medo,
de revolta, de ódio, de desespero, mas somente aceitação, perdão,
esperança.
62. 1 Cor 13,5s

Se o mal penetra em nosso coração é porque encontra um lugar onde se


alojar, uma cumplicidade. Se o sofrimento nos faz amargos e maldosos é
porque nosso coração está vazio: vazio de fé, de esperança e de amor. Se,
pelo contrário, nosso coração for habitado por uma confiança total em
Deus, se ele tudo espera de sua bondade e fidelidade, se o objetivo de nossa
vida não é a busca de nós mesmos, mas de fazer a vontade de Deus, de
amá-lo com todo o nosso coração e amar o nosso próximo como a nós
mesmos, então o mal não pode penetrá-lo de modo nenhum. O sofrimento,
sim. O mal, não.
Pe. Kolbe foi morto em Auschwitz no bunker da fome, e seu coração
permaneceu puro e intacto naquele inferno porque, filialmente abandonado
à Imaculada, não queria mal a seus carrascos e aceitava entregar sua vida
por amor. Ele e seus companheiros foram mortos cantando o Magnificat
Venceram o mal pelo bem.
Esta capacidade de ser livre com relação ao mal não é, evidentemente,
imediata, mas fruto de uma longa conquista e, sobretudo, de um longo
trabalho da graça que nos faz crescer no exercício das virtudes teologais.
Ela é um aspecto da maturidade espiritual e, sem dúvida, antes de tudo um
dom de Deus que um fruto de nossos esforços. Este dom nos será dado tão
mais rápida e certamente quanto o desejarmos e buscarmos ter atitudes que
evocamos anteriormente.
Se nos fixamos em Deus pela fé e pela oração, se cessamos de culpar
tudo em torno de nós pelo que não caminha bem em nossa vida e de nos
considerarmos vítima dos outros ou das circunstâncias, se assumimos de
maneira decidida nossa própria responsabilidade e aceitamos nossa vida tal
qual ela é, se utilizamos a todo instante nossa capacidade de crer, de
esperar, de amar, se nos determinamos a conquistar esta liberdade que
acabamos de descrever, ela nos será progressivamente dada.
A liberdade real dos filhos de Deus

Por ocasião de seu Batismo, o cristão recebe uma unção de óleo


perfumado que é o sinal de sua nova condição: por sua união ao Cristo ele é
agora Sacerdote, Profeta e Rei. Qual é o sentido desta realeza da qual ele é
revestido? Ele é rei porque é filho e herdeiro do Rei do Céu e da Terra. Mas
ele o é também no sentido de não ser submisso a nada e que tudo lhe é
submisso, o que é próprio do rei. Tudo o que dissemos até agora acontece
para aquele que deixa desenvolver em si a graça do Batismo, isto é, que
vive como filho de Deus, que vive na fé, na esperança e no amor. Ele tem
sofrimentos e misérias, mas não está submisso a nada, não é mais
dependente de circunstâncias felizes ou infelizes. Para ele não existem mais
acontecimentos negativos, mas, na verdade, tudo o que acontece no mundo
está a seu serviço, em benefício de seu crescimento no amor e na condição
de filho de Deus. Os acontecimentos, as contingências boas ou más, o
comportamento dos outros não podem afetá-lo negativamente. Podem
unicamente promover seu verdadeiro bem, que é amar.
Este sentimento de liberdade real, privilégio daquele que vive nos
braços do Pai, é expresso por São Paulo: Tudo é vosso. A isso, ele
acrescenta com exatidão: mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus.
Encontramos também uma bela expressão na oração da alma inflamada de
amor de São João da Cruz: "Por que te inquietas? Por que esperas? Podes
amar a Deus desde agora em teu coração. O céu é meu, a terra é minha, são
meus os povos e os justos são meus e meus os pecadores; as coisas são
minhas e o próprio Deus é meu e para mim porque o Cristo é meu e todo
para mim. Que pedes e que procuras, então, alma minha, se tudo é teu e
para ti"63.
63. Obras completas, São João da Cruz, Desclée de Brouwer, p. 979

Capítulo 1
O INSTANTE PRESENTE

Liberdade e instante presente

Uma das condições mais necessárias para conquistar a liberdade interior


é a capacidade de viver o instante presente. Gostaríamos, agora, de
desenvolver este tema que é absolutamente fundamental.
Não podemos exercer verdadeiramente nossa liberdade a não ser no
instante presente. Não temos nenhum meio de agir sobre nosso passado,
não podemos mudar absolutamente nada dele. Todas as cenas imaginárias
através das quais tentamos algumas vezes reviver um acontecimento
passado que lamentamos e consideramos um fracasso (deveria ter feito isso
ou aquilo...) são apenas vento: não é possível reconstruir o curso do tempo.
O único ato de liberdade que podemos fazer quanto ao nosso passado é
aceitá-lo tal qual ele é e entregá-lo a Deus com confiança.
Sobre o futuro, temos muito pouco controle. Sabemos muito bem que,
não importa quais sejam nossas previsões, planos e seguranças, basta um
pequeno acontecimento para que nada aconteça conforme o previste. Não
podemos verdadeiramente programar nossa vida. Tudo o que podemos
fazer é acolher um instante após o outro.
A única coisa que nos pertence, afinal de contas, é o momento presente.
É o único lugar onde podemos, de fato, agir livremente. Só temos o instante
presente para estarmos em contato com o real.
Podemos viver de maneira trágica a característica fugaz do instante
presente e o fato de que nem o passado nem o futuro nos pertencem
verdadeiramente. Mas se nos situamos em uma perspectiva de fé e de
esperança cristã, o instante presente se nos revela como rico de uma graça e
conforto imensos.
O instante presente é, acima de tudo, o momento da presença de Deus:
Estarei convosco todos os dias até o fim dos íempos64. Deus é o eterno
presente. Devemos estar convencidos de que cada instante, não importa
qual seja, está pleno da presença de Deus, rico de uma possibilidade de
comunhão com Deus. Não nos comunicamos com Deus no passado nem no
futuro, mas na acolhida de cada instante como o lugar de sua presença, o
lugar em que ele se dá a nós. Cada segundo é um momento de comunhão
com a eternidade, contém, de certa forma, a eternidade.
64. Mt 28,30
Ao invés de estarmos constantemente projetados no passado ou no
futuro, é preciso aprender a viver cada momento como algo completo,
como plenitude de existência, porque Deus está presente nele e, se Deus
está presente, não preciso de nada. Nosso sentimento de vazio, de frustra-
ção, nossa impressão de que nos falta alguma coisa com frequência vem
simplesmente do fato de que vivemos no passado (pelos arrependimentos e
decepções) ou no futuro (pelos medos ou expectativas vãs) ao invés de
habitar cada segundo acolhendo-o tal como ele é, rico da presença de Deus
e que, se o acolhemos com fé, nos fortifica e alimenta. Como diz o Salmo
145: Os olhos de todos estão te aguardando: tu lhes dás o alimento a seu
tempo; tu abres as mãos e sacias de favores todos os viventes.
Em uma perspectiva cristã, há um aspecto muito libertador nesta
compreensão da graça do instante presente. Mesmo se meu passado foi um
total desastre, mesmo se meu futuro parece obstruído, neste momento eu
posso me estabelecer, por um ato de fé, de confiança, de abandono, em
comunhão com Deus. Deus eternamente presente, eternamente jovem,
eternamente novo, a quem pertencem meu passado e meu futuro e que tudo
pode perdoar, tudo purificar, tudo renovar. Ele te renovará por seu amor65.
No instante presente, por causa deste amor infinitamente misericordioso
com o qual o Pai me ama, tenho sempre a possibilidade de recomeçar do
zero sem que o passado, ainda que tenha sido lastimável, seja um
impedimento, nem que o futuro, ainda que obscuro, me atormente.
65. Sof 3,17

Meu passado está nas mãos da Misericórdia divina, que pode tirar
proveito de tudo, tanto do bem quanto do mal, e meu futuro, nas mãos da
Providência, que de modo nenhum me esquecerá. Esta atitude de fé é
extremamente preciosa, pois nos faz evitar viver como muitos que vivem
uma insatisfação permanente porque se sentem "comprimidos" entre um
passado que lhes pesa e um futuro que os inquieta. Pelo contrário, viver o
instante presente dilata o coração.

Capítulo 2

O VERBO AMAR SÓ SE CONJUGA NO PRESENTE


Nos tratados de espiritualidade, fala-se das etapas da vida espiritual: os
graus da escala de virtudes; os degraus da escada de perfeição... e se
enumeram três, sete, doze ou outros estágios, segundo os autores..Há muito
a aprender, certamente, nestas considerações, seja na descrição das sete
moradas da alma de Teresa de Ávila ou dos doze degraus da humildade da
regra de São Bento.
Mas a experiência me ensinou a ver as coisas também de outra forma;
sempre dizendo que a escada da perfeição só tem, na realidade, um degrau:
aquele que eu subo hoje. Sem me preocupar com o passado ou com o
futuro, hoje eu me decido a crer, hoje me determino a colocar toda minha
confiança em Deus, hoje escolho amar a Deus e a meu próximo. E qualquer
que seja o resultado de minhas boas resoluções, sucesso ou fracasso, no dia
seguinte, um novo "hoje" me é dado pela paciência divina, eu recomeço. E
assim por diante, indefinidamente, sem procurar medir meu progresso ou
saber em que grau estou. Sem me desencorajar com meus revezes, sem me
prevalecer de minhas conquistas, sem contar com minhas próprias forças,
mas somente com a fidelidade do Senhor.
Esta atitude fundamental da vida espiritual é descrita por São Paulo:
Esquecendo o que fica para trás, esforço-me pelo que está à frente e cerro
para a meta, para o premio ao qual Deus me chamou do alto... Não
importa o ponto a que chegamos, caminhamos sempre na mesma direção66.
É um aspecto fundamental da espiritualidade monástica. Santo Antonio do
Egito, o pai dos monges (morto aos cento e cinco anos e que, aos cento e
cinco anos dizia: não comecei, ainda, minha conversão) segundo seu
biógrafo Santo Atanásio, repetia sem cessar a palavra de são Paulo citada
acima. Conta-nos ainda que "ele se recordava também da palavra de Elias:
Hoje me coloco de pé diante do Senhor que vive. Ele não levava em conta
o tempo passado. Assim, como se ele estivesse sempre no começo, a cada
dia esforçava-se para apresentar-se de forma apropriada diante de Deus;
puro de coração e pronto a obedecer à sua vontade e a nenhuma outra"67.
Esta atitude foi colocada em prática por todos os santos e dela santa
Teresinha é um exemplo luminoso: "Para amar-te, ó Jesus, tenho apenas
hoje..."68.
66. Fil 3,13-16
67. Vida de Santo Antonio, por Santo Atanásio de Alexandria,
68. Poesia PN5
Capitulo 3

SÓ É POSSÍVEL SOFRER POR UM INSTANTE

Este esforço para viver cada instante como ele é, abandonando tanto o
passado quanto o futuro nas mãos da doce piedade de Deus, segundo a
expressão de Bernanos, é importante sobretudo nos momentos de
sofrimento. Enferma, Santa Teresinha de Lisieux dizia: "Eu só sofro um
instante. O desencorajamento e o desespero vêm ao pensarmos no passado
e no futuro"69.
69. Caderno Amarelo, 19 de agosto

Não se pode sofrer a vida inteira, pode-se sofrer apenas um instante


após o outro. Ninguém tem a capacidade de sofrer durante dez ou vinte
anos. Mas tem a graça de levar hoje o sofrimento que me é apresentado
hoje. Aquilo que nos esmaga é, muito frequentemente, a projeção no
futuro. Não é o sofrimento, mas a representação que dele fazemos. "O
grande obstáculo é sempre a representação e não a realidade. Da realidade
nós nos encarregamos com todo o sofrimento, todas as dificuldades a ela
ligadas - encarregamo-nos dela, tomamo-la sobre os ombros e é ao tomá-la
que aumentamos a capacidade de suportá-la. Mas a representação do
sofrimento - que não é o sofrimento, pois este é fecundo e pode nos dar
preciosa vida - é preciso destruí-la. Ao destruirmos estas representações
que aprisionam a vida em suas grades, liberamos em nós mesmos a vida
real com todas as suas forças e nos tornamos capazes de suportar o
sofrimento real na nossa própria vida e na vida da humanidade"70.
70. Etty Hilleusm, op. cit. p. 230.

Uma das palavras mais cheias de sabedoria do Evangelho é a seguinte:


A cada dia basta seu sofrimento71. Tentemos acolher este ensinamento
fundamental de Jesus e não ajuntemos ao sofrimento de cada dia - que já é
bastante - o de ontem ou o de amanhã. Em geral, queixamo-nos dema-
siadamente do sofrimento sem nos darmos conta de que às vezes somos um
pouco masoquistas: como se o sofrimento de cada dia não fosse suficiente,
somamos a ele remorsos do passado e inquietudes quanto ao futuro! Não é
de se admirar que sejamos esmagados... Para que a vida se torne suportável
é fundamental exercitar-se a levar somente a dificuldade de cada dia
entregando o passado à Misericórdia divina e o futuro à sua Providência.
71. Mt 6,14

Permitimos ao passado pesar sobre o hoje cada vez que nos remoemos
em remorsos por causa de nossas faltas passadas, cada vez que ruminamos
nossos arrependimentos, nossos sentimentos de fracasso, cada vez que
tentamos remoer em vão as escolhas que fizemos no passado como se fosse
possível modificá-las. Naturalmente devemos pedir perdão a Deus por
nossas faltas e tirarmos lições dos fracassos, mas sem ficá-los remoendo
sem cessar. Uma vez que se faça isso com sinceridade já é suficiente.
Devemos tentar reparar, quando possível, o mal que ocasionamos, mas
na maior parte do tempo elevemos simplesmente nos colocar nas mãos de
Deus, confiantes de que ele é poderoso o suficiente para tudo reparar e para
tirar o bem mesmo de nossos erros. Mão se trata, evidentemente, de sermos
indiferentes ao mal que cometemos, nem de nos tornarmos superficiais e
irresponsáveis; trata-se de proibir de uma vez por todas atitudes,
pensamentos que nos impeçam de viver o instante presente e nele
investirmos de forma positiva e confiante. Isto acontece quando estamos
cheios de remorsos, de culpabilidade, quando ruminamos nossos fracassos
e nos deixamos invadir pelo desencorajamento por causa de erros passados.
Temos, por vezes, o sentimento de termos perdido muito tempo em
nossa vida, desperdiçado muitas ocasiões de amar e crescer. Se este
sentimento nos impulsiona a nos arrependermos e recomeçar com coragem
e confiança pedindo a Deus que nos dê a graça de recuperar o tempo
perdido através da renovação do nosso fervor, então, o sentimento é po-
sitivo. Mas se este sentimento nos abate, se nos dá a impressão de que
nossa vida foi irremediavelmente desperdiçada e que as coisas belas e
positivas que poderíamos ter vivido são-nos, agora, impossíveis de
remediar, então é preciso evitar tal sentimento.
Não temos o direito de nos deixar aprisionar em nosso passado. Seria
somar um outro pecado aos que já cometemos, além de ser falta de
confiança na misericórdia e poder infinitos de Deus, que nos ama e nos
quer dar sempre uma nova chance de chegarmos plenamente à santidade,
sem que o passado seja encarado como uma deficiência. Quando somos
tentados pelo desânimo com relação ao nosso passado e ao caminho que
percorremos, é preciso fazer um bom ato de fé e de esperança: "Eu te
agradeço, meu Deus, por todo o meu passado. Creio firmemente que de
tudo o que vivi tu poderás tirar um bem. Desejo não ter nenhum remorso e
decido, hoje, recomeçar do zero com exatamente a mesma confiança que
teria se toda a minha história passada fosse feita somente de fidelidade e de
santidade". Nada poderia agradar mais a Deus que esta atitude.

Capitulo 4

O DIA DE AMANHÃ CUIDARÁ DE SI MESMO

Ao peso do dia de hoje temos a tendência de somar o peso do passado,


como acabamos de falar, mas, além desse, por vezes somamos também o
peso do futuro. O remédio para esta atitude é meditar (e pedir a Deus a
graça de viver) o ensinamento do Evangelho sobre o abandono à Pro-
vidência: Por isso vos recomendo que não andeis angustiados pela comida
e bebida para conservara vida ou pela roupa para cobrir o corpo. Não
vale mais a vida do que o sustento, o corpo mais do que a roupa? Observai
as aves do céu: não semeiam nem colhem nem ajuntam em celeiros e, no
entanto, vosso Pai do céu as sustenta. Não valeis vós mais do que elas?
Quem de vós pode, à força de se preocupar, prolongar um pouco a vida?...
Não vos angustieis, pensando: o que comeremos, o que beberemos, o que
vestiremos72.
72. Mt 6,24-35

Não se trata de nos tornarmos irresponsáveis e imprudentes. Temos a


obrigação de fazer projetos e pensar no amanhã. Mas é preciso que o
façamos sem inquietação, sem aquela preocupação que aperta o coração,
que não resolve nada e que nos impede tão frequentemente de estarmos
disponíveis para o que precisamos viver no momento presente. É preciso
guardar-se dependurar no dia presente, como um peso, as angústias que
nos inspirar o futuro73. O coração não pode estar empenhado, ao mesmo
tempo, na preocupação com o amanhã e na acolhida da graça do momento
presente. É uma coisa ou outra. Devemos, portanto, buscar o Reino, isto é,
comungar com a presença de Deus que nos é dada aqui e agora, na busca
amorosa e confiante da sua vontade para hoje e tudo o mais nos será dado
por acréscimo. Isso não significa, evidentemente, que não passaremos por
provações ou dificuldades no futuro. Mas, na medida em que elas se
apresentarem, teremos a graça de assumi-las.
73. Etty Hillesum, op. cit. p. 175

Estejamos certos: graça, como acontecia aos hebreus no deserto, não se


estoca. Não se pode fazer reservas de graça, só se pode acolhê-la no
presente, instante após instante. Ela faz parte daquele "pão de cada dia" que
pedimos na oração do Pai-Nosso. Não é porque hoje eu me sinta muito
fraco, que desmaie com uma simples injeção, que não terei a graça do
martírio se a isso for um dia chamado.
Para ser livre tanto em relação ao futuro como ao passado, devemos
imperativamente nos dedicar a um trabalho de reeducação de nossa
psicologia. O bom-senso tem algumas recomendações a este respeito, como
veremos.
Só muito raramente as coisas acontecem conforme o previsto. A maior
parte de nossos medos e apreensões é completamente imaginária, como
cada um de nós já pode muitas vezes constatar. Coisas que prevíamos como
difíceis revelam-se muito simples, enquanto apresentam-se
inesperadamente dificuldades que não havíamos previsto. A cor-
respondência entre nossa representação dos acontecimentos futuros e o que
verdadeiramente acontece é tão mínima que precisamos tomar grande
precaução com relação a nossas elaborações imaginárias. É melhor acolher
as coisas como se apresentam, uma depois da outra, com a confiança de
que, no momento oportuno, teremos a graça de que precisamos para vivê-
las do que imaginar uma multidão de situações que podem acontecer e
assim tentamos proteger com relação ao futuro. Tais previsões imaginárias,
na maior parte dos casos, se revelam totalmente inadequadas.
A melhor forma de preparar o futuro não é pensar nele sem cessar, mas
viver bem o instante presente. Jesus, no Evangelho, anuncia a seus
discípulos que eles poderão ser levados aos tribunais e recomenda: Tomai a
decisão de não preparar vossa defesa; eu vos darei uma eloquência e uma
prudência às quais nenhum adversário poderá resistir nem retrucar74.
74. Lc 21,12

A projeção no futuro e a representação fabricada por nossa imaginação


nos dissociam da realidade e nos impedem de bem vivê-la. Ela suga o
melhor de nossas energias. Citemos mais uma passagem do diário de Etty
Hillesum: Quando projetamos por antecipação nossas inquietações sobre o
futuro, impedimos que as coisas se desenvolvam organicamente. Trago em
mim uma imensa confiança. Não a certeza de ver a vida exterior correr
sempre bem para mim, mas a de continuar a aceitar a vida e considerá-la
boa, mesmo nos piores momentos75.
75. Etty Hillesum, op. cit. p. 169

O medo do sofrimento nos faz mais mal que o próprio sofrimento, como
já dissemos. Por isso, devemos nos esforçar por viver segundo o seguinte
pensamento: "É preciso eliminar, a cada dia, como se faz com as pulgas, os
milhares de pequenas preocupações que nos insiram os dias que virão e que
nos roubam nossas melhores forças criativas. Mentalmente, passamos a
tomar uma série de medidas com relação aos próximos dias e nada, mas
nada mesmo, acontece conforme previmos. A cada dia basta seu cuidado. É
preciso fazer o que temos a fazer e, quanto ao resto, evitar deixar-se
contaminar pelas mil pequenas angústias que acabam por ser moções de
desconfiança com relação a Deus. No final, tudo sempre dá certo... Nossa
única obrigação moral é encontrar em nós mesmos as vastas clareiras de
paz e uni-las umas às outras até que esta paz se irradie aos outros. Quanto
mais houver paz nas pessoas, mais haverá paz neste mundo em ebulição".

Capitulo 5

VIVER E EXPECTATIVA DE VIVER

Convém, portanto, não se projetar no futuro, mas "habitar" cada


momento e dele acolher sua graça específica, acolhendo-a como algo de
bom, independente de sua natureza, ainda que seja desagradável. É este o
melhor modo de preparar o momento seguinte. A vida presente é sempre
boa, pois o Criador nela colocou uma bênção que ele jamais retira, mesmo
se o pecado do homem complica as coisas. Diz- nos o livro do Genesis:
Deus viu que aquilo era bom. Para Deus, ver algo não é somente constatar
algo, mas conferir- lhe uma realidade. Esta bondade de base da existência
também é expressa por Jesus nas passagens sobre o abandono à
Providência que citamos: A vida não vale mais que o alimento e o corpo
mais que as vestes?76
76. Mt 6,25
O que projetamos no futuro nem sempre é a inquietação. Por vezes é a
expectativa de uma situação mais feliz. Pode tratar-se de um fato preciso:
reencontrar uma pessoa que amamos, voltar para casa após uma viagem
longa e cansativa... Pode também se tratar de uma espera que não tem um
objeto concreto, uma expectativa um pouco vaga, por vezes imaginária.
Espera-se de modo confuso o momento em que as coisas vão melhorar ou
em que as circunstâncias serão diferentes e nos permitirão viver coisas mais
interessantes: "No momento, não vivemos plenamente, mas mais tarde
(quando, afinal?) viveremos melhor".
Apesar de ser legítimo, este tipo de expectativa, precisa ou vaga,
esconde um certo perigo, ao qual precisamos estar atentos. Podemos passar
toda a nossa existência não a viver, mas na expectativa de viver! Não é, de
forma nenhuma, opcional "ajustar o foco" quanto a esta atitude psicológica.
Na verdade, ela nos distancia do real, da vida presente. O que vivo agora
não me satisfaz, tenho a esperança de que em alguns dias ou meses viverei
algo mais agradável e desde já me projeto nisso, desejando que o tempo
passe o mais rapidamente possível para, enfim, viver esta situação futura
que desejo.
Existe, nessa atitude, o risco de uma absoluta falta de adesão ao meu
viver atual. Quem me garante, além disso, que não serei decepcionado
quando chegar o momento que tanto espero? E, sobretudo, me arrisco a me
meter em uma situação tal que, na espera deste momento futuro em que
"tudo irá bem", deixo de usufruir o que tenho a viver no momento presente.
Não me lanço inteiramente no hoje e deixo de usufruir suas graças. É
preciso viver cada instante plenamente, sem nos ocuparmos com saber se o
tempo passa por demais lentamente ou depressa demais, acolhendo tudo o
que nos é dado, momento após momento.
Não nos esqueçamos, também, a fim de bem viver o quotidiano, que
Deus só nos pede uma coisa de cada vez. Nunca duas. E pouco importa se a
tarefa que tenho a executar pareça secundária (varrer a cozinha) ou
importante (uma conferência diante de quarenta mil pessoas). É preciso
fazê-la estando presente a ela, simplesmente, calmamente e não querer
resolver mais de um problema de cada vez. Mesmo quando me ocupo de
uma tarefa mínima, seria um erro fazê-la a toda pressa, dado à impressão de
perder meu tempo, para passar o mais rapidamente possível a uma
atividade considerada mais importante. No momento em que uma tarefa,
mesmo a mais banal, é necessária e faz parte da vida, merece ser
completada por ela mesma, isto é, estando plenamente presente.

Capitulo 6

A DISPONIBILIDADE AO OUTRO

A disponibilidade ao outro é fundamental no que concerne nossos


relacionamentos. Em cada encontro com alguém, independente da duração,
devo dar ao outro o sentimento de que estou disponível a cem por cento
para aquele momento de encontro, que não tenho nada mais a fazer e
nenhuma outra preocupação a não ser estar com ela, o tempo que for
necessário e não somente por educação, mas em uma verdadeira
disponibilidade de coração. Isso nos custa muito, pois temos um instinto
muito forte de propriedade com relação ao tempo e somos muito inseguros
quando não podemos dominá-lo de acordo com nossa vontade. Mas este é o
preço do amor verdadeiro. Se Jesus nos pede que não nos preocupemos
com nada é com muita compaixão e ternura, e principalmente para
salvaguardar a qualidade de nossos relacionamentos: um coração habitado
pela inquietude e a preocupação não está disponível ao outro nem pode fa-
zer de cada encontro um verdadeiro momento de comunhão, do qual se sai
com o coração saciado.
Isso é especialmente importante para os pais. Uma criança pode até
ultrapassar a ausência dos pais e não ficar reclamando sua presença sem
cessar, sob a condição de dispor regularmente de momentos com eles, nos
quais tenha a percepção de que seu papai ou sua mamãe não tem nenhuma
outra preocupação senão a de estar com ela. Se nos deixamos tomar pelas
inquietações ao invés de entregá-las a Deus, não poderemos oferecer esta
qualidade de presença e a criança ficará insegura quanto ao amor que lhe
temos, mesmo se a cobrimos dos presentes mais caros.
Se nos esforçarmos por viver desta forma e se aprofundamos nosso
relacionamento com Deus e vida de oração de maneira a perceber sua
presença em nós e a viver o mais possível cada coisa em comunhão com
esta presença que nos habita, faremos uma bela descoberta: o do tempo
interior, do ritmo da graça que conduz nossa vida ao nível mais profundo.
Poderíamos dizer que existem duas modalidades de tempo: o tempo da
cabeça e o do coração. O primeiro é o tempo psicológico, o tempo cerebral,
aquele que calculamos e dividimos em horas e dias que tentamos gerenciar
e programar. Este é o tempo que sempre nos falta e do qual nunca temos
uma quantidade suficiente, que passa ou muito depressa ou devagar
demais.
Porém, existe também um outro tempo, aquele que experimentamos em
certos momentos de felicidade ou de graça, mas que, no fundo, sempre
existe e no qual deveríamos aprender, pouco a pouco, a nos situar
permanentemente. Este tempo é o tempo de Deus, aquele dos ritmos
profundos da graça em nossa vida. Este tempo não é um tempo dividido,
fracionado. Ele é feito de uma sucessão de instantes que se encadeiam uns
com os outros, harmoniosa e pacifica- mente. Cada um desses instantes é
um todo em si mesmo e tem uma plenitude que o preenche e faz com que
nada falte, que ele seja suficiente, pois é pleno. E é pleno porque nele faço
o que tenho a fazer em comunhão com a vontade divina, em docilidade ao
Espírito Santo. Pleno da presença de Deus, pleno de nossa presença a Deus
ou de nossa presença a uma pessoa com quem vivemos um encontro, um
diálogo, uma partilha. Pleno de nossa presença a uma dada tarefa que
executamos com calma, nela colocando toda a nossa atenção e todo o nosso
coração.
Este tempo é comunhão com a eternidade. Não é um tempo que
programamos (só podemos viver neste tempo interior quando livres e
distanciados de nossas programações), mas um tempo que acolhemos.
Se estivéssemos sempre neste tempo, daríamos bem menos
oportunidade ao mal! O demônio se infiltra nos tempos vazios ou mal
vividos, seja porque recusamos determinada coisa ou porque procuramos
uma outra com avidez...
Creio que os santos descobriram este tempo interior e conseguiram
viver nele. Para isso, é necessária uma grande liberdade, um total
despojamento com relação a todo programa e toda vontade pessoal. É
preciso estar pronto a fazer no segundo seguinte o contrário do que
havíamos previsto e viver no mais total abandono, sem inquietação e sem
medo, não tendo nenhuma outra preocupação senão fazer a vontade divina,
estando plenamente disponível aos acontecimentos e pessoas. É preciso,
também, ter experimentado pela oração o que é a comunhão com a
presença de Deus em nós e a escuta interior do Espírito Santo para seguir
suas moções.
Quando vivemos de acordo com o tempo interior, fazemos a belíssima
experiência de perceber que nada é deixado ao acaso. Quando caminhamos
frequentemente na obscuridade e no desconhecido, pressentimos e
verificamos que nossa vida se desenrola segundo um ritmo que nos ul-
trapassa, o qual não dominamos, mas ao qual somos felizes de nos
abandonar, uma vez que nos leva muito além de nós mesmos. Nele todos os
acontecimentos são dispostos com infinita sabedoria.

Terceira parte

O DINAMISMO DA FÉ, DA ESPERANÇA E DO AMOR

As virtudes teologais

Em nossas reflexões precedentes, evocamos muitas vezes a importância


da fé, da esperança e do amor, a que chamamos, em linguagem clássica,
"virtudes teologais", isto é, virtudes que nos ligam a Deus. A afirmação
fundamental desse nosso livro é, de fato, a seguinte: podemos adquirir a
liberdade interior somente na medida em que desenvolvemos o exercício
concreto dessas virtudes.
Infelizmente, a palavra "virtude" perdeu muito de sua significação na
linguagem de hoje. Para compreendê-la bem é preciso ter em mente seu
sentido etimológico: em latim, “virtus” significa "força". A virtude teologal
de fé é a fé enquanto, para nós, força. A carta aos Romanos nos diz sobre
Abraão: Diante da promessa divina, ele não sucumbiu à dúvida, mas foi
fortificado pela fé e rendeu glória a Deus, plenamente convencido de que
Ele era poderoso o suficiente para cumpri-lo. 77__
77. Rm 4,20
Da mesma forma, a esperança teologal não é uma expectativa um pouco
vaga e longínqua, mas é a segurança na fidelidade de Deus que cumprirá
suas promessas, segurança que confere uma grande força. Quanto à
caridade teologal, podemos dizer que é a coragem para amar a Deus e ao
seu próximo.
Estas três virtudes teologais constituem o dinamismo essencial da vida
cristã. É fundamental compreender bem o seu papel e colocá-lo em
evidência, assim como centrar nelas - e não em outros aspectos
secundários, como por vezes acontece - toda a vida espiritual. A
maturidade do cristão é sua capacidade de viver da fé, da esperança e do
amor. O cristão não é aquele que adota esta ou aquela prática, que obedece
a uma lista de mandamentos e deveres. Antes de mais nada, é aquele que
crê em Deus, que tudo espera dele, que quer amá-lo de todo o seu coração e
deseja amar o seu próximo como Jesus o ama. Todas as prescrições da vida
cristã, a oração, os sacramentos, todas as graças que recebemos de Deus
(inclusive as experiências místicas mais sublimes) têm um só objetivo:
aumentar a fé, a esperança e o amor. Se não trazem este fruto, não servem
para absolutamente nada.
Nas cartas de são Paulo, de forma particular, o Novo Testamento traz à
luz o dinamismo da fé, da esperança e do amor como o coração da
existência cristã. Mencionamo-vos em nossas súplicas a Deus nosso Pai,
diz o Apóstolo aos cristãos da Tessalônica, recordamo-nos de vossa fé
ativa, vosso amor solícito e vossa esperança perseverante no nosso Senhor
Jesus Cristo78. No combate espiritual (tema tão caro a são Paulo) as armas
do cristão são essencialmente estas mesmas virtudes teologais:
permaneçamos sóbrios, revestidos com a couraça da fé e do amor, com o
capacete da esperança de salvação79.
78. 1Ts 1,3
79. 1Ts 5,8

Notemos que as virtudes teologais têm um papel fundamental na vida


espiritual porque são um lugar privilegiado de colaboração entre nossa
liberdade e a graça divina. Tudo o que existe de positivo e bom em nossa
vida vem da graça divina, da ação imerecida e gratuita do Santo Espírito
em nosso coração. Mas a graça não pode ser plenamente fecunda em nós
sem a cooperação de nossa liberdade. "Eu vos criei sem vós, mas não vos
salvarei sem vós", dizia o Senhor a santa Catarina de Sena.
As virtudes teologais são, assim, misteriosas, mas realmente um dom de
Deus e uma atividade do homem. A primeira citação da carta aos
Tessalonissences lida acima manifesta-o claramente. A fé é um dom
gratuito de Deus. Ninguém pode dizer "Jesus é o Senhor" sem que o
Espírito Santo lhe dê a graça para isso. Mas ela é, ao mesmo tempo, uma
decisão do homem, um ato de adesão voluntária à verdade proposta pelas
Escrituras e tradição da Igreja.
Este aspecto voluntário torna-se mais marcante nos momentos de
tentação e de dúvida. "Eu creio no que quero crer", dizia santa Teresinha do
Menino Jesus durante a provação no final de sua vida, quando levava sobre
o coração a oração do Credo escrita com seu sangue. Há momentos em que
a fé é espontânea, mas é preciso não esquecer que ela é um ato, uma adesão
voluntária de nossa liberdade à palavra de Deus, o que, às vezes, exige um
grande esforço. Crer nem sempre acontece sem esforço e por vezes exige
que seguremos nossa coragem com ambas as mãos para passar através de
hesitações e dúvidas. Isso sem esquecermos, entretanto, que quando
fazemos um ato de fé só o conseguimos fazer porque o Espírito Santo vem
em socorro de nossa fraqueza80.
80. Rm 8,26

Da mesma forma, a esperança é uma escolha que frequentemente exige


esforço. É mais fácil inquietar-se, desencorajar-se, amedrontar-se que
esperar. Esperar é ter confiança e esta expressão denota bem que quanto à
esperança não se é passivo, mas precisa-se fazer uma ação voluntária.
Quanto ao amor, também ele é uma decisão: isso significa não amar
somente quando o desejo nos impulsiona, mas escolher amar, decidir amar.
Se não for assim, o amor não passará de emoção e superficialidade, isto é,
egoísmo, e não sua essência profunda: algo que engaja nossa liberdade.
É sempre através de uma ação (secreta ou perceptível) de Deus que a fé,
a esperança e a caridade são possíveis81. As virtudes teologais surgem e
crescem no coração do homem graças à obra e à pedagogia do Espírito
Santo. Mas esta pedagogia divina é, por vezes, bastante desconcertante.
Gostaríamos de ilustrar isso e favorecer nossa cooperação com o trabalho
da graça, dizendo agora algumas palavras sobre a maneira como o Espírito
Santo age em nós.
81. Subjacente a estas reflexões, há uma pergunta de fundo: como um ato
humano (o ato de crer, de esperar ou de amar) pode ser, ao mesmo tempo,
plenamente humano, livre e voluntário e um dom gratuito de Deus, um fruto da
ação do Espírito Santo no coração do homem? Toca-se, aí, no profundo mistério
da "interação" entre a atividade de Deus e nossa liberdade, problema espinhoso
tanto no plano filosófico quanto no teológico. Sem entrarmos no mérito da
questão, dizemos simplesmente que não há contradição entre o agir de Deus e a
liberdade do homem. É Deus quem é o criador de nossa liberdade e quanto mais
Deus age em nosso coração, mais nos faz livres. Os atos que fazemos sob a ação
do Espírito Santo vêm de Deus, mas são também atos plenamente livres,
plenamente desejados, plenamente nossos. Porque Deus é mais íntimo a nós do
que nós mesmos.

Capítulo 2

AS TRÊS EFUSÕES DO ESPIRITO SANTO

Não se pode, evidentemente, decifrar totalmente a ação do Espírito


Santo na vida de um homem ou de uma mulher, nem enquadrá-la em leis e,
muito menos, programá-la: O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído,
mas não sabes de onde ele vem nem aonde vai82.
82. Jc 3,8

Entretanto, na maneira segundo a qual o Espírito conduz uma


existência, faz crescer na fé, na esperança e no amor (pois a sua obra tem
sempre esta finalidade) há algumas grandes constantes que não é
impossível detectar. Gostaríamos de tentar fazê-lo a partir de uma
meditação sobre os mistérios do Rosário.
O Rosário com seus diferentes mistérios é uma belíssima oração pela
qual nos confiamos à Virgem para entrar em comunhão com os
acontecimentos da vida de Cristo em seus mistérios sempre vivos e
vivificantes. Mas é também como que um símbolo de toda a existência
Cristã. Marthe Robin dizia: "toda vida é uma missa". De forma análoga,
poderíamos dizer que toda vida é um Rosário. Sem dúvida só o
perceberemos no final, quando tudo será completamente debulhado e nossa
existência terá encontrado sua forma e harmonia definitivas, além do que
ela pode apresentar de aparentemente caótico em seu desenrolar visível.
Assim como o Rosário contém mistérios gozosos, dolorosos e
finalmente gloriosos83, poderíamos dizer que, no que concerne o trabalho
do Santo Espírito em nossa existência, há "efusões" gozosas, dolorosas e
gloriosas. A ordem é importante, ainda que os acontecimentos se
desenrolem de maneira mais clínica que linear.
83. NT. Na data da publicação original francesa o Santo Padre João Paulo II não
havia, ainda, adicionado ao Santo Rosário os mistérios luminosos.

Há efusões do Espírito que iluminam e revelam, efusões que despojam e


empobrecem, efusões que confirmam e fortificam. As três são necessárias:
as primeiras para fazer nascer a fé, as segundas para ensinar a esperança, as
terceiras para comunicar a coragem para amar.
Tomemos a vida de São Pedro, personagem bem familiar para nós, cujo
itinerário é muito significativo. Na Renovação Carismática, onde se fala
frequentemente da efusão do Espírito Santo, se pergunto: "Quando São
Pedro recebeu a efusão do Espírito Santo?" respondem-me, geralmente:
"Em Pentecostes!" Isso certamente é verdadeiro, mas acrescento que esta
não foi a única vez e que, a meu ver, Pedro viveu outras "efusões do
Espírito Santo" antes da que nos falam os Atos dos Apóstolos. Houve pelo
menos duas ocasiões que gostaria de abordar.

Capitulo 3

A VOCAÇAO E O DOM DA FÉ

A primeira efusão do Espírito Santo na vida de São Pedro corresponde,


sem dúvida, ao momento de sua vocação, quando Pedro sentiu-se chamado
a deixar tudo: ocupação, redes, barca, família, para seguir Jesus , Pedro
ficou profundamente tocado pela mensagem e sobretudo pela pessoa do
Senhor: Jamais um homem falou como este homem. Pedro estava
entusiasmado, fora conquistado pelo profeta da Galiléia. Pressente que suas
palavras são palavras de vida eterna. Pressente, além disso, que ao
corresponder ao chamado de Jesus: Vem e segue-me, sua vida está
destinada a tomar um rumo inteiramente novo e seria consagrada, a partir
de então, a um projeto extraordinário. O Espírito Santo revela a Pedro não
somente quem é Jesus como também o novo sentido de sua própria
existência, suscitando nele uma alegria e felicidade imensas. É o começo de
uma extraordinária aventura espiritual à qual Pedro se entrega inteiramente.
É uma dessas “efusões gozosas" do Espírito Santo, que abrem o coração
e os horizontes, que revelam a beleza do [mistério do Cristo em nossa
vocação a segui-lo. O Espírito enriquece nossa existência com uma
presença nova do Cristo e uma nova compreensão de qual é o sentido de
nossa vida. Nestes momentos, o papel principal do Espírito é iluminar e
despertar no coração do homem a resposta da adesão da fé.

Capitulo 4

AS LÁGRIMAS DE PEDRO E O DOM DA ESPERANÇA

No entanto, o Espírito Santo não é sempre aquele que enriquece. É


também aquele que enriquece. Não é somente aquele que dilata os
horizontes e o coração, mas também aquele que nos faz passar por portas
bem estreitas. É o que Pedro experimentará sobretudo no momento mais
terrível de sua vida: a traição. Sua negação também se tornará, graças à
misericórdia divina, ocasião de uma profunda efusão do Espírito Santo,,
que se manifestará através de suas lágrimas. Lágrimas nas quais o chefe
dos Apóstolos sentirá toda sua miséria e seu pecado, mas receberá também
a esperança do perdão.
A traição de Pedro foi para ele uma queda terrível. Algumas horas antes
ele se havia declarado diante de todos disposto a seguir Jesus até a prisão e
mesmo a morte. Era o chefe dos Apóstolos. Como tal, tinha consciência de
seu dever particular de liderar o grupo e dar a todos bom exemplo. Para
tanto Jesus o havia escolhido e ele não errava em suas escolhas! Pedro se
havia entregue totalmente à sua missão! Mas eis que as belas proclamações
e seu agudo senso de responsabilidade com relação aos outros discípulos
desmoronam em poucos segundos. Basta que uma pequena criada do sumo
sacerdote lhe pergunte: Não és tu também um discípulo deste homem? Para
que Pedro negue seu Mestre jurando não ter nada a ver com ele...
Que derrocada! O primeiro tornou-se o último! Mas o Espírito Santo,
que é o pai dos pobres, serve-se desta queda lamentável para tocar mais
uma vez profundamente o coração do Apóstolo. Pedro encontra o olhar de
Jesus e nele compreende todo o horror de sua traição e vê toda sua miséria,
mas ao mesmo tempo percebe que não está condenado, que é mais
profundamente amado do que antes e que agora tem sua própria
experiência de soerguimento e de salvação.
Pedro desmancha-se em lágrimas, nas quais seu coração é purificado. A
sorte de Pedro foi a de ter aceito encontrar o olhar de Jesus... Por que,
Judas, fugiste deste olhar e assim te deixaste aprisionar no desespero? Para
ti, também, havia, até o último momento, a esperança da salvação e do
perdão! Teu pecado não era pior que o de Pedro...
Ao acolher o olhar do Mestre, Pedro viveu uma efusão do Espírito
Santo. Uma destas efusões dolorosas, que empobrecem, que despojam
radicalmente, mas que se revelam infinitamente benéficas porque mostram
ao homem sua impotência, sua miséria radical, seu nada absoluto e o obri-
gam a, a partir daquele momento, não mais apoiar-se sobre suas próprias
forças, em suas pretensas qualidades ou nas virtudes que acredita possuir,
mas a contar exclusivamente com a misericórdia e fidelidade divinas,
ingressando, assim, na verdadeira liberdade.
Os padres do deserto não hesitavam dizer: "Aquele que vê seu pecado é
maior que aquele que ressuscita os mortos. " O Espírito Santo provocou em
Pedro uma mudança fundamental: ele passou da confiança em si mesmo à
confiança em Deus, da presunção à esperança. Podemos dizer que, por
ocasião de sua negação, Pedro perdeu todas as virtudes que ele praticava
anteriormente e que acreditava possuir: seu fervor, sua fidelidade ao
Mestre, sua coragem, etc. Tudo desfez-se em pedaços em poucos segundos.
Em compensação, Pedro começou, pela primeira vez na vida, a praticar
uma outra virtude, que não conhecia anteriormente: a da esperança.
Quando contamos conosco mesmos, com nossas próprias forças, quando
ainda não somos radicalmente pobres, não podemos verdadeiramente
exercer a esperança, pois ela é a virtude praticada por aquele que se sabe
infinitamente fraco e frágil, que não se apoia de nenhuma forma sobre si
mesmo, mas que conta firmemente com Deus, que tudo espera dele e
somente dele com imensa confiança. Ao encontrar o olhar de Jesus,
transtornado até as lágrimas, Pedro, pela primeira vez na vida, fez um
verdadeiro ato de esperança: o que eu não sou capaz de fazer por minhas
próprias forças, eu espero de Ti, oh meu Deus, e não em virtude dos meus
méritos, pois não tenho nenhum, mas unicamente em virtude da Tua
misericórdia.
Este episódio da vida de Pedro comporta um ensinamento fundamental:
a autêntica esperança teologal (que verdadeiramente une a Deus) só pode
advir de uma experiência de pobreza de base, isto é, fundamental. Quando
se é rico, conta-se com suas próprias riquezas e não se tem como não fazê-
lo, pois elas estão por demais "incrustadas" em nós. Para aprender a
esperança, que consiste em contar tão somente com Deus, é necessário
passar por empobrecimentos radicais. Tais empobrecimentos são a fonte de
urna grande alegria, pois são uma etapa preliminar de uma extraordinária
experiência da bondade, da fidelidade e do poder de Deus. Felizes são os
pobres de espírito - os que foram despojados pelo Espírito, poderíamos
dizer - porque deles é o Reino dos Céus:84
84. Mt 5,3

Capítulo 5

PENTECOSTES E O DOM DA CARIDADE

Para continuar a utilizar a simbologia do Rosário e passar, enfim, para


os mistérios gloriosos, diria que o Pentecostes foi para Pedro e para os
outros discípulos uma "efusão gloriosa" do Espírito Santo. Efusão que
enche a pessoa da presença divina, que une intimamente ao Cristo e cujo
fruto mais belo é a coragem de amar.
No Cenáculo, Pedro recebe, segundo a promessa de Jesus, a força do
alto85. Força da caridade, fogo de amor, coragem de amar a Deus acima de
tudo, de confessá-lo com ousadia diante dos homens e consagrar toda sua
vida ao serviço do próximo através do anúncio do Evangelho. Inflamado
desta caridade infundida em seu coração pelo Espírito Santo, Pedro será, a
partir de então, um apóstolo infatigável, feliz por encontrar ocasiões de
sofrer por causa do nome de Jesus86, inteiramente devotado ao serviço de
seus irmãos e irmãs, pastoreando o rebanho de Deus com todas as forças
de seu coração87.
85. At 1,8
86. At 5,41
87. Cf. sua exortação aos anciãos da Igreja em sua epístola: I Pd 5,2-3.

Pode-se relacionar estes três aspectos da vida espiritual, estas efusões


gozosas, dolorosas e gloriosas do Espírito Santo à imagem do fogo e da
lenha jogada às chamas utilizada por São João da Cruz para ilustrar
aspectos de nossa vida espiritual e fazer compreender que, independente da
situação em que se encontre a alma, feliz ou dolorosa, luminosa ou obscura,
é sempre o mesmo amor que age, a mesma luz que a ilumina e
transfigura.88
88. Noite Escura, livro 2, capítulo 19.

Quando o fogo se aproxima da lenha, começa por iluminá-la, dar-lhe


brilho, aquecê-la. São os mistérios gozosos. Somos iluminados e aquecidos
pelo amor divino que se revela a nós. Quando o fogo aproxima-se ainda
mais, efeitos aparentemente inversos se produzem em um primeiro
momento: a madeira em contato com a chama começa a escurecer,
fumaçar, exalar odor desagradável, emitir açafrão e outras substâncias de
odor e aspecto asquerosos. É a efusão dolorosa: penetra mais
profundamente pela ação da implacável luz divina e a alma faz a profunda
e dolorosa experiência de sua miséria, de seu pecado e impureza radical.
Esta fase dura tanto quanto necessário até que o fogo purificador tenha
completado sua obra e a alma seja inteiramente iluminada e abrasada,
transformada em fogo de amor como a madeira que, agora inteiramente
incendiada, tornou-se, ela mesma, fogo. É a efusão gloriosa, na qual a alma
é fortificada na caridade, este fogo que Jesus veio acender sobre a terra.
O principal ensinamento desta imagem é, ao que me parece, de um
grande otimismo. Não devemos temer estes momentos nos quais a
experiência de nossa miséria nos anula. Não devemos nos desesperar, mas
continuar a nos entregarmos a Deus confiantemente, certos de que cedo ou
tarde esta miséria se tornará caridade ardente. Santa Teresinha do Menino
Jesus escreve o seguinte à sua irmã Maria do Sagrado Coração:
Permaneçamos bem longe de tudo o que brilha, amemos nossa pequenez...
Seremos, então, pobres de espírito e Jesus nos virá buscar. Ainda que
estejamos longe, ele nos transformará em chamas de amor89.
89. Carla 197, de 17 de setembro de 1896.

Capítulo 6

DINAMISMO DAS VIRTUDES TEOLOGAIS


E O PAPEL CHAVE DA ESPERANÇA
São Serafim de Sarov afirma que o objetivo da vida cristã é a aquisição
do Santo Espírito. Mas poderíamos acrescentar - e os acontecimentos da
vida de são Pedro sobre os quais acabamos de meditar mostram-no bem -
que o objetivo do trabalho do Espírito Santo em nossa vida é suscitar e
fazer crescer as virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade.
Poderíamos dizer que este é seu "papel" principal e todos os outros
carismas, dons ou operações da graça são meios para o aumento da fé, da
esperança e do amor.
Não se pode separar as três virtudes teologais. Nenhuma delas pode
verdadeiramente existir sem as outras duas. Gostaríamos, pois, de propor
algumas reflexões sobre a maneira como se articulam entre si. O que
diremos tem consequências concretas muito importantes na vida espiritual.
A mais importante das três é, certamente, a caridade, o amor. "No
entardecer da vida, seremos julgados pelo amor", diz São João da Cruz. É
preciso reler o maravilhoso "Hino à Caridade" da segunda carta aos
Corintos, no qual São Paulo evidencia seu papel essencial: Ainda que eu
tivesse a fé de transportar montanhas, se não tiver amor, nada sou? 90.
Mais adiante, ele acrescenta: Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a
caridade: estas três coisas. Mas a maior entre elas é a caridade91. A fé e a
esperança são provisórias. São somente para esta terra. Depois, passarão.
No Céu, a fé será substituída pela visão, a esperança pela posse, somente o
amor jamais passará: a caridade não será substituída por nada, pois ela é o
objetivo. Isso significa que o amor é, sobre esta terra, a participação mais
plena da vida do Céu e que a fé e a esperança estão a serviço do amor. O
único a ter um caráter definitivo é o amor.
90. 1 Cor 13,2
91. 1 Cor 13,13

Tudo isso mostra a crucial importância de compreender que, aqui na


terra, o amor não pode existir sem as "servas" que são a fé e a esperança.
Ele tem necessidade absoluta delas para crescer e desenvolver-se. Vejamos
por quê.

Capitulo 7

O AMOR NECESSITA DA ESPERANÇA,


A ESPERANÇA SE FUNDAMENTA NA FÉ

Não se pode ter caridade sem esperança. A caridade, fruto por


excelência da vida teologal, não pode desenvolver- se a não ser em
condições favoráveis. O amor necessita de espaço para desenvolver-se e
crescer. É uma realidade maravilhosa, mas em certo sentido frágil, pois
sem seu "espaço vital" o amor será facilmente abafado, comprimido, es-
terilizado. O "meio" particular de que a caridade precisa para desenvolver-
se é precisamente a esperança. Se somos atentos ao que se passa em nós,
damo-nos conta que se o amor não cresce ou esfria, isso muito
frequentemente acontece porque ele está abafado por preocupações, medos,
inquietações e desencorajamentos92.
92. Em um diálogo com Santa Faustina, Jesus afirma que os maiores obstáculos
à santidade são o desencorajamento e a inquietação. Op. cit. p.480.

De certa forma, o amor é natural ao homem, que foi criado para amar e
traz em si uma aspiração profunda a dar- se93 Como indica uma parábola do
Evangelho, o amor poderia muito bem crescer sozinho em seu coração
como o trigo que, uma vez semeado, cresce por si mesmo, quer o lavrador
esteja velando ou dormindo94. Mas, de fato, muito frequentemente, o amor
não cresce. Há algo que bloqueia seu desenvolvimento. Pode tratar-se do
egoísmo, do orgulho, das preocupações do mundo e da sedução da riqueza,
segundo os termos do Evangelho95, ou ainda de outros entraves. Mas na
maior parte das vezes, a raiz do problema é a falta de esperança.
93. Ainda que só raramente se tenha consciência disso, a necessidade mais
profunda do homem é, sem dúvida, a de dar-se.
94. Mc 4,26
95. Mt 13,22

Devido a esta falta de esperança, não cremos verdadeiramente que Deus


possa fazer-nos felizes e então construímos uma felicidade com nossa
própria riqueza. É o apetite egoísta. Não esperamos que Deus nos possa
fazer existir em plenitude e construímos uma identidade artificial. É o
orgulho. Esta é a situação mais comum entre as pessoas de boa vontade.
Gostaríamos de amar, de sermos generosos no amor e na doação de nós
mesmos, mas somos paralisados por medos, hesitações, inquietações. A
falta de esperança, de confiança no que a graça divina pode operar em
nossa vida e no que podemos realizar com sua ajuda, tem como
consequência inevitável um endurecimento do coração, uma diminuição da
caridade. A confiança, inversamente, conduz ao amor, como afirma Teresa
de Lisieux.
Quando uma pessoa perde seu fervor, seu entusiasmo, sua generosidade
no amor a Deus e ao próximo, é muito frequentemente porque existe um
desencorajamento - leia-se um tipo de desesperança secreto - que tem efeito
imobilizador. Por causa de fracassos, de decepções, de dificuldades, da
experiência de nossa miséria, de inquietações que nos corroem, perdemos
nossa energia e desistimos de lutar. O remédio para tudo isso, o meio de
despertar o amor não é um esforço voluntarista, mas o reanimar da
esperança, o reencontrar uma nova confiança no que Deus pode fazer por
nós (não importa qual seja nossa miséria) e no que podemos realizar com a
ajuda de sua graça.
Minha experiência no acompanhamento espiritual me faz constatar que
a maior parte das faltas de amor, de fervor, de generosidade advêm, na
verdade, de um desencorajamento, o desânimo mais ou menos consciente,
Libermann afirmava que "É o desencorajamento que perde as almas". O
tratamento apropriado é, então, descobrir esta raiz de desencorajamento,
este "ponto de desesperança" e colocar sobre ele o remédio específico, que
é devolver à pessoa, sobre este aspecto particular de sua vida, um olhar de
esperança.
Tal situação corresponde também a uma realidade psicológica muito
simples, mas importante96: para que nossa vontade seja forte e
empreendedora, precisa ser animada pelo desejo. E o desejo só pode ser
forte se aquilo que é desejado for percebido como acessível, possível. Se o
representamos como inacessível, cessamos de desejá-lo, de querê-lo
fortemente. Não podemos querer algo de maneira eficaz se
psicologicamente temos o sentimento de que não o conseguiremos. Quando
a vontade está enfraquecida, é preciso um trabalho de "reenquadramento"
de nossas representações que nos permita voltar a perceber o que queremos
como acessível e desejável.
96. O dinamismo da fé, da esperança, do amor é enraizado em nossa estrutura
psicológica.

A esperança é a virtude que promove este reenquadramento. Ela me faz


saber que posso esperar tudo de Deus, com plena confiança. Tudo posso
naquele que me fortalece, diz São Paulo97. A esperança cura o medo e o
desencorajamento dilata o coração e, dessa forma, permite ao amor
desenvolver-se.
97. Fil 4,413

Mas a esperança, por sua vez, necessita, para ser verdadeiramente uma
força, de um fundamento sólido, uma verdade sobre a qual apoiar-se. Este
fundamento lhe é dado pela fé. Posso esperar contra toda esperança98
porque sei em quem coloquei minha fé99. A fé me faz aderir à verdade
transmitida pelas Escrituras, a qual me relembra incessantemente a
bondade de Deus, sua misericórdia, sua fidelidade absoluta às suas
promessas. Pela Palavra de Deus, diz-nos a epístola aos Hebreus, Somos
poderosamente encorajados - nós que encontramos um refúgio eficaz - a
apegarmo-nos ciosamente à esperança que nos é proposta. Ela é como que
uma âncora firme e segura de nossa alma, e penetra para além do véu
onde Jesus entrou por nós como precursor100. As Escrituras revelam-nos o
amor absolutamente incondicional e irrevogável de Deus por seus filhos,
manifestado no Cristo, nascido, morto e ressuscitado por nós. Ele me amou
e entregou-se por mim101. Pela fé, o coração adere a esta verdade e aí
encontra uma imensa e indestrutível esperança. "A fé é a mãe do amor e da
esperança, assim como da confiança e segurança102."
98. Rm4,18
99. II Tm 1,12
100. Hb 6,18s
101. Gl 2,20
102. Poustinia, Catherine de Hueck Doherty, ed. Du Cerf, p. 142.

Capítulo 8

PAPEL ESSENCIAL DA ESPERANÇA

As considerações precedentes mostram o papel essencial da esperança


na vida cristã. Poder-se-ia dizer que se, em si, a caridade é a maior das três
virtudes teologais, na vida prática, é a esperança que é a mais importante.
Quando a esperança existe, o amor se desenvolve. Se a esperança se
extingue, o amor resfria. Um mundo sem esperança torna-se rapidamente
um mundo sem amor. Mas a esperança tem necessidade da fé, da qual é
legítima expressão. Não existe fé viva sem obras e a primeira obra
produzida pela fé é a esperança. São João Climaque, um Padre do século
VII diz que "a fé coloca ao nosso alcance o que nos parecia sem
esperança", e acrescenta: "O homem de fé não é aquele que crê que Deus
pode tudo, mas aquele que crê tudo poder obter de Deus."
Precisaríamos meditar sem cessar nas palavras de São João da Cruz, que
foram decisivas para encorajar Teresa de Lisieux em sua “pequena via de
confiança e de amor", quando diz: "Obtemos de Deus tudo o que
esperamos103". Deus não nos dá segundo nossas qualidades e méritos, mas
segundo nossa esperança. Esta verdade é extraordinariamente libertadora:
se, supostamente, todos os nossos recursos humanos e espirituais se
esgotassem, ainda nos restaria o recurso invencível da esperança.
103. Noite escura, livro 2, capítulo 10

No entanto, a esperança só pode nascer da pobreza, como já explicamos.


Isso ilustra como a pobreza de espírito é a chave de todo verdadeiro
crescimento no amor: Felizes os pobres de espírito, porque o Reino dos
céus pertence a eles104.
104. Mt 5,3

Capitulo 9

DINAMISMO DO PECADO,
DINAMISMO DA GRAÇA

Vimos que o dinamismo próprio da vida teologal é: a fé produz a


esperança e a esperança faz possível e favorece o desenvolvimento do
amor. Este dinamismo é fruto da graça, é obra do Espírito Santo, mas passa
seguramente pela cooperação da nossa vontade. Este dinamismo positivo se
opõe, ponto por ponto, ao dinamismo negativo do pecado:
Fé -» esperança-» amor
Dúvida -» desconfiança-» pecado
Quando analisamos o que é o pecado e como ele se apossa do coração
do homem, particularmente baseando- nos na narrativa da queda de Adão e
Eva no segundo capítulo de Genesis, notamos que, na raiz do pecado,
habita a dúvida, a suspeita sobre Deus: Será que Deus é tão bom quanto se
declara? Podemos confiar em sua palavra? Ele é mesmo Pai?
Dessa dúvida nasce a desconfiança: não esperamos que Deus possa
atender-nos ou fazer-nos felizes. Então, tentamos nos arranjar por nós
mesmos, na desobediência. Daí nascem o egoísmo, a cobiça, o ciúme, o
medo, o conflito, a violência e todo o cortejo do mal.
Tudo isso nos faz compreender o quanto a fé é fundamental: ela é a raiz
de nossa libertação; a partir dela se inicia todo um processo de vida que é a
cura do processo de morte gerado pelo pecado. Por isso, Jesus insiste tanto
acerca da importância da fé: Se tiverdes fé como um grão de mostarda,
direis a esta montanha que se lance ao mar e ela vos obedecerá 105
enquanto a carta aos Hebreus diz: A fé é a garantia dos bens que
esperamos106.
105. Mt 17,20
106. Hb 11,1

Capitulo 10

ESPERANÇA E PUREZA DE CORAÇAO

Nossas reflexões evidenciam o papel chave da esperança em nossa vida:


fundada na fé é ela que permite ao amor crescer e desenvolver-se. Ela é,
poderíamos dizer, a virtude cristã por excelência. A essência do combate
crescente é conservar, graças à força da fé, um olhar de esperança sobre
toda situação, sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre a Igreja e o mundo,
olhar de esperança que permite reagir a toda situação com o amor. Ao
contrário, se a esperança diminui, o amor esfria automaticamente e nos
fechamos em estratégicas medrosas e egoístas. É graças à esperança que
podemos, a cada manhã, recomeçar, decidirmo-nos a amar. Ela é como
uma fonte que renova e purifica incessantemente o coração e lhe dá, para
além do cansaço e do tédio, uma nova juventude no amor.
A bem-aventurança: Felizes os corações puros, pois verão a Deus107
contém uma das mais belas promessas do Evangelho. Fico impressionado
com a ligação que são João expressa, em sua primeira carta, entre a
esperança e a pureza de coração. Mos primeiros versículos do capítulo 3,
faz um belíssimo resumo do conteúdo da esperança cristã: Vede que grande
amor o Pai nos mostrou: sermos chamados filhos de Deus e o somos! Por
isso o mundo não nos reconhece, porque não o reconhece. Queridos, desde
já somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que seremos.
Sabemos que, quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele e o veremos
como ele é. E o Apóstolo prossegue: Quem nele espera desse modo
purifica-se, como ele é puro. A esperança, parece dizer São João, tem o
poder de purificar o coração.
107. Mt 5,8

Esta afirmação impressionante é, de fato, conforme a grande tradição


profética do Antigo Testamento, segundo a qual o coração puro não é tanto
aquele que está isento de toda falta, de toda ferida, mas aquele que põe toda
sua esperança em Deus, que tem certeza do cumprimento de suas
promessas. O coração puro é aquele que não conta consigo mesmo nem
com suas estratégias e cálculos humanos, mas aquele que espera tudo de
Deus com firme confiança, que espera unicamente em Deus. A impureza de
coração é a atitude de duplicidade, tão frequentemente denunciada pelos
profetas, daquele homem que, não tendo plena confiança em Deus, recorre
também aos ídolos e pede a outro o que não tem segurança de receber de
Deus. O coração impuro é o coração hesitante e dividido.
Aquele que tem o coração puro verá a Deus. Ele o contemplará na
eternidade, mas já nesta vida verá Deus agir. Deus responderá à sua
expectativa e intervirá a seu favor. Quem espera em Deus não será
decepcionado.
A propósito do tema do papel purificador da esperança, é preciso citar
aqui uma passagem daquele que foi o maior poeta sobre este tema, Charles
Péguy, em O Pórtico do Mistério da Segunda Virtude, ele faz falar Deus,
que se espanta do fato de que a esperança renasça sem cessar no coração do
homem108:
108. Ed. Grifo e Livreiros Ltda. p. 154.

Há quem pergunte, quem diga: Mas como é que acontece


Que esta fonte Esperança eternamente corra,
Que ela jorre eternamente, que ela brote eternamente
Que ela corra eternamente,
Eternamente jovem, eternamente pura,
Eternamente fresca, eternamente corrente,
Eternamente viva.
Aonde é que esta criança vai buscar tanta água pura e
tanta água clara?
Tanto jorrar e tanto brotar.
Será que ela as cria? À medida?
- Não, diz Deus, ninguém cria senão eu.
- Então onde vai ela buscar toda essa água Para esta fonte a jorrar?
Como é que acontece que esta eterna fonte
Eternamente jorre?
Que essa eterna fonte
Eternamente brote.
Há de haver um segredo lá dentro,
Algum mistério.
Para que essa fonte eternamente nunca se turve nas
pesadas, nas espessas chuvas de outono,
Para que eternamente se não estanque nunca com os
ardentes ardores de julho.
- São boa gente, diz Deus, não é complicado.
O seu mistério não é complicado.
E o seu segredo não é difícil.
Se fosse com água pura que ela quisesse fazer
nascentes puras,
Nascentes de água pura,
Nunca havia de as encontrar que chegassem,
em (toda) a minha criação.
Porque não são muitas.
Mas é justamente com águas más que ela faz as suas
nascentes de água pura.
E é por isso que nunca lhe faltam.

Mas é também por isso que ela é a Esperança.

Agora, como ela se arranja para fazer


Água pura com água má,
Água jovem com água velha,

Dias novos com velhos dias.


Água nova com água usada.

Fontes com água velha.


Almas frescas com velhas almas.
Fontes de alma com velha alma.
Água fresca com água morna.

Ai de quem é morno.
Manhãs jovens com velhas noites.
Almas claras com almas turvas.

Água clara com água turva.


Água, almas crianças com almas usadas.

Almas levantes com almas poentes.


Almas correntes com almas estagnadas.

Como é que ela o consegue, como é que ela se arranja,


Isso, meus filhos, é segredo meu.
Porque sou o Pai dela.

Almas novas com almas que já serviram.


Dias novos com dias que já serviram.

Almas transparentes com almas turvas.


Almas levantes com almas poentes.
Dias transparentes com dias turvos.

Se fosse com dias transparentes que ela fizesse dias transparentes.


Se fosse com almas, com água clara que ela fizesse fontes.
Com água clara que ela fizesse água clara.
Se fosse com alma pura que ela fizesse alma pura,
Por minha fé, não seria complicado.
Toda a gente poderia fazer o mesmo.
E não haveria aí segredo nenhum.

Mas é com uma água suja, uma água envelhecida,


uma água fanada.
Mas é de uma alma impura que ela faz uma alma pura
e é o segredo mais bonito que pode haver no jardim do mundo.
Quarta parte

Capitulo 1

A GRATUIDADE DO AMOR

A lei da graça

O tema da liberdade cristã é frequentemente abordado por São Paulo.


Em Cristo, aquele que crê passa da escravidão à liberdade e o Apóstolo se
fará, em suas epístolas, um ardente defensor da gloriosa liberdade de filhos
de Deus109.
109. Rm 8,21

Tomemos como ponto de partida de nossa meditação baseada em Paulo


o capítulo cinco da carta aos Gálatas e a afirmação do primeiro versículo:
Foi para que fôssemos livres que Cristo nos libertou: mantende-vos, pois,
firmes, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão. Paulo
está muito preocupado com o risco que representa para o fiel perder, seja
como for, a liberdade tão preciosa que Cristo lhe conquistou. Essa sua
preocupação justifica o tom vigoroso da carta aos Gálatas: Espanto-me de
que tão depressa tenhais deixado aquele que vos chamo por puro favor,
para passardes a um evangelho diferente; não é que seja outro.110 E:
Gálatas insensatos! Quem vos enfeitiçou?Vós, ante cujos olhos
descreveram Cristo crucificado?111.
110. Gl 1.6
111. Gl 3,1

Como, segundo Paulo, o cristão é ameaçado de perder sua liberdade? O


Apóstolo denuncia as duas emboscadas pelas quais isso pode acontecer:
são a da lei e a da carne.
A emboscada da carne112 é exposta no capítulo 5, versículos 13 a 25 de
Gálatas e é fácil de compreender: sob o pretexto da liberdade, ao invés de
seguir os impulsos do Espírito, de colocar-se, por amor, a serviço uns dos
outros e assim ver manifestar-se os frutos do Espírito: amor, alegria, paz,
paciência, bondade, benevolência, fé, doçura, autodomínio, entregam-se às
paixões, ao egoísmo, ao pecado sob todas as formas: libertinagem,
impureza, devassidão, idolatria, magia, ódio, discórdia, ciúme, cólera,
rivalidades, dissensões, facções, inveja, bebedeira, orgias e outras coisas
semelhantes. Paulo relembra-nos um ensinamento clássico, mas que precisa
ser repetido em nossa época de confusões: a libertinagem não é a liberdade,
é, para usar uma linguagem adequada, uma escravidão da qual o homem é
prisioneiro do que nele existe de mais superficial: seus apetites egoístas,
seus medos, suas feridas, etc.
112. “Carne" aqui não designa o corpo, mas a natureza humana ferida e pecado-
ra. Designa aquilo que, no homem, resiste a Deus.

O cristão precisa estar consciente disso. Ele não pode relaxar no


combate incessante contra as tendências descritas por São Paulo e deve
abrir-se permanentemente às graças de cura que vêm da cruz de Cristo para
delas libertar-se progressivamente, de maneira a poder seguir as
solicitações interiores do Espírito para o bem, pois é nisso que consiste a
verdadeira liberdade. O homem livre é aquele que, pela graça de Cristo,
escapa à seguinte maldição: não faço o bem que quero, mas o mal que não
quero... homem infeliz que sou! E torna-se capaz de realizar efetivamente o
bem.
A questão de fundo subjacente ao ensinamento de São Paulo é a
refutação da idolatria que existe, já, ao longo de todo o Antigo Testamento.
O fiel é convidado a preservar sua liberdade, a não entregar sua alma aos
ídolos, isto é, não esperar de uma realidade do mundo, não importa qual
seja, (o prazer sensível, o poder, a fama, o trabalho, um relacionamento...) a
plenitude, a paz, a felicidade, a segurança que só Deus pode dar, sob pena
de ser gravemente decepcionado e causar muito mal a si mesmo e aos
outros.
Para o leitor de hoje, é bom completar o ensinamento de São Paulo
acrescentando que, se achamos que basta o combate para nos libertarmos
da tendência ao mal, é preciso notar duas coisas. A primeira é que nossos
esforços não serão suficientes e somente a graça de Cristo poderá obter a
vitória. O combate principal será, então, o da oração, da paciência e da
esperança.
Além disso, só se cura uma paixão com uma outra paixão; um amor
desviado por um amor maior; um comportamento negativo com um
comportamento positivo que não negue, mas assuma o desejo subjacente ao
primeiro. Um esforço que se contenta em afrontar diretamente uma conduta
negativa sem perceber que por trás dela existe uma certa expectativa, uma
necessidade positiva, cuja legitimidade precisa ser reconhecida, não vai dar
em nada. Uma ascese "grosseira" que não faz um esforço de inteligência,
de compreensão, tomando em consideração o que uma sadia antropologia
nos ensina sobre a pessoa para discernir para além dos comportamentos
inadequados quais necessidades procuramos mais ou menos
inconscientemente satisfazer e, desta forma, propor uma satisfação legítima
ou uma transferência compatível com a vocação da pessoa, está votada ao
fracasso.

Capitulo 2

A EMBOSCADA CONTRA A FÉ

É notável que, antes deste ensinamento clássico sobre o perigo de nos


tornarmos escravos de nossas feridas e tendências egoístas, Paulo quer
fazer compreender que há uma outra emboscada para a liberdade do
cristão, mais sutil, mais difícil de discernir e, assim, talvez mais perigosa: a
emboscada da lei.
Trata-se de uma outra manifestação da "carne", que não se exprime em
desordens morais (pode mesmo aparentar a moralidade mais estrita) mas na
qual, ao regime da graça sobrepõe-se o da lei, o que é, na verdade, uma
perversão do Evangelho. Vejamos porquê:
A circunstância histórica que leva Paulo a falar do assunto é conhecida:
algumas pessoas que passaram pela comunidade onde ele havia anunciado
o Evangelho "retificaram" seu ensinamento afirmando aos cristãos neófitos
que eles não podiam ser salvos sem a circuncisão e sem a prática das
múltiplas prescrições da lei de Moisés. Paulo reage muito vivamente: se
vocês fizerem isso, romperam com Cristo, decaíram da graça113.
113. Gl 5.4

A lei em si mesma é boa. Prescreve coisas boas e ajuda a discernir entre


o bem e o mal, o que constrói do que destrói o homem. Tem um necessário
papel pedagógico. A emboscada é a seguinte: ao fazer da prática da lei a
condição da salvação, colocamos-nos em uma lógica segundo a qual a
salvação provém não do amor gratuito de Deus manifestado no Cristo, mas
das obras que o homem realiza.
São duas lógicas opostas uma a outra. A da graça: o homem recebe
gratuitamente, independentemente de seus méritos, a salvação e o amor de
Deus através de Cristo e gratuitamente responde a este amor com boas
obras que o Espírito Santo lhe concede realizar. A da lei: é por causa de
suas boas obras que o homem merece a salvação e o amor de Deus. Lógicas
opostas porque uma tem como fundamento o amor gratuito e incondicional
de Deus e a outra o homem e suas capacidades.
Ora, Paulo, particularmente devido à sua experiência pessoal, é muito
marcado por este aspecto absolutamente gratuito da salvação recebida em
Cristo e o coloca sempre em relevo, como na carta a Tito: Também nós,
antes éramos insensatos, desobedientes, extraviados, escravos de paixões e
prazeres diversos, maliciosos, invejosos, odiosos e odiando-nos
mutuamente. Mas, quando apareceu a bondade de nosso Deus e Salvador e
seu amor pelo homem, não por méritos que tivéssemos adquirido, mas tão
somente por sua misericórdia, nos salvou com o banho do novo nascimento
e a renovação pelo Espírito Santo114. O mesmo é dito na epístola aos
Efésios: Mas Deus, rico em misericórdia, pelo grande amor que teve por
nós, estando nós mortos por causa dos delitos, nos fez reviver com Cristo -
gratuitamente fostes salvos; - com Cristo Jesus nos ressuscitou e nos fez
sentar no céu, para que se revele aos séculos futuros a extraordinária
riqueza de sua graça e a bondade com que nos tratou por meio de Cristo
Jesu115. A lei (não no que ela nos prescreve, que é bom), mas enquanto
"lógica de vida", maneira de situar-se diante de Deus, é perversa e leva à
morte, pois contradiz a verdade da gratuidade da salvação e acaba por
matar o amor.
114. Tt 3,3ss. Ver também II Tim 1,9: Ele nos salvou e chamou com uma
vocação santa, não por mérito de nossas obras, mas por seu desígnio e graça a
nós concedida desde a eternidade em nome de Cristo Jesus.
115. Ef 2,4-6

Ela me pode conduzir ao orgulho: sou capaz de cumprir as prescrições


da lei, considero-me um justo e desprezo os outros que não fazem o
mesmo. É o pecado dos fariseus denunciado com intensidade por Jesus no
Evangelho, pois nada mata tanto o amor e a compaixão para com o
próximo como este orgulho espiritual. Mas a lógica da lei pode também
conduzir-me ao desespero, à culpabilidade, sinto-me condenado de maneira
irremediável.
É preciso acrescentar que aquele que começa pelo orgulho, que se
prevalece de suas "conquistas" espirituais, cairá cedo ou tarde no
desespero; pois, irremediavelmente, chegará o dia em que ele será
confrontado com seus limites, viverá um fracasso retumbante, no qual este
sucesso espiritual baseado em seus próprios esforços será feito em pedaços.
Esta lógica da lei, que conduz ao orgulho ou ao desespero, conhece
muitas variantes. A piedade rígida daquele que em tudo age "por dever",
como se tivesse uma dívida a pagar a Deus, enquanto que, sobre a cruz,
Cristo quitou todo débito do homem com relação a Deus e nos chama a
entregar-lhe tudo em troca por amor e reconhecimento e não em virtude de
uma dívida qualquer. O medo daquele que se sente sempre culpado e tem o
sentimento de jamais fazer por Deus o necessário; a mentalidade
mercantilista daquele que calcula seus méritos, mede seus progressos, passa
seu tempo a esperar de Deus a recompensa por seus esforços e se queixa
quando as coisas não vão como ele gostaria; a atitude superficial daquele
que crê ter feito por si mesmo o bem e que se desencoraja ou revolta
quando é confrontado a seus limites; ou ainda a estreiteza de espírito
daquele que tudo mede segundo suas prescrições estreitas, elementos sem
força ou valor116, prescrições e doutrinas humanas117, do tipo: não tome,
não coma, não toque118; ao invés de viver com o coração dilatado pelo
amor, inferniza a vida dos outros com seu legalismo ou perfeccionismo e
torna-se uma pessoa sem misericórdia.
116. Gl 4,8
117. Cl 2,21
118. Cl 2,21

Na mesma medida em que esta "lógica da lei" é fonte de morte (pois o


orgulho, o desespero, o legalismo, o mercantilismo e as outras atitudes que
descrevemos matam o amor), a "lógica da graça" é fonte de vida, pois
permite o desenvolvimento do amor. A razão é que se trata de uma lógica
de gratuidade e a gratuidade é o único regime segundo o qual o amor pode
existir. Ele não suporta nenhuma outra lógica.
A meu ver, uma das palavras mais fundamentais do Evangelho é esta
palavra de Jesus: O que de graça recebeste, de graça dai119. O amor de Deus
é absolutamente gratuito, não há como merecê-lo, como conquistá-lo. Só há
como acolhê-lo através da fé que é a única via de acesso à salvação
segundo São Paulo; fé que é disposição interior pela qual o homem acolhe
este amor gratuito e se entrega a ele em total confiança. Este amor acolhido
gratuitamente convida- nos a, também nós, amarmos gratuitamente. Disso
ele nos concede, progressivamente, a possibilidade através da renovação do
nosso coração pela graça do Espírito Santo que nos inspira as obras de
amor e nos dá a fortaleza necessária para realizá-las.
119. Mt 10,8

Viver o mais possível segundo esta "lógica da graça" é a cura tanto do


orgulho (minhas obras não são tanto minhas, pois é Deus que me fez
realizá-las)120 quanto do desespero, pois, quaisquer que tenham sido meus
fracassos, não serei jamais preso à condenação. Sei que sempre posso
recorrer ao amor absolutamente gratuito e incondicional de Deus que me
ergue.
120. Paulo fala das boas obras que Deus preparou desde toda a eternidade para
que as realizássemos. Et 2,10

A lógica da lei, pelo contrário, mantém-nos em uma dependência


perniciosa: ao invés de depender do amor e da misericórdia de Deus (e,
assim, ser livres, pois estes nos são dados gratuitamente e sem medida),
dependemos de nós mesmos: a forma como vemos a vida, como
percebemos a nós mesmos, a nossa paz, nosso sentimento de segurança e
assim por diante, dependendo de nossos resultados, nossos sucessos ou
fracassos no cumprimento de certas prescrições. Isso nos impede de gozar
da gloriosa liberdade de filhos de Deus, que se sabem amados
incondicionalmente, independente de seus méritos e "boletim de notas”
boas ou más!

Capitulo 3

APRENDER A AMAR: DAR E RECEBER

Estamos sobre esta terra para aprender a amar na escola de Jesus.


Aprender a amar é aprender a dar gratuitamente e, também, a receber
gratuitamente. Esta aprendizagem tão simples, nós, infelizmente, a
complicamos terrivelmente e a tornamos difícil, em uma prova de que o
pecado nos tornou bastante complicados!
Não nos é natural o dar gratuitamente. Temos uma forte tendência a dar
para receber em troca. O dom de nós mesmos é sempre mais ou menos
motivado por uma espera de gratificação. O Evangelho nos convida a sair
dessa limitação para praticar um amor tão puro e desinteressado como o de
Deus, um amor que é livre porque capaz de existir e durar sem ser
condicionado pela resposta ou mérito daquele a quem ele se dirige: Amai
vossos inimigos, fazei o bem sem esperar nada em troca. Assim vossa
recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, que é generoso com
ingratos e maus. Sede compassivos como vosso Pai é compassivo121.
121. Lc 6.35s

Não nos é fácil, também, receber gratuitamente. Queremos receber se


isso é percebido como uma recompensa por nossos méritos, como uma
dívida. Receber gratuitamente supõe, também, confiar naquele que dá, ter
um coração aberto e disponível para acolher. Acolher é também entregar-
se! Receber gratuitamente supõe, também, muita humildade. Só podemos
receber gratuitamente se reconhecemos que somos pobres e a isso o
orgulho se opõe de forma absoluta. Somos capazes de reivindicar, de
exigir, mas raramente de acolher.
Pecamos por falta de gratuidade cada vez que, em nosso relacionamento
com Deus ou com os outros o bem que realizamos torna-se para nós
pretexto para reivindicar um direito, exigir da parte do outro um
reconhecimento ou gratificação. Mas também, de forma mais sutil, cada
vez que temos medo, devido a este ou aquele limite ou desafio pessoal, de
não receber amor como se o amor devesse ser pago ou merecido. O
Evangelho procura tudo fazer para romper esta lógica122. Dificilmente
aceitamos esta mudança de mentalidade (porque a antiga nos interessa
terrivelmente). No entanto, ela é vital, pois não poderemos jamais encontrar
a felicidade se permanecermos em uma lógica de troca, de direitos e de
deveres. Esta lógica pode até ter sua razão de ser na sociedade terrestre,
mas precisamos ultrapassá-la pouco a pouco para entrar na lógica do amor.
122. Quando, por exemplo, ele nos lembra que somos servos inúteis (Lc 17,10) o
também que os operários da undécima hora recebem o mesmo salário que
aqueles da primeira (Mt 20,1 -16).

Aprender a dar e receber gratuitamente supõe uma reeducação longa e


laboriosa de nossa psicologia, que não está "estruturada" para este regime,
mas é condicionada por milênios de necessidade de lutar para sobreviver123.
Poderíamos dizer que a irrupção da revelação divina e do Evangelho no
mundo é como um fermento evolutivo, que tem por objetivo promover a
"mutação" do nosso psiquismo para uma lógica de gratuidade, que é a do
Reino, porque é a do amor.
123. Apesar de nossos progressos tecnológicos, temos, na verdade, uma psicolo-
gia que ainda é, poderíamos dizer, a mesma do homem pré-histórico. Sua
estrutura é grandemente baseada em mecanismos de sobrevivência, de defesa,
etc, e que não é capaz de relacionamentos confiantes e gratuitos, de amor livre e
desinteressado. Poderíamos dizer que o trabalho do Espírito Santo visa
reestruturar nosso psiquismo para fazê-lo apto a funcionar de forma nova.
Poderíamos interpretar nestes termos a oposição que São Paulo faz entre o
homem psíquico e o homem espiritual, entre o "homem velho" e o "homem
novo".

Trata-se de um processo de divinização, pois seu objetivo é vir a amar


como Deus ama: Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito 124. Esta
divinização é a verdadeira humanização! Evolução maravilhosa e
libertadora, que necessita da cooperação de nossa liberdade e que só pode
ser produzida através de várias modificações da psique, vividas, muitas
vezes, como uma verdadeira morte. Só podemos desenvolver uma nova
maneira de ser ao preço do "luto" de muitos de nossos comportamentos
naturais, de uma espécie de agonia.
124. Mt 5,48

No entanto, uma vez passada a "porta estreita" desta conversão de


nossas mentalidades, o universo no qual ingressamos é esplêndido: é o
Reino, o mundo onde o amor é a única lei, que é um paraíso de gratuidade
no qual o amor pode fluir sem limites, dar-se e receber sem restrição, onde
não há mais "direitos" e "deveres", nada a defender, nada a conquistar, ne-
nhuma oposição entre o "teu" e o "meu", onde o coração se dilata ao
infinito. Neste mundo novo reina o amor, o amor terrivelmente exigente
(porque pede tudo: enquanto não se ama totalmente, não se ama
verdadeiramente), mas soberanamente livre, pois não tem outra lei senão
ele mesmo.
Quinta Parte

Capítulo 1

POBREZA ESPIRITUAL E LIBERDADE

A necessidade de ser

Uma das necessidades mais profundas do homem é a de identidade 125:


tenho necessidade de saber quem sou, tenho necessidade de existir aos
meus próprios olhos e aos olhos dos outros. Somos todos "carentes de ser",
carência extremamente profunda. Esta necessidade de identidade é de tal
forma imperiosa que pode conduzir a verdadeiras aberrações: podemos
constatá-lo de maneira particular nos dias de hoje, em que os homens e
mulheres, particularmente os jovens, são capazes de revestir-se dos "looks"
mais inverossímeis simplesmente para existir aos próprios olhos e aos dos
outros segundo os modelos propostos pela cultura ambiente, segundo os
critérios da moda com os quais se identificam. A mídia veicula, nos dias de
hoje, uma multidão de modelos: o jovem dinâmico, o jogador de futebol, a
top-model, o adolescente rebelde dos subúrbios...
125. No plano psicológico e espiritual, a necessidade mais profunda do homem é
a do amor: amar e ser amado. A esta necessidade de amor, de comunhão, estão
necessariamente ligadas duas outras necessidades fundamentais: de verdade
(para amar é necessário conhecer) e de identidade (para amar é preciso ser). A
estas três necessidades fundamentais correspondem as três faculdades espirituais
descritas pela teologia tradicional: a vontade, a inteligência e a memória. As
virtudes teologais permitem encontrar no relacionamento com Deus a satisfação
última dessas necessidades: a fé faz emergir a verdade, a esperança permite
encontrar em Deus nossa segurança e identidade, a caridade faz-nos viver em
comunhão de amor com Deus e com o próximo.

No plano mais superficial possível, esta necessidade de identidade busca


frequentemente ser suprida pelo ter, pela posse de bens materiais, por um
certo estilo de vida exterior: identifico-me com minha riqueza, minha
aparência física, minha moto, meu iate. Estabelece-se, desta forma, uma
terrível confusão: tenta-se suprir uma necessidade de ser pelo ter. Isso pode
nos iludir durante um certo tempo, mas não dura muito e as decepções
chegam bem depressa... Quantas pessoas, por exemplo, acabam por
perceber que os outros se interessavam por elas por causa de seu dinheiro e
não por elas mesmas, e, depois de terem sido, por um tempo, os "reis do
pedaço" se veem abandonados a mais terrível solidão.
A um nível um pouco mais elevado, a necessidade de ser vai tentar
satisfazer-se através da aquisição e exercício de certos talentos (esportivos,
artísticos, intelectuais). Já é um pouco melhor, mas é preciso reconhecer
que ainda é grande o risco de uma confusão entre o ser e o ter: a pessoa se
identifica com o conjunto de seus talentos e de suas competências. Mas,
será que sou somente isso? E se eu perder minhas capacidades? Se eu sou o
melhor jogador de futebol do mundo e de repente me vir em cadeira de
rodas? Se eu souber de cor toda a literatura francesa e vier a perder a
memória em um acidente? Quem sou eu, afinal?
Esta tendência a constituir-se um "ser" na base do "fazer" tem,
certamente, um aspecto positivo na construção da pessoa, que se
desenvolve por meio do exercício de suas diferentes capacidades. É normal
e bom que alguém se considere capaz de fazer isso ou aquilo, desenvolver
suas potencialidades e, assim, saiba quem é, adquira uma confiança em si,
experimente a alegria de expressar os talentos que lhe foram dados. A
educação e a pedagogia fundamentam-se em grande parte sobre esta
tendência e isso é bom.
Mas não se pode identificar a pessoa com a soma de suas aptidões; ela é
bem mais que isso. Não se pode julgar alguém somente por suas
capacidades, cada pessoa tem um valor e uma dignidade únicas
independentes do que sabe fazer. Se não nos advertimos sobre isso, grande
é o risco de nos encontrarmos um dia em uma "crise existencial" profunda
diante de um fracasso. Além do risco de termos com relação aos outro é
uma atitude de desprezo diante de seus limites e incapacidades. Tudo isso
prejudica muito o relacionamento entre as pessoas e as impede de chegar à
gratuidade própria do amor, da qual falamos pa parte anterior. Qual seria o
lugar dos pobres, dos portadores de limites especiais em um mundo onde a
pessoa só tem valor em função de sua eficiência, do bem visível que pode
produzir?

Capitulo 2
ORGULHO E POBREZA ESPIRITUAL

É interessante fazer aqui uma reflexão sobre a problemática do orgulho.


Todos nascemos com uma ferida profunda, que é vivida como uma
carência, uma carência de ser. Procuraremos suprir esta carência peja
compensação. Esse mecanismo faz com que cada ser humano busque para
si uma identidade compensatória que o faça diferente dos outros segundo a
sua ferida. Fabrica-se, dessa forma, para si, um "ego" diferente do "eu"
verdadeiro, semelhante a uma bola de soprar.
Este "eu" artificial tem algumas características que lhe são típicas: como
é artificial, requer uma grande perda de energia para permanecer inflado e,
como é frágil, precisa ser protegido. O orgulho e a rigidez caminham, desta
forma, par a par. A superfície desta bola de soprar, longe de ser maleável,
é, pelo contrário, constituída de defesas que protejam esta identidade
fictícia: pobre de quem a contestar, ameaçar, questionar, perturbar a
expansão do nosso eu artificial. Será vítima de reações violentas e
agressivas de nossa parte.
Quando o Evangelho nos diz que devemos "morrer a nós mesmos",
quer, na verdade, dizer-nos que devemos fazer morrer este "ego", este eu
fabricado artificialmente para que possa emergir o “eu" verdadeiro que nos
é dado por Deus.
Essa mesma problemática é encontrada no domínio da vida espiritual,
na qual a busca de identidade está em toda parte e extremamente operante.
A tendência a constituir para si um "eu" no plano da vida espiritual é
normal e positiva, é um recurso de crescimento humano e espiritual. É uma
motivação para progredir, adquirir dons e talentos, imitar este ou aquele
santo que nos atrai e com o qual nos identificamos mais ou menos. Desejar
ser, no domínio religioso, como São Francisco de Assis ou Madre Teresa
de Calcutá, pode incentivar um caminho de santidade, uma resposta
vocacional e assim por diante. Certamente vale mais desejar ser alguém
segundo os valores do Evangelho que no domínio do banditismo!
Mas a problemática é evidentemente perigosa se não representa apenas
uma etapa do crescimento espiritual. Tentamos crescer espiritualmente pela
via das virtudes, das qualidades espirituais e isso significaria que
inconscientemente nos identificamos com o bem que podemos realizar. É,
evidentemente, uma coisa boa fazer o bem (orar, jejuar, devotar-se ao
serviço do pobre, evangelizar, praticar os carismas, etc.). O que é
extremamente perigoso é nos identificarmos com o bem espiritual de que
somos capazes.
Esta identidade, por superior que possa ser à identificação com as
riquezas materiais ou talentos humanos, é também artificial e frágil.
Desaparecerá no dia em que uma ou outra de nossas virtudes for posta em
xeque ou uma de nossas aptidões espirituais em que éramos fortes nos seja
tirada. Como viveremos os "fracassos", as decepções se nos identificarmos
com nossas conquistas espirituais?
Conheço religiosos que se entregaram profundamente ao apostolado,
que se dedicaram de corpo e alma a uma boa causa e que, no dia em que a
enfermidade ou a decisão de um superior os obrigou a cessar esta atividade
viveram uma crise profunda, ao ponto de não saberem mais quem eram.
Esta auto-identificação com o bem que somos capazes de realizar é
perigosa porque conduz ao orgulho espiritual. Consideramo-nos, mais ou
menos conscientemente, como a fonte e o autor deste bem e o atribuímos a
nós mesmos, ao invés de reconhecermos a verdade que é a de que todo bem
de que somos capazes é um dom gratuito de Deus. O bem que fazemos não
é de nossa propriedade, mas um encorajamento da parte de Deus: Que tens
que não tenhais recebido? E se o recebeste, por que te glorificares como se
não o tivesses recebido?126 Lembra-nos São Paulo. Este orgulho nos leva a
julgar aqueles que não realizam o bem de que somos capazes, a nos
impacientarmos com aqueles que nos impedem de realizar este ou aquele
projeto, etc.
126 1 Cor 4,7

Orgulho, dureza, desprezo do próximo, mas, também, medo e


desencorajamento serão os resultados inevitáveis desta confusão entre eu e
meus talentos. As decepções serão imensamente mal vividas, pois, ao invés
de serem percebidas como acidentes normais de percurso (e até mesmo
benéficos!) serão vividos dramaticamente como um atentado ao nosso ser,
uma ameaça à nossa identidade. Daí advém, igualmente, um medo
excessivo das decepções e fracassos.
É preciso afirmar veementemente: o homem é mais que o bem que ele
pode realizar. É filho de Deus e, quer ele faça o bem ou não consiga fazê-lo
ainda, quer ele se torne até incapaz de fazê-lo, continua a ser, da mesma
forma, filho de Deus, pois os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis,
Nosso Pai do Céu não nos ama pelo bem que fazemos, mas gratuitamente,
por nós mesmos, porque nos adotou para sempre como seus filhos127.
127. Esta verdade precisa ser descoberta. Está em jogo, de modo especial, na
frequente "crise da meia idade": depois de desgastar-se durante anos de
atividade, a pessoa se encontra, aos cinquenta anos, em um grande vazio interior
por ter tentado existir através do “fazer", esquecendo de procurar os meios para
acolher sua verdadeira e inalienável identidade de filho de Deus, amado não pelo
que faz, mas pelo que é.

É por isso que a virtude contrária ao orgulho, a humildade ou pobreza


espiritual, é tão preciosa: coloca nosso eu ao abrigo de tudo o que o
pudesse colocar em perigo. Se Deus; for nosso tesouro, ninguém no-lo
poderá usurpar. A humildade é a verdade: sou quem eu sou, não uma
construção artificial, frágil e constantemente ameaçada. Sou o que sou aos
olhos de Deus, um filho pobre, que não tem absolutamente nada, que
recebe tudo, mas que é infinitamente amado e totalmente livre, que não tem
nada a temer e nada a perder porque já recebeu tudo por antecedência
graças ao amor gratuito e benevolente do Pai que um dia lhe disse esta
palavra definitiva: Tudo o que é meu é teu128.
128. Lc 15,31

Nossa verdadeira identidade, bem mais profunda que o ter ou o fazer e


mesmo que as virtudes morais e as qualidades espirituais é aquela que
descobrimos pouco a pouco ao vivermos sob o olhar de Deus. Aquela que
ninguém, nenhum acontecimento, nenhuma queda e nenhuma decepção nos
poderá jamais usurpar. Nosso tesouro é aquele que não pode ser devorado
pela ferrugem ou pelos vermes129. Ele está no céu, entre as mãos de Deus.
Depende não dos acontecimentos, nem do que temos ou não temos, nem
mesmo, em certo sentido, do que fazemos ou não fazemos, de nosso
sucesso ou decepções. Depende somente de Deus, de sua benevolência e de
sua bondade que é sempre a mesma, independente do que façamos ou
sejamos. Nossa identidade, nosso "ser" tem uma fonte muito mais profunda
e superior que nossas atividades: o amor criador de Deus que nos fez à sua
imagem e que nos destina a viver para sempre com ele, amor que não nega
a si mesmo.
129. Mt 6,19

Gostaria de citar uma bela passagem de um ensaísta contemporâneo


famoso: "O amor permanece quando nada mais existe. No fundo de nós
mesmos, temos a memória de quando, para além de nossos fracassos, de
nossas separações, das palavras que acolhemos, sobe do fundo da noite
como uma canção suave a certeza de que para além dos desastres de nossa
história, para além mesmo da alegria, da dor, do nascimento, da morte,
existe um espaço no qual nada nos ameaça, nada jamais nos ameaçou, e
que não pode ser destruído por nada, um espaço intacto, espaço do amor
que deu início ao nosso ser"130.
130. Christiane Singer, op. cit. p. 79

Isso certamente não significa que seja indiferente nos conduzirmos bem
ou mal. É absolutamente necessário, tanto quanto nos seja possível, fazer o
bem e evitar o mal, porque o pecado nos fere e fere o outro e seus desgastes
são frequentemente longos e de difícil reparação. E afirmo que não temos o
direito de confundir uma pessoa com o mal que ela comete (seria aprisionar
esta pessoa e perder toda esperança sobre ela) nem identificar alguém
(sobretudo a si meso) com o bem que faz.

Capitulo 3

AS PROVAS ESPIRITUAIS

A reflexão que acabamos de fazer fornece-nos um esclarecimento


interessante sobre a pedagogia divina para com cada um de nós e sobre o
significado das provas na vida espiritual.
Penso que as provas que podemos atravessar na vida cristã, estas
"purificações" tão familiares à linguagem da mística não têm outro sentido
senão o trabalho de destruição do que existe de artificial em nossa
personalidade, para que possa emergir nosso ser verdadeiro, isto é, quem
somos para Deus. As noites espirituais são, poderíamos dizer,
empobrecimentos por vezes muito difíceis, que retiram da pessoa, de forma
radical, toda possibilidade de apoiar-se sobre si mesma, sobre suas
conquistas (humanas ou espirituais), sobre seus talentos, capacidades e
mesmo suas virtudes. No entanto, são extremamente benéficas porque
conduzem à sua verdadeira identidade. Na noite espiritual, o homem se vê
radicalmente pobre e impossibilitado de todo bem e de todo amor.
Descobre-se capaz de todos os pecados que existem no mundo.
Esta experiência pode ser muito dolorosa. Por exemplo, quando uma
pessoa que ama o Senhor atravessa uma fase na qual não percebe em si um
mínimo de fervor, chegando mesmo a uma completa falta de gosto pelas
coisas espirituais. Ter entregue a vida a Deus e encontrar-se assim incapaz
do menor movimento de amor para com ele é um sofrimento terrível
porque parece-nos termos perdido o próprio sentido da vida131. O benefício
desta prova é o seguinte: impedir ao homem toda possibilidade de apoiar-se
sobre o bem de que é capaz para que o único fundamento de sua Vida seja
a misericórdia divina. Trata-se de uma verdadeira revolução interior: fazer
com que eu não mais me apoie sobre o amor que tenho por Deus, mas
exclusivamente no amor que Deus tem por mim. Um padre me disse um
dia em confissão: “Quando você não acreditar mais no que você pode fazer
por Deus, continue a acreditar no que Deus pode fazer por você”.
131. Neste tipo de prova, a pessoa não perde o amor por Deus. Seu ser
permanece profundamente orientado para ele. O que ela perde é todo o
sentimento de amor. O amor existe, mas não é mais perceptível, exceto como
sofrimento. Sofrimento de sentir-se incapaz de amar, de não amar
suficientemente...

Progressivamente - e paralelamente - a este terrível empobrecimento


que experimenta, a pessoa que passa pela prova e que não se desencoraja,
mas espera no Senhor, começa a compreender mais claramente algo que
para ele era, até então, uma expressão piedosa vital: Deus não me j ama por
causa do bem do qual sou capaz, do amor que tenho por ele, mas de
maneira absolutamente incondicional, em virtude dele mesmo, de sua
misericórdia e ternura infinitas, em virtude de sua paternidade única com
relação a mim.
Esta experiência produz uma reviravolta fundamental na vida cristã,
uma imensa graça: o fundamento de meu relacionamento com Deus, de
minha vida, não está mais em mim mesmo, mas total e exclusivamente em
Deus. Isso não quer dizer, evidentemente, que para aquele que passou por
tal prova torne-se indiferente, a partir daí, fazer o bem ou o mal. A pessoa é
mais que nunca tomada por Deus e desejosa de agradar-lhe através de boas
obras, mas o bem que ele agora faz é feito de maneira pura, livre e
desinteressada. Não provém de uma necessidade de criar para si uma iden-
tidade artificial, ou de uma sede de sucesso, da necessidade de provar a si
mesmo ou aos outros que ele existe. Não tem mais como desejo escondido
o querer merecer seja o que for como recompensa. Sua fonte está em Deus.
Esta "reviravolta" em nossa vida espiritual, na qual estão profundamente
implicadas uma experiência radical de empobrecimento e uma nova
revelação de Deus como Pai é bem descrita na seguinte passagem, extraída
do livro do monge egípcio Matta el Maskíne (Mateus, o Pobre) em sua obra
sobre a oração132. Ele chama de "mornidão espiritual”133 a prova a que
acabamos de nos referir na qual a alma, antes fervorosa e desejosa de servir
a Deus, se sente incapaz de rezar, de amar, privada de todo bem espiritual e
descreve da seguinte forma o sentido e a maneira como ela coloca sobre
novas bases a relação do homem com seu Deus:
132. A experiência de Deus na vida de oração, ed. du Cerf, p. 295.133.
133. A palavra "mornidão" tem, aqui, o sentido de preguiça e negligência
voluntária no serviço de Deus.

"Quando a alma se entrega à luta espiritual, à assiduidade nas


orações e à minuciosa observância das outras práticas espirituais,
pode adquirir o sentimento de que esta atividade e assiduidade
condicionam sua relação com Deus. Parece-lhe, então, que é em
razão de sua perseverança e fidelidade às orações que ela merece ser
amada por Deus e tornar-se sua filha. Mas Deus não quer que a alma
permaneça nesta estrada falsa que, na verdade, a distanciaria
definitivamente do amor gratuito de Deus e da vida com ele. Além
disso, retira-lhe esta energia e esta assiduidade que arriscariam
causar sua perda.
Uma vez que Deus lhe retira as capacidades que gratuitamente lhe
havia ofertado como prova do seu amor, isto é, esta energia e
assiduidade às obras espirituais, a alma permanece sem força,
incapaz de realizar a menor atividade espiritual. Ela é, então,
confrontada com a verdade estupefante que persiste em recusar e a
considerar como altamente improvável: Deus em sua paternidade não
tem necessidade de nossas orações e de nossas obras. No início o
homem se prende à ideia de que a paternidade de Deus certamente
afastou-se dele devido à sua falta de oração e que Deus abandonou a
alma e não mais se ocupa dela porque suas obras e sua perseverança
não estavam à altura do seu amor. A alma tenta em vão levantar-se
do seu abaixamento e luto para retomar sua atividade, mas suas
resoluções não dão em nada. A seguir, pouco a pouco, a alma
começa a compreender que a grandeza de Deus não pode ser medida
à luz da futilidade do homem; que sua paternidade eminentemente
superior aceitou adotar os filhos do pó por causa de sua infinita
ternura e da imensidade de sua graça e não como recompensa pelas
obras do homem e de seus esforços; que nossa adoção por Deus é
uma verdade que tem sua nascente em Deus e não em nós mesmos, o
que é uma verdade sempre presente que persiste - apesar de nossa
impotência e nosso pecado - em testemunhar a bondade de Deus e
sua generosidade. Assim, a mornidão espiritual conduz essas almas a
revisar fundamentalmente sua concepção de Deus e sua avaliação
das relações espirituais que a ligavam a Deus. Sua concepção do
esforço e assiduidade nas obras espirituais modificam-se
profundamente. Estas não serão mais consideradas como o preço
com que se compra o amor de Deus, mas como respostas ao seu
amor e paternidade."

Note-se que o que Deus faz na alma de algumas pessoas ao mergulhá-


las na prova da "mornidão espiritual" que acabamos de descrever, deseja
fazê-lo com todas as pessoas, de maneira mais normal e mais progressiva,
poderíamos dizer, utilizando os sofrimentos da vida: fracassos, im-
potências, quedas de todos os tipos, enfermidades, depressões, fragilidades
psicológicas e afetivas, não importa qual sua origem, inclusive nossas
faltas. Ainda que suas causas não tenham, no princípio, nada a ver com
uma intervenção divina e não sejam diretamente ligadas à vida espiritual,
Deus delas se serve para o mesmo fim. .
Afinal, não há muita distinção entre as provas espirituais e as outras,
pois Deus se serve de tudo, mesmo do que ele não "programou". Tome-se,
por exemplo, as consequências dos nossos pecados! É consolador saber que
se pode tirar um grande benefício espiritual mesmo de uma prova que não
tenha nada de espiritual! Não tenhamos, pois, medo dos momentos em que
a vida nos despoja e nos empobrece em qualquer que seja o campo. Daí
Deus fará fluir uma preciosa liberdade.

Capitulo 4

A MISERICÓRDIA COMO ÚNICO APOIO

O homem livre, o cristão espiritualmente maduro, isto é, que se tornou


verdadeiramente "filho de Deus" é aquele que experimentou seu nada
radical, sua miséria absoluta, que foi como "reduzido a nada", mas no
profundo deste nada acaba por descobrir uma ternura inefável, o amor
absolutamente incondicional de Deus. A partir de agora tem somente um
apoio e uma única esperança: a misericórdia sem limites do Pai. Ela é sua
única segurança. Ele tudo espera desta misericórdia e somente dela e não
mais de seus recursos pessoais ou da ajuda dos outros. Realizou-se para ele
a palavra que Deus dirige a Israel pela voz do profeta Sofonias: Farei
subsistir no meio de ti um povo humilde e modesto e é no nome do Senhor
que encontrará refúgio o resto de Israel.
Este homem se esforça generosamente por fazer o bem, acolhe com
alegria e reconhecimento o que lhe pode ser provocado por seu próximo,
mas é uma grande liberdade, porque seu apoio está em outro lugar, está
somente em Deus. Suas fraquezas não o inquietam mais nem ele deseja que
os ouros correspondam sempre às suas expectativas. Este apoio unicamente
em Deus coloca-o ao abrigo de todo desapontamento e lhe confere uma
grande liberdade interior que o coloca todo ao serviço de Deus e de seus
irmãos, na alegria de responder ao amor com amor.

Capitulo 5

O HOMEM LIVRE: AQUELE QUE NADA MAIS TEM A PERDER

Nosso mundo procura a liberdade no acúmulo do ter e do poder.


Esquece esta verdade essencial: só é verdadeiramente livre aquele que nada
mais tem a perder, porque já está despojado de tudo, desligado de tudo,
livre com relação a todos134 e a tudo; aquele de quem se pode dizer, em ver-
dade, que "já passou pela morte" porque seu "bem" agora está em Deus e
somente nele. Aquele que nada ambiciona e não tem medo de nada, este é
soberanamente livre, porque todo bem que verdadeiramente importa lhe é
assegurado por Deus. Este não tem medo de nada porque não tem nada a
perder, nada a defender. Não se sente ameaçado por ninguém e, portanto, a
ninguém considera inimigo. Este é o pobre das beatitudes, despojado,
humilde, misericordioso, doce, artífice da paz.
134. Expressão de São Paulo em 1 Cor 9,19.

Uma parábola desta verdade poderia ser encontrada em um capítulo do


romance de Soljenitsyne, O Primeiro Círculo. Ele traz, na época da
ditadura stalinista, a entrevista entre um prisioneiro político, um "zek" e um
alto funcionário do partido. O primeiro está preso. Conheceu anos de
goulag, perdeu sua família nos bombardeios. O funcionário está em
liberdade, é rico, poderoso, mas treme sem cessar, pois no contexto no qual
se passa o romance, arrisca-se a, de um dia para o outro, ser vítima de uma
das incessantes "batidas" e acabar na prisão. O funcionário precisa dos
serviços deste "zek", que é um cientista, para um projeto que lhe pediram
realizar, no qual arrisca sua carreira, e utiliza todos os argumentos para
convencê-lo a colaborar com ele.
Soljenitsyne mostra com muita propriedade como neste diálogo o
verdadeiro homem livre, aquele que, no final das contas, é quem dá as
cartas, não é o poderoso funcionário, mas o prisioneiro, pois este não tem
mais nada a perder. Ele está pronto, se necessário, a voltará Sibéria: sabe
que, mesmo naquelas condições terríveis, pode continuar a ser
verdadeiramente homem.
Não digo que seja preciso desejar a alguém que viva esta experiência
dos campos de concentração, mas quero dizer que é bom meditar sobre isso
e que se a experiência do goulag ou do campo de concentração é um dos
dramas maiores do século XX, ela, por outro lado, traz uma abundância de
testemunhos de pessoas que encontraram, paradoxalmente, atrás das
grades, depois de terem perdido tudo, a verdadeira liberdade.
Em seu livro, Etty Hillesum, prisioneira no campo de Westerbork, faz
esta reflexão: "Os arames farpados são somente uma questão de ponto de
vista. Um dia, um indestrutível senhor idoso me disse, fazendo com a mão
um gesto de melancolia: 'Nós, atrás da barreira e eles, lá fora... não virão
também eles um dia, para aqui atrás dos muros, talvez? ' (e ele apontava na
direção das grandes casas que se erguiam como carrascos do outro lado da
prisão)135". E, em outro trecho: "Quando se tem uma vida interior, pouco
importa, sem dúvida, de que lado das grades de um campo de concentração
estejamos"136.
135. Op.cit. p.258.
136. Op. cit. p. 109.

Capitulo 6

FELIZES OS POBRES
À medida que os anos passam, que eu encontro pessoas e partilho em
profundidade com elas; à medida que experimento a ação discreta,
misteriosa mas real de Deus em minha vida e na delas, fico mais e mais
impressionado de constatar quanta sabedoria existe no Evangelho, como
esta Palavra é verdadeira, como ilumina a condição humana com uma luz
de estonteante precisão. Este Evangelho paradoxal e inesgotável que nós
talvez - mesmo entre os cristãos - ainda não tenhamos começado a viver,
tem uma virtude (uma força) inaudita para fazer de nós seres livres, para
nos tomar capazes de amar em verdade, para nos "humanizar” realmente.
Isso significa também nos divinizar, pois fomos criados à imagem de Deus.
Nesta Palavra são reveladas da maneira mais fecunda e profunda o que são
todas as leis da existência e em particular aquelas segundo as quais é possí-
vel encontrar a felicidade.
No centro do Evangelho estão as Bem-aventuranças. A primeira resume
todas as outras: Felizes os pobres de coração, pois deles é o Reino dos
Céus. Desejo que as considerações deste livro tenham ajudado o leitor a
compreender esta afirmação surpreendente de Jesus, a perceber a verdade
sobre ela e a vivê-la. A pobreza espiritual, a dependência total de Deus e de
sua misericórdia é a condição essencial da liberdade interior. É preciso nos
tornarmos crianças e "consentir a tudo esperar do dom do Pai, mas tudo
mesmo, um instante após outro"137.
137. Jean-Claude Sagne, o.cit. p. 172.

Não sabemos o que será do nosso mundo nos próximos anos, que
acontecimentos marcarão o terceiro milênio. Mas uma coisa é certa: os que
souberam descobrir e desenvolver o espaço inalienável de liberdade que
Deus colocou em seus corações fazendo dele seus filhos, estes não serão
jamais pegos desprevenidos.
À guisa de conclusão, gostaríamos de deixar para a meditação do leitor
um belo diálogo entre Jesus e um místico espanhol contemporâneo, amigo
da Virgem desde sua infância e que quer permanecer no anonimato. Este
texto parece-nos uma bela expressão dos temas abordados neste livro para
traçar o caminho para a liberdade interior, particularmente a aceitação
realista de si mesmo e a fé em Deus presente em todos os acontecimentos
de nossa vida:
- “Tu jamais me perguntaste o que é a coisa que vives que me causa
maior alegria...”
- “Não...” disse eu a Jesus, e ele me respondeu:
- “É quando em lúcida liberdade tu dizes "sim" aos apelos de Deus”.
Em seguida, ele continuou, dizendo-me:
- “Lembra-te desta palavra do Evangelho: A verdade vos tornará
livres. Só podes responder aos apelos da graça com liberdade quando tua
própria verdade estiver clara, quando tu a aceitares humildemente e quando
a partir dela mantiveres um diálogo com Deus, compreendendo que tudo o
que se passou e se passa contigo corresponde a um projeto amoroso e
providencial daquele que é vosso Pai”.
Sim, muitas coisas lhe causarão perplexidade e até farão você entrar na
espessura de uma escuridão intensa; mais ainda, em uma dor que fere e
paralisa. O recurso de sua fé será seu apoio. Deus não se revela como seu
Abba? Não desposei, eu, Filho, o mais miserável de sua condição? O
Espírito Santo como Paráclito não o defende? Toda esta realidade, acolhida
com fé, com o coração e a alma, fará nascer em você a confiança.
Não tenha medo de si mesmo! Não tenha medo de tudo o que você é,
em sua realidade, na realidade que cada ser humano enfrenta, realidade na
qual Deus estabelece sua tenda para habitar com você. Deus se fez carne. O
novo nome de Deus é Emanuel, Deus conosco: Deus com a sua realidade.
Abra-se a ele sem medo. É somente à medida que você descobre a si
mesmo que descobrirá também a profundidade do amor Dele. Na
profundidade do que você é, experimentará que não está só. Alguém,
amorosamente, misericordiosamente, entrou no mistério mais íntimo de sua
humanidade e não como espectador nem como juiz, mas como alguém que
o ama, que se oferece a você e que o desposa para libertá-lo, salvá-lo, curá-
lo... para ficar para sempre com você, a amá-lo, a amá-lo!

Páscoa 2002

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