sociedade que exercia forte controle sobre o comportamento sexual dos indivíduos, em especial das mulheres, que se sentiam cul- padas, pecaminosas e sujas ao ve- rem brotar os desejos dentro de si. A repressão sexual era a base para a neurose do tipo histeria que, par- ticularmente na Europa ocidental, tornou-se quase epidemia em to- das as classes sociais: jovens mu- lheres apresentavam quadros gra- ves com desmaios, alterações de O professor Mário Eduardo Costa dupla personalidade, paralisias, Pereira, coordenador do simpósio: convulsões. Na sociedade de hoje, “O pensamento freudiano servirá sexualmente liberalizada, aquelas como um dos pólos do debate neuroses clássicas sobre psiquismo” Encontro dificilmente são en- marca os contradas – por ve- 150 anos do zes em subgrupos específicos, como 150 ANOS nascimento de religiosos onde o DE FREUD de Freud controle da libido permanece intenso. “Mas vale acrescentar que Freud, “Freud é um desses autores incontornáveis, que quando expulso sua teoria e a psicanálise contribu- pela porta, volta pela janela, tocando íram muito para aumentar a tole- no âmago das grandes questões rância e permitir as realizações se- humanas. O pensamento freudiano xuais. É uma prova de que Freud tem defensores e críticos, mas está presente em nosso tempo”, sempre servirá como um dos pólos observa o psiquiatra e psicanalis- do debate sobre o psiquismo e como ta Mário Eduardo Costa Pereira, matriz comum para as diversas professor da Faculdade de Ciênci- escolas da psicanálise e para as Médicas. praticamente todas as áreas “A atualidade do pensamento psíquicas”, ilustra o professor Mário Eduardo Costa Pereira, coordenador freudiano” é o tema do 1º Simpósio Oscar Nemon esculpindo Freud “zangado com a humanidade”, em 1931, foto do 1º Simpósio Internacional sobre Internacional sobre os 150 Anos de reproduzida de Diário de Sigmund Freud – 1929-1939: crônicas breves (Artmed, 2000) os 150 Anos de Freud. As mesas do Freud, que vai reunir na Unicamp simpósio estão organizadas para especialistas brasileiros e france- nhos. “Hoje, se você comete um lap- genética psiquiátrica na concep- medicina tão baseada na ciência e debater a atualidade do pensamento ses, entre 24 e 26 de agosto (veja so quando conversa, a outra pessoa ção do funcionamento mental hu- tecnologia, cuja eficácia está com- de Freud e sua contribuição na clínica texto nesta página). O encontro co- logo verá algo que o lapso denuncia. mano. Ele vai advertir sobre o ris- provada, mas que provoca sérios psicanalítica e na formação de memora uma data redonda do nas- É um sinal de que todos nós já lemos co de se incorrer no mesmo pecado reflexos na clínica médica. “Temos analistas, bem como os novos cimento de um dos autores mais o humano com olhos freudianos”, cometido pela psicanálise contem- cada vez mais médicos especialis- horizontes e desafios na área. importantes do século 20, que pro- exemplifica o organizador do sim- porânea, esperando-se das neu- tas, com conhecimentos que bro- Os convidados, brasileiros e vocou uma revolução no âmbito pósio. rociências, por exemplo, respostas tam das ciências naturais, e menos franceses, são todos conhecidos no Se as histerias dos tempos de para todas as questões do humano. meio e envolvidos em debates sobre humano ao desenvolver uma teo- a figura do médico que se preocu- os novos horizontes e desafios para ria da mente a partir dos processos Freud já não estão tão presentes, “Nenhum pesquisador sério su- pe com a dimensão humana da a psicanálise. Para não omitir psíquicos inconscientes e uma téc- Mário Costa Pereira ressalta as es- põe que exista um processo psíqui- doença e o sofrimento do pacien- nenhum brasileiro, Costa Pereira nica terapêutica para pessoas afe- tatísticas no campo da psiquiatria co desancorado de uma base ma- te. Não é casual, portanto, o núme- oferece informações apenas sobre os tadas psiquicamente. Mas permi- mostrando que as taxas de depres- terial. O problema está em aceitar, ro sem precedentes de pessoas de franceses. Jean-Jacques Rassial, te principalmente para fazer um são crescem sem parar. “É evidente simplesmente, que o único registro todas as classes sociais que estão professor titular da Universidade de balanço sobre a atualidade de seu que o pensamento freudiano en- válido de pensar o humano esteja recorrendo a curas alternativas e Marselha, é bastante conhecido no pensamento e incentivar uma dis- contra desafios com as marcas dos no nível neurobiológico ou genéti- espirituais – cristais, duendes, bru- Brasil por seus trabalhos sobre cussão visando reposicionar os ei- nossos tempos, como o debate com co, buscando soluções com base nas xarias. Novamente, vemos um si- adolescência, mas também vem xos da própria psicanálise. “A his- as neurociências, com o atual sis- pesquisas com neurônios, sinapses nal de que a tecnologia dá resposta atuando na relação da psicanálise tema econômico neoliberal e a e neurotransmissores. É preciso le- com as ciências cognitivas. Jacquy tória da psicanálise mostra que se a problemas pontuais, mas deixa Chemouni, da Universidade de esperava de Freud mais do que ele construção de subjetividades nu- var em conta os conflitos amorosos, completamente intocadas as gran- Caen, vai falar de psicanálise e criou ou poderia dar, na expectati- ma sociedade globalizada”, pon- os sentimentos de culpa e de espe- des questões humanas, as quais política, confrontando as visões va de encontrar em suas teorias e dera. Nesse sentido, o professor con- rança, os desejos, em seu registro emergem com toda sua intensida- freudiana e marxista. Jacques André, práticas uma explicação geral pa- sidera que a teoria e a metodologia de próprio, sem chegar ao ponto de de justamente no âmbito da práti- da Universidade Paris 7, realiza ra tudo que decorra do humano. Freud talvez sejam as únicas que se descrever tudo isso na linguagem ca médica”. pesquisas com a adolescência e Trata-se de um grande mal-enten- propõem a estudar a subjetividade, das moléculas”, compara. Uma crítica ácida a Freud é de ter também com um tipo de alteração dido dentro da disciplina, que pre- tomando cada ser humano como se ocupado somente de pacientes importante da personalidade cisa estabelecer claramente qual é singular, mesmo pertencendo ao Do divã à pílula – Em outra re- da classe abastada da sociedade e chamada de “estados-limites”. o seu âmbito de competência”, a- grupo genérico dos humanos. ferência aos recursos modernos – que seus estudos talvez tenham INFORMAÇÕES firma Costa Pereira, coordenador Entre os parâmetros ideias de quando Freud recorria às confidên- sido limitados por peculiaridades www.fcm.unicamp.br/ do evento. hoje para que o indivíduo avalie cias do divã, através do método da desta elite. Ainda hoje, a psicaná- departamentos/psiquiatria/ O professor, que coordena tam- sua vida, segundo o professor, es- associação livre (e antes da hipno- lise é inacessível para a maioria da psicopatologia/simposio-freud bém o Laboratório de Psicopato- tão o trabalho, o dinheiro, a beleza, se) –, o professor de Unicamp faz população, o que representa outro logia Fundamental, do Departa- os bens de consumo, o sucesso. No ressalvas quanto ao uso, sobretu- desafio, na opinião de Costa Perei- mento de Psicologia Médica e Psi- entanto, pouquíssimas pessoas al- do ideológico, dos medicamentos ra. “É realmente importante con- contexto econômico, social e fami- quiatria, lembra que até Freud a- cançam estas metas, sendo que mui- disponíveis para aliviar sintomas ceber técnicas que não sejam tão liar. Mário Costa Pereira observa creditava-se que o humano era tas já são antecipadamente excluí- como mal-estar, depressão, ansie- dispendiosas, ao alcance dos paci- aí uma contradição do sistema de transparente por si mesmo, capaz das da corrida, impedidas sequer de dade, insônia, impotência e para o entes mais pobres. Um caminho é saúde, pois nele o médico é remu- de conhecer-se através da consci- sonhar com esses ideais por causa controle de sintomas psicóticos. disponibilizar a psicanálise nos nerado por procedimentos técni- ência. Freud mostrou toda uma di- das condições socioeconômicas. “O “As drogas são úteis do ponto de serviços públicos de saúde. O Hos- cos e se paga pouco por consultas. mensão da mente que determina preço para se atingir as promessas vista clínico, mas as grandes ques- pital das Clínicas da Unicamp já “No nosso sistema tempo é dinhei- os caminhos do indivíduo, um mo- de felicidade capitalista é a frustra- tões humanas não se resumem à oferece uma clínica psicanalítica, ro, sendo que o serviço público ain- tor inconsciente que não reflete a- ção, a angústia, o estresse, a hiper- falta de Prozac. Uma boa pílula não que obviamente não segue os pa- da precisa dar conta da grande de- penas uma pureza ou espontanei- tensão, a crise de pânico. Há quem ataca os problemas concretos em râmetros de uma clínica privada manda. Por outro lado, para a po- dade interior, mas as marcas da atinja e se dá conta de que não che- nível existencial. Também é verda- de Viena do século 19, mas nos o- pulação, a figura do profissional tradição, cultura e língua da famí- gou ao paraíso. Quem se vê excluí- de que, tecnicamente, estamos cada briga a reteorizar o uso de dispo- altamente especializado que reco- lia que prepara o acolhimento da do do processo, acha-se um ser hu- vez mais próximos da ‘pílula da fe- sitivos clínicos propriamente psi- menda exames sofisticados virou criança no mundo. Seus conceitos mano de segunda categoria e fica licidade’, o que vai exigir uma ava- canalíticos que possam ser úteis à um fetiche, quando a maior parte de inconsciente, desejos e recalque igualmente a um passo da depres- liação dos aspectos éticos na intro- população”, informa. dos casos poderia ser resolvida no propõem uma mente não mais u- são”, atesta. dução desse tipo de droga, pois os Outro bom caminho aberto no nível da clínica geral. Introduzir nitária mas dividida, em conflito Mário Costa Pereira estará entre conflitos e desejos humanos, en- Brasil, na opinião do professor, é o no sistema o médico de família, que consigo mesma e dominada em cer- os palestrantes do primeiro dia de quanto ais, estão fora do âmbito da Programa de Saúde da Família, que olhe o paciente como um humano ta medida por tendências eróticas simpósio, relacionando a atuali- farmacologia”. pretende dar vez a um tipo de pro- doente e não como um corpo bioló- e agressivas escondidas, mas que dade do pensamento de Freud face A propósito, Costa Pereira a- fissional preocupado em atender gico doente, é mais um desafio para se manifestam nos lapsos e nos so- aos avanços das neurociências e da crescenta que nunca houve uma e ouvir o paciente inserido em seu a política de saúde”.