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APPIAH, Kwame Anthony ³Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura´ p c Rio de
Janeiro: Contraponto, c
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Introdução
Este trabalho tem como objetivo expor e analisar alguns pontos do atual debate
sobre políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior No Brasil o assunto tem
sido discutido em âmbito federal, no entanto, tratar o tema em dimensão nacional
resultaria em um projeto um tanto além dos recursos que dispomos para nossa presente
e breve pesquisa Optamos então por delimitar nosso foco no estado de São Paulo
Discutir políticas de ação afirmativa necessariamente nos levará para um debate
sobre as relações raciais em nossa sociedade, deste modo, abordando um tema ainda
tratado como tabu por muitos, no campo intelectual e na sociedade em geral, apesar do
vasto número de estudos que continuam sendo produzidos sobre o assunto No Brasil,
país cuja sociedade é evidentemente marcada pela miscigenação, costuma-se negar a
existência de questões relacionadas a raça, nota-se principalmente nos meios de
comunicação um certo temor em ³racializar´ o debate A ideia bastante cara a Gilberto
Freyre na qual em nosso país há uma convivência harmônica entre os grupos de
diferentes origens étnicas, que possibilitou o advento do mito da democracia racial,
apesar de já criticada por muitos outros grandes estudiosos, ainda faz seus ecos
Aliás, caberia expor que este contexto é apenas mais um indício do mecanismo
do preconceito de cor no país, visto que superar a imagem da miscigenação como algo
positivo foi, em todos os países que conseguiram implantar políticas públicas de ações
afirmativas, o primeiro passo a ser dado Porém, aqui, o discurso da miscigenação
positiva é justamente o discurso promovido não só pela atual administração do Estado,
mas também pela academia Nesta última década, reafirmou-se intensamente nos meios
de comunicação de São Paulo o discurso de que nos entendemos pela mistura Enquanto
que as academias paulistas adotam uma postura complacente, retraindo-se e isentando-
se da responsabilidade social de promover o debate
Assim, parte das críticas contrárias às ações afirmativas se norteia pelo
argumento onde tais políticas levariam a uma racialização da sociedade brasileira, ou
seja, criaríamos um problema que não tínhamos, ou que havíamos superado há pouco
mais de cem anos com a abolição da escravidão
Com base nos autores que utilizamos para o desenvolvimento deste trabalho
veremos que as políticas afirmativas, ao contrário do que dizem muitos de seus
detratores, vêm com o propósito de desracializar nossa hierarquia social, possibilitando
o acesso de minorias raciais, atualmente marginalizadas no exercício da cidadania, ao
ensino superior público, o qual consiste, entre outras coisas, em uma via de mobilidade
social A sociedade atualmente se encontra racializada porque nunca se desracializou,
reconhecer o fato e agir politicamente por uma mudança que possibilite igualdade de
oportunidades para negros e brancos deve ser pauta da agenda nacional se quisermos
efetivamente atingir o ideal de sociedade democrática onde diferença não seja sinônimo
de desigualdade
O discurso da violência perpetua-se ao camuflar seus mecanismos de exclusão,
legitimando-os na medida em que os nega O racismo é um mecanismo de exclusão
social Mas isso não esta claro para a sociedade brasileira Tanto que, o discurso de que
as cotas raciais podem ³racializar´ a sociedade brasileira, tão veiculado na mídia, supõe,
justamente, que raça não existe, tanto biológica, quanto sociologicamente Ora, se
aceitar que o racismo existe, teremos que aceitar que raça existe, pelo menos enquanto
mecanismo de exclusão social O inverso também é válido, pois aceitando que raça não
existe, seu mecanismo de perpetuação, o racismo, também não existiria
Raça existe sociologicamente, ela se torna corpo, carne, no ato da discriminação
Raça se firma nas práticas sociais, historicamente gestadas e concebidas
Para sustentar os argumentos que serão expostos no decorrer do trabalho, vimos
a necessidade de uma breve contextualização histórico-sociológica do processo de
marginalização social da população negra no Brasil
r è çõ raca no ra r aordag tórca
pela omissão da burguesia Mas principalmente pela sua ação consciente em um projeto
de exclusão estrutural do negro Afirma que a população negra habitava as áreas
centrais da cidade e exercia os ofícios que posteriormente foram valorizados pelo ideal
do progresso, sendo deslocada de suas habitações e ocupações ao passo que se
executava o programa eugenista de embranquecimento como condição para o
progresso2
Esta perspectiva, segundo Andrews, deixa claro o processo de exclusão
deliberada, afirmando a iniciativa negativa em vez da passividade apática, como faz
Fernandes Andrews nos mostra que nas três primeiras décadas do século XX eram
comuns anúncios de empregos nos quais ser branco era uma das exigências para ocupar
a vaga3 Com o tempo tais anúncios substituiriam a palavra branco por ³boa aparência´,
evidentemente um eufemismo
O trecho do relatório citado acima versa sobre a região na época conhecida como
Várzea do Carmo, atual Parque Dom Pedro, então reduto da população negra Esta área,
periférica no contexto da cidade desde fins do XIX, crescia dia a dia com a chegada de
negros e libertos de todos os cantos Expulsos de suas moradias pela reforma urbana,
deixavam para trás bairros historicamente ocupados pela população negra, como os
famosos Bráz, Bexiga e Barra Funda
A Várzea do Carmo demarcava a fronteira urbana da cidade, que até então se
limitava aos rios Tamandatueí e Tiête Interessante notar que desde c, a população
negra vem sendo deslocada para as regiões fronteiriças da cidade, abrindo caminho para
a urbanização, habitando aquilo que hoje se poderia chamar de periferia
Mais significativo ainda seria notar quem é o relator do documento, bem como
sua trajetória política De Secretário de Segurança Pública do Estado, alçou-se a
Governador do Estado de São Paulo chegando à presidência da República Federativa do
Brasil Washington Luís seguira a mesma trajetória que a ampla maioria dos políticos
republicanos: positivista, maçon, herdeiro dos barões do Café da região de Campinas,
modernizador convicto, bacharel em Direito, formado pelo Largo de São Francisco Seu
Reconhecemos a importância da contribuição de Florestan Fernandes Tanto que é a partir da crítica a
sua obra que fizemos este recorte histórico Em item posterior deste trabalho analisaremos com mais
acuidade a obra deste autor
3
George Reid Andrews, , . - & /0111203114 p cc-cc
discurso tem o potencial de sintetizar qual fora a política de Estado dedicada à
população negra ao longo de toda a Primeira República 4
Para falarmos de políticas afirmativas hoje, é fundamental entendermos a
discriminação racial e o tratamento desigual aos quais os negros foram submetidos em
um sistema político norteado por ideais de igualdade a todos os homens,
independentemente de classe, cor ou religião
A escravidão evidentemente é uma marca negativa na história do país, e
submeteu os africanos e seus descendentes a uma vida indigna, negando juridicamente
aos escravizados a condição de seres humanos5 Na sociedade escravista o negro livre ±
tanto o alforriado, quanto o nascido de ventre livre ± raramente ocupou alguma posição
de prestígio, e quando o fez na maioria dos casos resultou de relações paternalistas ou
de apadrinhamento bastante comuns na ordem escravocrata, deste modo podemos
identificar casos de ascensões individuais e não de grupo Sendo assim, seria incorreto
dizer que no Brasil monárquico e escravista o negro esteve no poder junto com o
branco Porém, neste caso estamos falando de uma sociedade onde a discriminação
social com base na cor era juridicamente permitida
Abolida a escravidão e oficializados os ideais políticos republicanos de
liberdade, igualdade e propriedade o que atrasaria os negros na disputa por posições de
prestígio na hierarquia social? A resposta a essa questão, em parte, sustentará nossa
argumentação a favor das políticas de ação afirmativa
r `
4
Apud Andrews
5
Por uma questão de delimitação do tema não entraremos no mérito da luta por autonomia, formas de
negociação e resistência escrava, que comprovadamente existiram e até mesmo possibilitaram, em alguns
momentos, concessões de direitos e amansamento nas relações entre senhores e escravos
Este item sintetiza idéias do livro O+ 56%
.0178903:8, de Lilia M Schwarcz
Antes de prosseguir, é importante abrir um parêntese e apontar para a diferença
conceitual entre o termo raça, usado pelos cientistas naturalistas do século XIX e
começo do XX, e o termo usado por nosso grupo neste trabalho Para estes cientistas
raça consiste em características genéticas herdadas pelos indivíduos, as quais
determinam o caráter moral e consequentemente o lugar, que ocupará o portador de tais
características, na escala evolutiva da humanidade e na hierarquia social Para nós raça
consiste em um conceito sociológico, em uma categoria de análise que nos permite
entender o processo de estratificação social no Brasil, onde as características físicas dos
indivíduos e o grupo de pertencimento influenciam na posição que ocupam na sociedade
e na disputa por mobilidade social
No entanto, estes cientistas naturalistas aos quais me refiro foram os primeiros
intelectuais nascidos no Brasil, e em grande maioria, formados nas primeiras
instituições de ensino brasileiras Estes homens de ciência ± termo usado por Lilia M
Schwarcz ± tinham como principal objetivo pensar identidade nacional do brasileiro e
apontar os caminhos que levariam o país ao rol das nações civilizadas Neste contexto
os primeiros pensadores brasileiros refletiriam sobre a questão nacional, o que para eles
necessariamente passaria pela questão racial Cito os nomes de alguns dos intelectuais
aos quais me refiro: Silvio Romero, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e seus discípulos
Entre c e c3 no Brasil vigorou um pensamento racista com base em teorias
evolucionistas, naturalistas, deterministas, darwinistas sociais, as quais atribuíram os
problemas da nação a condição biológica dos brasileiros, ou seja, a explicação do atraso
estava no fato do país ser habitado por grande número de negros índios e mestiços,
comportando então uma população não-branca, degenerada, herdeira dos vícios morais
das raças inferiores Era preciso cuidar da raça para garantir uma nação moderna e
civilizada, deste modo, o branqueamento da população foi a saída encontrada pelos
nossos ilustres pensadores e pelas elites políticas nacionais da primeira república
Branquear o brasileiro seria meta para as próximas décadas, e seria inclusive pauta
política Para os racistas mais otimistas o branqueamento ocorreria naturalmente, pela
miscigenação, onde as características da raça superior prevaleceriam sobre as da
inferior, por outro lado, a seleção natural eliminaria os degenerados que não se
adaptariam a nova civilização e pereceriam
O assunto será retomado e aprofundado mais adiante
Nelson do Vale e Silva & Carlos Hasenbalg, +
capítulos 5 e
£
Em São Paulo e nos estados do Sul, o incentivo à imigração de europeus foi uma
saída encontrada pelas elites locais para resolver tanto o problema da mão-de-obra,
quanto o problema da raça Nas primeiras décadas de industrialização em São Paulo os
brancos seriam os escolhidos para ocupar os postos que se abriam no mercado de
trabalho
Neste sentido cabe ressignificar o que foi a Abolição O ato da assinatura da lei
que pôs fim ao trabalho escravo não esgota em si mesmo Dois processos
complementares compõem o que na verdade foi um longo processo: primeiro a pressão
popular, movida principalmente pela onda de violência desencadeada por escravos, que
acuou os políticos brasileiros, forçando-os a reagir definitivamente e, segundo, o
processo político de reação que pôs fim à escravidão A abolição engloba estes dois
movimentos, seu significado se dá tanto na ação popular quanto na reação das elites
Maria Helena Pereira Toledo Machado, em seu livro ³O plano e o pânico´, desenvolve
esta perspectivac O próprio título de sua obra expressa sua concepção Focando seus
estudos na região de Campinas, área política e econômica mais importante do país entre
as décadas de c e cc, Machado expõe o pânico das elites frente a onda de
violência escrava Mostra também que a reação a esta violência já se delineava décadas
antes da Abolição, colocando em prática um plano de ³eliminação do elemento negro´
que iria muito além do ato político sentenciado em c3 de Maio de c Não caberia
aqui tentar dar conta do que fora este processo de resistência escrava que inviabilizou a
escravidão Mas cabe ressaltar a reação engendrada
Apoiados no pensamento eugenista, os homens de Estado da República
Federativa do Brasil, empreenderam uma política oficial de segregação racial
Interessante notar que, ao subirem ao poder, ainda em c, a primeira atitude tomada
pelos republicanos foi execução do ressarcimento pela Abolição, fazendo com o que o
Estado bancasse não só as viagens transoceânicas dos imigrantes europeus e asiáticos,
mas também criasse uma rede de hospedagem, triagem e cadastro dos trabalhadores que
aqui chegavam Esta atitude política ganha outra dimensão se lembrarmos que o
principal custo da escravidão era justamente o transporte, ou seja, o tráfico Não era a
manutenção do escravo que definia seu valor altíssimo, mas sim o custo do tráfico Ao
estabelecer a imigração como política de Estado, os republicanos transferiram este custo
Ana Maria Rios & Hebe Maria Mattos O2
c
Maria Helena P T Machado O& &*
°
± ainda mais alto no caso dos imigrantes devido às condições de viagem ³menos
mortais´ ± aos cofres públicos E isto faz parte do processo da Abolição, é este seu
significado político Assim, este ato político, exemplifica do que se trata quando
falamos em política de embranquecimento
Chama-nos a atenção o fato do advento de tal pensamento coincidir com a
abolição jurídica das desigualdades entre os homens Com o fim da escravidão e da
ordem monárquica as elites políticas e econômicas garantiriam por mais algumas
décadas seus privilégios se apoiando no argumento da superioridade da raça O ideal de
branqueamento tem lugar entre grande parte dos pensadores nacionais até o final da
década de c2, no entanto, durante este período a ideia de inferioridade do negro se
manifesta nas várias esferas da sociedade reforçando a posição desigual na qual se
encontra o negro e o branco na disputa por posições de prestígio na hierarquia social do
Brasil pós-abolição
Vale ressaltar também que, foi justamente ao longo das décadas de c e c3,
que a maior parte da estrutura urbana das grandes metrópoles brasileiras se cristalizam
Estas cidades praticamente explodem ao longo destas décadas Desta data em diante,
sua infra-estrutura cresce em um ritmo muito mais lento E, neste período de
industrialização inicial e ressignificação do trabalho, acessar a infra-estrutura urbana
significa, exatamente, acessar a cidadania em período de definições da posição social E
este é um momento decisivo, principalmente em São Paulo A cidade cresce
vertiginosamente, as oportunidades de trabalho surgem, profissionais liberais se
estabelecem, famílias se estruturam, áreas residenciais são cedidas pelo Estado, escolas,
hospitais, transportes, enfim, todo o planejamento urbano é definido neste período
Após a década de trinta, a redivisão global do trabalho imposta pela crise de 2 e pelas
duas grandes guerras, condena o Brasil à condição de economia periférica, deixando
cada vez mais limitada as chances de experimentar um crescimento urbano tão
vigoroso Portanto, São Paulo, enquanto metrópole vivera seu período decisivo
justamente ao longo das décadas de c e c3
Neste sentido, a política de embranquecimento consistiu, fundamentalmente, na
promoção da migração constante e compulsória da população negra para as zonas
periféricas, justamente onde ficavam alijadas do acesso à infra-estrutura urbana e,
consequentemente, da possibilidade de praticarem efetivamente a cidadania republicana
Condenados à constante migração, atuando na abertura da fronteira urbana, a população
negra é alijada estruturalmente do acesso aos serviços públicos e ao trabalho formal É
nesta época, em São Paulo, que a população negra é condenada a condições de vida que
lhe vitima até os dias de hoje Viver na marginalidade, à margem da cidade, da
sociedade e dos direitos civis, lhe condenou a carregar um signo, marcado a ferro e fogo
pelo Estado: o signo do estereótipo
Deste modo, após a década de c3, mesmo o racismo deixando de existir
enquanto teoria científica, a discriminação apoia-se na sua decorrência imediata: o
estereótipo O preconceito e a discriminação contra o negro persistem, nos costumes, e
como nos mostra Roger Bastide, na ausência de um sistema de reciprocidade nas
relações entre negros e brancoscc Entretanto, o discurso oficial do Estado, em nome de
um projeto de mobilização nacional, regido sob a batuta da ditadura do Estado Novo,
adota o discurso da miscigenação positiva, canto em verso e prosa as teorias de Gilberto
Freirec2
cc
Roger Bastide & Florestan Fernandes, . , - & p c
c2
CANDIDO, Antonio VO
V!) .# Prefácio In HOLANDA, Sérgio Buarque
de è
pág -2c
c3
Bastide & Fernandes, Idem p c5
nacionais naquele momento Na cidade de São Paulo que se industrializava, os europeus
formariam a demanda de mão-de-obra fabril Contudo, os negros estariam abaixo dos
imigrantes formando um exército de reserva de mão-de-obra, e só começariam a
aparecer em número relevante nas fábricas na década de c3, quando a imigração já
havia cessado e as primeiras gerações de europeus tinham adquiridos recursos
necessários para uma vida melhor, formando, inclusive, a nova burguesia poucas
décadas após a chegada da primeira geração Os negros foram para as fábricas quando
estas já não eram mais interessantes para grande parte dos brancos que se tornaram
proprietários, comerciantes, pequenos e médios empresários ou profissionais liberais
As atividades que sobravam para os negros eram trabalhos domésticos,
policialesco, enquanto militar ou bombeiros de baixo escalão, trabalhos informais, em
geral serviços mal remunerados ou que os colocavam em situações de risco, trabalhos
aos quais a maioria dos brancos tinha a opção de não se submeter
dados levantados por Silva dizem respeito ao grau de instrução, tempo de estudos,
ocupação profissional, salário, habitação
O autor nos mostra que das pessoas entrevistadas que possuem anos ou mais
de estudo: menos de 2% são pretos, menos de 4% pardos e aproximadamente cc% são
brancos No item realização profissional, vemos em profissões de status mais elevados
como técnicas, científicas religiosas, artísticas, administrativas, liberais, proprietários:
mais de ¼ ocupadas por brancos, menos de c2% por pardos e menos de % por pretos
Enquanto em ocupações de baixo status (manuais e agropecuárias) pretos e pardos
aparecem quase 5% a mais que brancosc Reproduzindo uma afirmação do autor: / 4
2 ;
"
c Tais
desvantagens em oportunidades de empregos bem remunerados, acesso à educação,
habitação digna, serviços de saúde, agem cumulativamente de uma geração para outra
Carlos Hasenbalg, neste mesmo livro ressalta que negros não apenas têm
menores possibilidades de ascensão social que os brancos da mesma origem social,
como também, encontram maiores dificuldades em manter as posições já
conquistadasc
Vimos então que na sociedade republicana, do trabalho livre e remunerado, a
discriminação racial adquire novas funções e significados no novo contexto social A
variante raça tem um papel na transmissão intergeracional das desigualdades sociais, e o
preconceito e a discriminação racial servem aos mecanismos de distribuição de direitos
Tal fato, em parte, justifica a necessidade da promoção de políticas públicas a favor
desta parcela da população historicamente desfavorecida Por isso a importância de se
reconhecer o racismo enquanto fenômeno social e historicamente reproduzido
c
Hasenbalg & Silva, Idem p c5c
c
Hasenbalg & Silva, Ibidem p c3
c
Hasenbalg & Silva, Op cit p c
è açõ raca no ra a contrução d or tan
rnand
-
A construção de uma sociedade de classes no Brasil foi extremamente
defeituosa e incompleta Longe de romper com a velha sociedade aristocrática,
estruturada na escravidão e na dominação senhorial, com uma economia agrária
exportadora, a constituição da sociedade de classes aqui se deu mantendo-se muitas
relações desta sociedade estamental
Como marca desta velha estrutura oligárquica, temos a manutenção de padrões
tradicionais das relações sociais, e, portanto a manutenção de relações advindas da
sociedade escravocrata O que o autor procura mostrar é fundamentalmente que mesmo
em uma sociedade de classes, onde teríamos a consolidação de uma sociedade
democrática com relações igualitárias fundadas em concepções republicanas,
conservou-se uma estrutura racial desigual O negro não dispunha dos mesmos direitos
republicanos e democráticos Para Florestan, há um padrão de isolamento econômico e
sócio cultural do negro e do mulato que não condiz com uma sociedade aberta e
competitiva
Segundo o autor, as raízes históricas da degradação social do ³homem de cor´
no seio do novo sistema sócio-econômico é ³a perpetuação indefinida de padrões de
ajustamento racial que pressupunham a vigência de critérios anacrônicos de atribuição
de status e papeis sociais ao negro e ao mulato´(Fernandes, c: 24)
Em um primeiro momento, quando escreve sobre o assunto para o trabalho da
UNESCO, Florestan acreditava que o desenvolvimento da sociedade de classes faria
com que a desigualdade racial desaparecesse para dar lugar a desigualdade de classe
Assim, o negro participaria da luta política nesta nova sociedade sem que as questões
raciais o colocassem em desvantagens Porém, Florestan revê esta posição e percebe que
a ordem racial manteve-se estagnada Os ajustamentos dinâmicos do ³homem de cor´ e
da raça branca mantiveram-se em inércia, que se evidenciava, historicamente, na
perpetuação estagnadora da ordem racial
Segundo o próprio autor:
u
Esta conservação de uma estrutura oligárquica e patrimonialista, impunha ao
negro certos papéis na sociedade, e quando estes não eram cumpridos, eram reprimidos
e condenados socialmente Havia uma intolerância social como um meio de impedir a
movimentação dos negros que procuravam se organizar para lutar contra a
desigualdade Cita o autor um movimento de organização dos negros que se fazia na rua
Direita em São Paulo, que era condenada e os seus participantes tachados de
ressentidos, pessoas que guardam rancor por serem pretos, que querem fazer afronta e
mostrar despeito
Como na sociedade estamental, esperava-se um certo comportamento por parte
do negro Que este fosse obediente e submisso, soubesse reconhecer ³seu lugar´ na
sociedade, e caso tentassem lutar contra isso, deveriam ser logo colocados em seu lugar
O negro que não aceitasse este ³papel´ deveria sofrer as conseqüências, os brancos não
aceitavam que os negros se comportassem de maneira diferente do que eles esperavam,
e esta expectativa era calcada na obediência e submissão das relações entre senhor e
escravo
O autor vai nos mostrar como o mito da democracia racial foi uma construção
social utilizada para mascarar uma realidade, com objetivos claros de conservação do
poder pela elite branca dominante Além disso, este mito impedia que o assunto da
desigualdade viesse à tona na sociedade, uma vez que vivíamos em uma ³democracia
racial´ não havia porque discutir a desigualdade
Com a desculpa de que havíamos construído uma sociedade justa impediu-se o
negro de acessar seus direitos e em nome desta justiça social prendeu-se o negro nos
grilhões do passado Foi esta falácia de termos alcançado um regime republicano na
convivência entre negros e brancos, que possibilitou o surgimento do mito da
democracia racial
Parecido com o que vemos hoje por alguns setores da sociedade que se
recusam a discutir a questão da desigualdade racial, alegava-se que não abordar as
questões da desigualdade racial era melhor para o negro, pois agitar estas questões só
serviria para ³prejudicar o negro´ e quebrar a ³paz social´
Assim, a democracia racial foi uma imposição, que segundo Florestan
assentava-se sobre três planos principais O primeiro era uma culpabilização do negro
Na medida em que vivíamos em uma sociedade aonde não havia desigualdades, eram os
negros que não se esforçavam suficiente para saírem de uma situação inferior Isso
ajudava ainda a reforçar estereótipos com ³negro é preguiçoso´, ³negro só pensa em
bebida´ ³negro só sabe reclamar e não faz nada para melhorar de vida´
O segundo, inocenta o branco de qualquer obrigação ou responsabilidade pela
situação gerada com a escravidão e uma política deliberada depois da abolição de
marginalização e exclusão dos negros Esta concepção tinha o intuito de livrar a classe
branca escravocrata de uma culpa objetiva, e evitar o enfrentamento da questão racial
Isso porque a política abolicionista conservadora, não visava subverter a estrutura racial
da sociedade de castas, pretendia-se proceder a emancipação preservando-se todas as
regalias e o poder de dominação da ³raça branca´
Terceiro, cria uma falsa consciência sobre a realidade racial brasileira imposta
de cima para baixo, como algo essencial à respeitabilidade do brasileiro, ao
funcionamento normal das instituições e ao equilíbrio da ordem nacional O mito da
democracia racial acabou caracterizando a ³ideologia racial brasileira´, perdendo-se por
completo as identificações que o confinavam à ideologia e às técnicas de dominação de
uma classe
O mito da democracia racial serviu, portanto, para esconder uma realidade e
impedir que se travasse no país uma discussão e uma disputa sobre a questão racial Nas
palavras de Florestan a democracia racial
V< !
V #
&
) V # =2
%
! V
#
#(Fernandes, Florestan c: p 23)
Podemos ver ainda hoje os traços nefastos desta construção, uma vez que nas
discussões a respeito das políticas afirmativas, e, portanto, das cotas raciais, os
opositores destas insistem em utilizar este mito para desqualificar e combater as cotas
Mesmo diante das evidências da desigualdade racial em nosso país, o mito da
democracia racial continua arraigado em uma grande parcela da população, e ainda hoje
encontra seus defensores nos meios políticos e acadêmicos
Mas aqui cabe uma colocação feita por Florestan que continua fundamental
para uma disputa em torno das desigualdades raciais e das cotas nas universidades O
autor nos diz que apenas a atuação organizada e intransigente do negro será capaz de
reverter o quadro descrito Não há outro meio de lutar contra a desigualdade se não
através da organização dos negros, de uma disputa aberta e clara que envolva
formulação e atuação prática
£
- è açõ raca no ra r aordag ocoógca
c
Por ³negros´ entendemos a soma das classificações de cor do IBGE ³pretos´ e ³pardos´, definição
utilizada pelos movimentos negros brasileiros e por diversos estudiosos das relações raciais
2
Não ignoramos que as concepções científicas estão, na maioria da vezes, em concorrência quando o
tema racial é suscitado Entretanto, a despeito do sentido biológico não possuir fundamentos suficientes
para uma explicação relacionada com diferenças culturais determinadas, podemos dizer que no sentido
sociológico, ³raças´ são artefatos conceituais para se explicar as diversas identidades sociais
°
funciona como uma variável central no preenchimento de posições e dimensões
distributivas da estrutura de classes
Contudo, ao se ter em mente a tradição do pensamento social brasileiro, é
necessário reconhecer o possível efeito teórico da linha de estudos empregada por
Hasenbalg, tributária de críticas e discordâncias a perspectivas precedentes
Secundariamente, àquela que se refere ao diagnóstico da situação atual de negros 2"2
aos brancos como reminiscências do passado escravista, conclusão, em maior ou
menor grau, presente nos estudos de autores filiados à tradição do pensamento
sociológico de São Paulo; e, principalmente, à chave analítica influenciada pelo
pensamento de Gilberto Freyre, na qual ³raça´ praticamente inexiste como responsável
pelas desigualdades raciais, e sim, enquanto celebração da sociedade brasileira, isto é,
num sentido intimamente próximo do cultural forjado nos ³antagonismos
em equilíbrio´, do caráter macunaímico a vicejar no racial A nosso ver,
essas duas concepções de sociedade são contrastantes e superáveis, se tomarmos como
pressuposto a ³teoria do ciclo de desvantagens cumulativas´
Primeiro porque, de um lado, o ³mito da democracia racial´ enquanto construção
intelectual, inclusive denunciado por Roger Bastide e Florestan Fernandes em .
- & , sugeriria a ideia de uma sociedade multi-étnica fundada na
conciliação e ausência de tensões entre as raças Do outro lado, ao se reconhecer a
falsidade dessa versão ³oficiosa´, o chamado problema racial seria transformado em
aspecto derivado da situação de classe, e, portanto, explicado somente pela desigualdade
na estrutura de classes da sociedade brasileira, na qual o preconceito contra os negros
seria esvaziado de implicações raciais e atribuído à posição socioeconômica inferior que
a maioria deles ocupava e ainda ocupa
A perspectiva de Hasenbalg contesta a ineficácia da última visão, que não
consegue explicar por que a população preta e parda se autoperpetua em posições
sociais inferiores Desse modo, para ele a estrutura das relações raciais no país evitaria
que a raça se constituísse como princípio de identidade coletiva, ação política Por outro
lado, a eficácia da ideologia racial imperante, que mantém, e por vezes reforça, a
estrutura de privilégio do branco e a subordinação da população negra se traduz no
)
!
)
(cf Hasenbalg 25: p 255)
r
Em resumo, podemos afirmar que a sustentação de tal enfoque nos estudos das
relações raciais brasileiras têm, em seu núcleo, as seguintes hipóteses: (a) as
desigualdades raciais existentes entre brancos e negros se devem a diferenças de
oportunidade e de tratamento, e não a uma herança do passado; (b) as maiores
desigualdades raciais ocorrem entre brancos e pardos, por um lado e entre brancos e
pretos, do outro, de tal modo que para todos os efeitos práticos, isto é, as oportunidades
de vida, existe uma bipolaridade entre brancos e não brancos (c) o ³ciclo cumulativo de
desvantagens´ a cada geração aumenta o fosso de diferenças que separam brancos e
negros (
25: cap VI)
Portanto, ao utilizar-se dessa linha de estudos, a nossa justificativa leva em conta
a particularidade metodológica de tais análises, que consiste em geral numa análise
multivariada de dados agregados retirados das estatísticas oficiais do IBGE,
principalmente censos e pesquisas amostrais por domicílios No desdobramento dos
dados, baseando-se na variável de controle ³raça´, pode-se mostrar, primeiro, que é
possível e correto agregar os dados de cor existentes em dois grupos raciais (brancos e
não-brancos), pois há poucas diferenças substantivas entre os grupos não-brancos entre
si, pretos e pardos, quando relacionados com variáveis decisivas como renda, educação,
emprego, etc Ao agregarmos os dados, a grande diferença encontrada, em todos os
aspectos da análise quantitativa, diz respeito às significativas divergências entre os
grupos branco e negro Segundo, mesmo que se esgotem as variáveis de status e classe
social nos moldes explicativos (renda, escolaridade, emprego) persiste inexplicado um
resíduo substantivo que só pode ser atribuído a própria ³raça´ dos indivíduos Senão,
vejamos a situação sob outro ângulo
A tabela seguinte é composta de projeções gerais do perfil demográfico por
raça/cor da sociedade brasileira, elaboradas nas Pesquisas Nacionais por Amostra de
Domicílios (Pnad) de c a 2
gro
Ano ota p oa ranco Pr to Pardo pr topardo
c c5 232 u- 5, 3,5 -ur
c c4 c33 u- 5,4 3, -u
2c c cc u- 5, 4,4 -
22 c3 3c u 5, 4,5 -
23 c5 ur 5, 4c,4 -
24 c2 u- 5, 42,c -£
25 c4 -°° ,3 43,2 -°u
2 c 22 -° , 42, -°u
2 c 2 -°- ,4 42,3 -°
2 c 53 -£- , 43, u
Fonte: IBGE ±Pnad
(¹) Até 23, exclusive a população da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá
Tabela adaptada por Ricardo
ocasião, Carlos Hasenbalg já chamava a atenção para possíveis potencialidades de
políticas públicas voltadas especificamente para a população negra
$
!
!
> 2
% !
)
%(cf Hasenbalg, c)
22
Essa indecisão da cor é um argumento corroborado segundo a lista de c35 cores observadas na
experiência da autoclassificação na Pnad de c, fato que depois resultou na definição da categoria
³pardo´
r
na adoção do 2 pardo, atenuando a variante ³moreno´ utilizada por muitos
brasileiros?
Ora, é difícil afirmar categoricamente se a implementação de ações afirmativas,
possa fazer com que os efeitos práticos da classificação estatística influencie os
brasileiros a deixar de acreditar na importância fundamental da ³mistura racial´ como
constitutiva da sociedade brasileira e que o país de ³raças misturadas´ seja substituído
pelo país de ³raças distintas´ (
p 35)
Em termos conjecturais, a médio e longo prazos, nada pode ser afirmado com
precisão; entretanto, a nosso ver, o foco dessa discussão deve acompanhar a dinâmica
da sociedade segundo as reivindicações dos agentes sociais envolvidos no palco das
decisões coletivas, e não se ater aos fundamentos de uma concepção de país que vigorou
durante muito tempo como sinônimo de
, sobretudo por enfatizar a
diversidade cultural e o sincretismo como uma identidade univocamente mestiça,
espécie de sociodicéia reiterada através do mito de origem da mestiçagem, ou a partir da
³fábula das três raças´ Desse modo, para nós, esse sistema de valores, batizado nos
trópicos de democracia racial, pode ser muito mais do que um mero desejo de igualdade
que na prática pouco se realiza Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, a crença
na democracia racial desconsidera o fato de que, em qualquer sociedade,
( ! (cf Munanga, K 25: p 52)
Afinal, uma discussão que se pretenda qualificada nesse debate, e as
decorrências traçadas acerca das políticas de ações afirmativas, não podem prescindir de
considerar a tensão que existe entre o rearranjo político democrático no tratamento das
desigualdades sociais ± tratamento desigual para os desiguais ± e o pensamento social
brasileiro enxergado sob o prisma do modelo de nação aqui idealizado Concepção que,
em nosso entender, merece ser revista com rigor, posto que aqui a identidade nacional é,
genericamente, entendida como um rebento pródigo da matriz republicana e
universalista; no entanto, ao mesmo tempo e como qualquer país, a experiência
brasileira se delimita nos contornos de um retrato de povo ensimesmado em sua
formação cultural , a qual repousa numa construção nacional fundada na
falsa idéia de excepcionalismo racial
r-
u
Com o processo de redemocratização dos anos oitenta, o movimento negro
desencadeou uma série de protestos pelo país Em c, no contexto de comemorações
dos cem anos da Abolição, o movimento negro saiu às ruas denunciando que a
verdadeira abolição ainda não havia acontecido Afirmam que o dia do negro deveria ser
um dia de luta, de tomada de consciência, e não um dia comemorativo, de
agradecimento por uma farsa Em parte, esse processo é resultado do que acontecera dez
anos antes, a fundação do Movimento Negro Unificado nas escadarias do Teatro
Municipal de São Paulo
Anos depois, a década de noventa assistiu a articulação de uma rede de organizações
do movimento negro internacional O suposto destas instituições supra nacionais
concebia que negros de todo o mundo, vivendo fora do continente africano, estariam
expostos às mesmas violências sociais Assim, afirmavam que tais povos, mesmo
espalhados pelo mundo, deveriam se organizar como se fosse uma única população,
pois, se ficassem limitados às suas condições de minoria social, não estariam em
condições de exercer internamente pressão política efetiva Urgia superar estes limites,
procurar uma organização mais consistente, uma ação mais contundente Foi neste
contexto que se definiu o conceito de ³povos da diáspora´
³Diáspora´ seria a sociedade composta por negros e negras habitantes de países não
africanos23 O objetivo deste movimento político era pressionar os países com
população diaspórica no sentido de promoverem políticas públicas de ações afirmativas
Foi a partir da associação com instituições ³diaspóricas´, que o movimento negro
brasileiro desencadeou toda uma campanha que desembocou no Plano Nacional de
Promoção da Igualdade Racial assinado em 23
O primeiro grande marco neste movimento ocorreu em c, quando o movimento
negro denunciou na Organização Internacional do Trabalho a prática sistemática de
racismo no mercado de trabalho brasileiro A OIT cobrou do Estado brasileiro o
primeiro passo no sentido de assumir para si a responsabilidade da luta contra o
racismo: se reconhecer como um país racista
Paul Gilroy,
*
ru
Em c5, foi organizada por todo país a Marcha Zumbi dos Palmares, contra o
racismo, pela cidadania e a vida A marcha cobrava que o Estado brasileiro adotasse
políticas públicas de combate ao racismo, de promoção à cidadania e,
consequentemente, de proteção social para a população negra
Mas o ápice de todo este processo ocorreu em 2c, quando o Brasil se tornou
signatário da Declaração de Durban, cunhada na III Conferência Mundial Contra o
Racismo, a Discriminação, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, comprometendo-se a
implantar políticas públicas de ações afirmativas no combate ao racismo24
Estas informações, infelizmente, pouco circularam nos meios de comunicação e tão
pouco mereceram atenção da academia Acreditamos que sem a dimensão de como as
políticas de ações afirmativas alcançaram o Estado brasileiro não poderíamos
compreender os caminhos que tais políticas seguem atualmente, principalmente suas
demandas relacionadas à educação
Todavia, não podemos desconsiderar aqui as adaptações que estas políticas sofreram
ao serem incorporadas pelo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva a partir de
23 Adaptações decorrentes tanto do próprio projeto de governo, tanto pelas
concessões e retrocessos que projetos sociais costumam enfrentar nas arenas do
Congresso e do Senado brasileiro
u
r
diretamente ao ponto de cultura, além de criar uma rede de circulação de verbas
ancorada diretamente na sociedade civil, este contato mais próximo seria a única forma
de viabilizar um sistema de financiamento cultural, à nível federal, capaz de contemplar
toda a diversidade dos projetos e manifestações culturais existentes no país Pois, só
sendo capaz de dialogar com a diversidade é que o Estado poderá promover a inclusão
ampla, pressuposto da democracia republicana
Este projeto do MinC tem, dentro do governo Lula, o status de projeto-piloto,
exemplo bem sucedido de concretização do ideal de nação da gestão Lula
Toda esta introdução cumpre aqui a função de localizar a questão do respeito à
diversidade no programa político do governo Lula e, consequentemente, nas políticas
educacionais promovidas pela União Aqui, diversidade é o pressuposto para a inclusão
cidadã É a possibilidade de superar o plano do discurso e viabilizar de fato políticas
públicas que dêem resultados concretos Assim, segundo esta perspectiva, toda a ação
governamental, para ser efetiva deve, necessariamente, supor mecanismos institucionais
que respeitem, valorizem e promovam a diversidade social É justamente neste sentido
que o projeto inicial de políticas de ações afirmativas nas universidades foi proposto
u O
!
O documento entitulado & , = ?)
<, + 5%$ +
@ <
2
esclarece que garantir cidadania à
população negra é direito subjetivo e, neste processo, a educação ocupa papel
fundamental É fato que negros e negras são os que mais sofrem com a evasão e o
fracasso escolar, sendo aqueles que menos tempo permanecem no sistema educacional
oficial
Assim, quando o presidente Lula assinou em 23 a lei c 3 que estabeleceu a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas
brasileiras, o que estava em questão era a garantia da diversidade ± do currículo escolar
± para a inclusão
r
Porém, o mesmo não vem ocorrendo quanto o tema é o Ensino Superior O
projeto proposto pelo movimento negro em 25, no âmbito da I Conferência Nacional
de Políticas de promoção da Igualdade Racial ± CONAPIR, versava sobre acesso,
permanência e financiamento de estudantes negros no Ensino Superior Tratava-se de
garantir não só o acesso, mas sim a permanência com chance de excelência Promover a
entrada da população negra na Universidade significa garantir financiamento para
pesquisas voltadas para a temática afirmativa, significa garantir a permanência, com
moradia, alimentação e trabalho
Neste sentido, Rosana Heringer e Renato Ferreira, em publicação recente, em
que analisam as ações do Estado brasileiro para a inclusão de estudantes negros no
Ensino Superior, avaliam:
O
%
+
!
%
25
Rosana Heringer & Renato Ferreira ³Análise das principais políticas de inclusão de estudantes negros
no Ensino Superior no Brasil no período de 2c-2´ In : < < pág c5
r£
espaço e peso político, tendo a questão específica de ação afirmativa diluída em nome
do critério sócio econômico
De qualquer maneira este programa é o único feito concreto de inclusão de
negros na Universidade: de 24 a 2, uma média de 5 % dos bolsistas eram negros
Diversas são as críticas feitas ao Programa Universidade para Todos, sendo a
principal a acusação que o programa financia o ensino privado em detrimento do ensino
público Não caberia aqui dar conta deste debate Principalmente porque a privatização
do Ensino Superior ocorreu antes de 23, segundo plataforma de governo distinto
Mas tudo isso não dissolve o fato de que hoje a inclusão do negro no Ensino
Superior ainda esteja sob o signo do racismo Pois o que assistimos atualmente, é a
formação profissional da população negra universitária em instituições de ensino piores
que a acessada pela população não negra Cria-se uma nova forma de segregação,
repete-se a mesma forma de discriminação
Várias são as estratégias de esvaziamento que reduz o debate ao argumento de
reserva de vagas A primeira e mais conhecida destas estratégias envolve um
movimento político, encampando pela grande mídia, de nem sequer aceitar a reserva de
vagas2 Desviando a questão do racismo para o racialismo, afirmam que o Brasil não
pode legislar a partir do conceito de raça, que, biologicamente, não existe Assim, ao
invés de colocar em questão o tema do racismo, impõe o tema já esgotado da raça O
mesmo se seguiu com o debate acerca do reconhecimento de terras quilombolas, quando
o Partido dos Democratas conseguiu derrubar o decreto federal recorrendo ao
argumento que a base do decreto era racialista2 Em Julho de 2 o mesmo partido
encetou o mesmo argumento no Supremo Tribunal de Justiça solicitando que alunos
cotistas fossem proibidos de matricularem-se em Universidades Federais
Alcançou grande circulação midiática um manifesto contra as cotas ³a favor da República´, feito por
supostos intelectuais pesquisadores do tema Este documento sintetiza os argumentos contra as cotas que
citamos aqui Por outro lado, rapidamente foi organizado um ³contra manifesto´, desmontando todos os
argumentos apresentados pelos anti-cotas Além destes documentos, no final do trabalho segue anexo
uma cartilha pró-cotas
O site ³Imprensa Anti-Quilombola´ produziu um dossiê sobre este processo
http://www oinonia org br/oq/dossies_detalhes asp?cod_dossie=2
r°
Até o momento, o Estatuto da Igualdade Racial, após enfrentar uma verdadeira
batalha no Congresso em Setembro de 2, conseguiu manter o que restou do projeto
de inclusão no Ensino Superior, preservando a pauta de reserva de vagas Todavia, o
Estatuto ainda deve enfrentar o Senado, onde segundo seus defensores, deve sofrer os
ataques mais agressivos
P oa d £ a r- ano co ano d tudo tota proporção por cor ou raça
gundo a rand è gõ r£
rand è gõ Pessoas de c a Pessoas de c a Proporção de pessoas de c
24 anos (c 24 anos com cc a 24 anos com cc anos de
pessoas) anos de estudo estudo (%)
(c pessoas) ota Cor ou raça
Branca Negra
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tudant d £ a r- ano tota r p cta dtrução p rc ntua por cor ou raça n d
nno r u ntado gundo a rand è gõ r£
Distribuição percentual por nível de ensino frequentado (%)
Estudantes de c a 24 anos de idade segundo a raça
rand
ota Fundamental ou Médio ou 2' Superior ou
è gõ Pré-vestibular
p oa c' grau grau 3'grau(c)
Branca Negra Branca Negra Branca Negra Branca Negra Branca Negra
ra ° u - £ r° -°° r r r£
Norte c53 5c2 c3, 22, 3, 4, 2,5 2,4 44, 25,
Nordeste c454 c5, 23, 4c,3 52,5 2, 2, 3,5 2,
Sudeste - ° - r r -££ ° u
Sul c c34 4, c2, 2,c 4,4 2, c,5 ,5 3,
Centro-
Oeste 25c 2 5, c2, 2,4 42,5 2, 2,4 3,c 4c,
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2
Nota: Inclusive as pessoas sem declaração de nível de ensino frequentado
(c)Inclusive graduação, mestrado e doutorado
Tabela adaptada por Ricardo
2
Há cerca de dez anos o MEC organizou o Censo da Educação Superior, esse Censo apontou que das
c24 instituições de ensino superior criadas em c, auge de crescimento do mercado de ensino superior
programas como o ProUni2 É amplamente reconhecido que as universidades
particulares ± com exceção das confessionais e algumas outras de tradição ± são
consideradas inferiores e menos prestigiadas, entretanto, dado o pouco investimento nas
universidades públicas, além dos critérios seletivos das mesmas, as universidades
particulares ampliaram sua importância relativa no contexto educacional em virtude da
massificação da rede Resta saber qual o efeito que esse nicho de mercado do ensino
superior exerceu sobre as desigualdades raciais?
Em termos objetivos é simples apontar causalidades pontuais sobre a possível
atração, baseada em estratégias de mercado, oferecida pelas universidades particulares
para a população brasileira em geral e a população negra em particular Entretanto, é
fato que a grande maioria das Instituições de ensino superior privadas não conseguiu
equacionar o binômio quantidade X qualidade e o ensino no Brasil tem a tendência de
piorar quando se massifica Parece que a grande distorção do sistema ainda subsiste na
fraca capacidade da educação superior de qualidade ser oferecida para estudantes negros
em números mais próximos à representatividade proporcional da população negra em
cada um dos estados da federação
No entanto, o processo de inclusão da população negra nas instituições públicas
de ensino superior é um acontecimento bem recente, iniciado neste século 2c O
chamado sistema de cotas raciais foi, pela primeira vez, implementado na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade do Norte Fluminense (UENF)
em 2c Partiu de um projeto de lei cheio de lacunas que fora aprovado na Assembleia
legislativa do estado e imposto por decreto pelo governador Anthony Garotinho, em
conturbado espaço de interesses no qual diversos setores da sociedade civil fluminense
se posicionaram a princípio contrários às medidas3
privado, mais de 5% eram privadas Cf CATANI, Afranio M & OLIVEIRA, João F Educação superior
no Brasil Petrópolis: Vozes, 22
2
Justiça seja feita, a ampliação das Universidades federais (criação de novos ) em todo o Brasil,
recomeçou a ser forjada com investimentos do atual governo Contudo, a estrutura cristalizada na gestão
anterior ± sistema privado ± indica que a orientação privatista foi considerada, pelo menos, adequada De
certo modo, o ProUni cumpre o objetivo de melhorar as condições de ingresso no ensino superior de
grupos negativamente privilegiados, por outro lado, o oferecimento de um grande número de bolsas de
estudo tem como contrapartida a isenção de impostos para os ³empresários da educação´ que aderem ao
programa do Governo Federal Se na gestão FHC tínhamos, em tese, liberdade concorrencial de mercado;
no atual governo o Estado intervém certificando a margem de manobra dos ³jogadores´
3
Atualmente, de acordo com a nova lei de cotas do estado (lei n' 5 34 de cc de dezembro de 2), as
universidades estaduais do Rio de Janeiro devem adotar cotas de 45%, distribuídas: 2% para estudantes
provenientes da escola pública, 2% para negros e indígenas e 5% para pessoas com deficiência e para
filhos de policiais militares, civis e agentes penitenciários mortos em serviço Sobre o contexto imediato
-
No ano seguinte, a Universidade Estadual da Bahia (Uneb) adotou um sistema
de cotas com percentual de 4% de suas vagas para estudantes negros, no mesmo ano a
Universidade Estadual do Mato Grosso (UEMS) também adotou um sistema que
oferecia cotas de 2% para negros e c% para indígenas A primeira instituição federal
a adotar cotas raciais no ensino superior foi a Universidade de Brasília (UnB) em 23,
seguida depois pela Universidade de Alagoas (Ufal) Já em 24, a Universidade da
Bahia (UFBA) e a Universidade Federal do Paraná implementaram seus programas com
percentuais diferenciados Enfim, esse processo ainda está em curso Calcula-se
atualmente algo em torno de setenta e nove instituições de ensino superior que
promovam algum tipo de ação afirmativa3c
Devido aos restritos espaços deste trabalho não analisaremos casos particulares
do sistema de cotas implementados em qualquer instituição de ensino, não obstante,
talvez valesse a pena discutir um pouco do quadro geral em que tais programas se
configuram Em primeiro lugar, sob o signo da inclusão, os especialistas em políticas
públicas consideram as ações afirmativas para o ensino superior como um recurso
positivo na promoção da equidade social32, isto é, seu princípio geral visa promover
pessoas que pertençam a grupos sociais reconhecidamente em situação histórica de
desvantagem Nesse sentido, em muitos casos, o critério étnico-racial se soma a outros
requisitos, como ser oriundo da escola pública e/ou ser carente, o que, em tese,
possibilitaria aos alunos mais pobres cursarem a universidade pública
Em segundo lugar, considerando especificamente a situação da presença de
brancos e negros no ensino superior, verifica-se que nos anos de c5 a 2 o número
6
(
O
5 A
3c
Setenta e nove () em um universo de duzentas e vinte e quatro (224) instituições públicas de ensino
superior Para maiores informações ver: Rosana Heringer e Renato Ferreira, 2
! . ! B8802B881
32
A despeito de que a implementação de cotas raciais obteve grande resistência jurídica no interior das
universidades pioneiras na experiência; posteriormente critérios socioeconômicos foram unidos a critérios
raciais e as denominadas cotas sociais passaram a ser consideradas ³viáveis´ como políticas de inclusão
social Determinadas universidades (UEA, UFT, UEPB, UPE, UES, UERGS) só oferecem cotas a partir
de algum tipo de critério ³social´, geralmente destinam certo percentual de vagas para alunos
provenientes de escolas públicas Informações coletadas In: PAIXÃO, Marcelo & Carvano, Luiz M
(Orgs ) 5 .B8872B881
u
absoluto de estudantes de cor ou raça branca passou de c,5 milhão para 4,3 milhões em
todo o país Entre os negros, os números passaram de 34c 24 mil em c5, para c,
milhão em 233 (cf Paixão & Carvano, 2) Porém, a universidade pública
brasileira ainda continua pouco acessível para os estudantes negros, embora, ao longo
dos anos, não se saiba ao certo sua representatividade a partir de números confiáveis,
pois até bem pouco tempo atrás o negro também estava praticamente ausente das
estatísticas universitárias
No bojo das ações afirmativas para a educação superior, algumas iniciativas
foram tomadas para sanar essa lacuna Nesse sentido, os recentes censos e pesquisas por
amostra, realizados em algumas universidades de prestígio, surgiram com o objetivo de
produzir dados sobre a questão Em artigo de 23, Antonio Sérgio Guimarães
apresentou informações sobre a desigualdade de acesso entre os grupos de cor registrada
em algumas universidades públicas do país, entre elas a Universidade de São Paulo
(USP), a federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Paraná (UFPR), da Bahia (UFBA), do
Maranhão (UFMA), e a Universidade de Brasília (UnB)
33
Esse extraordinário crescimento está relacionado à expansão do setor privado, conforme
argumentamos anteriormente Diante dos números podemos até dizer que o problema da escassez de
vagas no ensino superior foi parcialmente resolvido, por outro lado, o crescimento da qualidade do
serviço ofertado ainda está longe de ser verificado
números percentuais de cada grupo racial da população de São Paulo, comparados aos
negros, os outros três grupos raciais (brancos, amarelos e indígenas) estariam sobre-
representados no corpo discente da USP34
Para Antonio Sérgio Guimarães, a pouca presença de negros nas universidades
públicas está relacionada a uma gama de problemas estruturais da sociedade brasileira,
como a ³cor´ da pobreza e a crise da educação básica Em linhas gerais, o autor elenca
cinco causas gerais que podem ser atribuídas à ³pequena absorção de negros´ no
sistema de ensino superior público: a) pobreza; b) qualidade da escola pública; c)
preparo insuficiente; d) pouca persistência (pouco apoio familiar e comunitário); e e)
forma tradicional de seleção do vestibular, que não dá oportunidade para avaliar outras
potencialidades dos vestibulandos (cf Guimarães 23: pg 25)
Noutro artigo o mesmo autor argumenta que a criação de um campus da USP na
Zona Leste da capital paulista em 25, procurou atender a demanda por inclusão de
estudantes de menor renda e afrodescendentes, e, de certo modo, atender, numa outra
via, às reivindicações por cotas dos movimentos negros do estado, porém, por enquanto,
os resultados são pouco promissores em relação a este objetivo (cf Guimarães: 2)
Posto que, quando se considera o rendimento associado ao capital escolar (a formação
do ensino médio em boas escolas particulares) e ao capital econômico (renda familiar)
dos alunos aprovados no vestibular, os dados indicam que os maiores beneficiados da
política de expansão de oportunidades para áreas consideradas carentes (USP Leste)
foram os estudantes que, independentemente da cor, cursaram o ensino médio em
escolas particulares e que eram oriundos de famílias de maior renda
Já em 2 com a introdução no vestibular Fuvest do sistema de bônus de 3%
para estudantes oriundos da rede pública 35, o ingresso de alunos nessas condições
cresceu, em termos relativos, cerca de 2 pontos percentuais, de 24,22% para 2,3%
Como se vê nos números da avaliação preliminar do sistema de bônus, a seguir:
34
De acordo com os dados oficiais do Censo de 2, a composição racial da população residente do
estado de São Paulo, em termos percentuais, está dividida em: ,% de brancos, 22,% de pardos, 4,4%
de pretos, c,23% de amarelos, ,c% de indígenas e ,% não declararam raça ou cor
35
O chamado sistema de bônus, implementado em algumas Universidades do estado de São Paulo,
funciona como uma espécie de medida alternativa às cotas, embora um de seus princípios seja promover a
inclusão, não é consensual enquadrá-lo como política de ação afirmativa
Auno conocado para a atrcua & caada por ano nno
do
P
nno do
Ano
Púco ota
2 2343 24,22% 5
2 245 2,3% c5
Fontes: NAEG e FUVEST
3
O número de estudantes negros aprovados na USP saltou de (52 pardos e 2 pretos) em 2c,
para c352 (cc4 pardos e 23 pretos) em 2 Embora o crescimento seja significativo, essa tendência
acompanhou a expansão de vagas Em termos absolutos os números ainda são pequenos, uma vez que em
2c foram aprovados ao todo 52 estudantes e em 2, cc52 Dados da Fuvest
£
°
Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis conseqüências das
cotas raciais Transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em
identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade de todos perante a lei
A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado Políticas
dirigidas a grupos "raciais" estanques em nome da justiça social não eliminam o
racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao
conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância A verdade
amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a
construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde
e previdência, em especial a criação de empregos Essas metas só poderão ser
alcançadas pelo esforço comum de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios
odiosos que limitam o alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica
A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como
-
demonstram exemplos históricos e contemporâneos E ainda bloquear o caminho para a
resolução real dos problemas de desigualdades
-
A desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta realidade não será
alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas específicas A
Constituição de cc facilitou a reprodução do racismo ao decretar uma igualdade
puramente formal entre todos os cidadãos A população negra acabava de ser colocada
em uma situação de completa exclusão em termos de acesso à terra, à instrução e ao
mercado de trabalho para competir com os brancos diante de uma nova realidade
econômica que se instalava no país Enquanto se dizia que todos eram iguais na letra da
lei, várias políticas de incentivo e apoio diferenciado, que hoje podem ser lidas como
ações afirmativas, foram aplicadas para estimular a imigração de europeus para o Brasil
Foi a constatação da extrema exclusão dos jovens negros e indígenas das universidades
que impulsionou a atual luta nacional pelas cotas, cujo marco foi a Marcha Zumbi dos
Palmares pela Vida, em 2 de novembro de c5, encampada por uma ampla frente de
solidariedade entre acadêmicos negros e brancos, coletivos de estudantes negros,
cursinhos pré-vestibulares para afrodescendentes e pobres e movimentos negros da
sociedade civil, estudantes e líderes indígenas, além de outros setores solidários, como
jornalistas, líderes religiosos e figuras políticas --boa parte dos quais subscreve o
presente documento A justiça e o imperativo moral dessa causa encontraram
ressonância nos últimos governos, o que resultou em políticas públicas concretas, dentre
elas: a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População
Negra, de c5; as primeiras ações afirmativas no âmbito dos Ministérios, em 2c; a
criação da Secretaria Especial para Promoção de Políticas da Igualdade Racial
(SEPPIR), em 23; e, finalmente, a proposta dos atuais Projetos de Lei que
estabelecem cotas para estudantes negros oriundos da escola pública em todas as
universidades federais brasileiras, e o Estatuto da Igualdade Racial
O PL 3/ (ou Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma resposta coerente e
responsável do Estado brasileiro aos vários instrumentos jurídicos internacionais a que
aderiu, tais como a Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (CERD), de c, e, mais recentemente, ao Plano de Ação de
-r
Durban, resultante da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban, na África do Sul, em
2c O Plano de Ação de Durban corrobora a ênfase, já colocada pela CERD, de
adoção de ações afirmativas como um mecanismo importante na construção da
igualdade racial, uma vez aqui que as ações afirmativas para minorias étnicas e raciais
já se efetivam em inúmeros países multi-étnicos e multi-raciais semelhantes ao Brasil
Foram incluídas na Constituição da Índia, em c4; adotadas pelo Estado da Malásia
desde c; nos Estados Unidos desde c2; na África do Sul, em c4; e desde então
no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, na Colômbia e no México Existe uma forte
expectativa internacional de que o Estado brasileiro finalmente implemente políticas
consistentes de ações afirmativas, inclusive porque o país conta com a segunda maior
população negra do planeta e deve reparar as assimetrias promovidas pela intervenção
do Estado da Primeira República com leis que outorgaram benefícios especiais aos
europeus recém chegados, negando explicitamente os mesmos benefícios à população
afro-brasileira
No caminho da construção dessa igualdade étnica e racial, somente nos últimos 4 anos,
mais de 3 universidades e Instituições de Ensino Superior públicas, entre federais e
estaduais, já implementaram cotas para estudantes negros, indígenas e alunos da rede
-
pública nos seus vestibulares e a maioria adotou essa medida após debates no interior
dos seus espaços acadêmicos Outras c5 instituições públicas estão prestes a adotar
políticas semelhantes Todos os estudos de que dispomos já nos permitem afirmar com
segurança que o rendimento acadêmico dos cotistas é, em geral, igual ou superior ao
rendimento dos alunos que entraram pelo sistema universal Esse dado é importante
porque desmonta um preconceito muito difundido de que as cotas conduziriam a um
rebaixamento da qualidade acadêmica das universidades Isso simplesmente não se
confirmou! Uma vez tida a oportunidade de acesso diferenciado (e insistimos que se
trata de cotas de entrada e não de saída), o rendimento dos estudantes negros não se
distingue do rendimento dos estudantes brancos
Outro argumento muito comum usado por aqueles que são contra as políticas de
inclusão de estudantes negros por intermédio de cotas é que haveria um acirramento dos
conflitos raciais nas universidades Muito distante desse panorama alarmista, os casos
de racismo que têm surgido após a implementação das cotas têm sido enfrentados e
resolvidos no interior das comunidades acadêmicas, em geral com transparência e
eficácia maiores do que havia antes das cotas Nesse sentido, a prática das cotas tem
contribuído para combater o clima de impunidade diante da discriminação racial no
meio universitário Mais ainda, as múltiplas experiências de cotas em andamento nos
últimos 4 anos contribuíram para a formação de uma rede de especialistas e de uma base
de dados acumulada que facilitará a implementação, a nível nacional, da Lei de Cotas
Para que tenhamos uma noção da escala de abrangência dessas leis a serem votadas o
PL 3/, que reserva vagas na graduação, é uma medida ainda tímida: garantirá uma
média nacional mínima de 22,5% de vagas nas universidades públicas para um grupo
humano que representa 45,% da população nacional É preciso, porém, ter clareza do
que significam esses 22,5% de cotas no contexto total do ensino de graduação no Brasil
Tomando como base os dados oficiais do INEP, o número de ingressos nas
universidades federais em 24 foi de c23 estudantes, enquanto o total de ingressos
em todas as universidades (federais, estaduais, municipais e privadas) foi de c 34
estudantes Se já tivessem existido cotas em todas as universidades federais para esse
ano, os estudantes negros contariam com uma reserva de 2 5 vagas (22,5% de
c23 vagas) Em suma, a Lei de Cotas incidiria em apenas 2% do total de ingressos
no ensino superior brasileiro Devemos concluir que a desigualdade racial continuará
sendo a marca do nosso universo acadêmico durante décadas, mesmo com a
implementação do PL 3/ Sem as cotas, porém, já teremos que começar a calcular
em séculos a perspectiva de combate ao nosso racismo universitário Temos esperança
de que nossos congressistas aumentem esses índices tão baixos de inclusão!
Se a Lei de Cotas visa nivelar o acesso às vagas de ingresso nas universidades públicas
entre brancos e negros, o Estatuto da Igualdade Racial complementa esse movimento
por justiça Garante o acesso mínimo dos negros aos cargos públicos e assegura um
mínimo de igualdade racial no mercado de trabalho e no usufruto dos serviços públicos
de saúde e moradia, entre outros Nesse sentido, o Estatuto recupera uma medida de
--
igualdade que deveria ter sido incluída na Constituição de cc, no momento inicial da
construção da República no Brasil Foi sua ausência que aprofundou o fosso da
desigualdade racial e da impunidade do racismo contra a população negra ao longo de
todo o século XX Por outro lado, o Estatuto transforma em ação concreta os valores de
igualdade plasmados na Constituição de c, claramente pró-ativa na sua afirmação de
que é necessário adotar mecanismos capazes de viabilizar a igualdade almejada
Enquanto o Estatuto não for aprovado, continuaremos reproduzindo o ciclo de
desigualdade racial profunda que tem sido a marca de nossa história republicana até os
dias de hoje
Gostaríamos ainda de fazer uma breve menção ao documento contrário à Lei de Cotas e
ao Estatuto da Igualdade Racial, enviado recentemente aos nobres parlamentares por um
grupo de acadêmicos pertencentes a várias instituições de elite do país Ao mesmo
tempo em que rejeitam frontalmente as duas Leis em discussão, os assinantes do
documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de inclusão racial no
Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a lei e que é preciso melhorar
os serviços públicos até atenderem por igual a todos os segmentos da sociedade Essa
declaração de princípios universalistas, feita por membros da elite de uma sociedade
multi-étnica e multi-racial com uma história recente de escravismo e genocídio
sistemático, parece uma reedição, no século XXI, do imobilismo subjacente à
Constituição da República de cc: zerou, num toque de mágica, as desigualdades
causadas por séculos de exclusão e racismo, e jogou para um futuro incerto o dia em
que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à educação, às riquezas, aos bens e aos
serviços acumulados pelo Estado brasileiro Essa postergação consciente não é
convincente Diante dos dados oficiais recentes do IBGE e do IPEA que expressam,
sem nenhuma dúvida, a nossa dívida histórica com os negros e os índios, ou adotamos
cotas e implementamos o Estatuto, ou seremos coniventes com a perpetuação da nossa
desigualdade étnica e racial
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É um grande erro pensar que, no campo das políticas públicas democráticas, os avanços
se reproduzem por etapas sequenciais; primeiro melhora-se a qualidade da educação
básica e depois democratiza-se a universidade Este é um argumento que pode contentar
aos que tiveram oportunidade de acesso ao ensino superior Ambos os desafios são
urgentes e precisam ser assumidos enfaticamente de forma simultânea A educação
deve melhorar sua qualidade (em todos os níveis) e ser mais democrática (também em
todos os níveis)
diversas universidades públicas, mostram o apoio da comunidade acadêmica às cotas,
inclusive entre os professores dos cursos denominados ³mais competitivos´ (medicina,
direito, engenharia etc) Alguns meios de comunicação e alguns jornalistas têm
fustigado as políticas afirmativas e, particularmente, as cotas Mas isso não significa,
obviamente, que a sociedade brasileira as rejeita
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Somos, sem dúvida nenhuma, uma sociedade mestiça, mas o valor dessa mestiçagem é
meramente retórico no Brasil Na cotidianidade, as pessoas são discriminadas por sua
cor, sua etnia, sua origem, seu sotaque, seu sexo e sua opção sexual Quando se trata de
fazer uma política pública de afirmação de direitos, nossa cor magicamente se
desmancha Mas, quando pretendemos obter um emprego, uma vaga na universidade
ou, simplesmente, não ser constrangidos por arbitrariedades de todo tipo, nossa cor
torna-se um fator crucial para a vantagem de alguns e desvantagem de outros A
população negra é discriminada porque grande parte dela é pobre, mas também pela cor
da sua pele
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A cota ão a r da noa ua oc dad racta
O Brasil está longe de ser uma democracia racial No mercado de trabalho, na política,
na educação, em todos os âmbitos, os negros e negras têm menos oportunidades e
possibilidades que a população branca O racismo no Brasil está imbricado nas
instituições públicas e privadas E age de forma silenciosa As cotas não criam o
racismo Ele já existe As cotas ajudam a colocar em debate sua perversa presença,
funcionando como uma preventiva medida anti-racista
As cotas são inúteis porque o problema não é o acesso, senão a permanência Mais uma
vez, o pensamento dicotômico obscurece mais do que ajuda à formulação de uma
política pública democrática Cotas e estratégias efetivas de permanência fazem parte de
uma mesma política pública Não se trata de fazer uma ou outra, senão ambas Não se
trata de fazer uma escolha entre elas, senão de pensá-las juntas As cotas não
solucionam todos os problemas da universidade, são apenas uma ferramenta eficaz na
democratização das oportunidades de acesso ao ensino superior para um amplo setor da
sociedade historicamente excluído do mesmo
É evidente que as cotas, sem uma política de permanência, correm sérios riscos de não
atingir sua meta democrática; Porém, isso não faz senão reafirmar a importância de uma
reforma mais ampla no ensino superior brasileiro, onde qualidade e quantidade não
sejam colocadas como dinâmicas contraditórias ou contrapostas; onde excelência e
privilégio sejam termos contrapostos e não, como sempre foram, componentes de uma
mesma prática discriminatória Mais e melhores universidades públicas para todos e
todas Esse deveria ser o nosso lema Nosso compromisso ético e político
A multiplicação, nas nossas universidades, de alunos e alunas pobres, de jovens negros
e negras, de filhos e filhas das mais diversas comunidades indígenas é um orgulho para
todos eles E deveria sêlo para todos os brasileiros e brasileiras de boa vontade
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è rênca ogrca
A Dè9
, George Reid , . - & /0111203114 EDUSC, São
Paulo, c
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, Florestan
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Pano acona d Ip ntação da Dr tr urrcuar acona para
ducação da è açõ :tncorraca para o nno d Htóra utura Aro
ra ra Arcana BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, Secretária Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial, Subsecretária de Políticas de Ações Afirmativas, Brasília, 2
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