052442-2, de Curitibanos Relator: Des. Alexandre d'Ivanenko
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. LESÃO CORPORAL
MEDIANTE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHER (ART. 129, § 9.º, CP). RENÚNCIA DA VÍTIMA AO DIREITO DE REPRESENTAR. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. CRIME DE AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. FORMA QUALIFICADA DA LESÃO CORPORAL QUE SEGUE A REGRA PREVISTA NO CÓDIGO PENAL, OU SEJA, NÃO RESTA ABRANGIDA PELA LEI N. 9.099/1995. APLICAÇÃO DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS E DA REPRESENTAÇÃO AFASTADA PELA LEI MARIA DA PENHA, QUANDO SE TRATAR DE DELITO COMETIDO COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHER, QUE É O CASO DOS AUTOS. RECURSO INTEGRALMENTE PROVIDO. DECISÃO CASSADA E PROSSEGUIMENTO DO FEITO DETERMINADO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Criminal n.
2010.052442-2, da comarca de Curitibanos (Vara Criminal Infância e Juventude), em que é recorrente Ministério Público do Estado de Santa Catarina, e recorrido Erico Constantino:
ACORDAM, em Terceira Câmara Criminal, por votação unânime, dar
provimento ao recurso. Custas legais.
RELATÓRIO
Trata-se de recurso em sentido estrito, interposto pelo Ministério Público
(fl. 37), contra decisão (fls. 36-37), proferida pelo Juízo da Vara Criminal, Infância e Juventude da comarca de Curitibanos, que julgou extinta a punibilidade de Erico Constantino, indiciado pelo crime do art. 129, § 9.º, do Código Penal, com base no art. 107, inc. V, do Código Penal, ante a declaração expressa da vítima de que não desejava representar criminalmente o ex-companheiro. Em suas razões (fls. 43-50), o recorrente sustenta, em síntese, que o crime pelo qual foi indiciado Erico Constantino é de ação penal pública incondicionada, por força do art. 41 da Lei Maria da Penha, que afasta a aplicação, aos crimes praticados com violência doméstica, da Lei dos Juizados Especiais Criminais, cujo art. 88 determina que os delitos de lesão corporal leve e culposa devem ser processados via ação penal pública condicionada à representação. Apresentadas as contrarrazões (fls. 54-56) e mantida a decisão hostilizada (fl. 65), os autos subiram a este e. Tribunal e, aqui, a douta Procuradoria Geral de Justiça, em parecer do Dr. Odil José Cota (fls. 69-72), opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
VOTO
Presentes os pressupostos de admissibilidade, o recurso há de ser
conhecido e, via de consequência, passa-se desde logo à análise do mérito, porque ausentes preliminares a serem debatidas, nem mesmo de ofício. In casu, Erico Constantino foi preso em flagrante delito (autos n. 022.10.002269-5), pelo crime de lesão corporal em situação de violência doméstica, previsto no § 9.º do art. 129 do Código Penal. Na oportunidade da audiência prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006, a vítima, ex-companheira daquele, ao ser ouvida, "renunciou a representação" (fl. 36). Diante dessa declaração, o Juízo a quo julgou extinta a punibilidade de Erico Constantino, com base no inc. V do art. 107 do Código Penal. Ora, tem-se discutido muito a respeito da infração penal prevista no § 9.º do art. 129 do Código Penal e, justamente por isso, alguns registros devem ser feitos. Sem ignorar as mais recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema, ouso discordar, primeiramente porque entendo que o referido delito é uma forma qualificada de lesão corporal. É o que ensina Guilherme de Souza Nucci: Cuida-se de uma nova forma de lesão qualificada, cuja finalidade seria atingir os variados e, infelizmente, numerosos casos de lesões corporais praticadas no recanto do lar, dentre integrantes de uma mesma vida familiar, onde deveria imperar a paz e jamais a agressão (Manual de direito penal - parte geral/parte especial. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2008, p. 630). Trata-se, como se infere da simples leitura do dispositivo legal, de delito com punição mais rigorosa que o de lesões leves (caput do art. 129 do CP), que tem como elemento do tipo o agente que leva vantagem das relações domésticas ao praticá-lo. Já se as lesões forem graves, gravíssimas ou seguida de morte, ainda que tenham sido praticadas no âmbito domiciliar, aplicar-se-á a capitulação dos §§ 1.º ao 3.º, acrescidos de 1/3 (um terço), com fulcro no § 10 do art. 129 do Estatuto Repressor. Sendo assim, em que pese o § 9.º do dispositivo legal em comento ser aplicável apenas à lesão corporal leve, o seu conteúdo não deixa de ser uma forma qualificada desse crime. Não fosse assim, não haveria lógica em se diferenciar as penas.
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Como os delitos de lesão corporal leve e culposa (art. 129, caput e § 6.º, do CP) são de ação penal pública condicionada à representação, consoante dispõe o art. 88 da Lei n. 9.099/95, há entendimento no sentido de que, porque o mencionado artigo não faz "qualquer distinção entre a natureza ou origem das lesões", deve-se exigir, "de forma indistinta, a representação para as lesões corporais leves e para as lesões culposas" (DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 7. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 129). Ocorre que a violência doméstica (§ 9.º), apesar de derivar de lesão corporal leve (caput), não pode ser entendida como o mesmo tipo penal, haja vista a excepcionalidade dos sujeitos ativo e passivo – somente pessoas que mantém ou mantiveram relações domésticas –, bem como a intenção de punir mais gravemente esse tipo de infração. Desse modo, por se tratar, a lesão corporal no âmbito domiciliar, de delito autônomo da lesão leve, não há mais a possibilidade da ação penal depender de representação, ou seja, afasta-se, neste caso, o preceito do art. 88 da Lei n. 9.099/1995. Além do mais, o art. 41 da Lei Maria da Penha é muito claro ao estipular que "Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995". Portanto, se é a Lei n. 9.099/1995 que estabelece que o delito de lesão corporal leve é de ação penal pública condicionada e a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.343/2006), posterior àquela e mais específica que ela, afasta a aplicação dos juizados especiais aos delitos cometidos no âmbito doméstico, não há se falar na condição da ação penal pela representação, até mesmo para aqueles que entendem que o § 9.º do art. 129 do CP é uma lesão corporal leve e enquadra-se no caput do artigo supra. Conclui-se, assim, que é pública incondicionada a ação penal relativa ao delito de lesão corporal, ainda que de natureza leve, quando qualificada pela violência doméstica contra a mulher (art. 129, § 9º, do CP), seja porque o art. 41 da Lei n. 11.340/06 tornou inaplicável a Lei n. 9.099/1995, seja porque a representação só se aplica ao crime de lesão corporal simples. Nesse sentido é o entendimento do doutrinador Luiz Flávio Gomes: [...] Dentre todos os delitos que, no Brasil, admitem representação acham-se a lesão corporal culposa e a lesão corporal (dolosa) simples. Nessas duas hipóteses a exigência de representação (que é condição específica de procedibilidade) vem contemplada no art. 88 da Lei 9.099/1995 (lei dos juizados especiais). Esse dispositivo não foi revogado, mas, apenas derrogado (ele não se aplicará mais em relação à mulher de que trata a Lei 11.340/2006 – em ambiência doméstica, familiar ou íntima). Note-se que o referido art. 88 só fala em lesão culposa ou dolosa simples. Logo, nunca ninguém questionou que a lesão corporal dolosa grave ou gravíssima (CP, art. 129, § 1º e 2º) sempre integrou o grupo da ação penal pública incondicionada. Considerando-se o disposto no art. 41 da nova lei, que determinou que "aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
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independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099/1995", já não se pode falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atinge a mulher que se encontra na situação da Lei 11.340/2006 (ou seja: numa ambiência doméstica, familiar ou íntima) (nesse sentido cf. também: José Luiz Joveli; em sentido contrário: Fernando Célio de Brito Nogueira). Nesses crimes, portanto, cometidos pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe, pelo empregador contra a empregada doméstica etc., não se pode mais falar em representação, isto é, a ação penal transformou-se em pública incondicionada (o que conduz à instauração de inquérito policial, denúncia, devido processo contraditório, provas, sentença, duplo grau de jurisdição etc.). Esse ponto, sendo desfavorável ao acusado, não pode retroagir (isto é: não alcança os crimes ocorridos antes do dia 22.09.06). (GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. Lei da violência contra a mulher: renúncia e representação da vítima. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1178, 22 set. 2006.) Registra-se, ademais, que os arts. 16 e 41, ambos da Lei Maria da Penha, não são incompatíveis entre si, visto que, enquanto este exclui a Lei n. 9.099/1995 e, consequentemente, a representação dos delitos de lesão corporal, o primeiro, quando faz referência à representação da mulher, refere-se a outros crimes, como os delitos de ameaça, os crimes contra a honra, o exercício arbitrário das próprias razões (praticados sem violência) etc. Nesse sentido, já decidiu esta Câmara, em decisão da relatoria do Desembargador Torres Marques: RECLAMAÇÃO. LESÃO CORPORAL QUALIFICADA PELA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. INSURGÊNCIA DO PROMOTOR DE JUSTIÇA CONTRA O DESPACHO QUE DESIGNOU AUDIÊNCIA PARA RETRATAÇÃO DA OFENDIDA. CRIME DE AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA QUE PRESCINDE DA ANUÊNCIA DA VÍTIMA PARA A INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. RECLAMAÇÃO PROCEDENTE (Reclamação n. 2008.042541-9, j. em 5.8.2008). Não bastassem todos esses argumentos, ainda se faz necessário mencionar que a pena máxima prevista para o crime do § 9.º do art. 129 da Lei n. 11.340/2006 é de três anos, ou seja, é superior a dois anos e, só por isso, já estaria afastada a incidência da Lei n. 9.099/1995. Sobre isso, embora tenha recentemente se posicionado em direção contrária, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu: PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. RECURSO PROVIDO PARA CASSAR O ACÓRDÃO E RESTABELECER A SENTENÇA. 1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República). 2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando
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mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato. 3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal. 4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006). 5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada. 6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima 7. RECURSO PROVIDO PARA CASSAR O ACÓRDÃO E RESTABELECER A DECISÃO QUE RECEBEU A DENÚNCIA (Recurso Especial n. 1000222, do Distrito Federal, rel. Min. JANE SILVA, j. em 23/9/2008). Dessa maneira, haja vista que o crime de lesão corporal mediante violência doméstica é, a meu sentir, de ação penal pública incondicionada, não há se falar em representação e muito menos retratação. Sou, portanto, pelo conhecimento e provimento do recurso para cassar a decisão hostilizada e determinar o prosseguimento do feito. Observa-se que a comarca de origem deverá promover a(s) devida(s) comunicação(ões), conforme dispõe o § 2.º do art. 201 do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei n. 11.690/2008.
DECISÃO
Ante o exposto, a Terceira Câmara Criminal decidiu, por unanimidade,
conhecer do recurso e dar-lhe provimento. O julgamento, realizado no dia 15 de fevereiro de 2011, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Torres Marques e dele participou o Exmo. Sr. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho, ambos com voto. Funcionou, pela douta Procuradoria Geral de Justiça, o Exmo. Sr. Dr. Paulo Roberto Speck, tendo lavrado parecer o Exmo. Sr. Dr. Jobél Braga de Araújo. Florianópolis, 16 de fevereiro de 2011.