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“a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele;” (KAFKA)
O Processo foi uma obra produzida por Franz Kafka, mestre da literatura alemã, mas que recebia
influências tchecas, alemãs e judias. Kafka cria um “gênero”, o kafkaniano, de escrita. É o único
autor que conseguiu ser transformado em adjetivo em mais de cem línguas. Mas o que seria o
kafkaniano? É tudo aquilo em que a lógica é o absurdo; é o sombrio, a culpa e a burocracia. Dentro
do mundo de Kafka, tudo que nosso mundo seria absurdo, é normal; o normal, absurdo. Assim, o
homem, pra ele, é transformado em “coisa”, ele denuncia que “os homens são coisas que parecem
seres vivos”. (BELO) A obra de Kafka é adaptada para o cinema em 1962 por George Orson Welles
e gera uma revolução no mundo cinematográfico.
No texto de Bourdieu, há uma análise do campo jurídico e como seria o seu funcionamento normal.
As práticas e os discursos jurídicos são produtos do funcionamento de um campo cuja lógica
específica está determinada, por um lado, pelas relações de forças especificas e pela lógica interna
das obras jurídicas que determinam o universo de soluções propriamente jurídicas. K. começa a
trilhar o labirinto daquilo a que Bourdieu dá o nome de campo jurídico que “é o lugar de
concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito” (BOURDIEU). Nesse campo, só entram
aqueles que possuem a “legitimidade” para tanto, os detentores do capital jurídico. Esse campo é
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dotado de um hermetismo que impede a entrada de outros, como Joseph K., no seu interior.
Então, Joseph K. segue no processo. Sem saber quem o acusa, tendo o advogado como mero
coadjuvante, peça do sistema que apenas existe, mas não atua; suas tentativas de se defender são
frustradas e ridicularizadas. K. não é detentor do capital jurídico e social para ser peça ativa do
processo, porém é funcional. O crime - e, por conseguinte, os criminosos- tem sua utilidade por “se
liga às condições fundamentais de toda a vida social e, por isso mesmo, tem sua utilidade.”
(DURKHEIM apud BELO)
Há que se frisar, que a crítica de Kafka à modernidade não se limita a denunciar a opressão que
emana da autoridade legalmente constituída, ou seja, da autoridade legalmente constituída, ou seja,
da autoridade que se reveste de legitimidade jurídico institucional, mas também o absurdo embutido
na “autoridade” que emerge na instância de paralela de poder, às margens, portanto do ordenamento
jurídico-administrativo em vigor numa determinada sociedade.
É possível afirmar que a crítica “kafkaniana” da modernidade pode ser exposta até os dias atuais,
bem como as estruturas mostradas por Bourdieu. O Processo é sim uma crítica feroz ao que há de
mais “moderno” no Estado: seu caráter impessoal e anônimo, que o transforma em estrutura
tautológica (a mesma tratada por Bourdieu) cujos objetivos residem apenas em sua auto-
reprodução. Evidencia o caráter da máquina judiciária do Estado perante as supostas “vítimas”:
uma estrutura burocrática e hierarquizada, impessoal e anônima, imprevisível arrogante e
impiedosa. Pensamos que o sentido dessa organização dita por K. se movimenta no vácuo da
ausência da lei, a qual cria uma sensação de segurança, um mundo hipotético, que na verdade tal
segurança não é absoluta. A Lei é protegida do manuseio do todo, a poucos cabem a capacidade de
discutir e ter acesso à lei – apenas interpretada por aqueles que têm designo para essa finalidade. É a
relação homem do campo ‘versus’ porteiro, encontrado na sua obra – o guarda da lei na porta do
tribunal, que representa uma barreira para ser transposta, com o objetivo de proteção da própria lei,
da preservação da mesma.
A relação ontológica; a divisão do poder em classe vem com a intenção de criar uma sensação de
que tudo é acessível, inclusive a justiça. O Estado deveria tratar os indivíduos de forma igualitária,
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porém ele separa indivíduos que receberão a legitimidade para interpretar o corpo de normas e dar
pareceres e ordens que terão o poder simbólico de se impor perante os outros, obtendo pela
linguagem o que se obteria pela força física. Esse poder se impõe unilateralmente sobre aqueles que
estão “à porta da lei” que não têm “competência” para questioná-lo ou nega-lo. Havendo assim uma
postura “logocêntrica” dos operadores do Direito, pois só eles se acham capazes de discutirem o
Direito. Eles não o discutem com pessoas “comuns”.
Ou seja, os profanos habituam-se a não questionar decisões judiciais ou os processos legais para se
chegar a ela porque a aqueles que as proferem foi dado o poder de dizer o mundo. Aos que tentam,
como Joseph K., sobra o escárnio e a condenação, pois em Kafka à luz de Bourdier, a justiça não é
para ser procurada e sim discutida, e a pessoa que procura a justiça nunca vai até ela, porque a
mesma bate na porta da Justiça e é aquela declarada incapaz de discuti-la.
A questão do poder simbólico dos profissionais do campo jurídico é circular, tautológico. Aqueles
que já estão inseridos no campo, não desejam perder os privilégios dados pelo discurso ortodoxo e
aquele que estão sendo inseridos no campo, pelas faculdades, pretendem alcançá-los. Assim, o
habitus acerca do direito, ou seja, aquelas estruturas duradouras criadas acerca do direito, bem como
o habitus jurídico, aquelas estruturas criadas dentro do campo jurídico, vão se permeando e se
tornando ainda mais rígidas.
Na mesa do tribunal (o qual é o local onde existe a moral, é a figura da Justiça),vimos Livros de
Direito empoeirados e com uma foto de uma “bunda” dentro ou seja, o descaso e o desvio da
atenção do juiz – o juiz nunca tem atenção só para lei, ele não atenta para o problema em si. E a lei,
afasta-se cada vez mais do ideal de igualdade e de justiça.
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Orson Welles exprimiu de forma esmagadora o espírito da obra de Kafka, transpondo-a para uma
decoração moderna, monstruosamente fria e impessoal. Não é, entretanto por acaso que o termo
“kafkaniano” entrou na linguagem corrente. Orson transmitiu ao espectador todo o clima sombrio,
claustrofóbico e angustiante, um estilo visualmente “pesado” e literalmente escuro, utilizando
locações nebulosas, como o salão coberto pilhas de processos arquivados iguais aos dele, e que
nunca serão resolvidos – dita como “justiça encostada”, é a negação da discussão. O clima de
pesadelo é presente durante todo o filme – a fantasia lógica do pesadelo. Seus personagens,
geralmente, angustiados e solitários, sempre com um clima de derrota, sentimento de culpa. Talvez
o sentido dessa organização citada por K. da movimentação no vácuo da ausência da lei, seja o de
provar que não há mais inocentes, que somos todos culpados. E é essencialmente essa
culpabilidade, que não possui local ou sujeito, que acaba sendo incorporada por K., sendo
considerada assim - a culpa - como o personagem verdadeiro de O Processo.
O final não traz a redenção de K. mas sua vergonhosa e inglória destruição, uma morte que acaba
não envolvendo a glória ou dignidade da morte heróica da vítima de uma grande injustiça, mas a
aniquilação fria sórdida e mesquinha de um cidadão anônimo, pois K. tem identidade própria, a
identidade é ligada ao cargo que ele exerce.
É fascinante notar a afinidade espiritual existente entre O Processo e toda uma corrente da
ficção contemporânea, a chamada literatura distópica, que consiste numa serie de utopias
negativas que projetam em sociedades futuristas as inquietações da modernidade. ( LESSA,
FELIPE)
Percebemos que a obra de Kafka não é, de modo algum, uma obra puramente especulativa. Em
Kafka o futuro já existe e está entre nós e há de ser mudado. Não há o recurso tranqüilizador a um
futuro remoto, mas a presença incômoda de um agora que nos assalta. A impressão que nos causou
é da produção de um despertar, pois um dia poderemos acordar na mesma situação de K.
O direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir
efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que
ele é feito por este.
Enfim, o direito possui aspectos caracterizadores que norteiam suas ações. Há alguns procedimentos
que têm que ser seguidos sob pena de invalidar o processo. Ele tem suas exigências a exemplo da
qualificação das pessoas que o discutem. Entretanto nenhum desses aspectos deve permitir que o
direito se distancie dos seus usuários, que se torne um arma de dominação dos regimes totalitários,
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que seja cruel, injusto ou corrupto. O direito foi feito pela sociedade para servi-la buscando o bem
estar de todos e não vantagens para alguns indivíduos.
É muito triste o quadro pintado pelo filme, mas não se pode negar que tal realidade existiu e que
parcelas sombrias dela perduram até os dias de hoje. É papel fundamental dos novos operadores do
direito transformar essa realidade em algo mais próximo do ideal, do justo, do humano, como
contribuição para o direito que se quer alcançar.
“É provável que o poder de sugestão de Kafka, esse pintor de pesadelos vivos, consista
precisamente no sortilégio: depois do advento de sua obra, jamais voltaremos a estar
seguros outra vez.” (DROGO)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELO, Warley. Cidadão Joseph K.: observações críticas sobre o processo de Kafka e o processo
penal. Disponível em: < http://www.juristas.com.br/mod_espaco_aberto.asp?t=499&p=4 >.
Visitado em: 17 abr. 2008.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3 ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2000.
KAFKA, Franz. Diante da lei, in:O processo. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 230-232.