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Introdução
O marxismo tem sido muitas vezes identificado com teses deterministas, com o
determinismo tecnológico e outras variantes do economicismo. Tal determinismo se
justificaria como uma consequência do materialismo: as entidades naturais –
identificada com a matéria, exclusivamente física e organizada de forma mecanicista –
guardariam uma relação de antecedência necessária e exaustiva com as sociais. Assim, o
determinismo resultaria do materialismo reducionista/mecanicista.
A obra de Lukács nos oferece poderosos argumentos que conformam um
materialismo que, preservando o monismo ontológico, rejeita o determinismo. Por um
lado, na ontologia do ser social de Lukács pode ser identificados o caráter histórico de
toda realidade material, a interação de complexos, uma realidade material estruturada
em diferentes níveis de ser, e o fenômeno da emergência que compõe um materialismo
dialético incompatível com as teses reducionistas e mecanicistas do determinismo.
Além disso, Lukács destaca o caráter ontológico da casualidade que nega a relação
exaustiva entre dois estados do mundo, característica do determinismo, sem, no entanto
recair no irracionalismo do qual foi forte critico.
Nesse artigo pretendo desenvolver e apresentar as teses de Lukács sobre o
materialismo dialético como uma forma de rejeição da interpretação determinista do
marxismo. De início é definida a tese determinista, apresentada sua ligação com o
materialismo e são apresentados alguns autores que interpretam o marxismo de forma
determinista. Na segunda seção são apresentados os argumentos de Lukács contra o
determinismo, demonstrando que esse não é uma decorrência necessária do
materialismo e que, assim, o irracionalismo não é a única alternativa ao determinismo.
I. determinismo, materialismo e marxismo.
1
Earman (1986) argumenta que a física newtoniana não é determinista.
p.7), embora a definição de Laplace inclua um elemento de natureza epistemológica, a
respeito do conhecimento do mundo, que é a previsibilidade.
Laplace estabelece uma relação entre dois estados do mundo que é de causa e
efeito. Nesse sentido o determinismo poderia ser reduzido a uma afirmação sobre o
mundo, a de que tudo tem uma causa. Mas essa afirmação sobre o mundo pode ser
entendida como resultante da razão pura, uma afirmação a priori. Dessa forma o
determinismo seria uma tese lógica, definível a partir da razão e identificado com o
principio da razão suficiente – de que algo não pode acontecer sem que uma causa o
produza – enunciado por Leibniz ou da causação universal, – a de que tudo que
acontece se segue de algo de acordo com uma regra – enunciado por Kant (Salmon,
1998, p.34). Enunciado dessa forma, como verdade racional a priori, o determinismo se
identifica com a própria racionalidade e passa a ser tomado como condição absoluta
para o entendimento racional do mundo, para a ciência. Essa interpretação aparece, por
exemplo, em Nagel, (1960) segundo o qual, (…) to abandon the deterministic principle
itself, is to withdraw from the enterprise of science.”p.317
Mas a formula de Laplace é mais do que uma afirmação puramente lógica sobre
causa e efeito; ela fala de um futuro que pode ser exaustivamente conhecido. Já na
versão logicista do determinismo como causa, o sentido implícito de causa é o da causa
eficiente, excluindo, por exemplo, as causas finais. Isso significa que o moderno
determinismo se identifica com o determinismo mecânico e não com uma outra versão
possível deste, a do determinismo teleológico (Salmon, 1998, p.37) – diferença que será
novamente aludida mais adiante. Além do mais, conforme afirma Earmen (1986, p.6)
para nos aproximarmos do determinismo partindo da existência de causas no mundo, é
necessário acrescentar à formula de que tudo tem uma causa, a de que as mesmas
causas produzem sempre os mesmos efeitos. Assim uma definição meramente lógica
do determinismo como relação aprioristica de causa e efeito, só tem conteúdo e ganha
sentido a partir de afirmações sobre o mundo: a de que existem causas no mundo - o que
é insuficiente para definir o determinismo – a de que cada estado de mundo tem sempre
uma causa, e de que cada causa sempre e inevitavelmente leva ao mesmo efeito.
Se a noção de causalidade tout court não é suficiente para definir a tese
determinista que elementos seriam o suficiente para defini-la? A relação entre dois
estados do mundo que define o determinismo foi caracterizada por Nagel (1960; p.294)
como do estado antecedente como condição necessária e suficiente para ocorrência do
estado conseqüente. Já para James (1884), a relação é de que um estado que estabelece
e decreta de forma absoluta o outro; finalmente em Hoeffer, C. (2010) a relação entre
os dois estados do mundo é entendida como de fixação pelas leis naturais, o que
segundo ele significa que um estado acarreta logicamente o outro, definição está
presente também em Salmon (1998, p.33).
O que sobressai em todas essas definições é que o vinculo entre dois estados do
mundo proclamado pelo determinismo é, em primeiro lugar, necessário. A idéia de
relação necessária é explicita em Nagel e em James e está implícita na relação lógica
suposta por Hoeffer e Salmon; não há condição que intervenha entre um estado do
mundo e outro de forma que a ocorrência de um não leva a de algum outro.
Mas a existência de vinculo necessário entre estados do mundo não é suficiente
para proclamar a tese do determinismo. O determinismo estabelece que o vínculo entre
dois estados do mundo é tal que um “acarreta” ou é “condição” de outro, o que implica
em uma relação de antecedência. Ou seja, a ocorrência de um estado do mundo é
anterior a de outro – seja no sentido temporal ou no sentido meramente lógico. É
importante ressaltar a natureza dessa anterioridade como não sendo exclusivamente
temporal; o determinismo na física, por exemplo, pode prescindir da antecedência no
sentido temporal, uma vez que a própria apreensão do tempo depende da física,
podendo a tese determinista pode ser definida como relação entre mundos possíveis
(Earman, 1986). O que a antecedência em um sentido meramente lógico implica é que
um estado do mundo antecedente acarreta o conseqüente – mesmo que, em termos
temporais, ele paradoxalmente só ocorra depois do conseqüente.
Com isso têm-se os primeiros elementos para definir a tese determinista: essa
postula a existência de uma relação de antecedência necessária entre dois estados do
mundo: a ocorrência de um estado do mundo antecedente acarreta de forma necessária a
de algum estado conseqüente. A característica de relação de antecedência necessária
entre dois estados do mundo, porém, não é suficiente para caracterizar o determinismo.
A tese determinista sustenta que a relação entre dois estados do mundo deve ser única.
Isto é um estado do mundo está associado de forma necessária a somente um outro
estado do mundo. Repare-se aqui que a necessidade implica que um estado do mundo
está vinculado a algum outro; o quesito de unicidade, mais restritivo, implica que um
estado do mundo está vinculado a somente um outro.
Além de necessário e único, a relação entre os dois estados do mundo
proclamada pelo determinismo é exaustiva: um estado do mundo acarreta de forma
completa em outro estado do mundo; ou seja, nenhuma característica de um estado do
mundo conseqüente pode não estar vinculada a alguma característica do estado de
mundo antecedente.
Deste modo o determinismo é uma tese sobre a estrutura do mundo que afirma a
existência de um vínculo necessário, antecedente, único e exaustivo entre dois estados
do mundo, isto é, de que um único estado do mundo antecedente esta vinculado de
forma necessária a um único estado do mundo conseqüente, no que diz respeito a
todas as suas características. Esse vínculo entre estados do mundo pode ser postulado
como causalidade e ser formulado como leis naturais; mas em si a causalidade e as leis
não são idênticas ao determinismo.
O determinismo como tese ontológica acarreta a inevitabilidade da ocorrência de
determinados estados do mundo; se um estado do mundo antecedente está vinculado de
forma determinista - isso é de forma necessária, única e exaustiva - a outro conseqüente
a ocorrência deste é inevitável, isto é, não há nada que previna a sua ocorrência.
Conforme Earman (1986, p.18), “Laplacian determinism entails one kind of non-trivial
inevitability: given the way things are now, the future can’t be other than it will be
(…)”. Segundo Hoffer (2010) a inevitabilidade não significaria necessariamente o
fatalismo, na medida em que se desvincula a existência de vontade divina das leis
causal-naturais; isto é, a inevitabilidade significaria fatalismo se o vinculo determinista
entre dois estados do mundo incluísse uma finalidade, a intenção de uma consciência.
Se por um lado é verdade que a tese determinista não implica necessariamente a
existência dessa finalidade nos vínculos entre os estados do mundo, também não é com
ela incompatível; em outras palavras o determinismo não elimina a possibilidade da
existência de causas finais. Nesse sentido Salmon (1998, p.37) distingue o
determinismo mecanicista – onde os vínculos entre os diferentes estados do mundo são
entendidos como causa eficiente - do teleológico – onde esses vínculos são entendidos
como causa final.
Uma possível consequência de inevitabilidade – fatalista ou não – é que a ação
humana não pode modificar a ocorrência de determinados estados do mundo; em outras
palavras o determinismo seria incompatível com a livre escolha. Essa é uma questão
intensamente debatida na filosofia não sendo possível aqui esgotar todos os seus
aspectos; no entanto essa questão é inevitável e deve se dar uma primeira aproximação a
ela a partir da definição da tese do determinismo desenvolvida anteriormente. Se o
determinismo estabelece que o vínculo entre dois estados do mundo é exaustivo, e se as
ações do homem fazem parte de um estado do mundo, então as ações do homem estão
vinculados de forma necessária e única a um estado do mundo antecedente; em outras
palavras, dado determinado estado do mundo antecedente, os homens não poderiam ter
agido de outra forma. Nesse sentido o determinismo é incompatível com a escolha livre
dos homens – entendida, em uma primeira aproximação, como o fato dos homens
poderem agir de formas diferentes nas mesmas circunstancias. O determinismo – e a
conseqüente ausência de livre escolha - não significa, no entanto que as ações humanas
não tenham efeitos; conforme assinala Earman(1986, p.19): .”Fatalism can allow that
our actions have effects. It is rather that the hand of Fate- - as it acts here through the
laws of nature – shapes the course of events so that the effects of our actions bring about
the fated event.”
A tese do determinismo foi apresentada até aqui como uma tese ontológica, que
diz respeito à estrutura do mundo. Como consequência epistemológica, o determinismo
afirma que é possível realizar inferência sobre o futuro, dada a estrutura do mundo; no
entanto, o determinismo da forma como foi definido anteriormente não é suficiente para
implicar a previsibilidade acurada de todos os estados do mundo. À tese do
determinismo é preciso acrescentar como elemento que compõe o estado do mundo a
existência de “An inteligence knowing all the forces acting in nature at a given instatant,
as well as the momentary positions of all the things in the universe,”(Laplace , apud
Earman, 1986, p.7) para que a previsibilidade seja possível. Se tal inteligência - o
“demônio de Laplace” – não existe, isto é, se esta além da capacidade de qualquer
inteligência o poder computacional para prever de forma exaustiva o futuro, o
determinismo não implica necessariamente a previsibilidade em todas as circunstancias.
Da mesma forma que o determinismo não implica a previsibilidade, a ausência de
previsão completa não invalida a tese ontológica do determinismo; conforme afirma
Salmon (1998, p.33)“The fact that we are unable to make perfect predictions in all cases
is, to the determinist, the result of human ignorance and other limitations. It is not
because nature is lacking in precise determination.” .Assim, o determinismo só pode e
deve ser contestado nos seus termos, isto é, em termos ontológicos e não apenas
epistemológicos ou lógicos.
Mas contestar o determinismo em termos ontológicos significa a reformulação
de uma tese, também ontológica, que esteve associada ao moderno determinismo. Trata-
se aqui da associação entre materialismo e determinismo, decorrente de uma
generalização ontológica dos resultados das ciências modernas, especialmente da física
clássica. Ressalte-se mais uma vez que o determinismo não necessariamente está
vinculado ao materialismo; o já referido determinismo teleológico e o fatalismo estão
associados a uma imagem religiosa do mundo que supõe que os vínculos deterministas
entre os diferentes estados do mundo são resultados de uma consciência transcendental.
Ao contrário do determinismo religioso, o moderno determinismo prescinde da
existência de uma consciência transcendental; isto é, de uma substancia que não seja
material. Dessa forma o moderno determinismo está associado ao materialismo; o
materialismo é uma tese ontológica que afirma a existência de uma única substancia no
mundo – um monismo ontológico – identificada com a matéria. O materialismo é a tese
de que tudo que existe é material (Mouser, P. K. e Trout, J.D., 1995).
O ponto de partida do materialismo é uma compreensão das propriedades que
definem a substancia material, isto é, uma definição do que é a matéria. Em sua forma
clássica o materialismo compreende a matéria como identificada exclusivamente com
corpos – isto é, de acordo com a definição cartesiana, como algo que ocupa lugar no
espaço. A definição da substancia material pela espacialidade implica que esta é sólida –
ocupa um lugar – inerte – ocupa um lugar - impenetrável e se conserva, permanece
(Crane T e Mellor, D. H., 1995, p.69), sendo a única mudança possível da matéria seu
deslocamento no espaço; dessa forma o movimento é algo que acontece a matéria - pela
ação determinista da posição dos corpos uns sobre os outros - mas não a define. Assim a
matéria é identificada com a substancia, “excludente em face do devir”, dotada de uma
“persistência estática e abstrata” (Lukács, 1979a, p.78). Em uma palavra, a
materialidade é identificada com a coisalidade (Lukacs , G. 1979a, p.48)
A dificuldade para o materialismo que adota esse entendimento da substancia
material é de que nem tudo que existe é percebido como coisa que ocupa lugar no
espaço, como coisalidade. A dificuldade já se põe com a vida, uma vez que essa surge –
e desaparece - em alguns corpos e não em outros. Mas mais problemático ainda é o caso
dos atributos psicológicos; esses podem ser concebidos de forma totalmente
independente do espaço e dessa forma atribuídos a um substância não material – como
argumentou Descartes em favor do dualismo ontológico. Da mesma forma, a
identificação do material com a coisalidade, com uma substancia imutável que ocupa
lugar no espaço, não se encaixa nas relações e instituições sociais.
Em resumo, é possível postular entidades – físicas, biológicas, psicológicas e
sociais – que definem domínios teoricamente diferentes. Mas a postulação desses
domínios diferentes é possível a partir da forma que entendemos o mundo e a tese
materialista diz respeito a como se constitui o mundo. Assim, a tese do monismo
ontológico requer a compatibilidade da diversidade de entidades postuláveis com a
existência de uma única substancia, a matéria.
A solução clássica a esse problema está de certa forma dada, uma vez que a
matéria é identificada com um domínio: o das entidades físicas. O reducionismo é o
modo de vincular as diferentes entidades teoricamente postuláveis (Mouser, P. K. e
Trout, J.D., 1995, p.7). Essa redução pode ser concebida como meramente teórica, uma
operação exclusiva do pensamento – com a tradução de nomes de atributos biológicos,
psicológicos e sociais em atributos físicos, mesmo que por meio de uma longa cadeia
intermediária – significando assim que dessa forma cada entidade postulada pode ser
explicada por um nível cada vez mais fundamental. Essa é a solução do neopositivismo,
que postula o fisicalismo como uma redução linguística/epistemológica de entidades
meramente teóricas, cujo conteúdo ontológico é negado (Lukács, 1976, p.50)
Mas enquanto a solução neopositivista ao problema do monismo ontológico é
evadida por meio de sua negação – isto é, pela recusa de uma ontologia e a conseqüente
transformação do problema em um problema lingüístico/lógico – a solução
ontologicamente materialista, na sua versão clássica, supõe que o vinculo entre os
diferentes domínios das entidades deve refletir uma ligação real entre estas. Bem
entendido esteja: para a solução materialista clássica não se trata de vínculos entre
entidades diferentes, já que só existem entidades físicas; mas as propriedades
percebidas dessas entidades – propriedades que são reais - devem se resolver de forma
causal em propriedades dos entes físicos. É aqui que o materialismo clássico se encontra
com o determinismo: se não existem entidades que não sejam físicas, um determinado
estado dos organismos vivos, ou determinados estados psicológicos ou ainda sociais,
são acarretados por estados físicos antecedentes – lógica e causalmente, além de
historicamente - de forma necessária e, claramente, de forma única e exaustiva. O
reducionismo é uma variante do determinismo requerido pelo materialismo clássico.
O determinismo foi definido como uma tese sobre o vinculo entre diferentes
estados do mundo. Agora é possível especificar pelo menos um dos sentidos - já que é
possível que o determinismo seja definido como uma tese menos abrangente - a que se
refere esse estado do mundo. Apoiado em um materialismo reducionista, o
determinismo se refere a todo o conjunto de eventos, processos e coisas que existem no
mundo, sendo uma tese abrangente, isto é, que se refere ao mundo em seus aspectos
físico, biológico e social. Como uma tese abrangente, o determinismo significa que os
eventos, processos e coisas biológicos e sociais podem ser perfeitamente descritos, sem
qualquer perda, como eventos, processos e coisas físicos – uma tese epistemológica - e a
relação entre esses é determinista – a tese ontológica do materialismo reducionista;
acrescendo que a relação entre entidades físicas/materiais, compreendidas como
coisalidade, é também determinista – tese mecanicista. Assim, nos termos colocados por
Lukács, “ All’uniforme dominio teoretico di quest’ultima [necessidade] corrispone sul
piano ontológico una radicale omogeneizzazione di tutto l’essere; la quale in genere
compare nel quadro del materialismo mecanicistico(...)” (Lukács, 1976, p.6).
Já no final do século XIX a visão determinista moderna, associada ao
materialismo mecanicista reducionista, era predominante nas ciências: “By the close of
the nineteenth century, determinism seemed well on the way to being a scientifically
well grounded view of the entire universe in all of its aspects – physical, biological,
psychological, and even social” (Salmon, 1998,p.30). É nesse clima que o determinismo
penetra no marxismo. O determinismo no marxismo consiste na interpretação desse
como um economicismo e, mais precisamente, como um determinismo tecnológico.
Nessa interpretação as forças produtivas são reduzidas aos elementos materiais – isto é,
físicos – da produção e estas são colocadas como determinantes das relações de
produção; isto é, um determinado estado das forças produtivas antecede de forma
necessária, única e exaustiva um determinado estado das relações de produção – o
determinismo tecnológico. Por sua vez, a estrutura econômica – formada por essa
combinação de forças produtivas e relações de produção – guarda uma relação também
do tipo determinista com o resto da sociedade, com as formas de representação da
consciência – a superestrutura – configurando assim o economicismo. Assim, o
marxismo é entendido como uma ciência da história (materialismo histórico) no molde
das ciências naturais, entendidas de forma determinista e fundadas em um materialismo
reducionista.
Um exemplo clássico dessa interpretação determinista do marxismo esta
presente no “manual popular de sociologia” de Bukhárin (1925) que foi objeto de critica
por parte de Lukács (1989). De acordo com Bukhárin, as forças produtivas podem ser
reduzidas ao sistema técnico, isto é ao conjunto dos instrumentos de trabalho, das coisas
que são usadas para produzir outras coisas (Bukhárin, 1925, p.115). É o sistema
tecnológico que, de acordo com Bukharin, determina a forma da sociedade: “But the
historic mode of production, i.e., the form of society, is determined by the
development of the productive forces, i.e., the development of technology.[enfase
adicionada]” (Bukhárin, 1925,p.124). Embora Bukhárin rejeite uma redução dos
determinantes da sociedade a natureza, como no caso de Cunow que coloca as
condições naturais como determinantes da produção e, portanto da sociedade,
permanece em Bukhárin o fato de que o estado da sociedade – com todas as suas
relações e produtos da consciência - é determinado pelo estado de um conjunto de
coisas, sendo assim “uma versão apenas refinada” do naturalismo (Lukács, 1989, p46).
Implícito aí está o materialismo mecanicista e determinista como justificativa para essa
determinação da sociedade pelo estado da tecnologia entendida como conjunto de
coisas.
Essa versão do marxismo como determinismo tecnológico avança e se torna
dogma no oficialismo soviético. Conforme o manual de materialismo histórico da
academia de ciências da URSS, o estado dos instrumentos de produção é entendido
como antecedente – em termos inclusive históricos - em relação às capacidades
produtivas dos homens: “En consonancia con los cambios operados en los instrumentos
de producción cambia también la fuerza de trabajo y cambian los hombres llamados a
poner en acción aquellos instrumentos. (...) Primero, cambian los instrumentos de
producción; después, y a tono con ello, cambian los hombres, los trabajadores que los
ponen en movimiento “ (URSS, 1960 p.37-38) O vinculo entre forças produtivas e
relações de produção por sua vez é entendida de forma determinista: “Las fuerzas en
acción caracterizan el contenido del processo produtivo, y las relaciones de producción
constituyen la forma económica, social, de este proceso. Y el contenido es siempre y
dondequiera el factor determinante con respecto a la forma: lo primeiro que cambia
es el contenido, y a tono con él, cambia luego la forma.[enfase adicionada]” (URSS,
1960, p.37). A despeito da referencia ao conteúdo e forma que dão um colorido
pseudodialético - na verdade antidialético, da forma como é colocado - a essa
afirmação, o que transparece é que nela o material – as forças produtivas,cujo elemento
determinante são os instrumentos de trabalho – determina o social. Assim, o
determinismo aparece associado ao materialismo reducionista na interpretação soviética
do marxismo.
A interpretação determinista do marxismo, no entanto não é privilégio do
oficialismo soviético. De forma inusitada, a busca de reinterpretar o marxismo com base
nos métodos da filosofia analítica se associa ao determinismo em Cohen (1986).Mas é
preciso reconhecer algumas diferenças significativas entre essa interpretação do
marxismo e a interpretação soviética oficial. Em primeiro lugar, partindo da filosofia
analítica, Cohen põe a questão da determinação em termos puramente epistemológicos;
segundo ele as forças produtivas têm antecedência explanatória em relação às relações
de produção: “La naturaleza de las relaciones de producción de una sociedad se explica
por el nivel de desarrollo de sus fuerzas productivas (tesis de la primacia propiamente
dicha).” (Cohen, 1986,P.149). Mas a natureza da explicação avançada por Cohen é
funcional: “Es este efecto el que explica la naturaleza de las relaciones, por qué son
como son. Las fuerzas non se desarrolariam como lo hacen si las relaciones fueran
diferentes, pero es por esto por lo que las relaciones no son diferentes: porque las
relaciones de ese tipo se adecuan al desarrollo de las fuerzas productivas” (Cohen, 1978,
p.178)
A afirmação da antecedência necessária é em Cohen uma tese epistemológica,
mas carrega consequências ontológicas ao realizar implicitamente afirmações sobre a
existência das relações de produção. Em Cohen as forças produtivas antecedem as
relações de produção na medida em que estas só existem para gerar o desenvolvimento
das forças produtivas. Isso significa uma inversão temporal da relação de antecedência
necessária: o futuro – o desenvolvimento das forças produtivas – determina o passado –
a existência de determinadas relações de produção. A explicação funcional de Cohen se
resolve, assim em um determinismo teleológico o que torna a tese da primazia
dependente da tese do desenvolvimento das forças produtivas.
Diferente do marxismo soviético, Cohen não reduz as forças produtivas aos
instrumentos da produção, incluindo nela mesmo a ciência como seu elemento
fundamental. No entanto as forças produtivas são definidas por Cohen como conteúdo
material distinto da forma social (Cohen, 1986, p.98), da mesma forma que no
marxismo soviético; por sua vez o material é identificado com o natural (Cohen, 1986,
p.102, p.103). Assim as forças produtivas tem para Cohen um caráter natural e a
inclusão da ciência como força produtiva decorre de que esta é resultado de uma
capacidade natural: “La capacidad productiva se desarrola socialmente, pero su carácter
es natural. Incluso el conocimiento cientifico, pese a ser fomentado socialmente, es una
capacidad natural de la especie humana.” (Cohen, 1986, p.108).
Assim, mesmo partindo de uma concepção puramente epistemológica da relação
entre forças produtivas e relações de produção, Cohen interpreta o marxismo a partir da
mesma ontologia do materialismo reducionista e determinista adotada pelo marxismo
soviético. Isso fica ainda mais claro quando chegamos ao ponto central de sua
explicação funcional das relações de produção e do modo de produção: o
desenvolvimento das forças produtivas. O desenvolvimento das forças produtivas é
explicado por Cohen a partir da racionalidade dos homens em meio a uma natureza de
escassez e a racionalidade por sua vez é um traço da natureza humana e se a natureza
humana subsiste através da mudança isso é dado por seu elemento biológico: “Pero em
algún lugar alli donde pueda ser necessário um complejo cuadro de capas y estratos
habrá que reconocer la contribuición de la biologia.”(Cohen, 1986,p.168). Assim fecha-
se o circulo que nos leva do “marxismo analítico” de volta ao materialismo mecanicista
do iluminismo pré-marxiano.
Apesar de ter sido a doutrina oficial do marxismo soviético e ressurgir com a
roupagem do marxismo analítico o materialismo mecanicista, reducionista e
determinista foi combatido fortemente no interior do marxismo; já na critica de Lukács
ao manual de Bukharin, mas também na obra de Gramsci. Na seção seguinte serão
desenvolvidos os argumentos de Lukács - em especial na sua obra “A ontologia do Ser
Social” - no sentido de um materialismo realmente dialético, que generaliza em uma
ontologia os resultados mais avançados da ciência, e que se coloca como critica ao
determinismo.
Mas essa existência de uma base ineliminável não implica em que se possa falar
de uma antecedência causal dos modos de ser fundamentais sobre os superiores. Se por
um lado, os modos de ser fundamentais sejam inelimináveis como condições de
existência dos modos de ser superiores e suas leis não possam ser violadas pelo modo
de ser superior, este tem efeitos causais sobre o modo de ser fundamental. Isso é
explicado em parte, pelo caráter inclusivo dos diferentes modos de ser: a sociedade é
formada por homens que permanecem existindo como seres biológicos e físicos. Assim
ao se referir ao processo biológico de reprodução, Lukács afirma que este “contém as
leis físico e químicas enquanto dialeticamente superadas, isto é, subordinadas as leis
biológicas de reprodução” (Lukács, 1979b, p.48).Da mesma forma, ao se referir ao lento
processo de desenvolvimento da criança e sua remissão às exigências crescentes da
socialidade, Lukács afirma: “Mas, embora esse ser orgânico seja ineliminável, o ser
biológico do homem tem um caráter que, predominante e crescentemente, é
determinado pela sociedade.” (Lukács, 1979a, p.94).
Dessa forma, não há uma relação de antecedência necessária, única e exaustiva
entre as diversas formas de ser, uma relação reducionista entre as diversas formas de
ser. Isso não implica, porém em recair em alguma forma de dualismo ou rejeitar o
monismo ontológico materialista, uma vez que esses modos de ser são modos de ser de
uma mesma substância, a matéria dotada de propriedades evolutivas. Assim como
afirma Lukács,
“Infatti (...) solo se diviene possibile affermare che l’essere
inorganico è il fondamento di ogni altro essere, senza con ciò
distruggerre nel pensiero la specifica constituzione dell’essere nella
vita e nella società, solo se la diversità dei modi d’essere viene intesa
nel loro inscindibile collegamento e nelle loro differenze qualitative,
può sorgere uma scienza intimamente unitária” (Lukács, 1976, p.48)
Considerações finais
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