A religião caminha com a humanidade desde que a própria humanidade
começou a querer entender os fenômenos naturais, a natureza humana e, principalmente, a finitude da vida. Três perguntas que permeiam e impulsionam a História da humanidade, servem para nortear a origem toda e qualquer religião: “Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?”. Os deuses surgem não como divindades poderosas, cheias de valores, altruísmos e benevolência, mas como entidades quase humanas cheias de ciúmes, raivas e ressentimentos, precisando ser agradadas a todo tempo. Antes de serem deuses, essas entidades aparecem nas chamadas religiões primitivas, nos cultos aos ancestrais, que fortaleciam a hierarquia do clã através da adoração aos antepassados, muitas das vezes identificados com um determinado animal ou com uma força da natureza, como os raios e trovões, por exemplo. Esses ancestrais acabam sendo assim personificados em objetos de adoração, os quais J. Long, em 1791, identificou como “totem”, como citado por J. G. Frazer, em “Totemismo e Exogamia”, de 1910. Assim, os clãs passaram a ser conhecidos pelos nomes de seus totens, ou seja, o clã do urso, assim ficou conhecido por ter, simbologicamente, o urso como objeto totêmico. Ainda é possível, nos dias de hoje, se verificar a existência dessas proto-religiões de culto totêmicos na Austrália, Oceania e, também, no Brasil, onde o ritual do Quarup, das tribos do Xingu, se destaca, conforme citam Orlando e Claudio Villas-Boas, em “Xingu: Os Índios e Seus Mitos”, de 1990. Sigmund Freud, em sua obra “Totem e Tabu”, de 1913, descreve essa relação de culto e adoração do homem primitivo e os fenômenos naturais, como um misto de horror e admiração, do mesmo modo que sustenta que a inerência da morte a todos os seres vivos fez com que os primeiros agrupamentos humanos a caracterizasse como um “mistério”, o qual deveria ter uma explicação sobrenatural. Objetivamente, é nesse momento que surge a religião, quando o explicável se junta ao inexplicável, as forças da natureza e suas potências são atribuídas aos deuses. Deuses esses que as controlam e por isso devem ser agradados, com oferendas e sacrifícios, já que, estando essas divindades desagradadas, toda sorte de eventos catastróficos ocorreriam. Dentro desse contexto, uma classe especial de membros desses clãs, geralmente responsável pelas curas e o trato com as ervas, se torna intérprete da vontade dos ancestrais. Esses xamãs formam a primitiva classe sacerdotal, que detém o poder de curar os doentes, enfeitiçar os inimigos, interpretar sonhos e compreender os sinais que os ancestrais enviavam aos homens. Na mediada em que essa classe se desenvolve, a religião passa por um processo de sofisticação, que envolve rituais cada vez mais elaborados e mais aperfeiçoados, a fim de se tornarem um evento místico que deveria entreter e, ao mesmo tempo, causar estupor e até temor por parte daqueles que o assistissem. Tal evento místico era elaborado para marcar profundamente a mente da assistência, nesse sentido, todo o ritual servia para prender a atenção de todos os espectadores, do mesmo modo que também servia para demonstrar o poder do xamã e sua importância na primitiva sociedade humana. Com o passar do tempo, os clãs foram paulatinamente se misturando, e o culto a dois, três, quatro totens, forçou o surgimento das primeiras religiões politeístas. Os ancestrais, e o objeto totêmico que os caracterizava, transformaram-se em deuses, responsáveis cada um há seu tempo pelo o bom funcionamento de uma seqüência da vida cotidiana. Determinado deus era o responsável pelo plantio e pela colheita, outro responsável pelo clima ou pela caça, e assim por diante. Logo um panteão de divindades aparece, e deuses específicos para profissões, classes sociais, alimentos se tornam comuns. Essas relações, entre os homens e os deuses, se tornaram ainda mais dependentes da classe sacerdotal que de tão consolidada exigiu a construção de templos para cada um dos deuses existentes na sociedade a qual servia... Servia e se servia, pois essa classe sacerdotal, agora não mais trabalhava, vivendo apenas de cultuar e cuidar das oferendas que eram destinadas aos deuses específicos de cada templo. Índia, Egito, Grécia, Itália, México e Peru são alguns dos lugares onde esse tipo de religião politeísta proliferou e chegou ao seu ápice, até que em um determinado memento histórico, esse tipo de religião entrou em colapso e acabou sendo substituída por outra mais simples, sem tantos deuses, mais fácil de cultuar e de controlar, principalmente por parte do Estado. E, justamente por isso, o novo tipo de religião se torna mais forte, pois fornece ao Estado o controle absoluto sobre tudo e sobre todos. No ocidente, o cristianismo, a partir do judaísmo, e posteriormente o islamismo substituíram os politeísmos existentes, enquanto que no oriente o confucionismo, o taoísmo e o budismo se encarregaram de exercer o mesmo papel. Para fortalecer as novas bases de sustentação religiosa, a nova classe sacerdotal emergente, cria o mito da personificação de seu deus, ou de seu representante aqui na Terra, codificando em livros “sagrados” a história de como esse deus criou o mundo, o homem e, obviamente, escolheu o seu representante entre a humanidade. Mas o que é “sagrado”? De acordo com os estudiosos das religiões, esta é uma palavra-chave para o entendimento de todas as religiões. Rudolf Otto, autor de “A Idéia do Sagrado”, de 1917, diz que “sagrado é tudo aquilo que é diferente do que é comum, portanto não pode ser descrito em termos comuns”, ou seja, o sagrado só o é para quem crê. Assim, como no princípio de toda e qualquer crença, a verdade está na confiabilidade daquele que a apresenta, por isso, o sagrado, que curiosamente tem a mesma raiz das palavras secreto e segredo, se torna algo incompreensível para o descrente, mas perfeitamente tangível para aquele que o cultua. E é sob esse prisma que surge e se fortalece o mito. Moisés (ou Mosheh), Jesus (ou Yeshuah), Maomé (ou Mohamed), Buda (ou Buddah), Confúcio (ou Kung Fu Tsu) e Lao Tsé certamente são mitos, criados a partir diversos outros, muito mais antigos, pertencentes a religiões desaparecidas e assimiladas pelas religiões que os cultuam, seja como deuses, ou emissários destes.
O Monoteísmo no Ocidente:
Por vivermos em um país com a predominância da cultura e religiões
ocidentais, me deterei nos mitos e inconsistências das duas grandes religiões do ocidente. Iniciarei, obviamente, com o judaísmo, por ser a mais antiga manifestação monoteísta ainda viva e atuante, depois considerarei o cristianismo mais atentamente, me detendo na inconsistência do mito cristão e da própria história deste. Entretanto, focaremos as relações das classes sacerdotais dessas religiões e seus mitos, criados e sustentados por essas mesmas classes... A classe sacerdotal que disseminou o monoteísmo entre os judeus criou, através do mito de Moisés, o reencontro de seu deus, Yahweh (Iavé, Javé ou Jeová), criador de todo o Universo, com o “povo escolhido”, no caso, os próprios judeus. Freud dedicou-se, no final de sua vida, a um estudo profundo da figura mítica de Moisés, que resultou no trabalho “Moisés e o Monoteísmo”, de 1935, onde sugere que o homem Moisés, se é que ele existiu, teria uma origem egípcia e fazia parte de uma classe sacerdotal, também monoteísta, extirpada da sociedade dos faraós anos antes do tempo em que, segundo o relato bíblico, aconteceu o êxodo. Essa história merece ser aclarada... O fato histórico é que durante a XVIII Dinastia faraônica, por volta dos anos 1400 a.C., sob a qual o Egito se tornou uma potência mundial, um jovem faraó sobe ao trono, Amenófis IV, o qual depois mudou seu nome para Akenathen, e foi o responsável pela maior revolução cultural e religiosa ocorrida até então. Ele não só mudou o seu próprio nome, como também, construiu e mudou a capital administrativa e religiosa do império, e de modo dramático, impôs aos seus súditos uma nova religião, na qual abolia o culto e a adoração a todos os deuses do panteão egípcio e os substituiu pelo culto e a adoração a um deus único, Athen, o disco solar. Não que a adoração ao sol fosse alguma novidade, pois os egípcios já a praticavam através do culto ao deus Amon-Rá, que por sinal na época do Akenathen era o deus mais popular, e seus templos o os mais prestigiados. O problema na adoção de um único deus, em detrimento a existência de todos os outros, é que se desempregou uma centena de sacerdotes e deixou desamparados alguns milhares de fiéis, inclusive da própria nobreza. Tal atitude, obviamente, não se mostrou uma medida popular. Todavia, por dezessete anos, tempo que durou o reinado de Akenathen, templos foram fechados e o ofício religioso a qualquer outro deus proibido. O fim do reinado de Akenathen se mostra um tanto obscuro, mas sabe-se que houve uma rebelião popular, o faraó foi derrubado, sua capital destruída e a antiga religião restaurada. O Egito entrou decadência, perdeu territórios devido ao caos que se instalou ao longo do território e, por fim, a gloriosa XVIII Dinastia se extinguiu. Nos anos que se seguiram, gradativamente, a ordem foi restabelecida, os antigos deuses e suas respectivas classes sacerdotais reconduzidas aos seus devidos lugares. Entretanto, é fácil de compreender que os sacerdotes que se dedicaram à religião monoteísta de Akenathen, diferentemente do monarca, não foram completamente exterminados, apenas caíram em desprestígio e perderam poder, entrando em desgraça. Segundo Freud, na obra citada, Moisés teria sido um dos sacerdotes da religião expurgada da sociedade egípcia. Não encontrando mais eco junto aos próprios egípcios, Moisés teria se voltados para uma classe de pessoas, considerada a escória daquela sociedade, os escravos semitas. A esse povo, ele teria ensinado a religião monoteísta, que por sua vez, a recebe muito bem por ser contrária à religião dominante, pertencente aos senhores egípcios. Por fim, Moisés liderou esse povo, os hebreus, numa fuga das terras dos faraós, para a “terra prometida, que emana leite e mel”. A compreensão da importância de Moisés para a religião judaica é básica para se entender sua estruturação histórica. Moisés, segundo a tradição judaico- cristã, teria escrito a Torá, ou A Lei, no cristianismo é chamado de Pentateuco. Este consiste nos cinco primeiros livros da Bíblia. E para nos aprofundarmos na análise da inconsistência do mito judaico, primeiro temos que conhecer cada um desses livros. O primeiro livro, conhecido como Gênesis (Bereshit, em hebraico), narra a criação do Universo, do mundo em que vivemos, da vida e do homem, pela vontade de Deus; depois a introdução do pecado no seio da humanidade, a expulsão do homem da presença de Deus, o primeiro homicídio e a destruição do mundo pela águas do dilúvio; por fim, Deus escolhe um homem, Abraão, para, da descendência deste, criar um povo santo, exemplo para todas as nações, mas que, segundo Deus, acabaria sendo escravizado nas terras do Egito. É dada ainda a genealogia dos Patriarcas: Isaque e Jacó, respectivamente, filho e neto de Abraão, e os doze bisnetos que dariam origem às doze tribos. O segundo livro, o Êxodo (Shemot, em hebraico), é dedicado exclusivamente a vida de Moisés, seu encontro com Deus, sua liderança durante a fuga do Egito e o recebimento das “Tábuas da Lei”, ou Os Dez Mandamentos, a construção da “Arca da Aliança”, e constituição do culto a Deus. O terceiro livro, Levítico (Vaiicrá), praticamente legisla sobre a atuação da classe sacerdotal no Tabernáculo, na condução da Arca da Aliança e os demais serviços de adoração. O quarto livro, Números (Bemidbar), narra todo o recenseamento feito pelo povo que se dirigia à Terra Prometida. O quinto livro, Deuteronômio (Devarim) é a segunda codificação das Leis atribuídas a Moisés. Contudo, nos deteremos nos dois primeiros livros, pois são de especial envergadura para a cristalização do judaísmo e conseqüentemente da classe sacerdotal que o criou.
O Mito da Criação:
As grandes religiões ocidentais absorveram o mito da criação, conforme
narrado na Torá e, conseqüentemente, na Bíblia. Todavia, o próprio mito em si, é muito anterior à formação do povo hebreu, ou judeu, como uma nação. O que nos leva a supor que a classe sacerdotal israelita acolheu uma idéia preexistente de uma civilização anterior, provavelmente, a Suméria. O documento escrito mais antigo da humanidade, a Epopéia de Gilgamesh, encontrado e traduzido na segunda metade do século XIX, pelo arqueólogo George Smith, narra a criação do Universo e do homem com uma semelhança gigantesca à que nós encontramos no livro bíblico de Gênesis. A exceção feita ao fato de, no mito judaico, tudo haver sido apenas um ato de um único deus, enquanto no mito sumério, há o envolvimento de várias divindades (N. K. Sandras: “A Epopéia de Gilgamesh”, 1992). Portanto, a possibilidade de adaptação de um mito recebido posteriormente à fuga do Egito, quando esta já fazia parte do imaginário hebreu, é mais do que certa. Isso deve ter ocorrido, possivelmente, quando os hebreus foram vencidos pelos caldeus e levados cativos para a Babilônia. Assim, a primeira inconsistência da narrativa mosaica cai por terra, na mínima análise científica. N. K. Sandras, na obra citada, apresenta a relevante comparação entre alguns outros aspectos contidos no Gênesis e na Epopéia de Gilgamesh. A expulsão do homem da convivência com Deus e o Dilúvio, também, são considerados, visto que, dadas as semelhanças entre as duas narrativas e a preexistência da Epopéia de Gilgamesh, não resta dúvida de que o mito bíblico, creditado a Moisés, nada mais é do que uma compilação, deliberadamente alterada pela classe sacerdotal judaica, a fim de adequá-lo ao seu próprio interesse. É interessante ressaltar que o deus hebraico, no primeiro livro da Torá, não tem o nome de Yahweh, mas “Elohim”, plural da palavra “Eloah”, significando o plural algo como, “aqueles que vêm do alto”, ou, como preferem alguns, “Elevados”. Talvez possamos notar uma alusão às divindades sumérias que na Epopéia de Gilgamesh foram protagonistas destas passagens acima citadas, no lugar reservado a Yahweh na saga judaica. No entanto, na Bíblia cristã, em qualquer versão da língua portuguesa, tanto o verbete Yahweh, quanto Elohim são traduzidos pelo verbete Deus, portanto é praticamente impossível perceber tal incoerência, somente em algumas versões utilizadas apenas para consultas de estudo, tais como a Bíblia de Genebra e a Bíblia de Jerusalém, é que se pode fazer tal constatação.
Os Patriarcas e O Êxodo:
Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman no livro “A Bíblia Não Tinha
Razão”, de 2003, fazem um trabalho revelador sobre a arqueologia bíblica e a cronologia dos fatos contidos, principalmente, na Torá. Através de um estudo comparativo entre diversos autores, os quais não cabem aqui nominá-los, apresentam a tese de que o texto bíblico, como nos foi legado, surgiu na Jerusalém do século VII a.C. Com relação à cronologia da existência dos Patriarcas, a saber: Abraão, Isaque e Jacó, os autores não autenticam a existência física e histórica destes, antes se atêm a constatar que certos detalhes, como a impossível presença de camelos e filisteus no tempo em os precursores do povo hebreu teriam vivido, são inquestionáveis anacronismos que devem ser considerados seriamente, pois, se não são inserções posteriores às narrativas mais antigas, são, no mínimo, mostras de que os textos datam de tempos muito mais recentes do que pensavam alguns estudiosos. Sendo, portanto, oriundas dos séculos VIII e VII a.C., mais possivelmente deste último. Finkelstein e Silberman argumentam que determinadas cidades citadas na Torá como existentes na época dos Patriarcas, apenas estão ali para firmarem um vínculo com os reinos que surgiriam posteriormente à pretensa existência destes, mas perfeitamente cabíveis no século VII a.C., os reinos de Davi e Salomão, e concluem que tanto Abraão, quanto Isaque e Jacó, sequer eram parentes, mas que foram agrupados, pela classe sacerdotal judaica do século VII a.C., para constituírem a base do épico nacional israelita. Quanto ao Êxodo, é sabido e muito documentado por pinturas e textos egípcios, que migrações de povos de origem semítica, radicados onde hoje se situa Israel, para as terras do Egito, durante épocas de seca nesta região, aconteciam com certa constância desde a Idade do Bronze. Maneton, historiador de origem grega e autor de “Aegyptiaca”, que viveu no século III a.C., sob o reinado de Ptolomeu I, ou II, descreve a invasão do delta do Nilo por um povo que ele chamou de “hicsos”, mal traduzido pelo próprio Maneton como “reis-pastores”, mas que, hoje sabemos, significava “chefes estrangeiros”. Esse povo, de origem semítica, viveu na cidade de Avaris e lá permaneceu por cerca de 100 anos, até serem expulsos, possivelmente, no ano 1570 a.C. Maneton credita aos hicsos a XV e a XVI Dinastias egípcias, mas vale lembrar que Maneton não se baseou em nenhum documento histórico, apenas, de modo deliberado, ordenou as dinastias egípcias por ordem de Ptolomeu, o qual buscava legitimar-se junto ao povo egípcio. Entretanto, o que nos interessa abordar agora é a semelhança do relato da partida dos hicsos do delta do Nilo, com o êxodo hebreu, e a real possibilidade de José, segundo a Torá e a Bíblia, filho de Jacó ter sido um alto funcionário da administração hicsa de Avaris. As descobertas arqueológicas de Tell Ed-Daba, antiga Avaris, na década de 90, mostram que a presença semita na região se deu paulatinamente, não havendo uma invasão e sim um ciclo de ocupações, as quais levaram à prosperidade, logo o desenvolvimento de uma administração de origem semita, chamemos de hicsa, permitiria a chegada de um hebreu, José, a um alto posto da administração hicsa. Todavia, existe aqui um problema, a Bíblia colocou o êxodo em torno de 1440 a.C., data que se obtém pela comparação de dados bíblicos com fontes extra-bíblicas. Mas, esta data não coincide com a expulsão dos hicsos. Por isto, muitos estudiosos consideram-na simbólica apenas, e datam o êxodo no século XIII a.C., na época de Ramsés II, fundados em testemunhos egípcios indiretos, como a construção da cidade de Pi-Ramsés no delta do Nilo, na qual trabalharam semitas, e na estela de Merneptah, filho e sucessor de Ramsés II, que fala da presença de uma entidade de nome 'Israel' presente em Canaã, no final do século XIII a.C. Porém, o que se sabe é que não existe nas fontes egípcias da época menção alguma da presença de israelitas no Egito. Nem ligados aos hicsos (séculos XVII-XVI a.C.), nem aos grupos semitas mencionados nas Cartas de Tell el-Amarna (século XIV a.C.), nem a uma fuga para Canaã (século XIII a.C.). O que se sabe é que não existe nenhum sinal de ocupação do Sinai na época de Ramsés II ou predecessores imediatos; que não existe sinal do êxodo em Kadesh-Barnea ou Ezion-Geber, nem nos outros lugares mencionados na narrativa do êxodo, como Tel Arad, Tel Hesbon ou Edom. Convém considerar, também, que as narrativas bíblicas do êxodo jamais mencionam o nome do faraó que os israelitas enfrentaram, segundo as afirmações do egiptólogo Donald B. Redford, em seu livro “Egito, Canaã e Israel nos Tempos Antigos”, de 1992. Por fim, a última consideração que faremos é sobre a travessia do Mar Vermelho pelo povo hebreu, liderado por Moisés. Se considerarmos que tal travessia tenha ocorrido, ela certamente não se deu no meio do Mar Vermelho, como Hollywood nos fez pensar, no belíssimo “Os Dez Mandamentos”, estrelado por Charlton Heston, em 1956. Apesar da bela fotografia e dos efeitos especiais empregados na época, essa imagem está certamente superdimensionada, caracterizando todo o poder de Deus. A Bíblia de Jerusalém é uma tradução cristã da qual participaram diversos acadêmicos de formação católica e protestante, por isso, em minha opinião, mais isenta que outras traduções, já que buscou o consenso na interpretação das Escrituras. A sua característica mais marcante é a tradução literal, não obstante de trazer à baila algumas divergências com as traduções mais amplamente usadas, aqui no Brasil a João Ferreira de Almeida (protestante) e a Santa Bíblia da CNBB. E é exatamente nessas divergências que reside a grande inconsistência do “milagre” do Mar Vermelho. A Bíblia de Jerusalém, no livro do Êxodo, capítulo 13, versículos 17 e 18, relata a travessia de modo completamente diferente das demais traduções, pois onde se lê, em outras traduções, Mar Vermelho, ela cita o “mar de juncos” (yam sûf em hebraico). Em nota de rodapé, os tradutores afirmam que “sûf” em egípcio significa junco. A plausibilidade deste relato, agora traduzido como “mar de juncos” reside na possibilidade de ter acontecido realmente na foz do rio Nilo, ou seja, no seu delta, exatamente onde houve uma ocupação semita e onde está situada a cidade de Tell Ed-Daba, antiga Avaris, capital hicsa. Sabemos que nessa região, onde hoje se situa o Canal do Suez, havia diversas lagunas e charcos que ligavam uns aos outros, até o Golfo de Suez que, por sua vez, faz ligação com o Mar Vermelho. Wenner Keller, em seu livro “E a Bíblia Tinha Razão”, edição consultada de 1964, localiza o local da travessia exatamente onde nós propomos aqui, do mesmo modo que a própria Bíblia, qualquer que seja a sua versão, põe em xeque a suposta travessia pelo meio do Mar Vermelho. Basta apenas, seguirmos atentamente a narrativa contida no livro de Números, no capítulo 33, do versículo 1 até o 49, onde a travessia é narrada de modo completamente diferente, porém nos dando subsídios suficientes para afirmarmos que o dito milagre, da maneira em que a classe sacerdotal judaica propôs, sequer aconteceu.
A Escolha do Cristianismo:
A primeira perspectiva que devemos ter em mente, quando se trata do
cristianismo, é a de que o que temos hoje como a religião de 1/3 da humanidade, não é nem de perto a seita judaica que surgiu no século I d.C. O cristianismo, como hoje conhecemos, surge num momento histórico muito posterior ao século ao que, pretensamente, Jesus teria vivido. O ano de 325 d.C. foi fundamental para a consolidação de uma das vertentes do cristianismo primitivo. Sim, uma das vertentes, pois desde seu nascedouro, o cristianismo, se dividia em dois ramos distintos: um seguidor da mensagem da salvação pela fé no Cristo, e outro que se baseava no autoconhecimento e na busca encontro com Deus através da meditação. A primeira vertente, a vencedora, chamaremos de ortodoxia (não confundir com a Igreja Ortodoxa de nossos dias) e a segunda, chamaremos de gnóstica, pois os seguidores desta corrente cristã acreditavam que somente o autoconhecimento (gnosis em grego) levaria o crente à salvação. Voltemos, então, ao ano de 325 d.C.... Conta a história que o imperador romano Constantino reuniu na pequena cidade de Nicéia, hoje Iznik, na província de Anatólia, atual Turquia, todos os bispos da emergente religião cristã. Por ordem imperial, os bispos deveriam chegar a um consenso sobre todos os aspectos divergentes entre as comunidades cristãs que dirigiam. O primeiro ponto desta história é comprovado e autenticado por documentos com datação de época, ou seja, Constantino realmente forçou a realização do primeiro Concílio da Igreja, porém carece de confirmação a informação de que “todos os bispos” da Igreja atenderam e compareceram ao encontro, dirigido pessoalmente pelo imperador, conforme publicam Jean-Michel Carrié e Aline Roussele, no livro “O Império Romano em Mutação: De Severo à Constantino – 192 a 337”, de 1999. Isto por que, como já dissemos, haviam duas correntes divergentes dentro da cristandade. Suas diferenças extrapolavam a questão da salvação e em muitos pontos, como a divindade de Jesus, por exemplo, as diferenças eram tão gritantes que chegavam às raias da agressão física entre seus defensores. O que se sabe, como fato comprovado, é que os bispos da vertente gnóstica, não aceitavam a intervenção imperial nos assuntos da igreja, nem viam com bons olhos a aproximação entre o Estado e a Igreja. Por outro lado, os defensores da ortodoxia, criam nos enormes benefícios que já se faziam sentir desde 318 d.C., quando Constantino autorizou, através do “Édito da Tolerância”, a realização de cultos cristãos livremente organizados, pondo fim a três séculos de perseguições. Reza a lenda que Constantino, se converteu ao cristianismo, no ano de 312 d.C., quando, antes de uma batalha decisiva pelo controle do império, prestava culto ao sol, pois era adorador de Deus-Sol Invictus, deus da sabedoria e representado pelo disco solar. Constantino teria tido a visão de uma cruz no meio do sol, ou as duas primeiras letras gregas da palavra “Christos”. O imperador teria ouvido ainda uma voz celestial que dizia: “Sob este símbolo saireis vencedor”. E saiu. reunificando todo o exército romano e se tornando o único soberano. Essa bonita história não traduz a verdade, isto por que, de acordo com documentos da época, Constantino nunca se converteu, e de acordo com a Enciclopédia Católica, edição de 1976, dias antes de sua morte ainda prestou homenagens a Júpiter. Portanto, a inconsistência da unificação da Igreja, sob Constantino, mostra o quanto houve manipulação no próprio mito, a fim de fortalecer a classe sacerdotal cristã, mais precisamente a ortodoxia, que se beneficiou diretamente dessa história. Mas o que há de mais relevante na unificação da Igreja e a transformação do cristianismo na religião oficial do império romano? Em primeiro lugar, a unificação do território e a estabilidade social estavam em jogo, justamente pelo fato de que cada província do império mantinha a devoção a uma determinada divindade do extenso panteão romano. Mitra e Isis, que analisaremos mais adiante seus paralelismos com o atual cristianismo, tinham a preferência da população romana. Mitra era o escolhido pelas Legiões romanas, enquanto Isis tinha a preferência das mulheres de Roma. Ambos tinham templos espalhados por todo território imperial. Todavia, o que fez Constantino escolher a seita cristã, em detrimento de seus mais fortes e óbvios concorrentes, de acordo com Mircea Eliade, em “A História das Crenças e das Idéias Religiosas”, de 1992, foi o fato de que haviam alguns aspectos excludentes tanto do mitraísmo, quanto da adoração a Isis. No culto a Mitra, só eram aceitos homens que se sujeitariam a uma iniciação, depois de serem apresentados por um membro mais antigo, fato esse que excluía completamente as mulheres e outros homens que não fossem apresentados à seita por um membro. No caso do culto a Isis, o fator excludente era o de que apenas mulheres poderiam fazer parte do seita, além do fato pouco aceitável para os homens de que, durante certa época do ano, as devotas de Isis não podiam manter relações sexuais, causando transtorno familiares. Já o cristianismo, tinha a seu favor a aceitação de ambos os sexos e nenhuma restrição ao ato sexual, conquanto fosse mantido por pessoas casadas entre si. Assim, a escolha do cristianismo se deu não por uma questão de fé, ou conversão, mas por pura necessidade de controle religioso e político. Roque Frangiotti, em “A História das Heresias – Séculos I-VIII”, de 1995, nos diz que no processo que resultou no Concílio de Nicéia, certamente, Constantino se viu obrigado a tentar unificar os diversos entendimentos cristãos. Ele sustenta que os gnósticos não deram tanta importância à convocação imperial, portanto a presença dos bispos seguidores da ortodoxia era numericamente superior. Nesse contexto, um dos pontos de divergência irreconciliável dizia respeito à divindade de Jesus. Para os gnósticos Jesus era homem, filho espiritual de Deus, concebido através de um ato carnal, mas purificado pela “gnosis”, ou sabedoria de Deus, enquanto que para a ortodoxia, Jesus era uma das personificações de Deus, que juntamente com o Espírito Santo, completam a Trindade. Ário, bispo de Alexandria, diante do Concílio defendeu a tese gnóstica e acabou acusado de heresia e execrado pelos demais. Assim, a ortodoxia acabou vencedora do debate e, conseqüentemente, tornou-se hegemônica no cristianismo e sua versão de Jesus é a que nós conhecemos.
A Possibilidade da Existência:
Dentro do campo das possibilidades, não nos custa sustentar a de que
Jesus, ou Yeshuah, fosse um ser humano real. Se ele realmente existiu, segundo as duas genealogias encontradas na Bíblia, seja em Mateus ou em Lucas, Jesus era descendente do rei Davi, logo, podemos afirmar que como membro da nobreza, ele jamais poderia ter sido um simples carpinteiro. Aliás, não há uma linha sequer que dê ênfase a essa afirmação, com exceção uma frase repetida tanto no evangelho de Matheus (Mt. 13,55), quanto no de Marcos (Mc. 6,3), que pode ter sido adicionada posteriormente para fortalecer a tese de que Jesus era pobre e trabalhador. O fato é que, se Jesus existiu, e era descendente de Davi, e certamente poderia reivindicar o trono da Judéia. O conflito de interesses se faz no momento em Jesus se declara “Filho de Davi” e começa a arregimentar seguidores, tanto na nobreza quanto nas camadas mais populares da sociedade judaica, entrando em atrito direto com Roma, já que Marco Antônio, imperador romano, entregou o trono da Judéia a Herodes, o Grande, em 37 a.C. Sendo Jesus desdente de Davi, possivelmente postulante ao trono da Judéia, movimentando massas, com apoio de uma parcela da nobreza, dos coletores de impostos, dos zelotes (grupo político judeu que pregava a luta armada contra Roma), esse homem obviamente não era bem quisto pelas forças de ocupação imperiais. Para agravar a situação, Jesus pregava abertamente contra as autoridades sacerdotais do Templo de Jerusalém e contra a parcela da elite judaica mais subserviente ao poderio romano, os saduceus. Com tantos inimigos poderosos, em todas as esferas de poder, Jesus, estava com seus dias contados. A gota d’água foi a sua entrada “triunfal” em Jerusalém, quando foi ovacionado por seus seguidores que, repetidamente, o chamavam de “Filho de Davi”. Sem querer entrar em controvérsia se o relato bíblico é verossímil ou não, mas apenas nos atendo as evidências, podemos afirmar que houve uma conspiração, muito bem arquitetada para levar Jesus até o seu julgamento. E mais... Um julgamento romano, diante do interventor e autoridade maior da ocupação imperial, Pôncio Pilatos. Ousando um pouco mais, diríamos que toda a narrativa em que Pilatos teria “lavado as mãos”, nada mais é do que um artifício posterior para inocentar Roma e culpar os judeus pela morte de Jesus, agora o “Filho de Deus”. A principal evidência está na própria crucificação em si, pois não existe sequer um relato documentado na história do povo judeu, nem mesmo na Bíblia, de que um condenado tenha sido crucificado. A punição mais grave aplicada pelas autoridades judaicas, que levava à morte, era o apedrejamento. A crucificação, por sua vez, era muito comum no tratamento que Roma dispensava aos traidores do império. Então, se Jesus existiu, era postulante ao trono da Judéia, o que contrariava os interesses de Roma, arrebanhava centenas de seguidores, tinha ligações com os zelotes e se declarava abertamente contrário à elite que apoiava Roma em Jerusalém, não nos resta outra opção, senão a de que ele era um inimigo de Roma, logo passível de ser crucificado e morto.
O Messias e O Mito:
Entre os séculos IV a.C. e I d.C., popularizou-se entre o povo israelita a
crença do advento da vinda do Messias, que seria um libertador da tirania romana. Mas, de onde surge essa esperança? Com que embasamento se espera a vinda de um líder? Em primeiro lugar devemos entender o que significa a palavra Messias (Mashiach em hebraico) e depois compreender a importância que esse título ganhou com o passar dos anos. Literalmente, messias significa ungido, alguém que recebeu a unção com óleo, ou seja, foi miticamente alçado à categoria de autoridade. A primeira vez que isso ocorreu na história de Israel, foi quando o profeta Samuel derramou azeite sobre a cabeça de Saul, que viria a ser o primeiro rei dos judeus. Este ato simbolizava que Deus havia dado seu aval sobre a autoridade de Saul como rei dos judeus. Pouco depois, por ter Saul desobedecido a Deus, Samuel unge Davi, quando este ainda era um menino. Mais tarde, Davi, como sabemos, viria se tornar rei de Israel. Ambos, Saul e Davi eram messias, já que haviam sido ungidos por Samuel. Os reis que se seguiram a Davi, também foram ungidos por algum profeta, lhes conferindo autoridade sobre o povo israelita. Todavia, segundo o relato bíblico e as evidências históricas, os judeus acabaram cativos na Babilônia e durante muito tempo ficaram sem seus governantes. Os judeus viveram tempos difíceis, depois do domínio babilônio, passaram para as mãos dos persas, depois para os grego- macedônios, até que em 167 a.C. estoura uma revolta em Jerusalém, liderada pelo sacerdote Matatias, que morre no ano seguinte. Um de seus filhos, Judas, toma a frente da rebelião e conquista Jerusalém em 164 a.C., dando início a linhagem dos Macabeus, que duraria até a invasão romana em 63 a.C. É importante ressaltar que Matatias, era um sacerdote do Templo de Jerusalém e, como mandava o costume da época, também era um ungido, ou seja, um messias. Judas, depois da tomada de Jerusalém, assume o título de soberano dos judeus e, seguindo a tradição, também, fora ungido como tal, tornando-se um messias. O significado da palavra messias tomou outro sentido, na medida em que a necessidade da classe sacerdotal judaica, também, mudava. Seitas laicas passaram a fazer suas próprias interpretações das profecias e popularizaram a idéia da vinda de um rei, descendente de Davi, que seria o Messias que libertaria a Judéia da opressão romana. E quando a seita cristã, depois da morte de Jesus, precisou encontrar a força necessária para continuar existindo, morre o homem Jesus e nasce o mito Jesus Cristo. Coincidentemente, ou não, o nome Jesus, ou melhor, Yeshuah, significa “salvador”, que viria bem a calhar nas pretensões daqueles que se faziam de novos líderes da pequena seita cristã. Não é possível determinar quando houve a transformação do Jesus histórico, se é que ele existiu, no personagem mítico, cheio de poderes miraculosos. Muito menos se foi uma coisa deliberada ou não. Mas, podemos afirmar, com muita certeza, que muitos dos milagres e das atitudes atribuídas a Jesus, são na verdade adaptações da história outros personagens, contemporâneos de Jesus, mas que caíram no esquecimento quando o cristianismo se tornou a religião oficial do império romano.
Os Rivais de Jesus:
Nascido na cidade de Tiana, na Capadócia, atual Turquia, na província
romana da Ásia, no ano 2 a.C, a 13 de março. Apolônio de Tiana, segundo a lenda teve seu nascimento anunciado à sua mãe por um emissário dos deuses. Desde criança escolheu o ascetismo como filosofia de vida, depois quando jovem, segundo o relato de Flavio Filóstrato, em “A Vida de Apolônio”, curou enfermos, sarou feridas que não se fechavam, pregou a mensagem da paz e do amor universal, e, segundo a fonte, quando já era adulto, em Roma, ressuscitou a filha de um senador. Os textos que falam sobre Apolônio foram divulgados por ordem de Julia Domna, esposa de Septímio Severo, imperador romano, que encarregou Filóstrato de elaborar uma biografia do taumaturgo, a partir de notas do próprio Apolônio que chegaram às suas mãos. Assim, como no caso dos evangelhos cristãos, foram as cópias das cópias que tantas e tantas vezes foram copiadas, que chegaram as nossas mãos. Apolônio de Tiana teve inúmeros seguidores desde nobres romanos até filósofos gregos. O imperador romano Adriano, mandou publicar sua obra por todo o império. Aureliano, também imperador de Roma, dizia ter visões de Apolônio que o orientava em diversas ocasiões. Voltando ao campo das possibilidades, é possível que, quando o cristianismo fora adotado como a religião do império, muitas das obras e milagres atribuídos a Apolônio de Tiana, tenham sido adicionados aos feitos do Cristo romano, a fim de que a figura de Jesus não fosse suplantada por nenhuma outra. Mas, vejamos outra figura, que por incrível que pareça consta inclusive nos relatos do Novo Testamento... Na região da Samaria, ao norte da Judéia, viveu um homem que assim como Jesus, arregimentou centenas de seguidores, pregava o amor e paz universal, curava os enfermos e que podia levitar e alçar o paraíso. Seu nome era Simão, o mago. Simão nos é apresentado na Bíblia, no livro dos Atos dos Apóstolos, onde é retratado como um homem que enfeitiçara toda a Samaria e que praticava magia. Certo dia, Pedro estava impondo a mão sobre os crentes e os revestindo com o Espírito Santo. Simão viu a cena, se aproximou e pediu para também receber o dom do Espírito Santo. Pedro respondeu que era preciso ter fé em Jesus e renunciar ao mundo, Simão então tenta comprar a benção de Pedro, que, obviamente, não aceita a propina e acusa Simão de blasfêmia. Esse ato, de tentar comprar uma benção, é chamado hoje simonia, ou ato de Simão. O evangelho gnóstico “Os Atos de Pedro”, datado do século II d.C., narra outro embate entre Simão e Pedro, no qual Simão acaba sendo apedrejado pelos seus próprios seguidores, agora convertidos a Jesus. Tendo em vista a preocupação que a classe sacerdotal do cristianismo, responsável pela compilação dos textos do Novo Testamento e dos Evangelhos Apócrifos, teve em difamar e denegrir a imagem de Simão, o mago, fica claro a importância deste nos séculos iniciais da Era Cristã. Tanto o é, que no ano 300 d.C. havia milhares de seguidores de Simão na Síria, Egito e em Roma, onde o imperador Claudio, em 54 d.C., mandou erguer uma estátua com a seguinte inscrição: “Para Simão o Deus Sagrado”. Todavia, depois da adoção do cristianismo como religião oficial do império, o culto a Simão, o mago, assim como a Apolônio de Tiana, foi proibido. A nova classe sacerdotal que emergiu e se fortaleceu com a adoção, por parte do império romano, da seita cristã como a única religião permitida, cumpriu eficazmente a tarefa de absorver qualidades, feitos e obras de outros líderes espirituais e atribuí-los ao Cristo romano. No caso específico de Simão, a idéia de repudiá-lo se estendeu por séculos, fazendo com teólogos, bispos e clérigos se dedicassem a provar que Simão servia à Satanás... No entanto, duas outras religiões rivalizavam com o cristianismo nos primeiros séculos de nossa Era. O culto a Ísis e o mitraísmo. E é improvável que essas religiões mais antigas tenham sido abandonadas pelo povo romano, logo depois da adoção do cristianismo como religião oficial do império. O mais provável, como veremos, é que tenham sido absorvidas pelo cristianismo, numa jogada de mestre da classe sacerdotal da nova religião imperial. Isis era uma deusa de origem egípcia, cujo culto foi levado para Roma pouco depois que o Egito passou a ser uma província romana. Era costume de Roma assimilar os deuses dos povos conquistados. O imperador Calígula ergueu um templo para a deusa, no ano 40 d.C., o que serviu para popularizar o culto a Isis. Com o tempo, por volta do ano 200 d.C., Isis se tornou tão popular que chegou a ser cogitada como culto imperial. Mas, ela esbarrava no culto ao Sol Invictus, o sol invencível, que era uma das designações de seu filho, Hórus, logo ela estava sendo chamada de “Santa Mãe de Deus”, “Rainha do Céu” e de “Mãe Virgem”, o que pode, certamente, remeter ao culto cristão a Nossa Senhora. As imagens da deusa, datadas do século II d.C, como as recuperadas nas escavações de Pompéia, mostram-na sempre com seu filho, Hórus, no colo, o que nos remete a iconografia cristã da imagem da mãe de Jesus com o filho. No ano 500 d. C. todos os templos de Isis, existentes no território dominado pela igreja romana, foram transformados em igrejas católicas dedicadas à Virgem Maria. Quanto a Mitra, este era uma divindade de origem persa, mas que teve similar na Índia. Chegou à Grécia pelas mãos dos soldados de Alexandre, o Grande, e se espalhou por todo o Mediterrâneo. Entre os séculos II e IV de nossa Era, o mitraísmo era a religião oficial dos soldados romanos e a divindade protetora do império. Existem profundas semelhanças entre o mitraísmo e cristianismo que conhecemos hoje, por exemplo: Mitra nasceu de uma virgem no dia 25 de dezembro, aos 12 anos ensinava sua doutrina, aos 30 iniciou seu ministério, tinha doze discípulos, dividiu uma última refeição com seus discípulos antes de morrer, morreu e três dias depois ressuscitou e voltou a Terra como “Filho de Deus”, e para terminar esse rol de coincidências, os adeptos do mitraísmo ao final de seus cultos dividiam o pão e bebiam o vinho, que simbolizavam a carne do deus e seu sangue. São coincidências demais para não percebermos que as religiões de Isis e Mitra foram descaradamente absorvidas pelo cristianismo.
Conclusão:
Coincidências à parte, o cristianismo, assim como judaísmo, estão
repletos de repetições das próprias origens. Parece que em algum momento houve uma medição de força entre o judaísmo e o cristianismo. Pois enquanto uma escritura mostra Moisés abrindo as águas do mar, a outra mostra Jesus caminhando sobre as águas; em outra passagem do Antigo Testamento vemos o profeta Elias multiplicar a farinha e o azeite da viúva pobre, em outra, no Novo Testamento, Jesus multiplica os pães e os peixes para alimentar uma multidão; mais à frente no Antigo Testamento o mesmo Elias ressuscita o filho da viúva, e Jesus, no Novo Testamento, ressuscita diversas pessoas. O confronto é claro, não há dúvidas, se nos dedicarmos com atenção aos textos bíblicos veremos que os milagres do Novo Testamento são maiores e superiores do que os do Antigo Testamento, o que nos comprova que a religião emergente, tentava suplantar a original, tal como Sigmund Freud, analisa em “Moisés e o Monoteísmo”: o filho tentando vencer o pai. É certo que tanto o judaísmo quanto o cristianismo absorveram diversas posturas de religiões anteriores, como vimos. Seja de um culto expurgado do Egito pelo judaísmo, seja do culto a Isis ou a Mitra, ou mesmo da adição de obras e milagres a história de Jesus, pelo cristianismo. O fato é que as classes sacerdotais que criaram e sustentam, ainda hoje, as religiões, não só o judaísmo ou o cristianismo, bem como todas as outras existentes, se beneficiam diretamente da fé despejada pelo crente na entidade alvo de adoração. Karl Marx e Frederich Engels apresentaram diversas vezes a religião como um entrave na luta de libertação da classe trabalhadora. Grosso modo, somos obrigados a concordar, mas não vejo a religião em si como a fonte de imobilização da classe trabalhadora nas lutas de conquistas de sua emancipação política e econômica, como demonstraram Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff, em “A Teologia da Libertação e Cativeiro”, de 1980. Contudo, apontar para as classes sacerdotais que se beneficiam diretamente da fé humana, é sim o melhor caminho para provar que as inconsistências das religiões estão seguramente arraigadas nos interesses daqueles que as dirigem.
Fontes não citadas no texto:
Bíblia de Referência Thompson, Edições Vida, 1992. Conferência Teológica proferida por: Caroline R. Fontaine, Ph.D. do Andover Newton Theological School; Marvin Mayer, professor de Religiões da Chapmann University; Jonathan L. Reed, teólogo, autor do livro “In Search of Paul” , em Dallas, E.U.A, 2004.