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H I S T Ó R I A

E ANTOLOGIA
DA L I T E R AT U R A
P O RT U G U E S A
S é c u l o
XVI

N.º 26

FUNDAÇÃO
CALOUSTE
GULBENKIAN
1

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS


HALP N. 26

Professores/Investigadores

Eduardo Lourenço
Ettore Finazzi-Agrò
Eugénio Asensio
Isabel Adelaide Penha Dinis de Lima e Almeida
Luciana Stegagno Picchio
Manuel Rodrigues Lapa

Agradecimentos

Armando da Costa Lapa


Edições 70, Lda.
Instituto Camões
Universidade de Lisboa – Faculdade de Letras

Ilustrações

[Folha de rosto]
“Terceira parte da chronica de Palmeirim de Inglaterra,
na qual se tratam as grandes cavallarias de feu filho o
Principe Dom Duardos fegundo & dos mais Principes,
& cavalleiros que na ylha deleytofa fe criaram”. Lisboa:
Afonso Fernandes, 1587.

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste Gulbenkian


Serviço de Educação e Bolsas
Av. de Berna 45A – 1067-001 Lisboa
Autora: Isabel Allegro de Magalhães
Concepção Gráfica de António Paulo Gama
Composição, impressão e acabamento
G.C. Gráfica de Coimbra, Lda
Tiragem de 10.000 exemplares
Distribuição gratuita
Depósito Legal n.º 206390/04
ISSN 1645-5169
Série HALP n.º 26 – Dezembo de 2003

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N A R R AT I VA S
C AVA L E I R E S C A S

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Índice
Nota Prévia ........................................................ 7 Diogo Fernandes
Terceira e Quarta Partes da Crónica de Palmei-
INTRODUÇÕES: rim de Inglaterra (1604)
III Parte: Cap. I, II, IV,VIII, XV
“A narrativa cavaleiresca” IV Parte: Cap. XLV ........................................... 72
Ettore Finazzi-Agrò ............................................. 13

“Os livros de cavalarias portuguesas” Baltazar Gonçalves Lobato


Isabel Almeida ..................................................... 20 Crónica do famoso príncipe Dom Clarisol de Bre-
tanha (1602)
“Clarimundo: da ideologia à simbologia imperial” [Quinta e Sexta partes da Crónica de Palmeirim de
Eduardo Lourenço ............................................... 25 Inglaterra]
V Parte: Cap. II, III, IV, X
“Proto-história dos Palmeirins: A Corte de Cons-
VI Parte: Cap. XX ............................................. 82
tantinopla do Cligès ao Palmerín de Olivia”
Luciana Stegagno Picchio .................................... 29
Bibliografia Sumária ..................................... 87

TEXTOS LITERÁRIOS

João de Barros
Crónica do Imperador Clarimundo (1522)
Prólogo
Parte I, caps. III, IX,
Parte II, caps.VII, X,
Parte III, cap. IV ............................................... 35

Francisco de Morais
Crónica de Palmeirim de Inglaterra (1567)
Caps. XIV, XVIII, XXXVI, LXXXVI, CVII,
CXIII, CXIV .......................................... 48

Jorge Ferreira de Vasconcelos


Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda
(1567)
Caps. I, II, III,VIII, XLVIII ................................ 60

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Nota Prévia
Dois factores fundamentais condicionam qual- estreitamente vinculados à corte. Analisam também
quer antologia ou avaliação crítica da produção a tendência destes textos para fugir aos seus pró-
quinhentista portuguesa de livros de cavalaria: a prios códigos, o que releva a instabilidade genérica
falta de edições fiáveis dos principais textos conhe- renascentista, ou visam às idiossincrasias na criação
cidos, assim como a escassa bibliografia disponível. de personagens (algumas das mulheres que encon-
Existem ainda textos manuscritos, fragmentos, sem tramos nos Palmeirins, por exemplo); propõem-se
falar do esquecimento a que ficou entregue a questionamentos de convenções narrativas, dis-
produção contemporânea em castelhano publi- cutem-se formas pelas quais se pode “nacionalizar”
cada em Portugal, o que também contribui para um género. A este respeito resulta fascinante – e
a dificuldade em abalizar este corpus e o seu pouco estudada – a familiaridade de tantos cava-
ambiente cultural e literário. leiros com o mar, que navegam constantemente, e
Por outro lado, a escassa crítica que sobre o até com as suas lides. Isto, em parte, é determinado
tema se tem debruçado, se não peca pela falta de pelo facto de Constantinopla ser fulcro narrativo
qualidade, implicitamente nos obriga a reconhecer do ciclo dos Palmeirins, bem como pelo natu-
outras lacunas: a do ainda limitado conhecimento ralismo oriundo do tráfico luso por outros mundos,
sobre a recepção dos livros de cavalarias portu- que terá igualmente influido na reiterada cons-
gueses. Por exemplo, como conciliar criticamente ciência da necessidade e da preeminência do
a distância que separa a valoração com frequência dinheiro e do comércio – coisa de que Dom
negativa dos preceptistas e moralistas da época, e Quixote, contemporâneo da Terceira parte do
as ocasionais proibições ou censura inquisitorial Palmeirim (2.ª ed.1604), mas émulo de heróis menos
(o Palmeirim de Francisco de Morais, por exemplo, precavidos, faz caso omisso. Por estudar perma-
mas não o Clarimundo, foi rigorosamente expur- necem ainda as últimas continuações dos Palmeirins,
gado nas edições de finais do século XVI), da sobre os que Finazzi-Agrò nos fornece alguns
enorme popularidade do género na Península dados, aqui incluídos junto com a sua útil visão
Ibérica, em vista da proliferação de continuações de conjunto. De ressaltar nestes textos, entre outras
destas famílias cavaleirescas e do número de edições peculiaridades, é a propensão para o que já foi
quinhentistas que sabemos terem existido? chamado a vertente maneirista ou barroca, evidente,
Recentemente, sobretudo a partir do encora- entre outras coisas, na acentuação do bizarro, ou
jador aumento de teses de mestrado e doutora- mesmo grotesco. Note-se ainda a convivência de
mento nos últimos anos, tem-se procedido a uma códigos, que vincula os livros de cavalarias à
reavaliação dos livros de cavalaria, assinalando ver- literatura pastoril, à lírica e à épica, de que os
tentes e tendências, revendo interpretações, herdadas leitores encontrarão nos excertos escolhidos alguns
algumas do século XIX. Os novos estudiosos “ecos”. Sobre este tema destacam-se os estudos de
apontam agora a propensão destes livros para se Jorge A. Osório, particularmente com relação a
adequarem a uma visão política ou ideológica, Bernardim Ribeiro.
implícita ou explícita nos prólogos e, com mais ou Incluem-se nesta antologia cinco textos:
menos destreza, articulada através dos textos
(Clarimundo, Memorial), mormente no caso dos Crónica do Imperador Clarimundo de
três primeiros textos aqui incluídos, obras de autores João de Barros. Impresso pela primeira vez em

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1522, e dirigido originalmente ao Príncipe D. conhecido e que retratou com suma ironia, em
João (e em edição posterior ao mesmo, já Rei D. carta anterior a este livro.
João III), que aparentemente teria “corrigido” os
erros do escritor novel, é obra de um rapaz de Memorial das Proezas da Segunda Távola
pouco mais de vinte anos, que muito jovem entrou Redonda de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Impresso
ao serviço de D. Manuel. Embora hoje em dia se pela primeira vez em 1567, é uma vez mais obra
conheça o autor por obras mais sisudas, as suas de autor vinculado à corte, já que J.F.V. foi moço
Décadas da Asia, por exemplo, em vida a fama se de câmara do Infante D. Duarte e, depois da
devia sobretudo a esta crónica, testemunho elo- morte deste, esteve ao serviço do príncipe D. João,
quente da popularidade do género e da maneira a quem dedicou um livro de cavalaria – Triunfos
como João de Barros o apropriou. Reflecte, esta de Sagramor – que poderá ter sido uma primeira
narrativa, a opulência e o optimismo do momento versão do M.P.S.T.R. Este último é dedicado a D.
de maior brilho para a corte e a empresa imperial Sebastião, facto que vem complicar ainda mais a
portuguesas, através da justaposição do passado interpretação de um texto marcado pelo paradoxo.
mítico/cavaleiresco com o presente histórico, como Livro de cavalarias, nele não consta a figura ante-
o próprio título indica: Crónica do Imperador Clari- cipada do cavaleiro exemplar. Os familiares
mundo donde os Reys de Portugal desçendem. Intro- encontros e torneios entre cavaleiros parecem jogos
duz, simultaneamente, e não sem manifesta cons- de espelhos desenhados para preparar o leitor
ciência e orgulho do autor, elementos, sobretudo para o cruzamento com a realidade – a minuciosa
retóricos, do humanismo. descrição do torneio de Xabregas que fecha a
narrativa. E se de amores tratam sempre as histórias
Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Morais. de cavaleiros, nos intervalos das lides, ao contrário
Possivelmente publicado primeiro em português do que era costume não há aqui nenhum decisivo
entre 1543-1545, a primeira edição conhecida, enlace. Espelho de príncipes? Trajectória iniciática
anónima, é a de Toledo (1546-1547), em castelhano, de cariz neo-platónico? Ou “exemplário amoroso”,
o que deu azo a quase dois séculos de acesas como propôs recentemente Cláudia Pereira? O
disputas sobre a autoria (portuguesa? castelhana?) mais difícil resulta evitar ler nele a angustiada
do livro, hoje indiscutivelmente atribuída a espera do que sabemos que depois foi.
Francisco de Morais. A primeira edição portuguesa
foi publicada em Évora, em 1567. A narrativa Terceira parte da Crónica de Palmeirim de
acompanha dois irmãos de personalidades opostas Inglaterra de Diogo Fernandes. Nada se sabe
– Palmeirim, o perfeito amante, e Floriano, sensual deste autor. Publicado originalmente em 1587,
e curto de memória no que às mulheres se refere hoje a única edição disponível deste livro é a
– um contraste que se pode analisar de diferentes segunda, de 1604. Independentemente da crise
maneiras mas que dão pé, no caso de Floriano, a que, na segunda metade do século XVI, causaria
algumas das passagens mais divertidas da família a exaustão do género, nota--se já no prólogo o
dos Palmeirins. Entre outros aspectos originais, claro propósito de reconhecer e reivindicar um
além da prosa ágil e de um naturalismo certeiro público mais amplo para os livros de cavalaria do
que questiona ou subverte o idealismo conven- que o aristocrático a que anteriormente se diri-
cional do género, encontram-se o episódio de giam. Numa trama que habilmente maneja
Miraguarda – ambiguamente celebrado no escru- numerosas personagens e fios narrativos, e onde
tínio da biblioteca de Dom Quixote – e a abundam as características mais empolgantes que
introdução de uma série de personagens femininas tipicamente faziam as delicias do público –
baseadas numas damas francesas que o autor terá exotismo, encantamentos, figuras mitológicas,

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amores profanos e divinizados (e um Floriano
agora domesticado) –, deparamos com outros
elementos curiosos. Por exemplo, Constantinopla,
tópico frequente nos livros de cavalaria, aparece
no início destruída. A sua restauração é minu-
ciosamente descrita, e o texto delicadamente nos
leva já no início a considerar temas como a liber-
dade dos povos governados e a tirania, a recons-
trução de um país depois da sua derrota, os
deveres de novos monarcas vindos do estrangeiro
quando os naturais tinham sido mortos. Como
seriam lidas estas páginas em Portugal, em 1587
e 1604? Não menos curioso é o estreito convívio
de códigos cavaleirescos e pastoris, que Cervantes
desenvolve com enorme perícia no Dom Quixote
(1.ª parte, 1604).

Quinta e Sexta Partes do Palmeirim de


Inglaterra, escrito por Baltazar Gonçalves Lobato,
de quem nada se sabe. Publica-se em Lisboa, em
1602. Nele se multiplicam aventuras, nas quais os
cavaleiros combatem, além dos habituais anta-
gonistas (gigantes, etc.), também uma infinidade
de heróis da Antiguidade, mesmo os mitológicos.
No entanto, deparamos com elementos insólitos,
entre os quais o entrelaçamento de narrativas de
cariz popular, como a da dama do marido feio,
aqui incluída, o que faz pensar em moldes estéticos
já barrocos, em que se justapõe, ou contrapõe,
como o fez Cervantes, o cavaleiresco e o burlesco,
logrando com isso uma renovação, ou pelo menos
um indício de novos trilhos a seguir. Nota-se,
como no caso anterior, a assimilação da épica
renascentista e do código pastoril, cujo eco fran-
camente camoniano encerra esta antologia.

Agradeço a Isabel de Sena a modernização,


parcial, da grafia, nos textos usados a partir da sua
primeira edição.

Isabel Allegro de Magalhães

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I N T RO D U Ç Õ E S

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A relação amorosa segue os esquemas clássicos do
A narrativa género: é um sentimento sublime que consegue
superar os obstáculos e dificuldades de toda a
cavaleiresca espécie e que será coroado pelo matrimónio,
primeiro consumado em segredo, depois realizado
oficialmente, após Clarimundo, com outros
(excerto) cavaleiros, ter derrotado as forças do Grão-Turco
que haviam chegado a ameaçar as muralhas de
Constantinopla.
ETTORE FINAZZI -AGRÒ* No contexto destas aventuras deve ser referida
aquela que, com todo o direito, pode ser con-
[...] siderada a mais importante do romance, visto que
constitui o verdadeiro objectivo da sua composição.
JOÃO DE BARROS E A CRÓNICA
No capítulo IV do terceiro e último livro encon-
DO IMPERADOR CLARIMUNDO
tramos Clarimundo em Portugal, na companhia
[...] do mago Fanimor, desde sempre o seu protector
A intenção de João de Barros foi evidentemente, oculto. Este condu-lo ao alto da torre de Sintra
desde o início, a de exaltar a coroa portuguesa; e aqui, tomado pelo espírito profético, descreve-lhe
mas a matéria, fruto duma tradição e vinculante, em versos a sua gloriosa descendência: dele pro-
deve-lhe ter, de certo modo, forçado a mão. É cederão os reis de Portugal que estenderão o seu
assim que, nos primeiros dois livros, os de inspiração domínio desde as regiões orientais extremas até às
declaradamente heróico-cavaleiresca, o Clarimundo mais ocidentais.
não se afasta em nada, ou quase, dos modelos A profecia de Fanimor ocupa no seu conjunto 41
castelhanos, repetindo personagens, situações e oitavas e uma quadra em versos de arte maior, mas
motivos já anteriormente tratados, sobretudo no por si só confere um sentido novo a todo o
Amadis. [...] romance. Clarimundo não é, ou não é mais, um
Nascido do casamento de Adriano, rei da Hungria, dos muitos heróis dos romances de cavalaria; a sua
com a filha do rei de França, Clarimundo é função não se resolve simplesmente ao nível peda-
tirado aos pais pelas intrigas de uma ama. Aban- gógico-exemplar, já que a sua acção, o seu heroísmo
donado junto duma fonte, é recolhido por e a sua corteisie, recebem também um superior
Grionesa, nobre viúva italiana, e educado por esta crisma épico.
como filho. Ainda muito jovem pede e consegue O valor literário desta parte lírica não é, atenda-se
ser armado cavaleiro pelo rei de França, que ignora bem, proporcionado à importância que ela assume
ter diante de si o próprio filho. Iniciam-se, neste no interior do romance: longe de qualquer tentativa
ponto, as maravilhosas aventuras e as muitas pere- de crítica histórica, tudo se reduz a uma árida lista
grinações do herói que é, entretanto, reconhecido de nomes que nada têm em comum com a história
pela mãe, acabando depois por encontrar Clarinda, da dinastia portuguesa que nos é apresentada por
a mulher da sua vida, filha de Apolinário, impe- Camões nos Lusíadas, e em que a figura que
rador de Constantinopla. adquire maior relevo é a de D. Manuel, de quem
se enumeram os domínios e as terras conquistadas.
* Novelística Portuguesa do Século XVI. (Biblioteca Breve 24). Trata-se, todavia, da primeira tentativa quinhentista
Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1978. de poesia épica em Portugal e como tal terá que

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ser avaliada, em função, também, do contexto em A própria colocação da profecia de Fanimor parece,
que é introduzida. neste caso, significativa: o aperfeiçoamento do herói
João de Barros antecipa-lhe o aparecimento desde através da avanture atinge o seu cume no fim do
o Prólogo em que afirma ter sabido, de um segundo livro, pelo que ele é agora finalmente
«fidalgo alemão», como Afonso Henriques fora na digno de receber o carisma. Este, por sua vez,
realidade filho segundo de um rei da Hungria, põe-no em estado, não tanto de desposar Clarinda,
neto, por sua vez, do imperador Clarimundo. A o que pode considerar-se fim secundário (desde
referência a este parentesco lendário se, por um que um casamento, ainda que em segredo, fora
lado, introduz aquela dimensão fantástica que consumado), mas de desbaratar os infiéis, de
informará depois as vicissitudes cavaleirescas, coloca apresentar-se como o primeiro campeão daquele
ao mesmo tempo o romance num plano diferente espírito de cruzada que tanta importância tinha
dos anteriores castelhanos: o leitor português é na ideologia monarco-nobiliárquica quinhentista
posto em condições de captar, graças àquela adver- portuguesa.
tência, o sentido profundo, histórico se se quiser, Por outras palavras, Clarimundo, antepassado fan-
do protagonista, seguindo-o nas suas aventuras tástico da dinastia henriquina, realiza e cumpre,
através do mundo sem limites da narrativa cava- com aquelas roupagens, o propósito a que esta se
leiresca. teria votado: dilatar a Fé e o Império. A guerra
Sem aquela antecipação, para um nível mais baixo aos mouros, que pode considerar-se um tópico da
de leitura, a história de Clarimundo, tal como nos narrativa cavaleiresca do século XVI, encontra
é narrada nos primeiros dois livros, não apre- deste modo no livro de João de Barros uma
sentaria nenhum elemento de novidade no que dimensão histórica precisa. Manuel Severim de
respeita à tradição, sentindo-se apenas no início Faria define Clarimundo, como se disse, como uma
do terceiro livro uma inesperada mudança do história fabulosa, sem dar-se conta, talvez, de que é
registo estilístico e narrativo. O próprio cenário, exactamente pela união dos dois termos que nasce
com efeito, muda neste ponto, passando-se de o carácter distintivo da obra. É o próprio autor,
uma moldura imaginosa e ausente de qualquer com efeito, que precisa no prólogo por que ponto
referência espácio-temporal precisa, para um de vista se deve considerar o elemento fantástico
Portugal geograficamente conotado, em que a no seu romance: «Pois das antigas cousas não
acção cavaleiresca acaba por adquirir um sentido temos outra certeza, é necessário darmos-lhes tanta
novo. Não se pode falar, evidentemente, de realismo, fé, quanta nos elas testificam. Quanto mais, que a
mas sim de uma atmosfera onírica em que o experiência das nossas presentes autorizam todas
fantástico é mediado através da experiência real as suas passadas. E quem nesta verdade duvidar,
(veja-se, por exemplo, a justificação mítica que o ponha os olhos na grandeza das obras del-Rei
autor dá de alguns topónimos). vosso padre, e desfará a roda do pouco crédito
A Crónica do Imperador Clarimundo vive e é vivi- que a todas as outras der».
ficada por este desdobramento de planos: de uma Está já nestas palavras o futuro autor das Décadas:
parte o maravilhoso fantástico, da outra o mara- na constatação de como a história por si só é
vilhoso histórico, ambos em relação dialéctica entre suficiente para criar o mito e de como o epos não
si. Por esta via o romance adquire uma nova fun- é, no fundo, senão o fruto artisticamente deformado
cionalidade enquanto se precisam, em perspectiva, da realidade. Em Clarimundo, João de Barros
as motivações narrativas. experimentou a possibilidade de explorar a matéria

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lendária para fins históricos e nacionais; caberá a O episódio (que ocupa os capítulos 137-142 da
Camões, avançando pelos caminhos por ele segunda parte), embora também banhado pela
indicados, percorrer a via contrária que leva da mesma atmosfera fantástica que percorre todo o
história à épica. romance, denota, não obstante isso, uma escassa
articulação lógica com o resto da narração no
plano temático: aqui se conta como quatro damas
FRANCISCO DE MORAIS francesas, que têm exactamente os nomes das
E O PALMEIRIM DE INGLATERRA gentis-donas há pouco citadas, prometem con-
ceder-se como prémio ao mais valente cavaleiro
[...] que por elas combatesse. O vencedor é Floriano,
Não sabemos muito do autor de Palmeirim de o galante irmão de Palmeirim que, todavia, acaba
Inglaterra. Nasceu, com toda a probabilidade, nos por fugir da sua presença ao dar-se conta do seu
finais do século XV ou nos inícios do século espírito fútil e vazio.
seguinte. O pai, Bastião ou Sebastião, membro da É a primeira vez, tanto quanto se sabe, que num
pequena nobreza brigantina, era provavelmente romance de cavalaria são inseridas de maneira
empregado na Fazenda Real. Francisco entrou, directa personagens reais e que o autor se permite
por sua vez, ao serviço do conde de Linhares, D. exprimir, a seu respeito, sentimentos pessoais. Não
António de Noronha. Em 1541 tomou parte, com é difícil, em boa verdade, descobrir em Floriano
funções de secretário, na embaixada enviada por – limitando-nos, por certo, a este episódio – uma
D. João III ao rei de França, e que era encabeçada projecção de Francisco de Morais, que tenta, por
pelo filho de D. António, D. Francisco de Noronha. esta via, uma desforra moral em relação a
[...] mademoiselle de Torsi, que é repudiada pelo cavaleiro,
Mais na qualidade de confidente do que na de tal como ela, na vida real, tinha repudiado o
secretário, envia de Melun ao conde de Linhares escritor.
uma longa carta. O único precedente possível, no âmbito quinhen-
[...] tista, é constituído pelo episódio da profecia no
Trata-se de um documento original já que nele Clarimundo em que, embora com intenções dife-
se descrevem, num tom vivo e agradável, os costumes rentes, se articula a lenda com a história, enquanto
da corte francesa, bastante livres aos olhos de um um novo exemplo de irrupção do real na ficção
observador português. Nela se referem, para além cavaleiresca se dará com o torneio de Xabregas
disso, os nomes de três damas francesas, Latranja, descrito no Memorial de Jorge Ferreira de
Talensi e Mansy, que voltaremos a encontrar depois Vasconcelos.
como protagonistas dum curioso episódio do Palmei- A pergunta que espontaneamente surge é se é
rim. possível, neste ponto, considerar tal mistura entre
Referimo-nos, naturalmente, ao trecho autobiográ- realidade e fantasia como um elemento distintivo
fico de que já se fez menção, no qual aparece da narrativa portuguesa de inspiração cavaleiresca.
também o nome de uma outra dama da corte [...]
francesa, mademoiselle de Torsi, de quem sabemos As finalidades com que João de Barros ou Jorge
ter-se enamorado perdidamente o escritor Ferreira de Vasconcelos introduzem nas suas obras
português durante a sua permanência em França episódios ou figuras históricas são, evidentemente,
– em idade, portanto, já madura, e por quem foi de natureza diferente das de Francisco de Morais,
repudiado depois de uma longa corte. alheio a quaisquer intenções épicas ou apologéticas

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precisas pelo que seria bem mais fácil invocar a (o Primaleón do romance castelhano) imperador
seu respeito modelos de narrativa sentimental como de Constantinopla; também no romance de
a Elegia di Madonna Fiammetta de Bocaccio –: é Francisco de Morais, antes de desposar a amada
todavia digna de relevo esta atitude comum dos – sempre a nível oficial, pois secretamente as núpcias
autores portugueses ao funcionalizar a matéria haviam já sido consumadas – o protagonista deverá
cavaleiresca numa perspectiva pessoal ou nacional, vencer os infiéis que assediavam a cidade. O espírito
isto é, ao servir-se dela como de um veículo de cruzada não podia ser, evidentemente, descura-
expressivo privilegiado em oposição à acção do nem sequer numa obra que, diferente do
niveladora da tradição. [...] Clarimundo, não tinha intenções declaradamente
O romance de Francisco de Morais, apresenta-se, épicas.
tematicamente, como uma continuação do Mencionada brevemente a história do protagonista,
Primaleón, em que se narravam principalmente, as dever-se-á também recordar a presença, no roman-
façanhas do cavaleiro deste nome, filho de ce, de figuras secundárias em cujo traçado o autor
Palmeirim de Oliva. No livro, todavia, dava-se prescinde largamente dos estereótipos tradicionais,
relevo também à figura de D. Duardos, filho do revelando, neste sentido, uma notável dose de origi-
rei Fradique de Inglaterra, o qual acabará por nalidade.
desposar Flérida, filha de Palmeirim. É o caso de Miraguarda e Florendos e da sua
Ora, enquanto os dois romances castelhanos, intitu- história sentimental: ela, dama caprichosa, submete
lados Platir e Flotir, de que se fez referência, se o seu apaixonado às provas mais duras recusando
ocupavam da descendência por linha masculina sempre, com maneiras de coquette, condescender ao
do primeiro Palmeirim (narram, de facto, as seu amor; ele, amante, receoso, mais digno de
aventuras, respectivamente, do filho e do neto de figurar num roromance sentimental ou bucólico,
Primaléon), no âmbito português prestou-se, suporta em silêncio as intemperanças da mulher,
singularmente, uma maior atenção à história dos conseguindo realizar o seu sonho de amor apenas
amores de Flérida e de D. Duardos. pela intervenção compadecida de Palmeirim e
Gil Vicente, indo buscar o tema a um episódio do Primaleão.
Primaleón, compõe em 1522 a tragicomédia D. [...]
Duardos onde se conta como o filho do rei de
Inglaterra, disfarçado de hortelão, consegue apro-
ximar-se e cortejar a mulher amada. Por sua vez,
o livro de Francisco de Morais abre com a des- JORGE FERREIRA DE VASCONCELOS
crição da difícil gravidez de Flérida que acabará E O MEMORIAL DAS PROEZAS
por dar à luz, em circunstâncias dramáticas, os DA SEGUNDA TÁVOLA REDONDA
gémeos Palmeirim, depois chamados de Inglaterra,
e Floriano do Deserto. Em 1567 é impresso em Coimbra, «em casa de
A narração segue, a partir daqui, os cânones clás- João de Barrera», o Memorial das Proezas da Segunda
sicos do género cavaleiresco, já que os dois recém- Távola Redonda, dedicado ao «muito alto e muito
-nascidos são roubados à mãe por um «selvagem» poderoso Rei dom Sebastião».
e educados pela mulher deste. Feitos cavaleiros e [...]
descoberta a sua ascendência darão início à sua A obra de Jorge Ferreira de Vasconcelos deve [...]
aventura heróica e sentimental. Palmeirim, em par- ser colocada na linha de desenvolvimento do Clari-
ticular, enamora-se de Polinarda, filha de Primaleão mundo, através da experiência literária do Palmei-

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rim de Inglaterra, teria conduzido ao nascimento Príncipe D. João que, de resto, fora armado
do epos nacional. É bom recordar, de facto, que cavaleiro naquela ocasião.
entre a data de publicação do Memorial e a dos Também aqui, como no Clarimundo, somos adver-
Lusíadas decorrem somente cinco anos; e que tidos logo no prólogo de que este é o verdadeiro
entre as duas obras, embora tão distantes entre si, objectivo da composição do romance: mitificar,
quer pelas intenções quer pelos efeitos artísticos, através do torneio de Xabregas, D. João – e com
não se pode deixar de encontrar, como veremos, ele a monarquia e a nobreza portuguesas. Seme-
ideais estéticos e interesses históricos comuns. lhante ao utilizado por João de Barros é também
Com efeito, se pela matéria o Memorial é ainda aqui o mecanismo que serve para introduzir o
largamente devedor da tradição medieval, quanto acontecimento: é a maga Merlíndia que faz o rei
à forma e às intenções participa, ainda que de Sagramor assistir ao torneio graças aos seus mara-
maneira superficial, dos novos tempos: «respira» vilhosos poderes, depois de ter exaltado a beleza
como afirma Massaud Moisés, «os ares quinhen- do Tejo e dos lugares que são o cenário – real,
tistas». [...] também neste caso – da acção.
Neste sentido, a escolha da matéria arturiana podia Como conclusão lógica da história, o capítulo
considerar-se obrigatória dada a simbologia ligada final (Do remate destes males) mostra-se, pelo
à Távola Redonda; mas, ao mesmo tempo, Jorge contrário, pleno de tristeza: aí se anuncia a morte
Ferreira de Vasconcelos apercebeu-se da impossibi- prematura de D. João e as Charites são chamadas
lidade de reportar-se directamente àquele mundo a entoar para ele uma triste elegia fúnebre.
mítico de base estritamente medieval, cujos com- Quer neste episódio quer, mais em geral, por todo
ponentes alegóricos e éticos se adaptavam mal à o romance encontram-se disseminadas figuras mito-
expressão da ideologia quinhentista tardia da corte lógicas e citações clássicas, como se, exclusivamente
portuguesa. Imagina, por conseguinte – querendo por esta via, Jorge Ferreira de Vasconcelos pensasse
quase marcar a distância –, uma segunda távola poder chegar a dar do romance de cavalaria uma
redonda presidida pelo rei Sagramor, sucessor de versão profundamente renovada, dir-se-ia
Artur, em que participam cavaleiros que são, na renascentista. [...]
sua maioria, filhos de heróis-personagens dos O escritor, entregue a uma tarefa precisa (a de
romances de Chrétien de Troyes. exaltar a monarquia e a nobreza portuguesas através
O Memorial narra a sua gesta, as suas aventuras do torneio de Xabregas) e ao mesmo tempo tolhido
sentimentais e os gloriosos feitos de armas, situados, por vínculos materiais e ideológicos, não conseguiu,
todavia, num cenário que tende a tornar-se, em evidentemente, criar uma dimensão poética e literária
relação aos romances precedentes, sempre mais adequada, acabando por compor uma obra que,
estilizado: dele parecem quase ausentes todas as sob o artifício humanístico-renascentista, não chega
formas de movimento ou de vida. Mais do que a esconder a sua matriz medieval. Pode em todo
no Clarimundo, a parte dedicada às questões pro- o caso concluir-se que ele não fez senão fornecer,
priamente cavaleirescas acaba por ser apenas um em boa medida, o produto literário que lhe fora
quadro, isto é, um momento preparatório que encomendado, ornamentando-o com toda a perícia
introduz o acontecimento-função, constituído no formal de que era capaz. Era nisso que todo um
Memorial pelo torneio de Xabregas. ambiente social procurava ainda reconhecer-se.
Trata-se, neste caso, de um facto real, de uma justa Não admira que D. Sebastião, formado nesta escola,
travada durante o reinado de D. João III (5 de tenha depois conduzido o seu povo ao desastre
Agosto de 1552) na qual tomara parte também o de Alcácer-Quibir: assim, numa batalha que,

17
contrariamente ao que acontecia nos romances do século, ver-se-á como tal situação se perpetua
de cavalaria, se concluiu a favor dos infiéis, depois no período seiscentista, e até no setecentista,
declinavam as ilusões de um corpo social que ainda que a frequência das reedições se vá tor-
tinha acreditado poder utilizar, para fins nando, com o tempo, menos importante. Em
expansionistas ou genericamente ideológicos, um compensação, os valores tradicionais do romance
ideal originário de um contexto sociocultural de cavalaria continuam a animar, neste período,
demasiado distante no tempo. uma produção literária que, embora perdendo
naturalmente o contacto com as motivações
ideológico-culturais dos arquétipos, e adaptando-se,
AS CONTINUAÇÕES DO PALMEIRIM. ainda que lentamente, ao espírito dos novos
DECADÊNCIA DA NARRATIVA tempos, decalca daqueles modelos temáticos e
CAVALEIRESCA mecanismos compositivos.
Este tipo de narrativa, agora definitivamente pri-
[...] vado de qualquer conotação elitista e favorecido
Deve todavia chamar-se a atenção para o acto e na sua difusão pelo impetuoso desenvolvimento
não ser possível estabelecer-se uma relação directa da imprensa, vai alimentar – poder-se-ia perfeita-
entre a presumível crise dos romances de cavalaria mente sustentar que é dele, em certo sentido, o
na segunda metade do século XVI e o aumento protótipo – o filão da literatura dita popular ou
das críticas por parte do elemento clerical. de consumo, em que o mito cavaleiresco se deteriora
Paradoxalmente, poder-se-ia sustentar que não perdendo todo o carácter de necessidade peda-
existe sintoma mais preciso do favor gozado pelos gógica e esvaziando-se de todas as suas compo-
romances cavaleirescos do que a frequência das nentes simbólicas. [...]
reprovações que contra eles se levantam. De resto, A Quinta e Sexta Partes do Palmeirim podem consi-
é também verdade que não temos notícia de derar-se consequentemente, e não apenas no plano
intervenções inquisitoriais que proibissem, de cronológico, como o ponto final da degradação
maneira explícita, a sua difusão. do ideal cavaleiresco, de matriz medieval, em
O único a ser posto no índice foi, significativa- Portugal.
mente, a Caballería celestial, obra do castelhano Por outro lado, é também possível verificar no
Hierónimo de San Pedro, em que se procurava livro uma certa tendência para o conceptismo e
conciliar o ideal cavaleiresco com a ética cristã. a hipóstase dos motivos narrativos tradicionais, o
Segundo esta perspectiva, podemos perguntar se é que pode fazer supor uma sua participação nas
lícito falar de uma crise do romance de cavalaria orientações estético-literárias do gosto barroco
na segunda metade do século XVI, como fazem nascente; tratar-se-ia, neste caso, de uma nova prova
muitos especialistas e, no caso da existência dessa da «adaptabilidade» do romance de cavalaria aos
crise, quais as suas causas reais. ambientes culturais epocais, aspecto donde derivará,
O problema mostra-se, na realidade, bastante com- como se disse, a possibilidade para a nobreza
plexo, já que se, na verdade, o número de novos cavaleiresca de sobreviver a si mesma, ligando os
romances diminui sensivelmente para o fim da seus destinos, no plano literário, aos da narrativa
centúria, não é menos certo que se continuam a de cunho popular ou popularesco.
imprimir os da primeira metade do século, de
modo especial os clássicos, como o Amadis de
Gaula e os Palmeirins. E, ultrapassando os limites

18
OUTROS ROMANCES DE CAVALARIA elemento duma trilogia que compreende a
DEIXADOS MANUSCRITOS Segunda Parte da Cronica do Príncipe dom Duardos
e que é concluída pela Terceira Parte da mesma
[...] Cronica (de ambos estes romances existem mais
A par das obras impressas, devem ser recordadas manuscritos).
as muitas que ficaram manuscritas de que não é Não é difícil formular a hipótese de que as três
possível, infelizmente, avaliar em pleno nem a obras sejam de um único autor, mau grado todas
quantidade numérica, nem tão-pouco a validade elas apresentarem a mesma falsa atribuição de
literária. [...] paternidade a um imaginário «chronista ingrês»,
Um primeiro grupo de obras é constituído pelas Henrique Frusto, enquanto a tradução em portu-
continuações manuscritas do Palmeirim de Inglaterra. guês teria sido realizada nada menos que por
Diogo Fernandes, no prólogo do seu romance, Gomes Eanes de Zurara.
afirma ter decidido publicar a continuação do [...]
livro de Francisco de Morais depois de muitas Além das continuações directas do Palmeirim de
incertezas e «alimpando» o texto por ele já com- Inglaterra, conserva-se manuscrita uma outra obra
posto. Pode deduzir-se que a Terceira Parte deve ter dividida em quatro partes, também ela intitulada
circulado manuscrita num primeiro tempo e só de vários modos: Cronica do Imperador Beliandro, ou
depois terá sido impressa, em 1587.
Cronica de D. Belindo ou ainda, História Grega. Na
Com efeito, existem muitos códices de uma obra
realidade, são narradas neste romance as aventuras
cujo título varia também em notável medida (desde
de D. Beliandro, imperador da Grécia, de seu filho
a Vida de Primaleão, Emperador de Constantinopla até
D. Belliflor e de D. Belindo, príncipe lendário de
à Cronica do invicto D. Duardos de Bretanha): trata-se,
Portugal, enamorado de Beliandra, filha do impe-
na realidade, do mesmo romance intitulado de
rador. A única circunstância digna de nota é,
maneira diferente, no qual se contam as aventuras
exactamente, a presença no romance de uma per-
de Palmeirim e dos seus descendentes, retomando
a narração a partir do ponto onde fora interrom- sonagem portuguesa, de um príncipe de nome
pida por Francisco de Morais. fantástico que, casando com Beliandra, acabará
Pode-se identificar nesta obra a redacção manus- por subir ao trono da Grécia, dando-nos assim,
crita da Terceira Parte do Palmeirim de Inglaterra? em definitivo, a medida precisa das transformações
Por um confronto, ainda que sumário, das duas operadas na narrativa cavaleiresca portuguesa a
obras e considerando, para mais, que Diogo partir de obras como o Memorial e o Clarimundo.
Fernandes afirma ter simplesmente limpo a sua Nesta última, em particular, exaltava-se a dinastia
primitiva compilação, deveremos excluir tal hipó- de Aviz através de uma personagem imaginária,
tese: o único ponto de contacto entre elas é cons- acabando por ligar, com fins épicos, fantasia e
tituído pelo facto de serem ambas continuações história. A figura de D. Belindo, pelo contrário,
do mesmo romance. As poucas semelhanças não desempenha essa função: ele é um cavaleiro
verificáveis, no plano temático, limitam-se, com como os outros, que vive e actua num mundo
efeito, apenas à parte inicial, enquanto no pros- absolutamente irreal. O seu destino resolve-se neste
seguimento da narrativa os dois livros diferem âmbito fantástico, fora de quaisquer considerações
também em notável medida. históricas ou épicas, podendo suspeitar-se, através
De resto, a Vida de Primaleão (ou Cronica de D. dele, que o autor tenha querido lisonjear o
Duardos) deve ser considerada como o primeiro orgulho nacional.

19
[...]
No que se refere à autoria da obra, foi proposto
por diversos autores atribuí-la a D. Leonor
Os Livros
Coutinho, condessa da Vidigueira, que viveu entre
o fim do século XVI e a primeira parte do século
de Cavalarias
seguinte.
[...]
Não deve de forma alguma causar-nos admiração
Portuguesas
que uma dama tenha podido compor uma obra
de assunto cavaleiresco: as mulheres, com efeito, (excerto)
como se depreende de vários testemunhos, eram
leitoras entusiastas dos romances do género, estando ISABEL ALMEIDA *
mesmo atribuído a uma escritora um dos primeiros
e mais importantes romances de cavalaria do século
XVI: o espanhol Palmerín de Olivia. [género e renovação]
Entre os romances de cavalaria que ficaram manus- Se é iniludível a tipicidade das crónicas fabulosas
critos e conservados em bibliotecas portuguesas e segura a dependência de uma gramática narrativa
dever-se-á, por último, citar a Cronica do Principe comum, [...] não é menos verdade que a projecção
Agesilau e da Rainha Sidônia. de traços canónicos e de uma traça essencial con-
Conhece-se até hoje um único testemunho desta sentiu variações e permitiu ágeis cruzamentos. Ao
obra: um códice miscelâneo do século XVII, leitor enfadado ou que não ultrapasse as primeiras
propriedade da Biblioteca Geral da Universidade folhas, os livros de cavalarias soarão eventualmente
de Coimbra. Infelizmente, a letra com que tal como cópias desinteressantes: as personagens
obra foi transcrita torna-lhe a leitura bastante confundem-se, as linhas da intriga diluem-se num
difícil. Parece significativo, todavia, que na intitulação jogo de intensos reflexos. Olhados de perto, porém,
se diga que ela contém «muitos exemplos favolosos para lá de inequívocas similitudes que, num grau
utilíssimos à Poesia.» extremo, chegam a atingir contorno de citação,
revelam diferenças, uma vitalidade que se traduz
em adaptação e permeabilidade: a persistência
vigorosa de características basilares não impediu o
esforço ou o prazer da invenção (1970: 86) (12)

[leitores e difusão dos livros de cavalarias]


[...] A existência de uma obra numa biblioteca
não garante em absoluto que tenha sido de facto
manuseada, tal como a ausência de títulos
cavaleirescos não significa obrigatoriamente o seu
desconhecimento [...]. Então, como hoje, ao longo

* Dissertação de Doutoramento. Lisboa: Faculdade de Letras


da Universidade de Lisboa, 1998.

20
da vida perdiam-se e descartavam-se livros, conhe- Clarimundo é dirigido a D. João III; Palmeirim de
ciam-se outros por empréstimo. Além disso, [...] é Inglaterra à Infanta D. Maria; Triunfos de Sagramor
imprescindível ter em conta que a leitura não se ao príncipe D. João Manuel, tal como o Memorial
resumia, nos séculos XVI e XVII, a um acto viria a ser oferecido a D. Sebastião. À data da
silencioso e individual, podendo ser uma prática publicação dos livros que lhes foram endereçados,
gregária, centrada na recitação oral (sempre aberta D. João tinha 20 anos, o príncipe D. João, seu filho,
ao improviso e à glosa), o que multiplica hipóteses 16, D. Maria rondaria os 23, D. Sebastião era um
de circulação dos textos, das quais só raramente adolescente de 13; leitores jovens e poderosos, cuja
ficou memória. sombra protectora é solicitada nos prólogos, onde
Bastaria [...] a enérgica campanha adversa movida invariavelmente se apregoam os estreitos laços com
por moralistas, eclesiásticos e humanistas, e em o mundo pação. E não se trataria de letra vã. Em
particular os vários esforços legislativos visando dois casos (Clarimundo e Memorial) esta produção
cercear a difusão dos livros de cavalarias, para corresponde a um “progetto encomiastico e cor-
mostrar o duradouro e extenso interesse despertado tigiano”, à semelhança do que se verificava em
por este género. Em Espanha, vozes críticas como romanzi italianos [...]: subjacente a cada obra esteve,
as de Luís Vives, Alejo Vanegas de Busto, Juan se não uma explícita encomenda, pelo menos o
Pérez de Moya, soaram, ásperas, denunciando o aval de um patrono, cuja imagem elogiosamente
perigo que a apetência por crónicas fabulosas se urde no texto. (39)
representaria para “moços”, “ociosos” e “livianos”,
bem como para “donzellas recogidas”, “deso- [Inquisição e a censura dos livros de cavalaria
cupadas” e de “ânimos tiernos”. Para alguns portugueses]
detractores, essa ameaça remontava à infância, ou
porque “suelen algunos padres recitar a sus hijos Que a divulgação das crónicas fingidas, em recep-
las patrañas de los cavalleros de burlas”, como ções de conjunto ou individuais, foi uma realidade,
censurava, ao que parece fundadamente, Jerónimo percebêmo-lo através de sinais dispersos – entre
de Sampedro, em 1554 (ap. Gayangos, 1950: 56), ou eles, a preocupação de quem tinha por ofício o
porque, já nas escolas, numa fase elementar de controle de livros e leituras. Note-se que, à seme-
aprendizagem, os livros de cavalarias (ou narrativas lhança da política seguida pela sua congénere
cavaleirescas breves?) seriam utilizados para o espanhola, a Inquisição portuguesa sempre tratou
exercício de leitura. (27-28) as crónicas fabulosas com surpreendente bene-
[...] volência: por vezes obedecendo a influências ou
conveniências de que hoje apenas conseguimos
[os livros de cavalarias e a corte] suspeitar (severos na limpeza de uma obra como
[Os livros de cavalarias] terão feito parte de hábitos Palmeirim de Inglaterra, de Francisco Morais, os
e preferências de nobres e áulicos, e sabe-se que censores adoptariam para com Clarimundo uma
não faltavam na guarda-roupa real. Entre os bens impassividade total, inclusive em trechos que
de D. Manuel contavam-se Amadis de Gaula, Sergas idênticas razões fariam crer expurgáveis); em geral,
de Esplandião, Florisando [...] (31-32) aceitando estas narrativas por imperativo do uso
instituído.
Foi precisamente na órbita do monarca ou de Importa não esquecer que a edição de 1592 [do
seus próximos que gravitaram, até meados de Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Morais],
Quinhentos, os autores de livros de cavalarias. severamente expurgada, foi oferecida ao Cardeal

21
Alberto, Regente e Inquisidor. Sem dúvida, (c. 1630), um dos muitos trabalhos deixados inéditos
procurava-se a mais alta protecção para a obra, por Manuel Pires de Almeida. (77)
mas não deixa de ser curiosa a oferta de uma
crónica fabulosa ao mais destacado representante A condenação dos livros de cavalarias envolve, [...],
do Santo Ofício. (nota 44, 59) com nítida frequência e preponderância, razões
de ordem moral. Estas diatribes revelam-se tanto
[recepção] mais incisivas quanto se reconhece o fascínio do
No nosso país a história da recepção do livro de género; tanto mais ríspidas quanto se sabe e teme
cavalarias é a de uma branda conquista: de um o seu sucesso. Se a envergadura da campanha é
grupo de elite, primeiro; de um conjunto cada vez proporcional à dimensão do alvo, a quantidade e
mais vasto, depois, sem perder o favor dos que dureza destas invectivas contra as histórias fingidas
inicialmente o estimularam. Para cada um ter “a constituirá indirecta mas eloquente medida da sua
significado algo diverso: espelho de comporta- importância e resistência. Muitos detractores não
mentos; pretexto de evasão; entretenimento frutuoso. negam, de resto, a sedução por elas exercida.
E é precisamente nessa plurivalência que estas Admitem-na, ao mesmo tempo que denunciam o
obras se destacam e encontram garantia de sobre- que julgam ser o seu perigo fundamental: a atracção
vivência, na sua capacidade proteica de assimilar irrecusável, a influência traiçoeira, porque sub-
tendências e desejos, de condensar modelos e os reptícia. (104)
ajustar à medida do tempo. Para lá da sedução
poderosíssima que o código da cavalaria por si [sobre as obras: aspectos individuais e visão de
asseguraria, e das características peculiares do género, conjunto]
onde a aventura e o amor constituem traves mestras Se choviam críticas sobre a acção nefasta da ficção,
de um potencial sucesso, esse parece ter sido o dita fonte de maus exemplos e perniciosas influên-
segredo da longa vida das crónicas fabulosas.” (74) cias, os prólogos mostram-se pregoeiros de juízo
inverso. Além de que a tanto obrigava a dura
O livro de cavalarias floresceu em Portugal, até ao campanha movida por numerosos críticos, é possível
início de Seiscentos, sem que assumidos esforços que no protagonismo assumido pela questão se
de teorização lhe fossem dedicados. Desconhe- repercuta, por vezes confundindo-se com reflexos
cem-se tratados em que sobre o género se desen- horacianos, o arreigado uso peninsular segundo o
volvesse um discurso construtivo, apurando as suas qual, como lembrou Walter Pabst (1972: 184-295),
características essenciais, definindo-lhe regras e se associou persistentemente às formas narrativas
modelos, traçando-lhe uma história, situando-o uma função exemplar. Porventura mais tímida, nos
no sistema literário, enfim, estabelecendo-lhe um livros antigos, essa perspectiva ganha firmeza e
código próprio. eloquência à medida que o tempo corre e que,
Em contrapartida, em pleno século XVII, quando ao longo de Quinhentos, a teorização literária
tudo levaria a crer que o interesse pelo livro de desenvolve razões que nestes discursos acabam por
cavalarias estava em declínio, foram concebidos ser aplicadas.
dois textos de especulação poética em que o Assim, enquanto João de Barros reclama para a
género constitui abertamente objecto de reflexão: sua obra a pertinência de uma crónica, diluindo
o diálogo I da Corte na aldeia (1619), de Francisco quanto possível fronteiras entre verdade e fábula
Rodrigues Lobo, e o discurso “Do romanço e dos [...], Francisco de Morais sugere, algo titubeante,
livros de batalha e dos livros de cavalaria” que “às vezes escrituras de leve fundamento têm

22
palavras, costumes e feitos de que nace algum orientadas, que, sendo prova da capacidade de
fruto”. (123-24) renovação do género em que se integram, valem
também como sinais de mudanças (poéticas,
Subjacente ao universo cavalheiresco construido culturais, sociais, políticas), ali reflectidas, estimuladas,
em sucessivos textos ficcionais encontra-se um sonhadas. (151-52)
profundo, persistente desejo de ordem. A afirmação
parecerá paradoxal, dada a teia de peripécias, Ao oferecer a D. Sebastião o [Memorial das
enganos, aventuras, agravos e conflitos que Proezas...], Jorge Ferreira de Vasconcelos cultivou
caracteriza estas obras, mas na verdade tais sobres- com esmero a humildade convencional nessas
saltos, além de expressão do regimento do mundo, circunstâncias [...] Será digno de registo a elogiosa
constituem aqui uma necessária medida de valor. menção de qualidades do soberano, mas convirá
Nas crónicas fingidas não se compreende o bem sobretudo observar que as profissões de modéstia
sem a luta contra o mal, nem a vida sem o reverso feitas na dedicatória não escondem o orgulho do
da morte, nem a força da razão sem as tentadoras autor, flagrante na sugestão de que o Memorial
exigências da vontade; a alegria implica o contraste poderia, a seu modo, ilustrar a ciência reputada
triunfante com a dor, do mesmo modo que a paz por Aristóteles como a mais excelente: “a que
radica nas cinzas da guerra, ou que, perante o feio, ensina a fazer um bom príncipe.” [...] (155)
o belo reluz mais. E é neste constante jogo de Estas afirmações, parte da exaltação do género
tensões que o equilíbrio (ou, melhor, cada equi- que teve em Vasconcelos um dos seus mais audazes
líbrio conseguido – muitas vezes fugaz, ameaçado) mentores, ganham redobrado interesse quando se
se revela tão precioso quanto rara a sua condição verifica que na vastidão da “matéria heróica”, rica
e alto o seu preço. de possibilidades e assim apresentada como via de
[...] formação do príncipe, acho Jorge Ferreira [...]
O xadrez seria, até certo ponto, uma metáfora terreno para deixar elementos muito especifi-
feliz para representar estes livros: a bipartição, a camente respeitantes ao ofício de reinar, numa
rígida organização lúdica, que, embora traduzida opção afim à de João de Barros, que tão-pouco
numa hierarquia e num conjunto de normas fixas, havia esquecido de encarecer no prólogo a D.
permite combinatórias quase infinitas e resulta João a importância de Clarimundo enquanto
num desafio estimulante, tudo isso se poderia “figura” [...] dos monarcas portugueses. O assunto
aplicar em larga medida às crónicas fingidas, com era caro a ambos autores, decerto, e sabe-se que
a sua divisão axial entre bons e maus (por vezes, Vasconcelos terá igualmente dedicado a D. Sebastião,
mas não sempre, coincidente com a distinção entre “quando era minino” (Barreto, ms.: 674), “para a
cristandade e mourisma), com o seu repertório de sua instrução” (Machado, 1966, 11: 806), o Diálogo
tipos articulados segundo códigos nítidos, pro- das grandezas de Salomão, interlocutores Bernardo e
duzindo lances que, se geralmente previsíveis, todavia Luis, deixado inédito e hoje perdido.
não excluem a novidade e a surpresa. Reis, cava- Barros endereçou o seu trabalho a um soberano
leiros, monstros, damas, sábios, são as peças fun- com quem privava; o objectivo de Vasconcelos
damentais que se cruzam e confrontam neste seria provavelmente suscitar no Desejado a
magno tabuleiro. Entre a constância de suas carac- continuação do favor que de seu pai (presenteado,
terísticas basilares e a flexibilidade da invenção recorde-se, com uma primeira versão do Memorial)
fabulosa, abre-se um caminho que urge percorrer: recebera. Por ironia do destino, revelou-se estra-
assim se percebem mutações diacronicamente nhamente certeira a sua eleição de matéria artu-

23
riana, em particular a incógnita do paradeiro do a sua harmoniosa proporção entre homem, razão,
rei levado para Avalon após a trágica batalha Deus. Contudo, não há lugar para inquietações
onde se perdeu a flor da Távola Redonda. (156) metafisicas: a hierarquia que distingue divino e
humano é clara, e o que o autor se reserva parece
Na Crónica do emperador Clarimundo, Barros não ser o direito de tratar com desembaraçada leveza
pôde e soube apenas moldar uma visão mítica o mundo dos homens. Morais cria um universo
encomiástica das origens de Portugal: realizando ficcional como quem joga, explorando lances com
essa empresa, ergueu entusiástica leitura do presente notável liberdade crítica ou desassombrada lucidez,
e apurou ideais que o conceito periodológico de o que não deixa de lembrar estratégias lúdicas
Renascimento subsume. Alegar-se-á, eventualmente, como as que por diferentes formas Castiglione e
que falta ali a marca nítica dos clássicos, pois foi Erasmo praticaram.
decerto em textos como Amadís que João de Outras questões que o Memorial de Proezas leva
Barros elegeu o seu padrão primordial. Ao fazê-lo, a formular. Jorge Ferreira terá tentado uma
porém, recriou-os, elaborando na sua “pintura nobilitação do género através do estabelecimento
metafórica” uma exaltação da dignitas hominis que de estreitas relações com modelos clássicos (Antigos
não se errará supondo devedora do magistério de e Modernos), imitando-os em desvairados passos
Pico della Mirandola, poucos anos depois apre- da obra, que desde logo impressiona por esse
goado por frei António de Beja, na Breve doutrina alargamento de horizontes que faz do livro de
e ensinança de príncipes (1525) também dedicada ao cavalarias o texto de todos os textos.Visivelmente
jovem D. João III. Um imenso triunfo da ordem heterogéneo, o Memorial tenta a perpetuação de
– tal se apresenta o “debuxo” do futuro cronista. um ideal sem que o animem as certezas confiantes
Nele cabem um risonho hedonismo e a perse- da Clarimundo ou da ironia segura de Francisco
verante, grave busca de plenitude: com delicada de Morais: o percurso do cavaleiro das Armas
mesura, Barros gravou na fábula e, em particular, Cristalinas, na sua errância por um amor impossível,
simbolizou no herói apolíneo, uma mundividência determinado pela magia, mostra-o bem, e na
esperançada, confiante na razão e na harmonia narrativa atravessada por tensões percebe-se uma
edificada pelo homem, em serena relação consigo, visão do mundo inquieta e descrente, a que não
com os outros e com Deus. será impróprio chamar maneirista.
Bastaria cotejar a narrativa de Francisco de Morais Dados os vínculos de família que se estabelecem
com a Clarimundo para obter a prova dessa na prossecução cíclica do género, os derradeiros
diversidade na unidade que os livros portugueses Palmeirins constituem casos especialmente interes-
oferecem. Se no texto de Barros é de longe a santes. Em qualquer um deles é iniludível o relevo
longe detectável um olhar distanciado de factos e do exemplo moldado por Morais, e por isso
figuras da ficção, nada se compara ao que sucede mesmo significativas as diferenças que os distinguem
no Palmeirim de Inglaterra, onde o exalçamento dessa matriz. Se for lícito admitir uma maneira
heróico e a definição de valores se cruzam com nova de tratar um padrão, se for aceitável falar de
revelações por vezes ácidas, cruas e não raro irónicas uma imitação livre de um modelo, imediatamente
do seu reverso. Pesaria, porventura, a maturidade se destacam vários traços próprios: o gosto pela
do secretário de D. Francisco de Noronha na maravilha e o artificioso, a atenção ao desmesurado
escolha desse caminho e na representacão de e ao bizarro, o comprazimento em contrastes,
contrastes e desencantos da experiência humana. senão desequilíbrios. Lembremos que é nestas obras
A euforia da Clarimundo não se repete aqui, nem que mais reverentemente se preconiza a submissão

24
a Deus e à Igreja (reflectindo manifestamente
uma cultura contra-reformista), mas é também
aqui que à magia se confere espantoso realce;
Clarimundo:
intensa e abertamente, encarece-se a cortesia, para
noutros passos dar dramática expressão ao furor da ideologia
e à violência; o “político comedimento” pode ser
quebrado (e a raridade dos casos mais avoluma a
estranheza) pela paródia graciosa ou até por um
à simbologia
registo satírico. Sem dúvida, privilegia-se o raro, o
peregrino, o patético, e não exclusivamente pelo imperial
que se conta, mas também pelo modo como a
narração é conduzida. E nesta diversidade extra-
vagante em que convivem racionalismo e irra-
(excerto)
cionalismo, mesura e desregramento, os livros de
Fernandes e Lobato podem ilustrar o conceito EDUARDO LOURENÇO *
estilístico-periodológico de maneirismo, estimu-
lando uma reflexão sobre a história da poética em O Clarimundo não é um simples romance de
Portugal. (712-15). cavalaria, mais ou menos decalcado do Amadis,
versão idealizada do perfeito cavaleiro andante e
do perfeito amante. Sendo também isso, e em
termos exacerbados, é ainda e sobretudo uma
outra coisa: sob véu do romance de amor, ou
memorial de amor, com ares de autêntica «carte
du Tendre» para uso das formosas damas e donzelas
da corte já renascentista e romanesca de D. Manuel,
o Clarimundo é, fundamentalmente, uma alegoria
preciosa – nos dois sentidos do termo – do sonho
imperial nascente de que Portugal é o sujeito e o
objecto.
[...]
De maneira deliberada e consciente, João de Barros
apresenta o seu texto como texto simbólico «pin-
tura metafórica de combates e de vitórias huma-
nas sob figura nacional do Emperador Clarimundo»,
destinado como escreve o seu biógrafo Serafim de
Faria (1583-1655), a servir de pórtico imaginário
à verdadeira pintura do triunfo dos Portugueses
na Ásia. Há, por conseguinte, ao nível em que

* “Clarimundo: da ideologia à simbologia imperial.” In


Homenagem a J. S. da Silva Dias. Nº especial de Cultura –
História e Filosofia, 5 (1986): 61-72.

25
João de Barros se coloca, uma circularidade perfeita oferece um quadro mais profundo, por significativo
entre a pintura metafórica do seu texto cavaleiresco e assumidamente simbólico, desse imaginário. Não
e o texto da aventura real que ele tem, por assim são as páginas em que João de Barros, pela boca
dizer, diante dos olhos, a que ele integrará, a esse de Fanimor evoca em termos explícitos a crónica
título, no texto fabuloso da sua Crónica. Com real da sucessão dos reis de Portugal e das suas virtudes
efeito, Clarimundo, na sua peregrinação iniciática que exprimem melhor o sentido épico, providencial
em busca do perfeito amor e do império universal, e imperial do destino português, mas a própria
terá um dia a revelação do futuro glorioso da raça, ficção épica, cavaleiresca, mítica de Clarimundo, o seu
de que ele é, sem o saber, a raiz mítica. Esse destino arquétipo e simbólica de «luz do mundo»
conhecimento acrescentará um suplemento de que iluminam o funcionamento efectivo do
consciência e de sentido à sua aventura: «Em boa imaginário implicado na futura obra histórica de
verdade, disse Clarimundo, eu sou agora posto em João de Barros, obra em torno da qual toda a
maior cuidado, do que estes dias tinha; porque a memória do presente nacional se vai articular ao
grandeza de tão maravilhosas cousas (as futuras longo do século. Em resumo, é a ficção mitológica
proezas dos Portugueses) me não deixa cuidar em que ao fim e ao cabo sob-determina o texto-
al». -histórico, e não o contrário, pois foi aí e não
Todos os que se ocuparam de Clarimundo reduzi- noutro lado que o inconsciente da época desen-
ram a sua importância ao facto da crónica apre- rolou os seus sonhos e ritualizou as suas formas
sentar, em dado momento, através da profecia do de vida ideal.
mago Fanimor, a primeira expressão da mitificação Contrariamente à maioria dos heróis dos romances
épica do destino português, enquanto destino com de Cavalaria, Clarimundo – claridade ou luz do
vocação ao império universal. Em suma, tal como mundo – é, enquanto personagem, um ser sobre-
o autor das Décadas, o de Clarimundo só parece -humano. Não apenas porque é invulnerável e
merecer consideração como percursor da visão invencível – semelhante nisso aos heróis da «Guerra
épica e mítica da aventura cultural e espiritual das Estrelas» ou a Super-Man – mas porque é
representada pelos Lusíadas. Em termos de mito- pré-destinado ao Amor perfeito e à glória suprema
logia literária, a exegese pode defender-se, mas ela do Império. João de Barros atribui-lhe um destino
deixa de lado o essencial, que é bem menos esse que encantaria Marthe Robert: filho do Rei,
papel antecipador em matéria épica que a função Clarimundo é trocado no berço por um outro,
determinante de Clarimundo enquanto fonte e em seguida abandonado e recolhido por Moisés
espelho do imaginário de uma época, e a esse por uma nobre Dama, junto de uma fonte,
título, base efectiva e afectiva em torno da qual recebendo então o seu primeiro nome críptico:
se organiza a leitura épica da aventura histórica Belifonte. Adolescente, percorrerá o mundo para
das descobertas e conquistas. [...]. Foi a partir da cumprir o seu destino de cavaleiro errante. Depois
encenação do imaginário da sociedade dos fins de peripécias numerosas em que a sua vida periga
do século XV e dos começos do século XVI que menos que a sua alma, tão solicitado é por prin-
se organizou a leitura épica da realidade nacional cesas mais sensíveis aos encantos da sua beleza que
que conduzirá a Os Lusíadas. E nenhum texto, à sua valentia, Clarimundo é, enfim, reconhecido,
mais do que o de Clarimundo, escrito por um graças à marca impressa no seu peito: uma chaga
jovem cortesão no coração mesmo da corte e da incurável, chaga de amor que só o Amor mesmo
sociedade em que se elabora a justificação ideo- pode curar.Vencedor de todos os maus cavaleiros,
lógica e espiritual da prática histórica e política, renegados, monstros que povoam as páginas do

26
romance, Clarimundo confessar-se-á vencido diante de conquistar uma a uma as moradas misteriosas
do cavaleiro misterioso de que não conhece ainda que possuem cada uma o nome de uma virtude:
o poder irresistível e que não é outro que o Fé, Esperança, Caridade etc. e cujo conjunto se
próprio Amor, revestido de signos e de uma chama a Casa Perfeita. Antes do combate com os
armadura onde já se reflecte mais a face radiosa defensores desta casa, último obstáculo iniciático,
e perturbante do jovem Renascimento que a o Cavaleiro das Lágrimas é recebido por um coro
clássica alegoria medieval. Clarimundo, o romance, de vozes que anunciam e confirmam o seu futuro
é uma iniciação amorosa, de cores quase neo- glorioso: «Bem-aventurado te deves cavaleiro
-platónicas. Clarimundo enamorar-se-á primeiro, chamar, pois a divina providência te criou para
perdidamente, por uma imagem ideal – de certo princípio de cristianíssimos e poderosos reis». Já
modo, a ideia de Beleza, tão presente ao longo do em passagem anterior tinhamos tido, no momento
livro – imagem que tomará em seguida os traços em que Clarimundo tenta tomar o Castelo das
de Clarinda (beleza e claridade-luz do mundo no Virtudes, uma ideia do «galardão» quer dizer, da
feminino), filha mais velha do imperador de Cons- promessa reservada àquele que afrontasse com
tantinopla. Mas não se merece uma tão alta recom- sucesso a prova suprema: «antes que entrasse, olhan-
pensa sem franquear obstáculos de todas as ordens, do em cima do portal, viu uma imagem de um
tentação de novos amores, provação do esque- cavaleiro mui temeroso, que sustinha a redondeza
cimento infligida por Farpinda, beleza abandonada do Mundo sobre as costas, da maneira que pintam
pelo cavaleiro fiel, esquecimento de que será liberto o grande Hércules, e pela zona do meio daquela
pela intervenção sobrenatural do mago Fanimor, esfera e redondeza, estavam umas letras em grego,
espécie de deus «ex-machina» do romance. É a ele que diziam: «Esta parte, e as outras duas contrárias
que o narrador confia a missão de conduzir o a ela, obedecerão àquele que me há-de vencer».
herói, sem que ele o saiba, através de todas as O Cavaleiro das Lágrimas, atento à mensagem,
peripécias para um fim premeditado e feliz: o compreendeu «que aquele que em saber e forta-
casamento de Clarimundo e de Clarinda, pais de leza vencesse a Hércules, este venceria e dominaria
Sancho que por sua vez será o pai de Henrique as outras partes do Mundo não conhecidas, que
de Borgonha, fundador da casa real portuguesa. são as duas frias e a outra em extremo quente».
Assim, sob a forma romancesca e mítica, João de Mais tarde virá e, tempo em que o Cavaleiro
Barros dá corpo a duas lendas genealógicas que entenderá «claramente o que isso significava e
se referem ao herói fundador da nossa pátria: outras muitas coisas que estavam na ilha».
aquela que o faz proceder da Hungria (e que Estamos assim preparados para o episódio central
Camões reitera…) e aquela que o faz descender de Clarimundo, a profecia e a visão de Fanimor
dos imperadores gregos. A grandeza nascente de que João de Barros trata na segunda parte do
Portugal, nunca parco em sonhos, exigia ou romance. O Mago faz aportar Clarimundo em
postulava então esta genealogia imaginária e terras que serão mais tarde as de Portugal, depois
grandiosa. [...] de o ter curado do estranho esquecimento de si em
É no fim do primeiro livro que João de Barros que o tinha mergulhado o ciúme de Farpinda
dá livre curso à sua inclinação alegórica, incum- «ferida, escreve Barros, daquele que faz esquecer
bindo Clarimundo, então Cavaleiro das Lágrimas honra, fazenda, ódio, inda que seja maior do que
Tristes, depois da sua derrota em face do Amor ele tinha a Clarimundo, mas não que soubesse ser
e do encontro da imagem amada, pintada num ele». Este episódio, aliás, o do Cavaleiro sem Cuidado
pano trazido por uma mensageira desconhecida, é um dos mais originais do romance e faz de

27
Clarimundo uma espécie de Hamlet prisioneiro bem menos do que a unção, por assim dizer mística
voluntário da sua loucura. Na primeira parte do que respira todo este capítulo IV do terceiro livro
romance, Fanimor enviara a Clarimundo um e os seguintes. Clarimundo não pode ouvir a
escudo pintado, tendo no centro uma ilha escon- evocação destes esplendores, sem antes se libertar
dida por nuvens, alegoria do Império do Mar, de todas as impurezas terrestres e o próprio
ainda por vir. Agora, na última parte, fá-lo passar Fanimor se reveste da túnica, sacerdotal: «E para
pelos Açores e aí lhe anuncia que um dia estas cousas tão altas, como vos são prometidas, e que
ilhas pertencerão a um senhor do seu sangue. É do consistório da Sacra Trindade vêm forjadas,
nesta ocasião que Barros se refere com insistência cumpre despedirdes de vós todas as lembranças, e
à figura mais misteriosa da sua narrativa, àquele cuidado, que vos podem turvar o juízo, e terdes
que ele chama o filho do leão altivo e da doce consciência mui casta e limpa para as ouvir. E
cordeira, que, em princípio, só pode ser o Infante começarei a contar das obras do vosso neto (D.
D. Henrique: «não se sabe quem será aquele filho Henrique) até onde Deus quiser». É escusado
da mansa cordeira, e bravo leão, em cujo tempo repetir a mais célebre passagem de Clarimundo, na
(a ilha) será descoberta», escreve ele; «porém se eu qual, toscamente apenas, se viu inspiração para Os
ousasse, e as minhas palavras tivessem muitas cãs, Lusíadas futuros. Mas aqui, neste lugar (Tomar)
elas abririam este coração onde jazem algumas seria imperdoável não lembrar o comentário de
cousas que sente, e a tenra idade não quer que que João de Barros acompanha a evocação épica
diga», acrescenta obscuramente Barros. de D. Dinis. Como em nenhum outro, e não será
Só à vista da futura terra de Portugal, no sítio por acaso, aqui apercebemos, de uma maneira
onde mais tarde se elevará Sintra é que Fanimor clara, a passagem da ideologia e da mística cavaleirescas
elevará o tom e nós entramos então no plano da à sua expressão militante, conquistadora e já imperial.
profecia épica: «Esta é a mãe de todo o esforço, «E porque o seu desejo será sempre ocupado na
que dará seus filhos para o reparo do sangue de destruição de Mafamede (Mahomet), e no exal-
Cristo, chamado o Monte da Lua, o qual nome çamento da Fé de Cristo, ordenará uma Ordem
antes de pouco tempo perderá, chamando-se a Sagrada e Militar; os membros da qual, para serem
Roca de Sintra, para enquanto o mundo durar; conhecidos entre os outros homens, trarão nos
e não ficará parte nele, que o não saiba, assim peitos um sinal de sangue, como aquele que para
como aquele que os sinais desta terra terá tão a nossa redenção foi ordenado». Com a sua chaga
vivos, que nunca os perderá dos olhos; a qual roca em pleno coração, o que é Clarimundo senão o
é mostra do reino de Portugal, que em linguagem arquétipo do Perfeito Cavaleiro de Cristo?
Sítica quer dizer Todo Bem». É nessas circunstâncias [...]
que ele oferece a Clarimundo as suas armas de
um verde alegre, com arminho branco sem outro
signo e no escudo em campo verde a Saudade
pintada, tão triste e chorosa, como a dos que
muito amam, o que alegrou Clarimundo por ser
tão própria para o seu estado. Nós diríamos, ao
nosso estado, de Portugueses… No fundo, o
conteúdo real da profecia de Fanimor, relem-
brando e nomeando as diversas descobertas e
conquistas do futuro Império Português, importa

28
Proto-história mas fisicamente debilitado e abatido pela dor que
lhe causara a morte do filho, caído na guerra
contra os Turcos, aceita a ajuda que lhe é ofere-
dos Palmeirins: cida por um cavaleiro andante para se defender
dos inimigos que lhe assediam de perto o território.
O cavaleiro cumpre dignamente a incumbência,
A Corte de desbaratando os infiéis e ascendendo ele mesmo
por fim ao trono bizantino, após ter desposado a

Constantinopla bela filha do monarca do Oriente.


A nacionalidade do cavaleiro é importante para a
interpretação ideológica dos textos. Nas canções
do Cligès de gesta, é naturalmente francês ou, pelo menos,
ocidental. A história secular das relações entre o

ao Palmerín Império Bizantino e o Ocidente oferece mais de


um caso que, uma ou outra vez, poderia ser
apontado como ponto de partida para o nasci-
de Olivia mento da lenda. De resto, todo o topo, tal como
o esquematizámos, mostra uma estratificação à
base de elementos históricos. Nas páginas que se
(excerto) seguem teremos ocasião de indicar os principais.
Mas o que aqui interessa para a interpretação do
motivo e do seu uso em textos de glorificação
LUCIANA STEGAGNO PICCHIO *
nacionalista ocidental é a oposição Ocidente –
Oriente, exemplificada na relação cavaleiro ocidental
[...] – Corte de Constantinopla, e na explícita superio-
Que a Constantinopla histórica forneceu mais de ridade do Ocidente, que traz consigo a solução
um material à própria lenda, está fora de dúvida. final desta «literatura de cruzada». [...]
Mas é entretanto certo que essa mesma, lenda, na Género por excelência heterogéneo, os romances
qual confluem materiais pertencentes a diversas de cavalaria ibéricos dos séculos XV, XVI e XVII
épocas da história da cidade, em breve cristalizou representam com efeito a junção, numa nova fór-
num topo literário e nessa qualidade penetrou mula literária, de elementos próprios de diversas
nos romances de cavalaria. ibéricos de Quinhentos. tradições estilísticas. O favor de que gozou a
Na sua forma mais esquemática, a «fábula», no narrativa cavaleiresca e a sua resistência, ao longo
sentido formal do termo, apresenta-se, entre o do tempo, aos ataques de uma crítica nascida
século XIII e o século XVI, nos termos seguintes: quase conjuntamente com ela, porém incapaz, não
no enquadramento da cidade «soberana entre todas obstante a sua subtileza, de suster-lhe a difusão,
no mundo», um velho imperador, investido da fornecem a prova histórica da felicidade desta
suprema autoridade espiritual e temporal na nova fórmula, bem como da sua contínua capaci-
qualidade de herdeiro do trono de Constantinopla, dade de adaptação às exigências de largos estratos
da sociedade sua contemporânea. A incorporação
* In A Lição do Texto. Filologia e Literatura. 2 vols. I – Idade dos diversos materiais não se realiza no entanto
Média. Tradução Alberto Pimenta. Lisboa: Edições 70, 1978. sempre da mesma maneira. Se os heróis protago-

29
nistas partilham de um ideal humano de tipo Presbyter» da tradição medieval, rei-sacerdote,
renascentista, o ambiente pode manter aspecto senhor de riquezas fabulosas e de um vasto império
tradicional. Isto, de resto, sucede intencionalmente; cristão do Oriente, o qual, a partir de Quatro-
de modo que o próprio emprego de modelos centos, tende na Península Ibérica a localizar-se
estilísticos antiquados é efectuado com uma cons- cada vez mais não já na Ásia (ou seja, no Gog e
ciência nova que leva ora a frisar ironicamente o Magog de Marco Polo, ou na Índia nestoriana),
dado convencional, ora a recuperá-lo com delibe- mas sim na Núbia e na Etiópia.
rada função polémica: tal como em certos quadros As rápidas anotações históricas, os episódios mar-
de Quatrocentos e de Quinhentos, em que as ginais, as descrições de lugares, vão buscar porém
personagens de primeiro plano são delineadas alimento a outras fontes: sobretudo a livros de
segundo os cânones estéticos da época, enquanto viagem, onde a específica experiência ibérica, o
a paisagem em torno mantém a sua curiosa fixidez directo conhecimento de países longínquos, de
arcaica. Outras vezes, a inovação dá-se na periferia, aventuras marítimas, matiza cada episódio de um
no particular, enquanto o tema central reflecte o realismo peculiar, muito seu. [...]
cliché fixado pela tradição: tal como (e eis como A 29 de Maio de 1453 caíra o último Constantino,
uma vez mais se mostra atraente o confronto com de arma na mão, como quer a lenda, defendendo
o que se dá nas artes figurativas) em certos retá- a capital do Oriente do assédio dos Turcos. A
bulos, onde a Virgem, o Cristo e os Santos centrais entrada de Maomé II em Constantinopla encerrará
repetem antigos modelos estilísticos, e o dado a história daquele império bizantino que, havendo
novo, as observações recentes se refugiam às orlas, sobrevivido de mil anos à queda de Roma, não
na paisagem, nas cenas menores do soco. só pudera arvorar-se constantemente em herdeiro
O tema da Corte de Constantinopla chega aos e continuador desta, mas igualmente fazer-se centro
romances de cavalaria catalães, espanhóis e portu- de uma nova civilização cristã, educadora do
gueses do Renascimento pelas costumadas vias da Oriente, eslavo e asiático, capaz de por sua vez
cultura ocidental, de modo que os protagonistas, restituir ao Ocidente os fermentos elaborados de
os Amadises, os Palmeirins, podem retomar a uma tradição cultural que não chegara a ser
fisionomia de heróis (franceses quase sempre) que quebrada.
se assinalaram na gesta do ultramar: por exemplo, Para os autores do Tirant, dos Amadises e dos
de Henrique, filho de Oliva, cujas aventuras, já Palmeirins vindos depois da conquista turca deixa
difundidas em Castela, nos começos do séc. XV, pois de se tratar de tomar posição numa «querelle»
tinham justamente como episódio central a defesa Ocidente-Oriente, sobre a qual os acontecimentos
de Constantinopla dos ataques turcos e a ascensão de 1453 haviam vindo pôr uma pedra. No campo
ao trono do Oriente, depois dos esponsais com a cristão não existem agora duas autoridades nas
formosa filha do Imperador. Por seu lado, dentro pessoas dos imperadores romanos do Oriente e
do mosaico ideal em que se encastoam, as per- do Ocidente, formalmente associados na luta contra
sonagens orientais podem assumir um vulto nobre os infiéis, no fundo porém, rivais preocupados em
ou vicioso, em ambos os casos, porém, carregado afirmar a própria superioridade, material e espi-
sempre da história que a lenda «bizantina» empres- ritual, sobre o adversário. No novo equilíbrio
tara no decurso de séculos aos súbditos de Bizâncio. mediterrânico que a entrada dos Turcos em
Confluem, no mito do Imperador de Constan- Constantinopla determinara, as posições, se assim
tinopla, motivos elaborados na senda de outras se quiser, são mais claras, e a querela Ocidente-Oriente
lendas: da do Prestes João, por exemplo, o «Johannes de novo se reduz à oposição entre mundo cristão

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e mundo islâmico. Trata-se de uma relação em Os autores ibéricos que herdam este topos dos
que a Espanha dos Reis Católicos desempenha, romances e das canções de gesta precedentes já
agora, um papel de primeiro plano, de modo que lhe não sentem o espírito polémico, a «razão» que
os monarcas espanhóis podem apresentar ao estivera na base da sua aceitação. Adaptando-o às
mundo o desfecho da reconquista como a última suas narrativas, e inserindo-se nelas com uma
e a mais frutuosa das Cruzadas, e podem exibir fidelidade formal, destinada a permitir a fruição
Granada, recuperada em 1492, como compensação de todo o pormenor ou de todo o cambiante
para a cristandade após a perda de Constantinopla, histórico, sentem-se na obrigação de lhe encontrar
entretanto ratificada por quarenta anos de silêncio. uma nova «razão»: encontrá-la-ão no maravilhoso
É neste clima que nascem os novos livros de oriental, no desejo de novamente se apossarem
cavalaria ibéricos e nascem justamente destes pelo conhecimento daquele mundo que os recentes
impulsos ideológicos e para satisfazer este novo êxitos turcos haviam tomado ainda mais longínquo
espírito de missão, de que os Espanhóis se sentem e problemático. Dentro desta nova dimensão
agora investidos: de forma que a sua luta privada narrativa, Constantinopla torna-se o ponto de
e secular contra os Mouros da casa se transfere partida para a aventura oriental, para o conheci-
para o Mediterrâneo, ao serviço da cristandade mento in loco dessa civilização «moura» que séculos
inteira. Assim se revela lógico que, nos novos de convivência em terras de Espanha haviam já
romances, ao cavaleiro arturiano, pronto em todo singularmente aproximado, na sua modalidade de
o momento à aventura como à ocasião capaz de exportação, da civilização ibérica. Sentimentos opos-
aumentar o mérito individual do herói, venha tos guiam os autores dos novos romances de
sobrepor-se o cavaleiro católico, contaminação dos cavalaria no que toca à descrição de terras e de
ideais arturiano e carolíngio, disposto esse também costumes dos Infiéis, acontecendo que o espírito
à aventura que possa ainda apresentar-se-lhe com de Cruzada, que vê no Turco o inimigo, se associa
laivos de maravilhoso, pondo-lhe pelo caminho a uma compreensão feita de experiência que pode
monstros, anões e princesas encantadas, porém chegar a tomar cores de «maurofilia». É o que
mais compenetrado da sua moral de cristão, mono- acontece, veremos, no nosso Palmerín de Olivia.
gâmico até à descortesia (Amadis-Briolanja), e Com o fim de uma classificação de textos, o
sobretudo mais cônscio do facto de que o seu motivo da Corte de Constantinopla pode assumir
inimigo natural não é, em geral, o cobarde e o no caso dos romances de cavalaria ibéricos carácter
desonesto, o opressor de viúvas e de donzelas, mas decisório. Conforme intervenha ou não na trama
o Turco ou, lato senso, o Mouro, o Infiel. e de acordo com o relevo que lhe é dado, assim
Daí que o velho motivo da Corte de Constanti- a narrativa caberá mais num ou noutro ramo da
nopla adquira também nova qualidade. Exaurido família, com todas as consequências estilísticas que
o tom polémico, para os autores de romances de a escolha implica.
cavalaria ibéricos, Constantinopla passa a ser apenas Cavaleiros andantes no sentido mais rigoroso do
um mito: um mito com o qual infelizmente é termo, os protagonistas dos livros de cavalaria
inútil medir-se e do qual, esfumados em indeter- deslocam-se com extrema facilidade de Londres a
minação as premissas reais, qualquer narrador pode Bizâncio, de Paris às costas berberes do Mediter-
reconstruir livremente a fisionomia, ancorando-se râneo. Mas a agulha do seu destino individual está
em meia dúzia de elementos da autêntica história, sempre voltada para Ocidente, ou para Oriente,
entretanto porém, petrificados pela literatura como para os tronos de Artur e de Constantino, que
atributos supra-temporais. representam os dois pólos magnéticos de duas

31
tradições históricas e literárias diversas e opostas.
Quando o herói gravita em direcção do trono de
Bizâncio, o romance assume aquelas cores ocidentais
que caracterizarão todo um ramo desta narrativa:
e é aqui que se situa o nosso Palmerín de Olivia,
cujos episódios se desenrolam ao longo do fio de
uma progressiva tomada de consciência, por parte
do herói, da sua própria identidade e da conse-
quente auto-identificação com o Imperador de
Constantinopla. No romance, este simboliza não
só o mais alto poder temporal e espiritual, mas
também a ligação com o mundo árabe e turco
por um lado, com o mundo eslavo por outro,
senhor de um lugar em que os antagonistas,
irredutíveis por exemplo no Mediterrâneo oci-
dental, podem chegar a transformar-se em convi-
vência, se não em mútua compreensão. Quando,
pelo contrário, o herói pende para o Ocidente,
acentua-se menos a abertura a outras concepções
de vida, os princípios cavaleirescos são mais rígidos,
de estrita ortodoxia francesa. [...]

32
T E X T O S
L I T E R Á R I O S

33
34
sua linguagem no seu fariam: porque a ele escolheu
Crónica Deus para origem dos reis de Portugal, donde Vossa
Alteza havia de descender (como adiante neste Pri-
do Imperador meiro capítulo se dirá.)
E porque sòmente os Húngaros e Gregos de suas
memoráveis façanhas tinham lembrança, (pelas em sua
Clarimundo* linguagem terem escritas,) quis trespassar esta primeira
parte de sua Crónica em a nossa Portuguesa, porque
a nós suas cousas também públicas fossem, pois nos
JOÃO DE BARROS tocam pela parte que dele recebemos: que foram tão
cristianíssimos e poderosos reis, como os Portugueses
têm alcançado, (sendo primeiro da Suma Potência
[...] concedido.)
Digo isto, preclaro Senhor, porque entre alguns alemães,
e estrangeiros, que com a Rainha nossa Senhora a estes
reinos de Portugal vieram, foi Carlim Delamor (homem PRÓLOGO
fidalgo, e bem douto em todas as cousas que a tal pessoa
convinham.) E como as suas me contentavam, trabalhei feito depois desta obra impressa. Ao mui
por alcançar dele sua conversação e amizade. E alto, e poderoso Rei D. João III, deste nome,
conhecendo ele isto de mim, deu-me tanta parte dela, por João de Barros, seu criado
que satisfez a meu desejo. E enquanto nestes reinos
esteve, entre muitas cousas de passatempo que neste E ele me fez dispor os dias passados para servir Vossa
tínhamos, era contar ele as grandezas dos Imperadores Alteza na trasladação desta Crónica. E sabendo isto de
de Alemanha e Constantinopla, com tanta ordem, e mim, usastes tão liberalmente comigo, dando-me a isso
concerto, que parecia ter o próprio original delas na favor, que em espaço de oito meses acabei de a trasladar.
memória. E as que ali lustravam em mais admiração Da qual a Vossa Real Casa leva a maior glória: porque
e grandeza, eram do Imperador Glarimundo, que, ela foi o claro estudo em que toda minha vida empreguei.
segundo são maravilhosas, fazem presumir, serem mais E por cima das arcas da vossa guarda-roupa, pùblica-
favor de escritores, que verdadeira relação da verdade. mente, como muitos sabem, sem outro repouso, sem
Porém, pois das antigas cousas não temos outra certeza, mais recolhimento, onde o juízo quieto pudesse escolher
é necessário darmos-lhes tanta fé, quanta nos elas as cousas que a fantasia lhe representava; fiz o que meu
testificam. Quanto mais que a experiência das nossas amor, e vosso favor ordenaram. E como colhi este fruto,
presentes autorizam todas as suas passadas. E quem mais temporão do que devera, mandei-o imprimir. No
nesta verdade duvidar, ponha os olhos na grandeza das qual tempo por vontade da Suma Potência, recebestes
obras del-Rei vosso padre, e desfará a roda do pouco o real ceptro digno de Vós, e Vós muito mais dele. E
crédito que a todas as outras der. este cuidado de governar, reger, e prover todas as
E já no tempo deste não menos Cristianíssimo que particularidades de vossos Povos, e Reinos, me fizeram
esforçado Príncipe, mostrava uma figura do que os de estimar em muito o que tinha começado. Porque quando
lho dirigi no seguinte Prólogo, as menos ocupações que
então tinha, lhe faziam tomar alguma para emendar
* Crónica do Imperador Clarimundo. Prefácio e notas por meus erros. Mas agora na segunda mão, que é a mais
Marques Braga. 3 vols. Lisboa: Sá da Costa, 1953. trabalhosa, conhecendo a fraqueza de meu estilo, e a

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grandeza de Vosso Real Estado, fizeram-me duvidar o porque no terceiro livro desta parte se manifesta mui
que faria: se perder o gasto que tinha feito na impressão, claro, e por extenso, as cousas do pai de D. Henrique,
entregando o meu trabalho ao fogo, ou sair à luz com e as suas, e a razão por que veio a estes reinos de
ele. Espanha, se deixa aqui de to-car. Sòmente digo, segundo
[...] o que nestas partes vi, que D. Henrique era neto de
Clarimundo (as grandezas e obras do qual, neste volume,
Concordância que o trasladador faz entre com tanto louvor e glória sua se manifestam,) que foi
dois cronistas, sobre a vinda de D. Henrique rei de Hungria, por falecimento de Adriano seu pai: e
a estes reinos de Espanha, e sobre a sua por parte de Clarinda, sua mulher, herdou o Império
genealogia. de Constantinopla, ao qual sucedeu nestes dois senhorios
D. Sancho, seu filho, pai de D. Henrique. Assim que
Ainda que isto seja fora da ordem e princípio desta não sem causa diz una cronista que veio de Constan-
crónica; por ser mui necessário à trasladação dela, me tinopla; e outro, que era natural de Hungria, pois seu
pareceu cousa justa e devida, tocar aquilo de que tem pai neste tempo estes dois tão grandes senhorios governava,
necessidade, porque aqueles que as crónicas dos reis de e possuia.
Portugal e Castela lerem, não tenham alguma dúvida,
em que fossam embicar.
Digo isto, forque segundo Duarte Galvão no Princípio
PARTE I
da Crónica que del-Rei D. Afonso Henriques compôs
(Primeiro deste nome em Portugal) contando
da vinda de D. Henrique, seu pai, no tempo del-Rei CAPÍTULO III
D. Afonso de Castela, que Imperador de Espanha se
chamava, diz ser este D. Henrique segundo génito Como o príncipe Clarimundo foi dado a
del-Rei de Hungria, e de uma irmã do conde D. criar à condessa Urbina, mulher do conde
Reimão de Tolosa, que com o conde D. Reimão de São Drongel, e do que lhe nesta criação acon-
Gil todos juntos a estes reinos de Espanha vieram. E teceu.
Mossem Diogo de Valera na sua Valereana tem o
contrário, dizendo como D. Henrique era natural de Neste tempo que o príncipe nasceu, criava a
Constantinopla, e que servindo na guerra a el-Rei D. condessa Urbina, mulher do conde Drongel, um
Afonso de Castela, fazendo obras dignas de tal galar- filho que seria de dois meses, e porque era o
dão, lhe dera sua filha Tareja por legítima mulher, e, primogénito, não no quis dar a criar a ninguém,
em dote, as terras que então em Portugal aos Mouros se não aos seus peitos. E el-Rei vendo a sua
eram tomadas, como se mais largamente na crónica disposição para em tal caso a encarregar, e lem-
del-Rei D. Afonso mostra. brando-lhe os serviços tão assinalados que do
Pois parece nesta contrariedade da pátria, e natureza de conde na frontaria dos Turcos tinha recebido,
D. Henrique, que estes dois cronistas discordam, e quem onde por sua indústria e esforço tomara muitas
não souber a razão que ambos tinham para fazer esta vilas, lugares e algumas cidades fizera tributárias,
diferença, não sei como isto julgarão. Porém, pois nos de que não pequena renda cada ano, mas mui
Deus trouxe em nossos tempos História por onde grande e honrosa alcançava, quis-lhe pagar estes
fôssemos certos da genealogia deste bem-aventurado D. serviços, e assim os do dia passado, dando-lhe o
Henrique, primeiro fundamento da Casa de Portugal, príncipe para que sua mulher o criasse, e ele fosse
poderemos dar razão a quem dela tiver necessidade. E seu aio, depois que idade para isso tivesse, crendo

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com quanto cuidado e amor destas duas tão E revolvendo muitas cousas na fantasia, achou que
nobres pessoas havia de ser criado. este era o melhor remédio, que por em tanto
Com a qual mercê o conde ficou mui satisfeito, podia ter, até buscar outro mais seguro. E com esta
por ela em si ser de tanto preço, que vencia o determinação foi-se mui passo onde Urbina tinha
merecimento de seus serviços, e pudera ser galardão o príncipe, e despiu-lhe os vestidos com que
de quantos lhe neste mundo tinha feito. estava pensado, e pensou com eles a Filinem o
Mas a sua ventura ordenou o contrário do que mais apressadamente que pôde, e assim pô-lo à
ele esperava, e foi bem desviada de seu pensamento ilharga da cama, porque cuidasse a condessa o
a criação deste príncipe porque entre algumas que depois verdadeiramente creu.
turcas, que a condessa em sua casa trazia, eram três E acabada esta troca, tomou o príncipe nos braços
filhas de Biscarnão, fronteiro-mor do gram turco, e foi-o pensar na sua câmara, e então lançou-se
as quais Drongel cativou, e estavam em sua casa a dormir, como aquela que não fizera cousa por
tidas naquele estado e reputação, que a filhas de onde perdesse o seu sono. Porém ela, contudo,
tão grande senhor convinha. tinha tão pouco descanso, quanto os culpados
E a mais velha, que Fainama se chamava, vinha com seus erros têm.
prenhe de seu marido, com quem pouco havia
que casara, e em casa da condessa pariu um
menino, que não durou mais de três meses, e o
CAPÍTULO IX
amor que lho tinha, porque em alguma maneira
se parecia com Filinem, o filho da condessa,
Como se apresentaram diante do imperador
converteu nele. Donde se causou que o serviu
seis cavaleiros anciãos; e por causa da nova
com tanto cuidado e diligência, que quando a
que deram se partiu Clarimundo em socorro
rainha entregou o príncipe à condessa, não quis
da Ilha Deleitosa, com a flor de todos os
ela que outrem criasse seu filho, senão Fainama,
por este amor que nela via, e por ter mui cavaleiros da corte, e da fala, que antes de
maravilhoso leite, além de seu aviso e fidalguia. E sua partida com Clarinda passou.
a este tempo seria já o menino Filinem de dois
meses, e ainda que os levava em idade ao príncipe Com esta vinda de D. Dinarte renovou o impe-
não no parecia, porque assim como o Deus rador as festas, nas quais continuadamente fazia
engrandeceu nas outras perfeições, assim ao tempo mui grandes mercês, por atrair não sòmente aos
de seu nascimento lhe deu um corpo, que parecia seus naturais em amor, mas ainda aos estrangeiros
criatura de mais dias. em seu serviço. E porque algumas cousas do
E tornando a Fainama, que já estava tida por ama, império estavam mal ordenadas, por haver tempo
e tão contente, que em alguma maneira esquecia que se nelas não provera, fez tudo de maneira que
a morte de seu filho e desterro de sua pátria, foi proveito do povo e honra de seu Estado,
aconteceu uma noite que descuidando do menino principalmente nas da guerra, porque havia alguns
Filinem encostou-se na cama sobre ele, e com o vassalos, que com desejo de novidades, trabalha-
peso do corpo, quando acordou, vendo que o vam pelo anojar, favorecendo el-Rei de Bitinia o
tinha afogado, com muitas lágrimas começou a el-Rei Escremol, que eram grandes senhores em
maldizer sua ventura. E com esta paixão cuidava Turquia, com quem ele de contínuo tinha guerra.
o remédio para se salvar de tamanho perigo, Em ajuda dos quais eram muitos gigantes, que
como lhe estava aparelhado, se a condessa visse senhoreavam a maior parte das cidades; e por esta
morto aquele filho que tanto amava. causa proveu o imperador nisso antes que a

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necessidade o obrigasse (porque quando ela nestes, Clarinda, porque lhe pareceu o que era, e que
e em outros casos chega, sempre o remédio é não ousava falar com receio de não ser ela, disse
trablhoso, e mal ordenado). [...] com um alto: – Alderiva, toma lá essas contas.
E além destes, foram outros estrangeiros por causa – Senhora, respondeu ele, se as deixais para as
das mercês e honra, que do imperador tinham tomar de meu mal, e vossas obras, assaz de bem-
recebido, e assi, pela conversação de Clarimundo. -aventurado me fará com tal galardão; mas não
E porque a este tempo andava ele já mais creio que bem de tanto bem sentirá esta alma,
favorecido de Clarinda, atreveu-se Filena a lhe imortal nas penas, que a têm abrasado, e na fé
pedir que o ouvisse de noite por uma fresta de de sua tenção; e vosso merecimento, e minha
sua câmara, que sobre o laranjal da imperatriz desaventura contrária às cousas, que me podem
dava. E passando sobre isto com ela muitas razões descansar, me fazem incerto desta glória. E pois
escusando-se de o fazer, contudo tiveram as palavras tantas cousas tenho por inimigas, e vossa con-
de Filena tanta força, que a fez conceder nisso. E dição, que o confirma, que remédio pode esperar
concertada a hora em que havia de ser, a noite este triste em sentir, e contente em padecer? Mas
antes de sua partida levou Clarimundo a Carfel, que me aproveita este contentamento, pois mo
que o ajudou a subir por um quebrado da parede negais não consentindo que seja vosso, porque
do laranjal, e depois que foi dentro subiu-se em sabeis que com tal lembrança algum tanto
sustentaria meus males? Ó males tão mal
um loureiro que diante da janela estava tão perto
merecidos, que vos farei, ou que faremos, pois
que colhiam de cima os ramos. E como a este
quem vos causa, mostra que vos não sente?
tempo a Lua se esforçava em sua claridade, e o
– Não creais, Clarimundo, respondeu ela, que tenho
Verão com suas flores, estava tudo tão gracioso
tão fraco juízo, que não saiba julgar quanto neste
naquele fresco jardim, que lhe parecia a Clarimundo
tempo se perde de minha fama, e vós cobrais de
nele consistir toda a bem-aventurança; porque de
glória, pois não soube resistir a vossas importu-
uma parte a harmonia dos rouxinóis e da outra
nações, que causaram pôr-me naqueste lugar, não
o tom das águas, que por meio do jardim corriam, para mais, que para vos dar o desengano de vosso
com o meneio das árvores se concertava uma tão engano (ainda que jagora eu estou mais enganada
suave música, que todas as outras à vista dela nisto que faço) porém a tenção me salva; e porque
perderiam seu gosto; e o que anais espertava a já nesta detença de palavras acrescento em meu
Clarimundo era a certa esperança de falar com o dano, peço-vos que não queirais mais o que fingis
segredo de sua alma. querer, pois tanto me mata, e a vós não aproveita.
E estando nesta contemplação metido entre as – Ó desaventurado, disse Clarimundo, de quem tais
ramas do loureiro, que assombravam toda a janela, cousas ouve e sente, pois no fim delas o não vê de
viu estar a câmara com uma claridade cega, como sua vida! Que direi, ou que invenção de palavras
que tinham a vela escondida, e tendo nisto o sen- dirá a novidade de meu mal inventado com novas
tido, ouviu a Clarinda, que chegava à janela rezan- penas para minha destruição? Não sei, senhora,
do por umas contas, e algumas vezes deixava cair porque com tal galardão despedis minha fé, contente
uma, e outras erguia a voz, porque soubesse de me matardes. Peço-vos que olheis, que não
Clarimundo que estava ali, e como ele a conheceu, posso com tantos males, nem tenho parte onde os
saltou-lhe tamanho tremor nas pernas e em todo pôr, senão na vontade que nunca se contenta com
o corpo, não ousando de lhe falar, que fez tremer quantos lhe fazeis, antes é cobiçosa de mais.
o loureiro. Pois quem negar que a este tempo Clarimundo

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não estava banhado em lágrimas, bem lhe podemos A estas palavras chegou Clarimundo tremendo, e
chamar herege de amor, e como elas atraem os tomou-lhe uma manga da camisa, que estava fora
corações por duros e livres que sejam, tiveram das grades, e beijou-a mil vezes, porque mais não
estas tanto poder, que começou Clarinda a abran- ousava, dizendo tantas piedades, que Clarinda estava
dar-se, dizendo: tão vencida, quanto ele de contente.
– Senhor Clarimundo, bem creio que vossas cou- Mas a bondade desta senhora impedia e refreava
sas são tão verdadeiras como dizeis, porque de tal todas as cousas, que à sua honra eram contrárias,
pessoa não se pode menos esperar. Mas que farei, e isto que fez era com fundamento virtuoso, lem-
que descansando-vos a vós, me condeno a mim? brando-lhe a valia, sangue e senhorio que Clari-
Pois se isto assim é, para que vos quereis vingar mundo tinha; e por esta causa lhe quis dar tal
de quem vo-lo não merece? Não será melhor contentamento. E havendo já grã pedaço que
negardes à vontade o desejo, e ficareis descansado, ambos estavam nesta bem-aventurança, despe-
e eu livre de bocas maldizentes? Porque não diram-se com diversos contentamentos, porque
considerais o lugar onde estou, e a pessoa do Clarinda, tanto que se recolheu, começou a dizer
imperador e a sua honra, posta na ventura de consigo mesma:
minha fraqueza, pois assim me venço, por quem – Ó triste de mim! Que tenho feito! Com que
se irá rindo como se daqui partir, manifestando salvarei minha fama, pois a vendi por tão pequeno
a todos meu atrevimento? Peço-vos pelo amor preço? Que sei eu agora se Clarimundo é tão
que dizeis que me tendes, considereis nisto e vereis enganoso, que soube todo este tempo dissimular
quanta mais razão tenho de negar o que pedis, o que lhe eu fui crer, porque não pus diante de
que vós de vos queixar de mim. mim ser ele um cavaleiro andante desejoso de
– Senhora, respondeu ele, se eu cuidasse que em enganar tão fracas e simples como eu sou! Que
algum tempo havia de negar esta fé que vos pena posso tomar por tamanho erro? Mas que
tenho, fundada sobre a honra de vosso estado, se digo! Tão mau e desleal há-de ser um homem tão
vós disso fordes contente (mas não sou eu tão virtuoso e esforçado, e em suas cousas verdadeiro!
bem-aventurado, que veja essa glória) eu tomaria Pois se ele isto obra com os bravos e esquivos
de mim a vingança igual a tamanho erro; mas gigantes, porque será para mim mais cruel, sendo
porque tenho sabido o contrário, fico disso satis- eu para suas cousas mui mansa? Certo, eu sou
feito. Portanto, peço-vos que concedais em me dar digna de grande pena, pois tanto real e engano
essa mão por minha senhora, e eu por vosso (o suspeito de quem o nunca tratou. Não será melhor
anais não direi, porque nesta palavra desfalece o pôr diante sua valia e estado conveniente para o
meu merecimento se não for suprido com meu estar posto em maior prosperidade? Por
galardoardes meus males.) ventura venci-me de algum homem de baixa sorte,
– Ai, desaventurada de mim! respondeu ela. Que como algumas princesas fizeram? Em verdade, não;
farei em tal extremo? pois de uma parte o desejo antes daquele, que eu não mereço ter por marido,
me obriga por quem vós sois, e da outra o erro pois a menor cousa que nele há, vence meu
de tal caso desfaz meu pensamento. Peço-vos que merecimento. Esforça, esforça, coração, não des-
sejais contente com desejar de vos ter por marido, faleças em cousas de tamanho contentamento, pois
e o mais fique para quando Deus quiser, porque tens debaixo de teu senhorio aquele esforçado
sem ele e sem vontade do imperador e da Clarimundo, exemplo de toda a bondade.
imperatriz minha senhora, eu perderei antes a Desta maneira esteve Clarinda toda aquela noite
vida, que cobrar-vos a vós. dando mil voltas, fantasiando ora uma cousa, ora

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outra, até que na alvorada da manhã começou a Conta a história que a noite que se o conde e a
adormecer, e não seria de todo trespassada, quando condessa por tamanho desastre de sua casa partiram,
Filena bateu à porta, que se vinha despedir dela; jazendo a rainha Briaina em seu leito, no maior
e entrando na câmara viu-a estar entre os lençóis repouso de seu descansado sono, sonhava que vinha
com os olhos tão agravados, que logo parecia a ela uma loba com um filho atravessado na boca,
neles terem aquela noite menos repouso, que as e com muitos afagos, assim como se a conhecera,
outras. E quando viu a Filena com os seus cheios soltava-lho, no regaço, e des hi tomava o príncipe,
de lágrimas, disse: – Ai amiga Filena, que cousa é que ela nos braços tinha, a partia com ele na boca,
essa? sem ter ninguém que lho pudesse tomar.
– Senhora, respondeu ela, são partidas que me E estando mui triste e descontente com esta perda,
apartam de vos ver, e antes que o faça, venho-vos vinha um homem de dois corpos mui grande e
beijar as mãos e saber o que mandais de mim, que temeroso, e lançava-lho nos braços, banhado em
a mágoa deste sentimento não me deixa outra sangue das muitas chagas, com que vinha tão
cousa dizer. demudado que o não podia conhecer, até que
Clarinda ficou tão triste com esta vista de Filena, uma daquelas chagas lhe dizia que conhecesse seu
que lhe caíram logo as lágrimas a pares, e com filho, que aquele era o seu amado Clarimundo, e
palavras mui amorosas despedindo-se dela chamou que desse graças a Deus, que lho mandava para
sua colaça Alderiva, e mandou-lhe que desse a seu descanso, e também que o guardasse melhor,
Filena um vestido, que ela no dia das justas tirara, do que o fizera em sua meninice, porque ainda
dizendo que por seu amor, pois nunca dela nada uma onça lho havia de roubar, da qual ele maior
quisera aceitar, tomasse aquela peça como de uma dano receberia. Por isso, que tivesse mui bom
donzela tão pobre como ela era. aviso em o desviar dos lugares onde ela andasse,
Filena lhe tornou a beijar as mãos por aquela e que se o assim não fizesse, sua vida seria duvidosa.
mercê. E despedida, dela e da imperatriz e Lindarifa, Quando a rainha pela manhã acordou, espantada
foi-se à pousada de Clarimundo, que estava com com a novidade deste sonho, mandou logo saber
todos aqueles cavaleiros, para entrarem em seu novas de Clarimundo, e dando-lhe recado de
caminho; e ordenadas as cousas que lhe cumpriam, como estava morto, ficou tão trespassada, desfa-
cavalgou com aquele pequeno exército, tão grande lecendo-lhe todos os espíritos, que não se pôde
em preço, e assim a cavalo passaram por baixo das mais mover do estrado em que estava, tanto lhe
janelas onde o imperador estava, todos armados cortou esta dor a alma.
de mui frescas armas, e corações dispostos para as E correndo logo esta desaventurada nova mui
empregar em qualquer perigo. [...] prestes por todo o paço, foi-se a el-Rei. O qual
com muita pressa, quando chegou a rainha,
vendo-a por todas as partes fria, e que com
PARTE II nenhumas águas nem remédios a espertavam,
começou de a chamar por muitas vezes, falando-lhe
CAPÍTULO VII palavras amorosas com aquela vontade e paixão
de pessoa que lhe tanto queria.
Como a noite, que se o conde partiu, Quando ela ouviu a sua voz, conhecendo ser ele,
sonhava a rainha Briaina um sonho, e dos ainda que assim estava abriu algum tanto os olhos,
grandes prantos que se fizeram, depois que suspirando mui gravemente como se a alma se lhe
se soube a morte do príncipe Clarimundo. arrancasse.

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– Certo, senhora, disse el-Rei, não me pareceu devem os homens estimar, mas não saber como
que tão pouco sofrimento houvesse em vós, pois isto se sente com maior paixão.
fazeis cousas fora do limite de toda a razão, não E depois que com estas e com outras cousas
pondo diante de vós que, graças a Nosso Senhor, esteve gastando parte daquele triste dia, retraído
ainda temos idade para nos ele dar outro, e outros em uma câmara, foi-se o marquês para sua casa,
de que se nesta vida sirva, pois lhe aprouve levar e mandou trazer a Fainama e suas irmãs: a qual
este para a outra, que é mais segura. E pois disso vinha tão dissimulada, como se nada tivera feito,
é servido, para que mostrais pesar com as obras, a quem o marquês fez muita honra, tanto por
que sua vontade ordena, sofrei, senhora, esta dor criar seu sobrinho, como por ser filha de quem
com paciência, porque em outra maneira anojar- era.
me-eis em grande extremo, e cuidarei que me não E estando ela assim com o príncipe nos braços,
tendes verdadeiro amor, se o contrário fizerdes. mais pensativa no que havia de fazer, que triste
Nem creais, que sentira pouco a perda, que pelo que tinha feito, como todas as cousas andavam
perdemos, pois tanta parte nela tinha como vós. em revolta, chamou a Marquinar, um primo seu,
Mas lembrando-me estas cousas, me esquece o que estava em casa do marquês, e disse-lhe:
grave sentimento, que por tal desastre pudera ter. – Primo, vás bem vedes como este pranto traz
Com estas e outras palavras abrandou algum tanto tudo baralhado: e dizer-vos, que procureis por
a rainha, e passada a maior parte do ímpeto deste liberdade, parece-me escusado, pois tendes sabido
pranto, que todos faziam, mandou el-Rei chamar que é cousa que as pessoas neste mundo mais
essas mulheres, que a condessa em sua casa tinha, estimam. E porque não sei quando outro tal
e perguntou-lhes se sentiram aquilo como fora, e tempo teremos, peço-vos que esta noite trabalheis
que se fizera do conde e de sua mulher. por haver à mão alguma fusta, e nos passemos ao
– Senhor, disseram elas, estando nosoutras dor- primeiro lugar de meu pai. E se vos parecer que
mindo, à meia noite ouvimos a condessa mui não tereis para isso remédio, vedes aqui estas jóias,
gravemente chorar, chamando-se mal-aventurada, que foram as primeiras peças que me dou meu
pois viera a tal estado, que visse morto diante de esposo, que tudo bem valerá mil pesos de ouro,
si o lume de seus olhos, e esperança de seu bem. e dai-as a algum marinheiro, que nos ponha em
E querendo uma de nós saber o que era, não porto seguro, e seja logo esta noite; porque sempre
ousámos, por ouvir dizer ao conde: nestas cousas a dilação é danosa e a diligência traz
– Senhora, calai-vos, não sejamos sentidos, que proveito.
será maior dano vosso. E depois destas palavras, – Muito folgo, respondeu Maquinar, de vos ver
nunca os mais sentimos. tão conforme ao que eu andava fantasiando, e
– Certamente, disse então el-Rei ao marquês Or- porque, vendo-me falar convosco, daremos alguma
lete, e a outros senhores, que em seu sentimento suspeita, não é mais necessário, senão estardes de
o acompanhavam, muito mais sinto isto por não maneira prestes, que quando eu vier e tempo for,
saber como foi, do que o sentira, sendo da verdade partamos sem outro impedimento.
certificado, porque eu creio ser mais por meus Com este concerto se partiu Maquinar dela,
pecados, que por pouco cuidado e aviso da levando as jóias. E tanto que foi noite, tornou mui
condessa, segundo a diligência e resguardo com contente, dizendo que partissem logo, porque já
que críava o príncipe, e sòmente esta mágoa é a tinha tudo aparelhado.
que me dá maior dor. Que perder um filho, E como todos andavam anais cheios de paixão,
quando se Deus disso serve, por grande mercê o que de suspeita contra elas, tiveram maneira para

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saírem da cidade mui seguramente, levando Quando Grionesa o viu em seus braços, contem-
sempre Fainama o príncipe nos braços, porque plando a sua formosura, quanto ao luar se podia
lhe tinha tanto amor, que esperava de o criar, ver, disse: – Ó piedoso Senhor! que nunca desam-
assim como o fizera a seu filho, se vivo fora. paraste a quem alguma hora a ti se encomendou.
E tanto andaram desde o princípio da noite, que E pois me deste por tal acontecimento o que
chegaram à Floresta Combatida, e chamava-se assim, catorze anos há que tenho desejado, e com tantas
porque na fralda dela bate o mar, e também lágrimas pedido, e agora, que mais desviada disso
quando el-Rei não estava naquela parte, faziam os estava, tendo meu marido morto, houve este filho
Turcos dali algumas presas. Por esta causa lhe da tua mão enviado para consolação de minha
puseram tal nome. alma, e ser herdeiro dessa pobreza, que a fortuna
E chegando todos a uma fonte, que no meio dela me deixou. Bem-aventurada te deves, terra, chamar,
estava, disse Maquinar: pois em ti tanto bem recebeste: e vós, meus olhos,
– Senhora, porque não sei se são já vindos dois já vos não podeis agravar; pois tendes diante o
marinheiros, a quem dei as vossas jóias, que nesta que vos tão caro custou.
parte me haviam de esperar, não vos partais daqui, Estas e outras cousas dizia Grionesa com tanto
até que eu venha. E despedido delas, mais ao que prazer, entremetido com lágrimas de alegria, que os
tinha determinado, que a fazer o que dizia, acon- seus estavam espantados de ver nela tal novidade,
teceu que, estando todas três assentadas esperando porque segundo os nojos, em que sempre vivia, não
pelo leal de seu primo, passava pelo caminho uma cuidavam que pudera vir cousa que tão leda a fizera.
dona acompanhada de uma sobrinha sua e três Milina, sua sobrinha, se chegou então a ela, e
escudeiros, os quais ouvindo o tom da água, que tornou-lhe o menino dos braços, dizendo: –
de uma penha mui alta na fonte caía, com a Senhora, pois Deus para isto ordenou que em
necessidade de sede, atiraram a ela, que à borda vossa companhia viesse, daqui me ofereço por
do caminho estava. ama desta sua criatura. E então começou a dar de
Fainarna e suas irmãs, tanto que ouviram o estru- mamar ao menino, e como do caminho estava
pido dos cavalos, crendo que era alguém que em sequioso e cansado, tanto que sentiu os peitos de
sua busca vinha, meteram-se pela maior espessura Milina, tomou-os de mui boa vontade, e com esta
do bosque e com esta turvação esqueceu-lhe o mansidão e facilidade acrescentou mais amor ao
príncipe à borda da fonte. que lhe de súbito tiveram. Portanto, muito apro-
Um daqueles escudeiros, que a dona consigo trazia, veita uma meiguice e mansidão, pois por ela se
descendo-se a dar de beber a sua senhora, topou alcança aquilo que a soberba e aspereza perde.
no menino, em maneira que o fez chorar, e quando
o sentiu debaixo dos pés, disse: – Santa Maria, que
cousa é esta! Porém, com todo o espanto, tomando CAPÍTULO X
o menino nos braços, viu ao luar, que mui claro
era, uma criatura tão formosa, que ficou mais Da criação do príncipe Clarimundo, que
espantado. depois se chamou Belifonte, e como se partiu
Grionesa, que assim havia nome sua senhora, com Grionesa em uma nau para se ir armar
ouvindo as coisas que dizia, perguntou o que era. cavaleiro ao reino de Sicília, e do que lhe
– Senhora, respondeu ele, vós julgai se isto é cousa neste caminho sucedeu.
divina ou humana, que eu mal saberei determinar
a verdade. Belifonte (que assim havia já nome Clarimundo,

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por causa da fonte, onde o Grionesa achara, e da Vedras, mas foi desviado por Fanimor. E
beldade de sua formosura) estava naquela Ilha das grandes profecias que profetizou acerca
Avondosa, que com o reino de Sicília confina, e das cousas de Portugal.
crescia assim em virtude e cortesia, como em
esforço e disposição. Clarimundo, depois que agradeceu a vontade que
E depois de Grionesa mandar traze de Grécia um os moradores de Sintra mostravam de seu serviço,
grande filósofo para o ensinar em todas as artes, despediu-os com muito agasalhado, fazendo-lhes
que a tal pessoa convinham, e ele ser já nisso mui outros tantos oferecimentos enquanto ali estivesse.
perfeito, gastava o tempo em ler as cousas dos E partidos eles, falou com Fanimor, dizendo que
cavaleiros passados, e folgava de ouvir as que os ele desejava muito, pelo amor que tinha àquela
presentes faziam, louvando muito este exercício. E terra, ir ao castelo de Torres Vedras ver-se com o
enfadando-se às vezes nisto, ia a montear, por ser irmão de Morbanfo, por lhe dizerem aqueles
acto de guerra, onde matava muitos porcos, veados, moradores de Sintra ser homem mui cruel, e
e outras alimárias feras, em que levava tanto gosto, destruidor da terra, e que não o achando ali, era
que o mais do tempo de sua mocidade, enquanto necessário chegar a uma cidade, que chamam
não recebeu ordem de cavalaria, neste desen- Coimbra, porque soubera também deles, que era
fadamento gastou. ido lá a fazer uma presa de donzelas em umas
E muitas vezes Grionesa, vendo que se aventurava bodas.
em cousas tão perigosas, lhe defendia as montarias Senhor Clarimundo, disse Fanimor, não sem causa
com receio de lhe acontecer algum desastre. Porém tendes amor a esta terra, pois tanta parte as vossas
ele com uma fala amorosa chegava-se a ela, dizendo: cousas nela hão-de ter. E posto que para vós seja
– Senhora, não sei porque não consentis que use pequena glória vencer esse irmão de Morbanfo,
daquilo, em que maior gosto levo, pois não tenho não se pode tão fàcilmente como cuidais, outra
em que vos possa servir. E estas palavras sòmente honra vos está nela guardada de maior louvor.
tinham tanta força, que logo abrandavam a Grio- Tomai o que vos Deus quer dar, e o mais deixai
nesa, e tomando-o em seus abraços, com lágrimas para quem ele na vontade tem criado, contentai-vos
de prazer, dizia: – Filho da minha alma, não há em vos escolher para princípio de tão grande
aí cousa, em que vós sintais algum contentamento, cousa. E por saberdes quanta mercê vos faz, além
que vo-lo eu negue, se em meu poder for. Porém das que tendes vistas, é necessário encomendar-vos
vendo-vos tão ousado em cometer cousas perigosas, a Ele, dando-lhe graças por tamanhos benefícios;
me fazem medrosa. Portanto, vos queria desviar porque com sua ajuda eu vos direi hoje alguma
disso, e não por outro algum respeito. parte de quantas cousas serão feitas nesta terra,
[...] entre todas a de maior perfeição, assim na vontade
de Deus, como no uso dos homens. E para cousas
tão altas, como vos são prometidas, e que do
consistório da Sacra Trindade vêm forjadas, cumpre
PARTE III despedirdes de vós todas as lembranças, e cuidado,
que vos podem turvar o juízo, e terdes uma
CAPÍTULO IV consciência mui casta e limpa para as ouvir. E
começarei a cantar das obras de vosso neto até
Como partidos os moradores de Sintra, onde Deus quiser; porque da maior parte das de
quisera Clarimundo ir ao castelo de Torres vossos filhos, antes que deste mundo partais, sereis

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testemunha delas; e por este lugar não ser con- A aqueles que dor nunca sentirão
veniente para o que quero dizer, vamos a outro Em o derramar por seu Redentor,
mais contemplativo. Dará também, por mais seu louvor,
Com estas palavras tomando-o pela mão subiram A Henrique em dote matrimonial
ao eirado da mais alta torre, donde se via grande As terras da terra do grã Portugal
parte do mar e terra. E porque a este tempo a Para as Possuir como justo senhor.
Lua estava na força de sua claridade, fazia uma
noite tão serena e graciosa, que todas as estrelas Aqueste com ferro mui vitorioso
pareciam assim como no oitavo céu estão pintadas. Rompendo as carnes de contos de mouros,
E com as ondas do rio que a maré fazia bater ao Deixara de obras de tão grandes tesouros,
pé da torre, tremia a Lua debaixo delas, saltando Quanto no céu estará triunfoso;
de uma parte a outra, como quem se alegrava Sucedendo a ele o mui generoso
com o cantar dos rouxinóis, que por aqueles El-Rei D. Afonso Henriques primeiro,
pomares andavam namorados. Fanimor, por ficar Primeiro em nome, e em verdadeiro
no hábito que aquele acto pedia, ficou sòmente Rei enviado por Deus glorioso.
em umas roupas de linho largas a maneira de alva
que debaixo trazia, e apertada uma touca na [D. Dinis]
cabeça, pondo-se de joelhos, e as mãos levantadas, E porque o seu desejo será sempre ocupado na
começou a invocar, dizendo: destruição de Mafamede, e no exalçamento da Fé
de Cristo, ordenará uma Ordem Sagrada e Militar;
Ó tu Imensa e Sacra verdade, os membros da qual, para serem conhecidos entre
Verdade da suma e clara potência, os outros homens, trarão nos peitos um sinal de
Que mandas, que reges com tal providência sangue, como aquele que para nossa, redenção foi
As cousas que obraste na mente, e vontade; ordenado. E a este tal número dará um Superior,
Ó trina em pessoas, e só divindade, a que chamarão Mestre de Cristo. E porque a sua
Infunde em mim graça para dizer populosa Lisboa, não seja isenta, de suas maravi-
As obras tão grandes que hão-de fazer lhosas obras, fará nela a grã Rua Nova dos Mer-
Os reis portugueses com sua bondade. cadores, que em todas as partes será tão nomeada,
como temida. E deixando em ordem todas as
Não teria estas palavras ditas, quando foi arreba- cousas de seus reinos, dará sua alma nas mãos de
tado de um espírito divino, que o acendeu em quem lha criou, e o corpo ao mosteiro de Odivelas,
tanto furor, que às vezes parecia um gigante, outras que ele para isso fez.
de muito menos corpo do que era; tudo tão
maravilhosa, que Clarimundo se espantava dos Tânger e Alcaçar não hão-de escapar
meneios que lhe via fazer, porque ora olhava Do grande poder de Afonso o Quinto.
contra o Oriente, ora ao Ocidente, fazendo para Ó Joane seu filho, que obras que sinto,
todas as partes o sinal da cruz, e com o fervor Que hás-de fazer quando se entrar,
daquele espírito profético, pondo os olhos na Lua A vila de Arzila pelo Albacar.
disse: Isto em tempo, que a tua idade
O peso das armas com dificuldade
No tempo que Afonso o imperador Nas brandas carnes poderá sustentar.
Der a seu sangue, por dar galardão

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Porque o teu magnânimo coração abrasado em partes, que darão a conhecer ao mundo, que é
altos pensamentos, sempre nos trabalhos perigosos maior do que ele de si cuidava; descobrindo com
andará tão diligente, quanto sofrimento terás para seus bicos tantos recantos, e fraldas da terra, que
vencer os terrores suspeitosos que te darão durável ajuntados em número farão por si outro maior
memória do mais excelente príncipe dos cristãos. corpo do que ela tinha. E em todas estas partes,
E com tuas obras começará a abrir caminho para aquelas Divinas Armas e Reais Quinas, serão
que a fama portuguesa seja conhecida em todas adoradas por amor e temor. [...]
as partes; e tu farás os fundamentos para ela E os inocentes, que nas partes de Etiópia nunca
chegar ao superior assento do mais alto merecer; ouviram a palavra de nosso Redentor, principal-
mas a crua morte não te deixará ver o fim de teus mente o grande príncipe de Congo, com fervor
princípios, e inda que isto percas, alegra-te, que o de nossa Fé, por este novo apóstolo que lha pre-
teu corpo será remédio a muitos males, obrando gará será baptizado com grande número, de todos
nele uma divina virtude em galardão de teus os povos, os quais imprimirão na alma suas palavras,
merecimentos. de maneira que serão depois mestres daqueles que
as não souberem. E os termos da terra, que da
Ó tempos, ó tempos, temos de guerra, outra parte jaz, inda que a este tempo não sejam
De guerra com Mouros, e paz com Cristãos perfeitamente conhecidos, também virão alguns
Quem fosse então por beijar as mãos, trazendo o fruto, que dará alegre cor às roupas
As mãos que terão por divisa Espera! que nele forem tintas, e com muitos penachos das
Ó divinas obras, nas quais se esmera aves, que se ali criam se apresentarão ante quem
A fama famosa do grã Manuel, os deu a conhecer ao Mundo.
Quem se visse naquele tropel
Que vós cercareis as partes de terra! E aquele grã Cabo de Boa Esperança
Os maus, e ingratos, que a Cristo mataram, Que tanta de terra esconde ao Mundo
Por ele tão santo, e poderoso rei Virá mui alegre com rosto jocundo
Serão convertidos tornados à lei, A lhe obedecer sem alguma tardança.
A lei da Graça, que eles negaram. De terras, e povos fazendo uma dança,
E assim cobraram o que nunca cobraram, Vindo cantando com doce harmonia
Depois de perder o que tinham perdido Estas palavras de grande alegria:
Com suas maldades, e endurecido Vivamos contentes com tanta bonança.
O mau coração, que nunca abrandaram.
Quiloa, Mombaça, Melinde, Patém,
E este princípio de suas obras se ordenará com Baraba cidade, e Abalandarim,
tanto mistério, e por tantos rodeios de cousas, que Com a fraca gente do forte Apenim
logo darão sinal de sua grandeza, porque as terras, Zapenda, Guardafui, e o cabo que tem
mares, e toda alma sensitiva sentirá o seu nome; Trarão consigo a grande Adem,
e aquela não terá ser, que de seu conhecimento Inda que venha ensanguentada,
for apartada. E sòmente os raios de seu resplendor E com sua dura cabeça quebrada
queimarão de maneira os males alheios, que serão Das forças do Rei Daquém e Dalém [...]
convertidos em satisfação de grandes louvores. E
de suas mãos soltarão aves sem espírito com cruzes E ajuntada esta diversidade de linguagens entrarão
de sangue nas asas, as quais voarão por tantas pela barra da populosa Lisboa, que ficará anui

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espantada quando ouvir novo tom em suas E acabando os Troianos de fundar a sua cidade,
orelhas, mas contudo alegrar-se-á sabendo que estando já mui descansados com grão número de
há-de ser adorada como princesa de todas elas. filhos, e geração, começaram a sentir novos movi-
E no meio destas festas, que ela em si verá, vejo mentos, porque a cidade de Lisboa, que então se
eu na sua cabeça nascido um resplendor, que chamava Ulissipo, ordenou guerra, contra eles, é a
dará claridade aos lugares sombrios, onde nunca, razão que para isto tiveram é esta: Mui manifesto
os raios do sol entrarão; portanto, é necessário é, que para se tomar Tróia eram necessárias muitas
que vós, mui esforçado Clarimundo, tenhais aqui cousas, e a mais principal era Aquiles, e sabido isto
os sentidos muito mais prontos; porque as obras entre os Gregos, mandaram Ulisses por ele, o qual
desta luz, assim como, são novas, assim levam sagazmente o veio achar nestas partes de Lusitânia
outra nova ordem favorecidas da suma em um mosteiro de monges, que serviam a deusa
providência, que as ordena para seu serviço, e Tétis, mãe de Aquiles, o qual mosteiro se chamava
amparo daqueles que padeceram fome de justiça. Cheles, porque uma dona que o fundou, e consa-
grou à deusa Tétis tinha os pés furados, e quem
[...] isto tem chamam-lhe os Gregos Cheles, e cor-
rompido o e em a, ficou-lhe Chèlas. Assim que
A ti, Portugal, que estás descontente,
esta foi a causa donde tomou tal nome, posto que
Quero eu dar alegre esperança,
aí haja outras opiniões falsas. E acerca de Aquiles
Com que dos males hajas vingança
e onde o acharam, conta Homero o contrário,
Dos males passados de toda tua gente.
dizendo que o achou Ulisses na ilha Siros, reino
A justa justiça do muito clemente
de Nicómedes, entre uma filha sua chamada
El-Rei D. João deste nome terceiro
Deidamia, e outras donzelas, onde o a sua mãe em
Fará com que vivas em mui verdadeiro
hábito feminil tinha escondido; porém, segundo
Descanso eterno, e muito contente.
os moradores desta terra, por escrituras antigas, a
Aqui nestas palavras trabalhou tanto Fanimor para esta terra veio ter Ulisses, e as memórias que nela
prosseguir no mais, que se lhe representava diante, deixou são disso verdadeiro testemunho, porque
que com fraqueza, do espírito, receando o golfo de um companheiro seu, que se chamava Tagus,
por onde hávia de passar; caiu esmorecido suando que no Tejo caiu, ficou tal nome ao rio, e assim
gotas de sangue. se chama entre os Latinos; e a mais principal
Clarimundo quando o viu naquele estado, inda cousa que nesta terra, fez foi a cidade de Lisboa
que estava mui contemplativo no que ouvira, con- junto do mosteiro de Chelas, onde Aquiles estava.
tudo remeteu a ele, e tomando-o nos braços E não foi a fundação dela sem grão mistério,
começou Fanimor de se apertar com ele, quase porque estando Ulisses dormindo, apareceu-lhe
temendo a vontade de Deus, que era deixar o Júpiter dizendo:
mais que via para outro tempo. E depois que um – Ulisses, quão pouco te hão-de aproveitar teus
pouco esteve tramando com todas os membros trabalhos ordenados para a destruição de Tróia,
do corpo, acordou mui esperto, e disse: – Senhor pois no fim deles e dela, ficarás mais vencido que
Clarimundo, já agora em alguma maneira ficareis vencedor! que não se conta por vitória a que por
contente, pois de vós hão-de preceder aqueles engano e traição dos naturais se alcança; e porque
que todas estas cousas, sòmente com o seu nome, vós outros desta maneira cobrareis Tróia, não sereis
terão sujeitas, e em sua vida com tanta glória chamados vitoriosos, mas inventores de enganos, e
farão. [...] em galardão de tais, obras nenhum de vós outros

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tornará à sua pátria descansado, senão que com a que pôs nome Ulíssipo. E este princípio foi de
muitos trabalhos alcançareis a vista dela, e depois tanta força, que sempre se aumentou em poder,
mortes desonradas; e os Troianos desbaratados e honra, riqueza, e toda perfeição; e acabando-a de
vencidos cobrarão gloriosa fama; porque da sua fundar, deixou ali alguns companheiros para
cidade sairá aquele, da geração do qual nascerá o povoadores, os quais depois que se estenderam
fundador de Roma, que em tamanha alteza nas pela terra, edifiçaram estes lugares.
armas florescerá, que grandes partes do Mundo Um cavaleiro, e sobrinho de Ulisses por amor de
lhe serão sujeitas; e a vossa Grécia mui humilde sua mulher, que se chamava Coimbra, edificou
será submetida debaixo de seus pés; e porque a uma cidade a que pôs este nome. Outro edificou
tua geração não fique com estas cousas abatida, um castelo, a que pôs nome Dessa por causa de
faze o que te disser, que este só remédio te fará uma cidade de Grécia donde ele era natural.
tão glorioso, que não hajas inveja aos Troianos, Porém este nome é já agora corrompido nesta
nem a seus fundadores. terra, e chamam-lhe Beja. Outro cavaleiro, que
Onde esta segunda noite vires cair um sinal de fogo, havia nome Cabelicastro, fundou um castelo à
ali fundarás uma cidade, a qual depois que a grã borda do Tejo, mui forte, a que deu o seu nome.
Roma desfalecer de seu senhorio perdendo o nome Outro em memória da formosura de sua mulher
de imperatriz, crescera em tamanho poder e alteza, fez um castelo; a que pôs o seu nome, chaman-
que em todas as partes do Mundo será temida e do-lhe Palmela, que em língua cítia quer, dizer:
amada, fazendo tais obras, que as armas gregas e Sobre todas mais alta e formosa; e porque sua mulher
romanas perderão sua glória. Isto será para ti maior tinha estas duas cousas em extremo, buscou nome
louvor, que quantas cousas no cerco de Tróia fizeres; conforme a ela. E como estes Gregos liados com
portanto, vive contente, que o teu nome será exalçado os naturais, esta parte de Lusitânia tinham ocupado,
por ser fundados de tal monarquia. depois que viram os Troianos fortalecidos e ricos,
Acabando Ulisses de ouvir estas cousas, ficou mui considerando que esta geração sempre lhes fora
espantado com a novidade delas, e como era danosa, começaram de mover guerra contra eles,
capaz e agudo, considerando o bem e louvor, que de maneira que por muitos tempos se continuou
por tal obra lhe prometiam, dando de isto conta este ódio entre el-Rei de Ulíssipo, e de Tróia, até
a seus companheiros, estiveram toda a noite que cansados da continuação das guerras fizeram
esperando pelo sinal, até que viram cair do céu trégua por dez anos.
na maior altura de um monte um raio de fogo, Neste meio tempo morreu el-Rei de Ulíssipo, e
e começou de queimar aquele arvoredo verde sucedeu no reino um filho seu, o qual era tão
que tinha, até que ficou a terra tão escampada, perdido de amores por uma filha del-Rei
como se nunca, ali outra cousa estivera. Firpendo de Tróia, que lha deu seu pai por
Ulisses ao outro dia atinando onde vira cair o raio, favoráveis partidos, que ele no contrato prometeu.
foi dar com uma esfera lavrada em uma pedra da Feito este casamento, em memória de sua esposa,
cor do mesmo fogo, e pelo zodíaco tinha umas que se chamava Boa, e ele havia nome Lis, chamou
letras que diziam: Sobre este fundamento seja posta a à sua cidade Ulíssipo, Lisboa. E morta sua esposa,
primeira pedra da minha cidade, porque outra tal figura que era o penhor da paz, sem lhe ficar filho, nem
como esta será sujeita a quem me tiver por cimento. filha, por certas cousas que não quis cumprir, que
Quando Ulisses e seus companheiros entenderam no casamento dela tinha prometido, tornaram os
que naquele lugar, e sobre tal fundamento lhes Troianos a mover guerra, a qual durou grandes
era mandado edificar, fizeram a cidade de Lisboa, tempos e anos.

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Crónica ocupasse o juízo no estudo dela, saíu tão exce-
lente, que não somente passou por a avó, mas por
todalas pessoas, que foram antes e depois dele,
de Palmeirim mais de quinhentos anos, alcançando as cousas
secretas e por vir, tão altamente, que nenhuma lhe

de Inglaterra * parecia trabalhosa.


E depois que se viu tal, que se julgava polo maior
do mundo, tinha tal ânimo, que não se quis
contentar disto só, antes despendendo algum
FRANCISCO DE MORAIS tempo no exercício das armas, saiu tão destro
nelas que bastou pera o haver de julgar por filho
de seu pai. Chegando a idade pera ser cavaleiro,
CAPÍTULO XIV
morreu sua avó, e ele se foi ao gigante Gatáru,
Quem era o sábio Daliarte do vale escuro. que o fez, sem saber quem era, por ver nele sinal
das obras que depois mostrou.
Pera se saber quem fosse este Daliarte do Vale Vendo-se Daliarte metido na obrigação das armas,
escuro, diz se que ao tempo que o príncipe Dom lembrando-lhe o muito que nelas devia fazer,
pera se nomear filho de Dom Duardos, revolvia
Duardos Vinha do reino de Lacedemônia pera a
Grécia, deixando já desencantado el-rei Tarnais, e no pensamento muitos acontecimentos grandes,
pacífico senhor em suas terras, uma donzela entrou trazendo à memória aquela prisão perpétua em
que o via, e assim a Primaleão e outros príncipes,
em sua nau, que sem dizer nenhuma cousa se foi
que Dramusiando tinha no seu castelo. Porque
ao governo dela, e a fez virar contra sua ilha onde
livrou um cavaleiro que por traição queriam matar, neste tempo toda a flor do mundo, e das armas
estava ali encerrada, polo saber de Eutropa tia do
e daí o levou onde estava a mãe d’Argonida, de
gigante, e pala fortaleza dele, e de seus compa-
quem houve Pompides polo maneira que no livro
de Primaleão se conta. nheiros. E também já nestes dias era descoberto
que todos se perdiam naquele reino de Grã-
Escreve-se nas crónicas antigas inglesas, que
-Bretanha, ainda que ninguém podia saber como
Argonida houve dois filhos de Dom Duardos
desta vez, e doutra que polo mesmo engano teve isto fosse, se não Daliarte, a quem nada era oculto.
E por esta causa muitos cavaleiros famosos acudiam
parte co’ele: o primeiro foi Pompides, o segundo
àquela parte. E como alí entravam, e iam ter onde
se chamou Daliarte, a quem sua avó criou consigo,
apartado da conversação da outra gente, ensinan- a fortaleza de Dramusiando estava, não sabiam
mais deles.
do-o na arte mágica, porque lhe sentiu o enge-
Esta nova tão notória polo mundo, fazia então o
nho sutil pera isso; e por isto no livro de Primaleão
se não diz nada dele. E como ela fosse uma das reino d’Inglaterra ser tão cheio de cavaleiros
notáveis, tão nobrecido d’armas e de donzelas,
maiores sabedorias do mundo, nesta ciência, e
quanto o nunca fora em outros tempos. Mas
Doliarte por muita conversação de dias e anos,
nenhum que o fosse mui especial entrou nela que
pudesse mais sair.
Ali estava Recindos, por quem a Espanha era
* Crónica de Palmeirim de Inglaterra [...]”. In Obras Completas toda despovoada, buscando-o. Arnedos rei de
de Francisco de Morais. São Paulo: Editora Anchieta, 1946. França, que havia poucos dias que saíra dela por

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ajudar a seus amigos, naquele trabalho em que muitos, que ele por sua indústria soube haver. Às
todos andavam. Maiortes o grã-cam, e Pridos, por vezes ia ao monte; porque sua natural inclinação
quem el-rei d’Inglaterra fez grandes extremos, o obrigava, e a terra era povoada de veados, e
quando o achou menos em suas necessidades, e outras caças. Alguns dias saía armado, e fazia batalhas
Belcar, Vernau, Ditreu, o duque de Drapos de assinadas, de que sempre ficou com a vitória. E
Normândia, e o soldão Belagriz, com quem a quando sabia que cavaleiros de muito preço as
amizade de Dom Duardos pôde tanto, que o fez haviam de fazer na fortaleza de Dramusiando, ia
deixar seu senhorio, e tornar a seguir o trabalho estar presente a elas, pera ver mágoas a que não
das armas de que já estava descansado. E o esforçado podia dar remédio, e que tanto sentia como seus
Polendos, dos quais ou d’alguns deles se dirá o donos: de que se espantava o gigante e sua tia,
que passaram em suas prisões. Assim que não vendo que tão soltamento entrava na juridição de
havia então reino no mundo, tão livre que nele sua defesa, e saía sem o tolher o poder dele, nem
se pudessem fazer, nem ouvir festas senão de a sabedoria dela.
tristeza e descontentamento. Neste tempo sabendo das festas que o imperador
Pois tornando a Daliarte, vendo a grande afronta, fazia, como de muitos dias tivesse feito aquele
em que o mundo estava por um só homem, não escudo pera companheiro das afrontas de
sabia determinar que maneira tivesse pera remédio Palmeirim, o mandou à corte, onde sobre ele
de tamanhos danos: e inda que seu desejo era aconteceu o que já ouviste.
passar polo estilo dos outros, não o quis fazer: não Desta maneira gastava Daliarte o tempo, esperando
polo temor do perigo; mas porque sabia que não polo liberdade daqueles príncipes, os quais passavam
era ele o que aquela aventura havia d’acabar: e vida descontente cada um igual na pena de todos
também porque nenhuma cousa é pior que seguir com aquela amizade antigo que se sempre tiveram:
o desejo onde a esperança é incerta. e ainda que esta dor não fosse pequena, a muita
Então por escusar alguma parte de tantos desastres, continuação a fazia sentir menos; porque onde ela
quis fazer seu assento junto do Vale da Perdição, é grande, possuí-la muito tempo a fez parecer
que este nome lhe puseram pola perda que se menor.
nele recebia, buscando outro conforme a sua
condição necessário a seu estudo, o qual ia por
meio de duas tão altas serras, que a altura delas CAPÍTULO XVIII
impelia a entrada do sol o mais do tempo, e por
isso lhe chamaram o Vale escuro, e alguns o nomea- Como Palmeirim d’Inglaterra se foi da
vam polo sombrio Vale, e não lhe custou tão corte, chamando-se o cavaleiro da Fortuna,
barato a entrada dele, que não lhe fosse forçado e o que passou.
alcançá-la por força, matando primeiro em igual
batalha o gigante Trabulando, e um seu filho, Tanto que Palmeirim se partiu, andou o que da
senhores de uns castelos que ali havia. noite ficava, e outro dia, sem tomar repouso, nem
Então fez no mais solitário do vale uma morada lhe lembrar que ele nem seu cavalo tinham disso
tão singular, quanto no engenho de um homem necessidade.
tão sutil se podia pintar, onde ninguém ia senão Ao segundo dia quase o sol posto, já alongado de
por seu consentimento. E assim passou o tempo Constantinopla se achou num vale cheio d’ar-
na continuação de seu estudo, trazendo pera si voredos espessos, antre os quais estavam uns edi-
todolos livros que de sua avó lhe ficaram, e outros fícios antigos caídos por muitas partes, porém

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inda no pouco, que deles parecia davam sinal de quantas palavras lhe então a dor e o amor ofere-
quão nobre cousa foram; e a lugares por dentro, ciam: e não tardou muito que dentro daqueles
havia çoteas e casas dignas de se povoarem, e as edifícios ouviu tocar um instrumento de cordas,
paredes de parte de fora cobertas d’hera, que que por estar algum tanto longe não soube co-
trepava por elas tão verde e tecida nas mesmas nhecer o que era: porém o som dele, que por
pedras, que além de darem graça à antiguidade baixo dos arvoredos vinha rompendo, lhe avivou
do edifício, o sustinha que de todo não caísse. os espíritos pera ter mais que sentir, e mais de que
Desviado dele quanto um tiro de pedra, estava se aqueixar; porque nos corações namorados estas
uma fonte de água clara e em lugar tão aprazível, são umas faíscas, com que mais se acende o fogo
que o obrigou descer-se. em que ardem: e indo contra aquela parte, não
Selvião lhe tomou o cavalo, e a ele quisera dar entrou muito pelos edifícios, quando em uma das
alguma cousa que comesse, e Palmeirim o não çoteas, que neles havia, qu’era d’abóboda, viu estar
quis fazer, porque aqueles dias cuidados deses- um homem vestido de negro, a barba grande e
perados eram seu mantimento: antes mandando-o crescida, a pessoa grave, e no semblante do rosto
apartar de si, encostado sobre u’a mão, com os representava tristeza e vida descontente: tocava um
olhos n’água da fonte sobre que estava lançado, cravo de vozes grandes, que soava tanto ao longe,
trouxe à memória as palavras de sua senhora, a que podia ouvir-se fora no campo. A harmonia
braveza com que lhas dissera, e começou a falar do qual detendo-se na concavidade de aquela
consigo mesmo mil piedades namorados, oferecidas abóbada, fazia o som tão singular que por força
a quem não sabia se lhe ficara alguma dele: depois, quem o ouvisse se enlevava de maneira, que perdido
culpando seu atrevimento, dizia: – Ó Palmeirim, o sentido, causava esquecimento de todas as outras
filho dum pobre salvage, criado nas matas cousas; e ele de quando em quando acodia com
d’Inglaterra, que pensamento foi o teu qu’em alguns vilancetes tristes conformes a sua tenção.
tamanho perigo te pôs? Senhora Polinarda, se O da Fortuna transportado de o ouvir se encostou
minha ousadia me faz merecedor de culpa, haja à porta, e não quis entrar dentro polo não estorvar,
em vós aquela piedade, que nos corações tão altos que via que o outro de namorado ou descontente
se sói achar, pera que um desejo tão certo de vos se enlevava tanto no gosto do que fazia, ou na
servir não sinta tão desesperado fim como vossa lembrança de seu cuidado que às vezes se caía
crueza lhe ordena. E se a vontade, com que me sobre o cravo, e acodia com palavras conformes
fiz vosso, isto não merece, acabai de me matar e a sua vida, e em louvor de quem lha assim fazia
será honesto galardão de meu atrevimento; posto passar. O cavaleiro da Fortuna havendo menencoria
que, se vos lembrardes das mostras de vossa fer- de ver que o outro louvava tanto sua dama, que
mosura e parecer, a elas dareis a culpa de qualquer a punha acima de todalas do mundo, e crendo
erro, que contra vossa condição se cometa. Já que ao merecimento de Polinarda nenhuma se
qu’esta dor me havia de durar, muito fora dela podia igualar, entrou dentro, dizendo: “Cavaleiro,
contente por ser nascida de vós; mas não quis ser bem seria que louvásseis vossa dama, sem desprêzo
tal, que me deixe esperança de sustê-la muitos das outras, pois pode haver alguma qu’em tudo
dias; antes me matará cedo, e então ficarei sem ela lhe não deva nada.”
e sem mim, e com saudade ou desejo de ver quem O da cova mui novo de ver ali homem, a tal
ma deu. tempo e a tais horas, agastado do que dissera,
Nisto repousou um pouco, que a fraqueza lh’im- falando co’a turvação que a ira dá, quando ela é
pedia o alento e a força pera poder despender súpita e de cousa que muito dói, disse: “Como

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mulher aí no mundo tão acabada, que por todalas à cova, onde o curou seu escudeiro, tão desejoso
vias deixe de viver com quem me esta vida dá? de sua fim, que ele a tomava por si, se não lhe
Aguarda, amar-me-ei, e se me ousares esperar, eu parecera que nisso errava ao cuidado, donde a
te mostrarei a verdade do que digo, e a mentira sempre esperara.
do que crês.”
“Já quisera que estiveras armado, disse o da
Fortuna, porque um êrro tão manifesto menor CAPÍTULO XXXVI
tardança havia mister pera se castigar.”
O cavaleiro entrou pera outra casa e o da Fortuna Como o cavaleiro da Fortuna entrou em
se saiu pera fora e esteve esperando ao da cova, Londres, e o que passou antre ele e o
que não tardou muito, armado d’armas negras e cavaleiro do Salvage
pola noite ser escura não se via a devisa do
escudo, qu’era em campo negro uma sepultura da Um domingo pala manhaã era quando o cavaleiro
mesma cor, e em cima dela a morte que aguardava; da Fortuna chegou à cidade de Londres, onde
e sem nada se dizerem, remeteram um o outro: o naqueles dias estava toda ou a maior parte da
cavaleiro da cova veio a terra fazendo a lança em cavalaria do mundo. E porque lhe pareceu que
pedaços no escudo do seu contrário, o qual se antes de jantar não podia haver batalha, foi-se a
desceu o ele e achando-o co’a espada na mão se
uma ermida que aí perto estava: onde, depois de
receberam com tão aceso desejo da vitória, como
ouvir missa, andou olhando as antigualhas da casa,
lhe nascia do causa porque faziam batalha.
que conquanto estavam gastadas do tempo, eram
E posto que o cavaleiro nas armas fosse extremado,
tão notáveis, que nelas se parecia que já ali estivera
o da Fortuna além de combater pela verdade, o
algum tempo populoso e grande.
era tanto mais, qu’em pequeno espaço lhe desfez
E antre algumas cousas que achou de notar foi
o escudo e armas, e pôs em tal estado com muitas
uma sepultura de pedra, lavrado de obra tão sutil,
feridas, que o fez vir a terra tão perto de morto,
que não teve acordo pera sentir o perigo em que lhe pareceu merecedora e digna de se fazer
qu’estava: então, tirando-lhe o elmo, tornou em si memória dela em toda a parte; mas os lavores de
O cavaleiro da Fortuna lhe disse, que se desdissesse: que era feita de gastados do tempo se não podiam
da mentira que dissera, senão que o mataria. enxergar. Tinha umas letras gregas em roda tão
“Mal pode ser vencido de vós, disse o outro, quem mortos, que não pode ler delas mais que uma
o já é d’outrem: a mentira, que dizeis que disse, não pequena parte, em que dizia: – Arbão rei do
desdirei, que maior seria ess’outra, se eu a dissesse: Norgales: – então lhe lembrou que a sepultura
matei-me se quiserdes, qu’em vossa mão está: este ficara do tempo do famoso rei Lisuarte senhor da
é o maior bem que meu mal me pode fazer, e se Grã-Bretanha: e perguntando ao ermitão se aquela
sentir alguma cousa, será tirar-me outrem a vida e casa fora maior, lhe disse:
não as lembranças de quem as de mim não tem.” “Quando eu pera ela vim, que há trinta e quatro
O cavaleiro da Fortuna, que o viu tão desesperado anos, era como agora; e porém sempre ouvi
da vida, o deixou, dizendo: “Não matarei eu quem afirmar que no tempo que os infiéis entraram este
disso se contenta, abasta pera prova de vossa reino, a derrubaram de todo: e ali contra a parte
verdade, quão mal a soubestes defender.” E subindo da mão direita está outra sepultura, em que jaz
a cavalo começou caminhar algum tanto contente Dom Grumedão alferes d’el-rei Lisuarte, pegada
de si polo que lhe acontecera. O outro se tornou com a de Dom Guilão o Cuidador.”

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“Essa quero ver eu, disse o da Fortuna, porque em o volentíssimo Deserto cavaleiro do Solvage, que
homem tão namorado se não pode ver cousa má.” estava já são das feridas que recebera nas batalhas
Então se chegou pera onde as sepulturas estavam, que com Graciano, Francião e Polinardo houvera.
que era junto da porta, e estêve-as vendo grande Rompendo por antre a gente, chegou al-rei, a
espaço, em especial a de Dom Guilão, a que que com os joelhos no chão começou dizer:
sempre fora afeiçoado polo que dele ouvira. “Muito poderoso senhor, o cavaleiro da Fortuna,
Aquelas cousas lhe trouxeram à memória lembran- cujo eu sou, beija vossas reais mãos. Diz que seu
ças da senhora Polinarda, de quem havia muitos propósito foi sempre não vir à vossa corte senão
dias que não sabia novas nenhumas, e não podendo pera vos servir, e que agora por desfazer um
suster em si o cuidado, que lhe naquela hora agravo a um dona que com ele vem, lhe é forçado
deram, posto que nunca dele andava desocupado, desafiar um cavaleiro que nela está, a que chamam
deitou-se sobre a pedra do moimento da ossada o do Salvage; pede-vos que lhe deis licença pera
daquele namorado Guilão o Cuidador com as o poder fazer, e vir seguro à sua batalha, segundo
mãos e rosto postas sobre ele, e ali por algum de tão excelente príncipe, como vós, se espera.”
espaço esteve passando consigo mil palavras namo- El-rei, que ouviu nomear ao cavaleiro da Fortuna,
radas, oferecidas a quem as não ouvia, tão metido e estava informado de suas cousas, pesou-lhe vir
na desacordo das outros cousas, que o ermitão e com tal demanda à sua casa, e quisera impedir a
a dona cuidaram que alguma enfermidade lhe licença. Porém o do Salvage, que sentiu sua tenção,
sobreviera; mas Selvião lhes disse, que se não se levantou, dizendo: “Não é aquele o homem, a
espantassem, que aquela era uma dor que o ator- que se nada deve negar; porque pareceria que
mentava, e muitas vezes lhe vinha, a que ninguém temor de suas obras o faz. E pois isto me toca a
sabia dar remédio. mim, Vossa Alteza o mande entrar, e segurar, o
O cavaleiro da Fortuna depois de passar por campo; senão eu irei em busca dele, e cumprirei
aquele acidente, conheceu a fraqueza em que caía, seu desejo e o meu.”
e limpando os olhos, se levantou em pé, e quis El-rei, vendo que se não podia escusar, disse a
com alegre semblante dissimular a tristeza manifesta, Selvião: “Amigo, dizei a vossa senhor que me pesa
que nele parecia. Selvião lhe deu o cavalo, dizendo: muito vir à minha corte, com cousa que nela
“Senhor, lembre-vos o muito que tendes pera possa dar desgosto; porém pois assim quer, que
fazer, e com quem haveis de haver hoje batalha, eu o seguro de todos, senão desse a quem busca,
não gasteis o dia em al, pois o mais dele é pas- de que não sei que tão seguro pudera estar.”
sado.” Selvião se despediu, e tornando a cavalgar, se foi
“Vamos onde quiseres, disse o da Fortuna, que com recado a seu senhor, que logo entrou armado
mor é a em que eu me agora vi que essoutra, com de todas armas. Muitos o saíam a ver, que a nova
que tu me ameaças.” de sua vinda se espalhou por toda a gente, e
Então, despedindo-se do ermitão, se foi contra a entrando no terreiro, fez seu acatamento al rei,
grande cidade de Londres, levando consigo a que estava a uma janela do apousentemento de
dona, e antes que entrasse nela, chamou a Selvião, Flerida; porque quis que ela visse aquela batalha,
e dizendo-lhe o que havia de fazer, o despediu de pois era dos dois mais notáveis e melhores cava-
si, esperando que tornasse com resposta do que leiros, que no mundo havia.Todo o campo, janelas
lhe mandara. Selvião chegou ao paço a tempo e casas em torno do terreiro estavam tão cheios
que el-rei acabava de comer acompanhado de de gente, que o mais da cidade se despovoou por
muitos senhores, e entre eles mais chegado a ele acudirem àquela parte. Nisto entrou o cavaleiro

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do Salvage, armado de suas próprias armas e vira. Mas a cobiça da honra pode tanto, e a
devisa, tão novas que ainda o dia dantes lhas razão andava tão cega antre eles, que a não
acabaram.Vinha acompanhado com muitos cava- quiseram seguir no que lhe ele mandava; antes
leiros. Argolante lhe trazia a lança, Dom Rosirão perdendo a obediência, juntaram-se tanto que
de la Brunda o escudo; chegando onde o da com os punhos das espadas começaram torcer e
Fortuna estava, disse: “Senhor cavaleiro, não sei abolar os elmos por tantas partes, que o ferro se
porque me desafiastes: porém sei que pera meu metia polas cabeças. O sol era posto, e neles não
gosto esta é a mor mercê que me podíeis fazer.” se conhecia ventage, mais que quanto as armas
“Quem tão sem piedade, disse o da Fortuna, mata do da Fortuna estavam algum pouco mais soãs
quem o não merece, não se deve espantar achar que as do outro.
quem o castigue. Esta dona se queixa de vós, El-rei, que nenhum descanso nem repouso recebia
cumpre que a contenteis no que quiser, senão em seu coração, fosse onde estava Flerida, dizendo:
aqui estou eu, que lhe darei a emenda, que ela há “Senhora filha, se Dom Duardos é vivo e por
mister, e vós mereceis.” mão d’alguém há de ser livre, não há no mundo
“A essa dona, disse o do Salvage, nem a outra de quem homem o espere senão de um destes,
alguma que haja no mundo, não fiz nunca cousa que estão perto de perder as vidas. Peço-vos de
de mim se possa queixar, mas pois o batalha há mercê que os vades apartar, que por mim já o não
de ser convosco, não quero dar nenhuma razão, quiseram fazer, e senão, se eles morrer, eu hei por
com que me escuse de fazer.” morta a esperança, que té aqui tive dalgum bem.”
Ambos se arredaram o espaço necessário, e ao Flerida, que té então nunca duma casa, nem nin-
som de uma trombeta remeteram com toda a guém a vira, houve por mui grave o que lhe el-rei
força, que os cavalos puderam trazer: as lanças pedia: porém quis-lhe fazer a vontade, e também
foram feitas em pedaços, os escudos falsados, e eles porque o dó que daquele seu sangue havia, a
passaram um polo outro como pessoas, o que os moveu a isso.
encontros não tocaram. Logo tomaram outras, Assim saiu ao terreiro, levando-a el-rei pola mão
porque o cavaleiro da Fortuna lhe pediu que acomponhada de quatro donas vestidas de negro,
quisesse tornar a justar; e assim passaram à segunda e ela com um hábito da mesma cor de pano
e terceira carreiras sem se derrubarem, sendo grosso, conforme a seu cuidado, na cabeça uma
sempre os encontros dados com tanta força, que beatilha de vasso, que lhe cobria os olhos; porém
parecia impossível poderem-se suster a eles. E tão fermosa como no tempo de sua alegria. No
arrancando das espadas começaram a ferir-se tão terreiro do paço foi tamanho alvoroço, vendo-a
sem piedade como se neles houvera alguma razão vir, e o espanto e reboliço da gente tão grande,
Pera o fazerem, usando de maiores forças e manha que os cavaleiros se tornaram a apartar, por ver
cada um do que té ali nunca fizeram; por ver que que era.
ali mais que em outras partes em que se acharam, Flerida chegou a eles, e tomando o da Fortuna
eram necessárias. pola manga da loriga, disse: “Peço-vos, cavaleiro, se
[...] em algum tempo por alguma dona, tão maltratada
El-rei, a quem aquela dor atormentava, não o da fortuna como eu, haveis de fazer alguma cousa,
podendo sofrer, desceu ao terreiro acompanhado que seja deixardes esta batalha, pois nela não se
de muitos senhores ancianos, com prepósito de os ganha senão o risco, em que vossa vida é a
apartar, vendo tamanho erro, seria deixar assim dessoutro cavaleiro está posta.”
morrer os melhores dois cavaleiros que nunca O da Fortuna pôs os olhos nela, e pareceu-lhe

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tão natural com sua senhora Polinarda, que não CAPÍTULO LXXXVI
soube se cuidasse que era aquela: e pondo os
giolhos em terra, disse: “Senhora, esta foi a batalha Do que aconteceu a Floriano do Deserto
que mais desejei acabar que todalos do mundo; estando na corte do grã Turco
agora a deixo, pois nisso vos sirvo, e a honra dela
seja desse cavaleiro, que também a merece.” Estêve muitos dias Floriano do Deserto na corte
“Essa não quero eu, disse o do Salvage, senão do grã Turco, servindo Tragiana em coisas do seu
quando por mim a ganhar: e se vós desejastes gôsto, mostrando o preço de sua pessoa em todas
acabá-la, confesso-vos que também desejei o as emprêsas, que naquele tempo aconteceram, saindo
mesmo; mas pois fazeis a que a senhora Flerida tanto a sua honra e com tanta glória e fama, que
manda, mal poderei eu fazer o contrário, que sou antre os mouros por coisa divina era estimado. E
seu, e lho devo de obrigação.” Flerida lh’ agra- como os espaços que lhe vogavam do exercício
deceu suas palavras, tornando-se pera cima, sem das armas gastasse em seus amores, teve tanto
saber que não era aquela a primeira vez que de poder a conversação de cada dia que o obrigou
sua mão receberam a vida. a perder-se por ela, coisa contra a sua condição,
El-rei os quisera mandar levar a seu apousenta- que pera com elas a soía ter livre: e na verdade
mento: mas o da Fortuna, que viu junto consigo pera com mulheres não se há de perder tamanha
o hóspede que tivera a noite passada, que viera coisa como é a liberdade, pois está claro que nada
ver a batalha, rogou-lhe que o levasse pera sua agradecem senão o que com sua condição ou
cosa, não querendo aceitar d’elrei aquela mercê, apetite conforma, e que o seu sempre nasce da
que estava corrido de lhe perder a vergonha no pior porfia que nelas há.
que lhe pedia. O hóspede o levou à casa de um Porém Tragiana estava tão afeiçoada a suas obras,
seu amigo; e apertando-lhe as feridas, metido em e namorada de seu parecer que no amor não lhe
umas andas, se foram pera sua casa, onde foi ficava devendo nenhum quilate.
curado por mão de uma sua filha, que sabia Assim que estas vontades conformes praticadas
muito na arte de cirurgia; e da dona que ali o muitas vezes tiveram tanto poder que vieram ao
trouxe não souberam mais onde se escondera, efeito delas, onde Floriano chegou ao fim do que
antes afirmaram alguns que no meio da batalha esperava e entrou no começo do aborrecer ou
desaparecera. enfastiar, coisa que alguns homens têm por natural,
O cavaleiro do Salvage foi levado a seu apousen- e Tragiana perdeu o que se deve muito estimar
tamento, e curado com mais resguardo que nunca; e se depois não cobra: e não é de espantar que
porque então, mais que nunca, também era isto assim acontecesse, que impossível coisa parece,
necessário. El-rei e todolos de sua casa ficaram quem dos vícios se deixa combater ao fim não ser
tristes polo da Fortuna não querer ficar nela. vencidos deles.
Aqui deixa a história de falar neles, e torna aos Assim que, nestes dias em que Floriano ia perdendo
outros da corte do imperador, que naquela o cuidado da Tragiana, e ela achava mais em que
demanda andavam, cada um experimentando sua cuidar, vieram novas à corte do grã turco das
fortuna, confiando em suas mostras, que té li muitas e mui grandes vitórias d’Albaizar e do
foram a seu gosto: mas isto não devia ser assim, muito que na corte do Imperadar fizera. As quais
porque quando ela é maior, então se deve ter em em tão grande veneração eram tidas, que de todo
menos, ou haver-lhe maior medo. faziam escurecer e pôr em esquecimento as de
Floriano, de que ele ainda que o dissimulava,

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recebia grã pesar. E estando uma noite praticando panhada de duas donzelas, e quatro escudeiros, e
com Tragiana em coisas, que daqueles tempos vós comigo, quero ir desconhecida, como don-
soíam passar as horas de sua conversação, veio ela zela andante, à corte do Imperador Palmeirim,
trazer à memória quanto devia a Albaizar por os pera ver o fim do que desejo. E pera isso haverei
perigos, em que por seu serviço, se pusera e quão licença de meu pai, pera ir ver a rainha, de Síria,
mal cumprira com ele no prometimento, que lhe minha tia, que me ele não negará, porque muitas
fizera antes de sua partida; pois o que ao tempo vezes me tem dada: e então farei viagem a essa
dela lhe prometera por satisfação de seus trabalhos, outra parte, e pera mais brevidade, tenho já man-
o acharia já roubado e perdido e entregue a dado um correio à Albaizar, que se não vá do
quem ao fim se havia de ir, onde a fortuna o corte té ver outro recado meu.”
levasse, e ela ficaria com sua mágoa, que lhe Floriano, que sempre desejara sair dali, e não via
duraria todo o tempo em que a lembraça daquela caminho pera isso, vendo o desejo de Tragiana,
perda a acompanhasse. louvou-lho muito, dizendo, que logo se havia de
Floriano que já nesse tempo era livre, de seus fazer, temendo que o natural dos mulheres, é
cuidados, quis com razões fingidas mostrar que arrepender-se tão prestes quão prestes lhe vêm os
então mais que nunca estava metido neles: e acidentes. Porém como também a sua condição
porque neste caso, e que se não aventura mais delas seja ser constantes no danoso e mudáveis no
que palavras, os homens não hão de ser avarentos bom, ainda a manhaã não era de todo clara,
ou escasso delas, ele a satisfaz tanto quanto quando já estava na câmara de seu pai, mostrando
cumpria, dizendo antre algumas, que, lhe então com lágrimas fingidas, que sabia por nova certa
o tempo e a isenção ensinava. “Senhora, se ante, a rainha da Síria sua tia estar doente, de uma
vós as obras d’Albaizar hão de ter tanto mere- doença perigosa, pedindo-lhe que em todo o
cimento, que vos façam esquecer as minhas, que caso lha deixasse ir visitar.
mercês me podeis vós já fazer, que a mim O turco como não tivesse outro filho, e a esta
façam contente! como a si próprio amasse, quis satisfazer-lhe a
Combater-se ele, com muitos, vencê-los todos, vontade.
não se deve ter em muito, pois o faz, sobre vossa E posto que a quisera mandar acompanhada como
fermosura, que pera mores coisas basta. a sua filha, nunca pode acabar com ela, dando
Com quem me poderia eu combater, quem entraria por escusa, que pera menos detença de seu caminho
comigo em campo que não desbaratasse se a queria, ir aforrada com só duas donzelas, e quatro
batalha fosse feita em vosso nome? escudeiros, e o seu cavaleiro cristão, que este nome
Os vencimentos, que ele faz, vós os fazeis, suas teve sempre Floriano, enquanto naquela corte
vitórias vós as alcançais, o vosso nome peleja, ele esteve.
faz tudo e a fama fica com Albaizar. Despedida do grã turco, levando atavios pera sua
Consenti que me vá ver com ele, e como vosso pessoa, louçãos e de muito preço, tomaram avia,
me combata, então vereis, a quem deveis mais, ou que ela mais desejava, e em poucos dias arribaram
quem vos merece melhor servir.” naquele famoso Império de Constantinopla, algum
“Estou tão determinada em fazer uma coisa, disse tanto desviados donde a corte estava.
Tragiana, que cuido que por força a hei de E caminhando pera ela um dia de grã calma, os
cumprir; e ainda que muitas vêzes o determinasse, tomou a sesta em um vale gracioso, cheio de
de não o fazer, essas palavras, que vos agora ouço, arvoredos, à sombra dos quais determinaram
me fazem assentar no cumprir, e é, que acom- repousar; té que a calma fosse passada pera tornar

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a seu caminho. Não passou muito espaço depois “Não vos estimam aqui tanto, disse o outro, que
que chegaram, que polo mesmo vale vieram quatro se presuma que pera vós é necessário mais de
cavaleiros armados de armas ricas e louçãos e um, e eu quero ser esta, que meus companheiros
sobretudo fortes ao perecer: chegando onde estava são para tanto, que não sei se algum deles se
Tragiana, detiveram as rédeas aos cavalos olhan- contentará disso.”
do-se uns ao outros, como que se espantavam de E arredando-se o necessário, Floriano estava tão
a ver. Isto era que esses cavaleiros vinham de manencório que a ira lhe impedia a fala, coisas
Constantinopla vencidos, da mão de Albaizar e que muitas vezes acontece a homens coléricos, e
viram o escudo do vulto de Tragiana, por quem remetendo pera ele o encontrou tão fortemente,
se ele combatia, e vendo ali e ela tive-ram-no por meio do escudo, que falsando a ele e as armas
por coisa maravilhosa, porque trazia o rosto o fez vir ao chão, rendido o espírito e a soberba.
descoberto e era tão bem tirado no escudo de Os três, que ficavam, vendo que com homem, que
Albaizar, que de fraca memória seria quem vendo tal encontro dera, não era necessário provar-se a
a ele e a ela não conhecesse um por outro. iguala, todos juntamente o comenteram, e não
Um deles se chegou mais dizendo:“Senhora, a quem fizeram mais danos, de quebrar as lanças sem o
vossas mostras muito dano fizeram, bem será que mover da sela: e porque a sua quebrara no primeiro
com alguma satisfação o emendeis, isto há de ser arrancou da espada e ao passar deu um revés por
querendo ir conosco, e parecer ante nossas damas, um braço a um deles com tanto força, que
porque já quando souberem nosso vencimento, vejam cortando as armas com parte, da carne e o osso
a razão, que houve pera isto assim ser, pola diferença o aleijou de todo.
que de vós e elas há. E que isso seja contra regra [...]
de bons namorados, não se pode negar a um parecer
como êsse seu merecimento.”
Floriano, algum tanto indinado de ver sua tenção, CAPÍTULO CVII
levantou-se em pé dizendo. “Senhores segui vosso
caminho, ou repousai dele, se vindes cansado, não Do que aconteceu ao cavaleiro do Salvagem
queirais pagar a vossas damas o pouco que fizestes antes que se apartasse do donzela.
com tornar a elas a culpa de vossa fraqueza.
Contudo, se isso vos não parece bem, trazei-as vós O cavaleiro do Salvagem todo o dia gastou na
aqui e verão o que desejais, que pera esta senhora, conversação da donzela ao longo do ribeiro, onde
ir lá, nem ela terá vontade, nem eu tão pouca passaram a sesta debaixo dos arvoredos que ocupa-
força, que não vo-la defenda.” vam.
“Falais tão sôlto, disse um dos outros, que, só por Chegada a noite, porque não sentiram nenhum
ver vossa doudice, há de ir em nossa companhia: povoado onde seguramente a pudessem ter, tiveram
e se vós vos atreveis a defende-la cavalgai e fazer- por conselho mais seguro passarem-na naquele
-vos-ei tornar a descer, ficando com menos soberba mesmo lugar. O escudeiro ajuntou da erva sobre
da que agora o tendes.” que se encostaram, e o cavaleiro adormeceu com
Floriano sem mais responder se pôs a cavalo e tão pesado sono, como quem naquela hora não
enlazando o elmo, disse. “Agora, senhores, quero tivesse cuidado nenhum que lho fizesse quebrar.
ver se vossas obras são como as palavras. Podeis A donzela, a que ficara mais que sentir, e menos
vir a mim, um a um; e senão vindes todos, que de que se contentar, esta maginação, e ver o
a vileza com qualquer virtude se desbarato.” esquecimento do cavaleiro, a fez estar toda a noite

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acordada, descontente de si mesma, e arrependida Trás essas palavras lançou tantas lágrimas quantas
de seu erro; coisa que pouco lembra antes de lhe pareceram necessárias pera dar cor ao que
caírem nele. dizia, dizendo mais.
Estando assim consigo revolvendo na fantesia se “Peço a Vossa Alteza que com o ânimo real, com
acharia algum remédio em coisa que o já não que sempre favoreceu os tristes, me socorra na
tinha, teve por seu conselho encomendá-lo ao maior sem razão e agravo, que se nunca fez a
esquecimento; mas quando as coisas muito doem, homem.
mal se pode isto fazer. E porque o caso é de qualidade, que ao presente
– Quem me dissesse por que este arrependimento se não pode dizer senão com muito maior risco
não chega quando se pode curar, ou de que serve meu, queria me mostrasse o cavaleiro em que
quando já não tem remédio? maior confiança tem, e o mandasse comigo à
A razão é que como esta ceguidade nasce de parte onde o levarei, e onde a sua fama além de
amarem mais o erro que a pessoa, este amor tem descansar a mim, crescerá em mais honra do que
tanto poder, que estorva as coisas, com que se porventura té aqui teve.”
pode atalhar. “Homem de bem, disse o Imperador, inda que
[...] nestes casos se não deve confiar de qualquer
pessoa, o dó que recebo dessas lágrimas, e idade
cansada, me faz sair um pouco fora do ordinário,
CAPÍTULO CXIII porque não creio que em tantos anos, e tão alvas
caãs possa haver engano.
De uma aventura que veio à corte do Este cavaleiro, que está junto comigo, se chama
Imperador, e do que nela sucedeu. Floriano do Deserto; outros lhe chamam o do
Salvagem: é meu neto, e o homem em que agora
Ao outro dia, depois do embaixador partido, mais confiaria qualquer feito; quero que vos
acabando o Imperador de comer na sala, acom- acompanhe nessa afronta, que quanto maior for,
panhado de alguns grandes, entrou pola porta um mais o havereis mister.”
homem velho, tão arrugado e fraco de muita O velho se lançou no chão, querendo-lhe beijar os
idade, que parecia que quase se não podia suster pés por tamanha mercê, dizendo: “Por certo a fama
nos pés. de vossa benevolência e realidade não é errada;
Como tivesse a pessoa grande e autorizada, antes agora, acabo de crer que tudo, o que de vossa
juntamente co’a alvura da cabeça e barba, fazia virtude se diz, é menos do que se deve dizer.”
nele crédito pera se não duvidar coisa que dissesse. O do Salvagem lhe beijou as mãos polo encarregar
Todos puseram os olhos nele por ouvir sua daquele caso; e porque o velho dava pressa na
demanda. partida se foi logo armar e se foram seu caminho
O velho chegando-se junto do Imperador lhe sem ter lugar a se despedir da Imperatriz nem de
quis beijar as mãos, a quem ele as não deu, antes seus amigos.
o ajudou a erguer, perguntando-lhe o que queria. O Imperador ficou perguntando aos seus se havia
“Senhor, disse ele, com voz tão fraca e cansado ali quem o conhecesse, e não se achou pessoa que
que quase se não ouvia; pois em vossa casa esteve disso pudesse dar novas.
sempre certo o socorro pera aqueles que o hão Primaleão lhe estranhou a licença que lhe dera
mister, não creio que a mim, que disso tenho sem saber particularmente que necessidade ou
maior necessidade, me faleça.” afronta era a sua.

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No mesmo dia se despediu Beroldo príncipe da pressa, com que estes dias me fazeis caminhar,
Espanha, Platir; Blandidon, Pompides, Graciano, me pesa achar passagem tão vagarosa.”
Polinardo, Roramonte, Albanis, Dom Rosuel; e Acabando estas palavras, saltando fora do cavalo se
todolos outros sinalados, que naquela hora estavam meteu no batel e mandou remar contra a outra parte.
presentes, pera seguir o do Salvagem; temendo-se Ainda não seria no meio d’água, quando os cobriu
que, pois o velho encobria que o levava, não fosse uma nuvem tão escura, que com ela, perdeu de
algum engano. vista os de terra e eles a ele.
Com isto ficou a corte só e o Imperador descon- Como o seu escudeiro quisesse lançar-se ao rio
tente do mau recado, que tivera na partida de seu pera segui-lo representou-se-lhe ante os olhos
neto, temendo-se dali lhe nascer algum dano, que uma serra muito grande coberta de névoa, e ao
o coração lho revelava. seu parecer julgava que aquela se metia antr’ele e
O do Salvagem e o velho caminharam todo o seu senhor.
que daquele dia estava por passar, e a noite, sem E virando-se contra o velho não o viu, nem
ter nenhum repouso; e em amanhecendo deram soube pera onde fora.
de comer aos cavalos e eles repousaram um pouco; Então teve por certo que suas lágrimas eram
porém o velho, que todo repouso havia por nascidas de engano, e não de coisa que lhe doesse;
trabalho, o fez logo tornar a cavalgar. e não sabendo determinar-se, depois, de cuidar
Já que o mais do dia era gastado, se acharam à mil vaidades, pós em sua vontade correr toda
vista, dum castelo, que sobre uma rocha estava aquela terra, e se não achasse novas, tornar-se a
assentado, ao parecer dos olhos fermoso e forte; casa do Imperador com aquelas da perda de seu
e polo pé dele corria um rio de tanta água, que senhor, pera que com elas seus amigos quisessem
em nenhuma parte fazia vau, e passava-se com buscá-lo, querendo que da diligência de muitos,
uma barca tão pequena, que não podia alojar em algum fruto se tiraria.
si mais que té dois passageiros. O do Salvagem depois que passou o rio, a nuvem
O velho saltou fora de seu cavalo, e disse ao do que dantes o cobria ficou sobre o batel, que de
Salvagem. “Bem vêdes, senhor cavaleiro, que a muito preta lho fez perder de vista; e porque a
barca é tão estreita, que, se quisermos entrar seu ânimo nenhuma coisa fazia medo nem receio,
todos nela, poremos as pessoas em risco desne- posto que sentisse que havia de que o ter, começou
cessário; porque a mim não me convém meter a andar assim a pé contra o castelo, que, daquela
vossa nele, se não salvá-la de todos pera aventurar parte tudo estava claro.
naquele pera que a trago, peço-vos que desca- Como a altura da rocha fosse grande, e o peso
valgueis e passareis só; e o vosso escudeiro e eu das armas o afrontasse, conveio-lhe descansar duas
passeremos com os cavalos cada um por sua vez, ou três vezes.
que d’outra maneira estaria o perigo certo e a Neste espaço de detença se passou o dia, de sorte
passagem duvidosa.” que, quando chegou ao alto, era já noite.
“E’ tão honesto, disse o do Salvagem, errar antes A este tempo se abriram as portas do castelo e
polo conselho de quem pola idade tem expe- saíram dele quatro donzelas com tochas acesas,
riências de muitas coisas, que acertar polo de que, tomando-o antre si, o levaram consigo.
quem não passou nenhuma, que, ainda que outra E como elas fossem gentis mulheres e o recebessem
razão não tivesse pera seguir vosso parcer, esta só com gasalhado, e ele fosse inclinado a folgar com
bastaria; quanto mais a qualidade do caso não nos aquelas companhias, ia tão ledo, que, nenhum perigo
mostra outro remédio melhor, inda que pola lhe lembrava e nem lhe parecia que o podia haver.

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Assim punha os olhos em umas como em outras, alguém alguma coisa, agora cuido que devo mais
porque a todas lho guiava a vontade, que isto é ao cavaleiro que me trouxe a este lugar, porque
natural de homens de condições isentas. poder-vos servir tenho por tamanho preço, que
E assim praticando com elas entraram no pátio do me pesa ser minha vida tão pouca pera se aventurar
castelo, que estava lageado de umas pedras negras; em algum perigo por vós; inda que o maior, que
e daí subiram a uma sala grande e mal-obrada, feita lhe já pode acontecer, ante si o tem, e todolos
ao modo antigo, onde o veio receber uma donzela outros estimo em pouco senão este.”
acompanhado doutras donas e donzelas. A senhora, que se não pagava destas razões, lhe
Ela era tão grande de corpo, que quase parecia disse; “Ora, senhor, isto é tarde, ceai e repousareis
giganta, não tão-somente no estatura, mas inda no que amanhaã praticaremos no que se deve fazer.”
grandeza dos membros; porque tudo era à pro- E despedindo-se dele com toda a cortesia, que o
porção do corpo. ódio ou engano podia fingir ou dissimular, o
Seria da idade de dezasseis anos, feia e porém deixou e se foi aos seus apousentos.
airosa. O do Salvagem ficou algum tanto contente, vendo
No conserto e atavios de sua pessoa parecia de quão moderadamente sofreram suas palavras,
muita maneira e gravidade. crendo que sofrendo assim outras e outras, poderia
Em chegando ao cavaleiro do Salvagem o tomou seu desejo ter efeito; porque inda, que a donzela
pola mão, recebendo-o com tamanho gasalhado não fosse gentil mulher, a disposição de sua pessoa,
e honra ao seu parecer, como o pudera fazer a a composição dos membros, a grandeza do corpo,
pessoa, em cuja mão estivera todo o remédio de a singular graça e ar, lha fazia desejar, crendo que
sua vida; e assim o meteu em uma câmara do se dela pudesse haver fruto, seria digno de grandes
mesmo jaez da sala, armada de tapeçaria rica. obras.
Como o do Salvagem a este tempo tirasse o elmo Com este desejo se sentou à mesa, onde foi servido
e viesse afrontado de andar a pé, ficou tão gentil das próprias donzelas, que antes o receberam;
homem, além do seu natural que a senhora não antre os quais uma, que o servia de copa, era
pôde negar ao desejo uma inclinação amorosa, de tanto mais gentil mulher que as outras, que lhe
que lhe muito pesou, por ver em si tanta fraqueza fez esquecer de tudo, olhando-a com afeição
em favor de homem, que lhe tanto mal fizera. enamorada, sem lembrança do cuidado que dantes
Com esta indignação de si própria, usando de seu o ocupava; porque sua arte era naqueles casos
robusto coração, tornou a aplacar aquele primeiro perder-se sempre polo que achava mais perto.
movimento, e afeiçoando palavras pera o contentar
e dissimular o ódio, lhe disse:
“Senhor cavaleiro, té aqui sempre tive o coração CAPÍTULO CXIV
cansado, porque pera uma ofensa, que me é feita,
me faleceu a esperança e o socorro de ser vingada. Em que dá conta de quem era esta donzela,
Agora que vos tenho a vós, cuido que tenho e do que passaram em sua viagem.
tudo, por isso peço-vos que esta noite repouseis,
pois o trabalho do caminho vos põe em necessidade Diz a história que Colambor, mãe de Bracolão e
disso, amanhaã vos darei conta do pera que vos Baleato gigantes, que o do Salvagem matou em
hei mister.” Irlanda, segundo atrás se conta, como não tivesse
“Senhora, respondeu o do Salvagem, postos os outros filhos, e a estes amasse de perfeito amor de
olhos nela, se algum tempo cuidei que devia a mãe, sendo certificada de sua morte, não mostrou

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sentimento, segundo as mulheres costumam, mas
com coração varonil pôde encobrir em si tamanha
dor, determinando sempre buscar todolos modos
Memorial
de vingança, que lhe a fortuna e o tempo ofere-
cessem. das Proezas
Com esta determinação revolvia no juízo mil
coisas pera a execução dela.
E como em nenhuma achasse perfeito caminho
da Segunda
pera o que desejava, socorreu-se a um cavaleiro
velho, criado que fora do gigante seu marido, que Távola Redonda*
daí perto em outra ilha vivia, que neste esperava
achar verdadeiro conselho; porque além dele ser
JORGE FERREIRA DE VASCONCELOS
cheio de muita experiência pola idade, de seu
natural era sabido, astucioso e algum tanto mágico:
Pois como Alfernau, que assim chamavam o cava-
CAPÍTULO I
leiro, visse Colambar em sua casa, movido à piedade
de suas lágrimas se lhe ofereceu a tudo o necessário.
Como teve princípio a Ordem da Cavala-
E porque por sua arte alcançou que o cavaleiro
ria.
do Salvagem estava em Constantinopla, lhe disse:
“Senhora, se nesse negócio quiserdes seguir meu
Querendo contar as famosas façanhas do militar
conselho, eu me atrevo a vos fazer contente.”
exercício (cujo é o preço das humanas graças) não
alheio da história, antes devido princípio parece
uma breve relação da antiguidade e origem da
nobre Ordem da Cavalaria, que além da tal
memória a curiosos ser aprazível, é necessário
fundamento (aos que esta maiormente lerem) e
por ventura estímulo de imitação, saber-se como
foi instituída por tão poderosos Príncipes, notáveis
Conquistadores. [...]
Depois, florescendo nossa católica Fé, Artur, Rei
de Inglaterra e França, ordenou a Ordem dos
Távola Redonda, em que igualmente comiam
com ele. Estes foram os vinte [e] quatro cavaleiros
que, nas cortes de Londres, juraram em mãos da
Rainha Genebra, cada um por si e todos em geral
oferecerem quando cumprisse a vida, até perdê-la
em socorro de toda [a] Donzela, ou de qualquer
pessoa outra que à corte viesse requerer direito,

* Ed. João Palma Ferreira. Porto: Lello Editores, 1998.

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e nunca faltarem uns aos outros em todo [o] res em escreverem seus maravilhosos feitos e pro-
perigo. Dos que os principais e de maior nome ezas, cada um segundo melhor pôde alcançar. E
foram Dom Galvão, Lançarote do Lago, Tristão de daqui também procederam diferentes opiniões, fi-
Leonis, Dom Galeazo, Heitor dos Mares, Troiano, cando a verdade suspeita, ou tão escura e confusa
Palomades, o pagão, e outros que sustentaram a como as histórias que os Gregos encobrem em
cavalaria abalizadamente. Donde, com sua ajuda, suas fábulas. E de muitos volumes que modernos
el-Rei Artur ganhou largo império e imortal autores trasladaram das Crónicas Inglesas em sua
nome, deixando de si tal exemplo que, em sua materna linguagem, nasceu esta confusão, porque
imitação, depois, Carlos Magno, Cristianíssimo o vulgo tudo nega o crédito que se deve a esta
Imperador, ordenou os Paladinos, de França tão tão antiga Ordem, que testificam Sigisberto
nomeados, que dormiam dentro em seu real paço, Gálico e Guillielmo de Nangis, escritores latinos;
como os cavaleiros da guarda dos Católicos, Be- aos quais imitando e seguindo Foroneus, filósofo
licosos Reis de Portugal. E também foram doze e Cronista Inglês, desejoso de trazer à luz as
Pares, aos quais, sobre as já ditas preminências cousas que lhe pareceram de mais tomo, compilou
Carlos isentou, que só el-Rei pudesse julgá-los. um sumário das que passaram em tempos del-Rei
E de tal favor real que é o toque, antes espertador Sagramor. E começa com tais palavras à letra.
dos exercícios naqueles tempos gloriosos por di- Aquele Magno Alexandre, raio que discorreu por
versos Reinos, veio em tanto uso a ordem da o universo, como açoute dos fados, conquistando
cavalaria, renovando-se segundo em seu princípio a mor parte dele em tão breve tempo que se pode
tão altamente, que Príncipes e grandes senhores, dizer antecipar-se o efeito ao desejo e a obra à
quais os antigos da Grécia, com o gosto desta esperança. Chegando à sepultura do soberbo
novidade (cêvo dos juízos humanos), esquecidos Aquiles, disse suspirando: – Bem-aventurado
os deleites e vida descansada, inimiga da imortal mancebo, que em vida tiveste amigo qual Patroclo
fama, escolhiam os virtuosos trabalhos, por que se e, em morte, pregoeiro qual Homero, desejando,
alcança o famoso nome, buscando por estranhas parece, o animoso conquistador outro tal cantor
terras perigosas aventuras, donde lhes chamaram de seus famosos feitos, sabendo que do trabalho
Cavaleiros de aventuras, em que uns ganharam do escritor se colhe a fama do capitão, que por
imortal glória com muita honra, outros morte o conseguinte dá lustre à escritura com suas obras,
arrebatada; e muitos eterna infâmia com próprio quando são tais. E assim dizia dos próprios, que
dano segundo for soe em os casos humanos, que via por sua morte fazer-se um grande Epitáfio,
de muitos em um propósito e para um mesmo entendendo por a sua história que escreveram,
fim sai sempre diversos e não cuidados sucedi- dizem, trinta historiadores, aos quais se deve a
mentos. E como o tempo e juntamente as incli- memória de Alexandre que perecera se lhe faltara
nações dos Reis, de quem as vontades súbditas se escritor.
regem, atirando ao próprio interesse trazem as Querendo eu por tanto com a minha diligência,
cousas, foi caso de extremo no em que Artur na sorte de meu génio, inserir o obscuro nome,
reinou, como a ordem dos andantes (que assim como liga de metal entre as façanhas dos cavalei-
também se chamaram por andarem de umas em ros andantes que se abalizaram na animosa virtu-
outras províncias) se estendeu por todas as regiões, de da antiga ordem de cavalaria, dispus-me ao
favorecida de seus sequazes, tal é sempre a diligên- trabalho por que tudo se alcança. Fundado na
cia humana em admitir novidades, por cuja me- mais alta matéria, que confiado do próprio en-
mória foi necessário ocuparem-se muitos escrito- genho, copilando um memorial das notáveis pro-

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ezas dos cavaleiros da segunda távola redonda do ocupada. Depois conquistou Hibérnia, Flandres,
império del-Rei Sagramor, que teve princípio no Normandia, Dácia, Turónia, Hictávia, Gasconha e
fim do del-Rei Artur, primeiro fundador desta grande parte de França. E sendo por si mui
Ordem, para o que é necessário a seguinte reso- esforçado, procurou que o fossem os seus, por o
lução. que de qualquer nação que podia haver algum
cavaleiro animoso, o recolhia com largo partido e
favor, comendo todos com ele em uma mesa
CAPÍTULO II redonda, porque fossem iguais. E quando não
tinha guerra em que os ocupasse, na paz por
Como el-Rei Ar tur foi traído por atalhar à ociosidade, que até no ferro cria ferru-
Morderet, seu filho. gem, os fazia exercitar-se em diversos exercícios
guerreiros, ordenando justas e torneios, seguindo
Digno é de grande estima o varão que entre os em tudo (segundo se afirma) o conselho do sábio
do seu tempo se abaliza em alguma singular vir- Merlin. E com ele ordenou e instituiu a Ordem
tude e muito mais aqueles que subindo-se em da Távola Redonda, cujos principais preceitos
estado, deixam de si gloriosa memória e são au- eram trazer contínuo as armas vestidas, por se
tores de heróicas obras e aprovados exemplos para costumar a sofrer o trabalho delas, cá o costume
imitação dos sucessores. Destes não é dos somenos, tudo faz leve; acometer as estranhas aventuras e
antes um dos mais notados, Artur, filho de pôr todas suas forças em defender o direito dos
Vterpadragão, Rei da Grã-Bretanha, que ora fracos contra os poderosos; a ninguém fazer força
dizemos Inglaterra, e da Rainha Igerda, sua mu- nem injúria, pelejar por a própria honra e de seus
lher. E por não se certificar ser seu filho, como na amigos; não se afrontar uns a outros e por sua
verdade o era, o mandava matar, mas por ordem pátria oferecer as vidas sem temor da morte, es-
do sábio Merlin foi criado secretamente. Suce- timando a honra sobre os bens temporais; por
dendo, pois, falecer Vterpadragão sem deixar nenhum interesse nem afeição faltar de sua pro-
outro filho, salvo uma filha, por nome Morgaina, messa e verdade, o qual traziam por guias de suas
grande mágica, o povo de Bretanha, por escusar obras, porque as que dela carecem não podem ser
dissensões na eleição do Rei, ajuntou-se em uma lustre, nem-se sofrem em espíritos nobres e
igreja, pedindo juntamente todos a Deus, com cavaleirosos falta de palavra. Por o que sempre foi
muita devoção, que lhes mostrasse quem fariam entre estes cavaleiros o principal ponto de sua
rei. Estando assim, de súbito caiu do ar entre eles cavalaria, serem muito verdadeiros e certos em
uma pedra e, dentro dela, metida uma espada, com suas promessas, com estas Leis que observada-
umas letras de ouro que diziam: “Quem me ar- mente guardavam em sua Ordem, foi o nome Rei
rancar, será rei”. Lidas as letras e visto o milagre, Artur exalçado pelo universo e tão aumentado o
deram graças a Deus. E desde aí, vindo à expe- estado que a fortuna, de inveja (parece) não
riência, começaram os nobres provar sua ventura, podendo já sofrê-lo, ordenou que se ensoberbe-
mas nenhum pôde tirar a espada. Depois os do cesse de maneira que não somente negou-o a
povo, até que chegou Artur, que não conheciam, tributo que era obrigado de longos tempos atrás
o qual tirou facilmente a espada da pedra, por o ao Império Romano, que lho mandou pedir. Mas
que, sem alguma contradição, foi eleito rei. E apresentou batalha ao Cônsul Lúcio e o venceu.
como era mui animoso, lançou logo por armas os E levado desta vitória, determinou conquistar
Saxónios de Inglaterra, que a tinham quase toda Roma, para o que, passando em Itália com gran-

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de exército, deixou governando Inglaterra Mor- sua cobiça por acudir à conservação do adquirido,
deret, seu filho bastardo, o qual, vendo-se em cá não é menos louvado o conservar, que o ad-
dignidade real, que adquirida mal, sempre cega, quirir. Por o que, desapressando Itália, levou seu
como era homem sagaz, astucioso e atrevido, de exército a Inglaterra, onde, entrando, foi recebido
tal maneira granjeou os Ingleses naturalmente le- dos leais vassalos e informado da determinação dos
vantados que lhes ganhou os corações para se traidores, os quais como culpados, que entendiam
comprometerem e condescenderem em sua ten- que na sua lança tinham seu remédio, de novo se
ção, que era levantar-se com o Reino. Ao fim do esforçaram a sustentar Morderet, o qual, como era
que mandou fortalecê-lo muito, dando as animoso, determinou-se com todo seu bando a
Alcaiderias e Capitanias àqueles de que mais se morrer ou vencer, para o que lhes fez grandes
fiava, mostrando-se a todos afável e companheiro promessas e mercês e ajuntando o maior exército
na conversação, cêvo grande para penhorar von- que pôde de gente cavaleirosa e determinada, por
tades, fazendo largas mercês que são os grilhões lhes tirar o velhacouto de alguma desculpa e des-
da liberdade; dando muitas promessas que é o baratar a esperança do outro remédio, salvo o das
engodo das opiniões humanas, e como lhe pare- armas, determinou-se em sair logo ao pai e
ceu que tinha tramada a cousa para vir ao efeito entregar-se à fortuna de uma batalha, antes que o
de seu propósito, mandou cartas pelo Reino, em tempo, o arrependimento e outras causas lhe dimi-
que publicava ser el-Rei Artur, seu pai, morto em nuíssem as forças e dessem novo conselho aos seus.
uma batalha que tivera com os Romanos. E como Apercebido, pois, do necessário para tão árdua
ela provera as forças do Reino dos que tinha empresa, ordenado seu exército com a devida
penhorados e obrigados, facilmente se apossou ordem e repartidas as capitanias por destros capi-
dele e foi levantado por rei, com geral consenti- tães, antes que movesse o campo, juntos todos,
mento. Tanto pode o interesse particular, que não subiu-se em alto e fez-lhe tal fala:
somente abate a lealdade devida em lei Divina, e – Se eu não tivera (animosos capitães e esforçados
em primor humano mas barata vida, honra e cavaleiros, companheiros meus) vossa cavalaria
tudo, e fia-se da fortuna por negar sua obrigação. experimentada, e por mui segura vossa verdade,
não creais que, por opinião própria, concebera a
esperança de reinar, dado que, por natureza, se me
CAPÍTULO III devia morto meu pai. Nem também se o tivera
por vivo, sou tão cobiçoso de estado que inten-
Da batalha que el-Rei Artur teve com tara levantar-me com ele. Ordenou porém a for-
Morderet, seu filho. tuna distribuidora dos impérios segundo seu in-
tento, que viesse a Inglaterra a falsa fama de sua
Errado fundamento é o dos Reis que, desampa- morte. Era eu seu devido sucessor, acometi apos-
rando o próprio estado por ir conquistar o alheio, sar-me desta sucessão, mais por me sanear de
ocasião muitas vezes de perderem ambos ou ga- fraqueza, que por satisfazer à cobiça. Aprovastes
nhar perpétua infâmia e muito pior fim. Vêem-se minha justificada tenção. Foi o sucesso contrário,
no que sucedeu a el-Rei Artur, por pretender donde éramos inocentes e louvados, ficamos em
senhorear-se de Itália, onde sabendo logo deste culpa obrigada à pena, se querermos estar por a
levantamento de seu estado tão injusto e desleal, que nossos inimigos arbitrarem. Por certo temos,
culpado nos vassalos e condenado no filho, foi-lhe que não hão-de ser piedosos, porque os reis não
forçado deixar sua empresa, perder o desenho de costumam usar misericórdia com aqueles que

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concebem ódio particular. Donde, se determina- guerras de Itália e soldados calejados e habituados
mos segurar nossas vidas, não há outro meio, salvo nos trabalhos, como velho sabedor temeu todavia
o de nossas forças e espadas. E quando eu con- o desleal filho, de que sabia vir muito poderoso
sidero as cruezas e castigos com que já em seus e ser animoso cavaleiro e destro capitão; por o
corações nos ameaçam, todo perigo por que os que, antes de lhe apresentar a cruel civil batalha,
podemos forrar, hei por fácil de vencer. como quem também tinha em pouco a morte e
Cá sem comparação é melhor morrer pelejando queria passar por ela, antes que sofrer afronta,
que poupar vida para escárnio e vingança de ordenou suas cousas como católico e prudente
vencedores e, doutra parte, se o formos, seguramos príncipe, mandando e pedindo a todos seus altos
nosso descanso e prosperidade e ficamos em posse homens e capitães que jurassem por príncipe su-
de podermos usar com eles da piedade que lhe cessor de seus reinos e senhorios Sagramor Cons-
não esperamos. Vista, portanto, a má sorte que tantino, um dos mais estremados cavaleiros dos da
temos, se nos vencem, e a boa, se vencermos, que Távola, filho de el-Rei Cador, de Cornualha, e
ânimo pode haver tão pusilânime que antes não casado com a infanta Seleucia, que el-Rei Artur
escolha morte honrada que vida abatida, a vitória houve em Liscanor, filha do conde Sevauo, sua
oferece grandes prémios, a fraqueza obriga-se a primeira mulher. Como, pois, Sagramor era de
grandes misérias. Se quereis mandar e não servir, todos amado e conhecido por de real condição
a tempo estais para, por vossas mãos, fazer a e magnânimo espírito, liberal e verdadeiro, com
escolha. De mim, usai de cavaleiro ou capitão, que voluntário e aprazível consentimento o juraram,
este corpo juntamente com a alma se vos oferece com o que Artur, satisfeito e descansado por a
para passar convosco a má ou boa fortuna a que confiança que tinha em Sagramor, que não menos
estamos oferecidos. acabaria, antes acrescentaria seu estado com vin-
Acabando Morderet esta prática, gritaram todos gança dos traidores, quando caso fosse que ele a
que desse batalha e nela saberia como vinham não tomasse por si, logo ali assentou em dar
determinados a passar antes pela morte que estar batalha, por o que lhes falou nesta maneira:
à obediência de quem lha pudesse dar. Ouvida – Muitas vezes tereis ouvido (amigos, companhei-
pois por Morderet sua determinada oferta, man- ros de meus trabalhos) um largo e notável con-
dou logo abalar o campo com toda ordem e selho de que dizem ser primeiro autor o antigo
vigilância de bom capitão e, havendo três dias que Hesíodo, de quem Aristóteles o usurpou e depois
marchavam, teve novas como seu pai vinha e usou Marco Rufo Minúncio, segundo conta Tito
estava já duas jornadas dele, para o que ordenou Lívio, o qual, vendo-se socorrido de Fábio Má-
suas batalhas e tudo o que era necessário para dar ximo, que a ele e juntamente seu exército salvou
uma tão perigosa, pois el-Rei não estava certo de Aníbal, o destruir de todo, conhecida sua
descuidado do que lhe podia suceder. E avisado obrigação disse aos seus: Aquele é o varão prin-
por seus corredores e espias de como o filho cipal entre todos, que sabe aconselhar e pôr no
vinha a ponto, entendeu muito bem o perigo que cumpre, segundo a necessidade requer e terá
dessa contenda. Cá inimigos culpados e determi- o segundo lugar o que tomar e efectuar o bom
nados são dificultosos de vencer, porque antes conselho dos que lho dão e souber conhecê-lo e
querem aventurar perder a vida que padecer a extremar o homem, porém que nem sabe acon-
certa pena e dado que el-Rei Artur trazia consigo selhar nem obedecer, tenha-se por de baixo e
os cavaleiros da Távola Redonda, estremados no inútil juízo. E por tal também me condenaria eu
mundo e muitos capitães experimentados nas se assim como presumo fazer o ofício de bom

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capitão, que é entender aquilo em que seus ini- ter em dá-la, por maneira que sendo os campos
migos podem ofendê-lo e sabê-las contraminar, à vista um doutro, como se tinham as vontades
não estivesse pronto a tomar todo bom parecer assim fizeram as obras, e dizem que esta foi uma
que se me oferecesse, em dano de nossos contrá- das porfiadas batalhas que se viram no mundo,
rios. Com este suposto, determino dar batalha aos em que de ambas partes se pelejou igualmente e
traidores. Se vos o contrário parece, diga cada um morreu a flor da cavalaria de França e Inglaterra.
souto o que entende, cá bem entendo que, para Cá os levantados, sabendo que na própria espada
tratar de causas árduas, é necessário carecer de tinham remissão de suas culpas, pelejaram como
ódio, amor, ira e misericórdia. E qualquer destes desesperados. E os leais, que não sofriam presumir
efeitos abate o juízo. Muito vale a razão, muito ninguém resistir-lhe, tendo eles por si a justiça e
pode a vontade e raramente se conformam onde opinião, faziam tais maravilhas por onde tudo foi
se encontram. De mim vos confesso que quanto sangue e morte entre os nobres, morrendo os
menos mereci aos traidores e ao capitão deles principais cavaleiros da Távola Redonda e muitos
sê-lo, tanto mais desejo dar-lhe o castigo que tais capitães de ambos os Exércitos, principalmente do
atrevimentos merecem. De vós bem creio e sou de Morderet. O confuso povo, levado da cobiça
seguro que não sofrereis minha afronta, como do despojo que dos vencidos esperava brutamente,
aqueles que antes a padecereis, donde eu, confi- baratavam as vidas a troco da leve esperança,
ado e certo de tão leais vassalos, hei por mui certa embaidor do juízo e toque das condições huma-
a vitória de meus inimigos e a vingança dos nas. Sucedendo, pois, na porfiada batalha, estando
traidores, por o que não tenho mais que vos lem- em peso e incerta a vitória, toparam-se el-Rei
brar, salvo entregar-vos minha honra e meu esta- Artur com o traidor Morderet, a tempo que o
do para que mo sustenteis e o logremos de com- bom Rei via e sentia as mortes da maior e prin-
panhia e quietação, tomada a satisfação dos que cipal parte de seus leais e destemidos cavaleiros,
pretendem desinquietar-nos, cá doutra maneira desestimando a vida. Com esta mágoa e com ver
nem a própria vida quero. Morderet esforçar sua gente tão animosa e des-
Estas palavras disse já el-Rei Artur com tal mo- tramente, que parecia só ele com sua pessoa ocu-
vimento da sua alma que lhe saltaram as lágrimas. par a vitória e suster a batalha, tomou uma grossa
Contendiam, parece, em seu peito, o Amor do lança, esquecido o amor do pai com aquela fúria
filho com a mágoa da traição, porque é mui claro vingativa, cousa raramente vista, e arremeteu a
sentir-se muito mais a ingratidão dos que vos encontrá-lo, pondo as pernas ao cavalo rijamente.
devem amor, que as más obras dos que não vos O mesmo fez o filho, se o era. Cá muitas vezes
devem as boas. Como, pois, os Capitães que o são estas culpas da malícia humana mais que da
ouviram, entendessem esta razão, e todos desejas- natureza ou da cobiça, que nega a própria e toda
sem satisfazer um tal rei, com as melhores palavras razão. Do qual desumano encontro, Morderet fi-
que puderam se lhe comprometeram, que não cou logo morto no campo, atravessado pelos
haveria cousa que lhes tolhesse a vitória, sem pri- peitos de uma a outra parte, justa pena de sua
meiro lhe sacrificarem as vidas, portanto que não desaforada desobediência. E Artur caiu também
receasse, nem dilatasse a batalha, tendo por si a ferido muito mal na cabeça, porque Morderet o
justiça e juntamente a vontade dos seus para com alcançou com a espada de um golpe alto, que lhe
muito gosto e ânimo morrerem por ele. El-Rei cortou o elmo e lhe entrou até ao cérebro. Aca-
Artur, satisfeito e descansado nesta parte, consul- bado o encontro, de improviso desceu do ar uma
tou logo em particular a ordem que se havia de carreta grande e de resplendor qual o dos raios

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do sol, que quatro grifos traziam. E em meio De damas servido, amado
deles, por carreteiro, uma ninfa de extremada for- da dona a quem mais quiseste,
mosura, cujo vestido parecia arder em fogo e, com dano dos traidores,
descendo junto donde Artur jazia desacordado, à morte a que te rendeste.
saíram de dentro dois estranhos selvagens ardendo
que o tomaram assim como estava em figura de [...]
morto e o meteram na carreta. Após isto, com
muita diligência foram discorrendo pelo campo Enquanto a ninfa cantou este Romance, os sel-
da batalha e onde achavam cavaleiros dos da vagens recolhiam os mortos notados, estando os
Távola que ali morreram, como leais vassalos, combatentes como pasmados, o que foi feito pelo
traziam seu corpo à carreta. Neste entretanto que saber do sábio Merlim, que inda que fosse morto
os selvagens isto faziam sem haver que lhe resistisse o deixou assim ordenado. Desta maneira foi leva-
nem contradissesse, todos os que os viam atónitos, do el-Rei Artur à ilha de Avalon, transportado
a ninfa com uma voz muito alta e suave, ao som mas vivo, onde deu sepultura aos seus cavaleiros,
de uma viola de arco, cantava o seguinte romance havendo Bretanha por indigna de lha dar, pois
que o Cronista aqui quis pôr para que se saiba por sua má natureza fora autor de sua morte. A
que neste estilo e por este modo, usaram os pas- de Artur ora não se sabe, os Ingleses o têm por
sados celebrar seus heróicos feitos, porque a glo- vivo e esperam, porque morte não vista é mal
riosa memória deles assim viesse a nossos tempos crida.
e se conservasse, o que também em Espanha se
usou muito e usar-se agora para estímulo de imi-
tação não fora mau. E diz a letra: CAPÍTULO VIII

De um mouro espanhol que veio à corte


ROMANCE desafiar os cavaleiros da Távola Redonda

Grã-Bretanha desleal Como ver prósperos os maus em suas malícias, é


ao melhor Rei que tiveste, ocasião grande para muitos os seguirem, assim aos
D’agora, té o fim do mundo, bons é espertador de virtudes o ver os que nela
chora quanto bem perdeste. florescem. Donde os Reis e os príncipes são obri-
gados castigar a uns por temor e favorecer aos
Jaz no campo, entregue à morte, outros para imitação. Desta maneira o fazia el-Rei
que falsa, ingrata lhe deste, Sagramor, castigando traidores, segundo atrás
a flor da cavalaria ouvistes e, favorecido Fidonflor de Mares na boa
com que te ensoberveceste. empresa que tomou de ir com Guinnénides, do
que não deixou pequena inveja mas virtuosa aos
[...] cavaleiros da Távola Redonda, cujo desenho con-
tínuo era exercitar-se nos tais trabalhos. Poucos
Em não morreres aqui, dias, porém, passaram que não se vissem neles. Foi
ditosa sorte tiveste, pois assim, indo el-Rei Sagramor um dia à caça,
Tu, Lançarote do Lago, duas léguas de Londres, com a rainha, damas e
que as glórias de amor houveste. muitos nobres, desque caçaram e se recolheram a

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uma fonte que estava junto da estrada, para pas- por a mor parte levar a bóia à razão. Já por ela
sarem a festa em sua aprazível estância, onde e por sua Pátria se ofereceu Pompeu e, tendo a
Epirantes, Delfim de França, lhe deu um magní- causa tão justificada, foi vencido de César, que
fico banquete, acabado o qual, ficando el-Rei tiraniza a República, donde parece que dos efeitos
somente com a rainha, damas, senhores e cavalei- celestes e força dos planetas procedem nossas obras.
ros da Távola, enquanto a outra mais gente se – Não é boa opinião essa – respondeu el-Rei
pastava, moveu-se prática em que vieram a dar na –, porque a natureza sempre se encaminha com
antiga Tróia. [...] ordem e a bom fim e o juízo humano não é
– Assim é muita verdade – disse el-Rei. – De capaz de entendê-la e, assim, as mais das vezes erra
onde os Romanos tiveram muita razão em orde- em sentenciá-la, donde quando em um particular
nar prémios para os bons cavaleiros e pena para desafio sobre alguma cousa for vencido o que
os maus, porque nisto consiste o decoro real, parece ter a justiça, cuidai que pode intervir a
premiar cada um segundo seus merecimentos. muita fraqueza a respeito da fortaleza do vence-
– Nesta parte – replicou Epirantes –, acho nos dor, a que seu esforço dá a razão ou pecado
Romanos rara e notável observância, porque a secreto que lhe tolhe o favor divino. Para sua
Horácio Cocles, que defendeu a ponte, e a Múcio justificação, David dizia publicar sua culpa. Mas se
Cévola, que queimou a própria mão por errar o houver dois Reis que contendam por sua honra,
golpe, deram terras da República e a Manlio ambos animosos, e que justifiquem com Deus sua
Capitolino, que salvou o Capitólio dos Franceses causa, que defendem forçados de sua obrigação,
que o entravam, deram de seu próprio manti- por sem dúvida tenho que sairá vencedor o que
mento, por consentimento de todos, prémio gran- por si tiver a razão; por o que dado que Pompeu
de segundo a fortuna em que Roma estava. Mas vencido a tenha, daremos a culpa aos pecados e
depois, porque inventou traição, do mesmo soberba da República Romana, antes que notar
Capitólio em que ganhara a honra, foi derrubado defeito na justiça divina, a qual tem a cargo não
e morto, sem terem respeito a seus merecimentos, faltar onde importa vida, honra e alma e é de crer,
no que parece que lhe foram ingratos. portanto, que nunca falta sem justa causa. E que
– Aqui – respondeu el-Rei – antes muito justi- seja verdade sermos movidos das influências celes-
ficados, porque tão devido é o castigo à culpa, tes, que nos imprimem compreensão e inclinação,
quanro (a)o galardão ao merecimento, cá doutra não creiais que Martes, posto na causa de Escor-
maneira, como nossa natureza seja inconstante, os pião, domina, e assim dos outros, para que possa
vantajados por prémios da virtude tendo-se por forçar-nos e tolher nosso natural distinto do mal
isentos, podiam cair depois em grandes excessos e e do bem para o evitar ou seguir, cá o homem
serem insofríveis, pois está claro quão facilmente nasceu livre, dotado de tal entendimento que
se corrompem os homens impostos em seus de- compreende ao mesmo homem, o qual compre-
senhos, como se viu no grande Alexandre feito ende tudo e foi-lhe dado para reparo e arma de
monarca e em seus vassalos sucedendo em seus defensiva e ofensiva, o livre alvedrio que pacifica,
estados, cá se gosto particular ou interesse se atra- concorda e vence tudo, quando se dispõe para
vessa à virtude, poucas vezes fica de vitória, para seguir a bandeira da razão. Donde se diz: O
o que a pena é grande freio e pode aguar-se com sabedor domina as estrelas e de si mesmo proce-
a moderação, segundo o bom juízo e obrigação. dem também seus defeitos.
– Mas segundo – disse Epirantes – a boa fortuna Nesta prática estava el-Rei Sagramor com os seus
de cada um, que está nas cousas humanas, vemos quando ouviram uma voz alta e suave de quem

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vinha pela estrada já perto, cantando o seguinte dado de quem o tinha forçado voluntário, se lhe
Romance, ao modo Espanhol, com gentil arte e dava licença e seguro real para ir ante ele. O que
disposição: lhe el-Rei Sagramor logo concedeu. O cavaleiro,
com esta resposta, concertou-se na sela e recolheu
Naquela montanha Idea a rédea ao cavalo que à hora se pôs, mostrando
que a Frodisia frequentava, ambos uma valorosa ufania e prometendo de si
Páris, aquele pastor tudo o que se lhes esperava; chegando, pois, ante
a quem Enone amava, el-Rei, pôs o cavalo os joelhos ambos em terra e
o cavaleiro debruçou-se todo sobre a cemelha,
Com ela de companhia, desde aí endireitando-se. E o cavalo mui esperto,
as feras bravas caçava. escarvando a terra a tempos com uma mão, disse
As aves de mil maneiras, assim:
armando laços tomava. – Muito alto e muito poderoso Rei, nascemos
todos nesta vida destinados a trabalhos, uns por
[...] fortuna, outros por amor, alternando o doce e
amargo com diversos efeitos e sucessos, têm-se,
Este romance ouviu el-Rei Sagramor com toda parece, ambos conjurados contra o género huma-
sua companhia, porque a voz era alta e retumbava no. E aquela Deusa Citereia que rege o terceiro
por entre o espesso arvoredo de um grande céu, tem dele tomado posse que raramente se
soveral que atravessava a estrada e parecia muito acha espírito claro, isento de sua jurisdição. E não
bem aos que ouviam; melhor pareceu, porém, a sei se está amor sobre o juízo natural, se debaixo,
vista do que cantava, que era um aposto cavaleiro e se o homem se guia ou é guiado, se é destino,
que vinha com a viseira levantada, armado de se eleição, uns o têm por bom, outros por mau.
umas ricas armas verdes, em um poderoso cavalo Eu por mim digo que é um mal doce e um gosto
melado, a lança atravessada no arção e, no escudo triste que forçado, ou voluntário vos leva sempre
que dele lhe pendia, em campo verde, uma torre ao próprio dano, segundo por experiência de
de cujas ameias caía uma fonte com uma letra que cada dia vemos, e em mim se prova, cá sendo
dizia: espanhol, senhor de Pamplona e grã parte do
reino de Navarra, irmão de Salinter, rei dela,
A fonte de formosura, Amor me traz a Inglaterra oferecido a quantas
que nesta torre se encerra, afrontas passa quem se mete entre seus inimigos,
contra amor sustenta guerra. quais somos os mouros dos Cristãos, tudo entendi
e tudo temi primeiro, o juízo e os temores venceu
O cavaleiro, vindo desta maneira e descuidado de amor, que quer ser obedecido forçadamente e se
dar em tal companhia, enlevado no seu pensa- recreia em ser servido a maior risco. Eu, porém,
mento, acabado o romance, deu um grande ge- tenho por muito leve tudo o que o escravo corpo
mido como quem parece tinha de que sentir-se; aventura ou faz por satisfazer a alma, e como
nisto, sentiu a gente em que veio topar por o que, desta o amor se apossou e a ela se deve a vida
deixando cair a viseira e informado do primeiro de ter em pouco o perdê-la, tive que nada fazia
que se lhe ofereceu, mandou dizer a el-Rei que em empreender esta jornada por serviço e man-
era um aventureiro espanhol que vinha à sua dado da formosa Arindélia, cujo sou, e o como
corte com uma determinação forçada, por man- o vim a ser vos direi, para dizer ao que venho.

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Clearso, senhor de Fonte Rábia, fortaleza no fim descendo na serra de Sintra, acharam estes dois
de Guipúscoa, ao pé dos montes Pirenéus, é um gigantes que se queriam embarcar para Tinácria,
gigante mui temido por aquelas partes e que tem com grossa presa, os quais vos oferecem vencidos.
feito por mar muito dano em terras de Cristãos, Esta era a tenção dos dois aventureiros, os quais
indo em um navio apercebido para seus roubos, vinham de armas quarteadas de preto e amarelo,
foi dar na ilha Lípara, uma das Eólidas, em que com estrelas por elas e no peito um escudo pe-
fez cruel estrago e presa. E neste desbarato cativou queno em meio do qual traziam pintado o signo
a formosa Arindélia, herdeira da ilha, moça de Geminis e por cercadura nove estrelas com uma
doze anos, a qual trouxe a Fonte Rábia, onde a letra que dizia:
tem fechada em uma torre que tem somente uma
janela alta contra a banda da terra, guardada de Corpo mortal e em tormento,
toda conversação haverá três anos, não se sabe a imortal o pensamento.
que fim, dado que se suspeita criá-la para a
vender a grande preço ou para seu gosto. Por declaração da qual está sabido serem estes dois
Nestes termos do seu conto estava o mouro irmãos filhos de Júpiter, um mortal e outro imortal
quando viram vir pela estrada uma estranha aven- e amando-se ambos em grande extremo, partiram
tura que fez tal abalo em todos que lhe cortou de por meio a imortalidade e se o que sucedeu
o fio, com muita razão, a qual vos daremos. fora entre gentios, parecera prognóstico. Pois sendo
sua tenção mostrarem a suas damas como no
corpo mortal que tinham para padecerem, por elas
CAPÍTULO XLVIII as amavam com imortal e puro pensamento, os
fados que têm seus limites, tomaram daqui azo que
Do remate destas festas vindo assim os dois aventureiros, dentro da Águia,
a qual era armada sobre um batel, deu-lhe o vento
[...] às que trazia abertas e soçobrou; por maneira que
Querendo perturbar o gosto desta festa, testificou enchendo-se d’água, foi-se ao fundo com todos os
sua grandeza no desastre e grande desaventura com que dentro vinham. E dos aventureiros, Cristóvão
que o aguou, porque no fim do torneio se soube, de Moura foi salvo por um seu criado e Luís da
como vindo dois aventureiros dentro de uma gran- Cunha afogou-se. Tinham, parece, aqui as estrelas
de Águia, traziam consigo dois gigantes por eles a soltura da antiga fábula alguns mistérios divinos
vencidos na serra de Sintra com um breve que dizia: entendidos só da sua causa que obra tudo e cho-
– Muito alto e muito poderoso rei, eu sou a fama rados de nós, que os padecemos, sem saber nem
sempre ocupada em vossas imortais obras e não poder evitá-los, salvo por seu meio, triste desconto
satisfeita de as pregoar pelo mundo, muitas vezes de gostos humanos contra os quais parece
me subo ao céu com elas e aconteceu que dando armar-se o céu de propósito, por que não ponha-
lá novas deste torneio, nas casas do Zodíaco, causou mos neles esperanças e foi este um manifesto roubo
tanta inveja que Pólux e Castor, antigamente dos das Nereidas.
primeiros cavaleiros andantes, colocados entre as [...]
estrelas por sua alta cavalaria, foram movidos a vos
virem dar mostra dela, com desejos de servirem ao Sabido por Suas Altezas o triste caso, mostraram
Príncipe, a que se deve servidão e amor, não so- dele o devido sentimento. El-Rei, naturalmente
mente dos homens mas das deidades celestes e piedoso e que de costume e natureza tinha sanear

69
com mercês e favor os desgostos e perdas de seus Viu-se a cidade cheia de boninas amarelas da
vassalos, por satisfazer em parte o nojo dos pais lustrosa libré dos lacaios do duque de Aveiro, a
do defunto, fez-lhe mercê de duzentos e cinquen- discreta tenção da cobra surda, o aprazível, galante
ta mil reais de tença e em dinheiro, quinhentos e custoso aparato com que foi tomar a entrega
cruzados, para refazer os gastos feitos e tomou-lhe da sereníssima Princesa, para cujo conto havia
outro filho para se criar no lugar do irmão, com mister uma mui ociosa e corrente pena, porque
o Príncipe, o qual não foi alheio desta real obra, na invenção dos reposteiros, no vestido dos
antes o requerente, mostrando-se muito pesaroso menestréis, na soma da gente custosa, na riqueza
de tal desastre, por o que com muita causa são tão e primor do fato e na abastança do al, não havia
amados os Reis Portugueses de seus leais súbditos, mais que desejar, mas muito que invejar na sober-
porque sempre recebem deles galardão de seu ba mostra que de si deu a Castela, assim de estado
serviço, vantajado da obrigação. Por modo que como de galantaria e discrição. Após isto, viu-se
este remate deram os fados ao torneio. também a estranha entrada da Princesa na popu-
[...] losa Lisboa, a nova e formosa armada de ricos
Mas, ah, desventura grande!, dor sem remédio, barcos com seus toldos, diversas e gentis invenções
perda tarde ou nunca recompensada, quem po- com que o cristianíssimo Rei foi passá-la do
derá ouvir sem lágrimas o cruel roubo e temerosa Barreiro para a cidade em uma caravela toldada
conjuração das estrelas contra Portugal, o qual toda de brocado que beijava a água, rica e arti-
passava estas perdas com sofrimento, esperando ficiosamente concertada, tudo em tanta maneira,
refazê-las com dobrada vingança na vida do seu custoso e galante, que o mesmo Neptuno, rei do
magnânimo Príncipe, cuja gentileza, capaz discri- mar, se quisera mostrar-se com os deuses mari-
ção, reais condições, divina inclinação, virtuoso nhos e todas as Nereidas, não dera sombra a esta
zelo, humana afabilidade, amoroso tratamento famosa entrada. Pois a temerosa bateria de grossos
para com os súbditos e animoso espírito, davam tiros, por toda a praia, com que a cidade a rece-
de si confiança e prometiam esperanças de grandes beu, foi tão espantosa que competia com a fúria
fundamentos! Estes espiou a falsa fortuna contra- dos raios de Vulcano, quando o tronante Júpiter
minando a prosperidade do povo lusitano, ca destruiu com ele os Titãs e não sei qual das deusas
pretendendo o prudentíssimo rei, seu padre, invejosa de tanta majestade, incitou Éolo, rei dos
segurá-lo, como no príncipe tinha o particular ventos, que pretendeu estorvar a passem, movendo
gosto da conversação de tal filho, que muito os mares como contra Eneias!, com que foi algum
amava e o cuidado público da fortaleza de seus trabalho. Mas Neptuno, conhecendo-se vassalo do
reinos, desejoso de ver fruto de tal planta, forrado rei que senhoreia suas águas, trouxe todas as velas
dos perigos da viciosa mocidade e apurá-lo em sem perigo ao porto, onde a esclarecida Princesa
varonis ocupações, mandou-lhe vir sua esposa se viu em um extremado grau de felicidade,
com que era desposado por palavras de futuro, a logrando-se com o seu Príncipe, unida em con-
esclarecida princesa D. Joana, filha do grande versação do que o mesmo Amor teve com a sua
Imperador Carlos quinto. A qual entrada, por ser amada Psique. Mal cuidava ela então a conjuração
mui notável, as fadas também ali fizeram vente a e maçada das fadas, as quais, chegando a este
el-Rei Sagramor, dando-lhe a breve resolução passo, tomaram a cantar lamentosamente, o se-
que atrás ouvistes e ali se viu logo o alvoroço com guinte Romance:
que toda a corte Portuguesa começou aperce-
ber-se para festejar este desejado recebimento.

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Soberbo está Portugal E para poupar o fruto
em sua glória enlevado, do seu amor desejado,
Vê-se de um rei sabedor Oh animosa Princesa
mimoso e bem governado. quanto vos fica obrigado
O mundo, tudo anda em guerras Um Reino que destruído
injustas, mui baralhado: por vós ficou restaurado.
Ele só estava em remanso Esforça-te, Portugal
seguro e mui descansado, pois te vês já melhorado,
Plantando entre os infiéis De um Rei que entre os Reis
pendões do crucificado, extremo será chamado.
Por capitães animosos
que os levam por seu mandado. Este canto entoaram as fadas tão lamentavelmente
E como Deus de tais obras e doridamente que enterneceu os corações de
folga ver-se penhorado, quantos o ouviram com um lastimoso sentimento,
Com os olhos em Portugal entendendo a morte do desejado Príncipe que
está sempre ocupado. sobre todos a linda menina Princesa padeceu com
E como filho mimoso o mais alto siso e ânimo que pode ver-se, cá sendo
de quem não perde o cuidado, ela um raro extremo de virtude e formosura,
Porque não se ensoberbeça perdeu em breve e chorou longamente o seu
em se ver tão prosperado: formoso Príncipe, tenro na idade e no Amor, a
Na força das suas glórias que se lhe ele sacrificou. Vidas e tudo se devia à
no tempo mais festejado, gentil Princesa, tudo ela quisera para o amado
Dentre os olhos lhe tirava Príncipe, a ela e a todos era necessário vivo, ela
o seu Príncipe extremado. o sentiu, todos o padecemos e como o Amor de
Vendo no pai paciência ambos era igualmente, determinaram as fadas que
para ser mais apurado, o pranto que as Ninfas costumavam fazer, cada
Dá graças ao criador ano, em memória da morte de Adónis, por a dor
inda que desconsolado. de Vénus, esse mesmo se fizesse ante el-Rei
A menina que seu amor Sagramor, em figura do que se deve fazer por o
em flor assim viu cortado desejado Príncipe.
Vencida com sofrimento [...]
a dor do Amor encurtado.
No peito se abrasa em mágoa Elegia das Charites
o rosto mostra esforçado.
O coração lhe dizia Choremos morto Adónis, ah morreu
o mal de que era assombrado, Adónis o formoso,
Entende, sofre e gemia Amores, ah choraime, pereceu
padece e maldiz seu fado: o meu gosto amoroso,
A si mesma se esforçava, doce bem deleitoso,
e fazê-lo era forçado. o meu, ah, tenro Amor
Por dar esforço e consolo minha glória e descanso; ah, inda em flor.
a um pai desconsolado,

71
[...]

Tão dorida era a soada que as Charites davam a


Terceira
esta Elegia, que tinha toda a corte imbuída em
sentimento. Vénus, banhada em lágrimas da sua e quarta partes
mágoa, o mostrava tal que enterneceu os Cupidos
pequenos que consigo trazia, de maneira que
tudo era pranto e dor e assim se desvaneceu tudo
da Crónica de
e desapareceu, deixando uma dorida memória de
tanta desaventura. Aqui emudece a língua, aqui Palmeirim de
não se manda pena com outra maior. Os espíritos
abafam, a pobre barca do fraco engenho metido
entre vulcões de altas ondas espantosas, em meio
Inglaterra *
da cruel consulta dos fados que transtornaram as
esperanças em mágoas, os gostos em tristezas, rota DIOGO FERNANDES
a vela da linguagem, quebrado o mastro do estilo
e perdido o leme da ordem, entrega-se ao pro-
[Aprovação]
fundo silêncio. E por quanto a devida dor e a
Vi esta terceira e quarta parte da Chronica de
obrigação do amor causou o divertir-nos algum
Palmeirim, Autor Diogo Fernandez. E soposto
tanto a história, não é sem propósito, porque tudo
(como é verdade) que os encantamentos & obras
a sábia Merlíndia fez vente a el-Rei Sagramor, à
que aquí estão atribuidos a arte magica são fin-
maneira que atrás o ouvistes, a fim de o persuadir
gidas, o livro todo não tem cousa alguma contra
que se velasse da sua fortuna, segundo se verá no
a nossa santa fe Católica, bons costumes & guarda
segundo Livro que se segue, na perigosa guerra
deles, onde sou de parecer que se pode imprimir
que lhe tramou. Por modo que nisto se resolveu
& ainda que é cheo de feições imaginadas serve
o encantamento que ouvistes.
de entretenimento do tempo & conforme ao
parecer de S. Hieronimo & de Plinio o menor
Acabou-se aos XII dias do mês de Novembro.
não ha livro tão mao do qual se não possa tirar
Ano MDLXVII.
algum fruito se as pessoas quiserem aproveitar.
Este tem boa lingoagem, boas sentenças, & ensina
LAUS DEO.
serem os homens esforçados, honestos &
verdadeiros.

Frei Manoel Coelho.

* Lisboa: Afonso Fernandes, 1587.

72
TERCEIRA PARTE seus filhos que na Ilha ficavam, interessavam tanto
em serem nela criados por Daliarte que houveram
CAPÍTULO PRIMEIRO por bem fazer-lhe a vontade. Dai como o vento
era prospero, & o mar desembaraçado das tor-
Como os principes, que na Ilha Deleitosa mentas que pelo inverno correm, em pouco
estavam o com o Sabio Daliarte, se tempo chegaram a parte onde por ser as viagens
partiram para seus Reinos diferentes lhe foi necesario apartarem-se: assí
despedindo-se com a cortesía que antre elles era
Arrasados estavam os muros de Constantinopla, & ordinaria, Dom Duardos com Palmeirim & a sua
os povoadores dela tão justamente sentidos pela companhia tomaram a rota de Inglaterra, Flo-
perda & ausencia de seus Principes que nem o riano a de Thracia, & os outros a das terras de
tempo que tudo consume era poderoso pera que eram senhores onde brevemente aportaram.
deminuir a menor parte da tristeza em que Dramusiando pela antigua afeição que a don
viviam; mas em tanto que o Sabio Daliarte lhe Duardos tinha quisera acompanha-lo até Ingla-
ordenava a maneira da restauração que esperavam, terra, mas ele agardecendo-lhe a vontade que
tinha o governo do Imperio Aliando cavaleiro sempre achara certa nas cousas de seu gosto lho
ancião, que pela muita confiança que todos dele não consintio, porque tambem Daliarte por cujo
tinham, de comum consentimento foi eleito pera parecer todas aquelas cousas se meneavam o havia
isto, & saio ele tal que ainda que suas obras pro- por escusado, então oferecendo-se com algumas
meteram sempre muito, as que então fazia cada palavras nascidas da verdade que sempre usara,
vez eram melhores, & cheas de tanto amor pera mandou endereitar pera a Ilha que fora do pai
o povo, de tanto resgardo na justiça & de tanto de Arlança, onde chegou em poucos dias; &
zelo do proveito publico, que não havia a quem sabida sua vinda os naturais o receberam como a
descontentasse. Com tudo isto faltava a todos o seu senhor verdadeiro, tomando em conta de
contentamento que a nobreza daquela corte grande dita serem senhoreados dele, pero que de
noutro tempo causava, & os olhos da gente cos- seu esforço tinham sabido. Primalião que com a
tumados a vista de seus naturais senhores, não se lembrança do que deixava na Ilha Sepulcro de
satisfaziam com nada de quanto viam. A estes Principes recebia grande pena, acompanhado dela
desejos soube acudir Daliarte, & fazendo uma fala e das saudades que a antiga ventura de Grecia lhe
a Primalião & Dom Duardos, & aos outros fazia, navegando com a mór presteza que ser pode
Senhores, que ja de todo estavam sãos de suas chegou a vista de Constatinopla em parte que
feridas, sobre o que convinha ao remedio de seus podendo livremente estender os olhos pola ruina
estados, com muitas lagrimas de todos os fez dos muros, & o pouco contentamento que
despedir daquelas senhoras que na Ilha estavam & aqueles edificios demostravam, não pode tão a seu
num dia que pera isto acho mais acomodado se salvo negar-se a magoa que o coração lhe
partiram do porto dela Primalião & Florendos apresentava que pelos olhos lhe não saisse a mais
com Gridonia & Miraguarda pera Constan- certa prova dela em grossas & copiosas lagrimas
tinopla, Dom Duardos & Flerida com Palmeirim que o justo sentimento daquelas mostras a eles lhe
& Polinarda pera Inglaterra, Floriano & Leonarda traziam, porem por acodir a Gridonia que com
pera o seu Reino de Thracia, & assi todos os mais a propria consideração, se desmaiara nos braços
com suas molheres pera os seus Reinos. E ainda de Florendos, alimpando-as o milhor que pode se
que lhe era algum tanto grave apartarem-se de foi a ella & com palavras cheas de esforço a fez

73
tornar em si, lembrando-lhe que a fortuna que punham os olhos neles, como em quem tão
pela natural mudança com que governa suas grande quinhão tevera naqueles males, outros
cousas, decèra a Constantinopla do alto de suas considerando a merce que a ventura lhe fizera em
grandezas a tão abatido estado, da outra volta que guardar aqueles ramos do real tronco de Grecia,
cedo daria a tornaria a engrandecer de maneira a cuja sombra seus passados trabalhos feneceriam,
que melhorada ainda de mais do que antes tinha recebiam-os com uma alegria desacostumada,
encheria o mundo de sua fama, & o descuberto como a verdadeiro fundamento de suas espe-
da terra de seu senhorio & victoria. Com isto ranças. [...] (1, 1 v, 2)
algum tanto animada tornou a alçar os olhos pera
a cidade, & arrasando-se-lhes d’agoa cuidava
consigo se poderia ainda aquela corte, tornar a CAPÍTULO SEGUNDO
nobreza em que tantos dias estivera: & estendendo
as esperanças ao largo punha a confiança em Da restauração dos mouros de Constan-
Deos, que como era de crer, ordenaria que pelos tinopla.
feitos dos donzeis que na Ilha ficavam se restau-
rasse a passada gloria de Grecia, pois de tantos Alguns dias tomou Primalião pera entender nos
perigos os livrara. Aquí porque ja estavam junto negocios de seus vassalos até que à rogo deles um
do porto, saio em terra o Sabio Daliarte, & domingo pela manhã depois de ouvir missa, sole-
fazendo saber a Aliandro a vinda de seus Prin- nemente o trouxeram para os paços onde havia
cipes, ele a mór pressa fez ajuntar logo os de ser jurado por Emperador, que pera esse efeito
cavaleiros anciãos da cidade, e aconpanhado estavam ricamente ataviados. E sobido ao throno
deles se foi à praia onde ja Primalião com os mais Imperial acompanhado de todos os grandes de
desembarcavam. Mas tanto que o viram debru- seus senhorios, & do sabio Daliarte que diante lhe
çados por terra lhe beijaram a mão não sem levava o estoque, logo aí lhe fizeram as costumadas
muita cantidade de lagrimas, que a memoria dos ceremonias, com tanto alvoroço de todos, que
males porque passaram, & o gosto de o verem são ninguem havia que como a cousa nacida pera seu
lhes fazia derramar. Ele com aquela brandura & remedio com o instrinsico d’alma o não venerasse.
humanidade que de Palmeirim seu pai herdara, os O jantar foi como naqueles dias se costuma, & a
levantou com as mãos, dando lugar que chegas- tarde festejada com algumas invenções, com que
sem a Gridonia & Florendos que com muito o povo queria mostrar-lhe o muito que estimava
gasalhado os receberam. A este tempo chegando ficar-lhe na vassalagem que aquela manhã lhe
cavalos pera eles, & um palafrem murzelo pera jurara. Ao outro dia que estava dedicado pera a
Gridonia, as fizeram sobir neles, & levando-as de reedificação dos muros fora da cidade, no lugar
redea Aliandro e Florendos entraram pela parte onde havia de ser a principal porta deles, se
onde os edificios da cidade desacompanhados da armou uma grande tenda tão rica & custosa, que
fortaleza dos seus muros começavam, & como em bem parecia haver sido de Albaizar, que era a
toda a gente houvesse geral alvoroço, cada um os milhor que no seu exercito veo, & como tal a
recebia, conforme ao que o coração lhe dizia, guardou Pacencio, no dia que a gente popular
porque uns lembrando-lhe a morte do Empe- saqueou o resto do campo, depois da redadeira
rador, & o cruel destroço que a fortuna naqueles batalha em que todos os Turcos acabaram. Arma-
campos mostrara à custa do sangue de tantos da ela, & dentro um altar com riquísimos orna-
cavalleiros & cidadones, com sospiros & lagrimas mentos saio da igreja maior o Arcebispo em

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pontifical com algumas das reliquias que nela se prezavam era a de um touro, que como pai de
havia, & em procissão as levou até o altar da seu rebanho derrama o sangue por ele. Mas tor-
tenda, acompanhando-o detrás o Emperador, o nando ao fio de nossa historia, tanto que aquela
Principe Florendos & Daliarte, com todos os ceremonia se acabou, o Emperador lançou a
principais do povo, que para aquele dia vinham primeira pedra no fundo de um pedaço d’alicerce
em trajos d’alegria, mais contentes nas mostras, do que junto da tenda estava aberto, & não havendo
que no coração estavam, o Arcebispo com toda mais que fazer, se tornou com as reliquias ao
a solenidade que ser podia dixe a missa, a que lugar donde as trouxeram, & dai cavalgando se
aquelles Principes com os mais estiveram. Acabada recolheo nos paços. Este foi o princípio da
ela por não quebrarem o antiquísimo costume de fundação dos muros, que como a traça deles foi
Grecia & das outras respublicas do mundo, dada por Daliarte, que daí a poucos dias se tor-
Daliarte por sua mão ajuntou a um jugo uma nou para a sua ilha, & a brevidade de sua edi-
vaca & um boi da mesma qualidade que para esse ficação encomendada a Aliandro de quem o
efeito mandara ali trazer, & atando-lhe um arado Emperador fazia muita conta, em breve tempo
de bronso, começaram a andar com ele do lugar sairam tais, que na maneira & fortaleza que
da tenda para diante, da maneira que com a tinham, faziam ventagem a todos os do mundo.
ponta dele ficasse sinalado o circulo, com que os Porque além de serem de cantaria, & de tamanhas
novos muros em toda haviam de cercar a cidade, pedras que parecia impossivel acharem-se outras,
& assi foram andando até chegarem a propria as barbacãs & baluartes deles eram fortes. Não
parte donde partiram, mas com resgardo, que tinham mais de quatro portas formadas ao modo
onde as portas haviam de ficar, levantavam o dos arcos triunphais Romanos de obra Dorica
arado, passando em claro todo o espaço delas. E excelente com colunas de finos marmores. No
não carecia de razão este custume que a antigui- alto de cada porta sobre seus pedestais de jaspe
dade usava, porque como a principal coluna em ficava uma imagem de alabastro, & de uma banda
que o peso da republica se sustenta, é a concordia & doutra em guarda da entrada seu baluarte
do povo, & parte dela consista na domestica quie- muito forte. Neles conforme a significação das
tação de cada familia, para significação de cada imagens estavam as principais partes da cidade, de
familia, para significação dela ajuntavam a um maneira que na porta que pera o mar ia, ficava
jugo aqueles animais, de cuja parcialidade & a imagem da fortaleza armada ricamente, & sobre
mancidão aprendesse cada uma que havia de ter as armas uma sobre vista carmesim, na mão uma
em sua casa. Alem disso é o boi de seu natural lança, e aos pés seu nome escrito em ouro. Nos
constante amigo da companhia dos de seu reba- baluartes desta casa ficava a casa do conselho de
nho, & pela salvação dele põem muitas vezes a guerra, a escola da milicia, & um armazém de
vida em campo: & pelo conseguinte não somente todo o genero de armas, com tudo o mais que
significa a firmeza & paciencia que nos comuns pertence a elas. Na porta seguinte estava a imagem
& particulares trabalhos deve ter o povo, & a da prudencia vestida ao modo de Athenas com
união & conformidade que dos povoadores de uma pequena coruja aos pés, e todas as outras
uma mesma cidade se espera, mas ainda mostra a insignias de Pallas, e nos baluartes a casa do con-
obrigação dos Principes a quem compete, pela selho da paz, e uns ricos paços para os gover-
guarda & defensão dos seus arriscarem as vidas nadores da cidade. A outra porta tinha uma
quando é necesario. E por isso aqueles primeiros imagem da temperança com umas asas igualmente
Reis que governaram a terra, a divisa de que mais levantadas, como Platão pintava a Nemesis, e um

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freio dourado na mão esquerda; nos baluartes CAPÍTULO QUARTO
delas havia um rico aposento onde daí em diante
se costumaram criar os Principes em quanto eram Em que se da conta da razão que houve
donzeis, & junto deste outro pouco menos cus- para Carmelia ser roubada, & quem era o
toso, que era deputado para quatro cavaleiros que a roubou
anciãos, a cujo oficio pertencia olharem pelos
bons costumes da cidade, & principalmente pelos Refere-se nas cronicas de Grecia que no mar
mancebos, que pelo fervor da idade tem menos Ageo, que pela banda do meio dia bate na costa
resgardo nos seus. A [redadeira] porta tinha a de Thracia, ha muitas e diversas ilhas, entre as
imagem da justiça vestida ao uso das donzelas outras que a fama fez mais celebradas, & em uma
Gregas, & com uma extraordinaria viveza nos delas a mais fresca & de milhores povoações,
olhos, da maneira que a pintava Chrysippo, numa houve naquele tempo um grande Principe tão
mão uma balança, na outra uma espada, como cruel & desordenado em seus costumes, que além
vulgarmente se pinta. Nos baluartes havia as casas do geral aborrecimento que lhe o povo tinha, ele
do juizo, com seus aposentos para os juizes, & assim mesmo era castigo de suas obras no con-
oficiais da justiça, tudo tão bem repartido, que em tinuo receio em que vivia. Porem crescendo nele
nada havia falta. Diante de cada uma das portas com uso de seus vicios a natural brutalidade deles,
se levantava um alto padrão de marmore Laco- veo enfim a ter alguma parte da paga que com
nico com uma grande Cruz encima, & no meio tanta razão lhe era devida, & foi que depois de
dele dentro de uma tarja, as armas Imperiais de alguns anos que recebeu por molher a fermosa
Constantinopla. Enquanto estas obras se faziam Argiliana filha de um Rei seu vezinho, lhe trouxe
entendia o Emperador no concerto & ordem que um seu vassalo em presente os filhos de um tigre
nas cousas se requeria, & porque na desastrada que achando-os ao atravessar de uma montanha
batalha morrera toda a nobreza daquela corte, e por serem no extremo fermosos os guardou pera
alguns estados, ou a mor parte deles por morte aquele efeito. E como tais os estimava a Rainha
de seus possuidores eram tornados à coroa: tanto que sempre os tinha consigo.
daqueles cidadãos escolheu alguns, que por suas Mas como as cousas a que por qualquer via o
partes lhe pareceram merecedores de serem coração se afeiçoa, andem sempre no pensamento
senhores deles, fazendo a uns Condes, & Mar- de quem as ama, andava o de Argiliana tão
quezes, & a outros Duques, o que foi parte se ocupado nos seus tigres, que oferecendo-lhe na
brevemente restaurarem os edificios que o geral imaginação ao tempo que del Rei concebia, veio
incendio no dia da redadeira batalha consumira, depois a parir um filho monstruoso, que ainda
como mais largamente na segunda parte desta que da cintura pera cima tinha forma humana,
cronica se conta. Mas entre todos eles o que mais dela pera baixo saiu ao tigre em que sua mãe
lustro tinha era o castelo da cidade, que situado imaginava. Depois de seu parto por muito res-
no alto de um monte, enchia de espanto a quem guardo que se pos em encobrir o que nascera,
o olhava, & com isto creciam os espritos à gente, não pode ser tanto que o povo o não sentisse,
e muito mais com a vista do Emperador, que para julgado aquilo mais por um castigo vivo em que
mais anima-los saía muitas vezes fora, porque as cruezas del Rei andassem no mundo retratadas,
natural é ao povo com nenhuma cousa tomar que por outra alguma obra da natureza. E na
mais esforço, e contentamento que com a verdade de crer era que tomar a Deos aquela
presença de seu Principe. (2, 2 v, 3) obra natural da imaginação pera meo de castigar

76
publicamente quem com publicas desordens viesse, porque o povo vinda ela soubesse o estado
escandalizava seus subditos. Pera remedio disto foi em que estava, tomou o corpo morto & vestindo-
mandado Tigririno (que assim poseram nome ao -o nos proprios trajos que naqueles dias usava, o
monstro) a um castelo perto da cidade, ficando pos atado seguramente sobre um grande cavalo, &
Argiliana tão enojada por aquele sucesso, que de aberto de muitas lançadas com as proprias lanças
puro descontentamento morreu daí a poucos dias. nas feridas o mandou levar a praça com um
Falecida ela, que por ser geralmente bem quista rotulo nas costas que dizia:
com sua presença sossegava tudo, como os seus Cruelmente morre, quem cruelmente mata.
não tiveram diante do quem tivessem pejo, logo Como isto veio de subito, & as mostras que de si
se pos por ordem a morte del Rei: e não tar- dava eram cheas de temor, cada um procurava por
dando muito em efeituar-se, um dia que a ocasião remediar-se, & parecendo-lhe mais acertado
lhe abriu pera isso milhor caminho, saltaram com conselho guardar-se em sua casa, que saira a parte
ele de subito em uma camara dos paços, & não onde pera com gente tão concertada haveria fraca
contentes com lhe tirarem a vida até no corpo resistencia, não se atreviam a sair às janelas. Pera
morto usaram novos generos de cruezas. E porque mais segurança o capitão que no castelo estava, era
dele não ficara por quem a ilha quisesse ser tão afeiçoado em secreto a el Rei Egeraldo, que
governada, Eudemio Principe daquela conjuração ainda bem não teve [ocasião] quando entregou as
que então era cavaleiro de muito nome, tomou chaves dele a Tigririno, prometendo-lhe que muito
a posse do Ceptro, & se fez senhor de tudo. brevemente lhe meteria nas mãos todos os que
Tigririno entre tanto que por quem tinha cui- nalguma cousa lhe eram contrarios, pera que não
dado dele, fora informado da morte de seu pai, somente à sua vontade se se satisfizesse neles, mais
criava-se com o desejo de vinga-la. E como foi ainda lhe ficasse mais segura a posse de seu Ceptro.
de sete anos começou a exercitar-se em todo Assim tanto que o castelo & os paços estiveram por
genero de montaria, em tanta maneira que não Tigririno, todos desconfiaram de seu remedio, &
havia alimaria em todo o bosque que das suas querendo com rogos resgatar as vidas que tão
mãos escapasse. E porque os amigos del Rei seu aventuradas tinham, mandavam suas molheres, que
pai o visitavam muitas vezes, & o sentiam afei- com lagrimas as pedissem, parecendo-lhes que a
çoado as armas, trouxeram-lhe muitas com que elas se teria mais respeito, & não acertaram pouco,
provasse suas forças. Assim como foi de idade que que a tenção de Tigririno que era por a ferro toda
podia ja aventurar-se em qualquer empresa de a cousa viva que na cidade achasse, se abrandou
merecimento via-se favorecido de tantos que cada com isto de maneira, que dando publica segurança
dia concorriam a servi-lo, que se detreminou de a todos, os fez sair de suas casas, & algum tanto
desapossar Eudemio dos [estados] que seu pai menos atemorizados, lançaram-se-lhe aos pés com
ganhara. E com esta tenção fazendo um corpo de palavras cheias de magoa, que ainda que no peito
gente a mais que pode ajuntar-se-lhe, uma noite do monstruoso Principe faziam pouco abalo
que fora da cidade se celebravam umas festas, por moveram tanto aos seus privados, que alcançaram
cuja causa as portas haviam de estar abertas, deu dele geral misericordia pera todos reservando os
sobre ela a tão bom tempo, que antes de ser que na morte de seu pai alguma culpa tivessem,
sentido, se fez senhor dos paços, onde mortas as pera os quais havia tantas espias, que impossivel
guardas deles que na mor força do sono estavam, seria escaparem-se-lhe. Entao fazendo-se jurar por
entrou na camara de Eudemio, e sem achar senhor, começou daí a poucos dias a tiranizar o
resistencia lhe tirou a vida. E antes que a menhã povo com tantos generos de insultos, que se algum

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bem dantes lhe queriam, logo foi em odio CAPÍTULO OITAVO
convertido: & não contente com o dano que dava
nas vidas & fazendas, assim tratava as honras de seus Do que aconteceu aos donzeis que pelo
vassalos, que não havia donzela que parecendo-lhe mar iam, & como foram armados cavalei-
bem a não tomasse a pesar de quem dela cuidado ros por uma estranha aventura.
tinha. E continuou tanto nesta desatinada soltura,
que ou porque ja não lhe ficava em toda a terra [guiados por Daliarte, os donzeis viajam pelo mar
quem com gosto conversasse, ou porque sempre o Egeu. Ao chegar a terra assistem a uma sequência
alheio faz mais cobiça a quem não possui, ordenou fantasmagórica, que involve uma série de deuses
uma fusta que daquelas ilhas vezinhas lhe roubasse e personagens mitológicas gregas, após o que
as mais fermosas, & muitas vezes ia ele a escolhe- Daliarte faz a exegese da visão e lhes dá conse-
las, porque nem dos que milhor o serviam queria lhos]
confiar-se. Porem como entre outras que um [...]
roubo que fez, achasse uma que lhe pareceu a mais Os noveis que de tamanho espetaculo espantados
bela que nunca vira, de maneira se lhe afeiçoou, estavam, pondo os olhos em Daliarte não sabiam
que entregue todo ao que ela ordenar quisesse, não que lhe dissessem. mas ele que para outro efeito
ousava em nada ofende-la, todavia crecendo-lhe o o fizera, como os sintiu socegados lhes disse desta
desejo com o que nela achava de aspereza, veio a maneira. Um dos mais seguros meus esforçados
encender-se tanto, que antes que chegasse à sua principes, que o aviso tem para melhorar-se é a
ilha, na fusta onde ia quis por força chegar a ella, experiencia que dos perigos alheos lhe fica com
& como fosse muito delicada, & do mau trato do que depois saiba governar-se nos proprios. E
caminho viesse mal disposta, tanto foi o nojo que ainda esta que vos eu agora mostrei tem uma
com esta força tomou, que entre os braços dele ventagem as outras que vos não deveis de ter por
rendeu o spirito. Esta morte de Orisile (que assim piquena, & é que elas por muito que façam de
se chamava a donzela) causou tamanho desgosto proveito vem sempre acompanhadas da magoa
no namorado Tigririno, que sendo a maior que que os males humanos criam em quem os olha,
nunca recebeu, convertida a dor em indignação & esta como é efeituada em pessoas fingidas que
blasfemava dos seus falsos deuses, & como se os não fazem mais que representa-la, não tem força
tevera presentes, com palavras arrogantes os para magoar, & tem a muito grande para avisar-
desafiava. Depois virado para ela, que nos braços a -vos. Vistes nela cavaleiros, vistes o esforço com
tinha, com outras cheias de lagrimas manifestava o que se combateram, a destreza com que se guar-
que sentia, ate que passado aquele primeiro daram, o animo & acordo com que acabaram, &
impeto em que os nojos fazem pausa, infor- a voz enfim da fama com que se levantaram. Cada
mando-se de quem era, & sabendo ser filha de cousa destas pois hoje tomastes a ordem que aos
Onisardo Rei da Ilha dos Ulmeiros donde a ele perigos vos obriga é bem que vos seja espelho
roubara, dobrou-se-lhe a paixão de todo, & com para as que ao diante fizerdes. E se assim for nem
a força dela fez juramento a alma da desditosa perdereis a vitoria por covardia, nem por medo
Orisile, que em perpetua lembrança de sua morte da morte deixareis as empresas com que a imor-
lhe sacrificara cada ano uma Princesa, começando talidade se ganha. Porque quando por derradeiro
pelas mais fermosas do mundo & deixando o socedessem que nas que o tempo chegar a ofere-
mesmo encargo aos sucessores de seu estado. [...] cer vos perdesseis a vida, tal é a fama que dos
(4 v, 5, 5 v) animos generosos fica na terra, que como se os

78
resuscitara os traz vivos antre as gentes, perpe- mais lhe merece. Assi depois que nele se encerrou
tuando no mundo a lembrança de suas obras, & o corpo de Orisile, Tigririno mandou vir logo o
o preço de seus merecimentos. E ainda que com que para o sacrificio estava aparelhado. E porque
vosco seja pouco necessaria esta lembrança, não se aquela noite antre sonhos se via num grande
perde nada nela, porque muitas vezes as cousas perigo, crendo na vaidade deles fez dous grandes
vistas aos olhos fazem mor abalo, que as que o esquadrões, cada um de quinhentos homens, &
entendimento secreatamente ensina. [...] (10, 10v) saindo em suas fieiras, junto de uma ara de mar-
more negro se poseram em ordem, & apos eles
em companhia dos Principais da ilha veo
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO Carmelia, que para aquele auto vinha vestida de
umas roupas de brocado de peso, & com um colar
Como Palmeirim & Dramusiano aporta- ao pescoço de tão ricos diamantes, que quelquer
ram a ilha de Tigririno, & do que mais deles não tinha preço. As mãos trazia atraz presas
sucedeo. com um tecido de ouro & seda, & sobre os
[preparativos para o sacrifício de Carmelia] cabelos que grandes perolas cobriam, uma coroa
real de pedraria, que mostrasse à gente quem ela
[...] E aqui os deixa a historia por contar de era. E como aidna de pois de tantos trances, não
Carmelia que em poder do gigante ia, que como tivesse perdidas aquelas grandes mostras de sua
o vento fosse por poupa & o navio bom de vela, gentileza, não havia quem nela posesse os olhos,
em menos de muitas horas chegaram à ilha, & que com muito dor os não tirasse, vendo que daí
desembarcando em terra, logo se foi com ela a tão pouco sobre uma pedra fria seria degolada,
direito aos paços, & apresentando-a a Tigririno, & com enchentes de seu real sangue, fartaria a
tanto foi o contentamento que com cobra-la vontade de quem tão cruelmente detreminava
recebeo, que ao gigante que lha trouxe fez merces sacrifica-la. Detras de tudo vinha Tigririno em
muito grandes, à propria princesa gasalhados umas roupas reais da cor que a sua tristeza con-
extraordinarios. Ao outro dia porque o sepulchro vinha, & a par dele de uma banda & doutra dous
de Orisile estava ja acabado fazendo tudo prestes fermosos donzeis vestidos de veludo preto, um dos
com grandissimo aparato em uma rica tumba foi quais lhe trazia o cutelo, tomado com um pano
trazido o seu corpo, que até então dentro na do mesmo veludo, & o outro em um brazeiro de
camara real estivera em balsamado. E como o prata algumas brazas ardendo. Seguiam--se logo
muito que Tigririno quisera, o obrigasse tambem dous poderosos gigantes armados de ouro &
a fazer muito, foi tanto o concerto com que todas negro, & quatro escudeiros que a Tigririno
estas coisas se solenizaram, que em nenhuma parte traziam as armas. Em ele chegando os esquadrões
do mundo poderam milhor fazer-se. O sepulchro levando a um tempo das espadas bateram com
era de um marmore branco molhado em partes elas nos escudos, & ficando-lhe assi nuas a
de umas veas negras que lhe davam muita graça, princesa foi posta sobre a ara, & em quanto
& cercado à roda de oito piramides da mesma laia Tigririno com uma longa pratica apresentava
que o acompanhavam. Na frontaria antre umas aquele serviço a sua Orisile, posto de giolhos
colunas de uma pedra roxa, de que na ilha havia diante da sua sepultura, um daqueles senhores a
grande quantidade, estava em uma traria um vulto quem este cargo fora dado, se chegou a Carmelia
de Cupido banhado todo em lagrimas com umas para com uma banda de ceda lhe tapar os olhos;
letras d’ouro que diziam. Quem no sepulchro jaz & já começavam a faze-lo, subitamente de uma

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parte & doutra ao mór correr de seus cavalos vinha uma moler defunta, que não se sostinha em
viram vir uns cavaleiros, & não eram tão poucos mais que na sua propria osada, trazia por uma
que não fossem mais de oitenta [....] (44, 44 v) trela de sedas negras uma figura de serpe, com as
alas tendidas em alto, & o pescoço levantado com
dous corpos de donzelas atravessados na garganta,
como quem doutra cousa se não mantinha,
QUARTA PARTE abaixo, de uma grossa machina de bronze, de
maneira que se agora forma a artelharia, & por
todo o espaço do carro, semeadas muitas cobras
CAPÍTULO XLV & víboras, que senão enxergava outra cousa, dom
Duardos, Vasperaldo, Laudimante, & Primalião,
De como as Princesas que em Constan- que entre os outros tinham então mais acordo,
tinopla estavam, foram roubadas por uma bem entenderam, que por algum grande dano, era
aventura. ali vinda aquela aventura, & muito mais quando
na testa da senhora do carro, viram umas letras
Ja que aqueles Principes queriam recolher-se, grossas, que diziam: Drusia Velona, então para se
viram outra novidade, que mais os espantou, & foi quer socorrerem às Princesas, foram para levar
que subitamense se cerrou o àr de maneira, que das espadas, mas aproveitou-lhes pouco, porque
se não viam uns aos outros, & crecendo cada vez não chegaram bem aos punhos delas, quando da
mais a escoridão, & começaram por entr’ele a soar machina de bronze, saio tamanho estrondo, que
medonhas invenções de fogo, que com um fora de seu sentido os fez vir todos a terra,
espantoso roido, parecia abrasar o mundo, & não obrando o proprio efeito em toda a gente da
foi tão pequeno o espaço que duro, que não cidade, que com um subito medo ficou
pasasse uma hora, sendo tanto o medo que em descordada. Neste comenos a dona do carro,
todos pós, que nem nas Princesas conselho para porque ja não havia quem lho impedisse, meteo
valer-se, porque ainda que os seus espiritos naci- nele a Emperatriz Gridonia com todas as Rainhas
dos para maiores cousas, não costumassem des- & Princesas, que sem sentido estavam, levando
maiar em nenhum perigo, em que estranhas com elas o Infante dom Floridaneo, que no
aventuras os tinham posto muitas vezes, era esta regaço de Carmelia então se achara, como as teve
tal, & a diferença dela tão fora de todas as outras, seguras, tomando uma trombeta que a ilharga
que não sómente nos animos das molheres punha trazia, fez com ela um som tão espantoso & triste,
receo, mas até aos mais esforçados se extendia, que acordando todos os Principes, os acabou de
desfeita a escuridão, por uma larga abertura, que encher da tristeza, que sua vinda causara, &
no meo da horta subitamente se fez, saio um dobrando-se as labaredas & fumo, de que vinha
grande carro, cercado em roda de vivas labaredas, acompanhada, com grandes bramido dos [ursos],
tão negras & espantosas que intrinsecamente que a traziam, se tornou a meter pela abertura
entristiciam a quem as olhava, traziam-no doze donde saira, & subitamente com outra nova
[ursos] negros & feos, que pela boca & narices escuridão como do Principio fora, se foi ajun-
lançavam um fumo espesso, que todo o ár cobria, tando a terra. Por certo quem então vira o
mesturado com um cheiro d’enxofre tudo tanto Emperador Primalião, bem duvidara haver nele
para temer, que nenhum dos que o viam ousou aquele esforço com que tantas vezes desbaratou
levantarse no alto dele, sobre um throno abrasado tantas afrontas, porque não podendo com a dor,

80
que aquele roubo lhe fazia, não era poderoso para mais certo meio de su liberdade, tambem vos avisa,
mais, que para se ocupar nas lagrimas, com que que se algum dos Principes quiser ir busca-las,
o coração lhe acodia, pois el Rei Dom Duardos, que vossa alteza & el Rei dom Duardos o não
Palmeirim, Floriano, & Florendos, que em tantos façam, por nenhuma maneira, porque a ventura
perigos tinham ja provado o esforço, que lhe a que trouxe agora este trabalho, trara outro em
natureza dera, aquí o perderam de todo, & mais que vossas presenças sejam assaz necesarias, mas a
com vozes fracas, que com esperitos animosos esse inda depois de muitas dificuldades, da mesma
buscavam o remedio daqueles males, & quando parte donde agora começa o dano, terá guardado
eles assí estavam, que se pode cuidar dos outros o sucesso tão prospero, como ela sempre vo lo
Principes mancebos, se não que ainda que queria”. Acabadas estas palavras, sem esperar res-
mostrassem alguma mais viveza, era tal o estremo posta delas, desapareceo dos olhos de todos, & foi
do que sentiam, que os seus corações desacom- sua vinda de tal virtude, que aquela extraordinaria
panhados de todo do natural vigor com que tristeza, que por força de encantamento lhe aca-
nasceram, cairam em huma fraqueza tão diferente nhava os espiritos, se consumio de maneira, que
do animo, que sempre teveram, que nem sabiam, tornados a seu ser, começaram a tomar conselho
nem com palavras mostrar o que sentiam, nem sobre o que naquele caso convinha, & porque a
com obras remedear o que tinham visto, & na detença por ventura poderia fazer muito dano,
verdade era tal a força daquele encantamento & tomaram assento, que logo ao outro dia se par-
tão justa a magoa que do feito dele lhes ficara, tissem todos de dous em dous, tomando cada um
que havia pouco que espantar-se os deixou desta diverso caminho, porque desta maneira, se aquele
maneira. Mas a este tempo entrou pela porta da sucesso tinha algum remedio, como a sabia lhes
horta uma fermosa donzela, vestida de veludo prometia, por ali melhor, que por outra parte,
preto guarnecido d’ouro, & acompanhada de poderia vir a efeito, & nasceo-lhes isto de enten-
dous escudeiros, se veio contra o Emperador, a derem mal as palavras, que a donzela dissera
cujos pés posta de giolhos disse em voz alta que porque conforme a elas, & ao que depois sucedeo,
todos ouviam: “Muito alto Emperador, a sabia não servio de nada a partida destes Principes,
Medea minha senhora, beja vossas reais mãos; & porque o encantamento de Velona, não podia ser
vos pede que não tenhais a mal ser a sua partida desfeito por eles, antes segundo aponta o chro-
desta vossa corte tão apressada, que lhe não deu nista, de que esta historia se tirou, depois de eles
lugar para despedirse de vós & dos Principes & correrem muitas aventuras tão perigosas como
senhores, a quem ela tanto deve, porque como os todas as passadas, em que se viram, chegaram ao
males em que agora estais, fosse de qualidade, que castelo das Furias, que assí se chamava o lugar
por sua mão não podiam ser remediados, & se onde Velona escondeo o seu furto, por estar
algum tinha, era o que a secreta partida sua lhe situado nas entranhas da terra, & ser guardado
podia dar, quis antes fazer o mais necesario, ao por elas, mas por derradeiro sendo vencidas, pelos
bem vosso e das Princesas, que roubaram, o que outros guardadores deles, seus proprios filhos; que
deter-se com vosco no que importava menos, mas foram os que as Princesas là partiram, alcançaram
agora que ve o aperto, em que estais, vos pede de geral vitoria de tudo, o que para defenção sua a
sua parte, que não percais a esperança do remedio sabia ali posera, & juntos todos vieram finalmente
das Princesas, ainda que estão em poder, de quem acudir ao grande perigo em que Constantinopla
tão pouco bem lhes deseja, como é a sabia Velona, estava, depois dos Turcos que sobre ela vieram
porque ela vos faz saber, que consigo levavam o serem desembarcados em terra, como na outra

81
parte desta historia se dirà, que muitas vezes
acontece, assí como os males vem sempre em
companhia doutros succederem os bens de
Crónica do
maneira, que apos um venham muitos mayores.
[82 v, 83, 83 v] famoso príncipe
Os dois últimos textos foram ligeiramente
modernizados para facilitar a leitura, segundo os
Dom Clarisol de
seguintes critérios: resolução de abreviaturas,
separação de palavras segundo o uso moderno, Bretanha [...]
regularização do uso de /v/ (valor consonântico),
de /u/i/ (valor vogal), uso de /h/, e os ditongos
nasais. Simplificaram-se as consoantes duplas.
Respeitou-se quase sempre a ortografia e Quinta e sexta
manteve-se a pontuação do original.
partes da Crónica
de Palmeirim
de Inglaterra
BALTAZAR GONÇALVES LOBATO

QUINTA PARTE

CAPÍTULO SEGUNDO

Como os Princepes, & cavaleiros que de


Constantinopla partiram na demanda das
Princesas se apartaram por diversos cami-
nhos.

Sairam de Constantinopla todos os Principes, &


Cavaleiros famosos que no derradeiro capitulo da
quarta parte se disse, tão tristes, & magoados pelo
roubo das Princesas que de nenhuma couza ou
infilice sucesso que lhes viera o puderam ser mais.

* Lisboa: Jorge Rodrigues, 1602.

82
Com tudo em quem esta dor fazia maior força las couza que por muitas rezões é dignissima de
era nos novos desposados, porque como no dia louvor, pois sendo assi, não é pequeno o que se
que esperavam receber o galardão de seus traba- vos deve pois em perda & adversidade tão notavel
lhos se imaginasem tão longe da satisfação deles mostrais o animoso de vosos corações.E quanto
pois quem lha podia dar que eram as Princesas menos noticia tendes do lugar onde a cruel
suas senhoras, estavam em parte para eles en- Vellona encerraria a roubada presa [a Emperatriz
cuberta a consideração destas cousas era bastan- e Princesas arrebatadas] tanto maior louvor se
temente poderosa para tal efeito. Pois se neles isto deve ao sufrimento voso, de sorte que pois em
acontecia não pasava muito ao contrario no couza tão incerta de necessidade nos havemos de
Principe Palmeirim de Inglaterra, Florendos el entregar ao sucesso da ventura o qeu a mi me
Rei Floriano, & nos mais Reis, & Princepes parece mais acertado é que ois aqui há tantos
cazados porque como todos cazasem por amores caminhos de dous em dous comesemos a seguir
tinham ainda tão verdes, as raizes da verdadeira o que de nos tem ordenado, porque asi mais
afeição que as suas senhoras tinham como nos facilmente possamos descobrir o encantamento
primeiros dias de seus amores de sorte que como das Pricesas por cuja liberdade com tão justa
todos na dor, & tristeza iam conformes assi razão devemos de offerecer as vidas (1 v, 2)
tambem nas devizas com que saiam de
Constantinopla se conformaram com o tempo
que lhes viera, porque armados todos de armas CAPÍTULO TERCEIRO
negras mostravam nos escudos as tristes devisas
significadoras do mal que os atromentava das Do que sucedeo ao Princepe Palmeirim, &
quais em seu lugar se fara menção. E dado caso a el Rei Floriano partidos dos outros
que todos geralmente mostrasem o devido senti- Princepes.
mento de tão grande perda so no Principe Dom
Duardos se enxergava uma desacostumada tristeza Andaram tanto os dous animosos irmãos pelo
tão diferente de todos os outros quanto tambem caminho que seguiam, que a horas de vespora se
sua afeição era maior que todas as do mundo. acharam em um deleitoso vale cheo de tanta
Desta sorte partiram de Constantinopla, & como devirsidade de cheirosas boninas, & arvores gra-
todos fossem armados daquela triste cor, & com ciosas que parecia que nele enthesourara a natu-
tão tristes devisas é certo que moveram a grande reza todos seus brincos, & galantarias, & com ser
compaixão a quem os vira. Não teriam andado desta sorte se viam nele algumas fontes de cris-
espaço de uma legeoa quando chegaram a uma talinas agoas que estendendo-se em largos arroios
parte onde o caminho que levavam se devedia em por todo o vale o faziam em extremo aprazivel:
muitos. Aqui o gram Palmeirim de Inglaterra a não faltavam aqui grande cantidade de melros
quem entre todos os outros se tinha mais respeito pintasirgos, & outras aves de todas as sortes que
tomando as redeas ao cavalo comesou assi. Se as occupando-se nos frescos ramos das arvores de
cousas vallerozos Principes secedessem sempre quando em quando baixavam a lograr-se das
prosperas, & favoraveis aos homens, não faria o agoas daquelas fontes banhando-se nelas tão se-
mundo expiriencia da grandeza e generosidade guramente que a quem os vira causara não pe-
de animos que a muitos comunicou a natureza. queno contentamento. Com tudo não sucedia assi
Digo isto porque nas adversidades se conhece a ao Principe Palmeirim antes acrescentando-se-lhe
constancia com que o varão esforçado sabe sofre- com a suave armonia dos pasarinhos as saudades

83
da sua Polinarda vieram em fim a fundir tanto apartaram de todos os mais Principes aquelles
que metido na imaginação delas nem ele sabia dous estremos de humano esforço Dom Duardos,
por onde caminhava nem lhe ficava acordo pera & Primalião: cujas armas, & divizas bem davam a
guiar o cavalo. Por certo quem vira este extremo entender a extraordinaria tristeza que os acom-
de afeição tivera bem de que espantar-se porque panhava [...]
ia depois de tantos anos haver logrado a fer- [... os cavaleiros encontram um carro a arder, com
mosura da princesa Polinarda parecia cousa justa pinturas e motes]
que o tempo consumidor de todas as cousas tivese
apagado parte do amor com que nos dias de seus Apos o fogo vou ardendo em fogo
trabalhos a servia, cousa que nele acontecia muito Por alcançar, o fim de minha magoa
ao contrario antes era tamanha ainda sua afeição Mas não alcanço fogo, alcanço agoa. [3, 3 v]
como sempre fora, & na verdade onde o amor é
grande ordinariamente tem estes efeitos, que são
a mais verdadeira mostra de sua perfeição, pois el
Rei Floriano ainda que de principio fosse tão CAPÍTULO DÉCIMO
contrario de se someter a cuidados desta sorte
depois que casou com a Rainha Leonarda parece Como estando o principe Florendos, & el
que o proprio amor por tomar verdadeira vin- Rei Floramão em notavel perigo da vida
gança de sua isensão obrou nele com tanta força foram socorridos por dous cavaleiros.
seus efeitos que pudera neste particular fazer
ventagem aos mais namorados de seu tempo & [...]
como assi fosse com pouco mais sentido que o
principe Palmeirim de quando em quando guiava No fim destas infructuosas jornadas, um dia a
o cavalo que apartado algumas vezes do caminho horas de vespora ouviram soar o mar & como
se metia pelo mais fundo daquele espaçoso vale. aqueles que não desejavam cousa mais que achar
Desta sorte caminharão tanto que lhes sobre veo alguma embarcação em que saissem do imperio,
anoite, & como quem queria apartar-se de todo tendo por mal empregado todo o tempo que
o povoado determinados estavam a pasa-la no nele gastassem, se foram contra a praia. Aí chega-
campo se a esta hora que ja de todo cerrava não dos viram que de uma grande fusta que no
ouviram grande tropel de cavaleiros que não proprio tempo encorara em terra, saiam ate
muito longe por outra parte faziam seu caminho corenta cavaleiros armados de ricas & lustrosas
[...] (2 v, 3) armas, entre os quaes apareciam quatro Gigantes
de demasiada grandeza. Estes vendo que na pri-
meira desembarcação achavam logo emquem co-
CAPÍTULO QUARTO meçassem à executar o rigor de suas tenções,
houveram aquele principio por venturoso agouro
Do que succedeo ao Pr incipe Dom do que pretendiam fazer naquele imperio. Estive-
Duardos, & Primalião despois que dos ram devagar vendo a segurança com que eles os
outros se apartaram. olhavam, & notando as armas que eram de um
lizo aço negro, os escudos tinham da propria
Com Tão crecida magoa, & sentimento, como lhes sorte. Eram as devisas bem conformes à cor das
fazia ter o roubo das Princesas suas espozas, se armas, porque o principe Florendos tinha no seu

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debuxadas umas ondas azuis brandas & saudosas aparta-lo ele de terra que ao momento se engol-
feitas à imitação das do Tejo & dezia a letra fou com tamanha velocidade como aquele que
era guiado pelo saber de Medea. Aqui o Principe
São do mar, mas de amar vem Vasperaldo lançado de bruços no vergantim acre-
que nestas ondas queixosas centando-lhe o rogido das ondas que quebravam
vem as lembranças saudosas nele a dôr que o acompanhava, com os olhos
do desterro do meu bem. [14] cheos de lagrimas, & profundissimos soluços que
[...] afogavam de todo as palavras, assi começou a
dizer. Ay de ti Principe Vasperaldo mais sem ven-
tura que todos os nacidos, que sorte foi a tua tão
SEXTA PARTE. infelice, & desditosa que assi te apartou eterna-
[Lamento de Vasperaldo pela perda de Gridónia, mente da companhia da tua amada Gridonia. Ay
a quem crê morta] triste como não se me acaba a vida com a lem-
brança deste nome: Gridonia se lá neste supremo,
& alto assento a onde subistes, se permitte a
CAPÍTULO VIGÉSIMO lembrança do verdadeiro amor com que do vosso
Vasperaldo fostes sempre tratada considerai os
Do que sucedeo ao Principe Vasperaldo crueis tormentos a que me tem oferecido a
partido de Constantinopla ausencia de vossa vista. Lembrei-vos senhora que
nenhuma cousa mais sinto que não poder acom-
Armado das negras armas que a sabia Medea lhe panhar-vos na morte com a alma, como com este
mandara, saío de Constantinopla o valeroso Prin- miseravel corpo o fiz na vida. Com estas palavras
cipe Vasperaldo tam desacompanhado de humana e outras muitas com que podera magoar a quem
companhia, como acompanhado de grande tris- o ouvira, passou alguns dias [...] [31]
teza, & tormento que a lembrança de sua Gri-
donia lhe causava. Caminhou tudo o que da noite
estava por passar por alongar-se da corte, & ja a
tempo que o fermoso planeta com a claridade de
seus resplandecentes rayos começava alegrar aque-
les campos por onde caminhava, se achou em uma
praya, onde vio ancorado um pequeno vergantim
sem pessoa alguma que o guardasse, pareceo-lhe
bom aparelho para o que determinava que era
entregar-se ao successo que a ventura lhe quisesse
ordenar, pois de nenhuma cousa humana tinha ja
que esperar morta sua senhora Gridonia. Julgava
que para mostrar o muito que na vida lhe quisera,
tinha obrigação de apartar-se de todo o comer-
cio, & conversação das gentes, & fazer aspera, &
solitaria vida, até que Deos fosse servido de lhe
tirar a sua. Com este preposito, apeando-se do
cavalo saltou no vergantim, não foi necessario

85
86
BIBLIOGRAFIA
S U M Á R I A

87
88
Bibliografia Lobato, Baltazar Gonçalves. Chronica do famoso
príncipe Dom Clarisol de Bretanha, filho do Principe
don Duardos de Bretanha, na qual se cõtão suas
grandes cavallarias, & dos principes Lindamor,
TEXTOS LITERÁRIOS
Clarifebo, & Beliandro de Grecia, filhos de Vasperaldo,
Laudimãte, & Primalião, & de outros muitos principes,
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Prefácio e notas de Marques Braga. 3 vols. Lisboa:
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Livros portugueses de cavalarias, do Renascimento ao
Lisboa: Germão Gallarde, 1522.
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Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
Morais, Francisco de. Obras completas de Francisco
1998.
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se ajuntam as mais obras do mesmo autor. Texto Amezcua, José. Libros de caballerías hispánicos. Cas-
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Rey dõ Duardos: no qual se cõtam suas proezas y de Floriano Historiador do Pensamento Humanista Português de
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