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www.serradopilar.com | 29 Tempo Comum, 18.10.

2020 | ano 46º | nº 2190

Papa Francisco assina a nova encíclica


no túmulo de São Francisco de Assis | Foto: Vatican Media

No oitavo ano da sua eleição, o


p a p a F R A N C I S C O escreve uma
n o v a e n c í c l i c a , que representa o
ponto de confluência de uma ampla
parte do seu magistério (cf.
F r a t e l l i t u t t i [ T o d o s i r m ã o s , 5)
[1]. A fraternidade foi o primeiro
tema ao qua l Fran cisco f ez
referência, dando in ício ao seu
pontif icado , quand o in clin ou a
cabeça diante das pessoas
reunidas na Praça São Pedro. Definiu, então, a relação bispo-povo como um “ c a m i n h o
d e f r a t e r n i d a d e ” , e expressou este desejo: “Rezemos sempre por nós, uns pelos outros.
Rezemos por todo o mundo, para que haja uma grande fraternidade” [2].
O título é uma citação direta das “ A d m o e s t a ç õ e s ” de S ã o F r a n c i s c o : F R A T E L L I
T U T T I [ T o d o s i r m ã o s ] . E indica uma fraternidade que se estende não só aos seres
humanos, mas imediatamente também à terra, em plena sintonia com a outra encíclica do
pontífice, a Laudato si’ [3].

F r a t e l l i t u t t i [Todos irmãos]:
u m g u i a p a ra a l ei t u r a
d a e n c í c li c a d o P a p a F ra n c i s c o
FRATERNIDADE fundamentalismo anula-o com um
E A M IZ A D E S O C I A L simples programa de televisão.
É por isso que, no dia 4 de fevereiro

A
Fratelli tutti [Todos irmãos] de 2019, em Abu Dhabi, Francisco, o
conjuga, ao mesmo tempo, a papa, e Aḥmad al-Tayyeb, o grão-imã de
fraternidade e a amizade social. É al- Azhar, [ver Folha Dominical nº 2102,
esse o núcleo central do texto e do seu de 17.02.2019] assinaram um histórico
significado. O realismo que atravessa as documento sobre a fraternidade. Os
páginas dilui todo o romantismo vazio, dois líderes reconheceram-se como
sempre à espreita, quando se trata de irmãos e, juntos, tentaram lançar um
fraternidade. A fraternidade não é, olhar sobre o mundo de hoje. E o que
apenas, para Francisco, uma emoção, entenderam? Que a fraternidade é a
ou um sentimento, ou uma ideia – por única verdadeira alternativa capaz de
mais nobre que seja –, mas sim um desafiar e deter a solução apocalíptica.
facto que implica, depois, também, a É preciso redescobrir essa poderosa
saída, a ação (e a liberdade): “De quem palavra evangélica, que a Revolução
é que eu me faço irmão?”. Francesa de novo retomou, mas que a
A fraternidade assim entendida in- ordem pós-revolucionária abandonou,
verte a lógica do apocalipse, predomi- depois, até acabar por a fazer desapare-
nante hoje em dia; uma lógica que luta cer do léxico político-económico. E que
contra o mundo porque crê que ele é o nós substituímos, depois, por aquela
oposto de Deus, ou seja, um ídolo, e bem mais fraca de “solidariedade”, que,
que, portanto, deve ser destruído o mais na Fratelli tutti [Todos irmãos],
rapidamente possível para acelerar o surge vinte e duas vezes (enquanto
fim do tempo. Face ao abismo do apoca- deparamos quarenta e quatro vezes com
lipse, não há mais irmãos: apenas após- a palavra “fraternidade”).
tatas ou “mártires”, numa corrida “con- Francisco escreveu numa das suas
tra” o tempo. Ora, nós não somos nem mensagens: “Enquanto a solidariedade
militantes nem apóstatas: somos todos é o princípio de planeamento social que
irmãos. permite que os desiguais se tornem
A fraternidade não queima o tempo, iguais, a fraternidade é aquilo que per-
nem cega os olhos e os ânimos. Em vez mite que os iguais sejam pessoas dife-
disso, ocupa o tempo, requer tempo. O rentes” [4].
tempo do litígio e da reconciliação. A O reconhecimento da fraternidade
fraternidade “perde” tempo. O apocali- muda a perspetiva, inverte-a e torna-se
pse queima-o. A fraternidade requer uma forte mensagem de valor político:
tempo de tédio. O ódio é pura excitação. todos somos irmãos e, portanto, todos
A fraternidade é aquilo que permite que somos cidadãos com direitos e deveres
os iguais sejam pessoas diferentes. O iguais, à sombra dos quais todos desfru-
ódio elimina as diferenças. A fraterni- tamos de justiça.
dade salvaguarda o tempo da política, A fraternidade é, além disso, a base
da mediação, do encontro, da constru- sólida para viver a “amizade social”. O
ção da sociedade civil, do cuidado. O papa Francisco, em 2015, ao falar em
2
Havana, lembrou ter visitado, um dia, Esta encíclica não podia permanecer
uma área muito pobre de Buenos Aires. alheia à pandemia da Covid-19, que
O pároco do bairro apresentou-o a um eclodiu, inesperadamente. Para além
grupo de jovens que estavam a construir das várias respostas dadas pelos diver-
umas casas: “Este é o arquiteto, é judeu; sos países – escreve o papa –, veio à
este é comunista; este é católico prati- tona a incapacidade de agir em conjun-
cante; este é…”. O papa comentou: to, embora nos possamos orgulhar de
“Eram todos diferentes, mas todos tra- ter estabelecido uma hiperligação entre
balhavam juntos pelo bem comum”. nós. Escreve Francisco: “Oxalá já não
Francisco dá a esta atitude o nome de existam ‘os outros’, mas apenas um
“amizade social”, quando se sabe conju- ‘nós’” (n. 35).
gar os direitos com a responsabilidade
O cisma entre indivíduo
pelo bem comum, as diversidades com o
e comunidade
reconhecimento de uma fraternidade
radical. O primeiro passo que Francisco dá é o
de compilar uma fenomenologia das
Uma fraternidade sem fronteiras tendências do mundo atual desfavorá-
A Fratelli tutti [Todos irmãos] veis ao desenvolvimento da fraternida-
começa com a evocação de uma frater- de universal. O ponto de partida das
nidade aberta, que permite que cada análises de Bergoglio é, frequentemen-
pessoa seja reconhecida, valorizada e te, – senão sempre – aquele que ele
amada para além da proximidade física, aprendeu com os Exercícios Espirituais
para além do lugar do universo onde de Santo Inácio de Loyola, que convida
nasceu ou vive. A fidelidade ao Senhor é a rezar imaginando como Deus vê o
sempre proporcional ao amor pelos mundo [6].
irmãos. E essa proporção é um critério O pontífice observa o mundo e tem a
fundamental desta encíclica: não se impressão geral de que se está a desen-
pode dizer que se ama a Deus se não se volver um verdadeiro cisma entre o
ama o irmão. “De facto, quem não ama indivíduo e a comunidade humana (cf.
o próprio irmão a quem vê, não pode n. 30). Um mundo que não aprendeu
amar a Deus que não vê” (1Jo 4,20) [5]. nada com as tragédias do século XX,
Desde as primeiras frases, é posto sem senso da história (cf. n. 13). Parece
em destaque o facto de Francisco de haver um retrocesso: os conflitos, os
Assis estender a fraternidade não ape- nacionalismos, a perda do senso social
nas aos seres humanos – e em particu- (cf. n. 11), o bem comum que parece ser
lar aos abandonados, aos doentes, aos o menos comum dos bens.
desprezados, aos últimos, ultrapassan- Neste mundo globalizado, estamos
do as distâncias de origem, nacionali- sozinhos, e prevalece o indivíduo sobre
dade, cor ou religião – mas também ao a dimensão comunitária da existência
sol, ao mar e ao vento (cf. n. 1-3). O (cf. n. 12). As pessoas desempenham o
olhar, portanto, é global, universal. É papel de consumidores ou de espetado-
este o fôlego das páginas do papa Fran- res, e os mais fortes são os mais favore-
cisco. cidos.
3
Eis a forma como Francisco monta vem-se atitudes de isolamento e de
as peças do quebra-cabeças que ilustra intolerância, que alimentam o “espetá-
os dramas do nosso tempo: culo” encenado pelos movimentos de
A primeira peça diz respeito à políti- ódio. Precisamos, em vez disso, de “ges-
ca. Neste contexto dramático, as gran- tos físicos, expressões do rosto, silên-
des palavras como democracia, liberda- cios, linguagem corpórea e até o perfu-
de, justiça, unidade, perdem a plenitude me, o tremor das mãos, o rubor, a
do seu significado, e a consciência his- transpiração, porque tudo isso fala e faz
tórica, o pensamento crítico, a luta pela parte da comunicação humana” (n. 43).
justiça e os caminhos da integração O pontífice, no entanto, não se limi-
liquefazem-se (cf. n. 14 e 110). E é durís- ta a fornecer uma descrição asséptica da
simo o julgamento sobre a política, realidade e do drama do nosso tempo. A
tendo em vista aquilo a que ela ficou sua leitura chega-nos impregnada dum
reduzida hoje em dia: “A política deixou espírito de participação e de fé. A visão
de ser um debate saudável sobre proje- do papa, embora atenta à dimensão
tos a longo prazo para o desenvolvimen- sociopolítica e cultural, é radicalmente
to de todos e o bem comum, limitando- teológica. A redução ao individualismo
se a receitas efémeras de marketing, que aqui emerge é fruto do pecado.
cujo recurso mais eficaz está na destrui-
Um estranho na rua
ção do outro” (n. 15).
A segunda peça é a cultura do des- Apesar das densas sombras descritas
carte. A política reduzida a marketing nas páginas desta encíclica, Francisco
favorece o fosso global e cultural do pretende fazer ecoar muitos percursos
qual é fruto (cf. n. 19-20). de esperança, que nos falam de uma
O quadro continua com a inserção sede de plenitude, de um desejo de
de uma reflexão sobre os direitos hu- tocar aquilo que preenche o coração e
manos, cujo respeito é um pré-requisito eleva o espírito para as grandes coisas
para o desenvolvimento social e econó- (cf. n. 54-55).
mico de qualquer país (cf. n. 22). Na tentativa de buscar uma luz, e
A quarta peça é o importante pará- antes de indicar algumas linhas de ação,
grafo dedicado às migrações. Se deve Francisco propõe-se dedicar um capítu-
ser reafirmado o direito a não emigrar, lo à parábola do Bom Samaritano. A
também é verdade que uma mentalida- escuta da Palavra de Deus é uma passa-
de xenófoba esquece que os migrantes gem fundamental para julgar, evangeli-
devem ser protagonistas do seu próprio camente, o drama do nosso tempo e
resgate. E o papa afirma vigorosamente: encontrar saídas. Assim, o Bom Samari-
“É inaceitável que os cristãos partilhem tano torna-se um modelo social e civil
esta mentalidade e estas atitudes” (n. (cf. n. 66).
39). A inclusão ou a exclusão dos feridos
Depois, há a quinta peça: os riscos à beira da estrada define todos os proje-
que a própria comunicação hoje levanta. tos económicos, políticos, sociais e
Com as interligações digitais, as distân- religiosos. O Santo Padre, de facto, não
cias ficam mais curtas, mas desenvol- se detém no nível das escolhas indivi-
4
duais, mas projeta essas duas opções ao No entanto, nesse ponto, o próprio
nível das políticas dos Estados. No en- pontífice percebe o risco de um mal-
tanto, volta sempre ao nível pessoal, por entendido: o do falso universalismo de
temor de que nos sintamos desrespon- quem não ama o próprio povo. Também
sabilizados. é grande o risco de um universalismo
autoritário e abstrato, que visa homo-
Pensar e gerar um mundo
geneizar, uniformizar, dominar. A pro-
hospitaleiro: uma visão inclusiva
teção das diferenças é o critério da ver-
O terceiro passo do itinerário que Fran- dadeira fraternidade que não homologa,
cisco nos faz percorrer é aquele que mas acolhe e faz convergir as diversida-
poderíamos definir, com o pontífice, des, valorizando-as. Somos irmãos
como o “além”, isto é, a necessidade de porque, ao mesmo tempo, somos iguais
ir além de si mesmo. Se o drama des- e diferentes: “É preciso libertarmo-nos
crito no primeiro capítulo era o da soli- da obrigação de sermos iguais” [7].
dão do homem consumidor encerrado
no seu individualismo e na passividade A importância
do espetador, é preciso encontrar uma do multilateralismo
saída. O papa apela a uma mudança de pers-
E o primeiro facto é que ninguém petiva radical, não só ao nível interpes-
pode experimentar o valor da vida sem soal ou estatal, mas também nas rela-
rostos concretos para amar. Aqui está ções internacionais: a da certeza do
um segredo da autêntica existência destino comum dos bens da terra.
humana (cf. n. 86). O amor cria laços e De acordo com esta perspetiva o pa-
expande a existência. Mas essa “saída” norama muda, e “podemos dizer que
de si não se reduz a uma relação com cada país é, também, do estrangeiro, já
um pequeno grupo, ou a laços familia- que os bens de um território não devem
res: é impossível entendermo-nos a nós ser negados a uma pessoa necessitada
mesmos, sem um tecido de relações que provenha de outro lugar” (n. 124).
mais amplo com outros que nos enri- Além disso – continua o pontífice –,
quecem (cf. n. 88-91). impõe-se outro modo de entender as
Esse amor que é uma abertura ao relações internacionais. É claríssimo,
“além”, uma “hospitalidade”, é o fun- portanto, o apelo à importância do
damento da ação que permite estabele- multilateralismo, com uma verdadeira
cer a amizade social e a fraternidade. condenação de uma abordagem bilate-
Amizade social e fraternidade não ex- ral, em que países poderosos e grandes
cluem, mas incluem. São independentes empresas preferem negociar com outros
dos traços físicos e morais ou, como países menores ou pobres: para obter
escreve o papa, das etnias, das socieda- deles maiores lucros (cf. n. 153). A cha-
des e das culturas (cf. n. 95). A tensão é ve está no facto de “nos sabermos res-
para uma “comunhão universal” (n. 95), ponsáveis pela fragilidade dos outros na
para “uma comunidade feita de irmãos procura de um destino comum” (n. 115).
que se acolhem mutuamente e cuidam Cuidar da fragilidade é um ponto-chave
uns dos outros” (n. 96). Essa abertura é desta encíclica.
geográfica, mas, mais ainda, existencial.
5
Um coração aberto enriquecimento próprio do encontro.
ao mundo inteiro
Populismo e liberalismo
Francisco fala, também, dos desafios a
Francisco continua o seu discurso com
enfrentar para que a fraternidade não
um capítulo dedicado à melhor política,
permaneça somente como uma abstra-
aquela posta ao serviço do verdadeiro
ção, mas se torne real.
bem comum (cf. n. 154). E aqui aborda,
O primeiro é o das migrações, a ser
frontalmente, a questão do confronto
desenvolvido em torno de quatro ver-
entre populismo e liberalismo, que
bos: acolher, proteger, promover e inte-
podem usar os frágeis, o “povo”, duma
grar. Com efeito, não se trata de “impor
maneira demagógica. Francisco preten-
do alto programas assistenciais, mas de
de esclarecer, imediatamente, um mal-
percorrermos unidos um caminho atra-
entendido, usando uma ampla citação
vés destas quatro ações” (n. 129).
da entrevista que nos concedeu para a
Francisco propõe-nos pistas muito
publicação dos seus escritos como arce-
precisas (cf. n. 130). Mas, em particular,
bispo de Buenos Aires. Reproduzimo-la
detém-se sobre o tema da cidadania,
na íntegra, porque é central no seu
tema que também já tinha sido aborda-
discurso.
do no Documento sobre a Fraternidade
Humana para a Paz Mundial e Convi- “Povo não é uma categoria lógica, nem
vência Comum, assinado em Abu Dha- uma categoria mística, no sentido de
bi. Falar em “cidadania” afasta a ideia que tudo o que faz o povo é bom, ou no
de “minoria”, que carrega consigo as sentido de que o povo seja uma entida-
sementes do tribalismo e da hostilidade, de angelical. É uma categoria mítica.
e que vê no rosto do outro a máscara do (...) Quando explicas o que é um povo,
inimigo. A abordagem de Francisco é recorres a categorias lógicas porque
subversiva, no que respeito às teologias precisas de o descrever: é verdade, elas
políticas apocalípticas que por aí se vão são necessárias. Mas, desse modo, não
espalhando. consegues explicar o sentido de perten-
Por outro lado, o papa põe em evi- ça a um povo; a palavra povo tem algo
dência o facto de a chegada de pessoas mais que não se pode explicar logica-
provenientes de um contexto vital e mente. Pertencer a um povo é fazer
cultural diferente se transformar num parte de uma identidade comum, for-
dom para quem as acolhe: é um encon- mada por vínculos sociais e culturais. E
tro entre pessoas e culturas que consti- isto não é algo de automático; muito
tui uma oportunidade de enriquecimen- pelo contrário: é um processo lento e
to e de desenvolvimento. E isso pode difícil... rumo a um projeto comum” (n.
ocorrer quando se permite que o outro 158) [8].
seja ele mesmo. Consequentemente, esta categoria míti-
O critério guia do discurso é sempre ca pode indicar uma liderança capaz de
o mesmo: fazer crescer a consciência de se sintonizar com o povo, com a sua
que ou nos salvamos todos, ou ninguém dinâmica cultural e as grandes tendên-
se salva. Toda a atitude de “esteriliza- cias de uma sociedade ao serviço do
ção” e isolacionismo é um obstáculo ao bem comum; ou pode indicar uma de-
6
generação, quando a mudança constitui o global, sempre sob o signo do multila-
um truque para atrair consensos para o teralismo.
sucesso eleitoral e para instrumentali- Os movimentos populares “reúnem
zar, ideologicamente, a cultura do povo, desempregados, trabalhadores precá-
subordinando-a aos interesses do pró- rios e informais e tantos outros que não
prio projeto pessoal (cf. n. 159). entram facilmente nos canais já estabe-
Porém, não é preciso sequer enfati- lecidos” (n. 169). Com esses movimen-
zar a categoria mítica de povo, como se tos, supera-se “a ideia das políticas
ela fosse uma expressão romântica e, sociais concebidas como políticas para
portanto, como tal, rejeitada em favor os pobres, mas nunca com os pobres,
de discursos mais concretos, institucio- nunca dos pobres, e, muito menos,
nais, ligados à organização social, à inseridas num projeto que reúna os
ciência e às instituições da sociedade povos” (ibid).
civil. Depois, Francisco detém-se na aná-
O que une ambas as dimensões, a lise das instituições internacionais, hoje
mítica e a institucional, é a caridade, enfraquecidas, sobretudo, porque a
que implica um caminho de transfor- dimensão económico-financeira, com
mação da história que incorpora tudo: características transnacionais, tende a
instituições, direito, técnica, experiên- predominar sobre a política. Entre elas,
cia, contribuições profissionais, análise a Organização das Nações Unidas, que
científica, procedimentos administrati- deve ser reformada, para evitar que seja
vos. O amor ao próximo, de facto, é deslegitimada e para que “seja possível
realista. uma real concretização do conceito de
Portanto, é necessário fazer crescer família de nações” (n. 173). Ela tem
tanto a espiritualidade da fraternidade, como tarefa a promoção da soberania
como a organização mais eficiente para do direito, porque a justiça é “um requi-
resolver os problemas: as duas coisas sito indispensável para se realizar o
não se opõem de maneira nenhuma. E ideal da fraternidade universal” (ibid.).
isso sem imaginar que existe uma recei-
A melhor política
ta económica que possa ser aplicada
não está submetida à economia
igualmente a todos: até a ciência mais
rigorosa pode propor caminhos e solu- Francisco, detém-se, então, longamen-
ções diferentes (cf. n.164-165). te, na política. Já várias vezes o pontífi-
ce lamentou o facto de ela estar subme-
Os movimentos populares e as
tida à economia, e esta, ao paradigma
instituições internacionais
eficientista da tecnocracia. Pelo contrá-
Neste contexto, Francisco fala tanto dos rio, é a política que deve ter uma visão
movimentos populares como das insti- ampla, para que a economia seja inte-
tuições internacionais. Parecem dois grada num projeto político, social, cul-
níveis opostos e divergentes de organi- tural e popular que tenda ao bem co-
zação, mas, ao fim e ao cabo, são con- mum (cf. n. 177 e 17).
vergentes na sua virtuosidade: os pri- Fraternidade e amizade social não
meiros valorizam o local, e os segundos são utopias abstratas. Exigem decisão e
7
a capacidade de encontrar caminhos Diálogo e cultura do encontro
que assegurem a sua real possibilidade,
Francisco resume alguns verbos usados
envolvendo, também, as ciências soci-
nesta encíclica numa única palavra:
ais. E esse é um “elevado exercício da
diálogo. “Numa sociedade pluralista”,
caridade” (n. 180).
escreve o pontífice, “o diálogo é o cami-
O amor, portanto, expressa-se não nho mais adequado para se chegar ao
só em relações face a face, mas também reconhecimento do que sempre deve ser
nas relações sociais, económicas e polí- afirmado e respeitado e que ultrapassa
ticas, buscando construir comunidades o consenso ocasional” (n. 211).
nos diversos níveis da vida social. Trata- Mais uma vez, expressa-se uma vi-
se de algo a que Francisco chama amor são peculiar da amizade social, feita a
social (cf. n. 186). Esta caridade política partir do constante encontro das dife-
pressupõe o amadurecimento de um renças. O papa observa que vivemos
senso social, em virtude do qual “cada num tempo do diálogo. Todos trocam
um é plenamente pessoa quando per- mensagens entre si nos meios de comu-
tence a um povo e, vice-versa, não há nicação, por exemplo, através das redes
um verdadeiro povo sem referência ao sociais. No entanto, muitas vezes, o
rosto de cada pessoa” (n. 182). Em su- diálogo confunde-se com uma febril
ma: povo e pessoa são termos que estão troca de opiniões, que, na realidade, é
em correlação um com o outro um monólogo no qual predomina a
O amor social e a caridade política agressividade. Francisco observa, tam-
expressam-se, também, na plena aber- bém, com precisão, ser esse o estilo que
tura ao debate e ao diálogo com todos, parece prevalecer no contexto político,
até mesmo com os adversários políticos, que, por sua vez, tem um reflexo direto
pelo bem comum, para tornar possível a na vida quotidiana das pessoas (cf. 200-
convergência, pelo menos sobre alguns 202).
temas. Não é preciso temer o conflito “O diálogo social autêntico pressu-
gerado pelas diferenças, até porque “a põe a capacidade de respeitar o ponto
uniformidade gera asfixia e neutraliza- de vista do outro, aceitando como pos-
nos culturalmente” (n. 191). sível que contenha convicções ou inte-
E é possível experimentar esta vi- resses legítimos” (n. 203) [9]. Essa é a
vência se o político não deixar de se dinâmica da fraternidade, afinal, o seu
considerar um ser humano, chamado a caráter existencial, que “ajuda a relativi-
viver o amor nas suas relações interpes- zar as ideias, pelo menos no sentido de
soais quotidianas (cf. n. 193), e se sou- não nos resignarmos ao facto de permi-
ber viver, sim, a ternura. Esse vínculo tir que um conflito, decorrente de uma
entre política e ternura parece inédito, disparidade de pontos de vista e de
mas é realmente eficaz, porque a ternu- opiniões, prevaleça definitivamente
ra é “o amor que se torna próximo e sobre a fraternidade” [10].
concreto” (n. 194). No meio da atividade Diálogo não significa, de modo ne-
política, os mais frágeis devem provocar nhum, relativismo, que isso fique claro.
ternura e têm o “‘direito’ de arrebatar a Como já havia escrito na encíclica Lau-
nossa alma, o nosso coração” (ibid.). dato si’, Francisco afirma que, se o que
8
importa não são as verdades objetivas memória dos grandes crimes da histó-
nem os princípios estabelecidos, mas ria: “Hoje é fácil cair na tentação de
sim a satisfação das próprias aspirações virar a página, dizendo que já passou
e das necessidades imediatas, então as muito tempo, e que é preciso olhar para
leis serão entendidas, apenas, como diante. Isso não, por amor de Deus!
imposições arbitrárias e obstáculos a Sem memória, nunca se avança” (n.
serem evitados. A busca dos valores 249).
mais altos impõe-se constantemente (cf.
n. 206-210). Guerra e pena de morte
O encontro e o diálogo tornam-se,
Neste contexto, Francisco examina duas
assim, uma “cultura do encontro”, que
situações extremas que se podem apre-
significa a paixão de um povo em querer
sentar como soluções em circunstâncias
projetar algo que envolva a todos; e que
dramáticas: a guerra e a pena de morte.
não é um bem em si mesmo, mas sim
O pontífice é claríssimo ao tratar os dois
um modo de praticar o bem comum (cf.
casos.
n. 216-221).
Em relação à guerra, afirma que, in-
Percursos de um novo encontro: felizmente, não é um fantasma do pas-
conflito e reconciliação sado, mas uma ameaça constante. Por-
tanto, que fique bem claro que “a guerra
Francisco dirige, então, um apelo ao
é a negação de todos os direitos e uma
lançamento de sólidas bases para o
agressão dramática ao meio ambiente”
encontro e para se iniciar processos de
(n. 257).
cura. O encontro não se pode funda-
Aborda, também, a posição do Cate-
mentar em diplomacias vazias, discur-
cismo da Igreja Católica, onde se con-
sos duplos, dissimulações, formalismo...
templa a possibilidade de uma legítima
É somente a partir da verdade dos fac-
defesa por meio da força militar, com o
tos que pode nascer o esforço de nos
pressuposto de demonstrar que existem
compreendermos reciprocamente e de
algumas rigorosas condições de legiti-
encontrarmos uma síntese para o bem
midade moral. No entanto – escreve
de todos (cf. nn. 225-226).
Francisco – facilmente caímos numa
O papa considera que a verdadeira interpretação ampla demais desse direi-
reconciliação não foge do conflito, mas to.
é obtida no conflito, superando-o atra- Hoje, de facto, com o desenvolvi-
vés do diálogo e da negociação transpa- mento das armas nucleares, químicas e
rente, sincera e paciente (cf. n. 244). biológicas, “conferiu-se à guerra um
Por outro lado, o perdão não tem nada a poder destrutivo incontrolável, que
ver com renunciar aos próprios direitos atinge muitos civis inocentes”. Portanto
diante de um poderoso corrupto, de um – e eis a conclusão do papa – “já não
criminoso ou de alguém que degrada a podemos pensar na guerra como solu-
nossa dignidade. É preciso defender, ção, porque, provavelmente, os riscos
fortemente, os próprios direitos e pro- serão sempre superiores à hipotética
teger a própria dignidade (cf. n. 241). utilidade que se lhe atribua. Perante
Acima de tudo, não se deve perder a esta realidade, é muito difícil, hoje em
9
dia, sustentar os critérios racionais séculos de experiência e de sabedoria, e,
amadurecidos noutros séculos para portanto, devem participar no debate
falar de uma possível ‘guerra justa’. público, assim como na política ou na
Guerra, nunca mais” (n. 258). ciência (cf. n. 275).
A resposta à ameaça das armas nu- Por isso, a Igreja não reduz a sua
cleares e a todas as formas de destrui- missão à esfera privada. “É verdade”,
ção em massa, deve ser coletiva e con- especifica, “que os ministros da religião
certada, com base na confiança recípro- não devem fazer política partidária,
ca. E – propõe o pontífice – “com o própria dos leigos, mas mesmo eles não
dinheiro usado em armas e em outras podem renunciar à dimensão política da
despesas militares, constituamos um existência” (n. 276). A Igreja, portanto,
Fundo mundial, para acabar, de uma tem um papel público que também
vez por todas, com a fome, e para o contribui para a fraternidade universal
desenvolvimento dos países mais po- (cf. ibid.).
bres, a fim de que os seus habitantes A fonte da dignidade humana e da
não recorram a soluções violentas ou fraternidade para os cristãos, em parti-
enganadoras, nem precisem de abando- cular, está no Evangelho de Jesus Cris-
nar os seus países à procura de uma to, do qual brota, tanto para o pensa-
vida mais digna” (n. 262). mento quanto para a ação pastoral, a
A respeito da pena de morte, Fran- importância fundamental da relação, do
cisco retoma o pensamento de João encontro, da comunhão universal com a
Paulo II, que afirmou, de maneira clara, humanidade inteira (cf. n. 277). A Igre-
na encíclica Evangelium vitae (n. 56) ja, “com o poder do Ressuscitado, quer
que ela é inadequada no plano moral e dar à luz um mundo novo, onde todos
desnecessária no plano penal. Francisco sejamos irmãos, onde haja lugar para
também se refere a autores como Lac- cada descartado das nossas sociedades,
tâncio, Papa Nicolau I ou Santo Agosti- onde resplandeçam a justiça e a paz” (n.
nho, que, desde os primeiros séculos da 278).
Igreja, se mostraram contrários a essa
Um apelo à paz e à fraternidade
pena. E afirma, com clareza, que “a
pena de morte é inadmissível” (n.263), A Fratelli tutti [Todos irmãos]
e que a Igreja se compromete, com conclui com um apelo e duas orações
determinação, a propor que ela seja que explicitam o seu sentido e os seus
abolida em todo o mundo. E este veredi- destinatários.
to também se estende à prisão perpétua, Na realidade, o apelo é uma ampla
que “é uma pena de morte escondida” citação do já citado documento assinado
(n. 268). pelo papa e pelo Grão-Imã Aḥmad al-
Tayyeb em Abu Dhabi, e diz respeito,
As religiões ao serviço
precisamente, à convicção de que “as
da fraternidade no mundo
religiões nunca incitam à guerra e não
A última parte desta encíclica é dedica- solicitam sentimentos de ódio, hostili-
da às religiões e ao seu papel ao serviço dade, extremismo, nem convidam à
da fraternidade. As religiões acumulam violência ou ao derramamento de san-
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gue. Estas calamidades são fruto do sétimo livro do romance, intitulado
desvio dos ensinamentos religiosos, do “Viaje a la Oscura Ciudad de Cacodel-
uso político das religiões e também das phia”, evidente paródia do Inferno.
interpretações de grupos de homens de Mas passemos para Filadélfia, que –
religião” (n. 285). escreve Marechal – “levantará as suas
Entre as outras referências ofereci- cúpulas e torres sob um céu tão res-
das no texto, notamos que o papa quis plandecente quanto a cara de uma cri-
recordar em particular o Bem- ança. Como a rosa entre as flores, como
aventurado Charles de Foucauld, que o pintassilgo entre os pássaros, como o
“queria ser ‘o irmão universal’. Mas ouro entre os metais, assim reinará
somente identificando-se com os últi- Filadélfia, a cidade dos irmãos, entre as
mos é que chegou a ser irmão de todos” urbes deste mundo. Uma multidão
(n. 287). Para Francisco, a fraternidade pacífica e alegre frequentará as suas
é o espaço próprio do Reino de Deus, no ruas: o cego abrirá os seus olhos à luz, o
qual o Espírito Santo pode vir, habitar e que negou afirmará o que negava, o
agir [11]. desterrado pisará a terra do seu nasci-
mento e o maldito se verá, finalmente,
“Assim reinará Filadélfia,
livre...” [12].
cidade dos irmãos”
Como a rosa entre as flores, assim
Depois de ter percorrido a Fratelli reinará a “cidade dos irmãos” entre as
tutti [Todos irmãos], tentando enfa- metrópoles do mundo, escreve Mare-
tizar os seus temas fundamentais, gos- chal. E Francisco, com esta encíclica,
taria de concluir, citando um escritor aponta, diretamente, para a vinda do
argentino, Leopoldo Marechal, muito “Reino de Deus”, como rezamos no Pai-
apreciado pelo papa Francisco, e de Nosso, oração que nos assume, a todos,
quem ele me havia falado quando o como irmãos, por sermos filhos de um
entrevistei em 2013. único Pai.
Marechal descreveu a “cidade dos O sentido do Reino de Deus é a ca-
irmãos, Filadélfia” na sua obra-prima pacidade dos cristãos de colocar a boa
“Adán Buenosayres”, obra que narra notícia do Evangelho à disposição de
um périplo simbólico de três dias do toda a humanidade, de todos os homens
poeta Adán dentro da geografia de uma e mulheres, sem distinção alguma,
Buenos Aires metafísica. Reconhece-se, como recurso de salvação e plenitude: o
em particular, a influência de Dante no evangelho da fraternidade.

Pe. ANTONIO SPADARO.


Diretor da revista La Civiltà Cattolica.

Notas:
[1] Daqui em diante, ao referirmo-nos à encíclica, entre parênteses, omitiremos o título,
usando, apenas, o número do parágrafo. Cf. também o volume “Fratellanza”, Roma, La
Civiltà Cattolica, 2020.
[2] Francisco, Primeira saudação do Santo Padre, 13 de março de 2013.
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[3] Surgiram algumas polémicas sobre o uso da palavra “irmãos” no masculino, como se o
papa quisesse excluir a referência ao feminino. O título da encíclica é, claramente, uma
citação franciscana e, portanto, é e deve permanecer como tal. Mas isso não tem nenhum
caráter exclusivo. Certamente, deve-se notar que, recentemente, na França, o Alto
Conselho para a Igualdade entre as Mulheres e os Homens (HCE), tendo em vista a
anunciada revisão da Constituição, propôs substituir, no lema nacional da República, a
palavra fraternité por adelphité, palavra que deriva do grego e significa “fraternidade”,
mas desprovida da conotação masculina, própria do termo anterior. Outros, para evitar o
neologismo, propõem simplesmente solidarité . Mas veremos mais adiante a fragilidade
desta escolha, especialmente à luz do pensamento de Francisco. Cf. J. L. Narvaja,
“Libertà, uguaglianza, fraternità”, in Civ. Catt., 2018, II, 394-399.
[4] Francisco, Mensagem à Prof.ª Margaret Archer, presidente da Pontifícia Academia das
Ciências Sociais, 24 de abril de 2017.
[5] O tema atravessa o pontificado de Francisco e, portanto, também o seu magistério.
Bastaria lembrar aqui algumas breves passagens duma forma exemplar. Francisco
escreveu na sua exortação Amoris Laetitia: “Deus confiou à família o projeto de tornar
‘doméstico’ o mundo, de modo que todos cheguem a sentir cada ser humano como um
irmão” (n. 183). E na Gaudete et exultate: “No meio da densa selva de preceitos e
prescrições, Jesus abre uma brecha que permite vislumbrar dois rostos: o do Pai e o do
irmão. Não nos dá mais duas fórmulas ou dois preceitos; entrega-nos dois rostos, ou
melhor, um só: o de Deus que se reflete em muitos, porque em cada irmão,
especialmente no mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a própria
imagem de Deus” (n. 61). Na Christus vivit: “Correi ‘atraídos por aquele Rosto tão
amado, que adoramos na sagrada Eucaristia e reconhecemos na carne do irmão que
sofre’” (n. 299). Na encíclica Laudato si’, o tema volta com frequência. Por exemplo:
“São Boaventura, seu discípulo, contava que ele [Francisco], ‘enchendo-se da maior
ternura ao considerar a origem comum de todas as coisas, dava a todas as criaturas – por
mais desprezíveis que parecessem – o doce nome de irmãos e irmãs’” (n. 11).
[6] Cf. Inácio de Loyola s., Exercícios espirituais, nn. 103-106.
[7] Francisco, exortação apostólica Amoris laetitia, n. 139
[8] A. Spadaro, “Le orme di un pastore. Una conversazione con Papa Francesco”, in J. M.
Bergoglio/Papa Francesco, Nei tuoi occhi è la mia parola. Omelie e discorsi di Buenos
Aires 1999-2013, Milão: Rizzoli, 2016, XVI.
[9] Cf. Inácio de Loyola s., Exercícios espirituais, n. 22
[10] D. Fares, “La fratellanza umana. Il suo valore trascendentale e programmatico
nell’itinerario di papa francesco”, in Civ. Catt., 2019, III, 119.
[11] Cf. D. Fares, “La fratellanza umana”, cit., 122.
[12] L. Marechal, Adàn Buenosayres, Florença: Vallecchi, 2010, 342 s.

Para ler a encíclica Fratelli tutti [Todos irmãos], na íntegra:


http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/docum
ents/papa-francesco_20201003_enciclica -fratelli-tutti.html

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