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Estava quase acabando a resenha desse livro quando vi que ia ter o lançamento
ontem na UERJ em um debate com os organizadores. Resolvi misturar os dois, e
contar como foi o lançamento, e enfiar as perguntas que eu fiz no evento, ao
mesmo tempo em que comento o livro. Não sei se vai dar certo, mas, vamos lá.
Isso vai ser longo. Na minha conta, 10 páginas de Word. Leiam o que quiserem.
Minhas perguntas vão entre colchetes.
1.
O livro organizado por Sader e Garcia tenta abaixar a poeira e oferecer uma nova
visão, baseada em uma linha de continuidade entre o desenvolvimentismo
brasileiro do século XX e o PT. Às vezes dá certo enquanto argumento, às vezes
não dá.
2.
O artigo que abre o livro dá a linha do que se segue. Escrito pelo Sader, chama-se
“Brasil, de Getúlio a Lula” (não muito sutil, o título). Para ser honesto, é melhor do
que parece. Eis como eu o li:
Esse Estado, entretanto, não é democrático (como não eram democráticos, aliás, os
regimes como os da República Velha). A negação do liberalismo econômico
característico do nacionalismo é acompanhada da negação do liberalismo político.
Diz o próprio Sader: isso deixa a bandeira democrática, por muito tempo, na mão
da direita (que, lembremos, até antes disse não era exatamente democrática).
Faltou, como veremos, o Sader tirar todas as conseqüências desse diagnóstico. Pelo
menos para lembrar que o nacionalismo se especializou em botar a esquerda em
cana.
As perguntas eram escritas, e muitas, de maneira que não houve tempo para
réplica, mas eu diria que o cara também fechou os sindicatos em uma estrutura
estatal, e reprimiu toda demanda popular espontânea que lhe apareceu na frente
(pelo menos durante o Estado Novo; o segundo governo Vargas é mais complexo).
E lembro que o Lula dizia que a CLT era o AI-5 dos trabalhadores.
E lembro de uma professora da UNICAMP, amiga do Marco Aurélio (que era dessa
turma de historiadores que valorizava muito os movimentos de esquerda pré-
Vargas como uma esquerda autônoma, não disciplinada pelo populismo), quando
ouviu, em uma palestra do João Quartim de Moraes (comunaço velha guarda), a
pergunta “no que teria dado uma aliança do PCB com os tenentistas?”. Um amigo
meu sentado ao lado dela a ouviu responder, baixinho: teria dado merda]
Abro um parêntese para lembrar o que me dizia uma excelente professora que eu
tive: em grande parte, o racha PCB vs. PcdoB foi uma divergência a respeito de
qual questão era a central no momento: a questão social (claramente ligada às
lutas no campo, com as ligas camponesas) ou a questão nacional (que sugeria uma
aliança com a burguesia brasileira pelo desenvolvimento anti-imperialista). Isso é
importante para entender porque, durante a ditadura, o PcdoB foi pro mato
(justamente enquanto o Brasil se urbanizava e a questão social virava outra coisa)
e o PCB foi para o MDB (justamente depois da burguesia nacional receber os
militares de braços abertos). Fecho o parêntese, deixando a ponta solta para depois
ligar com o surgimento do PT.
E aqui começa o grande ponto fraco do texto do Sader, o regime militar. Não é fácil
para a esquerda analisar o regime militar, porque não é fácil o cara pensar
friamente sobre um negócio que botou ele no pau de arara, o fez enlouquecer de
dor, e fez isso com todos os amigos dele, vários dos quais morreram da maneira
mais horrenda possível. Mas, se você não consegue, deixe pra outra pessoa. Porque
tem que fazer.
Por outro lado, o texto do Sader tem o mérito de não fazer uma picaretagem bem
comum: a de pular a crise do Estado desenvolvimentista e fazer o neoliberalismo
aparecer do nada, como um negócio mauzão aí que inventaram. Sobre a derrota de
94, ele diz o seguinte:
3.
O texto do Jorge Mattoso não me impressionou muito, porque perde muito tempo
com afirmação de princípios, e nós aqui queremos ver é os argumentos tirando
sangue um do outro.
Como texto sobre o legado de FHC, não dá certo, porque precisaria ter reconhecido
os aspectos positivos do período, o que só faz muito rápido. Mesmo na crítica,
poderia ter passado mais tempo discutindo a manutenção do câmbio até a eleição
de 98 e suas conseqüências, mas isso também passa rápido. Em um certo sentido,
repete a falha do PT durante o primeiro mandato FHC: o cara fazendo uma puta
besteira no câmbio e a gente preocupado em falar mal do neoliberalismo.
Posso ter ficado de má vontade com o texto por causa do começo meio literário. Se
alguém tiver lido e discordar, registre que eu coloco aqui.
4.
O texto tem como premissa que houve uma mudança de rumo pós-Palocci, de uma
política econômica mais ortodoxa para uma mais heterodoxa. É verdade, houve.
Mas se vocês lerem o texto, que é bem cuidadosamente escrito, dá a impressão de
que boa parte dos sucessos foi causada pela linha do Palocci (se você entendê-la
como ortodoxia econômica + expansão do crédito + Bolsa Família e similares), com
uma exceção importante e meia, os aumentos do mínimo, que passaram a ser bem
maiores depois, e a estratégia de redução da vulnerabilidade externa, (acumular
reservas, virar credor em dólar) que começa ainda com o Palocci, mas já no final do
período (e aí cada um que especule o que o Palocci teria feito; eu acho que teria
acumulado), e que foi crucial para o Brasil sobreviver bem à crise (e, a propósito,
não é simples continuidade com a era FHC).
Certo, no segundo mandato tem PAC, Minha Casa, Minha Vida, etc., e isso é mais
heterodoxo, mesmo, mas eu não exageraria muito o tamanho da mudança, não. Se
você chegasse em 2002 e dissesse, “o Lula vai fazer um negócio heterodoxo!”,
todos diriam, aaaaaaahhhhhh!, mas se você emendasse, “vai fazer um programa
de investimentos públicos e um troço de habitação popular!” todos diriam,
uuuuuuuufa!
[um filhadaputa que foi no debate só pra anarquizar (eu) fez a seguinte pergunta,
respondida pelo Marco Aurélio:
Muitos dos méritos da política econômica são originários da gestão Palocci, mas o
livro sugere uma mudança significativa Pós-Palocci. As medidas mais estatistas não
seriam só resposta à crise mundial?
A inflexão começa ainda com o Palocci, mas a medida central da inflexão foi o PAC,
que começou antes da crise. Quanto às medidas recentes, refletem “a boa tradição
do enfrentamento de crises” [anotei essa frase – NPTO].]
5.
O cara de esquerda tem que ter como objetivo central fazer com que a peãozada
não passe o tempo todo presa na máquina (e aqui pode ser o computador, ou a
máquina registradora da loja) como um apêndice, ou balançando no trem indo e
voltando pra máquina, mas que a riqueza humana torne possível cada vez mais
tempo para os caras terem uma vida, no sentido forte do termo. Não é à toa que o
movimento operário teve, durante muito tempo, a bandeira da redução da jornada
(que já foi de 12, 14 horas, lembremos). 8 horas não é um limite natural.
Esse tipo de consideração claramente utópica, mas que pode ser implementada aos
poucos (pode passar a ser sete e meia, depois sete, …), na medida do possível, me
seduz muito mais que os slogans desenvolvimentistas, pra ser honesto. Sua utopia
é uma porrada de funcionário público? Porra, meu amigo, tenha mais imaginação.
Parabéns ao Pochmann, que fugiu completamente do tema “Vargas era um cara
batuta”.
Mas onde eu acho que o Pochmann está errado? É em dizer que “a base material”
dessa utopia já existe, construída pelo aumento absurdo de produtividade do
capitalismo pós-industrial., e daí partir para propor um monte de coisas que me
parecem minar o capitalismo pós-industrial (que é, por exemplo, financeiro pra
cacete).
Isso é um erro clássico em marxistas (mas não sei se o Pochmann é marxista): dar
de barato que o progresso técnico do capitalismo vai acontecer de qualquer
maneira sem o capitalismo, e por isso a gente pode já pensar em como aproveitar
o progresso técnico quando a gente não precisar mais trabalhar tanto (e de
maneira tão opressiva) quanto no capitalismo.
E não adianta um país sozinho reduzir muito a jornada: ele se tornará pouco
competitivo, e a riqueza vai para outro lugar. E, se a riqueza não puder se mexer,
vai ser ruim pra todo mundo (porque os lugares que precisam dela mais não são os
lugares onde ela está agora). É uma luta dos, atenção, vou falar, olha lá, vou falar,
ó, ó, ó, vou falar, cês tão duvidando, vou falar, tirem as crianças da sala, eu falo
mesmo, ah, é, duvida?, toma! PROLETÁRIOS DO MUNDO TODO, cada um lutando
em seu contexto nacional, de acordo com as possibilidades de cada país,
convergindo milímetro por milímetro, voltando atrás quando necessário.
6.
7.
O quer seria a PEI nos dias de hoje? Na época da guerra fria, designava uma certa
desenvoltura para se mover entre países capitalistas, comunistas, e não-alinnhados
conforme o interesse nacional. Hoje parece querer dizer uma política externa que
não se limite a aceitar os acordos propostos pelo primeiro mundo.
Até porque, e, olhem só, isso que eu vou dizer agora é importante, até porque do
fato de querermos ser iguais aos países de primeiro mundo não se deduz que
devamos aceitar todos os acordos que o primeiro mundo nos propõe. Alguns
observadores da política externa falam como se, cada vez que nos aproximarmos
da Nigéria, nos tornássemos menos parecidos com a Suécia (e vice-versa). País
que já foi colônia européia não deveria esquecer que não é o caso.
A melhor afirmação da PEI que eu já vi foi quando o Lula disse algo como “Temos
que ser como os americanos: primeiro eles pensam neles, depois neles, e aí eles
pensam neles de novo”. Acho inacreditável que isso tenha sido tomado como crítica
aos americanos. Só merece uma explicação, que será dada abaixo.
Agora, eu tenho com relação à ressurreição da PEI no governo Lula (que eu apóio)
suspeita semelhante à que tenho com relação à “virada desenvolvimentista”: que
ela seja, em boa parte, resposta a uma crise global. No caso, a crise da
globalização política, que vem ainda do final dos anos 90, passa pelo fracasso da
rodada da Doha, e desemboca no colapso da ONU durante a guerra do Iraque.
Porque, se vocês pensarem, que grande acordo o primeiro mundo tem nos
oferecido ultimamente? A ALCA ninguém me convenceu até agora que seja muito
bom negócio, e eu sou cético de integração comercial que não inclua liberdade de
migração. E os EUA acabaram, por eles mesmo, se desinteressando por outros
motivos. A União Européia tem a diplomacia mais roda-presa do mundo: os caras
não conseguem fazer acordo. A China está free-riding a hegemonia americana
escandalosamente, e se mostra singelamente desinteressada em promover
qualquer coisa que seja, em escala global, que não seja acordo comercial dela com
todo mundo, nos termos dela.
Certa está ela, dirão vocês, não foi isso que você disse dos americanos? Né não.
Porque é do interesse da China, como nova superpotência, que o mundo seja bem
governado. Aos chineses não interessa que colapsem os acordos nucleares, ou,
Deus os livre, o comércio internacional. Mas eles estão contando que os EUA vão
continuar indefinidamente arcando com os custos políticos dessa gestão. No longo
prazo, não aposto dez centavos nisso.
Da mesma forma, defendo que o Brasil faça os acordos que der com quem quer
que seja, mas, uma vez que, devido à extraordinária competência de nossa
democracia recente (dessa vez eu não avisei que ia falar uma coisa chocante, vocês
devem ter se assustado), aumentou muito nossa importância nacional, nossa nova
PEI precisa se preocupar mais com os princípios que queremos ver imperando na
esfera global (além do da soberania nacional, que é justo, mas não é absoluto). E
temos como imensa vantagem sobre a China o fato de que quando falarmos em
democracia ou tolerância globais, ninguém vai poder responder “que que tu tá
falando aí, ô stalinista?”.
Se o Lula tivesse defendido os presos políticos cubanos, não teria chegado com
muito mais força para negociar na Palestina?
Aproveito para esclarecer que nossa não ingerência nesse assunto dos presos
cubanos não implica indiferença. Nós temos outros canais de influência para agir
quanto a isso, mais distantes dos holofotes, e às vezes os consideramos mais
convenientes. De fato, a declaração do Lula, bastante lateral, causou apreensão em
alguns interlocutores [suspeito eu: a Europa – NPTO], mas no geral nossa recepção
no Oriente Médio foi ótima, todos os atores envolvidos se mostraram bastante
receptivos a nossas propostas, e o governo de Israel inclusive nos pediu que
fizéssemos algumas intervenções. O chanceler israelense não quis participar porque
queria encontrar com o Lula em particular, mas nosso protocolo determina que
deveria ter se encontrado com o Celso Amorim”.
NPTO: Quanto aos presos políticos cubanos, aceito a jogada dos bastidores desde
que funcione. Ainda estamos esperando pra ver. E quanto à moral que isso teria
dado ao Lula, o que eu acho é o seguinte: se ele defende os presos, a Europa fecha
com ele, e, junto da EU – que tem a mesma posição que nós sobre a questão –
seríamos atores de peso na Palestina. Sem a crítica, qualquer denúncia que se faça
sobre Gaza será recebida com “é, mas em Cuba tu ficou quieto”.
Agora, é claro que Israel ainda paga meio PIB para o Brasil ser o cara que apóia os
Palestinos. O que quer dizer, o Brasil ao invés do Irã.
Queria ver o que o Sader diria disso, mas pouco antes da pergunta ser lida um
sujeito arrastou ele pra fora do auditório para conversar]
8.
O livro acaba com a entrevista da Dilma, que eu adorei, pela imagem que fica da
Dilma. Os caras querendo levantar altos papos sobre as rupturas com o
neoliberalismo, essas coisas, e ela concorda, e tal, mas você vê que a dona fica
amarradona mesmo é falando que agora tem uma hidrelétrica que é uma
plataforma, que é mais eficiente, que no lugar do desmatamento fizeram um
negócio pra coletar castanha de caju, de drenagem (única estocada no Serra, por
causa das chuvas de SP), enfim, se deixar ela falar só de projeto ela só fala disso.
Dilma disse ao Alon, em entrevista, que sua prioridade seria aumentar a eficiência
do Estado, e parece ser disso que ela gosta, mesmo.
Já disse várias vezes e digo de novo: o PT tem que seguir o exemplo de sua
candidata e discutir mais a sério política de inovação. Causou grande comoção nas
fileiras da SchumPTr, a tendência do PT adepta do individualismo metodológico (só
tem eu), a hora da entrevista em que ela puxa o assunto. Way to go, girl.
Claro, ser presidente é bem mais que isso. Mas é isso também.
9.
Antes das perguntas, cada organizador teve uns quinze minutos para falar o que
quisesse. O Sader se saiu muito mal: fez discurso para movimento estudantil, falou
mal da mídia, enfim, pareceu desconhecer que de um terço à metade da sala eram
professores. O Marco Aurélio se saiu bem melhor. Defendeu a PEI, criticou quem
falou mal do Amorim se filiar ao PT (lembrando, por exemplo, que o Celso Lafer foi
tesoureiro de campanha do FHC, e vários outros chanceleres famosos brasileiros
eram claramente ligados a partidos).
E levantou um tema que ficou meio deslocado na entrevista com a Dilma, e gerou
certa polêmica: o da sub-intelectualidade de direita brasileira, que estaria
preenchendo o vazio deixado pelo pensamento crítico. Se eu ainda tivesse saco de
escrever papelzinho com pergunta, teria dito: o problema não é a sub-
intelectualidade, é o vazio: podemos nos considerar ainda pensamento crítico se
não criticamos o regime cubano, ou se nos recusamos a discutir economia mais
abertamente com os liberais?
Marco Aurélio encerrou sua participação com uma excelente tirada, pedindo aos
intelectuais “ Escrevam tudo o que esqueceram”. Eu diria “escrevam como
esqueceram”, isto é, com a abertura intelectual que a esquerda já teve. Ou se
conformem com o Magnoli.
10.
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