A Aliança de Civilizações, o maior foro da ONU depois da Assembléia Geral, se
propõe a construir uma nova forma de pensar e de praticar a convivência entre as culturas diferentes Especial para África21 - Beatriz Bissio
A cidade do Rio de Janeiro foi o cenário do III Fórum Mundial da Aliança de
Civilizações das Nações Unidas (UNAOC), reunido em maio passado com a palavra de ordem “Entrelaçando culturas, construindo a paz”. A mensagem mais relevante do evento foi que somente com a promoção de uma cultura de paz, alicerçada no respeito da diversidade cultural e religiosa, no diálogo e na integração social, será possível evitar conflitos e orientar os esforços internacionais para a erradicação da pobreza, a promoção do desenvolvimento e a prevenção das catástrofes ambientais. Com mais de três mil delegados, entre os quais o Secretário Geral e o Presidente da Assembléia Geral das Nações Unidas, chefes de Estado e de governo, ministros das Relações Exteriores e de Cultura, diretores de organismos multilaterais, intelectuais, parlamentares e dirigentes de organizações não governamentais, essa foi a reunião internacional de mais alto nível a se realizar no Rio de Janeiro desde 1992, quando a cidade foi a anfitriã da Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, mais conhecida como a Rio-92 ou a Cúpula da Terra. A idéia de uma Aliança de Civilizações foi formulada pelo Presidente do Governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, e por Recep Tayyip Erdogan, Primeiro Ministro da Turquia, em 2004, para promover o diálogo entre Ocidente e o mundo árabe-islâmico e contribuir para fazer do século XXI uma etapa de justiça e paz. A iniciativa visava apresentar uma alternativa para a tese do inevitável confronto de civilizações, defendida pelo estrategista norte-americano Samuel Huntington no final dos anos 90, e que serviu de embasamento às intervenções no Oriente Médio depois dos ataques de 11 de Setembro. Segundo a interpretação da administração Bush, uma "conspiração islâmica" estaria por trás dos atentados, que representariam a primeira manifestação desse "choque de civilizações". Em 2005 a idéia de Zapatero e Erdogan foi adotada por Kofi Annan, na altura Secretário Geral das Nações Unidas. Ele criou um Grupo de Alto Nível para implementar a iniciativa dentro da estrutura da ONU e nomeou Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal, como Alto Representante da Aliança de Civilizações. O atual Secretário-Geral, o coreano Ban Ki-moon, manteve o apoio à iniciativa, conferindo-lhe importante peso dentro da estrutura da organização. Dado que a prioridade do Fórum é favorecer o diálogo e o intercâmbio cultural, no Rio de Janeiro foi realizada como atividade previa à apertura do evento uma marcha de jovens de todos os continentes, representando organizações de 62 países, pelo centro da cidade, com uma visita simbólica à zona comercial conhecida pela sigla “Saara” (“Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega”), aludindo ao deserto africano. O local foi escolhido porque nesse “território” de poucas quadras convivem em harmonia e com elevado grau de colaboração entre si imigrantes de diversas origens, majoritariamente árabes e judeus, mas também chineses, coreanos e latino-americanos. O “Saara” é considerado um dos exemplos mais nítidos da tolerância cultural e religiosa da qual se orgulha o Brasil. O Presidente Luis Inácio Lula da Silva afirmou que “os brasileiros transformam as diferenças culturais em um fator de enriquecimento”. E acrescentou: “Somos um povo mestiço e gostamos de sermos assim”. As duas reuniões anteriores da Aliança tinham sido realizadas na Europa, no contexto do Mediterrâneo. Jorge Sampaio destacou a importância de o III Fórum acontecer no Brasil: “Com a oferta de realizarmos a reunião no Rio e com o apoio da diplomacia brasileira nos meses prévios ao evento, foi possível demonstrar que a proposta tem caráter global; conseguimos incorporar um elevado número de nações africanas e latino- americanas, que compareceram em peso”, afirmou Sampaio. Quando solicitado por África 21 a fazer uma avaliação da atuação desde 2005, Sampaio assinalou que “não foram obtidos resultados concretos para os grandes problemas do mundo contemporâneo, que permanecem sem solução, mas em contrapartida, avançou- se na consciência mundial de que é possível existir a tolerância e o respeito mutuo entre culturas diferentes”. Ahmet Davutoglu, ministro de Relações Exteriores da Turquia, lembrou por sua vez que “neste terceiro Fórum, a Aliança de Civilizações se consagra, de forma irreversível, como o maior foro das Nações Unidas depois da Assembléia Geral e que a meta é a construção de uma nova ordem mundial inclusiva”. Entre os chefes de Estado e de governo presentes no II Fórum, no Rio de Janeiro, cabe mencionar a Cristina Kirchner, da Argentina, Evo Morales, da Bolívia, Pedro Pires, de Cabo Verde, o Primeiro Ministro de Portugal, José Sócrates, o anfitrião, Presidente Lula da Silva e Tayyip Erdogan, da Turquia. Foi elogiada por várias autoridades a decisão do governo de Barack Obama de aderir à Aliança. Os Estados Unidos foram a nação número 100 a assinar a sua integração ao UNAOC e na reunião do Rio de Janeiro participou a Sub- Secretária de Estado para os Organismos Internacionais, Esther Brimmer, responsável pelo Departamento de Organizações Internacionais, com atuação em áreas como direitos humanos e ajuda humanitária. O Embaixador José Augusto Lindgren Alves, que chefia um novo Departamento, criado pela chancelaria brasileira para cuidar dos assuntos relativos à para a Aliança de Civilizações, afirmou a África21 que “não existe terrorismo islâmico, mas simplesmente terrorismo; ele é fruto da atuação de fanáticos fundamentalistas que existem em todas as culturas”. Por isso o Brasil se ofereceu para ser a sede de III Fórum, explicou. Desejávamos demonstrar que o diálogo de Civilizações não deve ficar limitado a um diálogo de Europa com o mundo islâmico. Brasil deseja trabalhar em prol da cooperação entre as civilizações porque acreditamos que esse é o caminho correto e que todos os países devem participar nesse esforço”, completou. A diversidade de atividades propostas pela Aliança de Civilizações transforma os foros por ela promovidos em encontros de personalidade singular. Se bem há reuniões formais, também são realizadas atividades que até agora tinham sido próprias de encontros da sociedade civil, como o Foro Social Mundial, com apresentações culturais diversas. Entre elas destacou-se uma serie de filmes produzidos especialmente para o Fórum, com o tema da tolerância. A atriz francesa Fanny Ardant, convidada a participar da iniciativa, realizou sua primeira experiência como diretora. Em conversa com África21, ela assinalou que aceitou o desafio proposto pela Aliança porque a intolerância em várias regiões da Europa lhe causa profunda preocupação. “Eu amo a liberdade. Escolhi para o meu filme o tema da discriminação contra os ciganos porque eles são um povo de alma livre. Utilizar essa temática com uma linguagem cinematográfica pareceu-me um aporte que ia ao encontro da proposta de um diálogo entre as civilizações. Aceitei o desafio e a experiência foi maravilhosa”, afirmou a atriz e agora diretora Fanny Ardant. Durante a conferência, o mundo islâmico fez uma reivindicação, traduzida nas palavras de Sheikha Mozah Al-Missned, presidenta da Fundação para la Ciência e a Cultura de Qatar e esposa do Chefe de Estado anfitrião da próxima conferência da Aliança e no pronunciamento de Ekmeleddin Ihsanoglu, Secretário Geral da Conferência Islâmica. Ambos fizeram referências ao processo de mudanças que se vive no mundo árabe-islâmico e exigiram o respeito da comunidade internacional a os caminhos traçados por seus países. “Se nos exige entrarmos para a modernidade e de fato esse debate está muito presente nas nossas sociedades. Porém, a modernização do mundo islâmico, assim como quaisquer outras transformações, deverão vir de dentro; não podem nem devem ser impostas de fora”, afirmou Ekmeleddin Ihsanoglu. Com ele coincidiu no seu discurso a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner. Ela colocou para o público a pergunta de se o Ocidente não deveria ser menos arrogante e deixar de acreditar que tem o direito de ditar as regras para a organização de toda a Humanidade. “Defendendo o único direito universal do qual no podemos abdicar, que é o respeito à integridade física e psicológica de todo ser humano, não deveria Ocidente admitir que cada sociedade humana se organize como creia mais conveniente? Porque não deixar que cada sociedade faça as suas preces ao Deus que ela escolha e porque não deixar que cada ser humano se vista como queira?”, perguntou. Várias mesas redondas que aconteceram de forma paralela à assembléia plenária, trataram temas vinculados às grandes questões defendidas pela Aliança. Nessas sessões temáticas foram abordados temas como a necessidade da implementação do apelo das Nações Unidas, feito há mais de uma década, para que as mulheres desempenhem um papel mais importante na prevenção e resolução de conflitos – processo esse que continua a ser lento; também foi discutido o papel que devem cumprir os meios de comunicação para desfazer estereótipos e ajudar o público a compreender melhor os conflitos internacionais e o papel da educação - em particular do ensino da história - para aprofundar o conhecimento mútuo entre as diferentes culturas.
Quadro (ou Intertítulo)
O papel dos jovens
A Aliança de Civilizações defendeu, desde os primeiros momentos, a incorporação
dos jovens na tarefa da promoção do diálogo entre as diferentes culturas, transformando-a em uma das quatro áreas prioritárias de atuação (as outras são a educação, os meios de comunicação e a emigração). Daí o convite feito a quase uma centena de jovens de todos os cantos do mundo para participar na reunião do Rio de Janeiro. Mas, além de convidá-los para os debates, a Aliança decidiu criar um prêmio para ajudar a dar visibilidade a iniciativas juvenis que já estão marcando a diferença nesse terreno. “Temos que incentivar a capacidade criativa dos jovens para tecer pontes e promover a sociedade pluricultural. O premio é um estímulo para que outros jovens se comprometam com novos projetos”, afirmou a África 21 o ex Presidente de Portugal Jorge Sampaio. Entre os projetos premiados está a iniciativa Akili Dada, destinada a permitir o acesso à educação a meninas de famílias muito pobres do Quênia, que se destacaram desde pequenas por sua inteligência e potencial para a liderança. “Das meninas que fizeram parte do primeiro núcleo de beneficiadas, oito já se formaram na Universidade. É grande a alegria de constatar que fizemos uma aposta correta. Essas profissionais, sem o apoio de Akili Dada sequer teriam podido ingressar na escola primária”, assinalou Wankiru Kamau- Rutenberg, jovem queniana fundadora da instituição e Diretora Executiva da mesma. Ban Ki-moon resumiu o espírito do Fórum em relação à participação da juventude, lembrando que 25% da população mundial atual está formada por jovens menores de 25 anos. “Eles têm que nos ajudar a definir que mundo vamos deixá-lhes como legado”, afirmou.