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ILHÉUS – BAHIA
2009
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ
ILHÉUS – BAHIA
2009
JOÃO LUCAS IJINO SANTANA
_______________________________________________
Prof. Ms. Clodoaldo Silva da Anunciação
(Orientador)
_______________________________________________
Prof. Ms. Cesário Alvim Pereira Filho
(Parecerista)
_______________________________________________
Prof. Ms. Samuel Leandro Oliveira de Mattos
(Parecerista)
DEDICATÓRIA
A Deus pela fidelidade e infinitas bênçãos derramadas ao longo dos últimos quatro
anos e meio;
A minha família pelo carinho e apoio incondicional de todas as horas, sem os quais
não teria chegado até aqui;
A Sara pela amizade, incentivo e companheirismo que marcarão para sempre a minha
vida, o meu muitíssimo obrigado e eterna admiração;
A Ilka Menezes que, mais do que uma simples secretária, foi uma amiga sempre
disposta a solucionar os problemas burocráticos, demonstrando competência e
profissionalismo no exercício de suas atribuições no Colegiado do LEA;
Por fim, a todos os colegas e amigos que de alguma maneira passaram pela minha vida
ao longo da caminhada acadêmica, o meu muito obrigado.
Epígrafe
“Mas o puro realismo não pode oferecer nada além de uma luta nua pelo poder, que
torna qualquer tipo de sociedade internacional impossível. Tendo demolido a utopia
atual com as armas do realismo, ainda necessitamos construir uma nova utopia para
nós mesmos, que um dia haverá de sucumbir diante das mesmas armas. (...) aqui,
portanto, está a complexidade, o fascínio e a tragédia de toda vida política. A política
é composta de dois elementos – utopia e realidade – pertencentes a dois planos
diferentes que jamais se encontram”.
UE União Européia
Resumo.................................................................................................................................. viii
Abstract................................................................................................................................. xix
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 10
1. ESTADO E SOBERANIA............................................................................................... 12
2. A SOBERANIA NA ATUALIDADE............................................................................. 24
3. PARADIPLOMACIA...................................................................................................... 37
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 53
viii
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
1. ESTADO E SOBERANIA
1
Ibid., p.16.
13
Devemos ter em mente que o Estado, antes de tudo, se constrói socialmente, porquanto
é “obra da inteligência e da vontade dos membros do grupo social, ou dos que nele exercem o
governo e influência” (AZAMBUJA, 1995, p. 3). Ao contrário de outras formas de
organização social – como a família e a igreja – a sociedade política é inescapável, uma vez
que todos os indivíduos estão sujeitos às leis, independente de sua vontade. Azambuja
corrobora esse conceito ao declarar que “da tutela do Estado, o homem não se emancipa
jamais. “O Estado o envolve na teia de laços inflexíveis, que começam antes de seu
nascimento, com a proteção dos direitos do nascituro, e se prolongam até depois da morte, na
execução de suas últimas vontades”2.
Accioly (1978) conceitua soberania como sendo a autoridade que possui o Estado para
decidir sobre questões de sua competência. Para Maluf (2008, p.29), o Estado é definido
como a “autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder”. Já a
soberania traduz-se por poder de império, ou seja, é a capacidade que possui o Estado de
coagir e constranger o cidadão para o cumprimento das regras, leis e princípios estabelecidos
na esfera social e no ordenamento jurídico. Santos (2008), por sua vez, define a concepção
clássica de soberania – onipresente no pensamento de Jean Bodin – como absoluta, perpétua,
indivisível, inalienável e imprescritível.
2
Ibid., p. 4.
14
A soberania4 ou summa potestas pode ser vista sob dois aspectos: o da autonomia e o
da independência ou igualdade dos Estados. O primeiro aspecto se dá no plano interno,
enquanto poder de império. É a capacidade que possui o Estado de gerir os negócios internos
sem qualquer intervenção alienígena. O segundo aspecto reflete-se nas relações que se
estabelecem entre diferentes soberanias. Logo, entre dois ou mais Estados.
Segundo o Direito Internacional, todos os Estados são formalmente iguais, assim
como, segundo a constituição brasileira, todos os cidadãos são iguais perante a lei. Vale
salientar que tal igualdade encontra-se exclusivamente no plano teórico-normativo, já que os
Estados, em sendo entidades soberanas, decidem submeter-se ou não às resoluções
internacionais, segundo seus próprios interesses e circunstâncias. Ademais, o poderio
econômico e militar, e a preponderância política, além de outros fatores, fazem com que
países iguais, in juris, na prática, recebam tratamento diferenciado segundo o seu grau de
‘importância’. A esse respeito, reflete Ferrajoli (apud SANTOS, 2008, p. 49, 50):
3
Vontade geral (tradução livre).
4
José Inácio de Freitas Filho, em artigo intitulado A Relativização da Soberania Estatal, elenca as seguintes
características da soberania: una e indivisível; própria e indelegável; irrevogável; suprema e independente.
Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/referencias/a-relativizacao-da-soberania-estatal>. Acesso
em: 22 abr. 2009.
15
Segundo Kant, povo pressupõe nação, pois é entendido como “(...) a massa dos
homens reunidos numa determinada região, desde que constituam um todo. Esta massa, ou os
elementos desta massa, a quem uma origem comum permite reconhecer-se como unida numa
totalidade civil, chama-se nação (gens)” (KANT apud RUSS, p. 193, 1991).
16
Pelo exposto, denota-se que a palavra povo expressa uma realidade subjetiva-
valorativa, ao passo que população encerra um conceito objetivo e quantificável. Neste caso,
tomaremos o termo população, por ajustar-se conceitualmente aos objetivos do nosso
trabalho. Tal como apontado por Maluf (2008, p. 17), população é a “expressão que envolve
um conceito aritmético, quantitativo, demográfico, pois designa a massa total dos indivíduos
que vivem dentro das fronteiras e sob o império das leis de um determinado país”.
Em Ciência Política, a discussão acerca da origem do Estado é, sem dúvida, das mais
controversas, dada a multiplicidade de teorias e hipóteses levantadas, no intuito de elucidar tal
conceito. Estas teorias classificam-se do seguinte modo: teorias da origem familial do Estado;
teorias da origem violenta do Estado e teorias da origem contratual do Estado. Os Estados
também podem ser classificados a partir do modo como surgiram: formação natural; formação
histórica e formação jurídica. Consideremos o que prepõem cada uma destas hipóteses.
Em contrapartida, Hobbes afirma que o contrato social não resultou da aquiescência dos
indivíduos, mas da necessidade premente de controle e organização social. A tese hobbesiana
parte do princípio de que o homem, ao viver em estado de natureza, precisava criar condições
mínimas para o convívio em sociedade, já que este mesmo homem é originariamente egoísta e
competitivo – Homo homine lupus –. Dito em outras palavras, o contrato social, pelo qual os
cidadãos cedem ao Leviatã (o Estado, deus mortal) a Soberania é antes uma contingência que
uma livre eleição. Se para Rousseau a Soberania reside no povo, para Hobbes ela é o próprio
Leviatã, absoluto e soberano.
A teoria da formação histórica, por sua vez, aponta três modos básicos de formação dos
Estados, quais sejam: a) formação originária – quando um Estado surge sem derivar de outro
preexistente; b) formação secundária – esta decorre da união de vários Estados ou da divisão
de um Estado anterior e; c) formação derivada – quando forças exteriores atuam na
constituição de um novo Estado.
19
Por fim, há que se mencionar a teoria da formação jurídica. Esta teoria é dicotômica,
uma vez que os doutrinadores se dividem entre aqueles que identificam o nascimento de um
Estado a partir do momento em que o mesmo é dotado de constituição, e aqueles que
acreditam ter o Estado o seu nascimento no momento em que recebe o reconhecimento da
comunidade internacional. Contudo, essa é uma questão menor, já que tal divergência não
afasta uma corrente da outra, posto que ambas identificam o surgimento do Estado sob o
aspecto jurídico.
O crivo da história nos mostra que as concepções de Estado mudaram bastante ao longo
dos séculos, atendendo aos imperativos sociais de cada época. Na antiguidade, o Estado é
forjado dentro da religião e vice-versa. Prova disto é a formação de inúmeros Estados
teocráticos, a exemplo do Egito e do Estado hebreu. É recorrente nesse período, a divinização
da pessoa do monarca. Neste período ele próprio era a personificação do Estado, pois era
dotado de prerrogativas temporais e espirituais, tornando-se o representante direto de Deus na
terra, quando não o próprio Deus. Neste tempo histórico, os Estados eram, via de regra,
divididos em castas e a mobilidade social era praticamente inexistente. O Estado era, antes de
tudo, um meio de contenção das tensões sociais e visava à manutenção do status quo.
Neste período, nominado Idade Média, a igreja romana exerce a proeminência política
no mundo ocidental, através da teoria da investidura divina e da indivisibilidade dos poderes
espiritual e temporal. Eram os papas quem coroavam e destituíam os reis, declaravam guerra,
selavam a paz e extinguiam ou criavam reinos, segundo o alvitre e a conveniência política de
cada um. Vive-se, então, a era da personificação do Estado na pessoa do soberano, dentre os
quais, o chefe da igreja era o sumo sacerdote e árbitro inconteste das disputas políticas.
Em sua filosofia finalística, Maquiavel prega que, se preciso for, o soberano deve-se
utilizar de meios moralmente reprováveis para obter os resultados políticos desejados. Sua
concepção vulgarizou-se como a teoria dos “fins justificam os meios”. O referido autor
explica que:
[...] a experiência nos faz ver que, nestes nossos tempos, os príncipes que mais se
destacaram pouco se preocuparam em honrar as suas promessas; que, além disso,
eles souberam, com astúcia, ludibriar a opinião pública; e que, por fim, ainda
lograram vantagens sobre aqueles que basearam as suas condutas na lealdade
(MAQUIAVEL, 2007, p. 84).
E prossegue afirmando
Assim, devemos saber que há dois modos de combater: um, com as leis; o outro,
com a força. O primeiro modo é próprio do homem; o segundo, dos animais. Porém,
como o primeiro muitas vezes mostra-se insuficiente, impõem-se um recurso ao
segundo. Por conseguinte, a um príncipe é necessário valer-se dos seus atributos de
animal e de homem (MAQUIAVEL, 2007, p. 84).
21
Para Maquiavel a política é essencialmente exercício de poder que, às vezes, ocorre por
meio da força. Neste sentido afirma que “o príncipe deve fazer por onde alcançar e sustentar o
poder: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos elogiados [...]” (MAQUIAVEL,
2007, p. 87). Seu pensamento – crivado de idiossincrasias – sustenta a personificação do
soberano, este, depositário da soberania estatal.
Em síntese, não se pode dizer que sua filosofia política seja imoral, mas sim amoral.
Uma teoria finalística que tem como princípio basilar o divórcio entre a política e a moral.
Neste universo gravita a obra de Maquiavel, sempre citada e criticada por inúmeros
pensadores ao longo dos últimos quinhentos anos.
5
Antigo regime (tradução livre)
22
O modelo de Estado comunista, por sua vez, propõe uma solução radical. Este é o
cerne do totalitarismo, o qual se apresenta sob as mais variadas formas, tais como o fascismo,
o nazismo e o comunismo. Ainda que apresentem orientações político-ideológicas distintas, o
eixo que une esses modelos teóricos é a elevação do Estado à condição de protagonista na
vida política, sendo o individuo absorvido por ele. À luz de tais concepções, o cidadão deixa
de ser servido pelo Estado, passando a servi-lo. Tudo pelo Estado, através do Estado e para o
Estado. Sobre isso, Figueiredo designa que Estado totalitário é “toda e qualquer organização
de poder em que o autoritarismo e a centralização estão fortemente presentes”6.
6
Ibid., p, 69.
23
Este turbilhão de transformações desatado com a queda do muro de Berlim teve como
conseqüência inevitável o enfraquecimento do poder do Estado. A predominância da
economia sobre a política, o crescimento vertiginoso das grandes corporações multinacionais,
o avanço do crime organizado e de práticas delitivas em nível mundial, as recentes correntes
migratórias e o surgimento de novas formas de organização política e social constituem
alguns dos grandes desafios do Estado moderno, demandando, portanto, uma releitura do
conceito clássico de soberania estatal. Neste sentido, o capitulo seguinte discute a Soberania
sob dois aspectos: o da globalização e o da diplomacia.
24
2. A SOBERANIA NA ATUALIDADE
7
Ibid., p, 48.
26
Se por um lado o crime organizado representa uma ameaça ao Estado de direito, ele
vem sendo constantemente confrontado por meio de ações conjuntas dos Estados. Neste
sentido, diversos países e grupos de países, a exemplo dos Estados Unidos e da União
Européia, vem estabelecendo estratégias supranacionais de controle e monitoramento de
atividades delitivas no intuito de conter o avanço do crime organizado transnacional. Apesar
dos fluxos e refluxos, a cooperação entre Espanha e França no combate ao grupo ETA,
constitui exemplo de exitosa cooperação internacional em nível institucional, uma vez que
envolve não somente os respectivos governos, mas também as polícias e agências de
inteligência dos dois países.
No segundo caso:
Consoante Font e Rufi (2006, apud RIBEIRO, 2008, p. 52) o Estado tende a ceder
parte de sua soberania a dois tipos de instâncias: as “instâncias superiores” constituídas por
organizações paraestatais, transnacionais e demais agentes de globalização e as “instâncias
inferiores” constituídas por regiões e cidades. “[...] a dupla cessão de soberania [...] ocorre
porque o novo sistema mundial outorga aos Estados menor capacidade de intermediação do
que em épocas anteriores, apesar do Estado continuar sendo imprescindível, em muitos
sentidos, inclusive para a própria globalização”. Assim, Ribeiro (2008, p. 52, 53) afirma que:
28
Santos (2008, p.54), por sua vez, advoga a plena “compatibilidade entre o conceito de
soberania e integração ao afirmar que
Cabe ainda ressaltar o papel de destaque exercido pela defesa dos direitos humanos na
discussão sobre a inalienabilidade da soberania estatal. Santos (2008) afirma que a tendência
atual é de integração dos direitos humanos na ordem internacional. Segundo o referido autor,
“é cada vez mais forte o discurso em torno da possibilidade de que organismos, como a ONU,
interfiram no âmbito do Estado para a resolução de conflitos ou problemas dessa natureza” 8.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e as dezenas de convenções e acordos
internacionais em defesa do tema são uma prova inconteste do forte apelo exercido pela
defesa dos direitos humanos junto à sociedade civil mundial. Deste modo, torna-se imperativo
aos Estados o respeito às liberdades fundamentais e a integridade física e moral de seus
cidadãos.
8
Ibid., p, 26.
29
9
Cuba, Coréia do Norte e Mianmar são exemplos de Estados que sofrem o isolamento da comunidade
internacional devido aos constantes desrespeitos aos Direitos Humanos. Tais ações, contudo, não estão isentas de
questões de ordem política e estratégica, sobretudo no que concerne a Cuba, país que desde 1959 mantém
relações conflituosas com os Estados Unidos da América.
30
Tais princípios, gestados a partir do final do século XVIII ganham impulso no Pós-
Segunda Guerra Mundial. Com o fim do conflito, a diplomacia passa a exercer papel de
destaque nas relações internacionais, à medida que os países – receosos da eclosão de um
novo conflito mundial, desta vez de proporções apocalípticas, haja vista o destrutivo potencial
nuclear demonstrado pelos Estados Unidos no lançamento das bombas atômicas sobre
Hiroshima e Nagasaki – substituem a lógica belicista por esforços diplomáticos, no sentido de
arquitetar uma sociedade internacional menos anárquica, tendo como princípio basilar o
Direito Internacional.
Por esta razão, pode-se afirmar que a diplomacia implica, em certa medida, elemento
de flexibilização da Soberania, uma vez que as diversas convenções e acordos celebrados,
tanto em nível bilateral quanto multilateral, vinculavam os Estados contratantes a obrigações
internacionais – pacta sunt servanda – as quais se constituem, grosso modo, em limitação do
poder discricionário dos Estados signatários.
31
Situados esses aspectos, convém analisar o percurso percorrido pela diplomacia para
compreender como esta ‘arte’ desenvolveu-se e consolidou-se ao longo dos séculos, atingindo
o seu estágio atual.
Segundo Biancheri (2005, p.17), “a diplomacia é inconstante e difícil de definir na
essência [...]”. Ao contrário do que possa parecer, o autor não afirma a impossibilidade de
apreender cognitivamente a diplomacia, mas sim a sua dificuldade de delimitação, dada a
abrangência e a multiplicidade de conotações que o termo encerra. Contudo, o próprio
Biancheri aponta que diplomacia é a forma como um dado país – entre várias opções
possíveis – procede a suas escolhas nas relações internacionais e assevera que o objetivo da
diplomacia é a busca do acordo. Por sua vez, para o Houaiss (2008), a diplomacia consiste na
“condução dos negócios estrangeiros de uma nação, seja diretamente por seus governantes,
seja por seus representantes acreditados em outro país ou órgão internacional”, ou, “ciência ou
arte de negociar, visando à defesa dos direitos e interesses de um país perante governos
estrangeiros”.
O termo embaixador – do latim ambactiare – designa o cargo de mais alta distinção
dentro da hierarquia diplomática, sendo superado apenas pelo de chanceler, que equivale a
ministro das Relações Exteriores. Embaixada, palavra de mesma raiz etimológica, designa
tanto o local de residência e trabalho do embaixador, quanto a comitiva que o acompanha em
missão. Os primeiros registros de atividades diplomáticas substanciais e sistemáticas ocorrem
na Grécia antiga. Durante a Guerra do Peloponeso, que opôs os persas aos atenieneses e
espartanos, houve uma intensa atividade diplomática que culminou com a aliança militar
celebrada entre a Liga do Peloponeso, sob a liderança de Esparta e a Liga de Delos, tendo a
frente Atenas.
10
Francesco Sforza, duque de Milão, foi o primeiro chefe de missão diplomática permanente, com sede em
Gênova no ano de 1455.
32
das Relações Exteriores da França, no ano de 1626, considerado por muitos o pioneiro dos
ministérios nos moldes modernos.
Com o fim da Segunda Grande Guerra, a vida internacional passou por um longo
processo de multilateralização que se iniciou com a constituição das Nações Unidas, a que se
seguiu o surgimento de inúmeras agências internacionais reguladoras – as chamadas agências
ou organismos da família da ONU –. Não obstante, a tendência de multilateralizar as relações
internacionais sofreu um longo interstício, devido ao antagonismo que opôs a União Soviética
aos Estados Unidos. Com a quebra da bipolaridade, a sociedade internacional volta a se
configurar de forma multilateral, malgrado o unilateralismo protagonizado pelos Estados
Unidos na defesa de seus interesses. A consequência prática do avanço do multilateralismo é a
crescente demanda de recursos humanos por que passam a maioria dos países membros da
comunidade internacional.
todo indivíduo que participar de uma decisão entre Estados, seja ela sobre a
concessão de canais de televisão, sobre os níveis de emissão de gases nocivos ou
sobre os destinos da paz ou da guerra no Oriente Médio, representará os interesses
do seu país e, portanto, desenvolverá atividade diplomática e, desta forma, no que
diz respeito, fará política externa (BIANCHERI, 2005, p. 126).
11
AMORIM, Celso L. N. Conferência proferida no IEA em 2 de abril de 1998.
36
políticas públicas dos governos centrais voltadas para a promoção do bem estar das
comunidades locais, aliada a forte influência exercida pela revolução telemática, concorrem
para a reconfiguração interna do Estado e das formas de exercício da diplomacia. Este novo
cenário encerra uma tendência de descentralização e democratização das esferas de poder.
Destarte, o monopólio político dos Estados-centrais passa a ser questionado, abrindo-se
terreno a experimentações de toda a ordem.
Uma destas experimentações diz respeito a paradiplomacia: o crescente envolvimento
de governos não-centrais nas Relações Internacionais, fenômeno polêmico que tem se
intensificado ao longo das últimas décadas, fornecendo um novo elemento de análise do
Estado e das Relações Internacionais. Vale ressaltar que tal fenômeno é sintomático do
processo de reestruturação e redistribuição de competências por que passa o Estado moderno.
A seguir, sistematizaremos alguns conceitos de paradiplomacia à luz de alguns autores
e analisaremos os elementos de cooperação e conflito da paradiplomacia a partir de uma visão
dialética, avaliando suas repercussões no Brasil.
.
37
3. PARADIPLOMACIA
12
Thomas Hobbes tinha uma visão bipolar da sociedade. Concentrava num pólo a figura do indivíduo (ou da
infinidade generalizada dos mesmos) e no outro, a do Leviatã (Estado). Nem a família nem gerações e gerações
marcadas por uma potência hereditária, enfim nada, era considerado relevante na estrutura de uma organização
social que não as duas partes do contrato social (SILVA, 2006).
13
O Quebec é uma região autônoma, localizada no sudeste do Canadá, que possui língua, costumes e legislação
diversa do restante do país, constituindo exemplo suis generis de ação paradiplomática.
39
Por sua vez, Salomón e Nunes (2007) propõem uma divisão segundo as dimensões de
atuação dos entes paradiplomáticos. A primeira, “dimensão institucional”, compreendendo a
estrutura paradiplomática per si. A segunda, “dimensão substancial”, abrangendo a agenda e
os instrumentos utilizados. Logo, qualquer administração, seja ela local ou regional, que se
proponha a desenvolver ações no plano internacional, deve levar em consideração essas duas
dimensões no planejamento de suas ações.
40
Num contexto onde “a nova lógica internacional apresenta-se marcada pela ascensão
das localidades [...]” (RIBEIRO, 2008, p. 59), em função da nova configuração do sistema
internacional, a qual favorece e estimula a participação direta do poder local nas relações
internacionais (RODRIGUESb, 2004 apud RIBEIRO, 2008, p. 120), a política doméstica
encontra-se de tal modo presente na formulação e condução da política externa que, por vezes
confunde-se com aquela. Além disso, a política externa, não raras vezes, é um meio de
perseguir objetivos de política doméstica, atendendo a demandas e pressões de grupos
internos. Por esta razão, Silva (2006, p. 76) declara ser “[...] infrutífero debater se é a política
doméstica que influencia as relações internacionais, ou vice-versa. A resposta é óbvia:
‘ambas, às vezes’. Logo, as perguntas mais pertinentes seriam em que momento e como
(tradução nossa)14.
Considerando esta reflexão, percebe-se a correlação de elementos endógenos e
exógenos nas ações dos Estados na seara internacional. Neste sentido, Brigagão (apud
CEZÁRIO; ANDRADE, 2005, p. 5) afirma que “a dinâmica complexa da globalização aponta
para o fortalecimento do poder local, que em muitas circunstâncias se revela um espaço de
mediação eficaz entre as demandas dos cidadãos e o caráter transnacional”.
14
It is really fruitless to debate whether domestic politics really determine international relations , or the reverse.
The answer is clearly “Both, sometimes”. The more interesting questions are “When?” and “How?14. Op. Cit.
(p,76).
42
integração entre si para evitar o renascimento do revanchismo que poderia causar novos
conflitos” (GAMBINI, 2007, p 9).
Vale salientar que a existência de um sistema democrático é condição sine qua non
para o desenvolvimento da paradiplomcia, haja vista o caráter centralizador e não-
participativo dos regimes autocráticos, independentemente de sua orientação ideológica. Este
fator inviabiliza o fortalecimento do poder local, suprimindo a diversidade de ‘vozes’ e
‘pensamentos’, em nome do pseudo-interesse nacional. “Acreditamos que sistemas
federativos flexíveis são positivamente predispostos a lidar com problemas de
interdependência global e regional de maneira mais efetiva que sistemas autoritários ou
unitários” (DUCHACEK, 1990, p. 4)15. Em seu trabalho, Duchaceck (1990) observa que as
experiências paradiplomáticas mais avançadas e exitosas no mundo encontram-se em países
democráticos altamente industrializados, a exemplo da Suíça, da Alemanha e do Canadá.
15
“We may tentatively suggest the flexible federal systems are positively predisposed to handle the problems of
global and regional interdependence more effectively than unitary or authoritarian systems”
16
Exemplos de redes de cidades: Sister Cities, European Sustainable Cities, Eurocities, International Network
for Urban Development, World Association of Major Metropolises, World Federations of United Cities,
International Union of Local Authorities, Organization of Islamic Capitals and Cities, Mercocidades, etc.
43
17
Alta política (tradução livre)
18
baixa política (tradução livre)
44
19
A escola realista aborda as Relações Internacionais a partir da perspectiva estatal, outorgando aos Estados
soberanos total protagonismo, demonstrando uma visão cética quanto a atuação dos “ novos atores” – OIGs,
ONGs e unidades subnacionais.
20
Las provincias podrán crear regiones para el desarrollo económico - social y establecer órganos con facultades
para el cumplimiento de sus fines y podrán también celebrar convenios internacionales en tanto no sean
incompatibles con la política exterior de la Nación y no afecten las facultades delegadas al Gobierno Federal o el
crédito público de la Nación; con conocimiento del Congreso Nacional...”20
45
De um lado, nota-se que a entrada em cena das entidades subnacionais provoca uma
atomização da ordem internacional complicando ainda mais o funcionamento do
sistema internacional, porquanto os Estados centrais não vêm com bons olhos a
perda progressiva de soberania exclusiva em matéria de política externa e a ação
internacional das regiões pode ser vista como um atentado à soberania nacional e à
integridade territorial. Por outro lado, o Estado central é consciente de que sua
política estrangeira lhe escapa cada vez mais com os diversos fenômenos da
mundialização, da internacionalização e da segmentação crescente das suas
atividades, das burocracias e das redes profissionais.
21
“Os Estados, Distrito Federal e municípios, no âmbito de suas competências, poderão promover atos e celebrar
acordos ou convênios com entes subnacionais estrangeiros, mediante prévia autorização da União, observado o
art. 49, I, e na forma da lei”.
22
Terminologia utilizada por Mariana de Barros e Silva para designar atores subnacionais.
46
23
A proposta de criação de um Estado independente no Rio Grande do Sul não chega a ser uma ameaça à
integridade da federação, não se enquadrando, portanto, aos exemplos de Canadá e Espanha.
47
O caso do Rio Grande do Sul configura uma ação paradiplomática de uma unidade
subnacional new voice. No caso da prefeitura de Porto Alegre, sua ação pode ser classificada
como Política Externa de Cidade, a partir de uma atuação efetiva em numa Rede de Cidades
City Network. Os três exemplos citados anteriormente: São Paulo, Rio Grande do Sul e Porto
Alegre, independente do tempo cronológico e dos âmbitos de atuação, seja estadual ou
municipal, vistos sob a ótica do conceito de new voices, configuram-se em ações
paradiplomáticas.
Ribeiro (2008) identificou 72 municípios brasileiros com maior ou menor grau de
inserção internacional, mediante o desenvolvimento de atividades paradiplomáticas, segundo
critérios estabelecidos em sua pesquisa24. No universo de cidades estudadas, 20 encontram-se
na região norte-nordeste e 52 na região sul-sudeste. Vale ressaltar que o nível de
desenvolvimento e institucionalização das atividades paradiplomática varia muito de cidade
para cidade. Assim, as 72 cidades apontadas no estudo não formam um todo homogêneo, já
que apresentam graus distintos de desenvolvimento institucional. Consoante a autora, apenas
19, das 72 cidades pesquisadas, possui órgão específico encarregado de gerir e planejar
atividades paradiplomáticas, seja através de gabinetes e assessorias ou demais órgãos
específicos. Não obstante, percebe-se a atuação internacional de municípios que ainda não
possuem órgãos específicos de R.I..
“As regiões Norte/Nordeste juntas mostraram ser detentoras de apenas 24% dos
órgãos municipais de RI implantados no Brasil, enquanto a seleção dos municípios para a
pesquisa [...]” (RIBEIRO, 2008, p. 131). Dentre as causas apontadas pela autora para explicar
o baixo índice de participação internacional dos municípios do norte e nordeste estão as
disparidades sócio econômicas que caracterizam o regionalismo brasileiro.
No caso específico da América do Sul, percebe-se que a experiência de integração
regional corporificada no MERCOSUL serve de elemento motivador da ação internacional
dos municípios do subcontinente. A aproximação dos povos e dos países que integram o eixo
sul-americano ocorre em dois níveis. Entre Estados soberanos, primeiramente, e entre
unidades subnacionais (cidades, estados, províncias, departamentos, etc.). A rede
MERCOCIDADES, da qual fazem parte atualmente 68 subunidades brasileiras (municípios),
24
Os municípios pesquisados por Ribeiro (2008) em tese de mestrado intitulada ‘Globalização e Novos Atores:
as cidades brasileiras e o desenvolvimento da paradiplomacia’, atenderam a pelo menos um dos critérios a
seguir: a) ser capital de estado brasileiro; b) apresentar volume populacional não inferior a 500 mil habitantes; c)
ser sede ou importante cidade de região metropolitana; d) possuir centro universitário de relevância nacional; e)
ser cidade histórica/com vocação turística de visibilidade internacional; f) ser município fronteiriço de
importância regional e estratégica; g) apresentar decisores com presença em eventos específicos voltados para as
relações internacionais.
51
BRASIL
Alvorada Florianópolis Niterói Santos
Araraquara Fortaleza Osasco São Bento do Sul
Barra do Ribeiro Foz do Iguaçu Paranhos São Bernardo do Campo
Bela Vista Goiânia Penápolis São Caetano do Sul
Belém Gravataí Piracicaba São Carlos
Belo Horizonte Guaíra Porto Alegre São José do Rio Preto
Brasília Guarulhos Praia Grande São Leopoldo
Camaçari Indaiatuba Recife São Paulo
Campinas Jacareí Ribeirão Preto São Vicente
Caxias do Sul Joinville Rio Claro Sumaré
Contagem Juiz de Fora Rio de Janeiro Suzano
Coronel Sapucaia Limeira Rio Grande Taboão da Serra
Cuiabá Londrina Salvador Uberlândia
Curitiba Macaé Santa Maria Várzea Paulista
Diadema Mauá Santana de Parnaíba Viamão
Dourados Maringá Santa Vitória do Palmar Vitória
Esteio Mossoró Santo André Vitória da Conquista
Fonte: www.mercociudades.org
25
Os membros da rede MERCOCIDADES são considerados unidades subnacionais, segundo a Paradiplomacia.
26
Ver lista completa de cidades no anexo I.
52
27
Disponível em: www.mre.gov.br. Acesso em: 12 jan. 2009.
28
Escritório de Representação do MRE no Rio de Janeiro (ERERIO); Escritório de Representação do MRE no
Rio Grande do Sul (ERESUL); Escritório de Representação do MRE na Região Nordeste (ERENE), em Recife-
PE; · Escritório de Representação do MRE em São Paulo (ERESP); · Escritório de Representação do MRE no
Paraná (EREPAR); · Escritório de Representação do MRE em Santa Catarina (ERESC); · Escritório de
Representação do MRE na Região Norte (EREMA), em Manaus-AM; · Escritório de Representação do MRE em
Minas Gerais (EREMINAS).
53
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 11 ed. rev. São Paulo:
Saraiva,1978.
ARNAUD & CAPELLER in: SOUTO, Claúdio; FALCÃO, Joaquim. (Org.). Sociologia &
Direito: textos básicos para a Disciplina de Sociologia Jurídica. 2 ed. atual. São Paulo:
Pioneira Thomson Learning, 2005.
AZAMBUJA. Darcy. Teoria Geral do Estado. 34 ed. São Paulo: Globo, 1995.
FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.
JOUVENEL, Bertrand. Les Débuts de L’État Moderne: une histoire des idées politiques au
XIX siècle. Paris: Fayard, 1976.
57
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
NUNES, C., Paradiplomacia e Relações Internacionais: o caso do Rio Grande do Sul. Tese
de Mestrado, UFRGS, Porto Alegre, 2005. Disponível em: <http://
www.lume.ufrgs.br/handle/10183/6142 - 11k>. Acesso em: 15 jan. 2009.
SOUTO, Claúdio; FALCÃO, Joaquim. (Org.). Sociologia & Direito: textos básicos para a
Disciplina de Sociologia Jurídica. 2 ed. atual. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.
59