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Pequenas Verdades.....

Assim é...

As Regras de Luci.....16

O Bolo.....21

O Casal.....24

A Feiosa.....27

As Noivas.....31

Um Rapaz de Futuro.....35

O Amante Ideal.....41

Assim foi...

A corrida. .....44

Luzes da Cidade.....46

O Funeral.....47

O Agente funerário.....50

A Máquina de Escrever.....52

Lembranças do Voar.....55

O Amante.....57

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Assim parece ser...

A Poltrona Verde.....61

Mãos.....66

O mistério dos Cigarros.....70

A Balada de um Homem Morto.....76

A Estátua.....78

O Cadáver.....79

O Escritor.....80

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Pequenas Verdades

" Era uma vez um ser pensante.

Um dos primeiros seres pensantes...

Que pela primeira vez parou para indagar sobre sua própria existência.

E chegou a muitas verdades...

Não gostou particularmente de uma delas:

Seu poder era muito pequeno diante de um mundo tão grande,

Mas ele tinha o poder de criar.

Criou então a mentira...

E se sentiu grande diante de um mundo de pequenas verdades.”

A.L.

Até aquele momento sempre a vira como uma mulher exótica e magnética. Que atraía

olhares. Se aproximava e em seguida se afastava. Sem promessas.

Subitamente via seu semblante suavizar-se aos poucos. Os dois deitados frente a frente.

Olhos mergulhados uns nos outros. Sequer se tocavam.

Aos poucos, Tomas notou que o magnetismo inicial tornava-se apenas mulher. E se

perguntava: “ Se ficassem mais tempo naquele instante, ela se transformaria numa

menina ?” Se assim fosse, não poderia evitar apaixonar-se irremediavelmente por aquele

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paradoxo com forma humana, de querê–lo só pra si, de escondê–lo do mundo para que

ninguém mais visse.

Se perguntava isso, embora já anestesiado cada vez que a via. Na verdade, o que o

perturbava não era o apaixonar-se em si, mas o seu total desconhecimento do mecanismo,

a sua incompreensão diante do processo.

Carregava no íntimo, há algum tempo, vontades que se relacionavam diretamente àquela

mulher. “Será que ainda tinha chance de escapar?” - Tomas pensava diante do turbilhão

de idéias em que mergulhava.

( ... )

Eu gostava do jeito dele sorrir com os olhos e lábios em uníssono. Um menino diante de

algo fascinante e novo. Assim era seu olhar quando nos víamos. Quase sempre. Às vezes

era um fogo no olhar que me queimava a pele.

Ele me dava doçura. Via-me debaixo de mim mesma construída. Doces olhos negros.

Tem dias que uma garota só precisa de um sorriso nos lábios ao pousar a cabeça no

travesseiro. Ele era muito bom nisso...

Flora. Flora o seu nome. E mesmo este nome tão cheio de implicações aromáticas,

cromáticas e estéticas, era insuficiente àquela que o carregava consigo. Ele lhe atribuía

uma certa pureza, ao mesmo tempo que lhe temperava o espírito com uma exuberância

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orquídica. Um quê de atemporal.

Sob o signo deste nome forte, flutuava uma fragilidade rarefeita. Como uma poeira

cósmica que orbita sozinha, sem ajuda de nenhuma força física, que não a de existir.

Flora, era assim que sentia, como a poeira cósmica que só tinha em si a força de existir.

O esqueleto humano é o mais fiel arquivo da mente. Quando criança é pequeno, mas com

o avançar dos anos dilatam-se para acomodar os aprendizados. Estabilizando-se depois

por algum tempo, para finalmente inscrever uma linha decrescente no gráfico da vida, no

momento em que desistimos de encher a mente com conhecimentos novos; assim sendo,

o esqueleto encolhe. É o esqueleto parábola do desenvolvimento de um homem.

( ... )

Ia ao seu encontro sempre num misto de loucura e medo. Sabia que naquele homem

estavam o elixir de minha perdição e salvação. Cabendo a mim, saber de qual poção

sorver maior quantidade. Já que neste cálice, que ele era, havia porções suficientes de

ambas as partes para embriagar-me.

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Flora sabia que admitir aquele homem em sua vida, independente de qual poção sorvesse,

era tornar-se uma corda de violino. Bem afinada, produziria sons celestiais. Frouxa,

apenas ruídos desconexos.

Contudo, amava-o perigosamente demais. Amava-o disposta a fechar os olhos para

qualquer desagrado, disposta a dar valor de virtude a qualquer defeito. Amava-o

loucamente e sem tréguas. Sem descanso queria tê–lo , mesmo que de longe, só no

pensamento. E finalmente amava-o querendo dele seu próprio sangue e carne, achando no

sexo um modo de aproximar-se deste ideal.

De vez em quando Tomas pensava em comprar um relógio. No instante seguinte desistia

da idéia. Achando-a tola. Que necessidade tinha de medir o tempo? Algo impalpável e

imensurável. Ou melhor, algo que sequer existia senão na mente de quem acreditasse.

Tomas não acreditava. Tomas não acreditava em nada que não pudesse tocar, nada que

não pudesse possuir.

Era isso que estranhava em Flora, atraía-o e repugnava-o na mesma medida, a

disponibilidade que ela lhe oferecia. Sentia-se desconfiado diante da ausência de

resistência dela, da quase irreverência com que ela se entregava a ele. Sentia medo

também daquilo. Tomas nunca possuíra coisa alguma. Sequer tivera um dia oportunidade.

Até aquele momento.

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Flora tinha medo de ser engolida pela vida. E embora sonhasse com feitos grandiosos, os

temia igualmente. Essa ambigüidade a consolava e encolhia ao mesmo tempo. Pensava

em manter-se escondida. Era mais seguro. Mas já se sentia querendo explodir por dentro,

expor-se toda, conhecer-se finalmente por inteiro. Sentia a angústia de não ser o que

poderia. Era preciso voar pra longe.

6 e meio

Sentia uma felicidade sem motivos. Caminhava pelas ruas de seu bairro. Na verdade,

havia uma série de pequenos motivos, que dobravam seus lábios num sorriso tolo, como

que colado ao rosto. Muito embora os olhos não se dobrassem a esta felicidade. Na

verdade, procurava nos rostos transeuntes o desconforto que a felicidade alheia costuma

causar.

Seria a grande prova da sua felicidade: o desconforto que ela mesma vestira inúmeras

vezes, ao ver um casal feliz, abraçado, passando por ela, ou mesmo uma mãe com seu

bebê risonho e belo. Era a primeira vez em que ela se sentia a possível causadora desse

tipo de desconforto. E exigia sua parcela.

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7

Estava adormecida. Uma mão dentro da calcinha, a outra pousada sobre o peito, bem no

coração. A sinceridade do sono trazia à tona os dois fios condutores daquela mulher: seu

coração e seu sexo.

Tomas insistia em pensar nela como um bichinho de estimação, a quem damos um amor

desinteressado, sem grandes rompantes, mas indispensável de se encontrar em casa à

nossa espera, desejoso de nossa atenção, nos dando importância.

Tomas ainda não sabia ter Flora em sua vida sem estranheza, embora já soubesse amá-la,

e ser amado. Ainda não tivera forças de gritar pro mundo inteiro ouvir. Era como se

ambos ainda não fossem borboletas e estivessem no casulo. Sabia que a paciência dela o

apressava. As pernas não respondiam...

7’

Não podia deixar de vislumbrar um romantismo velado naquela atitude: resguardar a

relação deles dos olhos do mundo. Era para Flora uma grande prova de amor. Provava

que o que havia entre eles era intimidade, e não um espetáculo pra ser exibido. Que o que

havia entre eles pertencia a eles, e a mais ninguém. Ela apreciava aquela sensação do

secreto.

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( ... )

Tomas não entendia a obsessão que todos pareciam ter pelo futuro. O que era futuro? O

futuro não era, não existia. Por que o inexistente era tão importante? Não bastavam os

mistérios que podíamos tocar? Esse tipo de masturbação mental sempre o incomodara.

Era um homem de verdades absolutas, não de relativismos. As coisas eram uma coisa ou

outra. Respostas o confortavam, lhe davam o pé no chão de que ele necessitava. Do

contrário, já estaria flanando como um balão.

Tentava sorrir sob os olhos cheios d`água. Não estava triste. Sentia dignidade naquela

despedida. Ela não o via partir, não teria essa imagem. Via-o olhando-a sorrindo, via seu

semblante endemoniado do sexo, via o menino que brincava com a menina que era. Via

seus olhos dizendo “Eu te amo”, embora a boca não acompanhasse o movimento. Não

havia tristeza naquele momento de lembranças felizes. Os olhos molhavam de teimosos,

sem conhecimento.

Tomas já tinha a mala pronta. Ia trabalhar na África. Salvar o mundo! (Que grande

piada!) Ele não sabia que havia um mundo inteiro para salvar, e outro para construir, ao

lado daquela mulher? Tomas não sabia o que era. Então, foi descobrir.

8+0

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Enquanto Tomas fosse descobrir o mundo, Flora pretendia cultivar o seu. Esperando com

uma certeza de cartomante a sua volta. Era como se o mundo estivesse com pouca água.

Fitava a porta a todo instante como criança à espera dos pais no portão do colégio no fim

do dia.

Tomas sempre soubera que o coração era um órgão vital, mas nunca imaginara que ele

poderia responder a alguém além dele mesmo, do seu movimento involuntário.

Mais um engano.

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Mais uma noite insone. Tentou rezar. Se masturbar. Repassar conversas na mente. Nada

funcionou. Insônia profunda. Resolveu ir ao banheiro. Abriu a tampa da lixeira com a

mão. No escuro seria incapaz de acertar o pedal que a levantava. Cabeça de mulher é uma

bosta! Cheia de pensamentos vigaristas prontos para aplicar-lhe um golpe, ao menor

descuido. Tenho um medo danado da minha mente, ela é muito mais poderosa do que eu.

Nessas noites Flora costumava ligar para Tomas, que cantava para ela pelo telefone. Aí,

Flora o amava com maior intensidade. Tomas cantava muito mal, e o sabia, mas ainda

assim arriscava umas notas para acalentar o sono da amada.

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Seis meses já, que Tomas voltara para seus braços, como ela sonhara. Mas pouco a pouco

a imagem dele se apagara diante de seus olhos.

Flora olhava para Tomas, e ele desfocava. Cada vez mais. Agora fitava seu rosto e não o

via mais. Via um ponto fosco. Não mais um rosto amado.

Na vigília seus olhos mantinham-se abertos. Viam um mundo de oportunidades, de vidas,

de lugares que ela desejava.

Flora não via mais Tomas, via tudo o que não tinha por estar ao seu lado. Finalmente suas

asas cresceram. Era tempo de voar.

( ... )

“Eu não tenho sonhos. Nunca tive.” Tomas me dizia isto como se fosse a coisa mais

natural do mundo.

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Grávida. Aquela palavra matava todo o conhecimento que tinha de si mesma. No

momento em que seu óvulo foi fecundado pelo espermatozóide de Tomas, perdera-se.

Era mãe de alguém.

Fazia as malas pensando em sua nova situação. O que a atrasava.

Grávida.

( ... )

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Eu podia me imaginar demais: Uma grande assassina.Uma cantora de Jazz. Uma

bailarina. Uma escritora. Uma política. Editora de uma revista arrebatadora. Em todos

esses papéis eu me via.

Mas era incapaz de adivinhar-me mãe.

Agora tinha alguém que a continuava, que a estendia à eternidade, assim como ela mesma

fizera com seus pais.

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Sentia. Como nunca antes. Como jamais pensou ser possível. Um maremoto de coisas

dentro de si. Não se tratava de qualquer moléstia biológica, Tomas já se assegurara disto

com todos os exames que a medicina conhecia. Era portador de uma patologia

indetectável.

Era Tomas que agora sentia os olhos estenderem-se até a porta à procura, à espera de

Flora. Pensava em procurar por ela. Não sabia começar.

13`

Entrava num bar e antes de beber algo, arrumava uma briga e era colocado pra fora.

Atravessava a rua. Entrava em outro bar. A experiência se repetia. Tentava ainda mais

uma vez. O mesmo.

Finalmente desistia. Sentava no meio-fio. Aproximava-se então um bêbado maltrapilho

que cedia sua garrafa a Tomas.

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Foi seu primeiro sonho em 20 anos.

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Flora sentia-se mais viva que nunca. Como se a vida que pulsava e lhe esticava, aos

poucos e calculadamente o ventre, aumentasse sua vontade de viver.

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O relógio. O maldito relógio. Incansável no seu tique-taque. Jamais gostara de relógios.

Nunca lhe soubera a utilidade. Agora, escravo daqueles ponteiros girantes.

Contemplava-os. O olho fixo. Parado.

Dois meses. Ele não ouvira de Flora. Nem ele, nem ninguém. Nem os pais dela.

Tinha vontade de esticar-se inteiro e abraçar o mundo, farejando-o até sentir o cheiro de

Flora; e pinçá-la com cuidado. Colocar numa caixa macia e aconchegante. Dar-lhe de

comer e beber. Acalentar no colo...

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Andava pelas ruas de Paris com uma gravidade de filme de época. Olhar vidrado,

distante. Um caminhar pausado e de obrigação. Morrera um pouco. Tinha de ir em frente.

O vento batia contra seu rosto e ameaçava congelar as lágrimas. Todas as grávidas a

insultavam pessoalmente.

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Trabalhava muito e não tinha tempo de sofrer, de deixar a dor da distância pousar sobre

seus ombros e dobrá-los. Trabalhava em quantidade e qualidade, e quase sem querer

estava tornando-se uma artista plástica cult. O ego dilatava. Dentro, algo encolhia com

medo do sucesso verdadeiro. Medo de ser achada, de perder a nova identidade que

desenvolvera nos últimos meses.

Encolhia e esticava alternadamente. Toda uma parte sua encolhia e atrofiava,

congelando-se no passado. Como no dia em que... E ela já tinha saudades. Não podia ver

bêbes.

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Flora não se desimpregnava de Tomas. Sentia-o. Ou era a si mesma? Sentia frios e

calores que não sabia se vinham de impressões dele ou dela mesma. Pensamentos

giravam na mente. À noite, sentia-o deitado ao seu lado. Quanto mais se afastava da

antiga vida, mais queria Tomas consigo. Confundidos. Sentia-o grave, reverberando no

peito. Separados o coração e a mente. Em outros braços.

15`

Tomas não tivera mais mulher nenhuma. Faltou-lhe apetite e coragem. Vivia numa

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solidão de TV esquecida ligada na madrugada.

***

Passos ensaiados até o altar. Os olhos molhavam de teimosos, sem conhecimento. Estava

feliz. Segura. Adeus, Tomas.

Assim é...

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As Regras de Luci

REGRA N°1

 Solteiro não! Case com qualquer uma, não faz diferença. Mas enquanto for

solteiro, você não me toca! Me trair, nunca mais!

Eu, com essa minha mania de ouvir conversa alheia, os ouvidos aguçados pela

prática, ouvi perfeitamente o que a mocinha ferida disse.

O discurso, embora exaltado, proferido em tom baixo. Entre dentes. Cruel em

forma e conteúdo.

Devidamente encolhido em sua masculinidade, do alto dos seus 1,80m, baixou a

cabeça. Ela, imperativa, levantou-se com a bolsa entre mãos. Saída triunfal.

***

Era a primeira vez que havia confronto.

Em outras ocasiões fora ela que baixara a cabeça, dominada pela invencível

conduta libertina do namorado, subjugada pela sensação de morte em contrapartida do

fim daquele afeto mau arranjado.

Era freqüentador assíduo daquela casa de sucos. Era o meu lugar preferido

para ouvir o que eu mais gosto: brigas de casal. Por que não um bar? Você pode se

perguntar. Te digo pautado em vasta observação. As brigas de casa de sucos são mais

profundas psicologicamente porque em sua maioria são premeditadas em algum nível,

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são filhotes de pensamentos remoídos. As de bar, apesar de dramáticas, por serem

instigadas pelo álcool são mais voláteis, menos consistentes. Com a mesma rapidez que

surgem, evaporam-se. Como o álcool.

Aquele enredo em particular nunca me fascinou. Já acompanhava as idas e vindas

daquela dupla há tempos. Se não fosse a incrível reviravolta proposta pela personagem

feminina, aquela não passaria de mais uma história de traição comum.

***

Luci era o nome da nossa personagem. Menina direita. Aluna nota dez. Filha

primogênita exemplar. Sempre zelando pelos interesses daqueles que a cercavam. Tinha

um pai doente, uma mãe nervosa e uma irmã desse espíritos relaxados, cheios de bossa.

Poucas amigas, poucos amigos. Não era dada à intimidades fortuitas. E, aquele

namorado.

O namorado é um caso a parte. Era do tipo simpático, dado. Todo sorrisos e

charmes. Se sua beleza de galã da Metro não fosse o suficiente, a voz rouca e macia faria

o resto. Não podia ver um rabo de saia. Feia, bonita, alta, gorda ou magra. Mulher, tava

traçando. Trocava a pobre Luci por elas e depois voltava. Arrependido. Confesso em

amor. Prometendo melhoras. Luci apaixonada, aceitava.

Um enredo clichê que agora sem explicações melhorava. Precisava me inteirar.

***

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Os meses se passavam e não havia desfecho para a história que me fascinava.

Tornei a ver o rapaz algumas vezes na casa de sucos. Sozinho. Sempre. Nenhuma

loira, nenhuma morena, nem gorda, nem magra. Suspeito que perdeu o apetite com o

ultimato. O sanduíche pela metade no prato, o olhar vago. Magro e abatido. Apagada a

beleza de galã de cinema que antes desfilava.

A moça nada. Nem sombra.

O tempo passava lentamente também para mim que apenas observava. Cheguei a

pegar certa amizade com o rapaz. Monólogo, ele mau falava.

***

Já desistente, na minha mesa de hábito, vi quando a moça chegou e sentou-se.

Acompanhada. Não pelo antigo namorado, mas por outro. Conversavam animados.

Cheios de dengo. Beijos e abraços.

Meu coração congelou quando do outro lado da rua avistei o antigo namorado.

Esperando o sinal. Temi, esperei o pior. Cheguei a visualizar o corpo do rapaz sendo

lançado aos ares por um carro ou ônibus, caso ele presenciasse a cena que desenrolava-se.

Levantei muito rápido e fui ao encontro do enamorado. Me pareceu até animado.

Me cumprimentou e se disse ocupado, seguindo em frente. Não viu nada. Graças!

Respirei aliviado e voltei para o meu suco.

O susto foi tanto que nem conseguir ouvir mais conversa nenhuma.

REGRA N° 2

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Nova regra. Ele me contou em detalhes. Luci ficara noiva. Já que ele não seguira

a regra anterior, tinha agora uma segunda chance. Deveria ser seu padrinho de casamento

antes de retomarem o romance. O pobre, castigado pela intensidade de sentimentos que

não compreendia, aceitou a nova condição.

Iam os três à casa de sucos. Amigáveis. Sorridentes. Altos papos. E, olhares...

Muitos olhares. Olhares de todas as direções.

***

Um dia feliz, Luci. Sorria. Se esforce!

Carregando o belíssimo vestido de noiva como um fardo, Luci forçava os pés ao

trabalho, nave abaixo.

Olhava o noivo à sua espera no altar. Nenhum sentimento. Nenhuma ternura.

Apenas um entorpecimento, uma apatia, uma paralisia em seu interior. Temia morrer por

parada cardíaca. Respire, Luci! Vamos lá! Seja forte! Desviando o olhar, encontrou

o homem que amava. Lindo. Distinto. Esforçado em seu papel de padrinho. Muitos

sabiam da sua crueldade, mas calavam. Sabiam também o porquê dela. Seu ânimo voltou.

Via o sofrimento marcando a face bela daquele homem, qual faca que entalha madeira,

não enfeites lúdicos, mas arrependimentos e dor, talvez também a estranha esperança

plantada por ela.

O empenho em manter suas atuações em ordem não passou desapercebido da

audiência. Uma nuvem tensa pairava sob aquela cerimônia. O silêncio que precede as

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grandes tragédias. Lufadas de um vento gelado arrepiava os presentes. Trovões ao longe.

Verdadeiro filme de horror. Formava-se uma tempestade.

Fugindo ao convencional, quando o padre quis saber se havia algum impedimento

para a consumação daquele casamento, o silêncio foi quebrado.

 Eu tenho. – disse o padrinho da noiva.  Amo a noiva e penso que ela também

me ama.

Os trovões não impediram que todos ali presentes ouvissem muito bem o que o

rapaz dizia.

Sem qualquer hesitação um revólver sai do bolso do noivo e atira no padrinho

atrevido.

Raios riscavam os céus ferozmente. Os trovões, perdida a timidez,embora

retumbantes, não abafavam os gritos da jovem noiva abraçada ao cadáver que sangrava.

***

A tempestade tão forte e prolongada que por duas horas ninguém entrou nem saiu

daquela igreja.

Padre. Convidados. O noivo traído. A noiva. E o cadáver.

O Bolo

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Dez anos de casamento. Sem filhos. Uma felicidade conjugal eterna. Viagens,

passeios, festas. Um dia chega em casa do trabalho para encontrar o marido sentado no

sofá vermelho defronte à porta de malas prontas. Sem mais nem menos. Sem pistas.

A mulher em total estado de choque, em completa negação, diriam alguns, da

manhã seguinte em diante recusou-se a sair de casa, na esperança que ele retornasse.

Pediu licença no trabalho. E passou a esperar.

Limpava a casa pela manhã, almoçava e às quatro horas parava tudo. Preparava

um bolo de laranja e bastante café forte, como ele gostava. Sentava no sofá vermelho

defronte à porta e esperava. Parecia nem mesmo piscar ou se mover depois que sentava-

se.

A noite caía e ela ainda na espera. Depois de um tempo sem conta no escuro, saía

da sua imobilidade. Ligava a luz, pegava o bolo e a garrafa térmica cheia de café e jogava

tudo no lixo.

Toda tarde ela assava um novo bolo.

Se alguém ligasse ou aparecesse no seu horário de espera ela simplesmente dizia

que estava ocupada e batia o telefone ou a porta.

***

Seis meses. Ela firme em sua espera. Já aí negociara com os patrões e trabalhava

de casa. Resolvia tudo de lá. Os amigos, os parentes apelam ao marido alguma ajuda. Ele

se recusa.

Mais seis meses. A mesma situação. Os apelos e queixas mais freqüentes para o

ex-marido. Finalmente ele decide ir ver a ex-esposa. Telefona e marca a visita para o dia

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seguinte.

A cabeleireira e a manicure são chamadas. Manda vir da sua loja predileta um

vestido preto novo, que ele sempre gostou de vê-la de preto.

Na hora marcada ela já estava posta atrás da porta. Apenas um milésimo de

segundo depois de ele tocar a campainha, ela já estava aberta.

Ela o recebe muito bem. Alegre, quase eufórica. Pede para ele se sentar enquanto

busca o café que está passando. Ele concorda. Enquanto ela serve o bolo e o café ele a

observa. Vê os cabelos, as unhas e as roupas impecáveis, como sempre, e vai relaxando.

Começa a pensar que todos estavam preocupados demais com ela.

Finalmente munidos de seus cafés e fatias de bolo, o marido começa a falar.

Pergunta como ela está, como vai o trabalho, e a saúde. Ela responde a tudo

monossilábica, até um pouco tímida, bebericando o café, olhando para ele por debaixo

das pestanas maquiadas. Pede licença para ir ao banheiro.

Com essa pausa ele aproveita para saborear o bolo de laranja, seu preferido!

Talvez tenha feito uma bobagem em terminar com ela. Poderia ter ficado com as duas.

Uma doce vida dupla...

Alguns minutos depois ela retorna. Olha para ele sentado no sofá vermelho, olhos

fechados, relaxado, levemente inclinado para a esquerda, em doce abandono. A mesma

imagem do nosso último encontro – mas este pensamento não a abate. A mesma imagem

para a eternidade- já este, a anima.

Aproxima-se mansa. Deita no sofá com a cabeça pousada no colo dele. Ajeita os

braços dele ao seu redor. Fecha os olhos com um longo suspiro de prazer. O sorriso já

congelando...

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Juntos novamente. Desta vez para sempre. Pessoas, imprevisíveis. Já venenos...

O casal

Havia mais de um ano que duas vezes por mês, mais ou menos, se chamavam no

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meio da tarde para irem ao hotelzinho de costume. Até o quarto era sempre o mesmo, o

503.

Casais diferentes iam e vinham, e a fidelidade desse casal ao nosso hotelzinho até

nos comovia. Tanto que depois de um tempo, passamos a dar refeição cortesia e, às

vezes, até a diária. A gente gostava de ver aquele casal se encontrar ali. E imaginávamos

os enredos mais insólitos à respeito da relação dos dois nas tardes de pouco movimento.

Uma tarde eram cunhados, outra irmãos, outra eles se encontravam ali para trabalhar num

projeto secreto e não havia nada de romântico ou erótico nos encontros.

Às vezes chegavam separados, o outro já esperando em cima, e outras vezes

quase se esbarravam na chegada ao hotel. E assim foi por vários meses, meio da tarde os

amantes se buscavam. Com o tempo passando diluiu-se a curiosidade de saber qual era a

verdadeira estória dos amantes, até o dia em a mulher apareceu grávida. É claro que ela já

estava grávida há algum tempo, mas como era muito magra custou-nos perceber que o

fato de ela engordar um pouco era por estar prenha.

Pronto! Acabou a simpatia pelo casal. Ali não era lugar de mulher grávida, só se

fosse a minha ,afinal morávamos no subsolo do hotel. Primeiro foi só um retraimento

nosso com o casal, uma frieza de leve para manifestar a nossa imaginação em ebulição.

Afinal o que eram eles? Será que o filho era dele? E se não, era de quem? Já não nos

agradava o mistério em torno do casal. A barriga dela crescia e junto o nosso desconforto.

Da frieza de leve passamos à hostilidade. O casal percebia e parecia gostar! Havia

a meu ver um prazer mórbido em nos desagradar. Eles sorriam cúmplices sempre que

entravam no hotel e davam de cara com o nosso desagrado. Agora, vinham sempre

juntos. E com maior freqüência!

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Aquilo tudo me repugnava e me deixava menor diante da minha mulher, que me

exigia uma providência para aquela indecência. Estava decidido à confronta-los!

Os dias passaram e eles não apareciam. Os 15 dias habituais se esgotaram... 1

mês... 2 meses... 3 meses... A adivinhação do que teria acontecido ao casal habitava

nossas mentes nas tardes em que eles não apareciam, pois aí, já nós marcávamos no

calendário os dias de 15 em 15.

O tempo passou, perdi a conta dos meses. Já havíamos desistido do notável casal

e nos contentávamos com os diferentes de todos os dias. Confesso que foram meses

tristes, sem emoção. Tínhamos saudades dos enredos, das nossas mentes fervilhando de

imaginação! E eis que um dia, entram os dois com um bebê nos braços. Quer dizer, O

bebê. Que audácia! Então eles se viram para nós e nos entendem um envelope.

“ Fulano e Fulana de tal têm prazer de convidá-los para o batizado de seu primeiro

filho...”

Minha cara foi ao chão, senti mesmo o ar me faltar. Dissolveu-se o mistério!

Eram casados há tempos, o filho era legítimo!? Minha cabeça deu um nó. Eles sorriram e

foram-se embora dizendo que esperavam nos ver lá...

Não tive coragem de comparecer ao que não compreendia. Passou-se um tempo e

o casal voltou à rotina. Mas nós, minha mulher e eu, nunca mais fomos os mesmos,

ficamos assim meio que melancólicos, sem quê, nem porquê... Já o casal continuou o

mesmo, já estão no segundo filho e no mesmo esquema.

E, até hoje, eu não entendi.

25
A Feiosa

Monossilábico

26
Paulinho sempre tivera medo de certas palavras, desde pequeno. Como por

exemplo: inconstitucional. Ele se sentia acuado diante de tamanha grandeza, como se esta

pudesse enlaçá-lo como um polvo feroz entre suas garras.

Por isso, logo que aprendeu a ler e escrever dedicou-se à arte de ser conciso e

monossilábico. A família a princípio estranhou, mas acabou por acostumar-se com a

linguagem econômica do menino. Afinal, nada havia de errado em ouvir mais e falar

menos.

Conforme crescia Paulinho tornava-se cada vez mais monossilábico, mas ao

mesmo tempo, e proporcionalmente, cada vez mais assediado pelas mulheres. Com a

tal estória de falar pouco dedicou-se à atividades silenciosas como o atletismo, além de

horas de estudos e leituras. Sendo assim, além de atlético e culto tinha ainda como arma

de sedução o mistério, o misticismo, que o seu silêncio provocava.

Muitas foram as belas moças que lhe foram apresentadas. Todas de família e

algumas até abastadas, mas o seu desinteresse beirava a indiferença.

O que gerou alguns comentários maldosos de outros que lhe invejavam o sucesso

com o mulherio. E Paulinho? Nem é com ele...

O encontro

Até que, um belo dia o amor entrou em sua vida! E Paulinho chegou em casa

como há anos não se via: falante e dizendo-se doente de amor por uma tal de Elisa.

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Era Elisa pra lá, Elisa pra cá e nesse alvoroço de curiosidade cresceu o interesse

da família em torno da misteriosa Elisa, pois Paulinho, estranhamente, sempre se

esquivava de levar a moça à residência materna.

Quando não houve mais jeito de escapar, Paulinho marcou o dia do encontro.

Todos roxos de curiosidade, loucos para conhecer a mulher que devolvera à Paulinho a

tagarelice da tenra idade.

Chegou o grande dia, e enquanto a família exultava, Paulinho mostrava-se

apreensivo prevendo a eminente rejeição à sua futura noiva.

Paulinho foi buscar a pequena e ao bimbalhar da campainha de sua casa sentia o

peito oprimir e o estômago a enjoar. A mãe, Dona Odete, quase não pôde disfarçar o

espanto ao fitar tamanha feiúra e desconjuntamento reunidos numa só figura feminina.

Elisa, ou fingiu não notar, ou não notou mesmo, ou já estava vacinada para esse

tipo de reação, e nem ligou. O fato é que não se fez de rogada e abraçou e beijou a futura

sogra como à uma grande amiga e, com tal entusiasmo, que faltou pouco partir uma

costela à ansiã.

Passado o choque inicial, D. Odete até gostou da mocinha de papo e riso

igualmente fáceis. Sentia-se emanar de Elisa um austero conhecimento e cultura, somada

a uma delicada jovialidade, num contraste sem igual.

Incompreendido

Apesar de ter gostado da moça, a família, especialmente a matriarca, não se

conformava com a escolha inusitada de Paulinho. Por quê diante de tantas moças

formosas e ricas ele escolhera uma mocinha tão feiosa? O que ela tinha de tão especial?

28
Mas, não houve apelo, reza, santo, trabalho que desse jeito: o noivado foi

oficializado e a cerimônia marcada pra ali dois meses, pois os noivos não podiam esperar.

Houve tremendo zum-zum-zum em torno do curto noivado. Não só pela escolha da noiva

como pela urgência do matrimônio.

Passado o noivado relâmpago, chegou o dia do casamento. D. Odete, cansada de

tentar argumentar com o filho pra que ele desistisse do casamento, apelou pra o marido,

Seu Cláudio, para que ele buscasse a razão de seu filho gostar tanto da moça, pois assim,

talvez, ela se conformasse. Seu Cláudio bem que tentou, mas sem sucesso. Tiveram que

engolir o casamento com a feiosa.

A cerimônia e a recepção íntima foram igualmente lindas e ao despedir dos

noivos D. Odete não escondia o desconsolo. Por quê esta feiosa, meu filho? Por quê?

O segredo

O que ninguém sabia e nem nunca soube é que Elisa, com sua extensa cultura,

instigara em Paulinho um fetiche sem precedentes. Quanto maior, mais estranha e

incompreensível fosse a palavra que ela sussurrasse em seus ouvidos na hora da

intimidade, mais prazer ele sentia e mais ele a estreitava ao peito na hora do clímax e lhe

gritava: Fala, Elisa! Fala! E ela dizia: beligerância! Outra! Pratarraz! Outra! Precípuo!

Outra!

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As Noivas

A Teoria-

30
Domingo. Sete da matina em ponto. E lá estava ele. Sentado ereto no último

banco da igreja. Expressão circunspecta e solene, cabeça baixa sobre olhos muito vivos

que escaneavam atentamente as mocinhas devotas. Com maldade: as que vinham à missa

das sete lhe interessavam especialmente.

Tinha para si a teoria convicta de que, quanto mais devota, mais perversa no

íntimo; que todo o pudor que esfregavam ostensivamente na cara de pobres pecadores

(como ele próprio) era na verdade um pecado “superior”. À primeira vista parecia-me

conceito um tanto cínico, mas, como em tantos outros quesitos e ocasiões, neste também

ele me venceu. E provou sua teoria.

O Desafio

Numa noite qualquer bebíamos num pulgueiro da Lapa. Cansado de tanto ouvir

suas aventuras insólitas, que pra mim eram mais invenções fantasiosas do que mentiras,

resolvi lançar-lhe o desafio: Eu mesmo passaria a freqüentar a missa das sete de domingo

na N. Sra da Paz em Ipanema, para escolher sua próxima vítima.

Aceito o desafio, domingo seguinte lá estava eu, sonado, a cabeça tombando para

os lados. Alguns acentos à frente do distinto, focalizando as mocinhas que se sentavam...

A missa já ia adiantada e nenhuma mocinha parecera-me interessante. Eu, meio

desconsolado, já pensava em escolher uma outra igreja e tentar no próximo domingo,

quando uma visão em azul entrou. Suada e cabelos revoltos como quem correu,

percorrendo os bancos pelo canto esquerdo, oposto a mim, meio curvada para não

atrapalhar a visão dos outros, até sentar-se no lugar vago mais próximo possível do altar.

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A cena toda pareceu-me um bom presságio, mas a verdade é que eu ainda não podia

medir o quanto...

Para mim aquela era a garota adequada. Sem necessidade de palavras, virei-me

pra trás e encontrei o já sorriso nos lábios do patife. Ele também tivera aquela visão.

A Estratégia

Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, jamais acreditaria. Percebendo a

hora da hóstia, ele antecipou-se cruzando a igreja pelos fundos e, seguiu como a moça

antes fizera, pelo canto esquerdo da igreja, meio abaixado, de tal modo que, quando a fila

se formou ele encontrava-se exatamente atrás da escolhida.

E, enquanto a mocinha fechava os olhos, em fervorosa comunhão com Deus, ele

retirava de sua bolsa um objeto, que só mais tarde, na porta da igreja, percebi ser um

pretexto para o seu primeiro contato com a vítima. Achei um toque genial na

aproximação, este clima Cinderela-Sapatinho de Cristal. Certamente deve mexer muito

com a cabeça das meninas.

Ele devolveu-lhe o lencinho galante, sorriu e disse: “ Vá com Deus!”. Patife

esperto!

Domingo seguinte lá estava eu novamente, com sono, esperando a chegada da

“ Visão”. Foi assim que a apelidamos na ocasião. Deu-se a mesma cena do domingo

anterior, ela entrando esbaforida, cabelos revoltos e suados... Que delícia! O danado desta

vez postara-se no banco em que da outra vez ela se sentara, obrigando-a a cumprimentá-

lo assim que se sentou.

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Veio a hora da hóstia e ele lhe deu passagem, sem palavra, e no fim da missa

apenas acenou em despedida. E foi-se sem olhar pra trás.

No próximo domingo deu-se o mesmo e, eu, sempre testemunha daquela sedução,

observava do último banco o desenrolar dos acontecimentos.

No sexto domingo, acho, ele se apresentou e retirou dela o seu nome: Verônica.

Adorei! Achei um nome exuberante para aquela delicada figura suada e, na minha

imaginação, selvagem. Achei que combinava.

Dois domingos depois, achando ser o tempo apropriado, ele a convidou pra tomar

um cafezinho depois da missa e, pra nossa surpresa, ela aceitou sem hesitação! Fiquei de

longe observando o encontro.

Já estava apaixonado e nem sabia dizê-lo! Apenas me contorcia dentro de mim

sem saber por quê! O patife já reconhecia em mim as dores do amor, mas não me falava,

divertindo-se com o recém adquirido papel de cupido.

A Surpresa

Mais alguns domingos se passaram, e seguida da missa iam ao café conversar.

Minha patologia se avolumava de tal modo, que não resistindo mais, adentrei o café e

fingi um encontro casual com um amigo. Invadi a mesa e a conversa determinado a

contar toda a verdade à bela. Contar da teoria, da aposta, da estratégia... Mas qual não foi

minha surpresa, quando a própria Verônica me abordou, (quando o distinto refugiou-se

ao toalete), perguntando porque eu ainda não havia me apresentado antes!

Fiquei perdido, confesso. Mas quando ela disse que já observara que eu sempre

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me sentava no fundo da igreja, que entrava mudo e saia calado... que ...

Perdi a cabeça! Confessei ali mesmo o meu amor.

Os Casamentos

O namoro foi curto. Intenso e romântico. Nos casamos em seis meses.

A fama de cupido instalou-se na reputação daquele que nos uniu e ele passou a

fazer o mesmo pros outros amigos.

Quase que profissionalmente.

Um Rapaz de Futuro

PRÓLOGO

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Às dez já estava na cama. Às onze debatia-se entre as cobertas e os travesseiros.

Inquieto. Insone. O quinto dia consecutivo daquela luta inglória. Uma inquietude, um

suor, um calor, desconhecidos.

O PASSADO

Alberto morava numa pensão para homens solteiros no centro do rio. Bem perto

do trabalho para economizar o dinheiro do transporte.

Era sem família, exceto por uma tia que morava na Glória com uma

acompanhante. Amigos, poucos.

Da genética familiar, o biotipo franzino. Da educação religiosa, o jeito calado.

Coroinha toda a vida, só não chegou a ser padre, por um arrebatador amor pelos números.

Fez o curso técnico em contabilidade e foi para o rio com três mudas de roupa,

um par de sapatos e uma bíblia debaixo do braço. Isso já fazia mais de um ano.

A natureza calma do rapaz serviu de cartão de visita. A estima e confiança dos

colegas, de Dona Rosa, dona da pensão em que morava, e de Seu Rodolfo, seu chefe,

foram instantâneas.

O PRESENTE

Não fosse a recém adquirida insônia misteriosa, seria a vida mais pacata da terra.

Do trabalho para a pensão. Às vezes um filme na cinelândia, uma ida à biblioteca. Visita

à tia da Glória todo sábado... Só.

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Sua condição de insone não passou desapercebida. Na fatídica segunda-feira de

manhã foi chamado ao escritório do chefe.

 Bom dia, Seu Rodolfo. Algum problema?

 Bom dia, Alberto. Comigo não. E você, rapaz?

 Problema nenhum.

 Você me parece cansado, distraído.

 É apenas uma insônia. Não é nada.

Seu Rodolfo, pensativo por instantes. Alberto, aflito. Abrindo uma gaveta do seu

lado direito, Seu Rodolfo estendeu um cartão para Alberto.

 Aqui está o telefone de um médico de minha confiança. Converse com ele. É

um excelente funcionário, se não o melhor. Quero você em forma. Você tem futuro, meu

rapaz.

 Obrigada, Seu Rodolfo.

Olhou o cartão desconfiado e leu: “ Dr. Paulo Senra – Psiquiatra”. O coração

perdeu uma batida. Seu Rodolfo pensa que estou louco!

O cartão queimou-lhe o bolso o dia inteiro. De tempos em tempos pegava nele.

Olhava e devolvia ao bolso, sem coragem de discar o número.

Naquele fim de tarde, depois do expediente, Alberto sentiu uma melancolia, um

vazio. Teve vontade de sentar no bar da esquina e beber , embora não gostasse do gosto

da cerveja. Teve vontade de acender um cigarro, embora não apreciasse o sabor do

tabaco. Não fez nada disso. Seguiu cabisbaixo para a pensão.

***

36
Dona Rosa também notara a mudança em seu espírito e, talvez com sua intuição

de mulher, entendeu às avessas o que se passava. Servia o jantar e perguntou:

 Alberto?

 Sim, Dona Rosa...

 Alberto...Você não gosta de mulher?

O Rapaz levantou-se num repelão. Saiu batendo o pé sem dizer nada. Bateu a

porta do quarto atrás de si com um estrondo.

Problema de mulher. Sabia! Minha intuição não me falha! – Dona Rosa não

encorajava os rapazes a trazerem moças para passar a noite, mas também não proibia! E o

Alberto tão novo, tão bom rapaz... nada! Começara a achar aquilo estranho.

Enquanto isso Alberto no quarto se remoía. Ora! Essa é muito boa! Seu Rodolfo

acha que estou louco. E Dona Rosa... Dona Rosa pensa que eu... que eu... O que eu fiz

para merecer isso, meu Deus?! Tentava raciocinar com as pernas. Com passadas largas

desenhava círculos e mais círculos no piso do modesto quarto. Mas, calma lá, Alberto!

Quando foi que você trouxe uma mulher aqui? Nunca! Nunquinha! Nem uma paquera...

Constatou num arrepio. Pausa no passeio. Dona Rosa até tinha alguma evidência para

sua imaginação... Mas e Seu Rodolfo?!

A porta deslizou suavemente. Era Dona Rosa. Abraçado por braços delicados,

acalmou-se. Suspirou. Sentiu que a vida mudava, que a respiração mudava. Dócil,

deixou-se levar.

A insônia foi embora nesta noite.

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O FUTURO

Na manhã seguinte estava muito bem disposto. Assobiando uma canção alegre

enquanto ganhava a rua. Seguiu andando com uma confiança de ganhador da loteria

acumulada. Parecia ,em seu entusiasmo, mais alto, mais forte. Quase bonito.

Ao chegar no edifício do trabalho ao invés do bom dia sussurrado para o porteiro,

um bom dia alegre. Ao invés de um aceno de cabeça baixa, um sorriso aberto e uma

piscada de olho! para a recepcionista do escritório.

Era como se o mundo desabrochasse para Alberto. Era o próprio sol encarnado

deslizando pelos corredores do escritório. Todo sorrisos e piscadas.

Não houve tempo para verbalizar espanto. Seu Rodolfo da porta de sua sala

chamou por ele. Uma nuvem de apreensão cobriu o escritório. Dois dias seguidos? Não

podia ser coisa boa!

***

 Bom dia, Seu Rodolfo!

 Bom dia, Alberto. Vejo que hoje está bem disposto. Esteve falando com o Dr.

Paulo?

 Não tive tempo e... – recaindo nas reticências. Seu Alfredo cortou:

 Nem foi preciso. Seja lá o que for que te afligia já foi curado.

 Pois é! Acho que sim.

 Fico feliz. Mas não foi por isso que te chamei aqui hoje.

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 Está tudo Ok, Seu Rodolfo?

 Recebi nesta manhã uma notícia triste. O Geraldo, seu supervisor foi

atropelado ontem na saída do trabalho. Foi socorrido, mas não resistiu.

 Triste mesmo.

 Pois é! Mas não temos tempo a perder! – respondeu Seu Rodolfo para espanto

de Alberto, enquanto pegava sua pasta - Desde já fique sabendo que você vai ocupar o

cargo dele. Meus parabéns! Você foi promovido. Enquanto eu compareço ao funeral,

você está encarregado do escritório. Como você vê, estou atrasado, mas não me demoro.

Alberto, catatônico, não se movia. Nem um Muito obrigado! podia ser articulado.

 Eu falei que você tinha futuro, rapaz! Não falei? – Emendava o outro enquanto

Alberto balbuciava um agradecimento.

***

Uma semana depois, outra notícia triste: a Tia da Glória faleceu.

E, ao mesmo tempo, nem tanto... Alberto, único parente, herdou seu pequeno

sobrado.

Isso sim é um rapaz de futuro!

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O Amante Ideal

O segundo bilhete recebido. Confusa. Um pouco medrosa, digamos. Sabia como

devia reagir: com aborrecimento, indignação com a ousadia de quem lhe escrevia. Devia

pedir ao marido que tomasse alguma providência, que... Não, o marido não devia saber.

Queria não sentir nada, ser indiferente. Mas não podia, um calor adormecido há

muito, despertava de um longo inverno.

40
***

De noite, na cama. O bilhete rolava nos dedos, o sorriso nos lábios. O Marido

roncava. Olhou-o com enfado, quase nojo. Um homem delicado me envia passagens de

Shakespeare, e esse... Roncando! Abanou a cabeça em febril desagrado. Bufou e virou-se

para a mesinha de cabeceira. Olhou mais uma vez o bilhete. Beijou-o. Escondeu na

gaveta da mesinha.

Seu cavaleiro ainda sem rosto habitou seus sonhos.

***

Um por semana, sempre às terças-feiras.

Na terceira semana nem se deu o trabalho de indignação nenhuma, tomou ares de

apaixonada.

Mudou os cabelos no salão. Fez as unhas. Perfume novo. Flores e cantoria pela

casa.

O marido se notou não disse nada.

As amigas notavam, mas não diziam nada. Palavras, desnecessárias. Os indícios

eram claros: amante na área. Era assim mesmo. De tempos em tempos era uma

apaixonada, depois as inevitáveis lágrimas, logo o esquecimento com um novo encontro.

Isaura até que resistira muito! Com os filhos já criados e um marido casca grossa como

o dela! Estava na hora de divertir-se um pouco.

41
***

Na terça seguinte nada.Quarta quinta sexta. Sábado, Isaura qual flor murcha no

vaso sem água, chegou o bilhete. Ou melhor, o convite.

“ Próximo sábado. Oito da noite venho buscá-la”.

***

A semana mais longa da vida de Isaura. Nem nas vésperas de suas núpcias

sentira-se tão excitada, tão jovem, tão viva.

Quando saía à rua observava os homens que passavam. Sorria, na expectativa de

estar sendo simpática com o seu enamorado. Mexia nos cabelos, fazendo charme. O

corpo relembrava o quebrar dos quadris que os partos tiraram. O vento esvoaçava a saia.

Abriu-se com as amigas, que prontamente aprovaram o amante. O amante ideal,

já diziam. Tão delicado e romântico. Um autêntico príncipe encantado. Ajudaram a

escolher lingerie, vestido, sapato. Deram dicas, palpites, pitacos.

***

Finalmente o grande dia.

Começou a arrumar-se às seis da tarde. Banho longo e quente na banheira com

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sais. Creme francês perfumado. Arrumou o cabelo. Vestiu-se e foi para a sala. Vinte para

as oito. Está quase. Olhou mais uma vez para as malas, reforçando a decisão que tomara.

A campainha tocou. Ela mau respirava ao abrir a porta.

O sorriso morreu nos lábios. Primeiro nos dele, ao ver as malas. Depois, nos dela,

ao ver o marido no batente da porta com um buquê de rosas.

Aquele casamento estava acabado.

Assim foi...

A corrida.

Não saberia dizer porque fora atrás dele naquela tarde em que ele se despedia.

Talvez dissesse que fora uma vontade louca de que ele se apaixonasse por ela ali naquele

instante de ir embora. A verdade é que Joana já pressentira-lhe a paixão no dia em que ele

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tocou-lhe a nuca na carona voltando do hospital quando foram ver Dona Nina.

Façamos assim: fora o pressentimento daquela paixão que guiara suas pernas; e

elas, submissas, ultrapassaram-se mutuamente até o lago onde ele pescava.

Sentou-se ao seu lado no barco sem ainda saber o que fazia. Era impróprio estar

grávida de um homem e desejar outro. Viu-o pescar o peixe e devolvê-lo à água.

Lembrou-se de puxar conversa e perguntou por quê ele fizera aquilo. E ele lhe dissera

simplesmente, como se houvesse lógica na resposta: “Era uma fêmea.” Em revolta

inexplicável, Joana levantou-se e correu. Correu o quanto pôde até que o choro

desacelerou sua corrida e ele a alcançou. Fitou-lhe os cílios molhados e os beijou, depois

a face e os lábios. Bebia suas lágrimas com os beijos e as devolvia... como havia feito

com o peixe no lago...

Poesia palpável aquele momento. E aquele beijo de entendimento e de conforto

mudou de natureza. Encostados à uma árvore, os corpos cansados de disfarçar o desejo

decidiram se deitar e se enroscar e rolar pela grama úmida daquele fim de tarde e

finalmente pousar calmos e satisfeitos.

Não houve outro dia como aquele.

Só de ter acontecido aqueceu a alma de Joana ao ponto de ela decidir-se a ter seu

bebê. Irônico notar que o desejo de um outro homem a fizera decidir-se a ficar com sua

filha e criá-la, ao invés de entregá-la para adoção. Sua filha iria nascer graças ao desejo

que outro homem, que não seu pai, dera-lhe.

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Luzes da cidade

Finalmente a luz! Não me cansava de olhar os letreiros brilhantes de néon. As

cores vibrantes cintilando em minhas excitadas pupilas. Tantas cores! Azul, vermelho,

verde. Ligando e desligando em ondas, formando palavras e desenhos. Colorindo os

sonhos de toda uma vida.

Odiava o cheiro do querosene queimando nas lamparinas. Preferia o cheiro da

gasolina, saído dos inúmeros carburadores que agora me cercavam em abundância.

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Andava feito uma louca pela cidade. Sorria para os prédios espremidos uns entre

os outros. Parada no meio da rua, fechava os olhos e erguia o queixo para o beijo do

amante invisível. Feliz.

Felicidade semelhante às noites de lua cheia. Seguia o movimento da lua todinho,

ansiosa. A luz azulada iluminava a noite escura. Nada de lamparina. Eu, criança, sonhava

que um dia todas as noites seriam como as de lua cheia: iluminadas. Riam de mim. Fiz

essa promessa interna.

Finalmente a cidade! Com a luz: a televisão, o rádio, o ferro elétrico... Até passar

a roupa era um prazer! Felicidade descrevem aquele tempo.

O Funeral

Sorria com os dentes escancarados. O riso tão forte e rouco que assustava quem

não adivinhasse o volume. De uma beleza macha. Panturrilhas grossas e musculadas. A

feminilidade sugerida pelos seios fartos e por um ocasional tom de voz doce, maternal.

Teve ao longo de sua vida a função de cozinheira do sitio. Ela, a responsável

direta pelo vício em bolos de fubá fumegantes acompanhados de café igualmente

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ferventes. Também ela nos ensinou, primeiro à minha mãe e às minhas tias, e depois à

mim, as receitas, que sem constrangimento nenhum dizemos ser da família.

Pensando melhor agora, ela nos ensinou tudo. A cozinhar, costurar, a bebericar

cada partícula divina que o sitio nos tinha a oferecer.Nos ensinou a cuidar da horta, do

pomar. Foi nossa professora de vida no campo e, por contraste, de vida na cidade.

Me lembro como se fosse hoje, a manhã em que ela me consolou porque eu tinha

mestruado. Eu temia aquele sangue que me chamava de mulher. Eu gostava mesmo era

ser moleque! De subir nas árvores, nadar no riacho, me sujar de terra, correr na chuva.

Ah, que delícia! E aquele sangue vinha me dizer que eu não podia mais fazer nada disso,

que eu tinha que criar modos de moça! Que chato! Ela foi toda a minha família. Mãe. Pai.

Vô. Vó. Eu a adorava.

***

Sem saber mais como chorar, desisti. Fui-me embora. Deixei toda aquela gente,

que há muito deixara, no velório que seguia. Direto para um bom restaurante de comida

mineira. O que certamente seria do agrado da falecida! Me recusava compactuar com a

heresia de não sepulta-la onde ela desejava: no sitio.

Pedi uma pinga e tentei travar conversa com o meu delicado acompanhante. Ele

entre inquieto e feliz desde a reminiscência vívida do velório. Pobrezinho, nunca me vira

assim tão frágil.

A pinga muito nos agradou, assim como a deliciosa refeição e o silencioso

diálogo de almas que se deu.

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Naquele noite tudo foi dito entre nós. Olhos nos olhos, preguiçosos e calmos qual

sábado chuvoso, nos entendemos. Falamos de ir morar no sítio. Fora ele que nos unira,

seria ele a nos manter juntos. Descobri que enterrara com Emília todo o rancor que sentia

pela incompreensão de mamãe. Descobri um entendimento impensado e decidi ir vê-la.

***

Ela abriu a porta e eu fui logo dizendo: “ Mamãe, eu te perdôo se você me perdoar

antes.” Ela apenas riu e me abraçou. Acalmada a emoção, conversamos.

 Mãe, quero ir morar no sítio. Você se opõe?

 Lógico que não! Está na hora de você tomar conta dele, de colher naquelas

terras alguma felicidade.

Parecia-me que Emília mostrava de novo sua face, que era ela quem falava.

***

E, fomos. Eu e meu amor. Muito felizes. Até hoje. Já estão aqui os netos!

O riacho quase secou, mas ainda é aqui que eu planto e colho a minha felicidade,

amiga Emília.

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O Agente Funerário

Toda terça e quinta depois do almoço, tomava um banho perfumado, pegava

minha menina pelo braço e ia encontrá-lo no São João Batista. Vocês podem pensar que

era um lugar muito mórbido para um encontro amoroso, nada romântico; como de fato

era, mas na época eu não parecia me importar.

Queria apenas afogar a mágoa que cultivava desde a morte do meu pai. Como o

alcoolismo não me servia... Quando papai morreu, meu marido não soube dar-me o

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conforto que precisei, mas o agente funerário mostrou-se mais do que disposto a

consolar-me.

***

Uma semana após a morte de papai, lá estava o insistente na missa de sétimo dia

oferecendo-me o seu ombro amigo.

Semanas depois esbarrei com o homem no ponto de ônibus, na porta da minha

casa. Ele disse que estava visitando um cliente na vizinhança, mas eu não acreditei e

senti-me lisonjeada pela atenção daquele estranho enquanto meu marido estava tão

distante. À esta altura, já me parecia atraente...

Aceitei tomar café com ele numa confeitaria linda num bairro vizinho. Não tinha

coragem de ser vista com ele no meu próprio bairro. Ali, já perdera a minha inocência.

No olhar o brilho do adultério eminente.

Conversa vai, conversa vem.... Ele captura a minha mão sobre a mesa e a beija.

Aos poucos o carinho avança pelo braço... até ao pé do ouvido... Este foi o meu fim como

mulher honrada. Há quanto tempo não me sussurravam ao ouvido? Sequer me lembrava!

Deixei-me levar.

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A Máquina de escrever

Duas vezes por semana. Acho. Não lembro bem. Cinco pra seis anos. Duas vezes

por semana mamãe me pegava pelo braço, depois do almoço, e íamos ao cemitério.

Só fui saber o que era na verdade um cemitério anos depois. Sem querer.

Estranhei aquele lugar ser tido como desagradável, quando eu, havia me divertido tanto

entre as lápides e mausoléus.

Todas as tardes que eu ia ao cemitério com mamãe eram prazerosas. Ela sempre

51
me presenteava com alguma guloseima, antes de sumir com aquele homem. Me deixava

solta por horas!

Eu sentava naquelas caixas grandes, hoje eu sei se chamarem túmulos, e passava

os dedos pelas letrinhas nelas gravadas tentando adivinhar que segredos, tesouros e

histórias elas guardavam.

Eu adorava! Simplesmente adorava as casinhas! Queria entrar nelas, mas não

conseguia. Um dia encontrei uma aberta. O homem ajoelhado chorava com as mãos

cobrindo o rosto, tentando conter as lágrimas grossas e doídas. Tive pena e minha

inocência infantil disse: “ Não chora, moço. Nessa caixa tem um tesouro valioso!”.

Roubei-lhe um sorriso. Estalei um beijo na bochecha dele e de tão satisfeita

esqueci-me de explorar aquela casinha. O prazer de fazer sorrir aquele estranho venceu a

curiosidade.

Houve também uma vez que entraram muitas pessoas juntas chorando e andando

em fila atrás de uma caixa. E eu não resisti, tive de segui-los! Tinha a esperança de ver o

que havia naquela caixa, de dar uma olhada nos tesouros. Não abriram a caixa! E, de

onde estava tive a impressão de que rezavam, então eu entendi: o conteúdo das caixas era

sagrado. Eu não devia mais tentar abri-las.

Passei então a levar livros de colorir e sentar-me à sombra da minha casinha

preferida. Um dia, passeando, vi em cima de uma das caixas uma coisa grande e pesada.

Perguntei à mamãe o que era e, ela disse que era uma máquina de escrever. Então eu

disse que queria ver a máquina escrevendo! E mamãe disse que a máquina era de

mentira... Mas como de mentira? Morreram naquele dia todas as minhas invenções de

tesouro e eu me cansei do cemitério.

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Quando papai chegou em casa naquele dia eu disse a ele que eu não queria mais

ter que ir ao cemitério à tarde com a mamãe, que eu já estava enjoada daquele passeio e,

que eu não gostava do homem estranho que nos acompanhava sempre e que abraçava de

um jeito esquisito a mamãe.

Naquela noite papai e mamãe gritaram muito um com o outro. Papai ficou tão

zangado que arrumou uma mala e não voltou mais.

Depois o homem do cemitério veio morar no lugar dele e mamãe teve um bebê.

Um bebê muito feio e enrugado.

***

Meu aniversário. Nove anos. Mamãe me deu uma máquina de escrever de

presente.

Não era igual a do cemitério. Era uma pra crianças. De verdade.

Eu gostei do presente. Fazia um tempo que mamãe não me levava para passear

em lugar nenhum. Eu só ia pra escola e voltava.

Um dia a professora disse que adorava as minhas histórias, que eu tinha

imaginação, que devia escrever, ser escritora quando crescer. Talvez...

Até hoje eu sonho com os tesouros. Um dia vou achar um para mim. Eu prometo.

Promessa que nunca cumpri.

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Lembranças do voar

Mamãe não tinha tempo pra mim. Trabalho-trabalho-trabalho. Aeromoça. Rio-

Paris-Nova York-Amesterdam-Rio...

Um dia uma cegonha disfarçada de piloto de avião te trouxe – explicou Vovó.

Não lembro de voar.

Lembro da Eva, minha babá. Muito bonita, mas que a mamãe: Loira, bem

branquinha, olho azul. Mamãe era chata. Eva, maravilhosa. Brincava comigo. Lavava

54
meus cabelos. Beijava meu rosto. Limpava meus machucados. Lia histórias.

Fiquei muito triste quando ela foi embora. Casar e ter filhos. E eu? Ela riu, me

abraçou chorando. Nunca tinha visto adulto chorar.

Pedi pra ir morar com a Vovó. Gostava da casa dela. Amarela e branca. Mamãe

adorou.

Vovó tinha uma casa linda. Um jardim bem grande, dois gatos cinzas, um

cachorro dos grandes, passarinho, borboleta azul, um monte de verdes e cheiros

diferentes.

Vovó usava um perfume de jasmim muito gostoso. Sempre arrumada. Velha, mas

bonita. Sempre arrumando o que fazer.

Tinha o dia de arrumar o jardim, o dia de lavar o cachorro, o de fazer bolo,

passear no parque...

Vovó me ensinou tanto. As flores, as cores, os insetos, as ervas, os legumes,

amarrar os cadarços... Ajudava com os deveres de casa. Me arrumava pra festas. Andava

de bicicleta, jogava boliche, botão...

Ensinava os velhos truques pra arranjar namorada. Eu só tinha seis anos! Achava

importante. Achava errado ninguém ensinar sobre as questões do amor. Dançar fazia

parte do treinamento.

Toda sexta-feira à noite tinha o carteado, o bate-papo e o baile improvisado. Eu

era o único homem. Dançava com todas as suas amigas. Vovó sorria orgulhosa. Gostava

de fazer ela sorrir.

Vovó viveu muito. Me levou pra conhecer a Europa, os Estados Unidos e

América do Sul. Não demorou muito pra perceber qual era minha vocação na vida.

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Arte. Tudo em Vovó era beleza. Cada detalhe. As flores do jardim, as que levava

pra dentro enfeitando a casa, as cortinas, toalhas, panelas, os pratos... Ela mesma com

seus cabelos grisalhos brilhantes, as unhas bem feitas, as roupas de bom corte... Tudo me

ensinou Vovó. O viver, o dever, o amar.

Obrigada, Vovó. Onde quer que você esteja. No céu talvez, onde brilham as

estrelas. Era pra lá que se ia ao morrer, não era? Eu me lembro. Lembro bem demais.

O Amante

Metódica. Mamãe era metódica até debaixo d`água. E eu, uma criança

endiabrada. Achar uma rachadura que fosse no método de Mamãe era a razão do meu

viver. Fazia de tudo para tira-la do sério. Nada abalava aquela mulher. Ela ria de tudo.

Eu cortava rabo de lagartixa. Aprisionava borboleta em vidro de conserva. Botava

corda no pescoço do gato pra fazer dele cachorro. Botava baratas pra apostar corrida.

Convidava os bichos para almoçar com a gente. Botava lugar na mesa e tudo! Uma vez

convidei um sapo pra jantar. Botei ele na cadeira e Mamãe passou a noite dando atenção

ao “ Sr. Sapo”. Serviu o prato dele, perguntou como andava a família, serviu cafezinho.

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No final, ela ria. Ria de tudo.

Eu não entendia Mamãe. Tinha método pra tudo. Os vidros com as ervas secas na

cozinha eram todos rotulados. Tudo combinava. Até as flores no jardim tinham feitio de

degradê. A gaveta das calcinhas, a dos sutiãs, a das blusas de manga, a de regatas.

Divisão por cores nos armários! Os sapatos, o mesmo. Todos ensacados. Aquela

arrumação me irritava.

Eu não entendia Mamãe. Ela não me obrigava a imitar seu jeito no meu quarto.

Nada combinava. Tinha meias despencando das gavetas, papéis amassados no chão, lápis

de cor e pincéis por toda parte. Uma vez por semana ela afastava tudo, varria o chão,

tirava o pó e ia embora. Não dobrava nem ensacava nada. Faxinava e só. Dizia que me

dava um exemplo e, caso eu quisesse, o seguiria. Se não, que devia achar meu próprio

jeito de viver. Onde já se viu isso?! Nenhuma mãe dos meus amigos era assim. Eu

odiava toda essa diferença!

Um dia reparei numa mania nova. Toda segunda-feira de manhã ela acordava às

oito. Preparava a banheira, botava música, ficava quarenta minutos cantarolando e

tomando chá. Depois, se arrumava. Botava até maquiagem! Perfume? Dava bom dia para

o caseiro e saía.

Fiquei intrigado. Já com uns nove anos, me perguntava se Mamãe não tinha um

homem em sua vida. Nessa idade a gente já viu muito filme e novela, e sabe que existe

uma coisa chamada sexo. Aquilo me confundiu.

A nova rotina de Mamãe tornou-se minha obsessão. Minha mãe tinha um amante.

Só podia ser isso! Será que eles se beijavam como nos filmes? O que eles faziam juntos?

Mamãe só voltava de tarde! Fiquei em total ebulição. Quem era esse homem que roubava

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minha mãe de mim?

Comecei a organizar meu quarto. Guardar as meias nas gavetas. Os lápis de cor

nas caixas. Jogar meus desenhos amassados no lixo. Mamãe nem deu bola! Era preciso

uma atitude mais forte.

Relutei muito. Muito mesmo. Não deu. Não resisti. Liguei pra minha tia Roberta e

contei tudo. Desde que papai morreu, ela cuidava de mim também. Ela disse que ia

investigar. Foi essa a palavra que ela usou. Passaram uns dias e ela me disse que não era

nada. Que eu não devia me preocupar. Eram cúmplices! Senti uma raiva imensa. Não

desisti.

Fui em busca de um novo aliado. Augusto, o caseiro. Notei que ele andava meio

esquisito ultimamente. Quando a Mamãe estava, ele ficava cheio de dedos, todo sorrisos.

E toda segunda-feira de mau humor. Primeiro achei que o fim de semana tinha sido ruim.

Andava chovendo muito nos fins de semana e ele não podia ir pescar chovendo. Depois,

parou de chover e ele continuou com aquela cara de mau. Percebi que ali tinha coisa.

Como quem não quer nada, puxei papo. Disse que estava achando minha mãe

muito esquisita . Que estava preocupado. Se ele sabia de alguma coisa. Disse também que

estava pensando em seguir ela na próxima segunda pra ver onde ia. Logo ele disse que

era muito perigoso eu ir sozinho, que ele iria comigo. Foi fácil fácil pescar esse peixe. E

ainda deixei ele achando que a idéia era dele. “ Ótima idéia !” . Achei que ele não seria

mau partido pra minha mãe.

O tempo não passava. Só três dias pra chegar a segunda-feira. Eu não me

agüentava quieto. Andava pra lá e pra cá. Ansioso. Mamãe perguntou o que eu tinha e eu

disse que nada.

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Finalmente! Augusto bateu na janela do meu quarto e disse que estava quase na

hora dela sair. Os dois alertas. Assim que ela entrou no carro dela, corremos pra

caminhonete dele.

Seguimos Mamãe até o mercado central da cidade. Ela saltou do carro,

cumprimentou o guardador e entrou.Serpenteou um pouco entre os corredores e

finalmente parou na frente de um conhecido café do mercado. Respirou fundo. Olhou

para os lados. Atravessou a multidão. Sorriu. Uma senhora muito grisalha levantou-se

satisfeita. Cadê o homem?! — eu pensei.

Abraçou Mamãe. Sorriu mais um pouquinho. Indicou a cadeira de frente pra sua.

Mamãe sentou. Serviu-se e bebericou o chá que estava no bule quentinho esperando por

ela. Calmamente, conversando, a Sra. indicou a pasta que Mamãe carregava. Nunca tinha

reparado naquela pasta! Mamãe sorriu. Fez que sim com a cabeça, pegou a pasta, passou

à sra. Ela abriu como se fosse um presente de Natal. Correu os olhos pelo conteúdo.

Sorriu novamente. Estendeu a mão pra Mamãe apertando-a efusiva. Abriu sua bolsa e de

lá tirou um cheque. Entregou-o à Mamãe que olhou o valor e se surpreendeu. Fez que não

com a cabeça. Fez menção de devolvê-lo. A Sra. fez que sim, sorrindo ainda, e o

empurrou de volta pra Mamãe. Mamãe agradeceu. Guardou em sua bolsa e voltou para o

chá e os bolinhos de milho frescos que chegavam à mesa. Conversaram, riram. E se

despediram depois do lanche.

Pedi pro Augusto me levar pra casa.

Naquela tarde quando Mamãe chegou eu corri pra abraçar ela. Ela ficou surpresa.

E feliz. Disse que tinha um presente pra mim. Quando vi o volume e o nome da loja, já

sabia o que era. Perguntei mudamente: “ Mas como?!”

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— Entreguei hoje os originais do meu primeiro livro infantil. Você que me

inspirou, com suas brincadeiras com os animais. E os desenhos são aqueles que você

sempre faz pra mim. Lembra que eu pedi pra você desenhar os bichos? Nada mais justo

que você receba por eles.

Chorei feito criança. Foi meu primeiro computador.

Eu não entendia Mamãe. E não me importava mais com isso.

Assim parece ser...

A poltrona Verde

Oito da noite.Chegando em casa um gato cruzou meu caminho. Morava num

prédio velho, fedido, carpete encardido cor de carne nos corredores. Eu morava no quarto

andar e não havia elevadores.

Meu apartamento consistia numa sala, um quarto, um banheiro e uma cozinha

embutida na sala. Quando entrava, à direita ficava a janela. Pelo menos a única que dava

pra abrir, as outras davam pra paredes. Um cheiro de curry recendia do restaurante chinês

do lado ad infinitum. Eu tinha uma poltrona de veludo verde comprada de segunda mão,

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de frente pra janela, uma pequena mesinha de madeira, batida, e um pedaço de carpete,

que arranquei do corredor pousado na frente. Só. Era meu templo, meu santuário.

Naquela noite eu cheguei e tinha alguém sentado nele. Vi a fumaça saltando do cinzeiro

que ficava na mesinha. Eu devia saber. O gato fora um sinal.

***

- Finalmente.

Uma voz feminina? Não estou acostumado com companhias femininas.

Especialmente não na minha casa.Tinha vergonha daquela sala vazia, da cama velha que

rangia, da tinta velha e engordurada das paredes. Vi uma mão de unhas bem feitas

estender-se pra mim vinda de um tailleur vermelho justo.

– Olá. Desculpe a invasão. Sou advogada. Meu nome é...

Apertei a mão e sacudi a cabeça. Sou desses tipos calados, encurvados. Ela

percebeu.

- Sei que está se perguntando porque estou aqui... Você não tem telefone...

Percebeu que eu não prestava atenção direito afagando a minha poltrona verde.

Parou de falar. O gato passou pela janela na minha frente.Não, de novo não!

- Estou aqui representando sua tia Gisella. Ela faleceu e deixou em seu nome uma

pequena soma de dinheiro...

- Tia Gisella?! Agora mais essa!

- Sim. É o único parente vivo dela. Era meio-irmã de seu pai...

História mal contada. Botei a cabeça pra fora da janela e olhei pros dois lados.

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Ela parou de falar de novo.Nenhum gato desta vez. – Desculpe, pode continuar.

- Ela morreu no ano passado. Foi bem difícil te localizar. Seu pai e ela não se

davam bem?

Que vergonha!Ela está olhando pras paredes.

- É irônico. Problemas com a herança do meu avô.(Por que está contando isso

pra ela?!)

- É. (pequena pausa) Bem, aqui está meu cartão. Se puder passar no meu

escritório...

Ela fala macio.Tem um pescoço branco e comprido. Podia me ver agarrando

aquele pescoço com uma mão, a cintura fina com a outra, dando um beijo daqueles e a

música subindo envolvente.

- Sr., está se sentindo bem?

Ótimo! – Ah. Sim, tudo. Tudo bem. Foi só a surpresa. Odeio surpresas.

- Sinto muito. Bem. Quando puder... Estou aguardando. Não é preciso marcar

hora.(Estendendo a mão) Adeus. Mais uma vez, desculpe a invasão... (Sai andando em

marcha-ré).

Só muito tempo depois de a porta ter fechado, voltei à realidade.

***

Eu enlouqueci. Agora estou certo disto.O que estou fazendo aqui na porta da

casa dela? Toquei a campainha. Vai achar que sou algum psicopata. Toquei uma

segunda vez. Será que ela está? Tomara. Acho que não... tá demorando muito. Não, tem

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uma luzinha lá dentro, to vendo pela janela. Um gato?! Não, de novo não!

Quando a porta abriu, eu estava em meio aos arbustos do jardim. Vi quando ela

olhou pros lados, não viu ninguém, abanou a cabeça como quem diz:” Foi só impressão...

A campainha não tocou.” E fechou a porta.

***

Um mês se passou. Oito da noite. Chegando em casa. Um gato cruzou o meu

caminho. Déja vu. Subi os quatro andares meio que pagando promessa, arrastado. Vou

dar meia-volta. Fugir. Não adianta! Mais cedo ou mais tarde... Melhor ver logo do que

se trata o maldito gato.

Abri a porta e lá estava a fumaça saltando do cinzeiro.

***

Depois daquela noite não houve mais jeito. Adotei o bichano, o gato que rondava

a minha janela.Sempre fui muito solitário, já disse, sou desses tipos calados. E...

Depois que recebi a primeira parcela da herança da Tia Gisella, pintei as paredes,

comprei uma cama nova e um sofá de veludo verde de segunda mão que fazia conjunto

com a poltrona, E, me acostumei com companhias femininas. Quer dizer, companhia

feminina.

***

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Uma noite. Oito horas. Chegando em casa. Bichano veio me acompanhar para

subir as escadas. Cena de todo dia. Fumaça saltando do cinzeiro. Sorriso nos lábios. Fui

me aproximando da poltrona num abraço...

- Boa noite! Sou o sargento...( sei lá o quê, não me lembro) Você conhece essa

moça? (Estendeu-me a foto muito sério).

- Sim, conheço (Já sem o sorriso nos lábios) É a minha... Ia ser a primeira vez na

vida que eu ia usar aquela palavra. Não usei.

- É uma vigarista procurada em dez estados. Ela cuida de heranças e sempre acaba

fugindo com uma parte delas. O Sr. Recebeu alguma quantia de parentes recentemente?

- Na verdade ia receber a última parcela hoje, mas...

- Você deu sorte. Muitos não recebem nada. Você sabe onde encontrá-la?

- Ela devia estar aqui.

Resumindo: Ela se foi.

***

Na mesma poltrona verde, de frente pra janela, eu fumava um cigarro que ela

deixou para trás. Luzes apagadas. Bichano pulou para o párapeito da janela, miou e

partiu.

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Mãos

Se me perguntarem o que eu faço, digo que sou escritor. À seguinte, e óbvia,

pergunta, respondo que não, que ainda não fui publicado. E sorrio daquele jeito que

sorrimos quando queremos dar o assunto por encerrado.

Sou um escritor desperdiçado.

Atualmente, dirijo um negócio de escritos: redações, cartas de amor, discursos,

bilhetes, epitáfios. Para quem? - você pode estar se perguntando. Para jovens de classe

média alta, picaretas metidos a românticos à moda antiga, políticos e diretores de

empresas (tímidos), famílias. E moribundos excêntricos.

Estranho - podes pensar.

É, pode ser.

Bem, eu já acostumado com a estranheza das coisas, ou ao menos assim me

pensava. Tive de materializar às pressas um novo nível de estranheza, quando me

apareceu um sujeito pedindo minha ajuda para escrever seu bilhete suicida.

Ao contrário do que ele devia esperar, não me mostrei surpreso, nem abalado com

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o pedido. Afinal de contas, sou um profissional. É o que diz no meu cartão. Escritor

Profissional.

Perguntei por que ele precisava de um bilhete suicida. Assim que as palavras

saíram da minha boca, percebi como era idiota o comentário. Mas não me deixei abalar.

- Pretendo acabar com a minha vida em breve.

- Posso perguntar por quê?

- Pode. O que não quer dizer que eu vou responder...

Realmente o sujeito não estava com vontade de conversar. E, eu, um cara que

sempre achou que sabia lidar com pessoas... Tem que se levar em conta que esta foi a

minha primeira vez com um suicida. O Indecifrável, foi assim que o apelidei quando ele

não quis dizer-me seu nome. O Indecifrável, como Alexandre, O Grande, só que sem

nome nenhum antes. Pois é, conhecê-lo me colocou no meu devido lugar. Não sei nada

sobre as pessoas.

- Ok. Por que não se senta assim podemos discutir algumas idéias pra que eu

possa escrever seu bilhete?

- Na verdade, não é preciso discutirmos nada. Já sei o que quero que escreva.

- Desculpe. Não entendi.

- Já tenho a frase formada na cabeça. Preciso apenas que o senhor a escreva pra

mim. Diante da minha hesitação, ele completa: Me disseram que o senhor é muito bom

no que faz.

- Ora, muito obrigado. Mas...

- Foi altamente recomendado. Pra ser sincero, li alguns dos seus epitáfios. Gostei

muito.

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- Obrigado. Mas ainda não sei por que precisa de mim se já tem a frase do bilhete.

Normalmente sou eu quem a invento.

- Entendo sua confusão. Por que não procurei um calígrafo?

- Sim, exatamente. Por que não procurou um calígrafo?

- A verdade é que seria muito mais difícil explicar a ele a minha necessidade, e

como o senhor já está habituado à morte... Achei que simplificaria.

Já estava pronto para acionar o botão vermelho, que mantinha debaixo da minha

escrivaninha, para o caso de precisar de ajuda do meu assistente em emergências, quando

O Indecifrável resolveu se abrir:

- Perdi os movimentos e a sensibilidade das minhas mãos e sou incapaz de

escrever uma linha sequer.

- Mas a sua família vai saber que não foi você quem escreveu o bilhete, como vão

levá-lo a sério? O bilhete, quero dizer.

- Ninguém sabe da minha incapacidade. Foi apenas há algumas semanas. Estou

evitando todo mundo que conheço. Também sou escritor (Vacilante) Contratei uma

pessoa para me ajudar com tudo, inclusive digitar o que eu dito, mas não é a mesma

coisa. Trouxe algumas amostras da minha letra.

- Ok. (Dei uma pequena pausa meditativa) Pra quando é?

- Se possível, para agora.

- Está bem.

Ele aproximou-se de mim apontando para o bolso de seu elegante paletó. Peguei

as amostras e ele finalmente sentou-se. Suspirando aliviado. Examinei as amostras por

alguns minutos e perguntei-lhe qual era a frase que desejava.

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Abri a gaveta à minha esquerda e coloquei em cima da mesa alguns papéis,

cartões e envelopes pedindo que ele escolhesse um do seu agrado. Escolheu um elegante

cartão marfim, com envelope combinando.

Ensaiei algumas vezes numa folha de ofício, e por fim escrevi a frase. Botei o

cartão no envelope e entreguei.

Foi o tempo de baixar a vista para juntar as amostras da letra dele, e ele

desapareceu. Silencioso. Deixando para trás um envelope cheio de notas em cima da

mesa.

Me perguntei se não havia me enganado. Dei de ombros e guardei o dinheiro.

Sem contar.

Mais um cliente satisfeito. Embora Este não fosse voltar.

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O mistério dos cigarros

Há dois anos eu morava naquele prédio velho, fedido, carpete encardido cor de

carne nos corredores. Morava no quarto andar, não havia elevadores. Nem vizinhos.

O sol entrou pela fresta da persiana que não fechava direito. Bem no meu rosto.

Acordei à contragosto. Tateei pelo relógio na mesinha e vi as horas. 6h30. Muito cedo.

Tentei ajeitar a fresta com um pedacinho de fita crepe, sem sucesso. Fazia isso todas as

manhãs. Sem muito entusiasmo.

Quando ouvi um farfalhar subindo as escadas, fiquei alerta. Ninguém subia até o

quarto andar. O meu andar. Me agitei no concerto e a persiana foi ao chão num estrondo.

Os passos pararam. Que alivio! – Pensei. Xinguei e fui pra cozinha.

Os passos voltaram a soar, cada vez mais próximos. Um batalhão marchando,

parecia. Passaram pela minha porta e seguiram pelo corredor. Enfim pararam.

Ouvi um ranger de porta e uma voz dizer: — É aqui, podem colocar pela sala.

Ouvi vários volumes sendo pousados no chão. Paredes finas têm esse defeito: ouve-se

cada suspiro do vizinho.

Abri a porta e espiei. Uma fila de homens com caixas, que pareciam ser de

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cigarros, nos braços. Verdadeiro fordismo. Fechei a porta.

***

Na manhã seguinte. 6h30. O sol abraçou todo meu quarto. Havia me esquecido da

persiana. Não havia remendos a fazer. Pulei essa parte. Xinguei e fui pra cozinha. Botei a

água no fogão bege descascado.

Sentei-me na minha poltrona de veludo verde comprada de segunda mão, de

frente pra janela. Acendi meu cigarro matinal. Fumo de olhos fechados, para realçar o

sabor do tabaco. Quando ouvi o farfalhar arregalei os olhos. Fui olhar a água e ela tinha

evaporado. Não, de novo não!

O mesmo batalhão marchando, passando pela minha porta, seguindo pelo

corredor. A parada, o ranger da porta, o pouso das caixas.

Abri a porta e espiei. A fila de homens com caixas. Fechei a porta.

***

Ainda na outra manhã. E na outra, e na outra, e na outra e na outra. Uma semana

inteira! Aquele ritual alheio me dava nos nervos. Decidi tomar uma providência.

Comprei uma persiana. Verde. Mandei a loja entregar às 6h30 do dia seguinte.

Nem dormi naquela noite, tamanha minha excitação. Fiquei na minha poltrona. Li

um romance de banca de jornal. Fumei um maço de cigarros. Sorvi uma garrafa de Jack

com tônica.

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Quando os passos começaram, sorri e fui pra cozinha. O caminhão da loja já

estava parado na frente do prédio. Vi pela janela. Um dos funcionário saltou do caminhão

e se dirigiu para a parte traseira, retirando de lá minha nova persiana.

Os passos ainda não haviam parado. Daria tempo. Ouvi os passos solitários de

minha persiana nova pela escada. As caixas ainda pousavam no apartamento vizinho.

Abri a porta para a persiana e sai para o corredor. Interceptei um dos homens.

— O senhor fuma?

— Não.

— Me vende um desses, então?

— As caixas estão todas fechadas.

— Mas são para venda, não é?

— Sabe que eu não sei. O apartamento já está abarrotado de caixas de cigarro e a

ordem é só trazer, mais e mais.

— É bem esquisito.

— Pois é. Tem mais caixas me esperando lá embaixo.

— Claro, claro. – disse dando passagem ao homem.

Quando voltei ao meu apartamento, a persiana estava quase pronta. Ofereci café

ao rapaz, que não só aceitou, como pediu um para o seu companheiro. Verti um bocado

de café numa garrafa de plástico, dessas de refrigerante e entreguei ao rapaz.

Fiquei um tempo olhando para minha persiana nova. Bateram à porta. Fui abrir e

não havia ninguém. Apenas uma caixa de cigarros.

***

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Na manhã seguinte, não vieram caixas. Apenas dois homens. Bem mais tarde, lá

pelas oito. Conversaram. Saíram e voltaram horas depois com pedaços de compensado,

mais homens. Martelaram e serraram madeira o dia todo.

Quando o barulho cessou, tomei um banho rápido, me perfumei e fingi que estava

de saída. Tudo para cruzar com os homens do apartamento ao lado. Esperei o momento

exato pra abrir a porta e me chocar com um deles.

— Desculpe! Que desastrado, que sou.

— Tudo bem. Você está mesmo com pressa,hein?

— Pois é. Você é meu vizinho?

— Não.

— Barulhão que fizeram hoje...

— Desculpe o incômodo. Amanhã é só pintura não haverá mais barulho.

— Tá tudo bem. Obra é assim mesmo.

— Bem... Até amanhã. Boa noite.

— Pra você também.

Atravessei a rua e fui beber uma cerveja no bar da esquina. Tirei um dos maços

que ganhei do bolso, fechei os olhos e fumei.

***

Ainda intrigado com meu vizinho, na manhã seguinte resolvi ser mais incisivo.

Ouvi os operários chegarem, dei um tempo e fui lá.

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A porta estava aberta. Ninguém estava na sala. Estantes de madeira envidraçadas

até o teto, como aquelas de tabacarias. Fiquei tão surpreso com a vista, que sequer

percebi quando um homem se aproximou de mim.

— Você deve ser o vizinho curioso.

— Você deve ser o vizinho invasor. – respondi carrancudo. (deu tremenda

gargalhada) Não entendi nada. Insultei o cara, e ele gargalha?

— Sou o dono do prédio, Sr...?

— Você não vai resolver aumentar meu aluguel porque te insultei, vai? (ele riu

de novo!)

— Não, não se preocupe. Pra dizer a verdade, a partir de agora você não paga

mais aluguel.

— Não?! (mais e mais confuso)

— Não. Soube que o Sr. não trabalha, portanto, ganhará também um emprego.

— Ok... Por que eu?

— Porque já está acostumado a tomar conta deste andar. Porque o que estou

construindo aqui é segredo. E, principalmente porque você não tem pra quem contar

segredos.

— Tá certo. Quando começo?

— Já começou. Aqui na sala ficará a minha coleção de cigarros e charutos, assim

como o bar da casa. No quarto, a banheira e minha poltrona.(De veludo, como a minha,

só que bordeaux. E também de frente pra janela.) Este é o meu templo, meu santuário.

Ninguém saberá da existência deste lugar.

— Entendo.

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E, entendia mesmo.

Assim foi que deixei de pagar aluguel e ainda receber um salário pra fazer minha

coisa preferida no mundo: sentar na minha poltrona, fumar um maço de cigarros, ler um

romance de banca de jornal e beber Jack com tônica.

Eu, na minha poltrona verde.

Ele, na outra janela, na sua bordeaux.

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A Balada de um homem morto

A língua da noite cobria de negro o mundo. A lua manteve silêncio. Apenas a luz

tênue e amarelada do poste velho, envergado pelos tempos que passaram por ele, vencido

pelo mijo dos cães e gatos indomados pelo concreto.

Caminhava pelo beco com olhos de álcool. Injetados. Brilhantes. Pulava as poças

de líquidos indefinidos. Dividia a cena com os ratos e seus faróis avermelhados.

Ali acordara e não sabia dizer quando, onde, porque. Ali não havia consciência

que prestasse.

Apalpou os bolsos da calça. Sem cigarros. Mais adiante um brilho pareceu

familiar. Seria uma garrafa?

A garrafa sobressaiu na escuridão. As forças, por instantes, renovadas. Precipitou

a gota remanescente nos lábios. Vodka.

Emaranhado na impossibilidade, venceu a rua deserta. Estava mais animado.

Enfim uma luz bruxulante. Um café. Seria miragem? Um paraíso embutido entre

prateleiras, mesas e cadeiras de madeira velha e mofada. Encontrou aconchego no

balcão surrado. Fingiu não notar os olhares de espanto à sua passagem. Já fazia tanto

tempo que ele não se lembrava mais do seu rosto. Nem do atual, nem do antigo.

Dedilhou o bolso interno do casaco, tirando um maço de notas dele.

— Uma garrafa de vinho, por favor. – Podia estar perdido, mas a festa devia

continuar.

— Pois não, cavalheiro.

Notou a mudança nos olhos do taverneiro. Viu clara, a cobiça. Ainda assim

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apreciou o tratamento especial.

Dispensou a taça, deu um beijo estalado na garrafa, antes do primeiro gole. E,

abraçado a ela, sentou numa cadeira que a moça de modos vulgares indicou.

Outra noite.

A Estátua

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O sol levantava-se do mar, tentando inutilmente afastar o gelo da noite.

Buscou relógio, não existia. Cigarro, não acendia. O vazio do maço indicava a passagem

das horas. À esquerda, a pilha de guimbas pintadas de rosa. À direita, sentado, a estátua.

Primeiro entendimento. Ele: calado. Ela: monólogo. Escreveu ela mesma os dois

travessões do diálogo. Respondeu-se como sempre sonhou que ele o fizesse. Derramou-

se como ele nunca o faria. Conversa perfeita. Noite perfeita.

Local sem lembranças. O discreto sabor do que não tem importância fazia-se

necessário neste último encontro. Nada de familiaridades. Nada de arrumação. O rosa dos

lábios o acaso deixou no bolso da jaqueta.

Chegou na hora marcada. Lá estava a estátua. Calado. Esperou que ele se

animasse e dissesse algo. Nada. Pousou a mão no seu ombro e a cabeça pendeu. Tentou

recoloca-la de volta no lugar. Não foi possível. Deixou-a ficar ali no seu ombro. Último

aconchego.

Era hora de ir. Levantou-se num ímpeto. Mudou de idéia. Desacelerou. Beijou a

testa gelada, deixou cair uma lágrima. Podia jurar que ouviu a estátua sussurrar “ Eu te

amo”.

Balançando a cabeça pros lados, o vento afastou o pensamento, despenteando os

cabelos soltos.

Mortos não falam. Mortos não amam.

O Cadáver

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O Cadáver perambula pela Casa.

Sentado já não fica mais. De pé encurvado, ou deitado, os lençóis delineando as

pernas frágeis de passarinho, a magreza do Corpo esvaziado.

Ninguém Conhece o Cadáver. Ninguém quer conhecê-lo. Suas palavras, ninguém

as Compreende.

Não se reconhece na amarelidão de sua pele , o vigor de outrora. A pilha de ossos

precariamente empilhados sustenta memórias antigas.

Os dentes preguiçosos não trabalham mais. A ptialina da língua paralisada na

boca ressequida. As lágrimas acumuladas correm para a liberdade.

O Cadáver tenta Comunicar o que não viveu, Sentir o que deixou pra mais tarde,

revelar a delicadeza que não deixou transparecer jamais.

Quando dorme, sua alma passeia. Nestas horas visita os paises que nunca

conheceu, experimenta o que sempre teve medo, sonha os sonhos que não ousou sonhar.

E voa. O Cadáver voa.

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O Escritor

Sou insone. Por natureza. Não sou desses que por um estresse qualquer

perde o sono. Sou um profissional. Anos de prática. Calmo, lânguido como um gato

deixo-me ficar na cama a noite toda. Não levanto. Não pego um livro. Não tomo remédio.

Aceito a minha condição de insone. Abraço-me a ela. Faz parte de mim. Às vezes tenho

mais prazer nessa contemplação da noite virando dia. Como hoje.

O bico do seio escapa do decote da camisola enquanto ela dorme. Torcida qual

escultura. Ao longo da noite a escultura tem momentos de vida e posa em diversas

atitudes. Eu, mero observador, admiro a flexibilidade da performance que se desenrola e

enfeita minha insônia.

Sou escritor. Por natureza. Não sou desses que escrevem e-mails e uns poemas

melados para mulheres que sequer amam. Sou um profissional. Anos de prática.

Obediente, deixo-me ficar no computador, por horas à fio. A tela branca sendo aos

poucos preenchida por letrinhas que formam palavras, frases, textos... Ou, muito mais

frequentemente, vendo aquele pulsar preto no fundo branco. Tenho tanta intimidade com

esse tracinho pulsante que ele dança para mim: transforma-se, transfigura-se.

Vivo na contramão. Não durmo, como os outros. Não fumo, como os outros. Nem

bebo, nem me drogo, como os outros. Não sonho. Isso sim tenho em comum com

alguns...

Tudo passagem. Paisagem que se vê através das janelas dos ônibus. Imagens

borradas, distorcidas. Fragmentações de inteiros que sequer conheço. Jamais fui

bom em matemática. Escrevo sobre isso. Não sei o que é o viver que todos conhecem.

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Não entendo nada disso.

Talvez a vida não seja mais do que a soma, do que a oscilação de tédios , e das

nossas reações à eles. Alguns resistem mais, a estes chamamos lutadores, vencedores. Eis

a palavra que usam! Outros, mais flexíveis...

Um fluxo eterno de tédio é a existência. Momentos de revolução são apenas

redirecionamentos, braços deste fluxo primordial. Vencemos uma correnteza e, logo,

estamos em outra. Neste contexto o amor é revolução. Traduzido por desafios tais como:

Como manter os níveis de tédio dentro do limite suportável? Casamento. Como

administrar o tédio conjunto? Terapia de casal. Como não causar tédio no parceiro?

Brinquedos sexuais e jóias.

Agora sabia o que fazer. Olhei através dos painéis de vidro que revestem quase

que completamente a minha casa e me separam parcamente da realidade, e me levantei. O

sol já estava de pé há pelo menos Três horas, era hora de juntar-me a ele.

***

O dinheiro para mim não uma preocupação, mas um afazer. Talvez por não ser

bom em matemática, eu não me metia à besta com os números e mantinha os meus zeros

onde pudesse vê-los com clareza: no extrato da conta bancária.

Obtivera algum sucesso com meus roteiros de cinema. Assim pude botar um teto,

mesmo que de vidro, sobre a minha cabeça. Comprei um conversível vermelho como

sempre sonhara, algumas camisas pretas e calças e sapatos que combinassem. Leia-se:

igualmente pretos. Para mim estava bom.

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Alguns anos dessa minha vida pacata, e exteriormente excêntrica, perturbada

finalmente pela revolução, por um fortuito redirecionamento do meu tédio, através da

bela escultura que dormia na minha cama com a assustadora (e recorde!) freqüência de

seis meses.

Isso tudo não parecia me abalar enquanto eu entrava no meu belo conversível e ia

até a cidade procurar uma joalheria para comprar um anel.

***

O diamante me deixou nervoso. Ele me fez entender a magnitude do meu gesto.

Nem a cifra foi capaz de me acordar, mas a pedra brilhando dependurada naquele pedaço

de ouro branco se fez ouvir. Meus dedos trêmulos quase deixaram a jóia cair. Me lembrei

de algo. Flashback. Retorno à minha vida desconhecida.

Minha última lembrança: acordando tal múmia num hospital. Memórias perdidas.

Forte golpe na cabeça. Fui encontrado num beco todo ensangüentado, sem identificação.

Cheguei no hospital semi-morto. Sobreviver foi um milagre. Nasceu de novo! As

enfermeiras não cansavam-se de repetir. Eu, calado, aproveitava ao máximo a minha

condição de fraturado e nada dizia, armazenando ao menos aquelas memórias novas, que

se não fossem boas, ruins também não eram. Me perguntava constantemente qual a

vantagem de nascer de novo. Nascer sem nome. Sem família. Sem amigos. Reinventar-

se. Reescrever a nossa história. Talvez esta a vantagem.

Agora, diamante em mãos uma reminiscência: já estive com um diamante assim

na mão antes. Me vi nitidamente. Outra loja, outro anel, outro eu.

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***

É importante na sua vida dividida preservar algum resquício de raiva dos seus

pais. Faz-se mister manter esta inquietude, esta culpa. Alguém deve ser responsabilizado

por nosso insucesso. Culpar Deus não pega bem, é de mau tom. Mas já os pais... Criou-se

um mercado inteiro! Sei que pode parecer uma coisa estúpida de se dizer, mas as pessoas

deviam estar mais atentas a esse aspecto de suas vidas. Não é à toa que , de fábrica, temos

apenas um pai e uma mãe. Outros relacionamentos são mais propícios à série, tais como:

amigos, namorados, amantes. Especialmente o último grupo. Para um entrelaçamento de

carnes, não é preciso mais que uma fagulha, ou mesmo uma promessa dela. Não há

nenhuma ciência.

Mas, não fujamos do assunto: Responsabilidade.

É uma palavra muito grande. É um dos adjetivos naturalmente superlativos. Se

dizemos que alguém é responsável, normalmente tem a ver com alguma culpa, alguma

falha, é quase como dizer o oposto. Seu significado só aparece bem delineado em

companhia do muito. “ Fulano é muito responsável!” Aí sim temos uma qualidade

positiva. Não existe ninguém meio responsável.

Escapei de novo do assunto principal.

Bem, para resumir é o seguinte: Perguntei a Ella se ela queria casar comigo, e ela

disse que não, que eu era uma pessoa muito sem estrutura, muito sem profundidade

psicológica, já que não me lembrava do meu passado e não tinha lembrança sequer dos

meus pais... porque ela apesar de ter ódio dos dela, das mágoas e traumas, pelo menos

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eles existiam...

Aí eu me perdi. Fiquei preso na idéia de que eu não tinha a quem culpar a não ser

eu mesmo por tudo o que me acontecia. De bom e de mau. Eu não tinha ódio de

ninguém! Era tão só, que não tinha sequer alguém para odiar. Tão só, que pedi em

casamento uma louca como Ella. Tão só, que só as minhas próprias palavras ouviam

meus lamentos...

***

Um cachorro. Preciso de uma companhia. Outra compra especial. Mais uma

tentativa de obter alguma afetividade à distância de alguns dólares.

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