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O milagre de Ourique ou um mito nacional de

sobrevivência
Luís Carmelo
Universidade Autónoma de Lisboa

Índice tudo pela consistência identitária e imaginá-


ria de que Portugal é, nesse século e meio,
1 A história da lenda 1 devedor. Facto inabalável é que, após a Res-
2 Outros casos contemporâneos de pro- tauração, a lenda simbólico-alegórica de Ou-
fetismos forjados 7 rique, entre outras (como a do Encoberto2 ),
3 Monarquia Lusitana: foz da tradição se instituirá decisivamente como uma faceta
anterior e matriz do futuro mito 12 importante da auto-representação de Portu-
4 Conclusão 16 gal, acabando por adquirir, após Herculano,
uma verdadeira dimensão mítico-poética.
Anima-nos, no presente artigo, a tentativa
de compreender os alicerces de um mito que, 1 A história da lenda
começando a ser erigido a partir de diver- a) Até à Primeira grande compilação
sos registos literários da batalha de Ourique, medieval
contribui(u) para a "modalização"1 da auto-
imagem de Portugal, em dois momentos- Poucas são as canções de gesta que chega-
chave da sua história, a saber, - no início do ram aos dias de hoje. A grande excepção pe-
ciclo dos descobrimentos (após o primeiro ninsular é o Cantar de Mio Cid que narra as
quartel do século XV) e no período da di- desventuras aventurosas de um campeador e
nastia filipina. No fundo, esses dois momen- conquistador, falecido por volta de 1099. Ao
tos são como que os limites do designado ci- contrário da Chanson de Roland, do século
clo de ouro português, não só pelas viagens XI, o Cantar não se reporta a factos ocorri-
e conquistas então empreendidas, mas sobre- dos num passado distante, embora se man-
1
Sobre o conceito, relativo às readaptações e trans- tenha dentro do inevitável espírito de alte-
formações genéricas, cf. A.Fowler The life and de- 2
ath of literary forms in New directions in literary his- Acerca do tema em questão, L. Carmelo, A sim-
tory, Ralph Cohen (ed.), The Johns Hopkins Univer- bologia do Encoberto peninsular - Da génese valenci-
sity Press, 1974:77-94, Baltimore. Ainda: Kinds of ana aos moriscos aragoneses e ao grande mito portu-
literature: An Introduction to the Theory of Genres guês (F.Sur,Madrid,1998) insere-se, tal como o pre-
and Modes, Clarendon Press, Oxford, 1982:107. sente artigo, num projecto mais vasto, designado -
"Portugal semiose e auto-imagem".
2 Luís Carmelo

ridade islamo-cristã que, na Chanson, con- Rasis, as mais antigas referências portugue-
tudo, é bastante forçado. Todo o vasto re- sas relativas à literatura dita arturiana (tam-
portório épico-romanesco destas e de mui- bém presentes no precedente Livro de Linha-
tas outras gestas foi oralmente cantado por gens 5 ), para além da famosa lenda épica que
jograis, durante séculos, mas apenas viria converte D.Afonso Henriques num herói a
a ser fixado e enxertado textualmente, mais todos os títulos singular.
tarde3 , em compilações do tempo de Afonso Nesta crónica, no entanto, não surge ainda
X, (1221-1284) e, já no século XIV, pela pri- narrado o milagre de Ourique que, mais
meira vez, em Português4 , entre outras, na tarde, se associará ao caracter de inspiração
Crónica Geral de Espanha de 1344, da res- divina do primeiro rei de Portugal. Os tó-
ponsabilidade de um bisneto do rei Sábio, picos constantes na crónica, e resultantes do
- D.Pedro, Conde de Barcelos. É nesta úl- reaproveitamento de fontes dispersas, dizem
tima crónica que se encontram copiladas, por respeito à genealogia dos reis bíblicos e da
exemplo, a interessante Crónica do Mouro Antiguidade, à crónica romanesca do final
3
dos reinos visigóticos (e do alvor do Islão,
Sobre o assunto, refere M.Tarracha Ferreira
(Romanceiro de Almeida Garrett, Ulisseia, Lisboa, através da tradução do já referido Ahmed
1997): "Cantadas pelos jograis, as gestas eram de di- bem Muhammad Raziz) e ainda, por fim, ao
fícil memorização, por serem excessivamente longas, registo de uma das variantes da Crónica Ge-
além de que nem todos os episódios impressionariam neral de España de Afonso X, desde Ramiro
igualmente a imaginação do povo. E em determinada
I das Astúrias até à Batalha do Salado.
época, talvez na segunda metade do século XIV, ao
mesmo tempo que os jograis iam procedendo a no- Para além de uma original tradição pro-
vas refundições dos fragmentos desgarrados que mais fética relativa à conquista de Santarém (re-
tarde emocionavam os ouvintes, quer simplificando- alizada a partir da intertextualização da Cró-
os, quer introduzindo episódios de outras gestas ou de nica Galeco-Portuguesa, de que a Crónica de
lendas entretanto criadas pelo imaginário popular, as
Santa Cruz é fragmento6 ), nesta crónica de
canções de gesta serviam também de fonte histórica
às crónicas primitivas, pois nelas iam sendo incluídas 1344 - como Lindley Cintra aprofundou7 – o
em versões prosificadas. Assim, nas compilações his- primeiro rei de Portugal surge já, com apenas
tóricas realizadas por iniciativa de D.Afonso X, o Sá- quatro anos, como válido interlocutor do seu
bio, rei de Leão e Castela, e avô materno de D.Dinis pai, durante um cerco a uma cidade de Leão.
- a General Estoria e a Crónica General de España,
ambas redigidas em castelhano (ou seja, em romance
Decidido, o herói há-de depois revoltar-se e
castelhano), - foi incluída ’ matéria dos poemas épi- vencer as tropas do padrasto e da sua pró-
cos de tema histórico ainda então cantados pelos jo- pria mãe que aliás virá a encarcerar. Dei-
grais que os iam dando a conhecer de terra em terra’,
5
segundo o medievalista Luís Filipe Lindley Cintra". M. Buescu (Perceval e Galaaz, cavaleiros do
4
Segundo A. Saraiva (O crepúsculo da Idade Mé- Graal, Biblioteca Breve, Lisboa, 1991:87).
6
dia, Gradiva, Lisboa, 1996:158), citando J. Leite de A.Saraiva (o.c., 1996:161).
7
Vasconcelos e L.Lindley Cintra, o presente texto de- L.Lindley Cintra (Introdução in Crónica Geral de
tém marcas sobretudo galegas, provenientes de tradu- Espanha de 1344, Vol.I, Academia Portuguesa de His-
ções anteriores, chegando a sublinhar a hipótese de o tória, Lisboa, 1951; Sobre a formação e a evolução da
próprio D.Pedro ter encarregado da tradução de uma lenda de Ourique in Revista da Faculdade de Letras,
das variantes da Crónica general de España um es- F.L.L., Lisboa,1957 e A lenda de D.Afonso I, rei de
criba galego". Portugal (origens e evolução) in ICALP revista, ICLP,
Lisboa,1989).

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O milagre de Ourique 3

xando de lado a lenda de Badajoz (e suas im- além do cuidado registo de alguns traços es-
plicações), onde D.Afonso parte uma perna tilísticos, nomeadamente da área da descri-
como consequência de uma lendária praga ção, que são claramente indícios do grande
de D.Teresa, o rei prossegue as suas desme- cronista de Aljubarrota.
didas façanhas, levando facilmente de ven- Pela primeira vez, é, nesta Crónica de Por-
cida o então imperador Afonso VII de Leão e tugal de 1419, que surge narrado o milagre
Castela e, num desafio à omnipotência tem- do aparecimento de Cristo em Ourique. Re-
poral da época, chegando mesmo a nomear ferindo uma batalha que terá tido lugar ao
um Bispo por sua escolha, o negro Çoleima. sul do Tejo contra vários reis "mouros", en-
Independentemente dos verosímeis histó- tre eles um enigmático rei "Ismar- que esca-
ricos, o certo é que a imagem criada a partir pam, segundo J. Matoso (1993:70)9 , ao vero-
do personagem de D. Afonso Henriques, símil histórico -, o texto dá particular atenção
na Crónica Geral de Espanha de 1344, é, às vésperas da peleja anunciada. É nessa al-
portanto, na sua essência, a de um homem tura que um ermitão surge face ao futuro rei
superiormente dotado, insubmisso, auda- Afonso, enquanto mediador divino, dizendo
cioso, impertinente, mas sempre firme no - "... E Ele me manda por mim dizer que
cumprimento e decerto na fundação de uma quando ouvires tanger esta campaínha que
grande obra. Este inventário de valentia he- em esta ermida está que tu saias fora e Ele
róica, difundido pelos jograis desde os finais te aparecerá no Céu...!". Num subsequente
do século XII e reposto por escrito antes de trecho da crónica, regista-se a aparição: "...
meados do Século XIV, constituir-se-à como tangeu-se a campãa, e ele saiu-se fora da sua
motivo de um longo e variado intertexto, tenda, e, assi como ele disse e deu testemu-
pelo menos até finais do século XVI. nho em sua história, viu Nosso Senhor Jesus
Cristo em a Cruz pela guisa que o ermitão lhe
b) A Compilação de 1419: novos dados dissera e adorou-o com grande prazer e lá-
e suas heranças grimas...". O milagre é, logo a seguir, trans-
posto no próprio símbolo da bandeira do fu-
A Crónica de Portugal de 1419 - es- turo reino, "...por se lembrar da mercê que
crita apenas quatro anos depois da conquista Deus naquele dia fizera, pôs sobre as armas
de Ceuta, durante o reinado de D.Duarte - brancas que ele trazia uma cruz toda azul, e
apresenta-se como a grande compilação de pelos cinco reis que lhe Deus fizera vencer
todos os textos residuais até então ainda não departiu a cruz em cinco escudos..."10 .
fixados, incluindo-se-lhe todo o reportório
(o.c.,1996:162-163) são "próprios de Fernão Lo-
da anterior crónica de 1344. Segundo A. Sa- pes"(...)"e estranhos aos historiógrafos medievais".
raiva, a Crónica de Portugal de 1419 - onde De realçar, neste quadro, o "espírito de paisa-
se arrolam, além de lendas, documentos his- gem"presente na descrição de Santarém que antecede,
tóricos autênticos - teria sido da autoria de na crónica em causa, a narração da conquista da ci-
dade.
Fernão Lopes. Para o comprovar, o autor re- 9
J. Matoso, História de Portugal, Estampa, Lisboa,
fere uma passagem da Crónica de D. João I 8 , 1993 - Vol.I:70
10
8 Texto in A.Saraiva (o.c., 1996:164-165).
Todos os "predicados"analisados por A.Saraiva

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4 Luís Carmelo

Como J. Matoso referiu (ibid.:70), exis- Sustentando essa realidade, convirá jus-
tem fundamentos históricos que situam tamente sublinhar que é quase três sécu-
uma batalha, a sul, durante este Verão de los depois da pretensa batalha de Ouri-
1139. Sendo certo que, por essa altura, que que o milagre da aparição de Cristo
D. Afonso terá, pelo menos, dirigido "um a D. Afonso se torna numa renovada di-
fossado"constituído por um exército maior mensão da lenda heróica do fundador de
do que o habitual, a verdade é que os ce- Portugal. Além do mais, a Crónica de
nários apontados pelo historiador são, con- 1419 cita como fonte alguns documentos
tudo, muito alternativos aos da Ourique alen- anteriores - nomeadamente uma enigmá-
tejana, isto é, - ou o dito recontro, entre tica história do rei "testemunhada por ele
tropas cristãs e islâmicas resultou de uma mesmo"(A.Saraiva,1996:165) e guardada no
contra-investida de Afonso Henriques contra mosteiro de Santa Cruz de Coimbra - o
os Almorávidas que ameaçariam uma cidade que nos permite concluir que estamos, à
a norte do Tejo; ou, por outro lado, resul- partida, diante de um típico enunciado for-
tou de uma investida directa de D.Afonso, a jado ex-eventum, próprio, a todos os tí-
leste de Badajoz, contra vários "chefes mou- tulos, do género literário profético12 que,
ros"que iriam em socorro dos Almorávidas na época, é um claro "um signo dos tem-
cercados em Colmejar, a sul de Toledo. Ve-
vant un processus analogue de création et de modifi-
rosímil parece ter sido o regresso a Coimbra cation permanentes d’un horizon d’attente. Le texte
de D. Afonso, após a contenda, onde, por au- noveau évoque pour le lecteur (ou l’auditeur) tout un
gúrio feliz, terá encontrado D. João Peculiar, ensemble d’attente et de règles du jeu lesqueles les
regressado de Roma, onde fora receber, du- textes antérieures l’ont familiarisé et qui, au fil de la
lecture, peuvent être modulées, corrigées, modifiées
rante o Concílio Latrão Ecuménico, o "pá-
ou simplement reproduites. La modulation et la cor-
lio arquiepiscopal". Estes factos importan- rection s’inscrivent dans le champ à l’intérieur du-
tes, acrescidos aos da própria aclamação de quel évolue la structure d’un genre, la modification
D. Afonso a rei terão inevitavelmente con- et la reproduction en marquent frontières."Esta refle-
duzido a uma hiperbolização literária subse- xão inclui-se na tradução francesa (1978) de um vo-
lume onde se publicam diversos trabalhos de H.Jauss
quente (de acordo com os horizontes de ex-
da década de setenta (de 1972 a 1975). Já na dé-
pectativas 11 de diversas épocas). cada de 80, H.Jauss (1988:27) escreveria: "...le con-
11 cept d’horizon est devenu une catégorie fondamentale
No sentido de enquadrar a noção de ’horizonte
de l’herméneutique philosophique, littéraire et histo-
de expectativas’, eis a reflexão de H.Jauss (1978:50-
rique: en tant que problème de la compréhension du
51), a partir de uma definição de W.-D.Stempel: "Si
différent face à l’altériré des horizons de l’expérience
lón définit avec W.D. Stempel l’horizon d’attente où
passé et de l’expérience présente, comme aussi face à
vient s’inscrire un texte comme une isotopie paradig-
l’altérité du monde propre et d’un monde culturel au-
matique qui se change, à mesure que se développe le
tre". Jauss, Hans-Robert Asthetische Erfahrung und
discours, en un horizon d’attente syntagmatique im-
literarische Hermeneutic - I, Wilhelm Fink, Munchen,
manent au text, le processus de la réception peut être
1977; ed.ut.: Pour une esthétique de la réception, Gal-
décrit comme l ’expansion d’un système sémiologi-
limard, Paris, 1978.
que, qui s’accomplit entre les deux pôles du dévelop- 12
A propósito das características do género profé-
pement et de la correction du système. Le rapport
tico, cf., L. Carmelo (La Représentation du réel dans
du texte isolé au paradigme, à la série des textes an-
des textes de la litterature aljamiado-morisque, Uni-
térieures qui constituent le genre, s’établit aussi sui-
versiteit Utrecht, Utreque)1995:18-187.

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O milagre de Ourique 5

pos"(L.Cardaillac,1977:6213 ). De qualquer No início do século XVI, o compromisso


modo, os desígnios que a efabulação criada entre estas duas visões (épica versus espi-
sugere apontam, de modo claro - e talvez em ritualizante) torna-se patente na Crónica de
empatia com o alvor aventuroso dos tempos D.Afonso Henriques, da autoria de Duarte de
de descoberta marítima -, para uma prefigu- Galvão (1505). Como afirma L. Lindley Cin-
ração de um futuro mito providencialista da tra, sobretudo no percurso narrativo em que
história portuguesa. D. Afonso nomeia o famoso bispo negro, é
Segundo L. Lindley Cintra, esta Crónica evidente "a necessidade de pôr de acordo, no
de Portugal de 1419 inaugura o que passa a interior da crónica, a antiga imagem épica do
designar por "segunda lenda"(1989:71). O rei, com uma outra imagem, lendária tam-
autor justifica o novo compasso do mito em bém, que se encontra nela tão completa-
formação, referindo que, ao longo texto, a mente desenhada como a primeira, mas que
enunciação se centra preferencialmente na se opõe bastante visivelmente a ela em vá-
batalha de Ourique, o que, em registos an- rios aspectos fundamentais. Trata-se de uma
teriores, se circunscrevia apenas a uma "alu- imagem de Afonso como rei essencialmente
são bastante rápida"; por outro lado, o texto piedoso, escolhido por Deus para se tornar
da crónica de 1419 sobrepõe ao herói épico fundador da monarquia portuguesa e a quem
e destemido dos registos anteriores a ideia, o próprio Cristo apareceu...."(1989:70).
quase monástica, de um rei ungido de deve- É a esta crónica, aliás, que Camões
res divinos. Não é por acaso - prossegue o recorre e de que retira, com grande fideli-
autor - que "os monges de Santa Cruz fa- dade, no canto III dos Lusíadas (28-84), a
lavam de curas miraculosas que se tinham matéria com que narra o episódio do milagre
dado perto do seu túmulo (de D.Afonso) de Ourique: "A matutina luz, serena e
e por sua intercessão". Quer pelo jogo fria,/As estrelas do Pólo já apartava,/Quando
retórico-literário, quer já pela própria práxis na Cruz o Filho de Maria,/Amostrando-
da lenda vivida, parece que assistimos de- se a Afonso, o animava./ Ele, adorando
cididamente a um momento de inflexão da Quem lhe aparecia,/ Na Fé todo infla-
lenda, o que quer dizer que o pretérito herói, mado, assi gritava: "Aos infiéis, Senhor,
anteriormente cantado por jograis ou fixado aos Infiéis,/ E não a mi, que creio o que
por escrito, começa agora, de modo lento, a podeis!"(ibid:45,1969:12215 ). Neste trecho
passar testemunho a uma visão sobrenatural, verificamos que a voz do rei, em discurso di-
afirmando-se como símbolo divino e espiri- recto, contrasta com a omniscência narrativa
tual das origens da nacionalidade (o que aliás com que Cristo se anuncia; por outro lado, a
não destoaria com as correntes próféticas do- voz de D. Afonso reflecte as duas imagens
minantes na época14 ).
ras de desígnios divinos, tais como as Tribulações...
13
L.Cardaillac, Morisques et Chréthiens - Un Af- de Telesforus de Cozenza, a Profecia do Segundo
frontement polèmique, Librairie Klincksieck, Paris, Carlos Magno, o Gamaleon e, já depois de meados
1977. do século XV, o Prognosticatio de J.Lichtenbergen
14
Referimo-nos, por um lado, às reactivações pro- (L.Carmelo,o.c.,1995:42-49).
15
féticas das tradições joaquinitas e, por outro lado, às L. de Camões, Os Lusíadas, Porto Editora,Porto,
reactivações de profecias pró-imperiais, legitimado- 1969.

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que Galvão pretende pactuar; uma humilde à data da edição da Monarquia Lusitana
e devota, a outra combativa e belicosa. (1632). Em primeiro lugar, porque Pedro
de Mariz, no seu Diálogo de Vária História
c) A nova visão de Ourique, após o ciclo (na segunda edição da obra), anuncia que "os
de ouro monges Cistercenses de Alcobaça acabavam
de descobrir17 , nos arquivos do mosteiro, um
Do mesmo modo que S. Tiago, o "após- documento em latim"(...)"que se verifica ser
tolo da reconquista", no final do século nem mais nem menos que uma declaração
XVI, foi alvo, em Roma, de fortes "argu- feita 23 anos depois da batalha de Ourique,
mentos contra la devoción tradicional, como em Coimbra, em frente de vários Bispos e de
puede verse en cualquier texto de historia todos os grandes da sua corte, pelo próprio
eclesiástica española- o que suscitou "una Afonso I"(cit. in L.Lindley Cintra, 1989:73).
enorme intranquilidad a Felipe III"(J.Caro Em segundo lugar, depois de mais esta enun-
Baroja,1978:41916 ) -, também, em Portugal, ciação profética forjada e ex-eventum (na
no prólogo à Crónica dos Reis de Portugal tradição da Crónica de 1419), coube, dois
Reformadas (1600), se põe agora em causa anos depois, a Frei Bernardo de Brito - cro-
a matéria lendária de D. Afonso que era de- nista oficial do reino, note-se, - reproduzi-la
vedora de uma não menor devoção tradicio- na Crónica da Ordem de Cister. Por fim, em
nal. Duarte Nunes de Leão trata, nesse pró- terceito lugar, corria o ano de 1632, ao redi-
logo, como falso todo o reportório tradicio- gir a terceira e quarta partes da Monarquia
nal de "histórias inacreditáveis"que as fontes Lusitana - e sucedendo nesse cargo a Brito -
antigas atribuíam ao primeiro rei de Portu- , Frei António Brandão haveria de retomar,
gal. Curiosamente, chegando a surpreender- sem grandes mudanças, esse mesmo inter-
se pelo facto de D. Afonso Henriques não texto oficioso e forjado que passou a legiti-
ter ainda sido canonizado, Duarte Nunes de mar o agora pungente e abarrocado diálogo
Leão parece pôr tudo em causa... excepto entre Cristo e D.Afonso, na véspera da bata-
o próprio feito milagroso que teria coroado lha de Ourique.
a aparição de Ourique (esta, como se sabe, Numa altura em que, não se punha em
originada de modo forjado e ex-eventum em causa a "autoridade histórica de Homero,
texto de 1419). Definitivamente, e até com mas sim o itinerário de Ulisses, que nin-
curiosa ajuda do pré-racionalismo renascen- guém duvidava ser o fundador de Lis-
tista, a lenda de D.Afonso libertava-se, de boa"(A.J.Saraiva, O.Lopes,1955:47518 ), é
vez, do seu caracter épico-aventuroso para se também normal que a corrente ficcionaliza-
transformar no verdadeiro alicerce de um fu- ção dos eventos históricos acabasse por le-
turo mito. gitimar este tipo de enxertos proféticos (so-
Tudo ocorre neste breve e sintomático pe- bretudo, se necessários para colmatar as ca-
ríodo filipino que liga o final do século XVI rências políticas da época). O que, neste
16 17
Las formas complejas de la vida religiosa - reli- Sublinhado nosso.
18
gión, sociedad y carácter en España de los siglos XVI História da literatura portuguesa, Porto Editora,
y XVII, Akal Editora, Madrid, 1978. Porto, 1955.

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O milagre de Ourique 7

caso, na nossa perspectiva, tem significado época que se integram no topic mitológico
é essencialmente o facto de a ficção em de reinvenção da história, expliquemos, em
causa preservar um registo profético que vi- primeiro lugar, o terreno que os move.
nha desde o século XV, apagando, embora, Diga-se que todo o século XVI é balizado
de vez, o cariz épico do primeiro rei de Por- por uma autêntica guerra entre o Islão oto-
tugal; por outro lado, o pendor retórico do mano e o novo império que Carlos V edifica,
diálogo em que D.Afonso e Cristo intervêm antes ainda da guerra das Germanías de Va-
(cf. III) é associado, de forma clara, a um lência. Foi aliás a partir desta alteridade fun-
verosímil que se pretende credível e mani- damental, continuadora de um antigo espí-
festo. Este efeito intencional19 de serieção rito de cruzada originado em antagonismos
temático-retórica é, de facto, o centro desta basicamente escatológicos, que a Península
operação realizada durante a quadra filipina. Ibérica se contruiu e auto-depurou, durante a
Com efeito, esta potencial matriz mítica Idade Média tardia. N. Daniel espelha do se-
(criada entre os finais de quinhentos e 1632) guinte modo a geometria do mosaico histó-
preservar-se-á, enquanto memória volúvel e rico hispânico que lentamente se sedimenta:
funcional, ao longo de mais dois séculos. "No one could question that it was in Spain
Por isso mesmo se terá mitificado, ou seja, more than anywhere that for so long the two
acedido ao estatuto de memória invisível e cultures developed in parallel. There were
evidente, construtora da própria identidade. indeed four lines in parallel, Europeans un-
Não é por acaso que a desconstrução his- der European rule, Arabes under Arab rule,
tórica do milagre de Ourique, protagoni- and the two converses, the Mozarabs and the
zada por Alexandre Herculano, gerou, na sua Mudejares"(1975:8620 ).
época, o escândalo que se conhece. Mais Contra os conceitos de "Jihâd"e de "Dar-
do que de factos, é, na realidade, a partir da al-Islâm", nomeadamente a guerra santa e
complexidade do imaginário acumulado que terrena que pretendia salvaguardar, por sua
as comunidades codificam o seu próprio agir vez, o território da verdadeira salvação (na
no tempo. óptica islâmica), se contrapôs, desde os mar-
tírios de Eulogio e Alvaro até ás primeiras
guerras que sucedem ao colapso do Cali-
2 Outros casos contemporâneos
fado de Córdova, o conceito cristão de "re-
de profetismos forjados conquista"e mesmo de "batalha celestial".
Os factos deste tipo de produção profética M. Hagerty sintetiza este facto, identificando
ex-eventum, ao longo do século XVI e tam- os cristãos da Península como "los escogi-
bém no início de seiscentos, são fecundos e dos por Dios para luchar contra las fuerzas
variados na Península Ibérica (e não só). An- del Mal que habían invadido España en el
tes de passarmos revista a outros casos da 711 por culpa de los pecados. Es el co-
mienzo de la Batalla Celestial, combatida
19
A intencionalidade diz aqui respeito à enuncia- materialmente en la tierra, que despues sur-
ção do intertexto que se cria na sequência dos mais
variados registos que vão de Duarte Nunes de Leão a 20
N.Daniel,The cultural Barrier - Problems in the
António Brandão. Exchange of Ideas, Ed.Un.Press, Edinburgh,1975.

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girá outra vez en un concepto, para noso-


espalhe entre o século XIII A.C. (relato da conquista
tros clave, de la reconquista, como guerra e repartição da terra pelas doze tribos, em Josué) até
santa."(M.Hagerty,1978:17421 ). Por razões aos tempos de Alexandre-o-Magno (no segundo Za-
de teodiceia (isto é, para vingar os próprios carias), os textos atribuídos aos profetas últimos (de
pecados dos cristãos), o Islão havia assim en- Isaías a Malaquias) acabam por ser autorialmente an-
teriores a muitas das compilações dos chamados pri-
trado na Península e, curiosamente, dez sé-
meiros profetas (de Josué aos Reis) - caso do livro dos
culos depois, é o próprio o Islão, já na sua Reis (escrito ao longo do séc.VI A.C.), enquanto que,
fase terminal morisca e degenerescente, que entre os profetas últimos, encontramos textos da auto-
irá desenvolver profeticamente22 idêntico ar- ria do próprio Isaías (no primeiro Isaías) cuja datação
gumento. Estamos, portanto, diante de uma nos remete para o século VIII A.C.
Acresce ao indicado, o facto de, na cronologia in-
destemida guerra entre duas justiças divinas,
terna do Antigo Testamento, existirem ingredientes
para a qual há eterno perdão, e no limiar da proféticos anteriores aos próprios livros proféticos:
qual apenas se poderá supor um único e pos- nos Números, os textos Eloístas assinalam já a pre-
sível fim : a salvação. figuração profética. Em 11,25 Moisés responde a um
É pois natural, para além dos ingredien- rapaz que testemunhara Eldad e Médad em pleno acto
de profetizar: "Si seulement tout le peuple du Seig-
tes retórico-literários próprios do género pro- neur devenait un peuple de prophètes sur qui le Seig-
fético (e que têm a sua origem no primeiro neur aurait mis son esprit!". No quadro da tradição
milénio A.C.23 ), que os relatos das batalhas Eloísta, Deus intervém pouco directamente nos as-
suntos humanos e espera dos seus servidores obedi-
21
Los cuervos de S.Vicente: escatología mozárabe, ência. Outros fragmentos de prefiguração do profe-
Ed. Nacional, Madrid, 1978. tismo remontam mesmo ao Génesis. Por exemplo, em
22
Nos textos proféticos dos moriscos de Aragão, Gn 20,7, Abraão é tratado como um profeta:"C’est un
sobretudo nos Manuscritos 774 da Biblioteca Naci- prophète qui intercédera en ta faveur pour que tu vi-
onal de Paris, torna-se evidente que os agora falsos ves"(diálogo entre o rei de Guérar, Abimélek, e Deus
cristãos-novos aceitam que a derrota definitiva face à que lhe fala em sonho - um dos elementos mediadores
maioria cristã se fica a dever à sua negligência face importantes no que virá a ser a futura tradição pro-
aos deveres divinos. Publicamos, como exemplo, um fética). A realeza é, portanto, um ponto de partida
extracto de uma dessas profecias: - Óh! (Ya) servo de formal para este período profético. No Deuterónimo,
Allah, quero fazer-te saber como se aproximam tem- o papel de Moisés "n’est pas exactement celui d’un
pos difíceis ("el eskandalizami(y)ento") para os mu- prophète"(Introduction/ Traduction Oecumenique de
çulmanos de Espanha. (E) disse: la Bible:332). O profeta, como o codificamos no iní-
– E porque é que isso acontecerá ? cio do período designado por profético (ibid.:332),
– (E) disse: transmite a palavra directamente de Deus ao seu povo;
– Porque irão acontecer entre eles muitas coi- Deus apresenta-se então num discurso da primeira
sas feias. E a primeira dessas coisas é que deixa- pessoa. Aqui, ao contrário, e como os Levitas con-
rão de compreender o Alcorão, e deixarão l-ssalâ tinuarão a fazer, Moisés recorre antes à primeira pes-
(a oração ritual) e não pagarão a(l)zzake (a esmola soa para se referir a si próprio, enquanto evoca Deus
legal) e dayunarán (jejuarão) pouco e (mesmo as- na terceira pessoa verbal (caso de 9,10: "Le seig-
sim) dizem que Allah é verdadeiro (fol.279v) nos neur m’a donné les deux tables de pierre, écrites du
seus corações (mas) são vazios de nomear Allah. E doigt de Dieu, où étaient reproduites toutes les paro-
por isso semearão muito e colherão pouco, trabalha- les que le Seigneur avait prononcées pour vous sur la
rão muito (e disso) terão pouco proveito"(in L. Car- montagne")."(L.Carmelo,o.c.,1995:34). Sobre o tema
melo,o.c.,1995:348). Frye, Northrop The Great Code, The Bible and Litera-
23
A cronologia dos textos proféticos, no seu todo, é ture, Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1981/2;
bastente imprecisa. Embora o cronotopo diegético se ed.ut.: Le Grand Code - La Bible et la littérature,

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O milagre de Ourique 9

medievais estejam repletas de aparições, de efeitos nas esferas jurídicas e até políticas:
milagres, de visões - no quadro de uma se- "Pour le Moyen Age, les représentations que
miose mântica da realidade. Convém, de l’on pouvait qualifier de transcendantes, cé-
qualquer modo, salientar que a própria noção lestes ou infernales, sont objectives, sont le
de realidade, na Idade Média, se confunde fait. Les apparitions de saints, les visions ex-
com a dimensão mágico-misteriosa do sig- tatiques, les états de tansport extatique, les
nificado24 , daí que o sistema simbólico vi- opérations au-dela du réel, les contacts avec
vido se visse reflectido, com adequação, na le démon sont choses tenues pour réelles. Ils
arquitectura maravilhosa e fantasiosa desse ne font pas seulement partie de l’arsenal lit-
relatos. A.Abel pressente esta objectividade téraire et des ressorts habituels du develop-
e vai mesmo mais longe, ao assegurar que pement des contes ou des romans de cheva-
a armadura fantástico-visionária dos relatos lerie, mais ils ont leur incidence dans la vie
de guerra acabava, em última análise, por ter juridique aussi bien que dans la vie religi-
euse, et les canons du droit, aussi bien que
Seuil, Paris, 1984., e E.Lévinas Lévinas, Emmanuel
Transcendence et Inteligibilité, Éditions Labor et Vi- la vie historique, enportent parfois les tra-
des, 1984, Paris; ed.ut.: Transcendência e Inteligibi- ces"(1960:32)25
lidade, Edições 70, Lisboa, 1991; citações do A.T. in 25
Traduction OEcuménique de la Bible (TOB) - Édi- Sobre a obra de A.Abel, com incidência na aná-
tion Intégrale, Les Editions du Cerf/ Les Bergers et lise do profético. Cf.: Réflexions comparatives sur la
Les Mages (Ancien Testament), Paris, 1987; Les Edi- sensibilité médiévale autour de la Méditerranée aux
tions du Cerf/ Société Biblique Française (Nouveau XIIIe et XIV siècles in Studia Islamica, Vol. XIII,
Testament), Paris, 1989. 1960:23-42;Changements politiques et littérature es-
24
Sobre esta questão, M.Foucault (1988:113) con- chatologique dans le monde musulman in Studia Is-
clui, em As palavras e as coisas, que o saber apenas lamica, Vol. II, 1965: 23-45;Un Hadit sur la prise
rompe com o seu "velho parentesco", a divinatio, a de Rome dans la tadition eschatologique de l’Islam
partir do século XVII. Até aí, e ao contrário da ló- in Arabica, Tome V,1958:1-15 e Bahira in Enciclo-
gica sígnica "do provável e do exacto", todo o saber pedia of Islam (New Edition), Vol. III, 1983: 777-
decorre do desvelar de uma linguagem anterior, dis- 779. Como O.Niccoli referiu (1990:62 e sqqs.), as
tribuída por Deus ao mundo, linguagem essa que é aparições e visões sobrenaturais integram um vasto
espelhada pela natureza (nela se incluindo a voz, en- corpus profético que se estende desde a Idade Mé-
quanto suporte anterior e imanente das línguas natu- dia até seiscentos, atingindo mesmo o mundo pro-
rais; cf. Foucaul, Michel Les mots et les choses - une testante (caso do De spectris de Ludwig Lavater -
archéologie des sciences humaines, Gallimard, Paris, 1570). Em França, por exemplo, "aerial battles had
1966; ed.ut.: As palavras e as coisas, Edições 70, Lis- become so common that on several occasions they
boa, 1988. ). Julia Kristeva, em Recherches pour une were predicted by preachers"(...)"the topic appears to
sémanalyse (Seuil, Paris,1969), mostra-se mais pru- have been a favorite of the broadsheets on current oc-
dente na caracterização da época que preside à tran- curences known as canards"(ibid.:63). Um dos enun-
sição "do símbolo ao signo". Para a autora, todo o ciados mais ímpares descritos é a italiana Littera de
período que sucede ao século XIII - e até aos alvo- le maravigliose battaglie, datada de 1517, e onde se
res do século dezasseis - constitui uma transição em descreve a súbita visão de dois exércitos em luta du-
que, a pouco e pouco, esta "prática semiótica cosmo- rante uma semana, três a quatro vezes por dia, na re-
gónica"(ibid:116), baseada nas relações unívocas en- gião de Verdello, Bergamo. Após a batalha, os se-
tre os universais e as coisas (o mundo da divinatio), res envolvidos na peleja desaparecem, deles apenas
cede a um novo tipo de conexão sígnica, baseada na soçobrando vestígios de pegadas. Esta mundovisão
interacção "entre deux éléments placées tous les deux fantástica e recheada de "segno"integra um ambiente
de ce côté-ci, réèls et concrets"(ibid:117). semiótico caracterizado pela interpretação mântica de

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10 Luís Carmelo

Enquanto o pano de fundo islamo-cristão maneira com os processos de descoloniza-


radicalizou a belicosa alteridade peninsular, ção."(1984:15727 ).
os artifícios profético-históricos mais não fi- É pois natural que toda a vastíssima tradi-
zeram do que mimetizar essa mesma irre- ção, sustentada em relatos de batalhas entre o
dutibilidade. Esta autêntica obra de sécu- Islão e a Cristandade - de origem jogralesca
los haveria de gerar, no crepúsculo de to- e mais tarde historiográfico-profética -, aca-
dos embates - ou seja na transição de qui- basse por se converter em fonte de enuncia-
nhentos para seiscentos26 - uma estado de dos ex-eventum que, no fim do caminho (so-
catarse violenta, de auto-purgação, capaz do bretudo após Lepanto e antes da expulsão de-
melhor e do pior, ou seja, do ouro que deu finitiva dos moriscos, em 1609), haveriam de
nome ao século e de todos os seus impon- inevitavelmente forjar os mais diversos sen-
deráveis reversos inquisitoriais e de radical tidos da história, ao serviço, quase sempre,
aniquilação de minorias. F. Braudel chegou da orientações oficiosas. Destacaremos dois
mesmo a afirmar que "nenhuma civilização exemplos peninsulares desta tendência arti-
foi obrigada a trabalhar sobre ela mesma, a ficiosa de manipular os destinos da história,
’partilhar-se’, a despedaçar-se tanto como a ao serviço de uma guerra definitiva (e às ve-
ibérica"(...)Digo bem, civilização ibérica. É zes auto-flageladora). Referimo-nos aos do-
uma variedade particular da civilização do tes de S.Tiago em complemento com a temá-
ocidente, uma ponte avançada, uma extre- tica castelhana "goticista"e, por outro lado,
midade desta, antes quase inteiramente re- referir-nos-emos a alguma literatura profé-
coberta por águas estrangeiras. Durante o tica morisca (de Granada e de Aragão).
longo século XVI, a Península, para se tor- Veremos que as empatias com Ourique
nar de novo Europa, fez-se Cristandade mi- não são, de facto, menores.
litante; partilhou as suas duas religiões su- Em Espanha, as aparições detêm-se em
perfluidas, a muçulmana e a hebraica. Re- grande parte num longo intertexto ligado a
cusou ser África ou Oriente, segundo um S. Tiago, o Matamoros. Apesar dos travões
processo que se parece de uma determinada romanos a essa devoção tradicional, como
acima referimos, J.Caro Baroja adianta que
ocorrências; um exemplo evidente disso é o facto
de as luzes fosforescentes "appearing on battlefields "La fe en un Santiago que estubo en España
were a recurrent commonplace to the point that in the y que mucho después de muerto se apreció
mid-eighteenth century Lenglet Dufresnoy felt it ne- repetidas veces a las huestes combatientes,
cessary to state they "are only gross exhalations that en función de ser ’matamoros’ y al que se
rise naturally from cadavers and that easily take fire-
invocaba al grito de ’Santiago y cierra Es-
O. Niccoli, Profeti E Popolo Nell’Italia Del Renasci-
mento, GIUS, Laterza & Figli SPA, Roma-Bari, 1987; paña’, se refleja también en sinfín de pin-
ed. ut.: Prophecy and People in Renaissance Italy, turas e esculturas populares que aún se ha-
Princeton University Press, Princeton - New Jersey) cían en los siglos XVIII y XIX."(J.Caro Ba-
1990:73.
26 27
No momento em que se pressente a expulsão Braudel, Fernand La Méditerranée et le monde
das minorias islâmicas da Península (1609), após os méditeranéen à l’époque de Philippe II, Librairie Ar-
momentos-chave de Lepanto, Alpujarras e Alcácer- mand Colin, Paris, 1966; ed.ut.: O Mediterrâneo e
Quibir. o mundo mediterrânico, Publicações D.Quixote, Lis-
boa, 1983 (Vol. I), 1984 (Vol.II).

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O milagre de Ourique 11

roja,1978:419/20)28 . Esta persistência ligada como "inclytos"e "temidos por sus proezas",
ao espírito de reconquista é contemporânea ou seja, simultanemente piedosos mas sobre-
(e até complementar) de uma interessante va- tudo heróicos, tendo, no entanto, sido alvo
riante temática que surge no último quinto da maior injustiça histórica: "Asi cayo y fue
do século XVI, "o goticismo". Trata-se de abatida en un punto aquella soberana gloria
uma recuperação do ambiente cristão origi- de los Godos ensalçada por tantos siglos de
nal, e portanto pré-islâmico, muito centrado continuas victorias"(ibid.:363).
na figura do rei Rodrigo, e que tende a legi- A reactualização forçada dos visigodos
timar - inclusivamente através de muita his- não surge aqui como uma nostalgia de
tória ficcional forjada - a depuração inevitá- uma idade de ouro pura e invicta, na li-
vel que a Espanha do final de quinhentos já nha utópico-imaginária do britânico Thomas
claramente prenuncia (sobretudo no que diz More, mas sim no quadro da reconstrução
respeito à expulsão dos moriscos, considera- ex-eventum da própria história ibérica, ao
dos como uma espécie de quinta coluna do serviço dos desígnios políticos dos Austrias.
Império Otomano29 ). Ao fim e ao cabo, este apressado corpus his-
F. Márquez Villanueva (1981:36430 ) pre- tórico assemelha-se, nas suas metas, à pró-
cisa a questão: "Se impone tomar en cuenta pria produção profética que, ao longo do sé-
la alternativa metodológica de una fecha de- culo XVI, foi, em primeiro lugar, um ins-
terminada por la cuestión goticista, tan vivaz trumento de luta política oficial, como subli-
en la década de 1580. Presenció ésta un re- nhou J. Dény (1936:20431 ): "Les prophéties
surgir general del tema de Rodrigo, iniciado du XVIe siècle"(...) "présentent un caractère
com la publicación de la patrañera, pero con- particulier"(... )"Ce sont des véritables ins-
vencional, História de los reyes godos (1582) truments de propagande politique, au sens
del burgalés Julián del Castillo, cuja misma étroit du mot".
portada pregona ’la sucesion dellos hasta el O caso mais exuberante da ficcionali-
Catholico y potentíssimo don Philippe se- zação artificial da história, registada tam-
gundo". O autor refere depois, neste âm- bém nas últimas duas décadas de quinhen-
bito, a reimpressão, em Alcalá, no ano de tos, diz repeito aos "libros púmbleos del
1586, da Crónica sarracina ou Crónica del Sacro Monte"(1595) e ao pergaminho da
rey Rodrigo. No ano seguinte, em 1587, Juán "Torre Turpiana"(1580), ambos descobertos
Yñiguez de Laquerica, numa chamada Cró- em Granada. Estamos, aqui, face à rein-
nica general de España, descreve os godos venção do destino por parte dos moriscos
28
(uma abundante minoria, neste caso arabó-
Sobre aparições e profecias, na época em ques-
tão, cf. William Christian, Jr. - Apparitions in Late fona, composta por dissimulados cristãos-
Medieval and Renaissance Spain (Princeton, PUS, novos). O material encontrado, no sub-solo
1991) e O.Niccoli - Prophecy and People in Renais- do monte fronteiro ao Alhambra e na torre
sance Italy (Princeton, PUS, 1990). referida, aparenta ser antiquíssimo e prevê,
29
Cf. L. Carmelo,o.c.,1995:123.
30 31
F.Marquéz Vilanueva,Voluntad de leyenda: Mi- J. Deny, Les pseudo-prophéties concernant les
guel de Luna in Nueva Revista de Filología Hispá- turcs au XVIe siècle in Révue des Études Islamiques,
nica, Vol.XXX,no 2,1981:359-395. no 10, Cahier 2, 1936:201-220.

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12 Luís Carmelo

de modo auto-flagelador - aliás como nos falsos cronicones (D.Cabanelas,1965,1981 e


manuscritos proféticos e não-arabófonos de L.Lopez-Baralt 1980,198133 ).
Aragão, registados no manuscrito 774 da Bi- Pelo facto, porventura, de a comunidade
blioteca Nacional de Paris32 - o fim do Islão que produziu estes manuscritos granadinos
na Península Ibérica, assim como o próprio ter desaparecido, eles acabariam por não ge-
fim do mundo. As placas de chumbo do Sa- rar qualquer mito ibérico; no entanto, o pro-
cro Monte, gravadas com caracteres árabes cesso de reinvenção histórica e a sua denún-
angulares e redigidas num latim quase im- cia definitiva estão intervalados de três sécu-
perceptível - simulando assim a sua longe- los, o que também acontece mimeticamente
vidade -, pretendem reivindicar uma origem com o caso do relato de Ourique (entre a sua
remota, explicitamente situada no século I fase filipina de reinvenção e as consequên-
D.C. cias da intervenção de Herculano).
Entre os vários livros "púm-
bleos"existentes, registe-se, por exemplo,
3 Monarquia Lusitana: foz da
Los grandes mistérios que vió Santiago,
ou Enigmas e misterios que vió la Virgen, tradição anterior e matriz do
ambos atribuídos a Tefsifón Ebnaçar e a seu futuro mito
irmão, supostos discípulos do incontornável
O aparecimento de um enunciado profético
e mítico S.Tiago, apóstolo de Cristo e
forjado e supostamente legitimado pelo pró-
de Espanha (os manuscritos de Aragão,
prio D.Afonso Henriques - tese de Duarte
acima citados, remetem, por sua vez, para
Nunes de Leão (1600) que desagua na pró-
S.Isidoro, considerado igualmente como
pria Monarquia Lusitana (1632) - não pode,
"apóstolo de Espanha"). De referir que uma
portanto, ser considerado como um fenó-
larga disputa teológica - que chegou aos
meno literário-profético isolado. Insere-se,
aerópagos do Vaticano - acabou por envolver
antes de mais, no quadro de uma alteridade
estes fascinantes manuscritos que, apenas
33
em 1868, acabariam por ser definitivamente De L. López Baralt: Chronique de la déstruc-
desacreditados pela pena de José Godoy tion d’un monde - la littérature aljamiado-morisque
in Revue de l’Histoire du Maghreb, no 17/18, 1980-
de Alcántara, na sua História crítica de los
I:43-73; Las problemáticas profecías de San Isidoro
32
Corpo de Manuscritos aljamiados (excepto entre de Sevilla y de Ali Ibn Alferesiyo en torno al Is-
os fol. 88v e 189r, em Árabe), referenciado, pela pri- lam Español del siglo XVI: tres aljofores del Ms.774
meira vez, por E. Saavedra, no apêndice aos Discursos de la Biblioteca Nacional de Paris in Nueva Revista
leídos ante la Academia Española el 29 de Deciembre de Filología Hispânica, no XXIX-2, Madrid, 1980-
de 1878, Madrid, e catalogado pelo autor como nú- 2:353-366 e Mahomet - prophete et mythificateur de
mero sessenta. O Manuscrito da Biblioteca Nacional l’Andalousie Musulmane des derniers temps, dans un
de Paris corresponde ao manuscrito número 290 de manuscrit aljamiado-morisque de la Bibliotheque Na-
Saint Germain de Près e é actualmente designado por tional de Paris in Revue de l’Histoire du Maghreb,
Ms.BNP 774. Em 1982, foi publicado por M. Sán- no 21-22, 1981-1: 199-201. De D.Cabanelas, Intento
chez Alvarez, El Manuscrito misceláneo 774 de la Bi- de supervivencia en el ocaso de una cultura: los libros
blioteca Nacional de París, Gredos, Madrid. púmbleos de Granada in Nueva Revista de Filología
Hispânica, no XXIX-1, Madrid,1981:334-356.

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O milagre de Ourique 13

peninsular mais geral que acabamos - muito a consolidação da matriz do que viria a ser o
sumariamente - de descrever. mito do milagre de ourique.
Esta tendendência desenvolver-se-á, em Vimos que é nesta fase, durante cerca de
Portugal, no entanto, de acordo com uma es- quarenta anos de significativo período fili-
pecificidade, que se torna vital no fim de qui- pino, ou seja, entre os textos de Duarte Nu-
nhentos, e que se baseia na afirmação de uma nes de Leão e a Monarquia Lusitana, que,
diferença, no quadro da topografia imaginá- de modo decisivo, se constitui uma matriz
ria da Península ibérica. Este facto - que construtora do novo e futuro mito. Leia-
é também motivador das modalizações sin- mos, pois, a parte decisiva do trecho origi-
gularmente portuguesas do mito ibérico do nal35 (III parte, 1973:119-120) da Monarquia
Encoberto (L.Carmelo,1998) - é partilhado, Lusitana, da autoria de Frei António Bran-
por razões e lógicas corrosivamente diferen- dão, para que dela possamos extrair alguns
tes, pelos moriscos do Levante e da Andalu- dados importantes para posterior conclusão.
sia. Deste modo, contra (ou a favor) da ten- O texto inicia-se com a descrição de um
dência de uma Península Ibérica una, indi- D.Afonso quase místico, lendo a Bíblia e
visa e monossémica, a todos os níveis, se er- nela encontrando sinais prefiguradores de vi-
guem diferentes modelos de manietação ex- tória na batalha que se aproxima. Segue-se a
eventum da história. Neste âmbito se insere, descrição de um sonho - num "brando sono-
por exemplo, o goticismo castelhano (simbo- , no qual a personagem de D. Afonso vê
licamente centripto), e, de sinal contrário, as o asceta, "um velho venerável", bem como
profecias moriscas e. sobretudo, no caso que a própria e anunciada aparição do "Salva-
nos interessa, para além do Sebastianismo dor do mundo". Acordará, depois, e, en-
português (reactivado na época em causa 34 ), tre a realidade e o sonho, depara então com
34
o "bom velho"com quem antes sonhara e
A Reactivação da figura do Encoberto, oriunda
do Levante Ibérico, fica em muito a dever-se à re- que, desde logo, lhe prenuncia o milagre,
cuperação de Bandarra levada a cabo por D. João
joanista. No seu estilo literário, baseado na alegoria
de Castro, na sua Paraphrase et Concordancia de al-
universal, Vieira, deu corpo ao que viria a designar-se
guas propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso pelo "Quinto império português". No seu Sermão de
(1603). Neste contexto deve-se incluir igualmente Acção de Graças pelo nascimento do príncipe D.João,
Bocarro Francês (1588-1662) e, depois da Restaura- o padre jesuíta retoma as palavras de Daniel (2,26-45)
ção de 1640, refira-se o Fr. Filipe Moreira que atribu acerca dos quatro grandes impérios e concretizaria as-
às profecias de Bandarra a premonição do novo rei,
sim: "... o terceiro império, que é o dos gregos, a que
D.João IV, pois onde nas Trovas se escrevia - "o seu
hão-de suceder romanos; o demais de ferro[34] até
nome é Dom Foão", "houvera de se ler"D. João, o aos pés significa o quarto império, que é o dos ro-
primeiro da Dinastia de Bragança. Contra a "Grifa manos, a que há-de suceder o da pedra, que derribou
parideira", referida por Bandarra e agora intrerpretada a estátua; e a mesma pedra significa o Quinto Impé-
como a casa de Habsburgo, se erguia este novo rei do
rio, a que nenhum outro há-de suceder"(in L.Carmelo,
país restaurado. Na sua obra O Sebastianismo - histó-
o.c.,1995:324).
ria sumária (1987), José van den Besselaar dá corpo à 35
"Monarchia Lusitana, III Parte, por Frei António
vasta antologia que, na época, se espalhou em Portu- Brandão. Texto integral fac-similado", Imprensa Na-
gal em torno do agora descoberto Encoberto. No en- cional - Casa da Moeda, Lisboa, 1973:119-120 (in-
tanto, o Padre António Vieira acabaria por tornar-se trodução de A.da Silva Rego e col. A.Dias Farinha e
no maior dos porta-vozes do novíssimo bandarrismo
Eduardo dos Santos).

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14 Luís Carmelo

acrescentando-lhe que "tivesse muita confi- sou o fundador e destruidor dos


ança em o senhor por ser dele amado, e Impérios do mundo, e em ti, tua
que nele, e em seus descendentes tinha posto geração quero fundar para mi, um
olhos de sua misericórdia até à décima-sexta Reino, por cuja indústria será meu
geração36 , em que a fé atenuaria a descen- nome notificado a gentes estra-
dência, mas nela ainda nesse estado poria o nhas. E porque teus descendentes
senhor os olhos". conhecerão de cuja mão recebem
Não muito depois, com o deslumbramento o Reino, comporás as tuas armas
que a retórica barroca tão ornadamente fi- do preço com que comprei o gé-
gura, D. Afonso vê Cristo na sua frente: nero humano, e daquele porque fui
"pondo os olhos no céu viu na parte Orien- comprado dos judeus, e ficará este
tal um resplendor formosíssimo, o qual (a) Reino santificado, amado de mim
pouco e pouco se ia dilatando, e fazendo pela pureza da Fé. E excelência da
maior. No meio dele viu o salutífero sinal da piedade."(ibid.:119-120)
cruz". D. Afonso, nessa altura, - "descalço
se prostrou em terra e com abundância de lá- Segue-se a resposta de D.Afonso que pede
grimas começou a rogar ao Senhor por seus a Deus que proteja o reino, chegando a refe-
vassalos e disse": rir o possível pecado dos seus descendentes
(numa clara interferência da enunciação - su-
– "Que merecimentos achas- blinhando o estado do presente - em desfavor
tes meu Deus em um tão grande do pretenso passado em que o texto quereria
pecador como eu para me enri- ter sido escrito). Num momento posterior, já
quecer com mercê tão soberana em discurso indirecto, mas agora através da
?"(...)"Melhor seria participarem voz narrativa e omnisciente, é sublinhada a
os infiéis da grandeza desta mara- aceitação de tudo por parte da Divindade e
vilha, para que abominando seus são, de seguida, profeticamente anunciadas
erros vos conhecessem. (ibid.:119) as próprias viagens dos descobrimentos, tal-
vez como forma ex-eventum de demonstrar
No único momento em que fala (também um pretenso domínio da história ainda por
em discurso directo), Cristo anuncia o futuro cumprir.
reino providencial português e termina anun-
ciando - ao nível dir-se-ia, do goticismo cas- –"Em que merecimentos fun-
telhano - claros desígnios de depuração e pu- dais meu Deus uma piedade tão
reza necessárias extraordinária como usais comigo
?"(...)"Conservai livre de perigo
– "Não te apareci deste modo, a gente portuguesa, e se contra
para acrescentar tua fé, mas para ela tendes algum castigo ordenado,
fortalecer teu coração nesta em- peço-vos o deis antes a mim, e a
presa e fundar os princípios do teu meus descendentes, e fique salvo
reino em pedra firmíssima"(...)"Eu este povo a quem amo como único
36
Sublinhado nosso. filho."

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O milagre de Ourique 15

A tudo deu o Senhor resposta favorá- carregadas de símbolos (a visão no lado ori-
vel"(...)"porque os tinha escolhidos por seus ental do céu; os judeus; a pureza; gentes es-
obreiros e legadores, para lhe ajuntarem tranhas; o homem venerável; a Bíblia; a pro-
grande seara em regiões apartadas. Com isto lepse onírica e sobretudo as armas de Por-
desapareceu a visão."(ibid.:120) tugal que D.Afonso acata, etc), ainda que a
Podemos retirar deste enunciado várias ilocução seja descodificada através da inter-
conclusões, nomeadamente: venção, premeditada e cruzada, de ambos os
a) A enunciação não privilegia um ele- autores - Cristo e D.Afonso37 - que dialogam,
mento intermediário entre o actante-profeta ao contrário do que acontecia na versão do
e futuro rei, por um lado, e a Divindade, por século XV (igualmente já afectada pela ma-
outro lado, o que está de acordo com os mol- nipulação do devir histórico);
des do género profético, na sua primeira fase, f) O sonho38 , um elemento profético por
até ao século IV A.C. (anterior, portanto, aos 37
A este respeito recorramos à clarificação de L.
primeiros textos apocalípticos). Este facto Hartman (1983:334) : "...I will examine the characte-
acaba também, por produzir um efeito de ve- ristics of what could be termed the illocution of the
rosímil hiperbolizado, complementado com text, i. e., what its author wants to say with that
reiteradas expressões patéticas e de pretensa which he says. We could also speak of this cons-
tituent as the message or the type of message con-
humildade por parte de D.Afonso;
veyed by the text"(...) "...in the case of apocalypses, a
b) O eixo imediato do presente - a pré- typical message is one of comfort and exhortation";
batalha - sobrepõe-se ao eixo escatológico, L,Hartman, Survey of the problem of Apocalyptic
negligenciando-se aparentemente a questão genre in Proceedings of the International Colloquium
da salvação, mas sublinhando-se, de forma on Apocalypticism, (Uppsala, 12-17/8/1979), David
Hellholm (ed.), J.C.B. Mohr, Tubingen, 1983: 329-
clara e explícita, a questão de uma futura pre-
343.
destinação nacional; 38
Citando ainda Ibn Khaldún (1967-I:203-4), é
c) A pseudonímia autorial, neste caso si- através da verdadeira visão onírica (ru‘yâ) que a alma
gularizada pela instância narrativa no próprio humana "atteint à la connaissance de l’avenir souhaité
actor que é D.Afonso, atribui autoridade à et retrouve aussi ses perceptions originelles"; mas,
porque a sua potência depende de percepções corpo-
enunciação e permite, à partida, a manipu- rais, os humanos não atingem nunca o nível superior
lação do tempo e da história; dos anjos. É, ao contrário, dom dos profetas "pas-
d) A teoria das duas idades impõe-se, mas ser de l’humanité au pur angélisme, c’est-à -dire à
de tal modo que um presente mágico (o do l’échelon supérieur de la spiritualité"(ibid.:205). A
século XII) parece, desde já, determinar um visão onírica exprime-se, assim, "à plusieurs reprises
au cours des révélations". O registo do oniro está in-
futuro radioso até - precisamente - à "décima timamente ligado ao modo profético, ou seja, ao diá-
sexta geração", o que, no fundo, é a chave logo entre Deus e o homem, seu receptáculo. O sonho
do que virá a constituir-se como um futuro constitui-se como matéria do premonitório e a tradi-
mito providencialista de sobrevivência naci- ção que confere a esse processo uma dada codificaçäo
onal. No entanto, inquietações do período remonta ao século VII A.C., segundo L.Hoppenheim
(1956: 179 e sqqs.). As influências que, neste qua-
em que o texto é forjado reflectem-se na se- dro, sobretudo a sociedade islâmica irá sentir, pro-
gunda voz de D.Afonso ("conservai livre de vêm sobretudo da Grécia e da zona do Iraque. Por
perigos a gente portuguesa"); exemplo, a tradução do livro dos sonhos de Arte-
e) O discurso refina-se através de visões midoro de Éfeso foi importante, no século IX, para

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16 Luís Carmelo

excelência, intervém como uma prefiguração inevitável projecção divina que ilumine o es-
absoluta e literal de tudo o que ocorrerá al- tado actual de pós-degenerescência (leia-se,
gumas linhas depois do seu registo, nome- de dependência filipina);
adamente através do surgimento do eremita h) Por fim, como se referiu mais cima, a
anunciador e da própria aparição de Cristo. escolha de Deus recaindo sobre os portugue-
Sem construir um verdadeiro suspense, e ses "para que lhe ajuntarem grande seara em
sem se constituir como figura de antecipa- regiões apartadas", não só sublinha o claro
ção, o sonho adquire, deste modo, funciona- providencialismo divino, como tem a utili-
lidade enfática, bem como a força rítmica de dade diegética de denotar um pretenso, mas
uma litania que se limita a repetir o acto que necessário, domínio da história por parte da
se quer narrar. Contribui, deste modo, para o transcendência revelada.
desejado eco retórico com que a aparição de
Cristo se sublinhará;
4 Conclusão
g) Quando o "homem venerável"anuncia
a D.Afonso que, à décima-sexta geração, "a A tradição oral épica, reposta textualmente
fé atenuaria a descendência"dos que man- no século XIV, consagra D.Afonso Henri-
dam no reino, logo acrescenta - "...Mas nela ques como um personagem heróico, ímpar,
ainda nesse estado poria o Senhor os olhos- o criador do mundo original, ou seja do novo
que constitui outro claro prenúncio da neces- reino.
sidade de ver projectada, no presente, uma No início do ciclo de ouro, passadas as
etapas da fundação e iniciação, Portugal
que a "onirocritique arabe puisse sentir une nouvel
essor"(T.Fahd,1966:248). Esta dupla herança (grega descobre-se como terra providencial e, por
e babilónica), bem assimilada pelos "onirocrites ara- isso mesmo, a lenda o explicita nos variados
bes, se perd dans l’apport très riche et très varié qu’ils excertos que edificam a própria crónica de
ont enregistré, amélioré et perfectionné, à travers de 1419. Neste contexto, a semantização de um
nombreuses générations"(ibid.:249). Os variadíssi-
pacto entre a ideia do antigo guerreiro fun-
mos exemplos de profecias, recorrendo a sonhos (e
a existência de códigos para a significação destes), dador e o agora divino fundador do reino há-
patente no livro de Toufic Fahd (1966), permite con- de perdurar ao longo do século XVI. Duatre
cluir que "ces exemples démontrent l’existence, dans Galvão e Camões farão ainda jus a esta visão
la première moitié du IIIe/IXe siècle, d’ un code d’ de D.Afonso Henriques.
interprétation des songes, réunissant certaines cons-
No período de fechamento do ciclo de
tantes symboliques"(ibid.:311). Sobre o tema: L Op-
penheim, The interpretation of dreams in the An- ouro, os conteúdos da lenda são definitiva-
cient Near East. With a Translation of an Assy- mente moldados e seriados. Fixa-se, então,
rian Dream-book, in Transactions of the American de vez, o caracter angélico e divino do pri-
Philosophical Society, Vol.46, Philadelphie, 1956: meiro rei português e forjam-se, ao mesmo
179-373;Ibn Khaldún,Discours sur l’Histoire Univer-
selle (al-Muqaddima), org./tr. Monteil, Vincent: Co-
tempo, as fontes histórico-ficcionais de for-
mission Internationale pour la traduction des Chefs mato heteredodiegético e actorial, para me-
d’Oeuvre, Beyrouth, 1967-I, 1968-II et III; T.Fahd,La lhor o legitimar. Além do mais, as caracte-
Divination Arabe - études réligieuses, sociologiques rísticas da matriz literária do período (1600-
et folkloriques sur le milieu natif de l’Islam, E.J.Brill, 1632) correspondem, nos artíficios retóricos
Leiden, 1966.
utilizados, a atributos nodais e ancestrais do

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O milagre de Ourique 17

género profético. Tal é patente no diálogo ria específica que, por um lado, crê nas suas
entre o rei e a divindade39 ; na premonição origens sagradas e, por outro lado, crê num
calculada do futuro, tendo como acento par- futuro visionário e sobretudo autónomo. Ou-
ticular o estado de coisas vivido no tempo tros mitos igualmente em formação na época
real em que o texto é enunciado; no recurso (como, por exemplo, o do Encoberto), coin-
a uma estrutura narativa ex-eventum e, por cidem neste singular aspecto de representa-
fim, na consequente manipulação da história ção do tempo, pelo que confirmam o pre-
ao serviço de efeitos de sentido do presente sente ponto de vista.
(sobretudo políticos). O exemplo mais interessante que com-
Esta definição matricial do futuro mito é prova esta necessária especificidade portu-
contemporânea e muito similar a outras pe- guesa é, porventura, o que advém da adap-
nínsulares; quer face ao corpus profético das tação teatral da matéria da lenda - sobre-
minorias ameaçadas de expulsão (os moris- tudo a partir dos textos de Benardo de Brito
cos) que reinventam a história para se tenta- (1602) - por um autor português português
rem salvar; quer face às tentativas centralis- e por um outro espanhol. Se António de
tas dos Áustrias de Madrid que também ma- Sousa, na sua Tragicomédia (1617) funde o
nipulam a história, ao serviço dos seus desíg- ornato alegórico barroco com a essência do
nios imperiais e de monossemia hispânica. conteúdo providencial da lenda, já Tirso de
Curiosamente, em todos estes casos, a alte- Molina, em Las quinas de Portugal (1638),
ridade islamo-cristã é uma das isotopias cor- desenvolve antes conteúdos de tensão amo-
rentes, na sequência da tradição, quase om- rosa entre D.Afonso e uma senhora da corte
nisciente aliás, das narrativas ibéricas medi- que quase o desvia dos seus deveres ré-
evais e mesmo posteriores (como se viu). gios. Deste modo se verifica como já exis-
No entanto, a diferença enunciada por tem, na época, em Portugal, claros factores
Portugal, nesta sua matriz profética de seis- de identificação e, portanto, de especificação
centos, é evidente e vem significar uma ne- de "formas de conteúdo"41 que se desvirtuam,
cessidade vital de afirmação40 de uma histó-
tidade nacional (1998,Gradiva,Lisboa), "a primeira
39
Já vimos na nota 23 que, no período profético ini- obra em que os portugueses aparecem como sujeito é,
cial, até ao século IV A.C., não se regista qualquer talvez, significativamente, as Décadas de João de Bar-
mediação angélica, entre a divindade e os reis. Essa ros (1552-1563)", antecipando, nesse propósito cons-
figura é aqui recuperada. Além do purismo retórico, titutivo, Os Lusíadas. A matriz profética, definida no
porventura não intencional, mas objectivado ao nível início do século XVII - e estimulada decerto pelo con-
da enunciação, refira-se que terá feito parte da estra- texto político de então - só se torna possível pelo facto
tégia de diferenciação portuguesa substituir os santos de o reino, já na época, se auto-representar como um
(S. Tiago, sobretudo) pelo próprio Cristo, na aparição sujeito (colectivo), construtor das suas prórpias "for-
que é, ao fim e ao cabo, a base da profecia fundadora e mas de conteúdo"(segundo U.Eco,O signo,1981:159,
providencialista de Ourique. Tal é a tese de L.Lindley Presença, Lisboa - "o sistema das unidades semânti-
Cintra (o.c.,I-1957). cas representa o modo como uma certa cultura seg-
40
A afirmação de uma identidade baseia-se na menta o universo perceptível e pensável e constitui a
consciência de se ser sujeito de algo, i.e., de estabe- forma de conteúdo").
41
lecer com o objecto - o mundo, o outro - uma rela- Sobre a noção de "forma de conteúdo", da autoria
ção também particular. No plano do imaginário por- de L. Hjelmslev, cf. nota 40.
tuguês, segundo J. Matoso, no seu recente A iden-

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18 Luís Carmelo

quando interpretados por outro sistema se- vantou essa capelinha ? Os documentos fal-
mântico. tam; os escritores contemporâneos guardam
A força deste intertexto profético e de so- silêncio; a História deve ser rigorosa e ver-
brevivência nacional42 - baseado no relato dadeira... Deve; e os grandes factos impor-
mítico de Ourique - é tal que, superando tantes, que fazem época e são balizas da His-
os conhecidos horizontes desconstrutores de tória de uma nação, também eu os rejeita-
oitocentos, acabará, no século XX, por ser rei sem dó, quando lhes faltarem essas au-
recebido como fundamento poético para al- tênticas indispensáveis. Agora as circuns-
guns cultores do modernismo português, as- tâncias, para assim dizer, episódicas de um
sim como para bastantes autores da desig- grande feito sabido e provado, quem as con-
nada filosofia portuguesa e do projecto da servará, se não forem os poetas, as tradições,
Renascença Portuguesa43 . Almeida Garrett, e o grande poeta de todos, o grande guarda-
nas suas Viagens na minha terra44 , contem- dor de tradições, o povo? "(1974:244).
plando a "Capelinha de Nossa Senhora da Talvez por isso mesmo, Garrett conclua
Vitória", cuja origem uma lenda escalabitana que "Portugal é, foi sempre, uma nação de
atribui a D.Afonso Henriques, não resiste a milagre, de poesia"(ibid.:214). Uma terra,
lucubrar acerca da transmissão dos imaginá- como tantas outras, onde os factos míticos
rios que, de lendas, se transformam em facto: recortam a identidade, pelo menos no plano
"Mas seria ele (D.Afonso), ou não que le- de uma subliminar auto-imagem.
42
A.Saraiva refere mesmo que o "milagre de Ou-
rique", relatado pela primeira vez "250 anos depois
do seu suposto acontecimento",(...)"justifica a inde-
pendência nacional"e será "invocado e engrandecido
após a perda da independência, em 1580. Porque fun-
dava essa independência num direito superior ao dos
reis"(o.c.,1996:166).
43
Nomeadamente os registos do "temperamento
messiânico"e da "nova religião"portuguesa, baseados
numa pesquisa às "fontes originárias"da alma nacio-
nal, e que surgem retrospectivados em obras de Tei-
xeira de Pascoaes, tais como O espírito lusitano ou o
saudosismo (Renascença Portuguesa, Porto,1912), ou
O génio português - na sua expressão filosófica, poé-
tica e religiosa (Renascença Portuguesa, Porto,1913).
Por outro lado, em autores como Álvaro Ribeiro (Me-
ditação lusíada - Amanhã, V Império in Tempo Pre-
sente,1960:7/8), há a convicção de que "na fluência
dos eventos flutua um símbolo de perene", o que leva
a concluir - de acordo com uma notória crença pro-
videncialista, baseada numa específica teoria do acto,
que - "Portugal é uma potência que urge passar a acto,
para que mais brevemente se cumpra a redenção uni-
versal".
44
Sá da Costa, Lisboa, 1974.

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