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São Paulo,
Brasiliense, 1981.
Vamos primeiro, então, limpar a área e contar tudo. Passado o susto, e mais
acostumados aos episódios do enredo da vida, poderemos nos deter nos
comentários à obra. Não é que o que ocorreu com Euclides da Cunha tenha sido tão
extraordinário. Nos quadros habituais da família patriarcal brasileira, os feitos são
perfeitamente compreensíveis e até correntes. Talvez se tornem chocantes quando
se constata como, num autor de postura tão científica, a vida seja ao contrário tão
pouco científica, sua ação pessoal seja tão irracional. Se ele fosse um cidadão
comum, estaria agindo sem qualquer desacordo com aquilo que se convencionou
como sendo a defesa da honra, da família e da propriedade. Mas como ele era um
cidadão célebre, uma pessoa pública, uma glória nacional, a repercussão foi
enorme. Por isso mesmo, e mesmo não marcando exceção entre as pessoas
públicas e os cidadãos célebres, tentou-se e se tenta lançar um véu pudico sobre a
vida privada que seus próprios gestos tornaram pública.
O fato é que ficara um ano longe de sua mulher, esta no Rio, enquanto chefiava a
Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, na Amazônia. Viajara em dezembro de
1904, retornando ao Rio em janeiro de 1906. De volta ao lar, encontrou sua esposa
grávida. Meies depois veio à luz uma criança de nome Mauro, que viveu apenas
sete dias e foi perfilhada por Euclides. No fim do ano seguinte, nasce mais um filho
adulterino. E, em paz ou não, viveram juntos todos, inclusive os dois filhos mais
velhos do casal, Solon e Euclides da Cunha Filho, por mais algum tempo. Consta
que Euclides costumava dizer da loura criança alheia entre seus filhos morenos que
era uma espiga de milho no meio do cafezal.
Ora, isto tudo foi um affaire entre militares, já que Euclides era tenente reformado
do Exército e sua esposa filha de general. Os poderes constituídos e a opinião
pública desejavam com tal ardor o sangue do homicida, que a menor dúvida sobre
sua inocência afetaria o veredicto. Se, nessas condições altamente desfavoráveis,
ainda assim não foi possível declarar Dilermando culpado, é porque realmente não
se encontrou fundamentação legal.
Entretanto, não seria em poucos anos que a mesma conjuntura que presidiu ao
enfrentamento iria mudar. O filho segundo de Euclides, que tinha o mesmo nome
que ele e também se encaminhava para a carreira militar, sendo aspirante de
Marinha, provavelmente foi criado e nutrido para tornar-se o vingador do pai - e da
honra, da família e da propriedade. Em 1916, agride a tiros, dentro do Fórum do
Rio de Janeiro, o mesmo Dilermando de Assis. Este, que mais tarde seria campeão
nacional de tiro ao alvo, novamente é atingido várias vezes, e com um tiro certeiro
mata Euclides da Cunha Filho. Novo processo, nova inocentação por legítima
defesa. Várias décadas mais tarde, Dilermando ainda declarava ao escritor
Francisco de Assis Barbosa que carregava no corpo quatro balas que não puderam
ser extraídas, duas do pai e duas do filho.
Esse lado digamos notório da vida de Euclides não deve todavia obscurecer sua
atividade pessoal de homem público. Era homem público porque era jornalista, era
homem público porque participou da agitação republicana que preparava a queda
do Império, era homem público porque era militar, era homem público porque era
escritor, era homem público porque era engenheiro. Pense-se no que era o Brasil
no último quartel do século passado, um país colonial que começara a sofrer o
impacto da Revolução Industrial. A máquina, a ferrovia, a rodovia, o saneamento, a
navegação fluvial, o processo de industrialização no campo e na cidade, foram
temas a que Euclides emprestou sua pena e dedicou sua ação pessoal como
engenheiro. E não foi só ele, foi uma geração ou mesmo duas a quem o ofício da
engenharia aparecia como dos mais importantes para quem desejava se pôr a
serviço da nação. Euclides mesmo foi profissionalmente engenheiro, o resto eram
atividades paralelas que lhe permitiam equilibrar o orçamento; e engenheiro-
funcionário público, como é de tradição num país onde a camada letrada sempre
mamou e até hoje mama nas tetas do Estado.
Nessa fase, tinham começado a surgir as escolas de engenharia, que eram (ao
contrário de agora) focos de modernidade. As velhas Faculdades de Direito e de
Medicina, onde os filhos da classe dominante se tornavam bacharéis e médicos,
trampolim para a carreira política, vinham-se suceder as escolas técnicas. Na
capital do país, Rio de Janeiro, havia duas, a Politécnica ou Escola Central, e a
Escola Militar. Embora tenha ingressado na primeira, Euclides faz seu curso na
segunda, que é gratuita e já integra a carreira militar, por isso sendo procurada
pelos membros da mesma classe dominante porém sem fortuna. Aí se passa o
incidente em que pela primeira vez na vida Euclides chama a atenção pública,
quando, em sinal de protesto contra a monarquia, atira ao chão céu sabre no
momento em que o Ministro da Guerra visitava a Escola Militar. Abandona os
estudos e só os retoma depois da proclamação da República, acaba saindo formado
oficial-engenheiro-militar pela Escola Superior de Guerra.
Nessa qualidade, presta alguns serviços, tais como um estágio na Estrada de Ferro
Central do Brasil, nas fortificações das Docas Nacionais no Rio e na Diretoria das
Obras Militares no Estado de Minas Gerais. De sua formatura em 1891 ao ano de
1896, em que passa para a reforma como Primeiro Tenente, vão cinco anos de
engenharia militar. Daí em diante será engenheiro civil, mas continuará funcionário
público. Nesta função, que exercerá em vários lugares, sua obra que ficou para a
posteridade é a ponte sobre o Rio Pardo, em São José do Rio Pardo, no Estado de
São Paulo. Já famoso, após a publicação de Os Sertões, e membro da Academia
Brasileira de Letras, pouco antes de morrer presta o concurso para a cátedra de
Lógica do Colégio Pedro II, no Rio. Colocado em segundo lugar, é, no entanto,
depois de alguns vaivéns, nomeado para o cargo, embora tivesse obtido o primeiro
lugar Farias Brito, talvez o mais importante filósofo brasileiro.
Com um só rei à sua frente, e um rei que recebia a colônia intacta e a conservava
intacta independente, a centralização ficava garantida; todavia, esta centralização
fora feita a ferro-e-fogo nos tempos coloniais, e mesmo depois teve que ser, como
o foi em várias ocasiões, preservada igualmente a ferro-e-fogo. Antes da
Independência de 1822, vários movimentos tinham aspirado a libertar-se do
domínio português. E, como regra, eles eram republicanos e localistas. Se
independência significava ao mesmo tempo república, por outro
lado não significava grande nação. Eram sempre pedaços do país que estavam no
horizonte desses movimentos para serem subtraídos à condição colonial. Nem é
preciso dizer que foram todos duramente reprimidos.
Toda a obra escrita de Euclides da Cunha faz-se profundamente engajada com esse
quadro de ideais. Além de Os Sertões, onde analisou uma rebelião rural, versou
assuntos tão variados quanto política nacional e internacional, questões sociais,
literatura, geografia e geopolítica, projetos econômicos. Esses assuntos foram
objeto de artigos, depois reunidos em livros. Duas dessas coletâneas foram
publicadas ainda durante sua vida, em 1907, com os títulos de Contrastes e
Confrontos e Peru Versus Bolívia. Mas muitos outros escreveu, que foram coligidos
- seja os de jornalismo militante, seja relatórios oficiais, discursos públicos,
conferências - na edição da Obra Completa que a Companhia José Aguilar Editora
publicou no Rio, em 1966.
Convocada a quarta e poderosa expedição no início do mês de abril, nem por isso
seu curso anda mais depressa. Dificuldades de toda sorte complicam a vitória que
parece à vista, dado o porte dos meios mobilizados para conquistá-la. É aí que, em
meados de julho, Euclides publica seu segundo artigo sob o mesmo título. Volta a
insistir nas ásperas características da natureza e do adversário que os soldados têm
que enfrentar. Desta vez, detém-se com mais vagar na ação militar, tecendo alguns
comentários, todos favoráveis e justificatórios, sobre as razões que fazem demorar
o desenlace da campanha. Aqui aparece mais um traço de Os Sertões, onde estará
presente uma a minuciosa análise de cada passo do Exército na guerra, os acertos
e os erros, as alternativas possíveis, as responsabilidades assumidas ou não. Enfim,
uma postura de estrategista do Exército. Em Os Sertões, Euclides, enquanto
deplora a sorte dos insurretos e a crueldade com que foram tratados, ao mesmo
tempo, e como se não houvesse nenhuma contradição nisso, aponta a estratégia
que teria tornado a ação do Exército mais eficiente. Mas o tempo da revisão ainda
não chegou; neste segundo artigo de "A nossa Vendéia", o sertanejo ainda é uma
incógnita à qual se aplica um reconfortante estereótipo - ele é "o inimigo" - e o
soldado brasileiro ainda é o herói.
A publicação desses dois artigos deve ter influído numa mudança importante no
destino de Euclides. Pois aquela campanha, para a qual a esta altura convergiam
tropas do país inteiro sob o comando de três generais, não se decidia. Esperava-se
que ela fosse fulminante, já que não havia possibilidade de comparação entre as
forças em choque. De um lado, havia o Exército, equipado com o mais moderno
armamento, incluindo armas de repetição e canhões, liderado por uma oficialidade
de carreira já veterana de outras repressões, dotado do entusiasmo guerreiro de
quem vai defender uma causa justa, ardente de animação republicana. Ainda mais,
muitas das forças que operavam nessa guerra já tinham feito parte de outras
campanhas pacificadoras, pois o que não faltava nessa época eram rebeliões e
levantes internos. Do outro lado, havia uns pobres-diabos analfabetos, dispondo de
armas muito primitivas, facões, foices, bacamartes obsoletos que funcionavam com
pólvora improvisada e balas de pedra. O porte da campanha era respeitável; e,
devido a seu arrastar-se interminável, o próprio Ministro da Guerra acabou
deixando seu gabinete no Rio de Janeiro, então capital do país, e se mudou para o
sertão, indo instalar seu quartel-general em Monte Santo, perto de Canudos. Em
sua comitiva, segue Euclides da Cunha, oficialmente adido ao Estado-Maior. Ia
numa posição privilegiada, já que, se sua missão era apenas fazer reportagens para
o jornal O Estado de S. Paulo, contava com uma situação melhor que a maioria de
seus confrades. Para ser indicado como repórter, Euclides acumulava qualificações.
Já tinha escrito extensamente em vários jornais, e há vários anos; era autor de
dois artigos versando precisamente sobre aquela guerra; e, qualificação não menos
valiosa que as outras, era militar.
Por que esse súbito interesse da imprensa por aquela rebelião longínqua? Poucos
assuntos - e quase sempre são assuntos que dizem respeito à segurança nacional -
já obtiveram da imprensa brasileira uma tal unanimidade de opinião e de
exploração. No ano de 1897, e especialmente a partir da derrota da Expedição
Moreira César em março, é impossível abrir-se um jornal brasileiro sem que esse
assunto ocupe seus mais importantes espaços. Aquilo que era anteriormente
noticiário esparso torna-se seção fixa, com título próprio, na primeira página. E
impregna todas as categorias em que se dividem os escritos de jornal. A Guerra de
Canudos invade o editorial, a crônica, a reportagem, o anúncio e até o humorismo.
Como forte veículo de manipulação, antes da era da comunicação eletrônica, o
jornal, a serviço de correntes políticas a quem interessava criar o pânico e
concentrar as opiniões em torno de um só inimigo, prestou serviços inestimáveis.
Já que não era caso de invasão, não se podia contar com um inimigo externo;
tinha-se aqui, bem à mão, e tão marginalizado que nem poderia protestar contra o
papel que lhe atribuíam, um inimigo interno. A função do jornal foi servir como
porta-voz das referidas correntes, lançando um brado de alerta e de convocação do
corpo nacional ameaçado pela subversão interna. Não foi a primeira nem será a
última vez que o jornal a isso se presta; basta abrirmos o exemplar de hoje. Mas
certamente, no caso do Brasil, foi de um pioneirismo extraordinário. E, se esse
pioneirismo é mais para envergonhar que para honrar, todavia nesse momento a
eficácia do veículo foi enorme.
Os jornais dessa época são pólvora pura. Quando chegou ao Rio e a São Paulo a
notícia da derrota da Expedição Moreira César, a agitação de rua - que, claro, não é
espontânea, tem seus líderes que a encaminham para objetivos específicos -
dirigiu-se contra quê? Invadiu-se o palácio da presidência da República, jogaram-se
bombas em embaixadas, atacaram-se quartéis, agrediu-se a bancada baiana no
Congresso? Não: empastelaram-se quatro jornais monarquistas, três no Rio e um
em São Paulo. O saldo de mortos no mesmo dia registra somente um, um jornalista
de nome Gentil de Castro, abertamente filiado a grupos monarquistas, abatido num
atentado em praça aberta na capital do país.
Deve ter sido um alívio geral quando se conseguiu nomear o inimigo. Tenha o leitor
em mente que ele não era um ex-político do Império nem seu filho ou primo, que
ele não era um militar rebelado, que ele não era escravo negro, que ele não era
índio, que ele não era um citadino. Em seu primeiro artigo da dupla "A nossa
Vendéia", Euclides o chama de sertanejo e tabaréu, sinônimos de habitante do
interior. Já no segundo artigo utiliza o vocábulo que tinha entrado em voga no
noticiário jornalístico para designá-lo: jagunço. Nesse segundo artigo, bem como
nas reportagens que faz como enviado especial d'O Estado de S. Paulo, conjunto
mais tarde reunido em livro com o título de Diário de uma Expedição, a palavra
aparece grifada, denotando sua estranheza. Mais tarde, n'Os Sertões, o grifo
desaparece, a designação está incorporada à norma do discurso. As comparações
históricas que Euclides faz naquele segundo artigo não são das mais lisonjeiras para
o inimigo. Certamente não o faz de propósito, mas as analogias que lhe acodem
são todas racistas. Ou bem o Exército brasileiro enfrentando os sertanejos se
compara aos romanos enfrentando os bárbaros, ou bem a europeus modernos
enfrentando negros na África. A concepção subjacente é a do embate entre
civilização e selvageria, entre raça superior e raça inferior.
O termo jagunço, desde então incorporado às letras pátrias sem grifo, tem campo
semântico flutuante. Usado alternadamente com o de cangaceiro, significa guarda-
costas a soldo. Apenas, jagunço se usa mais nos sertões do Norte de Minas Gerais
e da Bahia, enquanto cangaceiro é mais corrente nos Estados propriamente do
Nordeste, como Sergipe, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e
Ceará. Quanto à origem desses termos, cangaceiro é aquele que vive debaixo do
cangaço, sendo cangaço o conjunto típico de armas que ele usa - duas cartucheiras
cruzadas no peito, duas mochilas suspensas dos ombros e levadas em baixo dos
braços, punhal, garrucha e o rifle. Não se deve esquecer, por sua importância
emblemática, o conhecido chapéu de couro com seus enfeites. A palavra jagunço se
deve a um deslocamento por metonímia, pois é o mesmo nome da vara com ferrão
que se usa para conduzir gado, instrumento de trabalho obrigatório para o
habitante pobre das zonas de pecuária extensiva que compõem o sertão. Daí, até a
ampliação e utilização que o termo teve e tem, muita água corre. De qualquer
modo, jagunço se usou e se usa até hoje para designar bandido, homem violento
que anda armado sem fazer parte do aparelho de Estado ou das forças armadas
regulares. Chamar os canudenses de jagunços era o mesmo que chamá-los, a
todos e indiscriminadamente, de bandidos. Como se vê, se a denominação de
jagunço respeitava a especificidade do inimigo, por outro lado ela era usada com
toda a sua conotação pejorativa.
Como repórter, Euclides tem uma postura peculiar, que se poderia definir como
altaneira. Os chavões estão presentes, bem como o deslanchar do conflito de
consciência, do mesmo modo que nas reportagens dos outros. Mas ele se recusa a
ver tudo aquilo que não seja grandioso e heróico. Assim, um incidente que toldou o
brilho triunfal da partida do Ministro da Guerra e que ocorreu no navio mesmo em
que ele viajava - um voluntário recrutado à força que se atirou ao mar para fugir
mas foi pescado, coitado, de volta -, encontra registro em outras reportagens, mas
não na sua. Alfredo Silva narra o episódio em sua primeira reportagem para A
Notícia, com data de publicação de 10/11 de agosto e data de escritura de 4 de
agosto, já na Bahia; também conta que o imediato estava com cólica. A férrea
censura que os jornalistas afrontavam e contra a qual reclamavam, a ponto de
passar informações veladas sobre ela aos leitores, não é nem de longe mencionada
por Euclides, sequer na mais vaga das alusões. A prática de atrocidades, tais como
a degola sistemática dos prisioneiros e que ele próprio denunciará
apaixonadamente cinco anos mais tarde em seu livro, não existe em suas
reportagens; mas Lelis Piedade e Favila Nunes a noticiam. O comércio de mulheres
e crianças, compradas pelos vencedores, tampouco existe. No entanto, o Comitê
Patriótico da Bahia interveio nisso com energia, resgatando os novos escravos na
medida que o conseguiu e publicando seu relatório, assinado por três membros,
nos jornais, inclusive n'O Estado de São Paulo. Se agora se adotaram orfãozinhos
vietnamitas num gesto de caridade cristã pública, para redimi-los do mal e integrá-
los aos valores da sociedade burguesa ocidental, na época tornou-se costume
adotar jagunçinhos. Até generais da guerra o fizeram, conforme contam os
repórteres. Euclides também ganhou um, mas não menciona o hábito em suas
reportagens. Embora não o refira nas reportagens, lá está a anotação em sua
caderneta de campo, só agora publicada: "Noto com tristeza que o jagunçinho que
me foi dado pelo general continua doente e talvez não resista à viagem para Monte
Santo".
Por outro lado, um povo capaz de um tal esforço de autocrítica é um grande povo.
Erramos, mas publicamos nossa confissão e arrependimento. Que isso não
ressuscite os injustamente mortos nem abra os olhos para que se mude a situação
dos que vivem na injustiça, é irrelevante. Em troca, temos no nosso acervo de
cultura nacional um livro como Os Sertões.