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NOTA DO AUTOR: Este texto faz parte da pesquisa autônoma que venho desenvolvendo cerca de
dois anos. Ele é a exposição de uma série de conclusões que fiz até então, tendo um caráter de ser
um protótipo do que no futuro pretendo chamar de Teoria da História Objetivista. Tendo assim, uma
abordagem mais densa por se tratar de um texto metodológico.
“Existe apenas um poder que determina o curso da História, assim como determina o curso de cada
vida individual: o poder da faculdade racional do homem - o poder das idéias (…) ”
“É a filosofia do eixo misticismo-altruísmo-coletivismo que nos trouxe ao nosso estado atual e nos
conduz a um final como o da sociedade apresentada em Atlas Shrugged. É apenas a filosofia do
eixo razão-individualismo-capitalismo que pode nos salvar e nos transportar, em vez disso, para a
Atlântida projetada nas duas últimas páginas de meu romance.”
Existe um fenômeno muito estranho quando se trata de apresentar a crítica que Rand faz as
mais variadas escolas filosóficas como o platonismo e o kantianismo, ou ainda quando esta
relaciona o misticismo religioso a vida primitiva.
Geralmente, os críticos de Ayn Rand (e com ênfase aqui o meio liberal e libertário)
costumam afirmar ou que 1) ela não leu nem Platão e nem Kant; 2) se leu, não entendeu; 3) Por fim,
que Rand tinha um baixo conhecimento da História Ocidental. Além disso, Rand é frequentemente
acusada de atacar um espantalho ao se referir a ética altruista como sacrificial. O mesmo fenômeno
também acontece quando Rand destaca que pela influência do neoplatonismo no Cristianismo, o
grosso do período medieval vivera uma profunda estagnação tecnológica e cultural e este em
particular, costuma gerar muita revolta entre aqueles que simpatizam com o Cristianismo.
Considero este fenômeno estranho porque consultando os textos destes mesmos autores e
olhando para a História das Sociedades, não é difícil constatar que absolutamente nada do que a
Rand aborda sobre estes temas é mentira.
Comecemos a analisar a ideia de que Rand supostamente ataca o altruísmo sem saber do que
está falando: É o próprio fundador do altruísmo na ética Augusto Comte quem afirma que altruísmo
significa viver para o outro e colocar a aspiração dos outros a cima da tua. Nos tratados de Comte
sobre a Filosofia Positiva, fica muito claro que a felicidade individual só pode ser conquistada
mediante o obedecimento do dever para com a sociedade antes e acima de qualquer aspiração
individual e que se num conflito entre ambos, aquilo de que se deve abrir mão é a *aspiração
individual*. Desconfia? Folheie os diálogos de “O Catecismo Positivista” que podem ser
encontrados na coleção Os Pensadores e tire suas próprias conclusões.
Em relação a Kant, todos parecem aceitar a ideia de que Kant estabeleceu a dicotomia
numeno-fenômeno e que esta basicamente quer dizer que a realidade existe e mas não pode ser
conhecida, desde que não seja Ayn Rand quem diga. Quando Rand diz que Kant fecha as portas da
razão para salvar a fé, o primeiro olhar de simpáticos a filosofia kantiana é de um profundo
desprezo, ainda que Kant assuma isso deliberadamente em um dos prefácios da Crítica da Razão
Pura. Quando Rand associa Kant ao Coletivismo, a sensação é de que esta alegação soa absurda, e
rebate-se dizendo “Mas Kant afirma na ética o homem como um fim em si mesmo”, simplesmente
ignorando um fato básico: ele está falando do homem enquanto espécie, e não o indivíduo.
A partir desse ponto, eu gostaria de introduzir aquilo que é o ponto central do meu artigo,
isto é, como o estudo da História reforça a existencia do eixo misticismo-altruísmo-coletivismo
identificado e a gradativa conquista de cada elemento do seu eixo oposto razão-individualismo-
capitalismo, apropriadamente identificados por Rand.
Por homem primitivo, entenda-se um ser social e intelectualmente organizado a partir das
primeiras estratégias possíveis ao ser humano de sobreviver e se relacionar com a realidade. O ápice
dessa manifestação está em todo o período paleolítico. Do ponto de vista psico-epistemológico este
é um homem que pensa de modo mágico, arquetípico e totêmico. Mágico no sentido de que os
fenômenos possuem uma explicação não-causal, e sim correlacional. Arquetipal no sentido que não
há uma conceitualização descritiva dos processos e sim uma redução de informações a imagens
primordiais generalizantes, tais como uma divindade que represente os fenômenos naturais como a
chuva, ou fenômenos psico-emocionais como a raiva e o amor (como Horus ou Ares, Afrodite ou
Ishtar). Totêmico no sentido em que a própria identidade das pessoas era associada a esse tipo de
imagem, p. ex., as tribos norte-americanas que usam animais como signos falcão e cobra, ou de
famílias que são símbolos de divindades (como Fustel de Coulanges apresenta em A Cidade Antiga
e que trata-se de uma versão mais complexificada) são como “gatilhos mentais” que ativam um
determinado modo de comportamento se apropriando dos atributos que o símbolo escolhido
representam. Intelectuais como Carl Jung, Erich Neumann e Bill Pedroso oferecem uma descrição
detalhada de quais são os mecanismos associativos que são um padrão no modo de pensar primitivo
e que levam ao desenvolvimento de um raciocínio mágico para se relacionar com a realidade.
[RODAPÉ: A preocupação de Jung não era em endossar o misticismo religioso como algo real e
material, mas fundamentalmente entender que existe um padrão associativo da nossa própria mente
que fez com que fizéssemos essas associações] Toda essa estrutura psico-epistemológica de
mentalidade que configura o pensamento místico abre precedentes para o altruísmo: a ética do
sacrifício.
Pensar nos rituais de sacrifícios de animais que estes primeiros homens faziam não é difícil.
Logo temos as imagens seja das práticas religiosas de canibalismo visando “incorporar elementos”
da tribo inimiga como algumas famílias guarani, seja da oferta de alguém da própria tribo que
possui um estimado valor para a divindade. É nessa chave que Rand entende que o sacrifício
moderno está profundamente ligado com este mesmo principio primitivo: é a oferenda de vidas
humanas rumo a um objetivo cultuado, tal como a Sociedade, por exemplo. Numa vida onde a tribo
toda cultua um tótem, e o comportamento adequado serve justamente para atender a divinidade que
abençoa cada alma submetida a este mesmo tótem, surge o modo de vida coletivista. A vida do
homem coletivista primitivo é fundamentalmente uma vida pública. Will Durant identifica em sua
coletânia de História da Civilização, a partir dos estudos antropológicos envolvendo tribos de várias
regiões que encobrem do Brasil à Asia, que o casamento é só um ritual de acasalamento. Terminado
o período de gestação do bebê, logo o divórcio é feito para que a mulher esteja disponível a
reprodução com outro assim que possível. O bebê é entregue aos cuidados do feiticeiro responsável
pela perpetuação dos valores religiosos daquela comunidade e cuidado pela tribo como um todo, a
fim de servi-la no futuro. Os filhos, a produção, a hereditariedade, nada pertence a ninguém, todos
são meramente uma pequena fração de um todo e geralmente este todo é a divindade cultuada. Não
há sentimentos pessoais, não há identidade pessoal, nem mesmo amor individualizado.
Seja Engels, seja Hoppe, Will Durant, Coulanges ou Rothbard, é reconhecido que o
estabelecimento simultâneo de duas instituições permitiram trilhar o caminho básico para a
civilização: a família e a propriedade. Ser parte integrante de uma família significava ainda
pertencer a alguma coletividade mas numa escala profundamente menor do que fazer parte da tribo.
Ainda não era o ideal desejável de individualidade e privacidade, mas considerando o estado
anterior de pura publicidade significava um grande achievement [RODAPÉ: Basta ver o índice de
suicídios elevados nos países asiáticos que, decorrentes da crença confuncionista da família como
unidade irredutível e que a responsabilidade de cada integrante dela reside em sua manutenção
acima de qualquer coisa, a individualidade é um aspecto marginal do planejamento de vida de um
jovem asiático].
A sedentarização acompanhada da necessidade do subsídio da família significavam agora
que as produções daquele grupo não pertenciam coletivamente a qualquer pessoa
indiscriminadamente. Havia um processo seletivo de identificação pessoal com um(a) parceiro(a) e
de cuidado com seus próprios filhos, em oposição ao cuidar do filho do vizinho ou de um
desconhecido sem nenhum apego pessoal. [RODAPÉ: Ainda que de forma terrívelmente violenta, o
que não significa, como Marx e Engels enxergam, que a força e a violência sejam a essência da
propriedade privada, mas justamente uma permanência herdada da força bruta como o modus
operandi do homem primitivo, anterior a existência dela. Rand identifica apropriadamente que a
base da propriedade está no esforço intelectual do homem e suas ações direcionadas para a
aquisição de um bem].
Este foi um passo importante para que a premissa de que coisas que uma pessoa produz não
pertencem a tribo, mas a um grupo que se relaciona a ela enquanto pessoa dotada de nome e
sobrenome (pais, cônjuge, filhos, netos), um aspecto identitário importante. Essa característica da
vida familiar foi a condição base para o estabelecimento da privacidade. Agora surgia no mapa
conceitual humano a possibilidade de referir-se como “meu”, “minha”, “nosso”, e “nossa” tanto
objetos quanto a pessoas a quem um ser dotado de nome e sobrenome pode estabelecer alguma
relação pessoalizada, isto é, dotada de algum grau ainda que mínimo sentimento privado e cuja
privacidade deve ser preservada.
Falar sobre racionalidade e usos da razão evoca enorme controvérsia, dada a enorme
dificuldade conceitual que se costuma ter ao se apreender do que se trata a razão e do pensamento
racional. Se eu puder resumir toda a confusão de forma simples (e um pouco grosseira), seria o de
relacionar a racionalidade apenas a abstração, e quanto maior o grau de abstração aparente, maior é
o grau de racionalidade. Razão como algo duro, razão como algo impessoal, que quando tocada
pelo mundo emocional e sensível, parece ser corrompida. Quanto mais destituído de pessoalidade,
mais racional o pensamento é considerado. Se eu fosse complementar essa simplificação (um pouco
grosseira, reconheço) diria que o senso comum sobre a racionalidade se apega a formas,
completamente desprendidas de conteúdo.
Este processo remonta aos filósofos pré-socráticos e mais especificamente a Tales de Mileto,
o primeiro filósofo conhecido a buscar uma explicação sobre um princípio primeiro com base
material do qual todos os outros entes derivavam (em seu caso a água). Heráclito, um tempo mais
tarde, vai estabelecer que a existência de todas as coisas tem uma natureza mutável e fluída.
Parmênides estabelecerá que a existência é atemporal, uniforme, engendrada, necessária. Eu poderia
citar tantos pré-socráticos e cada um com uma contribuição importante, mas o ponto central é
elucidar que pela primeira vez o eixo explicativo sobre a natureza dos fenômenos tinha uma
preocupação causal e integrada. Isto é, existe um princípio que funciona como a base que
fundamenta todas as coisas, e que seus eventos estão conectados. Não trata-se de associar
meramente uma palavra a 5 ou 6 eventos isolados e particulares a fim de ter uma resposta imediata.
Não trata-se apenas de ter uma imagem primordial que como um filtro, é projetado por cima de
várias imagens que aparecem em nossa imaginação, trata-se de um aparato conceitual que tenta
integrar fenômenos de forma causal, derivativa e que precisa de explicação.
Respondendo aos problemas deixados por seus antecessores na dicotomia uno x devir, o
primeiro a tentar estabelecer um sistema integral para a explicação da realidade e que organizava
sob quais pontos fundamentais que a Filosofia se debruça foi Platão. Platão no entanto, ao
considerar o conhecimento como um processo de rememoração de ideias que já foram
contempladas pela alma anterior por meio da encarnação, estabelece na Filosofia uma base
profundamente mística para a aquisição de conhecimento. [RODAPÉ: Em seu sentido literal, já que
o conhecimento místico supõe aquilo que não é revelado se desvele através de alguma forma de
intuição. Como implicação de seu pensamento supernaturalista, neoplatônicos que formam sua
trajetória intelectual numa Roma já em ruínas, observarão a dicotomia do mundo sensível e o
mundo das ideias, e em face aos tempos trágicos e violentos onde estão inseridos, não enxergarão
outra possibilidade senão o sofrimento e a dor para o mundo sensível, e a paz e a serenidade
resguardada para o mundo espiritual e pós-mortem. No processo de formação da teologia católica
com Santo Agostinho, a integração desses pressupostos forma a base para a vida cotidiana de
completa abnegação do homem medieval. A crença num código de valores que prega apenas a vida
como uma etapa necessária para a morte, estando a verdadeira felicidade na vida pós-morte,
removem-se todos os incentivos para o homem produzir que não sejam o básico para sua
subsistência, o que é o traço característico da economia feudal.]
É o legado de Aristóteles que através de sua Metafísica e de sua Epistemologia, conquisatará
em boa parte as bases fundamentais que permitem o homem se relacionar com a realidade concreta
e estabelecer conexões apropriadas entre as coisas que existem. De forma resumida, a Metafísica
Aristotélica identifica a realidade como a base de qual derivam todas as coisas, não havendo outro
“mundo” a parte que dispute com este. Todas as substâncias que existem possuem uma natureza
específica e que não pode ser contraditória (isto é, não pode ser e não ser no mesmo momento e a
respeito da mesma coisa). Para a identificação apropriada, existem métodos de identificar a
disposição em categorias, de particulares a generalizações que atinjam universais (tais como
organizamos elementos em grupos matemáticos) e que permita identificar estados que contradizem
um ao outro. Dado que cada elemento tem uma natureza específica e uma informação não pode
contradizer a outra, alguma das duas por exclusão, necessariamente está errada – esta é a base da
Lógica Aristotélica.
Percebes o quão diferente é a relação do homem com o conhecimento nesse contexto? Este
método de cognição e de identificação de que a realidade tem uma base sensível e que seus entes
possuem uma natureza específica elimina a explicação arbitrária ou o conhecimento adquirido por
formas não identificáveis, intuitivas e reveladas por quaisquer forças que sejam. Dadas as bases
para o homem poder se relacionar de forma racional com a realidade, Aristóteles fornece támbém o
conhecimento apropriado de que estes processos cognitivos são adquiridos através dos dados
fornecidos pelos sentidos. Isso torna a relação do homem com as suas informações um processo
individualizado, experenciado por cada ser dotado de um organismo com mente e corpo completos
e integrados. O casamento destes três componentes (a metafísica realista, o método lógico de
identificação e o fato de que as informações obitdas pelos sensíveis são inerentes ao organismo da
pessoa) representam a conquista de dois dos três elementos do eixo razão-individualismo-
capitalismo.
Some esse componente a equação anterior: não é somente o corpo do homem que não
pertente mais a tribo. Agora é a mente do homem que também está sob a sua inteira
responsabilidade, ao invés dos desígnios de outra entidade. Na psico-epistemologia do homem
primitivo, enquanto seu corpo é público e propriedade da tribo, sua mente é propriedade do signo
que a tribo cultua e compartilha em comum. A psico-epistemologia do homem racional não permite
que ele seja sacrificado.
E é aqui que nosso texto fica interessante: agora ele começa a lidar com os problemas concretos que
afetam a sociedade como um todo, não somente aqueles que se interessam por problemas
filosóficos.
Ao contrário dos outros tópicos, já começarei partindo da própria definição de Rand sobre o
que seja o Capitalismo, para então contrastá-lo com alguns exemplos de modelos políticos
anteriores e mostrar suas relações com elementos dos eixos que exploramos até aqui. Em seu livro
Capitalism: The Unknown Ideal, Rand traz a seguinte definição:
Se você reler os pontos que eu abordei tanto ao explorar a natureza do coletivismo, quanto
do pensamento mágico, você encontrará uma relação: assim como a conquista das instituições de
família e propriedade significaram um avanço do homem público e tribal para um homem com
alguma noção básica de privacidade, a conquista da razão emancipa o homem de ter sua mente de
ser totalmente submetida aos caprichos alheios (de uma divindade ou de seu representante). O
Capitalismo nesse contexto, é o sistema político que assegura e organiza essa condição básica do
homem livre para pensar e livre para estabelecer uma relação com suas propriedades e parceiros de
forma privativa. Quando o homem é livre para o exercício de sua razão e entendendo que a
realidade não pode ser falseada, não há a necessidade do uso da força. Homens que trocam valor
por valor livremente não estão fazendo sacrifícios como o homem primitivo, mas celebrando
qualidades que podem oferecer um ao outro numa relação win-win. O Capitalismo é a conquista
última do eixo razão-individualismo-capitalismo na medida em que sua condição de existência
depende da integração coerente entre os dois. Remova a razão do eixo e você terá o uso da força
justificada com bases arbitrárias (e portanto místicas, por definição) ditando as interações
econômicas e sociais entre os indivíduos. Removendo a razão, você corrói a possibilidade de
individualidade, uma vez que o indivíduo não será livre para pensar porque seja seu corpo, seja sua
mente pertencem a outro. Adicione o acúmulo de capital a um sistema irracional e você tem toda a
sorte de economias mistas que geram crises atrás de crises, que fazem mais e mais empresários
corporativistas prosperarem, que geram escassez atrás de escassez e miséria atrás de miséria.
Os exemplos mais óbvios e até um tanto quanto batidos remontam as ditaduras socialistas
como Cuba e Venezuela, ou ainda as ditaduras socialistas do século XX como a União Soviética e a
China Maoísta.
Em alguns momentos deste texto, eu fiz questão de frisar que a conquista de cada elemento
do eixo razão-individualismo-capitalismo foi um processo gradual, que não é automático e sujeito a
tropeços. Apesar de eu não entrar em muitos pormenores do que isso quis dizer, o fiz de maneira
proposital para chegar neste ponto: nós podemos abrir mão de cada uma dessas maravilhosas
conquistas intelectuais a qualquer momento. Basta que não tenhamos o entendimento claro do que
elas significaram para a história do homem, ou basta que não saibamos exatamente o que elas são.
Aristóteles deixou uma série de pontas soltas em seu pensamento. Desde erros de integração
sobre como fenômenos físicos funcionavam até a manutenção de elementos platônicos em seu
pensamento. Os autores que inseriram o conceito de indivíduo no vocabulário político,
influenciados pela epistemologia aristotélica e milênios mais tarde (como John Locke) também não
conseguiram compreender a fundo as implicações totais do que ser um indivíduo significava psico-
epistemologicamente, caindo num subjetivismo ou em formas variadas de coletivismo na ética para
lidar com a questão da inter-subjetividade. Nesse processo, e na insuficiência de um sistema
filosófico que resolvesse essas inconsistências de forma completa e integral, abriram-se as brechas
para que inimigos declarados e outros mais sutis do pensamento racional e do individualismo
pavimentassem o caminho para a destruição de cada uma dessas conquistas.
Se Rand pudesse resumir neste exato momento quem seria o maior inimigo da razão, ela
continuaria afirmando enfáticamente que seria Immanuel Kant. Este talvez seja o ponto mais
controverso que os críticos de Rand gostam de bater: supostamente ela teria distorcido tudo que
Kant apresentou em suas críticas e seu tratado de ética. Mas será que o papel atribuido por Rand é
tão injusto? Ao se aprofundar os estudos sobre como concebe a relação existência-pensamento além
de seus tratados de ética, todos parecem endossar exatamente o papel que Rand atribuiu a ele.
Comecemos pelo princípio básico kantiano de que a realidade divide-se entre o mundo como
ele é (noumena) e aquilo que nossa mente representa dele (fenômeno). Kant é enfático, a realidade
existe mas não podemos conhecê-la, o que conhecemos são as representações do mundo que ficam
como impressões marcadas na nossa mente. Ainda assim, Kant não era um subjetivista. Alguns
desses conhecimentos independem completamente dos sentidos, os conhecimentos conhecidos
como a priori, os exemplos de conhecimento a priori puro adquiridos pela intuição e marcados na
nossa mente de imediato são o tempo, espaço e causalidade.
A Ética Kantiana consegue ser ainda mais perversa, ao estabelecer que a dignidade e a
felicidade só podem ser obtidas a partir do cumprimento do dever, Kant remove qualquer
possibilidade de satisfação pessoal real, ainda que nominalmente use eventualmente deste termo.
Sua justificação está na base de que dadas as limitações da consciência do indivíduo, ele precisa se
ater a um código de moralidade fornecido por uma lei universal, isto é, maximizar suas ações como
se toda pessoa pudesse agir de acordo. De modo menos pernóstico, isso significa enxergar
basicamente a humanidade como um fim último das suas ações. A felicidade individual, neste
contexto, está mais no departamento da imaginação do que da razão (palavras de Kant, não minhas).
O obedecimento ao dever é o traço primordial de uma ação verdadeiramente ética.
O coletivismo é apenas a consequencia política desses dois fatores, como já ficou bem
evidenciado nos exemplos dados acima. No entanto, ainda falta uma peça chave para entendermos
como que indivíduos que nunca sequer ouviram falar de Kant e seus seguidores, padecem
justamente dos efeitos de um mundo construído sob o paradigma kantiano. A resposta,
curiosamente, está num marxista muito interessante de estudar: Antonio Gramsci e seu conceito de
intelectual orgânico.
Mas isso por si só explica a adesão de Joãozinho a sistemas de crenças irracionais? Não
exatamente. O caminho que este segue para a adoção senão integral, mas parcial de um modo
primitivo de pensamento (considerando que Joãozinho possua habilidades específicas em que seja
profundamente competente) é justamente na ausência de ter um framework intelectual racional,
consistente e conectado com seus problemas onde ele possa se apoiar. Escolas não ensinam lógica
aristotélica como método fundamental de integração dos dados fornecidos pelos sentidos e
estabelecimento apropriado de relações de causalidade. Figuras de opinião, isto é intelectuais
orgânicos, não fornecem mais do que confirmação de viés travestido de opinião científica. Na
ausência de qualquer possibilidade de se conhecer de forma conceitual e objetivamente o que
acontece com os fenômenos do espírito (ética, política e a própria psicologia), nós retrocedemos aos
estados mais básicos de cognição associativa, arquetipal e totêmica para nos relacionarmos com a
realidade. Em resumo, nós retornamos ao primitivo, tanto em mente quanto em corpo.
Daí que surge toda sorte de bizarrices do mundo contemporâneo: a adesão completamente
inexplicável de pessoas a astrologia, a religiões New-Age, a romantização do Budismo e da vida
ascética, das políticas identitárias, do racismo generalizado, de terapias espirituais, do abuso de
drogas recreativas como mecanismo de “elevação da consciência”, do hedonismo “vulgar”, do
coletivismo enquanto regra na política, das sucessivas crises econômicas que supostamente
representam o “fracasso do Capitalismo”, do culto quase pagão à natureza por parte dos
movimentos ambientalistas, das cada vez maiores restrições governamentais a empresas, de
romantização de transtornos mentais como agenda política por parte da esquerda, etc. Na medida
que a razão e a individualidade já foram quase que completamente obliteradas, não faltará muito
para que o Capitalismo seja o próximo.
E a defesa das condições que melhor fizeram o homem sobreviver e ter uma vida digna, feliz e
plena existe pode ser resumida em um nome: O Objetivismo de Ayn Rand.