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CNBB

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

A caminho na luz de Cristo

Roteiros Homiléticos da Quaresma


Ano À — São Mateus

Março e Abril de 2014

»
Sições CNS”
A caminho na luz de Cristo

12 Edição - 2014

“non csncnc so ana s o cansa ssa nes nas sans OA ASUS Dna a OL CREU C On GERA a Cad a 0a

Diretor Editorial: Capa:


Mons. Jamil Alves de Souza Raul Benevides dos Santos Silva
Coordenação: Projeto Gráfico e Diagramação:
Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia Henrique Billygran da Silva Santos
Revisão:
Carolina Ramos

C748c A caminho na luz de Cristo. Roteiros Homiléticos do Tempo da Quaresma - Ano À - São Mateus.
Brasília, Edições CNBB. 2014.

76p.:14x21cm
ISBN: 978-85-7972-302-5

1. Liturgia
2. Quaresma

CDU: 264.941.4

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: Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios :
(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de :
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...........tiemersimeeeeermeemeeerereereerteo 7

A LITURGIA NO TEMPO DA QUARESMA


Considerações e sugestões gerais............ccccererecererenerereereenenceserenererannesa 9

QUARTA-FEIRA DE CINZAS
S de março de 2014. . . . . . . . . c ires eccreesscrrerereeerereanerrersacerersaneerrasanaca 15

1º DOMINGO DA QUARESMA
9 de março de 2014...................ce
eres cer rerererecrrserrereresenereranneeresrcanarraaas 23

2º DOMINGO DA QUARESMA
16 de março de 2014... eres rerrerrereerecerererenerererraneacrenda 32

3º DOMINGO DA QUARESMA
23 de março de 2014... reeecrereerererecerereererecerenecererannas 40

4º DOMINGO DA QUARESMA
30 de março de 2014..... eemeerenrenrenseaerearratartarenensenscercercensensensensensento 48

5º DOMINGO DA QUARESMA
6 de abril de 2014 ................e esse esse sserreeeraoescererererascascrcanasoa 56

DOMINGO DE RAMOS E DA PAIXÃO DO SENHOR


13 de abril de 2014........... enro er cane nara rasa eR eae a asas crosta tae nana asas arena sasaraana 66
Apresentação

“Convertei-vos e crede na Boa Nova!” é o apelo que Jesus nos dirige


neste tempo “favorável da Quaresma”. À acolhida deste apelo implica
“pôr-se a caminho iluminados pelo próprio Senhor”. “A liturgia
quaresmal prepara para a celebração do mistério pascal tanto dos
catecúmenos, fazendo-os passar pelos diversos degraus da iniciação
cristã, como dos fiéis, que recordam o próprio Batismo e fazem
penitência” (NALC, n. 27).
A Quaresma é tempo oportuno de penitência e de conversão. À
palavra conversão significa, ao mesmo tempo, radical mudança de
direção do caminho e radical transformação interior que acompanha
a mudança de rumo da vida. Na caminhada em direção à Páscoa, o
Pai “nos permite levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura
que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a alegria. Não
fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por mortos, acon-
teça o que acontecer. Que nada possa mais do que a sua vida que nos
impele para diante!” (Evangelii Gaudium, n. 3).
À Igreja, através do caminho quaresmal, deseja nos ajudar a assi-
milarmos, em nossa existência, o mistério pascal que celebramos. A
Quaresma sem a Páscoa é incompreensível. Mas também a Páscoa,
sem ter percorrido com seriedade o “itinerário quaresmal”, não pode-
ria ser celebrada e vivenciada como “vida nova” que brota no coração
convertido. Na morte, Jesus deu-nos a vida; no sofrimento da cruz,
conquistou para nós a plena liberdade dos filhos e filhas de Deus.
À Campanha da Fraternidade nos propõe uma especial forma de
caridade/solidariedade fraterna: o combate ao “tráfico humano” que
está escravizando milhões de pessoas. Em nossos semelhantes trafi-
cados, é a nossa própria realidade de filhos de Deus que vem sendo
A caminho na luz de Cristo n

manchada. E o próprio Cristo a ser vendido novamente. Lutar contra


o tráfico humano implica arrancar suas raízes e eliminar os mecanis-
mos culturais, sociais, econômicos, que tornam este flagelo possível.
Nosso sincero agradecimento a Dom Emanuele Bargellini,
monge camaldolense, pelo empenho em preparar este subsídio qua-
resmal que se traduzirá numa luz a guiar os passos de todos quantos
se propõem - “a caminho iluminados por Cristo” - chegar fraternos e
solidários às celebrações pascais.
Auguramos que o dinamismo pascal reanime a vida de fé e de
esperança de cada um, das famílias e das comunidades eclesiais, pois
“a ressurreição de Jesus não é algo do passado; contém uma força de
vida que penetrou o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam
a aparecer, por todo o lado, os rebentos da ressurreição” (Evangelii
Gaudium, n. 276).

Dom Armando Bucciol


Bispo de Livramento de Nossa Senhora (BA) e
Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia
A LITURGIA NO TEMPO DA QUARESMA

Considerações e sugestões gerais


Quantas vezes tivemos já a oportunidade de celebrar a Páscoa com
alegria e com um sentido de novidade na nossa vida! Contudo,
sentimos que esta Páscoa de 2014 se apresenta ainda como um
acontecimento novo e importante para a nossa vida. Por quê?
O apóstolo João, aquele que Jesus tanto amava e que pousou com
afeto sua cabeça no peito de Jesus na última ceia, nos abre o caminho
para entender esta surpreendente constatação: “Vede que grande pre-
sente de amor o Pai nos deu: sermos chamados filhos de Deus! E nós
o somos! (...) Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem
sequer se manifestou o que seremos!” (1Jo 3,1-2).
der “filhos e filhas de Deus” pelo seu amor é o grande dom
que recebemos do Pai em Cristo Jesus. Esta é a graça que a Páscoa
traz consigo e que nos habita. Aos poucos, tornarmos em plenitude
aquilo que, por enquanto, somos de maneira limitada e imperfeita:
esta é a grande vocação que acompanha o precioso dom recebido no
Batismo.
Estamos caminhando para crescer cada dia e cada ano um pouco
mais como filhos e filhas de Deus, seguindo o impulso interior da
Páscoa de Jesus e atualizando a graça do nosso Batismo.
Na vida espiritual, está acontecendo algo parecido com o pro-
cesso de desenvolvimento biológico de uma criança para se tornar
um adulto. À vida de uma criança é cheia de potencialidades, mas
exige muito amor e cuidado constante por parte dos pais, para que
ela possa enfrentar incessantes desafios e riscos e desenvolver suas
potencialidades, através das passagens de criança para a adolescência
e a juventude, até tornar-se um adulto capaz de assumir as escolhas
adequadas para viver de maneira saudável e sábia.
A caminho na luz de Cristo n

São Pedro destaca que o dinamismo do Espírito que anima todo


batizado é parecido:
“Como criancinhas recém-nascidas, desejai o leite legítimo e
puro que vos vai fazer crescer na salvação” (2Pd 2,2).
À Quaresma e a Páscoa têm entre si uma relação parecida.
Mediante o Batismo, participamos na vida nova de Jesus ressus-
citado. Iniciamos a viver a Páscoa de Jesus. Contudo, na vida de cada
dia experimentamos a violência do pecado que nos afasta do cami-
nho pascal junto com ele. À Quaresma, com suas características de
penitência, conversão e redescoberta da graça do Batismo, estimula e
acompanha o processo do nosso crescimento na vida cristã, segundo
as potencialidades e a vocação recebidas no Batismo.
Tal crescimento é, antes de tudo, fruto da ação do Espírito Santo
em nós e da sua graça, no entanto ele exige também um renovado com-
promisso de parte nossa, a caminhar de maneira mais coerente com nós
mesmos, com a nossa condição de “filhos e filhas de Deus (...) como de
fato o somos”, segundo a bela expressão de São João! (cf. Jo 3,1-2).
Experimentamos a inquietação do coração diante dos desvios
que nos atrapalham, mas, às vezes, não temos a coragem de reverter
o caminho e voltar para a casa do Pai.
Na parábola do “filho pródigo”, ou do “Pai amoroso e misericor-
dioso”, que é proclamada durante a Quaresma (sábado da segunda
semana), Jesus nos revela o misterioso dinamismo que atua nos cora-
ções do filho fugitivo e do pai paciente e cuidadoso. O pai fica vigi-
lante e aberto à acolhida e atrai de volta o filho para a casa paterna.
O pai oferece a festa. Para o filho se reinicia uma nova história, quase
um novo nascimento (cf. Lc 15,11-24). O irmão mais velho, aparen-
temente mais bonzinho, na realidade mostra não ter jamais morado
na casa do pai. Fica longe do seu sentir.
A atitude misericordiosa do pai e a volta confiante do filho
pródigo deveriam ser nossa maneira de celebrar e viver em sentido
autêntico a Quaresma e a Páscoa deste 2014!
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A — São Mateus

À Quaresma é tempo oportuno de penitência e de conversão. A


palavra conversão significa, simultaneamente, radical mudança de
direção do caminho e radical transformação interior que acompanha
a mudança de direção da vida. Segundo a imagem da parábola do
filho pródigo, a conversão marca nosso retorno da dispersão para a
nascente inesgotável da vida, que é a Páscoa de Jesus, nossa verda-
deira “casa paterna”.
Os Padres da Igreja e a liturgia chamam este misterioso movi-
mento de procura recíproca entre Deus e o homem, evidenciado na
parábola, de “sacramento da quaresma” ou até de “sacramento pascal”.
Este dinamismo pascal atravessa e anima todas as expressões da vida
de cada um, bem como das famílias e das comunidades. O convite de
Jesus, repetido pela Igreja, ao acompanhar o gesto da imposição das cin-
zas no primeiro dia da Quaresma - “Convertei-vos e crede na Boa Nova”
(Mc 1,15) - é o insistente convite a tomar consciência que nossa identi-
dade de discípulos é um incessante processo de conversão ao Senhor.
A Quaresma exprime e alimenta, ao mesmo tempo, a consciên-
cia de pertencer desde já ao mundo novo nascido na morte e ressur-
reição de Jesus, e a necessidade de acompanhar, com perseverança
e humildade, o processo ainda incompleto da nossa conformação a
Cristo, o homem novo.
Ão contrário do sentido erroneamente difundido entre o povo, a
alma profunda da Quaresma, mesmo na sua dinâmica de penitência e
de conversão, não é a “tristeza”, mas uma “sóbria alegria”, alimentada
pela esperança, como afirma a liturgia (Hino de Laudes da 12 semana
do Tempo Comum). À grande Vigília Pascal tem viva esta perspectiva,
no caminho com Cristo. “Vós concedeis, Senhor, aos cristãos esperar
com alegria, cada ano, a festa da Páscoa” (Prefácio da Quaresma, n. 1).
Cada ano é uma nova espera e uma nova esperança de cresci-
mento no Senhor. Por isso, cada Quaresma — Páscoa é uma nova
alegria e um novo empenho. É uma espiral que nos acompanha, até
celebrar, na páscoa eterna, a nova criação, alcançando sua plenitude
definitiva (Prefácio da Páscoa, n. 4).
A caminho na luz de Cristo

Enfim, a perspectiva da Igreja, através do caminho da Qua-


resma, é a de nos ajudar a tornarmos em plenitude o que já somos em
raiz, € a nos tornarmos, em nossa existência, o mistério pascal que
celebramos. À Quaresma sem a Páscoa fica incompreensível. Mas
também a Páscoa, sem ter percorrido com seriedade o “itinerário
quaresmal”, não poderia ser celebrada e vivenciada como “vida nova
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que brota no coração convertido.


À estrutura do ciclo pascal sustenta este dinamismo interior. À
Quaresma constitui a primeira parte do ciclo pascal que, em seu con-
junto, abrange: Tempo da Quaresma — Tríduo Sagrado — Tempo de
Páscoa/Pentecostes.
A Quaresma oferece um rico patrimônio de textos bíblicos e
litúrgicos e de gestos rituais, capazes de alimentar uma profunda
formação espiritual e uma sábia pastoral. É preciso valorizá-lo.

à Os textos litúrgicos destacam, com frequência, as dimensões


batismal e penitencial do caminho cristão: nas leituras bíbli-
cas, nos salmos responsoriais, nas antífonas de entrada e de
comunhão, nas orações, nos prefácios etc.

» À Liturgia das Horas propõe uma abundante mesa da pala-


vra bíblica e de reflexões espirituais de numerosos homens e
mulheres de Deus, iluminados pela sabedoria do Espírito.

à Os Evangelhos dos domingos do ano À, aos quais estão cla-


ramente conexas a primeira e a segunda leitura, destacam o
itinerário batismal. É preciso valorizar, nas homilias, a cone-
xão intrínseca que une os domingos num itinerário coerente e
progressivo. À grande Vigília Pascal, com o anúncio da Res-
surreição de Jesus e com suas etapas, constitui o oceano divino
no qual deságua o caminho quaresmal, para uma nova expe-
riência de liberdade filial.

à À oração — tanto pessoal como na família e na comunidade,


mais intensa e alimentada pela Palavra do Senhor - junto com
Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A — São Mateus

o jejum e a solidariedade para com os necessitados, constitui


três expressões de uma mesma atitude interior: desapego de si
e atenção ao Senhor, fonte e meta da nossa vida, e ao irmão
com quem partilhamos o mesmo caminho de fé.

Neste ano 2014, a Campanha da Fraternidade, promovida


pela CNBB, nos propõe uma especial forma de caridade/soli-
dariedade fraterna: o combate ao “tráfico humano” que está
escravizando milhões de pessoas em todo o mundo, de forma
explícita ou camuflada. No irmão traficado, na irmã trafi-
cada, é a nossa própria filiação divina que vem sendo negada.
É o próprio Cristo a ser vendido novamente. É a fraternidade
que é abolida. Lutar contra o tráfico humano implica arrancar
suas raízes e eliminar os mecanismos culturais, sociais, econô-
micos que tornam possível sua reprodução.

O silêncio, hoje o grande ausente, é condição essencial para


colocar-se na escuta sincera do Senhor, da sua voz que sobe do
íntimo da consciência, da sua Palavra meditada e rezada, bem
como o são os acontecimentos. Momentos de silêncio durante
as celebrações: ao início, para entrar bem na celebração, depois
das leituras, depois da comunhão. Evitar excessivas explica-
ções durante a celebração. Deixar falar o rito. Não se cria
silêncio interior, se não se cultiva também o silêncio fora de
nós. Neste tempo, seria útil praticar o distanciamento dos ins-
trumentos sem número que invadem nosso espaço vital: TV,
internet, rádio, etc. É uma forma inteligente e atualizada de
praticar um “jejum” verdadeiramente saudável.

De um coração silencioso e atento, brotam a exigência e a


capacidade de olhar com humildade dentro de nós, reconhecer
as ambiguidades do pecado que nos ocupa, celebrar a recon-
ciliação para com o Senhor e com os irmãos, através da cele-
bração do sacramento da Reconciliação ou outras celebrações
penitenciais.
A caminho na luz de Cristo

à À cor roxa, tradicionalmente usada na Quaresma, não é sinal


de tristeza, mas de sobriedade. O ambiente litúrgico tem que
ficar simples, sem ornamentações e sem flores, durante a
tempo quaresmal. Seria pura formalidade se o “tom da sobrie-
dade” ficasse relegado ao ambiente litúrgico e não determi-
nasse também o estilo global da maneira de viver: comida,
palavra, despesas, vestuário, etc. Mortificar as aparências para
alimentar a interioridade.

à Os cantos das celebrações quaresmais podem ser encontrados


no CD da Campanha da Fraternidade 2014: Hino da CF 2014 e
Cantos para a Quaresma Ano À.
QUARTA-FEIRA DE CINZAS
S de março de 2014

CONVERTEI-VOS E CREDE NO EVANGELHO

Leituras: J12,12-18; SI 50(51),3-4.5-6a.12-13.14 e 17;


2 Cor 5,20-6,2; Mt 6,1-6.16-18

Situando-nos brevemente
Há um ano, no dia 13 de março de 2013, de maneira imprevisível,
irrompia, no cenário da Igreja e do mundo, uma nova testemunha
da Páscoa do Senhor, “provinda do fim do mundo”: Papa Francisco.
Desde a primeira missa celebrada com os cardeais, na Capela Sistina,
no dia seguinte ao de sua eleição, ele indicou a necessidade de a Igreja
estar em movimento, olhando, com confiança, para frente, para
Cristo: caminhar, construir, confessar Cristo, seguindo sua cruz, sem
presunção e sem medo das surpresas e das novidades de Deus.
Depois da Páscoa, comentando o discurso de Santo Estevão, o
primeiro mártir, sobre a resistência dos judeus à boa nova de Jesus
(cf. At 7), Papa Francisco disse: “Falando claro, o Espírito Santo
nos incomoda, porque mexe conosco, nos faz caminhar, empurra a
Igreja para ir para frente... Pareceria que hoje temos mais alegria
pela presença do Espírito Santo, mas não é assim. Basta olhar para
o Concílio Vaticano II “obra do Espírito Santo”. João XXIII foi fiel
ao Espírito Santo, mas, hoje, 50 anos depois, fizemos tudo o que nos
disse o Espírito Santo no Concílio? Não. Festejamos o aniversário,
fazemos um monumento, mas que não nos incomode. Não quere-
mos mudar. É, pior: há pessoas que querem ir para trás. Isso é que
se chama ser teimoso, isso se chama querer domesticar o Espírito
A caminho na luz de Cristo n

Santo, isso se chama tornar-se tardos e lentos de coração” (Homilia


da Missa do dia 17 de abril de 2013).
O convite de Jesus: “Convertei-vos e crede na Boa Nova”, que
acompanha a recepção das cinzas, hoje ressoa ainda mais forte e atu-
alizado nas palavras apaixonadas do Papa Francisco a toda a Igreja,
pastores e leigos. Ele a exorta a despertar diante do chamado do
Senhor, a sair dos velhos esquemas costumeiros de vida cristã sem
sabor e entusiasmo e de uma pastoral costumeira e sem criatividade.
É preciso, pelo contrário — ele afirma —, assumir o movimento cheio
de comoção e de misericórdia, do pai que corre ao encontro do filho,
antes que ele se aproxime da porta de casa (cf. Lc 15,20). É pre-
ciso passar da atitude de quem se limita a julgar e esperar que volte
ao redil a ovelha que se afastou, para a atitude do pastor que vai à
procura da ovelha perdida (cf. Lc 15,4-7). Movida pelo seu coração
materno, a Igreja há de se tornar um “hospital de campo” depois de
um dia de batalha, solícita a acolher e curar qualquer ferido (cf. entre-
vista com o Padre À. Spadaro, dia 19 de setembro de 2013. Em Civiltã
Cattolica. n. 3918 (19/9/2013).
Entrar no espírito penitencial e de conversão próprio da Qua-
resma, recebendo humildemente as cinzas sobre a cabeça, simbólico
centro vital da pessoa, significa reconhecer os próprios pecados de
desvio do caminho de Jesus e de sua boa nova, de preguiça espiritual,
de omissão quanto ao que diz nosso chamado a seguir Cristo e seu
exemplo de dedicação sem reservas ao Pai e aos homens.
Sair de nós mesmos é sair da autorreferência para ir às periferias
da vida, nas quais nos chama o amor. Esta “conversão” interior e de
estilo de vida chama à causa cada um e cada uma de nós. Constitui o
nosso verdadeiro “êxodo” a partilhar com Jesus.
À Campanha da Fraternidade nos solicita a operarmos para que
ninguém seja manipulado e vendido no tráfico humano, no entanto
este tráfico não se refere somente aos eventos doloridos dos quais a
mídia chega a falar. Esta situação equivocada de escravidão toca tam-
bém nossas relações cotidianas na família, no trabalho, em relação ao
pn Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

dinheiro, ao sucesso a qualquer preço, à imagem de nós mesmos.


Que cuidado estou desenvolvendo na relação com aqueles que a vida
colocou junto de mim como “meu próximo”? Não está acontecendo,
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às vezes, prestarmos mais atenção a um cachorrinho de estimação


que a uma criança ou a uma pessoa idosa?

Recordando a Palavra
A antífona da entrada da celebração dá a tônica não somente à
celebração da Quarta-Feira de Cinzas, mas a toda a Quaresma,
oferecendo à contemplação da Igreja a verdadeira imagem de Deus,
que é compaixão e misericórdia. “Ó Deus, vós tendes compaixão de
todos e nada do que criastes desprezais”. À partir desta experiência
de Deus, se ilumina a mensagem do profeta Joel ao povo pecador
e desanimado (12 leitura), bem como o forte apelo de Paulo aos
Coríntios a “deixar-se reconciliar com Deus em Cristo” (22 leitura),
pois nele o Pai manifestou a dimensão infinita de sua misericórdia e
de seu perdão. Na luz desta boa nova, se pode vislumbrar o sentido
profundo do caminho de Jesus até a cruz, sua descida às trevas da
morte, e o início do mundo novo que brota de sua ressurreição.
O profeta Joel fundamenta seu grito para voltar ao Senhor, no
feito que “ele é benigno, é compassivo, paciente e cheio de misericórdia,
inclinado a perdoar o castigo”. Se tal é a atitude de Deus para com o
povo, para entrar novamente no caminho certo não é suficiente cumprir
algumas práticas penitenciais prescritas pela lei, mas é preciso colocar
em jogo a si próprio, de maneira radical, “rasgar o coração não as vestes”.
O salmo responsorial (Sl 50/51), profunda vibração do coração
arrependido do rei Davi, exprime a sofrida consciência do pecado
que corrói as raízes da vida, e, simultaneamente, a confiança ilimi-
tada que Deus, na sua misericórdia, tem o poder e a alegria de per-
doar, curar e libertar, abrindo um novo caminho de esperança.
Os coríntios viveram uma fecunda experiência de fé e de cari-
dade, agora, porém, perderam a direção certa, correndo atrás de
A caminho na luz de Cristo RB

competições entre si e deixando-se atrair por doutrinas ilusórias que


esvaziam o sentido da cruz de Cristo, somente na qual há a salvação.
Paulo os exorta a voltarem ao caminho certo, deixando-se reconci-
liar com Deus, aderindo totalmente a Cristo. Somente Jesus viveu
a autêntica relação com o Pai, e, assumindo sobre si nosso pecado,
nos fez participar de sua relação filial com o Pai. Voltar a Cristo e
por Cristo ao Pai é a decisão urgente a tomar. Não podemos perder
tempo atrás de vãs ilusões nem ficar parados por medo. À Quaresma
é “o momento favorável, é agora o dia da salvação”. À Quaresma é o
tempo da compaixão e da misericórdia de Deus, o tempo do arrepen-
dimento e da conversão.

No evangelho, Jesus coloca, ao centro de seu pedido de modifi-


car, de maneira radical, o estilo de vida dos homens religiosos de seu
tempo, o feito que o Pai atua, se encontra e se manifesta na profun-
didade de seu mistério e no coração da pessoa. “E o teu Pai, que vê
o que está oculto, te dará a recompensa”. Esta afirmação é o fio con-
dutor que une o ensinamento sobre o valor e a modalidade de viver a
tríplice expressão da piedade do devoto judeu, bem como do autêntico
discípulo de Jesus: a oração, a esmola, o jejum. Jesus aponta à interio-
ridade, pois é aí que se encontra o verdadeiro santuário onde se molda
a relação autêntica com Deus, com o próximo e consigo mesmo.

Atualizando a Palavra
“Deus não se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir
perdão!” Esta afirmação, repetida tantas vezes pelo Papa Francisco
em suas catequeses ao longo destes meses, acabou escandalizando
muitas pessoas devotas e pias, e — paradoxo ainda maior! — não
poucas pessoas que não acreditam em Deus e não praticam a religião,
mas que veem na ideia de um Deus que “faz justiça”, punindo quem
infringe a lei, um baluarte para garantir a boa ordem na sociedade!
Contudo este é o âmago da boa nova proclamada por Jesus,
4

concretizada em todos os seus gestos para com os pecadores e os


R Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A — São Mateus

marginalizados da sociedade e da estrutura religiosa. Acreditar nesta


boa nova e entregar-se com confiança ao Pai exigem a coragem ingê-
nua das crianças e dos simples de coração. É o próprio Jesus a subli-
nhar isso: “Se não vos converterdes, e não vos tornardes como crian-
ças, não entrareis no reino dos Céus” (Mt 18,3).
Precisamos coragem para nos reconhecermos pecadores na
situação concreta, específica que estamos vivendo em determinado
momento, e não somente de maneira genérica. Esta coragem nasce
da humildade que reconhece e aceita lidar com a verdade profunda
de nós mesmos sem fingimentos. Esta coragem e esta humildade são
dom do Espírito Santo. Precisamos ter confiança de pedi-lo. Deixar
cair as máscaras, viver a verdade: este é o convite libertador de Jesus,
pois é quando acolhemos a verdade que se curam as feridas, se liber-
tam as energias escondidas, se constrói a casa sobre a rocha e, sobre-
tudo, se constrói aquela relação autêntica com Deus, que se torna a
verdadeira recompensa e a alegria da existência.
“.. quando deres esmola, não saiba tua mão esquerda o que faz a
direita, de modo que tua esmola fique escondida. E o teu Pai, que vê
no escondido, te dará a recompensa” (Mt 6,3-4). A mesma indicação
de discrição e silêncio, aberta somente ao diálogo interior com o Pai,
Jesus repete em relação à oração e ao jejum.
Que contraste com nossa mentalidade corrente, segundo a qual
tudo há de ser mostrado em público, tudo enfatizado. Quem não
aparece na mídia não existe. Se você, pessoa ou comunidade, não
tem seu site, a conta pessoal no facebook e no taitter, não vale, não
existe. Todo mundo corre atrás desta justificativa. Mesmo nossas
comunidades paroquiais e religiosas vivem a urgência de se adequa-
rem, sem muita discrição. É tudo expressão de zelo missionário e do
compromisso para testemunhar Cristo, evangelizar a boa nova da
misericórdia de Deus, que está presente em toda situação, e pretende
curar, com carinho, cada pessoa como filho e filha? Acho que deve-
ríamos, com honestidade, fazer a nós próprios muitas perguntas e
aceitar respondê-las com igual honestidade. A Quaresma nos ajuda a
A caminho na luz de Cristo

abrir este diálogo conosco, ela o exige. Morrer aos enganos e renascer
à verdade de nós mesmos é fazer Páscoa na vida.

Ligando a Palavra com a ação eucarística


Na medida em que a Palavra proclamada é interiorizada com fé, ela
desenvolve a energia transformadora que possui em si mesma. Ela faz
da pessoa que deixa acontecer em si este processo de transformação a
oferta de louvor e agradecimento ao Pai em união a Cristo.
À oração eucarística VII, estruturada ao redor da reconciliação
do mundo em Cristo, exprime muito bem este dinamismo. “Jamais
nos rejeitastes quando quebramos a vossa aliança, mas por Jesus,
vosso Filho e nosso irmão, criastes com a família humana novo laço
de amizade. Tão estreito e forte, que nada poderá romper. Concedeis
agora a vosso povo tempo de graça e reconciliação. Dai, pois, em
Cristo novo alento à vossa igreja, para que se volte para vós”.
Pensando sobre a Quaresma, somos quase espontaneamente
impelidos a destacar a exigência de nosso empenho pessoal e comu-
nitário para “nos convertermos”, “nos transformarmos”. À tônica é
posta sobre nós mesmos e as iniciativas a assumir para viver bem a
Quaresma. Certo, o engajamento pessoal há de ser evidenciado e tal-
vez recuperado diante da preguiça espiritual que torna tépida e sem
sabor nossa vida cristã. Que, no tempo de Quaresma, aproveitemos a
oportunidade extraordinária que ela nos oferece.
É preciso, entretanto, recuperar a consciência que, antes de tudo,
é na cruz de Cristo, que se manifesta a iniciativa do amor gratuito
do Pai, o qual nos salva e nos oferece a possibilidade de caminhar
no caminho da vida, fazendo-nos obedientes por amor. Neste dina-
mismo do amor transformante de Deus, nos inseriu o Batismo e nos
insere, de novo, a Eucaristia cada vez que a celebramos. Assim, À
Igreja, ao centro da oração eucarística, assim invoca: “Concedei que,
alimentando-nos com o corpo e o sangue do vosso Filho, sejamos
repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e
Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

um só espírito. Que ele faça de nós uma oferenda perfeita para alcan-
çar a vida eterna” (oração eucarística TT).
Sobre o altar, com o pão e o vinho, está colocada toda a nossa
vida, com suas alegrias, suas dores e suas esperanças. À Igreja nos
convida a pedir que o Espírito Santo, como transforma os dons no
corpo e sangue eucarístico de Cristo, assim transforme nossa existên-
cia em sacrifício e culto espiritual agradável a Deus.

Sugestões para a celebração


à Na procissão de entrada, levar a cruz com dignidade e sim-
plicidade, marcando que, com a celebração de hoje, se inicia
um novo caminho, seguindo Jesus crucificado, fonte da vida e
modelo de existência na fé e no amor.

à O espaço da celebração, a partir desta quarta-feira e por toda


a Quaresma, deve expressar sobriedade, despojado de toda
ornamentação, para favorecer a concentração sobre o essen-
cial do mistério: a palavra proclamada, os gestos rituais que se
sucedem, a atenção interior.

à Ás cinzas e sua imposição hoje ocupam o centro da atenção:


sejam abençoadas e colocadas sobre a cabeça de cada pessoa.
No início pode ser ilustrado brevemente seu significado peni-
tencial e pascal, deixando vislumbrar, em seu simbolismo,
seja a frágil criação da pessoa humana, seja a vitória de Cristo
sobre a morte, por provir das palmas que no Domingo de
Ramos aclamaram a Cristo Messias.

à O início da celebração pode ser precedido por um tempo de


silêncio e de oração pessoal, enquanto se vai constituindo a
assembleia. Para favorecer este clima de interioridade, pode se
repetir um refrão meditativo - “Misericórdia, Senhor! Tende
misericórdia de mim!” - ou difundir uma música instrumental
meditativa e em tom leve.
A caminho na luz de Cristo

à Os cantos devem ser condizentes com o sentido da celebração,


pois constituem parte integrante dela, como a Palavra, as ora-
ções, e “o sagrado silêncio” (SC 30). Seu conteúdo e seu ritmo
devem corresponder à espiritualidade da Quaresma (cf CD
da Campanha da Fraternidade 2014: Hino da CF 2014 e Cantos
para a Quaresma Ano À),

Se valorize o silêncio em momentos peculiares da celebração, com


suas características específicas de preparação à escuta (início), de
interiorização da palavra proclamada (depois das leituras /homilia),
de diálogo pessoal e custódia da intimidade com o Senhor e consigo
mesmo (depois da comunhão). À Quaresma é uma grande oportuni-
dade para redescobrir a dimensão vital do sagrado silêncio na liturgia
e na vida de cada dia.
1º DOMINGO DA QUARESMA

9 de março de 2014

DO JARDIM DO EDEN AO JARDIM DA RESSURREIÇÃO

Leituras: Gn 2,7-9.3,1-7; SI 50(51); Rm 5,12-19 ; Mt 4,1-11

Situando-nos brevemente
É fascinante e perturbadora a experiência que perpassa nosso interior
todos os dias.
Por um lado, nos surpreende o estupor diante da consciência de
sermos amados e cuidados por Deus como seus filhos e filhas. O
estupor se traduz em íntimo chamado a responder com a simplici-
dade e a confiança de uma criança,
Por outro lado, se infiltra uma sutil e atraente sugestão, insinuando
o desejo de tomar somente em nossas mãos o próprio destino. Olhar
a nós mesmos como o exclusivo ponto de referência, única garantia
de nossa dignidade. Tornar-se autossuficiente. Profunda laceração do
coração: ficamos feridos, porém não conseguimos escapar.
“Impenetrável é o homem, seu coração é um abismo!” exclama o
salmista (S1 64,7). O apóstolo Paulo, olhando sua sofrida experiência
pessoal, grita: “Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero
(...) Infeliz que eu sou! Quem me libertará deste corpo de morte? Graças
sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Rm 7,19.24-25).
Este primeiro domingo da Quaresma nos coloca diante do mis-
tério do bem e do mal que nos habita, até as raízes mais profundas
da nossa pessoa, e nos deixa vislumbrar a saída desta contradição:
queda de Adão/Eva diante tentador, no Jardim do Éden (12 leitura),
e vitória de Cristo que derrota o diabo no deserto (evangelho) e
A caminho na luz de Cristo

antecipa sua vitória final na cruz e ressurreição. Cristo Ressuscitado


é o novo Adão que, no jardim da ressurreição, dá início a uma nova
humanidade, à qual nós pertencemos por graça, pelo Batismo que
nos faz participar de sua morte e ressurreição.
Cada Quaresma nos faz realizar, de maneira nova e mais pro-
funda, esta passagem da sujeição ao pecado para a vida nova em
Cristo, participando de suas lutas e de sua vitória.

Recordando a Palavra
“Fizeste-nos para ti, e inquieto está nosso coração enquanto não
repousa em ti” (S. Agostinho, Confissões, Livr.1,1; LH do 9º
domingo do Tempo Comum). Santo Agostinho interpreta a tensão
vital que nos habita como um chamado constante a voltar a Deus,
mesmo quando, pelas ilusões da falsa liberdade, nos afastamos do
caminho certo. Atração para Deus, como a origem e fonte inesgo-
tável de vida, e tentação a nos colocarmos em alternativa a Ele é a
sorte que nos acompanha.
À narração da criação do ser humano proposta pela primeira
leitura (Gn 2,7-9; 3,1-7), com sua linguagem simbólica e altamente
poética, destaca o cuidado carinhoso com o qual Deus chama à exis-
tência o homem, o faz partícipe de sua mesma vida e dignidade e seu
parceiro no cuidado da beleza e da fecundidade da criação inteira,
que é “um jardim a ser cultivado”. No centro do jardim, como no
centro da existência humana, o Senhor faz brotar a “árvore da vida” e
a “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2,9).
Vida em abundância e conhecimento na intimidade recíproca são os
dons com que o Senhor enriquece a existência e a missão de Adão e Eva.
À cena encantadora, que apresenta o Senhor “passeando à brisa da tarde
no jardim”, à procura de Adão e Eva para deter-se em amável conversa
com eles, como com seus íntimos amigos (Gn 3,8), irradia toda a beleza
e o dinamismo da relação que o Senhor estabeleceu entre si mesmo e o
ser humano, ao criá-lo à sua imagem e semelhança (Gn 1,26).
a Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

O diabo, o inimigo da vida, o atrapalhador que engana o homem


com a ilusão da falsa promessa e da perspectiva de tornar-se fonte
totalmente autônoma da vida e do conhecimento, insinua, com astú-
cia, a possibilidade de se tornar alternativo a Deus: “vossos olhos se
abrirão, e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gn 3,5).
De fato os olhos deles se abrirão, mas irão fazer uma triste desco-
berta, a descoberta da própria “nudez”, isto é, da radical incapacidade
de realizar, de verdade, tanto a vocação à autêntica dignidade e liber-
dade como a missão de construir um mundo capaz de espelhar a beleza
divina: “Então os olhos de ambos se abriram, e, como reparassem que
estavam nus, teceram tangas para si com folhas de figueira” (Gn 3,7).
O Senhor, porém, não abandona quem trai, fica fugindo e se
esconde. Ele não se dá paz. À narração do pecado tem um segui-
mento de promessa e de esperança. À voz do Senhor, à procura de
seus amigos escondidos pela vergonha e o sentido de culpa, ao pri-
meiro ressoar no jardim - “Onde estás?” (Gn 3,9), parece vibrar
como uma ameaça. Na verdade, ela prepara a promessa de resgate
da armadilha da serpente enganadora: “Porei inimizade entre ti e a
mulher, entre tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu
lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15).
À condição que Adão e Eva terão que enfrentar “fora do jardim”,
longe das próprias e autênticas raízes, será amenizada pela luz desta
promessa. À pergunta de Deus ao homem - “Onde estás” - revelará
plenamente seu carinhoso cuidado na voz cheia de ternura com que
Jesus ressuscitado falará a Maria Madalena no jardim da ressurrei-
ção: “Maria!” (...) “Rabbuni!” (Jo 20,16).
O salmo responsorial (Sl 50) é o salmo penitencial por exce-
lência. Resume em si os sentimentos mais profundos do pecado, do
arrependimento, da conversão, da alegria, do agradecimento pela
vida renovada pela misericórdia e o perdão de Deus.
O caminho de pecado e de conversão do rei Davi se torna espe-
lho do caminho de toda pessoa que procura a Deus, a partir de sua
fragilidade.
A caminho na luz de Cristo

O salmo exprime, com a máxima intensidade, a consciência da


própria fragilidade inata e do próprio pecado e, ao mesmo tempo, a
confiança extrema no Senhor que por sua misericórdia perdoa e tudo
renova. “Ó Deus, tem piedade de mim (...) contra ti eu pequei!”, “Reco-
nheço a minha iniquidade e meu pecado está sempre diante de mim”.
Tal humilde reconhecimento do pecado não desanima, mas abre
à confiança quem põe no Senhor a razão de sua vida. O perdão invo-
cado é certeza de uma radical transformação do coração, como graça
de Deus: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro, renova em mim
um espírito resoluto (...) Devolve-me a alegria de ser salvo”.
O salmo alimenta o caminho da conversão, a passagem para a
vida nova da Páscoa, através da purificação interior da Quaresma.
Na segunda leitura (Rm 5, 12-19), Paulo desenvolve, em profun-
didade, a relação que Deus tem estabelecido entre a aventura nega-
tiva de Adão e a resposta de obediência e de amor, realizada por
Cristo, “novo Adão”, início de uma humanidade nova.
O dom da salvação em Cristo é bem maior do que mal cum-
prido pelo homem. Deus não se deixa vencer em bondade e miseri-
córdia. Pela fidelidade no amor e na obediência filial de Cristo, o Pai
derrama, gratuitamente e com abundância, a vida nova no Espírito.
Dela nós vivemos.
À transgressão de um só levou a multidão humana à morte, mas
foi de modo bem superior que a graça de Deus, ou seja, o dom gra-
tuito concedido através de um homem, Jesus Cristo, se derramou em
abundância sobre todos (cf. Rm 5,15).
Cristo assume sobre si nossa condição humana de pecado e
com sua vida de dedicação filial, sobretudo com sua páscoa, revira a
situação, abrindo caminho para voltar ao projeto original de Deus e
realizá-lo em plenitude.
O evangelho (Mt 4, 1-11) narra que Jesus se apresenta entre os
pecadores para ser batizado por João e que, cheio do Espírito Santo, é
conduzido por este mesmo Espírito a enfrentar o diabo no “deserto”,
Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

lugar da esterilidade e da provação, contraposto ao “jardim”, lugar da


vida e da comunhão, no qual Deus tinha colocado o homem, para
que cuidasse e gozasse de sua beleza e fecundidade.
O deserto, como o jardim do primeiro Éden, não é simples-
mente um lugar geográfico, mas indica a sofrida situação existencial
do homem “desertificada”, como repetia Bento XVI, ao descrever a
condição do homem pós-moderno, fechado em si mesmo e interior-
mente corroído pela pretensão de ser o centro do mundo, sem relação
com Deus e em competição com os outros (cf. Homilia na santa missa
da abertura do Ano da Fé. 11/10/2012).
Jesus penetra dentro deste deserto, conduzido pelo Espírito, para
partilhar a dura condição humana e vencer, com o amor e a obediên-
cia, o poder obscuro do maligno. “A Palavra se fez carne e veio morar
entre nós” (Jo 1,14). Com a três tentações, o tentador procura afastar
Jesus do projeto do Pai. Propõe-lhe o caminho do sucesso obtido com
o milagre fácil (mudar as pedras em pão para satisfazer a fome), com
gestos que produzem prestígio espetacular e fácil consenso (jogar-se
do templo diante do povo), prometendo poder (adorando o poder).
Eis as tentações que, em formas variadas, cada um continua
a enfrentar ao longo da vida. À Igreja não fica imune a isto, nem
no nosso tempo, como, com vigor, destaca frequentemente o Papa
Francisco.
Jesus, no entanto, animado pelo Espírito, rejeita com a força da
Palavra de Deus as seduções e manifesta sua verdadeira condição
de Filho de Deus, assumindo até as extremas consequências a esco-
lha da humildade e da dedicação ao Pai. Jesus, “novo Adão”, com
a luta no deserto, reestabelece a verdadeira relação de obediência
no amor com o Pai, que o “primeiro Adão”, no Éden, não soube
guardar e valorizar. Jesus, com sua luta de quarenta dias e sua vitó-
ria, vence as provações que Israel, em sua peregrinação de quarenta
anos nos deserto, não tinha conseguido superar, abandonando-se à
murmuração contra Deus e à idolatria.
A caminho na luz de Cristo

Atualizando a Palavra
O caminho dos discípulos, em todos os tempos, é o mesmo de Jesus.
Somente seguindo Jesus, se pode lutar, com êxito, contra o egocen-
trismo e a procura de falso sucesso, quer na vida pessoal, quer no
exercício dos ministérios na Igreja, e chegar à intimidade do jardim da
ressurreição. À Quaresma nos indica o caminho certo e suas etapas.
O Batismo nos introduz no caminho do próprio Jesus, nos faz
participar da mesma ação do Espírito que o conduziu e sustentou
na luta com o diabo no deserto e na vitória sobre a morte na ressur-
reição. Animados pelo Espírito, temos a graça de viver com a liber-
dade dos filhos e filhas de Deus. Temos a graça, como diz Paulo, de
viver como já “ressuscitados” (cf. Cl 3,1-4), como partícipes da vida
nova em Cristo, não mais permitindo que o pecado determine nossa
maneira de sentir, de pensar, de agir.
Com a fé e o Batismo, passamos por uma transformação radical,
que nos acompanha por toda a vida. À vida nova no Espírito Santo
é semente que nos impele desde dentro, cujo crescimento nós deve-
mos favorecer. À graça não é magia, nem o desenvolvimento das suas
potencialidades é algo de automático. Cada dia o Senhor solicita nossa
disponibilidade no amor e nosso compromisso de obediência filial.
À vida do discípulo irradia a luz e a fecundidade da Páscoa,
ao mesmo tempo em que continua a luta contra as contradições do
pecado que sobem do coração, até que seja reconstituído, em sua
integridade, como o da criança.
O “homem velho” e o “homem novo” ainda convivem dentro
de nós, e, às vezes, num conflito que nos dilacera. Nossa salvação,
afirma Paulo, é ainda objeto de esperança e de luta (cf. Rm 8,24).
Temos ainda a necessidade de cultivar a dinâmica de conversão e peni-
tência, enquanto vivemos da energia vital e da luminosidade da Páscoa.
Com sábia pedagogia, cada ano a Igreja nos oferece novamente
a luz da Páscoa e a sóbria alegria da Quaresma, com suas exigências
de penitência e conversão.
N Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

O tempo da Quaresma se apresenta como o tempo mais pro-


pício para celebrar a purificação do coração e fortalecer a caridade,
mediante várias formas de ascese e de oração íntima, de maneira
especial com a celebração do sacramento da Reconciliação, em forma
individual ou comunitária.

Ligando a Palavra com a ação eucarística


À celebração da Eucaristia nos oferece a graça de celebrar a vida
como um caminho partilhado em comunidade. Ela nos tira da
solidão de nossos vários desertos, pelos quais ficamos prisioneiros de
nós mesmos, por presunção ou por medo.
À ilusão de se tornar protagonista absoluto do próprio destino,
na qual caiu o primeiro homem, deixa, na Eucaristia lugar para o
reconhecimento que a vida recebe sua energia e sua fecundidade da
relação com Cristo, obediente e livre até o dom da própria vida, e da
relação de amor para com os irmãos.
O original diálogo de amizade e de festa entre o Senhor e o
homem no Éden acabou com o homem tornando-se surdo e mudo,
se escondendo de Deus e de si próprio. À Eucaristia, pela união com
Cristo, nos dá a ousadia de nos apresentarmos na casa do Pai, com
humildade e confiança.
Pedimos perdão, repetidas vezes, desde o início da celebração até
ao momento de nos aproximarmos à mesa do corpo e do sangue de
Cristo. O sentido penitencial se desdobra do ato penitencial ao início
até a proclamação de fé: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em
minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”.
À presunção de nos auto-orientarmos na vida, sem relação com
o Senhor, cede lugar à humilde invocação para que a Quaresma nos
ajude a “progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a
seu amor por uma vida santa” (oração do dia).
À participação na dupla mesa da Palavra de Deus e do pão euca-
rístico nos sustenta na longa caminhada do deserto da vida, com suas
A caminho na luz de Cristo

lutas e suas experiências de fome e de fraqueza. Estamos expostos


à tentação de suprir por nós mesmos nossas supostas necessidades -
como o diabo sugere a Jesus - quando a espera do tempo de Deus nos
aparece insustentável. (oração depois da comunhão).

Sugestões para a celebração


à Às leituras do ano À destacam a dimensão batismal da Qua-
resma. É importante valorizar, neste ano, de maneira particu-
lar, tal dimensão, como sugere a Constituição Sacrosanctum
Concilium: “Utilizem-se com mais abundância os elementos
batismais próprios da liturgia quaresmal? (SC 109).

Se está prevista a celebração de Batismo de crianças e sobretudo de


adultos, na noite de Páscoa, é conveniente apresentá-los à comuni-
dade durante a missa deste primeiro domingo.

No ato penitencial, podem ser repedidas ou cantadas algumas


invocações do salmo 50 em forma responsorial, as acompanhando
com a aspersão da água batismal.
- “Piedade, ó Senhor, tende piedade, pois pecamos contra vós!”.
- “Eu reconheço toda a minha iniquidade, o meu pecado está
sempre à minha frente”.
- — “Criai em mim um coração que seja puro...”
-- “Dai-me de novo a alegria de ser salvo”.

» Sugerir algum forma de “jejum” na comida, bem como no uso


dos meios de comunicação. Sugerir cuidado com o silêncio e
o recolhimento, para dedicar maior atenção e devoção interior
à leitura meditada e rezada da Palavra de Deus e aprender,
por experiência, que “não se vive somente de pão, mas de toda
palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4).
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano À — São Mateus

Seguindo o espírito da campanha da Fraternidade, sugerir a


realização de alguma iniciativa que possa ajudar uma pessoa a
sair da solidão, da marginalização ou de qualquer outra situa-
ção que a amarra e a entristece.

Como previsto nas normas litúrgicas, se pode abençoar e


impor as cinzas durante a missa do domingo, para ir ao encon-
tro dos fiéis que não tiveram a oportunidade de participar da
celebração da Quarta-feira de Cinzas. Em tal caso se omite o
ato penitencial e se procede como na Quarta-feira de Cinzas.

Na despedida da assembleia, é conveniente enviar o povo o


abençoando com a bênção própria do tempo da Quaresma
(Missal Romano p. 521).

Os cantos para as celebrações quaresmais podem ser encon-


trados no CD da Campanha da Fraternidade 2014: Fino da CF
2014 e Cantos para a Quaresma Ano À.
2º DOMINGO DA QUARESMA
16 de março de 2014

ESTE É O MEU FILHO AMADO... ESCUTAI-O!

Leituras: Gn 12,1-4a; 2Tm 1,8b-10; Mt 17,1-9

Situando-nos brevemente
Talvez jamais as pessoas tenham apreciado tanto a imagem, a beleza,
a aparência, em relação a si mesmas e aos outros, como no nosso
tempo. Às vezes se dá maior atenção à aparência do que à realidade de
uma pessoa ou de uma atividade. Na própria comunicação, prevalece
mais a imagem que a escritura ou a fala. Se alguém não aparece na
internet, no facebook ou na rede social não existe.
Simultaneamente, se continua a “desfigurar” o rosto das pes-
soas, das cidades, da natureza. Crianças abandonadas ou sujeitas à
violência, homens e mulheres vítimas do “tráfico das pessoas”, como
lembra a Campanha da Fraternidade, pessoas expulsas do trabalho
em nome do proveito econômico, etc. Mesmo na Igreja, em comu-
nidades pequenas e grandes, se encontram pessoas deixadas de lado,
nas periferias da vida, por falta de atenção e de cuidado, talvez por
motivo de histórias pessoais sofridas.
Às pessoas, nestas situações, são o próprio Cristo, o “servo
sofredor de Deus” (cf. Is 53) a ser “desfigurado”, enquanto vem ao
nosso encontro pedindo nossa proximidade, carinho e cura. Em
cada uma delas, como afirma com forte ênfase o Papa Francisco, “é
a carne de Cristo sofrido que encontramos e tocamos!” (cf homilia
na Missa do dia 1º de junho de 2013 e homiha na festa de São Tomé,
3 de julho de 2013).
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A — São Mateus

Cada gesto que faz brilhar nos olhos delas uma luz de esperança
e de consolo é o rosto de Cristo que se “transfigura”, que deixa irra-
diar sua luz na pessoa atendida e naquela que a atendeu!
Cada um de nós pode narrar experiências pessoais: quando
alguém teve cuidado de nós, bem como quando nós tivemos cuidado
de alguém. Nos dois casos, nos foi concedido partilhar a transfigu-
ração de Jesus. Nossa casa, nosso escritório, a cama do hospital ou a
sala de aula se tornaram para nós o monte Tabor.
As três leituras deste domingo nos oferecem uma mensagem
convergente, que abre para os olhos da nossa fé o sentido profundo
do caminho quaresmal e da grande celebração da Páscoa, que já se
deixa vislumbrar de longe. À Páscoa é o evento central da história
de amor em que Deus transfigura e renova a história e toda pes-
soa. Jesus, passando através da paixão, morte e ressurreição, primeiro
cumpre em si esta “transfiguração radical”.
Ele é o primeiro a percorrer o caminho que todos os discípulos
são chamados a percorrer. À narração da transfiguração de Jesus deixa
vislumbrar a meta para a qual nos está conduzindo o caminho da Qua-
resma, com a graça de purificação interior e a esperança que o habitam.
À cada ano e a cada dia, o cristão é chamado a interiorizar sem-
pre mais o caminho de transfiguração de si mesmo junto com Jesus,
até deixar-se conformar plenamente a ele.

Recordando a Palavra
As três leituras deste domingo destacam que a iniciativa no processo
de transfiguração e de renovação é fruto da livre e gratuita escolha e
do chamado de Deus, não dos nossos esforços. Somos filhos e filhas
da graça do Pai!
Deus, por livre escolha de amor, chama Abraão e lhe pede para
abandonar sua família e sua terra, com a promessa de que o tornará
abençoado e fecundo, sinal de esperança para todos os povos. Abraão
acolhe o chamado de Deus e inicia aquela caminhada na fé que o faz “pai
de todos os que acreditam no Senhor e se entregam a Ele” (cf. Rm 4,11).
A caminho na luz de Cristo R

Abraão, passando do abandono das suas raízes vitais para a fecundi-


dade que vem de Deus, vive primeiro a “páscoa” de morte a si mesmo
e de adesão a Deus, que cada um de nós, na Quaresma, é chamado
a viver para aderir a Cristo (Gn 12,1-4).
O salmo responsorial (Sl 32) destaca a confiança que, com
Abraão, somo chamados a pôr na fidelidade de Deus. Nele está nossa
força e nossa paz. “Nossa alma espera pelo Senhor, é ele o nosso
auxílio e o nosso escudo. Senhor, esteja sobre nós a tua graça, do
modo como em ti esperamos”
No evangelho (Mt 17,1-9), Jesus, por livre escolha de amor,
chama Pedro, Liago e João e os leva consigo sobre uma alta monta-
nha, para que se tornem testemunhas de sua sorte de messias sofre-
dor e glorioso, que há de transformar o mundo através do amor cru-
cificado. Jesus, diante dos discípulos, antecipa sua páscoa. Eles são
introduzidos no mistério de Jesus e apreendem que o caminho deles
não será diferente da sorte do mestre.
Paulo lembra a Timóteo (2Tm 1,8b-10) que Deus nos chamou
à salvação e à santidade não por nossos méritos, mas por sua livre e
gratuita escolha, manifestada em Cristo.
E Deus que, na sua liberdade e condescendência, escolhe e
chama as pessoas para fazê-las seus parceiros na aventura da vida. É
ele que inicia, permanecendo como protagonista, o caminho de reno-
vação pascal em que o cristão entrou, por graça, através do Batismo.
Ão narrar a estadia de Jesus no deserto, depois do batismo, e
seu combate vitorioso contra o demônio (1º domingo da Quaresma),
Mateus destaca que Jesus estava atuando como o “novo Moisés”. Moisés
guiou o povo de Israel rumo à terra prometida e mediou a aliança entre
Deus e o povo. Jesus guia o novo povo de Deus, peregrino na história,
para uma relação com Deus mais autêntica na fidelidade e na liberdade,
estabelecendo, no sacrifício de si mesmo, a aliança nova e definitiva.
À presença, ao lado de Jesus, de Moisés, o legislador, e de Elias,
o primeiro dos profetas de Israel, indica que o Antigo Testamento
agora encontra seu cumprimento em Jesus morto e ressuscitado.
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

A voz do Pai proclama Jesus “o Filho amado no qual eu pus


todo o meu agrado”. À ele é preciso “escutar” (Mt 17,5) e seguir. A
voz do Pai confirma a proclamação da condição divina de Jesus, feita
no batismo no Jordão (cf. Mt 3,17), e antecipa a glorificação de Jesus
através da cruz na ressurreição e sua vinda gloriosa no fim dos tempos.

Atualizando a Palavra
O evento da transfiguração se encontra no centro da vicissitude
humana e messiânica de Jesus, quase síntese do dinamismo de seu
mistério pascal. Define sua identidade de filho amado do Pai e de
Messias sofredor, solidário com a condição humana, que derrama a
vida nova na ressurreição. Desta maneira, indica e abre também para
nós o caminho a seguir. Ào discípulo não é dado um caminho diferente
daquele do mestre, seja no desafio da fé, seja na partilha da glória.
A Igreja, diante de Jesus transfigurado, se põe em atitude de
adoração e de temor, como os três discípulos. Ela nos convida a per-
manecer nesta mesma atitude, desde o início do caminho quaresmal,
que nos conduzirá a entrar mais profundamente, junto com o pró-
prio Jesus, na graça da nossa transfiguração pascal. Este processo de
transfiguração nos acompanhará até a morte, alimentado pela dupla
mesa da Palavra e da Eucaristia, pela oração confiante, pela purifi-
cação de nosso coração, pela esperança suscitada pelo Espírito Santo.
São Leão Magno observa que a principal finalidade da trans-
figuração era afastar dos discípulos o escândalo da cruz: “Segundo
um desígnio não menos previdente, dava-se um fundamento sólido
à esperança da santa Igreja, de modo que todo o corpo de Cristo
pudesse conhecer a transfiguração com que ele também seria enri-
quecido, e os seus membros pudessem contar com a promessa da
participação naquela glória que primeiro resplandecera na cabeça”
(Sermão 51, 3; LH, 2º Domingo de Quaresma).
O convite de Jesus aos discípulos para se levantarem, tomarem
novamente o caminho da vida sem medo - embora não consigam ainda
A caminho na luz de Cristo

entender - e guardarem, em silêncio, no próprio coração, a excepcional


experiência sublinha a fragilidade humana escolhida por Deus como
hábito cotidiano para si e pelos seus.
À exigência do silêncio adorante diante do mistério de Deus
penetra nossas vidas e nos doa uma capacitação de ver, de julgar e
de escolher diferente da mentalidade comum. O que nos é doado
por graça é inexprimível, fruto de sabedoria divina e loucura para o
mundo. “O reino de Deus”, proclama Jesus, “não vem ostensivamente.
Nem se poderá dizer: “Está aqui” ou “Está ali”, pois o reino de Deus está
no meio de vós” (Lc 17,20-21).
Pelo contrário, ao viver na mentalidade da imagem e da aparência,
temos, muitas vezes, urgência para que o que apenas iniciamos a descobrir
ou a operar pela graça de Deus alcance logo seu cumprimento. Temos pressa
de fazer que “todo mundo veja” o que estamos fazendo. Essa inquietação é
verdadeiro desejo de crescer no Senhor e autêntico zelo apostólico? Deixe-
mos que a palavra de Jesus e esta pergunta desçam em nossa consciência!
Os tempos de Deus não são os tempos dos homens. À inquietação
dos homens para esclarecer o que acontece, dominar, possuir acaba
por empurrá-lo a queimar etapas, a acelerar os tempos. Às irrupções
de Deus na vida de Abraão, de Moisés, de Elias, de Jesus, de Maria...
surpreendem, porém, com suas novidades, abrem gestações que ama-
durecem segundo tempos e passagens escolhidos pelo próprio Deus,
até chegar à plena entrega na liberdade do amor.

Ligando a Palavra à celebração eucarística


Esta perspectiva exaltante é graça e vocação. É objeto do desejo mais
profundo e constante da Igreja, esposa de Cristo, seu esposo e corpo
vivo dele, sua cabeça.
À antífona de entrada da missa exprime esta tensão que marca
o coração de cada pessoa, consciente ou inconscientemente à procura
do sentido profundo da vida, através da fé ou através de outras for-
mas de busca espiritual.
E Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano À - São Mateus

“Meu coração se lembra de ti: “Buscai minha face! “Tua face,


Senhor, eu busco. Não me escondas teu rosto” (Sl 27,8-9).
Na sociedade secularizada, às vezes, esta procura existencial fica
escondida atrás de percursos desviados e destruidores: drogas, poder,
dinheiro, sexo, etc. Está escondida, mas fica ali. É graça de Deus.
“Fizeste-nos para ti, e inquieto está nosso coração enquanto não
repousa em ti” (S. Agostinho, Confissões, 1,1).
Esta antífona dá o tom profundo da celebração do domingo e de
toda a Quaresma. O canto de entrada hoje deve valorizar esta tensão
interior que caracteriza a liturgia e o caminho espiritual cristão.
Igual anseio constitui a alma central da invocação da Igreja,
na oração do dia: “Ó Deus, que nos mandastes ouvir o vosso Filho
amado, alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que, puri-
ficado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória”.
À atitude de escuta é constitutiva da vida do cristão, como “dis-
cípulo de Jesus”, Palavra vivente que o Pai nos convida a escutar e
seguir: “Este é o meu Filho, o Eleito. Escutai-o!”. O cuidado de apli-
car-se com abertura de coração e perseverança deveria ser elemento
ainda mais fundamental no tempo da Quaresma.
Este anseio assinala a proximidade de Deus a seu povo pere-
grino na fé, antecipa, profeticamente, sua sorte final de plena parti-
cipação na glória eterna do Senhor.
Até que não tenhamos passado através da morte do “homem
velho”, autocentrado, graças à “transfiguração” operada pela Páscoa
e pela ação do Espírito, não conseguimos nos afinar com o coração
de Deus. O “homem novo”, capaz de entender as coisas de Deus e de
agir com os critérios do Espírito, nasce nas dores do parto da nova
criação, que envolve a pessoa e a criação, na mesma dor e na mesma
esperança (cf. Rm 8,22-25).
Estamos assistindo, a cada dia, a processos arrasadores de “des-
figuração” da dignidade das pessoas, visíveis nos rostos delas, assim
como nas relações interpessoais, e mesmo na exploração da natureza,
A caminho na luz de Cristo

sob a violência dos homens e das instituições. E a transfiguração da


realidade em sentido contrário.

Graças a Deus, também assistimos, contudo, ao testemunho de


transformação interior de pessoas, visível na vida e na face de homens
e mulheres de Deus. Eles irradiam serenidade, força, paz e luz, quase
um doce sorriso permanente que cura e alivia. Quem pode esquecer o
sorriso luminoso de madre Teresa de Calcutá, brotando das profun-
das rugas de seu pequeno rosto, familiarizado com as dores de tantas
crianças e marginalizados e irradiante esperança e cura?
Quem não guarda em si, com admiração e alegria, a imagem
simples e irradiante de paz das Bem-aventuradas Nhá-Chica e Ir.
Dulce, ou a de algum vizinho ou vizinha de nossa casa?
Estas pessoas são o Senhor, encarnado de maneira sempre nova e
transfigurado, no meio de nós. Elas nos indicam o caminho a seguir.
Elas se tornam reintegradas na unidade do espírito e do corpo, nos
sentidos e nas relações. São a celebração vivente da Transfiguração e
da Páscoa, tendo percorrido com humildade e perseverança, o cami-
nho purificador da Quaresma existencial.
Com o apóstolo, cantemos nossa esperança: “Todos nós, porém,
com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor e, segundo esta
imagem, somos transformados, de glória em glória, pelo Espírito do
Senhor” (2 Cor 3,18).

Sugestões para a celebração


à À procissão de entrada pode ser aberta com a cruz enfeitada
com flores, como sinal da vida e da glória, que estão escon-
didas na humanidade de Jesus e em seu sofrimento, e da vida
nova oferecida para nós ao seguir Jesus em seu mistério pascal.

à Em sintonia com o convite do Pai a escutar e seguir Jesus, enco-


rajar os fiéis a se dedicarem, com empenho e fidelidade, à leitura
meditada e rezada da Palavra de Deus. Motivar esta sugestão
Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

com a precisa indicação de seu sentido, destacada por Bento


XVI: “a Palavra de Deus é viva e se dirige a cada um de nós no
momento presente da nossa vida”, “os textos bíblicos exprimem
todo seu sentido espiritual, quando são lidos sob o influxo do
Espírito Santo, no contexto do mistério pascal de Cristo e da
vida nova que dele resulta” (Bento XVI, Verbum Domini, n. 37).

Jesus vive, na montanha, uma profunda experiência de oração


e de intimidade com o Pai. Dela faz partícipes os três discípu-
los. Durante esta experiência, ele se transfigura, deixando irra-
diar sua identidade com o Pai e renovando seu compromisso
de atuar em sua missão de dar a própria vida no amor. À Qua-
resma é tempo privilegiado para se deter na intimidade com
Jesus e com o Pai, cultivando a oração pessoal e na família,
além de, aos domingos, participar da celebração da Eucaristia.

A Quaresma é o tempo oportuno para descobrir, também


através de adequada catequese e de algumas experiências con-
cretas, “a oração da Igreja” expressa na Liturgia das Horas.
Por exemplo, durante a semana, a celebração da Eucaristia de
manhã pode ser precedida pela celebração das Laudes; a da
tarde pode ser precedida pela celebração das Vésperas. Nas
comunidades onde não se celebra a Eucaristia, a comunidade
pode ser convocada para celebrar as Laudes ou as Vésperas,
proclamando-se, no lugar da leitura breve, o evangelho do
dia, seguido por uma breve homilia antes das preces.

Reconhecendo no irmão em necessidade, material ou espiri-


tual, o Cristo sofredor e desfigurado, assumir o compromisso
interior e gestos concretos para fazer que o cuidado carinhoso
com ele faça brilhar, em seus olhos, a luz do consolo e da espe-
rança, própria do Cristo transfigurado.

Os cantos para as celebrações quaresmais do ano À se encon-


tram no CD da Campanha da Fraternidade 2014: Flino da CF
2014 e Cantos para a Quaresma Ano À.
3º DOMINGO DA QUARESMA
23 de março de 2014

"UMA FONTE DE ÁGUA QUE JORRA PARA À VIDA ETERNA"

Leituras: Ex 17,3-7; S1 94,1-2. 6-7.8-9; Rm 5,1-2.5-8; Jo 4,5-42

Situando-nos brevemente
No Ano À, a partir do terceiro domingo da Quaresma, a liturgia da
Palavra assume uma vertente mais claramente batismal, acompanhando
gradativamente os catecúmenos a celebrar a iniciação cristã na grande
Vigília Pascal, e toda a comunidade a redescobrir e renovar a graça da
própria iniciação. Esta é, pois, um processo dinâmico que nos acompanha
ao longo da vida, até a páscoa/passagem definitiva da morte à vida plena
no Senhor, constituída por nosso “êxodo” pela morte natural.
O primeiro e o segundo domingo, nos três ciclos À, B, €, têm
em comum a narração de Jesus tentado no deserto e o evento de sua
transfiguração: clara alusão à frágil situação humana, marcada pela
original criação à imagem e semelhança de Deus, mas exposta à ten-
tação da autossuficiência. Deus, porém, não abandona seus filhos e
os chama a recuperar aquela beleza original, através da conformação
a Jesus, na sua páscoa de morte e ressurreição.
À partir do terceiro domingo, as leituras e em particular os tex-
tos do evangelho iluminam os vários aspectos do processo interior
que a participação na Páscoa de Jesus, através da iniciação cristã,
ativa em nós.
No diálogo com a mulher de Samaria (3º domingo), Jesus revela
a si mesmo como a água viva que alimenta a existência da pessoa.
Desvela que a nascente desta água perene se encontra dentro do poço
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A -— São Mateus

profundo e obscuro da própria pessoa, pela presença e pela energia


vital de seu Espírito.
O próprio Jesus é a luz: ele mesmo deixa vislumbrar a meta
da vida e ilumina o caminho. Com o dom do Espírito, Jesus não
somente cura, no batizado, a cegueira do pecado, mas também cria
nele a capacidade da visão, para enxergar a vida e avaliar as coisas,
segundo a verdade de Deus (4º domingo — cura do cego de nascença).
O encontro com Jesus na fé, acolhendo com amor e confiança
sua presença de amigo e sua palavra, ativa, no batizado, o princípio
de vida nova, a vida segundo o Espírito, que é início de ressurreição
desde o presente (5º domingo — ressurreição de Lázaro).
A Quaresma, com o dinamismo interior que se exprime na
estrutura ritual, constitui um precioso itinerário espiritual. As cele-
brações dos domingos, com a sucessão das características próprias,
desenvolvem uma pedagogia espiritual capaz de sustentar o cresci-
mento pessoal de cada um e o caminho de toda a comunidade do
povo de Deus.

Recordando a Palavra
Às três leituras apresentam uma situação de vida na qual cada um
pode, facilmente, reconhecer seu próprio caminho. Uma surpreen-
dente pedagogia divina acompanha e estimula o crescimento rumo à
plena libertação de toda humana ilusão.
À sede, como a fome, constitui uma das experiências mais trau-
máticas da vida humana. À procura para satisfazer suas exigências
a transforma em potente motor que impele a pessoa a uma contí-
nua busca, até que seja satisfeita. Nesta luta para a vida, se encontra,
porém, a tentação de se apegar a tudo o que parece dar resposta ime-
diata ou de buscar solução no passado.
Diante da aridez do deserto, Israel desconfia das promessas de
Deus, se queixa de insuportável fadiga e sonha com a água e a carne que
o Egito lhe garantia, embora em condição de escravidão. Contudo o
A caminho na luz de Cristo

Deus de Israel é o Deus que constrói o futuro, não somente do passado;


é o Deus da libertação, não o Deus da escravidão. Ordena a Moisés que
vá para frente e promete que ele mesmo estará lá, pronto a operar novas
maravilhas. “Passa adiante do povo (...) Toma a vara com que feriste o
rio Nilo. Eu estarei lá, diante de ti sobre o rochedo (...) Ferirás a pedra e
dela sairá água para o povo beber” (12 leitura: Ex 17,5-6).
Jesus estará sempre à frente dos discípulos no caminho para
Jerusalém, renovando seu compromisso com a missão recebida
do Pai, e pedindo aos discípulos para “segui-lo”, sem voltar atrás
(cf. Lc 9,51-62). Ele está sempre diante de nós e nos convida a segui-lo.
O salmo responsorial (51 94) constitui a clássica reflexão sobre a
peregrinação de Israel no deserto, marcada por inúmeras oportunida-
des de experimentar a fidelidade e a potência de Deus e por repeti-
dos endurecimentos do coração do povo, incapaz de se abrir ao futuro
de Deus. No contexto da Quaresma, este salmo constitui um convite
vigoroso a valorizar este tempo de graça, como tempo rico de novas
oportunidades de conversão e de crescimento na relação com o Senhor.
Na Carta aos Romanos (2º leitura), Paulo destaca a gratuidade
da iniciativa com a qual Deus estabeleceu conosco uma relação de
autêntica renovação em Cristo Jesus, derramando nos nossos cora-
ções seu Espírito, princípio de vida nova, fundamento da esperança e
penhor da plena participação em sua vida. “Por ele, só tivemos acesso,
pela fé, a esta graça na qual estamos firmes, mas ainda nos ufanamos
da esperança da glória de Deus. É a esperança não decepciona, por-
que o amor de Deus foi derramado em nosso corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado” (Rm 5,2.5).
Jesus, em seu encontro com a mulher samaritana junto do poço
de Jacó (evangelho) , revela a absoluta liberdade com a qual ele se doa
a todos e a cada pessoa. Ao mesmo tempo, com delicada pedagogia,
ele faz a mulher passar da procura de solução insuficiente às exigên-
cias mais elementares da vida, como a água, para a atenção aos mais
profundos anseios de verdade, de beleza e de vida, que estão em seu
coração, escondidos dela mesma,
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A — São Mateus

O próprio Jesus se faz mendicante e companheiro de procura.


“Dá-me de beber”. O gesto de proximidade guia a mulher a descer às
profundidades do poço que se encontra nas entranhas de sua própria
experiência. “Se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que
te diz: Dá-me de beber”, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”
(Jo 4,10). Ela, com surpresa, descobre que o sedento estrangeiro está,
de fato, lhe oferecendo uma água que não se pode recolher dentro do
balde e sim no coração. “Mas quem beber da água que darei, nunca
mais terá sede (...) Senhor dá-me dessa água..” (Jo 4,14-15).
Tal invocação recebe, em resposta, a abertura de uma perspectiva
ainda mais inesperada: participar do novo culto a Deus em Espírito
e plenitude, superando toda divisão e redução aos critérios religiosos
humanos: “Mas vem a hora, e é agora, em que os que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (Jo 4,23).
Os discípulos
Pp são conduzidos a P percorrer um caminho de aber-
tura e conversão aos critérios de Deus, parecido com o caminho feito
pela mulher da Samaria. Com estranhamento ao encontrar Jesus
falando com a mulher estrangeira, porém solícitos para que o mestre
coma algo depois de tanta fadiga da viagem, eles são conduzidos por
Jesus a mudar de horizonte: “Eu tenho um alimento para comer, que
vós não conheceis (...) O meu alimento é fazer a vontade daquele
q q que
me enviou e levar a termo a sua obra” (Jo 4,32.34).
Esta mudança de horizonte constitui a passagem/páscoa que os
discípulos terão dificuldade a cumprir em si mesmos, até que o Espí-
rito converta o coração deles e o próprio Jesus lhes abra a mente depois
da ressurreição. Os discípulos, iluminados e fortalecidos pelo Espí-
rito, conseguirão dar testemunho de Jesus, somente depois da Páscoa.
A mulher samaritana, ao contrário, parece mais disponível a
deixar-se guiar pela novidade extraordinária encontrada em Jesus,
e inicia imediatamente a dar testemunho dele. “Muitos samaritanos
daquela cidade acreditaram em Jesus, por causa da palavra da mulher
que testemunhava: “Ele me disse tudo o que eu fiz” (Jo 4, 39).
A caminho na luz de Cristo R

Ela se torna a “primeira evangelizadora”, antecipando, profetica-


mente, o alegre anúncio da ressurreição, dado por Maria Madalena e
pelas mulheres aos discípulos, na madrugada de Páscoa.

Atualizando a Palavra
À sociedade moderna se torna sempre mais secularizada e espiritu-
almente árida. Para muitas pessoas, Deus é o “ausente”. Uma recente
análise sobre a situação da pessoa na sociedade atual destaca, todavia,
que o homem contemporâneo, mesmo no drama de suas situações
existenciais, espera, de maneira confusa, conhecer e encontrar o
Deus dos viventes e que dá a vida. Ele sente nostalgia da presença de
Deus. Sofre a sede do infinito, embora, muitas vezes, não consiga dar
este nome à água que está procurando para saciar sua sede.
A nostalgia nasce das desilusões deixadas pelo que foi imagi-
nado e seguido como “deus”, capaz de satisfazer a sede de sentido da
existência, tão frágil e quase desertificada interiormente. “Em mim
desfalece o meu espírito, meu coração se consome (...) À ti estendo
minhas mãos, como a terra seca, anseio por ti” (51 143,4.6).
O Batismo mergulha o cristão na nascente da água viva, que
continuará a fecundar toda a sua existência.
Experiência de plenitude, e simultânea urgência de uma sede
insaciável, expressão de uma fé, às vezes incipiente, que cresce com
o progresso do amor, e leva consigo a força para perseverar na espe-
rança. “Ao pedir à samaritana que lhe desse de beber, Jesus lhe dava
o dom de crer. E, saciada sua sede de fé, lhe acrescentou o fogo do
amor” (prefácio do domingo). À esperança, ao longo do caminho,
não decepciona em sua tensão rumo à plenitude, pois “o amor de
Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos
foi dado” (22 leitura, Rm 5, 5).
Jesus dá testemunho do amor de Deus para com todos os homens
e mulheres, qualquer que seja a condição deles. Até os “samaritanos”,
a Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

os diversos, os problemáticos, os excluídos, segundo as categorias


sociais e religiosas vigentes, são destinatários deste amor divino que
“tem sede” de todos e a todos oferece a possibilidade de encontrar
a “água que dá vida”, aquela que, no fundo, eles estão procurando
mesmo em seus desvios.
Ão pedir à mulher da Samaria água para saciar sua sede, é o pró-
prio Jesus a se aproximar, partilhando a mesma fraqueza e a mesma
necessidade dela e de todo homem e mulher. Com seu gesto, des-
perta a consciência da samaritana para a procura mais profunda, que
ela traz consigo, e acaba oferecendo à sua fé o manancial perene do
Espírito que brotará dentro dela mesma (Jo 4,13-15).
“Vinde a mim, todos vós que estais cansados e carregados dos far-
dos, e vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e sede discípulos
meus, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso
para vós. Pois meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).
Esta mesma atitude de Jesus está no centro dos gestos e da
cotidiana pregação de Papa Francisco, impelindo a Igreja inteira a
assumi-la com os homens e as mulheres do nosso tempo, para que
eles possam se encontrar com o coração de Jesus. Alguns bem-pen-
santes ficam escandalizados, achando que assim se vai enfraquecer a
força das leis da Igreja... como acontecia com Jesus.

Ligando a palavra com a ação eucarística


Na preparação das oferendas para a Eucaristia, há um pequeno rito
talvez percebido por poucos, sobretudo em seu significado simbólico.
É o gesto com o qual o sacerdote derrama algumas gotas de água
no cálice, misturando-as com o vinho. À água representa nossa
frágil realidade humana que se abre ao Senhor, como no mistério
da encarnação. O vinho e a água misturados são apresentados ao
Senhor, para que, pela força vital de sua Palavra e do Espírito Santo,
sejam transformados no sangue vivo de Cristo que sacia a sede de seu
povo, pois é a páscoa do Senhor a nascente perene da água viva.
A caminho na luz de Cristo

Jesus abre esta animadora perspectiva também para o caminho


da nossa vida. Um caminho sujeito a tantas provações, tentações,
fadigas e até desvios, como testemunha a dura experiência de Israel
no deserto, embora já tivesse experimentado a fiel providência de
Deus (1º leitura - Ex 17,3-7).
No fundo de si próprio, porém, este incerto vagar guarda a sau-
dade de sua nascente e de sua meta, mesmo quando acaba perdendo
o contato com a nascente da água viva, para construir, com suas pró-
prias mãos, cisternas rasgadas, atraído por projetos que se revelam
inconsistentes e vazios, como lamenta o profeta Jeremias (Jr 2,5).
O salmista, porém, interpreta, com esperança, o que perma-
nece no fundo do coração e que pode abrir novos caminhos: “Minha
alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando hei de ir ver a face de
Deus?” (Sl 42,3).
De onde estamos atingindo nossa água: do manancial vital do
Espírito que fica jorrando dentro de nós ou das cisternas rasgadas
que o mundo nos proporciona?
À sede da posse sem medida, a cobiça na exploração dos recursos
ambientais estão desertificando a vida do homem, as relações entre
as pessoas e os povos, ameaçando o desenvolvimento sustentável.
Ainda pior. O tráfico cruel das pessoas chupa, sem piedade, o
sangue inocente das vítimas, como nos lembra a Campanha da Fra-
ternidade do 2014. Participando do único cálice do sangue precioso
de Cristo na Eucaristia, somos transformados pelo Espírito Santo no
único corpo vivente de Cristo, solidários uns com os outros.

Sugestões para a celebração


à À acolhida atenciosa das pessoas, ao entrarem na igreja
para participar da celebração, é um ato de grande relevância
humana e pastoral, a ser atuado com fé e com cuidado. Do
modo como uma pessoa se sente acolhida, pode depender a
qualidade de sua participação na celebração. No irmão e na
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

irmã acolhidos, é o próprio Cristo que é acolhido. No irmão


e irmã que me acolhem é o próprio Cristo que me acolhe. Os
fariseus se escandalizam com a acolhida cheia de ternura e
misericórdia dos pecadores por parte de Jesus. Os discípulos
ficam admirados por Ele falar com a mulher samaritana. Em
Jesus, porém, cada um encontra sua casa. Assim seja em nos-
sas comunidades e em nossas assembleias, no meio das quais
está o Senhor Ressuscitado. É

Evidenciar a progressiva dinâmica batismal dos próximos


domingos (3,4,5), destacando como ela conduz os catecúme-
nos, que estão se preparando para receber os sacramentos da
iniciação cristã na Vigília Pascal, a mergulharem no grande
Tríduo Pascal, e cada membro da comunidade a renovar a
graça e as promessas de seu Batismo. O ato penitencial pode
ser acompanhado pela bênção e a aspersão da água benta,
memória da água batismal.

À partir da atitude carinhosa e evangelizadora de Jesus para


com a mulher samaritana, apresentar o sacramento da Recon-
ciliação como um encontro transformador com o próprio Jesus,
uma experiência de acolhida sem reserva e de renovação.

Ão renovar a proclamação da fé, hoje se pode evidenciar que


“o senhorio” de Jesus, destacado com a formulação “Creio em
um só Senhor, Jesus Cristo”, se exprime através do serviço de
amor aos mais marginalizados e problemáticos, partilhando
suas dificuldades, como fez Jesus com a mulher samaritana.

Para dar maior coerência interior à celebração, é conveniente


escolher hoje a Oração Eucarística sobre a Reconciliação 1
(Como é grande, ó Pai, vossa misericórdia - Missal página 866).

Os cantos para as celebrações quaresmais podem ser encon-


trados no CD da Campanha da Fraternidade 2014: Hino da CF
2014 e Cantos para a Quaresma Ano À.
4º DOMINGO DA QUARESMA

30 de março de 2014

"OUTRORA ÉREIS TREVAS, MAS AGORA SOIS LUZ NO SENHOR


VIVEI COMO FILHOS DA bt?”

Leituras: ISm 1b.6-7.10-13a; Ef 5,8-14; Jo 9,1-41

Situando-nos brevemente
À época atual é cheia de contradições. Por um lado, oferece oportu-
nidades de desenvolvimento pessoal e social, que as anteriores não
tiveram a sorte de encontrar. Por outro, estamos sofrendo aridez
espiritual, desequilíbrios sociais, violência nas cidades, corrupção,
guerras e fome endêmica em algumas regiões do mundo, que obrigam
milhões de pessoas a abandonarem os próprios países na esperança
da busca de melhor condição de vida para si e para seus filhos. Ao
longo desta autêntica “travessia do deserto”, muitas vezes as pessoas
se tornam vítimas de traficantes cruéis que exploram a miséria delas
até a perda da vida (Campanha da Fraternidade 2014).
“O pobre e o desamparado” — está gritando repetidas vezes Papa
Francisco — “é a carne de Cristo!”. O grito do amor rasga a cortina do
silêncio culpado e tira o véu da cegueira voluntária. Indica o caminho
da conversão para a Páscoa.
Os poderes fortes, políticos, econômicos, ideológicos conhecem bem
estas tragédias, mas fazem conta de não ver, de não saber. Não querem
ver que isso é fruto amargo e envenenado de um sistema político e econô-
mico, que põe, ao centro, o dinheiro e o lucro, em vez da pessoa humana.
Certas praças e ruas das grandes cidades do Brasil apresentam um
rosto de humanidade desfigurada, parecido com o rosto sangrento de
no Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A -— São Mateus

Lampedusa. Os poderes o ignoram. É melhor conduzir os olhos do


povo para os sonhos reluzentes da Copa do Mundo...
Silenciosos e generosos discípulos e discípulas de Jesus, de dia e
de noite, se aproximam a estes feridos da vida, como o bom sama-
ritano ao homem assaltado pelos ladrões (cf. Lc 10,29-37), versam
sobre suas pragas o óleo do consolo e oferecem um abrigo de espe-
rança. É nas casas e nas ruas da vida cotidiana que Jesus estende sua
mão, como fez com o cego de nascença. Cura a cegueira do egoísmo,
faz enxergar o que o egoísmo procura esconder. À luz que vem de
Jesus produz frutos de dignidade, de esperança e de alegria.
“Laetare, Jerusalém! - Alegra-te, Jerusalém!” Com o nome
derivado da primeira palavra latina da antífona de entrada, este 4º
domingo da Quaresma é denominado “Domingo Laetare”, dia de
alegria e de luz que antecipa a grande alegria da Páscoa. “Alegra-te,
Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes,
exultai de alegria! Saciai-vos com a abundância de suas consolações!”
(antífona de entrada - Is 66,10-1).
“Eis a luz de Cristo! Demos graças a Deus!” Eis o grito de ale-
gria, com o qual Igreja abre a grande Vigília da noite da Páscoa.

Recordando a Palavra
Irmãos, “outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Procedei
como filhos da luz” (2º leitura — Ef 5,8). O apóstolo destaca que, com
o Batismo, não só gozamos da luz do Senhor para conduzir uma vida
certa, mas também, em força desta relação vital para com ele, “somos
luz” no Senhor, participamos do seu ser, da sua vida. Desta partici-
pação nasce a possibilidade e o chamado a viver como “filhos da luz”,
isto é, a atuar € agir com o mesmo estilo.
Viver como filhos da luz significa viver segundo o Espírito filial
e os critérios de avaliação da vida que correspondem à energia vital e
à sabedoria do Espírito Santo. À situação da vida é, por sua natureza,
A caminho na luz de Cristo

sempre ambígua. Precisamos da luz interior para discernir entre o


que vale de verdade e o que tem somente a aparência. “Discerni o
que agrada ao Senhor e não tomeis parte nas obras estéreis das trevas,
mas, pelo contrário, denunciai-as” (Ef 5,10-11).
O espírito da Quaresma nos convida a passar das aparências para
a verdade profunda, em relação a nós mesmos e na relação com o
Senhor, bem como com os irmãos. Esta passagem interior para a
autenticidade é a Páscoa a viver cada dia mais, como diz a própria
palavra “páscoa”.
O salmo responsorial (Sl 22), conhecido como o salmo do Bom
Pastor, destaca como o caminho para a Páscoa feita vida é um longo
caminho. Encontra desafios e riscos, mas o próprio Senhor cuida
de nós, nos orienta, nos alimenta, nos sustenta em seus braços, nos
momentos de cansaço e de perigo. “O Senhor é o meu pastor, nada me
falta (...) Se eu tiver de andar por vale escuro, não temerei mal nenhum
(...) Vou morar na casa do Senhor por muitíssimos anos” (51 22).
Nas homilias mistagógicas dos Padres da Igreja, bem como nas
imagens que ornavam as paredes das igrejas antigas, a cena de Jesus
que cura o cego de nascença (evangelho) ocupava lugar central.
No pano de fundo da narração evangélica, é fácil vislumbrar o
caminho que na Igreja faz o catecúmeno, para chegar a celebrar, no
Batismo, aquele encontro pessoal com Jesus, que muda seu coração e
lhe dá uma luz interior que ilumina, de maneira radicalmente nova, a
vida. É conveniente que, durante a Quaresma, a comunidade acom-
panhe com muita atenção, seguindo as etapas indicadas pelo Rito da
Iniciação Cristã dos Adultos (RICA), os adultos que eventualmente
se preparam para receber o Batismo na Vigília Pascal.
Esta atenção pastoral com os catecúmenos adultos pode ser facil-
mente valorizada para animar também as famílias das crianças que,
na mesma noite, vão receber o Batismo.
No relato, encontramos dois processos interiores que vão em
sentido contrário. O cego passa através de um caminho de ilumina-
ção interior que o conduz a penetrar sempre mais profundamente o
si Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A -— São Mateus

mistério de Jesus e sua relação pessoal com ele. Ao contrário, as auto-


ridades se envolvem numa progressiva cegueira. Não querem reco-
nhecer a manifestação de Deus em Jesus. À aceitação ou a recusa de
Jesus se torna critério autêntico para avaliar as obras de cada pessoa e
sua real escolha entre a luz e as trevas.
O oposto dinamismo, que encontramos na relação do cego e das
autoridades judaicas com Jesus, se torna um critério permanente para
avaliar a relação de cada um com Jesus. Na minha vida de cristão,
Jesus ocupa verdadeiramente o centro e se torna critério para orientar
minhas escolhas cotidianas? Ou me deixo determinar pelo costume
e pela conveniência social, por critérios de aparência, orgulho, até
mesmo de medo?

Atualizando a Palavra
Nas catequeses dos Padres da Igreja, o Batismo era indicado
como “iluminação”. Aqueles que tinham recebido o Batismo eram
chamados de “iluminados”. Ainda hoje um significativo rito comple-
mentar da celebração do Batismo põe em evidência sua dimensão
iluminadora, que abre o caminho para seguir a Jesus e partilhar seus
critérios de julgamento, que não olham as aparências enganadoras,
mas a verdade profunda das coisas e das pessoas.
É o rito da vela batismal acesa no círio pascal e entregue ao bati-
zado adulto ou aos pais e padrinhos da criança, com as palavras:
“Recebe a luz de Cristo. Caminha sempre como filho da luz, para
que, perseverando na fé, possas ir ao encontro do Senhor com todos
os santos no reino celeste” (Rito da Iniciação Cristã dos Adultos
(RICA). n. 265).
À luz/vida recebida no Batismo é uma potencialidade divina a
desenvolver. É preciso deixar-se guiar pela luz interior do Espírito,
procurando viver coerentemente segundo seus impulsos interio-
res. Ele conduz a um estilo de vida no qual se manifesta e resplan-
dece a luz do próprio Cristo. Vivei como filhos da luz. O fruto da
A caminho na luz de Cristo

luz chama-se bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao


Senhor. Não vos associeis às obras das trevas que não levam a nada;
antes desmascarai-as (...) Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre
os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá (cf. Ef 5,8-11;14).
Na linha da conformação progressiva a Cristo, realizada por sua
luz transformadora, o caminho do discípulo, ao longo da vida, se torna
um duro combate espiritual entre a luz de Cristo e as trevas do mundo
que em nós habitam e nos circundam, e que tendem a nos ocupar
novamente. É preciso fortalecer-se do poder de Deus e revestir-se da
armadura do Espírito e de todos os seus instrumentos (Ef 6,10-17).
Desde o início, a sorte do Verbo, que é a vida e a luz, é a de bri-
lhar nas trevas, de encontrar oposição, mas as trevas não conseguem
apreendê-lo, pois ele é a verdadeira luz que ilumina todo homem, ao
vir ao mundo (cf. Jo 1,4-5; 9).
Jesus falou ainda: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não
caminha nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12). À luz, porém,
encontra sempre oposição.
A saída de Judas da sala, na última ceia de Jesus com os discí-
pulos, marca o cume da prepotência das trevas: “Depois do bocado,
Satanás entrou em Judas (...) Depois de receber o bocado, Judas saiu
imediatamente. Era noite” (Jo 13,27;30). No entanto a entrega de
Jesus aos inimigos, em plena liberdade, se torna a raiz da liberdade
dos discípulos frente à violência das trevas, ao longo da história.
Jesus afirma que também os discípulos, na medida em que se
deixam envolver em sua experiência de total dedicação ao Pai, se
tornarão eles mesmos luz irradiante da luz de Cristo para o mundo:
iluminados e iluminadores. “Vós sois a luz do mundo. Uma cidade
construída sobre a montanha não fica escondida” (Mt 5,14).
Como Jesus, também os discípulos, exatamente por causa do
contraste com o mundo, são destinados a enfrentar oposição e per-
seguição: “O servo não é maior que o seu senhor. Se eles me perse-
guiram perseguirão a vós também. E se guardaram minha palavra,
guardarão também a vossa” (Jo 15,20).
E Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

À crônica dos nossos dias, infelizmente, confirma esta palavra


de Jesus. Quantos cristãos e cristãs estão pagando um preço muito
alto pelo motivo de sua fidelidade a Cristo? Contudo as feridas deles
se tornam luz que sustenta também nossa fé e nossa esperança.

Ligando a Palavra com a ação eucarística


O evento da páscoa de Jesus, com sua vitória sobre as trevas do
pecado e da morte, constitui a origem e a meta do caminho do povo
de Deus, que vai peregrinando na história, iluminado por Cristo. Sua
celebração sacramental na noite da Páscoa constitui, por sua vez, a
origem e a meta do caminho quaresmal que, a cada ano, se renova,
para atingir, através do dinamismo do Espírito do ressuscitado, uma
participação sempre mais profunda à vida de Cristo.
“Oh noite feliz, só tu soubeste a hora em que o Cristo da morte
ressurgia; é por isso que de ti foi escrito: À noite será luz para o meu
dia?” (Canto do Exultet — Proclamação da Páscoa).
A fé reconhece e proclama o evento da ressurreição de Jesus
como o início de uma nova criação, que vive do reflexo da luz de
Cristo (cf. Gn 1,3).
A Eucaristia atualiza o evento pascal, em seu dinamismo trans-
formador pelo Espírito derramado por Cristo e recebido na sua pala-
vra € no seu corpo e sangue.
Iluminada por esta fé, a Igreja, depois da comunhão, experiên-
cia de encontro com Cristo luz, reza: “O Deus, luz de todo homem
que vem a este mundo, iluminai nossos corações com o esplendor da
vossa graça, para pensarmos sempre o que vos agrada e amar-vos de
todo o coração”.
O encontro com Cristo, pela fé e pelo Batismo, na Eucaristia é
aprofundado e atualizado, cada vez mais, e instaura um dinamismo
de iluminação e transformação progressiva, que nos conduz a “pen-
sarmos sempre o que vos agrada” (oração depois da comunhão), como
A caminho na luz de Cristo

acontece em toda autêntica relação entre as pessoas que se amam. O


coração se torna sempre mais unificado no Senhor. O mandamento
do Senhor - amarás ao Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda
a tua alma e de todo o teu espírito (cf. Mt 22,37) - não é mais um
dever ou uma fadiga, mas verdadeira alegria, livre de todo medo e de
toda conveniência religiosa, como convém a filhos e filhas.
O prefácio de hoje proclama o louvor ao Pai, estruturando as
razões específicas de seu canto, a partir do evento do evangelho e de
sua relação intrínseca com o Batismo. “Pelo mistério da encarnação,
Jesus conduziu a luz da fé à humanidade que caminhava nas trevas. E
elevou à dignidade de filhos e filhas os escravos do pecado, fazendo-
-os renascer das águas do Batismo”.
Este texto é um exemplo muito significativo de como nossa oração
deveria deixar-se inspirar pela Palavra proclamada na liturgia ou meditada
pessoalmente. A escuta da Palavra na fé produz a resposta confiante dos
filhos e das filhas. À liturgia é grande mestre de vida espiritual e de oração.

Sugestões para a celebração


Sobretudo no tempo da Quaresma — Páscoa, experimentamos
a verdade profunda das afirmações do Papa Bento XVI sobre
a importância do atual Lecionário das Missas: “A reforma
desejada pelo Concílio Vaticano II mostrou os seus frutos,
tornando mais rico o acesso à Sagrada Escritura que é ofe-
recida abundantemente sobretudo nas leituras do domingo.
À estrutura atual (...) favorece a compreensão da unidade do
plano divino, através da correlação entre as leituras do Antigo
e do Novo Testamento, centrada em Cristo e no seu mistério
pascal? (Exortação Apostólica Verbum Domini (2010), n. 57). À
partir dos textos de hoje, orientar os fieis a esta leitura uni-
tária da Sagrada Escritura, iluminada pela centralidade de
Cristo e capaz de iluminar o caminho pessoal de cada um, no
momento presente de sua vida.
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

à Seguindo o “espírito de alegria”, que caracteriza de maneira


especial este quarto domingo e seu nome (“Laetare - Alegra-
-te”), se procure oferecer aos fiéis que chegam para participar
da celebração uma acolhida simples e cordial, como convém
quando se é acolhido na casa do Pai.

O uso de acender velas em várias circunstâncias da vida reli-


giosa e familiar, em sinal de honra e de festa, é muito difun-
dido no povo. Tendo como referência o evangelho de hoje e
sua conexão com a Vigília Pascal, se procure evidenciar, com
apropriada catequese, a conexão entre o acender as velas e a
Páscoa e o Batismo, destacando a relação com Cristo, luz da
vida, e a vocação dos cristãos a tornarem-se luz na sociedade,
pelo próprio testemunho de fé.

Durante a Quaresma, se pode valorizar as etapas de aproxi-


mação ao Batismo, indicadas pelo Rito do Batismo do Adul-
tos (RICA), como etapas de todo caminho espiritual a ser
renovado também pelos fiéis. De tal modo, a renovação das
promessas do Batismo, feita na noite de Páscoa, exprimirá o
alcance de uma verdadeira meta.

Sugerir aos fieis que rezem, com confiança e perseverança,


o Salmo 22, como oração muito apropriada nos momentos
de provação. Iempo muito propício para este diálogo íntimo
com o Senhor pode ser a oração da noite, na conclusão do dia,
remetendo tudo, alegrias e sofrimentos, às mãos do Senhor,
como crianças por ele amadas.

Os cantos para as celebrações quaresmais podem ser encon-


trados no CD da Campanha da Fraternidade 2014: Hino da CF
2014 e Cantos para a Quaresma Ano À.
5º DOMINGO DA QUARESMA

6 de abril de 2014

EU SOU A RESSURREIÇÃO E A VIDA

Leituras: Ez 37,12-14; Sl 129 (130); Rm 8,8-11; Jo 11-45

Situando-nos brevemente
“Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem
Páscoa”, constata o Papa Francisco, olhando para a situação de
desânimo que, na Igreja, está invadindo a alma de certas pessoas
(Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 24 de novembro de 2013; n. 6).
Em verdade, deveria acontecer o contrário, pois “a alegria do
evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encon-
tram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados
do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus
Cristo, renasce sem cessar a alegria” (ibidem n. 1).
O Papa Francisco nos convida a abrirmos nossos corações e nos-
sos olhos para a liberdade e a alegria que vêm de Cristo e nos enchem
de nova energia para enfrentarmos, com confiança, os desafios de
nosso tempo.
À aventura de nossa vida de crentes, de fato, continua se des-
dobrando entre a possibilidade de viver com a energia vital da res-
surreição de Jesus que nos habita, pelo dom do Espírito Santo, e a
tentação de recuar para uma “Quaresma sem Páscoa”, para uma vida
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sem esperança, prisioneiros dos erros, das fatigas, das decepções.


O encontro ou o reencontro com Jesus, favorecido pela Qua-
resma, tem, porém, a potencialidade de uma renovação radical, de
uma nova Páscoa: “Com Jesus Cristo, nasce sem cessar a alegria
4 «« . +»

(ibidem, 1).
n Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

Esta é a experiência pessoal de Lázaro e a de suas irmãs, Marta


e Maria, testemunhas surpreendidas e agradecidas do que é humana-
mente impossível: viver em primeira pessoa e testemunhar a ressurrei-
ção da morte. Para cada homem e mulher, marcado pela fragilidade
humana, Jesus vai repetir seu potente grito: “Lázaro, vem para fora!”
(Jo 11, 43). Ele está pronto a estender sua mão de amigo para nos liber-
tar do túmulo do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento.
Na regra para os monges, São Bento resume esta constante ten-
são interior da vida cristã numa formulação muito eficaz: “durante
a Quaresma (...) ofereça cada um a Deus, de espontânea vontade,
com a alegria do Espírito Santo, alguma coisa (...) e, na alegria do
desejo animado pelo mesmo Espírito, espere a santa Páscoa” (Regra
Beneditina 49, 6-7).
O encontro com Cristo abre a nascente da água viva que fica
escondida no poço do coração, sob os escombros de nossas contra-
dições e insucessos (encontro com a samaritana — 3º domingo); ilu-
mina com a luz interior do Espírito o horizonte indecifrável da vida
(cura do cego de nascença — 4º domingo). Jesus vem ao nosso encon-
tro, penetrando até as trevas mais obscuras da existência, quando
estamos sepultados no túmulo das amarguras e do isolamento. Ele
reativa as energias de uma vida nova e da esperança (ressurreição de
Lázaro — 5º domingo).
Tendo experimentado primeiro a graça e a força da ressurreição,
e aprendendo a pensar e atuar desde já como “partícipes da ressur-
reição de Cristo” (cf. Cl 3,1-3), sentimos a urgência interior, e não
somente o convide, a nos tornarmos testemunhas da Boa Nova do
amor fiel de Deus, semeadores de novas páscoas.
Que o mundo atual, que procura, ora na angústia ora com espe-
rança, possa receber a Boa Nova dos lábios não de evangelizadores
tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas de ministros
do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram os que receberam
primeiro em si a alegria de Cristo (cf. Evangelii Gaudium, n. 11).
A caminho na luz de Cristo

O ano 2014 está marcado pela convocação do Sínodo Extraor-


dinário dedicado à família e a suas problemáticas sociais e pastorais,
que será celebrado no mês de outubro.

Com tal iniciativa, a Igreja quer mergulhar nas feridas das famí-
lias, com o intuito de tocar, ao vivo, a dor e as esperanças que acom-
panham seu caminho e também deixar-se tocar; partilhar as duras
quaresmas das pessoas para oferecer a esperança da ressurreição,
anunciando o evangelho da Páscoa de Jesus, com a atitude de sua
misericórdia e de sua compaixão.

Chama nossa atenção também o método, novo e especial, com


que está sendo preparada a assembleia dos bispos. O Papa quis fazer
apelo a todas as comunidades e pessoas do povo de Deus, para que,
com os próprios testemunhos, sugestões, orações, elas contribuam
com este caminho de Quaresma - Páscoa, que perpassa a vida coti-
diana das pessoas. Que os sepulcros das relações feridas e aparen-
temente mortas possam abrir-se de novo para uma nova vida. Que
lágrimas sejam enxugadas, cantos de esperança possam ressoar nova-
mente pela graça do Senhor, experimentada no cuidado misericor-
dioso da Igreja, como ressoaram na casa de Lázaro, Maria e Marta.

Recordando a palavra
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha
morrido, viverá (...) Crês nisto? Ela respondeu: “Sim, Senhor, eu creio
firmemente que tu és o Cristo, o filho de Deus, aquele que deve vir
ao mundo” (Jo 11, 27).
À narração da morte e ressurreição de Lázaro converge, como
a seu cume, para esta suprema autorrevelação de Jesus e a sublime
confissão de fé de Marta. Jesus revela a si mesmo como fonte de vida
nova e plena, e promete que a experimentarão, em si mesmos, os
que acreditarem nele, mediante o dom do Espírito. Marta, passando
através do longo caminho da amizade com Jesus, pela dor, provo-
cada pela morte do irmão, e pelo aparente descuido de Jesus, que não
q Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

acorre logo ao pedido das irmãs, chega a reconhecer e a confessar


Jesus como o enviado de Deus.
Os tempos e as modalidades em que Deus atua na vida, assim
como nos acontecimentos, nas pessoas, nas famílias, nas comunida-
des eclesiais, na história, permanecem para nós envoltos no misté-
rio. Estão como que subtraídos aos nossos cálculos humanos. Deus,
porém, está ali, cuidando de cada um, como pai solícito e fiel.
Jesus nos desvenda o sentido secreto do projeto de Deus. Descon-
certando os presentes, declara abertamente que Lázaro está morto. À
morte do amigo, no entanto, é uma oportunidade para manifestar a
potência de Deus, glorificar o Filho e despertar a fé dos discípulos.
“Esta doença não leva à morte, mas é para a glória de Deus, para
que o Filho de Deus seja glorificado por ela” (11,4). “Lázaro morreu!
E, por causa de vós, eu me alegro por não ter estado lá, pois assim
podereis crer” (11,15).
O profeta Ezequiel, na primeira leitura, deixa vislumbrar que o
processo de ressurreição, atuando no presente, por impulso do Espírito
de Deus, não somente toca os indivíduos, mas atinge todo o povo e sua
triste história, destinada a uma luminosa renovação. O povo de Israel
está sepultado como morto na experiência do exílio, desarraigado de
sua terra, despojado de sua cultura e de sua liberdade civil e religiosa,
oprimido pela convicção de estar sofrendo pela punição do Senhor,
motivada por ter abandonado a aliança. O profeta anuncia que, além
de toda expectativa razoável, o Senhor vai tirá-lo da trágica situação
histórica, dando-lhe uma nova, inesperada oportunidade de vida.
À volta para a terra dos pais, a recuperação da liberdade política
e a restauração do culto no templo reconstruído são acompanhados
por uma ressurreição ainda mais radical: a renovação interior, reali-
zada pela efusão do Espírito na consciência deles. “Ó meu povo, vou
abrir vossas sepulturas! (...) e vos conduzirei para a terra de Israel (...)
Quando incutir em vós o meu espírito, para que revivais (...) sabereis
que eu, o Senhor, digo e faço” (Ez 37, 12-14).
A caminho na luz de Cristo RB

Esta fé e esta experiência nos fazem cantar com o salmista: “Do


abismo profundo clamo a ti, Senhor, escuta minha voz! Que teus
ouvidos estejam bem atentos à voz da minha súplica (...) Espero no
Senhor, minha alma espera na sua palavra. À minha alma aguarda o
Senhor mais que as sentinelas a aurora” (salmo responsorial — 51 129).
O Espírito é o novo impulso vital que impele os discípulos de
Jesus a viverem, de fato, como já partícipes da energia divina da sua
ressurreição. Flomens e mulheres, embora atravessados ainda pelas
dores do parto da nova criação, são animados pela esperança de seu
cumprimento e, na totalidade da sua experiência humana, aqui indi-
cada com o termo “corpo”, guardam já o fermento da ressurreição
futura e definitiva.
Quem fica atuando assim vive segundo o Espírito do Senhor
ressuscitado. O Espírito habita nele e lhe faz experimentar uma
profunda relação pessoal com Cristo, superando o “impulso ins-
no . «o .

tintivo” a afirmar a si mesmo, o qual o apóstolo chama de “carne”


(cf. 22 leitura, Rm 8,9).

Atualizando a Palavra
Na atitude de Jesus para com Marta e Maria, e na pedagogia que ele
usa com os discípulos e com o povo, somos convidados a reconhecer
a constante pedagogia com a qual Deus acompanha o caminho
pessoal de cada um, e o orienta para crescer na fé e na liberdade do
amor. “Senhor, se tivesses estado aqui...” Quantas de nossas leituras
apressadas dos acontecimentos se refletem nestas palavras de Marta
e de Maria! (cf. 11,32). Quantas de nossas queixas apaixonadas e
doloridas elas interpretam!
O “silêncio” de Deus, frente às injustiças, aos mal-entendidos,
aos perigos extremos, continua fazendo parte do drama e das espe-
ranças do homem e da mulher de todos os tempos. Razão de escân-
dalo e de possível ressurreição, de rebelião e de passagem do nível
humano ao da misteriosa sabedoria de Deus.
po Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

É preciso lembrar que a narração da morte e da ressurreição de


Lázaro introduz, diretamente, na narração da paixão, morte e res-
surreição de Jesus. O próprio Jesus vive o grande silêncio de Deus
no horto das oliveiras e na cruz. Ele encontrará resposta somente
na misteriosa remoção da pedra do sepulcro, no terceiro dia. Nas
últimas palavras de entrega confiante ao Pai, pronunciadas na cruz,
ele abraça todos nós, e nos entrega à espera da ressurreição junto com
ele: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).
No dia do Sábado Santo, a Igreja celebra somente a Liturgia das
Horas, jejuando, rezando e meditando em silêncio. É o dia consa-
grado à meditação silenciosa do mistério de Jesus “descido à man-
são dos mortos”, extremo limite da experiência humana da morte.
Somente na solene vigília da noite, chegaremos a cantar, com reno-
vada fé e alegria, que Jesus venceu a morte e renovou a vida: junto
com ele, também em nós a sua vida vence nossa morte! Agora vence
a morte do coração, depois até a morte do nosso corpo!
Ao ver chorar a amiga Maria, Jesus estremece interiormente,
fica profundamente comovido e chora (11,33-34.38). Que estupor
e que consolo suscita este Jesus! Ele é o Verbo de Deus que habita
na luz inacessível do Pai e, ao mesmo tempo, se torna tão próximo a
todas as nossas paixões, sofrimentos e alegrias!
O Papa Francisco nos estimula, sem cessar, a nos deixarmos
envolver por essas atitudes de misericórdia, compaixão e solidariedade
de Jesus para com os mais pobres e necessitados, e a assumi-las como
estilo de vida pessoal, sobretudo por parte dos ministros do evangelho.
Jesus deixa transformar sua compaixão e seu pranto, e o das ami-
gas Marta e Maria, num grito de amor que chama os mortos para
reviverem. “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11,43). Ele fica repetindo seu
grito animador para cada pessoa. Nosso nome está em seu coração e
vibra em seu grito silencioso.

O encontro com Jesus faz da “ressurreição” uma experiência que


anima já o presente dos que acreditam nele. Experiência que ressoa, na
A caminho na luz de Cristo R

voz da Igreja, como canto cheio de esperança: “Nele brilhou para nós
a esperança da feliz ressurreição... Senhor, para os que creem em vós, a
vida não é tirada, mas transformada” (Prefácio 1 da missa dos defuntos).
“Desamarrai-o e deixai-o ir” (11,44). Esta é a missão fundamen-
tal que Jesus entrega a seus discípulos de todos os tempos. Partilhar
com Jesus a missão de desamarrar as pessoas dos empecilhos que as
impedem de viver e caminhar com as próprias pernas, na dignidade
e na liberdade autêntica dos filhos e filhas de Deus. Libertar das
correntes do pecado e das injustiças, mesmo quando elas estão escon-
didas sob o manto das observâncias religiosas. Libertar dos pesadelos
impostos pelos homens, que escravizam ao invés de transmitir a ener-
gia libertadora da Palavra do Senhor. Jesus foi terrivelmente crítico
com os falsos religiosos de todos os tempos (cf. Mt 23,4), que põem
fardos inúteis e pesados sobre os ombros das pessoas, enquanto, pelo
contrário, seu jugo é leve e fonte de felicidade (cf. Mt 11, 29-30).
O Papa Francisco não se cansa de repetir que a Igreja tem neces-
sidade de voltar ao essencial do evangelho, em sua vida e em seu ser-
viço de animação espiritual do povo. Não serve transmitir um acervo
de doutrinas desligadas entre si, que não tocam o coração. É preciso
anunciar e fazer experimentar a alegria da ressurreição: “A ressurreição
de Jesus não é algo do passado; contém uma força de vida que penetrou
o mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o
lado os rebentos da ressurreição. É uma força sem igual (...) Cada dia,
no mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada através dos
dramas da história. Esta é a força da ressurreição, e cada evangelizador
é um instrumento deste dinamismo” (Evangelii Gaudium, n. 276).

Ligando a Palavra com a ação eucarística


Com bela e significativa expressão, os Padres da Igreja chamavam
a Eucaristia de “remédio que produz a imortalidade”, pois ela nos
faz participar da experiência atualizada da morte e da ressur-
reição de Jesus, como proclamamos na grande oração eucarística:
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

“Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressur-


reição. Vinde, Senhor, Jesus!”
Conscientes de que, se não nos alimentarmos do pão da vida, não
conseguiremos sustentar o caminho da fé, com imensa gratidão, acolhe-
mos o convite de Jesus a participar da mesa da Palavra e da Eucaristia.
Sendo peregrinos rumo à casa do Pai, a Igreja tem um especial
cuidado maternal pelos filhos que mais se aproximam da meta do
caminho, e oferece a eles o corpo vivo de Cristo como “pão de via-
gem” para a vida eterna. Por isso, a Eucaristia dada aos que estão gra-
vemente doentes se chama de “viático”. O exercício deste ministério,
nas casas particulares e nos hospitais, constitui um grande exercício
de caridade e um grande anúncio da páscoa do Senhor para os enfer-
mos e para os familiares.
Na Eucaristia, celebramos também, a cada vez, a memória dos
irmãos e das irmãs que nos precederam na casa do Pai: os santos e
os defuntos. Nesta memória sagrada, proclamamos que a páscoa de
Jesus é a única fonte de vida para todos os membros do único povo
de Deus, tanto os que ainda estão peregrinando na fé, como os que
já vivem na glória do Pai.
À consciência da força da ressurreição nos impele a abrir as por-
tas da vida às surpresas de Deus e ao “futuro e ao amanhã” de Deus.
Muitas vezes, ao invés, submetidos mais à mentalidade mundana que
aos critérios do evangelho, fracos na fé e na esperança, ficamos pri-
sioneiros do que achamos importante no “hoje, no aqui, e no agora”.
“A Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai (...) Mas há
outras portas que também não se devem fechar: todos podem parti-
cipar de alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da
comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam
fechar por uma razão qualquer (...). A Eucaristia, embora constitua
a plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos,
mas um remédio generoso e um alimento para os fracos. Estas con-
vicções têm também consequências pastorais, que somos chamados
a considerar com prudência e audácia.” (Evangelii Gaudium, n. 47).
A caminho na luz de Cristo

Como nos interpelam estas palavras ardentes de caridade do


Papa Francisco?

Sugestões para a celebração


à Seria conveniente celebrar de maneira comunitária, durante
a semana, no horário mais conveniente, a Unção dos Enfer-
mos, convidando as pessoas que, por motivos de saúde ou de
idade, se encontram em situação de particular fragilidade,
como sugere o Rito da Unção dos Enfermos. Colocada no
contexto deste domingo, marcado pela ressurreição de Lázaro
e pelo consolo suscitado em Maria e Marta pelo gesto potente
de Jesus, e situada na perspectiva da Páscoa já próxima, tal
celebração pode assumir o caráter de uma grande profissão
de fé na ressurreição, enquanto suscita o consolo da esperança
cristã, diante da dor e da morte.

à Onde houver o costume, e se for oportuno, o presbítero, nesta


semana, poderia celebrar a missa na casa de um ou de outro
doente mais grave ou impedido, por longo tempo, de partici-
par da Eucaristia da comunidade. À celebração da missa pode
ser precedida pela confissão sacramental e pela Unção dos
Enfermos ao paciente.

À Uma conveniente catequese deveria ajudar a iluminar os fiéis


sobre o dogma da “ressurreição da carne”, que professamos
a cada domingo no “Creio”. Não somente como algo que nos
atingirá ao fim dos tempos, mas também como participa-
ção cotidiana na ressurreição de Jesus, mediante a morte ao
pecado e a tudo o que nos impede de viver como filhos e filhas
de Deus, e na abertura ao amor e à verdadeira liberdade inte-
rior. Aprender a reconhecer as experiências de ressurreição,
vivenciadas ao superar situações particularmente difíceis, e a
agradecer ao Senhor.
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A — São Mateus

k A mentalidade secularizada, presente em todo ambiente, tende


a esconder de qualquer maneira a morte. Promove modelos
de vida centrados na beleza do corpo, na juventude sem fim,
nas aparências, afastando da própria vista pessoas com defi-
ciências físicas e idosas, mesmo quando membros da própria
família. Até o tornar-se doente faz envergonhar-se. Na luz da
profunda compaixão de Jesus com toda a forma de deficiência
física e espiritual e olhando para sua comovida participação na
perda do amigo Lázaro, ajudar a resgatar a enfermidade, a dor
e a morte, na luz da morte e da ressurreição do próprio Jesus.

Cuidar que a celebração dos funerais, quer durante o veló-


rio, quer na missa presente o defunto, ou na do 7º dia, não
seja reduzida a um evento de conveniência social, mas opor-
tunidade de experiência de encontro dos participantes com o
Senhor ressuscitado. Com tal finalidade, é muito importante
que a comunidade expresse aos familiares e aos presentes a
própria proximidade, como sinal de consolo e de esperança.

Os cantos para as celebrações quaresmais podem ser encon-


trados no CD da Campanha da Fraternidade 2014: Hino da CF
2014 e Cantos para a Quaresma Ano À.
DOMINGO DE RAMOS
E DA PAIXÃO DO SENHOR

13 de abril de 2014

BENDITO O QUE VEM EM NOME DO SENHOR!

Leituras: Mt 21,1-11; Is 50,4-7; FI 2.6-11; Mt 26,14-27,66

Situando-nos
“Na hora conveniente, reúne-se a assembleia num lugar apropriado fora
da igreja, trazendo os fiéis ramos nas mãos. O celebrante abençoa os ramos.
É proclamado o evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém. Precedida
pela cruz, a assembleia se dirige em procissão, cantando salmos e hinos de
louvor a Cristo-Rei, para a igreja na qual se celebra a Eucaristia” (cf.
Missal Romano-Domingo de Ramos da Paixão do Senhor - p. 220).
Gesto simples. Aparentemente óbvio e previsto nas normas do
missal para organizar a celebração do Domingo de Ramos e da Paixão
do Senhor. Na realidade, com a linguagem simbólica própria da litur-
gia, este rito nos introduz, de maneira espontânea, no Mistério Pascal
de Cristo, e nos faz vislumbrar nossa participação vital no mesmo. O
rito, abrindo a celebração do Domingo de Ramos e de toda a Semana
Santa da Páscoa, marca, de fato, seu movimento interior.
Bento XVI destacou a importância de participar, de maneira
consciente e ativa, da celebração da liturgia, deixando-nos envolver
pela linguagem simbólica dos ritos: “Importante para uma correta arte da
celebração é a atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia:
palavras e canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores litúrgicas dos
paramentos. Com efeito, a hturgia, por sua natureza, possui uma tal varie-
dade e níveis de comunicação que lhe permite cativar o ser humano na sua
totalidade” (exortação apostólica Sacramentum Caritatis, n. 40 [2007]).
Roteiros Homiléticos cla Quaresma - Ano A - São Mateus

Esta chamada da atenção de Bento XVI, vale, de modo par-


ticular, para promover a autêntica participação nas celebrações da
Semana Santa, tão ricas de ritos, profundamente enraizados na cons-
ciência do povo, e de sua religiosidade tradicional.
Ão se reunir, a assembleia, como primeiro ato, proclama e escuta
o evangelho da entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, cumpri-
mento da aliança de Deus com seu povo, segundo as profecias dos
profetas de Israel. Em resposta, o povo se põe a caminho, seguindo a
cruz do Senhor. Continuará seguindo Jesus em seu caminho pascal,
através de cinco significativos movimentos, ao longo das celebrações
da Semana Santa, tendo seu olhar fixo “em Jesus, que vai à frente da
nossa fé e a leva à perfeição. Em vista da alegria que o esperava, suportou
a cruz, não se importando com a infâmia, e assentou-se à direita do trono
de Deus” (Hb 12,2). Os cinco movimentos quase marcam as etapas
de todo caminho de fé, que encontra seu modelo no itinerário pascal.
O primeiro movimento é a procissão dos ramos atrás da cruz do
Senhor: em Jesus crucificado a assembleia reconhece e proclama o
vencedor da morte e o guia do seu caminho.
O segundo acontece na Sexta-feira santa, quando, ao celebrar a Pai-
xão do Senhor, a assembleia desfila em procissão para honrar e beijar,
com devoção e amor, a cruz que está elevada diante de si: a cruz é trans-
formada de patíbulo em árvore da vida e trono da glória de Cristo.
O terceiro movimento anima o início da solene Vigília Pascal. A
assembleia se põe a caminho atrás do Círio Pascal, única luz nas trevas
da noite e, ao acender as próprias velas no mesmo círio, se deixa ilu-
minar pela luz de Cristo ressuscitado. É na luz de Cristo que os fiéis
aprendem a enfrentar os desafios da vida e por ela se deixam guiar.
O quarto movimento acontece no cume da Vigília Pascal, quando
a assembleia, cheia de alegria e agradecimento, vai se aproximando da
mesa do Senhor, juntamente com os neobatizados, que, pela primeira
vez, vão receber o corpo e o sangue do Senhor.
Inseridos como membros vivos do mesmo corpo, que é a Igreja,
visível na assembleia celebrante, todos recebem o convite solene e
A caminho na luz de Cristo n

cheio de alegria do diácono, para sair da celebração, retornando como


portadores da luz e da paz de Cristo (quinto movimento), em direção
aquela mesma realidade ambígua do mundo, da qual saíram no iní-
cio, para mergulhar na Páscoa transformadora de Jesus. O movi-
mento interior de adesão a Cristo, iniciado no Domingo de Ramos e
alimentado pelas várias passagens rituais, dá lugar ao movimento da
vida animada pelo Espírito.
Ássim, o primeiro gesto ritual com o qual, no Domingo de
Ramos, o povo de Deus se reúne para iniciar a celebração da Páscoa
do Senhor, exprime, em síntese, a totalidade do Mistério Pascal de Cristo
eo profundo envolvimento nele, na fé e no amor, de cada pessoa e da
Igreja inteira. Desde sempre a Igreja é o povo de Deus a caminho,
impelido pelo Espírito, em movimento através das vicissitudes da
história, rumo à plenitude do reino de Deus.
Toda comunidade que celebra com fé a Páscoa do Senhor, da
catedral à mais simples capelinha da periferia das grandes cidades, e
até à comunidade ribeirinha da Amazônia, vive seu momento forte
e profético de povo de Deus a caminho, gerado de maneira sempre
nova pela Páscoa de Jesus.

Recordando a Palavra
Às primeiras comunidades cristãs de Jerusalém, movidas pela devoção
e pelo desejo de partilhar de perto, com amor, os passos de Jesus no
seu caminho de paixão e de glorificação, organizaram, sobretudo a
partir do século IV;! celebrações especiais em cada lugar onde Jesus
tinha vivido seus últimos dias de presença física no meio dos seus
discípulos, dias tão decisivos no plano de Deus e para a nossa salvação:
da entrada de Jesus em Jerusalém e da última ceia no cenáculo à paixão
no horto das oliveiras; da morte no Calvário à sepultura e ressurreição
no jardim, até a ascensão na colina perto de Jerusalém.

1 Vale a pena a leitura do texto da peregrina Etéria que, ao visitar os lugares santos, nos legou,
em seus diários, um quadro sobre a liturgia hirosolimitana do século IV, BECKHAUSER, A.
Peregrinação de Etéria: Liturgia e Catequese em Jerusalém no século IV. Petrópolis: Vozes, s.d.
no Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A — São Mateus

Às celebrações da Semana Santa, porém, não são somente como-


vidas maneiras de pôr em cena os trágicos eventos dos últimos dias
de Jesus em Jerusalém. Elas nos proporcionam a graça de nos mer-
gulhar, com fé, em sua relação de amor com o Pai e conosco, o que
nos transforma e salva.
À palavra proclamada e acolhida com fé não fala ao passado, não
lembra histórias de outrora, ela continua a se realizar em cada um de
nós pela potência do Espírito.
“Bendito o que vem em nome do Senhor!”. Com esse refrão acom-
panhamos a procissão até a porta da igreja. À entrada messiânica
de Jesus em Jerusalém, no júbilo e na alegria (evangelho que precede
a procissão, Mt 21,1-11), é inseparável da proclamação da sua Pai-
xão, centro da liturgia eucarística deste domingo (evangelho da missa,
Mt 26,14-27,66). À leitura do profeta Isaías, que delineia a figura e
a missão do Servo do Senhor sofredor, salvado por Deus e por ele
escolhido a tornar-se Salvador não somente de Israel, mas de todos
os povos (1º leitura - Is 50,4-7), destaca a mesma intrínseca conexão
entre sofrimento e salvação.
Paulo proclama a mesma mensagem, ao apresentar Cristo como
modelo inspirador da nova maneira de viver na comunidade dos dis-
cípulos. A comunidade dos filipenses, ainda nova na experiência da
fé, vive uma situação de competição e de conflitos entre seus mem-
bros. Paulo oferece a eles a única saída, coerente com o evangelho
que receberam e que os fez crescer como comunidade de irmãos e
irmãs. Paulo os convida a voltar às origens, à nascente da vida cristã:
é a relação estabelecida com Jesus no Batismo e seu exemplo. Jesus, o
Verbo de Deus, despiu-se voluntariamente de sua dignidade divina,
para assumir nossa condição humana de extrema humilhação até a
morte de cruz, a morte reservada para os escravos, aos quais a socie-
dade e a lei não reconheciam a dignidade de pessoa humana. Pelo
paradoxo do amor do Pai, porém, em razão desta humilhação ele
foi glorificado pelo Pai e constituído Senhor e Salvador de todos
(22 leitura - Fl 2,6-11).
A caminho na luz de Cristo

À lógica da Páscoa se torna o sangue divino que corre nas veias


do corpo da comunidade, irrigando-a com sua vida. Esta reviravolta
nas atitudes interiores e no estilo das relações recíprocas, passando
da competição à solidariedade, não é fruto do empenho ético do
homem, mas da graça de Deus que orienta em nós a vontade e os
comportamentos (cf. F1 2,13).
Aqui emerge a graça da Páscoa que nos renova interiormente e
nos impele a atuar de maneira coerente com o mistério que estamos
celebrando. Nisto consiste a verdadeira “participação ativa, cons-
ciente, plena e frutuosa”, à qual temos direto e possibilidade, graças
ao nosso Batismo, e que é favorecida pela estrutura ritual das cele-
brações, renovada pelo Concílio Vaticano II (cf. Cont. Sacrosanctum
Concilium, n. 14).

Atualizando a Palavra
À força narrativa dos acontecimentos da paixão, morte e ressurreição
de Jesus, proclamados nas leituras bíblicas, e o intenso envolvimento
emocional que as celebrações destes dias conseguem realizar, mesmo
em pessoas que raramente participam das liturgias, não devem
nos fazer esquecer seu profundo sentido espiritual e a exigência de
participar das celebrações com intensidade de fé e de amor ao Senhor.
Na celebração litúrgica da Igreja, se torna presente e atuante,
pela ação permanente de Cristo e do seu Espírito, o amor infinito do
Pai, manifestado no amor sacrifical de Jesus até a morte, e se renova
o dom da vida divina que nos faz viver como filhos e filhas do Pai e
irmãos uns dos outros.

Os emocionantes ritos destes dias vão muito além de uma devota


reconstrução cênica da morte e ressurreição de Jesus como aconte-
cimentos do passado. Eles nos proporcionam o encontro vivo com
o Cristo vivente. Doam-nos a energia transformadora de seu amor,
fazendo-nos viver, desde agora, de antemão, as primícias de sua ple-
nitude na relação filial com o Pai e na relação fraternal entre nós.
Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

Tendo presente esta perspectiva sacramental das celebrações, é


possível e muito oportuno valorizar, de maneira fecunda, a grande
riqueza de expressões da religiosidade popular, que foi muito criativa
na capacidade de fazer reviver os acontecimentos pascais, na dimen-
são trágica e na de alegria jubilosa que os caracterizam.

No âmbito pastoral, tendo em consideração a possibilidade con-


creta que a maioria do povo tem de participar das celebrações da
Semana Santa, o Domingo dos Ramos constitui, de fato, a conclusão
da Quaresma e o início da semana pascal decisiva. Seria por isso
conveniente coligar a experiência do Domingo dos Ramos - celebra-
ção da realeza messiânica de Jesus na humildade e no despojamento
da cruz, e o chamado dos discípulos a segui-lo no mesmo caminho
- com o caminho espiritual de toda a Quaresma. Jesus nos precede
e abre a estrada da obediência e da fidelidade ao Pai: do combate
vitorioso com o demônio no deserto até a experiência da ressurrei-
ção, vislumbrada na ressurreição de Lázaro e realizada plenamente
na ressurreição do próprio Jesus que será celebrada no dia da Páscoa.
Fazer seus os sentimentos de Cristo, como Paulo pede aos fili-
penses, para viver a páscoa de Jesus, superando os impulsos do ego-
ísmo e da cobiça, exige que aprendamos a nos “despojar do homem
velho e a nos revestir de Cristo ou do homem novo”, como o próprio
Paulo vai repetindo em suas cartas.
E assim que a narração da Páscoa de Jesus se torna nossa própria
experiência, nossa páscoa. À Palavra de Deus continua a “fazer-se
carne” na nossa carne, isso é na nossa vida.
Deixamo-nos guiar, por este apaixonado caminho rumo às
entranhas do Senhor, por alguém que viveu profundamente esta
experiência. “Onde podemos encontrar repouso tranquilo e firme segu-
rança para a nossa fraqueza, a não ser nas chagas do Salvador? ... Na ver-
dade vou buscar confiantemente o que me falta nas entranhas do Senhor,
tão cheias de misericórdia que não lhe faltam fendas por onde se derrame.
Perfuraram suas mãos e seus pés e transpassaram seu lado com a lança; por
A caminho na luz de Cristo

essas fendas é-me permitido... provar e ver quão suave é o Senhor... Mas
o cravo penetrante tornou-se para mim a chave que abre para que eu veja
a vontade do Senhor. Clama o cravo, clama a chaga que verdadeiramente
Deus está em Cristo, nele reconcihando o mundo” (São Bernardo, Sermão
61,3-5 sobre o Cântico dos Cânticos, LH Monástica, 2º semana da Qua-
resma, quarta-feira).

Ligando a Palavra com a ação eucarística


Durante os dias da Quaresma- Páscoa, o estilo, poderíamos dizer
a arte, com que a liturgia costuma celebrar o mistério de Cristo, se
exprime em toda a riqueza de sua linguagem, - com palavras, gestos,
cantos, silêncios, — e nos envolve de maneira fascinante no mistério
que estamos celebrando.
Cristo continua sendo o protagonista de toda a ação litúrgica da
Igreja com seu Espírito. Isto aparece, de maneira ainda mais mar-
cada, nas celebrações desta semana central do ano litúrgico, que
chamamos de “Santa”, pois nela se concentram os eventos decisivos
de sua vida, de sua morte e de sua ressurreição com o envio de seu
Espírito, eventos que nos tornam partícipes da vida e da santidade
de Deus. Convidam-nos a nos deixar envolver plenamente no dina-
mismo pascal de morte ao homem velho para a vida nova no Espírito.
À páscoa de Jesus realiza a passagem de um mundo para outro.
Como canta o Prefácio I deste domingo: “Pelo poder radiante da cruz,
vemos com clareza o julgamento do mundo e a vitória de Jesus crucificado”
(Missal Romano, p. 419).
A renovação
ção q que contemplamos
Pp realizada em Cristo, » P pedimos
possa tornar-se também experiência de graça para nós: “Concedei-
-nos aprender o ensinamento da sua paixão e ressuscitar com ele na
sua glória” (oração do dia). Não podemos esquecer que somos povo
de Deus a caminho, » “povo
P santo e p pecador, ) dai-nos forças
ças Pp para
construirmos juntos o vosso reino de Deus que também é nosso”
(Oração Eucarística V).
R Roteiros Homiléticos da Quaresma — Ano A - São Mateus

Ão canto jubiloso do salmo cantado pela assembleia em procis-


são - “Levantai, ó portas, os vossos frontões, erguei-vos, portas antigas,
para que entre o rei da glória” (91 23,9 — Processional) - faz eco ao grito
sofrido e confiante de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que
me abandonaste? (...) Mas tu, Senhor, não fiques longe, minha força, vem
logo em meu socorro”” (5121, 1. 20 - Responsorial).
O canto do Hosana, de glória e louvor a Cristo, rei e reden-
tor, durante a jubilosa procissão, se entrelaça com a sóbria meditação
sobre o extremo exemplo de humildade dado por Cristo ao se tornar
homem e morrer na cruz. Foi o caminho pascal de Cristo. É o cami-
nho da Igreja, seu corpo e sua esposa amada. É o caminho de fé e de
amor de todo discípulo e discípula, através de sua adesão a Cristo. É
o seguindo que nos é dado penetrar, junto com ele, na intimidade do
coração do Pai, como ressalta Mateus, ao comentar a morte de Jesus
como início do novo mundo: “Nisso, o véu do Santuário rasgou-se de
alto a baixo, em duas partes, a terra tremeu e as pedras se partiram”
(Mt 27,51).
Com a páscoa de Jesus, caem definitivamente todas as barreiras
que nos separavam de Deus. As estruturas sagradas, como o templo
de Jerusalém, e todas as estruturas religiosas humanas deram lugar
ao templo vivente, que é o próprio Cristo, morto e ressuscitado, e à
vida de cada um de nós por nossa união com Ele.
Nossa vida unida a Cristo é a verdadeira oferta que hoje é colo-
cada sobre o altar, junto com o pão e o vinho, para que não somente
o que está contido na patena e no cálice, mas toda a vida, e até a cria-
ção, seja oferecida ao Senhor e transformada no culto espiritual agra-
dável ao Pai, como invocamos ao celebrarmos a Eucaristia: “Olhai
com bondade, o sacrifício que destes à vossa Igreja e concedei aos
que vamos participar do mesmo pão e do mesmo cálice que, reuni-
dos pelo Espírito Santo num só corpo, nos tornemos em Cristo um
sacrifício vivo para o louvor da vossa glória” (Oração Eucarística IV)
A caminho na luz de Cristo

Sugestões para a celebração


à À assembleia hoje vai se compor em lugar aberto, estabelecido
como ponto de partida da procissão. O sentido de alegria e de
esperança faz parte da celebração deste domingo, mas não é
um passeio religioso qualquer pelas ruas da cidade. A bênção
dos ramos e a procissão fazem parte da celebração da entrada
de Jesus em Jerusalém como Messias, humilde e pronto a dar
sua vida, e destacam o chamado de todos a segui-lo no mesmo
caminho. Por isso, enquanto se vai compondo a assembleia, se
favoreça um clima de recolhimento, para entrar no mistério
celebrado.

à À equipe de liturgia prepare, com tempo e com particular cui-


dado, antes de tudo os próprios membros, - no contexto espi-
ritual e no contexto ritual - para participarem, com atenção
interior, do desenvolvimento das numerosas tarefas em que
precisam atuar na celebração de hoje e nas de toda a Semana
Santa. Muitas vezes, acontece que, pela preocupação de orga-
nizar e executar os ritos inusitados destes dias e orientar a
assembleia, os membros da equipe não conseguem participar
com as devidas serenidade e concentração interior.

à À equipe prepare também tudo o que serve para a procissão: os


ramos, segundo a disponibilidade do lugar, a cruz processio-
nal, a água benta, etc. À proclamação do evangelho seja feita
com toda dignidade. Se escolha a maneira mais conveniente
para distribuir aos fiéis os ramos, para levá-los na procissão e
à própria casa, lembrando seu significado de sinal da vitória de
Cristo sobre a morte e de nossa união com ele.

à O relato da Paixão ocupa o centro da celebração da Palavra. À


complexidade e a prolixidade do texto pedem que seja bem pre-
parada sua proclamação e fazê-la, preferivelmente, de forma
dialogada entre os vários personagens, como está marcado no
Roteiros Homiléticos da Quaresma - Ano A - São Mateus

Lecionário. Para tal fim os leitores devem ser escolhidos com


atenção. Eles devem ensaiar, em antecedência, o exercício de
tal ministério tão importante e tão delicado.

No momento do ofertório, ao apresentar as oferendas do pão


e do cálice, sejam apresentadas também as ofertas, frutos da
caridade efetuada por cada um durante a Quaresma. Junto
com as oferendas materiais, cada um coloque sobre o altar as
alegrias e as dores, os sofrimentos e as esperanças que marcam
sua vida, para que tudo seja unido à oferta de Cristo e nele seja
transformado em expressão da própria entrega confiante ao
Pai, e se torne experiência de ressurreição.

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