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Lonas e cocadas: 100 anos de “choques de ordem” no Rio de Janeiro

Cidade do Rio de Janeiro, 2009. Cidade que luta ainda para manter o título de “maravilhosa”.
Tempos conturbados esses. Crise econômica mundial, nova gestão municipal. Os jornais estampam as
operações do prefeito eleito que visam o ordenamento do espaço urbano carioca. O governador do Rio, seu
parceiro partidário, eu uma visita ao subúrbio, afirma que não se pode simplesmente abrir uma lona no chão e
vender cocadas1. É interessante notar que não é primeira vez que o Rio sofre um “choque de ordem”.
Há um século atrás a bandeira da jovem república brasileira tinha nas palavras Ordem e Progresso as
justificativas para as diretrizes políticas nacionais, motivadas pelo positivismo militar. Era necessário ordenar
o espaço público, retirar a cidade do atraso colonial e levá-la ao progresso, tal qual uma urbe de aspirações
cosmopolitas, como Nova Iorque, Londres e Paris. Até passamos a escrever em francês. Ruas se abriam em
reformas nunca antes vistas. O padrão artístico era Art Noveau. A iluminação elétrica deu vida noturna à
cidade. A moda chiq dos cafés, confeitarias, bistrôs, hotéis e restaurantes resumem o que veio a ser chamado
de Belle Epóque. Em poucos anos a paisagem urbana do Rio de Janeiro mudou como nunca. O Rio de Janeiro
“civilizou-se”, de acordo com a mídia da época. Faz-se necessário esse resgate dos anos da juventude
republicana nacional, justamente no “Ano da França no Brasil”2. Porém é importante ressaltar que nem para
todos a Epóque foi tão Belle assim, pois “alguém” tinha que sofrer nesse processo...
Para além da “base filosófica”, as reformas urbanas respondiam às transformações do modo de
produção orientadas pela dinâmica capitalista do início do século XX. Término da escravidão, uma proto-
industrialização e a exportação do café faziam com que o porto do Rio de Janeiro fosse insuficiente às novas
demandas. Era necessário ampliá-lo e melhorar as vias de escoamento de mercadorias. Porém, qualquer
transformação do espaço público atinge não apenas entes como “ruas” ou “prédios”, mas também seres de
carne e osso.
Detenho-me em analisar apenas uma das dimensões humanas que o “choque de ordem” daquele
período atingiu: aos hábitos alimentares. São de vasto conhecimento os tabuleiros de quituteiras das pinturas
de Debret, tão comuns no séculos XVII-XVIII. Porém essas quituteiras se chocavam diretamente com o
modelo da haute cuisine francesa. Gastronomia e etiqueta não rimavam com o samba tocado em nossos
terreiros. As quituteiras, com suas lonas e cocadas, estariam com seus dias contados?
Para além do expulsamento físico das quituteiras no espaço urbano, foi criado um mecanismo de
veto “sutil” aos quitutes, de forma ideológica. Sobre três argumentos: distinção social, higiene e etiqueta;
comer um bom cuscuz nas ruas do princípio do século XX tornou-se algo vergonhoso. Logo, a exclusão social
também se deu através da alimentação. O homem chiq dos círculos literários das confeitarias não poderia ser
surpreendido comendo em barraquinhas nas ruas, mesmo que o fizesse nas madrugadas em que saía.
Porém, os ambulantes não foram extintos após a “civilização” do Rio de Janeiro. Os habitantes da
cidade não “desgostaram” da doceria das quituteiras a “aprenderam a gostar” dos doces finos de uma hora pra
outra, pois a alimentação é uma prática cultural bastante complexa. Os hábitos alimentares são de aprendizado
lento, de geração a geração. Ao comermos, mobilizamos lembranças e sentimentos que orientam o que é bom
ou ruim para nós. Não copiamos comportamentos de manuais de etiqueta. No mais, o próprio preço dos doces
das confeitarias da Rua do Ouvidor já impedia o consumo por grande parte da população.
Podemos pensar sobre os projetos de veto da alimentação contemporânea. Tempos de dietética
exacerbada e cálculos precisos de calorias. Tempos de instauração de comidas “de grife” e “fast-food” sem
sabor, em que a microbiologia evoluiu a ponto de motivar transtornos obsessivos. Tempos esses em que
comer tornou-se um ato ainda mais individualizado em que compramos comida pronta em uma máquina. Não
há qualquer relação com quem os fez, o serve ou vende, ou ainda com quem comemos. Até onde a ordem e o
progresso nos levarão?
Não sou saudosista, pois minha idade me impede de ter saudades do que não presenciei. Apenas tive
a ousadia de expor alguns pontos que ainda não se resolveram, ou seja, ainda estão em “choque”. É claro que
incrementos higiênicos foram fundamentais com a adoção de procedimentos sanitários do princípio do século.
Apenas desejo que o atual “choque de ordem” seja mais preocupado com a dimensão humana que o de
outrora, bem como para com os ritos alimentares presentes na cultura popular carioca.
Concluo esse meu pequeno comentário com uma confissão ao leitor. Voltei para minha residência,
no subúrbio do Rio sendo surpreendido por uma buzina. Não, não era de um bólido reluzente, mas de uma
carrocinha de um doceiro. Olho para a carrocinha e vejo em 2009 os mesmos doces pintados por Debret.
Quem poderá tirá-los de circulação?
Jorge dos Santos Valpaços é Historiador, formado pela UFRJ e pesquisa os hábitos alimentares na Belle
Epóque
1
É possível ouvir as palavras do Governador Sérgio Cabral acessando: http://bandnewsfm.band.com.br/pop_audio.asp?
MMS=http://www.bandnewsfm.com.br/audio/FTRINDADE_1401.mp3&ID=121941# Créditos à Flávio Trindade da
BandNewsFM.
2
Maiores informações em http://anodafrancanobrasil.cultura.gov.br/

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