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São Paulo,
Quíron; Brasília, INL, 1978. p. 1-21
"Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade". Essas palavras foram
escritas por um naturalista, o Conde de Buffon, ao tomar posse na Academia
Francesa, em 1753. Mais conhecido por uma frase que se tornou famosa (le style
c'est l'homme même) do que talvez pelos 36 volumes da suaHistória Natural, o dito
buffoniano, em que pese às interpretações divergentes que tem suscitado, continua
na ordem-do-dia. Mas o conceito de estilo tem sofrido as mais diversas variações,
não menos que os processos de análise estilística. Para alguns, quanto mais
inconfundível for o estilo nas suas marcas exteriores, tanto maior será a
personalidade do escritor. Já para outros o verdadeiro estilo é aquele que passa
despercebido, isto é, o que realiza um perfeito acoplamento entre a idéia e a forma,
de maneira que uma não sufoque a outra. Assim o entendia Azorim: ter estilo é não
ter estilo. Deslocando o eixo da análise estilística para o campo da semiologia, a
crítica estrutural criou uma metodologia científica para o estudo da literatura e,
com ela, o conceito de estilo enriqueceu-se de novas conotações. Roland Barthes
distingue o estilo da escritura, transferindo para esta tudo aquilo que
tradicionalmente se atribui ao estilo, como soma de elementos pessoais e extra-
pessoais (gosto e cultura). Para ele estilo é "uma linguagem autárquica que
mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor", uma espécie de enteléquia, até
pelo tom enigmático de que se revestem as suas definições.
Ora, essa crítica - que de um lado aponta os defeitos do estilo de Euclides da Cunha
e, de outro, reconhece que Os Sertões subsistem como obra literária graças ao
estilo - incorre em flagrante contradição. Primeiro temos de reconhecer não
existirem propriamente defeitos de estilo. Um estilo é o que é. E isso se nos afigura
tanto mais evidente quanto maior for o grau de domínio e maturidade do escritor,
no que concerne aos seus recursos de expressão. E Euclides da Cunha, embora Os
Sertõesfossem o seu primeiro livro, já havia atingido um alto estágio de
amadurecimento, revelando nessa obra um perfeito domínio da língua e uma clara
consciência da sua arte. Longe estava de ser um estreante, canhestro, desajeitado,
incerto nesses primeiros passos que são, para a maioria dos escritores, o ABC de
um longo aprendizado. Ele pertence a essa categoria rara de artistas que marcaram
o início da sua carreira literária com uma obra prima. Quando isso acontece, é
muito raro repetir-se o fenômeno nos livros posteriores, pois, enquanto nos
primeiros as obras vão marcando os degraus de uma contínua ascensão (cito de
passagem o exemplo de Machado de Assis), nos segundos é quase certo
percorrerem o mesmo caminho em sentido inverso, sem atingir, jamais, o nível da
obra de estréia. Talvez se pudesse dizer isso de Euclides da Cunha, não fossem Os
Sertões um livro ímpar, não só na bagagem do autor, como dentro da literatura
brasileira.
"Estilo - dizia-o caboclamente Monteiro Lobato - é como o nariz da cara: cada qual
o tem como Deus o fez e não há dois iguais". Admitamos, porém, que o nariz
estilístico de Euclides da Cunha pudesse sofrer uma plástica, que fosse podado de
todas aquelas demasias apontadas pela crítica, reduzido, finalmente, às proporções
de um nariz normal. Aconteceria, então, com o escritor, o mesmo que sucedeu com
aquela jovem que depois da plástica a que submeteu o seu apêndice, se tornou
irreconhecível e, pior ainda, mais feia do que era antes. Não, por favor, não vamos
"endireitar" o estilo de Euclides da Cunha.
Creio que foi José Veríssimo o primeiro a reclamar contra o excesso de vocábulos
técnicos. Wilson Martins acha-o um estilo pobre, pela monotonia das frases,
invariáveis no ritmo, uniformes em seu mecanismo interno, embora reconheça o
poderoso sopro criador que as anima. Franklim de Oliveira, no excelente estudo
dedicado ao estilo euclidiano 1 destaca o aparato verbal, o luxo vocabular, o tom
sistematicamente enfático, retórico, eloqüente, mas chega à mesma conclusão de
W. Martins: a pobreza estilística do autor de Os Sertões pela repetição dos mesmos
processos de elaboração da frase. Todavia, cumpre assinalar que tanto F. de
Oliveira como W. Martins reconhecem que todos esses elementos que enformam o
estilo euclidiano - e que em qualquer outro escritor poderiam resultar em desastre -
salvam-se graças ao poder transfigurador do grande artista da palavra que nele
preexistia.
Voltando à comparação feita por Monteiro Lobato releva observar que, dentro de
uma conceituação mais moderna, estilo não é apenas um apêndice, ou seja o nariz
da cara. Suas raízes estão dentro e fora do homem. Tudo isso que os exegetas
apontam, nas análises esmiuçadoras dos textos, são apenas acidentes do estilo,
sinais exteriores detectados através de uma captação imperfeita, incapaz de
penetrar na parte mais íntima, mais subjetiva do ato criativo, dir-se-ia no núcleo
gerador da obra de arte.
Para João Ribeiro, o autor de Os Sertões não é um escritor popular, e "a sua obra
literária suntuosa, asiática, ornada, e até geradora de certo gongorismo de
expressão em alguns de seus discípulos, terá um perpétuo êxito de admiração
íntima entre os intelectuais, os estetas e cultores de estilo". E acrescenta, mais
adiante: "Faltava-lhe a medida ou a penumbra ou a luz difusa dos ambientes
abrigados. Por vezes, o seu estilo, demasiado cru, feria o bom senso
delicadíssimo 3.
Há uma observação, porém, em que parece não assistir razão ao escritor baiano: é
quando afirma que as idéias de Euclides da Cunha "entrechocam-se sem
seguimento lógico e desdobrado das deduções: irrompem tumultuárias,
desconexas, divergentes, paradoxais...". O estilo do grande escritor pode ser
áspero, anguloso, crispante, ou até mesmo bárbaro, à maneira carlyleana, mas
nunca ilógico, ou desconexo na sua estrutura, nem tumultuário na manifestação
das suas idéias. N'Os Sertões as idéias, a forma, o desenvolvimento da narrativa, o
"tônus" dramático que a percorre em crescendo até a última página, tudo se liga e
se articula em perfeita harmonia com as linhas arquitetônicas do conjunto. Se
desordem existe, é apenas aparente. No fundo há uma unidade perfeita ligando
aquela massa formidável de elementos mobilizados pelo escritor. E é isso
precisamente o que mais nos espanta no grande livro de Euclides da Cunha: a sua
capacidade de, estabelecido o plano geral da obra, executar com igual mestria
tanto o que há nela de grandioso, como os seus menores detalhes. A mão que
assentou os pesados blocos de granito, erguendo sobre eles as colunas do templo,
é a mesma que esculpiu os frisos que a rodeiam na delicada decoração dos capitéis.
Romano nas grandes linhas que lhe marcam a estrutura monumental, é, todavia,
nos pormenores, um asiático. Eis por que a alguns críticos ele deu a impressão de
barroquismo e, a outros, de prosa escultural, em que a massa predomina sobre o
pormenor. Franklim de Oliveira soube precisar muito bem essas duas áreas do
estilo euclidiano, de um lado "a clave de grandeza romana, numa prosa imperial, de
períodos marcados pelo dinâmico crescendo das grandes massas sonoras" e, de
outro lado, o barroquismo que o autor reconhece como característica do seu
maneirismo literário, embora não deixe de registrar uma certa impropriedade do
termo para qualificar a linguagem de Euclides da Cunha.
II
Embora o estilo não se esgote nos seus elementos formais, não há dúvida que é
através da representação verbal que podemos estabelecer as suas qualidades,
estudar o seu mecanismo interno ou as linhas mais características que presidiram à
sua elaboração. Este, positivamente, é o procedimento mais comum - o que se
limita a investigar o processo de composição, ao passo que o outro penetra mais
fundo, devassa os tecidos, procura descobrir os resíduos psíquicos ou as intenções
subconscientes que se insinuam nas palavras, criando-lhes uma faixa de
ressonância interior nem sempre apreensível logicamente.
Não é a este último tipo de análise que nos propomos neste breve estudo sobre a
estética de Os Sertões. Aliás, na linguagem do escritor, apesar do emaranhado dos
galhos e da densidade da ramaria, quase tudo ali está ao alcance das nossas mãos.
Pouca coisa há para investigar além dos desenhos por vezes dissimilares que
ornamentam a tapeçaria verbal. O seu processo estilístico é claro e uniforme, o que
não nos impede de lhe reconhecer a marcante originalidade.
O estilo de Euclides da Cunha pode ser comparado a um desses rios dos sertões
brasileiros, cujas águas não se detêm nos remansos ou não se rebalsam para
contornar o terreno, no suave e sereno deslizamento da corrente; vão saltando os
obstáculos, precipitam-se com fúria nos abismos, avançam ou recuam em refreios
bruscos, procurando conter-se no curso sinuoso do leito. Um exame dos torneios
fraseológicos empregados n'Os Sertões nos mostra estes dois aspectos do seu
estilo: a torrente verbal que jorra precipite, com ímpeto avassalador, e o poder do
artista no sentido de represá-la, erguendo barreiras, construindo diques, contendo-
a no leito das idéias, ou seja, nos exatos limites do seu pensamento. Basta
observarmos aqueles períodos entrecortados de pontos-e-vírgulas, onde a idéia
central se desdobra e tresdobra em várias orações tributárias. É um recurso
freqüente, que revela o escritor abundante, de expressão copiosa, mas freada por
um rigoroso senso de disciplina e contenção. Daí a harmonia, a proporção e o
equilíbrio dentro daquela linguagem densa, cheia de frêmitos nervosos, porém
intervalada, de longe em longe, por breves hiatos, como um refreio, uma parada
brusca, um momento de repouso. É a frase solta, isolada, que reponta como uma
ilha solitária no meio da corrente. Nessa frase ele remata duas, três páginas
compactas, resumindo em poucas palavras a impressão que procurou transmitir em
todo um capítulo. Não raro são frases interjectivas, como esta, com que ele encerra
a longa descrição de um sítio em pleno sertão:
Ou esta outra, em que sumaria, no mesmo tom exclamativo, uma incursão nas
"profecias retrospectivas" que a ciência da época lhe permitia sentir, na magia dos
contrastes, o efeito daqueles "cenários emocionantes dentro de uma natureza
torturada".
Ou ainda:
Observa Wilson Martins, no seu estudo sobre Euclides da Cunha, que o escritor só
tinha olhos para os adjetivos e que todo o seu estilo é de natureza adjetival. De
fato, o adjetivo ocupa um largo espaço no contexto estilístico de Os Sertões.
Porém, não é o fundamental. Se o adjetivo entra com as tintas - emprestando cor,
matiz e tonalidade à frase - o verbo aciona os carris das orações, dando vida e
movimento à expressão. A meu ver, o centro nevrálgico da estética euclidiana está
no verbo. Nem poderia ser de outra forma num estilo que se distingue sobretudo
pelo seu dinamismo, pela movimentação das massas sonoras com apoio na ênfase
verbal. Basta abrirmos ao acaso qualquer página de Os Sertões e logo saltam os
exemplos:
"Atravessamo-lo (o sertão) no prelúdio de um estio ardente e, vendo-o, apenas nessa quadra,
vimo-lo sob o pior aspecto."
Outro exemplo:
Observe-se que o autor não diz: "para que fossem estudadas, corrigidas e
anuladas". Não lhe convinham as formas apassivadoras, porque estas, em geral,
descarregam a energia da frase. Também poderia ter evitado a repetição do
pronome "las" se tivesse preferido a próclise: "... para a estudarmos, corrigirmos
ou anularmos". Repetição, aliás, desnecessária, já censurada por Ernesto Carneiro
Ribeiro em Rui Barbosa. Mas repare-se que esta última construção, embora
esteticamente mais harmoniosa, não produz o mesmo efeito visado pelo autor com
o martelamento em "stacato" do pronome "la". Os pronomes, principalmente os
complementos objetivos, são largamente empregados por Euclides da Cunha. E
são-no muitas vezes não só por necessidade, mas também por uma função
estilística, e até, mesmo, embora não afinem bem aos ouvidos de hoje, por puro e
simples esteticismo. Vejamos mais estes exemplos de enumeração verbal:
"A inteligência abalada afinal mal se subordina às condições exteriores ou relaciona os fatos e,
em contínuo descair, baralha-os, perturba-os, inverte-os, deforma-os."
"Era fácil investi-lo, batê-lo, dominá-lo, varejá-lo, alui-lo; era dificílimo deixá-lo."
... lagos que nascem, crescem, se articulam, se avolumam no expandir-se de uma existência
tumultuária e se retraem, definham, desaparecem, sucumbem..."
É por causa da ênfase verbal que muitos críticos de Euclides da Cunha, inclusive
Gilberto Freyre, viram no seu estilo um tom discursivo, que às vezes alcançam os
assomos da linguagem grandiloqüente. Repito: são exatamente tais defeitos, vistos
por esses críticos, que, somados às qualidades do seu estilo, compõem o cânone
expressional do autor de Os Sertões. Escoimá-los da sua linguagem seria mutilar a
arte complexíssima que ele empregou na composição dessa obra inconfundível da
literatura brasileira. Acresce, ainda, que Euclides escreveu o seu grande livro numa
época em que estavam no auge da fama dois escritores cujo estilo se caracterizava
precisamente pela sua riqueza verbal Rui Barbosa e Coelho Neto. Ademais, não
seria no estilo de linhas apolíneas de Joaquim Nabuco, nem na secura lingüística de
Machado de Assis que ele encontraria os melhores modelos para escrever um livro
com a grandeza épica de Os Sertões.
"De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos:
a princípio o traço contínuo e dominante das montanhas, precipitando-o, com destaque
saliente, sobre a linha projetante das praias; depois, no segmento da orla marítima entre o Rio
de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada
das serras, riçado de cumiadas e corroído de angras, escancelando-se em baías, e repartindo-
se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito
secular que ali se trava entre os mares e a terra."
"Colado ao dorso deste (o cavalo), confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes,
firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas
clareiras; mergulhando nas margens altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros
alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, à toda a brida, no
largo dos taboleiros..."
III
"...disparam pelas baixadas úmidas os caitetus esquivos; passam, em varas, pelas tigueras,
num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canelas ruivas..."
"... pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam-se as acendalhas da
sílica fraturada, rebrilhantes. numa trama vibrátil de centelhas."
Também esse adjetivo (rebrilhantes) poderá parecer demasiado numa frase em que
a segunda cláusula (numa trama vibrátil de centelhas) contém a chispa do
espetáculo produzido pelo incêndio. Omitindo-o, suprimiríamos da frase a
impressão que o autor nos quis transmitir, de um clarão fulgurante, uma súbita
explosão de luz. Note-se que o adjetivo aparece aí distante do substantivo e
isolado, abrindo um hiato na descrição, interrompendo-a para nos surpreender com
a brusca luminosidade que se desprende das acendalhas incendiadas. Ainda outro
exemplo de adjetivo isolado, tão comum no processo de adjetivação de Euclides da
Cunha, mas sempre em busca de uma harmonia expressiva, vamos encontrar nesta
frase:
Aqui o adjetivo vem isolado apenas por vírgulas, mas tanto neste exemplo como no
outro, se o autor juntasse o adjetivo ao substantivo estaria apenas salientando uma
qualidade do substantivo, por assim dizer inerente ao ser nomeado (acendalhas
rebrilhantes, asas céleres), o que, além de pleonástico, seria trivial.
IV
"Não lhes avaliavam o número. Os cerros mais altos bojando em esporão sobre a várzea,
figuravam-se desertos. Batia-os de chapa o sol ofuscante e ardente; viam-se lhes os mínimos
acidentes da estrutura, podia contar-se-lhes um a um os grandes blocos, que por ali se
espalham (...)"
Tais recursos, quer nas formas intercaladas por tmese, de que nos fornece copiosos
exemplos, quer encliticamente, com os verbos encabeçando as orações, não só
conferiam à expressão esse tom de gravidade e de aspereza, dentro de uma
técnica de composição tensional, por vezes convulsa, como obedeciam aos freios do
autor, nas suas tentativas de síntese. Síntese - é preciso que se acentue - não de
expressão, enquanto necessária ao seu cânone estilístico (pois raros escritores
usaram numa só obra um léxico tão opulento), mas no sentido de evitar as formas
analíticas secundárias, ou toda palavra que não correspondesse a um sentido de
expressividade em sua função estética.
"Ecoam largos dias, monótonos, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões
propiciatórias, as ladainhas tristes."
O autor inicia o período com o predicado "Ecoam largos dias", porém em seguida
interrompe bruscamente o andamento da frase para intercalar um predicativo do
sujeito (monótonas), acompanhado de um adjunto adverbial (pelos ermos); a partir
daí, quando se esperava o sujeito, eis que o período toma outro rumo com o
aparecimento de uma oração intermediária (por onde passam as lentas procissões
propiciatórias), à maneira de um desdobramento do período. Esse tipo de frase,
dentro do esquema predicado-complemento-sujeito, com desdobramentos internos,
é um dos processos mais típicos da estrutura lingüística de Os Sertões. Já vimos,
em outros exemplos, como aquele trecho dos "queixadas", tipos idênticos de
frases. Note-se que neste, como no anterior, a imagem acústica tem precedência
sobre a imagem visual - o eco das ladainhas anunciando as procissões dos
jagunços. Não estará aí um toque de impressionismo, as sensações tomando o
lugar dos objetos ou, pelo menos, antecipando-se a eles? Vejamos outro exemplo,
entre muitos que poderíamos citar:
"Em breve, céleres, arrebatadas pelo vento, enoveladas em rolos de fumo cindidos de
labaredas, rolando pelas quebradas e transpondo-as, circulando todas as encostas,
avassalando o topo dos morros, repentinamente acesos num relampaguear de crateras
súbitas, crepitavam as queimadas, inextinguíveis, derramando-se por muitas léguas em roda."
"... e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas
estradas e pelas trilhas que recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos,
apavorados, sem chefes..."
Vejamos alguns exemplos desses recursos a que recorre com freqüência para dar
vida, colorido e expressividade à sua arte.
A repetição é um meio de que se vale amiúde para dar ênfase e vigor à frase, como
já vimos no último exemplo. Lá foi com o verbo correr, aqui é com o verbo rodar:
"Como as rodas dos carros de Shiva, as rodas dos canhões Krupp, rodando pelas chapadas
amplas, rodando pelas serranias altas, rodando pelos taboleiros vastos, deixariam sulcos
sanguinolentos."
"... cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos
mesmos dias remansados.
A antítese é uma das figuras mais caras às preferências pessoais do escritor. Ela
não se situa apenas na base do seu raciocínio, como um recurso de expressão de
que procura tirar os melhores efeitos, mas também na visão da realidade, na
escolha dos temas, na sua própria consciência, que parecia comprazer-se nesse
jogo antitético dos contrastes e dos confrontos. A temática d'Os Sertões e toda a
sua estrutura realizam um movimento pendular entre dois extremos: o litoral e o
sertão, a barbárie e a civilização. Ou, como diria Cassiano Ricardo, entre o homem
de pés no chão e o homem de colarinho duro. Em alguns dos seus livros a antítese
já vem expressa nos próprios títulos: Contrastes e Confrontose Peru versus Bolívia.
Não me alongarei na demonstração desse traço do seu estilo, o qual, pela sua
multivalência, reclama por si só um estudo mais longo e acurado. Mencionarei
apenas alguns exemplos, colhidos a esmo na sua obra. Atentem para este:
"... tiroteio cerrado e vivo, crepitando num estrepitar estrídulo de tabocas estourando nos
taquarais em fogo."
... árvores sem folhas, de galhos extorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando
rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bravejar imenso, de
tortura, da flora agonizante..."
Se aí a flora agoniza, aqui
... ruge o Nordeste nos ermos; e como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra
as ramagens de espinhos..."
Nesse gigantesco mural em que Euclides da Cunha procurou fixar um dos dramas
mais pungentes da nossa história, o artista se desdobra, múltiplo, numeroso,
polimórfico, como se não fosse apenas um, mas toda uma equipe trabalhando sob a
sua chefia. O sociólogo, o geógrafo, o historiador, o repórter que havia nele, eram
apenas assessores do homem de letras, integravam o "staff" do escritor
preocupado em valorizar esteticamente o material histórico e científico que serviu
de base à sua obra. Daí por que Os Sertões, mais do que uma obra científica, é
uma obra de arte.
A arte difícil de jogar com as massas sem perder de vista os menores detalhes lhe
valeu uma aproximação com o autor de Guerra e Paz. Ser comparado a Tolstoi...
Creio que nenhum outro escritor brasileiro já mereceu esta honra. Honra e glória do
artista genial que deixou em Os Sertões - obra ímpar na literatura brasileira - um
livro contemporâneo do futuro, pois, como disse Buffon, só as obras de arte
passarão à posteridade.
Notas
2. In Autores e Livros (Spl. Lit. de A Manhã), de 23-8-42, vol. III, n.° 6, pág. 82.
4. Afrânio Peixoto, in Discursos Acadêmicos, Ed. A. B. L., vol. II, pág. 229.
10. Franklim de Oliveira, A Fantasia Exata, Zahar, Rio de Janeiro, 1959, pág. 98.