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“O império deles [gregos], através do progresso das colônias e da conquista, se difundira desde
o Adriático até o Eufrates e o Nilo. A Ásia estava coberta de cidades gregas, e o longo reinado
dos soberanos macedônios causara uma revolução silenciosa na Síria e no Egito. Em suas cortes
pomposas, esses príncipes uniam a elegância de Atenas ao luxo do Oriente, e o exemplo da
corte era imitado, a humilde distância, pelas camadas mais altas de seus súditos.” (GIBBON,
2005, p. 63).
Em flagrante contraste com a cultura helênica, estava a cultura hebraica. O fato da instituição da
Lei religiosa pelos judeus é mais revelador do que aparenta. A descoberta do poder da crença na
Antigüidade está para o conhecimento subjetivo como a descoberta da roda está para o
conhecimento objetivo. Uma concepção que, talvez, equivaleria à construção de um veículo
impalpável para conduzir um povo inteiro pela abstrata estrada do tempo.
Houve um confronto muito sério entre gregos e judeus quando a Judéia estava sob o domínio da
Síria grega, a revolta dos Macabeus (166-160 Era Antiga), quando os judeus saíram vencedores
e deu-se início a dinastia ashmoneana (homenagem a Ashmon, avô de Judas, o macabeu). Essa
derrota não foi somente militar e política, foi principalmente uma derrota cultural. A única
sofrida pelos gregos em sua história, e um espinho que ficou encravado no orgulho deles. Por
viverem numa sociedade fechada, impermeável aos costumes alheios, proibindo casamento com
estrangeiros e não freqüentando as festas populares, os judeus acentuaram a sua antipatia junto à
intelectualidade helenística. Tal segregacionismo lhes valeu o título de “inimigos da
humanidade”.
“Os gregos viam seu oikoumenê, isto é, o universo civilizado onde suas idéias prevaleciam,
como uma sociedade multirracial e multinacional, e aqueles que recusavam a aceitá-lo eram
inimigos do homem. Em sua grande ofensiva contra o judaísmo mosaico, Antíoco Epífanes
jurou abolir as leis judaicas “prejudiciais” à humanidade, e ele sacrificou porcos sobre os livros
sagrados judaicos.” (JOHNSON, 1989, p. 138)
Para os gregos antigos odiar não era feio. Pelo contrário, era obrigação do indivíduo solidarizar-
se ao ódio dos amigos, dos parentes, da comunidade e do seu povo. O ódio contra os judeus veio
rolando como uma bola de neve na ladeira do tempo.
“Além disso, como nos tempos atuais, o anti-semitismo era estabelecido não só pelo boato
vulgar, mas também pela propaganda deliberada de intelectuais. Por certo, no primeiro século
d.C., o sentimento anti-semita que crescia constantemente, era, em grande escala, a obra dos
escritores, sendo a maioria deles os gregos.” (JOHNSON, 1989, p. 138)
“Maneto, o historiador egípcio, espalhou a história de que os judeus haviam sido expulsos do
Egito, havia muitos séculos, por sofrerem de escrófula ou lepra. O preconceito anti-semita
intensificava-se de ambos os lados e, no século I da era cristã, estalou com destruidora
violência.” (DURANT,1971, p. 468)
A maioria desses intelectuais procedia de cidades gregas da Ásia Menor, da Síria e do Egito:
Clearco de Soli (filósofo da escola de Aristóteles), Diodoro Sículo (historiador), Queremon
(historiador), Lisímaco, Apolônio Mólon (retor), Apion (professor de literatura e escritor).
Depois que os rudes romanos conquistaram a Macedônia, a Grécia e a Ásia Menor na era
passada, além dos horrores da guerra, o terror dos gregos teve prosseguimento na usura dos
vencedores. Mais do que em Atenas, a rica e culta sociedade grega oriental experimentou uma
situação deplorável. A exploração intensiva das cidades ricas do Oriente transportava para a
Itália o patrimônio acumulado por essa civilização, desde as conquistas de Alexandre. Tudo
passava para as mãos dos financistas italianos. Aquela gente culta e refinada via-se obrigada a
vender filhos e filhas, por fim, entregavam a si mesmos como escravos, sem opção, diante da
desgraça financeira provocada por dívidas compulsórias.
“Roma era uma república de camponeses que se assenhoreava dos domínios e dos bens de uma
civilização responsável pelas grandes conquistas do Ocidente, sem estar qualificada para
administrar a oportunidade que se apresentava. Até o início da era atual, Roma destrói, sem
construir, algo de novo à altura daquilo de que se apropria. Pilha e arruína, pondo em perigo as
cidades que se tornaram suas, e, sacando imprudentemente sobre um capital que já é seu
compromete o próprio futuro.” (AYMARD; AUBOYER, 1974, p. 96)
Anatolianos escravizados deixaram parentes e amigos na Ásia Menor. Não há por que se pensar
que esse povo experimentado e orgulhoso das suas conquistas e estilo de vida, se deixaria
docilmente, de braços estirados, entregar-se aos suplícios do destino. Uma idéia que em nada
combina com o perfil dos gregos, especialmente dos orientais que já haviam enfrentado o
poderoso Império Persa. Mas os tempos eram outros, portanto, outras providências haviam de
ser tomadas.
“Ao desembarcar na Ásia Menor, Augusto entrara em contato com uma das três maiores regiões
industriais do mundo antigo, e que eram, precisamente, a Ásia Menor, a Síria e o Egito.”
(FERRERO, 1965, P. 138)
“Quando Augusto esteve em visita a Ásia Menor, encontrou templos que se erguiam em sua
homenagem, como se fazia para os reis antigos, em Pérgamo e Nicomédia. Havia um culto que
estava prestes a se espalhar por toda a Ásia Menor, inicialmente. Augusto havia sido elevado
pelos gregos anatolianos à condição de um deus, tomando o deus pai todo poderoso, Zeus, como
modelo. Havia o cuidado para que a devoção não se traduzisse apenas em algumas cidades, mas
em toda a Ásia grega. Jogos solenes foram organizados em honra de Roma e de Augusto, e
altares foram devotadamente erguidos.” (FERRERO, 1965, p. 136)
Nessa visita Augusto foi contemplado com um evangelho. Evangelho era um tipo de literatura
comemorativa grega. Comemorava a chegada de um soberano, o final de uma guerra ou a
resposta positiva de um oráculo. Uma boa recompensa era paga ao mensageiro das boas novas,
significado do termo “evangelho”.
“Esse culto era uma novidade estranha, a adoração de um deus vivo era apenas praticada no
Egito, o costume na Ásia Menor era incluí-los na legião dos deuses somente depois de mortos.
Por que esse costume egípcio surgira repentinamente? Por que, enquanto na Itália se tentava
restaurar a república, essa planta de solo monárquico enroscava-se como hera no primeiro
magistrado da república?” (FERRERO, 1965, p. 138)
Por toda à parte da área mediterrânea, a Paz de Augusto originou uma nova segurança e
liberdade de comunicações, encorajada por intensa construção de estradas e a expulsão dos
piratas dos mares. Por toda a Ásia Menor, as velas das frotas mercantes se enfunavam de novo
ao vento. Gregos livres e cativos tinham um propósito definido e um adversário comum pouco
experiente na área do pensamento.
Antes da instauração do Império os judeus tinham certo prestígio junto aos romanos, prestígio
este que não desapareceu completamente. Abasteciam Roma com o trigo que traziam da África.
O reinado judeu dos ashmoneanos manteve um bom relacionamento com o Senado por muito
tempo. Esse entendimento antigo incomodava os gregos.
“Enquanto os judeus assim desfrutavam de governo próprio, pareceu a Roma que, lisonjeando-
os nessa posição, eles seriam menos cansativos que os gregos e mais aptos a suportar o poder
administrativo. Por isso, Augusto, ao mesmo tempo em que refreava os gregos alexandrinos,
confirmava os privilégios judaicos.” (GRANT, 1977, p. 61)
A influência e a participação direta dos escravos libertos [gregos] no governo imperial foi num
crescente tal dominando Roma que favoreceu seus interesses ocultos. O imperador Cláudio (41-
51) introduziu o costume de chamar para seus ministros e principais conselheiros políticos esses
cultos, talentosos e abastados libertos, que possuíam um poder jamais atingido por um senador.
Os três secretários de Estado: Palas (Finanças), Narciso (Secretaria de Estado) e Calisto
(Petições), são bons exemplos de tal situação. Também Nero (54-68) esteve envolvido por
poderosos e temidos libertos, como Paris, Hélio e Epafrodito. (GRANT, 1977, p. 123)
“Como os gregos de Alexandria, os helenos da Palestina eram notórios por seu anti-semitismo:
foram de língua grega de Jabné e Achkelon que levaram a Calígula conhecimento de suas
medidas antijudaicas. Ingenuamente, Roma insistiu em retirar seus procuradores da Judéia das
áreas gentias de fala grega – o último, e o mais insensível deles, Géssio Floro, veio da Ásia
Menor grega.” (JOHNSON, 1989, p.140)
“[...]. Conseqüentemente é importante compreender que a revolta judia contra Roma era, no
fundo, um conflito entre a cultura judaica e a grega.” (JOHNSON, 1989, p.124)
A rixa entre gregos e judeus é pouco noticiada e não tem as suas origens claramente
estabelecidas, o que causa estranheza porque esses dois povos, alegadamente, protagonizam no
século I a história oficial do cristianismo. História que poderia ficar difícil de ser explicada,
como foi num clima desses.
E no ano de 53 d.C., dois dirigentes anti-semitas, cujo caso Cláudio acedera em ouvir, foram
condenados à morte e canonizados como mártires anti-semíticos.” (GRANT, 1977, p. 61)
Antissemitismo eu não diria, seria anacrônico, mas o antijudaísmo evidente merecia um estudo
mais apurado e valorizado da parte dos ilustres historiadores cristãos. A canonização que muito
tempo depois seria usada pela Igreja Católica para declarar a santidade dos seus mártires, era a
mesma que foi utilizada para prestigiar e dignificar o ódio antijudaico reinante nessa parte
obscura da história. Ao que parece a influência grega e antijudaica era tão evidente no século I
que muitas vezes precisou de contenção da parte do dominador romano.
“[...]. Mas, imperadores como Vespasiano, Trajano e os seus sucessores julgaram imprudente
confiar de tal modo em ex-escravos; e os cargos de secretário de Estado foram doravante
preenchidos pela classe mais elevada dos cavaleiros.” (GRANT, 1977, p.123)
Todavia, a partir do último século da Era Antiga um novo cavalo cenográfico, mais atraente
ainda do que o de Tróia, era deixado pelo destino à porta de Roma. Cidadãos anatolianos
qualificados foram levados em massa para lá como escravos por traficantes italianos. Eram
médicos, artistas, arquitetos, engenheiros, juristas, professores, artesãos, operários
especializados, lojistas, leiloeiros, copistas etc. Muitos desses libertos se beneficiaram
largamente da onda de prosperidade comercial iniciada com a Paz de Augusto. Uma nova Roma
eles iam erigir.
Os censores eram eleitos pelo Senado, faziam o censo para que fosse avaliada a reserva de
soldados e o montante do recolhimento dos impostos, a receita do governo. Também era função
dos censores zelarem pelos antigos costumes romanos. Um Senado forte seria desinteressante
aos interesses da nova e transformadora classe média, cuja força mudava não só a aparência, a
cultura e os costumes de Roma. Um imperador à moda oriental seria mais fácil de manobrar
pela sua corte. Um destino inimaginável aguardava a altiva cidade, esboçado por aqueles que se
cercavam de privilégios. Uma elite muito diversa da antiga aristocracia romana - comprometida
com o bom funcionamento do Estado e com os costumes daquela sociedade – distanciava-se
cada vez mais das outras classes sociais alargando um espaço propício à corrupção.
“Enquanto que, na República, os cidadãos eram iguais perante a lei, no Império a lei distinguiu
entre os cidadãos duas classes: os ricos, que se chamavam os honoráveis, e os pobres,
desprezados pelo nome de gentalha. Somente os primeiros podiam tornar-se senadores,
magistrados ou funcionários imperiais; somente eles [enquanto que outrora esse privilégio era
concedido a todos os cidadãos] não podiam ser surrados com varas, nem crucificados, nem
lançados às feras.” (ALBA, 1964, p. 158)
A grande penetração de cultos orientais em Roma, no primeiro século, pode ser facilmente
compreendida com a substituição da classe média de origem italiana pela classe média de
origem grega asiática.
“muitas das seitas pagãs [gregas] desse período [séculos I e II] eram, também, violentamente
antijudaicas, e as de tendências dualistas identificaram “o execrável deus dos judeus” com o
poder maligno de saturno e com o Diabo” (GRANT, 1977, p. 63)
Na segunda metade do primeiro século havia surgido uma grande novidade no âmbito
filosófico-religioso ─ o gnosticismo. Esse movimento brotou de um sincretismo religioso que
envolvia a Babilônia, Egito, Síria e Grécia. Sem que nos esqueçamos da penetração cultural
grega nos três primeiros países. Elementos da religião iraniana ou persa se enlaçaram às
religiões de mistério gregas e ao neo-platonismo e progrediu nos países a cima citados. A
identificação do demiurgo de Platão, deus menor criador do mundo da matéria, como deus dos
judeus veio ao encontro do antigo antijudaísmo grego. Esse sentimento contou com o referido
respaldo do final do século I até o final do século II.
“De acordo com o mestre gnóstico Teódoto, que escreveu na Ásia Menor entre os anos 140 e
160, o gnóstico é aquele que chegou a compreender quem éramos e quem nos tornamos; onde
estávamos [...] para onde nos precipitamos; do que estamos sendo libertos; o que é nascimento,
e o que é o renascimento. Porém, conhecer-se no nível mais profundo é, segundo os gnósticos,
simultaneamente conhecer Deus; esse é o segredo da gnose. Um outro mestre gnóstico,
Monoimus, diz: Abandone a procura de Deus, a criação e outras questões similares. Busque-o
tomando a si mesmo como o ponto de partida. Aprenda quem dentro de você assume tudo para
si e diz,‟Meu Deus, minha mente, meu pensamento, minha alma, meu corpo‟. Descubra as
origens da tristeza, da alegria, do amor, do ódio [...] Se investigar cuidadosamente essas
questões, você o encontrará em si mesmo.” (PAGELS, 1995, p. 17).
Roma chegou ao século II com o poder dos gregos libertos sob relativa contenção. Foi,
justamente, na segunda metade do segundo século, sob o reinado de Antônio Pio (138-
161), soberano muito tolerante com os cultos estrangeiros, que havia revogado as leis
antijudaicas do seu antecessor, Adriano, que os propagandistas cristãos começaram a
chegar à capital do Império. Vinham, em sua maioria da Anatólia ou Ásia Menor.
Marcião (Ponto, norte da Anatólia) chega em 140, Justino (Anatólia) em 150, Policarpo
(Anatólia), em 155 e Hegesipo (Anatólia), em 160. Praxéas (Cartago), Epígono
(Anatólia), Teódoto (Anatólia) para lá se dirigem. No final do século II são muitas as
escolas cristãs de Roma. No fim do século II, havia em Roma uma abundância dessas
escolas.
“Percebendo os gregos que haviam fracassado na helenização dos judeus, começaram a temer
pelo próprio futuro, num Estado em que a maioria continuava persistentemente oriental e se
reproduzia com tanta intensidade.” (DURANT, 1971, p. 468)
“Clemente de Alexandria (150-215) apresenta-nos nos livros II, IV, VI e VII dos Estrômatos o
retrato do verdadeiro gnóstico, isto é, do cristão que vive da fé e coloca a sua inteligência e a
sua vontade a serviço da crença, de tal modo que, ao mesmo tempo que se aprofunda nos
mistérios divinos até chegar à contemplação, pratica a ascese até alcançar o pleno domínio sobre
as paixões. O gnóstico, portanto, não é um ser privilegiado por natureza nem um participante
especial de mistérios secretos, mas o cristão que procura crer na palavra de Cristo e vivê-la com
intensidade em todos os atos e momentos da existência.” (NUNES, 1978, p.113 –114)
Houve uma convivência difícil entre o cristianismo gnóstico e o outro, que reclamava um Jesus
histórico para fazer uma ponte indispensável ao judaísmo e pretendia requalificar do deus de
Israel como o verdadeiro e único deus. Naturalmente, o deslocamento de Jesus Cristo do tempo
mítico para o tempo histórico traria dificuldades como as inevitáveis fraudes pias. Este outro
entendimento cristão viria ser o cristianismo ortodoxo depois do Concílio de Nicéia, em 325.
Como haveriam de enfrentar o proselitismo judeu naquelas condições que o gnosticismo cristão
apresentava? O sentimento anti-romano, presente no Apocalipse de João, e o ódio anti-judaico
latente na versão gnóstica precisavam de outra feição.
“O meio século que vai de 150 a 200 marca assim um momento decisivo do cristianismo.
Continua precária a situação jurídica dos cristãos. Importuna-nos as calúnias populares.
Perseguições abrem novas brechas. Romperam, no entanto o gueto em que os quiseram
encerrar. Daqui por diante não mais se pensará ver neles uma pequena seita oriental. Como dirá
Tertuliano, enchem o fórum, os banhos, os mercados, as escolas. Não têm motivos para se
desvincularem de uma civilização que apreciam. Dela recusam apenas as perversões. As
violências do apocalipse judeu-cristão, os exageros do encratismo não estão inteiramente
apagados. Pertencem no entanto aos assuntos do passado. Novo tipo de cristão surgiu e esse
pretende unir os valores do helenismo e a fé do cristão. Está fadado a suscitar as grandes figuras
do início do III século.” (DANIÉLOU; MARROU, 1966, p. 151)
Pode-se concluir por um cristianismo nada popular, ao contrário do que se faz crer. Houve uma
virada radical demais que implica em poder político, social e grande capacidade de
convencimento, atributos que nunca estiveram ao alcance de gente humilde e pouco ilustrada. A
antiga animosidade entre gregos e judeus jamais teria aceitado, num meio altamente politizado
como sempre foi, uma concepção religiosa provinda do reduto menos esclarecido dos
convertidos ao judaísmo e, ainda mais, se dedicaria com tanto empenho à ela. Parece que o
teólogo, historiador e filósofo alemão Bruno Bauer (1809-1882) estava certo, quando afirmou
que o cristianismo não surgiu diretamente do judaísmo, o Novo Testamento é mais grego do que
judeu, o cristianismo do século I é inteiramente fictício e Jesus Cristo é um mito criado no
século II.
“Níveis cada vez mais estratificados da hierarquia institucional iam consolidando internamente
as comunidades e regularizando a comunicação do que Irineu chamou de “igreja católica
espalhada por todo o mundo, até os confins da terra”- uma rede de grupos que ia se tornando
cada vez mais uniforme na doutrina, no ritual, no cânone e na estrutura política.” (PAGELS,
1995, p.123)
Não existem e nunca se ouviu falar de fragmentos de escritos cristãos do século I. Todos estes
fragmentos pertencem ao século II. O silêncio da história quanto a isso, a pesar de
desconcertante, é contestado de forma precária, mas apaixonada pelos cristãos. Até mesmo a
alegada perseguição de Nero aos cristãos, no século I, foi colocada em suspeita pelo historiador
Edward Gibbon. Ele aventa que o verdadeiro alvo da perseguição pode não ter sido os cristão;
mas uma seita judia cismática conhecida como gaulonitas. (GIBBON, 2005, p. 289)
“Resta, no referente ao século IV, a admirável floração, função dos Padres da Igreja, tanto
gregos como latinos. Não haverá inconvenientes em encará-los agora, e sob o ângulo da
literatura. Sem dúvida, eles escrevem, alguns com grande abundância, e ouvintes atentos
estenografam freqüentemente suas próprias palavras, a fim de assegurarem a publicação. [...].
Não há vida sem luta: nos séculos II e III, os primeiros escritores cristãos tiveram de polemizar
contra os inimigos exteriores: após o triunfo, coube-lhes defender a fé contra a heresia e, ao
mesmo tempo, instruir seus fies e guiá-los numa vida terrena semeada de emboscadas. O
dogma, o ensino, a moral, eis os objetos de seus tratados doutrinais, de seus sermões e suas
cartas.” (AYMARD; AUBOYER, 1974, p. 62)
Se não existiram escritores cristãos no século I era porque não existia o cristianismo. A história
do alegado judeu cristianismo foi evidentemente plantada no século I, depois da guerra, porque
a destruição de Jerusalém com os grandes incêndios e a dispersão dos judeus sobreviventes teria
apagado as “provas” da sua existência. Além do mais, o público alvo vivia muito longe dali.
Gibbon, como alguns intelectuais cristãos, reclama da história oficial. “Os minguados e
suspeitos elementos de informação propiciados pela história eclesiástica raramente nos
possibilitam desfazer a nuvem escura que pesa sobre os primórdios da Igreja.” (GIBBON, 2005,
p. 235)
“O teólogo pode bem se comprazer na deliciosa tarefa de escrever a religião descendo do céu
revestida de sua pureza natural. Ao historiador compete um encargo mais melancólico. Cumpre-
lhe descobrir a inevitável mistura de erro e corrupção por ela contraída numa longa residência
sobre a terra, em meio a uma raça de seres débeis e degenerados.” (GIBBON, 2005, p. 236)
O entendimento de que história é história, e crença religiosa é crença religiosa, ainda resiste
porque a versão oficial é inteiramente dependente desse favorecimento ideológico. A história é a
perna manca do cristianismo e a filosofia a perna sã que tem que suportar o maior peso. Quando
se inventa um fato, há de se passar o resto da vida inventando outros para sustentar aquele. A
filosofia que se vire.
“[...] A humanidade teria então uma história comum e uma direção única: a vitória romana e a
salvação cristã. A história da salvação romano-cristã reúne tempo e eternidade, história e Cristo.
Foi uma idéia absolutamente nova, que nem os judeus haviam chegado a formular, obcecados
com a idéia de “um povo eleito”. [...] Os eventos históricos eram manifestação de Deus, cuja
vontade devia ser decifrada. O destino das nações, as lutas políticas se submetiam à vontade
divina. Essa idéia nova criou uma história nova – a história universal.” (REIS, 2003, p. 19)
Evidentemente essa história jamais deveria ser contada como eu conto agora. Deveria ficar
protegida dos curiosos pela redoma opaca da filosofia de da teologia. Porém a nossa origem
cultural nos faculta também o desvelamento, aliás, essa sempre foi a marca dela.
“O grego era poeta e artista, apto para imaginar fábulas e formas cheias de encanto, de graça e
vida. Era sábio e filósofo, inclinado a levar até a extrema audácia a reflexão sobre o universo,
sobre a natureza e sobre si mesmo. Repartia-se entre uma tendência racionalista, que o conduzia
às mais ousadas negações, e uma tendência mística, que seu antigo e ininterrupto contato com o
Oriente sempre alimentara, mas à qual a simbiose criada pela conquista de Alexandre atribuía
vigor especial.”(AYMARD; AUBOYER, 1974, p. 200)
Foi com vigor especial que o cristianismo conquistou o poder de Roma. Constantino era grego e
se cercava de cristãos antes mesmo de se tornar Augusto Ocidental. Era o candidato natural do
mundo helênico. Desprezava Roma como os gregos aos latinos. A transferência da capital do
império para solo grego, além das vantagens práticas, como deixar o Oriente mais protegido, há
de ter sido uma saborosa dos humilhados gregos.
“Roma foi-se confundindo aos poucos com os reinos dependentes que outrora lhe haviam
reconhecido a supremacia; e o país dos Césares passou a ser olhado com fria indiferença por um
príncipe guerreiro nascido nas vizinhanças do Danúbio, educado em cortes e exércitos da Ásia
Menor e investido na púrpura pelas legiões britânicas.” (GIBBON, 2005, p. 293)
Foi por intermédio de Constantino que os gregos cristãos e seus irmãos de crença romanos
assumiram prontamente a máquina estatal e não perderam tempo. Os primeiros símbolos
cristãos aparecem nas moedas como instrumento de propaganda, desde 315. As últimas
representações pagãs desaparecem em 323. A partir daí, o cristianismo passa a ter o Estado
como o maior e mais importante aliado. Finalmente chegaram lá.
Muito se fala mal da Igreja Católica, com justeza sem dúvida, no entanto, deveriam lembrar que
ela era feita de gente que tinha pai e mãe, tinha nascido em algum lugar e, portanto, tinha uma
naturalidade e uma nacionalidade definida. Ninguém atentou para isso por causa do eufemismo
de se chamar uns de cristãos e outros de pagãos. De se dizer que fulano era egípcio, sírio,
africano porque nasceu lá; quando todos esses eram helenizados, gregos de origem ou de fato.
“Jesus Cristo definido como “Divindade da Divindade, Luz da Luz, Verdadeiro Deus do
Verdadeiro Deus, consubstancial ao pai”, a histeria anti-judaica redobrou o seu furor e a
acusação mais corrente que se fazia aos judeus era de “deicidas”. Tudo começou em 18 de
outubro de 315, quando Constantino proibiu os judeus de adotarem medidas contra seus
correligionários convertidos ao cristianismo, na mesma ocasião que ele próprio tomou medidas
para desencorajar os cristãos de se converterem ao judaísmo.” (MESSADIÉ, 2003, p.150 –151)
Toda a igreja patrística era grega e anti-judaica. Escreveu horrores contra os judeus visando
desautorizá-los do Antigo Testamento e acabar com o judaísmo. Inventaram uma Nova Aliança
para isso, aliás, idéia que a ortodoxia cristã tomou emprestada dos essênios. Em sua História
Natural, Plínio, o Velho, publicou esta obra enciclopédica no século I, que tratava de vários
assuntos. Plínio era um leitor ávido que hauria com abundância em outras fontes para obter as
informações que desejava registrar. Ele mesmo admite que o fazia e menciona cerca de cem
fontes das quais extraiu os dados compilados no seu livro. Para o livro V, onde aparece o
parágrafo sobre os essênios, Plínio reconhece ter usado cinqüenta e nove fontes. Isso revela a
popularidade dos essênios naquela época. (VANDERKAM, 1995, p. 80)
“[...] Irineu se volta para a questão prática de quem cultua a Deus corretamente e quem não
cultua. Primeiro, diz ele, os judeus não cultuam, pois se recusaram a ver que “o verbo do
Senhor” que falou a Abraão e a Moisés foi nada mais, nada menos, do que Jesus Cristo. [...]
Visto que não reconhecem Jesus como “o Deus que falou em forma humana” a seus ancestrais,
os judeus, diz Irineu, foram deserdados por Deus, que os privou do direto de serem sacerdotes.
Embora continuem a venerá-lo, Deus rejeita suas oferendas, assim como rejeitou as de Caim,
pois exatamente como Caim matou Abel, os judeus “mataram o Justo” – Jesus -, portanto, “têm
as mãos cheias de sangue.
Os judeus, portanto, cultuam Deus em vão, pois ele transferiu o sacerdócio deles para quem
reconheceu o seu “verbo” – ou seja, os apóstolos, a quem Jesus ensinou a fazer “o sacrifício do
novo pacto” quando lhes disse que oferecessem o pão a que chamou de seu corpo e o vinho a
que chamou de seu sangue. Desde que Jesus morreu na cruz, a eucaristia que reencena o seu
sacrifício é o pára-raios que atrai o poder de Deus para a Terra. [...]” (PAGELS, 2004, p. 160)
“Ainda hoje alguns estudiosos aproximam os manuscritos e o cristianismo de forma muito mais
estreita do que admite a opinião predominante, mas eles conseguiram convencer um número
muito reduzido de pesquisadores, e em geral são levados mais a sério pela imprensa do que
pelos seus colegas.” (VANDERKAM, 1995, p. 193)
“Se por um lado não há praticamente ninguém, entre os estudiosos dos manuscritos, que
acredite que hajam surgido em Qumran cópias dos livros do Novo Testamento, por outro lado
um número ainda maior de pesquisadores acha provável que partes de alguns livros do Novo
Testamento tenham se baseado em fontes de Qumran (ou essênios, em geral), as quais foram
talvez revistas e editadas em seus novos contextos. [...].” (VANDERKAM, 1995, p. 199)
No início da última metade do século XX havia certa preocupação, nos meios cristãos
gerada pela expectativa quanto aos resultados das pesquisas dos primeiros manuscritos
encontrados em Qumran. Havia muita especulação na imprensa, e alguns livros sobre o
assunto já haviam sido publicados, como o de André Dupont-Sommer, Os manuscritos
do Mar Morto: um estudo preliminar, em 1952, e o de Eleazar Sukenik, A coleção
secreta dos manuscritos em posse da Universidade Hebraica, em 1954. Nesse clima
desconfortável de um possível desvelamento, o Papa Pio XII, durante o Congresso
Internacional de Ciências Históricas, em Roma, no ano de 1955, oito anos após os
primeiros achados em Qumran, deixou escapar o que não devia: “Para os cristãos, o
problema da existência de Jesus Cristo concerne à fé, e não à ciência [histórica].”
Felizmente ninguém é perfeito. Foi um dos mais prestigiados dos historiadores cristãos que
deixou escapar uma das mais preciosas evidências dessa conspiração grega. Claro que jamais
encontraríamos notícias explícitas sobre o que realmente aconteceu. Porém, a pergunta que não
queria calar: por qual motivo o cristianismo teve um sucesso tão assombroso? Está respondida.
Lógico, se considerada histórica aversão oficial, ela jamais seria respondida. Somente os gregos
poderiam ter conseguido isso. Eram os mentores culturais do mundo antigo. Para aonde eles
apontassem todos iriam sorrindo, menos os judeus, claro.
“Mas a Hélade conquistadora não conseguiu cativar a Jerusalém cativa, e sua tentativa de
introduzir a civilização, tal como a entendia, na Judéia rústica, foi rejeitada com indignação. Por
fim, a Hélade frustrada chegou a termos com a Judéia indomável, adotando uma versão
helenizada da sua religião fanática. Esse tempestuoso encontro e a final união do helenismo com
o judaísmo deram origem ao cristianismo e ao islamismo, duas religiões heleno-judaicas que
são hoje professadas pela metade da raça humana.” (TOYNBEE, 1983, p. 173)
Quando se refere a uma versão helenizada da sua religião fanática, Toynbee reconhece a
existência de um judaísmo grego, que aboliu a circuncisão e aliviou a rigidez mosaica.
Entretanto, não revelou como e de que maneira a Hélade frustrada chegou a termos com a
Judéia indomável. A união natural entre o helenismo e o judaísmo não seria apenas improvável,
seria absurda também. Mesmo com o desgosto de se ver o que foi feito com a história, ao
menos, a origem helênica do cristianismo pode ser textualmente confirmada.
Dentro do quadro dos povos que se relacionam com a história da nova civilização, são apenas os
Gregos e os Israelitas que, sem depender um do outro, produziram uma genuína literatura
histórica. (RENCKENS,1969, p. 25) Não é à toa que nenhuma das duas produções históricas,
por motivos diferentes, nada registraram claramente sobre o que eu acabei eu de apresentar.
Tecnicamente falando, o termo „Bíblia‟ é uma forma enganosa de convencimento, por não se
tratar de uma obra cuja inteireza justifique a importância que esse termo alcançou. A precária
argumentação de que um livro é a continuação do outro esbarra em muitas dificuldades,
especialmente porque o judaísmo não acabou para que seja continuado. Estão evidentes o
conflito e o confronto instigados pelo antijudaísmo do Novo Testamento, nos 25% que lhe
cabem. Essa união de duas obras antagônicas, formando convenientemente uma terceira, sob um
único título, antes de qualquer outra possibilidade interpretativa, é a prova material da cobiça
[do valor pedagógico] do alheio. O Antigo Testamento ali está como o espólio de uma decisiva
batalha cultural da qual não se deu notícia.
Nota:
Pelo meu nome de família “Medina”, alguns podem pensar que sou um judeu versando em
causa própria. Não sou de origem judaica e tampouco reservo simpatia especial por povo algum.
O único grupo no qual eu me reconheço é o humano. A Humanidade tem sido vítima e algoz de
si mesma. Não creio que seja longe da verdade que a ela vá sarar suas feridas.
Referências
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MESSADIÉ, Gerald. História geral do anti-semitismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
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REIS, José Carlos. História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio
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