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e a moral sexual
Alexandra Kollontai
Alexandra Kollontai (1873-1952)
BIOGRAFIA
A mulher moderna
A mulher moderna
É certo que a mulher do novo tipo já penetrou na literatura. Mas está ainda
muito longe de haver expulsado as heroínas de estrutura moral pertencentes
aos tempos passados. Tampouco conseguiu a mulher-individualidade
descartar-se do tipo de mulher esposa, eco do homem. Entretanto, é fácil
observar que ainda nas heroínas do tipo antigo se encontram, cada vez com
maior freqüência, as propriedades e os traços psicológicos que possibilitaram a
vida das mulheres do tipo celibatário e independente. Os escritores dotam
involuntariamente suas heroínas com sentimentos e características que não
eram, de modo algum, próprios das heroínas da literatura do período
precedente.(4)
Como disse Hedwig Dohn, “os novos pensamentos já nasceram em nós, mas
os antigos ainda não morreram. Os restos das gerações passadas não
perderam sua força, ainda que possuamos a formação intelectual, a força de
vontade da mulher do novo tipo.” A reeducação da psicologia da mulher,
necessária às novas condições de sua vida econômica e social, não pode ser
realizada sem luta. Cada passo dado nesse sentido provoca conflitos, que
eram completamente desconhecidos das heroínas antigas. São esses conflitos
que inundam a alma da mulher, os que pouco a pouco chamam a atenção dos
escritores e acabam por converter-se em manancial de inspiração artística. A
mulher transforma-se gradativamente. E de objeto da tragédia masculina
converte-se em sujeito de sua própria tragédia.
O amor e a nova moral
Os problemas que Meisel examina nos são conhecidos. Todos nós temos
meditado sobre eles, vivêmo-los em toda a sua dor. Não há nenhuma pessoa
que depois de refletir sobre esse problema não haja chegado por um caminho
ou por outro, às conclusões gravadas nas páginas do livro A Crise Sexual.
Mas, fiéis à hipocrisia que nos domina, continuamos adorando publicamente o
velho ídolo: a moral burguesa. O mérito de Meisel-Hess é semelhante ao do
menino do conto de Andersen. Meisel-Hess atreveu-se a gritar à sociedade
“que o rei está nu”, ou seja, que a moral sexual contemporânea não passa de
uma vã ficção.
Com efeito, as normas morais que regulam a vida sexual do homem não
podem ter mais do que duas finalidades, dois objetivos. Primeiro, assegurar à
humanidade uma descendência sã, normalmente desenvolvida: contribuir para
a seleção natural no interesse da espécie. Segundo, contribuir para o
desenvolvimento da psicologia humana, enriquecê-la com sentimentos de
solidariedade, de companheirismo, de coletividade. A moral sexual atual, como
moral que serve unicamente aos interesses da propriedade, não preenche
nenhuma destas duas finalidades. Todo o código complicado da moral sexual
contemporânea, com o matrimônio monogâmico indissolúvel, que raras vezes
está baseado no amor, e a instituição da prostituição, tão difundida e
organizada, não só não contribui para o saneamento e o melhoramento da
espécie, como produz efeitos contraditórios, ou seja, favorece a seleção natural
em sentido inverso. A moral contemporânea não faz mais do que conduzir a
humanidade pelo caminho da degenerescência ininterrupta.
Os matrimônios tardios, a esterilidade forçada nos períodos mais favoráveis
para a concepção, o recurso da prostituição completamente inútil do ponto de
vista do interesse da espécie, a ausência de um fator tão importante como o
êxtase amoroso nos matrimônios convencionais, no matrimônio legal e
indissolúvel; o fato de que os modelos femininos mais formosos, os mais
capacitados para provocar as emoções eróticas dos homens fiquem reduzidos
à esterilidade da prostituição; a condenação à morte que pesa sobre os filhos
do amor, produtos ilegais da espécie, freqüentemente os mais valiosos por
serem os mais sãos e vigorosos, tudo isto é resultado direto da moral corrente,
resultado que conduz irremediavelmente à realidade, decadência e
degenerescência física e moral da humanidade.
O propósito de Meisel-Hess, de harmonizar a moral sexual e o objetivo da
higiene da espécie, merece uma grande atenção e deve interessar
principalmente aos partidários da concepção materialista da história. A defesa
da jovem geração trabalhadora, a proteção da maternidade, da infância, a luta
contra a prostituição e outras reivindicações dos programas socialistas contêm,
no essencial, a higiene da espécie na sua mais ampla acepção. Tirar da moral
sexual a auréola do inviolável imperativo categorico, harmonizar a moral sexual
com as necessidades vitais e práticas e com as exigências da vanguarda da
humanidade, é a tarefa que deve figurar na ordem do dia e que requer
forçosamente a atenção reflexiva e consciente de todos os programas
socialistas.
Pode haver algo mais monstruoso do que o fato amoroso degradado até ao
ponto de se fazer dele uma profissao?
Meisel-Hess diz:
A terceira forma das relações sexuais, a união livre, traz dentro de si, também,
muitos aspectos igualmente sombrios. As imperfeições dessa forma sexual são
de um caráter reflexo: o homem de nossa época vê a união livre com uma
psicologia já deformada por uma moral falsa e doentia, fruto do matrimônio
legal, por um lado, e do lúgubre abismo da prostituição, por outro. O amor livre
choca-se com dois obstáculos inevitáveis: a incapacidade para sentir o amor
verdadeiro, essência do nosso mundo individualista, e a falta de tempo
indispensável para entregar-se aos verdadeiros prazeres morais. O homem
atual não tem tempo para amar. Nossa sociedade, fundada sobre o princípio da
concorrência, sobre a luta, cada vez mais dura e implacável, pela subsistência,
para conquistar um pedaço de pão, um salário ou um ofício, não deixa lugar ao
culto do amor. A pobre Aspásia esperará, inutilmente, nos dias de hoje, sobre o
leito coberto de rosas, o companheiro de seus prazeres. Aspásia não pode
repartir seu leito com um homem grosseiro, de nível moral indigno dela. Mas o
homem moralmente nobre não tem tempo para passar as noites a seu lado.
Em terceiro lugar, o amor jogo, por não ter como ponto de partida o princípio da
posse absoluta, acostuma os homens a entregar à pessoa amada a parte mais
agradável de seu eu, a parte que faz a vida mais agradável e harmoniosa.
Admite Meisel-Hess que este amor jogo iniciaria os homens numa virtude
superior. Ensiná-los-ia a não entregar-se inteiramente, a não ser quando
encontrassem um sentimento constante e profundo. A tendência atual leva-nos
a atentar contra a personalidade do outro, desde o primeiro beijo. Estamos
dispostos a entregar totalmente nosso coração, embora o outro ainda não sinta
nenhuma atração. E necessário não esquecer nunca que unicamente o
sagrado amor verdadeiro pode ter suficiente força para conceder direitos.
Podemos dizer que o amor jogo não é mais que um substituto do verdadeiro
amor. “Isto não é suficiente”, dirão ainda alguns. Neste caso, responde Meisel-
Hess, que se atrevam a olhar em tomo de si e se dêem conta com o que
subsfituem na sociedade moderna o verdadeiro amor! A prostituição disfarçada
de verdadeiro amor! Que grande hipocrisia, que terríveis reservas de mentiras
sexuais se acumulam nesse aspecto! Vejamos um exemplo da vida tomada ao
acaso. Dois noivos se sentem possuídos pelo mesmo desejo. A severa moral
contemporânea proíbe sua satisfação e lhes impõe um decisivo, ainda não.
Portanto, o noivo vai à casa da prostituta, que não deseja suas carícias, mas
que tem que entregar-se a ele, enquanto a noiva se consome na espera da
autorização legal. Seria muito mais natural, e desde logo muito mais moral, que
estes dois seres, motivados por um mesmo desejo, encontrassem a mútua
satisfação de sua carne em si próprios, sem buscar a cumplicidade de uma
terceira pessoa, completamente alheia à situação que eles mesmos criaram.
Por último, a fim de que as relações mais livres não pareçam o desenfreio total,
torna-se necessário rever todo o instrumental moral com que se equipa a
mulher solteira quando entra no caminho da vida.
No domínio dos sentimentos do amor esse novo tipo de mulher não permite
que as correntes da vida sejam as que dirijam seu barco: o leme está nas mãos
do timoneiro experimentado, sua vontade enrijeceu na luta pela subsistência. A
velha exclamação: “É uma mulher com passado!”, é agora glosada pela
celibatária da seguinte forma: “Esta mulher não tem passado. Que triste destino
o seu!” É certo que na realidade o novo tipo de mulher ainda não existe em
grande número. É igualmente certo que a nova era sexual, fruto de uma
organização mais perfeita da sociedade, não começará imediatamente. A
deprimente crise sexual não poderá resolver-se de uma só vez, não poderá
deixar o caminho livre à moral do futuro, sem luta. Mas, é igualmente certo que
o caminho já foi encontrado e que ao longe brilha, de par em par, a porta
desejada.
Como a terrível crise sexual se prolonga, seu caráter crônico adquire maior
gravidade e mais insolúvel nos parece a situação presente. Por isto, a
humanidade contemporânea lança-se ardentemente sobre todos os meios
conjecturáveis que tomem possível uma solução para o maldito problema. Mas,
a cada nova tentativa de solução, mais se complica o complexo emaranhado
das relações entre os sexos, dando-nos a impressão de que seria impossível
descobrir o único fio que nos serviria para desatar o complicado nó. A
humanidade, atemorizada, precipita-se de um extremo ao outro. Mas, o círculo
mágico da questão sexual permanece tão hermeticamente fechado como
antes.
Porém, durante esta época de transição, tão viva e cheia de colorido, a crise
sexual, apesar de revestida de caráter crítico, não se apresentou de uma forma
tão grave e ameaçadora como em nossa época. Isto se deveu ao fato de que,
durante os gloriosos dias do Renascimento, durante aquele novo século,
iluminado pela nova cultura espiritual, que coloria o agonizante mundo da Idade
Média, pobre de conteúdo, apenas uma parte relativamente reduzida da
sociedade experimentou a crise sexual. O campesinato, camada social mais
considerável da época, do ponto de vista quantitativo, sofreu as conseqüências
da crise sexual de forma indireta, quando, por lento processo secular se
transformavam as bases econômicas em que esta classe se fundamentava,
isto é, unicamente à medida em que evoluíam as relações econômicas. As
duas tendências opostas lutavam nas camadas superiores da sociedade. Neste
terreno, enfrentavam-se os ideais e as normas das duas concepções diversas
da sociedade. E era onde, precisamente, a crise sexual, cada vez mais grave e
ameaçadora, fazia suas vítimas. Os camponeses rebeldes a qualquer
inovação, classe apegada a seus princípios, continuavam apoiando-se nos
sustentáculos das tradições e o código da moral sexual tradicional permanecia
inalterável. Só se transformava, não se abrandava. Adaptava-se às novas
condições da vida econômica, sob a pressão da grande necessidade. A crise
sexual, durante a luta entre o mundo burguês e o mundo feudal, não afetou a
classe tributária. E mais, ao arruinar-se, as tradições apegavam-se à classe
camponesa com maior força. Apesar de todas as tempestades que desabavam
sobre sua cabeça, que abalavam até o solo que pisavam, a classe camponesa,
em geral, e particularmente, os camponeses russos tentaram conservar,
durante séculos e séculos, em sua forma primitiva, os princípios essenciais de
seu código moral sexual.
O problema de nossa época apresenta um aspecto totalmente distinto. A crise
sexual não perdoa sequer a classe camponesa. Como doença infecciosa, não
reconhece nem graus, nem hierarquias, contamina os palácios, as aldeias e os
bairros operários, onde vivem amontoados milhares de seres. Penetra nos
lares burgueses, abre caminho até à miserável e solitária aldeia russa, elege
suas vitimas, tanto entre os habitantes da cidade provinciana burguesa da
Europa, quanto nos úmidos sótãos, onde se amontoa a família operária, e nas
enegrecidas choças do camponês. Para a crise sexual não há obstáculos nem
ferrolho. E um profundo erro acreditar que a crise sexual só alcança os
representantes das classes que têm uma posição econômica materialmente
segura. A indefinida inquietação da crise sexual franqueia, cada vez com maior
freqüência, a porta das habitações operárias, causando tristes dramas, que por
sua intensidade de dor, não tem nada a dever aos conflitos psicológicos do
mundo burguês. Porém, justamente porque a crise sexual não ataca somente
os interesses dos que tudo possuem, precisamente porque estes problemas
sexuais afetam também uma classe social tão numerosa como o proletariado
de nossos tempos, é incompreensível e imperdoável que esta questão vital,
essencialmente violenta e trágica, seja considerada com tanta indiferença.
Entre as múltiplas idéias fundamentais que a classe trabalhadora deve levar
em conta em sua luta para a conquista da sociedade futura, deve estar,
necessariamente, o estabelecimento de relações sexuais mais sadias e que,
portanto, tomem a humanidade mais feliz.
Talvez não haja nenhuma outra relação humana como as relações entre os
sexos, na qual se manifeste com tanta intensidade o individualismo grosseiro
que caracteriza nossa época. Absurdamente se imagina que basta ao homem,
para escapar à solidão moral que o rodeia, o amor, exigir seus direitos sobre a
outra pessoa. Espera assim, unicamente, obter esta sorte rara: a harmonia da
afinidade moral e a compreensão entre dois seres. Nós, os indivíduos dotados
de uma alma que se fez grosseira pelo constante culto de nosso eu, cremos
que podemos conquistar sem nenhum sacrifício a maior das sortes humanas, o
verdadeiro amor, não só para nós, como também para nossos semelhantes.
Cremos poder conquistar isso sem dar em troca a nossa própria personalidade.
A sociedade contemporânea vai muito mais longe que a ordem antiga na tutela
que exerce sobre a mulher. Não só lhe prescreve casar-se unicamente com
homens dignos dela, como lhe proíbe, inclusive, que chegue a amar um ser
que lhe é socialmente inferior. Estamos acostumados a ver como homens, de
nível moral e intelectual muito elevado, escolhem para companheira de vida
uma mulher insignificante e vazia, sem nenhum valor comparado ao valor do
esposo. Apreciamos este fato como completamente normal e que, portanto,
não merece sequer nossa consideração. Tudo que pode suceder é que os
amigos “lamentem que Ivan Ivanitch tenha se casado com uma mulher
insuportável”. O caso varia tratando-se de uma mulher. Então, nossa
indignação não tem limites e a expressamos com frases como a seguinte:
“Como é possível que uma mulher tão inteligente como Maria Petrovna possa
amar uma nulidade assim!... Teremos que por em dúvida sua inteligência...”
Mas, não será essa condição prévia uma utopia desprovida de base, utopia na
qual os idealistas sonhadores baseiam suas considerações ingênuas?
Tentemos aumentar o potencial de amor da humanidade. Acaso os sábios de
todos os povos, desde Buda e Confúcio até Cristo, não se entregaram desde
tempos remotos a essa tarefa?
Na sociedade atual avança um novo grupo social que tenta ocupar o primeiro
posto e deixar de lado a burguesia, com sua ideologia de classe e seu código
de moral sexual individualista. Esta classe ascendente, de vanguarda, leva
necessariamente em seu seio os germens de novas relações entre os sexos,
relações que, forçosamente, estarão ligadas a seus objetivos sociais de classe.
A complexa evolução das relações econômico-sociais, que se verifica diante de
nossos olhos, que transtorna todas as nossas concepções sobre o papel da
mulher na vida sexual e destrói os fundamentos da moral sexual burguesa, traz
consigo dois fatos que, à primeira vista, parecem contraditórios. Por um lado,
observamos os esforços infatigáveis da humanidade para adaptar-se às novas
condições da economia social transformada, esforços que tendem ou a
conservar as formas antigas, dando-lhe um novo conteúdo (manutenção da
forma exterior do matrimônio indissolúvel e monógamo, mas ao mesmo tempo,
o reconhecimento de fato da liberdade dos esposos), ou ao contrário a
aceitação de novas formas que tragam em seu interior, ao mesmo tempo,
todos os elementos do código moral do matrimônio burguês (a união livre na
qual o direito de propriedade dos dois esposos unidos livremente ultrapassa os
limites do direito de propriedade do matrimônio legal). Por outro lado, não
podemos deixar de assinalar o aparecimento, vagaroso porém invencível, de
novas formas de união entre os sexos. Novas, não tanto pela forma, como pelo
caráter que anima os seus preceitos.
Tudo isto contribui para que o operário contraia matrimônio com maior idade.
Entretanto as necessidades fisiológicas não levam em conta o estado do bolso.
São necessidades vitais das quais não se pode prescindir e o operário solteiro,
tanto quanto o burguês solteiro, resolve seu problema na prostituição. Este fato
é um sintoma da adaptação passiva da classe operária às condições
desfavoráveis de existência. E, por causa do nível bastante baixo dos salários,
a família operária vê-se obrigada a resolver o problema do nascimento dos
filhos do mesmo modo que as famílias burguesas.
Isto não quer dizer, de modo algum, que as outras classes e camadas da
sociedade, principalmente a dos intelectuais burgueses que, pelas condições
de sua existência social, se encontra mais próxima da classe operária, não se
apoderem dos elementos novos que o proletariado cria e desenvolve. A
burguesia, impulsionada pelo desejo instintivo de injetar vida nova às suas
formas agonizantes, e diante da impotência de suas diversas formas de
relações sexuais, aprende rapidamente novas formas com a classe operária.
Mas, desgraçadamente, nem os ideais nem o código da moral sexual,
elaborados gradativamente pelo proletariado, correspondem à moral das
exigências burguesas de classe. Portanto, enquanto a moral sexual, nascida
das necessidades da classe operária, converte-se para ela num instrumento
novo da luta social, os modernismos de segunda mão que dessa moral extrai a
burguesia, não fazem mais do que destruir, definitivamente, as bases de sua
superioridade social.
Determinemos, pois, quem são essas mulheres que constituem o novo tipo
feminino. Desde logo, não são as encantadoras e “puras” jovens cujas novelas
terminam com o matrimônio feliz, nem as esposas que sofrem resignadamente
as infidelidades do marido, nem as casadas culpadas de adultério. Não são,
tampouco, as solteironas que dedicaram toda a sua vida a chorar um amor
desgraçado de juventude, nem as “sacerdotisas do amor”, vítimas das tristes
condições da vida ou de sua própria natureza viciada. Não. Estas mulheres são
algo novo, isto é, um quinto tipo de heroína desconhecida anteriormente,
heroínas que se apresentam àvida com exigências próprias, heroínas que
afirmam sua personalidade; heroínas que protestam contra a submissão da
mulher dentro do Estado, no seio da família, na sociedade; heroínas que
sabem lutar por seus direitos. Representam um novo tipo de mulher. São
mulheres celibatárias, a denominação mais apropriada que podemos dar a este
novo tipo.
A vida, porém, não pode permanecer imóvel e a roda da história, ao girar cada
vez com ritmo mais acelerado, obriga aos homens de uma mesma geração a
aceitar noções diferentes, enriquece-lhes o vocabulário com material novo. A
nova mulher, a mulher celibatária desconhecida de nossa época e até mesmo
de nossas mães, é em nossa época um fato real, um ser vivo, com existência
própria.
Surge, mais tarde, o primeiro amor, terno e claro, como a própria juventude.
Vem a primeira alegria da maternidade. A primeira sensação de dependência
amorosa, a tímida rebelião pela liberdade perdida. Depois, a inquietude de uma
nova paixão. Os sofrimentos e os tormentos do amor: desejo, dor e decepção.
Outra vez a maternidade e, outra vez, o abandono. Agora, não temos diante de
nós uma jovem abandonada, perdida, um pobre ser oprimido, mas sim toda
uma individualidade, mãe digna, só e encerrada em si mesma. A personalidade
de Matilde cresce, faz-se mais forte. A nova dor não é mais do que uma nova
página em sua vida, que revela com maior clareza seu eu poderoso e
inquebrantável.
Tatiana caminha com eles, livre como o vento, solitária como a erva da estepe.
Ninguém a quer, ninguém a defende. Mantém uma luta, contínua e
interminável, frente a frente, corpo a corpo, com o destino, que a atormenta,
implacavelmente. Para as mulheres do tipo celibatário, como Tatiana e Matilde,
não há ternura no mundo. Para elas a vida só reserva asperezas.
Tatiana tampouco se dobra aos castigos da vida. Sua alma traz profundamente
escondido o sonho de um futuro, de transparente inocência; Tatiana caminha
pelo mundo em busca de sorte. Mas esta, como se quisesse dela zombar,
toma-se cada vez mais distante. E a doce e sonhadora Tatiana de Riasan,
ávida de vida, ardentemente esperada, somente recolhe as sobras das poucas
alegrias que a terra lhe proporciona.
Deixando para trás a doutora, surge Teresa (11), toda desejo e paixão. Teresa
é uma socialista austríaca, uma valente propagandista. Esteve presa, trabalha
com toda sua alma pelo partido. Mas, quando dela se apodera a paixão,
Teresa não renuncia a este esplendor que alegra a vida, não se envolve
hipocritamente no manto desbotado da virtude feminina. Muito pelo contrário.
Teresa estende a mão ao eleito e parte com ele por várias semanas para
sorver até a última gota do prazer e convencer-se de sua profundidade.
Quando Teresa, porém, percebe sua vulgaridade, despreza-o sem remorsos e
sem amargura. Pobre Teresa! Para ela, assim como para a maioria de seus
companheiros, o amor não pode ser mais que uma etapa, um ato momentâneo
no caminho da vida. O partido, seus ideais, a propaganda e o trabalho são o
fim de sua existência, todo o seu conteúdo.
Agnes Petrovna, outra mulher, uma das primeiras heroínas russas do tipo
celibatário, elege, após amadurecida reflexão, o novo caminho para sua vida.
Agnes é escritora e secretária de redação; é antes de tudo, uma mulher que
ama o trabalho. Diante de sua mesa de trabalho, quando em sua mente se
forma um pensamento, uma idéia, nada nem ninguém existe para ela. “Não
poderia repartir esses momentos com ninguém - diz. - Por isso necessito de
minha liberdade. Porém, quando Agnes retorna a sua casa, deixando a
redação, trocando seu simples vestido de trabalho por um cômodo roupão,
encanta-se ao se sentir somente mulher e experimentar a influência de seus
atrativos sobre o homem. Não busca no amor o conteúdo e o fim da vida, e
sim, somente, o que écomum nos homens: o repouso, a poesia, a luz. Agnes
não reconhece, nem ao homem amado o menor direito sobre ela, sobre o seu
eu”.
Com seu sorriso triste, segue também a figura da tuberculosa Mary (13).
Continuando, a pequena Talia (14), intrépida lutadora, que corre em busca de
trabalho, arrastando seus desgastados sapatos. Logo após, ouve-se o riso
mesquinho da inconstante Annette (15), pobre de espírito, espécie de paródia
do tipo de mulher celibatária. A heroína de Sangar, Anna (16) avança com
ingenuidade brutal pela nova senda. De mãos dadas, caminham Mira, Lydia e
Nolly (17). Cada uma delas é interessante por seu algo “sagrado” que não é
somente qualidade propriamente feminina. Até a pequena Lydia, insignificante
na aparência, possui vaidade e ambições. Quando se apresenta o amor,
quando sua natureza de mulher faz suas exigências, todas essas moças
superam o tabu proibido às jovens solteiras, sem o medo sentimental de si
mesmas que sentiam as mulheres do passado. Arrastadas pelos múltiplos
interesses da vida, o amor para essas mulheres não é mais do que uma
melodia iniciadora.
Embevecendo nosso olhar com a finura de sua alma, tingida de tons suaves, a
atriz de variedades, Renée (18), anda com cuidado para não pisar pedras
pontiagudas. Com as ilusões perdidas e o coração ferido, deixa seu marido e
lança um desafio ao mundo que até então lhe pertencia. Toda a sua vida está
agora na arte, na dança, nas pantomimas que sabe criar. Uma vida errante,
fatigante, consagrada ao trabalho. Não vai em busca de aventuras. Evita-as,
porque seu coração já sofreu demasiado. A liberdade, a independência e a
solidão constituem o conteúdo de todos os seus desejos individuais.
Entretanto, quando Renée se senta junto à chaminé de seu lar solitário, depois
de uma jornada de duro trabalho, experimenta a sensação de que a melancolia
e a solidão, com seus olhos frios, penetraram na sua casa e se instalaram atrás
da banqueta em que estava sentada.
“Estou acostumada a viver só - anota em seu diário. - Hoje, porém, me sinto
tão solitária! Não sou livre, independente?... Sim. Mas terrivelmente só.” Nesta
queixa há algo da mulher do passado, acostumada a escutar ao seu redor
vozes conhecidas e amadas, a se sentir rodeada pela ternura que lhe é
necessária. Assim, quando Renée encontra em seu caminho um amor
obstinado, deixa-se prender, mergulhada no vazio cada vez mais profundo em
que vive. Mas a paixão não a cega, não obscurece seu cérebro, acostumado à
reflexão.
Atrás de Renée, segue a heroína de Bennet (19), uma escritora. Uma ânsia de
êxtase, de adoração leva-a aos braços de um grande músico. Esta paixão,
entretanto, só serve para que se encontre a si mesma, para afirmar sua
personalidade, para revelar seu talento de escritora e enfrentar a vida com
mais calma, com maior reflexão, de modo mais consciente. Algum tempo
depois, quando um novo amor a cerca, não foge assustada, como faziam as
heroínas das velhas novelas inglesas, por se considerarem indignas, perdidas:
Não, ao contrário, vai sorridente ao seu encontro.
Entre a multidão de novas mulheres, passa a artista Tânia, para quem a vida
reserva todas as suas carícias. Tânia, embora casada, pertence à categoria
das mulheres celibatárias e, assim como Maia, casou-se três vezes. Este
aspecto de sua vida corresponde completamente à sua fisiologia. Ainda que
Tânia viva sob o mesmo teto que seu marido, continua sendo, como antes de
casar-se, uma individualidade livre e independente. Tânia franze as
sobrancelhas quando ele a apresenta a seus amigos como sua mulher, sem
designá-la por seu nome de solteira.
Marido e mulher vivem seu próprio mundo. Ela, consagrada à arte, e ele,
dedicado à investigação científica. Constituem um casal de bons
companheiros, unidos por laços espirituais sólidos, que não impedem sua
mútua liberdade.
A clara atmosfera em que vivem se rompe pela cega paixão física que Tânia
sente pelo formoso e másculo Stark. Tânia não ama em Stark o eterno
masculino que a arrastou para ele desde seu primeiro encontro. Tânia não tem
nenhum interesse pela vida espiritual do homem amado, assim como para os
homens, mesmo os mais modernos, não tem importância a alma da mulher
apaixonadamente amada. Quando Ana, Maia, ou Lisa lançam ao homem
amado a reprovação habitual: “Eu quero tua alma, que nunca me entregas...,
ele se sente desconcertado. A atitude de Tânia, com respeito a Stark, tem,
portanto, algo de masculino. Sentimos que a personalidade de Tânia é mais
forte, está mais desenvolvida que a de seu amado. Tânia é demasiado
humana, pouco fêmea, para que uma simples paixão possa satisfazê-la.
Reconhece que a paixão que sente por Stark empobrece e seca sua alma, ao
invés de enriquecê-la. Mulheres como Tânia não sofrem tanto com o
pensamento de uma infidelidade feita ao marido, como diante da possibilidade
de conciliar a paixão com o trabalho paciente e metódico que constitui a sua
vida. A paixão devora suas energias e rouba o tempo que deve consagrar ao
trabalho. A paixão entrava seu livre trabalho criador. Tânia sente que começa a
perder a si mesma e a perder o que mais aprecia em sua vida. Parte. Volta
para o lado do marido, não impulsionada pelo sentimento do dever, mas, para
salvar a sua personalidade (21).
Tânia tem que enfrentar o mesmo dilema que a Ellida de Ibsen, uma das
primeiras mulheres do novo tipo psicológico. Quando o homem do mar exige
de Ellida que se vá com ele, ela fica ao lado de seu marido que lhe havia dado
toda liberdade para decidir-se. Ellida permanece consciente de que assim
poderá conservar sua liberdade interior, que perderia ao lado do homem do
mar. Dá-se conta de que está ameaçada pela mais terrível escravidão: a
escravidão da paixão. Compreende a superioridade de quem tem preso entre
as mãos seu coração de mulher.
A nova mulher traz consigo algo que nos é completamente estranho, que às
vezes chega inclusive a repugnar-nos por sua originalidade. Contemplamos e
buscamos nesse novo tipo de mulher os traços queridos e conhecidos de
nossas mães e avós. Diante de nós, ergue-se, cobrindo totalmente o passado,
um mundo de emoções, de sentimentos, de necessidades completamente
distintas. Onde encontrar a encantadora submissão feminina, a doçura de
nossas mulheres do passado? Onde estará aquele seu talento especial para
adaptar-se ao matrimônio, para se submeter até a um homem insignificante,
para ceder-lhe sempre o primeiro posto na vida?
Temos diante de nós a mulher-individualidade, uma personalidade que tem
valor próprio, com um mundo interior todo seu, personalidade que se afirma,
em suma, a mulher que arranca as enferrujadas algemas que aprisionam o
sexo.
Matilde assiste à morte de seu filho, que constitui toda alegria, era tudo o que
havia restado de seu ardente amor. Porém, seu ofício amarra-a com todas as
suas forças à oficina e seus dedos práticos trabalham, como sempre, sem
romper o fio.
No novo tipo de nova mulher, a ciumenta é vencida cada vez com maior
freqüência pela mulher-individualidade. Outro traço característico da mulher
contemporânea consiste nas exigências, cada vez maiores, que faz ao homem.
A mulher do passado estava acostumada por seu amo e senhor, durante
séculos e séculos, a esquecer-se de si mesma, a descuidar completamente
seu pequeno mundo espiritual. A mulher do passado não dava nenhum valor a
sua própria personalidade, acostumada aos sorrisos indulgentes que os
homens tinham para com suas debilidades e sofrimentos de mulher. Por isto
resignava-se, sem protestar, a que seu companheiro não prestasse a menor
atenção ao que pensava e sentia. Ainda, em nossos tempos, admiramo-nos de
que somente alguns homens extraordinários saibam compreender a mulher,
ainda que nos momentos de maior intimidade. A causa de quase todas as
tragédias familiares, de todas as épocas, tem sido a atitude superficial, de
abandono, do homem diante do eu feminino.
Com sua experiência, os Don Juan sabiam possuir o corpo da mulher; mas
apoderavam-se também de sua alma, para o que representavam
hipocritamente a comédia da compreensão; deixavam transparecer um
interesse cheio de amor pelo eu insignificante da mulher, ao qual seu marido,
embora mais sincero, não prestava a menor atenção. Como os Don Juan,
porém, surgiam e desapareciam e o senhor legítimo permanecia, a mulher
acabava reduzindo suas necessidades e exigências, obrigada durante séculos
e séculos a adaptar-se à vida, até chegar a converter sua concepção de
felicidade à satisfação das coisas exteriores e concretas. Ele presenteava-a
com anéis e brincos; levava-lhe flores e bombons. Não havia necessidade de
outra prova de seu amor. Se se portava com relação a ela de modo grosseiro e
despótico, se lhe impunha uma série de proibições e exigências, era seu
direito, direito de dono do seu coração.
A mulher contemporânea torna-se exigente. Deseja e exige respeito à sua
personalidade, à sua alma; pretende que se leve em consideração seu eu. Não
admite o despotismo. Quando o amante de Maia a proíbe de cantar em
concertos e ela não o obedece, ele decide, para castigála, não lhe escrever
durante duas semanas. Este ato exterminou em Maia todo sentimento para
com seu amante. “Como pode castigá-la, logo a ela, que lhe entregou
livremente seu coração?”
Na luta da mulher moderna para proteger sua liberdade interior, há algo que
lembra as mulheres das antigas lendas, as mulheres dos tempos heróicos.
“Cumpriu-se tua vontade, porém, já não sou tua mulher”, afirma Rosamunda a
seu real esposo quando este a obriga a beber no crânio de seu pai, que
assassinara. Na boca de Rosamunda estas palavras não são uma simples
ameaça. Rosamunda mata seu marido, a quem havia amado apaixonadamente
até aquele momento.
A necessidade que tem a mulher de sentir-se amada, não tanto pelo eterno
feminino, e sim pelo conteúdo espiritual de seu eu, torna-se muito mais intensa,
como é natural, quanto mais consciência tem de si mesma, como
individualidade. “Maldigo meu corpo de mulher por sua culpa. Não podeis ver
que há dentro de mim algo muito mais valioso...” Isto se manifesta em todas as
páginas do livro Notas de Ana, de Nadejda Sanjar. Este protesto, expresso de
uma ou de outra forma, repetem-no as heroínas de todas as nacionalidades.
Até a alma simples da Tatiana de Gorki protesta por quererem fazer dela
simplesmente um instrumento de prazer.
“Possuíram-me... Porém eu não quero, eu não quero que seja assim, sem
carinho, como os cães... Que seres tão baixos são todos os homens!”
Quanto mais viva é a personalidade da mulher, quando se sente com maior
intensidade como ser humano, mais fortemente sente, também, a ofensa do
homem que, com a mentalidade formada através dos séculos, não sabe
perceber por trás da mulher desejada uma individualidade que desperta.
As exigências que, com respeito ao homem, têm as mulheres contemporâneas,
são a causa de que as heroínas dos romances de nossa época se entregem de
uma paixão a outra, deixem um amor por outro, numa dolorosa luta para
alcançar um ideal inacessível: a harmonia da paixão e a afinidade espiritual, a
conciliação entre o amor e a liberdade, a união nascida do companheirismo e
da independência recíproca.
A mulher do novo tipo não somente não tem medo da independência, como
cada dia aprecia mais seu valor, à medida que seus interesses se sobrepõem
aos limites impostos pela família, pelo lar e pelo amor. Assim, não há nada
mais espantoso para Vera Nikodinovna que a dependência material com
respeito ao homem: “Oh, se eu viesse a depender de um homem, se eu viesse
a precisar escolher um, para que fosse meu marido e para que me mantivesse,
seria minha maior desgraça...” disse a uma amiga. Para Vera, ter um marido
“proprietário e dono de sua alma” é um pensamento tão terrível como o cárcere
para o prisioneiro que chegou a conquistar a liberdade com a fuga. “Jamais” -
continua Vera - “adaptar-me-ei a essa escravidão. Já havia passado por uma
experiência semelhante...”
“Esteve casada?” “Não, não me casei nunca; mas vivi meu romance, tive uma
paixão.”
A nova mulher se sente presa no matrimônio, ainda que este não seja mais do
que laços exteriores. A mentalidade do homem do passado, que ainda
permanece viva, cria laços morais que não são menos sólidos que as cadeias
exteriores.
Se uma mulher não amava, a vida parecia-lhe tão vazia como seu coração.
Esta é uma das características que estabelecem uma diferença nítida entre a
mulher do passado e o homem. No homem, ao lado dos acontecimentos
amorosos, existia sempre uma atividade particular. Enquanto a mulher
enlouquecia languescia esperando por ele, o homem lutava contra o destino,
em um mundo desconhecido e incompreensível para a mulher. A maioria das
tragédias psicológicas das relações entre o homem e a mulher eram causadas
pelo fato de que o homem, ansiosamente esperado ao regressar à casa depois
de uma ausência, devido aos negócios ou ao trabalho, retirava os papéis da
pasta, comia depressa e apressava-se para alguma reunião ou se entregava
avidamente à leitura de um livro, ao invés de dedicar toda sua atenção à
mulher que com tanto afã o havia esperado. A mulher não podia compreender
esta atitude do homem, e seu coração explodia em reprovações. Ela havia
deixado por acabar, uma blusa, para esperá-lo; havia abandonado a comida
por fazer; havia adormecido as crianças com o único fim de ficar sozinha a seu
lado, para fazê-lo esquecer os assuntos, os trabalhos e a política. As mulheres
de todas as classes sofriam igualmente com esta incompreensão do homem e
de seus interesses; porque tanto o homem como suas atividades estavam
situados, para elas, em um mundo totalmente desconhecido, muito distante dos
limites do aconchego familiar. A falta de compreensão da psicologia do homem
era igual na mulher do professor e na mulher do funcionário, na mulher do
operário e na mulher do empregado.
O amor deixa de ser para a mulher o conteúdo único de sua vida, começa a
ficar relegado a um lugar secundário, como sucede com a maioria dos homens.
E certo que as mulheres do novo tipo passam alguns períodos de sua vida, nos
quais o amor ou a paixão tomam completamente sua alma, sua inteligência,
seu coração e até sua vontade; épocas em que todos os outros interesses da
vida empalidecem ou ficam relegados a um segundo plano. Nestes momentos
as mulheres do novo tipo podem viver também como as mulheres do passado.
Mas, na mulher moderna, a paixão e o amor constituem apenas uma parte de
sua vida, cujo verdadeiro conteúdo é algo mais sagrado e a cuja realização se
entrega, isto é, um ideal social, o estudo da ciência, uma vocação ou o trabalho
criador. A finalidade de sua vida é, geralmente, para a mulher moderna, algo
muito mais importante, muito mais apreciado, muito mais sagrado que todas as
alegrias do amor e todos os prazeres da paixão.
Disto nasce a atitude, completamente nova, da mulher com respeito ao
trabalho, atitude que era impossível encontrar na~ heroínas dos bons tempos
passados.
“Hoje trabalhei - escreve Târtia, feliz; trabalhei avidamente, com alegria, quase
ininterruptamente, desde as primeiras horas da manhã.” E a descrição deste
dia de trabalho está escrita de maneira clara e alegre. Sente-se ao ler estas
linhas que o ser de Tânia se libertou temporariamente da embriaguez da
paixão e encontrou de novo a si mesmo. Com a paleta na mão, Tânia, entregue
ao trabalho, despertou de seu sonho e se deu conta, de repente, de que
iridependentemente dela e de Stark, além de sua atmosfera de paixão que os
leva até o êxtase, existe um mundo, cheio de cores e prazeres, com suas
próprias alegrias e sofrimentos. De repente se recorda de seu amigo Weber e
lamenta seu abandono. Não se encontra uma mulher do tipo antigo, capaz de
lançar um suspiro de alívio, à maneira dos homens, ao ver-se livre da
embriaguez da paixão, ao retomar o trabalho abandonado, ao apreciar de novo
o valor de sua existência independente, sua própria individualidade.
A maior tragédia para a mulher do passado era a perda ou a traição do homem
amado. Para a nova mulher, a maior desgraça é a perda de si mesma, a
renúncia ao seu próprio eu, sacrificado ao homem amado, à felicidade do amor.
As mulheres do novo tipo se sublevam, não somente contra as correntes
exteriores, mas, também contra a “escravidão do amor por si só”. Têm medo
das correntes do amor com que a psicologia deformada de nossa época
aprisiona os amantes. Acostumada a perder-se totalmente nos tormentos da
paixão, a mulher, mesmo a mulher do novo tipo, vai ao encontro do amor
quase sempre com um sentimento de ansiedade, temerosa de que a força do
sentimento desperte nela as tendências atávicas, da mulher eco do homem,
temerosa de que a paixão a obrigue a renunciar a si mesma, a abandonar seu
trabalho, sua vocação e a finalidade de sua vida. Já não se trata da luta pelo
direito ao amor, mas sim, do protesto contra a escravidão moral de um
sentimento que exteriormente pode ser livre. Tudo isto significa a rebelião das
mulheres de nosso período de transição, as quais, todavia, não aprenderam a
conciliar a independência e a liberdade interior, com a força renovadora do
amor.
Apesar destes fatos ocorrerem com a maioria dos homens, nós os respeitamos
assim mesmo.
“Mas, por que hão de ser as almas superiores as únicas que gozam desses
direitos?”, pergunta com razão Bebel.
Tem que ser assim, porque na mulher, na mãe, a vida fisiológica ocupa,
contrariamente às concepções que lhe foram inculcadas de maneira hipócrita,
um papel muito mais importante que no homem. A liberdade de sentimento, a
liberdade de eleger o homem amado, que pode chegar a ser o pai de seus
filhos, a luta contra o fetiche da moral hipócrita, tais são os pontos do programa
que realizam, silenciosamente, as mulheres do novo tipo. O traço típico da
mulher do passado era a renúncia à atração da carne, a máscara da pureza,
inclusive no matrimônio. A nova mulher não abdica da sua natureza de mulher,
não foge da vida, nem de suas alegrias terrenas, que a realidade, tão avara em
sorrisos, lhe concede. As heroínas modernas são mães sem estar casadas;
abandonam o marido ou o amante; sua vida pode ser rica em aventuras
amorosas, e, entretanto, nem elas mesmo, nem o autor ou leitor
contemporâneo as consideram criaturas perdidas. As aventuras do amor livre e
sincero de Matilde, de Olga, de Maia, têm uma ética própria, talvez mais
perfeita que a passiva virtude da Tatiana, de Puchkin (42), ou a moral
negligente de Lisa, de Turguenev. (43)
1 Tomemos como exemplo a moral simplista do homem em suas relações sexuais, moral que
considera como um fato natural e inevitável... a prostituição. Dora, a heroína de vanguarda da
novela de Winitchenco, A Autolealdade, é uma mulher que se sente enteriormente livre e que
assilimila sem submeter à crítica essa verdade masculina do mundo burguês. Com uma
finalidade superior, para demonstrar a profundidade de seu sentimento pelo homem que ama,
para afirmar sua personalidade e evidenciar 57uão separados estão seus sentimentos de uma
simples agitação sangüínea, Dora compra um homem... A falsa veracidade masculina de
classe é aceita neste caso por uma mulher que aspira a libertar-se, buscando uma verdade
superior.
3 Isto explica porque os romancistas contemporâneos elegem suas heroínas entre as mulheres
representantes do meio burguês. Apenas encontramos uma heroína pertencente à classe
operária. Entretanto, os escritores encontrariam um rico material se decidissem descer até
estas camadas da sociedade, onde a dura realidade contemporânea cria, não isoladamente,
mas em massa, o tipo de mulheres dotadas de uma nova estrutura moral, com novas
necesidades e emoções.
6 Convém assinalar que as considerações expostas por Meissel – Hess sobre a deformação da
psicologia masculina, dão a chave de outro problema que até agora havia permanecido
obscuro. O pouco costume que os homens têm de levar em consideração a psicologia faminina
– a incapacidade para compreender seus sentimentos – não somente os conduz a não prestar
a menor atenção à alma da mulher, como vai ainda muito mais além: conduz os homens a
ignorar totalmente, com a mais surpreendente ignorânica, as sensações fisiológicas da mulher
durante o ato mais íntimo de suas relações. Os médicos sbem, a insatisfação das mulheres no
ato sexual provoca, freqüentemente, doenças nervosas. É surpreendente que a literatura
impregnada pela psicologia masculina haja deixado passar em silêncio este fato que explica
toda uma série de dramas familiares e de amor. Quando Maupassant se atreve a abordar a
questão na novela “Uma Vida”, sua “revelação” provoca uma ingênua surpresa na maioria dos
homens.
9 Suderman: A Pátria.
12 Potapenko: Na Névoa.
14 Idem.
15 Id.
29 O. Rounow: Luta.
31 Hauptman: Solitárias.
32 S. Undset: Jenny.
34 Idem.
38 A maioria dos autores citados nestas páginas são mulheres. Muitas de suas obras carecem
de verdadeiro valor artístico; mas, para o fim a que nos propomos nestas páginas, elas nos
oferecem um ponto de vista incomparavelmente mais exato do que as obras dos escritores de
sexo masculino, que são superiores, em geral, por seu valor literário. Quase todos os romances
escritores por mulheres contêm trechos puramente biográficos que são precisamente os que
maior interesse apresentam para o nosso trabalho. As obras que refletem sem artifícios a
verdade da vida, as que nos mostram mais exatamente a psicologia da mulher contemporânea,
suas dores, seus problemas, seus desejos, contradições, complicações e tendências, serão as
que melhor nos servem para enriquecer nosso material no estudo do novo tipo de mulher em
formação. Desde que as mulheres escritoras deixaram de imitar cegamente os modelos criados
pelos homens e se atreveram a descobrir os mistérios da alma feminina que até então haviam
permanecido ocultos, inclusive para os artistas mais geniais, desde qua as escritoras
começarama expressar na sua própria língua sobre os problemas da mulher, suas obras, ainda
que careçam algumas vezes da beleza exterior da criação artística, têm um valor e uma
significação especial. Em suma todos esses trabalhos nos ajudam a conhecer a mulher
celibatária, a mulher do novo tipo, em formação.
39 É característico observar como a maternidade tem sido sempre considerada como último
refúgio da felicidade da mulher. Se o matrimônio não a tornara feliz, se a mulher se via
obrigada a renunciar a uma união amorosa ou se tinha enviuvado, restavam então, como último
refúgio, os cuidados e as alegrias da maternidade. A maternidade raramente era considerada
como um fim em si mesma. Somente perto da velhice, despertavam na mulher sentimentos
atávicos da espécie, só então aparecia a família com algum sentido na vida, e se convertia em
um ídolo, que adorava, e para o qual exigia, despoficamente, a adoração dos outros membros
da família.
40 As aventuras amorosas de Matilde não nos impedem de respeitar sua personalidade íntegra
e pura. Assim como Matilde, sentimos piedade e desprezo por sua irmã Marta, operária como
ela, mas que regressa com dinheiro de cada aventura. Há todo um abismo entre a liberdade de
Matilde e a venalidade de Marta.
41 A. Bebel: A Mulher
É certo que a Rússia Soviética entrou numa nova fase da guerra civil. A frente
revolucionária sofreu um deslocamento. Atualmente a luta tem que travar-se
entre duas ideologias, entre duas civilizações: a ideologia burguesa e a
ideologia proletária. Sua incapacidade cada vez se manifesta com maior
clareza. As contradições entre estas duas civilizações diferentes são dia a dia
mais agudas.
A ideologia do cavaleiro teve, por conseguinte, que levar em conta este fato.
Como reconhecia no amor um poder capaz de provocar no homem um estado
emocional útil para as finalidades da classe feudal, procurou colocálo,
naturalmente, num lugar bem destacado. Naquela época o amor entre os
esposos não podia inspirar os cantos dos poetas, visto que não constituía a
base em que se fundava a família, nos castelos. O amor, como fator social, só
era valorizado quando se tratava dos sentimentos de um cavaleiro pela mulher
de outro. Sentimentos que serviam de impulso para a realização de valentes
façanhas. Quanto mais inacessível se achava a mulher escolhida, maior era o
esforço realizado pelo cavaleiro para conquistar seus favores com as virtudes e
qualidades apreciadas em seu mundo (intrepidez, resistência, tenacidade e
bravura).
O mais comum era que a dama escolhida pelo cavaleiro ocupasse uma
posição inacessível. A dama de seus pensamentos, eleita pelo cavaleiro, era,
geralmente, a mulher do senhor feudal. Em certas ocasiões, o cavaleiro levava
sua ousadia até o cúmulo de pousar seus olhos sobre a rainha. Este ideal
inacessível se baseava na concepção de que unicamente era digno, como
exemplo virtuoso, o amor espiritual, o amor sem carne, que impelia o homem a
tomar parte em façanhas heróicas e o obrigava à realização de milagres de
bravura. As moças solteiras não eram nunca objeto de adoração dos valentes
cavaleiros. Por muito alta que fosse a posição, a adoração do cavaleiro podia
terminar em matrimônio. Então, desaparecia inevitavelmente o fator psicológico
que impulsionava o homem àluta. Diante desse perigo, a moral feudal não
podia admitir o amor do cavaleiro pela jovem solteira. O ideal do ascetismo
(abstinência sexual) tem pontos de contato com a elevação do sentimento
amoroso convertido em virtude moral. O desejo de purificar o amor de tudo o
que fosse carnal, culpado, a aspiração de converter o amor num sentimento
abstrato, levava os cavaleiros da Idade Média a cair em monstruosas
aberrações. Elegiam como dama de seus pensamentos mulheres que nunca
haviam visto em sua vida. Chegavam inclusive a enamorar-se da Virgem
Maria... Não creio que seja possível deformar ainda mais um sentimento. A
ideologia feudal apreciava o amor como estimulante para as qualidades
necessárias de todo cavaleiro: o amor espiritual, a adoração do cavaleiro pela
dama de seus pensamentos serviam diretamente aos interesses da casta.
Essa consideração foi a que determinou, desde o começo da sociedade feudal,
aquele conceito de amor. Diante da traição carnal da mulher, diante do
adultério da esposa, o cavaleiro da Idade Média não podia vacilar e a
enclausurava ou matava. Por outro lado se sentia orguIhoso se outro cavaleiro
elegia sua esposa como a dama de seus pensamentos e chegava a permitir
inclusive uma corte de amor feita por amigos espirituais.
A moral feudal cavalheiresca, que cantava e exaltava o amor espiritual, não
exigia, pelo contrário, que as relações matrimoniais ou outras formas de união
sexual tivessem como base o amor. O amor era uma coisa e o matrimônio,
outra. A ideologia feudal estabelecia entre as duas noções uma clara diferença
(44).
Toda moral burguesa tinha por função contribuir para a acumulação do capital.
O ideal do amor ficava, portanto, restrito ao casal unido em matrimônio, cujo
fim era o aumento de seu bem-estar material e das riquezas, dentro do núcleo
familiar, isolado totalmente do resto da sociedade. Quando os interesses da
famflia e da sociedade se chocavam, a moral burguesa se inclinava sempre a
favor dos interesses familiares. (Por exemplo, a condescendência para com os
desertores, não admitida pelo direito, mas aceita pela moral burguesa; a
justificação moral de um administrador dos interesses de vários acionistas, que
lhe haviam confiado suas reservas, aos quais arruinava para aumentar os bens
de sua familia, etc. (45).
Já vimos, meu jovem camarada, como cada época da história possui seu
próprio ideal de amor. Analisamos como cada classe, em seu próprio interesse,
atribui à noção moral de amor um conteúdo determinado. Cada grau de
civilização traz à humanidade sensações morais e intelectuais mais ricas em
matizes, que cobrem o amor com um colorido diverso. A evolução no
desenvolvimento da economia e nos costumes sociais foi acompanhada de
novas modificações no conceito do amor. Alguns matizes desses sentimentos
se reforçavam, mas os outros caracteres diminuíam ou desapareciam
totalmente.
O amor, no transcurso dos séculos de existência da sociedade humana,
evoluiu de um simples instinto biológico (instinto da reprodução, comum a
todos os seres vivos, superiores ou inferiores, divididos em dois sexos) e se
enriqueceu sem cessar com novas sensações, até converter-se num
sentimento muito complexo. (46)
Por outro lado, a atração física entre os sexos se complica no transcurso dos
séculos da vida social na humanidade e das diversas civilizações, adquirindo
toda uma gama de matizes e sentimentos diversos. Em sua forma atual o amor
é um estado psicológico muito mais complexo e que há muito tempo se
desprendeu por completo de sua fonte originária, o instinto biológico de
reprodução chegando, em muitos casos, a estar em contradição com ele. O
amor é um aglomerado de sentimentos diversos: paixão, ternura espiritual,
lástima, inclinação, costume etc. É difícil, pois, diante de tão grande
complexidade estabelecer um laço de união direto entre o amor-reprodução
(atração física entre os sexos) e o amor-sentimento (atração psíquica). O
amoramizade, no qual não é possível encontrar nem um átomo de atração
física; o amor espiritual, sentido pela causa, pela idéia; o amor impessoal por
uma coletividade são sentimentos que demonstram claramente até que ponto
se realizou e se separou de sua base biológica o sentimento de amor.
Porém, o problema se complica ainda muito mais. Com grande freqüência
surge uma flagrante contradição entre as diversas manifestações do amor e
começa a luta. O amor sentido pela causa amada (não o amor simplesmente
pela causa, mas sim pela causa amada) não concorda com o amor sentido
pelo eleito ou eleita do coração (47), o amor sentido pela coletividade se
apresenta em conflito com o amor sentido pela mulher, o marido ou os filhos. O
amor-amizade está em contradição com o amor-paixão. No primeiro caso, o
amor está dominado pela harmonia psíquica; no outro está baseado na
harmonia do como.
Tem razão, meu jovem camarada. A ideologia proletária, ao não aceitar a moral
burguesa no domínio das relações matrimoniais, cria, inevitavelmente, sua
própria moral de classe, as formas regulamentadoras das relações entre os
sexos que melhor correspondam às tarefas da classe operária, que sirvam para
educar os sentimentos de seus membros e que, portanto, constituem até certo
ponto correntes que aprisionam o sentimento do amor. Sem dúvida, se falamos
do amor patrocinado pela ideologia burguesa, o proletariado evidentemente
haverá de modificá-lo. Entretanto, o que não se pode fazer, porque significa
não pensar no futuro, é lamentar que a classe operária imprima sua marca nas
relações sexuais com o objetivo de conseguir que o sentimento de amor
corresponda a suas tarefas de classe. A classe ascendente da humanidade
criará motivos de beleza, força e brilho até agora desconhecidos. Não se
esqueça, jovem camarada, que o amor muda de aspecto e se transforma,
inevitavelmente, uma vez que se transformam as fases econômicas e culturais
da sociedade.
A tarefa da ideologia proletária não é, pois, separar das suas relações sociais o
amor mas dar-lhe novo colorido. Ou seja, visa desenvolver o sentimento do
amor entre os sexos, baseado na mais nova e poderosa força: a solidariedade
fraterna.
Espero, jovem camarada, que agora veja claramente que o fato de o problema
do amor despertar o interesse tão extraordinário entre a juventude
trabalhadora, não éde modo algum sintoma de decadência. Creio que agora
poderá encontrar sozinho o lugar que deve corresponder ao amor, não apenas
na ideologia do proletariado, mas também na vida diária da juventude
trabalhadora.
Irmãs
Veio ver-me, como tantas outras, para pedir-me conselho e apoio espiritual.
Conhecera-a, fugazmente, em alguma assembléia de delegados. Tem um rosto
formoso e expressivo, com olhos vivos e tristes.
Agora estava mais pálida do que de costume. .Seus olhos estavam ainda
maiores e mais tristes.
- Venho vê-la porque não sei onde refugiar-me... Há três semanas que estou
sem moradia... Não disponho de dinheiro para viver... Dê-me trabalho! Pois, do
contrário, não me resta mais que um recurso: a prostituição.
- Se me recordo bem, você teve uma colocação, trabalhou. Despediram-na?
- Sim. Trabalhei na expedição. Perdi o emprego há
dois meses... Por causa do menino, que caíra enfermo. Não tive outro remédio
senão faltar ao trabalho. Três vezes foi adiada a dispensa a meu pedido;
porém, em agosto despediram-me definitivamente. Duas semanas depois
morreu o nenen. Mas, não quiseram me readmitir.
- E como me disse que está sem casa e sem dinheiro? Você se divorciou dele?
- Não, não nos divorciamos... Saí simplesmente de casa. E não volto. Nem
voltarei.., suceda o que suceder. Tudo menos voltar.
- Bah! Contanto que você não esfrie! Vai conviver com tantas pessoas! Tenha
cuidado!
Ambos gracejavam. Parecia que nada seria capaz de perturbar seu amor.
Eram não só marido e mulher, mas camaradas. Andavam pela vida de mãos
dadas. Os dois tinham a mesma finalidade. Não se preocupavam consigo
mesmos, mas unicamente com a finalidade, o grande objetivo. Também a
menina lhes dava alegria. Era sã e roliça.
Como e quando mudou tudo isto? Talvez desde que seu marido entrou para o
Combinado. No princípio os dois ficaram muito contentes com isso; haviam
atravessado situações difíceis e passado fome. A roupa que tinham estava
gasta. Isto era agravado pelo temor de que se encerrasse a cozinha infantil.
Aonde iriam com a menina? O marido se sentia orgulhoso de poder atender
agora sua família com o necessário. Propôs que ela deixasse o trabalho. Mas
ela não queria. Estava acostumada com o trato dos camaradas e familiarizada
com o seu trabalho. E, além de tudo, isto lhe dava uma sensação de
independência, pois, desde sua juventude se havia mantido com seu trabalho.
No começo a coisa andou e até parecia que iria melhorar. Mudaram-se para
outra casa: dois quartos e cozinha. Tomaram uma moça que cuidava da
menina... E ela se dedicou com maior intensidade ainda ao trabalho no
distrito... Também seu marido estava muito ocupado. Só vinha à noite para
casa.
Voltava para casa embriagado, agora, com maior freqüência. Ela não podia
resistir mais. Uma vez faltou intencionalmente ao trabalho, esperou que ele
estivesse calmo e começou então a falar. Disse-lhe tudo, absolutamente tudo...
Que era impossível continuar vivendo assim, já não eram companheiros e que
a única coisa que os unia ainda, era a “cama em comum”... Falou-lhe de sua
embriaguez, advertiu-o, envergonhou-o e começou achorar... Ele a escutou.
Primeiro tratou de defender-se. Ela não compreendia que era necessário sair
com os nepmen, pois do contrário não poderia fazer negócios. Logo, refletiu e
reconheceu que isto tampouco lhe agradava... Rogou que não se entristecesse
e lhe deu razão... Ao despedir-se, chegou junto dela, tomou sua cabeça entre
as mãos, olhou-a nos olhos como antes e a beijou... Seu coraçao se sentiu
aliviado. Nesse dia foi trabalhar alegremente. Mas, ainda não havia passado
uma semana, e seu marido voltou outra vez embriagado. Como ela tentasse
convencê-lo, ele deu um soco na mesa e exclamou: “Isto não lhe importa”...
Assim vivem todos... Se não lhe agrada, ninguém a retém.”
Ele saiu de repente e ela vagou todo o dia como se carregasse um grande
peso. Era verdade que ele não mais a amava? Devia ir-se? Mas, ao anoitecer
ele regressou, inesperadamente cedo. Vinha sereno, sensível, consciente de
sua culpabilidade. Conversaram durante longo tempo, e, de novo,
experimentou um alívio cordial.
Tudo isto a tornou triste, tão triste como nunca havia estado durante toda a
revolução...
Disse-o a seu marido, mas este permaneceu impassível. Achou que assim era
melhor. Poderia ficar em casa com mais freqüência e melhorar os serviços
domésticos.
“Vejo que está embriagado, que mal pode sustentar-se em pé. Meus joelhos
tremiam. Deixei-os na copa onde meu marido iria dormir e corri para o lado de
minha menina. Tranquei a porta. E ali fiquei sem saber onde tinha a cabeça.
Não sentia indignação contra ele. Que pode se esperar de um homem
embriagado? Entretanto, era muito doloroso! Ouvia-se tudo o que ocorria no
cômodo vizinho... Poderia ter tapado os ouvidos; porém tinha que atender à
menina... Por sorte logo se tranqüilizaram. Ambos estavam tão embriagados...
De manhãzinha meu marido abriu a porta e voltou a dormir. Porém eu
permanecia sentada... e não fiz mais do que pensar e pensar...
“Ao anoitecer ele voltou, outra vez, sereno para casa. Não nos havíamos visto
durante todo o dia... Eu o recebi friamente, sem olhá-lo. Ele se pôs a revolver
papéis. Ambos calados. Notei que me observava. Pensei: deixa-o!
provavelmente vai reconhecer agora sua culpa, pedir-me perdão e recomeçar a
antiga vida... Porém não o tolerarei! Sairei de casa! O coração doía-me ao
pensar nisto!... Eu o quis e o quero, ainda... Por que não dizê-lo? Ainda o
quero, mas tudo acabou como se o amor estivesse morto. Porém, então?...
Então, meu sentimento estava vivo ... Meu marido viu que eu pegava o abrigo
para assistir à assembléia do distrito, e de repente se enfureceu... Agarrou-me
pelo braço até fazer-me uma equimose, tirou-me o abrigo das mãos e jogou-o
ao chão.
- Que é isto de vir com saídas histéricas? Aonde vai?... Que quer de mim?...
Pode ir buscar um homem como eu! Dou-lhe de comer, visto-a, atendo a todos
os seus desejos.., você não tem o direito de condenar-me!... Para fazer
negócios terá que viver assim!”
“À noite, reconciliamo-nos outra vez. A única coisa que me amargurou foi que
me dissera que não devia desgostar-me por causa dele. Que se podia esperar
de um bêbado? Então pedi-lhe seriamente que se abstivesse de beber. Não
me molesta que tenha trazido uma prostituta para casa, o que me incomoda é
que venha num estado tão bestial. Prometeu-me controlar-se e evitar aquelas
companhias.
Logo me retirei. Quando permaneci só, delirava como se estivesse com febre.
Temia que pudessem me ouvir no quarto ao lado. Por isso me recostei,
tapando a cabeça com a manta. Não queria ouvir nada, saber de nada, sentir
nada... Mas os pensamentos se sucediam sem cessar... Torturavam...
“Ouço-os cochichar... Não dormem... A voz da mulher soa mais alto, como se o
reprovasse. Será talvez sua amiga, e a enganou dizendo-lhe que não era
casado? Está, talvez, negando agora? Imaginei tudo, remoendo e sofrendo...
Quando na vez anterior, em sua embriaguez, trouxe consigo uma prostituta,
não me atormentei tanto, embora confesse que também foi amargo... Agora
tinha a certeza que já não me amava! Nem sequer como companheira, como
irmã... A uma irmã teria respeitado, não teria trazido mulheres para casa... E
que mulheres... Apanhadas na rua! Certamente esta é também do mesmo
caráter! E logo senti uma raiva tão grande que teria sido capaz de correr para o
quarto e expulsála de casa empurrando-a com minhas próprias mãos. Assim,
torturei-me até o amanhecer. Não tinha conseguido dormir nem um instante...
De repente ouvi passos no corredor, passos sigilosos como de alguém que
quer deslizar. Notei que era ela. Ouço que abre a porta da cozinha. Que
procura ali? Espero. Escuto. Silêncio. Então me levanto e vou à cozinha.
Encontro-a sentada no banquinho, junto à janela. Tem a cabeça entre às mãos
e chora amargamente... Seus cabelos são de um formoso louro claro e a
envolvem quase por completo... Levanta os olhos e neles há tanto sofrimento
que eu mesma sinta a dor. Tratei de aproximar-me e ela se levantou e veio ao
meu encontro.
“Perdoe-me - disse - por haver entrado em sua casa... Não sabia que ele não
vivia só... Sinto muito, muito...”
“- Cursei o bacharelado. Aprendi bem... Ainda sou muito jovem. Tenho apenas
dezenove anos. Devo deixar-me morrer?”
Ela se ruborizou e me assegurou que depois de tudo que havia dito, não
aceitaria um centavo... Era impossível.
“Vi que queria partir antes que meu marido despertasse. Não fiz nada para
retê-la. Você achará estranho, mas era-me difícil separar-me dela. Como se a
ela me unisse algo indissolúvel... É que era tão desgraçada, tão jovem, e se
achava tão só. Vesti-me e a acompanhei. Andamos longo tempo, sentamo-nos
no parque e conversamos. Contei-lhe minhas penas... Tinha ainda na bolsa o
dinheiro do pagamento recebido quando fui despedida... Persuadi-a de que
devia aceitá-lo. A princípio, negou-se, mas, afinal, recebeu-o sob a condição de
que eu me dirigiria a ela em caso de necessidade... Separamo-nos, assim,
como irmãs...
Foi-se, mas seu olhar me perseguia. Este olhar exige uma resposta, estimula à
ação, ao trabalho construtivo, mas também à luta.
Notas
44 No século XII, por iniciativa das esposas dos cavaleiros e também por estes cuja conduta se
encontrava muitas vezes em contradição com a moral reinante, organizaram-se os tribunais do
amor nos quais as mulheres atuavam como juizes.
Num desses curiosos processos de amor, no qual se tratava de determinar se o verdadeiro
amor pode existir no matrimônio, a sentença do tribunal do amor foi a seguinte: “Nós, os
presentes, cremos e afirmamos que o amor não pode estender seus direitos a dois seres
unidos no matrimônio. Dois amantes entregam, livremente, tudo quanto possuem, sem levar
em conta qualquer consideração, sem se sentirem obrigados a compromissos. Os esposos,
pelo contrário, como se sentem unidos pelo lar, estão obrigados a subordinar a vontade de um
à vontade do outro; em virtude deste fato não podem negar-se nada. Esta decisão, adotada
após amadurecida reflexão e que expressa a opinião de numerosas mulheres, deverá ser
reconhecida como verdade estabelecida e indiscutível.” A sentença do tribunal foi anunciada no
dia 3 de maio de 1174.
46 Outra origem biológica natural do amor é o instinto da maternidade; os cuidados que a mãe
tem que dedicar a seu filho. Mesclam-se e cruzam-se entre si e os dois instintos são os que
criaram uma base natural para o desenvolvimento das sensações complexas do amor que
contribuíram para as relações sociais.
47 Esse conflito ocorrerá principalmente, com grande freqüência, nas mulheres da época
contemporânea, de transição.
48 A nova humanidade será obrigada a encontrar novas palavras para expressar os múltiplos
aspectos das sensações psíquicas que atualmente se traduzem de forma grosseira por
palavras tais como, amor, paixão, desejo, complexo amoroso e amizade, O estado de alma tão
complicado que resulta da união de todos esses sentimentos diversos, não pode ser
expressado de modo algum por estas noções e definições tão vagas.
49 Hilda, a desencaminhada
50 Aglaneme e Celisette