Vous êtes sur la page 1sur 17

história da mata atlântica

11

capítulo 1

Opulência Vegetal,
Cobiça Insaciável e a
Entronização da Entropia:
Uma Visão da História
Socioambiental
da Mata Atlântica
Clóvis Cavalcanti

O
2. Bolsista da Conservação Internacional
presente capítulo destina-se a oferecer
uma visão compreensiva – salientando al-
guns traços marcantes – da história social
do processo de destruição da Mata Atlân-
tica, abordando também aspectos econômi-
cos do problema. Mas de que Mata Atlântica
exatamente se está falando? O espaço geográfico
desse ecossistema aqui considerado corresponde, em princípio,
ao seu setor nordestino na parte ao norte do Rio São Francisco
(11o lat. S na foz). Na verdade, ao sul do rio, a cobertura original
da Mata Atlântica, em 1500, era escassa no Estado de Sergipe,
alargando-se e encorpando-se substancialmente à medida que se
desce para o sul da Bahia (Dean, 2004, mapa 1). No seu segmen-
to ao norte do São Francisco é que, no período decisivo da for-
mação brasileira, desenvolveu-se parte substancial da civilização
do Brasil, Projeto Corredor de Biodiversidade do açúcar. Lembra Freyre (1985), a propósito, que “a primeira
Projeto do Nordeste. grande expressão de civilização brasileira – a baseada no açúcar –
foi particular ao Nordeste, isto é, ao Brasil agrário que se esten-
Ao lado: dia do Recôncavo da Bahia ao Maranhão”. A história do Brasil se
Nome vulgar e científico da Bromélia traduz então na história do próprio açúcar (Freyre, 1985). É o
Local e data da observação segmento da Mata Atlântica que ocupava quase toda a zona lito-
rânea de Alagoas e Pernambuco (estados que constituíam uma
capitania só no século xvi), cobrindo área maior neste do que
naquele estado, que nos interessa. A presença do bioma em ques-
tão na Paraíba e no Rio Grande do Norte, por outro lado, era
bem menos expressiva, menos mesmo do que em Sergipe. Foi sua
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

12 13

Frans Post. Serinhaim. Do livro Rerum per Octennium existência como bioma rico em vegetação de floresta que levou a mente – se retira da eloqüente constatação de Freyre (1985) de do fosfato que dele saiu no período 1920-2000. Tal modelo defi-
in Brasilien, de Gaspar Barléu, 1647. designar como Zona da Mata a estreita faixa de terra que acom- que o que sobrou dessa floresta são “restos de mata”, “sobejos da ne um dos traços mais característicos da relação sociedade-meio
panha a costa nordestina oriental, onde se concentram atualmen- coivara”. Ela foi ocupada pelo canavial e o engenho “sem outra ambiente na América Latina a partir do século xvi. Trata-se de
te – menos, porém, em termos relativos, do que no passado – a consideração que a de espaço para a sua forma brutal de explorar uma forma particular de coleta, que agride a natureza com grande
população e atividades econômicas da região. Zona da Mata é um a terra virgem” (Freyre, 1985), devastando-se simplesmente a violência. Desse ataque violento, como concebia Brunhes, pode
nome que, de pronto, remete à antiga “opulência vegetal” que vi- mata a fogo. Como, na observação de Dean (2004), tal resto da “resultar a miséria, e então é a devastação generalizada” (Castro
cejava na Mata Atlântica do Nordeste, especialmente em Per- riqueza original da floresta se mostra (ainda) “indescritível em Herrera, 1996). A modalidade de economia de ocupação destru-
nambuco (Silva, 1993). Opulência que vicejava. Não viceja mais, termos práticos e imensamente complexo”, pode-se avaliar a di- tiva que possui um “caráter normal, metódico” (colônias de ex-
porque o que existe hoje, o que sobrou de uma atividade de des- mensão do impacto que são quinhentos anos de avanço do mun- ploração) não se compara à economia de rapina. Esta última mo-
truição de 500 anos, são pobres vestígios dessa riqueza inigualá- do moderno sobre a herança biológica contida na complexidade e dalidade se distingue por possuir uma intensidade imoderada que
vel, o que faz a denominação Zona da Mata possuir conotações beleza da Mata Atlântica que existia no país em 1500. lhe faz por merecer a designação de rapina econômica, ou ainda,
de cruel ironia (cf. Freyre, 1985). É certo que todo regime agrícola, como o que se estabeleceu mais simplesmente, devastação.
O estudo que aqui se elabora não pretende ser exaustivo ou na Mata Atlântica, causa transtornos aos sistemas naturais. As Os grupos humanos que existiam no Brasil pré-conquista
original nos fatos que oferece. Se originalidade existe é no que to- ações humanas, retirando recursos da natureza e nela eliminan- eram sociedades de circuito fechado (cf. Castro Herrera, 1996),
ca à interpretação de certos fenômenos. Muito daquilo que diz do matéria e energia degradadas, sempre causaram e causarão auto-sustentadas, auto-suficientes. Não possuíam propósitos co-
respeito à Mata Atlântica, com efeito, já foi pesquisado e analisa- impactos ambientais negativos. Por outro lado, como observa merciais. Não efetuavam trocas com sociedades no seu exterior.
do competentemente por autores diversos, a exemplo de Gil- Pádua (2002) aludindo a Simon Schama, o trabalho dos histo- Tinham como propósito fundamental reproduzir-se: promover o
berto Freyre (1985) e Warren Dean (2004). Este último tem seu riadores da natureza tende a fazer sobressaírem as intervenções atendimento de suas próprias necessidades, sem intentos de acu-
foco, é certo, no espaço abaixo do paralelo 13o S e acima da flores- destrutivas nas relações homem-ecossistema. Isso não quer dizer mulação. Suas relações com o meio ambiente eram diversificadas
ta de coníferas. Porém, Dean (2004) faz a ressalva, correta, de que os humanos só tenham destruído. O problema é que proces- e, satisfeitos os fins de sustentação do grupo, permitiam desenvol-
que a seção da Mata Atlântica por ele investigada constitui o cor- sos de aniquilamento natural como os da história do Brasil, ao vimentos culturais que incluíam conhecimento íntimo da ecologia
po central da floresta, representando mais de 70% do conjunto longo de séculos, destacam-se de uma forma tão contundente dos sistemas naturais ao redor. Daí a tendência a um inevitável
inteiro e onde quase todos os aspectos da história dos assenta- que ações possivelmente benignas dos colonizadores terminam convívio harmonioso (e reverente) com a natureza, trabalhando
mentos humanos aí estabelecidos seriam típicos também das ofuscadas. Essa, certamente, é a saga da Mata Atlântica – e tam- antes com ela do que contra ela. A chegada dos colonizadores rom-
áreas restantes. De qualquer forma, o que se pretende aqui é, à se- bém a que se tem tornado símbolo, nos anos recentes, da Caatin- peu com esse modelo, pondo fim ao sistema de circuito fechado.
melhança do que fez Paulo Prado em Retrato do Brasil (1931), e para ga, do Cerrado e da Amazônia. Interessante é que a devastação Sociedades de circuito aberto, não mais auto-suficientes e sem ca-
chegar à essência das coisas, apresentar aspectos, situações típicas, acompanha a civilização – veio com ela no caso da colonização pacidade de auto-determinação quanto aos fins e termos de sua
representações da realidade e dos acontecimentos, “resultantes lusitana –, enquanto o trabalho dos “selvagens” que aqui havia, existência, irão surgir. As novas relações de intercâmbio com o
estes mais da dedução especulativa do que da seqüência concate- como se verá na seção seguinte, dela conheceu tão-somente for- exterior – desvantajosas para o nativo e para o ambiente natural
nada de fatos” (Prado, 1931). Vale notar que o historiador John L. mas atenuadas (cf. Brunhes, 1955). da colônia – introduzem o paradigma do desenvolvimento exó-
Myers recorda que “extensões imensas do planeta não têm litera- Certamente, o registro da destruição de sistemas naturais co- geno, de caráter predatório, especializado, simplificador. Novos
tura histórica”, faltando assim uma minuciosa descrição do am- mo a Mata Atlântica evidencia fatos vergonhosos. Mas isso não agentes do processo, por sua vez, desconhecem completamente o
biente biogeográfico que aí determinou a evolução e a existência pode, nem deve, ser omitido. Pode ser útil (Dean, 2004) para evi- ecossistema original do novo território e, alimentados por sua ig-
dos humanos. Essa é a situação da Mata Atlântica, da qual se sa- denciar o grau de loucura ou ignorância da espécie humana. No norância, lançam-se à empreitada de extrair dele o maior retorno
be alguma coisa, a partir do século xvi, por intermédio de docu- caso nordestino, o que se revela a esse propósito é uma situação de possível, cometendo o crime da devastação. Trata-se de um pro-
mentação esparsa e dos relatos dos primeiros cronistas, a exem- “economia de rapina”: um trabalho contra a natureza. Mais do que cesso de incorporação violenta das terras recém-encontradas ao
plo de Antonil (1997) e Gandavo (1980). Um assunto que será a simples economia de feitoria ou de exploração – que extrai sem espaço da economia-mundo. O que se faz a custos altíssimos pa-
objeto da segunda seção deste trabalho. pretender destruir ou causar dano permanente ao meio –, a eco- ra o território que se mantivera fechado até então. Sobre isso se
Uma idéia do processo destruidor por que passou a Mata nomia de rapina encerra a idéia de explorar destruindo ou causan- fala nas sexta e sétima seções deste estudo, as quais tratam, res-
Atlântica – a ser oferecida nas terceira, quarta e quinta seções do do dano permanente (Castro Herrera, 1996). A expressão foi em- pectivamente, de uma avaliação do processo e das características
presente capítulo, no tocante aos objetivos da conquista colonial, pregada em 1910 pelo geógrafo francês Jean Brunhes (1955). Ela do modelo de ocupação européia da Mata Atlântica. O estudo se
do processo de exploração e emprego de escravos, respectiva- “designa uma modalidade peculiar de ‘ocupação destrutiva’ do es- encerra, na oitava seção, com algumas conclusões.
paço por parte da espécie humana, que ‘tende a arrancar-lhe ma- Acho importante dizer que sou da Zona da Mata de Pernam-
térias-primas minerais, vegetais ou animais, sem idéia nem meios buco. Nasci entre canaviais numa usina de açúcar (a Frei Caneca,
de restituição’” (Castro Herrera, 1996). É ação semelhante à de hoje Colônia), no então Município de Maraial, atualmente parte
um garimpo como o de Serra Pelada, no Pará. Ou da extração de do Município de Jaqueira. Meu pai era contador da empresa, on-
manganês da Serra do Navio, no Amapá (Brito, 1994). Ou ainda de trabalhou no período 1934-1990. Em ambos os lados de mi-
da destruição física de um pequeno país-ilha do Pacífico, Nauru, nha família há relações com propriedades rurais, com antepassa-
literalmente devastado em 80 % de seu território pela exploração dos produtores de cana-de-açúcar, açúcar mascavo, rapadura e
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

14 15

cachaça. A avó paterna de meu pai, que conheci, Maria Luíza hoje –, a qual ajudou a perpetrar o saque e a destruição da Mata
Bandeira de Melo Cavalcanti (1862-1947), era senhora do Enge- Atlântica. Mas descendo igualmente da tribo tabajara, inimiga
nho Taquarinha, em Maraial. Meu bisavô, João Pereira de Aguiar dos caetés que habitavam Olinda quando os portugueses aqui
(1865-1932), avô materno de minha mãe, também foi senhor de chegaram. Depois de algumas lutas, lusos e tabajaras se aliaram
engenho e fornecia cana para a Usina Catende – a maior do contra os caetés e os venceram. O primeiro Cavalcanti, Filippo,
Brasil na época. Convivi desde cedo com relatos, uns tristes, co- de Florença (Itália) – único, na verdade, a chegar aqui com esse
mo os da escravidão, outros mais edificantes, como os da histó- sobrenome – casou-se com uma mameluca, Catarina de Albu-
ria da monocultura canavieira de Pernambuco, sobre a qual meu querque Arcoverde, filha do português Jerônimo de Albuquer-
pai fazia muitos comentários críticos, especialmente no tocante que, chamado o Adão pernambucano, e da índia tabajara Muira
à devastação das matas. De minha casa, contemplei durante a in- Ubi, que após o batismo cristão passou desnecessariamente a se
fância e nos períodos de férias escolares da adolescência, nos chamar Maria do Espírito Santo Arcoverde.
anos 1940 e 1950, pedaços significativos – não “sobejos de coi- Por uma razão que não sei explicar, sobre a qual já me mani-
vara”, no dizer de Gilberto Freyre (1985) – da esplendorosa festei anteriormente (Cavalcanti, 1992), identifico-me mais co-
Mata Atlântica. Um deles, o da bela Serra do Espelho, ainda ho- mo ameríndio do que como europeu ou africano. Isso me leva à
je uma reminiscência magnífica do que era a floresta original, se posição de tender mais a interpretar os fenômenos daquilo que
bem que reduzida a 630 hectares, com espécies endêmicas de foi a brutal destruição – a “ferro e tição” (Couto, 1849; Dean), “a
bromélias, por exemplo. Essa serra, um maciço rochoso, sempre machado e fogo” (Freyre, 1980), “a ferro e fogo” (Dean, 2004) –
me despertou o maior interesse. Nela, com irmãos, primos e da Mata Atlântica na ótica das populações que a haviam habitado
amigos, fiz passeios, piqueniques, caminhadas, o primeiro deles por dez, 12 mil anos antes dos europeus. É dessa perspectiva que
com meus pais, quando tinha apenas seis anos de idade. elaboro as observações, os comentários e as conclusões da presen-
Viajando de trem, meio de transporte da época para longas te seção e, na verdade, do restante do capítulo. Sem que por isso
distâncias na Zona da Mata pernambucana e alagoana, inclusi- me sinta menos fiel ou menos objetivo, na minha condição de
ve no pequeno vagão de passageiros (“bondezinho”) da Usina pesquisador, em minha interpretação e minhas especulações, co-
Frei Caneca – um de seus herdeiros, Gustavo Duarte da Silveira mo também não me sentiria se me inclinasse a assumir a ótica do
Barros, a propósito, preserva admiravelmente o que resta da Ser- colonizador europeu ou do escravo africano.
ra do Espelho –, a Mata Atlântica era uma presença constante na
paisagem. É que a cana-de-açúcar ainda não ocupara de forma
absoluta a região. Os morros da Zona da Mata Sul de Pernam- Opulência vegetal: uma visão do ecossistema da Mata
buco tinham cultivos da gramínea em suas encostas; mas, nos seus Atlântica na chegada dos portugueses Caminha se maravilhasse, enfatizando: “Esta terra (...) de ponta a Frans Post. Serinhaim. Do livro Rerum per Octennium
topos, conservavam preciosas ilhas razoavelmente grandes de flo- ponta é toda praia (...) muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos in Brasilien, de Gaspar Barléu, 1647.
resta. Em algumas áreas dessas manchas, plantava-se café. Havia Quem primeiro viu a Mata Atlântica e descreveu ao mesmo tem- pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não
ali tatus, macacos, sagüis, cutias, tamanduás, gatos-do-mato, capi- po a visão que teve, tal como a floresta deveria ser em 1500, foi o podíamos ver senão terra e arvoredos”. A carta de Caminha, como Página 13:
varas, preguiças, cobras e uma diversidade de aves. O grande poe- escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha, sugere Prado (1931), embora de “idílica ingenuidade, é o primeiro Frans Post. O carro de bois. Óleo sobre tela, 61 x 88 cm, 1638.
ta – inclusive no físico – Ascenso Ferreira (1895-1965), amigo de em sua famosa carta ao Rei D. Manuel i, de Portugal. Eviden- hino consagrado ao esplendor, à força e ao mistério da natureza
infância de minha avó materna (nascida em 1894) e, como ela, temente, tal missiva constitui um relato impressionista, sem deta- brasileira”. Pero de Magalhães Gandavo retoma o assunto em 1576,
natural de Palmares, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, que lhes ou pretensão de registro científico. Mas é sugestivo o tom expondo o que testemunhara: “Esta terra é mui fértil e viçosa, toda
freqüentava minha casa e recitava com sua voz ímpar deliciosos dominante da descrição, especialmente da riqueza vegetal encon- coberta de altíssimos e frondosos arvoredos, permanece sempre a
poemas seus, menciona a mata vista do trem da Great Western em trada, com expressões como “os arvoredos são mui muitos e gran- verdura nela inverno e verão” (Gandavo, 1980); a terra “é à vista
seu inspirado canto “Trem de Alagoas”, também conhecido pelo des, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja mui deliciosa e fresca em grã maneira: toda está vestida de mui al-
verso inicial: “Vou danado pra Catende”. muitas aves!”. Ou ainda: “esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão to e espesso arvoredo” (Gandavo, 1980). São descrições, impres-
Toda essa introdução acima é para dizer que possuo uma li- basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular”. sões, desenhos da paisagem contemplada que nos remetem a espe-
gação ancestral e visceral com a Mata Atlântica, parte de cuja Impressão que foi também, em 1817 – muito depois, portanto – a culações sobre o que o cenário esconderia.
opulência biológica consegui registrar indelevelmente na memó- de Casal (1996), ao se admirar da “terra chão coberta de arvoredo”. Gandavo ainda dá depoimento sobre outras coisas que o im-
ria a partir do que vi com meus próprios olhos. A ligação ainda Terra que, pela aparência, segundo Casal (1996), levava à admissão pressionaram: “Há por baixo destes arvoredos grande mato e mui
hoje se manifesta no meu mundo privado de proprietário de 23 de que não houvesse país que pudesse “competir com o Brasil na basto e de tal maneira está escuro e serrado em partes que nunca
hectares de terras do brejo de altitude do município pernambu- multiplicidade de vegetais”. Na biodiversidade, dir-se-ia agora. Na participa o chão da quentura nem da claridade do Sol, e assim
cano de Gravatá, onde trechos da floresta são por mim conser- Mata Atlântica, conforme o mesmo autor, abundavam em varieda- está sempre úmido e manando água de si” (Gandavo, 1980).
vados. Pertenço à estirpe dos Cavalcanti – surgida em Olinda de “excelentes madeiras de construção, paus de tinturaria e plantas Chama sua atenção a existência de “muito pau-brasil nestas Ca-
nos meados do século xvi, bem próximo do local onde resido medicinais” (Casal, 1996). Ora, nada mais natural, assim, que pitanias (Bahia, Pernambuco) de que os mesmos moradores al-
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

16 17

sustentam os moradores do Brasil sem fazerem gastos nem dimi- que os sustentava e lhes dava saúde: seu sistema ecológico. O pró-
nuírem nada em suas fazendas” (Gandavo, 1980). E aludiu à prio Dean (2004), reproduzindo um dado da antropologia cul-
“muita caça”, segundo ele, “(u)ma das coisas que sustenta e abas- tural, registra que os nativos da Mata Atlântica “consideravam as
ta muito os moradores desta terra do Brasil – caça de muitos gê- florestas como pertencentes aos espíritos e animais que as habi-
neros e de diversas maneiras, a qual os mesmos índios da terra tavam, ou pelo menos como pertencentes tanto àqueles seres co-
matam” (Gandavo, 1980). mo a si mesmos”. Tinham, pois, motivos suficientes para zelar
Warren Dean, que tão minuciosamente – ainda que com in- por sua riqueza natural. Até por medo das divindades.
terpretações discutíveis – estudou a história ambiental da Mata Assim, é de se imaginar que o ecossistema original da Mata
Atlântica, indaga se, “quando avistada pela primeira vez pelos na- Atlântica, nos primórdios da colonização portuguesa, luzia como
vegadores europeus, (a floresta) era exatamente como seria se uma organização complexa, respeitada pelos nativos basicamente
eles tivessem chegado a uma praia despovoada, ou já estava alte- na sua inteireza. Pode-se admitir, todavia, que intervenções hu-
rada pela primeira onda de invasão humana” (Dean, 2004). Não manas, algumas até de maior porte, houvessem acontecido. Mes-
se pode dar uma resposta taxativa a pergunta tão vasta, até por- mo porque, para viver no meio da floresta, como faziam os índios,
que, em muitas partes da floresta, a presença humana talvez nun- seus moradores teriam necessidade de executar algumas derruba-
ca tivesse chegado. Ela existia, claro, em Porto Seguro – e em das, modificando o ambiente. Por outro lado, os indígenas conhe-
muitos outros sítios –, quando os portugueses ali ancoraram em ciam a agricultura, que era “muito mais viável” para eles, como as-
22 de abril de 1500. E era, apesar da significativa população ali sinala Dean (2004), nos solos da floresta. E os índios realizaram
encontrada, mata densa, oferecendo ao longo da costa “um obs- sempre atividades de lavoura com o uso do fogo. Sua condição de
táculo formidável” para quem a quisesse “penetrar e atravessar, saúde de modo geral, porém, um indício da saúde do entorno am-
como que exprimindo a opressiva tirania da natureza” (Prado, biental – como se sabe, não existe organismo são em um ambien-
1931). Os portugueses a ela se referiam como uma “muralha ver- te enfermo –, sugere boa gestão dos recursos da natureza na Mata
de”, indicação clara da vitalidade do ecossistema que ela continha. Atlântica antes de 1500. Jean de Léry, testemunha ocular do que
Dean (2004) levanta a hipótese de que as trilhas existentes – falava, é enfático a respeito:
usadas já mesmo por integrantes da frota de Cabral na chegada “Os selvagens do Brasil, habitantes da América, chamados Tu-
em 1500, levados através delas pelos indígenas – fossem “passa- pinambás, entre os quais residi durante quase um ano e com os
gens por uma paisagem natural já muito modificada”. Diante, po- quais tratei familiarmente, não são maiores nem mais gordos do
rém, de registros como os de Caminha, Gandavo e Léry, não se que os europeus; são porém mais fortes, mais robustos, mais en-
Frans Post. Alagoa Ad Austrum. Gravura em metal cançam grande proveito” (Gandavo, 1980). Interessante era a ve- pode concluir que a paisagem natural tivesse sido objeto de inter- troncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, ha-
do livro Rerum per Octennium in Brasilien, rificação de que “certo gênero de árvores há também pelo mato venções maiores. Nela, chamava atenção, como assinala Gandavo vendo entre eles muito pouco coxos, disformes, aleijados ou
de Gaspar Barléu, 1647. dentro da Capitania de Pernambuco a que chamam Copaíbas” (1980), “a fertilidade e abundância da terra”, o que só teria sido doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem contar
(Gandavo, 1980). Isso foi no século xvi, pois no xxi a espécie, possível constatar na hipótese de um uso pouco agressivo dos re- a idade pela lunação), poucos são os que na velhice têm os cabe-
Abaixo: também conhecida como pau d’óleo, está praticamente extinta cursos naturais pelos habitantes originais do país. Depois de co- los brancos ou grisalhos, o que demonstra não só o bom clima da
Tamanduá-guaçu. Do livro de Georg Marcgraf, em território pernambucano. No novo mundo da descoberta dos mentar que “os relatos europeus sobre a relação dos (tupis) com terra, sem geadas nem frios excessivos que perturbem o verdejar
Historiae Rerum Naturalium, 1648. portugueses, impressionava a opulência vegetal. Do mesmo mo- o ambiente são dispersos, imprecisos e preconceituosos”, Dean permanente dos campos e da vegetação, mas ainda que pouco se
do a riqueza das águas, de que dá conta, por exemplo, o hugueno- (2004), em sintonia com estudiosos como Ruttan (1998) e preocupam com as coisas deste mundo” (Léry, 1972).
te francês Jean de Léry (1972), que morou na Baía de Guanabara Burke (2001), afirma que os índios “não eram conservacionistas Caminha, aliás, já notara que os selvagens “não comem senão
durante quase um ano, junto aos tamoios, em 1557-1558. Nas suas no sentido de poupar os recursos naturais para as gerações vin- deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos
palavras, “quanto à água das fontes e rios, incomparavelmente douras” – isso, não por descuido, e sim por conta da “certeza ra- que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão
melhor e mais sadia que a nossa, nós a bebíamos sem mistura” zoável sobre a adequação de seus recursos e sua capacidade de de- rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo
(Léry, 1972). Sobre isso também se manifestou Gandavo: “As fendê-los contra os competidores” que possuiriam (Dean, 2004). e legumes comemos”. É claro que o escrivão de Cabral não fazia
águas que há na terra se bebem, são mui sadias e saborosas, por Ou porque, por fatalismo, acreditassem numa vontade divina de- uma avaliação rigorosa de coisa alguma. Mas são dois depoi-
muita que se beba não prejudica a saúde da pessoa, a mais dela terminando o que existia e o que desaparecia no ecossistema. mentos coincidentes, o dele e o de Léry, em épocas distintas e
se torna logo a suar e fica o corpo desaliviado e são” (Gandavo, Caminha, com outro raciocínio em mente, já dizia: “Deduzo que em locais diversos. E que têm muito em comum, por exemplo,
1980); a terra é “regada com as águas de muitas e mui preciosas (os índios são) gente bestial e de pouco saber, e por isso tão es- com o tratado descritivo de Gabriel Soares de Souza (2001), de
ribeiras de que abundantemente participa” (Gandavo, 1980). Suas quiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito lim- 1572, que retrata a exuberância da natureza, a qualidade dos paus,
fontes, no entender dele, seriam infinitas e suas águas faziam pos”. Uma gente que se apresentava com aspecto saudável, im- a pureza das águas, a diversidade biológica da Mata Atlântica,
“crescer a muitos e mui grandes rios (...) que entram no Oceano” pressionando os portugueses – a ponto de Caminha sublinhar seu estado prístino.
(Gandavo, 1980). Gandavo ainda deu conta da abundância de que “os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos Sem visar a uma economia comercial, especializada, as ativi-
marisco e de peixe no âmbito da Mata Atlântica, com a qual “se que não pode ser mais!” –, deveria saber cuidar do recurso básico dades de subsistência dos índios na Mata Atlântica teriam inevi-
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

18 19

tavelmente que causar muito menor impacto ambiental do que as ambientais. A paisagem que os portugueses aqui encontraram, dia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava
dos colonizadores. Dean (2004) insiste, sem dúvida, na impro- não há nenhuma dúvida, exibia uma selva luxuriante, com im- com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra”.
babilidade de que alguma parte das baixadas da Mata Atlântica, pressionante diversidade de fauna e flora e uma população huma- A armada de Cabral partiu sem levar notícias a tal respeito, ape-
com sítios adequados à lavoura, tenha escapado de ser derrubada na de boa aparência. Se não era assim – mas a evidência faz supor sar de Caminha referir que, no primeiro contato com os nativos,
pelo menos uma vez durante a fase de desenvolvimento cultural que era –, Pero Vaz de Caminha, no mínimo, teria sido de preci- na nau capitânea, um destes “fitou o colar (de ouro) do Capitão,
da agricultura itinerante. Esta forma de cultivo, de fato, exerce são muito infeliz. Pelo mesmo processo teriam passado Jean de e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois
pressão sobre o ecossistema. No caso dos povos da Mata Atlân- Léry (um rigoroso missionário da teocracia democrática de Cal- para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra.
tica, sem embargo, pela extensão do território e a presença huma- vino), Gabriel Soares de Souza e outros cronistas dos começos do E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo ace-
na relativamente pequena, não se pode imaginar grandes e irre- Brasil, a exemplo de Cardim (1939). É certo que há quem, como nava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também
versíveis impactos ambientais – muito menos, em toda a vasta o geógrafo William M. Denevan (1992), sugira algo distinto: houvesse prata!”. Setenta anos depois, na mesma linha da espe-
área das baixadas da floresta. Em dez mil anos de ocupação da sel- uma paisagem com alterações mais expressivas. Isto parece mais rança de enriquecimento de Portugal, Gandavo (1980) ainda es-
va, seus habitantes podem tê-la modificado aqui e acolá, como cabível, porém, nas regiões em que predominava a presença dos peculava: “é certo ser em si a terra mui rica e haver nela muitos
sempre fizeram os indígenas. Mantiveram, não obstante, o equi- povos asteca e inca; perde força aparentemente como argumento metais”. O mesmo Gandavo falava também: “além de ser tão fér-
líbrio ambiental. O próprio Dean (2004) reconhece que em 1500 em relação aos nativos da Mata Atlântica. Pelo menos, é assim til como digo, e abastada de todos os mantimentos necessários
os tupis eram capazes de se expandir mais “e ainda não haviam que se pode pensar a partir de quem esteve aqui no século xvi. para a vida do homem, é certo (a terra) ser também mui rica, e
exaurido o potencial produtivo de seu habitat”. Pelo contrário, de- O que não significa dizer que, se a população nativa do Brasil fos- haver nela muito ouro e pedraria, de que se têm grandes espe-
veriam estar longe disso. se dez vezes maior em 1500, por exemplo, não fosse haver uma ranças” (Gandavo, 1980).
Vivendo no nível da subsistência, mas sem ser pobres no sen- destruição perigosa da base biofísica em que ela repousava. Mas Com base nessa ânsia, um analista da psicologia da descoberta
tido socioeconômico moderno (Cavalcanti, 1992), os indígenas isso é pura especulação. Pode mesmo ter havido uma população sublinha que dois grandes impulsos dominavam a idéia que os lu-
não sabiam o que era acumulação. Plantavam, colhiam, pescavam, numerosa em partes do território brasileiro, sem devastação am- sos alimentavam do Brasil: “a ambição do ouro e a sensualidade li-
caçavam segundo suas necessidades, tal como se pode observar biental de relevo (v.g. Roosevelt et al., 1996). vre e infrene” (Prado, 1931). Mas era, segundo o mesmo autor, a
ainda hoje nas aldeias que vivem à margem da civilização branca “cobiça insaciável, na loucura do enriquecimento rápido” (Prado,
no interior da Amazônia (Reichel-Dolmatoff, 1976). Dessa for- 1931) que movia os colonizadores após a “conquista”. Havia, por
ma é que dispunham de tempo livre. Léry (1972) acusa:“Bebam Cobiça insaciável: propósitos da “conquista” outro lado, a necessidade prática de Portugal viabilizar a ocupação
pouco ou muito porém, como não sofrem de melancolia congre- e interesses dos colonizadores de terra tão vasta, procurando dar-lhe uma utilização econômica
gam-se todos os dias para dançar e folgar em sua aldeia”. Essa é a antes que os metais preciosos fossem encontrados. Afinal, a Coroa
realidade de um povo são e alegre, o que se pode atribuir em par- Para entender o que se passou na Mata Atlântica depois do fatal precisava, como diz Furtado (1967), “cobrir os gastos de defesa”
te a uma convivência em relativa harmonia com uma natureza episódio do “descobrimento”, é preciso questionar o que levaria das terras. Se não se dispusesse de uma fonte que provesse o finan-
aparentemente saudável. Caminha, a propósito, oferece um de- uma enorme armada portuguesa, enfrentando todas as dificulda- ciamento da empreitada, o ônus da proteção ao território conquis-
poimento, jornalístico, é verdade, mas autêntico no que o escriba des das viagens marítimas do findante século xv, a cruzar o ocea- tado excederia a capacidade portuguesa de cobri-lo. Não se achan-
percebe: “Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendês- no e ancorar em Porto Seguro. Esse assunto já foi por demais dis- do o ouro sonhado, e sem se tentar a saída da exploração do capital Frans Post. Alagoa Ad Austrum. Gravura em metal

semos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos”. Dispondo de cutido e explorado, não sendo o caso de repetir aqui tudo o que vegetal da Mata Atlântica, “dificilmente Portugal teria perdurado do livro Rerum per Octennium in Brasilien,

tempo, os índios aumentavam naturalmente sua comunicação, in- se sabe. Apenas convém lembrar a permanente (e cada vez mais como grande potência colonial na América” (Furtado, 1967). de Gaspar Barléu, 1647.

clusive no plano sobrenatural, com o ecossistema. Atribuíam “no- intensa) disputa na sociedade, já então, pelo uso e controle dos Na aguda interpretação de Sérgio Buarque de Holanda, com
mes a centenas de espécies para as quais encontraram algum uso recursos da natureza (cf. Castro Herrera, 1996; Crosby, 1993), se- sua diferenciação dos dois princípios que regulariam as atividades Abaixo:

e sobre as quais conheceram os habitats, estações, hábitos e, ainda, ja em escala nacional, seja mundial. Portugal se expandia e, na humanas, simbolizados pelos tipos do “aventureiro” e do “traba- Tamanduá-guaçu. Do livro de Georg Marcgraf,

relações com outras espécies” (Dean, 2004). Dessa forma, e pela busca de acumulação, era levado a incorporar novos territórios a lhador” (Holanda, 1976), o colonizador brasileiro foi da classe do Historiae Rerum Naturalium, 1648.

própria diversidade de povos ocupando a Mata Atlântica, milha- seu diminuto espaço geográfico. A frota de Cabral chegou à Terra primeiro. A empreitada que ele levou a cabo, efetivamente, não
res de espécies da floresta foram catalogados na memória de seus de Vera Cruz confiante de que iria encontrar aqui muito mais do constituiu um empreendimento pensado e sistematizado. “Seu
nativos. A complexidade da floresta como ecossistema, certa- que a parte que lhe cabia segundo a divisão territorial do Novo ideal (foi) colher o fruto sem plantar a árvore” (Holanda, 1976),
mente, não teria passado despercebida aos seus moradores origi- Mundo acertada com a Espanha no Tratado de Tordesilhas (de com um empenho concentrado não na construção de uma socie-
nais. Com toda essa riqueza de informação, os indígenas acumu- 1494). De fato, o que interessava à Coroa portuguesa não eram dade forte, mas na recompensa imediata do esforço. Encontrar
laram conhecimentos de volume considerável, um patrimônio tesouros arqueológicos ou a biodiversidade. O que tinha em men- ouro abundante era só uma das manifestações do espírito de
único que, lamentavelmente, não foi no momento certo aprovei- te eram metais preciosos e outros recursos minerais. Caminha re- aventura. Outras foram muito daquilo que ficou como herança
tado pelos colonizadores portugueses, tendo-se perdido, ao con- vela isso quando em sua carta, dez dias depois da chegada da fro- na personalidade brasileira: um espírito antiecológico, a ânsia de
trário e para sempre, na penumbra do tempo. ta, observa: “Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata (na prosperidade a todo custo (para a sociedade, e não para o indiví-
Pode-se concluir dizendo que a atividade agrícola pré-desco- nova terra), ou outra coisa de metal, ou ferro”. Antes, referindo- duo), a busca oca de títulos honoríficos, de posições e riqueza fá-
brimento, a despeito de problemas que terá enfrentado, conseguiu se a um dos interlocutores que os portugueses procuraram para ceis. Paulo Prado já havia abordado o assunto, apontando o desa-
sustentar a sociedade que dela dependia sem graves alterações saber o que existia em Vera Cruz, escrevera: “ninguém o enten- mor à terra que caracterizava o lusitano, com o que chamou de
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

20 21

“transoceanismo”: “desejo de ganhar fortuna o mais depressa pos- sobre os conquistados. Nessa percepção, a floresta era apenas
sível para a desfrutar no além-mar” (Prado, 1931). A própria in- mais um troféu do saque (cf. Dean, 2004). Ambição, desejo de
vasão holandesa teria contribuído para o reforço do espírito aven- enriquecimento imoderado, sede de metais preciosos: tudo isso
tureiro, uma vez que a espécie de colono por ela trazida para conduzia a busca de ouro, a qual, impossibilitada de materiali-
Pernambuco era recrutada em todos os países da Europa entre zar-se pela aparente inexistência do metal na nova terra, termi-
aventureiros: geralmente “homens cansados de perseguições (que) nou levando os europeus à apropriação do precioso capital con-
vinham apenas em busca de fortunas impossíveis, sem imaginar tido na opulência da floresta. Somando-se a isso sua experiência
criar fortes raízes na terra” (Holanda, 1976). anterior com situações que não eram de natureza selvagem, mas
Já em 1552, o Padre Manuel da Nóbrega, em uma das inúme- de uma natureza domada, concebe-se a alternativa do ataque
ras cartas que escreveu do Brasil, salientava: “De quantos lá vieram, mortífero para submissão da Mata Atlântica aos fins da coloni-
nenhum tem amor a esta terra (...) todos querem fazer em seu pro- zação. Nesse esforço, a virulência do apetite dos conquistadores
veito, ainda que seja a custa da terra, porque esperam de se ir”. será maior até do que o poder de suas armas, como lembra Dean
Algo semelhante é dito em outra carta desse religioso: “Não que- (2004). Ingenuamente, Caminha, em sua carta, indicava a D.
rem bem à terra, pois têm sua afeição em Portugal; nem trabalham Manuel i que “o melhor fruto que (da nova terra) se pode tirar
tanto para a favorecer, como por se aproveitarem de qualquer ma- parece-me que será salvar esta gente”. Salvar como, pois se ela
neira que puderem”. Frei Vicente do Salvador (1918) é até jocoso não parecia à mercê de um desastre (salvo o que os portugueses
na constatação, em 1627, do mesmo atributo dos colonizadores: tramavam)? Nas palavras do escrivão da frota de Cabral, “para se
“Os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra es- nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
tejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, acrescentamento da nossa fé!”. Fé, sim, mas no enriquecimento
se as fazendas e bem que possuem souberem falar, também lhes movido a concupiscência irrefreável.
houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a pri-
meira cousa que ensinam é: papagaio real para Portugal, porque
tudo querem para lá. E isto não têm só os que de lá vieram, mas O processo de exploração da Mata Atlântica
ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não co-
mo senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a Sem nenhuma dúvida, o processo de exploração da Mata Atlân-
deixarem destruída”. tica em seu segmento de Alagoas e Pernambuco (e no mesmo
Era “normal”, portanto, nesse contexto, que, nos propósitos da diapasão do restante do país) encerra uma história de inequívoco
colonização, a Mata Atlântica, com toda sua exuberância indicado- barbarismo: um confisco posto em prática por representantes do
ra de fertilidade, figurasse como nada mais do que uma muralha, imperialismo ecológico europeu. O início do processo se dá com
um obstáculo enorme, de verdade, para o avanço da cobiça insaciá- o corte do pau-brasil – conhecido também, em princípios, como
vel dos portugueses (cf. Freyre, 1985; Dean, 2004). E disso os co- “pau-de-pernambuco”. No século xvi, estima-se que cerca de oi- Frans Post. Alagoa Ad Austrum. Gravura em metal
lonizadores logo se deram conta. Eles teriam que se satisfazer na to mil toneladas de madeira foram do Brasil para Portugal, volu- do livro Rerum per Octennium in Brasilien,
sua ânsia de prosperidade sem custo, na sua busca de riqueza fácil, me que corresponde a uns dois milhões de árvores (Dean, 2004). de Gaspar Barléu, 1647.
com a exploração direta da natureza. Romper a muralha vegetal O número é chocante e pode ser até corrigido para mais. Segue-
que bloqueava seu caminho era o grande desafio a ser enfrentado se, pouco a pouco, a fórmula do saque da biota pela expansão das Página anterior:
(cf. Pádua, 2002), e a saída mais óbvia para o avanço da conquista. plantações de cana-de-açúcar. Nesse cenário, como indica Pádua, Tamanduá-guaçu. Do livro de Georg Marcgraf,
Sobre o tema, o agrônomo Miguel Antônio da Silva, citado a cana avançava segundo um padrão, o normal nas circunstâncias, Historiae Rerum Naturalium, 1648.
por Pádua (2002), oferece eloqüente testemunho: “horizontal predatório, adaptado à realidade específica de cada re-
“Os primeiros colonos portugueses que aportaram a esse gião” (Pádua, 2002). O fogo se usava como parte inescapável do Página 22:
abençoado torrão da América depararam com mateiros de ferti- padrão, reproduzindo um fenômeno, a propósito, que ocorria co- Tamanduá-guaçu. Do livro de Georg Marcgraf,
lidade incrível, verdadeiros tesouros acumulados por séculos e sé- mo meio de moldar e controlar o meio natural e que fora, e con- Historiae Rerum Naturalium, 1648.
culos em solos virgens; esta fertilidade fascinou-os, julgando-a tinuava sendo, do mesmo modo, empregado pelos primeiros po-
inexaurível, e tal foi a causa primordial do fatalíssimo sistema que voadores da América. Os portugueses seguiram a mesma técnica
iniciaram de espoliação das terras, verdadeiro roubo; sistema que dos indígenas, porém em escala muito maior, sem dúvida, e mais
desde os tempos coloniais ficou profundamente arraigado nas impiedosamente, adotando a solução da queima e derrubada co-
nossas práticas agrárias”. mo método preferido sobre qualquer outro (Dean, 2004). E o fi-
De outra parte, convém lembrar que a “conquista”, ou inva- zeram no afã de um enriquecimento veloz, como já se explicou,
são sem resistência do nativo, conferia aos europeus e seus ape- cometendo “todos os crimes que os homens dessa época pratica-
tites insaciáveis o que eles supunham serem direitos absolutos vam para satisfação de suas paixões” (Prado, 1931: 84).
história da mata atlântica

23

Crimes, é claro, não são ações inocentes. Eles foram perpe- tica continuaria a propiciar lucros fáceis, ganhos sem custos, e
trados amplamente na Terra de Santa Cruz, a começar do fato uma transferência real de recursos para a Metrópole. Bem no es-
de que, como lembra Furtado (1967), “a primeira atividade co- tilo do espírito ou princípio do aventureiro.
mercial a que se dedicaram os colonos foi a caça do índio”. Caça Com a queima e devastação da floresta, ficava “uma camada
de gente, ou preação, como diz Andrade (1998), é o que se pode imensamente fértil de cinzas que possibilitavam uma agricultura
imaginar de mais doloroso e desumano como negócio. Mas no passiva, imprudente e insustentável” (Dean, 2004). O recurso às
início do século xvi, isso era facilitado pela própria Igreja Ca- queimadas deveria, lembra Buarque de Holanda (1976),
tólica, que considerava que os índios não possuíam direitos (se- “parecer aos colonos estabelecidos em mata virgem, de uma
quer tinham alma). A coisa só foi remediada, ainda que relutan- tão patente necessidade que não lhes ocorre, sequer, a lembrança
temente, quando o Papa Paulo iii, em 1537, mudou a posição de outros métodos de desbravamento. Parece-lhes que a produti-
religiosa oficial com a encíclica Sublimis Deus. Vale lembrar que as vidade do solo desbravado e destocado sem auxílio do fogo não é
bandeiras paulistas tiveram como principal título de glória “a lu- tão grande que compense o trabalho gasto em seu arroteio, tanto
ta contra a natureza de que fazia parte o índio indefeso” (Pra- mais quanto são quase sempre mínimas as perspectivas de merca-
do, 1931). Por outro lado, como mostra Crosby (1993), a história do próximo para a madeira cortada”.
florestal é, em todo o planeta, uma narrativa de situações de ex- Simultaneamente a esse processo de avanço pela queimada,
ploração e destruição (cf. também Dean, 2004). No caso da cap- aumentava a população de modo persistente na região, o capi-
tura de indígenas, tudo se processou para vantagem do colono. tal se acumulava opulentamente, e a Mata Atlântica sucumbia
Os invasores tinham armas de fogo, experiência bélica e esta- à ganância da colonização. Nenhuma restrição se antepunha ao
vam organizados para a conquista. Os nativos, completamente processo em curso, o que iria ser uma constante, como observa
desarmados, exceto por seus arcos-e-flechas para caçar bichos, Dean (2004), durante meio milênio de gula.
não possuíam nenhum sistema de defesa sólido e tinham suas Ao findar o século xvi, nas estimativas de Furtado (1967), a
tradições sagradas, suas famílias e uma rotina complexa de vida produção de açúcar na colônia deveria superar 2 milhões de arro-
de que cuidar (cf. Crosby, 1993). Além disso, a troca totalmente bas (13,3 mil toneladas), uma cifra apreciável. Talvez menos que is-
desigual de elementos patogênicos entre europeus e brasileiros so, pois Antonil (1997) sugere em 1710 um total de 1,3 milhão de
autóctones, como resultado de fatores biogeográficos e em pre- arrobas. Mas Antonil não deveria ter os dados mais completos da
juízo do último dos dois grupos, aumentava o poder de domi- economia açucareira da época. Pernambuco, de qualquer forma,
nação do primeiro. possuía então 246 engenhos, o que indica uma atividade bastante
Na descrição de Couto (1849), o colono português, em seu ampla e difusa. Em realidade, a informação disponível mostra que
ímpeto de conquistador, ao qual não era oposta nenhuma resis- o açúcar havia se tornado a única atividade econômica de porte,
tência séria, tratava o meio ambiente “com um machado em uma sendo a razão de uma ligação estreita entre a Mata Atlântica e a
das mãos e um tição na outra”. Praticava assim “uma agricultura Metrópole lusitana. O pau-brasil aparecia também aí, mas com
bárbara”, como alguém que “olha para duas ou mais léguas de flo- menor intensidade. O exclusivismo da cana, por outro lado, fez
restas como se elas não fossem nada, e ele mal as reduziu a cinzas com que muitos outros produtos silvestres – a exemplo do índigo
e já lança seu olhar ainda mais adiante para levar a destruição a – que poderiam ter sido coletados, caso os colonos procurassem
outras partes” (Couto, 1849). Foi dessa forma que a “cana come- conhecê-los, ficassem à margem do processo. O índigo (anil) era
çou a reinar sozinha sobre léguas e léguas de terras avermelhadas um recurso nativo domesticado, um corante azul familiar aos ín-
pela coivara. Devastadas pelo fogo” (Freyre, 1985). A forma de fa- dios, que o usavam, extraído de numerosas espécies nativas de
zer isso já fora registrada por Antonil (1997), que indica: depois Indigofera. Apresentava vantagens sobre outras formas de utilização
da escolha da melhor terra para a cana, “roça-se, queima-se e da mata. Era mais simples de explorar e muito menos destrutivo
alimpa-se, tirando-lhe tudo que podia servir de embaraço”. Tirar do meio ambiente do que a cana. Conceição Velloso tratou disso,
tudo que podia servir de embaraço, a destruição, pois, constitui salientando “a grande vantagem do comércio de índigo, compara-
marca firme do primeiro século da colonização e que vai se repro- do a culturas de plantation como a do açúcar”.
duzir sintomaticamente daí por diante até os nossos dias. No co- De qualquer modo, entre todos os produtos plantados para
meço do século xvii, D. Diogo de Menezes, governador da re- render um excedente exportável para a Metrópole, a cana-de-
partição do Norte, escrevia ao rei de Portugal: “Creia v. m. que as açúcar era insuperável, razão por que a história do Brasil nos pri-
verdadeiras minas do Brasil são açúcar e pau-brasil de que v. m. meiros séculos da colonização foi a história do açúcar. Como re-
tem tanto proveito, sem lhe custar de sua fazenda um só vintém” sultado, o avanço do canavial “desvirginou”, no dizer de Gilberto
(apud Prado, 1931). Era gratuito – não custava nada para a Coroa Freyre (1985), o mato grosso da floresta, e “do modo mais cru: pe-
– o patrimônio que se dilapidava. Daí por diante, a Mata Atlân- la queimada. A fogo é que foram se abrindo no mato virgem os
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

24 25

claros por onde se estendeu o canavial civilizador mas ao mesmo que alimentava as fornalhas e da madeira para as construções
tempo devastador” (Freyre, 1985). A devastação se dava também, (Antonil, 1997). Em quarto lugar na lista de fatores favoráveis à
embora em escala menor, pelo uso das ferramentas manuais que atividade canavieira, eram necessárias muitas peças de bons es-
tanto encantavam os índios, o machado e seu simbolismo à fren- cravos e várias juntas de bois com seus carros. “Terra, água, matas.
te. Graças ao escambo com os europeus, com efeito, os indígenas Negros e bois”, conclui Freyre (1985). Da floresta, em quantida-
passaram a usar artefatos de ferro, antes desconhecidos. A respei- de menor, mas não desprezível, o engenho ainda precisava de ma- Frans Post. Alagoa Ad Austrum. Gravura em metal
to, lembra Dean (2004): “É difícil imaginar o quanto deve ter si- deira para produzir cinzas (usadas na purificação do açúcar), para do livro Rerum per Octennium in Brasilien
do gratificante” para os índios “seu súbito ingresso na idade do as caixas de açúcar – de 35 arrobas – em que o artigo era expor-
ferro, o quanto isso foi transformador de sua cultura e o quanto tado, e para os barris de cachaça.
foi destrutivo para a floresta”. Antonil destaca como a casa da moenda dos engenhos possuía
Sendo cultivada com adubação na Ilha da Madeira e em São “teto coberto de telha assenta sobre tirantes, frechais e vigas de
Tomé, a cana-de-açúcar terminava sem requerer o mesmo no paus, que chamam de lei, que são dos mais fortes que há no Brasil,
Brasil. E, em certos lugares, ela podia ser cortada em anos suces- a quem nenhuma outra terra leva nesta parte vantagem” (An-
sivos com dispensa de replantio. O regime de chuvas do litoral tonil, 1997). E ajuntava:
nordestino contribuía para a lucratividade do negócio, descartan- “Parece-me necessário dar notícia dos paus e madeiras de que
do a irrigação. A isso se adicionava o fato estimulante de as espé- se faz a moenda e todo o mais madeiramento do engenho, que no
cies de cana introduzidas no Nordeste estarem “livres das doen- Brasil se pode fazer com escolha, por não haver outra parte do
ças e parasitas que as empestavam nos locais de onde haviam sido mundo tão rica de paus seletos e fortes, não se admitindo nesta
transportadas” (Dean, 2004). Quanto ao uso da irrigação, desne- fábrica pau que não seja de lei, porque a experiência tem mostra-
cessária nos primórdios da colonização, ela se torna hoje obriga- do ser assim necessário” (Antonil, 1997).
tória em muitos dos canaviais pernambucanos e alagoanos. Mu- Era uma riqueza natural sem conta que permitia escolhas tão
dança de condições ambientais? exigentes. A situação se tornava possível pelo sistema português de
Na visão de Antonil (1997), os compradores de engenhos de- concessão de sesmarias de tamanhos espantosos. Graças a isso, os
veriam usar “de toda a diligência para defender os marcos e as águas donos das terras não tinham que se preocupar com um uso parci-
de que necessite, para moer, o seu engenho”. Ainda segundo ele, monioso de seu recurso principal, a natureza, o que era estimulado
para seu sustento, cada engenho deveria dispor, primeiro, de boas pela postura portuguesa de “ser conivente com a expropriação
terras: “As terras boas ou más são o fundamento principal para ter privada sem custo algum para os expropriadores” (Dean, 2004).
um engenho real bom ou mau rendimento” (Antonil, 1997; cf. A técnica de exploração da floresta e de seus solos podia então ser
Freyre, 1985). No caso, eram as famosas terras do massapê, “ter- destrutiva, na visão dos colonizadores, pela razão de que o ecos-
ras de barro gordo” (Freyre, 1985), “terras férteis de cana” (Frey- sistema parecia uma cornucópia inesgotável. Dispensava-se in-
re, 1985). Em segundo lugar, de bastante água para as moendas: clusive o pousio, uma vez que os solos, depois das queimadas,
como registra Freyre (1985), “No Nordeste da cana-de-açúcar, a mostravam-se imensamente férteis (Dean, 2004).
água foi e é quase tudo”. Em terceiro, de matas situadas perto do Na mesma linha de crença na abundância de uma natureza
engenho para a extração de lenha: “ter a lenha mais perto que pu- pródiga, o arado pôde ser ignorado na colônia. O solo não neces-
der ser” (Freyre, 1985). Antonil notava que muitos senhores de sitava dos elaborados serviços de aragem para render mais. Sua
engenho vendiam as terras, por cansadas, ou por falta da lenha limpeza dependia apenas da queimada, que assim facilitava os
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

26 27

trabalhos de cultivo. E era abandonado, tão logo desse sinais de


desvitalização. Com isso, a economia de mão-de-obra pôde ser
marcante. O colono português que não possuísse escravos tinha
condições de levar adiante sua lavoura. A terra, por sua vez, era
concedida gratuitamente. Não havia incentivo, dessa maneira,
para protegê-la, inclusive porque o sistema admitia novas conces-
sões de sesmarias sempre que isso fosse indicado. De fato, haven-
do “consumido toda a floresta primária mais promissora em dada
sesmaria, um donatário costumava vendê-la por uma ninharia e
pedia outra, que normalmente obtinha sem dificuldade” (Dean,
2004). Essa forma simplificada de obter terra, possível quando se
confisca o patrimônio alheio, levava a que se queimassem os me-
lhores matos, e os mais próximos às povoações. Estas, no meio da
abundância de recursos naturais da colônia, terminavam sentin-
do “a falta das madeiras, das lenhas e dos capins”. A tal respeito,
José Gregório M. Navarro (apud Pádua, 2002) assinalava em
1799 que os povoados, cidades grandes, vilas notáveis, etc. funda- chama de “mortos vivos”. Trata-se de um processo biológico nas
dos pelos colonizadores portugueses encontravam-se na situação florestas secundárias, cujas árvores estão lá, mas não são viáveis
de “corpos desanimados. Porque os lavradores circunvizinhos, biologicamente: não se reproduzem por não terem mais poliniza-
que por meio da agricultura lhes forneciam os gêneros de primei- dores ou dispersores das sementes. Esperam apenas a morte chegar.
ra necessidade, depois de reduzirem a cinza todas as árvores, de- Com isso, ocorriam saque e devastação. Simplificação ecossistê-
pois de privarem a terra da sua mais vigorosa substância, a deixa- mica irreversível. Perda irreparável de capital natural. Prejuízos de-
ram coberta de sapé e samambaia (...) e abandonando as suas finitivos para as gerações futuras de brasileiros.
casas com todos os seus engenhos, oficinas e abegoarias, se foram Por cima ainda, Baltazar da Silva Lisboa comentava que a agri-
estabelecer em outros terrenos”. cultura era levada a efeito no Brasil “o mais miseravelmente que é
Terra abundante, nomadismo das queimadas, consumo ir- possível imaginar”. E remetia à má confecção das fornalhas nos en-
responsável de lenha. Florestas desprotegidas. Destruição da genhos, as quais, sem restrições de custos ambientais internaliza-
Mata Atlântica. Uma agricultura sem responsabilidade ambien- dos, consumiam lenha exageradamente, a ponto de, no final do sé-
O beija-flor Phaetornis em Portea leptantha. tal. Pode-se conceber assim o drama da Zona da Mata de Per- culo xviii, para uma carrada de cana se requerer outra de lenha.
nambuco e Alagoas. Dean (2004), de modo algo surpreendente, supõe que a depreda-
Página ao lado: Vale lembrar aqui, com Pádua (2002), que, pela lógica da aven- ção ambiental por esse motivo teria sido “modesta”. Com essa opi-
Euglossinae em flor de Cryptanthus. tura, do raciocínio de Sérgio Buarque de Holanda (1976), e dian- nião não concorda, entretanto, o relato de Antonil (1997), ao infor-
te da opulência da biomassa vegetal, as queimadas devem ter mar que sendo “grosseiras”, as fornalhas sobre as quais repousavam
constituído o método mais barato e eficaz para a exploração da os tachos de caldo de cana transformavam-se em “bocas verdadei-
cana-de-açúcar. Mais eficaz, graças à superabundância de nature- ramente tragadoras de matos”, levando a “horrorosa despesa de le-
za. Mais barato, porque o fator terra tinha custo zero para o em- nhas”, nas palavras de Bittencourt e Sá. Essa também é a opinião de
preendedor. A operação de pôr fogo na mata, ademais, exige me- José Bonifácio de Andrada e Silva. Antonil (1997), ingenuamente
nos mão-de-obra do que retirar o mato mecanicamente; o tempo com a imagem de um ecossistema superabundante, não via aí, po-
gasto em sua realização, de outra parte, é menor, uma vez que o rém, um problema, pois “só o Brasil, com a imensidade dos matos
homem incendeia a floresta e vai trabalhar em outra coisa. Daí a que tem, podia fartar, como fartou por tantos anos, e fartará nos
inevitabilidade da destruição ambiental, prevalecendo aqui o ratio- tempos vindouros, a tantas fornalhas, quantas são as que se contam
nale da economia de rapina, mais certamente do que a lógica da co- nos engenhos da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, que comu-
lônia de exploração. O nativo, por sua vez, não opôs resistência à mente moem de dia e de noite, seis, sete, oito e nove meses do ano”.
invasão do colonizador. Pelo contrário, foi presa fácil, caçada co- O uso do calor gerado por lenha era também malbaratado no
mo anta, onça ou jacaré. As ricas matas, apropriadas alegremente fabrico de tijolos e telhas, do mesmo modo que no preparo da cal
pelo europeu, viravam roçados e logo capoeiras. Seus ecossistemas utilizada em argamassa e no acabamento de paredes. As cidades
originais, simplificados pela ambição comercial, mudavam de mo- e vilas representavam igualmente um consumo elevado de ma-
do irrecuperável. E quando ocorria de a floresta voltar na forma de deira e carvão (Dean, 2004), o que implicava mais destruição de
floresta secundária, o fenômeno produzia aquilo que Janzen (1971) arvoredos. Antonil (1997) menciona as fornalhas de olarias como
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

28 29

ra e esgotadora, arvorando em sistema de produção o machado e síaca Praia de Muro Alto, no Município de Ipojuca, vai ceder lu-
o facho, a derrubada e a coivara, arranca das férteis terras brasi- gar a projetos hoteleiros de resorts para o turismo. Na matinha
leiras os elementos de grandeza e prosperidade das futuras gera- próxima, que sobrevive com alguma imponência na Praia do
ções”. Esse sentimento irá crescer daí por diante, com as diversas Cupe, os organizadores deste livro acabam de descrever para a
formas de utilização do espaço da Mata Atlântica ao longo da his- ciência uma nova espécie de Cryptanthus (Bromeliaceae) que é reve-
tória econômica do país. A introdução do café no Centro-Sul sig- lada na presente obra. Uma ânsia por terras e a exploração des-
nificará a devastação de solos cobertos por florestas primárias que trutiva da floresta, levando-a à condição de recurso não renová-
ainda restassem em pé, o mesmo acontecendo em áreas dos bre- vel, liquidará em sucessão faixas que sobreviviam relativamente
jos de altitude pernambucanos e alagoanos. De igual forma, o de- intactas da Mata Atlântica. Ou seja, sem maiores argumentos e
senvolvimento do transporte ferroviário implicará a derrubada de maneira oportunista, impôs-se um crescimento econômico de
de floresta, inclusive pela exigência de grandes quantidades de desfecho sempre incerto contra florestas milenares, ímpares e ri-
dormentes pelas linhas férreas. Em Pernambuco e Alagoas, matos quíssimas em diversidade biológica. Essa é a herança de uma his-
densos eram cortados para suprir os trens de lenha para alimen- tória de violências constantes, matizadas de furor antiecologista e
tar suas caldeiras – estas seguramente mais eficientes que as dos de ódio insensato à vida selvagem: a história socioambiental da
engenhos do relato de Antonil. Até os anos 1940, quando eu era transformação da Mata Atlântica nos últimos quinhentos anos.
criança, como pude testemunhar, na Great Western – a ferrovia
da Zona da Mata em Pernambuco e Alagoas – só havia locomo-
tivas a lenha. As movidas a petróleo apareceram apenas, como A escravidão e a destruição da Mata Atlântica
grande novidade, no final da década de 1950, quando a compa-
nhia inglesa foi nacionalizada e transformada em Rede Ferroviá- Um dos elementos ponderáveis da tragédia da exploração violenta
ria do Nordeste (rfn). O crescimento populacional e econômi- dos recursos naturais na colonização da Mata Atlântica refere-se ao
co, sem nenhum cuidado de preservação ambiental, representou uso indiscriminado do trabalho escravo, fator de agravamento da
no período republicano acelerada perda da opulência vegetal natureza perdulária com que se levou adiante o projeto de ocupa-
remanescente da Mata Atlântica (Dean, 2004). Reforçando a ção das terras para o cultivo da cana-de-açúcar. Não se trata de
tendência, o programa do álcool combustível (nos anos 1970) querer entrar aqui no interior do sistema da escravidão no Brasil,
agravou os desmatamentos. Foi com essa iniciativa, considerada examinando suas entranhas, assunto que tem sido objeto no país
ambientalmente saudável – por se evitar a queima de combustí- de tantos estudos preciosos em épocas diversas. Segundo Sérgio
O beija-flor Phaetornis em Portea leptantha. desperdiçadoras de “muita lenha de armar, e muita de caldear, e veis fósseis, substituídos pelo etanol da cana-de-açúcar –, que Buarque de Holanda, sem braço escravo, não bastaria “a terra far-
a de caldear há de ser de mangues, os quais, tirados, são a des- quase todas as últimas ilhas de floresta que cobriam os cumes dos ta, terra para gastar e arruinar” de que dispunha o colonizador
truição do marisco, que é o remédio dos negros”. Não há como morros da Zona da Mata de Pernambuco, a que fiz referência an- (Holanda, 1976). De começo, o europeu tentou valer-se do índio
fugir da constatação de se estar diante de um modelo vorazmen- teriormente, desapareceram por completo. para tanto, caçando-o, preando-o, prendendo-o. Todavia, o nativo
te predador da natureza. Com isso, no século xviii, a Mata Com propriedade, Dean refere-se à “nova e terrível ameaça” não estava acostumado ao regime laboral. Andrade (1998) esclare-
Atlântica já tinha reduzido consideravelmente sua extensão – aparecida a partir do lançamento da ideologia desenvolvimen- ce que o desenvolvimento cultural dos nativos não havia atingido
(Dean, 2004). Não obstante, esforços foram feitos, especial- tista no após-guerra – que se vai abater sobre a Mata Atlântica: “a fase da agricultura sedentária”. Eles não estavam preparados pa-
mente a partir do fim do mesmo século, para aproveitamento do “Era uma idéia, na verdade uma obsessão, chamada ‘desenvolvi- ra a empreitada lusitana. Para levar adiante a lavoura da cana, era
bagaço da cana no cozimento do açúcar, poupando-se a mata mento econômico’” (Dean, 2004). Na verdade, mais que isso, era preciso mão-de-obra abundante, mão-de-obra para o trabalho de
(Maia, 1985). Mas eram de pouca significação, apesar do empe- a mania do crescimento, ou “growthmania”, de Mishan (1993), pois preparação e cuidado da vastidão das terras. Não estava em ques-
nho de autoridades como o presidente da província de Pernam- desenvolvimento e crescimento não são a mesma coisa. O pri- tão qualquer crença de superioridade racial do elemento luso.
buco em 1857 (Maia, 1985). meiro pode conter crescimento, mas é essencialmente evolução, Sérgio Buarque a isso se refere quando diz que “outra face bem tí-
Somente em 1810 apareceria alguém realmente preocupado mudança. O segundo, ao contrário, significa necessariamente ex- pica (da) extraordinária plasticidade social (dos portugueses era) a
com a possibilidade de extinções da flora e fauna desse ecossiste- pansão, aumento. Tudo isso vai estar muito ligado a fenômenos ausência completa, ou praticamente completa, entre eles, de qual-
ma. Segundo Dean (2004), Manuel Arruda da Câmara, que des- de extinção da biodiversidade da Mata Atlântica, pois é aí que a quer orgulho de raça” (Holanda, 1976). O fator que influenciava o
creveu inclusive espécies de bromélias endêmicas de Pernambuco maioria das intervenções irá se realizar, com iniciativas como dis- processo, no caso, era a sede desmedida de riqueza. De que resulta-
e Alagoas, como a Aechmea muricata (A. Camara) Mez., e outras be- tritos industriais em Pernambuco e Alagoas, o porto de Suape, a va como problema principal para o colonizador a escassez de mão-
líssimas, a exemplo da Pseudananas sagenarius (A. Cam.) Camargo, construção de hotéis e estradas litorâneas e até projetos como o de-obra, necessária para a cultura da cana, para a fabricação e o
foi o primeiro visionário com tal percepção. A mesma posição é de uma refinaria de petróleo. Tudo isso explicado como fator de transporte do açúcar, para os serviços domésticos dos senhores de
assumida em 1875, de acordo com Pádua (2002), por Nicolau crescimento da economia, de geração de emprego e renda. Uma terra e até para a cultura de mantimentos (Andrade, 1998).
Joaquim Moreira, que reclamava em Indicações agrícolas para os imi- bela reserva florestal que havia a menos de 50 km ao sul do Ao europeu a floresta tropical apresentava-se como um ini-
grantes que se dirigem ao Brasil: “Há 375 anos que uma cultura rotinei- Recife, de uns 200 ha, na desabitada e, por isso mesmo, paradi- migo do projeto de realização do enriquecimento rápido. Cum-
história da mata atlântica

31

pria vencer tal adversário pela colonização agrária. O colonizador


conseguiu isso, como assinala Gilberto Freyre, “destruindo-o”
(Freyre, 1985). Não houve tentativa de adaptação do europeu à
mata, na qual o braço servil executava as ordens do senhor. Or-
dens de destruição. Ao contrário, o escravo negro sabia conviver
com esse meio natural, daí por que se vai encontrá-lo adaptando-
se à floresta, em parte adaptando-a às suas necessidades quando
na condição de “evadido na monocultura escravocrata e latifun-
diária” (Freyre, 1985). Dessa maneira, a cana aristocratiza o bran-
co em senhor e degrada “o índio e principalmente o negro, pri-
meiro em escravo, depois em pária” (Freyre, 1985). É o mesmo
processo que promove o canavial a rei e atribui valor desprezível
à mata. A mercantilização do negro africano, alicerce da obra da
colonização, e da natureza selvagem, um tesouro de riqueza que
parecia inesgotável, embrutece o sistema, conferindo-lhe o ca-
rimbo da devastação dos humanos e dos recursos ecossistêmicos.
Esse carimbo é o de uma exploração econômica estigmatizada pe-
la rapina e pela deformação do homem. E pintada com as cores
da monocultura, do latifúndio, da escravidão, da coivara, da der-
rubada, em que a terra se reduz “a um monturo que se explora
com nojo” (Freyre, 1985).
Com a escravidão e o “colonialismo de exploração intensiva”,
tornou-se impossível desenvolver aqui uma economia campone-
sa como a da Península Ibérica. Com o agravante de que “uma so- O beija-flor Phaetornis em Portea leptantha.

ciedade baseada na mão-de-obra compulsória não (leva) em con-


ta o ambiente” (Dean, 2004). Nessa sociedade, com efeito, na Ao lado:

qual o valor da vida humana é irrisório, conservar recursos natu- Euglossinae em flor de Cryptanthus.

rais torna-se irrelevante, algo absolutamente secundário. O flo-


rescimento da pujante economia do açúcar se dá, portanto, no
âmbito de um sistema que sacrifica a vida de gente (nativos e afri-
canos) a um custo muito alto em termos de destruição da flores-
ta original. Teria valido a pena em termos de resultados? Dean
considera que não, que os custos foram espantosamente despro-
porcionais aos resultados (Dean, 2004). E que os portugueses,
“com suas formas extraordinariamente perdulárias de exploração
dos recursos naturais, (tiveram ganhos) tão exíguos quanto
imensos foram os desperdícios” (Dean, 2004). Restou que o que
as práticas devastadoras serviram para fazer foi constituir uma
fonte da renda que abastou uma elite senhorial cheia de privilé-
gios, assim como a máquina do Estado (Pádua, 2002).
Isso levou a que, por exemplo, no fim do século xviii e co-
meço do século xix, a percepção dos críticos da destruição am-
biental (caso de Antônio Veloso de Oliveira, Baltazar Lisboa e
José Severiano Maciel da Costa) fosse a de que existia um víncu-
lo entre o fim do escravismo e a superação daquela (Pádua,
2002). Conforme a percuciente análise de Pádua (2002),
“o domínio do trabalho servil (era apontado) como uma das
principais causas da rudeza e ineficiência da agricultura brasilei-
ra, impedindo a emergência de uma classe de agricultores cons-
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

32 33

O beija-flor Phaetornis em Portea leptantha. ciente, laboriosa e diretamente envolvida com o melhoramento sob a égide do tipo “aventureiro”, com sua concepção “espaçosa” do das, configurando o que Freyre (1985) apropriadamente chamou
tecnológico e administrativo de sua atividade”. mundo e suas energias dirigidas para um rápido proveito material. de “patologia social da monocultura”. O processo de devastação
Ao lado: Joaquim Nabuco aborda o assunto, mostrando como a relação Agindo “com desleixo e certo abandono” (Holanda, 1976), o aven- verificado foi avassalador, com “o arvoredo mais nobre e mais
Euglossinae em flor de Cryptanthus. do homem com a terra, sob o regime da escravidão, não era a de tureiro, sem uma vontade construtora, não segue regras de em- grosso da terra (...) sendo destruído não aos poucos, mas em
um “consórcio” de ambos; nem de “habitação permanente” da ter- preendimentos metódicos e racionais. Como notou Frei Vicente grandes massas” (Freyre, 1985). Pior: muitas das madeiras derru-
ra; nem de “posse definitiva do solo”. Era de um “triste espetáculo” do Salvador (1918), tudo o que aqui havia se queria levar para a badas não eram utilmente aproveitadas. “Grande parte foi des-
de “luta do homem com o território por meio do trabalho escra- Metrópole, usando-se a colônia unicamente para propósitos gulo- manchada em monturos pela coivara, foi engolida pelas fornalhas
vo”, em razão da qual o solo não adquire vida. Abolida a escravatu- sos “e a (deixando) destruída”. Não se pensava em fazer sacrifícios, dos engenhos” (Freyre, 1985). Outra parte foi levada para se
ra, as mesmas práticas de destruição pela combinação do fogo com mas somente em benefícios excessivos. A própria agricultura esta- transformar em navio e porta de convento no além-mar:
a monocultura prosseguiram, ampliando-se seu escopo, na verda- belecida por Duarte Coelho Pereira, primeiro donatário de uma “O que Portugal retirou de madeira do Nordeste – madeira
de, em direção a outras reservas florestais existentes. Mas isso ape- capitania, a de Pernambuco – que ia da Campina dos Marcos, na gorda e de lei, que a outra lhe dava até repugnância – para (...) toda
nas faz lembrar a máxima de Nabuco de que não bastava pôr fim à histórica cidade de Igarassu, ao norte do Recife, até o Rio São a sua arquitetura voluptuosa (...) forma um capítulo da história da
escravidão: era necessário também “destruir a obra da escravidão” Francisco –, “só com alguma reserva” (Holanda, 1976) poderia ser exploração econômica do Brasil pela Metrópole, na sua fase já para-
(cf. Pádua, 2002). E essa obra não foi geradora tão-só de uma so- chamada por esse nome. Nela, “a técnica européia serviu apenas sitária, que um dia precisa ser escrito com vagar” (Freyre, 1985).
ciedade perversa e vazia de humanismo. Ela igualmente cumpriu a para fazer ainda mais devastadores os métodos rudimentares de Vale salientar que, nos documentos da Biblioteca Pública do
sina de devastação do meio ambiente. que se valia o indígena em suas plantações” (Holanda, 1976). Estado de Pernambuco, encontra-se carta do Marquês de Pombal,
A ocupação da terra pela lavoura canavieira, além do faro da de 6 de dezembro de 1775, “exigindo que do Brasil só fosse para
ganância lusitana, foi conseqüência da extraordinária qualidade Portugal pau-brasil do melhor e ‘em toros grossos’: nada de paus
Balanço do processo: a entronização da entropia do solo de massapê que havia sob o tapete da Mata Atlântica nor- ‘miúdos’ ou ‘bastardos’” (Freyre, 1985). Nos engenhos, como sinal
destina, com sua argila, seu húmus, sua extrema fertilidade, com- de verdadeiro esbanjamento, de um luxo imoderado, faziam-se
Alfred Crosby (1993), em seu estudo sobre o “imperialismo ecoló- pletada pela qualidade da atmosfera. Foi isso que condicionou, cercas com madeira de lei, aquela que Antonil (1997) descreveu
gico”, versa acerca do que ele chama de “Neo-Europas” (“Neo- como talvez nenhum outro elemento, a especialização regional da com tanto entusiasmo. Ou seja, como sintoma de um modelo des-
Europes”, no original) – regiões colonizadas pela imigração européia colonização da América pelos portugueses à base da cana-de- perdiçador, dispôs-se da floresta com a maior desenvoltura. E a
maciça, como é o caso de Argentina, Uruguai, Austrália, Nova açúcar. “Uma vez desbastada (a floresta) de seu arvoredo mais floresta “forneceu coisas demais com facilidade demais” (Stuart B.
Zelândia, Estados Unidos, Canadá. Nessas áreas, prevaleceu clara- grosso (...) fazia gosto plantar cana. Foram essas manchas excep- Schwartz, Prefácio, in Dean, 2004).
mente o tipo de colono chamado de “trabalhador”, da sugestiva di- cionais que tornaram possível a civilização baseada na cana-de- Ladrão de terras, o monocultor não somente acabava com a
cotomia de Sérgio Buarque de Holanda (1976). O espírito desse açúcar que aqui se desenvolveu” (Freyre, 1985). Resultou disso opulência vegetal da floresta. Empobrecia também o solo, favore-
tipo é nutrido por uma ética que “enxerga primeiro a dificuldade a uma dilapidação do patrimônio natural, causada pelo sistema cendo pelo desmatamento a erosão causada pelas chuvas, cujas
vencer, não o triunfo a alcançar” (Holanda, 1976). A exploração monocultor e caracterizada por paisagens deformadas, empobre- águas passavam a correr para o mar levando a camada fértil dos
dos trópicos, a exemplo da Mata Atlântica, pelo contrário, ocorreu cidas, devastadas nas suas florestas. Com águas também degrada- terrenos, sua gordura. Devastando-se as matas e utilizando-se o
fragmentos de mata atlântica

34

terreno para uma cultura única, possibilitava-se que as outras ri-


quezas se dissolvessem na água, se perdessem nos rios. “De-
sapareceu assim aquela vegetação como que adstringente, das
margens dos rios, que resistia às águas, no tempo de chuva, não
deixando que elas levassem o tutano da terra: conservando o hú-
mus e a seiva do solo” (Freyre, 1985). Com sua expansão imperial,
os canaviais uniformizadores da paisagem enfraqueciam sobre-
modo o ecossistema, simplificando-o ao extremo na moldura da
monocultura. Extinguiam a biodiversidade, assoreavam os rios,
conspurcavam suas águas. Ficavam na paisagem, entretanto, de
uma forma que lhes conferia o perfil simpático, de algo estético e
que parecia ter sido sempre nosso. O já citado Ascenso Ferreira
sugere isso no poema “Trem de Alagoas”: “Meu Deus! Já deixa-
mos / a praia tão longe… / No entanto avistamos / bem perto ou-
tro mar... // Danou-se! Se move, / se arqueia, faz onda... / Que na-
da! É um partido / já bom de cortar...” A essência da história é que
a cana “entrou aqui como um conquistador em terra inimiga: ma-
tando as árvores, secando o mato, afugentando e destruindo os
animais e até os índios, querendo para si toda a força da terra. Só
a cana deveria rebentar gorda e triunfante do meio de toda essa
ruína de vegetação virgem e de vida nativa esmagada pelo mono-
cultor” (Freyre, 1985).
Destruídas as matas para a cana, a natureza do Nordeste – e
a riqueza de vida que ela encerrava – perdeu a harmonia daquele
todo que se constituía a partir dos complexos elos de seus com-
ponentes. O que ficou foram, nas palavras magistrais e inigualá-
O beija-flor Phaetornis em Portea leptantha. veis de Gilberto Freyre (1985).
“relações de extrema ou exagerada subordinação: de umas pes-
Página ao lado: soas a outras, de umas plantas a outras, de uns animais a outros; da
Euglossinae em flor de Cryptanthus. massa inteira da vegetação à cana imperial e todo-poderosa; de to-
da a variedade de vida humana e animal ao pequeno grupo de ho-
Página anterior: mens brancos – ou oficialmente brancos – donos dos canaviais,
Euglossinae em flor de Cryptanthus. das terras gordas, das mulheres bonitas, dos cavalos de raça”.
Quando se pensa que, diferentemente das florestas tempera-
das, a destruição das florestas tropicais, com seus “mortos vivos”
(Janzen, 1971), é muito mais irreversível, no âmbito de qualquer
escala histórica, pode-se avaliar o prejuízo que o sistema colo-
nizador da Mata Atlântica provocou em termos de perda de di-
versidade, complexidade e originalidade. Como enfatiza Dean
(2004), o desaparecimento de uma floresta tropical significa
uma tragédia cujas proporções estão além de qualquer compreen-
são ou concepção humana. Trata-se de uma tragédia cuja brutali-
dade se agravava pelo desinteresse do colonizador europeu em
qualquer prática preservacionista, com árvores nobres servindo
para estacas de cercas de engenhos, para portas, para lenha de cal-
deiras, para vigas de casas, para a construção naval. Simultanea-
mente, com a caça ao índio, os portugueses “imprevidentemente
(destruíam) a capacidade dos habitantes nativos de sobreviver
em seu meio”, algo que constituía enorme realização cultural
história da mata atlântica

37

(com uma base de 12 mil anos de estoque de informação), de que


não tinham a menor consciência e a que “não conseguiram dar
nenhum valor” (Dean, 2004).
Thomas Lindley, citado por Dean (2004) em Narrative of a
Voyage to Brazil (Londres, 1805), visitando Porto Seguro em 1802,
comentava: “Em um país que, com o cultivo e a indústria, chega-
ria à fartura com as bênçãos excessivas da natureza, a maior par-
te do povo sobrevive em necessidade e pobreza, enquanto mesmo
a minoria restante não conhece os desfrutes que fazem a vida de-
sejável”. Nesse início do século da independência do Brasil, os
desmatamentos haviam empobrecido o ecossistema, terminando
por pauperizar ainda mais as classes desvalidas. Como resultado,
o país apresentava uma
“população sem nome, exausta pela verminose, pelo impalu-
dismo e pela sífilis, tocando dois ou três quilômetros quadrados a
cada indivíduo, sem nenhum ou pouco apego ao solo nutridor;
país pobre sem o auxílio humano, ou arruinado pela exploração
apressada, tumultuária e incompetente de suas riquezas minerais;
cultura agrícola e pastoril limitada e atrasada, não suspeitando
das formidáveis possibilidades das suas águas, das suas matas, dos
seus campos e praias” (Prado, 1931).
Alfred Crosby (1993) demonstrou que a colonização tem o
caráter de um fenômeno essencialmente ecológico. No caso bra-
sileiro, o impacto ambiental da conquista “só agora começa a ser
avaliado em toda a sua extensão” (Pádua, 2002). E a conclusão a
que se chega é de que a história natural do processo configura
aquilo que se poderia chamar de “conquista biótica do Brasil”
(Dean, 2004). Conquista biótica essa que implica o aniquila-
mento da rica base biofísica do ecossistema da Mata Atlântica, O beija-flor Phaetornis em Portea leptantha.
permitindo a dolorosa constatação, no dizer preciso de Dean
(2004), de que “as hostes ignorantes derrotaram totalmente o Ao lado:
poder da evolução, entronizando, em seu lugar, a entropia”. Euglossinae em flor de Cryptanthus.
Vale sublinhar que o que aconteceu na Mata Atlântica não foi
só a degradação ambiental, mas também uma “catástrofe demo-
gráfica”, especialmente do século xvi à primeira metade do sécu-
lo xvii. Semelhantemente, no espaço das Américas ocorreu o
mesmo fenômeno, talvez o maior desastre populacional que já
houve no planeta (Denevan, 1992). Sinal eloqüente de que o pro-
cesso de colonização foi mesmo de destruição humana, além de
ecológica, no território de domínio ibérico. Denevan comenta até
que o despovoamento indígena em virtude das doenças trazidas
pelos europeus fez com que o meio ambiente, mais vazio agora, e
onde supostamente houvera deterioração no período pré-colom-
biano, se recuperasse em muitas áreas. Mas isso deve dizer respei-
to a territórios com populações mais densas, como os do México,
Peru e Guatemala; talvez mesmo em partes da América do Norte.
O mesmo autor, de qualquer forma, faz a ressalva de que os ín-
dios não mudaram a paisagem original na “extensão dos europeus
pós-coloniais” (Denevan, 1992). Pela contagem por ele feita, a
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

38 39

população das Américas estaria entre 43 e 65 milhões de pessoas pulações nativas criou conflitos ecológicos monumentais. E um
em 1492, com cerca de 8 milhões na zona não andina da América prejuízo totalmente irrecuperável para as gerações futuras, mani-
do Sul (mais de 17 milhões no México e 15 milhões nos Andes). festo no desajustamento de relações entre a cana e a natureza, “por
Esse é um dado capaz de justificar a suposição da existência de ela degradada aos últimos extremos” (Freyre, 1985).
um meio ambiente pouco modificado na região baixa do conti- Outra face do sistema foi a colônia representar para Portugal
nente sul-americano, a qual inclui o Brasil (e a Mata Atlântica). “simples lugar de passagem, para o governo como para os súditos”
Foi nesse sistema ecológico, com muito de prístino em 1500, que (Holanda, 1976). A obra de colonização lusa do trópico brasileiro,
se derrotaram tristemente as forças da evolução da vida, instalan- de fato, sugere um cunho de feitorização, bem mais do que de colô-
do em seu lugar a desordem entrópica. nia de povoamento (Holanda, 1976). A Mata Atlântica, nesse cená-
rio, representava um meio para o projeto de enriquecimento do in-
vasor. Para tomá-la, não lhe custava nada em temos da forma de
Algumas características do modelo de exploração aquisição adotada, completamente contrária à noção jurídica mo-
da Mata Atlântica derna. Comparado ao dos castelhanos em suas conquistas – que
também foram conduzidas com enorme brutalidade, ressalte-se –,
Se uma coisa pode ser salientada de imediato no sistema de explo- o esforço dos portugueses distinguiu-se principalmente pela predo-
ração da Mata Atlântica usado pelos portugueses, trata-se da “in- minância de seu caráter de exploração e rapina. Os hispânicos dese-
trusão do homem no mecanismo da natureza” (Freyre, 1985) que javam, ao contrário, “fazer do país ocupado um prolongamento or-
aí se efetuou. Foi uma intrusão brutal, que impôs com rapidez a gânico do seu. Se não é tão verdadeiro dizer-se que Castela seguiu
civilização do açúcar e sua monocultura: uma rapidez avassalado- até ao fim semelhante rota, o indiscutível é que ao menos a inten-
ra, sem peias que contivessem o crime que se estava cometendo. ção e a direção inicial foram essas” (Holanda, 1976). As colônias de
Violentados morbidamente os princípios da evolução biológica, exploração – com seu extremo da economia de rapina – têm como
seguiu-se uma furiosa simplificação do ecossistema original, reti- atributo, em toda parte, um saque bestial e rápido dos recursos na-
rando-lhe sua extraordinária diversidade e originalidade. Como turais aí existentes. A devastação acompanha o processo, produzin- trópicos – e não representa –, ela é, sem nenhuma dúvida, um O beija-flor Phaetornis em Portea leptantha.
sentenciou, sempre brilhantemente, Freyre (1985), “O drama que do alterações no meio natural. Conforme adverte Pádua (2002): exemplo conspícuo de modelo extremamente predatório.
se passou (...) não veio do fato da introdução da cana, mas do ex- “Isso ocorreu, em primeiro lugar, pelo impacto direto das ati- Pode-se indicar também como feição do sistema de exploração Ao lado:
clusivismo brutal” implantado. Exclusivismo imposto pelo espírito vidades coloniais sobre os ecossistemas previamente existentes, da Mata Atlântica que a adaptação do colonizador ao meio regional Euglossinae em flor de Cryptanthus.
aventureiro que presidiu à conquista, estabelecendo uma economia através de movimentos perturbadores ou francamente destruti- e seu domínio sobre esse mesmo meio “se processaram (...) através
de rapina para benefício de uma casta. A marca dessa economia é vos. Em segundo lugar, pela introdução de espécies exóticas (ani- de ajustamentos (e) de violências, nem sempre fecundas, antes de
ter sido ela uma iniciativa de trabalho contra a natureza – e não, mais e vegetais de maior porte, ervas daninhas, microorganismos um valor todo transitório e este mesmo em benefício de alguns in-
como no caso dos tupis que habitavam a Mata Atlântica, por ne- patológicos, disseminados de forma voluntária ou não), que no divíduos, de algumas famílias ou, quando muito, de alguma classe,
cessidade até de ordem sobrenatural, em sintonia com o mundo contexto desses ambientes perturbados reproduziram-se de for- de um sexo, quase exclusivamente de uma raça, interessada na cul-
vivo, com suas regras, seus ritmos, sua complexidade. A caracte- ma intensa e descontrolada”. tura de uma planta única: a cana-de-açúcar” (Freyre, 1985).
rística do tempo econômico acelerado, envolvido na empreitada Se a Mata Atlântica não representa caso único de destruição Em outras palavras, montou-se uma estrutura exclusivista, cons-
lusitana, em oposição ao tempo ecológico lento e ao ritmo das po- ambiental na complexa história da colonização européia dos tituída de uma única atividade, a monocultura da cana, onde nada
mais interessava além dos ganhos que fluíam para uma classe, a dos
senhores, e para a Coroa. Onde predominava também o exclusivis-
mo da aristocracia e do patriarcado. Não se estabeleceram laços te-
lúricos do branco colonizador com a natureza aqui encontrada. A
ponto de, como salienta Freyre (1985), “O brasileiro das terras de
açúcar quase não (saber) os nomes das árvores (...). A cana separou-
o da mata até esse extremo de ignorância vergonhosa”. Muito dife-
rente da realidade do índio e sua intimidade profunda com o ecos-
sistema. A “distância entre o colono branco e a mata, entre o dono
de terra e a floresta, explica nosso quase nenhum amor pela árvore
ou pela planta da região” (Freyre, 1985). Nosso antiecologismo.
Aqui cabe a pergunta, feita por Dean (2004), sobre a raciona-
lidade de se destruírem os recursos da floresta, especialmente
diante dos resultados tão medíocres da empreitada. O problema é
que o sistema de exploração da Mata Atlântica, levando à sua des-
fragmentos de mata atlântica história da mata atlântica

40 41

truição, significava acumulação de capital não na colônia, mas, co- clusive José Bonifácio, angustiava-se com o fato de os grandes des- Um tema que se precisa aprofundar é a resposta à pergunta: a
mo efeito do capitalismo mercantil incipiente e do colonialismo matamentos no Brasil estarem destruindo muitas espécies da flo- quem pertencia a mata quando chegaram os primeiros “donos” co-
luso de rapina, na Metrópole distante. Na mentalidade da época, ra ainda desconhecidas da ciência (Pádua, 2002). Era uma preo- lonizadores? A quem pertencia a terra brasílica do Nordeste tão ge-
os recursos da natureza não eram interpretados como um capital cupação iluminista, como parte da que existe hoje quanto a não se nerosa em massapê? Sem esse barro viscoso, sem o rico húmus da
natural, de que se deveria extrair apenas o fluxo de renda por ele saber o prejuízo científico que a devastação de florestas acarreta floresta, “a paisagem do Nordeste (...) não teria se alterado tão de-
propiciado, conservando-se e repondo-se o principal para benefí- para o Brasil. Nos primórdios do século xix, inclusive, vale notar, cisivamente no sentido em que se alterou (...) no sentido da cana-
cio de futuros usos. Na verdade, parece que os índios possuíam tal havia a percepção de que a destruição do meio ambiente natural de-açúcar” (Freyre, 1985). Pois foram os indígenas (quer tivessem
visão, pois conheciam a importância, para si, dos recursos ecológi- não era o “preço do progresso”, como muito se discute hoje, mas ou não consciência preservacionista) que legaram o solo fecundo,
cos de que desfrutavam e dependiam vitalmente. Por isso, respei- antes o “preço do atraso” (Pádua, 2002). A destruição da Mata permitindo que a partir da Mata Atlântica se aprofundassem raí-
tavam-nos. Hoje, falta ainda uma percepção generalizada do meio Atlântica foi o preço do atraso e da ignorância. zes agrárias que possibilitaram a transformação de uma feitoria,
ambiente como capital a ser preservado e que mereça o respeito e depois colônia de plantação, em império senhorial de plantadores
a admiração da sociedade. Isso é patente no Brasil, exceto em gru- de cana. A colônia terminou engendrando uma economia de rapi-
pos limitados da população, como alguns do movimento ecologis- À maneira de conclusão na, em que à queimada e à derrubada se juntou a caça e “tudo foi
ta, que, tal como André Rebouças, pensam que “cada árvore que se ficando raro, à proporção que o mato grosso foi desaparecendo pa-
corta é um ‘capital’ crescente que se destrói”. No país, continua a Conseqüência de uma sociedade sem sofisticação mental para ela- ra a cana imperar sozinha” (Freyre, 1985). Processou-se aí uma
prevalecer a mentalidade do enunciado do então senador mara- borar idéias – mais motivada, ao que parece, pelo que Paulo Prado troca do patrimônio coletivo e do bem público pelo ganho priva-
nhense José Sarney, em 1975, assim expressado: “Que venha a po- chamou de “ambição do ouro” e “sensualidade livre e infrene” do de curto prazo dos senhores da terra e pelo ganho da Coroa. À
luição, desde que as fábricas venham com ela” (Dean, 2004). Para (Prado, 1931) –, o processo de colonização teria que desaguar em realidade dessa constatação se sobrepõe o fato de que o tema da
as elites brasileiras, para seus formuladores de política, vale a visão alguma forma daquilo que os iluministas brasileiros classificaram apropriação privada do patrimônio comum será “constantemente
arrogante de que o homem é senhor e dominador da natureza. como “o preço do atraso”. Essa foi – e é – a realidade de um “país repetido na história brasileira” (Dean, 2004), sobrevivendo triste-
Essa visão é a de um dirigente do Departamento Nacional de inculto” (Prado, 1931), onde a “facilidade de decorar e loquacidade mente nos nossos dias. E deixando que se prossiga no mesmo iti-
Obras de Saneamento (dnos), Acir Campos, que, em 1976, refle- derramada, simulando cultura” (Prado, 1931) terminam tomando o nerário de devastação ambiental da própria Mata Atlântica, redu-
tindo o pensamento vigente, cartesiano, revelava todo seu despre- lugar da inteligência e da reflexão organizada. Do mesmo modo, o zida nos dias correntes a pedaços melancolicamente ameaçados
zo em relação ao bioma das lagoas do norte fluminense (as quais que esperar de uma situação do pensamento social brasileiro que, pela obsessão cega do crescimento econômico a todo custo.
se incluem na Mata Atlântica, embora não sendo a de como na América Latina, atribui pouca ou nenhuma importância à É surpreendente que a saga de um desastre como o que foi nes-
Pernambuco e Alagoas): “No ideal de sanear, vencer e corrigir as história das relações entre a sociedade e seu meio natural (cf. Castro te capítulo retratado permaneça ainda como um fato de pouco co-
aberrações da natureza, a comissão (de Saneamento da Baixada Herrera, 1996)? Raríssimos foram os estudiosos que tiveram a lu- nhecimento por parte da sociedade. É inacreditável, ao mesmo
Fluminense) criou alma (...) Aquele caos ecológico, aqueles panta- cidez, por exemplo, de Gilberto Freyre que, em seu belo livro tempo, que uma cadeia de cumplicidade faça com que se permita
nais insalubres, aquele desequilíbrio biológico foi recuperado, gra- Nordeste (de 1985), segue na análise o “critério ecológico”. Ora, isso “aos neo-europeus arrogarem-se herdeiros de uma terra vazia,
ças somente e tão-somente às obras do dnos”. Não pode causar foi em 1937, quando pouca gente tratava de assunto tão atual; tal- uma ‘fronteira’ ilimitada” (Dean, 2004), quando nada disso é ver- O beija-flor Phaetornis em Portea leptantha.
espanto, assim, que, séculos atrás, pessoas vissem a Mata Atlântica vez ninguém mesmo nas ciências sociais, pois se mantém até hoje a dade. A fronteira que aqui havia, e há, era finita e estava habitada
como um inimigo a ser derrotado, um obstáculo à conquista e à ra- lacuna de perspectivas ambientais no estudo da realidade nacional de povos adaptados ao Novo Mundo. O Brasil e a Mata Atlântica, Página seguinte:
pina, uma muralha a ser removida. (com as exceções de praxe, inclusive no que se refere, por exemplo, igualmente, tinham donos: donos ciosos dos bens que possuíam, Euglossinae em flor de Cryptanthus.
Apreensões ambientais, é certo, houve no Brasil desde o sécu- à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ambiente não como proprietários egoístas, pois os indígenas não conheciam
lo xviii – e teriam existido por milênios, antes disso, entre os in- e Sociedade e à Sociedade Brasileira de Economia Ecológica). É in- a propriedade privada, mas como herdeiros do que em inglês se Página 43:
dígenas, possivelmente, embora não como reflexão ecologista nos teressante ver como Freyre explica a noção que tinha do critério denomina “commons”, o bem comunal. Essa gente também domina- Euglossinae em flor de Cryptanthus.
moldes atuais. José Augusto de Pádua, em seu elaborado livro, nos ecológico por ele introduzido: “Amplo critério geral, não só cien- va culturalmente o ecossistema, conhecendo-o na sua intimidade,
dá conta da existência de uma “preocupação intelectual com a de- tífico como filosófico e até estético e poético, de estudo e interpre- nos seus ritmos; sabendo usar suas plantas, seus animais, seus re-
gradação do meio ambiente” (Pádua, 2002) no período anterior tação de uma região; e não um rígido ecologismo geométrico de cursos. Sabendo identificá-los. Tanto que, como diz Dean (2004),
ao século xx. Motivo: o Brasil estava sendo “reduzido aos páramos seita sociológica ou geográfica, segura de poder reduzir problemas “A primeira ou as duas primeiras gerações de invasores portugue-
e desertos áridos da Líbia”, no dizer de José Bonifácio de Andrada de cultura e fatos humanos a fatos de física e de história natural. ses haviam dependido totalmente dos conhecimentos indígenas
e Silva, em representação à Assembléia Constituinte e Legislativa Ou a problemas de geometria” (Freyre, 1985). sobre a Mata Atlântica”. Tal saber indígena pulverizou-se na em-
do Império do Brasil, em 1823 (Pádua, 2002). O botânico ilumi- Não sem razão, o professor de comunicação da Universidade preitada colonizadora dos portugueses, empobrecendo o mundo
nista italiano Domenico Vandelli (1735-1816), que se fixou em de Austin (Estados Unidos), o brasileiro Rosenthal Calmon Alves, do mesmo modo que o faria um tsunami que levasse de uma vez to-
Coimbra durante o governo do Marquês de Pombal, por exemplo, observava em 1977: “Espero que o Brasil não continue a perseguir dos os exemplares de D. Quixote, de Grande sertão: veredas e de Os
publicou a partir dos anos 1780 “vários textos onde criticava a for- seus sábios e celebrar suas mediocridades. As mediocridades de- Lusíadas, todas as obras de Michelangelo, de Da Vinci e de Picasso,
te destruição ambiental que estava ocorrendo em Portugal e nas testam a ciência e os interesses econômicos estão destruindo o va- todas as coleções de periódicos de biologia existentes no planeta.
suas colônias” (Pádua, 2002). Vandelli, que exerceu influência so- lor e a riqueza do Brasil”. Como destruíram em meio milênio de Destruição ecológica. Destruição demográfica. Destruição cultu-
bre uma geração de brasileiros que se formaram em Coimbra, in- exploração bruta da Mata Atlântica. ral. Vitória e entronização da entropia.
história da mata atlântica

43

Referências bibliográficas Hemming, John. 2004. Os índios do Brasil em 1500. Pp. 101-127 in Leslie Bethell (org.).
História da América Latina: América Latina Colonial.Trad. de Maria Clara Cescato. São
Andrade, Manoel Correia de. 1998. A terra e o homem no Nordeste. 6ª ed. Recife: Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão.
Ed. Universitária da UFPE (1ª ed.: 1963). Holanda, Sérgio Buarque de. 1976. Raízes do Brasil. 9ª ed. Rio de Janeiro: José
Antonil, André João. 1997. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte e Rio de Ja- Olympio, (1ª ed.: 1936).
neiro: Itatiaia (1ª ed.: 1711). Janzen, D. H. 1971. Euglossine Bees as Long-Distance Pollinators of Tropical Plants.
Brunhes, Jean. 1955. Geografia humana. Edição abreviada por Jean-Brunhes Dela- Science 171: 203-205.
marre e Pierre Deffontaines. Barcelona: Editorial Juventud. Léry, Jean de. 1972. Viagem à terra do Brasil. Trad. de Sérgio Milliet. São Paulo: Mar-
Burke, Bryan E. 2001. Hardin Revisited: A Critical Look at Perception and the Logic tins, Ed. da Universidade de São Paulo (1ª ed.: 1578).
of the Commons. Human Ecology 29 (4): 449-476. Maia, Nayala de Souza Ferreira. 1985. Açúcar e transição para o trabalho livre em
Cardim, Fernão. 1939. Tratados da terra e da gente do Brasil. São Paulo: Nacional Pernambuco – 1874/1904. Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches (Fasa),
(1ª ed.: 1548). Universidade Católica de Pernambuco.
Casal, Manuel Aires de. 1976. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica Mishan, E. J. 1993. The Costs of Economic Growth. Edição revista. Westport, Con-
do Reino do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São necticut: Praegar.
Paulo (1ª ed.: 1817). Pádua, José Augusto de. 2002. Um sopro de destruição: pensamento político e crí-
Castro Herrera, Guillermo. 1996. Naturaleza y Sociedad en la Historia de América tica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Latina. Panamá: Centro de Estudios Latinoamericanos Justo Arosemena (Cela). Prado, Paulo. 1931. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. 14ª ed. Rio de
Cavalcanti, Clóvis. 1992. Na direção de uma noção de etno/ecodesenvolvimento. Janeiro: F. Briguiet & Cia. (1ª ed.: 1931).
Ciência & Trópico 20 (1): 27-48. Reichel-Dolmatoff, Gerardo. 1976. Cosmology as Ecological Analysis: A View from
Couto, José Vieira. 1849. Memória sobre a Capitania de Minas Gerais (1799). Revis- the Rainforest. Man II: 307-318.
ta do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 11, Suplemento. Roosevelt, Anna et al. 1996. Paleoindian Cave Dwellers in the Amazon: The Peo-
Crosby, Alfred. 1993. Ecological Imperialism. Cambridge: Cambridge University pling of the Americas. Science 272: 373-384.
Press (1ª ed.: 1986). Ruttan, Lore M. 1998. Closing the Commons: Cooperation for Gain or Restrain. Hu-
Dean, Warren. 2004. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica man Ecology 26 (1): 43-66.
brasileira. 5ª reimpressão. Trad. de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Salvador, Frei Vicente do. 1918. História do Brasil. Nova edição revista por Capistra-
Letras (1ª ed.: 1996). no de Abreu. São Paulo e Rio de Janeiro: Weiszflog Irmãos (1ª ed.: 1627).
Denevan, William M. 1992. The Pristine Myth: The Landscape of the Americas in Silva, Leonardo Dantas. 1993. Estudo introdutório: Pernambuco, história e aspec-
1492. Annals of the Association of American Geographers 82 (3): 369-385. tos de sua paisagem. Pp. IX-LXIV in Mário Souto Maior & Leonardo Dantas Silva
Freyre, Gilberto. 1985. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a pai- (orgs.). A paisagem pernambucana. Recife: Massangana, Governo do Estado/Se-
sagem do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio (1ª ed.: 1937). cretaria de Educação, Cultura e Esportes.
Furtado, Celso. 1967. Formação econômica do Brasil. 7ª ed. São Paulo: Nacional, Souza, Gabriel Soares de. 2001. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Belo Horizon-
(1ª ed.: 1959). te e Rio de Janeiro: Itatiaia (1ª ed. completa: 1825).
Gandavo, Pero de Magalhães. 1980. Tratado da terra do Brasil; história da Provín-
cia de Santa Cruz. São Paulo: Itatiaia, Ed. da Universidade de São Paulo (1ª ed. do
Tratado: 1576; 1ª ed. da História: 1826).

Vous aimerez peut-être aussi