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No início do atendimento Mariana tinha T l anos. Ela possuía
segundo grau completo e trabalhava como salgadeira na lanchonete
de seu pai desde os doze anos de idade. Mariana era divorciada e
estava em sua segunda união. Dessa segunda união ela teve um filho,
Tiago, que na época do primeiro atendimento tinha dois anos. Mana
na morava com seu filho, sua mãe e suas duas irmãs.
Ainda no primeiro atendimento, quando perguntei se havia
sintomas que a incomodavam, Mariana, como quem fazia uma che
cklist, queixou-se de nervosismo, desânimo, dores de cabeça, dor de
estômago, dor no corpo, sono excessivo e queda de cabelo. Dizia que
chorava sem motivo aparente, que possuía baixa autoestima e que
era indecisa. Quando investigado sobre ideação suicida, a paciente
relatou ter uma tentativa e dizia que se ela morresse seria melhor para
todos. Mariana despertava muita preocupação, principalmente com
relação à ideação suicida.
Posteriormente, Mariana apresentou queixas de problemas no
trabalho e de convívio com os familiares. Suas metas iniciais na tera
pia eram: conviver bem com o pai de seu filho (esta meta foi modi
ficada para “conseguir separar-se dele”), ter mais disposição, passear
mais, trabalhar menos, fazer faculdade e ser compreendida pela famí
lia. No decorrer da terapia, na medida em que os sintomas depress!“
vos entraram em remissão, Mariana acrescentou as seguintes meias:
aprender a lidar com a crítica alheia ou quando a repreendem e lidar
com o medo de ficar sozinha.
Os atendimentos foram realizados pela primeira autora do ca
pítulo, com supervisões da segunda autora, na Clínica de Psicologia
do Serviço-Escola da FFCLRP/USR Foram feitas sessões semanais de
cinquenta minutos, No período de avaliação, foi feita uma entrevista
com a mãe da Mariana. Ao todo foram realizadas 51 sessões no perí
odo de dois anos.
No momento da avaliação inicial, foram aplicados os inventá
rios Beck (Cunha, 2001), e a paciente obteve os seguintes escores:
22 pontos na BAI, 40 pontos na BDI, 17 pontos na BHS e 16 pontos
PR O T A G O N IST AS EM T C C : H IST Ó RIAS D E VI D A E D E PSIC O TERAPIA | lO I |
À trajetória
Mariana é a mais velha de três filhas mulheres. Seu pai é dono
4e uma lanchonete e a mãe, faxineira. Até os sete anos de idade, Ma-
íkna teve uma infância feliz, morava com os pais e as irmãs e tinha
vários amigos. Sua lembrança mais antiga dessa época são as brinca
deiras na rua com as amigas. Mariana contou que não se relacionava
muito com as irmãs, que elas eram mais novas, muito unidas e a ex
cluíam das brincadeiras.
Ela relatou que os pais eram bastante rígidos, que a mãe não era
de conversar: “Ela era séria, seca”, e que o pai era severo, principal
mente com relação às amizades do sexo masculino, ciumento: “Para
namorar, tinha que pedir para o meu pai” . Quando ela tinha sete
anos, seus pais se separaram, e as filhas ficaram com a mãe. Mariana
lembra que o pai saiu de casa e quando ela perguntou à mãe quando
ele voltaria, ouviu a mãe dizer que não sabia. Essa foi uma situação
muito marcante na vida de Mariana, que ficou sem saber do pai por
um mês, quando o reencontrou na rua. Quando ela tinha dez anos,
os pais fizeram uma nova tentativa de viverem juntos. Ela se lembra
dessa época com bastante afeto, diz que foi uma época boa, que o pai
as visitava aos finais de semana e saíam para passear.
Em relação à escola, Mariana conta que gostava de estudar, que
linha muitos amigos e brincava não só com as pessoas de sua sala.
Relatou ter sido meio “avoada” e ter tido dificuldades com a mate
mática, mas isso nunca fora motivo para ficar em recuperação ou ser
reprovada.
Aos doze anos ela começou a trabalhar com o pai na lanchonete
e lá permanece até hoje. Sua rotina de trabalho é intensa, chegando
a trabalhar mais de dez horas por dia, sem descanso aos finais de se
mana ou direito a férias. Mariana relatou que já ficou até três meses
sem remuneração. Mesmo quando Mariana passou por uma cirurgia
j '10 2 | Q uando o solidão apavora
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Mariana contou que sempre foi irritada e indecisa. Relatou que
passou a sentir os sintomas que a motivaram a buscar o atendimento
três anos antes da consulta, e que estes se agravaram no ano antece
dente ao início da terapia. Mariana relatou que, naquela ocasião, ela
havia brigado com o marido e, sentindo muita raiva, cortou os braços
com vidro com a intenção de se matar. Entretanto o ferimento foi su
perficial e ela não precisou de cuidados médicos. Antes dos sintomas
aparecerem, ela contou que saía de casa com mais frequência, era
mais ativa e mais feliz.
Mariana possuía algumas características anteriores ao início
dos sintomas e que de certa forma agravavam seu quadro. Ela era
1( H | Q uando a solidão apavora
Retendo o enredo
O modelo cognitivo propõe que os transtornos psicológicos
são derivados cle um modo distorcido/disfuncional de perceber a si
mesmo, os outros/o mundo e o futuro. Nesse sentido, tais distorções
de pensamento influenciam emoções e comportamento —e são afeta
das por eles (Beck, Rush, Shaw & Emery, 1997; Beck, 1997).
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) identifica três
níveis de pensamento: os pensamentos automáticos, as crenças-
-regra e as crenças centrais. Os pensamentos automáticos são es
pontâneos, estão diretamente ligados a situações e podem estar
disponíveis à consciência após um treino adequado. Os pensamen
tos automáticos distorcidos são frequentes nos trantornos psicoló
gicos e apresentam distorções cognitivas, como inferência arbitrá
ria, abstração seletiva, desqualificação do positivo, leitura mental.
Por sua vez, as crenças regras não estão diretamente ligadas a situ
ações e costumam ocorrer em forma de suposições ou regras. As
crenças-regra refletem ideias ou entendimentos mais resistentes à
mudança que os pensamentos automáticos. Já as crenças centrais
constituem o modo mais profundo da estrutura cognitiva e são
compostas por ideias rígidas e globais que o indivíduo tem sobre
si mesmo, sobre os outros/o mundo e também sobre o futuro. Es
sas crenças se desenvolvem na infância a partir de eventos trau
máticos ou de experiências muito frequentes. M esmo após novas
experiências que contestem as crenças centrais, estas permanecem
PR O T A G O N IST AS EM T C C : H IST Ó RIAS D E VI D A E D E PSIC O TERAPIA | lO g |
Relendo o enredo
O modelo cognitivo propõe que os transtornos psicológicos
são derivados de um modo distorcido/disfuncional de perceber a si
mesmo, os outros/o mundo e o futuro. Nesse sentido, tais distorções
de pensamento influenciam emoções e comportamento — e são afeta
das por eles (Beck, Rush, Shaw & Emery, 1997; Beck, 1997).
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) identifica três
níveis de pensamento: os pensamentos automáticos, as crenças-
-regra e as crenças centrais. Os pensamentos automáticos são es
pontâneos, estão diretamente ligados a situações e podem estar
disponíveis à consciência após um treino adequado. Os pensamen
tos automáticos distorcidos são frequentes nos trantornos psicoló
gicos e apresentam distorções cognitivas, como inferência arbitrá
ria, abstração seletiva, desqualificação do positivo, leitura mental.
Por sua vez, as crenças regras não estão diretamente ligadas a situ
ações e costumam ocorrer em forma de suposições ou regras. As
crenças-regra refletem ideias ou entendimentos mais resistentes à
mudança que os pensamentos automáticos, já as crenças centrais
constituem o modo mais profundo da estrutura cognitiva e são
compostas por ideias rígidas e globais que o indivíduo tem sobre
si mesmo, sobre os outros/o mundo e também sobre o futuro. E s
sas crenças se desenvolvem na infância a partir de eventos trau
máticos ou de experiências muito frequentes. M esmo após novas
experiências que contestem as crenças centrais, estas permanecem
PR O T A G O N IST AS EM T C C : H IST Ó RIAS D E VID A E D E PSIC O TERAPIA | lO g |
Construindo a mudança
Como mencionado anteriormente, Mariana foi atendida em
um serviço-escola pela primeira autora deste capítulo, com supervi
sões da segunda autora. Ao todo, foram realizadas 51 sessões no perí
odo de dois anos. A etapa inicial desse atendimento foi caracterizada
pelo levantamento e aprofundamentos das queixas da paciente, com
uma entrevista de um familiar para investigar a extensão dos sinto
mas. Em seguida, deu-se início à conceitualização cognitiva de caso,
que permitiu que a paciente entrasse em contato com suas cognições
e estratégias compensatórias, ao mesmo tempo em que guiou as in
tervenções terapêuticas.
N o início do tratamento, a paciente mostrava-se deprimida, de-
sesperançosa e com ideação suicida. Portanto, a intervenção mais pre
mente era para assegurar que não haveria novas tentativas de suicídio.
O primeiro passo foi investigar o histórico e as possíveis motivações
para o suicídio. A partir de então, percebeu-se que seu desejo suicida
era a expressão extrema de sua desesperança. Mariana percebia sua
situação conjugal como insolúvel e insuportável, desvalorizava a si
mesma e acreditava que seria melhor para todos se ela morresse. Nes-
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achava que aquelas coisas não faziam sentido e que tinha certeza que
não voltaria a ter os sintomas de depressão. Quando Mariana voltou
das férias, ela havia recaído dos sintomas depressivos, da ideação sui
cida e da ansiedade.
Essa recaída foi utilizada para retomar as estratégias que ela
poderia usar quando identificasse os primeiros sinais de tristeza. Ou,
ainda, quando identificasse situações que a deixavam triste, procu
rando evidências contra e a favor da veracidade do pensamento au
tomático e buscando pensamentos alternativos. Retomou-se o treino
de respiração, fez-se lista e hierarquia de preocupações (Leahy, 2007),
Suas preocupações faziam referência ao esquema de abandono e ao de
padrões inflexíveis. O padrão inflexível era circunscrito à sua relação
com o pai e aparecia condicional ao esquema de abandono: “ seu eu
for perfeita ele não vai me abandonar” . Deu-se, portanto seguimento
ao tratamento de esquemas, com enfoque principal no esquema de
abandono, utilizando as técnicas da Terapia dos Esquemas de Young
(Young, 2003; Young, Klosko &c Weishaar, 2008).
Além da busca de evidências descrita, outra técnica utilizada
foi a de diálogos imaginários para ressignificar memórias traumáti
cas. Um exemplo foi uma ocasião que Mariana evocou a memória de
quando o pai saiu de casa, o que tinha alta carga emocional. Mariana
relatou que achava que era a culpada pela ausência do pai e que nunca
mais o veria. Após isso, discutiu-se a veracidade desses pensamentos e
o quanto eles ainda estavam presentes atualmente. Em seguida, foram
levantadas alternativas de interpretação do evento focando como a
paciente adulta e saudável interpretaria o episódio. A partir de então,
conversou-se sobre o que a Mariana adulta e saudável diria à Mariana
criança para acalmá-la. A terapeuta pediu que a paciente revivesse
novamente o episódio, mas que desta vez a Mariana adulta e saudável
entrasse na história para acalmar a Mariana criança.
Como os esquemas de Mariana eram ativados durante as ses
sões terapêuticas, estes foram foco de intervenções interpessoais.
Quando a Terapia dos Esquemas foi retomada, Mariana começou a
faltar às sessões de terapia. Como se tratava de um serviço-escola,
logo no início do atendimento havia sido contratado com Mariana
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0 embasamento
American Psychiatric Association. Emery, G. (1997). Terapia cognitiva da
(2002). DSM-ÍV-TR: Manual diagnósti depressão. Porto Alegre: Artmed.
co e estatístico de transtornos mentais (4. Beck, J. S. (1997). Terapia cognitiva: Te
ed. rev., Cláudia Dornelles, Trad.). Porto oria e prática. Porto Alegre: Artmed.
Alegre: Artmed.
Greenberger, D., 6c Padesky, C, (1999).
Beck, A. X , Freeman, A., Ôc Davis, D. A mente vencendo o humor. Porto Alt'
(2005). Terapia cognitiva dos transtornos gre: Artmed.
da personalidade. Porto Alegre: Artmed.
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Beck, A. X , Rush, A. J., Shaw, B, E , 6c (2003). Avaliação cognitivo-comporta
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Com fSUv ftfs&atiite C o m fofóiSfo -Coíiôfoítf* - t& ' '
Pensa m ento “ninguém mais vai “ ele sabia q ue eu “ eu não te n h o culp a” “ esta calça ficou bem “Sou b u rra!” “desafiei minha
Au to mjSLico (PA): g ostar d e m im” tinha q ue sair an tes" em m im ’: intelig ência, ve nci
um a b atalh a"
Significado do PA: Indigna d e a m or A b uso, d esresp eito injustiça satisfação sncapacídade capacidad e
Em oçã o e Reação triste z a, d esesp ero irrita çã o raiva felicidad e A nsied ad e, raiva, felicid a d e
fisioló gica (R F): co nstran gim ento
ComporLamenio: C h ora, q u e bra Fica q uieta A g rid e e dram atiz a Foi passear N ã o co nseg ue fa z er Foi co n tar p ara os
coisas, agride pessoas pais
Steísrfê si Situ açã o 2: D ia n te a Pai ord e n a q ue bata C o n ta r ao pai que D ia n te de um p edid o D ia n te Estudando para
possibilidade d e Jú lio um* quantidade estava na m orand o. d e carona. psico ed ucação prova.
não a p rocurar mais. g ra n d e d e massa. so bre 0 esq ue m a d e
abandono.
Pensamento “ te n h o m ed o d e ser “ ele m onta nas “ ele vai m e critic a r” “ ainda bem que “ Q u e ria fa z er co m o “ N a d a e n tra na
A u to m ático (PA ): so zin ha” minhas costas” “ ele posso aju d ar" as o utras pessoas minha ca b eça”
’‘q u eria um m arid o não se im p orta " fa z em e não co nsig o "
p ara d ele d e p e n d e r"
Significado d o PA: A ban d on o, D esresp eito, Suscetível à crítica U tilid a d e, capacidad e incapacida de incapacida de
fragilidade inco m preensão
Em oçá o e Reação triste z a, raiva triste z a M e d o e ansiedad e satisfação triste z a Irrita d a, m edo de
fisioiógica (R F): fa z er a prova
C o m p orta m e n to: A gressivid ad e, o b e d ece à ord e m Ficou remoendo e Paro u e ajudou O lh os ch eios d 'á g u a N ã o consegue
envoiver - se com í^õ-O contou estudar
outras pessoas
.... ...................... ......r
W Ê Ê Ê Ê S Ê Ê ik K ':f' $
Siusação 1: N a m ora d o não paga Pai d erra m a ó le o no D iverg ê n cia co m D esco b re que C h eg o u atrasada na ! Q u e ria tira r um a
uma co n ta do fíin o. chão. a m ãe e m relaçã o açou g ueiro e ntre g o u sessão. : dúvida so bre a
aos cuidad os de seu carn e errad a. m atéria.
filh o.
Significado d o PA : irresp o nsabilidad e irresp o nsabilidad e d esresp eito inco m p etência inco m preensão criticid a d e
C o m p orta m e n to: Brig a na te n tativa Fica q uieta e íim pa Brig a co m a m ãe N ã o recla m a co m o Ex plica - se N ã o ped e ajuda
d e mudá - lo e açou g ueiro.
So b co ntrolá - lo
Oi
utronj Situ ação 2: D ura n te um a briga Fu ncio n ária nova Q u an d o pai critica N a e ntre g a do Enganou - se em Estu d o u m uito para
mmtÈO co m 0 nam orado. d e m ora para fa z er o sua falta d e ânim o. filh o na crech e, relaçã o ao h orário um a p rova e foi fácil
serviço. as professoras e chegou à sessão
d e m ora m p ara co m 1 h ora de
p eg á - fo. antece d ê ncia.
Pensa m ento “ ele não vai m u dar” “ Ela e nada são a “ Eles não m e “ elas enrolam '’um a h ora ela “ estu d ei tan to e
A u to m ático (PA ): m esm a coisa 1’ esUendem” m uito” ch e g a" chego aqui é isso”
“ Eía d everia sa b er”
Significado do PA: D esesp erança, inco m p etência inco m preensão D esresp eito, co nfiança d esresp eito
im p otê ncia inco m p etência
Em oção e Reação Triste z a, mágoa e irritaçã o triste z a irritaçã o tran q uila raiva
fisiológica (R F): raiva
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C o m p orta m e n to: A g rid e co m tapa N ã o fala nada ch oro in q uietação Esp era a terap eu ta Fa z a prova
na cara chegar râpidaíVients
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126
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SiLUii^üC ! >
í ivjfoiv, C. B. (lOCv,. Co:K»huii!feasSk? ç^ff&vrtã de caso. VIJ C c ^ íü ü o de Tfciapias Cügi-.iiivAS, Maceió, p. 07.