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José Aristides da Silva Gamito (Org.

ANAIS DO I SEMINÁRIO DE
EPISTEMOLOGIA DA RELIGIÃO

A racionalidade das crenças religiosas

CARATINGA - MG
2019
José Aristides da Silva Gamito (Org.)

ANAIS DO I SEMINÁRIO DE
EPISTEMOLOGIA DA RELIGIÃO
A racionalidade das crenças religiosas

2019
EQUIPE RESPONSÁVEL:

Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário


Av. Presidente Tancredo Neves, 3460
Zacarias - Caratinga/MG 35300-756
(33)3321-2824
https://seminariocaratinga.com.br/

Organização
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito

Participantes
Graduando em filosofia Bruno Kened Ferreira
Graduando em filosofia Elyvelton Rodrigues Francisco
Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito
Prof. Mndo. Wanderson Fernandes de Oliveira

Dados de Catalogação

GAMITO, José Aristides da Silva (Org.). Anais do I Seminário de Epistemologia da Religião.


Caratinga: SDNSR, 2019.

1. Epistemologia da Religião. 2. Santo Agostinho. 3. Padre Júlio Maria De Lombaerde. 4.


Espistemologia Reformada. 5. Ciências Cognitivas da Religião.

Edições

3
I Seminário de Epistemologia da Religião
APRESENTAÇÃO

No dia 21 de junho de 2019, realizamos com a turma do 3º ano de filosofia do Seminário


Diocesano Nossa Senhora do Rosário, em Caratinga, o I Seminário de Epistemologia da Religião. O
tema proposto foi: “A racionalidade das crenças religiosas: Uma proposta para debate”. Participaram
das apresentações os alunos do curso de filosofia.
Das 19 às 22 horas, foram desenvolvidas as seguintes comunicações: O seminarista Bruno
Kened Ferreira apresentou o tema “Percepções do Itinerário Racional-religioso em Santo Agostinho”.
Em seguida, o seminarista Elyvelton Rodrigues Francisco apresentou “Uma abordagem
epistemológica da obra “Deus e o Homem” de Pe. Júlio Maria De Lombaerde”. Por último, o professor
José Aristides da Silva Gamito apresentou a comunicação “A Racionalidade das Crenças Religiosas:
Em busca de um Modelo a partir das Ciências Cognitivas da Religião”. Foi convidado para fazer uma
comunicação o professor Wanderson Fernandes de Oliveira e não pode comparecer por motivo de
saúde na família, mas participa deste volume com seu artigo do tema que iria apresentar no
seminário.
A proposta do evento foi debater o problema da racionalidade das crenças religiosas
enfocando algumas teorias sobre a naturalidade ou não de um senso religioso. Duas apresentações
abordaram as respostas de Santo Agostinho e de Tomás de Aquino (através da obra de padre Júlio
Maria de Lombaerde). A terceira foi desenvolvida a partir da Epistemologia Reformada e as teorias
das Ciências Cognitivas da Religião.

Prof. Msc. José Aristides da Silva Gamito


Professor de Teoria do Conhecimento
Instituto Teológico Filosófico de Caratinga (ITEOFIC) /
Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário (SDNSR)

Caratinga, 22 de junho de 2019.

A racionalidade das crenças religiosas 4


I Seminário de Epistemologia da Religião

SUMÁRIO

Apresentação......................................................................................................................04

1. Considerações do Itinerário Racional-religioso em Santo Agostinho ............................06

2. Uma abordagem epistemológica da obra "Deus e o Homem" de Pe. Júlio Maria De Lombaerde,
SDN ....................................................................................................................................16

3. O problema da racionalidade das crenças religiosas: em busca de um modelo epistêmico a partir


das ciências cognitivas da religião .......................................................................................25

4. As fraturas da vida têm papel importante para a construção do paradoxo da identidade na alteridade
e alteridade na identidade....................................................................................................32

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I Seminário de Epistemologia da Religião

CONSIDERAÇÕES DO ITINERÁRIO RACIONAL-RELIGIOSO EM


SANTO AGOSTINHO

Bruno Kenned Ferreira

Resumo
O presente trabalho baseia-se em fragmentos de algumas obras de Santo Agostinho
almejando trilhar um itinerário que identifique elementos racionais na crença religiosa, neste caso, a fé
cristã, numa relação de busca do humano para o divino. A discussão trata sobre a relação da busca de
Agostinho pela sabedoriae, por ela, à verdade, com base na relação entre fé e razão e da Teoria da
Iluminação agostiniana.

Palavras-chave: Busca. Crença. Itinerário. Iluminação.

1.Introdução

Em sua busca pela sabedoria, e desta à verdade, Santo Agostinho trilha um itinerário
interior a Deus, capaz de iluminar o intelecto do ser humano e o fazê-lo conhecer, verdadeiramente.
Por exemplo, em Confissões, percebe-se que sobressai no ser humano uma busca, ou
melhor, uma inquietação, um desejo natural para Deus. Essa busca humana só terminará sua
trajetória, lembra o autor, quando repousar seu coração n'Aquele que o Criou.
Não obstante, esse desejo por Deus, segundo Agostinho, muitas vezes, manifesta-se de
forma implícita, como a busca de fazer o bem e de ser feliz, de alcançar a sabedoria, o conhecimento ou
a verdade e, até mesmo, nos desejos passionais.
Uma vez que Deus colocou no coração do ser humano esse desejo para voltar para Si,
Agostinho utiliza-se do elemento“fé” como conhecimento básico para se chegar à Verdade, a Deus. A
fé é um estimulante, que provoca e impulsiona a razão a buscar as verdades e, assim, a Verdade.
A razão, ou a inteligência, por sua vez, fortifica e concede clareza e entendimento
consciente da fé. Ou seja, pela Doutrina da Iluminação, a filosofia/epistemologia agostiniana
desenvolve os conceitos de ideias eternas, existentes no intelecto de Deus, que podem ser alcançadas
e contempladas pelo exercício racional do pensamento.
Por conseguinte, com a elevação da alma humana, por meio de suas faculdades, o intelecto
é iluminado pela Verdade, ou seja, por Deus, e o ser humano passa a conhecer, de fato. Portanto, por
essa via iluminativa, o ser humano é capaz de conciliar fé e razão e encontra um Intelecto superior ao
dele, em seu itinerário na busca pela verdade, proporcionando uma racionalidade das crenças
religiosas, no caso, a do cristianismo.

*Estudante do Curso de Filosofia no Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário. Artigo, apresentado à disciplina
Teoria do Conhecimento, orientado pelo Prof.º José Aristides da Silva Gamito. Caratinga – MG, 2019.E-mail:
brunokened@hotmail.com.

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I Seminário de Epistemologia da Religião

2.Pressupostos de Busca

Agostinho, no início das Confissões, deixa claro que algo nítido no ser humano é um desejo
natural de Deus, seja consciente ou inconscientemente. “Fizeste-nos para ti, Senhor, e o nosso
coração está inquieto enquanto não repousar em Ti” (Confissões, p.15). O único que pode dar a
quietude ao homem é Aquele que o criou.
Como explica o professor Joel Gracioso,quem colocou isso no ser humano é o próprio
Deus, pois, pela frase “fizeste-nos para Ti”, afirma-se que a causa eficiente que chamou o ser humanoà
existência, fazendo a passagem do não-ser para o ser, é Deus (GRACIOSO, 2013).
Em outras palavras, o homem não foi criado apenas por Deus, mas para Deus.Nessa
percepção, o para Deus corresponde, na natureza, na essência e na alma do homem,a uma
necessidade inerente em que, segundo Joel, “o ser do humano só se realiza completamente quando
ele volta ao seu princípio originário, portanto, Deus não é só à causa eficiente e primeira; Ele é final”, ou
seja, o Alfa e o Ômega.
Em Confissões, Agostinho usa do “elemento biográfico como uma estratégia literária, não
sobre si mesmo, mas sobre a realidade humana em si” (GRACIOSO, 2013), ou seja, “pensar o
universal a partir do particular”. Exemplo disso, nos primeiros parágrafos do Livro I, ele relata a
realidade de Deus e do homem, do abismo que existe entre essa relação e a inquietude do coração do
ser humano até que ele repouse quando encontrar Deus. O dilema agostiniano consiste:na
necessidade irrenunciável de se buscar a Deus, pois só Ele satisfaz o homem, mas como se dá essa
busca? Ele adentra na discussão entre invocação, conhecimento e louvor, chegandoà conclusão de
que se deve ter conhecimento prévio, partindo do elemento“fé”, para, assim, invocar e louvar a Deus.
Segundo Agostinho, a fé é vista como conhecimento básico. Pormeio dela, faz-se a
invocação. À medida que se invoca, se procura, se encontra, se conhece e, ao passo que se conhece,
se louva. Isso se configura, pois, num dinamismo dialético.
Ademais, o bispo filósofo transforma o termo invocação, visto que invocar, no latim, vem de
invocare – chamar para dentro –, entendendo-se que Deus está fora e o homem O chama para dentro
de si. Se invocar é chamar de fora para dentro, e se Deus é Onipresença e está presente no ser
humano, não tem sentido invocar a Deus.
Assim, diante desse paradoxo, o ato de invocar estaria em invocar a partir de dentro, não de
fora, ou seja, invocar a Deus a partir de sua presença no interior do homem.Como escreve Agostinho:
“Tu estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima. E eras superior a tudo o que eu tinha
de mais elevado” (Confissões, p.71), Deus está no mais íntimo do que a intimidade do homem, pois Ele
é anterior e o fundamento último do ser humano. Assim, conclui, deve-se invocara partir dessa
presença interior – Deus.

2.1. Relação entre Razão e Fé


Para proceder com o caminho racional e religioso em Agostino, são necessárias breves

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considerações sobre razão e fé, pois ambas o auxiliam em sua trajetória para Deus.
Isso posto, faz-se necessário considerar que, na fase de sua juventude, a busca pela
sabedoria, partindo da leitura da obra “Hortênsio”, de Cícero, converte Agostinho à filosofia, logo, a um
estímulo racional de conhecimento. Como ele diz em Confissões, p.66:
“O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que ele mudou os meus
sentimentos e o modo de me dirigir a ti; ele transformou as minhas aspirações e
desejos.Repentinamente pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a
aspirar com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria”.

Mas sua adesão, ou melhor, a conversão à fé cristã, dá-se pela influência de Plotino, do
Bispo Ambrósio e da Sagrada Escritura, e pelas orações de sua mãe, Mônica. Isso vem ao caso, pois
abriu novos horizontes para o próprio modo de pensar de Agostinho. Com descreve Reale: “A fé tornou-
se substância de vida e pensamento e, assim, tornou-se não só o horizonte de sua vida, mas também
de seu pensamento.[...] (que)adquiriu uma nova estrutura e uma nova essência” (REALE, 1990, p.
434). Nesse sentido, pode-se considerar que tenha ele inaugurado uma filosofia-na-fé, filosofia cristã,
antes preparada pelos Padres gregos.
Percebe-se, portanto, que a relação entre fé e razão, na filosofia agostiniana, está
relacionada a convertio(conversão), pois esta é que torna certa a fé, que lhe é concedida em dom de
Deus. A conversão é um acontecimento único, que, por sua essência, é diferente no seu sentido e na
sua eficácia: “consciente de ter sido atingido imediatamente pelo próprio Deus, o homem se transforma
até na corporeidade do seu ser e nos objetos que se coloca”. (REALE,1990,p. 435).
Partindo dessa análise, o elemento fé não elimina e nem supre a inteligência ou a
racionalidade, visto que,sem o pensamento, nãoexistiria a fé. Do mesmo modo, a inteligência não
elimina a fé, mas a fortifica e lhe concedeclareza e entendimento consciente.
Como explica Gracioso,a fé, para Agostinho, não substitui o trabalho da razão, mas a anima,
não a deixando desistir de buscar. A fé é um estimulante que provoca e impulsiona a razão a seguir em
frente, diante as dificuldades como, por exemplo, a discussão da Trindade e a Encarnação do Verbo
(GRACIOSO, 2013).
Por outro lado, a fé ilumina e orienta a razão no modo e na maneira como essa deve buscar a
verdade. Na percepção agostiniana, a razão possui finitude em função do Pecado Original e precisa se
permitir ser orientada e iluminada e, assim, estimulada pela fé, para que continue prosseguindo.
Segundo o filósofo, há questões em que é necessário crer primeiro para depois
compreender, ter o entendimento. Ele não nega o conhecimento, mas vê alguns limites nesse sentido e
que só serão compreendidos depois da morte, no caso, com a Pátria Celeste. Assim, tem-se uma de
suas máximas: “Eu creio para compreender e compreendo para crer melhor” (apud 1CIgC2001,158, p.
52), ou seja, no fundo, há uma busca por compreensão, porém, é necessário o auxílio da fé.
Em resumo, Agostinho, na Trindade, diz que “a fé busca, a inteligência encontra”, ou seja, a
fé e a razão são complementares entre si. Isso o ajudou em seu percurso dialético na busca pela
verdade, assim, por Deus. Partindo da fé, faz-se a invocação. À medida que se invoca e se procura, se
conhece e à medida que se conhece, louva-se o Criador.

1 Catecismo da Igreja Católica.

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3. Breves Considerações sobre a Doutrina ou Teoria da Iluminação


A filosofia Platônica e, assim, a sua metafísica, marcou profundamente o pensamento
Ocidental diante da separação entre o mundo sensível e o mundo inteligível, que corresponde a dois
tipos de conhecimento, o sensível e o inteligível, como epistemológico verdadeiro. Na filosofia
agostiniana, esses dois tipos de conhecimento são reconhecidos e o verdadeiro era compreendido
como conhecimento das verdades, das regras ou das ideias eternas/divinas.
Diferente de Platão, Agostinho, no referente conhecimento das verdades eternas,
desenvolverá sua filosofia, pautando-se num movimento de interioridade necessário para que a alma
encontre-as dentro de si.Na visão agostiniana, nesse processo, não são admitidos dois tipos de
conhecimento e, sim, dois resultados de conhecimento, provindos da ordem natural ou da experiência
mística. Esta última, como escreveSoares, “consistiria na possibilidade de uma contemplação direta
das ideias divinas, a qual, só pode ter uma duração breve, já que a criatura (o ser humano) não pode
permanecer num estado alterado de experiência mística e precisa voltar ao mundo
temporal”(SOARES, 2003, p. 43).
A busca de conhecimento de Agostinho dá-se também nas criaturas, como caminho a
perceber Deus nas coisas do mundo, sem uma experiênciamística, como é demonstrado em seu relato
em Confissões:
“...Perguntei à terra, e esta me respondeu: "Não sou eu". [...] Interroguei o mar, os abismos e os
seres vivos, e todos me responderam: "Não somos os teu Deus; busca-o acima de nós[...] Pedi a
todos os seres que me rodeiam o corpo: "Falai-me do meu Deus, já que não sois o meu Deus;
dizei-me ao menos alguma coisa sobre ele". E exclamaram em alta voz: Foi ele quem nos criou.
Para interrogá-los, eu os contemplava, e sua resposta era a sua beleza.. [...] Aos homens é dado
indagar, para perceberem o Deus invisível através da compreensão das coisas criadas.” (Conf.
X, 6, 9-10).

Agostinho menciona esse caminho em O Livre Árbitrodizendo: “[...] aquele que contemplou
toda a criação e a apreciou cuidadosamente, se ele seguir o caminho que leva à sabedoria, realmente
verá que está se lhe revela afavelmente por todo o caminho [...]” (apud Soares, 2003, p.43),.
Assim,sobre essa inquietação, explica Soares (2003, p. 44)com as palavras deÉtienne
Gilson: “no pensamento de Agostinho, há “[...] uma espécie de evidência sensível da existência de
Deus. O mundo proclama seu autor e nos reconduz sem cessar a ele, porque a sabedoria divina deixou
sua marca sobre todas as coisas [...]”. E assim, “[...] o caminho que vai dos campos à verdade passa
pelo pensamento; e ainda que ele (o pensamento) parta do mundo exterior, o itinerário normal de uma
prova agostiniana vai então do mundo à alma e da alma a Deus”, como pressuposto à iluminação, sem
a qual não se tem a viabilidade de conhecimento inteligível”.
Essa iluminação é admissível não aos objetos do conhecimento do mundo sensível, mas ao
conhecimento inteligível, seja pelo pensamento (nas ideias de bem, de justiça, de verdade e outras) ou
pela emissão de juízos, que salientam o inteligível, ao indagar sobre o sensível como: “esse homem é
bondoso”. Portanto, é unicamente pelos objetos inteligíveis que se terá a iluminação, sendo esta a
possibilidade de explicação sobre o conhecimento da verdade, ou seja, será pela iluminação que se

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adquirirá a veracidade dos juízos à luz das razões eternas. Porém, como a alma pode conhecer os
inteligíveis?

3.1 Sobre o Intelecto na perspectiva agostiniana


Para a compreensão do quese refere à doutrina da iluminação em Agostinho, devem-se
levar em conta os seguintes termos:scientia(conhecimento), ratio (razão) e intellectus(intelecto),
intelligentia (inteligência), considerando-se, pois, a flutuação de conceitos, mas não de forma
equivocada a respeito da compreensão deles.
Como descreve Soares (2003, p. 45 e 46.), com referência a Étienne Gilson, na concepção
agostiniana, o termo anima designa o princípio dos corpos, seja dos homens ou dos animais; a animus
titula a alma humana, “...quer dizer, um princípio vital que é, ao mesmo tempo, uma substância racional
e [...] neste sentido parece às vezes se confundir com a mens (mente/pensamento)”.
Em outro sentido, continua oautor, o termo spiritus (espírito), como imaginação produtiva ou
memória sensível, “[...] designa ao contrário a parte racional da alma e torna-se consequentemente
uma faculdade especial ao homem, que os animais não possuem [...]”. A mens é compreendida como a
parte superior da animus (alma racional) que contém a ratioe a intelligentia. Quanto a essa, a ratio,“é o
movimento pelo qual o pensamento passa de um de seus conhecimentos a um outro para os associar
ou dissociar [...]”.Ainteligentia ou o intellectus“...significa uma faculdade superior à razão. A inteligência
é o que há no homem, e consequentemente, na mens de mais eminente”.
Por essa mesma razão, prossegue Gilson, “ela se confunde frequentemente com
intellectus, [...] que é uma faculdade da alma, própria do homem, que pertence mais particularmente à
mens, o que é iluminado diretamente pela luz divina. O intellectusé uma faculdade superior à razão,
porque se pode ter razão sem ter a inteligência; mas não se pode ter a inteligência sem ter,
primeiramente, a razão e é porque o homem possui a razão que ele deseja alcançar a inteligência. Em
uma palavra, a inteligência é uma visão interior pela qual o pensamento percebe a verdade que a luz
divina lherevela”.Nas palavras de Joel, é pela inteligência que o ser humano, de certa forma, tem uma
ligação com Deus e, assim, como diz Agostinho, acesso às razões eternas ou aos princípios eternos.
(Gracioso, 2013)
A razão possui dois níveis de uso: o inferior (origem à ciência) e o superior (origem à
sabedoria). A sabedoria leva o ser humano a se preocupar com as coisas eternas, enquanto a ciência
leva a preocupação com o conhecimento natural do mundo empírico. Elas não se contradizem; a
sabedoria depende da ciência, pois seu conhecimento começa por meio dela. Contudo, a ciência pela
ciência não tem valor para Agostinho, senão para levar a atingir algo maior, que é a sabedoria, pois é
pela sabedoria que se atinge a vida feliz, ou seja, a Deus. A ciência é um meio para se chegar à
sabedoria.
Isso é de suma importância no pensamento agostiniano, pois se existe um fim último, uma
dimensão teleológica (beatitude), a mens precisa ser transformada. Quando Agostinho se refere
àmens, ele trata sobre a capacidade doser humano de pensar, cogitar e conceder as coisas. Assim, se
o ser humano tem uma concepção errada das coisas, o agir será afetado. Do mesmo modo, se tiver o

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conceito errôneo de quem é Deus, do que é a vida, do que é o ser humano, isso contribui para que o
conjunto de ações da vida seja equivocado. Portanto, a mens precisa ser iluminada.
Seguem algumas passagens de Agostinho, conforme as apresenta Soares (2003, p. 46 e
47), que remetemà formulação da iluminação e de como funciona o intelecto no conhecimento da
verdade:
1- DT, XII, 15, 24

...Assim, é preferível acreditar que a natureza da alma intelectiva foicriada de tal modo que,
aplicada ao inteligível segundo sua natureza,e tendo assim disposto o Criador, possa ver esses
conhecimentos emcerta luz incorpórea de sua própria natureza.

2- DT, XIV, 15, 21


...Mas a alma pode ser lembrada para se voltar para o Senhor, comoque para aquela luz que já a
tocava de certa forma, mesmo quando deleestava afastada. [...] Onde hão de estar escritas (as
regras eternas)senão no livro daquela luz que se chama verdade? Nesse livro é que sebaseia
toda lei que é transcrita e se transfere para o coração do homemque pratica a justiça. Não como se
ela emigrasse de um lado para ooutro, mas a modo de impressão na alma. Tal como a imagem de
umanel fica impressa na cera, sem se apagar do anel.

3- Conf. VII, 10, 16

...Instigado por esses escritos a retornar a mim mesmo, entrei no íntimode meu coração sob tua
guia e o consegui, porque tu te fizeste em meuauxílio. Entrei, e com os olhos da alma, acima
destes meus olhos eacima da minha própria inteligência, vi uma luz imutável. Não era essaluz
vulgar e evidente a todos com os olhos da carne, ou uma luz maisforte do mesmo gênero. Era
como se brilhasse muito mais clara e tudoabrangesse com sua grandeza. [...] Também não estava
acima de minhamente como o óleo sobre a água nem como o céu sobre a terra, masacima de mim
porque ela me fez, e eu abaixo porque fui feito por ela.Quem conhece a verdade conhece esta luz
e quem a conhececonhece aeternidade.

4- DGL, XII, 31, 59

...Outra coisa no entanto é a luz ela mesma, pela qual a alma éiluminada, porque ela vê tudo aquilo
que ela apreende com verdadepelo intelecto, seja nele mesmo, seja nessa luz. Porque essa luz
de quetratamos agora, é Deus ele mesmo, ao passo que a alma é uma criaturaque, ainda que
feitaracional e intelectual à sua imagem, quando ela seesforça por ver a luzela mesma, se agita
fracamente e malogra; é noentanto de lá que lhe vem tudo o que ela apreende pelo intelecto
comoela o pode fazer. Quando então ela é transportada até lá e, subtraídaaos sentidos carnais,
ela se encontra colocada mais distintamente facea esta vista (não mudando de lugar, mas à sua
maneira), é acima delaque vê essa luz, por meio da qualela vê tudo o que vê nela mesmapelo
intelecto.

A partir desses fragmentos, Soares (2003, p.47) identifica dois pontos essenciais para
entender a doutrina da iluminação, sendo eles: a. “a diferença entre a "luz inteligível", "luz incorpórea",
"luz imutável" e a luz criada do homem, os "olhos da alma", que não é outra que o intelecto mesmo”; b.
“o fato danecessidade de que disponhamos desse intelecto para que possamos conhecera verdade.

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Como mostra Gilson (1943, p.118apud Soares), "[...] é que de fato isto que o nossointelecto
vê na luz da iluminação, e não por sua luz, é a verdade de seus própriosjulgamentos [...]" Com base
nesse argumento, conclui-se: “[...] iluminação do pensamento por Deus no agostinismo; iluminação do
objeto por um pensamento que Deus ilumina, no aristotelismo, eis a diferença entre a iluminação-
verdade e iluminação-abstração".
Portanto, a doutrina da iluminação de Agostinho tem por objetos os inteligíveis puros
considerando que, desde a sensação, a alma já opera pelo conhecimento. O intelecto não necessita de
fornecer os inteligíveis, pois, esse já os possui dentro de si e consegue identificá-los nos sensíveis.
Porém, como se chega às ideias eternas, assim, à verdade, logo, a Deus?

4.A verdade, a iluminação e Deus


O elo agostiniano entre alma-Deus está no fundamento do conceito de verdade, a qual se
encontra no interior da alma humana.Para alcançá-la, é necessário transcendera si mesmo, assim, à
almaracional, de forma que a verdade ascendaao lume do raciocínio.
Mas, como o homem pode chegar à verdade? Agostinho interpreta a dúvida como processo
cognitivo iniciado com os objetos sensoriais que agem sobre os sentidos. A alma extrai, de si mesma, a
representação do objeto, que é a sensação. Nesta, o corpo é passivo e a alma é ativa. Como
exemplifica Reale, em um trecho de A verdadeira religião:
“Não busques fora de ti (...); entra em ti mesmo. A verdade está no interior da alma humana. Deves
notar, porém, que, transcendendo-te a ti mesmo, tu estás na transcendo a alma raciocinante, de
modo que o termo da transcendência deve ser o princípio onde se acende o próprio lume do
raciocínio. E, efetivamente,onde chega um bom raciocinar senão a verdade? A verdade não é
algo que se constrói à medida que o raciocínio avança; ao contrário, ela é um termo prefixado,
uma meta perfeita a qual nos detemos depois de ter raciocinado. Nesse ponto, um perfeito acordo
final constitui tudo: sintoniza-te como ele. Convence-te de que não és tu aquilo que é a verdade: a
verdade não busca a si própria, mas és tu, destino dela, que a busca – naturalmente, não no
espaço sensível, mas com a sensação da alma -; e eis-te junto a ela, para que o homem interior
una-se ao próprio hóspede interno, em transporte de felicidade máxima e espiritual.”

A sensação é o primeiro grau do conhecimento e a alma, portanto, manifesta sua


autenticidade e autonomia sobre as coisas corpóreas, ao passo que as julga com a razão, ou seja, “com
base em critérios que contêm um 'algo mais' em relação aos objetos corpóreos”, como descreve
Reale(1990, p. 441). Estes, por suas vezes, são imperfeitos e mutáveis; quanto àqueles, são imutáveis
e perfeitos. Isso é perceptível de forma evidente, quando se julgam os objetos sensíveis em
conformidade com os conceitos matemáticos, geométricos, estéticos e, até mesmo, éticos.
Sabendo que os critérios são imutáveis, necessários e que a alma é superior às coisas, mas
mutável, de onde provêm esses parâmetros de conhecimentocom que julga as coisas? “Enquanto o
princípio valorativo (...) ilustrado, que preside o juízo (...), é mutável, a mente humana, embora lhe seja
concedido operar esse princípio, é suscetível de mutação e erro. Por isso, é necessário concluir que,
acima de nossa mente, existe uma Lei que se chama Verdade. E não há dúvida de que existe uma
natureza imutável, superior à alma humana [...]” (REALE, 1990, p. 142).
A alma, portanto, mesmo sentindo-se superior aos objetos aos quais aplica o seu próprio

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juízo, não apenas pode ignorar que não foi ela a inventar e regular o princípio judicante que lhe serve
para reconhecer a forma e os movimentos dos corpos, mas também, consequentemente, deve
inclinar-se à superioridade do valor do qual ela extrai o critério de seus próprios juízos e do qual ela não
pode, em absoluto, se constituir juiz”. Sendo assim, “o intelecto humano encontra a verdade como
objeto superior a ele”, ou seja, ele julga com ela e é julgado por ela. “Ela é a medida de todas as coisas e
o próprio intelecto é 'medido' em relação a ela”.2
Essa verdade, captada pelo puro intelecto, constitui-se pelas Ideias (razões inteligíveis e
incorpóreas), ou seja, as supremas realidades inteligíveis platônicas. Embora Agostinho reconheça o
mérito dos filósofos antigos, inclusive as Ideias de Platão, em relação às Ideias, diz que: “são formas
fundamentais ou razões estáveis e imutáveis das coisas (...)e, embora não nasçam nem morram, é
pelo seu modelo que se constitui e forma tudo aquilo que (...) nasce e morre” (REALE, 1990, p. 442),
isto é, delas que advém o critério por qual toda coisa é feita. Com isso, o filósofo reforma o pensamento
platônico, fazendo das Ideias o pensamento de Deus e rejeita o fundamento da reminiscência – do
repensar ex novo.
Nesse sentido, pode-se afirmar que Agostinho converte a doutrina da reminiscência, que
presume a preexistência da alma, e rejeita exnihilo (criação a partir do nada),na doutrina da
iluminação, com base no cristianismo, escrevendo emTrindade: “Ao contrário, é preciso considerar
que a natureza da alma intelectiva foi feita de modo que, unida às coisas inteligíveis, segundo a ordem
natural disposta pelo Criador, as percebe em uma luz incorpórea especial, do mesmo modo que o olho
carnal percebe aquilo que o circunda na luz corpórea, tendo sido criado capaz para essa luz e para ela
ordenada”.
Doravante, segundo Agostinho, aprende-se alguma coisa a respeito de Deusa partir da
semelhança com os sensíveis. “Deus é inteligível e inteligíveis são também os princípios das
disciplinas, mas com notáveis diferenças”. Com efeito, os conceitos relativos às ciências, “não podem
ser entendidos se não forem, por assim dizer, iluminados por um sol próprio”. Assim como o sol existe,
brilha e ilumina, “também em Deus, que tu queres conhecer, há em certo sentido três princípios: que
existe, que é ser inteligível e que torna inteligíveis todas as outras coisas”.3
Para Santo Agostinho, Deus é puro Ser que transmite, pela criação, o ser às outras coisas e,
dessa forma, analogicamente, sendo à Verdade, “transmite às mentes a capacidade de conhecer a
Verdade, produzindo uma metafísica marcada pela própria Verdades da mentes. Deus cria como Ser,
nos ilumina como Verdade, nos atrai e nos dá a paz como Amor.” (REALE, 1990, p.443). Esse
conhecimento das Ideias se dá pela mens, mas, não é toda e qualquer alma que está apta para essa
visão, pois, como a alma é os olhos da fé e as Ideias são puras, a alma deve estar pura, santa e serena,
uma vez que, “a pureza da alma torna-se uma condição necessária para a visão da Verdade, bem
como para a sua fruição” (REALE, 1990, p.444).
Com o alcance da Verdade, o homem alcança Deus, pois, em seu significado mais forte
como Verdade suprema, Agostinho acoincide com Deus e com Jesus/Cristo (segunda pessoa da
Trindade) e diz, segundo Reale: “Aliás, pelo próprio fato de que a Verdade suprema não é inferior ao

2 Fragmentos extraído de Reale, 1990, p. 442.


3 Ibid., p. 443.

A racionalidade das crenças religiosas 13


I Seminário de Epistemologia da Religião
Pai, sendo co-natural a ele, não apenas os homens, mas nem mesmo o Pai julga sobre a Verdade: tudo
aquilo que ele julga, o julga pela Verdade. (...) Compreendendo, portanto (...), ó alma, (...) se puderes,
que Deus é Verdade” (REALE, 1990, p. 444).
Acerca das argumentações de Agostinho sobre Deus, em últimaanálise: “passa-se primeiro
da exterioridade das coisas à interioridade do espírito humano, depois da Verdade que está presente
no espírito do Princípio de toda verdade, que é precisamente Deus” (REALE, 1990, p.444). Ademais,
outras provas apresentadas pelo filósofo consistem, comoapontadas por Reale: Primeiro, aperfeição, a
ordenação e a beleza do mundo proclama o feito por Deus, inefável e invisivelmente grande e belo.
Segundo, o “consensus gentium”, ou seja, Deus “não pode permanecer totalmente oculto à criatura
racional”. Terceiro,os diversos graus de bem: “Isto é bom, aquilo é bom. Suprime o isto e o aquilo e
contempla o próprio bem, se puderes: então verás a Deus, que não recebe a sua bondade de outro
bem, mas é o Bem de todo bem”. Quarto,amor a Deus - “para fluir a Deus” (fruiDeo) -, para preencher o
vazio do seu espírito, para pôr à inquietude do seu coração, para ser feliz” (REALE, 1990, p. 444 e 445).
Em suma, para Agostinho, Ser, Verdade, Bem e Amor são atributos fundamentais de Deus,
no sentido de coincidentes com a própria essência de Deus; porém, ele percebe que é impossível, para
o homem, uma definição da natureza de Deus, ou seja, é mais fácil dizer aquilo que Deus não é do que
aquilo que Ele é, como ele mesmo delibera: “Quando se trata de Deus, o pensamento é mais verdadeiro
do que a palavra e a realidade de Deus mais verdadeira do que o pensamento” (REALE, 1990, p. 447).
Assim, com referência a Moisés, o resumo de Deus é “Eu-sou-aquele-que-é”.

5. Considerações finais
Na filosofia agostiniana e, fundamentalmente, na epistemologia que a compõe, é
perceptível que Agostinho começa suas investigações por meio da busca pela sabedoria. À medida que
avança em seu conhecimento, reconhece, como em Confissões, que essa busca tem início, de forma
inconsciente, desde o seio materno; porém, considera que já era, é e sempre será, um desejo em Deus
e de Deus de o ser humano continuar buscando-O e conhecendo-O, até que seu coração repouse
n'Aquele que o Criou.
Para refletir a respeito, O filósofo se baseia nos gregos, de modo particular Platão e Plotino,
tratando de, cuidadosamente, adequar seus pensamentos aos princípios da filosofia cristã,
nomeadamente, com o exnihiloe com a Doutrina da Iluminação. Com esta, o processo de
conhecimento agostiniano culmina na busca pela verdade, logo, por Deus. Para isso, fé e a razão
andam juntas na busca pelas verdades, assim, pela Verdade suprema.
O elemento “fé”, como dom de Deus, é o suplemento da razão, uma vez que, por esta, o ser
humano chega, de forma racional, ao conhecimento prévio de Deus, com clareza e intelecção
consciente. Assim, essas duas bases para o conhecimento inteligível e das Ideias eternas são
complementares entre si.
Agostinho inicia seu itinerário pelas coisas sensíveis, que induz sensação pelas
faculdades da alma. Esta possui em si critérios legítimos e modelos de coisas existentes no intelecto de

A racionalidade das crenças religiosas 14


I Seminário de Epistemologia da Religião
Deus. Com a elevação da alma, o intelecto do ser humano é iluminado pela luz divina, passando a
conhecer, verdadeiramente, as razões eternas.
Porém, para o intelecto humano, mesmo sendo finito e mortal, poder alcançar o Ser eterno
e infinito, é necessário que Deus o eleve e o ilumine. Esse ato de iluminação ocorre somente por meio
da fé. Outrora, também não são todas as almas que estão aptas ao “assombro” do conhecimento
Inteligível, pois, como são Ideias puras, requer-se que a alma esteja em estado de pureza.
O homem alcança os atributos sobre Deus, como Ser, Verdade, Bem e Amor, pois,
segundo Agostinho, é impossível, no plano terreno, o ser humano adquirir conhecimento pleno de
Deus, diante de sua inefável infinitude. Mas, pela racionalidade, não há impedimento de não buscá-Lo,
pois, com o auxílio da fé, a criatura busca o Criador e este manifesta-se pelo assombro, levando-a e
instigando-a a um contínuo progresso cognitivo, que aumenta a crença e a religiosidade no cor
inquietumdo ser humano.
A partir dessas considerações, portanto, nesse itinerárioagostiniano, percebe-se, de
forma prévia, a inquietação ou o desejo do ser humano de Deus, por Deus e para Deus; a busca pela
sabedoria e pela verdade; o percurso pelo que tange ao conhecimento, iniciado pelos objetos
sensíveis; a elevação da alma, assim, a iluminação do intelecto; o assombro ou a admiração da
Verdade, do Bem, do Belo entre outros aspectos sobre o Ser supremo, revelam um senso religioso
inato no homem, que tende a buscar razões para sua existência.

REFERÊNCIAS

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 11ª ed., julho de 2001. São Paulo: Edição típica Vaticana,
Loyola, 1999.

GILSON, E. Introduction à l'étude de Saint Augustin, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris,


1943.

SOARES, Lucia Maria Mac Dowell Soares. Verdade, Iluminação e Trindade: o processo da
interioridade em Santo Agostinho.Cap. 3. A doutrina da iluminação. Arquivo PUC-Rio,
Catalogação: 26/09/2003 Idioma(s): PORTUGUÊS – BRASIL. Disponível em:
<https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/3945/3945_4.PDF>. Acesso em: 21 de jun. 2019, às 16:03:14.
Arquivo em PDF.

REALE, Geovanni. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. Vol. I, 5ª ed. São Paulo:
Paulus, 1990.

ROCHA, Raphaela da Xaubet. Teoria do Conhecimento na relação entre homem e Deus,


criatura e Criador. XI Salão de Iniciação Cientifica – PUCRS, 2010. Disponível
em:<http://www.pucrs.br/edipucrs/XISalaoIC/Ciencias_Sociais_Aplicadas/Direito/84424-
RAPHAELADAROCHAXAUBET.pdf> . Acesso em: 21 de jun. 2019, às 16:07:37. Arquivo em PDF.

Youtube. Introdução ao pensamento de Santo Agostinho. Palestra de Joel Gracioso no Círculo de


Estudos Políticos. Publicado em 15 de ago de 2013. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=yDJlRw-VtDY> . Acesso em: 21 de jun. 2019, às 09:08:51.

A racionalidade das crenças religiosas 15


I Seminário de Epistemologia da Religião

UMA ABORDAGEM EPISTEMOLÓGICA DA OBRA


“DEUS E O HOMEM” DE PE. JÚLIO MARIA DE
LOMBAERDE, SDN
Elyvelton Rodrigues Francisco*

Resumo
Em sua obra “Deus e o Homem – Noções de alta teologia popularizada, sobre
Deus, o homem e as relações entre ambos”, Pe. Júlio Maria dedica os dois primeiros
capítulos a argumentações teológicas e filosóficas acerca da existência de Deus.
Neste artigo, apresentá-lo-emos com uma introdução, na qual se aborda o conceito de epistemologia; em
seguida, um sucinto esboço relativo ao senso religioso, e, por último, uma leitura epistemológica do “Deus e
o Homem.”

Palavras-Chave:epistemologia, Deus e o Homem, senso religioso, fé e razão.

Introdução
Por meio do seu intelecto e de sua racionalidade, o homem aprende, conhece, contempla e
ensina inúmeros aspectos existentes neste vasto e quase infinito universo. As perguntas levantadas
pelo ser humano durante, praticamente toda a história da humanidade, como, por exemplo, pela
origem das coisas em si, pela existência ou não de um Ser supremo que tudo fez e organizou, pela
existência da eternidade, o porquê do mal etc; todas essas indagações apontam para um abismo que
existe entre o ser humano e os demais animais, ou seja, a capacidade de questionar denota uma
habilidade que não se encontra na natureza, a não ser no homem.
A partir dessas e de outras questões, o homem passa a adquirir e a produzir conhecimento.
Mas, o que realmente vem a ser o conhecimento? Para termos algumas respostas técnicas, auxiliar-
nos-emos de pelo menos duas formulações oriundas de alguns dicionários de filosofia.
“Epistemologia do grego epistêmê: conhecimento. Algumas de suas questões centrais
são: a origem do conhecimento; o lugar da experiência e da razão na gênese do conhecimento; a
relação entre o conhecimento e a certeza, e entre o conhecimento e a impossibilidade do erro.”1
“Epistemologia (do gr. episteme: ciência, e logos: teoria) Disciplina que toma as ciências
como objeto de investigação.”2
Ora, analisar e investigar como surge o conhecimento e de como se dá a inclinação humana
para aprender e ensinar, são os pressupostos para que o ser humano possa saber que conhece algo. A
própria tendência de desejar saber como conhecer as coisas, já demonstra que o homem tem uma
predisposição para conhecer. A tendência gera o ato de investigar, a averiguação; por conseguinte,
origina-se conhecimento.
Sendo assim, essa inquirição humana pode ser objeto de aplicabilidade no senso religioso? O

*Formado em geografia pela faculdade FAFILE-UEMG, em Carangola-MG, 2012. Atualmente, é graduando do 3º ano
em filosofia no Instituto Teológico e Filosófico de Caratinga – ITEOFIC, que corresponde ao Seminário Diocesano
Nossa Senhora do Rosário, Caratinga-MG.
1 BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Editor: Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997, p.118-119.

A racionalidade das crenças religiosas 16


I Seminário de Epistemologia da Religião
homem consegue conceber o universo como obra de um Ser Supremo, Perfeito e Eterno? Se Deus
existe, como o homem pode chegar a conhecê-lo? Somente a fé e a crença são as vias de acesso
para saber que Deus existe? O homem, por meio da sondagem racional e científica, pode conhecer,
ou ao menos intuir que Deus existe?
Para tentarmos aprofundar em tais questões e a elas responder, será necessário recorrermos,
sobretudo, ao campo da epistemologia da religião. É esse ramo da epistemologia que nos possibilita
um respaldo mais autenticado. Portanto, usaremos essa perspectiva religiosa e, com ela, abriremos
uma porta para que as concepções epistemológicas do Padre Júlio Maria De Lombaerde possam, na
medida do razoável, conduzir-nos ao conhecimento de Deus, bem como também ao ato de crer em
Deus.

Há um senso religioso no ser humano?


Antes de virmos propriamente a tese do Pe. Júlio Maria, volvemos o nosso olhar para uma
pergunta fundamental acerca deste trabalho: afinal, o senso religioso é inato no homem ou é adquirido
ao longo de seu desenvolvimento cognitivo?
Queremos, também, ressaltar o fato de que, independente da resposta e da linha que
seguiremos, isso não significa que ambicionamos fechar a questão e que ofereçamos todas as
explicações e métodos, mas, pelo contrário, os argumentos que serão levantados estarão passíveis
de ajustes e críticas.
Qual seria a probabilidade de um indivíduo procurar aquilo que não existe? Por exemplo:
ninguém sai pelas ruas e pelas florestas procurando um unicórnio real e concreto. No entanto, isso é
só suposição, até que se prove o contrário. Por outro lado, a normalidade é em vermos as pessoas
procurando e anelando por aquilo que está passivo de obter, como, por exemplo, aquele que percorre
as margens do rio em busca da nascente; é evidente que a nascente desse rio existe. Para amenizar a
sede, o homem busca saciar-se com a água. Ora, ele não a busca simplesmente porque está com
sede, mas porque a existência da água pressupõe a necessidade fisiológica. E, uma vez que ela
existe, logo desejamo-la e podemos obtê-la. A interpelação a ser feita é a seguinte: se o homem busca
a Deus, interroga-se pela existência de Deus e muitos até creem na sua existência, então é possível
Deus não existir? Estaria o homem procurando algo não existente ou, no mínimo, um ser que já
se encontra morto? Afinal de contas, “Para onde Deus foi? – bradou. – Vou lhes dizer! Nós o
matamos, vós e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos!”3
Contudo, existe uma unanimidade entre pesquisadores, filósofos e historiadores em dizer que
o senso religioso, ou seja, a tendência para a crença e para os costumes com ritos espirituais sempre
existiu em todas as sociedades, civilizações e aldeias já estudadas. Isso demostra, de certa forma,
que o homem, universalmente, também seria um ser religioso, um ser que tem aptidão pela
transcendência, pelo eterno, que quer não somente a imortalidade, mas deseja igualmente ser
imorrível. Ainda que ele negue uma eternidade transcendente, continuará a persistir por uma
perpetuidade terrestre.

2 JAPIASSÚ, Hilton. MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Editor: Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, P. 63.
3 NIETZSCHE, Friedrich. A Guaia Ciência. Trad: Antonio Carlos Braga. Ed: Escala, São Paulo. Aforismo 125, p. 129.
4 CARRÓN, Julián. O Senso Religioso, Verificação da Fé, p. 1.
5 Idem, p. 8.

A racionalidade das crenças religiosas 17


I Seminário de Epistemologia da Religião
Julián Carrón escreveu a apresentação do livro “O senso religioso”, de Luigi Giussani, e nesse
esboço do livro, Julián faz a seguinte citação: “E olhando o céu de estrelas sobre as tochas?/ Digo-me
a mim, pensando:/ Para que tantas tochas? Que fazem o ar infindo e essa profunda/ Azul
serenidade?/ Que quer dizer a solidão imensa? E eu que sou?” 4 Essas indagações poéticas, no dizer
de Carrón:
“[..] exprime de forma admirável a experiência em que se revela o senso religioso do
homem. O impacto do eu com a realidade desencadeia a pergunta humana. Ou seja, há em nós
uma estrutura inata que, no impacto com o real, é inexoravelmente posta em andamento, de
modo a mobilizar todo o dinamismo da nossa pessoa.” 5
Ora, sendo o senso religioso uma faculdade inata, de acordo com J. Carrón, portanto,
independentemente da estirpe étnica, cultural e religiosa de qualquer indivíduo, nenhum ser humano
sobre a face da terra está isento de determinadas perguntas, tais como: qual o sentido último da
existência cósmica e humana? Por que as coisas existem? Por que tanto sofrimento? Por que
a morte? É mais racional existir ou não existir? Por que tanto mistério em todo universo? O que
nos move? São justamente esses questionamentos os quais demonstram e expõem para nós
essa nossa capacidade de perguntar, de desejar e de intuir pelo eterno, pelo transcendente,
pelo pleno Bem; negando esse caráter humano, corre-se o risco de rebaixar a inigualável
dignidade humana a uma mera natureza animalesca. Essa predisposição humana “identifica-se
com a natureza do nosso eu quando se exprime nessas perguntas, 'coincide com aquele
compromisso radical do nosso eu com a vida, que se mostra nessas perguntas'.”6 Mas, afinal, o que
vem a ser propriamente o senso religioso na ótica sui generis de Luigi Giussani? Assevera:
“O senso religioso é a inclinação do homem para o seu princípio e para o seu destino
últimos; a percepção indistinta, intuitivamente relampejada em sua consciência, do fato de ser
dependente e responsável; o pronunciamento informe e natural da alma acerca de sua arcana
relação com o Ser supremo; o gesto inato da natureza humana em atitude de adoração e de
súplica; a exigência do espírito por um Infinito pessoal, tal como o olho exige a luz e a flor o sol.”7
Nessa inclinação e percepção intelectual, a razão humana é desafiada pelo impacto com a
realidade em si e, ao mesmo tempo, percebe-se uma intrínseca conexão entre a existência
macrocósmica do universo com a sua dimensão de ser microcosmo. A partir dessa relação, o homem,
gradativamente, passa a compreender a sua função, a sua missão e seu sentido dentro do universo. A
ordem do cosmo exige a gravidade e a do homem, a súplica pelo supremo intelecto que tudo ordena e
sustenta. Nesse seu pleitear, a razão humana atinge o seu cume existencial, pois é nesse ponto que o
coração inquieto do homem vai pressentir, na sua máxima potência, a verdade da existência de um
além, do qual tudo provém e ao qual tudo remete. “O ponto culminante da conquista da razão é
perceber que existe um desconhecido, inatingível, ao qual todos os movimentos do homem
destinam, porque dele dependem. É a ideia de mistério.”8
Diante de tão insondável mistério, o senso religioso não reduz a utilidade da razão como mera
medida, pelo contrário, ele abre janelas, possibilidades em face da inexaurível apelação do real em si

6 Idem, p. 8.
7 Idem, p. 8.
8 Idem, p. 10.

A racionalidade das crenças religiosas 18


I Seminário de Epistemologia da Religião
e em mim. Esse mistério não é objeto de investigação de nenhum animal, mas é interesse tão
somente do homem, pois, nem mesmo um único animal é capaz de formular perguntas como as que já
foram supracitadas. Essas perguntas estão enquadradas em um patamar intelectivo extremamente
elevado, elas assentam-se como fundamento de todas as demais perguntas que possamos inquirir a
respeito do mundo imanente e transcendente. Mesmo não estando passível de respondê-las, o
homem, assim como as formula, da mesma forma, quer buscar meios para aperfeiçoar as respostas.
De acordo com o pensamento de L. Giussani, todas as respostas que o homem tente
argumentar relativo aos inúmeros questionamentos e mistérios, elas sempre estarão dentro
da atmosfera do senso religioso, independentemente de o homem ser ou não religioso, de
professar ou não um credo.
Ora, sendo assim, poderíamos concordar em dizer que são, especificamente, as religiões, os
métodos mais adequados a oferecerem respostas, reflexões e meditações mais satisfatórias e
razoáveis para os porquês e para as interpelações provenientes da inquietação do coração, da
vontade, da razão e do intelecto humano. No entanto, sempre serão explicações limitadas.
“Os homens esperam das diversas religiões uma resposta aos mais árduos problemas
da condição humana que, hoje como outrora, continuam a perturbar profundamente os seus
corações: o que é o homem [quem sou eu?], qual o sentido e o fim da nossa vida, o que é o bem e
o que é o pecado, qual a origem e a finalidade do sofrimento, qual é o caminho para se obter a
verdadeira felicidade, o que é a morte, o julgamento e a recompensa que se lhe hão de seguir, e
qual é, finalmente, aquele derradeiro e inefável mistério que envolve a nossa existência: De
onde partimos e para onde vamos?”9
Quanto aos homens que anelam das religiões, as argumentações, Bento XVI os chama
usando a expressão o homo religiosus.Nessa perspectiva, o professor e Dr. Viktor Frankl alega –
mesmo tendo vivenciado os mais terríveis sofrimentos do século XX, nos campos de concentração
em Auschwitz e Dachau - que “a religião pode ser definida como o preenchimento de uma 'vontade de
um sentido derradeiro.'”10 Logo, não só apenas o ser humano é portador do senso religioso, mas ele é
religioso, porque “tem em si uma sede de infinito, uma saudade de eternidade, uma busca de beleza,
um desejo de amor, uma necessidade de luz e de verdade, que o impelem rumo ao Absoluto; o homem
tem em si o desejo de Deus.”11
Enfim, “o homem é, em seu inconsciente, muito mais religioso do que supõe o seu
inconsciente.”12 Destarte, não seria de maior relevância dizer que há no homem um “senso
religioso anônimo”mais influente do que um senso religioso mais notório, ativo?

A crença religiosa no “Deus e o Homem”


Após termos feito um percurso sintético, buscando respostas acerca da existência ou não do
senso religioso no homem, estudaremos, pois, a sistematização epistemológica exposta pelo Pe.
Júlio Maria em sua obra “Deus e o Homem - Noções de alta teologia popularizada, sobre Deus, o
homem e as relações entre ambos”, publicada em 1934.

10 FRANKL, Viktor E. Logoterapia e Análise Existencial. Rio de Janeiro. 2017, p. 298.


11 BENTO XVI, papa emérito. A Oração: Oração e Sentido Religioso Paulus. 2018, p. 14.
12 FRANKL, Viktor E. A Busca de Deus e Questionamentos Sobre o Sentido. Vozes. 2014, p. 59.
13 LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Deus e o Homem, p. 19.

A racionalidade das crenças religiosas 19


I Seminário de Epistemologia da Religião
Como cristão católico, evidentemente, Pe. Júlio creu, soube e, sobretudo, experimentou
o fato de que Deus É**. No entanto, ele se deu ao trabalho de compilar uma obra na qual pudesse
demonstrar, racionalmente, nos moldes escolásticos, principalmente tomista, a existência de Deus e
os porquês de certas crenças em afirmar a não existência dEle.Um dos motivos os quais levaram o
Pe. Júlio a escrever essa obra, foi o avanço avassalador das ideias e das ideologias ateias. E, naquele
exato momento histórico, década de 30, ele identifica, dentro do movimento ateísta, três principais
categorias de ateus:
“Os indiferentes, que não se incomodam, e vivem como si Deus não existisse: - ateus
práticos. Os positivistas, que não admitem outra fonte de conhecimentos, que não seja a
experiência, sendo tudo o que não for averiguado desta forma, simples mito: - ateus de boca. Os
materialistas, que só admitem a existência da matéria, e pretendem que basta ela para dar
conta de tudo: - ateus panteístas.”13
Para o Pe. Júlio, é bastante natural que existam pessoas que não creem na existência de Deus,
assim como é abundante a quantidade de pessoas que nEle creem. Porém, havendo apenas essas
duas afirmações que se contradizem, a pergunta é uma única: qual grupo de pessoas está com a
razão, com a verdade? De fato, De Lomaberde constata uma veracidade história, ou seja, sempre se
verificaram, na história da humanidade, indivíduos que não admitiam a existência de Deus. No
entanto,
“Se alguém me perguntasse, se há ateus de boa fé, eu responderia sem pestanejar:
Entre os animais, há, sim; entre os homens, não. [...] O ateísmo serve enquanto tudo vai bem e
estando sentado numa poltrona, mas, na tempestade, precisamos de Deus.”14

I. É bem certo que Deus existe?


Para dar início a uma resposta, Pe. Júlio recorre primeiramente ao ensinamento perene da
Igreja católica, ou seja, o fato de que o homem pode conhecer a Deus por dois meios - pela luz natural
da razão e pela luz sobrenatural da fé (revelação).
Como fidedigno guardião e transmissor desse método, está convicto de que essa dupla face (fé
e razão) do homem (moeda) é a fonte que possibilita conhecer a verdade. Sendo um exímio filho do
tomismo, Pe. Júlio ressalta a sublime necessidade dessas duas faces, pois não é conveniente
ao teólogo e ao filósofo descartar uma das duas, antes, servir-se de ambas, caso contrário, ou
se esvai no racionalismo, ou se burla no fideísmo.
“É, pois, certo e indiscutível que a nossa razão possui o poder de conhecer a Deus, e
que o caminho seguro para chegar a esta noção é o raciocínio, e pelo intermédio das criaturas,
remontar dos efeitos às causas. A fé e a revelação são meios seguros, mas não absolutamente
necessários para chegar ao conhecimento de Deus. O raciocínio pode provar com certeza a
existência de Deus e o infinito de suas perfeições, a espiritualidade da alma, a liberdade do
homem.”15
Não é possível, sem sombra de dúvidas, encontrarmos nem mesmo uma espécie de otimismo
14 Idem, p. 20-18.
***Com respeito a Deus, é inconveniente usar existir ou existência: porque, falando propriamente, só os entes criados ex-sistem
('provêm de'), justo enquanto são ex-causis, ao passo que Deus é incausado. Em resumo, Deus é, mas não “existe”.Disponível em:
[https://www.estudostomistas.com.br/2017/10/critica-da-critica-kantiana-das-provas.html] Acesso em: 4/junho/2019, às
08h:55min.

A racionalidade das crenças religiosas 20


I Seminário de Epistemologia da Religião
racionalista, nem tão pouco um pessimismo fideísta, mas, rigorosamente o oposto, isto é, o meio-
termo entre fé (revelação) e razão, pois esses caminham juntos e são pedagogos do homem na
busca pela verdade, pelo bom, pelo infinito, por Deus. Para aprofundarmos um pouco mais na
sistematização elaborada por Pe. Júlio, é interessante atentarmos para as autoridades e mestres aos
quais ele recorreu, como, por exemplo e por primeiro, ele explica uma carta do papa Pio IX*, dizendo:
“a razão humana, embora obscurecida pela falta do primeiro homem, pode
compreender, expor, demonstrar pelos seus princípios próprios, defender e provar certas
verdades da ordem filosófica, que são por outro lado, artigos de fé, como a existência, a
natureza e os atributos de Deus.”16
Para salientar que a razão humana pode nos revelar certas verdades da ordem filosófica, e que
a fé conduz o homem a compreender a existência, a natureza e os atributos de Deus, Pe. Júlio
ampara-se em seu segundo e principal mestre, “o boi mudo”, Santo Tomás de Aquino. De Tomás, ele
extrai as famosas cinco vias para se chegar ao conhecimento de Deus. Ei-las:
“1º - O movimento ou passividade das criaturas;
2º - A atividade ou causalidade;
3º - A essência ou contingência;
4º - Os degraus de perfeição;
5º - A ordem do universo.
Estas cinco provas são todas a posteriori, tendo por base a experiência, e apoiando-se
sobre os dados que o mundo sensível nos fornece, remontando dos efeitos às causas.”17
Não é nosso intuito comentar cada uma das vias, primeiro porque Tomás praticamente esgota
os argumentos para cada, e segundo porque nos levaria a estender, por demais, este trabalho, algo
que não nos é necessário. Leiamos, pois, a contribuição do Pe. Júlio e, assim, abramos espaço para
que ele possa argumentar acerca da primeira via, o movimento:
“Entende-se por movimento toda mudança ou passagem da potência ao ato. Os seres
estão sujeitos a múltiplas mudanças: uns, segundo a substância, que nasce, morre ou se
corrompe. Outros, segundo a quantidade, na qual constatamos crescimento ou diminuição.
Outros, segundo a qualidade, que se altera ou se completa. Outros, segundo o logar, que
conseguem ou que abandonam. Outros, segundo a operação, que começa, prolonga-se ou
termina. Estes seres não são o princípio adequado de seus movimentos. Tudo o que se move é
movido por outro. Nesta série de motores, essencialmente organizados não se pode proceder
ao infinito, mas tem-se de chegar necessariamente a um primeiro motor imóvel.”18
A segunda via, a causalidade:
“Descobrimos no mundo causas eficientes, das quais nenhuma é causa de si mesma.
Se o fosse, teríamos o absurdo de uma causa agir antes de existir. A causa eficiente age para
produzir o efeito. A causa é pois anterior a este efeito. Como pode, pois, o efeito ser anterior a
causa? Asseverar isto, seria dizer que a mãe é causa eficiente de seu filho, e que o filho existiu
antes da mãe.”19

15 Idem, p. 25-26.
*Papa Pio IX (1792-1878), foi justamente o papa que conduziu o Concílio Vaticano I (1869-1870), o qual promulgou a Constituição
Dogmática Dei Filius. Nesta condena-se o racionalismo, o materialismo, o panteísmo, o ateísmo e o fideísmo.
16 LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Deus e o Homem, p, 26.
17Idem, p. 27.

A racionalidade das crenças religiosas 21


I Seminário de Epistemologia da Religião
A terceira via, o necessário:
“É preciso admitir um ser necessário, que seja a razão de ser dos outros, que não
precisam de ninguém e de nada, e seja a fonte de toda perfeição. [...] Um ser que começa teve
necessariamente uma época em que não existia.”20
A quarta via, a perfeição:
“Vemos neste mundo uma gradação infinda, tendo uns seres mais ou menos vida, mais
ou menos inteligência, etc. Ora, onde existe tal gradação, é preciso necessariamente subir até
um ser que tenha a plenitude da vida, da inteligência, para que possa, parcialmente e
gradativamente transmiti-lo às criaturas. Ora, a causa de tudo o que tem vida, de tudo o que tem
inteligência, reúne necessariamente em si toda a plenitude da vida, da inteligência: o que é
Deus.”21
A quinta e última via, a ordem:
“Se um relógio prova a existência de um relojoeiro, o palácio a existência de um
arquiteto, como é que o universo, mais belo que um palácio e mais regular que um relógio, não
demonstraria a existência de uma inteligência suprema?”22
Constatamos, portanto, que todas essas cinco vias estão, efetivamente, passíveis de serem
encontradas e observadas neste mundo e no cosmo de modo geral. Elas são evidências. “A
evidência é a voz de Deus, e esta voz clama em toda parte: na terra, no céu como na
consciência do homem.”23 Ainda a respeito dessa voz de Deus que ressoa e se espalha por todo o
universo, conclui Pe. Júlio:
“Tudo o que nós encontramos neste mundo, é de tal modo o reflexo e a expressão da
inteligência, da ordem, do poder, da sabedoria, da beleza e da bondade infinitas, numa palavra,
de Deus, que temos vontade de dizer, que o único fim de tudo o que existe é de no-
lomanifestar.”24

II. Por que Deus não existiria?


Por que que o universo e tudo aquilo que está contido nele existem, e por que Deus não
existiria? É mais lógico, racional dizer que o universo existe por si mesmo? A ordem cósmica,
as leis da física, a harmonia dos seres existentes são produtos do acaso?Por que é tão fácil,
aceitável e normal acreditar nos astronautas e em seus livros, quando eles dizem que existem,
aproximadamente, tantas estrelas em tal galáxia, que existem determinados planetas há milhões de
anos luz da terra? Estrelas e planetas que jamais vimos, e, provavelmente, nunca iremos sequer vê-
los. Mas, ao mesmo tempo, por que muitos apresentam objeções quanto à existência de Deus,
mesmo tendo uma enorme quantidade de seres humanos que, além de crentes, dizem ter tido
experiências com a divindade? Opor-se à existência de Deus,
“suprimi-lo seria lançar tudo no nada. Negar que Ele é a luz, seria lançar tudo nas trevas.
Ora, não podemos crer no nada, nem crer nas trevas. Nem sequer podemos pensar neles.
Como pensar no nada, sem fazê-lo ser? Como apresentar a noite ao olhar, sem emprestar-lhe

18 Idem, p. 28-29.
19 Idem, p. 33.
20 Idem, p. 37.
21 Idem, p. 42.
22 Idem, p. 46.

A racionalidade das crenças religiosas 22


I Seminário de Epistemologia da Religião
uma cor? O nada não existe: é a negação do ser. E como negar o ser se ele não existe? Só se
pode negar o que existe. A noite não existe. É a negação da luz. E como negar a luz se ela não
existe?” 25
Se os seres existem, por que não existiria O ser? Se a luz nos é evidente, por que não
existira A fonte de toda luz? Então, por que Deus não existiria? Uma possível resposta, à qual Pe.
Júlio procurou refutá-la, seria o evolucionismo. Mas essa corrente filosófica é uma teoria semelhante
ao círculo de uróboro*. “O ateu vem do animal, o animal vem da planta, a planta vem da pedra, a
pedra vem da terra. E tem que parar aqui, enquanto o bom senso pergunta: e de onde vem a tal
terra? A que o senso religioso responde: vem de Deus!”26
Em suma, Pe. Júlio rejeita o evolucionismo, de modo que busca a reiterar o fato de que os
animais não pensam, nem raciocinam como os homens, e o que se pode encontrar nos animais é
unicamente a lei que os programou (LOMBAERDE, p. 73). “O animal não passa de animal; e o homem
é homem, não somente pela perfeição de seu corpo, mas pela sua inteligência, que é uma faculdade
de sua alma”.27 E é esta que pergunta e busca pelo imaterial, por Deus.

Considerações finais
É a existência ou não de Deus que faz com que brote, no interior, na razão, no coração do
homem, as mais profundas, as mais insondáveis perguntas e reflexões da realidade e vitalidade do
ser humano.
Para muitos homens, Deus não passa de uma invenção humana, de um mito, de uma
projeção;28 Deus seria aqui um interesse, uma ideologia a mais. Deus é fábulas para alguns e é
negado por outros, seja por motivos morais, políticos, existenciais ou, até mesmo, religiosos. Ao
contrário, Pe. Júlio, em sua obra, traçou, sistematicamente, argumentos racionais e religiosos, para
demonstrar aos céticos e ateus de sua época, o quão irracional é o universo e o microcosmo
(LOMBAERDE, p. 53) sem um intelecto criador.
É vero que a obra “Deus e o Homem” é de teor teológico, mas como vimos, existem elementos
suficientes para apontarmos aspectos de uma epistemologia no pensamento do Pe. Júlio Maria.
Afinal, ele foi fidedigno e eterno aprendiz de seu devotado professor Santo Tomás de Aquino. Este
disse:
“O filósofo deduz os seu argumentos partindo das próprias causas das coisas; o fiel,
porém, da causa primeira, mostrando que assim é porque foi revelado por Deus ou porque
redunda na glória de Deus ou porque a glória de Deus é infinita.”29
Há, portanto, no pensamento de Pe. Júlio, assim como há em Tomás, a indissolubilidade entre
razão e fé, filosofia e teologia. Pe. Júlio lança primeiramente um olhar para Deus, somente depois,
para o homem e para o mundo. Apliquemos as palavras que Giovanni Reale direcionou a Tomás
ao Pe. Júlio. Penhora Reale: “o objeto primário de suas reflexões é Deus, não o homem ou o
mundo. Somente no contexto da revelação é que se torna possível um correto discurso sobre
o homem e o mundo.”30
23 Idem, p. 49.
24 Idem, p. 46.
25 Idem, p. 51-52.
*É um mito acerca da serpente que devora, perpetuamente, a sua própria cauda.
26 Idem, p. 69.

A racionalidade das crenças religiosas 23


I Seminário de Epistemologia da Religião
Parafraseando Danilo Marcondes, poderíamos objetar que as premissas de Pe. Júlio Maria
despertam rotas para uma revalorização, no espírito tomista, do mundo natural como objeto e
possibilidade de conhecimento (MARCONDES, p. 132.) “Conhecemos Deus por seus efeitos, pela
sua obra, a Criação, o mundo criado, a Natureza. O Criador sempre deixa sua marca no que cria.”31
Na mesma perspectiva, proclama o apóstolo São Paulo: “Porque o que se pode conhecer de Deus é
manifesto entre eles, pois Deus lho revelou. Sua realidade invisível – seu eterno poder e sua
divindade – tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não
têm desculpas.”32
Em síntese, em tempos de crise existencial, de crise moral entre tantas outras, é
necessário repensarmos o real lugar do homem no universo. Ao longo da história da
humanidade, o ser humano já exaltou a razão como deusa, a ciência como solução para todos
os problemas e, por fim, o próprio homem como medida de todas as coisas. Com a obra “Deus
e o Homem”, Pe. Júlio quer nos recolocar “em face da única questão verdadeiramente
essencial: a questão de Deus.”33

Referências bibliográficas
AQUINO, Tomás. Suma Contra os Gentios. Vol. I, p. 175.

BENTO XVI, papa emérito. A Oração: Oração e Sentido Religioso Paulus. 2018, p. 13-14.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Epístola aos Romanos 1, 19-20. Paulus, 2017, p. 1967.

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Editor: Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1997, p.118-119.

CARRÓN, Julián. O Senso Religioso, Verificação da Fé, p. 1.

FRANKL, Viktor E. A Busca de Deus e Questionamentos Sobre o Sentido. Vozes. 2014, p. 59.

JAPIASSÚ, Hilton. MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Editor: Jorge Zahar,
Rio de Janeiro, 2001, P. 63.

LIMA VAZ, Henrique C. Problemas de Fronteira. Escritos de Filosofia I. Ed. Loyola, 2002, p. 70.

LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria. Deus e o Homem, p. 19.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. Zahar, 2014, p. 132.

NIETZSCHE, Friedrich. A Guaia Ciência. Trad: Antonio Carlos Braga. Ed: Escala, São Paulo.
Aforismo 125, p. 129

REALE, Giovanni. História da Filosofia. Vol. I, 1990, p. 554.

27 Idem, p. 75.
28 REALE, Giovanni. História da Filosofia – Do Romantismo ao Empiriocriticismo. Vol. 5. Paulus, 2005, p. 157.
29 AQUINO, Tomás. Suma Contra os Gentios. Vol. I, p. 175.
30 REALE, Giovanni. História da Filosofia. Vol. I, 1990, p. 554.
31 MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. Zahar, 2014, p. 132.
32 BÍBLIA DE JERUSALÉM. Epístola aos Romanos 1, 19-20. Paulus, 2017, p. 1967.
33 LIMA VAZ, Henrique C. Problemas de Fronteira. Escritos de Filosofia I. Ed. Loyola, 2002, p. 70.

A racionalidade das crenças religiosas 24


I Seminário de Epistemologia da Religião

O PROBLEMA DA RACIONALIDADE DAS CRENÇAS RELIGIOSAS: EM


BUSCA DE UM MODELO EPISTÊMICO A PARTIR DAS CIÊNCIAS
COGNITIVAS DA RELIGIÃO

José Aristides da Silva Gamito*


Resumo

As discussões sobre a racionalidade da fé ganharam força nova com o advento da


Epistemologia Reformada. Alvin Plantinga, o principal epistemólogo desta corrente,
defende que existe uma faculdade especial humana para produção de crenças religiosas.
A contribuição recente das Ciências Cognitivas da Religião (CCRs) salienta outros
dados do processo, demonstrando o fundamento biológico da produção de crenças. As
suas correntes podem fornecer dados teóricos para um modelo de compreensão da racionalidade da fé.

Palavras-chave: Crenças teístas. Deus. Epistemologia Reformada. Ciências Cognitivas da Religião.

Abstract

Discussions about the rationality of faith gained new relevance with the advent of Reformed Epistemology. Alvin
Plantinga, the main epistemologist of this school, argues that there is a special human faculty for producing
religious beliefs. The recent contribution of the Cognitive Sciences of Religion (CSR) highlights other data from
the process, demonstrating the biological basis of belief production. Their currents can provide theoretical data
for a model of understanding of the rationality of faith.

Key-words: Theistic beliefs. God. Reformed Epistemology. Cognitive Sciences of Religion.

1. Introdução

A discussão sobre a racionalidade da fé voltou a ocupar a atenção de acadêmicos e da sociedade em geral.


Um fenômeno popular recente é a literatura. Em 2013, Rice Broocks lançou o livro “Deus não está Morto”,
provocando muito entusiasmo em muitos católicos e evangélicos.Em 2016, foi publicado o segundo volume da
obra. A proposta dos livros se tornou filme. O conjunto da obra funcionou como uma forte campanha apologética
cristã frente ao ceticismo da sociedade contemporânea. Este acontecimento dentre outros, como o avanço do
neopentecostalíssimo no Brasil, nos mostra que esta preocupação é muito atual. Porém, muitas vezes as
abordagens fora da academia se encerram num fideísmo ingênuo.
Queremos nos aproximar de algumas respostas que a academia nos dá no terreno da Teoria do
Conhecimento. Este é o objeto da Epistemologia da Religião como subdisciplina da Teoria do Conhecimento.A
Epistemologia da Religião é um campo interdisciplinar da filosofia que debate a produção e a justificação das
crenças e do conhecimento religioso. A preocupação que move esta área do saber é a verificar se a crença
religiosa é racional ou não. Sendo sua principal tarefa a discussão de como pode ser justificado o conhecimento
religioso.
A crença na existência de Deus é a primeira destas crenças a serem debatidas. A partir do debate
epistemológico da crença em Deus se justifica as demais crenças porque a maioria dos sistemas religiosos
constrói suas crenças a partir da admissão da existência de uma divindade. O caso parece não se aplicar ao
*Licenciado e bacharel em Filosofia, especialista em Docência do Ensino Básico, Docência do Ensino Superior, Língua Latina e
Filologia Românica e mestre em Ciências das Religiões. E-mail: joaristides@gmail.com.

A racionalidade das crenças religiosas 25


I Seminário de Epistemologia da Religião
budismo, por exemplo, mas se trata de uma exceção rara.
Embora, a Epistemologia da Religião seja uma área nova no campo da filosofia. A discussão sobre a
relação entre fé e razão teve início logo no início do cristianismo. Quando houve o encontro entre filosofia e fé
cristã surgiu a necessidade de explicar a racionalidade da fé. O período medieval aprofundou o debate e o início
da modernidade o relegou, colocando-o em segundo plano por causa da supervalorização da razão. Depois do
domínio do pensamento positivista, ocorreu na segunda metade do século XX um retorno ao estudo acadêmico
da fé na academia.

2. O status da questão

A relação entre fé e razão sempre ocorreu em desequilíbrio. Os medievais privilegiaram a fé e puseram a


razão a seu serviço. A modernidade decretou a irracionalidade da fé, entronizou a razão e reduziu o conhecimento
religioso à simples argumentação. Ao longo do tempo, foram surgindo as mais diversas posições sobre esta
relação. Existem várias posições epistemológicas para situar esta proposição. Vamos apontar as três básicas: O
fideísmo, o evidencialismo e a Epistemologia Reformada.
O fideísmo se apresenta como uma posição que não enfrenta ou não se preocupa com as teses contrárias à
racionalidade da fé. Segundo esta perspectiva, o crente está moralmente justificado a sustentar as crenças teístas
na contramão de evidências ou sem qualquer apoio empírico. Stephen Evans apresenta uma versão moderada do
fideísmo chamado de “fideísmo responsável”. Ele argumenta que o raciocínio humano tem a tendência em falhar
como resultado do pecado e que a fé pode melhorar esta condição. Sendo assim, as crenças teístas diante de um
descrente parecem irracionais, mas, de fato, não são.1
O evidencialismo afirma que a crença em Deus estará racionalmente justificada se houver uma boa
evidência para isso. Esta abordagem considera que só podemos admitir alguma asserção como conhecimento se
houver evidência. Considerando que a regra vale para todos os campos, então, é aplicável também à crença na
existência de Deus. Portanto, os evidencialistas procuram formular provas da existência de Deus e argumentam
sobre seus atributos. Eles utilizam também argumentação para se defenderem das objeções mais comuns contra a
existência de Deus como o problema do mal e a ocultação da divindade.2
A partir da publicação de Faith and Rationality, em 1983, de Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstorff,
acontece uma retomada de um debate racional para as crenças religiosas no campo da filosofia. Tomaremos este
fato como um marco histórico para o atual debate da Epistemologia da Religião. Esta corrente ficou conhecida
como Epistemologia Reformada. Segundo estes epistemólogos, algumas crenças teístas são propriamente ou
imediatamente básicas. Elas não dependem de outros argumentos ou evidências para serem justificadas.Esta
epistemologia procura afirmar que a crença em Deus é racional mesmo se ela não for inferida a partir de nenhuma
outra crença.3
Uma crença é considerada básica quando “ela dispensa o uso de argumentação para ser justificada
epistemicamente. Em outras palavras, ela não necessita ser inferida de outras verdades para que seja racional,
seja razoável ou justificada, porque é justamente básica. Ela não é justificada por evidências (no sentido de outras
verdades ou crenças), mas, ao contrário, é evidência ou premissa para outras crenças.”4 Esta é a via de solução
1 DOUGHERTY, Trent; TWEEDT, Chris. ReligiousEpistemology. PhilosophyCompass, 10 (8), 2015, p. 547-559.
2 DOUGHERTY; TWEEDT, 2015, p. 547-559.
3 DOUGHERTY; TWEEDT, 2015, p. 547-559.
4 MCALLISTER, Blake; DOUGHERTY, Trent.Reforming reformed epistemology: a new take on the sensusdivinitatis. Religious
Studies:1-21, 2018, p. 1-38.

A racionalidade das crenças religiosas 26


I Seminário de Epistemologia da Religião
encontrada pela Epistemologia Reformada para a garantia da racionalidade da fé.
Alvin Plantinga elaborou o modelo Aquino-Calvino para justificar a sustentação das crenças religiosas
como básicas. A existência de Deus já pressupõe a existência de uma faculdade específica para identificá-lo.
Plantinga considera que temos uma faculdade específica para a crença em Deus. Esta faculdade é o sensus
divinitatis. As crenças religiosas produzidas pela mente humana são básicas e têm sua justificação garantida. As
crenças do cristianismo funcionariam corretamente dentro de um ambiente epistêmico, ou seja, não viola
nenhum princípio racional, e preenche os requisitos de verdade.6
O sensus divinitatisserve para sustentar que todas as culturas possuem crenças religiosas por causa de
uma faculdade natural. Mas ela não se desenvolve com os mesmos conteúdos em todas as pessoas porque
depende de circunstâncias específicas. Como funciona, então, o sensus divinitatis? De acordo com a concepção
de Plantinga, ele funciona como um dispositivo de entradas (inputs) e saídas (outputs). As circunstâncias como
um pôr-do-sol, um campo florido, um céu estrelado, entram na mente e o dispositivo as processa gerando crenças
teístas como saídas. Deste modo, as circunstâncias precisam ser favoráveis para a produção de crenças teístas.7
Por sua vez, outro representante da Epistemologia Reformada, William Alston, não recorre à existência
de uma faculdade específica, seu foco de atenção é a experiência. Ele defende que algumas formas de experiência
justificam imediatamente a crença em Deus. As crenças surgem a partir da percepção que as pessoas têm de Deus.
Então, a crença na existência de Deus é considerada uma crença perceptiva. Muitas pessoas, presumivelmente,
percebem Deus e suas experiências místicas são tomadas como fonte de justificação.8
A alegada consciência direta de Deus é fonte de muitas crenças religiosas. Muitas crenças não decorrem
diretamente de um raciocínio, mas da percepção de algo identificado como divino que se manifesta à consciência
do indivíduo.9 A percepção mística difere da percepção sensorial que pode ser privada, com acesso restrito e
fornece poucas informações. A percepção mística é admitida por Alston como um tipo específico de percepção.
Uma grande quantidade de religiões se fundamenta e se sustenta a partir de experiências místicas. Dentro desses
espaços sociais, essas práticas doxásticas são consideradas confiáveis e se tornam base de justificação.10
A percepção mística é encontrada nos grandes monoteísmos. No cristianismo, uma rede de crenças é
sustentada na percepção mística. O aparecimento do anjo Gabriel a Maria é uma experiência fundante para a
crença na encarnação de Jesus. Paulo teve uma experiência a caminho de Damasco.A visão da sarça ardente é
fundamento de muitas crenças judaicas. Maomé fundamenta sua crença na unicidade de Deus a partir de uma
revelação do anjo Gabriel. Portanto, a própria crença em Deus se fundamenta nesse tipo de experiência.
Na teoria de Alvin Plantinga, as experiências místicas funcionam como princípios estimuladores do
sensus divinitatis. Mas a percepção não é a fonte produtora das crenças religiosas. Já para William Alston, a
percepção é fonte deste tipo conhecimento. Mas, é claro, trata-se de um tipo particular de percepção, que é a
percepção mística. Os dois recorrem a mecanismos e a experiências diferenciadas para garantir a
excepcionalidade das crenças religiosas. O mesmo não ocorre com as teorias das Ciências Cognitivas das
Religiões.

3. A resposta das Ciências Cognitivas da Religião à Epistemologia Reformada

5 OLIVEIRA, Rogel Esteves. A racionalidade da crença religiosa, um mapa do debate filosófico atual. Revista Batista Pioneira, v.
2, n. 2, 2013, p. 265-288.
6 MCALLISTER; DOUGHERTY, 2018, p. 1-38.
7 MCALLISTER; DOUGHERTY, 2018, p. 1-38.
8 JÄGER, Christoph. Religious experience and epistemic justification: Alston on the reliability of mystical perception. In:
MOULINES, Carlos Ulises; NIEBERGALL, Karl-Georg (ed.). Argument und Analyse. mentis. 2003, p. 403-423.
A racionalidade das crenças religiosas 27
I Seminário de Epistemologia da Religião
As Ciências Cognitivas da Religião partem dos pressupostos de que os conceitos religiosos devem ser
investigados a partir das mesmas restrições e dos mesmos procedimentos dos demais conceitos. Esses conceitos
não constituem um domínio específico.11 Os defensores do sensus divinitatis explicam a presença de crenças
religiosas em todas as culturas dizendo que há uma faculdade na mente humana específica para a produção delas.
Neste caso, os cognitivistas buscam nos mecanismos da evolução pistas para compreender a universalidade deste
fenômeno. É um tratamento natural e não excepcional.
De acordo com esta abordagem, o sistema cognitivo humano desenvolveu-se por seleção natural. As
funções cognitivas adaptativas têm sido utilizadas pelas Ciências Cognitivas da Religião para explicar a presença
de crenças religiosas na pluralidade das culturas. Há uma crença primária que pode ser observada em vários
povos que é a crença em agentes sobre-humanos.Esta crença está no fundamento da produção das demais crenças
religiosas. Ela se desenvolveu a partir de um comportamento natural do ser humano.
A contribuição para entender este fenômeno vem da psicologia evolutiva. Algumas funções cognitivas
originais podem ser adaptadas para outras finalidades gerando um subproduto. Apresentaremos três propostas
gerais: a) a do Dispositivo de Agência Hiperativa (DDAH) de Justin Barrett e de Scott Atran e Aran Norenzayan;
b) dos conceitos minimamente contraintuitivos de Pascal Boyer e de Charles Ramble, c) e da tendência animista
e antropomórfica de Stewart Guthrie. Este último pode classificado também como uma forma de DDAH.
Justin Barrett cunhou o termo Dispositivo de Detecção de Agência Hiperativa (DDAH) para designar
uma função cognitiva humana. Para Barrett, a maioria das pessoas acredita em agentes sobrenaturais a partir do
desenvolvimento deste dispositivo.12 O nosso dispositivo cognitivo da detecção de agentes na natureza sofre de
uma hiperatividade, que o faz tender a encontrar agentes ao nosso redor. Eles são desenvolvidos a partir da
percepção de um barulho à noite, de objetos que se movem sozinho, de vestígios nas plantações. A resposta a
estas percepções é a detecção de um super-agente que foi tomada na forma de um gnomo, espírito ou de um
deus.13
Para Scott Atran e Aran Norenzayan, as crenças religiosas se originaram a partir da detecção de agentes
contraintuitivos ou contrafactuais. Eles denominam o DDAH de Sistema de Detecção de Agência (SDA). De
modo similar ao DDAH, SDA funciona a partir da atribuição de super-agentes a percepções de rostos nas nuvens,
de pontos se movendo, das formas geométricas na natureza e plantas sendo movimentadas pelo vento. As
emoções e atribuições das pessoas diante destes fatos geram a crença em agentes sobre-humanos.14
Pascal Boyer e Charles Ramble consideram que o conhecimento religioso é formado por conceitos com
violações de expectativas. São crenças em espíritos que atravessam os corpos sólidos e estão presentes
simultaneamente em dois lugares. Há alterações do ciclo da vida como seres eternos, virgens-mães,
ressurreições. Há violação da noção de tempo com a previsão de fatos futuros. Ou a animação de estátuas que
ganham poderes de ouvir preces.15
A violação das propriedades físicas envolve a rupturas das leis naturais, da gravidade, da propriedade dos
sólidos, do ciclo da vida. Há a formação de crenças em seres invisíveis, que atravessam paredes, aparecem e
desaparecem, conhecem o futuro e alteram as relações de causa e efeito. Os milagres são quebras de expectativa,
nas quais a relação de causa e efeito é alterada. A toxina das cobras danifica os tecidos e provoca a morte de um
homem. Mas quem recorre a um ritual xamânico para salvar alguém de picada de cobras considera que esta
9 SILVEIRA, Rodrigo Rocha. Práticas doxásticas, experiência mística e crenças originárias: um problema na epistemologia de
William Alston. Fundamento - Revista de Pesquisa em Filosofia, n. 13, 2016, p. 95-105.
10 SILVEIRA, 2016, p. 95-105.
11 BOYER, Pascal, RAMBLE, Charles.Cognitive Templates for Religious Concepts. Cognitive Science, v. 25, n. 4, p. 535-564,
2001.

A racionalidade das crenças religiosas 28


I Seminário de Epistemologia da Religião
relação de causa e efeito pode ser desfeita.
As crenças religiosas se desenvolvem a partir da violação de expectativas e de conceitos contraintuitivos.
São constituídas por experiências que envolvem seres ou eventos que não seguem as leis da natureza, rompendo
com suas propriedades e com a relação de causa e efeito. São conceitos contraintuitivos porque fogem à intuição
do que seria um comportamento normal da natureza ou das coisas.Asfunções cognitivas comuns de contato com
o ambientesão superativadas e geram produtos como seres e eventos sobrenaturais.
Stewart Guthrie também defende um tipo de detecção de agentes. Ele o toma não como uma função
cognitiva, mas somente perceptiva.Conforme a teoria de Guthrie, os seres humanos tendem a olhar para a
natureza como coisa viva (olhar animista). Além de animar a natureza, eles atribuem intencionalidade às formas
que vêem. A atribuição de intencionalidade para a maior das coisas na natureza era uma estratégia de defesa de
nossos ancestrais. A atitude de que tudo dentro de uma floresta pode estar à espreitado homem, permite-lhe
redobrar atenção e se defender dos casos em que realmente o predador estava em ação. Neste ponto, entra em
ação o dispositivo de detecção de agentes (DDA) de Justin Barrett.16
Portanto, para as teorias do DDAH e do DAS, a religião é um subproduto das funções cognitivas
humanas. As crenças são produzidas naturalmente, mas não há uma faculdade específica para a produção delas.
Todo o sistema cognitivo está envolvido neste processo. Sendo que, inicialmente, os comportamentos possuem
uma finalidade de adaptação ao ambiente e que são readaptados para uma função religiosa. Em outras palavras, a
função inicial da detecção de agentes é identificar predadores na natureza e como subproduto desta atividade
desenvolveu-se a crenças em seres sobrenaturais.17
Se formos considerar os resultados das CCRs a partir da teoria de William Alston, diríamos que a crença
em Deus surge da percepção em situação de hiperatividade ou de intensificação. Uma experiência mística seria
uma percepção direta de um fenômeno natural coma consciência intensificada de modo a admitir uma quebra de
expectativa sobre a realidade.As principais crenças religiosas foram formadas a partir deste processo, mas toda
experiência como essas resulta em crença religiosa.

4. Aproximação de um modelo a partir do encontro entre Epistemologia Reformada e as Ciências


Cognitivas da Religião

A Epistemologia Reformada e as Ciências Cognitivas da Religião podem juntas formular respostas


adequadas ao problema da racionalidade das crenças religiosas. Porém, isso implica o abandono de algumas
incompatibilidades. As CCRs rejeitam a faculdade especial de Alvin Plantinga. Mas elas podem dialogar com
algumas propostas de revisão do Modelo Aquino-Calvino. Blake Mcallister e Trent Dougherty desenvolveram o
modelo redutivo. Eles rejeitaram a existência de uma faculdade especial para se conhecer a divindade. O sensus
divinitatis é reduzido a uma subfunção das faculdades cognitivas fundamentais.18
Mcallister e Dougherty consideram o sensus divinitatis como um mecanismo cognitivo que produz
aparências teístas que, por sua vez, fornecem evidências para crenças teístas. Os dois pesquisadores retiram a
ideia de faculdade especial e debruçam como as crenças das aparências são formadas. O sensus divinitatis é uma
sub-função das faculdades cognitivas. Ele operado pela racionalidade. Neste ponto, há possibilidade de
12 LISDORF, Anders. What's HIDD'n in the HADD? – A cognitive conjuring trick? Journal of Cognition and Culture, 7(3-4),
2007, p. 341-353.
13 LISDORF, 2007, p. 341-353.
14 LISDORF, 2007, p. 341-353.
15 BOYER; RAMBLE, p. 535-564, 2001, p. 535-564.
16 EYGHEN, Hans Van. Religious Cognition as Social Cognition. Studia Religiologica 48 (4) 2015, p. 301–312.
A racionalidade das crenças religiosas 29
I Seminário de Epistemologia da Religião
convergência já que as CCRs consideram a detecção de agentes sobrenaturais como uma função da mente.
Segundo as CCRs,os fenômenos que envolvem estas crenças religiosas podem ser concebidos como
modelos. As crenças religiosas possuem as seguintes características gerais: a) elas possuem propriedades físicas
contraintuitivas; b) elas adaptam comportamentos de detecção de predadores a sentimentos religiosos; c) elas
atribuem formas e comportamentos humanos à natureza (antropomorfismo). Este conjunto pode ser aproximado
das conclusões da Epistemologia Reformada.

01

Quadro sintético das teorias em discussão

A Epistemologia da Religião e as Ciências Cognitivas da Religião fornecem princípios teóricos para uma
compreensão geral da produção de crenças religiosas. A sustentação de uma faculdade específica para o
conhecimento de Deus não é viável. Os diferentes tipos de conhecimento que temos não possuem faculdades
específicas, a não ser aquelas fontes comuns a todo o processo cognitivo. A percepção, a intuição e a razão atuam
conjuntamente na produção de crenças religiosas.
A percepção é quem capta as entradas de circunstâncias passíveis de produzir crenças religiosas (Alston).
A experiência é fonte dessas crenças. A detecção de agentes na natureza, a percepção de rostos na nuvem, a
atribuição de intencionalidade, a observação de comportamentos contraintuitivos e contrafactuais (Boyer,
Barrett, Norenzayan), o assombro diante da grandeza arrebatadora e a grandeza destruidora da natureza
(Plantinga), funcionam como entradas (inputs) de experiências que sãoconvertidas em conceitos como a crença
em agentes invisíveis e sobre-natureza.
Os conceitos contraintuitivos e contrafactuais geram, por sua vez, com o auxílio da imaginação e da razão
17 LISDORF, 2007, p. 341-353.
18 MCALLISTER; DOUGHERTY, 2018, p. 1-38.
19 MCALLISTER; DOUGHERTY, 2018, p. 1-38.

A racionalidade das crenças religiosas 30


I Seminário de Epistemologia da Religião
as saídas (outpusts) como a crença em Deus, em espíritos, em milagres e no mundo sobrenatural. Essas crenças
são os fundamentos dos sistemas religiosos que se desenvolvem pela cooperação social e a propagação cultural.
Portanto, cada teoria pode contribuir para a formação deste modelo.

5. Considerações finais

Neste levantamento de teorias, unimos a Epistemologia da Religião do campo da Teoria do


Conhecimento com as Ciências Cognitivas da Religião que é uma área interdisciplinar reunindo psicologia e
antropologia evolutivas para abordar o problema do conhecimento religioso. A primeira preocupa-se com a
justificação das crenças religiosas, a segunda procura explica a origem biológico-cultural dessas crenças.
As crenças religiosas apresentam uma racionalidade na sua justificação, mas caracterizam um tipo de
conhecimento específico. Não podem ser ditas como racionais. A característica mais distinta desse tipo de
conhecimento é salientada pelas CCRs: a admissão de conceitos contraintuitivos. Os conceitos contraintuitivos
rompem com as leis da natureza e com os resultados racionais esperados para os conceitos e comportamentos
mais básicos.
Portanto, o conhecimento religioso é próprio da percepção mística não pode ser reduzido à racionalidade
e nem a outro tipo de conhecimento. As considerações extremas como fideísmo ingênuo ou o olhar suspeito do
iluminismo são vias que abordam o conhecimento religioso com métodos e instrumentos inadequados.

Referências

BOYER, Pascal, RAMBLE, Charles. Cognitive Templates for Religious Concepts. Cognitive Science, v. 25, n.
4, p. 535-564, 2001.

DOUGHERTY, Trent; TWEEDT, Chris. Religious Epistemology. Philosophy Compass, 10 (8), p. 547-559,
2015.

EYGHEN, Hans Van. Religious Cognition as Social Cognition. StudiaReligiologica 48 (4), p. 301–312, 2015.

JÄGER, Christoph. Religious experience and epistemic justification: Alston on the reliability of mystical
perception. In: MOULINES, Carlos Ulises; NIEBERGALL, Karl-Georg (ed.). Argument und Analyse. Mentis,
p. 403-423, 2003.

LISDORF, Anders. What's HIDD'n in the HADD? – A cognitive conjuring trick?


JournalofCognitionandCulture, 7(3-4), p. 341-353, 2007.

MCALLISTER, Blake; DOUGHERTY, Trent. Reforming reformed epistemology: a new take on the
sensusdivinitatis. Religious Studies:1-21, 2018.

OLIVEIRA, Rogel Esteves. A racionalidade da crença religiosa, um mapa do debate filosófico atual. Revista
Batista Pioneira, v. 2, n. 2, p. 265-288, 2013.

SILVEIRA, Rodrigo Rocha. Práticas doxásticas, experiência mística e crenças originárias: um problema na
epistemologia de William Alston. Fundamento - Revista de Pesquisa em Filosofia, n. 13, p. 95-105, 2016.
.

A racionalidade das crenças religiosas 31


I Seminário de Epistemologia da Religião
AS FRATURAS DA VIDA TEM PAPEL IMPORTANTE PARA A
CONSTRUÇÃO DO PARADOXO DA IDENTIDADE NA ALTERIDADE E
ALTERIDADE NA IDENTIDADE

Wanderson Fernandes de Oliveira*


Resumo
Este artigo trata do conceito de alteridade de Lévinas aplicado à recuperação identitária
dos povos de origem africana, dentre as fraturas culturais que estes povos sofreram esta a
religião.
Palavras-chave: Fratura identitária. Alteridade. Cultura afro-brasileira.

Abstract
This paper approaches the concept of alterity from Lévinas, applying it to the recovering of
identity of afro-brazilian people. The colonial domain causes many cultural loss for this people, the religion is
one.
Key-words:Identityfractured. Alterity. Afro-brazilian culture.

O Ser Humano, desde sempre, deparou-se com realidades inconstantes e perenes, fruto desejoso de
construir um conhecimento, uma forma de vivência identitária, diferenciando e estabelecendo suas vontades
diferentemente de outros, seja por uma influência coletiva ou individual.
A edificação da construção da identidade implica em definir quem a pessoa é, quais são seus valores e
quais as direções que deseja seguir pela vida. Para Erik Erikson, a identidade é uma concepção de si mesmo,
composta de valores, crenças e metas com os quais o indivíduo está solidamente comprometido. A sua formação
receberia influência de fatores:

a) intrapessoais, representados pelas capacidades inata e adquirida do indivíduo; b) interpessoais,


representados pelas identificações; c) culturais, representados pelos valores sociais a que uma pessoa está
exposta, tanto no âmbito global quanto comunitários.1

As culturas de matriz africana lutaram muito para se aproximar do mesmo reconhecimento que a matriz
europeia possuía. Os africanos sofreram com inúmeras fraturas culturais. Subtraídos nos seus conhecimentos, na
culinária, arte, religião, identidade, seus hábitos e costumes, não cederam, lutaram por mais de 300 anos contra a
escravidão, e a favor da valorização pessoal e cultural. O sangue e as lágrimas de muitos serviram de força e
audácia para superação e reconstituição da fratura identitária. A cada ano que passa, mais força ganham,
principalmente com os movimentos negros, que já atingem as principais regiões do país.
Não podemos deixar que uma cultura sobreponha a outra, como destaca Mello e Souza:

A “cultura africana” está presente em vários segmentos de nossa sociedade e, pela falta de uma abordagem
mais realista, muitas pessoas desconhecem estes fatores. Esta cultura está inserida na linguagem, comidas,
músicas, religiões, entre outros. Reconhecer a “cultura afro” como elemento importante de nossa cultura e
sociedade é reconhecer a nossa própria história, uma vez que se encontram interligados com a construção
do Brasil.2

O dicionarista de filosofia Abbagnano 3 traz o conceito de alteridade como: “Ser outro, pôr-se ou
constituir-se como outro”. Nesta ótica de ver-se para o outro, sendo capaz de se construir para o outro, donde

1 ERIKSON, E. H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.


2 MELLO e SOUZA, Marina. África e Brasil Africano. São Paulo, Ática, 2008, p. 132.
3 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.35.
4 SILVA, A. C. DA. A desconstrução da discriminação no livro didático. In: MUNANGA,K. Superando o racismo na escola.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, p.21.

A racionalidade das crenças religiosas 32


I Seminário de Epistemologia da Religião
teremos a sensibilidade de desenvolver a responsabilidade para com o outro.
Segundo o pensamento de Silva 4: “é preciso conhecer para entender, respeitar para integrar, aceitando as
contribuições culturais, oriundas de vários matizes culturais presentes na sociedade brasileira”. Estar aberto para
conhecer outras culturas, como a “cultura afro”, é estar aberto para a integração e mistura de culturas
respeitosamente, possibilitando a efetivação, o entendimento de si mesmo.
Lévinasnos seus primeiros trabalhos buscou ratificar suaforma filosófica por meio de um pensamento
que refletisse radicalmente o conceito de alteridade. Lévinaspropõe uma abordagem de como viver a ética na
convivência com o próximo e assim chegar à Alteridade. Onde cada um deve ter responsabilidade pelo próximo.
Quando nos responsabilizamos junto ao outro, diminuiremos o preconceito, o racismo e as perseguições
religiosas e políticas não acontecerão. Até porque o Brasil está entre as maiores naçõesnegras do mundo, como
menciona o PNAD.5
De acordo com Cunha Júnior: “não é possível conhecer a História do Brasil sem o conhecimento da
História dos povos que deram início à nação brasileira. A exclusão da História Africana é uma, dentre as várias
demonstrações do racismo brasileiro.”6
A construção da Identidade na Alteridade, e Alteridade na Identidade,dá-se quando o Ser Humano se
torna acolhedor, propõe-se abraçar o diferente, na perspectiva que o Eu, independentemente da classe, da cor, da
origem, me torna corresponsável do Outro, construindo uma relação de nascimento da ética, uma relação onde
tanto o Eu, quanto o Outro, são respeitados nas suas diferenças, capazes de enxergar o seu reflexo na
singularidade daquele que se apresenta diante de si.
A dimensão da Alteridade pensada por Lévinas provoca uma mudança interior, aspirando uma sociedade
melhor para se viver. Calcado na subjetividade acolhedora do Rosto, o direito não se reduzirá a uma
racionalidade procedimental que dita códigos, normas, responsabilidade, mas se tornará promovedor da paz e do
bem para todos.7
A sociedade contemporânea sairá deste modeloetnocêntrico, quando de fato, a Alteridade for vivenciada,
pois,traríamos uma compreensão maishumanizada, que respeita a liberdade de expressão,a percepçãode si
mesmo, o Eu, evitando o aniquilamento das pessoas, das artes e da cultura. Portanto, a partir da Alteridade nasce a
possibilidade, no interior da Identidade, do Eu, de sair do egoísmo, do isolamento, do individualismo, surgindo
assim, uma sociedade livre, justa e fraterna.
Que as fraturas aconteçam por tentativas de construção da paz e do conhecimento entre as culturas, e não
por submissão, desconhecimento do outro.

Referências

ERIKSON, E. H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

CUNHA JUNIOR, Henrique. A história africana e os elementos básicos para o seu ensino. Núcleo de Estudos
Negros (NEN) Florianópolis - SC, 1997.
5 Entre 2012 e 2016, enquanto a população brasileira cresceu 3,4%, chegando a 205,5 milhões, o número dos que se declaravam
brancos teve uma redução de 1,8%, totalizando 90,9 milhões. Já o número de pardos autodeclarados cresceu 6,6% e o de pretos,
14,9%, chegando a 95,9 milhões e 16,8 milhões, respectivamente. É o que mostram os dados sobre moradores da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios, divulgados pelo IBGE. Acessado 06/02/2019.
6 CUNHA JUNIOR, Henrique. A história africana e os elementos básicos para o seu ensino. Núcleo de Estudos Negros (NEN)
Florianópolis - SC, 1997, p.67.
7 LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós. Ensaios sobre alteridade. Petrópolis-RJ: Vozes, 2005, p.294.
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I Seminário de Epistemologia da Religião

COMUNICADORES DO I
SEMINÁRIO DE EPISTEMOLOGIA DA RELIGIÃO

01 - Alunos participantes do seminário.

02 - Comunicação de Bruno Kenned Ferreira

A racionalidade das crenças religiosas 34


I Seminário de Epistemologia da Religião

02 - Comunicação de Elyvelton Francisco.

03 - Comunicação de José Aristides.

A racionalidade das crenças religiosas 35


“O homem de hoje está convencido de tudo, aforada existência de Deus e de sua própria
ignorância. Temos um fato curioso em nossos tempos. O homem quer ser tudo, mas não quer ser
homem. Quer ser ave, voando através do espaço, por meio dos aeroplanos. Quer ser peixe,
atravessando o fundo do oceano, por meio dos submarinos. Quer ser relâmpago, dando asas ao
seu pensamento e à sua palavra, por meio do rádio. Quer ser trovão, inventando raios de morte
que fulminam o inimigo acima das montanhas e através dos mares. Que ser morto, fazendo
aparecer desencarnados e conversando com eles, por meio de qualquer médium histérico ou
nevropata. Quer ser diabo, penetrando nos antros em que se invoca o demônio, como chefe da
revolta. Quer ser Deus, interpretando a palavra divina como lhe dita o próprio orgulho,
substituindo o sentido Divino pelo seu próprio sentido, como fazem os protestantes. O homem
quer ser tudo; só não quer ser homem.”

Lombaerde, 1934, p. 9.

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