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FUNDAMENTALISTA OU REFORMADO?

J. GRESHAM MACHEN E SUA RESPOSTA AO LIBERALISMO TEOLÓGICO


CLÁSSICO

Allen Ribeiro Porto*


allenporto@gmail.com

1. INTRODUÇÃO 2. SÍNTESE BIOGRÁFICA DE J. GRESHAM


MACHEN 3. O IMPACTO DO LIBERALISMO TEOLÓGICO
SOBRE AS IGREJAS CRISTÃS NO INÍCIO DO SÉCULO XX 4.
A REAÇÃO DE J. GRESHAM MACHEN AO LIBERALISMO
TEOLÓGICO 5. A DIFERENÇA DE ABORDAGEM ENTRE
MACHEN E OS FUNDAMENTALISTAS 6. UMA AVALIAÇÃO
REFORMADA DA OBRA “CRISTIANISMO E LIBERALISMO” 7.
CONCLUSÃO: PARA UMA PERCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA
DO LIBERALISMO

1 INTRODUÇÃO

Quando se fala em liberalismo, nomes como Ritschl e Schweizer logo vêm


à mente. Quando se fala em fundamentalismo, o nome J. Gresham Machen também
logo surge. A proposta do presente trabalho é analisar a relação entre três dos
nomes mencionados acima, a saber: J. Gresham Machen, o liberalismo, e o
fundamentalismo.

* O autor é graduado em Teologia pelo Instituto Superior de Teologia Reformada (INSTER),


especialista em História da Igreja pela Faculdade Internacional de Teologia Reformada (FITRef), e
mestrando em teologia, com contentração em Teologia Filosófica no Centro de Pós-Graduação
Andrew Jumper (CPAJ) – Universidade Presbiteriana Mackenzie.
A contribuição de Machen, bem como sua representatividade em uma
resposta reformada ao liberalismo justificam a sua escolha para a presente análise.
Poucos pensadores conseguiram aliar tão bem uma erudição cultural com equilíbrio
e fidelidade teológica, bem como vigor ministerial. Machen combinou tudo isso,
como será apresentado adiante.
A questão composta que norteou a análise foi: Qual foi a reação de
Machen aos liberais, e tal abordagem o configura como um fundamentalista? Para
se obter luz sobre o assunto, foi utilizada a pesquisa bibliográfica. Obras do
apologeta em referência, bem como biografias e artigos relacionados foram
levantados e estudados para a mini-monografia ora apresentada.
Pelo caráter limitado do trabalho, não se pretende aqui uma análise
extensa dos detalhes biográficos de John Machen – para isto, biografias completas
foram elaboradas, como a de Stonehouse, ou o artigo biográfico do Dr. Valdeci
Santos1 –, nem uma avaliação profunda de sua abordagem apologética ou dos
tópicos polêmicos tratados na controvérsia modernista-fundamentalista.
O objetivo é lidar com a questão levantada, e fazer relações a partir das
descobertas, para a melhor compreensão de uma resposta reformada a abordagens
teológicas heterodoxas. Para tanto, o trabalho será organizado em torno de eixos
fundamentais: (1) síntese biográfica de Machen, (2) descrição do liberalismo e seus
efeitos sobre a igreja, (3) a reação de Machen ao liberalismo, (4) a diferença de
abordagem entre Machen e os fundamentalistas e (5) avaliação da obra
“Cristianismo e Liberalismo”. Ao final, uma conclusão traça perspectivas sobre o
ministério de Machen, e o liberalismo na atualidde.
A redenção da mente passa pela produção de artigos, monografias e
trabalhos que resgatem uma cosmovisão cristã aplicada ao contexto acadêmico.
Que este trabalho seja exemplo de uma obra comprometida com os pressupostos
cristãos ortodoxos, para a glória de Deus.

2 SÍNTESE BIOGRÁFICA DE J. GRESHAM MACHEN

John Gresham Machen nasceu na cidade de Baltimore, estado de


Maryland, nos Estados Unidos da América, no dia 28 de Julho de 1881. Sua
trajetória nos estudos teológicos sofreu direta influência do contexto no qual foi

1 Cf. nota 2.
criado.
Filho de Arthur W. Machen e Mary G. Machen, ambos presbiterianos e
seguidores da ortodoxia calvinista, John foi rigidamente educado nos preceitos
reformados, tendo sido obrigado, ainda na infância, a decorar o Catecismo Menor2.
A aristocracia sulista norte-americana foi o grupo social no qual estava
inserido. Sua riqueza pode ser comprovada pela herança recebida com a morte do
avô, quando ainda constava de seus 21 anos – a quantia de 50.000 dólares. Seu
berço nobre possibilitou os recursos necessários para uma educação elevada, tendo
desfrutado de viagens com sua mãe, e adquirido a formação cultural típica de um
aristocrata. O Dr. John Piper afirma que por seis vezes, pelo menos, Machen
realizou viagens à Europa.3
Aos dezessete anos, Machen iniciou os estudos na Universidade Johns
Hopkins, e se formou em 1901, com altas honras. Ali foi aluno do distinto professor
de grego clássico, Basil L. Gildersleeve.4
Após estudos de pós-graduação na Johns Hopkins, Machen iniciou os
estudos no Seminário e na Univesidade de Princeton. Foi aluno de Francis L. Patton
e Benjamin B. Warfield. Aprofundou-se nos estudos do Novo Testamento, obteve um
mestrado em filosofia na mesma instituição, e demonstrou seu interesse por temas
ortodoxos, como o nascimento virginal de Cristo.
Concluído o curso em 1905, Machen, ainda inseguro de sua vocação
ministerial, decidiu continuar os estudos na Europa, tendo estudado nas
universidades de Marburg e Göttingen, sob a orientação de renomados professores
liberais, dentre os quais, Wilhelm Herrmann.
O contato com tais professores gerou algum impacto em Machen.
Conforme o Dr. Valdeci Santos, “assim como Abraham Kuyper, Machen sentiu-se
inicialmente atraído pelos argumentos do liberalismo e isso o lançou em um
profundo período de questionamento e confusão”.5
Tendo retornado aos Estados Unidos, Machen passou a lecionar no
Seminário de Princeton, enquanto ainda lutava com suas dúvidas – por isso não

2 SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o liberalismo. Fides Reformata – v.1,
n.1 (1996). São Paulo: Editora Mackenzie, 1996.
3 PIPER, John. Contending for our all: defending truth and treasuring Christ in the lives of
Athanasius, John Owen and J. Gescham Machen. Wheaton, Illinois: Crossway Books, 2006. p.
120.
4 KELLY, D. F. Machen, John Gresham. In: EWELL, Walter E. Enciclopédia histórico-teológica da
igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 187.
5 SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o liberalismo, p. 148.
seguiu diretamente em busca da ordenação.
Ao longo dos anos, e com a companhia de Patton e Warfield, as dúvidas
de Machen foram dissipadas, e ele se estabeleceu firmemente como um cristão
reformado conservador, em oposição ao modelo teológico liberal crescente.
Embora lecionando desde 1906, sua ordenação viria apenas em 1913. No
ano seguinte, por ocasião da I Guerra Mundial, ele se tornou secretário da
Associação Cristã de Moços (YMCA), servindo em uma base militar na França.
Percebeu, pelas situações trágicas da guerra, que o liberalismo mais uma vez
falhava em perceber adequadamente a realidade – as suas promessas de paz não
atentavam para o presente.
Voltou em 1919 a Princeton, e se firmou como grande nome da Ortodoxia
e dos estudos no Novo Testamento. Logo no ano seguinte se envolveu em uma
controvérsia sobre a unificação de pequenas denominações presbiterianas – alguns
de seus amigos de cátedra eram favoráveis, mas Machen afirmava que esta
unificação produziria uma “pluralidade teológica indesejável”6.
Em 1921 e 1923 Machen publicou obras como The origin of Paul's religion
e Cristianismo e Liberalismo7. Tais livros o inseriram no contexto da controvérsia
modernista-fundamentalista, e assim – especialmente por sua ortodoxia – ele foi
considerado um fundamentalista.
Três grupos foram formados na controvérsia acima mencionada: os
conservadores, os moderados, e os liberais, e esta divisão repercutiu em Princeton.
Exemplo disto foi a difamação sobre Machen – por ser conservador – quando de sua
indicação para a cátedra de Filosofia e Ética naquela instituição.
Para solucionar os conflitos surgidos a partir da controvérsia, uma
comissão foi designada para avaliar e propor uma solução para o caso do
Seminário. A conclusão dos avaliadores foi que era necessário, mais que uma
discussão teológica da questão, um trato político-administrativo do problema. Para
tanto, decidiu-se reorganizar a Junta Diretora8, passando esta a ser composta de
mais liberais e moderados do que conservadores.
Machen protestou contra tal intervenção, apontado para o impacto desta
medida.
Se a dissolução da presente Junta Diretora for concretizada... [e] o controle

6 Ibid., p. 152.
7 Publicado no Brasil pela editora Os Puritanos.
8 Board of Directors
do Seminário passado a mãos inteiramente diferentes, então o Seminário
Teológico de Princeton como tem sido tão honradamente conhecido, estará
morto, e nós deveremos ter em Princenton uma nova instituição de um tipo
radicalmente diferente9.

Como resultado, Machen deixou o Seminário de Princeton, e naquele


mesmo ano – 1929 – deu início ao Seminário de Westminster.
Outro problema decorrente desta controvérsia se deu no âmbito
missionário. A Junta de Missões Estrangeiras apoiou um relatório entitulado
“Repensando Missões”10. Para Machen, o conteúdo daquele relatório atacava a fé
cristã histórica. Ele levou isto ao Presbitério, que levou à Assembléia Geral de 1933,
mas os atos da Junta de Missões foram aprovados pela maioria.
Com outros líderes conservadores, Machen fundou a Junta Independente
de Missões Estrangeiras. Esta Junta possuía mais claramente a vinculação à
ortodoxia, com o seu claro calvinismo e rejeição dos postulados liberais. Contudo, a
Assembléia Geral de 1934 declarou a instituição desta Junta como inconstitucional,
e fruto de rebeldia e insubmissão.
Machen foi levado a julgamento em seu presbitério, sem a posibilidade de
apresentar argumentação doutrinária em sua defesa. Como consequência, foi
despojado do ministério. Apelou à Assembléia Geral, mas o seu recurso foi
indeferido.
Finalmente, Machen e outros 5.000 conservadores fundaram, em 1936, a
Igreja Presbiteriana da América, que depois viria a ser chamada de Igreja
Presbiteriana Ortodoxa (OPC).
Ao final daquele ano Machen demonstrava o cansaço em seu corpo.
Conforme Piper, os companheiros do Seminário Westminster na Filadélfia afirmavam
que a aparência de Machen ao final daquele termo era de alguém “mortalmente
cansado”11. Ele aceitou o convite para pregar na Dakota do Norte. Naquela viagem
contraiu pneumonia e faleceu no dia 1º de Janeiro de 1937.
Segundo a descrição de Piper, visitado pelo Pr. Samuel Allen, Machen
deixou como uma de suas últimas declarações: “Sam, a Fé Reformada não é

9 MACHEN apud PIPER, John. Op. Cit., p. 119. Tradução livre: If the proposed . . . dissolution of
the present Board of Directors is finally carried out . . . [and] the control of the Seminary
passes into entirely different hands—then Princeton Theological Seminary as it has been
so long and so honorably known, will be dead, and we shall have at Princeton a new
institution of radically different type.
10 Rethinking Missions
11 PIPER, Op. Cit., p. 115. A expressão no original é deadly tired.
grande?”12.

3 O IMPACTO DO LIBERALISMO TEOLÓGICO SOBRE AS IGREJAS


CRISTÃS NO INÍCIO DO SÉCULO XX

A questão que irrompe a partir da observação da vida de Machen é: o que


causou tão forte reação? Que movimento teológico foi este que causou tanta repulsa
no teólogo ortodoxo? Uma radiografia desta vertente teológica é bem-vinda para a
compreensão das posturas percebidas acima.
O Dr. Augustus Nicodemus Lopes concorda com Machen em pensar que
“o Liberalismo não é cristianismo, mas outra religião”13. As raízes deste movimento
podem ser percebidas no Iluminismo, como destacam Stanley Grenz e Roger Olson.
Apesar do Iluminismo ter chegado ao fim, a teologia nunca mais seria a
mesma. […] A teologia jamais seria capaz de ressuscitar o antigo sistema
de crenças, pois as autoridades tradicionais da Bíblia e da Igreja haviam
sido destronadas para sempre. […] Para essa nova classe de intelectuais, a
única forma de avançar em meio aos resultados do Iluminismo era
incorporar sua motivação básica na busca por novas formas de comprender
a fé cristã. […] Assim, [os teólogos do século XIX] procuraram ir além do
Iluminismo, incorporando ao mesmo tempo os avanços desta era14.

Os mesmos autores destacam como princípios do iluminismo a razão, a


natureza, a autonomia, a harmonia e o progresso15. Os liberais assimilaram a
mentalidade do seu tempo, e fizeram uma síntese entre a proposta iluminista e a
cristã. Tal junção ficou marcada pela aceitação dos postulados iluministas, e uma
leitura da Escritura e de toda a Teologia e prática cristã a partir dos pressupostos
racionalistas.
O fundamento filosófico proposto por Kant (1724-1804), no qual a
metafísica teria os seus dias contados, e tudo o que restaria seria o âmbito moral –
do imperativo categórico – deu suporte ao novo modo de fazer teologia; a noção
“dinâmica” de verdade apresentada por Hegel16 (1770-1831) levou os teólogos a
repensar o significado de suas proposições; e o modelo de Schleiermacher (1768-
1834) elevou a experiência e a subjetividade, diminuindo o lugar dos credos e

12 Ibid., p. 116. Tradução Livre: Sam, isn't the Reformed Faith grand?
13 LOPES, Augustus N. O que estão fazendo com a Igreja: ascensão e queda do movimento
evangélico. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
14 GRENZ, Stanley; OLSON, Roger E. A Teologia do Século 20: Deus e o mundo numa era de
transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p.25-26.
15 GRENZ, Stanley; OLSON, Roger E. Op. Cit., p.19-20.
16 Segundo Grenz e Olson (Op. Cit., p.36), “para Hegel, a verdade era o processo [dialético] em si”.
doutrinas no cristianismo.
O historiador Justo González17 acrescenta a esta tríade que pavimentou o
espírito da Teologia moderna, o teólogo e filósofo Søren Kierkegaard (1813-1855). A
noção kierkegaardiana da fé como “salto no escuro” também contribuiu para o
rompimento da mentalidade cristã ortodoxa. Embora esta contribuição caminhe de
mãos dadas com o pensamento liberal, Kierkegaard é descrito por Olson como um
“antiliberal”18.
Como o historiador Alderi Souza de Matos descreve, os teólogos liberais
não pretendiam a destruição da fé cristã, mas “transformar o pensamento cristão à
luz da filosofia, da ciência e da erudição bíblica modernas”19.
O caminho percorrido pelo liberalismo, através de teólogos como Albrecht
Ritschl (1822-1889), Adolf Harnack (1851-1930) e Albert Schweizer (1875-1965) foi o
de afastamento da ortodoxia em vários sentidos. Para Olson, a essência da Teologia
Liberal estava no “reconhecimento máximo das reivindicações da modernidade em
uma estrutura cristã”20. Ela reconhecia a modernidade como fonte originária da
teologia cristã, e sustentava três temas principais: a imanência de Deus, a
moralização do dogma, e a salvação universal da raça humana.
A imanência de Deus foi enfatizada, a ponto do discurso liberal adquirir
nuances panteístas, segundo a descrição de Olson21, principalmente pela influência
de Hegel e sua idéia de um “espírito universal”. Outra tendência que brotou desta
ênfase na imanência estava na revisitação da cristologia em termos
antropocêntricos. A busca do “Jesus histórico” se tornou a moda teológica do
momento. O Messias era analisado em Sua humanidade, sem maior espaço para a
consideração de divindade nEle. Por vezes, a divindade de Jesus foi abandonada,
restando apenas sua humanidade. A procura seguia no sentido de se desvencilhar
dos relatos míticos e poéticos da igreja primitiva, até que se alcançasse o registro
fiel do Jesus humano, o exemplo moral para a humanidade.
A moralização do dogma era outro tema corrente do liberalismo. Pela
ênfase na imanência e redução do campo da metafísica, o aspecto moral tomou

17 GONZÁLEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão, vol. 3: da Reforma Protestante ao


Século 20. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 370.
18 OLSON, Roger. História da Teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Vida,
2001. p. 565.
19 MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
p.214.
20 OLSON, Roger. Op. Cit., p. 565.
21 Ibid.
forma de elemento prioritário na religiosidade liberal. A teologia foi limitada à esfera
das relações éticas, e a discussão sobre a vida com Deus era secundária diante de
questões políticas e sociais.
Por fim, partindo da descrença em elementos considerados míticos, como
o diabo e o inferno, muitos liberais caminharam no sentido do universalismo,
defendendo a salvação final de todos os homens. A validade de cada religião
enquanto expressão de anseios humanos e formas de melhor interação social foi
considerada mais importante que as fórmulas e credos cristãos exclusivistas.
Nos Estados Unidos o liberalismo adquiriu mais claramente a faceta
moralista, através do fenômeno conhecido como “evangelho social”. Um dos
maiores nomes neste quesito é o do teólogo batista Walter Rauschenbusch (1861-
1918). Influenciado por Harnack, Rauschenbusch aplicou ao seu método teológico a
ênfase nas questões de justiça social. Em obras como Christianity and the Social
Crisis (o Cristianismo e a crise social, 1907) e A theology for the social gospel (Uma
teologia para o evangelho social, 1917), ele reinterpretou o sistema de doutrinas
cristãs a partir de uma perspectiva centrada no homem.
Segundo o historiador Mark Noll, “a teologia de Rauschenbusch não tinha
lugar para a expiação vicária, um inferno literal ou uma segunda vinda literal”22. O
seu rompimento com a ortodoxia ficava, assim, evidente a partir do abandono de
pontos fundamentais como a morte substitutiva de Jesus, e a centralidade de Deus
na teologia e vida da igreja.
Fundamental para a compreensão do liberalismo é também a percepção
do método histórico-crítico de interpretação. Segundo Lopes, “esse método parte
dos pressupostos racionalistas e existencialistas que subjazem ao Iluminismo”23. Em
linhas gerais o aspecto histórico do livro é analisado, e sobre o texto é feita a crítica
em suas várias nuances (da forma, das fontes, das tradições e da redação). O
pressuposto por trás deste método de análise é o de que a Bíblia é um livro humano,
passível dos erros que os indivíduos cometem, porém importante para a apreensão
de valores morais, bem como para a compreensão da religiosidade judaica.
Matos aponta o apogeu do pensamento liberal como a década de 1920 24.
Em sua descrição, os trágicos eventos como as guerras mundiais e crises

22 NOLL, Mark A. Rauschenbusch, Walter. In: EWELL, Walter E. Enciclopédia histórico-teológica


da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 231.
23 LOPES, Augustus N. Op. Cit., p.49.
24 MATOS, Alderi Souza de. Op. Cit., p. 220.
econômicas, bem como a reação de outras correntes teológicas serviram para
contestar o otimismo apresentado pelos pensadores deste grupo.
A descrição de Lopes sobre o que ele chama de “os antigos liberais” 25, em
contraste com os neoliberais na teologia, é de que eles eram mais honestos e claros
nos pontos que divergiam da postura ortodoxa - “os antigos liberais eram
impressionantes por sua firmeza, por sua clareza e coragem 26”. Segundo o autor
mencionado, hoje há um remanescente liberal que não se identifica abertamente
como tal, mas trabalha a partir desses pressupostos.
O resultado do liberalismo na europa e Estados Unidos foi o crescimento
da secularização. A igreja, esvaziada da mensagem salvadora do evangelho, perdeu
a sua força e se tornou semelhante a outros grupo filantrópicos, ou ficou restrita a
poucos acadêmicos mais interessados em desmistificar a Bíblia, ou ainda adotou
uma postura tão aberta diante de outras religiões que deixou de falar sobre o
cristianismo.

4 A REAÇÃO DE J. GRESHAM MACHEN AO LIBERALISMO


TEOLÓGICO

Possivelmente Machen não tinha visto os resultados do liberalismo em


sua plenitude. O “produto final” certamente ainda não estava completamente
desenhado diante dele. Mas a percepção de para onde a teologia liberal clássica
levava, em suas diferenças quanto à ortodoxia, causou a reação dele.
Novamente, é necessário ressaltar que o estudioso do Novo Testamento
não estava sozinho nem era pioneiro nesta resposta. Antes dele, e junto a ele,
Benjamin Breckinridge Warfield (1851-1921), sucessor de Alexander Hodge em
Princeton, já tecia as críticas reformadas ao pensamento liberal. Segundo Mark
Noll27, Warfield é mais conhecido hoje por sua defesa da inerrância Bíblica.
Como descrito na síntese biográfica, Machen experimentou dúvidas em
sua fé como consequência do relacionamento com seu professor liberal, e da
aparente piedade deste. Somente com o o devido acompanhamento de Warfield e
Patton em Princeton, as dúvidas foram se dissipando e ele se estabeleceu como um

25 LOPES, Augustus N. Op. Cit., p. 35-37.


26 Ibid.
27 NOLL, Mark A. Warfield, Benjamin Breckinridge. In: EWELL, Walter E. Enciclopédia histórico-
teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 638.
conservador.
Por sentir “na pele” os males do liberalismo, Machen reagiu tão
intensamente. Ele sabia com o que estava lidando por ter sido seduzido por tal
perspectiva, por ter estudado com pessoas desta linha, e por conhecer a ortodoxia.
A resposta de Machen veio principalmente através de suas palestras e
escritos. Alguns dos mais conhecidos são The origin of Paul's religion (As origens da
religião de Paulo 1921) e Cristianismo e Liberalismo (1923). Apenas o último título foi
publicado em português.
O título da obra pressupõe que o liberalismo é algo distinto do
cristianismo, e assim Machen tratou a questão na obra, que apresenta o credo
ortodoxo enquanto contestava as premissas liberais.
Outros escritos, como What is Faith? (O que é a fé?, 1925), The virgin
birth of Christ (O nascimento virginal de Cristo, 1927) e The Christian faith in the
modern world (A fé cristã no mundo moderno, 1936) corroboram a resposta de
Machen em tônicas diferentes do pensamento liberal.
Além dos escritos, as preleções de Machen foram importantes no combate
ao liberalismo. A pregação da verdade atuava como grande arma contra o erro.
Alguns dos livros acima listados foram publicados a partir de palestras proferidas no
Union Seminary e no Columbia Seminary.
O foco principal da reação de Machen foi o âmbito teológico. Ele escreveu
e pregou contra os desvios doutrinários do liberalismo, para que a igreja
reconhecesse e rejeitasse o erro. Ao mesmo tempo, na medida em que as políticas
administrativas eram utilizadas, Machen recorreu ao que pôde para preservar as
instituições cristãs.
Ele reagiu contra a junção das pequenas denominações presbiterianas,
considerando o problema da pluralidade doutrinária que dali decorreria, manifestou
publicamente sua resistência quanto à proposta de reorganizar a Junta Diretora de
Princeton, protestou oficialmente ao presbitério, e indiretamente à Assembléia Geral
contra a aprovação do relatório Rethinking Missions – que trazia em seu bojo
pressupostos liberais - , e apelou diante da decisão que o despojou do ministério.
O quarto tipo de reação de Machen, além dos escritos, palestras e uso de
recursos administrativos, foi a criação de instituições para o ensino e divulgação da
fé ortodoxa. Nesse contexto são contados o Seminário Westminster, a Junta
Independente de Missões Estrangeiras, a revista Christianity Today e a revista The
Presbiterian Guardian. Por meio destes órgãos, Machen treinou pessoas no
pensamento reformado, dando-lhes ferramentas para exercerem o trabalho
evangelístico e apologético requerido nos seus dias. Por meio de iniciativas mais
amplas, como as revistas mencionadas, Machen alcançou não apenas acadêmicos,
mas outros cristãos, que foram edificados com a verdade.
A reação de Machen foi forte e intensa, característica de quem reconhece
o perigo daquilo a que se opõe. Ele percebeu o ataque liberal ao cristianismo, e, ao
notar o espaço que o liberalismo reivindicava dentro da igreja cristã, não poupou
esforços para deixar claros os limites que separavam a mentalidade moderna
presente no liberalismo, da mentalidade cristã ortodoxa/reformada.

5 A DIFERENÇA DE ABORDAGEM ENTRE MACHEN E OS


FUNDAMENTALISTAS

Como foi dito acima, Machen não era o único a lutar contra o liberalismo.
No contexto reformado, já foi mencionado B. B. Warfield e sua defesa da inerrância
Bíblica. Fora dos círculos reformados, a reação ao liberalismo ficou conhecida pelo
movimento chamado “Fundamentalismo”.
Olson descreve o Fundamentalismo como um movimento de defesa da
ortodoxia cristã.
Se a essência da teologia protestante liberal era o reconhecimento máximo
das reivindicações da modernidade pelo pensamento cristão, a essência da
teologia fundamentalista pode ser descrita como o reconhecimento máximo
das reivindicações da ortodoxia protestante contra a modernidade e a
teologia liberal28.

O movimento ficou marcado pela publicação dos “Fundamentos” - uma


série de doze volumes de artigos, publicados entre 1910 e 1915, para a defesa dos
aspectos centrais da fé cristã ortodoxa. Desta publicação veio o nome que ficaria
marcado até hoje, embora com conotação diferente.
Em termos gerais, os fundamentalistas criam nas verdades básicas
fundamentais que Machen cria e defendia. Eram, portanto, irmãos caminhando
juntos, e com grandes semelhanças no que diz respeito às doutrinas centrais da fé
cristã. Por que, então, Machen não deveria ser considerado um fundamentalista?

28 OLSON, Roger E. História da Teologia Cristã, p. 570.


Na verdade, este não parece ser um ponto pacífico entre estudiosos.
Muitos, como McIntire e Olson – já citados acima – qualificam Machen como um
fundamentalista. Em vez de enfatizar as diferenças entre eles, preferem utilizar as
categorias de semelhanças, e agrupá-los juntos. Por outro lado, Piper e Horton29
apontam para a diferença de abordagem entre ambos, e não aceitam o título
“fundamentalista” sem alguma hesitação.
O primeiro fator pelo qual Machen não pode ser considerado um
fundamentalista, é a sua própria resistência com a expressão – ele não queria ser
chamado assim. Exemplo disso está na descrição de McIntire, embora este agrupe
Machen junto aos fundamentalistas.
O estudioso presbiteriano J. Gresham Machen não gostava da palavra, e
era somente com hesitação que a aceitava para descrever a si mesmo,
porque, conforme dizia, ela soava como uma nova religião e não como o
mesmo cristianismo histórico no qual a igreja sempre tinha crido.30

Para Machen, o uso de uma nova denominação para aquilo que era o
cristianismo clássico e ortodoxo de sempre, soava como um rompimento com as
origens da fé cristã. Ademais, o termo não vinha associado apenas à crença em
verdades fundamentais, mas em outros pontos que se tornaram característicos dos
fundamentalistas, como o premilenismo.
Segundo a descrição de Horton, Machen preferia outra descrição para a
sua forma de pensar. “Ao ser questionado se era 'fundamentalista', Machen preferiu
o rótulo descritivo de 'Reformado' "31. O termo 'reformado' alinhava Machen com
Warfield, bem como com a grande linha de teólogos conservadores que abraçavam
as doutrinas cristãs e manifestavam concordância com que passou a ser conhecido
como calvinismo – mais que um sistema soteriológico, uma visão de mundo
centrada na Escritura.
Não se deve pensar que, por preferir o rótulo 'reformado', Machen
desprezava ou se opunha diretamente ao fundamentalismo. A despeito das
divergências que tinha em relação aos fundamentalistas, ele os considerava irmãos,
e valorizava muito mais a sua proximidade e parceria no combate ao liberalismo, do
que as diferenças entre ambos. Ele declarou que, diante de um inimigo comum,
praticamente não sobrava tempo para perceber as diferenças internas.

29 Cf. a nota 29.


30 MCINTIRE, Carl. Fundamentalismo. In: EWELL, Walter E. Enciclopédia histórico-teológica da
igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 187.
31 HORTON, Michael. Prefácio do Dr. Michael Horton à edição brasileira. In: MACHEN, J. Gresham.
Cristianismo e Liberalismo. São Paulo: Os Puritanos, 2001.
Você imagina que eu me arrependo de ter sido chamado por um termo que
me aborece profundamente, ou seja, um “fundamentalista”? É claro que sim.
Mas na presença de um grande inimigo comum, eu tenho muito pouco
tempo para atacar meus irmãos que se levantam comigo na defesa da
Palavra de Deus.32

Além de Machen não gostar da utilização do termo 'fundamentalista',


existem outras razões pelas quais não parece adequado considerá-lo assim. Piper,
por exemplo, lista alguns pontos de divergência entre Machen e a abordagem típica
fundamentalista. Segundo o autor, o que o fundador do Seminário Westminster não
gostava no fundamentalismo era: (1) a ausência de perspectiva histórica; (2) a falta
de apreço pela instrução acadêmica; (3) a substituição dos sucintos e estruturantes
credos por confissões históricas; (4) a falta de preocupação com uma formulação
precisa da doutrina Cristã; (5) as tendências pietistas e perfeccionistas; (6) a falta de
esforço para a transformação da cultura; e (7) o premilenismo33.
Contudo, o ponto fundamental de diferença entre Machen e os
fundamentalistas era, segundo Piper, o calvinismo. Para Machen, o termo
“fundamentalismo” se assemelhava a algo diferente da fé cristã histórica. Exemplo
deste ponto está no convite recebido em 1927. Machen foi convidado para a
presidência da Universidade Bryan Memorial naquele ano. Aceitar esta mudança
seria uma virada estratégica que o alinharia com os fundamentalistas, considerando
que a Universidade era reconhecida por estar associada a tal corrente. Mas Machen
não aceitou o convite, alegando exatamente a sua fé na perspectiva Reformada.
O Cristianismo completamente consistente, para a minha mente, é
encontrado apenas na fé Reformada ou Calvinista; e o Cristianismo
consistente, eu acho, é o Cristianismo mais fácil de defender. Por isso eu
nunca me chamo de “Fundamentalista” [..] Eu prefiro me chamar não de
“Fundamentalista”, mas de “Calvinista” - isto é, um seguidor da fé
Reformada. Assim, eu me considero permanecendo na grande corrente
central da vida da Igreja – a corrente que flui da Palavra de Deus através de
Agostinho e Calvino, e que encontrou notável expressão nos Estados
Unidos, na grande tradição representada por Charles Hodge e Benjamin
Breckinridge Warfield e outros representantes da “escola de Princeton”34.
(tradução livre)35

32 MACHEN, J. Gresham apud SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o
liberalismo. Fides Reformata – v.1, n.1 (1996). São Paulo: Editora Mackenzie, 1996.
33 PIPER, John. Contending for our all, p.127
34 MACHEN, J. Gresham apud Piper, John. Contending for our all, p. 129.
35 Thoroughly consistent Christianity, to my mind, is found only in the Reformed or Calvinist Faith;
and consistent Christianity, I think, is the Christianity easiest to defend. Hence I never call myself a
“Fundamentalist.” . . . What I prefer to call myself is not a “Fundamentalist” but a “Calvinist”—that
is, an adherent of the Reformed Faith. As such I regard myself as standing in the great central
current of the Church’s life—the current that flows down from the Word of God through Augustine
and Calvin, and which has found noteworthy expression in America in the great tradition
represented by Charles Hodge and Benjamin Breckinridge Warfield and the other representatives
of the “Princeton School.”
Se a identificação mais clara para Machen era a de 'reformado', e o
fundamentalismo se afastava desta perspectiva, é natural serem consideradas as
semelhanças entre ambos, mas também a percepção de diferenças fundamentais
que, em maior ou menor grau, inviabilizam o trato de ambos como um movimento
uniforme. Machen não se via como um fundamentalista, e, de algum modo,
contribuía para que os fundamentalistas não o vissem como um deles. Ele era um
calvinista, e isso bastava.

6 UMA AVALIAÇÃO REFORMADA DA OBRA “CRISTIANISMO E


LIBERALISMO”

Machen trabalha a partir dos pressupostos reformados – a sua obra


'Cristianismo e Liberalismo' demonstra não apenas uma resposta conservadora à
perspectiva modernista de teologia (o liberalismo), mas uma resposta reformada.
Assim, serão percebidas no texto de Machen as nuances calvinistas, seja de modo
direto, seja de maneira tácita – nas entrelinhas.
Ele apresenta a sua proposta na seção introdutória do livro.
O propósito […] não é decidir a questão religiosa dos dias de hoje, mas
meramente apresentá-la da forma mais precisa e clara possível, a fim de
que o leitor possa ser auxiliado a decidir por si mesmo36.

Machen critica diretamente o gosto pela obscuridade característico das


discussões religiosas do seu tempo. Ele reivindica clareza, para que se saiba
exatamente com o que se está lidando. Esta crítica é baseada em fatos como o uso
liberal de termos tradicionais, porém, com significado distinto. A confusão e falta de
clareza no discurso poderia comprometer severamente a vida da igreja.
[…] a grande religião redentora, que sempre foi conhecida como
Cristianismo, está lutando contra um tipo totalmente diverso de crença
religiosa que é simplesmente a forma de pensar mais destrutiva da fé cristã
– porque faz uso da terminologia cristã tradicional37.

O que segue na introdução é uma análise da cosmovisão subjacente à


época. Machen observa com cuidado o naturalismo e suas implicações para a
educação – a formação intelectual como um todo -, a política, e a igreja. O impacto
desta perspectiva é considerado destrutivo para ele.
Ao tratar da doutrina, Machen aponta para a realidade de que o
36 MACHEN, J. Gresham. Cristianismo e Liberalismo. São Paulo: Os Puritanos, 2001. p. 13.
37 MACHEN, J. Gresham. Op. Cit., p. 14.
liberalismo da época não era algo restrito à academia, mas uma perspectiva já
presente em “'lições' de Escola dominical, [no] púlpito, e [na] imprensa religiosa”38.
Ele critica o desprezo pela doutrina, manifestado entre os que desconsideravam o
perigo do liberalismo, afirmando que se tratava apenas de uma leitura moderna do
cristianismo, e que os ensinamentos em si não são importantes.
O ponto de Machen é que, primeiramente, esta objeção não se refere à
doutrina como um todo, mas a um tipo específico de doutrina, a saber, o
conservadorismo – considerando que se está abandonando um ensinamento para
se adotar outro.
Após esta observação, ele se detém a analisar o ceticismo de modo mais
amplo – a noção de que toda doutrina deve ser desprezada. Nesta análise ele
observa afirmações como a de que “o cristianismo é vida e não doutrina”. Contra-
argumenta, indicando a realidade de que o cristianismo, desde o seu início estava
baseado em uma mensagem, algo que articulava o modo de vida.
Ele defende a historicidade de eventos como a ressurreição de Jesus,
bem como analisa aspectos questionados por liberais, como a consciência
messiânica de Jesus. Através destas observações e refutações, ele pretende
demonstrar que Jesus, os apóstolos, a igreja primitiva, etc., são exemplos de “vida
cristã”, mas estão baseados em um fundamento teológico-doutrinário essencial.
Tendo apresentado um panorama do assunto e estabelecido a
importância da doutrina para o cristianismo, Machen passa a analisar aspectos da
teologia. Ele inicia o seu registro com Deus e o homem. Para Machen, é importante
começar deste ponto - “a doutrina de Deus e a doutrina do homem são dois grandes
pressupostos do evangelho"39.
Seguindo a linha de que o liberalismo é uma forma de religião totalmente
diversa do cristianismo, Machen afirma que “com relação a esses pressupostos
[doutrina de Deus e do homem], assim como com relação ao próprio evangelho, o
liberalismo moderno é diametralmente oposto ao cristianismo”40.
Onde estão as diferenças? Ele demonstra: Quanto a Deus, a concepção
liberal de “sentir” Deus mais do que conhecê-lo é oposta ao cristianismo41; o
liberalismo não faz adequadamente a distinção entre Criador e criação42. No que diz
38 Ibid., p. 27.
39 Ibid., p. 61.
40 Ibid.
41 Ibid.
42 Ibid., p. 69.
respeito ao homem, o liberalismo parte da identificação que fez entre Criador e
criatura43; esta perspectiva ainda nega a realidade do pecado44.
Ao falar da Bíblia, o apologeta em questão apresenta o problema do
liberalismo e sua ênfase excessiva da experiência sobre a Escritura45. Além disso,
Machen afirma a singularidade46 do conteúdo Bíblico, bem como reafirma a
confissão ortodoxa cristã sobre a inspiração47, inerrância48 e autoridade da
Escritura49.
“Em sua atitude para com Jesus, o liberalismo e o cristianismo são
agudamente opostos”, afirma Machen50. A Cristologia liberal diverge da reformada
em aspectos básicos como a divindade de Jesus (esta defende e aquela não).
Segundo o apologeta, “os cristãos têm um relacionamento religioso com Jesus; os
liberais não têm um relacionamento religioso com Jesus51”, ou, mais adiante: “Se
Jesus foi apenas o que os historiadores liberais supõem, então confiar Nele não faria
sentido, nossa atitude com relação a Ele seria de pupilos para com o Mestre e nada
mais”52.
Sobre a salvação, Machen sintetiza sua crítica na máxima: “o liberalismo
encontra a salvação (até onde deseja falar de 'salvação') no homem; o cristianismo a
encontra em um ato de Deus”53. Ele critica com força o esvaziamento promovido
pelo liberalismo no âmbito soteriológico.
O último capítulo da obra de Machen trata da doutrina da Igreja. Por seu
caráter amplo e, muitas vezes vazio de significado preciso, o liberalismo também
diverge do cristianismo nesse ponto. Não há uma clareza sobre os salvos e suas
nuances – pelo contrário, como demonstrado acima, os liberais tinham fortes
tendências universalistas. Sendo assim, a distinção entre salvos e perdidos deixa de
existir, bem como a necessidade de um povo “escolhido por Deus”. Desta maneira a
igreja é perdida. Ela deixa de ser necessária, e, se ainda faz parte da experiência
cristã, é mais por conveniência e tradição que por necessidade. Para Machen e os

43 Ibid.
44 Ibid., p. 70.
45 Ibid., p. 77.
46 Ibid., p. 78.
47 Ibid., p. 79.
48 Ibid., p. 80.
49 Ibid., p. 81-83.
50 Ibid., p.85.
51 Ibid., p.89.
52 Ibid., p. 99.
53 Ibid., p.119.
reformados, por outro lado, “a Igreja é a resposta cristã mais elevada às
necessidades sociais das pessoas”54.
Deste modo, Machen tece suas críticas ao liberalismo em conformidade
com as posturas reformadas de modo geral. Seus pressupostos são ortodoxos e
calvinistas. Pela dinâmica da obra, Machen pode ser encarado como um modelo
apologético, uma voz reformada que se engajou na luta pela verdade, por amor a
Deus e à Igreja.

7 CONCLUSÃO: PARA UMA PERCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DO


LIBERALISMO

Quem pensa que o liberalismo se foi de uma vez por todas demonstra não
estar atento à realidade. Lopes55 indicou as formas nas quais o movimento liberal
clássico não existe mais – especialmente em sua conexão com o modernismo. O
projeto pós-moderno – se é possível tratá-lo assim – caminha em alguns sentidos de
modo distinto da modernidade, e requer nuances específicas.
Ainda assim, Lopes fala da existência dos “neoliberais” - um grupo não tão
homogêneo de teólogos, líderes eclesiásticos, pastores, cientistas da religião e
professores de seminário que ainda partilham dos pressupostos do liberalismo
clássico, embora não os manifestem clara e abertamente.
A publicação recente em terras brasileiras de obras dos liberais clássicos
é tanto causa quanto efeito de um resgate do liberalismo em círculos teológicos: a
comprovação de que o Brasil caminha no “fim da fila” do pensamento mundial56.
Com maior apelo entre os jovens, porém, está um novo modo de pensar e
viver a realidade eclesiástica, que traz consigo semelhanças com pressupostos
liberais: o movimento de “Igreja Emergente”.
Assim como os liberais, os emergentes dão menos valor à doutrina;
priorizam a experiência sobre o conhecimento; valorizam a subjetividade em vez de
fórmulas e credos; têm forte apelo moral, em detrimento da mensagem da graça

54 Ibid., p.156.
55 LOPES, Augustus N. Op. Cit.
56 Para demonstrar o ponto: enquanto no resto do planeta a proposta marxista/socialista/comunista
foi considerada ineficaz para lidar com os problemas sociais, no Brasil ela se tornou moda;
enquanto a proposta construtivista passou a ser abandonada no resto do mundo, tornou-se o
grande assunto nas faculdades brasileiras de pedagogia. O mesmo acontece com o liberalismo
clássico.
salvadora; e manifestam sua ira contra a ortodoxia teológica57.
O formato pós-moderno e cool dos emergentes atrai e comunica melhor
aos jovens que nasceram sob tal cosmovisão, daí a necessidade de uma
compreensão adequada do liberalismo clássico e desta vertente pós-moderna.
Por fim, o esvaziamento do conteúdo evangélico na vida das igrejas
tradicionais, conforme descrito por Horton58, indica que alguns dos pressupostos
liberais foram assimilados por cristãos que hoje se consideram “conservadores”.
Exemplo disso é o moralismo que esvazia o evangelho e confere a este apenas um
caráter de méritos humanos e obras a serem cumpridas – exatamente como o que
Paulo condenou em Gálatas.
Os pressupostos liberais se reconfiguram e se apresentam sob nova
roupagem. Diante dos novos desafios percebidos, cabe ao cristão a sobriedade e
fidelidade bíblica, para oferecer uma resposta firme e consistente, nos moldes do
projeto de Machen.
Talvez por isso Carson tenha ressaltado a importância deste autor para
hoje: “Ainda vale a pena ler tudo que J. Gresham Machen escreveu. Mesmo que
alguém discorde desse ou daquele trecho, seu pensamento tem uma abrangência
que hoje deveria ser mais imitada do que criticada”59.
Que seja imitada, então.

57 Para uma avaliação equilibrada do movimento, cf. CARSON, D. A. greja emergente: o movimento
e suas implicações. São Paulo: Vida Nova, 2010.
58 HORTON, Michael. Cristianismo sem Cristo: o evangelho alternativo da igreja atual. São Paulo:
Cultura Cristã, 2010.
59 CARSON, D. A. Op. Cit., p. 77.
REFERÊNCIAS

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numa era de transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.

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teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009.

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movimento evangélico. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

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OLSON, Roger. História da Teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São
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lives of Athanasius, John Owen and J. Gescham Machen. Wheaton, Illinois:
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SANTOS, Valdeci da Silva. John Gresham Machen contra o liberalismo. Fides


Reformata – v.1, n.1 (1996). São Paulo: Editora Mackenzie, 1996.

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