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Passagens da clínica

Eduardo Passos1
Regina Benevides2

PASSOS, E. & BENEVIDES, B. Passagens da clínica. Em Auterives Maciel, Daniel


Kupermann e Silvia Tedesco (org) Polifonias: Clínica, Política e Criação.Rio de Janeiro:
Conreacapa, 2006, pp. 89-100

Repetimos a pergunta: O que pode a clínica? A questão insiste nos obrigando a retomar a
relação da clínica com o fora da clínica que é convocado nesta experiência que chamamos
de transdisciplinar. Entre a clínica e a arte, a clínica e a filosofia, a clínica e a política, a
passagem é feita por modulações. Modulando a pergunta espinozista sobre o que pode um
corpo, formulamos, então, nossa questão.
Perguntar “o que pode” é colocar o tema do poder, da potência que nos impulsiona a fazer
estas passagens. Assim, indicamos a direção que queremos sempre dar ao nosso percurso.
Percorrer estas modulações da questão, passar da clínica à arte, à filosofia e à política é ter
que habitar este espaço intervalar do entre-domínios, do que não é totalmente isto ou
aquilo, do que está nesta operação da conjunção “e”, lá onde proliferam encontros e
composições.
Em trabalho anterior (Passos & Benevides de Barros, 2004), parafraseando a pergunta
espinozista sobre o que pode um corpo, propusemos esta outra: o que pode a clínica,
tomando a argumentação deleuziana acerca da Ética. Deleuze (1968) lendo a argumentação
de Espinoza acerca da relação expressiva entre a substância divina e os modos existentes,
destaca o jogo de equivalências entre as “duas tríades do modo finito”3. Aproveitando os
comentários de Deleuze e forçando a passagem da filosofia à clínica, entendemos a clínica
como um modo finito ou modo existente. Enquanto tal, ela toma as afecções como seu

1
Professor do Departamento de Psicologia da UFF
2
Professora do Departamento de Psicologia da UFF
3
Na filosofia espinozista, os modos finitos são as coisas ou os seres reais como um corpo ou uma idéia.
Segundo Deleuze (1968), há duas “tríades expressivas do modo finito”. Na primeira, os existentes, tal como
um corpo, se definem como: a) tendo uma essência que é um grau de potência; b) tendo uma relação
característica, particular, na qual a essência se exprime no existente e c) tendo um conjunto de partes
extensivas que compõem a existência do modo. Esta tríade se equivale a uma outra que assim coloca o modo
existente: a) tendo uma essência que é um grau de potência; b) se exprimindo por um certo poder de ser
afetado; c) tendo esse poder a cada instante preenchido por afecções.

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ponto de incidência, definindo-se ela mesma como um conjunto de afecções. Perguntar o
que pode a clínica é o mesmo que perguntar do que a clínica é composta, o que equivale,
por sua vez, a perguntar como ela pode ser afetada e que conjunto de afecções (affectio)
exprimem a sua essência. Dito de outra maneira, dizer que a clínica tem uma composição
equivale a dizer que ela lida com composições. É neste sentido, que podemos pensar esta
atitude de colocação do próprio caso da clínica em análise, indagando acerca do que nela é
posto em relação, de como ela afeta e é afetada nas relações: a ética da clínica. A clínica é
ao mesmo tempo um modo de lidar e acompanhar casos e um caso ela mesma. A clínica
dos casos e o caso da clínica.

A Clínica dos Afetos: interfaces com a filosofia


A clínica se apresenta como uma experiência com os afetos. Cabe agora entender o que
chamamos de afeto.
Na Etica, Espinoza (1965) propõe uma distinção conceitual entre afecção e afeto. Segundo
o filósofo, as afecções devem ser entendidas em um duplo sentido. Inicialmente, os próprios
modos ou realidades existentes (os corpos e as idéias) são afecções (affectio) da substância
divina ou de seus atributos, isto é, a realidade é um modo da substância primeira se auto-
afetar, gerando assim o movimento de exprimir-se, explicar-se, modular-se. Neste sentido,
as afecções são sempre ativas, já que expressam essa potência divina.
Num segundo sentido, as afecções são também modulações das realidades existentes, isto é,
os modos são afecções da substância e eles próprios se modulam, se afetam, pelo efeito do
encontro de uns com os outros. A afecção neste segundo sentido constitui uma
transformação dos modos afetados, implicando uma alteração do grau de perfeição da
realidade. Pelo encontro entre os corpos ou idéias, a realidade passa de um estado a outro,
transita de um grau de perfeição a um outro, aumenta ou diminui sua potência. Para
Espinoza a experiência dessa variação da potência ou a consciência desse aumento ou
diminuição da perfeição é afeto ou sentimento (affectus). Deleuze (s/d.p.50) enfatiza a
diferença entre estes conceitos: “a affectio remete a um estado do corpo afetado e implica a
presença do corpo afetante, enquanto que o affectus remete a passagem de um estado a
outro, tendo em conta a variação correlativa dos corpos afetantes”.

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Se para Espinoza o modo existente se expressa por um poder de ser afetado, depreende-se
que a realidade se define por sua natureza afectiva ou, por outra, não podemos entender a
natureza de um corpo ou de uma idéia a não ser pelo modo como experimenta suas
composições. Com o que nos compomos? Como respondemos ao encontro com este outro
corpo? O que nos deixa feliz e o que nos deixa triste? A ética espinozista se caracteriza pela
recusa a qualquer valor transcendente a partir do qual pudéssemos julgar nossos
comportamentos. Não há um bem ou um mal supremos que de fora da experiência a
regulem. A ética espinozista é um sistema de regulação e de avaliação na imanência da
experiência. É bom o que compõe, isto é, o que aumenta a potência ou o grau de perfeição
da realidade. É mau o que decompõe, o que diminui a potência de agir ou a força de existir.
O bom e o mau são como graus de aceleração do fluxo da existência, do movimento da
vida.
Em um outro belo texto sobre a ética, Espinoza e as três “éticas”, Deleuze (1997,p.156)
apresenta a Ética de Espinoza como “um longo movimento contínuo (...) como um rio que
ora se alarga, ora de divide em mil braços; às vezes ganha velocidade, outras desacelera,
mas sempre afirmando sua unidade radical”. O que o autor destaca nesta passagem é o
caráter performático do texto espinozista em relação à sua tese e ao seu objeto: o texto flui,
tal como um rio, assim como o ser passa, no movimento contínuo de expressão ou
modulação, da substância aos modos, através dos atributos. Este contínuo, entretanto, não
deixa de experimentar variações vividas como saltos qualitativos, para mais ou para menos.
Cada afecção é como uma interrupção na continuidade da potência de um modo, tal como o
que se produz em nós a partir de um encontro que aumenta ou diminui nossa força de
existir. Deleuze (1997) chama de signo estes “vestígios de um corpo sobre o outro”
exercendo um “corte de nossa duração”. Os signos da existência são afetos que traduzem
passagens de um grau a outro, movimentos de estado. Neste sentido, devemos entender os
afetos como devires ou “signos vetoriais” do tipo alegria ou tristeza e que indicam
transformações ou diferenciações da natureza da realidade.
O trabalho da clínica é o de acompanhar os movimentos afectivos da existência construindo
cartas de intensidade, ou cartografias existenciais que registram menos os estados do que os
fluxos, menos as formas do que as forças, menos as propriedades de si do que os devires
para fora de si. Traçamos, então, as linhas, sedentárias, nômades, de fuga. Estas últimas são

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as que se evadem dos territórios, que desmancham estados pelo efeito do aumento dos
quanta afectivos de uma dada existência. Linhas de fuga que correm o risco constante de
tornarem-se linhas de abolição e, neste caso, os saltos qualitativos, as fendas criadas no
contínuo de uma existência podem precipitar-nos num buraco negro improdutivo.
Eis aí o tema perigoso da morte que nos ronda em sua ambigüidade. Morremos de que?
Morremos por que? De que formas morremos? Há muitas maneiras de morrer e cada uma
comportando uma forma especial de desafio ou de limite. Na clínica não podemos nos
furtar à questão da morte que se apresenta em duas formulações: (1) seja a partir da tese de
uma dualidade pulsional, na qual a morte é um contraponto à força erótica da vida; (2) seja
a partir da defesa de uma unidade pulsional que toma o impulso vital em sua força
disruptiva e criadora, não podendo se fazer sem a experiência da dissolução. A questão da
morte, neste segundo sentido, se modula: Como nos dissolvemos? Como se dá entre nós a
experiência da dissolvência?
No texto O paradoxo da saída feminina na cultura contemporânea, Ângela Santa Cruz
(2002) designa esta experiência de dissolvência como sendo a feminilidade. Aqui não se
fala necessariamente da posição da mulher, já que esta feminilidade é algo a ser alcançado
ou produzido, no que a autora identifica como um “tornar-se mulher”. A temática clínica se
apresenta inseparável da política uma vez que este devir feminino só se faz como
resistência ao modo hegemônico de organização fálica e narcísica de nossa cultura. O falo,
como metro-padrão organizador da cultura, classifica, ordena, distingue e separa os sujeitos
a partir da lógica da propriedade – ter/não ter. E ter o falo pode levar à certeza narcísica de
ser definitivamente, interminavelmente, o falo. Assim, padeceríamos, deste mal-estar do
interminável ou o do que não morre. A discussão a que a autora nos conduz é acerca do
caráter terminável ou interminável da análise. Se a análise parece não poder terminar é por
uma “desautorização da feminilidade” garantindo a conservação do modus operandi
dominante que, em nossa cultura, subjetiva assujeitando ao metro padrão ou a figuras que
se querem intermináveis. Mas se há uma operação de desautorização da feminilidade, a
autora se posiciona, na interface clínico-política, defendendo a autorização, o que garante os
movimentos de diferenciação, autopoiese existencial. Como experimentar esta autorização
da feminilidade senão pela afirmação do terminável, do morrível, assumindo-se
necessariamente a condição paradoxal desta aposta? Morrer para ser outro. Morrer o si,

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nessa experiência de um morrer-se já sem sujeito e, portanto, em vias de devir outro. A
clínica está sempre às voltas com esta experiência, o que nos faz concluir que todo término
de análise é, neste sentido, um tornar-se mulher, abrindo o plano da existência, traçando
linhas de abertura, linhas de dissolvência de si.

Clínica dos afetos: interfaces com a arte


Os grandes autores são aqueles que fazem, em sua escrita, cartografias, traçam linhas de
partida, atravessando o horizonte e penetrando em uma outra vida. Espinoza fez do texto da
Ética uma experiência de traçado de linhas contínuas que se bifurcam em axiomas,
proposições, demonstrações, corolários e escólios. Seu texto tem a forma da variação,
compondo a argumentação com saltos entre as seções, com a mudança de inflexão quando
se passa de uma proposição para um escólio. Mas, se há um valor literário na obra
filosófica, há também um valor filosófico na obra literária.
Deleuze e Parnet no livro Diálogos (1998, p 49) fazem o elogio à literatura anglo-
americana que tem o mérito de registrar os saltos, os movimentos de partida, de evasão, os
traçados das linhas de fuga, apresentando “continuamente rupturas, personagens que criam
sua linha de fuga, que criam por linha de fuga”.
Virginia Woolf é uma dessas autoras que dedicou sua obra à construção de cartografias
existenciais, cheias de rupturas e saltos. Podemos nos aproximar dessa experiência poética
pela via da intercessão entre duas obras literárias e da literatura com o cinema. Foi saltando
de uma experiência à outra, de um texto a outro, do texto ao filme, isto é, foi nesta zona de
inespecificidade do entre-domínios que encontramos a força da experiência do afeto-devir
da poética de Virgínia Woolf. Algo se passa entre o livro de V. Woolf (1980) Mrs.
Dalloway, o romance As Horas de Michael Cunningham (2003), e o filme As Horas de
Stephen Daldry (2002). Em todas estas histórias narra-se o que se passa em um dia, na
concentração das horas de um dia.
Em Mrs Dalloway V. Woolf desenvolve a técnica do “fluxo-de-consciência” (stream-of-
conscientiousness) (Baldick,1996) que a ficção modernista elegeu como estratégia de
narrativa nas obras pioneiras de Dorothy Richardson (Pilgrimage, 1915-1935) e James
Joyce (Ulisses, 1922).

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No livro somos convidados para uma festa e tudo se passa como se estivéssemos sendo
lançados, no contínuo da narrativa, para aberturas do texto. Na verdade, a autora
experimenta, neste romance, uma estratégia literária de acompanhamento do fluxo da
experiência: o fluxo da narrativa literária quer coincidir com o fluxo da experiência,
escreve-se em sintonia com o movimento do viver. O resultado desta estratégia é um
estranhamento para o leitor acostumado à linearidade da narrativa que representa o vivido
no enquadre organizado do texto.
Clarissa Dalloway movimenta-se ao mesmo tempo suavemente e aos saltos. Assim também
é a escrita de Woolf, um traçado em fuga, um texto/hipertexto, no qual cada deslocamento
do olhar, outra cena se abre. Clarissa se dirige a Regent’s Park: “seus sapatos na calçada
batiam: ‘não importa, não importa’; pois era cedo ainda, muito cedo. Uma esplêndida
manhã, também. Como o bater de um perfeito coração, a vida pulsava fortemente pelas
ruas. Nem hesitações, nem paradas. Solene, perfeito, exato, pontual, silencioso, no devido
instante, o auto parou à porta. A moça, meias de seda, plumas, um ar lânguido, mas não
particularmente sedutora para ele (que acabara de ter sua emoção), desceu do auto.
Mordomos admiráveis, cães fulvos, vestíbulos de losangos pretos e brancos e cortinas
brancas ao vento, tudo isto viu Peter pela porta aberta, viu e agradou-lhe”. (Woolf, 1980, p.
56). Onde se passa a cena? O que é narrado? Quem narra e quem vive a experiência
narrada? A escrita de Woolf equivoca estas questões, obrigando-nos a modular a pergunta
“onde se passa?” para esta outra: “o que se passa na cena?” O texto opera com palavras-
fendas por onde a narrativa dissolve uma cena para, imediatamente, compor uma outra. Os
pés de Clarissa batem na calçada e esta palavra vibra como uma afecção que abre, tal como
um portal ou um link, a passagem para outra cena em que é Peter que experimenta agora a
abertura da porta. O bater específico dos sapatos de Clarissa se tornam imediatamente o
bater inespecífico da vida que pulsa nas ruas. É esse plano inespecífico, permitindo à
narrativa fazer suas passagens de uma cena à outra, que a obra performatiza, ao mesmo
tempo que é dele que ela fala. É uma escrita-fenda, fendas-aberturas que dão passagem a
outras intensidades. Um hipertexto em plena década de 20! Assim é que, no romance,
muitas histórias se apresentam: histórias dentro de outras, ou melhor, histórias se
atravessando no contínuo do fluxo da narrativa-experiência: fluxo de flores, fluxo de carros,
fluxo do movimento de Clarissa por Londres que vão traçando linhas inesperadas que

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rompem com a linearidade da história, se evadindo em outras direções. Deleuze e Parnet
(1998) afirmam que partir, se evadir, é traçar uma linha de fuga. Virginia/Clarissa foge,
evade-se, rompe a escrita linear, experimenta o risco colocado em qualquer fuga de
autodestruir-se. Virginia escreve nas bordas e só se pode escrever nesta relação com as
linhas de fuga. “Escrever é tornar-se, mas não é de modo algum se tornar escritor. É tornar-
se outra coisa” (Deleuze & Parnet,1998,p.56). Para isto há que se recolher as forças
minoritárias, experimentar as passagens de um grau a outro de potência. Há, segundo
Deleuze, um “devir-mulher na escrita”. V Woolf “se proibia de falar como uma mulher: ela
captava ainda mais o devir-mulher da escritura (Deleuze & Parnet,1998,p.56).
A escrita é coleção de sensações intensivas. Mrs Dalloway passeia, preenche o espaço-
tempo por onde passa-habita. Passa... Tudo se passa nas fendas que abrem a narrativa. Nas
fendas percebemos qualidades afetivas diferentes: há fendas-abertura, criação, fragmentos-
histórias que se abrem como as flores, fluxo-corte de fluxo. Mas há fendas-interrupção,
temor da morte. “Mas o tempo é que ela temia, e lia na face de Lady Bruton, como num
quadrante de impassível pedra, o fluir da vida” (Woolf,1980, p.32). “Era esquisito, e
inteiramente verdade; tudo o que não se podia compartilhar... esvaía-se em pó” (p56).
“Bastava-lhe apenas abrir os olhos; mas havia neles um peso; um medo” (p.69). “A morte
era uma tentativa de união ante a impossibilidade de alcançar esse centro que nos escapa; o
que nos é próximo se afasta; todo entusiasmo desaparece; fica-se completamente só... Havia
um enlace, um abraço, na morte” (p.177). “(Sentou-se no peitoril.) Mas esperaria até o
último momento. Não desejava morrer. A vida era boa. O sol aquecia. Se não fossem os
seres humanos...Um velho que descia a escada da casa fronteira estacou e ficou a olhar para
ele. Holmes já estava na porta. - Isto é para você! - gritou-lhe Septimus, e arrojou-se com
força, violentamente, sobre a cerca de Mrs. Filmer” (p.144). Eis a morte como fenda-
interrupção. Em que medida a morte é dissolução-abertura, dissolução-criação ou
dissolução-abolição?
Como evitar que uma linha de fuga se transforme numa linha de abolição ou de
autodestruição? Em V. Woolf há sempre este sombrio que ameaça com sua força de
destruição que sai da poesia para um mergulho suicida da autora. Deleuze e Parnet (1998)
perguntam se esta seria uma “morte feliz”. Mas, é somente acompanhando o traçado da

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linha, levando em consideração o modo como a linha é traçada, que podemos decidir a
natureza criadora ou destrutiva da ruptura.
Parece ter sido esta a questão que Michael Cunningham e Stephen Daldry tomaram como
fio condutor de suas narrativas. Estes autores souberam bem acolher a estratégia literária de
Virgínia: a escritura como um fluxo contínuo. O texto do autor e o filme do diretor dão
continuidade ou parecem pegar a onda provocada pelo mergulho de Virgínia. É assim que
começam o romance e o filme em um prólogo que parte do fim da escritora inglesa em
1941: “Rápida, a corrente a leva. Ela parece estar voando, uma figura fantástica, os cabelos
soltos, a aba do casaco enfunada atrás. Flutua, pesada, por entre hastes de luz marrom,
granular” (Cunningham, 2003, p.12).
A narrativa de Cunningham escande a hipertextualidade da escrita de Virginia em capítulos,
assim como os blocos no filme de Daldry que intercalam (1) as experiências da escritora
que prepara a redação da história de Clarissa Dalloway; (2) a experiência de Laura Brown
na cidade de Los Angeles em 1949 e (3) a da editora novaiorquina Clarissa Vaughan,
personagem dos nossos tempos. Os autores constroem todo um sistema de signos que
oferece ao leitor/espectador o plano de composição que entrelaça as três mulheres nos seus
devires em um dia. Nesta semiótica encontramos as flores, a água, a hecceidade de
momentos do dia, a luz, o brilho, a experiência da morte em cada uma das vidas vividas por
aquelas mulheres: o suicídio de Virgínia; a sensação de morte e o desaparecimento de
Laura; o medo, vivido por Clarissa, da morte de Richard. Cada um dos signos privilegiados
por Cunningham e Daldry indica momentos de variação afetiva, de mudança, como as horas
em um único dia vivido. Da mesma forma, no romance Mrs Dalloway, Virginia cartografa
múltiplas e intensas variações existenciais também em um único dia. Nos saltos que
escandem o ritmo nas duas narrativas literária e fílmica, coloca-se a experiência da ruptura
nesta dupla acepção de variação criativa e de morte-destruição.
Em Laura Brown, o contínuo da vida se faz de modo tão densamente invariante, tão
estandardizado pelo american way of life hegemonizado no pós-guerra, que a variação da
vida de Laura parece se resumir às possibilidades dadas pela leitura que ela faz do romance
Mrs Dalloway. A sensação de Laura é de uma morte em vida ou de uma vida sem viver.
Tudo à sua volta parece sem pulsação: sua gestação, seu filho Richard, seu marido
amoroso, sua casa tão bem organizada, seu planejamento da festa de aniversário. É,

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entretanto, no encontro fortuito com sua vizinha, que vai naquele momento para o hospital
fazer uma intervenção cirúrgica que lhe impediria de ter filhos, que Laura experimenta uma
ruptura em seu cotidiano na forma de um beijo na boca inesperado. Confronto do feminino
com o feminino abrindo a fenda do devir. Num exponencial feminino, dá-se um efeito-afeto
de potencialização, semelhante ao beijo que, no filme, Virginia dá em sua irmã. Laura
Brown, magnificamente encarnada na presença a um só tempo fria e intensa de Julianne
Moore, é uma personagem que efetiva a experiência trágica de Virgínia em sua aventura de
dissolvência na escritura e na vida. Laura Brown “morre” para viver. Experimenta a
dissolução, a desterritorialização para compor um outro território do viver. A cena no filme
é muito impactante, apelando para o signo da água que comparece nessa sua função de
dissolvência ou de mergulho no inespecífico, tal como a cena na cama de hotel quando o
quarto é inundado. Laura é banhada, é submersa na água que invade o quarto como que para
atender a um estranho desejo da mulher. Ela não só contém em seu corpo os líquidos de sua
gravidez, como é contida pelas águas que invadem e que a forçam a flutuar. Ali a mulher
deseja morrer por dissolvência. Laura, como Virginia, morrem como se flutuassem. O
desejo de morte aqui é o desejo de dissolver-se para ser outro.
Virginia bifurca em sua escritura, cria fendas na experiência por onde a narrativa se
modula, por onde modos existentes se exprimem. Este fluxo-escrita, este fluxo-vida é mais
próximo de uma experiência com o tempo do que uma experiência com o espaço. O tempo,
as horas... E no fluxo do tempo, fluxo da vida, fluxo que escorre, a morte aparece como
corte. Fluxo-corte-de-fluxo, vida-morte-vida. O que há é sempre o fluir, o pulsar. Mas, não
há separação entre pulsar e desejar. Pulsar e desejar como fluxo contínuo de produção.

Concluindo pelo início: o contrato na clínica dos afetos


Partimos do pressuposto de que a clínica se realiza no plano dos afetos e, enquanto tal, tem
nas afecções aquilo mesmo de que é composta e sobre o que intervém. Estas intervenções
se realizam nas fendas da existência, lá onde o que somos está em vias de se modular, em
que algo se anuncia como expressão da diferença, quando morremos no que somos para
advir outra coisa.
A morte não é contrária à variação da potência, podendo ser corte no fluxo vivo
prolongando a vida em sua pulsão heterogenética. A pulsão desejante faz do viver o

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movimento instituinte e de criação de normas (Canguilhem,1978). Sempre outras normas
podem ser criadas e para tal uma dada normalidade deve morrer. Desse modo, o que se dá
como plano de produção desejante é, no mesmo movimento, normatividade da vida e morte
da normalidade que delimita o vivo em dado momento de sua ontogênese. A força-desejo
ou o desejo-produção se organiza, se normatiza, em seu próprio efetuar, pelos encontros e
composições que for realizando. Havemos, portanto, na clínica, de criar as condições de
possibilidade para estas composições, o que chamamos de “contrato clínico”. Mas aqui este
contrato ganha sentido que deve diferenciá-lo das formas instituídas habitualmente
encontradas no mundo capitalista. Entretanto, não é tão fácil conjurar tais mecanismos
contratantes, por isso precisamos sempre acompanhar o processo de contratação na clínica.
Contratação da análise, contratação em análise.
Na clínica e na arte, devemos acompanhar os movimentos afectivos, encontros que
engendram existências. Experimentamos essa zona de indeterminação que se dá entre os
corpos, nos encontros. Habitamos essa terra de ninguém, que precisa estar constantemente
sendo fertilizada já que não é uma terra pronta, mas bem mais uma u-topia. Tal utopia
funciona pela adesão coletiva a que ela nos convoca e é por isso que aí somos sempre
muitos, ou por outra, essa experiência de engajamento, de adesão, é sempre coletiva. Mas
quem experimenta este engajamento?
Frente a esta pergunta poderíamos mais facilmente responder que quem experimenta é
sempre um indivíduo. Esse é o legado de uma tradição que desde Descartes identifica a
consciência de si ou o indivíduo à existência. Entretanto, desde Freud, compreendemos que
há uma dimensão descentralizada da experiência subjetiva. Dizemos: uma experiência mais
do que ex-cêntrica, a-cêntrica porque fora dos eixos da consciência, o que equivale a dizer
experiência não organizada de modo centrípeto e arborescente, mas que se expande de
modo hiperconectivo em rede ou em rizoma, como preferem Deleuze e Guattari (1995).
Radicalizar esta idéia de descentramento da experiência impõe tomar a existência fora dos
limites do indivíduo, isto é, entendê-la enquanto experiência coletiva. No lugar de sujeito
falamos, então, de subjetivação como processo de criação no qual diferentes vetores de
existencialização concorrem. Segundo a definição de Guattari (1992, p. 19), em Caosmose,
a subjetividade é “o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais
e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial, autoreferencial,

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em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva”. A
subjetividade não é um ente ou um estado, mas um processo de produção ou um conjunto
de condições a partir das quais efeitos existenciais são produzidos. Nesse sentido, a
subjetividade se faz coletiva, já que circunstanciada sempre por muitos vetores. E por
coletivo, entende-se uma multiplicidade que está para além e aquém do indivíduo e do
social - multiplicidade de vetores e intensidades como os afetos, as sensibilidades artísticas,
os movimentos sociais, isto é, todo um conjunto de forças que atravessam as formas
individuais e as formas sociais, provocando a sua desestabilização e a criação de novas
composições. Nesse processo de subjetivação temos, então, dois extremos: seja uma relação
de alienação na qual a subjetivação é um assujeitamento a um modelo pronto qualquer, seja
um processo de expressão e criação no qual nos reapropriamos de componentes de
subjetivação para criar territórios existenciais.
Mas se a subjetividade é o plano de criação ou heterogênese, o problema é este: como
contratar, uma vez que não há a garantia de sujeitos contratantes? Ou por outra, como é
possível um contrato se não há garantia de que aquele que entra no contrato permaneça nele
inalterado? De fato, não há nem mesmo a possibilidade de se pensar em termos de garantia,
já que habitar esse plano sempre em processo de diferenciação impõe que suportemos estar
mais numa contratação do que num contrato como aquele que se firma entre partes que
suspeitam da possibilidade de que alguém seja lesado. Um contrato que se firma entre
indivíduos que se mantêm nele como realidades individualizadas, separadas, ainda que
numa união, não tem força de adesão criando suspeição e desagregação. Tal acepção de
contrato é a que é hegemônica no mundo capitalista onde a necessidade da comunidade das
regras vai junto com a competição (estatuto do mercado), individualização (estatuto
jurídico), privatização (estatuto econômico-político) e intimização do si (estatuto
subjetivo). É o sentido mesmo de contrato que é trapaceado nesse uso contratante.
Se tomarmos a etimologia do verbo contratar, encontramos o termo contractus, particípio
passado do latim clássico contraer: “ligar, engajar”. Dessa mesma raiz, advém, também, o
verbo contrair que toma daquela origem latina o seu sentido de restringir. Daí o substantivo
em latim contractio, contractiones: ação de contrair, contracção. Temos, então, uma
interessante polissemia da palavra latina contractus : contração e contrato. É esse sentido
que entendemos estar presente na ação de contratar, ou na contratação clínica. A um só

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tempo estabelecemos um pacto, uma transação, uma convenção e, aí mesmo, nos
contraímos formando um coletivo, isto é, indo para além das garantias do si, do privado e
do individual, para experimentar o que se dá entre, no meio, no curso.
A experiência da contração gera como efeito formas de composição nas quais os termos se
comprometem num vínculo de co-produção. Este tipo de contratação co-produtiva implica
muito mais do que o simples acordo entre um conjunto de contratantes com objetivos
comuns. O tipo de engendramento aqui não é definido por decisões próprias ou individuais,
mas por contração das partes numa experiência coletiva.
Estranha contratação essa em que as partes (quem contrata) e os termos (o que se contrata),
não preexistem à ação mesma de contratar, mas resultam de uma contração, de um
agenciamento entre elementos que se dissolvem na gênese de novas composições. Essa
contração produz, como efeito, termos que não podem perder a experiência de dissolução
necessária para a transformação, sob o risco de fazer do contrato uma lei que se impõe,
garantindo um estado de coisas e não uma proposição que se sustenta na justa medida da
adesão. Se uma lei é um enunciado transcendente que se impõe sobre isso que ela regula de
modo compulsório, o contrato clínico pressupõe uma experiência de normatividade que não
se efetua sem a adesão por vínculo co-produtivo. O corpo que cai é indiferente à lei da
gravidade que determina seu movimento, no entanto, o contrato na clínica só se efetiva na
possibilidade de estarmos num contínuo processo de contratação no qual nos contraímos,
no qual territórios existenciais experimentam aberturas afectivas.

Referências Bibliográficas
Baldick, Ch. The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms. Oxford: Oxford
University Press, 1996.
Canguilhem, G. (1978) O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária.
Cunningham, M (2003). As Horas. São Paulo: Companhia das Letras.
Deleuze, G (1997) Espinoza e as três “éticas”. Em Crítica e Clínica. Rio de Janeiro: Editora
34, pp: 156-170.
Deleuze, G (1968) Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Minuit.

12
Deleuze, G (s/d) Espinoza e os signos.Lisboa: Rés
Deleuze,G & Guattari, F(1995) Introdução: rizoma. Em Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia, v.1 Rio de Janeiro: Editora 34.
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