Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Além dos artigos científicos e dos livros de divulgação científica Sagan foi também
autor de uma única obra de ficção: “Contacto”, que está agora esgotadíssima (poder-se-á obter
numa biblioteca ou em alfarrabistas), que será reeditada na colecção das obras completas. Este
livro, que aborda a comunicação com seres extraterrestres e as viagens no espaço-tempo,
exprime sonhos saganianos que não podem, pelo menos por enquanto, ser sustentados com
base apenas na ciência. Mesmo assim Sagan procurou apoio na ciência mais actualizada. O
seu amigo astrofísico Kip Thorne fez alguns cálculos relativos à viabilidade de construção de
“buracos de verme” (“wormholes”) que se revelaram úteis para a trama ficcional. O romance
foi aproveitado no cinema pelo realizador norte-americano Robert Zemecki (o mesmo de
“Regresso ao Futuro”) num filme com Jodie Foster no principal papel que teve grande êxito. É
curioso que as ideias mágicas de Thorne sobre túneis no espaço-tempo estejam em carteira
para um futuro filme desse mágico do cinema que é Steven Spielberg. Com Sagan a ciência
chegou a Hollywood!
Já muito tem sido dito sobre o “best-seller” "Cosmos", saído na Gradiva em 1984
como número 5 da colecção “Ciência Aberta” (a tradução foi feita uma equipa que integrou o
próprio director da Gradiva, Guilherme Valente, o grande impulsionador da cultura científica
entre nós). A edição portuguesa original não mostrava a profusão de imagens da edição
original em língua inglesa, mas alguns anos mais tarde a Gradiva redimiu-se ao publicar uma
edição ilustrada semelhante à original (antes não tinha sido possível por uma questão de
direitos de autor). O original norte-americano era de 1980 e constituiu o guião para a popular
série televisiva com o mesmo nome, que ganhou um prémio Emmy e um prémio Peabody.
Sagan apercebeu-se do enorme poder da televisão e soube aproveitá-lo em favor da ciência.
Não há qualquer dúvida, depois de ler este livro, que Sagan tem uma aptidão natural para
transmitir ciência através dos órgãos de comunicação de massas. Em «Cosmos» está bem
patente o poder sedutor da sua escrita. Com “Cosmos”, tanto em filme como em livro, ficaram
bem documentadas as ideias de Sagan sobre a grande aventura do homem que é afinal a
aventura do conhecimento. O destino do homem, Sagan não tem dúvidas, e nós ao ouvi-lo
também não, é o conhecimento.
O livro que acaba de chegar aos escaparates das livrarias é póstumo. Partiu de um
conjunto de lições que o autor proferiu em 1985 na Escócia, no quadro das famosas palestras
Gifford de Filosofia Natural (mais precisamente, para assinalar o centenário dessas palestras).
Entre os anteriores palestrantes contavam-se, para além do primeiro orador que foi o
psicólogo e filósofo americano William James, grandes nomes da ciência como os físicos
inglês Arthur Eddington, alemão Werner Heisenberg e dinamarquês Niels Bohr, para não falar
já de outros vultos da cultura mundial como Albert Schweizer e Hannah Arendt.
As palestras revelam a visão de Carl Sagan das relações entre ciência e religião. O
tema da religião já tinha sido abordado em “Contacto”. O tema de Deus está hoje
particularmente em foco depois da publicação de “The God Delusion” do biólogo inglês
Richard Dawkins (há uma edição brasileira que está nos “tops” de vendas de não-ficção e em
breve sairá uma edição em Portugal na editora Campo das Letras). Sagan, embora não sendo
religioso, mostrou sempre um enorme respeito pelas posições religiosas, tendo chegado a
propor no início dos anos 80 uma aliança entre ciência e religião em defesa do meio ambiente.
A sua visão do mundo é inequivocamente de um cientista, que começa por olhar para o céu
(nós podemos olhar para o livro: a edição tem belas ilustrações) e depois se interroga sobre
aquilo que vê.
“Será que tentar perceber de alguma maneira o universo revela uma certa falta de
humildade? Creio que é verdade que a humildade é a única resposta adequada perante o
universo, mas não uma humildade que nos impeça de procurar descobrir a natureza do
universo que estamos a admirar. Se procurarmos essa natureza, então o amor pode ser
inspirado pela verdade, em vez de se basear na ignorância ou na auto-ilusão. Se existe um
Deus criador, será que Ele ou Ela ou Isso ou seja qual for o pronome apropriado preferiria
uma espécie de cepo embrutecido que o adorasse sem nada compreender? Ou preferiria que
os seus devotos admirassem o universo real em toda a sua complexidade? Quanto a mim,
parece-me a ciência é, pelo menos parcialmente, adoração informada. A minha crença mais
profunda é que, se existe um deus vagamente do género tradicional, então a nossa
curiosidade e inteligência provêm desse deus. Não saberíamos apreciar esses dons se
reprimíssemos a nossa vontade de nos explorarmos a nós próprios e ao universo”.