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Assim é...
As Regras de Luci.....16
O Bolo.....21
O Casal.....24
A Feiosa.....27
As Noivas.....31
Um Rapaz de Futuro.....35
O Amante Ideal.....41
Assim foi...
A corrida. .....44
Luzes da Cidade.....46
O Funeral.....47
O Agente funerário.....50
A Máquina de Escrever.....52
Lembranças do Voar.....55
O Amante.....57
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Assim parece ser...
A Poltrona Verde.....61
Mãos.....66
A Estátua.....78
O Cadáver.....79
O Escritor.....80
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Pequenas Verdades
Que pela primeira vez parou para indagar sobre sua própria existência.
A.L.
Até aquele momento sempre a vira como uma mulher exótica e magnética. Que atraía
Subitamente via seu semblante suavizar-se aos poucos. Os dois deitados frente a frente.
Aos poucos, Tomas notou que o magnetismo inicial tornava-se apenas mulher. E se
menina ?” Se assim fosse, não poderia evitar apaixonar-se irremediavelmente por aquele
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paradoxo com forma humana, de querê–lo só pra si, de escondê–lo do mundo para que
Se perguntava isso, embora já anestesiado cada vez que a via. Na verdade, o que o
perturbava não era o apaixonar-se em si, mas o seu total desconhecimento do mecanismo,
mulher. “Será que ainda tinha chance de escapar?” - Tomas pensava diante do turbilhão
( ... )
Eu gostava do jeito dele sorrir com os olhos e lábios em uníssono. Um menino diante de
algo fascinante e novo. Assim era seu olhar quando nos víamos. Quase sempre. Às vezes
Ele me dava doçura. Via-me debaixo de mim mesma construída. Doces olhos negros.
Tem dias que uma garota só precisa de um sorriso nos lábios ao pousar a cabeça no
Flora. Flora o seu nome. E mesmo este nome tão cheio de implicações aromáticas,
cromáticas e estéticas, era insuficiente àquela que o carregava consigo. Ele lhe atribuía
uma certa pureza, ao mesmo tempo que lhe temperava o espírito com uma exuberância
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orquídica. Um quê de atemporal.
Sob o signo deste nome forte, flutuava uma fragilidade rarefeita. Como uma poeira
cósmica que orbita sozinha, sem ajuda de nenhuma força física, que não a de existir.
Flora, era assim que sentia, como a poeira cósmica que só tinha em si a força de existir.
O esqueleto humano é o mais fiel arquivo da mente. Quando criança é pequeno, mas com
por algum tempo, para finalmente inscrever uma linha decrescente no gráfico da vida, no
momento em que desistimos de encher a mente com conhecimentos novos; assim sendo,
( ... )
Ia ao seu encontro sempre num misto de loucura e medo. Sabia que naquele homem
estavam o elixir de minha perdição e salvação. Cabendo a mim, saber de qual poção
sorver maior quantidade. Já que neste cálice, que ele era, havia porções suficientes de
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Flora sabia que admitir aquele homem em sua vida, independente de qual poção sorvesse,
era tornar-se uma corda de violino. Bem afinada, produziria sons celestiais. Frouxa,
loucamente e sem tréguas. Sem descanso queria tê–lo , mesmo que de longe, só no
pensamento. E finalmente amava-o querendo dele seu próprio sangue e carne, achando no
da idéia. Achando-a tola. Que necessidade tinha de medir o tempo? Algo impalpável e
imensurável. Ou melhor, algo que sequer existia senão na mente de quem acreditasse.
Tomas não acreditava. Tomas não acreditava em nada que não pudesse tocar, nada que
resistência dela, da quase irreverência com que ela se entregava a ele. Sentia medo
também daquilo. Tomas nunca possuíra coisa alguma. Sequer tivera um dia oportunidade.
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Flora tinha medo de ser engolida pela vida. E embora sonhasse com feitos grandiosos, os
em manter-se escondida. Era mais seguro. Mas já se sentia querendo explodir por dentro,
expor-se toda, conhecer-se finalmente por inteiro. Sentia a angústia de não ser o que
6 e meio
Sentia uma felicidade sem motivos. Caminhava pelas ruas de seu bairro. Na verdade,
havia uma série de pequenos motivos, que dobravam seus lábios num sorriso tolo, como
que colado ao rosto. Muito embora os olhos não se dobrassem a esta felicidade. Na
verdade, procurava nos rostos transeuntes o desconforto que a felicidade alheia costuma
causar.
Seria a grande prova da sua felicidade: o desconforto que ela mesma vestira inúmeras
vezes, ao ver um casal feliz, abraçado, passando por ela, ou mesmo uma mãe com seu
bebê risonho e belo. Era a primeira vez em que ela se sentia a possível causadora desse
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7
Estava adormecida. Uma mão dentro da calcinha, a outra pousada sobre o peito, bem no
coração. A sinceridade do sono trazia à tona os dois fios condutores daquela mulher: seu
Tomas insistia em pensar nela como um bichinho de estimação, a quem damos um amor
Tomas ainda não sabia ter Flora em sua vida sem estranheza, embora já soubesse amá-la,
e ser amado. Ainda não tivera forças de gritar pro mundo inteiro ouvir. Era como se
ambos ainda não fossem borboletas e estivessem no casulo. Sabia que a paciência dela o
7’
relação deles dos olhos do mundo. Era para Flora uma grande prova de amor. Provava
que o que havia entre eles era intimidade, e não um espetáculo pra ser exibido. Que o que
havia entre eles pertencia a eles, e a mais ninguém. Ela apreciava aquela sensação do
secreto.
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( ... )
Tomas não entendia a obsessão que todos pareciam ter pelo futuro. O que era futuro? O
futuro não era, não existia. Por que o inexistente era tão importante? Não bastavam os
mistérios que podíamos tocar? Esse tipo de masturbação mental sempre o incomodara.
Era um homem de verdades absolutas, não de relativismos. As coisas eram uma coisa ou
Tentava sorrir sob os olhos cheios d`água. Não estava triste. Sentia dignidade naquela
despedida. Ela não o via partir, não teria essa imagem. Via-o olhando-a sorrindo, via seu
semblante endemoniado do sexo, via o menino que brincava com a menina que era. Via
seus olhos dizendo “Eu te amo”, embora a boca não acompanhasse o movimento. Não
sem conhecimento.
Tomas já tinha a mala pronta. Ia trabalhar na África. Salvar o mundo! (Que grande
piada!) Ele não sabia que havia um mundo inteiro para salvar, e outro para construir, ao
lado daquela mulher? Tomas não sabia o que era. Então, foi descobrir.
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Enquanto Tomas fosse descobrir o mundo, Flora pretendia cultivar o seu. Esperando com
uma certeza de cartomante a sua volta. Era como se o mundo estivesse com pouca água.
Fitava a porta a todo instante como criança à espera dos pais no portão do colégio no fim
do dia.
Tomas sempre soubera que o coração era um órgão vital, mas nunca imaginara que ele
Mais um engano.
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Mais uma noite insone. Tentou rezar. Se masturbar. Repassar conversas na mente. Nada
mão. No escuro seria incapaz de acertar o pedal que a levantava. Cabeça de mulher é uma
descuido. Tenho um medo danado da minha mente, ela é muito mais poderosa do que eu.
Nessas noites Flora costumava ligar para Tomas, que cantava para ela pelo telefone. Aí,
Flora o amava com maior intensidade. Tomas cantava muito mal, e o sabia, mas ainda
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Seis meses já, que Tomas voltara para seus braços, como ela sonhara. Mas pouco a pouco
Flora olhava para Tomas, e ele desfocava. Cada vez mais. Agora fitava seu rosto e não o
Flora não via mais Tomas, via tudo o que não tinha por estar ao seu lado. Finalmente suas
( ... )
“Eu não tenho sonhos. Nunca tive.” Tomas me dizia isto como se fosse a coisa mais
natural do mundo.
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momento em que seu óvulo foi fecundado pelo espermatozóide de Tomas, perdera-se.
Grávida.
( ... )
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Eu podia me imaginar demais: Uma grande assassina.Uma cantora de Jazz. Uma
bailarina. Uma escritora. Uma política. Editora de uma revista arrebatadora. Em todos
Agora tinha alguém que a continuava, que a estendia à eternidade, assim como ela mesma
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Sentia. Como nunca antes. Como jamais pensou ser possível. Um maremoto de coisas
dentro de si. Não se tratava de qualquer moléstia biológica, Tomas já se assegurara disto
com todos os exames que a medicina conhecia. Era portador de uma patologia
indetectável.
Era Tomas que agora sentia os olhos estenderem-se até a porta à procura, à espera de
13`
Entrava num bar e antes de beber algo, arrumava uma briga e era colocado pra fora.
Atravessava a rua. Entrava em outro bar. A experiência se repetia. Tentava ainda mais
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Foi seu primeiro sonho em 20 anos.
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Flora sentia-se mais viva que nunca. Como se a vida que pulsava e lhe esticava, aos
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Dois meses. Ele não ouvira de Flora. Nem ele, nem ninguém. Nem os pais dela.
Tinha vontade de esticar-se inteiro e abraçar o mundo, farejando-o até sentir o cheiro de
Flora; e pinçá-la com cuidado. Colocar numa caixa macia e aconchegante. Dar-lhe de
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Andava pelas ruas de Paris com uma gravidade de filme de época. Olhar vidrado,
O vento batia contra seu rosto e ameaçava congelar as lágrimas. Todas as grávidas a
insultavam pessoalmente.
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Trabalhava muito e não tinha tempo de sofrer, de deixar a dor da distância pousar sobre
estava tornando-se uma artista plástica cult. O ego dilatava. Dentro, algo encolhia com
medo do sucesso verdadeiro. Medo de ser achada, de perder a nova identidade que
congelando-se no passado. Como no dia em que... E ela já tinha saudades. Não podia ver
bêbes.
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calores que não sabia se vinham de impressões dele ou dela mesma. Pensamentos
giravam na mente. À noite, sentia-o deitado ao seu lado. Quanto mais se afastava da
antiga vida, mais queria Tomas consigo. Confundidos. Sentia-o grave, reverberando no
15`
Tomas não tivera mais mulher nenhuma. Faltou-lhe apetite e coragem. Vivia numa
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solidão de TV esquecida ligada na madrugada.
***
Passos ensaiados até o altar. Os olhos molhavam de teimosos, sem conhecimento. Estava
Assim é...
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As Regras de Luci
REGRA N°1
Solteiro não! Case com qualquer uma, não faz diferença. Mas enquanto for
Eu, com essa minha mania de ouvir conversa alheia, os ouvidos aguçados pela
forma e conteúdo.
cabeça. Ela, imperativa, levantou-se com a bolsa entre mãos. Saída triunfal.
***
Em outras ocasiões fora ela que baixara a cabeça, dominada pela invencível
Era freqüentador assíduo daquela casa de sucos. Era o meu lugar preferido
para ouvir o que eu mais gosto: brigas de casal. Por que não um bar? Você pode se
perguntar. Te digo pautado em vasta observação. As brigas de casa de sucos são mais
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são filhotes de pensamentos remoídos. As de bar, apesar de dramáticas, por serem
instigadas pelo álcool são mais voláteis, menos consistentes. Com a mesma rapidez que
daquela dupla há tempos. Se não fosse a incrível reviravolta proposta pela personagem
***
Luci era o nome da nossa personagem. Menina direita. Aluna nota dez. Filha
primogênita exemplar. Sempre zelando pelos interesses daqueles que a cercavam. Tinha
um pai doente, uma mãe nervosa e uma irmã desse espíritos relaxados, cheios de bossa.
Poucas amigas, poucos amigos. Não era dada à intimidades fortuitas. E, aquele
namorado.
charmes. Se sua beleza de galã da Metro não fosse o suficiente, a voz rouca e macia faria
o resto. Não podia ver um rabo de saia. Feia, bonita, alta, gorda ou magra. Mulher, tava
traçando. Trocava a pobre Luci por elas e depois voltava. Arrependido. Confesso em
***
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Os meses se passavam e não havia desfecho para a história que me fascinava.
Tornei a ver o rapaz algumas vezes na casa de sucos. Sozinho. Sempre. Nenhuma
loira, nenhuma morena, nem gorda, nem magra. Suspeito que perdeu o apetite com o
ultimato. O sanduíche pela metade no prato, o olhar vago. Magro e abatido. Apagada a
O tempo passava lentamente também para mim que apenas observava. Cheguei a
***
Acompanhada. Não pelo antigo namorado, mas por outro. Conversavam animados.
Meu coração congelou quando do outro lado da rua avistei o antigo namorado.
Esperando o sinal. Temi, esperei o pior. Cheguei a visualizar o corpo do rapaz sendo
lançado aos ares por um carro ou ônibus, caso ele presenciasse a cena que desenrolava-se.
O susto foi tanto que nem conseguir ouvir mais conversa nenhuma.
REGRA N° 2
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Nova regra. Ele me contou em detalhes. Luci ficara noiva. Já que ele não seguira
a regra anterior, tinha agora uma segunda chance. Deveria ser seu padrinho de casamento
***
Apenas um entorpecimento, uma apatia, uma paralisia em seu interior. Temia morrer por
parada cardíaca. Respire, Luci! Vamos lá! Seja forte! Desviando o olhar, encontrou
o homem que amava. Lindo. Distinto. Esforçado em seu papel de padrinho. Muitos
sabiam da sua crueldade, mas calavam. Sabiam também o porquê dela. Seu ânimo voltou.
Via o sofrimento marcando a face bela daquele homem, qual faca que entalha madeira,
não enfeites lúdicos, mas arrependimentos e dor, talvez também a estranha esperança
audiência. Uma nuvem tensa pairava sob aquela cerimônia. O silêncio que precede as
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grandes tragédias. Lufadas de um vento gelado arrepiava os presentes. Trovões ao longe.
Eu tenho. – disse o padrinho da noiva. Amo a noiva e penso que ela também
me ama.
Os trovões não impediram que todos ali presentes ouvissem muito bem o que o
rapaz dizia.
atrevido.
retumbantes, não abafavam os gritos da jovem noiva abraçada ao cadáver que sangrava.
***
A tempestade tão forte e prolongada que por duas horas ninguém entrou nem saiu
daquela igreja.
O Bolo
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Dez anos de casamento. Sem filhos. Uma felicidade conjugal eterna. Viagens,
passeios, festas. Um dia chega em casa do trabalho para encontrar o marido sentado no
sofá vermelho defronte à porta de malas prontas. Sem mais nem menos. Sem pistas.
manhã seguinte em diante recusou-se a sair de casa, na esperança que ele retornasse.
Limpava a casa pela manhã, almoçava e às quatro horas parava tudo. Preparava
um bolo de laranja e bastante café forte, como ele gostava. Sentava no sofá vermelho
defronte à porta e esperava. Parecia nem mesmo piscar ou se mover depois que sentava-
se.
A noite caía e ela ainda na espera. Depois de um tempo sem conta no escuro, saía
da sua imobilidade. Ligava a luz, pegava o bolo e a garrafa térmica cheia de café e jogava
tudo no lixo.
***
Seis meses. Ela firme em sua espera. Já aí negociara com os patrões e trabalhava
de casa. Resolvia tudo de lá. Os amigos, os parentes apelam ao marido alguma ajuda. Ele
se recusa.
Mais seis meses. A mesma situação. Os apelos e queixas mais freqüentes para o
ex-marido. Finalmente ele decide ir ver a ex-esposa. Telefona e marca a visita para o dia
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seguinte.
Ela o recebe muito bem. Alegre, quase eufórica. Pede para ele se sentar enquanto
busca o café que está passando. Ele concorda. Enquanto ela serve o bolo e o café ele a
Pergunta como ela está, como vai o trabalho, e a saúde. Ela responde a tudo
monossilábica, até um pouco tímida, bebericando o café, olhando para ele por debaixo
Com essa pausa ele aproveita para saborear o bolo de laranja, seu preferido!
Talvez tenha feito uma bobagem em terminar com ela. Poderia ter ficado com as duas.
Alguns minutos depois ela retorna. Olha para ele sentado no sofá vermelho, olhos
imagem do nosso último encontro – mas este pensamento não a abate. A mesma imagem
Aproxima-se mansa. Deita no sofá com a cabeça pousada no colo dele. Ajeita os
braços dele ao seu redor. Fecha os olhos com um longo suspiro de prazer. O sorriso já
congelando...
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Juntos novamente. Desta vez para sempre. Pessoas, imprevisíveis. Já venenos...
O casal
Havia mais de um ano que duas vezes por mês, mais ou menos, se chamavam no
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meio da tarde para irem ao hotelzinho de costume. Até o quarto era sempre o mesmo, o
503.
Casais diferentes iam e vinham, e a fidelidade desse casal ao nosso hotelzinho até
nos comovia. Tanto que depois de um tempo, passamos a dar refeição cortesia e, às
vezes, até a diária. A gente gostava de ver aquele casal se encontrar ali. E imaginávamos
os enredos mais insólitos à respeito da relação dos dois nas tardes de pouco movimento.
Uma tarde eram cunhados, outra irmãos, outra eles se encontravam ali para trabalhar num
quase se esbarravam na chegada ao hotel. E assim foi por vários meses, meio da tarde os
amantes se buscavam. Com o tempo passando diluiu-se a curiosidade de saber qual era a
verdadeira estória dos amantes, até o dia em a mulher apareceu grávida. É claro que ela já
estava grávida há algum tempo, mas como era muito magra custou-nos perceber que o
Pronto! Acabou a simpatia pelo casal. Ali não era lugar de mulher grávida, só se
nosso com o casal, uma frieza de leve para manifestar a nossa imaginação em ebulição.
Afinal o que eram eles? Será que o filho era dele? E se não, era de quem? Já não nos
agradava o mistério em torno do casal. A barriga dela crescia e junto o nosso desconforto.
a meu ver um prazer mórbido em nos desagradar. Eles sorriam cúmplices sempre que
entravam no hotel e davam de cara com o nosso desagrado. Agora, vinham sempre
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Aquilo tudo me repugnava e me deixava menor diante da minha mulher, que me
nossas mentes nas tardes em que eles não apareciam, pois aí, já nós marcávamos no
O tempo passou, perdi a conta dos meses. Já havíamos desistido do notável casal
e nos contentávamos com os diferentes de todos os dias. Confesso que foram meses
tristes, sem emoção. Tínhamos saudades dos enredos, das nossas mentes fervilhando de
imaginação! E eis que um dia, entram os dois com um bebê nos braços. Quer dizer, O
bebê. Que audácia! Então eles se viram para nós e nos entendem um envelope.
“ Fulano e Fulana de tal têm prazer de convidá-los para o batizado de seu primeiro
filho...”
Eram casados há tempos, o filho era legítimo!? Minha cabeça deu um nó. Eles sorriram e
o casal voltou à rotina. Mas nós, minha mulher e eu, nunca mais fomos os mesmos,
ficamos assim meio que melancólicos, sem quê, nem porquê... Já o casal continuou o
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A Feiosa
Monossilábico
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Paulinho sempre tivera medo de certas palavras, desde pequeno. Como por
exemplo: inconstitucional. Ele se sentia acuado diante de tamanha grandeza, como se esta
Por isso, logo que aprendeu a ler e escrever dedicou-se à arte de ser conciso e
linguagem econômica do menino. Afinal, nada havia de errado em ouvir mais e falar
menos.
mesmo tempo, e proporcionalmente, cada vez mais assediado pelas mulheres. Com a
tal estória de falar pouco dedicou-se à atividades silenciosas como o atletismo, além de
horas de estudos e leituras. Sendo assim, além de atlético e culto tinha ainda como arma
Muitas foram as belas moças que lhe foram apresentadas. Todas de família e
O que gerou alguns comentários maldosos de outros que lhe invejavam o sucesso
O encontro
Até que, um belo dia o amor entrou em sua vida! E Paulinho chegou em casa
como há anos não se via: falante e dizendo-se doente de amor por uma tal de Elisa.
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Era Elisa pra lá, Elisa pra cá e nesse alvoroço de curiosidade cresceu o interesse
Quando não houve mais jeito de escapar, Paulinho marcou o dia do encontro.
Todos roxos de curiosidade, loucos para conhecer a mulher que devolvera à Paulinho a
peito oprimir e o estômago a enjoar. A mãe, Dona Odete, quase não pôde disfarçar o
Elisa, ou fingiu não notar, ou não notou mesmo, ou já estava vacinada para esse
tipo de reação, e nem ligou. O fato é que não se fez de rogada e abraçou e beijou a futura
sogra como à uma grande amiga e, com tal entusiasmo, que faltou pouco partir uma
costela à ansiã.
Incompreendido
conformava com a escolha inusitada de Paulinho. Por quê diante de tantas moças
formosas e ricas ele escolhera uma mocinha tão feiosa? O que ela tinha de tão especial?
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Mas, não houve apelo, reza, santo, trabalho que desse jeito: o noivado foi
oficializado e a cerimônia marcada pra ali dois meses, pois os noivos não podiam esperar.
Houve tremendo zum-zum-zum em torno do curto noivado. Não só pela escolha da noiva
tentar argumentar com o filho pra que ele desistisse do casamento, apelou pra o marido,
Seu Cláudio, para que ele buscasse a razão de seu filho gostar tanto da moça, pois assim,
talvez, ela se conformasse. Seu Cláudio bem que tentou, mas sem sucesso. Tiveram que
noivos D. Odete não escondia o desconsolo. Por quê esta feiosa, meu filho? Por quê?
O segredo
O que ninguém sabia e nem nunca soube é que Elisa, com sua extensa cultura,
intimidade, mais prazer ele sentia e mais ele a estreitava ao peito na hora do clímax e lhe
gritava: Fala, Elisa! Fala! E ela dizia: beligerância! Outra! Pratarraz! Outra! Precípuo!
Outra!
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As Noivas
A Teoria-
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Domingo. Sete da matina em ponto. E lá estava ele. Sentado ereto no último
banco da igreja. Expressão circunspecta e solene, cabeça baixa sobre olhos muito vivos
que escaneavam atentamente as mocinhas devotas. Com maldade: as que vinham à missa
Tinha para si a teoria convicta de que, quanto mais devota, mais perversa no
íntimo; que todo o pudor que esfregavam ostensivamente na cara de pobres pecadores
(como ele próprio) era na verdade um pecado “superior”. À primeira vista parecia-me
conceito um tanto cínico, mas, como em tantos outros quesitos e ocasiões, neste também
O Desafio
Numa noite qualquer bebíamos num pulgueiro da Lapa. Cansado de tanto ouvir
suas aventuras insólitas, que pra mim eram mais invenções fantasiosas do que mentiras,
resolvi lançar-lhe o desafio: Eu mesmo passaria a freqüentar a missa das sete de domingo
Aceito o desafio, domingo seguinte lá estava eu, sonado, a cabeça tombando para
quando uma visão em azul entrou. Suada e cabelos revoltos como quem correu,
percorrendo os bancos pelo canto esquerdo, oposto a mim, meio curvada para não
atrapalhar a visão dos outros, até sentar-se no lugar vago mais próximo possível do altar.
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A cena toda pareceu-me um bom presságio, mas a verdade é que eu ainda não podia
medir o quanto...
Para mim aquela era a garota adequada. Sem necessidade de palavras, virei-me
pra trás e encontrei o já sorriso nos lábios do patife. Ele também tivera aquela visão.
A Estratégia
Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, jamais acreditaria. Percebendo a
hora da hóstia, ele antecipou-se cruzando a igreja pelos fundos e, seguiu como a moça
antes fizera, pelo canto esquerdo da igreja, meio abaixado, de tal modo que, quando a fila
retirava de sua bolsa um objeto, que só mais tarde, na porta da igreja, percebi ser um
pretexto para o seu primeiro contato com a vítima. Achei um toque genial na
esperto!
“ Visão”. Foi assim que a apelidamos na ocasião. Deu-se a mesma cena do domingo
anterior, ela entrando esbaforida, cabelos revoltos e suados... Que delícia! O danado desta
vez postara-se no banco em que da outra vez ela se sentara, obrigando-a a cumprimentá-
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Veio a hora da hóstia e ele lhe deu passagem, sem palavra, e no fim da missa
No sexto domingo, acho, ele se apresentou e retirou dela o seu nome: Verônica.
Adorei! Achei um nome exuberante para aquela delicada figura suada e, na minha
Dois domingos depois, achando ser o tempo apropriado, ele a convidou pra tomar
um cafezinho depois da missa e, pra nossa surpresa, ela aceitou sem hesitação! Fiquei de
sem saber por quê! O patife já reconhecia em mim as dores do amor, mas não me falava,
A Surpresa
Minha patologia se avolumava de tal modo, que não resistindo mais, adentrei o café e
contar toda a verdade à bela. Contar da teoria, da aposta, da estratégia... Mas qual não foi
Fiquei perdido, confesso. Mas quando ela disse que já observara que eu sempre
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me sentava no fundo da igreja, que entrava mudo e saia calado... que ...
Os Casamentos
A fama de cupido instalou-se na reputação daquele que nos uniu e ele passou a
Um Rapaz de Futuro
PRÓLOGO
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Às dez já estava na cama. Às onze debatia-se entre as cobertas e os travesseiros.
Inquieto. Insone. O quinto dia consecutivo daquela luta inglória. Uma inquietude, um
O PASSADO
Alberto morava numa pensão para homens solteiros no centro do rio. Bem perto
Era sem família, exceto por uma tia que morava na Glória com uma
Coroinha toda a vida, só não chegou a ser padre, por um arrebatador amor pelos números.
Fez o curso técnico em contabilidade e foi para o rio com três mudas de roupa,
um par de sapatos e uma bíblia debaixo do braço. Isso já fazia mais de um ano.
colegas, de Dona Rosa, dona da pensão em que morava, e de Seu Rodolfo, seu chefe,
foram instantâneas.
O PRESENTE
Não fosse a recém adquirida insônia misteriosa, seria a vida mais pacata da terra.
Do trabalho para a pensão. Às vezes um filme na cinelândia, uma ida à biblioteca. Visita
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Sua condição de insone não passou desapercebida. Na fatídica segunda-feira de
Problema nenhum.
Seu Rodolfo, pensativo por instantes. Alberto, aflito. Abrindo uma gaveta do seu
um excelente funcionário, se não o melhor. Quero você em forma. Você tem futuro, meu
rapaz.
vazio. Teve vontade de sentar no bar da esquina e beber , embora não gostasse do gosto
***
36
Dona Rosa também notara a mudança em seu espírito e, talvez com sua intuição
Alberto?
O Rapaz levantou-se num repelão. Saiu batendo o pé sem dizer nada. Bateu a
Problema de mulher. Sabia! Minha intuição não me falha! – Dona Rosa não
encorajava os rapazes a trazerem moças para passar a noite, mas também não proibia! E o
Alberto tão novo, tão bom rapaz... nada! Começara a achar aquilo estranho.
Enquanto isso Alberto no quarto se remoía. Ora! Essa é muito boa! Seu Rodolfo
acha que estou louco. E Dona Rosa... Dona Rosa pensa que eu... que eu... O que eu fiz
para merecer isso, meu Deus?! Tentava raciocinar com as pernas. Com passadas largas
desenhava círculos e mais círculos no piso do modesto quarto. Mas, calma lá, Alberto!
Quando foi que você trouxe uma mulher aqui? Nunca! Nunquinha! Nem uma paquera...
Constatou num arrepio. Pausa no passeio. Dona Rosa até tinha alguma evidência para
A porta deslizou suavemente. Era Dona Rosa. Abraçado por braços delicados,
acalmou-se. Suspirou. Sentiu que a vida mudava, que a respiração mudava. Dócil,
deixou-se levar.
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O FUTURO
Na manhã seguinte estava muito bem disposto. Assobiando uma canção alegre
enquanto ganhava a rua. Seguiu andando com uma confiança de ganhador da loteria
acumulada. Parecia ,em seu entusiasmo, mais alto, mais forte. Quase bonito.
um bom dia alegre. Ao invés de um aceno de cabeça baixa, um sorriso aberto e uma
Era como se o mundo desabrochasse para Alberto. Era o próprio sol encarnado
Não houve tempo para verbalizar espanto. Seu Rodolfo da porta de sua sala
chamou por ele. Uma nuvem de apreensão cobriu o escritório. Dois dias seguidos? Não
***
Bom dia, Alberto. Vejo que hoje está bem disposto. Esteve falando com o Dr.
Paulo?
Não tive tempo e... – recaindo nas reticências. Seu Alfredo cortou:
Nem foi preciso. Seja lá o que for que te afligia já foi curado.
Fico feliz. Mas não foi por isso que te chamei aqui hoje.
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Está tudo Ok, Seu Rodolfo?
Recebi nesta manhã uma notícia triste. O Geraldo, seu supervisor foi
Triste mesmo.
Pois é! Mas não temos tempo a perder! – respondeu Seu Rodolfo para espanto
de Alberto, enquanto pegava sua pasta - Desde já fique sabendo que você vai ocupar o
cargo dele. Meus parabéns! Você foi promovido. Enquanto eu compareço ao funeral,
você está encarregado do escritório. Como você vê, estou atrasado, mas não me demoro.
Alberto, catatônico, não se movia. Nem um Muito obrigado! podia ser articulado.
Eu falei que você tinha futuro, rapaz! Não falei? – Emendava o outro enquanto
***
E, ao mesmo tempo, nem tanto... Alberto, único parente, herdou seu pequeno
sobrado.
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O Amante Ideal
devia reagir: com aborrecimento, indignação com a ousadia de quem lhe escrevia. Devia
pedir ao marido que tomasse alguma providência, que... Não, o marido não devia saber.
Queria não sentir nada, ser indiferente. Mas não podia, um calor adormecido há
40
***
De noite, na cama. O bilhete rolava nos dedos, o sorriso nos lábios. O Marido
roncava. Olhou-o com enfado, quase nojo. Um homem delicado me envia passagens de
para a mesinha de cabeceira. Olhou mais uma vez o bilhete. Beijou-o. Escondeu na
gaveta da mesinha.
***
apaixonada.
Mudou os cabelos no salão. Fez as unhas. Perfume novo. Flores e cantoria pela
casa.
eram claros: amante na área. Era assim mesmo. De tempos em tempos era uma
Isaura até que resistira muito! Com os filhos já criados e um marido casca grossa como
41
***
Na terça seguinte nada.Quarta quinta sexta. Sábado, Isaura qual flor murcha no
***
A semana mais longa da vida de Isaura. Nem nas vésperas de suas núpcias
estar sendo simpática com o seu enamorado. Mexia nos cabelos, fazendo charme. O
corpo relembrava o quebrar dos quadris que os partos tiraram. O vento esvoaçava a saia.
***
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sais. Creme francês perfumado. Arrumou o cabelo. Vestiu-se e foi para a sala. Vinte para
as oito. Está quase. Olhou mais uma vez para as malas, reforçando a decisão que tomara.
O sorriso morreu nos lábios. Primeiro nos dele, ao ver as malas. Depois, nos dela,
Assim foi...
A corrida.
Não saberia dizer porque fora atrás dele naquela tarde em que ele se despedia.
Talvez dissesse que fora uma vontade louca de que ele se apaixonasse por ela ali naquele
instante de ir embora. A verdade é que Joana já pressentira-lhe a paixão no dia em que ele
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tocou-lhe a nuca na carona voltando do hospital quando foram ver Dona Nina.
Façamos assim: fora o pressentimento daquela paixão que guiara suas pernas; e
Sentou-se ao seu lado no barco sem ainda saber o que fazia. Era impróprio estar
Lembrou-se de puxar conversa e perguntou por quê ele fizera aquilo. E ele lhe dissera
inexplicável, Joana levantou-se e correu. Correu o quanto pôde até que o choro
desacelerou sua corrida e ele a alcançou. Fitou-lhe os cílios molhados e os beijou, depois
a face e os lábios. Bebia suas lágrimas com os beijos e as devolvia... como havia feito
decidiram se deitar e se enroscar e rolar pela grama úmida daquele fim de tarde e
Só de ter acontecido aqueceu a alma de Joana ao ponto de ela decidir-se a ter seu
bebê. Irônico notar que o desejo de um outro homem a fizera decidir-se a ficar com sua
filha e criá-la, ao invés de entregá-la para adoção. Sua filha iria nascer graças ao desejo
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Luzes da cidade
cores vibrantes cintilando em minhas excitadas pupilas. Tantas cores! Azul, vermelho,
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Andava feito uma louca pela cidade. Sorria para os prédios espremidos uns entre
os outros. Parada no meio da rua, fechava os olhos e erguia o queixo para o beijo do
ansiosa. A luz azulada iluminava a noite escura. Nada de lamparina. Eu, criança, sonhava
que um dia todas as noites seriam como as de lua cheia: iluminadas. Riam de mim. Fiz
Finalmente a cidade! Com a luz: a televisão, o rádio, o ferro elétrico... Até passar
O Funeral
Sorria com os dentes escancarados. O riso tão forte e rouco que assustava quem
feminilidade sugerida pelos seios fartos e por um ocasional tom de voz doce, maternal.
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ferventes. Também ela nos ensinou, primeiro à minha mãe e às minhas tias, e depois à
Pensando melhor agora, ela nos ensinou tudo. A cozinhar, costurar, a bebericar
cada partícula divina que o sitio nos tinha a oferecer.Nos ensinou a cuidar da horta, do
pomar. Foi nossa professora de vida no campo e, por contraste, de vida na cidade.
Me lembro como se fosse hoje, a manhã em que ela me consolou porque eu tinha
mestruado. Eu temia aquele sangue que me chamava de mulher. Eu gostava mesmo era
ser moleque! De subir nas árvores, nadar no riacho, me sujar de terra, correr na chuva.
Ah, que delícia! E aquele sangue vinha me dizer que eu não podia mais fazer nada disso,
que eu tinha que criar modos de moça! Que chato! Ela foi toda a minha família. Mãe. Pai.
***
Sem saber mais como chorar, desisti. Fui-me embora. Deixei toda aquela gente,
que há muito deixara, no velório que seguia. Direto para um bom restaurante de comida
Pedi uma pinga e tentei travar conversa com o meu delicado acompanhante. Ele
entre inquieto e feliz desde a reminiscência vívida do velório. Pobrezinho, nunca me vira
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Naquele noite tudo foi dito entre nós. Olhos nos olhos, preguiçosos e calmos qual
sábado chuvoso, nos entendemos. Falamos de ir morar no sítio. Fora ele que nos unira,
seria ele a nos manter juntos. Descobri que enterrara com Emília todo o rancor que sentia
***
Ela abriu a porta e eu fui logo dizendo: “ Mamãe, eu te perdôo se você me perdoar
Lógico que não! Está na hora de você tomar conta dele, de colher naquelas
Parecia-me que Emília mostrava de novo sua face, que era ela quem falava.
***
E, fomos. Eu e meu amor. Muito felizes. Até hoje. Já estão aqui os netos!
O riacho quase secou, mas ainda é aqui que eu planto e colho a minha felicidade,
amiga Emília.
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O Agente Funerário
minha menina pelo braço e ia encontrá-lo no São João Batista. Vocês podem pensar que
era um lugar muito mórbido para um encontro amoroso, nada romântico; como de fato
Queria apenas afogar a mágoa que cultivava desde a morte do meu pai. Como o
alcoolismo não me servia... Quando papai morreu, meu marido não soube dar-me o
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conforto que precisei, mas o agente funerário mostrou-se mais do que disposto a
consolar-me.
***
Uma semana após a morte de papai, lá estava o insistente na missa de sétimo dia
casa. Ele disse que estava visitando um cliente na vizinhança, mas eu não acreditei e
senti-me lisonjeada pela atenção daquele estranho enquanto meu marido estava tão
Aceitei tomar café com ele numa confeitaria linda num bairro vizinho. Não tinha
coragem de ser vista com ele no meu próprio bairro. Ali, já perdera a minha inocência.
Conversa vai, conversa vem.... Ele captura a minha mão sobre a mesa e a beija.
Aos poucos o carinho avança pelo braço... até ao pé do ouvido... Este foi o meu fim como
Deixei-me levar.
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A Máquina de escrever
Duas vezes por semana. Acho. Não lembro bem. Cinco pra seis anos. Duas vezes
por semana mamãe me pegava pelo braço, depois do almoço, e íamos ao cemitério.
Só fui saber o que era na verdade um cemitério anos depois. Sem querer.
Estranhei aquele lugar ser tido como desagradável, quando eu, havia me divertido tanto
Todas as tardes que eu ia ao cemitério com mamãe eram prazerosas. Ela sempre
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me presenteava com alguma guloseima, antes de sumir com aquele homem. Me deixava
os dedos pelas letrinhas nelas gravadas tentando adivinhar que segredos, tesouros e
conseguia. Um dia encontrei uma aberta. O homem ajoelhado chorava com as mãos
cobrindo o rosto, tentando conter as lágrimas grossas e doídas. Tive pena e minha
inocência infantil disse: “ Não chora, moço. Nessa caixa tem um tesouro valioso!”.
esqueci-me de explorar aquela casinha. O prazer de fazer sorrir aquele estranho venceu a
curiosidade.
Houve também uma vez que entraram muitas pessoas juntas chorando e andando
em fila atrás de uma caixa. E eu não resisti, tive de segui-los! Tinha a esperança de ver o
que havia naquela caixa, de dar uma olhada nos tesouros. Não abriram a caixa! E, de
onde estava tive a impressão de que rezavam, então eu entendi: o conteúdo das caixas era
preferida. Um dia, passeando, vi em cima de uma das caixas uma coisa grande e pesada.
Perguntei à mamãe o que era e, ela disse que era uma máquina de escrever. Então eu
disse que queria ver a máquina escrevendo! E mamãe disse que a máquina era de
mentira... Mas como de mentira? Morreram naquele dia todas as minhas invenções de
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Quando papai chegou em casa naquele dia eu disse a ele que eu não queria mais
ter que ir ao cemitério à tarde com a mamãe, que eu já estava enjoada daquele passeio e,
que eu não gostava do homem estranho que nos acompanhava sempre e que abraçava de
Naquela noite papai e mamãe gritaram muito um com o outro. Papai ficou tão
Depois o homem do cemitério veio morar no lugar dele e mamãe teve um bebê.
***
presente.
Eu gostei do presente. Fazia um tempo que mamãe não me levava para passear
Até hoje eu sonho com os tesouros. Um dia vou achar um para mim. Eu prometo.
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Lembranças do voar
Paris-Nova York-Amesterdam-Rio...
Lembro da Eva, minha babá. Muito bonita, mas que a mamãe: Loira, bem
branquinha, olho azul. Mamãe era chata. Eva, maravilhosa. Brincava comigo. Lavava
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meus cabelos. Beijava meu rosto. Limpava meus machucados. Lia histórias.
Fiquei muito triste quando ela foi embora. Casar e ter filhos. E eu? Ela riu, me
Pedi pra ir morar com a Vovó. Gostava da casa dela. Amarela e branca. Mamãe
adorou.
Vovó tinha uma casa linda. Um jardim bem grande, dois gatos cinzas, um
diferentes.
Vovó usava um perfume de jasmim muito gostoso. Sempre arrumada. Velha, mas
passear no parque...
amarrar os cadarços... Ajudava com os deveres de casa. Me arrumava pra festas. Andava
Ensinava os velhos truques pra arranjar namorada. Eu só tinha seis anos! Achava
importante. Achava errado ninguém ensinar sobre as questões do amor. Dançar fazia
parte do treinamento.
era o único homem. Dançava com todas as suas amigas. Vovó sorria orgulhosa. Gostava
América do Sul. Não demorou muito pra perceber qual era minha vocação na vida.
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Arte. Tudo em Vovó era beleza. Cada detalhe. As flores do jardim, as que levava
pra dentro enfeitando a casa, as cortinas, toalhas, panelas, os pratos... Ela mesma com
seus cabelos grisalhos brilhantes, as unhas bem feitas, as roupas de bom corte... Tudo me
Obrigada, Vovó. Onde quer que você esteja. No céu talvez, onde brilham as
estrelas. Era pra lá que se ia ao morrer, não era? Eu me lembro. Lembro bem demais.
O Amante
Metódica. Mamãe era metódica até debaixo d`água. E eu, uma criança
endiabrada. Achar uma rachadura que fosse no método de Mamãe era a razão do meu
viver. Fazia de tudo para tira-la do sério. Nada abalava aquela mulher. Ela ria de tudo.
corda no pescoço do gato pra fazer dele cachorro. Botava baratas pra apostar corrida.
Convidava os bichos para almoçar com a gente. Botava lugar na mesa e tudo! Uma vez
convidei um sapo pra jantar. Botei ele na cadeira e Mamãe passou a noite dando atenção
ao “ Sr. Sapo”. Serviu o prato dele, perguntou como andava a família, serviu cafezinho.
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No final, ela ria. Ria de tudo.
Eu não entendia Mamãe. Tinha método pra tudo. Os vidros com as ervas secas na
cozinha eram todos rotulados. Tudo combinava. Até as flores no jardim tinham feitio de
degradê. A gaveta das calcinhas, a dos sutiãs, a das blusas de manga, a de regatas.
Divisão por cores nos armários! Os sapatos, o mesmo. Todos ensacados. Aquela
arrumação me irritava.
Eu não entendia Mamãe. Ela não me obrigava a imitar seu jeito no meu quarto.
Nada combinava. Tinha meias despencando das gavetas, papéis amassados no chão, lápis
de cor e pincéis por toda parte. Uma vez por semana ela afastava tudo, varria o chão,
tirava o pó e ia embora. Não dobrava nem ensacava nada. Faxinava e só. Dizia que me
dava um exemplo e, caso eu quisesse, o seguiria. Se não, que devia achar meu próprio
jeito de viver. Onde já se viu isso?! Nenhuma mãe dos meus amigos era assim. Eu
Um dia reparei numa mania nova. Toda segunda-feira de manhã ela acordava às
tomando chá. Depois, se arrumava. Botava até maquiagem! Perfume? Dava bom dia para
o caseiro e saía.
Fiquei intrigado. Já com uns nove anos, me perguntava se Mamãe não tinha um
homem em sua vida. Nessa idade a gente já viu muito filme e novela, e sabe que existe
A nova rotina de Mamãe tornou-se minha obsessão. Minha mãe tinha um amante.
Só podia ser isso! Será que eles se beijavam como nos filmes? O que eles faziam juntos?
Mamãe só voltava de tarde! Fiquei em total ebulição. Quem era esse homem que roubava
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minha mãe de mim?
Comecei a organizar meu quarto. Guardar as meias nas gavetas. Os lápis de cor
nas caixas. Jogar meus desenhos amassados no lixo. Mamãe nem deu bola! Era preciso
Relutei muito. Muito mesmo. Não deu. Não resisti. Liguei pra minha tia Roberta e
contei tudo. Desde que papai morreu, ela cuidava de mim também. Ela disse que ia
investigar. Foi essa a palavra que ela usou. Passaram uns dias e ela me disse que não era
nada. Que eu não devia me preocupar. Eram cúmplices! Senti uma raiva imensa. Não
desisti.
Fui em busca de um novo aliado. Augusto, o caseiro. Notei que ele andava meio
esquisito ultimamente. Quando a Mamãe estava, ele ficava cheio de dedos, todo sorrisos.
E toda segunda-feira de mau humor. Primeiro achei que o fim de semana tinha sido ruim.
Andava chovendo muito nos fins de semana e ele não podia ir pescar chovendo. Depois,
parou de chover e ele continuou com aquela cara de mau. Percebi que ali tinha coisa.
Como quem não quer nada, puxei papo. Disse que estava achando minha mãe
muito esquisita . Que estava preocupado. Se ele sabia de alguma coisa. Disse também que
estava pensando em seguir ela na próxima segunda pra ver onde ia. Logo ele disse que
era muito perigoso eu ir sozinho, que ele iria comigo. Foi fácil fácil pescar esse peixe. E
ainda deixei ele achando que a idéia era dele. “ Ótima idéia !” . Achei que ele não seria
agüentava quieto. Andava pra lá e pra cá. Ansioso. Mamãe perguntou o que eu tinha e eu
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Finalmente! Augusto bateu na janela do meu quarto e disse que estava quase na
hora dela sair. Os dois alertas. Assim que ela entrou no carro dela, corremos pra
caminhonete dele.
para os lados. Atravessou a multidão. Sorriu. Uma senhora muito grisalha levantou-se
Abraçou Mamãe. Sorriu mais um pouquinho. Indicou a cadeira de frente pra sua.
Mamãe sentou. Serviu-se e bebericou o chá que estava no bule quentinho esperando por
ela. Calmamente, conversando, a Sra. indicou a pasta que Mamãe carregava. Nunca tinha
reparado naquela pasta! Mamãe sorriu. Fez que sim com a cabeça, pegou a pasta, passou
à sra. Ela abriu como se fosse um presente de Natal. Correu os olhos pelo conteúdo.
Sorriu novamente. Estendeu a mão pra Mamãe apertando-a efusiva. Abriu sua bolsa e de
lá tirou um cheque. Entregou-o à Mamãe que olhou o valor e se surpreendeu. Fez que não
com a cabeça. Fez menção de devolvê-lo. A Sra. fez que sim, sorrindo ainda, e o
empurrou de volta pra Mamãe. Mamãe agradeceu. Guardou em sua bolsa e voltou para o
Naquela tarde quando Mamãe chegou eu corri pra abraçar ela. Ela ficou surpresa.
E feliz. Disse que tinha um presente pra mim. Quando vi o volume e o nome da loja, já
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— Entreguei hoje os originais do meu primeiro livro infantil. Você que me
inspirou, com suas brincadeiras com os animais. E os desenhos são aqueles que você
sempre faz pra mim. Lembra que eu pedi pra você desenhar os bichos? Nada mais justo
A poltrona Verde
prédio velho, fedido, carpete encardido cor de carne nos corredores. Eu morava no quarto
embutida na sala. Quando entrava, à direita ficava a janela. Pelo menos a única que dava
pra abrir, as outras davam pra paredes. Um cheiro de curry recendia do restaurante chinês
do lado ad infinitum. Eu tinha uma poltrona de veludo verde comprada de segunda mão,
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de frente pra janela, uma pequena mesinha de madeira, batida, e um pedaço de carpete,
que arranquei do corredor pousado na frente. Só. Era meu templo, meu santuário.
Naquela noite eu cheguei e tinha alguém sentado nele. Vi a fumaça saltando do cinzeiro
***
- Finalmente.
Especialmente não na minha casa.Tinha vergonha daquela sala vazia, da cama velha que
rangia, da tinta velha e engordurada das paredes. Vi uma mão de unhas bem feitas
Apertei a mão e sacudi a cabeça. Sou desses tipos calados, encurvados. Ela
percebeu.
- Sei que está se perguntando porque estou aqui... Você não tem telefone...
Percebeu que eu não prestava atenção direito afagando a minha poltrona verde.
Parou de falar. O gato passou pela janela na minha frente.Não, de novo não!
- Estou aqui representando sua tia Gisella. Ela faleceu e deixou em seu nome uma
História mal contada. Botei a cabeça pra fora da janela e olhei pros dois lados.
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Ela parou de falar de novo.Nenhum gato desta vez. – Desculpe, pode continuar.
- Ela morreu no ano passado. Foi bem difícil te localizar. Seu pai e ela não se
davam bem?
- É irônico. Problemas com a herança do meu avô.(Por que está contando isso
pra ela?!)
- É. (pequena pausa) Bem, aqui está meu cartão. Se puder passar no meu
escritório...
aquele pescoço com uma mão, a cintura fina com a outra, dando um beijo daqueles e a
Ótimo! – Ah. Sim, tudo. Tudo bem. Foi só a surpresa. Odeio surpresas.
- Sinto muito. Bem. Quando puder... Estou aguardando. Não é preciso marcar
hora.(Estendendo a mão) Adeus. Mais uma vez, desculpe a invasão... (Sai andando em
marcha-ré).
***
Eu enlouqueci. Agora estou certo disto.O que estou fazendo aqui na porta da
casa dela? Toquei a campainha. Vai achar que sou algum psicopata. Toquei uma
segunda vez. Será que ela está? Tomara. Acho que não... tá demorando muito. Não, tem
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uma luzinha lá dentro, to vendo pela janela. Um gato?! Não, de novo não!
Quando a porta abriu, eu estava em meio aos arbustos do jardim. Vi quando ela
olhou pros lados, não viu ninguém, abanou a cabeça como quem diz:” Foi só impressão...
***
caminho. Déja vu. Subi os quatro andares meio que pagando promessa, arrastado. Vou
dar meia-volta. Fugir. Não adianta! Mais cedo ou mais tarde... Melhor ver logo do que
***
Depois daquela noite não houve mais jeito. Adotei o bichano, o gato que rondava
a minha janela.Sempre fui muito solitário, já disse, sou desses tipos calados. E...
Depois que recebi a primeira parcela da herança da Tia Gisella, pintei as paredes,
comprei uma cama nova e um sofá de veludo verde de segunda mão que fazia conjunto
feminina.
***
63
Uma noite. Oito horas. Chegando em casa. Bichano veio me acompanhar para
subir as escadas. Cena de todo dia. Fumaça saltando do cinzeiro. Sorriso nos lábios. Fui
- Boa noite! Sou o sargento...( sei lá o quê, não me lembro) Você conhece essa
- Sim, conheço (Já sem o sorriso nos lábios) É a minha... Ia ser a primeira vez na
- É uma vigarista procurada em dez estados. Ela cuida de heranças e sempre acaba
fugindo com uma parte delas. O Sr. Recebeu alguma quantia de parentes recentemente?
- Você deu sorte. Muitos não recebem nada. Você sabe onde encontrá-la?
***
Na mesma poltrona verde, de frente pra janela, eu fumava um cigarro que ela
deixou para trás. Luzes apagadas. Bichano pulou para o párapeito da janela, miou e
partiu.
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Mãos
pergunta, respondo que não, que ainda não fui publicado. E sorrio daquele jeito que
bilhetes, epitáfios. Para quem? - você pode estar se perguntando. Para jovens de classe
É, pode ser.
apareceu um sujeito pedindo minha ajuda para escrever seu bilhete suicida.
Ao contrário do que ele devia esperar, não me mostrei surpreso, nem abalado com
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o pedido. Afinal de contas, sou um profissional. É o que diz no meu cartão. Escritor
Profissional.
Perguntei por que ele precisava de um bilhete suicida. Assim que as palavras
saíram da minha boca, percebi como era idiota o comentário. Mas não me deixei abalar.
Realmente o sujeito não estava com vontade de conversar. E, eu, um cara que
sempre achou que sabia lidar com pessoas... Tem que se levar em conta que esta foi a
minha primeira vez com um suicida. O Indecifrável, foi assim que o apelidei quando ele
não quis dizer-me seu nome. O Indecifrável, como Alexandre, O Grande, só que sem
nome nenhum antes. Pois é, conhecê-lo me colocou no meu devido lugar. Não sei nada
sobre as pessoas.
- Ok. Por que não se senta assim podemos discutir algumas idéias pra que eu
- Na verdade, não é preciso discutirmos nada. Já sei o que quero que escreva.
- Já tenho a frase formada na cabeça. Preciso apenas que o senhor a escreva pra
mim. Diante da minha hesitação, ele completa: Me disseram que o senhor é muito bom
no que faz.
- Foi altamente recomendado. Pra ser sincero, li alguns dos seus epitáfios. Gostei
muito.
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- Obrigado. Mas ainda não sei por que precisa de mim se já tem a frase do bilhete.
- A verdade é que seria muito mais difícil explicar a ele a minha necessidade, e
Já estava pronto para acionar o botão vermelho, que mantinha debaixo da minha
- Mas a sua família vai saber que não foi você quem escreveu o bilhete, como vão
evitando todo mundo que conheço. Também sou escritor (Vacilante) Contratei uma
pessoa para me ajudar com tudo, inclusive digitar o que eu dito, mas não é a mesma
- Está bem.
Ele aproximou-se de mim apontando para o bolso de seu elegante paletó. Peguei
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Abri a gaveta à minha esquerda e coloquei em cima da mesa alguns papéis,
cartões e envelopes pedindo que ele escolhesse um do seu agrado. Escolheu um elegante
Ensaiei algumas vezes numa folha de ofício, e por fim escrevi a frase. Botei o
Foi o tempo de baixar a vista para juntar as amostras da letra dele, e ele
mesa.
Sem contar.
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O mistério dos cigarros
Há dois anos eu morava naquele prédio velho, fedido, carpete encardido cor de
carne nos corredores. Morava no quarto andar, não havia elevadores. Nem vizinhos.
O sol entrou pela fresta da persiana que não fechava direito. Bem no meu rosto.
Acordei à contragosto. Tateei pelo relógio na mesinha e vi as horas. 6h30. Muito cedo.
Tentei ajeitar a fresta com um pedacinho de fita crepe, sem sucesso. Fazia isso todas as
Quando ouvi um farfalhar subindo as escadas, fiquei alerta. Ninguém subia até o
quarto andar. O meu andar. Me agitei no concerto e a persiana foi ao chão num estrondo.
parecia. Passaram pela minha porta e seguiram pelo corredor. Enfim pararam.
Ouvi um ranger de porta e uma voz dizer: — É aqui, podem colocar pela sala.
Ouvi vários volumes sendo pousados no chão. Paredes finas têm esse defeito: ouve-se
Abri a porta e espiei. Uma fila de homens com caixas, que pareciam ser de
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cigarros, nos braços. Verdadeiro fordismo. Fechei a porta.
***
Na manhã seguinte. 6h30. O sol abraçou todo meu quarto. Havia me esquecido da
persiana. Não havia remendos a fazer. Pulei essa parte. Xinguei e fui pra cozinha. Botei a
frente pra janela. Acendi meu cigarro matinal. Fumo de olhos fechados, para realçar o
sabor do tabaco. Quando ouvi o farfalhar arregalei os olhos. Fui olhar a água e ela tinha
***
inteira! Aquele ritual alheio me dava nos nervos. Decidi tomar uma providência.
Comprei uma persiana. Verde. Mandei a loja entregar às 6h30 do dia seguinte.
Nem dormi naquela noite, tamanha minha excitação. Fiquei na minha poltrona. Li
um romance de banca de jornal. Fumei um maço de cigarros. Sorvi uma garrafa de Jack
com tônica.
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Quando os passos começaram, sorri e fui pra cozinha. O caminhão da loja já
estava parado na frente do prédio. Vi pela janela. Um dos funcionário saltou do caminhão
Os passos ainda não haviam parado. Daria tempo. Ouvi os passos solitários de
minha persiana nova pela escada. As caixas ainda pousavam no apartamento vizinho.
Abri a porta para a persiana e sai para o corredor. Interceptei um dos homens.
— O senhor fuma?
— Não.
— É bem esquisito.
Quando voltei ao meu apartamento, a persiana estava quase pronta. Ofereci café
ao rapaz, que não só aceitou, como pediu um para o seu companheiro. Verti um bocado
Fiquei um tempo olhando para minha persiana nova. Bateram à porta. Fui abrir e
***
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Na manhã seguinte, não vieram caixas. Apenas dois homens. Bem mais tarde, lá
pelas oito. Conversaram. Saíram e voltaram horas depois com pedaços de compensado,
Quando o barulho cessou, tomei um banho rápido, me perfumei e fingi que estava
de saída. Tudo para cruzar com os homens do apartamento ao lado. Esperei o momento
— Não.
Atravessei a rua e fui beber uma cerveja no bar da esquina. Tirei um dos maços
***
Ainda intrigado com meu vizinho, na manhã seguinte resolvi ser mais incisivo.
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A porta estava aberta. Ninguém estava na sala. Estantes de madeira envidraçadas
até o teto, como aquelas de tabacarias. Fiquei tão surpreso com a vista, que sequer
— Você não vai resolver aumentar meu aluguel porque te insultei, vai? (ele riu
de novo!)
— Não, não se preocupe. Pra dizer a verdade, a partir de agora você não paga
mais aluguel.
— Não. Soube que o Sr. não trabalha, portanto, ganhará também um emprego.
— Porque já está acostumado a tomar conta deste andar. Porque o que estou
construindo aqui é segredo. E, principalmente porque você não tem pra quem contar
segredos.
como o bar da casa. No quarto, a banheira e minha poltrona.(De veludo, como a minha,
só que bordeaux. E também de frente pra janela.) Este é o meu templo, meu santuário.
— Entendo.
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E, entendia mesmo.
Assim foi que deixei de pagar aluguel e ainda receber um salário pra fazer minha
coisa preferida no mundo: sentar na minha poltrona, fumar um maço de cigarros, ler um
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A Balada de um homem morto
A língua da noite cobria de negro o mundo. A lua manteve silêncio. Apenas a luz
tênue e amarelada do poste velho, envergado pelos tempos que passaram por ele, vencido
Caminhava pelo beco com olhos de álcool. Injetados. Brilhantes. Pulava as poças
Ali acordara e não sabia dizer quando, onde, porque. Ali não havia consciência
que prestasse.
Enfim uma luz bruxulante. Um café. Seria miragem? Um paraíso embutido entre
balcão surrado. Fingiu não notar os olhares de espanto à sua passagem. Já fazia tanto
tempo que ele não se lembrava mais do seu rosto. Nem do atual, nem do antigo.
— Uma garrafa de vinho, por favor. – Podia estar perdido, mas a festa devia
continuar.
Notou a mudança nos olhos do taverneiro. Viu clara, a cobiça. Ainda assim
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apreciou o tratamento especial.
abraçado a ela, sentou numa cadeira que a moça de modos vulgares indicou.
Outra noite.
A Estátua
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O sol levantava-se do mar, tentando inutilmente afastar o gelo da noite.
Buscou relógio, não existia. Cigarro, não acendia. O vazio do maço indicava a passagem
das horas. À esquerda, a pilha de guimbas pintadas de rosa. À direita, sentado, a estátua.
Primeiro entendimento. Ele: calado. Ela: monólogo. Escreveu ela mesma os dois
travessões do diálogo. Respondeu-se como sempre sonhou que ele o fizesse. Derramou-
Local sem lembranças. O discreto sabor do que não tem importância fazia-se
necessário neste último encontro. Nada de familiaridades. Nada de arrumação. O rosa dos
animasse e dissesse algo. Nada. Pousou a mão no seu ombro e a cabeça pendeu. Tentou
recoloca-la de volta no lugar. Não foi possível. Deixou-a ficar ali no seu ombro. Último
aconchego.
Era hora de ir. Levantou-se num ímpeto. Mudou de idéia. Desacelerou. Beijou a
testa gelada, deixou cair uma lágrima. Podia jurar que ouviu a estátua sussurrar “ Eu te
amo”.
cabelos soltos.
O Cadáver
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O Cadáver perambula pela Casa.
as Compreende.
O Cadáver tenta Comunicar o que não viveu, Sentir o que deixou pra mais tarde,
Quando dorme, sua alma passeia. Nestas horas visita os paises que nunca
conheceu, experimenta o que sempre teve medo, sonha os sonhos que não ousou sonhar.
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O Escritor
Sou insone. Por natureza. Não sou desses que por um estresse qualquer
perde o sono. Sou um profissional. Anos de prática. Calmo, lânguido como um gato
deixo-me ficar na cama a noite toda. Não levanto. Não pego um livro. Não tomo remédio.
Aceito a minha condição de insone. Abraço-me a ela. Faz parte de mim. Às vezes tenho
O bico do seio escapa do decote da camisola enquanto ela dorme. Torcida qual
Sou escritor. Por natureza. Não sou desses que escrevem e-mails e uns poemas
melados para mulheres que sequer amam. Sou um profissional. Anos de prática.
Obediente, deixo-me ficar no computador, por horas à fio. A tela branca sendo aos
poucos preenchida por letrinhas que formam palavras, frases, textos... Ou, muito mais
frequentemente, vendo aquele pulsar preto no fundo branco. Tenho tanta intimidade com
esse tracinho pulsante que ele dança para mim: transforma-se, transfigura-se.
Vivo na contramão. Não durmo, como os outros. Não fumo, como os outros. Nem
bebo, nem me drogo, como os outros. Não sonho. Isso sim tenho em comum com
alguns...
Tudo passagem. Paisagem que se vê através das janelas dos ônibus. Imagens
bom em matemática. Escrevo sobre isso. Não sei o que é o viver que todos conhecem.
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Não entendo nada disso.
Talvez a vida não seja mais do que a soma, do que a oscilação de tédios , e das
nossas reações à eles. Alguns resistem mais, a estes chamamos lutadores, vencedores. Eis
estamos em outra. Neste contexto o amor é revolução. Traduzido por desafios tais como:
administrar o tédio conjunto? Terapia de casal. Como não causar tédio no parceiro?
Agora sabia o que fazer. Olhei através dos painéis de vidro que revestem quase
sol já estava de pé há pelo menos Três horas, era hora de juntar-me a ele.
***
O dinheiro para mim não uma preocupação, mas um afazer. Talvez por não ser
bom em matemática, eu não me metia à besta com os números e mantinha os meus zeros
Obtivera algum sucesso com meus roteiros de cinema. Assim pude botar um teto,
mesmo que de vidro, sobre a minha cabeça. Comprei um conversível vermelho como
sempre sonhara, algumas camisas pretas e calças e sapatos que combinassem. Leia-se:
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Alguns anos dessa minha vida pacata, e exteriormente excêntrica, perturbada
bela escultura que dormia na minha cama com a assustadora (e recorde!) freqüência de
seis meses.
Isso tudo não parecia me abalar enquanto eu entrava no meu belo conversível e ia
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Nem a cifra foi capaz de me acordar, mas a pedra brilhando dependurada naquele pedaço
de ouro branco se fez ouvir. Meus dedos trêmulos quase deixaram a jóia cair. Me lembrei
Minha última lembrança: acordando tal múmia num hospital. Memórias perdidas.
Forte golpe na cabeça. Fui encontrado num beco todo ensangüentado, sem identificação.
condição de fraturado e nada dizia, armazenando ao menos aquelas memórias novas, que
se não fossem boas, ruins também não eram. Me perguntava constantemente qual a
vantagem de nascer de novo. Nascer sem nome. Sem família. Sem amigos. Reinventar-
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É importante na sua vida dividida preservar algum resquício de raiva dos seus
pais. Faz-se mister manter esta inquietude, esta culpa. Alguém deve ser responsabilizado
por nosso insucesso. Culpar Deus não pega bem, é de mau tom. Mas já os pais... Criou-se
um mercado inteiro! Sei que pode parecer uma coisa estúpida de se dizer, mas as pessoas
deviam estar mais atentas a esse aspecto de suas vidas. Não é à toa que , de fábrica, temos
apenas um pai e uma mãe. Outros relacionamentos são mais propícios à série, tais como:
carnes, não é preciso mais que uma fagulha, ou mesmo uma promessa dela. Não há
nenhuma ciência.
dizemos que alguém é responsável, normalmente tem a ver com alguma culpa, alguma
falha, é quase como dizer o oposto. Seu significado só aparece bem delineado em
Bem, para resumir é o seguinte: Perguntei a Ella se ela queria casar comigo, e ela
disse que não, que eu era uma pessoa muito sem estrutura, muito sem profundidade
psicológica, já que não me lembrava do meu passado e não tinha lembrança sequer dos
meus pais... porque ela apesar de ter ódio dos dela, das mágoas e traumas, pelo menos
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eles existiam...
Aí eu me perdi. Fiquei preso na idéia de que eu não tinha a quem culpar a não ser
eu mesmo por tudo o que me acontecia. De bom e de mau. Eu não tinha ódio de
ninguém! Era tão só, que não tinha sequer alguém para odiar. Tão só, que pedi em
casamento uma louca como Ella. Tão só, que só as minhas próprias palavras ouviam
meus lamentos...
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