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Apreciação crítica
Leia atentamente o texto de apreciação crítica sobre a obra cinematográfica As mil e uma noites, filme de
Miguel Gomes dividido em três partes. Consulte as notas apresentadas.
Nos dois últimos filmes de Quentin Tarantino, o cinema tem-se vingado da História, contando a sua
própria versão dos acontecimentos. Os nazis mataram milhões de judeus? Em Sacanas sem lei, Hitler é morto
numa sala de cinema em chamas. A escravatura é o pecado original da América? Um negro reduz uma
plantação de escravos a um banho de sangue em Django libertado.
5 Entre o verão de 2013 e o verão de 2014, Miguel Gomes percorreu os quatro cantos de Portugal fil-
mando um país em crise sob os efeitos da austeridade. Pode dizer-se que inventou um método: um
pequeno grupo de jornalistas contratados pelo realizador vasculhou acontecimentos e fait-divers1 em toda a
imprensa, fazendo, de seguida, a sua própria investigação e reportagem; Gomes e a equipa do filme iam
para o terreno quase imediatamente, reagindo aos acontecimentos reais a quente, e com ficção. O resultado
10 é surreal, e nem sempre isso se deve à ficção. O que é mais surreal, animais que falam, um assassino que é
aclamado pela população como um herói, homens que têm pássaros em casa e os ensinam a cantar, a
troika em cima de camelos?
O que Miguel Gomes — realizador de Aquele querido mês de agosto e de Tabu — alegadamente não
sabia quando acabou de rodar é que tinha feito não um filme mas três. Um filme triplo que chega às salas de
15 cinema com semanas de intervalo entre cada uma das partes. Cada volume é autónomo, autossuficiente, mas
lança o desejo de ver o próximo como nos folhetins. As mil e uma noites, assim se chama este blockbuster
artesanal e inventivo, por se inspirar na estrutura do livro homónimo: o filme não é uma adaptação, apesar
de ter a sua própria Xerazade2 como cronista do reino. Mas, como se vê logo no primeiro volume, Xerazade
é Miguel Gomes: é a sua cabeça que está a prémio porque filmar assim, sem rede, como se fosse uma aven-
20 tura, só pode ser perigoso.
As mil e uma noites é uma trilogia com pavor da fixidez, em permanente mutação, um laboratório de
estilos narrativos e cinematográficos. Cada filme tem a sua própria tonalidade, como se pressente pelos
títulos: O inquieto (volume 1, esta semana nas salas), O desolado (volume 2, estreia a 24 de setembro), O
encantado (volume 3, a 1 de outubro). O primeiro prepara o espectador, explicando-lhe o projeto; o
25 segundo fecha-se sobre almas penadas e solitárias — se a personagem principal de As mil e uma noites é a
comunidade, o coletivo, para onde fugiu toda a gente?; o terceiro é redentor: depois de passar por vários
estados — a perda, a combatividade, a recriminação, a impotência, a derrota —, o País vê-se ao espelho e
descobre que sobreviveu. É aqui, neste capítulo final, que o ato de vingança é explicitado. Não se pode
dizer que o que o filme retrata pertence à História — da última vez que olhámos, ainda éramos um país
30 depauperado, desempregado e desdentado — nem Gomes propõe, como Tarantino, uma versão alternativa.
Mas ganha espessura a sensação que paira ao longo de todo o projeto: Portugal, país das maravilhas. Como
na canção de Leonard Cohen («We are ugly, but we have the music»), somos feios mas temos as histórias.
Depois da paródia, das piruetas, da catarse, 3 da neurose, o tour de force emocional4 do filme parece
estar neste grupo de marginais, alguns deles ex-reclusos, habitantes de guetos sociais, que criam
35 passari-nhos em casa e os ensinam a cantar. Eles existem, de facto, o cinema não os inventou: Chico Chapas,
Ribeiro, Mestre, Quitério e o seu tentilhão perneta.
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-cinema-ajusta-contas-com-a-troika-1705938,
consultado em 28 de dezembro de 2015.
1. Para responder a cada um dos itens, de 1.1 a 1.10, selecione a opção correta. Escreva, na folha de
respostas, o número de cada item e a letra que identifica a opção escolhida.