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O tratamento constitucional do sigilo da

correspondência

Walter Nunes da Silva Júnior

Sumário
1. Esclarecimentos iniciais. 2. Escorço his-
tórico do sigilo das comunicações no Direito
brasileiro. 3. Alcance da expressão sigilo de
correspondência. 4. O sigilo da correspondên-
cia no Direito estrangeiro. 5. Assertivas que
infirmam o caráter absoluto do sigilo da cor-
respondência. 5.1. Garantias constitucionais
como limitações ao direito de punir do Estado.
5.2. Os direitos fundamentais são heterogêne-
os e se autolimitam. 5.3. Interpretação sistêmi-
ca. 6. Conclusão.

1. Esclarecimentos iniciais

Conquanto existam vários escritos sobre


as hipóteses de admissibilidade de inter-
ceptação das comunicações telefônicas, não
se vê preocupação doutrinária quanto à in-
vestigação científica sobre os contornos do
sigilo da correspondência, a fim de esclare-
cer pontos que recalcitram em permanecer
obscuros. Alguns processualistas penais,
de forma simplista, têm manifestado o en-
tendimento de que, proibida a violação de cor-
respondência, ilícita também a sua interceptação
ou apreensão (cf. MIRABETE, 2002, p. 320;
TOURINHO FILHO, 1990, p. 319), tratando
da referida garantia como se ela estivesse
plasmada em um direito fundamental ab-
soluto, que não enxerga limites.
O pensamento central desenvolvido ao
longo deste trabalho segue a orientação fi-
losófica segundo a qual não há direito ab-
Walter Nunes da Silva Júnior é Juiz Federal. soluto, por mais fundamental que ele seja,
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pois eles são herterônomos e autolimitam- que a correspondência é insusceptível de
se entre si, para que seja possível a convi- interceptação ou que o seu segredo não pode
vência harmônica. Tem-se, assim, que, mes- ser revelado, porquanto nem mesmo o direi-
mo quando a Constituição não faz qualquer to à vida, o direito fundamental em torno do
ressalva, deve-se entender que a garantia qual gravitam todos os demais, encerra uma
constitucional não é absoluta, uma vez que garantia constitucional absoluta, na medi-
os direitos fundamentais têm limites ima- da em que, no exercício do poder de polícia,
nentes ou implícitos. o agente do Estado pode, para a manuten-
Na dedução lógica da exposição, em pri- ção da segurança pública, usar de força ca-
meiro momento, faz-se o bosquejo histórico paz de resultar na morte do autor de com-
do sigilo das comunicações no Direito bra- portamento ilícito. Demonstra-se que a ju-
sileiro que, a despeito do assegurado em to- risprudência do Supremo Tribunal Federal
das as nossas Constituições, tendo mereci- é calcada no fundamento de que, no nosso
do destaque já na Carta Imperial de 1824, sistema jurídico, não há direito fundamen-
nunca foi previsto como uma garantia de tal absoluto e que a Corte Suprema já se pro-
ordem absoluta, sempre sendo admissível a nunciou sobre a constitucionalidade do art.
sua restrição no âmbito criminal. Em passo 41, parágrafo único, da Lei de Execução
seguinte, faz-se uma necessária digressão Penal, que autoriza o administrador peni-
para precisar o alcance da expressão sigilo tenciário restringir o sigilo da correspon-
da correspondência, uma vez que há posi- dência do detento.
ção do Supremo Tribunal Federal fazendo a
distinção entre carta e encomenda, no senti- 2. Escorço histórico do sigilo das
do de excluir esta da proteção constitucio- comunicações no Direito brasileiro
nal.
A fim de ter uma visão do tratamento dis- O constituinte de 1988, repetindo idéia
pensado ao tema no Direito Comparado, des- constitucional anterior, asseverou, no art.
tinou-se o tópico 4 para analisar as Cons- 5º, inciso X, que são invioláveis a intimidade,
tituições e as doutrinas da França, Alema- a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
nha, Itália, Espanha e Portugal, além da para acrescentar, no inciso XII, que é invio-
jurisprudência de alguns desses países. Em lável o sigilo da correspondência e das comuni-
vez de seguir o critério adotado por cações telegráficas, de dados e das comunicações
MIRANDA1, de que quatro são as famílias telefônicas, salvo no último caso, por ordem ju-
constitucionais da atualidade – inglesa, dicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabele-
norte-americana, francesa e soviética –, e daí cer para fins de investigação criminal ou instru-
fazer o estudo comparatista levando em con- ção processual penal. Manteve-se, assim, a tra-
sideração a posição de cada um desses paí- dição de nosso Direito Constitucional que
ses, preferiu-se eleger como paradigma jus- reside em estatuir o sigilo da correspondên-
tamente aqueles países cujas Constituições cia como direito fundamental da pessoa.
influenciaram fortemente o constituinte de Com efeito, o sigilo da correspondência
1988. Nesse estudo comparativo, observa- vem sendo constitucionalmente assegura-
se que os países analisados não fazem dis- do desde a Constituição Política do Império
tinção entre o sigilo da correspondência e o do Brasil, de 1824, pois nela está expresso,
da comunicação telefônica e, muito embora em seu art. 179, 27, que o segredo das cartas é
os coloque como direitos fundamentais, es- inviolável2”. Regulamentando o princípio
tabelecem limites para ambas as formas de constitucional, o legislador do Código Cri-
transmissão de mensagem. minal do Império, nos arts. 215, 216, 217 e
No último momento, são expostas as ra- 218, entendeu que se tratava de direito rela-
zões pelas quais não é razoável defender tivo, de modo que não vedou a utilização

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das missivas no processos criminais, senão municações telegráficas e telefônicas como
aquelas tiradas do correio maliciosamente sem garantias constitucionais. A despeito do
autorização do destinatário, ou da mão do porta- enunciado constitucional em exame, não
dor particular, por qualquer maneira que seja havia dúvidas quanto à possibilidade de as
[...] (ALMEIDA JÚNIOR, 1960, p. 65). cartas particulares serem interceptadas ou
O tratamento constitucional sobre o si- obtidas, a fim de que fossem utilizadas como
gilo da correspondência não sofreu altera- prova em processo criminal, ressalvando-
ção de conteúdo com as Constituições de se apenas a rejeição quando obtidas por
1891 e de 1934, tendo ambas disciplinado a meios ilícitos. O art. 233 do Código de Pro-
matéria com enunciado idêntico – arts. 72, cesso Penal, por conseguinte, durante todo
§ 18, e 113, 8, respectivamente – ao dizer esse tempo, sempre foi aceito sem maiores
que é inviolável o sigilo da correspondência. A contestações.
Carta de 1937, com seu cunho ditatorial, Todavia, como se observa da redação do
assegurava, no art. 122, 6, a inviolabilidade art. 5º, inciso XII, da Constituição de 1988, a
do domicílio e da correspondência, salvo as ex- dicção normativa constitucional atual refe-
ceções previstas em lei, deixando expressa, rente ao sigilo das comunicações, a par de
aqui, a possibilidade de que a garantia vies- agregar à garantia do sigilo as comunica-
se a ser quebrada, conquanto prevista a hi- ções de dados, fez a ressalva da possibili-
pótese em lei ordinária. Sob a batuta da dade de limitar esse direito fundamental nas
Constituição de 1937, veio a lume o atual hipóteses e na forma que a lei estabelecer. Até aí
Código de Processo Penal, que, no art. 233, não se tem nenhuma inovação de monta
tornou defesa a admissibilidade das cartas maior, todavia, tal como redigida a ressal-
particulares como prova apenas quando va, em interpretação literal, o exegeta é leva-
interceptadas ou obtidas por meios criminosos. do a concluir que a exceção se dirige apenas
A Constituição de 1946, que represen- às comunicações telefônicas, o que implica
tou a redemocratização do País, no art. 141, reconhecer, nessa linha de raciocínio, que
§ 6º, dizia que é inviolável o sigilo da corres- as outras formas de comunicação encon-
pondência, não prevendo nenhuma ressalva tram-se protegidas de forma absoluta, de
como fizera a de 1937, mas, mesmo assim, modo que em nenhuma hipótese podem elas
durante a sua vigência, não se questionou a ser objeto de interceptação ou de revelação
adequação do art. 233 do Código de Proces- do conteúdo, salvo com autorização das
so Penal com a nova ordem constitucional. pessoas envolvidas diretamente na relação.
Na época, o entendimento do Supremo Tri- Nessa ordem de idéias, o sigilo da corres-
bunal Federal era até mais elástico, na me- pondência seria absoluto, não sendo admis-
dida em que admitia a quebra do sigilo da sível, em nenhuma hipótese, a quebra dessa
correspondência até mesmo para fins não garantia constitucional.
penais, como se colhe da análise do acór-
dão no recurso em mandado de segurança 3. Alcance da expressão sigilo da
nº 11.274, julgado em 27.11.63, lavrado pelo correspondência
então Ministro Evandro Lins e Silva, que
entendeu lícito o exame da correspondên- Antes de passar a esmiuçar o que se en-
cia comercial por meio de agentes fiscais3. tende por correspondência, cabe realçar que,
Mantendo a tradição do nosso Direito, a para se tornar efetiva a garantia de sigilo
Carta de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, desse meio de comunicação, a Constituição,
deixou estampado, no art. 153, § 9º, que é no art. 21, X, confere à União a competência
inviolável o sigilo da correspondência e das co- exclusiva para a prestação do serviço pos-
municações telegráficas e telefônicas, trazendo tal, atribuição a ser exercida pela adminis-
como novidade apenas a inserção das co- tração direta ou por delegação. O monopó-

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lio do serviço postal, como forma de tornar tuintes, o poder-dever ou dever-poder de exer-
efetiva a garantia do sigilo da correspon- cer os serviços de correio que interessam a
dência, como não poderia deixar de ser, todo o grupo social. A atividade postal, em
igualmente mereceu a atenção dos constitu- sua essência, não merece a consideração
intes nas constituições brasileiras pretéri- pelo constituinte pelo fato de constituir-se
tas, caracterizando-se como poder-dever em elemento de integração nacional, sendo
conferido à União, em monopólio estatal. relevante a sua disciplina por ordem de se-
Consoante magistério haurido do constitu- gurança nacional e por se tratar de serviço de
cionalista FERREIRA (1989, p. 239), o mo- relevante interesse coletivo, principalmente
nopólio do Estado a respeito do serviço de tendo em conta a necessária preservação do
correio vem desde 1797. Mais adiante, acres- sigilo das correspondências, mas também
centa o renomado doutrinador que o Brasil em virtude de compromissos internacionais
aderiu a diversos atos e convenções concer- assumidos pelo Governo brasileiro perante
nentes ao regime postal, mencionando en- Estados estrangeiros, pois é espécie de ser-
tre eles: o Tratado de Berna, de 1874, pelo viço que extrapola os limites internos dos
Decreto nº 6.581, de 25.05.1877; a Conven- países, transformando-se em questão afeta
ção Postal Universal de Paris, pelo Decreto à ordem internacional.
nº 7.229, de 29.3.1879; a Convenção Postal Outrora, a União Federal mantinha esse
Universal de Washington, pelo Decreto 531, serviço por meio do Departamento de Cor-
de 17.12.1906, além de outras Convenções reios e Telégrafos, órgão sem personalidade
Postais, como a de Roma de 1906, a de Ma- jurídica, integrante do Ministério da Viação
dri de 1920, a Pan-Americana de 1921 e a de e Obras Públicas. Posteriormente, o Decre-
Estocolmo em 1924. to-Lei nº 509, de 20.03.69, criou a Empresa
CRETELLA JÚNIOR (1990), em comen- Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT,
tários à Constituição de 1988, analisando o empresa pública federal de personalidade
tratamento dispensado pelas Constituições jurídica de Direito Privado, vinculada ao
ao assunto, afirma que Ministério das Comunicações.
“A Constituição de 1891, art. 34, O serviço postal, prestado pela Empresa
15, falava, tão-só, em ‘legislar sobre Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT,
serviço de correios e telégrafos nacio- em virtude de delegação de competência,
nais’. A Constituição de 1934, art. 5 o, encontra-se, hodiernamente, regulado na
VII, preferiu a fórmula ‘manter o ser- Lei no 6.538, de 22 de junho de 1978, e no
viço de correio’ e, no mesmo sentido, Decreto n o 83.858, de 15 de agosto de 1979.
foi a orientação da Carta de 1937, art. Não é gratuito, mas sim pago pelo usuário
15, VI. A Constituição de 1946, art. 5 o, por meio de uma tarifa – preço público –
XI, é precisa ao determinar: ‘manter o cobrada com a venda do selo que deve estar
serviço postal e o Correio Aéreo Naci- estampado no documento postal.
onal’.” Mas, o que é correspondência, enquanto
Registre-se, ainda, que a Constituição objeto jurídico da tutela constitucional? Em
Federal de 1967, no inciso XII do art. 8 o, dei- compasso com a Lei nº 6.538/78 (art. 9º), o
xou expresso competir à União Federal, ape- monopólio do serviço postal confiado à ECT
nas, manter o serviço postal e o correio aéreo se circunscreve a três atividades: a) distri-
nacional. A Constituição em vigor, repetin- buição de carta e cartão-postal; b) distribui-
do a idéia da anterior, expôs, no art. 21, X, ção de correspondência agrupada; e c) emis-
ser da competência da União manter o servi- são de selo.
ço postal e o correio aéreo nacional. De qualquer forma, impõe-se definir
Desse modo, reconhecer-se-ia que a quais os papéis que se inserem na qualifica-
União Federal detém, por desejo dos consti- ção de carta, cartão-postal ou correspondência

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agrupada. O legislador, no desiderato de es- Noutro passo, sustenta que se encontra
coimar divergência, em interpretação autên- excluído, ainda, do monopólio o serviço
tica, no art. 47 do Diploma Legal em referên- postal quando o expedidor, pessoalmente ou
cia, assere: por empregado seu, nos negócios de sua econo-
“CARTA – objeto de correspon- mia, efetua o transporte.” Nesse contexto, as-
dência, com ou sem envoltório, sob a severa que a correspondência comercial bancá-
forma de comunicação escrita, de na- ria, compreendendo manuscritos e impressos, está
tureza administrativa, social, comer- excluída do monopólio postal, salvo quando as
cial, ou qualquer outra, que contenha correspondências estiverem fechadas em forma
informação de interesse específico do de carta. (CRETELLA JÚNIOR, 1990).
destinatário. Por fim, ao analisar a definição de carta
CARTÃO-POSTAL – objeto de cor- no art. 47 da Lei n º 6.538/78, deduz que s em
respondência de material consisten- mensagem ou comunicação escrita entre “reme-
te, sem envoltório, contendo mensa- tente” e “destinatário”, inexiste carta ou missi-
gem e endereço. va. Assim, títulos, valores e documentos não
CORRESPONDÊNCIA AGRUPA- configuram a “carta”. (CRETELLA JÚNIOR,
DA – reunião, em volume de objetos 1990, p. 1368).
da mesma ou de diversas naturezas, No apreciar embargos infringentes inter-
quando, pelo menos um deles, for su- postos pela Epatil do ABC – Prestação de
jeito ao monopólio postal, remetidos Serviços Ltda – empresa que fez a consulta
a pessoas jurídicas de direito público ao ínclito Professor Celso Bastos –, o Egré-
ou privado e/ou suas agências, fili- gio Tribunal Regional Federal da Quarta
ais ou representantes.” Região, por maioria de votos, tendo como
J. CRETELLA JÚNIOR (1990, p. 1364), relator funcionado o Juiz Ari Pargendler,
imiscuindo-se no assunto, entende que o decidiu que se compreende no monopólio
“serviço postal abrange o recebimen- postal toda espécie de comunicação de ne-
to, a expedição, o transporte e a entre- gócios, de débito pela prestação de serviços,
ga em domicílio, colocada à disposi- de vencimentos de obrigações, ou seja, tudo
ção do destinatário nas próprias de- aquilo que pode ser concebido, dentro da
pendências do Correio, de (a) corres- ótica legal, no conceito de carta 4.
pondência (carta, cartão-postal, im- Em situação outra, em que se discutia
presso, ecograma), (b) encomendas ou quanto à permissibilidade do recebimento,
objetos, valores (dinheiro, ordem de transporte e distribuição de avisos bancári-
pagamento, recebimento de tributos, os por empresa prestadora de serviços dis-
prestações, contribuições e obrigações tinta da ECT, a Segunda Turma do Tribunal
pagáveis à vista).” Regional Federal da Primeira Região, sem
Agrega CRETELLA JÚNIOR (1990) que discrepância de entendimento, decidiu que,
não existe infração à Constituição o serviço pos- nesse caso, não há afronta ao monopólio
tal do Estado-membro para a própria correspon- postal da União, pois não se inclui no con-
dência, o mesmo ocorrendo com o Município, com ceito de carta o aviso bancário. De fato, na-
o Distrito Federal e com os Territórios. Dentro quele julgamento, o aresto assim ficou emen-
dessa linha de idéias, defende também não tado:
constituir infração o serviço postal próprio “Constitucional. Apreensão de
ou interno, consistente na comunicação documentos bancários da Assessoria
epistolar na empresa da matriz para as fili- Postal Ltda. pela ECT. Monopólio
ais, a exemplo do que se verifica com diver- Postal. Lei nº 6.538/78 e OSP nº 039/
sas editoras, que transportam livros de uma 80. I – O recebimento, o transporte e a
loja para outra. distribuição de avisos de vencimen-

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tos bancários não se inclui no concei- (comunicação). Com o seu encaminha-
to de ‘carta’ contido na Lei nº 6.538/ mento à outra parte, não se está fazendo
78, não se enquadrando, portanto, em comunicação, no sentido de informá-la a
qualquer das hipóteses acima, no respeito de algo, mas propriamente cobran-
monopólio postal da União (OSP nº do o que lhe é devido.
039/80). II – Remessa Oficial des- É o que ocorre com a entrega das contas
provida”(IOB 11/91). de consumo de água. A concessionária, nes-
A Colenda Primeira Turma do Superi- se caso, não está se correspondendo, no sen-
or Tribunal de Justiça, contudo, ao ter em tido de epistolar com a outra pessoa, e sim
mesa para exame processo em que se dis- cobrando aos consumidores a importância
cutia se a entrega domiciliar de avisos de que lhe há de ser paga, pelo fato de o consu-
lançamento e guias de recolhimento de mo de água, em determinado período, ter
impostos violentava o monopólio estatal, correspondido àquele valor constante no
relatado pelo Ministro Humberto Gomes documento apresentado.
de Barros, em votação unânime, assim O Superior Tribunal de Justiça, ao apre-
decidiu: ciar recurso ordinário em habeas corpus, por
“ADMINISTRATIVO – MONOPÓ- meio de sua Quinta Turma, em votação unâ-
LIO POSTAL – NOTIFICAÇÃO DE nime, fez a distinção entre carta e encomen-
LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO – LEI da, no escopo de estabelecer que tutela do
Nº 6.538/78. Os carnês de notificação sigilo da correspondência, plasmada na
de lançamento tributário constituem Constituição, abrange apenas as missivas
carta. Por isto, sua distribuição inte- trocadas entre pessoas, daí por que não há
gra monopólio da ECT (Lei nº 6.538/ ofensa à Carta Maior a determinação de
78 – arts. 9º e 47)” (Lex 44/133). apreensão na agência dos correios de brin-
Voltando os olhos para o tema deste es- quedo contendo em seu interior substância
tudo, cabe lembrar que o Decreto nº 83.858, entorpecente. Pela clareza com que redigi-
de 15.08.79, no art. 17, alínea “n”, exclui, da, merece transcrição a ementa do acórdão,
peremptoriamente, do monopólio da União, vazada nos seguintes termos:
“o transporte e a entrega de aviso de cobran- “Penal. Processual. Tigre de pelú-
ça relativo ao consumo de água, de energia cia contendo cocaína. Apreensão de
elétrica, ou de gás, quando realizados pelo encomenda na agência dos correios
concessionário do respectivo serviço públi- antes de ser entregue ao destinatário.
co”. Tem-se, assim, que o documento entre- Ação penal. Prova ilícita. Quebra de
gue aos consumidores, com a leitura dos sigilo de correspondência.
hidrômetros e os respectivos valores das 1. Correspondência, para os fins
contas de consumo de água, não está inseri- tutelados pela Constituição da Repú-
do no conceito de “carta”, preceituado no blica (art. 5º, VII) é toda comunicação
art. 47 da Lei nº 6.538/78. de pessoa a pessoa, por meio de carta,
Até porque Carta é, na definição colhida através da via postal ou telegráfica.
do Aurélio, a comunicação manuscrita ou im- (Lei nº 6.538/78).
pressa e devidamente acondicionada, remetida a 2. A apreensão pelo Juiz compe-
uma ou várias pessoas. Mas essa comunica- tente, na agência dos Correios, de en-
ção diz respeito à mensagem, no sentido de comenda, na verdade tigre de pelúcia
missiva. Não deve ser considerado como com cocaína, não atenta contra a
tal, por exemplo, o aviso de vencimento, Constituição da República, art. 5 º, VII.
porquanto corresponde à cobrança, que é Para os fins dos valores tutelados,
o exercício do direito de ação extrajudici- encomenda não é correspondência.
al, não se confundindo com mensagem 3. Recurso Ordinário conhecido

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mas não provido.” (DJU de 2.4.01, p. dência não é absoluto, podendo ocorrer, as-
311)5 BRASIL (2003a). sim, a utilização da carta em processo cri-
Note-se que o Superior Tribunal de Jus- minal. Essa posição se mostra afinada com
tiça, no julgado em apreciação, absteve-se o art. 4º da Declaração dos Direitos do Ho-
de esmiuçar o alcance da garantia constitu- mem e do Cidadão, feita pelo povo francês,
cional do sigilo da correspondência, evitan- constituída em Assembléia Nacional, no dia
do enfrentar a discussão a respeito do seu 26 de agosto de 1789, que expressamente
caráter absoluto ou relativo. Resolveu a admite o estabelecimento de limites aos di-
questão fazendo a distinção entre encomen- reitos fundamentais, desde que previstos em
da e correspondência, para, daí, concluir que lei. No Direito francês, não há manifesta-
a primeira modalidade de comunicação não ção normativa específica sobre os limites do
está tutelada pela norma constitucional. sigilo da correspondência, mas a doutrina
evoluiu para entender que é possível a reve-
4. O sigilo da correspondência no lação do segredo contido na missiva, desde
Direito estrangeiro que mediante ordem judicial.
O Direito alemão, que construiu a dog-
No exame do Direito comparado, verifi- mática do princípio da proporcionalidade,
ca-se que o sigilo da correspondência sem- contempla a inviolabilidade da correspon-
pre vem reconhecido como garantia funda- dência e das comunicações postais, telegrá-
mental dos cidadãos 6. Na França, em um ficas e telefônicas, dando-lhes o mesmo tra-
primeiro instante, a Assembléia Nacional, tamento; todavia, na primeira parte do nº 2
ainda em 1789, deparou-se com a discus- do art. 10, esclarece que “só podem ser orde-
são quanto à licitude da violação do segre- nadas limitações com base numa lei”8. Es-
do contido em carta, para fins de investiga- pecificamente em relação à proibição da pro-
ção de atos contra-revolucionários. Defen- dução de provas em respeito a garantias
dia-se a legitimidade do uso desse instru- fundamentais registradas na Constituição
mento probatório, ao argumento de que os Alemã, o Tribunal Constitucional daquele
atos conspiratórios, praticados em uma si- país tem sufragado o princípio da ponderação
tuação de guerra como a que estava viven- de interesses, que dá orientação hermenêuti-
do o povo francês, justificavam o uso de for- ca no sentido de que “... há de identificar-se
ça mais cogente para coibir as condutas. No uma área mais ou menos extensa em que os
entanto, findou prevalecendo entendimen- direitos individuais poderão ser sacrifica-
to sedimentado em texto histórico de Cíce- dos em sede de produção e valoração da pro-
ro, que repudiava a utilização de cartas tro- va, em nome da prevenção e repressão das
cadas entre marido e mulher e amigos manifestações mais drásticas e intoleráveis
(ALMEIDA JÚNIOR, 1960, p. 65), de modo da criminalidade” (ANDRADE, 1992, p. 28).
que a assembléia manteve o segredo das Em exame do leading case, julgado em 21
cartas7. de fevereiro de 1964 pela Suprema Corte
Agrega João Mendes de ALMEIDA Constitucional Alemã, conhecido como o
JÚNIOR (1960, p. 66), com suporte em dou- caso do diário, ANDRADE (p. 31) informa que
trina de Helie, que mais tarde a doutrina o princípio geral de ponderação coloca em pri-
francesa fez distinção no sentido de que as meiro plano a efetivação da justiça penal,
cartas dirigidas ao indiciado – ou que emanam cuja realização justifica e legitima o sacrifí-
dele – podem ser apreendidas pelo juiz de ins- cio de direitos fundamentais, daí por que
trução na repartição dos correios; as cartas diri- “(...) à semelhança do que aconte-
gidas a terceiro e que não emanam do indiciado, ce para as escutas telefônicas, também
essas não podem ser apreendidas. Desse modo, para os demais meios de prova a Cons-
no sistema francês, o sigilo da correspon- tituição oferece ao legislador ordiná-

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rio um campo considerável de possi- la colisión consiste más bien en que,
bilidades de compressão dos direitos teniendo en cuenta las circunstanci-
fundamentais para, à luz do princí- as del caso, se establece entre los prin-
pio da ponderação, dar resposta ade- cipios una relación de precedencia con-
quada à ameaça da criminalidade dicionada. La determinación de la pre-
mais grave”. cedencia condicionada consiste en
ALEXY (2001, p. 87), doutrinador alemão que, tomando en cuenta el caso, se in-
que é referência obrigatória no trato dos di- dican las condiciones bajo las cuales
reitos fundamentais, elaborou consistente un principio precede al otro. Bajo
teoria sobre essa espécie de direitos e dedu- otras condiciones, la cuestión de la
ziu, com desenganada inteligência, as ba- precedencia puede ser solucionada
ses científicas para a solução da colisão en- inversamente”.
tre eles. Certo de que a aplicação indepen- Embasado nessas considerações, ALE-
dente de duas regras fundamentais conduz XY (p. 268) assevera, mais adiante, que os
o intérprete a resultados incompatíveis, [...] direitos fundamentais, ainda que tais, estão
es decir, a dos juicios de deber ser jurídico con- sujeitos a restrições, de modo que podem ser
tradictorios, ensina o festejado jurista que, delimitados ou limitados, encontrando-se
quando há o atrito entre dois princípios fun- superada a doutrina defendida por Klein,
damentais, como no caso em que um encer- segundo a qual, de acordo com a lógica
ra uma permissão e o outro uma proibição, pura, isso não seria possível. A esse respei-
o deslinde da questão não enseja a escolha to, ressalta ALEXY (p. 269) que o Tribunal
de eficácia de um com a conseqüente con- Constitucional Federal Alemão, em casos de
clusão de que o outro é inválido, como ocor- colisão de direitos fundamentais, adota a
re na colisão de normas jurídicas, mas sim teoria da ponderação, concebendo a possi-
que, diante das circunstâncias que permei- bilidade de haver a restrição de princípios.
am o caso concreto, um deles tem de ceder Consoante se vê na doutrina acima ex-
diante do outro (ALEXY, p. 89). Com supor- posta e mesmo da mera leitura do art. 10, nº
te na análise da jurisprudência do Tribunal 2, primeira parte, da Constituição da Ale-
Constitucional Alemão em um caso no qual manha, no Direito germânico, a fim de faci-
se discutia a colisão entre o direito à instru- litar a efetivação da justiça penal, que é al-
ção do processo penal e o direito à integri- çada à categoria de bem jurídico de digni-
dade física do acusado, ALEXY (p. 91-92), dade constitucional próprio do Estado de
em concordância com a decisão alvitrada Direito, o legislador ordinário tem ampla li-
pela Corte, arremata: berdade de prever, para os crimes mais gra-
“Tomados em sí mismos, los dos ves, a possibilidade de restrição das garan-
principios conducen a una contradic- tias fundamentais, entre elas o sigilo da cor-
ción. Pero, esto significa que cada uno respondência e das comunicações postais.
de ellos limita la posibilidad jurídica Já a Constituição espanhola contém nor-
de cumplimiento del outro. Esta situ- ma garantindo [...] o segredo das comunica-
ación no es solucionada declarando ções, em especial das comunicações postais, tele-
que uno de ambos principios no es gráficas ou telefônicas”, mas, na parte final,
válido y eliminándolo del sistema ju- concebe que a decisão judicial determine a
rídico. Tampoco se la soluciona in- quebra do sigilo9. Como se nota, a Consti-
troduciendo una excepción en uno de tuição da Espanha vai mais além, na medi-
los principios de forma tal que en to- da em que não remete à lei a especificação
dos los casos futuros este principio das hipóteses que excepcionam a garantia
tenga que ser considerado como una do sigilo, mas sim confere ao juiz a possibi-
regla satisfecha o no. La solución de lidade de examinar, no caso concreto, se é

200 Revista de Informação Legislativa


pertinente, ou não, dotar o Estado de força Na Itália, a Carta constitucional, ao tem-
maior na investigação do caso que está sob po em que, na primeira parte do art. 15, diz
apreciação. que são invioláveis a liberdade e o segredo
NAVARRETE (1991, p. 19), ao analisar não só da correspondência, como também
o tratamento dos direitos fundamentais no de qualquer meio de comunicação, na se-
sistema jurídico espanhol, adverte que, em gunda, explicita que, uma vez observadas
todos os ramos do Direito daquele país, há as garantias preceituadas em lei, a autori-
de ter-se presente duas etapas bastante dis- dade judiciária pode determinar a sua res-
tintas: uma antes e outra depois da criação trição10. A despeito de constar da norma
do Tribunal Constitucional Espanhol, que constitucional que a limitação pode ocorrer
veio a lume com a Constituição de 1978. A por determinação da autoridade judiciária,
partir de então, o mencionado tribunal pas- o novo Código de Processo Penal italiano
sou a exercer grande influência no panora- permite que o Ministério Público, em caso
ma jurídico, promovendo, com as suas deci- de urgência, execute a diligência sem a pré-
sões de extremo rigor técnico e alto con- via intervenção do juiz, devendo este, em
teúdo jurídico, o reengajamento social e exame posterior, convalidar, ou não, a me-
mesmo popular espanhol, desde que as dida. Advertem BUONO e BENTIVOGLIO
suas posições são acompanhadas com (1991, p. 143) que o Código de Processo Pe-
intenso interesse pelos cidadãos, devido nal italiano de 1998 confere às comunica-
à adequação à realidade sociopolítica. O ções por correspondência e telegráficas o
mesmo autor alinha que o Tribunal Su- mesmo tratamento, com a definição dos de-
premo, na esteira do entendimento do Tri- litos que admitem a quebra do segredo. Tem-
bunal Constitucional, sufragou a tese de se, assim, que, na Itália, além de a garantia
que do sigilo da correspondência não ser abso-
“cualquiera que sea la concepción que luta, em casos excepcionais, pode ser que-
se acepte para la fundamentación de brado sem a prévia autorização do Judiciá-
los derechos humanos básicos o fun- rio, sendo exercido o controle judicial ape-
damentales de las personas, del ciu- nas a posteriori.
dadano, tales derechos ni en su alcan- A Constituição portuguesa de 1974, as-
ce, ni en su jerarquía, ni en su limita- sim como os demais países analisados até
bilidad, ostenta, en niguna de las ta- agora, igualmente garante o sigilo das cor-
blas constitucionales contemporáne- respondências e das telecomunicações, “sal-
as, parigual significación, por lo que vos os casos previstos na lei em matéria de
resulta necessario en los supuestos de processo criminal.” 11 Sem embargo de cui-
colisíon establecer una gradación je- dar do segredo das correspondências do
rárquica entre los mismos” (ALEXY, mesmo modo como do sigilo das telecomu-
2001, p. 56). nicações, o constituinte português teve a
Tal entendimento denota que a jurispru- preocupação de dissipar dúvidas quanto à
dência espanhola parte da premissa de que admissibilidade da imposição de limitações
os direitos fundamentais, por mais impor- pelo legislador ordinário ao exercício das
tantes que sejam, são relativos, passíveis de duas garantias. A despeito da literalidade
limitações, especialmente quando ocorre a do preceito constitucional português quan-
colisão entre eles, devendo-se, na solução to à possibilidade de quebra do sigilo das
do problema teorético e prático, ter em conta correspondências, em compasso com lição
o conceito de relação de precedência condicio- haurida de CANOTILHO (1991, p. 615-616),
nada, manifestada por Alexy, no desiderato os direitos fundamentais são relativos, e não
de formular a solução do caso com suporte absolutos, de modo que são conhecidos três
na chamada lei de colisão. tipos distintos de restrições, a saber:

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“1. Limites constitucionais direc- relativos, de modo que, mesmo quando não
tos ou imediatos = limites directamen- haja expressa previsão constitucional, nada
te estabelecidos pela própria consti- impede que se imponha freios ao seu exercí-
tuição; 2. Limites estabelecidos por lei, cio, porquanto aplicável à cláusula dos li-
mediante autorização expressa da mites imanentes.
constituição (reserva da lei restritiva); Por fim, merece consideração que no pro-
3. Limites imanentes ou implícitos (= jeto de Código Processual Penal-Tipo para
limites constitucionais não escritos, Ibero-América, trabalho apresentado à co-
cuja existência é postulada pela ne- munidade científica em 30/31 de outubro
cessidade de resolução de conflitos de de 2000, na cidade de Santiago do Chile,
direitos e bens).” com a participação de vários pesquisado-
Ancorado na doutrina de ALEXY (2001), res latino-americanos e europeus (AMBOS;
CANOTILHO (1991) expõe que os direitos CHOUKR, 2001, p. 11), o art. 165, há a pre-
fundamentais são informados pela cláusula visão expressa da interceptação e do seqües-
da comunidade ou dos limites originários ou tro12 da correspondência, admitindo-se, até
primitivos, de modo que eles, ainda quando mesmo, que, em casos de perigo pela demo-
não haja previsão constitucional, longe de ra, o Ministério Público e a polícia13 possam
serem tidos como absolutos, sofrem limites fazer a interceptação sem a prévia autoriza-
originários ou primitivos, insítos a todos eles, ção judicial, muito embora depois devam
que se justificam porque são (1) “limites cons- levar ao crivo deste, que avaliará a legalida-
tituídos por direitos dos outros”; (ii) limites ima- de da medida tomada.14
nentes da ordem social; (iii) limites eticamente
imanentes para, daí, concluir que “haverá, 5. Assertivas que infirmam o caráter
pois, uma ‘cláusula da comunidade’ nos absoluto do sigilo da correspondência
termos da qual os direitos das liberdades e
garantias estariam sempre ‘limitados’, des- Tal como redigido, o preceito da Consti-
de que colocassem em perigo bens jurídicos tuição de 1988 que assegura a inviolabili-
necessários à existência da comunidade.” dade da correspondência e das comunica-
O constitucionalista lusitano agrega que o ções telefônicas, a um primeiro exame, pa-
exame da jurisprudência do Tribunal Cons- rece que o constituinte brasileiro se desa-
titucional português revela que, muito em- partou dos paradigmas do Direito Compa-
bora sem o background teórico formado so- rado, com a intensão deliberada de conferir
bre o assunto e sem uma uniforme retórica ao tema um abordagem singular, na medi-
argumentativa, adotou-se a idéia dos limi- da em que teria erigido o sigilo da corres-
tes imanentes dos direitos fundamentais (CA- pondência à categoria de direito fundamen-
NOTILHO, 1991, p. 622). tal absoluto, uma vez que somente excepci-
Em suma, de todo o exposto, não resta ona a proteção à inviolabilidade do meio de
dúvidas de que a doutrina e a jurisprudên- comunicação quando se trata da hipótese
cia da França, Alemanha, Espanha, Itália e de contato telefônico.
Portugal não fazem distinção ontológica Se essa for a inteligência firmada sobre o
entre o sigilo da correspondência e o das assunto, implica conceber um regramento
comunicações telefônicas e que, em todos no ordenamento jurídico brasileiro peculi-
eles, é plenamente admissível a restrição do ar, que rompe com a nossa tradição consti-
segredo das cartas. Merece registro, outros- tucional15 e, como restou acentuado, com o
sim, que o entendimento sedimentado nes- disciplinamento jurídico previsto nas Cons-
ses países é o de que os direitos fundamen- tituições da França, Alemanha, Itália, Espa-
tais, ainda que inspirados nos direitos na- nha e Portugal, justamente os países que
turais, não são absolutos, mas tão-somente inspiraram decisivamente a elaboração de

202 Revista de Informação Legislativa


nossa Carta vigente16. Todavia, não parece Estado, nada obstante detenha o direito
que assim seja, na medida em que três as- legítimo de encetar a persecução crimi-
sertivas de caráter lógico infirmam posição nal, tem essa missão tutelada pelas nor-
nesse sentido, de modo que não é razoável mas constitucionais de ordem criminal,
sustentar-se a inviolabilidade, em caráter impondo a irrestrita obediência ao prin-
absoluto, do segredo da correspondência. cípio da legalidade, tendo em mira pre-
Essas assertivas se escoram no entendimen- servar o direito de liberdade, na sua mais
to de que as garantias constitucionais são limi- ampla acepção.
tações ao direito de punir do Estado, que os di- Por mais repugnante e hediondo que seja
reitos fundamentais são heterogêneos e se autoli- o comportamento daquele que violou a nor-
mitam e que a interpretação do alcance de um ma penal, ainda assim, na persecução quan-
princípio deve ter em conta todo o sistema jurí- to à aplicação da pena, só poderá o Estado
dico, não sendo suficiente a explicação em- agir dentro dos parâmetros gizados desde a
basada apenas em sua expressão literal. Lei Fundamental. Os contornos da atua-
Para melhor dissecá-las, é de boa ordem tra- ção do Estado no sentido de buscar a res-
tá-las em separado, como será feito a seguir. ponsabilidade criminal estão plasmados
nas garantias constitucionais e perfazem
5.1. Garantias constitucionais como limitações o que se convencionou chamar de devido
ao direito de punir do Estado processo legal. Sem a observância dessas
O exame da história dos povos, contem- regras, a atuação jurisdicional se dá fora
plando a transformação da sociedade pri- do perfil do Estado Democrático de Direi-
mitiva em Estado, mostra que o homem, a to.
despeito da percepção da necessidade de A garantia constitucional tem o seu co-
formalização do poder político, sempre se mando voltado no sentido de expandir a
preocupou em estabelecer limites ao exercí- garantia do direito à inviolabilidade da in-
cio do mandato por parte do governante, timidade e da vida privada e, até mesmo, da
utilizando como um dos instrumentos mais honra e da imagem, quanto à violação a que
importantes a declaração dos direitos fun- esses bens jurídicos estão sujeitos, não só
damentais inerentes à própria condição por parte dos órgãos públicos, como tam-
humana, que subsistem independentemen- bém pelas pessoas físicas e jurídicas de Di-
te da vontade dos governantes. Esses direi- reito Privado. Em primeira nota, a norma
tos fundamentais, porquanto indispensá- seria destinada, tão-somente, àqueles que
veis para o ser humano, que ocuparam as pautam o seu agir de conformidade com as
preocupações mais profundas dos grandes normas jurídicas postas perante o grupo
filósofos, desde o início, foram postos como social, não socorrendo aqueles que agem de
garantias delimitadoras dos poderes do Es- forma errante, trazendo prejuízos à coletivi-
tado. dade. Contudo, as garantias constitucionais
Os direitos naturais, normatizados expostas pelo constituinte têm incidência,
nas Constituições, passaram à categoria via de regra, no campo penal, como é o caso
de direitos fundamentais17, também de- do sigilo das correspondências, ainda mais
nominados garantias constitucionais. pelo fato de ter-se deixado expresso, mais
Essas garantias nas searas dos Direitos adiante, no inciso L do art. 5 º, que “são inad-
Penal e Processual Penal, conservando missíveis, no processo, as provas ilícitas”.
a razão de sua origem, apresentam-se A premissa é que a defesa do agente é a mais
como limitações ao exercício do direito ampla possível, mas o Estado tem de con-
de punir, no que diz respeito não só à formar o seu agir dentro daquilo que for pre-
aplicação da sanção penal, como tam- visto pela norma, daí por que não poderá
bém à própria investigação criminal. O levar em consideração uma prova obtida de

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forma ilícita, a fim de condenar quem quer que a garantia constitucional-penal pode-
que seja, seja qual for o crime. ria ser violada pelo agente do Estado, inde-
Uma vez concebido o sigilo da corres- pendentemente de autorização judicial, de
pondência como uma garantia do cidadão modo que, como em relação ao sigilo da cor-
contra o Estado na sua persecução crimi- respondência o legislador não fez nenhu-
nal, tem-se que não é defesa a edição de nor- ma ressalva, não seria correto estender a ila-
ma jurídica que venha a regulamentar a ção para abarcar também essa hipótese.
quebra do sigilo da correspondência, no Mas, ainda assim, vamos raciocinar. A
sentido de viabilizar a sua utilização como Constituição da República, quando assegu-
meio de defesa a quem responde a processo ra o direito à vida, não diz, em tempo ne-
criminal. Isso porque, se a garantia da invi- nhum, que o Estado ou quem agir em seu
olabilidade do sigilo da correspondência, nome pode legitimamente matar quem quer
na sede criminal, é encarada como uma li- que seja. O direito à vida, nos termos da
mitação do direito de punir, não haveria Constituição, seria absoluto, até porque não
contradição com a norma constitucional se encontra, em nenhum dos seus artigos,
permitir essa violação, desde que o seja para nenhum comando normativo que autorize
possibilitar ao acusado o direito de contes- matar alguém.
tar a pretensão punitiva contra ele exercida. O direito à vida, portanto, estaria prote-
Essa constatação é suficiente para fazer ruir gido, em qualquer circunstância. Não é as-
a tese de que o sigilo da correspondência se sim, porém. Devemos partir do princípio. A
manifesta inquebrantável, com caráter ab- norma ou normas que protegem o direito à
soluto, como se não fosse possível, em ne- vida na seara criminal expressam limitação
nhuma hipótese, a sua restrição ou limita- do direito de punir, e não à atuação do Esta-
ção18. do no sentido de manter a ordem, quando
Outra ótica que se dessome da premissa do exercício do poder de polícia, pois, para
de que as garantias constitucionais penais o fim de coibir a prática de atos ilícitos, se
traduzem comandos relativos à limitação do for necessário, ainda que vedada a pena de
direito de punir do Estado é que o agente do morte, pode ser tirada a vida de um pessoa,
Estado ou a quem atribuída a função de coi- sem que isso represente afronta ao direito à
bir a prática de crime pode, nada obstante vida, nem acarrete responsabilidade penal
as normas constitucionais, independente- ou mesmo civil.
mente de autorização judicial, no exercício O que o Estado não pode é aplicar a pena
do poder de polícia, agir a fim de embargar de morte ou, então, para investigar um cri-
conduta ilícita. Veja-se que a Constituição, me, torturar o agente até a morte, no deside-
a par de assegurar a inviolabilidade do do- rato de fazê-lo confessar e, assim, descobrir
micílio, permite, expressamente, que o agen- a verdade. Agora, se um agente está prati-
te do Estado, desde que esteja ocorrendo um cando um crime, ainda que não o tenha con-
crime em seu interior, quebre essa garantia sumado, se preciso for, o agente do Estado
constitucional, independentemente de au- pode, independentemente de autorização
torização judicial. Do mesmo modo, a nor- judicial, sendo necessário, usar da violên-
ma fundamental assegura o direito de liber- cia para expungir o ato ilícito, coartando o
dade, mas possibilita que o agente do Esta- direito de liberdade, ou mesmo, ainda que a
do ou quem suas vezes fizer restrinja essa Constituição não apresente ressalva, tiran-
garantia, quando o autor do ilícito for sur- do a vida do indivíduo.
preendido em flagrante delito. Esse direito do Estado, de até mesmo re-
Pode-se dizer, é verdade, que, nessas hi- tirar a vida de quem está praticando crime,
póteses mencionadas supra, o constituinte, sem que essa forma de agir seja ilícita, está
expressamente, previu as circunstâncias em implicitamente regulado na Constituição e,

204 Revista de Informação Legislativa


expressamente, no Código Penal, ao incluir, lorado como instrumento probatório, nun-
entre as causas de justificação, o estrito cum- ca, porém, como óbice para que, no legítimo
primento de dever legal. Daí por que, nada exercício do poder de polícia, o Estado ou
obstante o constituinte assegure o sigilo da mesmo qualquer do povo intercepte ou obs-
correspondência sem apresentar qualquer trua uma correspondência utilizada como
ressalva, é possível que o agente do Estado, o próprio instrumento do crime, como no
para sustar a conduta criminosa, quebre essa caso imaginado da carta-bomba.
garantia, independentemente, até, de auto-
rização judicial, desde que as circunstânci- 5.2. Os direitos fundamentais são heterogêneos
as assim imponham que se proceda. e se autolimitam
FERNANDES (1994, p. 72), malgrado Enquanto reminiscência da discussão
tenha como suporte o princípio da propor- em torno da existência de um direito natu-
cionalidade, lembrando que, em determina- ral e que subsistisse em virtude da própria
dos casos, para garantir o direito à própria natureza do ser humano, indispensável à
vida, há necessidade de ser violado o sigilo satisfação das necessidades humanas, BO-
da correspondência, lança a seguinte asser- BBIO (1992, p. 20), em a Era dos Direitos, com
tiva: “Imagine-se que alguns presos, atra- lucidez, enfrenta a temática, desenvolven-
vés de troca de correspondência, preparam do o seu pensamento sobre o assunto, par-
a fuga, na qual será sequestrada e morta uma tindo da premissa de que não há direito ab-
autoridade. Estranho que não se permita a soluto. A seu sentir, os direitos do homem,
violação dessa correspondência se há notí- por mais fundamentais que sejam, são rea-
cia do plano, com o intuito de abortá-la.” lidades históricas, surgidos em razão de
Nesse caso, entende o autor citado que o determinadas condições de vida, sendo,
valor maior, a vida, há de ser preservado, portanto, apenas relativos, não resultando,
afirmação com a qual não se há de tergiver- como defendiam os jusnaturalistas, da pró-
sar19. pria natureza do homem. Em sua concep-
Imagine-se a situação da carta-bomba. ção, os direitos fundamentais do homem
Diante da garantia do sigilo absoluto, sem podem ser definidos por naturais tão-so-
possibilidade de restrições, ela não poderia mente sob a ótica de assim considerados
ser interceptada? Só poderia ser intercepta- porque cabem ao homem pela sua própria
da caso o destinatário consentisse? E se o condição de ser, não dependendo da von-
destinatário fosse um suicida? Vale lem- tade do soberano20.
brar os acontecimentos posteriores ao 11 de Os direitos não são absolutos, até por-
setembro de 2001, com as cartas enviadas que eles não nascem de uma só vez, pois
para americanos, contendo a substância resultam da luta pela melhor qualidade de
química letal identificada como “antraz”. vida, sendo gerados quando devem, ou mes-
Consoante noticiário jornalístico, nos Esta- mo podem nascer, sendo passíveis de mo-
dos Unidos, em muitos casos, ante meras dificações com o tempo, em compasso com
suspeitas, cartas foram interceptas e aber- a evolução das necessidades crescentes do
tas, no escopo de evitar males que viessem ser humano. De acordo com o pensamento
atingir não apenas o próprio destinatário, de Kant, mencionado por BOBBIO (1992), o
mas também a terceiros. único direito irresistível seria a liberdade,
Em síntese, ainda que se entenda que o enquanto direito inerente ao ser humano,
sigilo da correspondência é absoluto, mes- tais como o direito de comer, beber, casar,
mo assim, esse comando normativo teria seu namorar, trabalhar, etc., porquanto os direi-
raio de alcance restrito à inadmissibilidade tos do homem, considerados como categori-
da quebra do segredo da missiva, no intuito as ínsitas à condição humana, seriam aque-
de não permitir que o seu conteúdo seja va- les que pertencem, ou deveriam pertencer,

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aos homens, indispensáveis ao aperfeiçoa- zes, incompatíveis entre si, daí por que di-
mento da pessoa humana ou para o desen- reitos que possuem fundamentos tão diver-
volvimento da civilização. De qualquer for- sos devem ser limitados, quando sopesados
ma, reconhecia Kant que a extensão do di- entre si, no desiderato de que todos sejam
reito de liberdade de uma pessoa tem os seus observados, perfazendo um sistema harmô-
limites determinados pela necessidade de nico.
obediência ao direito de liberdade dos de- Por fim, realça o filósofo italiano que,
mais indivíduos. além de notar-se em muitos casos o contras-
De qualquer forma, na visão de BOBBIO te entre o direito fundamental de uma cate-
(1992), manifesta-se extremamente comple- goria e de outra, deve-se verificar que, as
xo definir os direitos do homem, uma vez mais das vezes, exsurge antinomia entre
que o alcance do enunciado fica à mercê dos direitos invocados pelas mesmas pessoas,
valores cultivados pelo intérprete. Ade- acrescentando que, paradoxalmente, à me-
mais, e aqui penso que a idéia de Bobbio dida que os poderes dos indivíduos aumen-
atinge o âmago da questão, os direitos fun- tam, mais diminuem as liberdades dos mes-
damentais, caso entendidos como absolu- mos indivíduos, visto que “os direitos fun-
tos, não poderiam ser cumpridos de forma damentais garantidores da liberdade con-
global, a um só tempo, porque, a fim de que sistem em poderes, exigindo dos outros (in-
fossem observados num mesmo instante, cluídos os poderes públicos) obrigações
seria necessária a conciliação, que os direi- puramente negativas, que implicam absten-
tos interagissem de forma sistêmica, para ção de determinados comportamentos, ou
que um não anulasse o outro. então obrigações positivas” (BOBBIO, p. 21-
Ainda assim, como os direitos do homem 22).
são históricos, eles pertencem a uma classe Tem-se, assim, que, para fins de preser-
variável, que se cria no tempo, modifica-se vação da dignidade humana, há a necessi-
com ele e continua a modificar-se com a al- dade de serem previstos direitos fundamen-
teração das condições históricas, com base tais, muitos deles guardando certa antino-
nos interesses e necessidades das classes mia. Dessa forma, não há um direito funda-
no poder, no surgimento ou desaparecimen- mental absoluto, mas direitos fundamentais
to dos meios indispensáveis à realização relativos, tidos, historicamente, diante de
dos direitos e, sobretudo, nas inovações de certas circunstâncias, como imprescindíveis
ordem tecnológica, o que nos leva a supor para o desenvolvimento da pessoa humana
que, no futuro, poderão surgir direitos ini- e da civilização. Voltando ao tema central
magináveis atualmente. Por isso mesmo, deste escrito, não se pode perder de vista
alguns bens fundamentais mereçam valo- existir, ao lado do direito ao sigilo das cor-
res universais, muito do que se apresenta respondências, que procura tornar efetiva a
como direito fundamental para uma deter- proteção à intimidade, à vida privada, e até
minada era histórica e numa certa civiliza- à imagem e à honra, o direito de defesa geral
ção não o é em relação a outras épocas e em dos cidadãos contra a utilização dessa ga-
outras culturas ou mesmo às vezes não tem rantia como forma de perpetrar os crimes
conteúdo idêntico. mais variados, até mesmo tendo como re-
Atento para essas peculiaridades, mal- sultado a morte.
grado reconheça que há alguns direitos que No meu entender, o Código Penal, ao
valem em qualquer situação e para todos os estabelecer que, ao agir em estrito cumpri-
homens indistintamente, como o caso do mento de dever legal, o agente do Estado
direito de não ser escravo ou de não ser tor- não pratica nenhum crime, está a permitir,
turado, adverte BOBBIO (1992, p. 18) que os por linhas transversas, que, sendo o caso,
direitos são heterogêneos e, muitas das ve- desde que necessário para o cumprimento

206 Revista de Informação Legislativa


do dever de polícia quanto ao desempenho BARROS (2000, p. 160), forte na doutri-
da segurança pública, restrinja-se o sigilo na de Canotilho, não põe dúvidas quanto à
da correspondência. Ora, ainda que, à pri- existência de limites ou restrições para os
meira vista, essa posição pareça despropo- direitos fundamentais, que podem estar ex-
sitada, ela se torna razoável, na medida em pressos diretamente pela Constituição, in-
que imaginarmos a possibilidade de o agen- diretamente pela lei e implícitos, uma vez
te do Estado, no estrito cumprimento de de- que imanentes devido à coexistência de prin-
ver legal, agredir fisicamente o agente do ilí- cípios opostos. Pondera a autora que os li-
cito, até mesmo lhe ocasionando a morte, mites imanentes se justificam na medida em
em afronta ao bem jurídico maior de todo e que as normas de direitos fundamentais in-
qualquer ordenamento jurídico, que é a vida, fluem na relação mantida entre os próprios
mas não possa, também para evitar, impe- cidadãos, titulares de garantias que mere-
dir a consumação ou fazer com que a ativi- cem igual proteção, e, não raro, essa colisão
dade criminosa cesse, interceptar a corres- se destaca entre direitos individuais e bens ju-
pondência, ainda que sem autorização ju- rídicos da comunidade, como a saúde pública,
dicial. Se alguém está prestes a matar ou- segurança pública, defesa nacional (BARROS,
trem, utilizando-se de um revólver, o agente p. 169).
do Estado pode intervir e, no estrito cumpri- A esse respeito, o Supremo Tribunal Fe-
mento de dever legal, prendê-lo, violando o deral, por mais de uma vez, emitiu pronun-
seu direito de liberdade ou, até mesmo, se ciamento sufragando a tese de que não há,
for o caso, matá-lo para evitar que o crime no nosso sistema jurídico, garantia consti-
ocorra. Nesse caso, a ação não só é legítima tucional absoluta, apresentando-se, todos
como também é legal, ainda que se arranhe elas, apenas de forma relativa, daí por que é
o direito de liberdade ou o próprio direito à válido afirmar que, como regra de princí-
vida do agressor. Porém, se o agente do cri- pio, os direitos fundamentais possuem li-
me, astutamente, enviar uma carta-bomba a mites, quando não expressos, que lhes são
outrem, não poderia o agente do Estado in- imanentes. Com efeito, ao deferir medida li-
tervir, porque essa atitude violaria o direito minar no Mandado de Segurança n o 23.669-
ao sigilo? Não seria razoável que assim se DF, o Ministro Celso de Mello21, ao longo da
entendesse. decisão, afirmou:
Se até o direito à vida, como vimos, não é “Na realidade, como já decidiu
absoluto, não só porque a constituição res- esta Suprema Corte, não há, no siste-
salva, expressamente, a possibilidade da ma constitucional brasileiro, direitos
pena de morte, em caso de guerra declara- ou garantias que se revistam de cará-
da, como também porque no exercício do ter absoluto, mesmo porque razões de
poder de polícia, em casos extremos, o agente relevante interesse público ou exigên-
do Estado pode legitimamente ceifar a vida cias derivadas do princípio de convi-
do autor do ilícito, não se mostra coerente vência das liberdades legitimam, ain-
sustentar que o sigilo da correspondência o da que excepcionalmente, a adoção,
seja. Ademais, essa garantia, igualmente, por parte dos órgãos estatais, de me-
não tem apenas limitações implícitas, mas didas restritivas das prerrogativas
também pelo menos uma expressa. É quan- individuais ou coletivas, desde que
do na Constituição deixa plasmado, no art. respeitados os termos estabelecidos
136, § 1º, que, durante o estado de defesa, o pela própria Constituição” (MS
decreto que o instituir deverá determinar o 23.452-RJ, Rel. Min. Celso de Mello).
tempo de sua duração, além de especificar Com essas considerações, não se tem
as garantias constitucionais restringidas, dúvidas de que o art. 233 do Código de Pro-
entre elas o sigilo da correspondência. cesso Penal que, a contrario sensu, admite

Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004 207


como prova as cartas interceptadas ou obti- seqüente valoração inadequada, o erro é do
das sem o consentimento do emitente ou do operador jurídico, e não da norma em si. Até
destinatário, desde que não tenha sido uti- porque o direito é instrumento de vida, for-
lizado meio ilícito, continua em plena vi- ma de pacificação social, que ordena o de-
gência, diante de sua compatibilidade com senvolvimento e as realizações das necessi-
a Constituição de 1988, da mesma forma dades humanas dentro dos valores colima-
como se afinava com as Cartas de 1937, 1946 dos pelo grupo social, de modo que nunca
e 1967. Como desenvolvimento do mesmo conduz ao absurdo, a não ser que o opera-
raciocínio, também se chega à conclusão de dor jurídico trilhe o caminho errado.
que o art. 240, § 1º, letra f, do Ordenamento Muito embora a dicção normativa encar-
Processual Penal é plenamente compatível tada na Constituição da República, no inci-
com os ditames da Constituição, de modo so XII do art. 5 o, deixe consignado que é invi-
que a medida cautelar de busca e apreen- olável o sigilo da correspondência e das comuni-
são, determinada de ofício ou a requerimen- cações telegráficas, de dados e das comunicações
to do Ministério Público ou da autoridade telefônicas, salvo, no último caso, por ordem ju-
policial, em decisão fundamentada do juiz, dicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabele-
constitui-se no instrumento hábil para se cer para fins de investigação criminal ou instru-
colher a correspondência para fins de que ção processual penal e, em sua leitura isolada,
ela instrua o processo na qualidade de pro- leve a crer que o constituinte ressalvou a
va. possibilidade de quebra, ainda que medi-
ante autorização judicial, apenas das comu-
5.3. Interpretação sistêmica nicações telefônicas, por motivos óbvios,
Nenhuma regra jurídica existe isolada- essa não é a forma mais adequada de se pro-
mente, pois o direito, antes de tudo, é siste- curar enxergar o alcance da cláusula em
ma, devendo os preceitos constitucionais ser destaque.
interpretados conforme os princípios da ci- A primeira interpretação que ressai da
vilização. O legislador, ainda que se trate norma, e é a mais fácil de ser vista, leva a
do constituinte, não detém o dom de prever crer que o constituinte deixou expresso que
todas as circunstâncias da vida que reco- seria “inviolável o sigilo da correspondên-
mendam a solução alvitrada pela norma cia”. Se ele quisesse restringir, assim como
jurídica. A visão do legislador, logicamen- o fez em relação às comunicações telefôni-
te, é preconcebida dentro daquelas circuns- cas, o direito ao sigilo quanto à correspon-
tâncias vislumbradas, daí por que, as mais dência, às comunicações telegráficas e aos
das vezes, o alcance da norma, para deter- dados, não teria utilizado a expressão “sal-
minados casos, em razão da peculiaridade vo no último caso”. Porém, interpretações
da situação, é restringido ou alargado. O outras, mais consentâneas com a realidade,
que se quer dizer é que o verdadeiro alcance emergem do enunciado sub studio. Até por-
de uma norma não está de pronto revelado que, na seara do direito, a norma jurídica,
com o seu enunciado, mas sim quando se sempre e sempre, admite, no mínimo, duas
examina a extensão com que ela deve ser inteligências diametralmente opostas. É nes-
interpretada, dentro de um determinado se contexto hermenêutico que se pode de-
contexto fático. fender a idéia de que o dispositivo encerra
Cabe ao exegeta, portanto, enxergar o dois comandos: o primeiro se refere ao sigi-
direito enquanto sistema organizado, fazen- lo em si das fontes que enuncia e o segundo
do as distinções necessárias para adequar relaciona-se à comunicação desses elemen-
a norma aos seus verdadeiros fins, de modo tos informativos de prova que, nessa linha,
que se, diante das circunstâncias, são feitas poderia ser interceptada, pois quando o
as distinções desacertadamente, com a con- constituinte disse salvo, no último caso [...] es-

208 Revista de Informação Legislativa


taria se referindo a qualquer hipótese de comu- segunda por meio da fala. Porém, a escrita é
nicação, e não apenas àquela veiculada pela a mera reprodução, em símbolos, da fala, ou
via telefônica. seja, é uma representação da fala. Se a fala,
Aliás, parece que o Legislativo assim está que é representada pela escrita, pode ser
a entender que a expressão salvo, no último interceptada, por que não a escrita, que é
caso [...] está se referindo a qualquer um dos apenas a sua imagem? A escrita, à seme-
casos de comunicação, a partir do instante lhança da fala, é forma de expressão da lín-
em que editou norma, contida no art. 6 º, VIII, gua, não havendo distinção ontológica en-
alínea “a”, da Lei Complementar nº 75, de tre uma e outra, a justificar tratamento dife-
20 de março de 1993, expondo competir ao rençado no que respeita à proteção median-
Ministério Público da União representar ao te a preservação do sigilo.
órgão judicial competente para quebra de sigilo Ademais, o telefone, hoje, com o avanço
da correspondência e das comunicações telegrá- da tecnologia, também possibilita o contato
ficas, de dados e das comunicações telefônicas, por meio da escrita. É o que ocorre com o
para fins de investigação criminal ou instrução fac-símile. Qual a diferença entre a corres-
processual [...], preceito aplicável também ao pondência postal e aquela feita por fac-sí-
Ministério Público dos Estados, por força mile, que justifique a distinção quanto à
do art. 80 da Lei 8.625, de 12.02.93. Em exa- possibilidade de quebra de apenas uma de-
me sistemático, a interpretação emprestada las? Sem falar no correio eletrônico que, em
quando da feitura da Lei Complementar nº consonância com a Lei nº 9.296, de 24 de
75, de 1993, é a que melhor se compatibiliza julho de 1996, pode ter o seu sigilo quebra-
à lógica, desde que não haja justificativa do, meio de comunicação que em nada dife-
para que se permita, apenas, a quebra do re da carta, senão quanto ao instrumento
sigilo por meio das comunicações telefôni- que veicula a transmissão da mensagem
cas, afastando toda e qualquer forma de in- escrita 22. É por isso que a interpretação lite-
gerência nas demais modalidades. Isso por- ral é odiosa, para não dizer que ela, sozi-
que não há distinção ontológica entre uma nha, não se presta para determinar o alcan-
forma e outra de comunicação. Veja-se que ce do preceito, especialmente quando se tra-
aqui se mostrou que, na história do nosso ta de um princípio cujo enunciado, pela sua
Direito Constitucional, o sigilo da corres- própria natureza generalizante, compreen-
pondência permaneceu sendo assegurado de conceito polissêmico de complexa com-
desde a Carta Imperial de 1824, mas sempre preensão. Não parece razoável querer ex-
se entendeu que ele era de caráter relativo e pressar o conteúdo de um princípio com
nunca tinha havido nenhum tratamento suporte somente na interpretação literal de
diferente em relação a essas formas de co- sua expressão normativa.
municação (cf. tópico 2). Por outro lado, na De qualquer forma, a despeito da Lei
apreciação da doutrina e da jurisprudência Complementar nº 75/93, ainda há a Lei de
de países cujas Constituições serviram de Execução Penal que, no art. 41, parágrafo
paradigma para a elaboração da nossa de único, diz que o direito do preso à corres-
1988 – França, Alemanha, Itália, Espanha e pondência pode ser suspenso ou restringi-
Portugal –, em todos eles o sigilo da corres- do, mediante ato motivado do diretor do es-
pondência é tido como relativo e ele recebe o tabelecimento penal. Para quem defende que
mesmo tratamento que é dispensado para a o sigilo da correspondência é absoluto, nem
comunicação telefônica (cf. tópico 4). mesmo a correspondência dos detentos
A única diferença que se poderia fazer pode vir a ser interceptada, o que conduzi-
entre a comunicação por correspondência e ria ao absurdo de permitir que o encarcera-
aquela por meio de telefone seria que a pri- do, de dentro do estabelecimento prisional,
meira se faz por meio da escrita, enquanto a continuasse a comandar o crime, protegido

Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004 209


pelo sigilo. Sob enfoque de outro ângulo, próprios das autoridades judiciárias, podem
seria possível coibir que o detento, por meio determinar a quebra de garantia constituci-
das comunicações telefônicas, desse conti- onal, ou seja, independentemente de ordem
nuidade a sua participação na prática de emanada de juiz. Na discussão sobre o al-
ilícitos, mas nada pudesse fazer quando o cance dos poderes de investigação próprios das
meio utilizado fosse a correspondência. autoridades judiciais que são outorgados pela
Felizmente, o Supremo Tribunal Federal, Constituição às comissões parlamentares de
mantendo coerência com a sua concepção inquérito (art. 58, § 3º), o Supremo Tribunal
de que os direitos fundamentais são relati- Federal, em reiteradas vezes, sufragou a tese
vos, chamado a dirimir controvérsia na qual de que, quando a Constituição estabelece a
se discutia a constitucionalidade do art. 41, garantia, mas expressamente diz que ela
parágrafo único, da Lei nº 7.210, de 1984 – pode ser restringida mediante ordem, auto-
Lei de Execução Penal –, que permite à ad- rização ou decisão judicial23, somente a au-
ministração penitenciária, por medida de toridade judiciária, o juiz, no exercício da
segurança do estabelecimento, mesmo sem atividade tipicamente judicante, pode deter-
autorização judicial, a interceptação da cor- minar a sua quebra, como ocorre nos casos
respondência dos presos, assim se posicio- de prisão cautelar e de inviolabilidade do
nou: domicílio. É o que se chama reserva de juris-
“[...] A administração penitenciá- dição.
ria, com fundamento em razões de se- De outro lado, quando o direito funda-
gurança pública, de disciplina prisi- mental está previsto, mas não há nenhum
onal ou de preservação da ordem jurí- tipo de ressalva, antes de isso querer dizer
dica, pode, sempre excepcionalmen- que ele não tem limite, em verdade, não ape-
te, e desde que respeitada a norma ins- nas o juiz pode determinar a quebra da ga-
crita no art. 41, parágrafo único, da rantia, como até mesmo a comissão parla-
Lei nº 7.210/84, proceder a intercep- mentar de inquérito. Por isso mesmo, a co-
tação da correspondência remetida missão parlamentar de inquérito não pode
pelos sentenciados, eis que a cláusu- determinar a invasão domiciliar, a prisão
la tutelar da inviolabilidade do sigilo cautelar nem a interceptação de comunica-
epistolar não pode constituir instru- ção telefônica, porquanto as normas que
mento de salvaguarda de práticas ilí- garantem esses bens jurídicos contêm cláu-
citas” (BRASIL, 2003d). sula de reserva de jurisdição. Mas a comissão
É interessante observar que, no caso da parlamentar de inquérito pode, por exem-
norma jurídica em estudo, permite-se que a plo, quebrar os sigilos fiscal e bancário e o
interceptação seja feita independentemente sigilo do rastreamento dos contatos telefô-
de autorização judicial, porém, mesmo as- nicos, pois a preservação desses dados en-
sim, o Supremo Tribunal Federal, diante das contra-se lasmada no art. 5º, X, da Consti-
peculiaridades da relação entre o adminis- tuição, que não contém cláusula de reserva
trador penitenciário e os detentos, tem como de jurisdição24.
justificada a restrição nela imposta ao sigi- Seguindo essa linha de pensamento, se
lo da correspondência. se entender que a ressalva “... salvo no últi-
Outra interpretação razoável do art. 5º, mo caso”, estampada no art. 5 º, XII, da Cons-
XII, da Constituição de 1988 poderia sobres- tituição, aplica-se apenas às comunicações
sair da análise dos vários pronunciamen- telefônicas, implica reconhecer que a cláu-
tos do Supremo Tribunal Federal, nos quais sula de reserva de jurisdição quanto à garan-
a Suprema Corte delimitou as hipóteses em tia ali prevista se circunscreve a essa forma
que as comissões parlamentares de inquéri- de contato, daí sendo lícito deduzir que o
to, detentoras de poderes investigatórios sigilo da correspondência pode ser quebra-

210 Revista de Informação Legislativa


do não só por ordem judicial, mas também mento de dever legal, quebrasse o sigilo da
por decisão de comissão parlamentar de correspondência, a fim de sustar a prática
inquérito. de ilícito criminal.
O sigilo da correspondência não é abso-
6. Conclusão luto, uma vez que os direitos fundamentais,
diante da sua heterogeneidade, que faz com
O Direito brasileiro, desde sempre, deu que eles mesmos entrem em colisão, autoli-
guarida ao sigilo da correspondência, tra- mitam-se. Sem embargo desse aspecto, há
tamento normativo que principiou ainda na limitação expressa na Constituição quanto
Constituição Imperial de 1824 e permane- ao sigilo da correspondência, na medida em
ceu incólume em todas as Cartas do perío- que se admite a restrição dessa garantia
do republicano. Também mereceu atenção quando da decretação do estado de defesa.
do Código Criminal do Império e do atual A interpretação mais razoável do dispo-
Código de Processo Penal, sempre sendo tra- sitivo do inciso XII do art. 5º da Lei Maior é
tado, em sede constitucional e infraconsti- de que a expressão “salvo no último caso”
tucional, como direito fundamental limita- diz respeito aos casos de comunicação em
do. si, e não apenas às comunicações por meio
O exame do Direito comparado eviden- de contato telefônico, até porque não há ra-
ciado no das Constituições, da doutrina e zão, de natureza ontológica, para proteger
da jurisprudência de países como França, absolutamente todas as outras espécies de
Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, fon- comunicação, pondo-se ressalva, apenas,
tes que guiaram os passos dos constituintes àquela que é feita pela via telefônica.
de 1998, mostra que nele se confere trata- Os dispositivos encartados na Lei Com-
mento idêntico para os sigilos da correspon- plementar nº 75/93, na Lei de Execução
dência e das comunicações telefônicas, com Penal e no Código de Processo Penal que
imposição de limites quanto ao exercício das limitam o sigilo da correspondência são
duas garantias, na medida em que admitem constitucionais, de modo que o procedimen-
a interceptação e a utilização de seus con- to para se interceptar a correspondência é
teúdos como elemento de prova em proces- aquele que rege a busca e apreensão crimi-
so criminal. nal.
Os direitos fundamentais, na seara cri-
minal, apresentam-se como limitações cons-
titucionais quanto ao direito de punir do Notas
Estado, compreendendo-se, nessa assertiva,
as espécies de penas e a forma de exercício
1
MIRANDA (2002, p. 71 et seq.). Nesse estu-
do, Jorge MIRANDA insere o sistema constitucio-
da pretensão punitiva, com inclusão da in- nal brasileiro na família que tem como paradigma
vestigação policial, daí por que, ainda que o modelo português. De todo modo, o autor, em
fosse o caso de se entender que a garantia bosquejo histórico do constitucionalismo brasilei-
do sigilo da correspondência se manifesta ro, mostra que, em alguns momentos, as Cartas
com caráter absoluto, ter-se-ia de conside- Constitucionais do Brasil exerceram influência nas
Constituições portuguesas. Em reforço a essa tese,
rar que ela não alcança o momento em que o demonstra que as Constituições de Portugal de 1826
Estado, no exercício do poder de polícia, e de 1911 foram orientadas, respectivamente, pelas
deve agir para manter a ordem pública. Constituições do Brasil de 1824 e de 1891. Mais
Desse modo, ainda que fosse absoluto o si- adiante, acrescenta que as constituições brasileiras
gilo da correspondência, seria permitido que de 1937, 1946, 1967 e 1988 se inspiraram fortemente
nas Constituições portuguesas, principalmente a que
o agente do Estado ou quem suas vezes fi- se encontra em vigor (MIRANDA, p. 144-145).
zer, com base no art. 23, inciso III, primeira 2
O dispositivo em foco ainda continha uma
parte, do Código Penal, no estrito cumpri- segunda parte, assim redigida: “A administração

Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004 211


do correio fica rigorosamente responsável por qual- 9
Art. 18, 3: “É garantido o segredo das comu-
quer infração deste artigo.” nicações, em especial das comunicaçõe spostais,
3
O teor da ementa é o seguinte: “Inviolabilida- telegráficas ou telefônicas, salvo decisão judicial
de da correspondência. Está sujeita a exame pelos em contrário.”
agentes fiscais a correspondência comercial. O inte- 10
A norma está assim redigida: “A liberdade e
resse público sobrepõe-se ao interesse privado. Não o segredo da correspondência e de qualquer outra
há direito líquido e certo para a recusa à fiscaliza- forma de comunicação são invioláveis.
ção dos papéis constantes de arquivo comercial. Sua limitação pode ocorrer somente por deter-
Recurso de mandado de seguranca não provido”. minação da autoridade judiciária, mantidas as
(BRASIL, 2003b) garantias estabelecidas pela Lei.”
4
“Monopólio postal. Abrange as comunica- 11
Art. 34, nº 4: “É proibida toda a ingerência
ções de negócio, de débito pela prestação de servi- das autoridades públicas na correspondência e nas
ços, de vencimentos de obrigações, de posição de telecomunicações, salvos os casos previstos na lei
saldo bancário, enfim, de tudo que, do ponto de em matéria de processo criminal.”
vista legal, é considerado carta, v.g., objeto de cor- 12
No Código de Processo Penal brasileiro, o ins-
respondência, com ou sem envoltório, sob a forma tituto que confere lastro à apreensão da carta é a
de comunicação escrita, de natureza administrati- busca e apreensão.
va, social, comercial, ou qualquer outra, que conte- 13
Conferir esse poder de interceptação e seqües-
nha informação de interesse específico do destina- tro ao Ministério Público e à polícia, independente-
tário (Lei 6.538, de 1978, art. 47). Embargos Infrin- mente de autorização judicial, mesmo que reserva-
gentes rejeitados, sem o conhecimento da questão do à hipótese de perigo pela demora, dá margem
superveniente de saber se o monopólio postal sub- muito grande à prática de abusos. Nesse aspecto,
siste em face da Constituição Federal de 1988” (IOB, a proposta merece crítica.
20/91). 14
A norma proposta tem a seguinte redação:
5
O relator do acórdão foi o Ministro Edson Vi- “Art. 165. Seqüestro de correspondência. Quando
digal. for de utilidade para a averiguação poder-se-á or-
6
A expressão aqui está empregada em sentido denar a interceptação e o seqüestro da correspon-
amplo, no escopo de abranger todas as pessoas dência postal, telegráfica ou teletipográfica e os
que devem ser tratadas com dignidade. envios dirigidos ao imputado ou por ele remetidos.
7
João Mendes de ALMEIDA JUNIOR (1960) A ordem será expedida pelo juiz de instrução... O
relata que Camus se opôs à admissibilidade da Ministério Público e a polícia poderão expedir a
utilização como prova das cartas particulares por ordem em caso de perigo pela demora. Porém,
considerar “... uma carta fechada como uma pro- deverão proceder segundo o art. 162 e a correspon-
priedade, e não se pode, sem atacar abertamente os dência ou ´envio´não lhes será entregue, mas ao
mais sagrados direitos, romper os segredos das car- tribunal competente. Se dentro de três dias, a ordem
tas”. Cita ainda o referido autor que Mirabeau, in- não é ratificada pelo tribunal, cessará a intercepta-
dignado, exclamou: “Que é isto?! Um povo que ção e o seqüestro, e as peças serão liberadas a quem
quer tornar-se livre, emprestando as máximas e os correspondam.” (AMBOS; CHOUKR, 2001, p. 303).
processo da tirania?! (...) É sem utilidade alguma 15
Confira-se o que restou dito no nº 2.
que seriam violados os segredos das famílias, o 16
Raul Machado HORTA (2001, p. 64), sem
comércio dos ausentes, as confidências de amiza- desconsiderar as influências internas que guiaram
de, a confiança entre os homens. Dir-se-ia de nós o constituinte de 1988, afirma que foram sentidas
na Europa: em França sob pretexto de segurança as influências externas que “provieram do consti-
pública, são privados os cidadãos de todo o direito tucionalismo europeu, através da Lei Fundamen-
de propriedade sobre as cartas que são as produ- tal da Alemanha de 1949 e das Constituições da
ções do coração e o tesouro da confiança.” Itália de 1947, da França, de 1958, da Espanha, de
8
Art. 10 - “1. O sigilo da correspondência e das 1978, e de Portugal, de 1976”.
comunicações postais, telegráficas e telefônicas é 17
Nesse sentido, conferir José F. Lorca Navarre-
inviolável. te (1991, p. 14). Jorge MIRANDA (2002, p. 145)
2. Só podem ser ordenadas limitações com base afirma que as atuais Constituições de Portugal e
numa lei. Se a limitação tiver por finalidade prote- do Brasil – respectivamente de 1974 e de 1988 –
ger a ordem constitucional liberal e democrática ou guardam muita identidade, exemplificando com
a existência e a segurança da Federação ou de um “a extensão das matérias com relevância constitu-
Estado, a lei poderá determinar que a limitação cional, o cuidado posto na garantia dos direitos de
não seja levada ao conhecimento do indivíduo afec- liberdade, a promessa de numerosos direitos soci-
tado e que, em vez de seguir a via judicial, o contro- ais, a descentralização, a abundância de normas
le seja efetuado por órgãos principais e auxiliares programáticas”. Finaliza o constitucionalista por-
designados pela representação do povo.” tuguês: “E a Constituição brasileira consagraria

212 Revista de Informação Legislativa


regras ou institutos indiscutivelmente provindos da que, ao cuidar do sigilo do domicílio, escolheu de-
portuguesa: a definição do regime como ‘Estado terminação judicial. Sem embargo da nomenclatura
Democrático de Direito’, alguns direitos fundamen- empregada, em todos esses casos em que se exige a
tais, o estímulo ao cooperativismo, o alargamento prévia manifestação do judiciário, o pronunciamen-
dos limites materiais da revisão constitucional, a to do juiz se faz por meio de decisão, necessaria-
fiscalização da inconstitucionalidade por omissão” mente escrita e, obviamente, fundamentada.
(Os grifos não constam do original). A influência 24
Cf. “A quebra do sigilo fiscal, bancário e tele-
da Constituição portuguesa na elaboração da Cons- fônico de qualquer pessoa sujeita a investigação
tituição brasileira de 1988 foi mais forte do que se legislativa pode ser legitimamente decretada pela
imagina. Comissão Parlamentar de Inquérito, desde que esse
18
Como as normas constitucionais penais re- órgão estatal o faça mediante deliberação adequa-
presentam, antes de tudo, limitações ao direito de damente fundamentada e na qual indique a neces-
punir do Estado, a cláusula encartada na Lei Fun- sidade objetiva da adoção dessa medida extraor-
damental, consubstanciada na ampla defesa, é con- dinária. Precedente: MS 23.452-RJ, Rel. Min. Celso
templada somente ao acusado. Ainda dentro des- de Mello (Pleno). Princípio CONSTITUCIONAL DA
sa linha de idéia, deve-se concluir que, quando no RESERVA DE JURISDIÇÃO E QUEBRA DE SIGI-
inciso seguinte do art. 5º, o constituinte diz que LO POR DETERMINAÇÃO DA CPI. – O princípio
“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas constitucional da reserva de jurisdição – que incide
por meios ilícitos”, evidentemente que, no processo sobre as hipóteses de busca domiciliar (CF, art. 5º,
cível, a proibição alcança não só o autor como tam- XI), de interceptação telefônica (CF, art. 5 o, XII) e de
bém o réu, mas, no processo penal, já que se trata decretação da prisão, ressalvada a situação de fla-
de uma limitação do direito de punir, a norma é grância penal (CF, art. 5º, LXI) – não se estende ao
direcionada unicamente à pessoa que exerce a titu- tema da quebra de sigilo, pois, em tal matéria, e
laridade da ação penal. O que quero dizer, sem por efeito de expressa autorização dada pela pró-
tirar nem pôr, é que a Constituição implicitamente pria Constituição da República (CF, art. 58, § 3º),
permite que o acusado, no exercício da sua ampla assiste competência à Comissão Parlamentar de
defesa, utilize-se das provas necessárias para a Inquérito, para decretar, sempre em ato necessaria-
comprovação de sua inocência ou mesmo para ate- mente motivado, a excepcional ruptura dessa esfe-
nuar a sua culpabilidade, ainda que obtidas de ra de privacidade das pessoas”. Na linguagem usa-
forma ilícita. Essa tese se sustenta na clásula cons- da na jurisprudência do STF, interceptação de co-
titucional que veda a utilização de provas obtidas municação telefônica não se confunde com quebra
por meios ilícitos dirigida para o Estado, de modo do sigilo telefônico, uma vez que este diz respeito
que, em sua essência, quer dizer que ela não poderá apenas ao acesso ao registro dos contatos telefôni-
ser valorada para o fim de dar suporte à condena- cos, sem que se tenha conhecimento do contéudo
ção, mas nada obsta que venha a subsidiar o juízo do contato.
de absolvição.
19
Cf. jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-
deral referida no tópico 5.3 (BRASIL, 2003d).
20
Lembra BOBBIO (1992, p. 5) que os direitos
fundamentais, erroneamente definidos como abso- Bibliografia
lutos, são fruto da criação das declarações dos di-
reitos do homem, que foi uma necessidade históri- ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Direito judi-
ca, sendo ampliados ou restringidos ao sabor das
ciário brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
circunstâncias da vida. Depois, vieram os direitos
1960.
da segunda geração, os chamados direitos sociais,
e, agora, os da terceira, ainda heterogêneos e vagos, ______. O processo criminal brasileiro. 4. ed. Rio de
a exemplo do direito a um meio-ambiente puro. Janeiro: Livraria Freitos Bastos, [19--?].
21
(BRASIL, 2003c)
22
A Lei nº 9.296, de 1996, regulamentou a inter- ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales.
ceptação das comunicações telefônicas e do fluxo Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madri: Cen-
de comunicações em sistemas de informática e te- tro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001.
lemática, o que abrange a correspondência eletrôni- AMBOS, Kai; CHOUKR, Fauzi Hassan. A reforma
ca. do processo penal no Brasil e na América Latina. São
23
A Constituição não usa uma terminologia Paulo: Método, 2001.
uniforme. Quando tratou do sigilo das comunica-
ções, o constituinte utilizou a expressão ordem judi- ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições de
cial, ao se reportar à prisão cautelar, preferiu a ter- prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora,
minologia ordem escrita e fundamentada, ao passo 1992.

Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004 213


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MIRANDA, Jorge. (Org.). Constituições de diversos
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