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1 INTRODUÇÃO
1 Cf. nota 2.
criado.
Filho de Arthur W. Machen e Mary G. Machen, ambos presbiterianos e
seguidores da ortodoxia calvinista, John foi rigidamente educado nos preceitos
reformados, tendo sido obrigado, ainda na infância, a decorar o Catecismo Menor2.
A aristocracia sulista norte-americana foi o grupo social no qual estava
inserido. Sua riqueza pode ser comprovada pela herança recebida com a morte do
avô, quando ainda constava de seus 21 anos – a quantia de 50.000 dólares. Seu
berço nobre possibilitou os recursos necessários para uma educação elevada, tendo
desfrutado de viagens com sua mãe, e adquirido a formação cultural típica de um
aristocrata. O Dr. John Piper afirma que por seis vezes, pelo menos, Machen
realizou viagens à Europa.3
Aos dezessete anos, Machen iniciou os estudos na Universidade Johns
Hopkins, e se formou em 1901, com altas honras. Ali foi aluno do distinto professor
de grego clássico, Basil L. Gildersleeve.4
Após estudos de pós-graduação na Johns Hopkins, Machen iniciou os
estudos no Seminário e na Univesidade de Princeton. Foi aluno de Francis L. Patton
e Benjamin B. Warfield. Aprofundou-se nos estudos do Novo Testamento, obteve um
mestrado em filosofia na mesma instituição, e demonstrou seu interesse por temas
ortodoxos, como o nascimento virginal de Cristo.
Concluído o curso em 1905, Machen, ainda inseguro de sua vocação
ministerial, decidiu continuar os estudos na Europa, tendo estudado nas
universidades de Marburg e Göttingen, sob a orientação de renomados professores
liberais, dentre os quais, Wilhelm Herrmann.
O contato com tais professores gerou algum impacto em Machen.
Conforme o Dr. Valdeci Santos, “assim como Abraham Kuyper, Machen sentiu-se
inicialmente atraído pelos argumentos do liberalismo e isso o lançou em um
profundo período de questionamento e confusão”.5
Tendo retornado aos Estados Unidos, Machen passou a lecionar no
Seminário de Princeton, enquanto ainda lutava com suas dúvidas – por isso não
2 SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o liberalismo. Fides Reformata – v.1,
n.1 (1996). São Paulo: Editora Mackenzie, 1996.
3 PIPER, John. Contending for our all: defending truth and treasuring Christ in the lives of
Athanasius, John Owen and J. Gescham Machen. Wheaton, Illinois: Crossway Books, 2006. p.
120.
4 KELLY, D. F. Machen, John Gresham. In: EWELL, Walter E. Enciclopédia histórico-teológica da
igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 187.
5 SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o liberalismo, p. 148.
seguiu diretamente em busca da ordenação.
Ao longo dos anos, e com a companhia de Patton e Warfield, as dúvidas
de Machen foram dissipadas, e ele se estabeleceu firmemente como um cristão
reformado conservador, em oposição ao modelo teológico liberal crescente.
Embora lecionando desde 1906, sua ordenação viria apenas em 1913. No
ano seguinte, por ocasião da I Guerra Mundial, ele se tornou secretário da
Associação Cristã de Moços (YMCA), servindo em uma base militar na França.
Percebeu, pelas situações trágicas da guerra, que o liberalismo mais uma vez
falhava em perceber adequadamente a realidade – as suas promessas de paz não
atentavam para o presente.
Voltou em 1919 a Princeton, e se firmou como grande nome da Ortodoxia
e dos estudos no Novo Testamento. Logo no ano seguinte se envolveu em uma
controvérsia sobre a unificação de pequenas denominações presbiterianas – alguns
de seus amigos de cátedra eram favoráveis, mas Machen afirmava que esta
unificação produziria uma “pluralidade teológica indesejável”6.
Em 1921 e 1923 Machen publicou obras como The origin of Paul's religion
e Cristianismo e Liberalismo7. Tais livros o inseriram no contexto da controvérsia
modernista-fundamentalista, e assim – especialmente por sua ortodoxia – ele foi
considerado um fundamentalista.
Três grupos foram formados na controvérsia acima mencionada: os
conservadores, os moderados, e os liberais, e esta divisão repercutiu em Princeton.
Exemplo disto foi a difamação sobre Machen – por ser conservador – quando de sua
indicação para a cátedra de Filosofia e Ética naquela instituição.
Para solucionar os conflitos surgidos a partir da controvérsia, uma
comissão foi designada para avaliar e propor uma solução para o caso do
Seminário. A conclusão dos avaliadores foi que era necessário, mais que uma
discussão teológica da questão, um trato político-administrativo do problema. Para
tanto, decidiu-se reorganizar a Junta Diretora8, passando esta a ser composta de
mais liberais e moderados do que conservadores.
Machen protestou contra tal intervenção, apontado para o impacto desta
medida.
Se a dissolução da presente Junta Diretora for concretizada... [e] o controle
6 Ibid., p. 152.
7 Publicado no Brasil pela editora Os Puritanos.
8 Board of Directors
do Seminário passado a mãos inteiramente diferentes, então o Seminário
Teológico de Princeton como tem sido tão honradamente conhecido, estará
morto, e nós deveremos ter em Princenton uma nova instituição de um tipo
radicalmente diferente9.
9 MACHEN apud PIPER, John. Op. Cit., p. 119. Tradução livre: If the proposed . . . dissolution of
the present Board of Directors is finally carried out . . . [and] the control of the Seminary
passes into entirely different hands—then Princeton Theological Seminary as it has been
so long and so honorably known, will be dead, and we shall have at Princeton a new
institution of radically different type.
10 Rethinking Missions
11 PIPER, Op. Cit., p. 115. A expressão no original é deadly tired.
grande?”12.
12 Ibid., p. 116. Tradução Livre: Sam, isn't the Reformed Faith grand?
13 LOPES, Augustus N. O que estão fazendo com a Igreja: ascensão e queda do movimento
evangélico. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
14 GRENZ, Stanley; OLSON, Roger E. A Teologia do Século 20: Deus e o mundo numa era de
transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p.25-26.
15 GRENZ, Stanley; OLSON, Roger E. Op. Cit., p.19-20.
16 Segundo Grenz e Olson (Op. Cit., p.36), “para Hegel, a verdade era o processo [dialético] em si”.
doutrinas no cristianismo.
O historiador Justo González17 acrescenta a esta tríade que pavimentou o
espírito da Teologia moderna, o teólogo e filósofo Søren Kierkegaard (1813-1855). A
noção kierkegaardiana da fé como “salto no escuro” também contribuiu para o
rompimento da mentalidade cristã ortodoxa. Embora esta contribuição caminhe de
mãos dadas com o pensamento liberal, Kierkegaard é descrito por Olson como um
“antiliberal”18.
Como o historiador Alderi Souza de Matos descreve, os teólogos liberais
não pretendiam a destruição da fé cristã, mas “transformar o pensamento cristão à
luz da filosofia, da ciência e da erudição bíblica modernas”19.
O caminho percorrido pelo liberalismo, através de teólogos como Albrecht
Ritschl (1822-1889), Adolf Harnack (1851-1930) e Albert Schweizer (1875-1965) foi o
de afastamento da ortodoxia em vários sentidos. Para Olson, a essência da Teologia
Liberal estava no “reconhecimento máximo das reivindicações da modernidade em
uma estrutura cristã”20. Ela reconhecia a modernidade como fonte originária da
teologia cristã, e sustentava três temas principais: a imanência de Deus, a
moralização do dogma, e a salvação universal da raça humana.
A imanência de Deus foi enfatizada, a ponto do discurso liberal adquirir
nuances panteístas, segundo a descrição de Olson21, principalmente pela influência
de Hegel e sua idéia de um “espírito universal”. Outra tendência que brotou desta
ênfase na imanência estava na revisitação da cristologia em termos
antropocêntricos. A busca do “Jesus histórico” se tornou a moda teológica do
momento. O Messias era analisado em Sua humanidade, sem maior espaço para a
consideração de divindade nEle. Por vezes, a divindade de Jesus foi abandonada,
restando apenas sua humanidade. A procura seguia no sentido de se desvencilhar
dos relatos míticos e poéticos da igreja primitiva, até que se alcançasse o registro
fiel do Jesus humano, o exemplo moral para a humanidade.
A moralização do dogma era outro tema corrente do liberalismo. Pela
ênfase na imanência e redução do campo da metafísica, o aspecto moral tomou
Como foi dito acima, Machen não era o único a lutar contra o liberalismo.
No contexto reformado, já foi mencionado B. B. Warfield e sua defesa da inerrância
Bíblica. Fora dos círculos reformados, a reação ao liberalismo ficou conhecida pelo
movimento chamado “Fundamentalismo”.
Olson descreve o Fundamentalismo como um movimento de defesa da
ortodoxia cristã.
Se a essência da teologia protestante liberal era o reconhecimento máximo
das reivindicações da modernidade pelo pensamento cristão, a essência da
teologia fundamentalista pode ser descrita como o reconhecimento máximo
das reivindicações da ortodoxia protestante contra a modernidade e a
teologia liberal28.
Para Machen, o uso de uma nova denominação para aquilo que era o
cristianismo clássico e ortodoxo de sempre, soava como um rompimento com as
origens da fé cristã. Ademais, o termo não vinha associado apenas à crença em
verdades fundamentais, mas em outros pontos que se tornaram característicos dos
fundamentalistas, como o premilenismo.
Segundo a descrição de Horton, Machen preferia outra descrição para a
sua forma de pensar. “Ao ser questionado se era 'fundamentalista', Machen preferiu
o rótulo descritivo de 'Reformado' "31. O termo 'reformado' alinhava Machen com
Warfield, bem como com a grande linha de teólogos conservadores que abraçavam
as doutrinas cristãs e manifestavam concordância com que passou a ser conhecido
como calvinismo – mais que um sistema soteriológico, uma visão de mundo
centrada na Escritura.
Não se deve pensar que, por preferir o rótulo 'reformado', Machen
desprezava ou se opunha diretamente ao fundamentalismo. A despeito das
divergências que tinha em relação aos fundamentalistas, ele os considerava irmãos,
e valorizava muito mais a sua proximidade e parceria no combate ao liberalismo, do
que as diferenças entre ambos. Ele declarou que, diante de um inimigo comum,
praticamente não sobrava tempo para perceber as diferenças internas.
32 MACHEN, J. Gresham apud SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o
liberalismo. Fides Reformata – v.1, n.1 (1996). São Paulo: Editora Mackenzie, 1996.
33 PIPER, John. Contending for our all, p.127
34 MACHEN, J. Gresham apud Piper, John. Contending for our all, p. 129.
35 Thoroughly consistent Christianity, to my mind, is found only in the Reformed or Calvinist Faith;
and consistent Christianity, I think, is the Christianity easiest to defend. Hence I never call myself a
“Fundamentalist.” . . . What I prefer to call myself is not a “Fundamentalist” but a “Calvinist”—that
is, an adherent of the Reformed Faith. As such I regard myself as standing in the great central
current of the Church’s life—the current that flows down from the Word of God through Augustine
and Calvin, and which has found noteworthy expression in America in the great tradition
represented by Charles Hodge and Benjamin Breckinridge Warfield and the other representatives
of the “Princeton School.”
Se a identificação mais clara para Machen era a de 'reformado', e o
fundamentalismo se afastava desta perspectiva, é natural serem consideradas as
semelhanças entre ambos, mas também a percepção de diferenças fundamentais
que, em maior ou menor grau, inviabilizam o trato de ambos como um movimento
uniforme. Machen não se via como um fundamentalista, e, de algum modo,
contribuía para que os fundamentalistas não o vissem como um deles. Ele era um
calvinista, e isso bastava.
43 Ibid.
44 Ibid., p. 70.
45 Ibid., p. 77.
46 Ibid., p. 78.
47 Ibid., p. 79.
48 Ibid., p. 80.
49 Ibid., p. 81-83.
50 Ibid., p.85.
51 Ibid., p.89.
52 Ibid., p. 99.
53 Ibid., p.119.
reformados, por outro lado, “a Igreja é a resposta cristã mais elevada às
necessidades sociais das pessoas”54.
Deste modo, Machen tece suas críticas ao liberalismo em conformidade
com as posturas reformadas de modo geral. Seus pressupostos são ortodoxos e
calvinistas. Pela dinâmica da obra, Machen pode ser encarado como um modelo
apologético, uma voz reformada que se engajou na luta pela verdade, por amor a
Deus e à Igreja.
Quem pensa que o liberalismo se foi de uma vez por todas demonstra não
estar atento à realidade. Lopes55 indicou as formas nas quais o movimento liberal
clássico não existe mais – especialmente em sua conexão com o modernismo. O
projeto pós-moderno – se é possível tratá-lo assim – caminha em alguns sentidos de
modo distinto da modernidade, e requer nuances específicas.
Ainda assim, Lopes fala da existência dos “neoliberais” - um grupo não tão
homogêneo de teólogos, líderes eclesiásticos, pastores, cientistas da religião e
professores de seminário que ainda partilham dos pressupostos do liberalismo
clássico, embora não os manifestem clara e abertamente.
A publicação recente em terras brasileiras de obras dos liberais clássicos
é tanto causa quanto efeito de um resgate do liberalismo em círculos teológicos: a
comprovação de que o Brasil caminha no “fim da fila” do pensamento mundial56.
Com maior apelo entre os jovens, porém, está um novo modo de pensar e
viver a realidade eclesiástica, que traz consigo semelhanças com pressupostos
liberais: o movimento de “Igreja Emergente”.
Assim como os liberais, os emergentes dão menos valor à doutrina;
priorizam a experiência sobre o conhecimento; valorizam a subjetividade em vez de
fórmulas e credos; têm forte apelo moral, em detrimento da mensagem da graça
54 Ibid., p.156.
55 LOPES, Augustus N. Op. Cit.
56 Para demonstrar o ponto: enquanto no resto do planeta a proposta marxista/socialista/comunista
foi considerada ineficaz para lidar com os problemas sociais, no Brasil ela se tornou moda;
enquanto a proposta construtivista passou a ser abandonada no resto do mundo, tornou-se o
grande assunto nas faculdades brasileiras de pedagogia. O mesmo acontece com o liberalismo
clássico.
salvadora; e manifestam sua ira contra a ortodoxia teológica57.
O formato pós-moderno e cool dos emergentes atrai e comunica melhor
aos jovens que nasceram sob tal cosmovisão, daí a necessidade de uma
compreensão adequada do liberalismo clássico e desta vertente pós-moderna.
Por fim, o esvaziamento do conteúdo evangélico na vida das igrejas
tradicionais, conforme descrito por Horton58, indica que alguns dos pressupostos
liberais foram assimilados por cristãos que hoje se consideram “conservadores”.
Exemplo disso é o moralismo que esvazia o evangelho e confere a este apenas um
caráter de méritos humanos e obras a serem cumpridas – exatamente como o que
Paulo condenou em Gálatas.
Os pressupostos liberais se reconfiguram e se apresentam sob nova
roupagem. Diante dos novos desafios percebidos, cabe ao cristão a sobriedade e
fidelidade bíblica, para oferecer uma resposta firme e consistente, nos moldes do
projeto de Machen.
Talvez por isso Carson tenha ressaltado a importância deste autor para
hoje: “Ainda vale a pena ler tudo que J. Gresham Machen escreveu. Mesmo que
alguém discorde desse ou daquele trecho, seu pensamento tem uma abrangência
que hoje deveria ser mais imitada do que criticada”59.
Que seja imitada, então.
57 Para uma avaliação equilibrada do movimento, cf. CARSON, D. A. greja emergente: o movimento
e suas implicações. São Paulo: Vida Nova, 2010.
58 HORTON, Michael. Cristianismo sem Cristo: o evangelho alternativo da igreja atual. São Paulo:
Cultura Cristã, 2010.
59 CARSON, D. A. Op. Cit., p. 77.
REFERÊNCIAS
MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo
Cristão, 2008.
OLSON, Roger. História da Teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São
Paulo: Vida, 2001.
PIPER, John. Contending for our all: defending truth and treasuring Christ in the
lives of Athanasius, John Owen and J. Gescham Machen. Wheaton, Illinois:
Crossway Books, 2006.