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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da


Universidade de São Paulo FFLCH USP
Departamento de Sociologia

‘Acidentes’ tecnológicos e
modernização reflexiva:
o caso do Acidente de Goiânia

Eduardo A. Izumino

Dissertação apresentada ao
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a
obtenção do título de Mestre em Sociologia

Orientadora: Profª. Dr.ª Maria Helena Oliva Augusto

São Paulo, Junho de 1997


RESUMO: Esta dissertação tem como objeto de pesquisa o acidente radioativo com o
elemento Césio-137, conhecido como ‘Acidente de Goiânia’, na capital do Estado de Goiás, e
que repercutiu de modo intenso na sociedade brasileira, nos três meses finais do ano de
1987. O objetivo é problematizar o ‘Acidente do Césio’ como um evento típico da
modernidade, o acidente tecnológico, em um país de modernização supostamente atrasada,
através do conceito de acontecimento como espetáculo da mídia e, portanto, através da sua
reconstituição histórica. Pelo fato de haver ocorrido como ‘acidente’, é uma oportunidade de
observar a maneira, socialmente construída, de lidar com o que é considerado contingente,
fortuito. Essa maneira baseia-se na técnica, nas aplicações tecnológicas da ciência, voltadas
ao controle da natureza. O papel expandido da tecnologia e da ciência é, agora, base das
forças produtivas e da legitimação, entrecruza-se com o papel do Estado, e é também fonte
de novos problemas para a sociedade, como acidentes nucleares. O caso do Césio-137 foi
amplamente discutido e problematizado pelos mais diversos atores em plena emergência,
produzindo e/ou expondo um panorama de relações sociais. Pretende-se analisar o
acontecimento através das propostas da teoria da Modernização Reflexiva, indicando
elementos da forma de inserção do país em uma civilização moderna e industrial tal como
percebida pelos atores. Conclui-se que o Acidente de Goiânia expressou um entendimento
coletivo da necessidade de mudanças modernizantes para o país, o que deu-se, entretanto,
na forma de confrontação com problemas, como o próprio acidente, que aparentemente
sufocavam qualquer tentativa de modernização.
3

ABSTRACT: This is a master’s degree research thesis on a 1987 Cesium-137


radiation leak accident occurred in Goiania, a 1,2 million city in central Brazil. It’s purpose is to
analyse a technology derived accident as an episode of modernity in a considered “low tech”
country. It deals with the concept of events present as “media entertainment” as a way to
remake it’s history. Being an “accident” it also gives and opportunity to observe how a society
can build it’s own manner to deal with what is considered to be uncertain or unexpected,
based on scientific assumptions and it’s technology applications, aimed to control the nature.
Technology’s and science’s extended role is now the very basis of the productive forces and
political legitimacy, permeates the State’s functions and creates new social issues, like
nuclear disasters. The Cesium-137 case was largely discussed and analysed by all those
involved in that emergency, generating and exposing a panorama of social relations. The
present work intends to study the event under the reflexive modernization theory, verifying
elements of the Brazilian placement in a modern industrial civilization, as seen by the actors
involved. The thesis concludes that the case has expressed a collective agreement upon the
need for modernization in the country. This outcome, however, was achieved through issue
confrontation - like the very accident - that appeared to prevent any attempt to pursue
modernity.
4

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS 5
INTRODUÇÃO 6

CAPÍTULO 1 - ACIDENTES TECNOLÓGICOS E MODERNIZAÇÃO REFLEXIVA 13


SOCIOLOGIA E RISCO 13
ACIDENTES TECNOLÓGICOS 21
CAPÍTULO 2 - MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA: SUBDESENVOLVIMENTO E REFLEXIVIDADE 32

CAPÍTULO 3 - METODOLOGIA: CATÁSTROFE E ESPETÁCULO 37


DEFINIÇÃO TEÓRICA DE ACONTECIMENTO 37
A PESQUISA: IMPRENSA E PERÍCIA 40
CAPÍTULO 4 - ESTRANHOS SEGREDOS: SISTEMA NUCLEAR, CATADORES DE LIXO E BRILHO AZUL 43
ABANDONANDO UMA BOMBA: COMEÇANDO UM ACIDENTE 46
IGNORÂNCIA INOCENTE E NÃO-INOCENTE 60
CAPÍTULO 5 - PESSOAS, CÃES E RATOS ATÔMICOS: LIXO NUCLEAR, POLÍTICOS E
TÉCNICOS 64
TRATAMENTO MILITAR: O SOFRIMENTO DAS VÍTIMAS 66
GOVERNANTES EM LUTA: QUEM FICA COM O LIXO RADIOATIVO? 70
DESCONTAMINANDO A CIDADE: A CNEN E SEUS CRÍTICOS 76
CAPÍTULO 6 - MEDO E CULPA: RESPONSABILIZAR, FISCALIZAR, ESQUECER 89
MEDO E DISCRIMINAÇÃO 91
‘APURAÇÃO DE RESPONSABILIDADES’ 104
CONCLUSÕES: COMO OS ACIDENTES TECNOLÓGICOS TERMINAM? 126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 143


5

AGRADECIMENTOS
O objeto desta dissertação foi, originalmente, tema de um trabalho durante o curso de
graduação de ciências sociais (FFLCH USP), para a disciplina Sociologia da Educação, no segundo
semestre de 1987, ministrado por Heloísa Fernandes, a quem primeiro devo agradecer pelas sugestões.
Quando surgiu a oportunidade de ingressar na Pós-Graduação do Departamento de Sociologia, o tema
do Acidente de Goiânia foi a minha primeira idéia de projeto. Desejo agradecer a Paulo Sérgio
Pinheiro, Nancy Cardia, Malak Poppovic, coordenadores do Núcleo de Estudos da Violência - USP,
com quem comecei a me tornar um pesquisador, pelas sugestões apresentadas ao meu projeto. Um
agradecimento especial a Sérgio Adorno, que, além de coordenador do NEV, como professor do
Departamento de Sociologia acompanhou, em várias oportunidades, com sugestões e apoios, a
trajetória algo oscilante desse meu trabalho.
Agradeço a todos os meus professores e colegas do Programa de Pós-Graduação, pelas críticas,
sugestões e indicações, sem as quais possivelmente essa dissertação não seria concretizada.
Agradeço o apoio do CNPq, Conselho Nacional de Pesquisas.
À Fundação do Desenvolvimento Administrativo - FUNDAP, de onde sou funcionário, pelo
apoio institucional e incentivo, que tornou possível a minha dedicação ao Programa de Pós-Graduação.
Especialmente, agradeço a meus colegas de trabalho: Mari Shirabayashi, Paula Picciafuoco, Sílvia de
Almeida Prado Sampaio, Alice Martins Gomes, Liliana Gallucci, Samuel B. Conceição, Jurandir Belli
Passos, aos Drs. Pedro Dimitrov, Luiz Alberto Bacheschi, Ruy Bevilacqua, com quem em diversas
vezes pude contar com sugestões e apoios intelectuais, profissionais, e, principalmente, de amizade.
Devo agradecimento imensurável a minha orientadora, Maria Helena Oliva Augusto, que
suportou não só minhas dificuldades intelectuais, mas também minha preguiça, minha indesculpável
gramática, minhas dúvidas, muito além do que seria sua tarefa, e isso não apenas agora, mas desde
quando eu fui seu aluno pela primeira vez, tempos atrás, no curso de graduação. ‘Orientadora’ é uma
palavra que não exprime, de maneira nenhuma, a importância que Maria Helena teve para este trabalho,
nem a sua atenção, dedicação, competência científica e capacidade de ensinar. Poder trabalhar com ela
foi uma experiência que transcende, para mim, qualquer outro resultado.
Para minhas queridas filhas, Beatriz e Júlia, devo muito mais que agradecimentos por
suportarem a ausência do pai em inúmeras ocasiões, por iluminarem a minha vida com seus sorrisos.
Elas são minha ligação com a terra e com o futuro.
Para Wânia, que é a melhor pesquisadora lá de casa, e com certeza, em qualquer outro lugar,
devo começar agradecendo pelas críticas certeiras, pela sinceridade estonteante, pelo incentivo diário, e
por me manter sempre dentro do razoável, coisa que sabe melhor que ninguém. Sua presença e seu
amor são tudo que eu poderia querer, e mesmo assim, é ela quem me faz sempre avançar.
Apesar de todos os apoios recebidos, é claro, sou o único responsável pelos defeitos dessa
dissertação.

São Paulo, 21 de junho de 1997


6

Introdução
Dia 1 de outubro de 1987, quinta-feira. Os brasileiros em geral e os habitantes de
Goiânia em especial se depararam, neste dia, com uma notícia surpreendente - e logo se viu,
especialmente ruim. A blindagem de um aparelho de radioterapia teria sido destruída com
marretadas, em um ferro-velho, na cidade de Goiânia, capital do Estado de Goiás,
provocando o mais grave acidente radioativo do país, como já se avaliava:

01/10/87 - Césio em ferro-velho espalha radioatividade em Goiânia - GOIÂNIA -


Dezesseis pessoas internadas em estado grave e cerca de 40 em regime especial de
observação médica por causa da radioatividade liberada por uma cápsula de césio 137, que
sumira do Instituto Goiano de Radioterapia e fora vendida a um ferro-velho de Goiânia
como sucata, na semana passada. (...)
O material fora recolhido, na quarta-feira da semana passada, por Wagner Mota Pereira e
Roberto dos Santos Alves, (...) e vendido como sucata ao ferro-velho de propriedade de
Devair Alves Ferreira. Há uma versão de que o material teria sido roubado. (...) Os
problemas começaram a surgir na segunda-feira, quando Wagner Mota Pereira foi
internado no Hospital de Doenças Tropicais com queimaduras. Roberto dos Santos Alves
também foi internado. O dono do ferro-velho e toda sua família também estão
contaminados com a radiação da cápsula, que estava no quintal de sua casa.
Ali, tentou quebrar o material, e toda vez que fazia isto ativava a liberação de
radioatividade da cápsula, sem saber o que estava acontecendo. As crianças se divertiam,
brincando naquela “pedra brilhosa”, como chegaram a dizer. O problema maior foi a
tentativa de Devair Alves Ferreira, o dono do ferro-velho, de quebrar a peça com uma
marreta e um martelo, e com isto, segundo o físico Rozental, diluiu o material radioativo,
que se espalhou por toda a casa. “Aquele pó impregnou todas as pessoas.” As crianças até
se divertiam, passando pelo corpo o pó que brilhava como purpurina. Momentos depois,
estavam com queimaduras por todo o corpo, com vômitos e diarréias, as primeiras
manifestações da contaminação radioativa.(...)1

O que se objetiva aqui é problematizar o ‘Acidente do Césio’ como um evento da


modernidade em um país de modernização supostamente atrasada, através do conceito de
acidente tecnológico como acontecimento e, portanto, através de uma reconstituição
histórica. Enquanto um exemplo de evento da atualidade, e pelo fato de haver acontecido na
forma de ‘acidente’, é uma oportunidade de observar algo básico para o entendimento da
organização social, que é a maneira de lidar, na modernidade, com o que é considerado
contingente, fortuito. Essa maneira é a ciência, mobilizada na técnica, nas aplicações
tecnológicas da ciência, com o conhecimento construído e voltado para controlar a natureza:
é através dessa maneira que se lida com o que estaria fora ou contra a vontade, mesmo num
momento em que essa maneira aparentemente falha, como no Acidente de Goiânia, e deve
ser reelaborada pelos seus agentes. Nesse processo, nos seus antecedentes, no seu

1
JORNAL DO BRASIL. 01/10/87. Césio em ferro-velho espalha radioatividade em Goiânia.
7

desenrolar, nas suas conseqüências, nos sentidos que lhe foram atribuídos e nos problemas
que levantou para o país, o Acidente de Goiânia ‘desconstruiu’ um complexo institucional
pouco conhecido (o setor voltado à tecnologia nuclear) e permitiu visualizar diversos
elementos constituintes da modernização reflexiva: a existência, realização ou possibilidade
de riscos ou perigos não previstos ou não conhecidos, mas criados pelo próprio
desenvolvimento da sociedade industrial; o papel da ciência e da tecnologia na produção,
conhecimento e controle desses riscos e sua relação problemática com as outras esferas,
como o Estado ou a população; a forma reflexiva de criação, apropriação e circulação de
conhecimentos, forma característica que também surgiu com a modernização; a correlata
constituição e desempenho de responsabilidades (isto é, de papéis sociais); o papel agora
central dos agentes técnicos (peritos ou burocratas especializados); a peculiar dramaticidade
do acontecimento derivada da situação de emergência e das tarefas de reconstituição de
uma normalidade afetada pelo desastre.

O Acidente em Goiânia foi o maior do tipo no Brasil (até agora) e um dos mais graves
já ocorridos em todo o mundo: o primeiro no país a ter como vítimas a população em geral e
não profissionais da área, nela provocando mortes e ferimentos; o primeiro a se espalhar por
uma cidade povoada; o primeiro a testar uma série de medidas de emergência que eram
apenas hipotéticas ou, menos ainda, formais; e, principalmente, o primeiro experimentado
como um grande evento público. Pareceu, e de fato se mostrou ser, algo tão grave que
mereceu uma atenção especial, perigoso e de difícil compreensão, agora próximo mas
também ainda distante, novo porém familiar; e brasileiro, mas também estranho, estrangeiro,
como descreveu Fernando Gabeira(1987), inspirado em Freud.

Não apenas surpresa, desagrado e estranhamento, mas uma multiplicidade de


reações foi provocada. O “Acidente de Goiânia” ou “Acidente do Césio”, como ficou
conhecido, teve a dimensão de algo incomum, capaz de abalar o cotidiano, de expor um
novo perigo e de provocar nos brasileiros um medo antes desconhecido. De levantar temor
quanto ao futuro imediato e desencadear o drama quanto ao destino das vítimas da
contaminação. De fazer surgir manifestações, às vezes lamentáveis, às vezes
surpreendentes, de discriminação e irracionalidade, mas também de indignação e
solidariedade. Sobretudo, de provocar debates e de esclarecer posições entre autoridades,
cientistas, técnicos, políticos e cidadãos: o espaço público, por algum tempo, foi preenchido
por esse debate conflituoso e confuso veiculado e registrado através da imprensa. Teve a
dimensão constituir esse debate como fato histórico, como intriga, no sentido de Veyne
8

2
(1983) , mais que como um grande evento envolvendo grandes personalidades e grandes
decisões.

Trata-se de uma experiência com uma nova forma de morrer. A morte por radiação é
uma das invenções mais significativas deste século. Se for suficientemente forte, a radiação
pode desintegrar uma pessoa, quebrando todas as moléculas do corpo e espalhando-as pelo
3
espaço, tal como sucedeu às vítimas no hipocentro da explosão de Hiroshima . Isso foi tão
rápido e brutal que transformou o próprio conceito de morte: numa pequena fração de um
instante, se vivia, entre outras pessoas e coisas, preocupações e alegrias, e depois,
simplesmente, nada. Desaparece-se. Nenhuma prova material da existência anterior. Se a
radiação não for tão forte para provocar a morte instantânea, ela radicaliza o conceito de
morte, como em Goiânia: estenderá a agonia por minutos, por meses, anos ou gerações, e,
antes, provocará uma espécie peculiar de morte social e de estigma.

No acidente com o Césio-137, em Goiânia, os habitantes de todo o país tiveram uma


experiência com essa morte radical. Pessoas foram contaminadas ou sofreram exposição à
radiação de um outro tipo de bomba, que ao contrário da sua longínqua ancestral de
Hiroshima, não produziu estrondo, nem vitória, e que ao contrário de uma bomba explosiva
convencional, como se viu, é muito mais perigosa se for desmontada. O perigo em questão
mostrou uma face sempre renovada do horror, e aqui ele tomou a forma de pedrinhas que
emitiam uma luz azulada, linda; uma maravilha que saíra das entranhas de uma máquina
velha e quebrada, que encantou os vizinhos e as crianças num bairro popular em Goiânia.

“Leide morreu no início da noite [do dia 23 de outubro de 1987, cerca de um mês após sua
contaminação], vitimada por uma contaminação e ingestão de césio-137 em níveis nunca
antes observados pela medicina nuclear. A menina - que ingeriu pó de césio comendo pão
com as mãos sujas - quando seu quarto no hospital estava às escuras mostrava uma aura
azulada pelo efeito do césio, que continuava a irradiar. Até os médicos tinham que se
aproximar dela com precaução para não se contaminarem. Nos últimos dias, Leide não
respondia aos testes, alimentava-se por via parental e sofria muito com febre alta
constante, diarréia, sangramento nos olhos e nariz e quadro hematológico muito grave.” 4

2
“Os factos não existem isoladamente, no sentido de que o tecido da história é o que chamaremos uma intriga, uma mistura
muito humana e muito pouco ‘científica’ de causas materiais, de fins e de acasos; numa palavra, uma fatia de vida, que o
historiador recorta a seu bel-prazer e onde os factos têm as suas ligações objetivas e a sua importância relativa (...)”
(Veyne, 1983: 48). (A tradução brasileira utiliza a palavra trama, em lugar de intriga).
3
“Vi quatro ou cinco meninos brincando na rua, e uma mãe carregando um bebê nas costas, ao mesmo tempo em que
conduzia pela mão outra criança, de seus 3 anos. Quando elas estavam a uns 10 metros de mim, houve o clarão da
explosão. A mãe e as crianças desapareceram. O que vi não foi fumaça. Foi uma espécie de vapor, que se levantou da mãe
e das crianças. Logo depois, elas desapareceram.” (Depoimento de um sobrevivente de Hiroshima). VEJA, 2 de agosto de
1995. Hiroshima, 50 anos. Memórias dos filhos do clarão. Editora Abril, Ano 28. N. 31: 62.
4
JORNAL DA TARDE. 24/10/87. Césio 137: morrem duas vítimas.
9

A ameaça da morte por radiação já foi sentida como maior. Uma guerra termonuclear
traria uma devastação global que faz parecer muito otimista a lendária resposta de Einstein à
pergunta de com que armas ocorreria a terceira guerra mundial, que disse não saber, mas
para ele a quarta seria, com certeza, com paus e pedras. A possibilidade ainda existe,
porque as armas existem e estão prontas para serem usadas, e pelo fato de o futuro ser, por
excelência, o campo das incertezas5.

Isto coloca a questão de pensar esta etapa histórica como decorrente das maiores
capacidades já alcançadas, ao mesmo tempo, tanto para a destruição quanto para a criação:
“O que nos ocorre em primeiro lugar, naturalmente, é o tremendo aumento de poder humano
de destruição, o fato de que somos capazes de destruir toda a vida orgânica da Terra e de
que, algum dia, provavelmente seremos capazes de destruir a própria Terra. No entanto, não
menos terrível e não menos difícil de compreender é o novo poder de criar, o fato de que
podemos produzir novos elementos jamais encontrados na natureza, de que somos capazes
não apenas de especular quanto às relações entre massa e energia e quanto à mais secreta
identidade destas duas, mas, de fato, transformar massa em energia ou transformar radiação
em matéria.” (Arendt, 1991: 280-81). A noção desse poder, que tem mais de cinqüenta anos,
já é generalizada na população, gerando movimentos de contestação, e tema de inúmeras
obras científicas ou de ficção. Mas de maneira geral, pela condição do Brasil de país do
‘Terceiro Mundo’, os brasileiros nunca se experimentaram sujeitos ou alvos (até no sentido
literal) dessas grandes possibilidades e ameaças.

O que aconteceu em Goiânia? Como se poderia entendê-lo? Por que aquelas


pessoas estavam morrendo? Apesar de parecer algo que diz respeito principalmente às
ciências naturais, como a física nuclear e suas decorrências, as teorias da matéria ou da
radiação, ou ainda, a artefatos como o aparelho de radioterapia (portanto às ciências exatas
e suas aplicações tecnológicas), parece óbvio que há importância para as ciências sociais
num evento dessa magnitude. Não se pode explicar, compreender ou mesmo apenas
descrever o Acidente de Goiânia abstraindo as pessoas e instituições que dele participaram,
direta ou indiretamente. Também não se pode aceitar, do ponto de vista da sociologia, que
apenas responsabilidades individuais, como as buscadas pelas investigações policiais ou

5
“O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos
e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de
realizar o infinitamente improvável (...) Contudo, embora as várias limitações e fronteiras que encontramos em todo corpo
político possam oferecer certa proteção contra a tendência, inerente à ação, de violar todos os limites, são totalmente
impotentes para neutralizar-lhe a segunda característica relevante: sua inerente imprevisibilidade. Não se trata apenas da
mera impossibilidade de se prever todas as conseqüências lógicas de determinado ato, pois se assim fosse um computador
eletrônico poderia prever o futuro; a imprevisibilidade decorre diretamente da história que, como resultado da ação, se
inicia e se estabelece assim que passa o instante fugaz do ato. O problema é que, seja qual for a natureza e o conteúdo da
história subsequente - quer transcorra na vida pública ou na vida privada, quer envolva muitos ou poucos atores - seu
pleno significado somente se revela quando ela termina.” . (Arendt, 1991: 191 e 204)
10

judiciárias (portanto as posições oficiais), sejam explicações suficientes não apenas para o
caso em questão quanto para outros perigos advindos de uma grande e importante série de
sistemas, que estão profundamente envolvidos na forma de organização da vida atual, e que
estão agora nitidamente interligados: o sistema científico-tecnológico e produtivo, que, por
sua vez, também está interligado com várias outras esferas, como a militar, econômica,
política, ecológica, até o nível da determinação da individualidade.

Poucos eventos parecem ser tão expressivos da atualidade como os acidentes


tecnológicos, por serem decorrentes e demonstrativos desse caráter ambivalente da
condição moderna. No caso do Acidente de Goiânia, a ambivalência está até no próprio
artefato, um aparelho que, projetado para curar o câncer, passa a provocá-lo. Parece ser
justamente essa passagem um objeto por excelência para as ciências sociais, por explicitar
essa ambivalência, ainda que ‘acidental’ (ou pelo fato de o acidental ser o aspecto mais
visivelmente social). Acidentes são temas sociológicos de certo modo ‘clássicos’, mas são
abordados geralmente em relação a um outro tema ‘maior’: acidentes de trabalho, por
exemplo, entendidos como conseqüências da exploração capitalista. Acidentes tecnológicos,
entende-se, devem ser abordados de uma outra maneira, que leve em conta que eles não
são simples conseqüências: podem ser expressão de problemas tão graves que haveria o
risco de eliminarem as suas próprias causas, isto é, a própria sociedade industrial que os
produz6.

Além desses elementos, por assim dizer, institucionais (os sistemas envolvidos na
constituição da atualidade), passado o momento de emergência, sempre resta um
sentimento de frustração e angústia: apesar de um dos efeitos do acidente ser o grande
falatório, debates, apelos, dos mais diversos tons, que ele provoca, de algum modo, ou em
virtude disso, não há sentidos evidentes nem efeitos previsíveis num acontecimento deste
tipo, mas a sensação consensual de que algo muito grave aconteceu. As interpretações
múltiplas não reconfortam, pelo contrário. Nenhuma explicação que contemple a gravidade
das implicações do uso da energia nuclear pode ser tranquilizadora. Há toda a questão do
passado, de uma linhagem que a mídia sempre faz questão de lembrar, e portanto atualizar,
que começa em Hiroshima, passa pela Guerra Fria e Tchernobyl. Há a cultura, onde a
radioatividade é mostrada pela ficção geralmente como a pior das ameaças: traz a imagem
de um futuro que não queremos habitar7. Há o fato de se tomar consciência, forçosamente,
de um perigo invisível, ou mais, que não pode ser apreendido por nenhum sentido, e para o

6
Pode parecer uma ironia (ou coisa pior) dizer que a sociedade industrial capitalista pode desaparecer por sua própria
conseqüência quando alguns celebram a morte do marxismo. Mas nesse caso, não seria o socialismo que avançaria pela
Terra.
7
“Assisti muito filme de guerra e de bomba atômica e aprendi o que é irradiação.” Ernesto Fabiano, uma das vítimas, que
carregou um pedaço de césio 137 no bolso da calça. O ESTADO DE S. PAULO, 21/10/87.
11

qual não há prevenção individual que se possa tomar. A idéia que surge após um grande
desastre como o de Goiânia é a de que o mundo está mais perigoso, mais ameaçado e
degradado do que antes.

As conseqüências sociais do desastre abrem ou renovam, para todos, a necessidade


de criar alternativas, ante a presença dessa e de outras ameaças à existência coletiva.
Embora a maioria das pessoas possa lidar com acontecimentos desse tipo com uma espécie
de resignação forçada (entre diversas outras maneiras, do tédio à paranóia passando pela
militância política (Giddens, 1991:136-8)), cabe às ciências sociais um papel de
esclarecimento que, pelo menos, dê uma forma organizada e crítica a um conhecimento que
se produz no social, mesmo que de modo ‘acidental’, e no contexto de um país que até o
Acidente se sentia algo fora de tais perigos: não participávamos daquela linhagem de tristes
desastres. Sua realização nos mostrou por algum tempo que não estávamos totalmente fora
desse mundo.

Quando forem devidamente avaliadas, as conseqüências do acidente com o césio-137, em


Goiânia, o país terá pela primeira vez um retrato sem retoques de sua perigosa
duplicidade, que faz conviver explosivamente a tecnologia de vanguarda com o atraso
quase pré-histórico. (...) Não foi apenas uma ironia cruel que fez o biscateiro Roberto
Santos Alves arrebentar a marretadas o pomposo status brasileiro de país dominador do
ciclo completo de enriquecimento de urânio, anunciado pelo presidente José Sarney há
apenas um mês. Foi um desfecho quase lógico de uma situação que vem sendo armada nas
últimas décadas, e que pipocou, apenas por azar, em Goiânia.8

O Acidente de Goiânia não aconteceu num universo separado, mas, totalmente ao


contrário, aconteceu imerso no contexto de um Brasil ‘subdesenvolvido’ que muito parece ter
a explicar. Mas interpretá-lo, e a outros acidentes tecnológicos de maneira a concluir que, por
exemplo, o acidente do césio tenha sido apenas decorrência do estágio subdesenvolvido do
Brasil, de não termos portanto a capacidade elementar de evitar acidentes, traz alguns
problemas. Pode valer mais como uma denúncia do subdesenvolvimento, mais ideológica do
que sociológica ou científica. Tentar-se-á aqui argumentar que o subdesenvolvimento não é
mera causa, antecedente ou explicação última para a ocorrência desse e de outros
desastres: algo ao contrário, a idéia, o tema ou a auto-imagem de subdesenvolvimento é
também conseqüência do Acidente, surge da problematização que dele fazem seus atores,
como explicação que eles se dão tanto para que o desastre tenha ocorrido quanto para suas
conseqüências no futuro. O subdesenvolvido, no fundo, espera que sua própria condição
explique e absolva seus erros passados quanto justifique sua omissão no futuro: talvez o

8
ISTOÉ, 14/10/87. Diante da morte e perplexos.
12

grande temor seja o de se assumir como sujeito de seus próprios atos e perder os relativos
confortos de ser prisioneiro das circunstâncias.
13

Capítulo 1 - Acidentes tecnológicos e Modernização


reflexiva

Sociologia e risco
A guerra termonuclear global foi (ou continua sendo) o mais importante não-evento da
atualidade, isto é, a possibilidade mais ameaçadora que se tem notícia, mas o
desenvolvimento global tem trazido outras ameaças potenciais que vem sendo
progressivamente conhecidas. Catástrofes ecológicas, por exemplo, pelo efeito estufa ou
pelo envenenamento do ambiente pela poluição, ou ainda, o esgotamento das fontes de
água potável. Dizer que se reconhecem agora essas possibilidades significa que adquire-se
um reconhecimento dos riscos permanentes não só para indivíduos ou nações, mas para a
espécie humana e para a vida no planeta. Significa o reconhecimento de novas limitações à
organização da sociedade tal como vem se desenrolando desde o advento da Modernidade.

Para Anthony Giddens e Ulrich Beck, o reconhecimento coletivo desses riscos,


advindos da condição moderna, é o mais elementar indicativo de que a modernidade entra
numa nova fase, como conseqüência da continuidade da própria modernização: a fase da
Modernização Reflexiva. De maneira independente (depois aparentemente em colaboração),
Giddens e Beck desenvolveram, desde meados dos anos 80, as noções de uma nova
abordagem sobre o processo de modernização atual. Esta, por um lado, aponta o
redirecionamento do impulso e energia que levou, nos países industrializados, à
modernização e ao modelo de sociedade industrial, isto é, à sociedade de classes, ao
welfare state, à sua divisão entre público e privado, e à todo o seu decorrente desenho
institucional. Por outro lado, elabora uma crítica às teorias que postulam a condição pós-
moderna. A modernização reflexiva seria uma nova etapa histórica, cujos contornos
começam a se vislumbrar, em que os pressupostos da modernização passam a ser
aplicados, reflexivamente, a si mesmos, de maneira que o que estaria se configurando não
seria um esgotamento, mas uma universalização e radicalização da modernização (Giddens);
um aprofundamento da modernização por uma segunda onda de racionalização (Beck), que
visaria não os fundamentos da sociedade feudal e agrária e seus mitos, como a primeira
onda modernizante, mas os seus próprios fundamentos modernos tornados mitos, e ainda,
os resquícios pré-modernos que sobreviveram como ‘tradições’, isto é, aprofundando e
‘completando’ as tarefas a que a modernização se propôs. A modernização voltada a si
própria e às suas conseqüências se torna reflexiva, apontando para um desdobramento não
menos, nem pós-moderno, mas mais moderno, radicalmente moderno (Giddens, 1991; Beck,
1992; Beck et alii, 1994).
14

Em seu livro As conseqüências da Modernidade, cujo original é de 1990, Giddens


indaga sobre o duplo caráter da modernidade, seu lado em que as instituições da
modernidade criaram e difundiram oportunidades em profundidade e extensão historicamente
únicas, e o seu “lado sombrio”, de riscos e conseqüências negativas que também são novos
na história. Esse último, cujas expressões históricas também contemplam o surgimento dos
totalitarismos e do poder militar, além das conseqüências destrutivas sobre o meio ambiente
do avanço da produção, é apontado por Giddens como não tendo sido enfatizado pelos
fundadores da sociologia. “Tanto Marx como Durkheim viam a era moderna como uma era
turbulenta. Mas ambos acreditavam que as possibilidades benéficas abertas pela era
moderna superavam suas características negativas (...) Max Weber era o mais pessimista
entre os patriarcas fundadores, vendo o mundo moderno como um mundo paradoxal onde o
progresso material era obtido à custa de uma expansão da burocracia que esmagava a
criatividade e a autonomia individuais. Ainda assim, nem mesmo ele antecipou plenamente o
quão extensivo viria a ser o lado mais sombrio da modernidade.” (Giddens, 1991:16-17).
Decorreria dessa ênfase no lado das oportunidades positivas da modernização, inclusive, a
dificuldade da sociologia lidar com os temas ecológicos de modo sistemático, assim como a
força da concepção de que a ordem da modernidade seria essencialmente pacífica, em
contraste com as épocas passadas militaristas, teria levado a sociologia a não analisar a
contento a conexão entre a industrialização e o poder militar (:18).

Giddens trabalha, dentre vários, com temas e conceitos como “segurança versus
perigo” e “confiança versus risco”, no objetivo de desenvolver uma análise institucional do
“caráter de dois gumes” da modernidade. Para tanto, Giddens vai problematizar o próprio
papel da reflexividade da sociologia na modernidade, que, defende ele, sofre de limitações a
partir das perspectivas clássicas (Marx, Durkheim e Weber cada um se fundamenta numa
única dimensão institucional); da centralidade do conceito de ‘sociedade’ como objeto da
sociologia (que corresponde entretanto ao Estado-nação devido às suas delimitações
conceituais e onde o problema da ordem deveria ser substituído pelo do distanciamento
tempo-espaço); e da noção que a sociologia deveria prover um conhecimento que redundaria
num maior controle e previsão, à imagem das ciências físicas (:19-25). Contra essa última
noção, demasiadamente simples, Giddens propõe que “A relação entre a sociologia e seu
objeto - as ações dos seres humanos em condições de modernidade - deve (...) ser
entendida em termos de ‘hermenêutica dupla’. O desenvolvimento do conhecimento
sociológico é parasítico dos conceitos dos leigos agentes; por outro lado, noções cunhadas
nas metalinguagens das ciências sociais retornam rotineiramente ao universo das ações
onde foram inicialmente formuladas para descrevê-lo ou para explicá-lo. Mas este
conhecimento não leva de maneira direta a um mundo social transparente. O conhecimento
15

sociológico espirala dentro e fora do universo da vida social, reconstituindo tanto este
universo como a si mesmo como uma parte integral desse processo.”(: 24. Grifo no
original). O que se teria nesse modelo não seria nem o acúmulo de conhecimento nem o
aumento de controle, mas “ordenação e reordenação reflexivas das relações sociais à luz
das contínuas entradas (inputs) de conhecimento afetando as ações de indivíduos e grupos”
(:25). À sociologia, portanto, tendo um acidente como objeto, não cabe um papel de
verificação de erros ou falhas de controle, de olhar para o social como um mero mecanismo
de mau funcionamento, situação em que seu papel seria de aperfeiçoar os controles sociais
com o objetivo de evitar o contingente, mas até de, através da crítica, entender seu próprio
papel de produtor de conhecimento nesse e para esse mecanismo social, e portanto,
conhecimento compartilhado também nos seus erros, falhas ou acidentes.

Para Giddens, reflexividade tem um sentido de monitoramento constante, e pode ser


entendida como uma característica do comportamento de todos os seres humanos, mas que
passa a ter na modernidade uma posição na base de reprodução do sistema, “de forma que
pensamento e ação estão constantemente refratados entre si” (:45). “A reflexividade da vida
social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas
e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim
constitutivamente seu caráter.(...) somente na modernidade a revisão da convenção é
radicalizada para se aplicar (em princípio) a todos os aspectos da vida humana, inclusive à
intervenção tecnológica no mundo material. (...) O que é característico da modernidade não é
uma adoção do novo por si só, mas a suposição da reflexividade indiscriminada - que, é
claro, inclui a reflexão sobre a natureza da própria reflexão”(:45). A reflexividade não significa
um ganho de certeza ou controle, antes o contrário, porque qualquer conhecimento pode ser
revisado, inclusive o conhecimento científico. Este aspecto inverte a visão costumeira entre
conhecimento e certeza, ainda que a ciência nos forneça a maior parte da informação
confiável sobre o mundo.

Por outro lado, apesar das limitações, Giddens vai enfatizar a posição de “pivô” da
sociologia na reflexividade da modernidade, que vem de seu papel como o “mais
generalizado tipo de reflexão sobre a vida social moderna”(:48). Os exemplos dados vão das
estatísticas oficiais (utilizadas pela administração dos Estados e empresas, mas permeadas
pelas descobertas das ciências sociais), até aos que mostram como as mudanças nos papéis
familiares ou sexuais influem na decisão de um indivíduo se casar. “O discurso da sociologia
e os conceitos, teorias e descobertas das outras ciências sociais continuamente ‘circulam
dentro e fora’ daquilo de que tratam. Assim fazendo, eles reestruturam reflexivamente seu
objeto, ele próprio tendo aprendido a pensar sociologicamente. A modernidade é ela
mesma profunda e intrinsecamente sociológica” (:49). Para Giddens, criticando os
16

autores que postulam que estamos numa fase pós-moderna ou “além-modernidade”, o que é
característico, hoje, é que a reflexividade da modernidade é cada mais vez reconhecida,
implicando uma circularidade da razão que forma o cerne enigmático da modernidade, pois
não há respostas à natureza intrigante dessa mesma circularidade, assim como não há como
justificar racionalmente um compromisso com a própria razão.

Giddens afirma que é característico do dinamismo da modernidade o distanciamento


espaço-tempo realizado por suas instituições. O tempo se tornou padronizado pelos sistemas
universais de datação e descolado dos sistemas sócioculturais locais. O espaço tornou-se
campo de influências que podem estar muito distantes. O tempo-espaço se tornaram
dimensões padronizadas que penetram as atividades sociais e possibilitam o desencaixe9
(disembedding) de situações que necessitavam dos contextos de uma interação face-a-face,
que passam a ser coordenadas através do tempo-espaço por organizações racionalizadas. O
exemplo de desencaixe que vale apontar é o formado pelo relacionamento com o ambiente
construído pela tecnologia (como casas ou aviões) dos quais se tem um conhecimento
superficial sobre como foram construídos ou como funcionam, e com os quais a relação se
dá através da confiança em seu funcionamento. Essa relação de confiança o autor vai
problematizar minuciosamente em seus vários aspectos, de onde pode ressaltar a relação
entre os perigos advindos da modernidade, o conhecimento dos riscos e a confiança dos
leigos na ciência e na técnica, envolvidos na definição da segurança. Quando, como agora, o
conhecimento sobre os perigos se dissemina, através dos meios de comunicação e do
fenômeno da reflexividade, a própria modernidade vem a ser questionada de diversas
formas, inclusive pelos que defendem as visões pós-modernas.

Para Giddens, a fase de alta modernidade ou modernidade radicalizada em que


vivemos pode ser expressa pela figura do Carro de Jagrená10 (Juggernaut), correndo
descontrolado, ameaçando esmagar quem se opuser a ele. Para tentar guiar tal Carro, nunca
inteiramente controlável nem previsível, Giddens esboça os elementos de uma nova teoria
crítica, que sem garantias nem teleologismo, dentre outras tarefas interligadas, se dedicaria a
minimizar os riscos de “alta conseqüência e baixa probabilidade”11, como de catástrofes
nucleares, desde os contextos da intimidade até os globais.

9
“Por desencaixe me refiro ao ‘deslocamento’ das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação
através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (Giddens, 1991: 29).
10
"O termo vem do hindu Jagannãth, 'senhor do mundo', e é um título de Krishna; um ídolo desta deidade era levado
anualmente pelas ruas num grande carro, sob cujas rodas, conta-se, atiravam-se seus seguidores para serem esmagados."
(Giddens, 1991: 133, nota)
11
“Os riscos de alta-consequência e baixa probabilidade não desaparecerão do mundo moderno, embora num cenário
otimista eles possam ser minimizados. Assim, mesmo se fosse o caso de que todas as armas nucleares existentes fossem
17

O sociólogo alemão Ulrich Beck realizou uma análise em vários pontos parecida com
a de Giddens, embora o inverso seja mais fiel à realidade, já que seu livro foi publicado em
1986 como Risikogesellschaft: Auf dem Weg in eine andere Moderne (que é citado por
12
Giddens), traduzido para o inglês como Risk Society Toward a New Modernity (1992) . A
visão multifacetada de Beck da Risk Society, é bom observar, é anterior à Tchernobyl, à
Goiânia, à descoberta do buraco na camada de ozônio, à discussão sobre a bio-diversidade
e à polêmica sobre a engenharia genética, todos temas já encontrados em seu texto, entre
vários outros.

Beck assevera que somos testemunhas, como objetos e sujeitos, de uma época em
que se pode notar o surgimento dos contornos de uma era nova industrial desconhecida, do
mesmo modo que um observador do século XIX pôde observar o avanço da modernização
sobre o feudalismo em dissolução e o nascimento da sociedade industrial. “Tal como a
modernização dissolveu a estrutura da sociedade feudal no século dezenove e
produziu a sociedade industrial, hoje a modernização está dissolvendo a sociedade
industrial e uma outra modernidade está surgindo (...) Hoje, no limiar do século vinte e
um, no mundo ocidental desenvolvido, a modernização consumiu e perdeu seu outro e
agora solapa suas próprias premissas como uma sociedade industrial junto com seus
princípios funcionais. A modernização dentro do horizonte da experiência da pré-
modernidade está sendo deslocada pela modernização reflexiva (...) estamos
testemunhando não o fim, mas o começo da modernidade - isto é, de uma modernidade para
13
além do seu projeto industrial clássico.” (:10) (Grifos no original). Para Beck, uma segunda
onda de racionalização, que está apenas começando, pode levar a ultrapassar a sociedade
industrial sem um explosão política ou revolução, pela “escada dos fundos dos efeitos
colaterais”(:11). Nesse processo, o papel ‘anti-modernista’ de movimentos sociais ou de
críticos dos perigos e conseqüências indesejáveis da ciência e tecnologia não está em
contradição com a modernidade, mas no escopo da modernização reflexiva, pois a crítica à
ciência e à técnica deriva ela própria da disseminação dos conhecimentos científicos e
técnicos entre os indivíduos leigos, que, por necessidade, se apropriam e problematizam

destruídas, nenhuma outra arma de força destruidora comparável fosse inventada, e nenhum distúrbio catastrófico
comparável da natureza socializada assomasse, ainda existiria um perfil de perigo global.” (: 135)
12
Segundo a introdução de Scott Lash e Brian Winne para a edição inglesa, Risikogesellschaft já era um dos mais influentes
trabalhos de análise social do fim do século, não somente entre as disciplinas das ciências sociais mas também entre o
público leigo e nas discussões sobre as políticas ecológicas alemãs.
13
“Just as modernisation dissolved the structure of feudal society in the nineteenth century and produced the industrial
society, modernisation today is dissolving industrial society and another modernity is coming into being. (...) Today, at
the threshold of the twenty-first century, in the developed Western world, modernisation has consumed and lost its other
and now undermines its own premises as an industrial society along with its functional principles. Modernisation within the
horizon of experience of pre-modernity is being displaced by reflexive modernisation (...) we are witnessing not the end but
the beginning of modernity - that is, of a modernity beyond its classical industrial design.”
18

esses conhecimentos. Isto é, forçam uma aproximação com o social e uma democratização
(portanto politização) das esferas da ciência e da produção. A essa sociedade onde a
modernidade clássica estaria, ao mesmo tempo, se completando e dissolvendo, Beck chama
de Risk Society.

Beck pensa que é um mito a suposição de que a modernização existente já seja


totalmente moderna, pois está presa às limitações decorrentes das continuidades e rupturas
da primeira onda de modernização. As bases essenciais da sociedade industrial - família,
profissão, fábrica, classe, salariado, ciência, tecnologia - mudam incessantemente. Pelo mito,
apenas a sociedade industrial em si não mudaria, postura manifestada, no melhor exemplo,
pela “mad joke” do fim da história (:11). “Mais urgentemente que nunca, necessitamos de
idéias e teorias que nos permitam perceber o novo que está nos chegando de uma nova
maneira, e no auxilie a viver e agir dentro dele. Ao mesmo tempo devemos manter boas
relações com os tesouros da tradição, que, de toda forma, sempre se manteria velha, sem
uma mudança equivocada e dolorosa para o novo”14 (:13).

Para Beck, esquematizando, a sociedade industrial se legitimava na luta contra a


escassez, e onde seus efeitos colaterais indesejáveis poderiam ser conhecidos, eles eram
relegados em nome da distribuição de bens, operada pelo welfare state democrático. Na
atualidade, os efeitos colaterais tomam a forma de riscos (hazards), várias das quais não
previstos, não conhecidos e não calculáveis (ou sistematicamente negados e ocultados),
globalizados, deslocados no tempo e no espaço, e que são criticamente apontados pelo
público e pela investigação científica. “(...) enquanto na sociedade industrial clássica a ‘lógica’
da produção de riquezas dominava a ‘lógica’ da produção de riscos, na risk society essa
relação está revertida. As forças produtivas perderam sua inocência na reflexividade dos
processos de modernização. O ganho de poder do ‘progresso’ técnico-econômico está sendo
crescentemente eclipsado pela produção de riscos.”15(:12-3) Nas sociedades onde a
escassez foi trocada pela abundância (pelo desenvolvimento industrial) e onde as posições
de classe são dissolvidas (pela redistribuição via welfare state), são as posições e
conhecimentos diante dos novos riscos que agora determinam, por exemplo, as ações
políticas e a organização de grupos.

14
“More urgently than ever, we need ideas and theories that will allow us to conceive the new which is rolling over us a new
way, and allow us to live and act within it. At the same time we must retain good relations with the treasures of tradition,
without a misconceived and sorrowful turn to the new, which always remains old anyway.”
15
“...while in classical industrial society the ‘logic’ of wealth production dominates the ‘logic’ of risk production, in the risk
society this relationship is reversed. The productive forces have lost their innocence in the reflexivity of modernisation
processes. The gain in power from techno-economic ‘progress’ is being increasingly overshadowed by the production of
risks.”
19

O outro aspecto da modernização reflexiva, articulado com o primeiro, tem lugar nas
“contradições imanentes entre a modernidade e contra-modernidade dentro da sociedade
industrial” (:13). Para Beck, as categorias da sociedade industrial devidas à modernização
são agora tradicionais; classe e cultura de classe, família nuclear e papéis sexuais, o trabalho
etc. são, na fase da modernização reflexiva, papéis em relação aos quais os indivíduos
podem flexibilizar-se, isto é, podem aderir ou não conscientemente e/ou de acordo com uma
biografia auto-planejada. As ciências disseminaram-se assim como seus métodos; agora
seus próprios métodos voltam-se para as ameaças que a própria ciência ajudou a
estabelecer. A democracia parlamentar foi estabelecida pela sociedade industrial; agora
“sub-políticas” apontam a necessidade de democratização dos negócios, ciência e
tecnologia, ou seja, esferas cuja regulação não era ‘política’ agora têm um papel
transformado pelos riscos e pela modernização reflexiva. Beck considera que a
“tradicionalidade” inerente à sociedade industrial começa a desintegrar: “Estranho como pode
parecer, as irritações da época em torno disso são todas resultado não da crise mas do
sucesso da modernização. Está sendo bem sucedida mesmo contra suas próprias
asserções e limitações industriais. Modernização reflexiva significa não menos, mas mais
modernidade, uma modernidade radicalizada contra as vias e categorias das regulações
industriais clássicas (...) a sociedade industrial desestabiliza a si própria através do seu
próprio estabelecimento.”16 (:14)

Um importante ponto de contato entre os dois autores é a questão da


individualização, que surge em decorrência da reflexividade. Para Giddens, em condição de
modernidade reflexiva e da destradicionalização decorrente (como as possibilidades abertas
nas relações entre os gêneros), é aberta ao indivíduo a possibilidade da “construção de um
eu como um projeto reflexivo, (...) um indivíduo deve achar sua identidade entre as
estratégias e opções fornecidas pelos sistemas abstratos” para o que inclusive conta com o
auxílio de peritos, como psicanalistas e outros profissionais, induzindo transformações
concomitantes na esfera da intimidade e nas relações pessoais (Giddens, 1991: 126; e
1993). Para Beck, o processo de individualização, além disso, decorre da estruturação do
mercado de trabalho e de outras instituições que crescem em importância, como a educação,
que implicam escolhas e planejamento individual, a criação de oportunidades, a auto
construção de uma biografia reflexiva dependente das decisões e definições de um eu: que
profissão, com quem e quando se casar, quantos filhos, onde morar, como construir a
carreira etc., um indivíduo de comportamento auto-soberano, nas palavras de Beck, instância

16
“Strange as it might sound, the epochal irritations aroused by this are all results not of the crisis but of the success of
modernization. It is successful even against its own industrial assumptions and limitations. Reflexive modernization means
not less but more modernity, a modernity radicalized against the paths and categories of the classical industrial setting.
(...) industrial society destabilizes itself through its very establishment.”
20

necessária de todas as outras esferas sociais. “O indivíduo, ela ou ele, se tornam a unidade
17
reprodutiva do social no mundo da vida” (Beck, : 90)

Beck, entretanto, aponta as ambivalências deste processo: ele mantém a estrutura de


desigualdades sociais, por exemplo, através do desemprego em massa, que numa
sociedade individualizada aparece mais como um fracasso pessoal do que decorrente de
falhas do sistema. O processo de individualização é acompanhado por um processo paralelo
de padronização (standardization) das formas de vida. A individualização não significa a
emancipação bem sucedida: “... individualismo não significa o início da auto-criação do
mundo pelo indivíduo ressuscitado”18 (:90), podendo resultar em novas commonalities. O
indivíduo, liberto das estruturas tradicionais, perde também a segurança advinda dessas
estruturas, e, em algum momento, é reintegrado a uma outra forma de inserção e controle
social, como consumidor ou no mercado de trabalho: o indivíduo se torna mais dependente
de instituições, como a educação, o trabalho, e a outras formas de controle e limites, mas em
dimensões também padronizadas.

O indivíduo deve encarar o mundo das ameaças latentes da risk society, que o
diferencia enquanto mais ou menos afetado pela produção e distribuição destes riscos,
diferenciação que se dá de um modo ainda relacionado, mas diferente de sua posição de
classe, e relacionado com o conhecimento que adquire sobre a sua posição dentro destes
fatores de risco, isto é, com a consciência que adquire pela educação, pelos meios de
comunicação etc.. Os riscos estariam conectando agora cada um dos indivíduos entre si e ao
global, pois não haverá (ou já não há) nem uma posição totalmente segura, nem uma
distinção clara entre vítima e perpetrador (isto é, diante dos riscos, a sociedade e os
indivíduos estão perdendo seu outro), pelo que Beck chama de efeito bumerangue (:37) da
circularidade social dos perigos19. O efeito bumerangue pode se manifestar através de
diversas formas, como efeitos colaterais não desejados ou previstos. Dependendo de sua
posição de risco, o indivíduo pode ser mais ou menos afetado (pobres estão mais expostos a
certos riscos por suas piores condições de vida), mas a diferença fundamental é que,
enquanto a posição de classe é objetiva, a posição de risco é subjetiva, exige um
conhecimento sobre os riscos invisíveis como a contaminação de alimentos, portanto, que
conhecimentos produzidos pelos sistemas peritos sejam de alguma maneira absorvidos (o
que em si traz conseqüências ao relacionamento com esses sistemas). O que leva à questão
de como e quando esses conhecimentos, antes internos à ciência e à tecnologia (e que

17
“The individual himself or herself becomes the reproduction unit of the social in the lifeworld.”
18
“...individualism does not signify the beginning of the self-creation of the world by the resurrected individual.”
19
“A pobreza é hierárquica, a fumaça é democrática”. (Poverty is hierarchic, smog is democratic) (: 36)
21

portanto obedeciam sua lógica interna) são contrapostos aos seus efeitos colaterais práticos:
um momento em que esse conhecimento circula ao mesmo tempo de modo explícito, mas
ainda misterioso, é o do acidente tecnológico.

Acidentes tecnológicos
O acidente radioativo em Goiânia pode ser colocado numa categoria de eventos que,
ao mesmo tempo, são e não são esperados, os acidentes tecnológicos. Numa primeira
aproximação de uma definição, visando a aplicação empírica de temas e conceitos de
Giddens e Beck, acidentes tecnológicos seriam desastres graves, devidos ao
desencadeamento ‘acidental’ dos perigos inerentes, produzidos pelos sistemas industriais,
complexos produtivos, máquinas, veículos e materiais, a elementos químicos ou outras
substâncias, à força e/ou potência e/ou velocidade mobilizada, onde, por algum motivo, o
controle sobre tais perigos se perdeu.

Tais eventos constituem um gênero de acontecimento histórico globalizado pelas


suas conseqüências e/ou implicações, e também pelos meios de comunicação de massa, em
tempo real (isto é, mostrados ao mesmo tempo em que acontecem, coincidentes com o
presente), ou num tempo bastante reduzido. Acidentes em usinas nucleares são típicos,
como os de Three Mile Island (EUA, 1979) ou de Tchernobyl (Ucrânia, ex-URSS, 1986) (ver
Gross, 1987), mas também acidentes ecológicos como derramamentos de petróleo,
vazamentos tóxicos (Bophal, na Índia; Seveso, Itália), ou a explosão do ônibus espacial
Challenger (1986). De certa maneira, substituem as catástrofes naturais, como furacões,
terremotos e vulcões, já que se referem a forças naturais mediadas pela tecnologia. Karl
Mannheim (1962 [1940]) já observava que a interdependência entre todas as partes da
ordem moderna tornava essa ordem sensível às menores perturbações, e tanto maiores
seriam as repercussões. “Numa ferrovia bem organizada, por exemplo, os efeitos de um
acidente são muito maiores do que na época do transporte em diligências, quando os
acidentes e as perturbações eram considerados como prováveis desde o início da viagem”. (:
60) Para Mannheim, a técnica passou a ter um outro papel quando a organização social
ultrapassou a fase da descoberta ocasional e da experimentação, características de reações
de adaptação ao meio natural, para a fase da invenção, onde “aprendemos a ser mais
independentes das condições naturais, de modo que o controle de fins intermediários se
torna a expressão mais vital de nossa liberdade” (: 381), de dispor de nossos destinos. Nessa
segunda fase, para Mannheim, uma “segunda natureza” muito mais complicada substitui a
primeira, e esta segunda natureza é a técnica, as relações organizadas que a técnica exige:
“Quanto mais a técnica nos liberta das forças arbitrárias da circunstância, mais nos
emaranhamos na rede das relações sociais que criamos. Do ponto de vista humano, essa
22

“segunda natureza” não será menos caótica e ameaçadora do que a primeira (...)”.(: 382)
Giddens observa que o entrelaçamento dos afazeres humanos no espaço-tempo absorveu a
natureza, tal como entendida anteriormente, estando ela agora inteiramente dentro dessa
rede de relações sociais: ”Desastres naturais obviamente ainda acontecem, mas a
socialização da natureza no presente significa que uma diversidade de sistemas
anteriormente naturais agora são produtos de decisões humanas”20 (Giddens, em Beck et
alii, 1994: 78). Um exemplo de sistema natural produto da ação humana é a própria
atmosfera, cuja constituição química vem se alterando com a poluição, o que se especula
esteja produzindo catástrofes como mudanças climáticas, secas e desertificação.

O acidente tecnológico é um evento particular em que os riscos da modernidade se


realizam e se explicitam na forma de desastre. É evidente que esse tipo de acontecimento
coloca questões ligadas a várias outras.

1) Acidentes tecnológicos surgem como conseqüências não previstas (inesperadas,


ou ainda, previstas de modo insuficiente ou errado) e não desejadas, de perigos inerentes a
artefatos ou processos tecnológicos, num dos sentidos comuns da palavra acidente. Tais
perigos também podem não ter sido muito claros, terem sido subestimados ou ocultos. Em
definições sumárias, perigo e risco não são a mesma coisa, embora estejam relacionados.
Situação de risco pressupõe, de modo consciente ou não, perigos. (Giddens, 1991: 42). A
questão da consciência ou não do risco aponta para o modo como o perigo é socialmente
conhecido, como ele é interpretado. Atualmente, é a própria ciência a provedora de
conhecimento sobre as ameaças advindas dos sistemas tecnológicos e científicos e a
maneira de lidar com eles. Vários desses perigos, como a radiação ou a contaminação de
alimentos por agrotóxicos, são invisíveis, ou mais, não são acessíveis pelos sentidos, mas
apenas através de métodos e instrumentos científicos cujos resultados devem ser
interpretados por peritos (‘experts’). O perigo, com o qual se lida através do cálculo de riscos,
é uma constante, enquanto o acidente é uma espécie de variável sempre presente, uma
probabilidade do cálculo do risco: alguns perigos, entretanto, só podem ser conhecidos fora
dos esquemas teóricos através da ocorrência de acidentes ou de efeitos colaterais, de uma
maneira consensualmente indesejável. Essa situação acarreta diversas conseqüências,
apontadas por Giddens e Beck. Por hora, basta apontar a ambivalência da ciência em
relação a esse ponto e a sobredependência das outras esferas à ciência.

Habermas, a partir de uma constatação de Marcuse (1982), havia apontado o


crescimento da importância da ciência e a técnica, que se tornaram as principais forças

20
“Natural disasters obviously still happen, but the socialisation of nature in the present day means that a diversity of
erstwhile natural systems are now products of human decision-making.”
23

produtivas e as principais instâncias de legitimação, deslocando as esferas da tradição e da


política, ao ponto de sua transformação em ideologia (Habermas, 1983). Quando aqui se fala
sobre efeitos não previstos, de novos perigos e riscos, portanto, se trata de zonas de não-
conhecimento dentro da própria ciência e da tecnologia. O aperfeiçoamento contínuo sobre a
base dos erros, enganos e acidentes, sobre o que não se conhece ou não se domina, que é
o que surge justamente como conseqüência da produção de conhecimentos, é básico no
método científico21 e no aperfeiçoamento tecnológico. A legitimação da ciência e da
tecnologia repousa diretamente sobre seu sucesso em controlar a natureza, mais do que na
racionalidade de seus métodos22. Como Beck aponta, há uma contradição inerente entre a
obrigatoriedade do sucesso e a incerteza e transitoriedade do conhecimento científico (Beck,
1992: cap. 7). No caso de um acidente tecnológico, o mesmo saber que o provocou terá de
ser mobilizado para explicá-lo aos leigos e para enfrentar suas conseqüências; o mesmo
acidente que o deslegitima, porque é uma expressão de seu fracasso, é a base renovada de
seu aperfeiçoamento e de sua re-legitimação, embora para o leigo possa passar mais a idéia
de um crescente descontrole. Para a tecnologia, estudar minuciosamente os erros e
acidentes, portanto, mais que uma questão de auto-aperfeiçoamento, é uma necessidade
política de renovar a sua legitimidade.

2) O acidente tecnológico explicita a questão da ecologia, ou mais especificamente,


os problemas ligados ao meio ambiente que acarreta, ou ainda, de modo mais geral, à
relação com a natureza. O acidente tecnológico quase sempre é um acidente ecológico. Para
Beck, o advento da risk society muda o entendimento que se tinha da natureza. As ameaças
agora não conhecem limitações de fronteiras entre nações nem posições de classe (pois
todos partilham do mesmo ar, água e alimentos contaminados e o fallout radioativo não
escolhe os telhados onde vai cair) e nem entre produtores e vítimas das ameaças. Em
segundo lugar, os seus efeitos podem se localizar no espaço muito longe de suas causas
(como a chuva ácida nas florestas escandinavas provocada pela fumaça de enxofre dos EUA
ou o buraco de ozônio na Antártida provocado pelo gás CFC de milhões de geladeiras pelo
mundo). Os efeitos podem prolongar-se no tempo, condenando gerações (como em
Tchernobyl, Goiânia ou no lixo tóxico despejado no oceano). Ameaças desse tipo afetam a
todas as formas de vida do planeta, unificando sociedade e natureza (nesse sentido, não há
mais uma ‘segunda natureza’). Para Beck (com a concordância de Giddens), não há mais

21
Para Bachelard, a ciência é construída sobre a base dos erros retificados, ao contrário da experiência comum. (Bachelard,
1996: 14)
22
A irracionalidade da ciência, assim como a necessidade de racionalizá-la extensamente é apontada por diversos autores,
como Horkheimer e Adorno, Lefebvre (1973), Habermas, e também por Giddens e Beck. O quanto a ciência é expressão da
Razão parece ser um dos grandes temas da modernidade. A maior ou menor racionalidade de alternativas tecnológicas são
sempre o ponto central dos seus conflitos internos.
24

uma natureza fora ou oposta à sociedade, ou sociedade fora da natureza, de existências


independentes: natureza e sociedade são agora um todo equivalente ao próprio planeta
(Beck, 1992: 80-4). Essa relação nova invade até mesmo os atos mais íntimos, como
amamentar uma criança, pois os agrotóxicos dos alimentos da mãe presentes no leite
materno derivam de decisões e regulamentos de fazendeiros que podem estar muito
distantes e mesmo em países diferentes, assim como espécies animais e vegetais
dependentes de acordos internacionais sobre emissão de poluentes ou cotas de produção (:
27).

3) O acidente tecnológico envolve uma organização social, compreendendo o Estado


(tendo o welfare state como modelo), seus monopólios e regulações, funcionários ou
especialistas, para lembrar os termos weberianos (ou ainda, tecnocratas ou
tecnoburocratas); grupos econômicos ou empresas; grupos de interesse como os
ecologistas; partidos políticos e seus programas; até qualquer cidadão que esteja informado
do acontecimento apenas pelos meios de comunicação. O Acidente tecnológico renova, cria,
redefine ou destrói compromissos e responsabilidades, abre (ou fecha) oportunidades,
fortalece ou enfraquece posições.

O papel do Estado nas emergências e na prevenção de acidentes deriva da própria


ampliação dos perigos da sociedade industrial e da concomitante extensão da função estatal
de prover a segurança e bem estar aos seus cidadãos. O Estado deve regulamentar e
fiscalizar as atividades perigosas, e, para tanto, cria e mantém um corpo próprio de peritos,
um tipo especial de funcionários especialistas, cuja relação com as outras esferas, como a
da produção, é complexa. Esquematicamente, dentro do paradigma da sociedade industrial,
esses especialistas deveriam facilitar a produção de riquezas. No paradigma da risk society,
devem limitar a produção de riscos. Não raro, dois corpos do mesmo Estado podem estar em
contradição de funções23. Entretanto, num momento de emergência de um acidente
tecnológico, a intervenção do Estado é monopolista, de tomar todas as tarefas de deter ou
minimizar as conseqüências, socorrer suas vítimas, apurar responsabilidades e aplicar
punições, se for o caso: deverá se valer de suas atribuições inscritas em leis e normas e do
seu corpo de funcionários. Isto é, o Estado deve valer-se de sua autoridade e de seu poder
em ser obedecido em suas determinações de controle do acidente (que são eminentemente
‘técnicas’ e ‘neutras’: portanto, politizáveis. Nunca deixam de ser ações de um governo, por
exemplo).

23
No Acidente de Goiânia, um único corpo do Estado, a Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN, teve apontada, entre
o público em geral, de maneira inédita a contradição entre suas funções de promover e fiscalizar as atividades nucleares.
Não foi um problema exclusivamente nacional: o modelo da CNEN aparentemente seguiu a da AEC (Atomic Energy
Comission), sua congênere nos Estados Unidos, que teve, porém, seus poderes divididos com a NRC (Nuclear Regulatory
Comission), que ficou com a atribuição da regulamentação do setor, em 1974.
25

Vários outros grupos, além dos ligados ao Estado como funcionários, se envolvem no
acidente tecnológico, como cientistas e técnicos, que auxiliam, criticam ou explicam ao
público leigo o que aconteceu, ecologistas e cidadãos preocupados e críticos, médicos e
outros peritos nas conseqüências à saúde, jornalistas e meios de comunicação, militantes de
partidos políticos, etc. Pelo seu caráter público, o acidente tecnológico tem como
conseqüência social o debate público sobre as versões, causas e efeitos presumíveis etc.
numa circulação, pela mídia, coletiva e desordenada de informações, boatos e debates, e
sentimentos como o medo e a angústia. Isto é, o acidente tecnológico tem por efeito uma
certa desorganização social localizada, uma crise onde o Estado e demais instituições
procurarão agir no sentido de recuperar a normalidade dessa organização e de, após todas
as investigações e críticas, aperfeiçoar essa normalidade visando a uma maior segurança e à
prevenção dos efeitos colaterais, para o qual o próprio acidente contribui como objeto de
pesquisa e oportunidade de conhecimento.

4) Em decorrência desses primeiros aspectos, acidentes tecnológicos afetam o


cotidiano e os indivíduos. Ao cotidiano porque os sistemas tecnológicos acidentados são
constituintes e determinantes da vida cotidiana, isto é, a maneira de habitar, de trabalhar,
comer, de organizar a família, das relações de gênero, de estabelecer o que se entende por
segurança e por saúde, e vários outros aspectos, são constituídos na mesma fonte que a
ameaça: a própria organização da sociedade industrial.

O acidente tecnológico torna explícito que o cotidiano, além das transformações


constantes advindas da modernização, pode, a qualquer momento, ser revolucionado pela
mesma base que proporciona a segurança e seu caráter de fonte de certeza. Esses dois
últimos aspectos advêm não só do funcionamento esperado dos artefatos mas também do
relacionamento com os sistemas peritos24 (Giddens, 1991: 35). Por exemplo, a notícia de um
acidente em uma fábrica de papel que contaminou a água de uma cidade pode ser lida no
papel dessa mesma fábrica, por um morador dessa cidade que pode ser até mesmo um
empregado da fábrica. Dependerá dos peritos para saber se pode voltar a beber água ou a
trabalhar. A autonomia individual no cotidiano, portanto, depende crescentemente de fatores
os quais o indivíduo leigo não compreende, não controla e nem lhe é dado decidir25, mas com
26
os quais deve se relacionar através da confiança (: 41) nos sistemas peritos. Por exemplo,

24
Expert System. "Sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes
material e social em que vivemos hoje" (Giddens, 1991:.35).
25
Processo que Beck (1992: cap. 2) chama de “miserabilização” (immiseration) decorrente da civilização, isto é, da
abundância, que implica numa degradação diferente da provocada pela pobreza na sociedade de classes.
26
Giddens define extensamente o que entende por confiança nos sistemas peritos. A base é a crença no conhecimento e
controle dos peritos sobre variáveis e conceitos aos quais o leigo não tem acesso. “A confiança pode ser definida como
crença na credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos, em que essa
26

a relação com a própria saúde é mediada pelo sistema perito médico, a segurança da escada
de casa garantida pelo conhecimento do engenheiro. Isso significa que a relação com riscos
invisíveis ou que não se podem conhecer profundamente deve ser mediada pela ‘fé’ no
conhecimento perito através de amplos contextos. A relação com os sistemas peritos se dá
através dos mecanismos de desencaixe das relações sociais, o saber perito não precisa
estar presente fisicamente ou mesmo ser consciente ao leigo para que continue agindo na
organização do ambiente e das condutas. Essa relação é normativa, isto é, o sistema perito
impõe aos indivíduos novas condutas, limites e condicionamentos, advindos dos
conhecimentos, da constituição do ambiente e organizações racionais (nesse sentido,
libertos das restrições tradicionais, como as religiosas), mas também pode ser conhecimento
reflexivamente apropriado pelos indivíduos.

5) Para Beck (e também Giddens, com outra formulação), os riscos invertem a


determinação: não é mais o passado que determina o presente, mas o futuro é que possui
agora a força de determinar o presente (Beck, 1992: 33-4) na forma de perigos projetados
para o futuro, na continuidade e extensão de processos como a derrubada de florestas. A
consciência de risco é uma projeção do futuro, e como tal, pode ou não se realizar. Da
mesma maneira, as projeções divergem uma da outra. Para ficarmos no mesmo exemplo,
estudos sobre a segurança de reatores nucleares asseguravam, através de métodos,
probabilísticos que acidentes eram muito improváveis, virtualmente impossíveis, e mesmo
que viessem a ocorrer, seus danos seriam relativamente pequenos (Myers III, [1977], cap.
7): o presente, como futuro desse passado, deu razão aos críticos da energia nuclear27. As
conseqüências de desastres como Tchernobyl parecem ser claras, pelo menos quanto ao
tamanho da área e da população atingida28, sem contarmos ‘inconvenientes’ econômicos.
Acidentes tecnológicos ligam os erros e estimativas do passado diretamente ao futuro
ameaçado, isto é, impõe uma quebra da simples continuidade do presente.

Um outro tipo de relação com o tempo é o fato de se tornar um acontecimento,


portanto se inscrever na história, mas uma história que se faz hoje para o futuro. Torna-se
um objeto de interpretações conflituosas, de disputas. Quem lançar sobre um acontecimento

crença expressa uma fé na probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico).
(...) Em condições de modernidade, a confiança existe no contexto de: (a) a consciência geral de que a atividade humana -
incluindo nesta expressão o impacto da tecnologia sobre o mundo material - é criada socialmente, e não dada pela
natureza das coisas ou por influência divina: (b) o escopo transformativo amplamente aumentado da ação humana, levado
a cabo pelo caráter dinâmico das instituições sociais modernas. (...)” (Giddens, 1991.: 41)
27
Um deles definiu as usinas como “um sistema projetado por gênios e dirigido por idiotas” (: 133). Como Beck comenta,
para os críticos nenhuma probabilidade é pequena o bastante se apenas um acidente significa aniquilação (1992: 30).
28
A área diretamente atingida pelo acidente de Tchernobyl é de 140.000 km2, equivalente a um Portugal e meio [ou ao Estado
do Ceará]. SUPERINTERESSANTE. O núcleo do futuro. Ed. Abril. Ano 11 n. 1 janeiro de 1997: 33. O número de
vítimas diverge entre as várias fontes, até atingir centenas de milhares.
27

a interpretação que se fixe como verdade terá o domínio desse acontecimento (na fórmula de
quem faz a história são os vencedores). Isso é agora tão óbvio (reflexivamente) que a
interpretação sobre o acidente tecnológico (e não só) como aquela que ficará na história já é
disputada por todos os agentes no presente, porque todos já sabem que o futuro se dará a
partir de hoje (dito de outra forma, o presente é só o passado do futuro). A estratégia de
garantir o espaço de poder no futuro orienta agentes como o Estado e os críticos de sua
ação, a ciência e os críticos da ciência, uma empresa e sua concorrente, e assim por diante.
Pode vender jornais, gerar livros, propagandas e contrapropagandas, filmes, documentários,
e papers, porque é uma disputa parcialmente resolvida no mercado (parece haver um
mercado para o conhecimento, mas não deixa de ser mercado). Deve-se trombetear hoje a
importância do evento, para resgatá-lo amanhã como acontecimento. Funciona quase como
um investimento bancário.

6) Para Beck, como os riscos são produzidos, eles são dependentes de decisões, e
nesse sentido politicamente reflexivos (1992: 183). No projeto da sociedade industrial, o
cidadão teria se dividido entre o citoyen, cuja ação se dá na defesa de seus direitos nas
arenas democráticas, e o bourgeois, defendendo seus interesses privados no trabalho e nos
negócios. Esse último campo, onde se desenvolveu a esfera técnica e econômica, era
considerada não-política, assim justificada enquanto seu principal aspecto foi a geração de
riquezas identificada ao progresso social. Beck afirma que a modernidade, seguindo essa
divisão, limitou a democracia parlamentar e seu sistema de legitimação, removendo das
regras tanto os negócios quanto a ciência, em nome da liberdade de mercado ou de
pesquisa29. Beck aponta várias conseqüências dessas afirmações, que deverão ser
posteriormente retomadas, mas talvez o ponto mais importante a fixar - no caso dos
acidentes tecnológicos - é o aspecto da politização do que era não-político em princípio, que
é a necessidade de estabelecer mecanismos de decisão democrática sobre alternativas em
negócios ou sobre alternativas pretensamente técnicas, ou pelo menos de que essas
alternativas começam a ter de adquirir uma nova dimensão política e ética.

7) Acidentes, como acontecimentos históricos produzidos pela mídia, são agora


espetáculos para as massas. Como Pierre Nora (1988) entende o acontecimento moderno,
este, além de ser construído pela mídia sob a forma de espetáculo (e dessa forma,
delimitando a maneira como se dá seu conhecimento, a maneira com a qual as massas
experimentam seu presente), aproximou-se do cotidiano, revolucionou esse cotidiano como
catástrofe, prendeu a atenção das massas inesperadamente, fez brotar a parte não-factual,

29
Para Habermas, a ciência e a técnica se tornaram também as principais fontes de legitimação, invadindo com a racionalidade
instrumental as outras esferas: a própria política passa a ser uma esfera em que as decisões tem de ser orientadas e/ou
avalizadas pela técnica (Habermas, 1983. op.cit).
28

expôs “fenômenos sociais surgidos das profundezas” que, sem ele, teriam ficado “enterrados
nas rugas do mental coletivo. O acontecimento testemunha menos pelo que traduz pelo que
revela, menos pelo que é do que pelo que provoca. Sua significação é absorvida na sua
ressonância; ele não é senão um eco, um espelho da sociedade, uma abertura” (:188). O
acidente, como um exemplar de acontecimento moderno, é um fenômeno de comunicação
de massas: amplifica e distorce suas causas e conseqüências, põe em relevo atores antes
anônimos, redefine papéis e conteúdos de autoridades, esclarece, confunde e difunde
conhecimentos e conceitos antes privativos dos sistemas peritos. O Acidente de Goiânia foi
tema diário da imprensa brasileira por quase três meses, quando se procuraram mostrar
todos os aspectos envolvidos numa grande confusão de textos, imagens, mensagens, numa
mistura de temas e significados contrastantes, mostrando, ocultando ou definindo o real. A
imprensa, nesse caso, é quem, ao veiculá-lo, procurar traduzi-lo aos leigos e explorar os
seus desdobramentos, produz o acidente tecnológico como algo que não só vai além do
próprios fatos, como o produz o acontecimento enquanto tal. Sem a sua transformação em
espetáculo, em evento de massas, a natureza do acidente é outra: é como se não tivesse
existido.

Acidentes tecnológicos, além dos pontos arrolados acima, trazem uma relação, de
certa maneira, inesperada entre a ciência e a tecnologia e as outras esferas, como
procuramos arrolar. Para Habermas (1970 [1968]: 52), no entanto, a ciência e a tecnologia
estariam virtualmente separadas do mundo da vida, pelo fato de o método científico e sua
linguagem serem impenetráveis aos leigos, os quais somente, mas de uma maneira muito
importante, se relacionariam com esse sistema através das aplicações práticas. Hannah
Arendt (1991 [1958]: 11) já apontava que a ciência não podia se expressar na linguagem
comum, bloqueando o discurso e a discussão, portanto, a política e a ação. Arendt
considerava que a era moderna começara politicamente com as primeiras explosões
atômicas (: 13), exemplificando com a ingênua expectativa dos cientistas que as criaram de
que seriam ouvidos antes de sua utilização pelos militares, a expressão de quanto a ciência
se afastara do mundo comum e da sua visão das coisas para um ponto arquimediano, fora
da Terra. Na modernização reflexiva, entretanto, devido aos riscos e ameaças tecnológicos,
os termos das linguagens da ciência invadem a linguagem comum e as iniciativas das outras
esferas (e ao mesmo tempo o social invade a ciência e a técnica), embora numa situação de
funcionamento esperado e normal, onde aparentemente a tecnologia e a ciência mantém sob
controle calculado seus riscos, a separação entre as duas linguagens ainda é predominante.
29

Um acidente tecnológico e a sua demonstração prática de perigos pode ser um


momento diferente, em que o breakdown da rotina traz a oportunidade de discussão e
circulação entre os agentes de sentidos e conhecimentos (Lash, em Beck et alii, 1994), que,
no transcorrer da normalidade são presumidos, como elementos já dados. Para Scott Lash
“É somente com o colapso [breakdown] dos sentidos compartilhados que seres humanos se
tornam ‘sujeitos’ de um outro. Aqui é quando os sistemas peritos e os discursos legitimantes
aparecem; isto é, para reparar o colapso a fim de que aquelas práticas e atividades
significativas compartilhadas possam recomeçar mais uma vez. Mas quando os sistemas
peritos e discursos intervém cronicamente, quando intervém ‘preventiva’ e penetrantemente,
então as práticas, sentidos compartilhados e comunidade se tornam marginalizados de modo
crescente, tornam-se progressivamente menos possíveis.”30 (: 151). O acidente como objeto
de prevenção, por existir sempre, e mesmo apenas como possibilidade, como virtualidade
probabilística do cálculo do risco, é um objeto constante dos sistemas peritos, o que nem
sempre é claro ao público leigo, mas de onde provém boa parte do caráter normativo da
tecnologia.

Prevenir acidentes se confunde com a utilização rotineira da tecnologia dentro de


parâmetros e limites que os sistemas peritos calcularam e planejaram como seguros, isto é,
pela maneira considerada correta de utilização. Os sistemas peritos são os formuladores
dessas ‘maneiras corretas’, certas e nesse sentido, verdadeiras de agir31. Postulam a
maneira correta de se alimentar, de manter a saúde, de dirigir automóveis, de utilizar tanto
máquinas industriais quanto eletrodomésticos. Comportamentos incorretos, erros e portanto
acidentes se dão em relação a esses elementos normativos e aos próprios sistemas que os
mantêm: são momentos de elaboração e reelaboração dos sentidos e papéis presumidos e
dos riscos assumidos. Num breakdown ou num acidente, no entanto, a discussão sempre
pode ser problemática, os sentidos que seriam evidentes podem ser ocultados, erros e
omissões encobertos, a linguagem hermética dos peritos pode afastar a discussão dos
leigos, a intervenção do Estado e de seus especialistas monopolizar as ações. Um acidente
tecnológico é, em primeira instância, um acontecimento enigmático, porque a própria
tecnologia é um enigma.

30
“it is only with the breakdown of shared meanings that human beings become ‘subjects’ from one another. This is where
the expert-systems, this is where the legitimating discourses, come in; that is, to repair the breakdown so that practices and
shared meaningful activities can resume once again. But when the expert-systems and discourses chronically intervene,
when they intervene ‘preventively’ and pervasively, then the practices, shared meanings and community become
increasingly marginalized, made progressively less possible.”
31
Idéia que também está em Foucault, de agências produtoras de verdades.
30

Uma das visões que, entre outras, no ponto a seguir, é semelhante e antecipa a
32
crítica da tecnologia como a de Beck é a de Paul Virilio . Para ele, o enigma da natureza
(revelado pela ciência) está sendo substituído pelo enigma da tecnologia. Segundo Virilio, a
ciência, os cientistas e técnicos, a linguagem da ciência e da técnica, ocultam o real ao
postular serem os únicos verdadeiros e autorizados a tratar da natureza. Para Virilio, “O
enigma da tecnologia é também o enigma do acidente. Explico. Na Filosofia Clássica
aristotélica, a substância é necessária e o acidente é relativo e contingente. No momento,
ocorre uma inversão: o acidente está se tornando necessário e a substância, relativa e
contingente. Cada tecnologia produz, provoca, programa um acidente específico. Por
exemplo: quando inventaram a estrada de ferro, o que foi que inventaram? Um objeto que
permitia que você fosse mais depressa, que lhe permitia progredir uma visão a la Júlio Verne,
positivismo, evolucionismo. Ao mesmo tempo, porém, inventaram a catástrofe ferroviária. A
invenção do barco a vapor foi a invenção dos naufrágios. A invenção da máquina a vapor e
da locomotiva foi a invenção dos descarrilamentos. A invenção da auto-estrada foi a
invenção de trezentos carros colidindo em cinco minutos. A invenção do avião foi a invenção
do desastre aéreo. Creio que, de agora em diante, se quisermos continuar com a tecnologia
(e não penso que haverá uma regressão neolítica) precisamos pensar instantaneamente
(grifo no original) a substância e o acidente - sendo a substância tanto o objeto como seu
acidente. O lado negativo da tecnologia e da velocidade foi censurado. Os técnicos, ao
tornarem-se tecnocratas, tenderam a positivar o objeto e dizer: ‘Estou escondendo; não estou
mostrando’. Há muito a ser dito sobre a ‘obscenidade’ da tecnologia (...)” (Virilio & Lotringer,
1984: 39-40). Virilio sugere com essas afirmações uma chave para o enigma da tecnologia,
que é pensar o seu acidente não como um fato isolado, mas como virtualidade negativa e
censurada, criada a partir da própria concepção da técnica e inseparável dessa. O acidente
também é uma realização possível da tecnologia, o avião tanto é sua viagem como é seu
desastre. O autor chegou a propor, como provocação, um ‘museu do acidente’, onde cada
tecnologia escolheria seu acidente específico a ser questionado como um seu produto. O
acidente é algo que propõe a decifração do enigma dos objetos técnicos, “seu acidente é a
consciência que temos dele. Se não estamos conscientes do acidente, não estamos
conscientes do objeto: donde a crise tecnológica” (:117).

Acidentes tecnológicos não são acidentes da tecnologia, como meras conseqüências


fortuitas; são acidentes inventados, produzidos pela tecnologia de maneira não prevista e/ou

32
Virílio, urbanista e filósofo, entretanto faz um caminho bastante diferente de Beck, que parece mais influenciado por
Mannheim, e, principalmente, por Habermas e a Escola de Frankfurt. Virílio faz um desenvolvimento de temas como a
ecologia e a técnica a partir do que ele vê como subordinação da sociedade às necessidades de uma preparação permanente
para a guerra, não baseada na tomada de posições e territórios, mas na dissuasão, na velocidade dos meios, que
revolucionam conceitos como tempo e espaço.
31

não desejada. Isto não deve ser entendido como uma sutileza, mas uma mudança de
abordagem. Alain Touraine nota que Beck “reverteu a visão tradicional que fazia do indivíduo
33
o lugar do imprevisível , enquanto o sistema econômico parecia conduzido pela razão e pelo
progresso.” (Touraine, 1995: 278) Atualmente não seria o contrário, Touraine pergunta, para
isso utilizando a observação de Giddens que o aumento de conhecimento das ciências
exatas não significou um controle real maior nem racionalidade. Isso significa buscar a fonte
do contingente, acidental, nesse aparente paradoxo: na ciência e na tecnologia que quanto
mais obtém conhecimento, mais persegue e consegue controlar variáveis, por outro lado
mais produz como efeito o contingente.

33
Como em Arendt (op.cit), onde, no entanto, a imprevisibilidade do ser humano é uma característica positiva, por expressar a
possibilidade de liberdade.
32

Capítulo 2 - Modernização brasileira:


subdesenvolvimento e reflexividade
A teoria da modernização reflexiva refere-se explicitamente ao caso dos países
industrializados, embora diversos aspectos, principalmente ligados à questão da distribuição
desigual de riscos, sejam globalizados. Isso acarreta uma questão da maior relevância: como
o acidente ocorreu no Brasil, país subdesenvolvido, portanto de ‘modernidade atrasada’, e
ainda numa cidade importante, mas afastada das grandes metrópoles do sudeste, o Acidente
de Goiânia seria menos a expressão de um risco da modernidade, e mais uma prova de que
a modernidade, ela própria, ainda não estaria presente ou em vigência plena no Brasil. Isto é,
o Acidente de Goiânia seria uma espécie de comprovação do atraso (e este foi um dos
sentidos mais atribuídos ao evento), atraso que foi apontado também como uma causa do
Acidente, que teria ficado explícito na forma tecnicamente precária em que o acidente foi
contornado (atraso tecnológico), na atuação mesquinha das autoridades (atraso político), nas
explosões irracionais e/ou de pânico que se multiplicaram pelo país (atraso cultural), na
incapacidade institucional de averiguação de responsabilidades (atraso ‘social’) etc..

As racionalizações imediatas sobre o acidente (como as de física nuclear, política ou


sociologia prêt-a-porter) devem elas próprias ser problematizadas - no menos, porque
parecem ter tido influência sobre os próprios desdobramentos; no mais, porque são
reveladoras dos sentidos atribuídos e do contexto em que se produziram34. O contexto
brasileiro à época, num rápido delineamento, era o do desacreditado governo Sarney pós-
Plano Cruzado, da Assembléia Constituinte presidida por Ulisses Guimarães, do PMDB
‘maior partido do Ocidente’, foi a época da ‘reserva de mercado para a informática’, havia
pouco acontecera o acidente de Tchernobyl e a explosão da Challenger (que, embora não
sejam acontecimentos ‘brasileiros’, como poucos expressam o sentido da época), e cerca de
um mês antes da descoberta do Acidente, Sarney convocara uma rede nacional de televisão
para anunciar o domínio do ‘ciclo completo’ do urânio, façanha tecnológica de meia dúzia de
nações, através do Programa Nuclear Paralelo (eufemismo para programa nuclear secreto e
35
militar). Isto é, o contexto era de crise econômica , redemocratização e modernização
tecnológica.

De um ponto de vista mais analítico, poder-se-ia propor entender o Brasil através da


imagem de múltiplas sociedades coexistindo. Se tomarmos o caso dos países desenvolvidos

34
Para Certeau (1982), a História investiga as condições que a produziram e os seus produtores.
35
A crise econômica e sua profundidade na década de 80 pode ser expressa pela idéia da “década perdida”, expressão com a
qual se costuma designar aquele período.
33

como paradigmático, isto é, onde o projeto da modernidade pode ser entendido como ‘mais
acabado’, e onde o debate está mais centrado na suposta transição da modernidade para
uma pós-modernidade, e onde mesmo assim persistem, como “tradições
destradicionalizadas” (Giddens, em Beck et alii. 1994) o que seriam resquícios pré-modernos,
o caso brasileiro, parece, num primeiro olhar, também partilhar de elementos pré-modernos,
modernos e ‘pós-modernos’ ao mesmo tempo, mas em proporções completamente
diferentes. Mesmo esses elementos permitiriam diferentes leituras. O ferro-velho, locus do
acidente em Goiânia, seria pré-moderno na forma de existência do dono e dos empregados,
marginais do modo de produção industrial, ou pós-moderno, já que o que existe num ferro-
velho, sem metáforas, são restos de artefatos da modernidade dissolvidos, obsoletos,
descontruídos, exemplares de uma transição em curso?

Seja qual for a proporção entre os elementos pré-modernos e da alta ou baixa


modernidade, talvez o mais importante seja apontar a sua coexistência numa intermistura
ambivalente e contraditória. A problemática da situação advém da ‘compressão’ e
‘embaralhamento’ das características das diversas fases da modernização no Brasil. Nos
termos de Beck, convivem ao mesmo tempo: elementos de uma sociedade de escassez e a
urgência das tarefas da distribuição de riquezas igualizadora, e portanto, a necessidade de
constituição de um welfare state democrático, sobrepostos com a necessidade de ultrapassar
esses elementos pela existência paralela e interligada da risk society e da distribuição
desigual de riscos. Segundo Beck, o lema da primeira seria “I am hungry” (tenho fome); na
risk society, “I am afraid” (tenho medo). Nos países do Terceiro Mundo, onde a extrema
pobreza atrairia os riscos extremos36 pela sua exportação pelo Primeiro Mundo, esses riscos
já seriam obstáculos à produção de riquezas. A ‘necessidade’ histórica seria a viabilização de
um processo de ‘harmonizar’ as exigências contraditórias da distribuição de riquezas e de
riscos. A conseqüência empírica poderia ser a vinculação dos agentes a diferentes aspectos
desse processo: por exemplo, os grupos ecologistas vinculam-se mais às questões da risk
society, apontando os efeitos colaterais do desenvolvimento industrial predatório e entrando
em conflito com os grupos legitimamente interessados no desenvolvimento como fator de
geração e distribuição de riquezas, mais vinculados ao modelo da sociedade industrial da
modernização simples. Como não há (ou não havia) mecanismos democráticos estabilizados
para obtenção de compromissos nem para regulação do desenvolvimento, através de
políticas governamentais compensatórias efetivas, por exemplo, e nem o poder do aparelho
técnico científico nacional de prover alternativas, a situação desse ponto de vista pode
redundar em alguns cenários hipotéticos:

36
Os exemplos de Beck sobre a mútua atração entre miséria e risco são Bophal, na Índia, e a explosão da favela de Vila Socó,
em Cubatão, a mais poluída cidade do planeta. (Beck, 1992. Op.cit.: 42-4)
34

1) O modelo do ‘arquipélago’, no sentido do Brasil ser um conjunto de ‘ilhas’ de


modernização desigual. O modelo pressuporia uma certa ordem espacial, no sentido
geográfico de regionalização, onde as regiões urbanizadas e industrializadas ao mesmo
tempo que se desenvolvem em direção a uma sociedade industrial pós-escassez,
constrangem o desenvolvimento das demais, com o apelo adicional da manutenção da
natureza como ‘reservas permanentes’ (Tester, 1993). Ou seja, uma derivação da idéia da
‘Belíndia’ com as exigências da risk society, uma reprodução em escala nacional da
distribuição desigual de riscos global.

2) Como decorrência, a fixação estratificada dos agentes em seu respectivo grau de


modernização. O movimento ecológico, a cultura cosmopolita, o consumo, o dinamismo
econômico, o processo de individualização destradicionalizada e reflexiva etc. como esfera
separada dos que vivem em escassez, isto é, não a dissolução das classes mas uma forma
diferente e rígida de separação de mundos da afluência e da pobreza. Algo como uma
propalada separação entre o morro e o asfalto na cidade do Rio de Janeiro ou entre periferia
e Jardins na cidade de São Paulo: implica a necessidade de um Estado policial e não do
welfare state.

3) Alternativamente, um estado anômico de bloqueio do dinamismo da modernização.


Ou seja, a anulação do dinamismo modernizador porque o desenvolvimento econômico,
principalmente, mas também o técnico científico e outros, mantém laços paralisantes com o
peso das instituições arcaicas (como o sistema político clientelista) e não tem a massa crítica
para uma radicalização modernizante. Ou seja, um ‘empate’ entre o presente, o passado e o
futuro.

Todos esses cenários parecem razoáveis, ao menos teoricamente, e até mesmo


poderiam ser defendidos empiricamente. Entretanto, ainda não se atingiu o cerne do
problema teórico.

Para Beck, a mudança da sociedade industrial para a risk society é devida ao seu
sucesso, que dissolve as suas próprias bases (‘self-dissolution’) em decorrência de seus
efeitos não-previstos, não-intencionais e não-conhecidos (‘self-endangerment’). É necessário
enfatizar que Beck diferencia reflexão de reflexividade e propõe uma dialética entre
conhecimento e não conhecimento, entre intencional e não intencional: “A premissa clássica
da teoria da modernidade refletida pode ser simplificada sob as teses inicialmente
declaradas: o quanto mais as sociedades são modernizadas, mais agentes (sujeitos)
adquirem a habilidade para refletir sobre as condições sociais de suas próprias existências e
deste modo mudá-las. Em contraste com esta, a tese fundamental da teoria da modernidade
reflexiva, cruamente simplificada, se desenrola como: mais longe a modernização das
35

sociedades modernas avança, mais as fundações da sociedade industrial são dissolvidas,


consumidas, mudadas e ameaçadas. O contraste repousa no fato que isso pode muito bem
37
ter lugar sem reflexão, para além do conhecimento e consciência.” (Beck et alii: 176).

Tomando essas assertivas teóricas de Beck principalmente como insights, pode-se


tentar formular uma hipótese central para a pesquisa sobre o Acidente de Goiânia, partindo
de algumas premissas semi-axiomáticas:

1 - O contexto brasileiro está relacionado com as condições que possibilitaram o


Acidente, embora nem o explique nem o justifique automaticamente: este e qualquer outro
acidente advém de uma seqüência imprevisível de atos humanos, erros e acertos. Os
artefatos tecnológicos possuem um perigo inerente que corresponde a um risco (sempre
parcialmente conhecido) na sua utilização. Esses artefatos são basicamente os mesmos em
qualquer lugar do mundo, pelo fato de derivarem de premissas técnico-científicas
globalmente aceitas, e historicamente, devido à expansão da civilização ocidental e
capitalista38. O contexto brasileiro é portanto o da participação do país nessa civilização, e o
da forma de apropriação e utilização específicas pela organização social do país desses
artefatos e sistemas, no contexto das limitações do país. Isto é, não se quer saber
exatamente em que estágio o Brasil estaria da modernização - ela própria, um fenômeno
global - , mas qual a forma de participação do Brasil nesse estágio, aqui assumido como o da
modernização reflexiva.

2 - Os conceitos de Giddens e Beck, originalmente pensados para o contexto dos


países industrializados, podem ser utilizados na descrição empírica do Acidente, isto é, na
reconstrução histórica. Sistemas peritos, confiança, perigo, risco, distribuição de riscos,
efeitos não-previstos, sociedade industrial ou de pós-escassez, destradicionalização e todos
os outros conceitos podem ser, além do mais, indicadores da forma de participação na
modernidade reflexiva, como proposto acima, se apropriados criticamente.

3 - Outras abordagens do Acidente são possíveis e desejáveis. A escolha da


modernização reflexiva se deve bastante ao fato de, dentre várias qualidades e pontos que
ela indica ser necessário aprofundar, possibilitar uma experiência empírica com uma teoria

37
“The classical premise of the reflection theory of modernity can be simplified down the initially stated thesis: the more
societies are modernized, the more agents (subjects) acquire the ability to reflect on the social conditions of their existence
and to change them in that way. In contrast to that, the fundamental thesis of the reflexivity theory of modernity, crudely
simplified, runs like this: the further the modernization of modern societies proceeds, the more the foundations of industrial
society are dissolved, consumed, changed and threatened. The contrast lies in the fact that this can quite well take place
without reflection, beyond knowledge and consciousness”
38
Robert Kurz (1992: 228) chama essa civilização de um “comunismo das coisas”, oculto pela fetichização total do trabalho e
pela globalização das condições da reprodução humana.
36

que parece permitir uma análise sociológica abrangente de um objeto complexo, como
procurou se demonstrar com a idéia de acidente tecnológico.

A hipótese central desta dissertação é, após essas considerações, que o que


‘provocou’ o Acidente de Goiânia como acontecimento não foi o atraso, mas pelo contrário,
foi o desenvolvimento moderno, o que há de especificamente moderno no contexto brasileiro,
ao contrário do que se poderia pensar. No Brasil, a modernização reflexiva poderia estar
dissolvendo a base da modernização clássica ao mesmo tempo em que esta ainda se
implanta: a modernização pode não estar paralisada, mas ao contrário, acelerada pela
excessiva voracidade modernizadora, que embaralha as etapas da modernização tal como
os cenários se embaralham da janela de um carro veloz. As próprias categorias da
modernização não se implantariam a ponto de tornarem-se mitos ou tradições modernas, isto
é, a ponto de orientarem todos os agentes como categorias dadas do social, mas elas
próprias seriam apenas referências que reflexivamente se poderia ultrapassar ou
instrumentalizar. O acidente tecnológico em Goiânia foi uma descontinuidade, um breakdown
em que o processo de modernização não foi detido pelo desastre, mas acelerado pelo
questionamento dos fundamentos e pressupostos (nosso atraso e nossas tarefas) intrínsecos
à própria modernização. Tudo isso se deu na forma de espetáculo para as massas, onde,
portanto, não se garante objetividade nem ganhos objetivos, nem certezas ou verdades.

A hipótese parte, portanto, da tentativa de pensar o contexto do país como um


processo de formação de uma sociedade que se espelha no modelo das sociedades
industriais, um modelo que é essencialmente globalizado; propõe-se as tarefas desse modelo
(como ultrapassar a crise econômica, democratizar-se e tornar-se uma potência tecnológica
e nuclear); e enfrenta, ao mesmo tempo, os novos problemas dessas tarefas (como
acidentes tecnológicos) assim como os velhos (relações e instituições pré-modernas). Esse
processo não é inteiramente consciente nem conhecido de seus próprios sujeitos, pois as
diferentes concepções e maneiras pelas quais essa transformação se dá tanto quanto a
forma de solucionar os problemas herdados do passado do mesmo modo que os novos, são,
elas próprias objeto de conflitos permanentes e acirrados de visões parciais, que
transbordam do interior de vários eventos, como este Acidente, e mesmo como
ressonâncias, como ecos ou fragmentos de movimentos misteriosos que, ‘acidentalmente’,
se deixam vislumbrar.
37

Capítulo 3 - Metodologia: catástrofe e espetáculo

Definição teórica de acontecimento


O historiador Pierre Nora (1988), ao teorizar sobre os historiadores e a produção do
acontecimento na história contemporânea, destaca o papel dos mass media. O
acontecimento surge da percepção das massas de um sentido “histórico” de seu presente, e
de sua participação, de alguma maneira, nesse plano, que é, por sua vez, constituído por
acontecimentos. Surge da separação do presente do passado, este último, formulado pelos
historiadores positivistas, um encadeamento contínuo de ‘acontecimentos’: “A partir da
condição de que o presente, dominado pela tirania do acontecimento, foi proibido de residir
na história, ficou entendido que a história seria construída sobre o acontecimento” (Nora.
:180).

Para Nora, os mass media detêm agora o monopólio da história (não mais o próprio
historiador), e, por seu intermédio, “o acontecimento marca sua presença e não pode nos
evitar”(:180). Produzem o acontecimento, embora o que mostrem não seja equivalente ao
real, determinando que não basta terem acontecido para serem históricos, é necessário que
sejam conhecidos, participam deles como condições, e obrigam à participação das massas
no acontecimento. Nos dois sentidos do termo, o acontecimento é projetado, lançado na vida
privada e oferecido sob a forma de espetáculo. (...) dessa forma, fizeram da história uma
agressão e tornaram o acontecimento monstruoso. Não porque sai, por definição, do
ordinário, mas porque a redundância intrínseca ao sistema tende a produzir o sensacional,
fabrica permanentemente o novo, alimenta uma fome de acontecimentos. Não que os crie
artificialmente (...) A própria informação segrega seus anticorpos, e a imprensa escrita ou
falada, no seu conjunto, teria como efeito, antes de tudo, limitar o desencadeamento de uma
opinião selvagem. (:183).

O acontecimento, para Nora, passa por diversas metamorfoses. Aproximou-se do fato


cotidiano, pois “(...) sobre qualquer acontecimento no sentido moderno do termo, o
imaginário de massa quer poder enxertar qualquer coisa do fato cotidiano: seu drama, sua
magia, seu mistério, sua estranheza, sua poesia, sua tragicomicidade, seu poder de
compensação e de identificação, o sentimento da fatalidade que o acompanha, seu luxo e
sua gratuidade.” O acontecimento também é “o maravilhoso das sociedades democráticas”,
que extrai o fantástico não mais do sobrenatural, mas da própria sociedade industrial, de
forma que se obtém “um efeito de sobremultiplicação quando as performances da sociedade
tecnocrática parecem precisamente imitar os temas do fantástico tradicional. Foi o caso, por
38

exemplo, da primeira alunissagem americana (...) o desembarque na Lua foi o modelo do


acontecimento moderno.” (:184-5)

O Acidente de Goiânia não foi algo circunscrito a poucas pessoas, seus participantes
e vítimas diretos, mas se tornou um evento socializado através da notícia. Como tal, foi
documentado, mostrado, foi trabalhado de maneira a satisfazer curiosidades, levantou
questões e dúvidas, ganhou e produziu repercussões, obrigou seus participantes a ações e
discursos. É nos media que o Acidente é experimentado como o desenrolar do presente,
como um tempo estranho na esperada continuidade entre o passado e futuro, pois um
acidente tecnológico aponta para o futuro como uma alternativa indesejada, gestada antes e
agora. Voltado ao indivíduo como telespectador, leitor ou ouvinte, a mídia quer a sua atenção
e a obterá pelo trabalho com manchetes, locuções dramáticas, imagens, as palavras
profissionalmente escolhidas: a mídia é um sistema perito tão envolvido no Acidente como os
demais técnicos. Subjaz de seu objetivo econômico imediato de ‘vender’ a atenção
conquistada o objetivo de armar e produzir o cenário público do Acidente e por meio disso
controlá-lo, dominar pela palavra a natureza do acontecimento traduzido em notícia. O
sistema perito da mídia quer controlar seu objeto-notícia assim como o sistema perito nuclear
quer controlar as reações nucleares.

O objeto-notícia, nesse sentido, é tão artificial e concreto quanto uma bomba de


radioterapia, mas o objeto-notícia é também o Acidente ampliado da participação e
identificação (ou estranhamento) com as diferentes interpretações dos personagens. É esse
campo ampliado do acidente que constitui o acontecimento, no caso em particular.

A conseqüência é que, se a imprensa cria, produz o acontecimento, ela também o


limita, o focaliza, introduz seus termos e atores principais, suas imprecisões e suas próprias
(da imprensa) dúvidas, enfim, acaba por participar no e a definir o acontecimento, faz circular
uma e não outra versão, prevalecer um viés contra outros, sustentará uma posição contra
outras tantas. A participação da imprensa é autofágica, até certo ponto, sobrevive da
repercussão que ela própria conseguir criar, de impulsos que ela poderá amplificar ou
amortecer. Persistirão, no entanto, pontos obscuros, zonas cinzentas, dúvidas, a
apresentação será descontínua, com buracos, gaps, hiatos ou como se quer que chame,
tantos pontos iluminados quantos pontos escondidos. Não importa a extensão da cobertura:
não há como a imprensa mostrar tudo, mas apenas mostrar o que ela vê, ou o que ela quiser
ver e mostrar. Há também uma, ou várias, ‘ideologias’, isto é, concepções de funcionamento
do mundo, estruturando a narração, o discurso, a notícia, as próprias dúvidas. Interpretar um
acidente como acontecimento histórico seria também decifrar as condições de sua produção,
os atos que o produziram (Certeau, 1982), no momento em que são questionadas pelos
39

próprios produtores, em que ideologias e esquemas são confrontados com resultados, onde
o fato cotidiano se transforma em um acontecimento.

Numa condição de segredo, o acontecimento simplesmente não existe. Passa para


um outro campo, seu alcance é outro, sua inserção na história diferente. Podemos dar
exemplos rápidos, no campo dos acidentes tecnológicos, mais precisamente, dos acidentes
nucleares em usinas ou relacionados. Um campo secreto de testes nucleares na Sibéria
abrigava uma cidade inteira que não constava dos mapas, Cheliabinski, que é hoje um
território que sofre com a contaminação resultante. Esse fato foi apagado, melhor, nem
chegou a ser escrito simultaneamente com o acontecimento: sua comprovação hoje fica a
cargo de suas conseqüências39. Ficou guardado como segredo, como não-acontecido. Mas
não somente os sistemas totalitários conseguem a proeza da censura. Um grave acidente na
usina nuclear de Windscale, na Inglaterra, em 1957, provocou dezenas de mortes, mas
igualmente foi um acidente cuja gravidade foi mantida em segredo por diversos anos. A usina
de Sellafield, como se chama hoje, conforme descreve uma interessante notícia, até virou
uma atração turística40, por força de uma agressiva campanha de marketing. É difícil
acreditar que se perdeu uma bomba de césio? O que dizer de perder mísseis com ogivas
nucleares, como aconteceu em segredo, em 1961, no governo Kennedy41? O contraste com
a maciça divulgação e com as conseqüências dos acidentes de Three Mile Island (1979) e
deTchernobyl (1986) é evidente; estes últimos foram acompanhados em tempo real, numa
simultaneidade que transfigura os seus significados, seu alcance e seus efeitos práticos, e
revoluciona as práticas e sensibilidades de governantes e governados, possuem uma outra
inserção na história, como formula Pierre Nora, são acontecimentos que entram para a
história (literalmente) como catástrofe e como espetáculo, como efeito e criação da mídia
para as massas.

Citando Nora, “o próprio do acontecimento moderno encontra-se no seu


desenvolvimento numa cena imediatamente pública, em não estar jamais sem repórter-
espectador nem espectador-repórter, em ser visto se fazendo, e esse ‘voyerismo’ dá à

39
“Morcegos Atômicos - Cientistas espantados com o alto índice de radiação das crianças do campo na Sibéria descobriram
que a fonte vinha dos morcegos trazidos de um lago contaminado. A radiação no campo em Chelyabinsk alcançou mil
micro roentgen por hora, ou 40 vezes o nível que pode causar uma sensível queda nas células brancas do sangue, segundo
o jornal local Rvening Chelyabinsk. Os morcegos, depois de se alimentarem no lago Karachai, espalhavam sua radiação
nos prédios do campo. Karachai foi contaminado por uma fábrica química e nuclear local.” FOLHA DE S. PAULO,
26/07/93
40
“Tchernobil inglesa vira Disneylândia atômica - (...) A usina inglesa de Sellafield foi palco de dois acidentes nucleares no
passado, mas hoje, ainda em pleno funcionamento, é a atração turística que mais cresce no país (...)” FOLHA DE S.
PAULO, 09/08/92. A notícia cita o acidente de Sellafield como o primeiro acidente nuclear grave, juntamente com o de
Kichtim, na Rússia, este de gravíssimas conseqüências, no mesmo ano de 1957.
41
FOLHA DE S. PAULO, 26/03/94. Um avião militar sofreu um acidente no mar, em segredo. As bombas que carregava não
foram recuperadas.
40

atualidade tanto sua especificidade em relação à História quanto seu perfume já histórico.
Daí essa impressão de jogo mais verdadeiro que a realidade, de divertimento dramático, de
festa, que a sociedade dá a si própria através do grande acontecimento. Todo mundo e
ninguém toma parte, pois todos formam a massa à qual ninguém pertence. Esse
acontecimento sem historiador é feito da participação afetiva das massas, o só e único meio
que elas têm de participar na vida pública: participação exigente e alienada, voraz e
frustrada, múltipla e distante, impotente e portanto soberana, autônoma e teleguiada como
essa impalpável realidade da vida contemporânea que se chama opinião.” (: 185-6)

A pesquisa: imprensa e perícia


As principais fontes primárias que constituem a pesquisa são as notícias escritas
sobre o Acidente, que resultaram em cerca de 400 artigos de jornais e revistas que cobriram
de outubro a novembro de 1987, diariamente, e o período posterior, mais espaçadamente.
Os veículos mais utilizados são os principais jornais em termos de vendagem e de
importância, caso do Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, da Folha de S. Paulo, do
Globo e do Jornal do Brasil, e das revistas semanais Veja e IstoÉ. A escolha da imprensa
escrita como fonte da pesquisa não desconhece o peso dos veículos de comunicação de
massa como o rádio e principalmente a televisão, que devem ter sido mais utilizados pela
população. Apenas a audiência do principal jornal da Rede Globo, o Jornal Nacional, atingia
e atinge a cada dia muito mais pessoas que a tiragem de toda a imprensa escrita somada.
Entretanto, a natureza volátil dos telejornais exigiria uma abordagem empírica diferente: para
o objetivo de uma reconstituição factual, a imprensa escrita tem a vantagem decisiva da
perenidade, da extensão da cobertura e da profundidade dos debates.

A escolha da imprensa escrita como fonte privilegiada se deve principalmente ao seu


papel na produção do acontecimento, como se procurou justificar teoricamente, isto é, ela
não é somente uma fonte, mas também um personagem de primeira grandeza.

Há, na imprensa, porém, limitações ligadas, por um lado, a falta de uniformidade e à


imprecisão das informações, quanto a datas, locais, números, quantidades, unidades de
medida ou quanto a fatos, nomes, processos, etc., que ocorreu durante toda a cobertura do
acontecimento, e caracterizou o papel da imprensa, e marcou o Acidente de Goiânia, como
um acontecimento, no mínimo, obscuro. Essa imprecisão parece vir, em primeiro lugar, da
qualidade do trabalho jornalístico diário, isto é, da capacidade dos jornalistas em transformar
em texto as informações que obtêm. O processo necessariamente apressado nem sempre é
bem sucedido. Há também limites dados pelo processo de produção das notícias, que são o
citado limite de tempo, do horário do ‘fechamento’, o do espaço disponível para tal, a
competição com os demais assuntos da pauta, e a experiência dos jornalistas, sua formação
41

e a capacidade de traduzir informações técnicas, e, principalmente, seus interesses, o que


se poderia chamar de ‘viés ideológico’.

Por esse outro lado, a imprensa trabalha o que considera os interesses, problemas e
assuntos principais, e com um determinado ‘tom’ que acha adequado à gravidade do
assunto. Há também o modo como o fato desencadeia outros, como surgem as relações,
parte delas produzidas, fabricadas através da imprensa pela repercussão, isto é, a técnica
jornalística de colher opiniões sobre fatos anteriormente noticiados; e parte através das
conseqüências do fato. Surgem então focos onde estariam as informações a serem colhidas,
os depoimentos e repercussões, as dúvidas a serem esclarecidas. A dúvida de hoje é a
notícia de amanhã. Quando as dúvidas não despertam tanto interesse, a notícia some, a
pauta esfria, e se abre o campo do esquecimento42.

O noticiário da grande imprensa escrita parece ter sido até burocrático, em relação à
gravidade dos fatos e ao impacto que teve na população e até aos seus próprios títulos,
chamativos e ameaçadores; já que grande parte dele se resumiu a descrever depoimentos
de alguma autoridade, que são endereçados a outras autoridades, num debate cifrado, ou ao
‘público’ em geral, esse ente abstrato. Ou ainda, relacionou-se ao conteúdo dessa
‘autoridade’, quer dizer, à imagem de si mesmo e ao seu próprio papel. Quando o
governador de Goiás ou o presidente da CNEN explicam detalhadamente o que puderam
fazer, o que deveriam, o que se esperava que tivessem feito, respondem a expectativas da
população através da imprensa, formulam intensivamente o que é esse papel, acentuam ou
atenuam contradições e rivalidades, num contexto inédito, o resultado é uma atualização
desse conteúdo da autoridade. Esta atualização do conteúdo da autoridade visa uma re-
legitimação, no caso, tanto política quanto técnica, e que pode ou não ser bem sucedida.

A imprensa é uma instância decisiva; quem conseguir comunicar à interpretação


pública mais fatores favoráveis na competição de autoridades e responsabilidades, por sua
vez, também em parte definidos pela imprensa, conseguirá simultaneamente fixar a versão
hegemônica do acontecimento.

O espectador não tem uma participação passiva, como poderia se entender: é a ele
que se dirige todo o trabalho de organizar e apresentar fatos e imagens, se objetiva não
somente informá-lo ou esclarecê-lo, busca-se de modo implícito provocar reações, emocioná-
lo ou indigná-lo, procura-se convencê-lo ou tranquilizá-lo (o sucesso nessa tarefa é
parcialmente avaliado de imediato pelas oscilações de venda ou de audiência). O espectador

42
Apenas quatro meses após a descoberta do acidente, a rotina de Goiânia havia voltado ao normal, e as vítimas do acidente
haviam sido praticamente esquecidas, sofrendo de falta de medicamentos, atrasos de indenizações, e de incerteza perante
sequelas futuras. A cidade procurava esquecer o acontecimento, tendo este virado uma espécie de assunto tabu (sempre
segundo notícias na imprensa). O GLOBO, 31/01/88; JORNAL DA TARDE, 28/04/87.
42

ou leitor participa do acontecimento, portanto do acidente, mais do que como testemunha ou


até como alguém curioso: ele chega a torcer, como num jogo. Tomará partido, terá opiniões,
guardará na memória detalhes para contar e discutir com amigos ou parentes, participando
então dos sentimentos e significados, acompanhando personagens, processos ou tramas,
aguardando desfechos ou conclusões até com ansiedade. Ele torce, desejando finais felizes
ou antevendo tragédias, e cria um vínculo entre si e o acontecimento. Há uma função
econômica nesse processo, porque vende jornais, cria audiência e necessidades, e é
também, portanto, uma função política, no quanto a política pode ter também de espetáculo.
E há também o efeito educativo, pode-se dizer, incorpora-se o acontecimento como
experiência, como memória e lição, mas também como mistificação, como erro ou desvio,
como elemento a ser esquecido ou reprimido.

O que se propõe aqui, portanto, é uma reconstituição histórica em que não se


investiga propriamente o que as notícias não revelaram, ou o fizeram apenas parcialmente
ou com erros, isto é, não se procurará construir uma nova versão, mais ‘verdadeira’ ou
precisa do que a que foi dada e da maneira caótica em que foi apresentada pela imprensa.
Não se procurarão fatos novos ou desconhecidos, mas antes, uma análise que recupere
quais as discussões, temas, problemas, papéis e responsabilidades, erros atribuídos, mitos e
mistificações, e a maneira como foram surgindo alguns focos de atenção em torno do
acontecimento. Todos esses elementos representam algumas escolhas e decisões tomadas
necessariamente na emergência, e que foram, conscientemente ou não, instrumentalizadas
pelos seus agentes e lançadas no espaço público pela imprensa, com todas a suas
limitações, no lidar com um desastre inédito no Brasil. Isto é, se procurará recuperar nesse
triste acontecimento, nas palavras de Jean Delumeau (1989: 117), as “imagens de pesadelo,
torrente desordenada de termos cuja acumulação, no entanto, recria a trágica coerência do
vivido”.
43

Capítulo 4 - Estranhos Segredos: sistema nuclear,


catadores de lixo e brilho azul

O sistema perito nuclear nasceu em plena Segunda Guerra Mundial, como um inédito
esforço conjunto de cientistas, militares e do governo norte-americano para produzir a arma
mais poderosa já concebida a partir de pouco mais que um conjunto de hipóteses. A façanha
científica e tecnológica conhecida como Projeto Manhattan foi realizada em segredo, com
objetivo estratégico de ganhar a guerra. A conjunção da ciência e da tecnologia com
objetivos militares marca a especificidade do sistema nuclear, na forma de uma politização
que caracteriza mesmo as chamadas aplicações pacíficas da energia nuclear. Estas últimas,
por suas ligações intrínsecas com as aplicações militares (por exemplo, certos tipos de
reatores nucleares civis produzem plutônio, que pode ser utilizado na fabricação de armas).

A relação do sistema nuclear com a imprensa parece ter sido sempre, por um lado, de
um sistema produtor de segredos e de fatos e informações; e, por outro, o seu canal para o
público, isto é, uma relação que já nasceu planejada e politizada, sendo a imprensa
instrumentalizada basicamente como veículo de propaganda e legitimação. Na primeira
explosão atômica, em Alamogordo, Novo México, EUA, em 1945, veículos selecionados da
imprensa já estavam presentes para documentar o fato, com o compromisso de não revelá-lo
de imediato. O ataque a Hiroshima foi planejado como uma ação militar tanto quanto como
uma ação de propaganda, sendo filmado e documentado nos seus mínimos detalhes43. O
Enola Gay, o avião que carregou a bomba, foi escoltado por um avião idêntico mas armado
somente de câmaras cinematográficas. A destruição de Hiroshima e Nagasaki, no entanto,
foi mostrada de início ao público americano de longe, apenas como um imenso cogumelo de
fumaça e cinzas, como símbolo do poder militar americano e sua vitória. Os seus efeitos
malignos na população e na cidade foram mostrados bem depois.

Os testes de 1946 no atol de Bikini também foram documentados e mostrados como


um espetáculo através da mídia, para impressionar todo o resto do mundo44. Nesse teste e
em outros, marinheiros e soldados foram usados como cobaias, pois se queria saber se

43
Num documentário exibido pela TV Cultura de São Paulo, chamado Retorno a Hiroshima, podem ser vistos trechos da
operação de bombardeio. Produzido pela BBC inglesa, o documentário mostra a visita de integrantes das tripulações da
operação à Hiroshima, às vésperas do 45º aniversário da Era Nuclear. Exibido em 2/8/1995.
44
O documentário Rádio Bikini reconstitui o caráter de propaganda dessa operação. Exibido pela Rede Cultura de Televisão,
em 3/8/95.
44

teriam condições de entrar em combate logo após um ataque nuclear. Grande parte deles
posteriormente morreu de câncer e leucemia, em conseqüência dessa exposição.

Durante a Guerra Fria, os meios de comunicação também foram mobilizados para a


propaganda, assim como durante a corrida espacial. A imprensa participava tão
engajadamente como o mais disciplinado soldado. Não que não houvessem resistências e
críticas veiculadas da mesma forma. Entretanto, quem teve sempre a iniciativa de criar fatos
e atrair a atenção da imprensa foi o establishment.

A situação não deixava de ser ambígua, pois o sistema nuclear militar dos EUA
precisava da imprensa para que todos soubessem que havia segredos, os quais deveriam
continuar secretos por questões de segurança nacional, contra o ‘perigo vermelho’ e as
‘nações hostis à democracia’ representadas pela URSS. A imprensa, por sua vez, precisava
dos fatos, sua matéria-prima. Isto é, não era um ‘completo segredo’, pois desse nem se
imagina a existência. Mas se sabia que o sistema nuclear militar possuía segredos sobre
como fabricar e explodir bombas, embora muitos deles não fossem tão secretos assim por
definição, já que constituíam conhecimento científico publicamente veiculado. O
conhecimento científico é hermético, mas não secreto nesse sentido. A natureza do sistema
militarizado de controle de informações científicas e tecnológicas (essas últimas sim,
passíveis de serem controladas, na forma de know-how) não conseguia entretanto apenas
efeitos positivos. A especulação sobre os ‘segredos’ começa a partir do momento em que se
admite que se tem um segredo, ou de um fato que aponte sua existência, seja num grupo de
crianças ou de vizinhos, seja em corporações ou nações.

A especulação semeia o espaço da crítica, que cresce e se impulsiona45; a


especulação só pode ser desmentida completamente se o ‘segredo’ em questão for revelado,
o que não é possível no sistema nuclear sem ameaçar as bases e finalidades do próprio
sistema. A partir do acidente nuclear de Three Mile Island em 1979, nos EUA, por exemplo,
mas como um movimento cuja origem pode ser achada bem antes disso, a crítica às
chamadas aplicações pacíficas do sistema nuclear se torna em grande parte hegemônica, ou
pelo menos em igualdade com os defensores do sistema nuclear, no campo dos debates
públicos. Agora apoiado em acontecimentos reais, tendo como paradigma Tchernobyl46, o
movimento crítico, englobando grupos de cientistas, anti-militaristas ou pacifistas, ecologistas
e outros grupos, e que na década de 80 chegou a realizar gigantescas manifestações de

45
Reflexivamente, pode se dizer.
46
Ou os diversos flagrantes de despejos de lixo radioativo no oceano pelo Greenpeace. O acidente de Tchernobyl aconteceu
em abril de 1986, na Ucrânia, então URSS. As ressonâncias desse impressionante acidente não deixaram de estar presentes
em Goiânia.
45

47
protesto nos países industrializados contra a continuidade de usinas nucleares , chega a
expressivas vitórias nesses países, vários deles tendo suspendido seus programas após
48
consultas democráticas como a Alemanha, a Itália e a Inglaterra . “Para grandes segmentos
da população e para os oponentes da energia nuclear, seu potencial catastrófico é central.
Não importa o quão pequena seja considerada a probabilidade, ela é muito grande quando
49
um acidente significa aniquilação” (Beck, 1992: 29). A luta entre esses dois grandes lados
dessa questão inverte a posição de superioridade de quem antes mantinha o segredo. Antes,
era uma vantagem, uma posição de poder, a suposição de que o sistema nuclear mantivesse
segredos. Agora, a suposição de segredo se tornou a arma dos seus críticos: o sistema
nuclear esconde algo, possui segredos, porque não pode revelar os perigos sobre os quais
se baseia; portanto, mente, esconde a verdade, sonega e distorce informações (acidentes
nucleares graves costumavam ocorrer em segredo, como vimos), ameaça o sistema
democrático e a própria sociedade: acidentes tecnológicos como Tchernobyl seriam a prova,
pois tudo o que se comia ou se bebia na Europa tinha a presença de Tchernobyl50. São as
conseqüências indesejadas ou imprevistas do sistema nuclear que agora produzem os fatos
e, portanto, dividem o interesse da imprensa.

O Brasil também tem seus segredos no campo nuclear (nisso não é diferente de
outros países), visto que o monopólio do Estado sobre o assunto até há bem pouco tempo
era uma extensão da ditadura militar, ou seja, a visão de que se tratava de um assunto
estratégico stricto sensu foi dominante, por diversas razões (Giroti, Marques, De Biasi,
Goldemberg, Pinguelli Rosa51 e outros autores brasileiros desenvolvem esse tema). O eixo
foi a divisão interna entre os que entendiam ser a capacitação nuclear brasileira necessária:
de um lado, os que advogavam que essa capacitação teria de ser nacional e autonomamente
desenvolvida (que é a visão mais nacionalista); de outro, a visão de que o desenvolvimento
nuclear poderia ser obtido via ‘colaboração’ com outros países (como foi o caso do acordo
Brasil-Alemanha e da compra de Angra I da Westinghouse norte-americana) (Motoyama e

47
E mesmo contra a venda de reatores nucleares a países como o Brasil (Girotti, 1984).
48
SUPERINTERESSANTE. Op.cit. A matéria dessa revista, no entanto, tenta passar a imagem de que a energia nuclear é
indispensável e está mais segura. Nos EUA, entretanto, a última encomenda não cancelada de um reator nuclear foi em
1973. Em toda a União Européia, apenas a França tem reatores em construção. (GREENPEACE, 1996: Chernobyl - 10
anos)
49
“For large segments of the population and for opponents of nuclear energy, its catastrophic potential is central. No matter
how small an accident probability is held, it is too large when one accident means annihilation.”
50
Um pouco antes do Acidente em Goiânia, houve um caso muito comentado de uma importação de carne da Polônia que
visava a falta do produto no mercado brasileiro, durante o plano Cruzado. A carne estaria contaminada por substâncias
radioativas do Acidente de Tchernobyl.
51
Segundo Pinguelli Rosa, em artigo anterior a Goiânia, até o plano de emergência para a cidade de Angra dos Reis em caso
de acidente na usina era secreto, subordinado ao Conselho de Segurança Nacional, além de instalações para testes nucleares
no Pará e para o desenvolvimento de um submarino nuclear da Marinha, em Iperó (interior de SP) (Pinguelli Rosa, 1987).
46

Marques. 1994). O peso desses segredos, dos erros e das opções do Estado brasileiro no
programa nuclear também apareceram em Goiânia, de forma inusitada, mas também contra
os interesses do sistema nuclear.

Entretanto, o programa nuclear brasileiro, a física nuclear e outros assuntos correlatos


não faziam parte das preocupações de grande parte dos brasileiros. Quer dizer, não era um
assunto massificado e nem próximo. O desastre em Goiânia mudou essa distância, pelo
menos por algum tempo.

Abandonando uma bomba: começando um acidente


O Acidente começou em Goiânia sem que ninguém se desse conta: em 13 de
setembro de 1987, segundo se conseguiu apurar bem posteriormente, Wagner Mota Pereira
e Roberto dos Santos Alves, entraram em um galpão semi-demolido na rua Paranaiba, Setor
Central de Goiânia, onde estava abandonada uma máquina grande, de chumbo e outros
metais, que eles queriam vender como sucata. O galpão em questão era a antiga sede do
Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), que se mudara e deixara para trás o equipamento:
uma bomba de radioterapia de césio-137, um aparelho que se tornara obsoleto pelo
‘enfraquecimento’ da fonte radioativa. Os dois sobreviviam como catadores de papel (ou
como se poderia entender, viviam das sobras e do lixo da cidade), o que foi noticiado desde
o começo e que serviu para qualificá-los de modo implícito. O fato de serem pobres e com
pouca instrução não foi apenas um detalhe em todo o acontecimento: se tivessem a mínima
idéia do perigo da radiação, e para tanto já não era necessário ser um físico nuclear,
dificilmente tratariam aquela máquina estranha como uma sucata, cujo valor estava para eles
apenas no seu peso em metal. Mas o fato é que não eram físicos nem sabiam o que era a
radiação, e eram pobres, como a maioria da população. Como foi apontado na imprensa, a
inusitada mistura entre ignorância, pobreza e perigos tecnológicos é explosiva. Significativo
para um país que tinha (e tem) tantos desses elementos.

Posteriormente, também se apurou que Roberto e Wagner levaram apenas parte da


máquina, o cabeçote onde estava blindado por chumbo e outros metais um pequeno cilindro,
em forma de pastilha, que constituía o material físsil do césio-137. Outro pedaço da bomba,
mais pesada mas já sem o césio, foi levada por Kardec Sebastião dos Santos, outro catador
de papel e amigo de Roberto e Wagner, 14 dias depois, antes da descoberta do acidente,
segundo apurou o inquérito conduzido pela Polícia Federal52.

Roberto, o Betão, tinha 21 anos e Wagner, 19. Levaram a parte do equipamento que
puderam carregar (cerca de 120 quilos) num carrinho de mão para a casa de Roberto, que

52
O ESTADO DE S. PAULO. 1/12/87. Procurador culpa cinco pelo acidente radioativo.
47

com uma marreta emprestada tentou desmontá-la, provavelmente para separar os metais
para vender, durante quatro noites seguidas, segundo o depoimento de vizinhos que foram
obrigados a ouvir o trabalho. Roberto trabalhou especialmente num cilindro de cerca de 12
53
centímetros de altura por 30 de diâmetro (onde estava o núcleo radioativo) . Apesar de seus
esforços conseguiu apenas romper o lacre de um orifício lateral, mas que liberou a
passagem da radiação. Roberto deve ter recebido, nesse momento, uma irradiação de cerca
de 1.000 REMs54. No dia 17 de setembro os dois amigos levaram a peça cilíndrica ao ferro-
velho de Devair Alves Ferreira, que aparentemente só se interessou por ela após notar a bela
luminosidade azul que escapava da peça ao se apagarem as luzes, já no dia 21. Prometeu
ao dois amigos que pagaria CZ$ 1.500 por ela (cerca de 20 dólares). Devair parece ter sido a
primeira das vítimas a se encantar com a luminescência, e talvez achando que tivesse algo
de valor, levou a peça para dentro de sua própria casa, nos fundos do ferro-velho, na rua 26-
A. Devair procurou descobrir de onde vinha a luz: conseguiu quebrar a pastilha de césio e
retirar algumas ‘pedrinhas’ com uma chave de fenda através do orifício onde estava o lacre.
A peça ficou no quarto de Maria Gabriela Ferreira, mulher de Devair, por alguns dias,
irradiando igualmente a sua sogra, também chamada Maria Gabriela.

No dia 24, Ivo Alves Ferreira, irmão de Devair, recolheu alguns fragmentos numa
caixa de fósforos para mostrar à própria mulher, Lourdes. Em sua casa, nos fundos de outro
ferro-velho de sua propriedade, na rua 6, Ivo esfregou os fragmentos no cimento, onde
brincava sua filha Leide, de 6 anos. Logo após, com as mãos ainda sujas do pó, Leide
comeu um ovo cozido. Devair também distribuiu, como presentes, fragmentos da pedra a
amigos, como os irmãos Ernesto e Edson Fabiano.

O menino Carlos, sete anos (...) disse ter brincado, junto com mais cinco ou seis
amiguinhos, no ferro-velho onde foi desmontado o container que continha a cápsula de
césio-137 (...). Madalena Pereira Gonçalves, 46 anos, também ‘brincou’ com a ‘pedrinha
que era a coisa mais bonita do mundo’. Lembrou que a passou no braço ‘para ver se eu
ficava bonita também’, disse rindo, ignorando qualquer preocupação.55

Enquanto isso, Roberto e Wagner já estavam doentes. Roberto chegou a ser


internado num hospital, com enjôos e diarréia graves. Wagner foi a outro hospital, onde teve
suas feridas tratadas como queimaduras. Devair também logo começou a sentir os efeitos da
radiação, com perda de cabelo e enegrecimento da pele. Seus dois empregados, Israel e
Admilson, também sofreram com vômitos e diarréia. Maria Gabriela, a sogra, também

53
JORNAL DO BRASIL. 1/11/87. Entre a pobreza e a ignorância, a tragédia nuclear.
54
O REM, sigla para Roentgen Equivalent Man, é uma medida de dose efetiva de radiação recebida pelo homem. A dose em
questão é altíssima.
55
JORNAL DA TARDE, 05/10/87. Goiânia: um novo foco de radiação.
48

adoeceu. Ernesto, que carregara o presente no bolso da calça, teve também uma ferida na
perna direita, com bolhas e muitas dores. No domingo, dia 27, ocorreu em Goiânia talvez o
mais importante evento do ano quando a cidade sediou uma etapa do campeonato mundial
de motociclismo de velocidade, no seu autódromo. Com a atenção da cidade voltada para a
corrida, Maria Gabriela, a esposa de Devair, teve dificuldades para conseguir auxílio médico.

Maria Gabriela desconfiou que o que estava causando o adoecimento de todos era a
tal peça. Contra a vontade de Devair, que não achava que algo tão bonito pudesse fazer mal,
Maria Gabriela pediu que a outro ajudante, Geraldo, que a ajudasse a levar a peça até o
prédio da Vigilância Sanitária. Envolta num saco, que Geraldo carregou nas costas (onde
sofreu uma radiodermite, ou seja, um ferimento provocado pela radiação), durante parte do
percurso, levaram o cilindro num ônibus, irradiando passageiros e transeuntes. Já era o dia
28, e Maria Gabriela foi atendida pelo sanitarista e médico veterinário Paulo Roberto
Monteiro, a quem teria dito que era aquela coisa que estava ‘matando o seu povo’. Maria
Gabriela conseguiu convencê-lo a verificar, deixando o cilindro na mesa56.

Paulo Roberto e o médico Alonso Monteiro foram os que primeiro desconfiaram de


radiação, tendo no dia seguinte conseguido o auxílio de dois físicos, Walter Mendes, da
Secretaria de Saúde, e Sebastião Mais, da Nuclebrás, que conseguiu um cintilômetro (um
detetor de radiação) emprestado. No mesmo dia, ao constatar a radioatividade do cilindro, o
grupo avisou o Secretário de Saúde de Goiás, Antônio Faleiros. Nessa tarde, a Comissão
Nacional de Energia Nuclear - CNEN - já foi avisada, e o grupo foi atrás dos pontos de
radiação. O acidente fora finalmente descoberto, dezessete dias depois que a bomba foi
retirada do prédio do IGR.

A criança morena, 6 anos, brinca na terra batida da rua pobre de Goiânia, apesar dos
enjôos que sofre há três dias. Dez metros adiante, um pelotão da polícia escolta dois
homens com detetores de radioatividade. Fim de tarde no cerrado, 29 de setembro de
1987. A menina reconhece o pai guiando o grupo e sorri. Um dos aparelhos - o ultra-
sensível cintilômetro, que descobre urânio no subsolo - ‘enlouquece’. O ponteiro chega ao
limite (5 milirrens/hora) e vibra no canto direito da escala, informando que a menina é
uma bomba radiativa. O homem do aparelho se assusta. A menina ameaça chorar e o pai a
toma no colo.57

Na madrugada do dia 30 os primeiros técnicos da CNEN, do Instituto de Radiologia e


Dosimetria - IRD, de Furnas e da Nuclebrás começaram a chegar a Goiânia, vindos do Rio

56
Existe um longa-metragem, disponível em vídeo (Sagres/Riofilme), que reconstitui esses eventos. Césio-137: o pesadelo de
Goiânia foi escrito e dirigido por Roberto Pires, com os atores de telenovelas Nelson Xavier (como Devair), Paulo Betti
(como Roberto), Joana Fomm (Maria Gabriela) e outros. O filme é centrado no deslumbramento de Devair e termina com a
descoberta do acidente pelas autoridades. Segundo informa, foi baseado no depoimento das testemunhas.
57
JORNAL DO BRASIL. 1/11/87. Entre a pobreza e a ignorância, a tragédia nuclear.
49

de Janeiro e São Paulo. Formavam a linha de frente de um grupo montado para enfrentar
emergências com materiais radioativos, como acidentes em usinas nucleares e instalações
industriais, e que já havia sido organizado há 15 anos e tinha alguma experiência em
58
situações de acidentes , mas nem eles sabiam exatamente o que estariam enfrentando
dessa vez.

Junto com a chegada dos técnicos, o acidente começava a se tornar um


acontecimento através da imprensa. No dia seguinte, 1 de outubro, jornais e tevês com
cobertura nacional já noticiavam o acidente, falando: de catadores de papel que deram
marretadas em bombas encontradas em ferros-velhos; de uma substância radioativa
chamada césio 137, brilhante e azul, que fora dada de presente a várias pessoas, que sem
desconfiar do que era, brincaram com ela e a esfregaram no corpo; da CNEN, que estivera
recentemente no noticiário quando da descoberta de contas secretas para financiar o
programa nuclear paralelo; de uma Goiânia apavorada e de um grande número de vítimas,
talvez condenadas, entre as quais sobressaía a história da menina Leide. Especialistas já
falavam das possibilidades de câncer e de abortos, e lembravam que o césio-137 havia sido
uma das substâncias lançadas ao ambiente pela explosão de Tchernobyl.

O Acidente, entretanto, não ganhou as manchetes logo no seu primeiro dia. Para a
maioria da população, que não era informada quanto aos perigos da radiação, ou pelo
menos para os jornalistas dos principais media de São Paulo e do Rio de Janeiro ele não era
tão óbvio como, por exemplo, a queda de um avião. Logo ficou claro que o acidente ainda
estava acontecendo - embora poucos tenham notado dessa forma - aumentando o tom
dramático do desastre, e ninguém conseguia, claramente, prever o seu desfecho.

A maioria das pessoas lembra do Acidente, numa amostragem não sistemática,


usando termos como “absurdo, chocante, horroroso, pavoroso, impressionante”, e outros
menos publicáveis. O Acidente fixou, por exemplo, o termo “césio-137” a um significado de
“perigo, radioatividade”59. Lembram-se também da história da menina Leide, do ferro-velho e
da impunidade do Acidente. Alguns têm também a impressão de que o governo escondeu
muita coisa, antes, durante e depois da descoberta do desastre.

A grande imprensa escrita, isto é, os maiores jornais do Rio e de São Paulo


(principalmente, Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e
Folha de S. Paulo e as revistas IstoÉ e Veja, que constituem a maior parte do material da
pesquisa), durante todo o período do acidente, teve evidentes dificuldades quanto à precisão,

58
O ESTADO DE S. PAULO, 04/10/87. “É um batismo de fogo”.
59
“Susto radioativo - (..) comparado ao césio 137, (...) o iodo 131 é suco de laranja”. VEJA, 10/05/95, em notícia sobre um
acidente nas instalações do IPEN - Instituto de Pesquisas em Energia Nuclear, no campus da USP, em São Paulo.
50

quanto aos termos técnicos, e quanto ao tom, e num outro nível, dificuldades decorrentes da
crescente complexidade da situação. De certa forma, essas características aderiram ao
Acidente, isto é, à idéia que se pode ter dele por esse ângulo.

Entretanto, vários pontos que, já no dia 1 de outubro, foram divulgados pela CNEN
não foram desmentidos depois. Já se sabia que a bomba pertencia ao Instituto Goiano de
Radioterapia, que a usava no tratamento do câncer; que os dois catadores de papel, Wagner
e Roberto, foram os que a retiraram de um prédio semi-destruído; que aparecera num ferro-
velho como sucata; que Devair, o dono do ferro-velho, distribuíra a “pedra brilhosa” como
presente aos seus parentes, amigos e vizinhos. Já se divulgava o perigo do césio-137, e se
prometia um “rigoroso” inquérito policial para “apurar as responsabilidades” sobre o acidente.
A imprensa também já cobria quais medidas tinham sido tomadas; soube-se que já existiam
vítimas em estado grave, e que a população de Goiânia já estava “em pânico” - em suma,
soube-se que algo de extrema gravidade havia acontecido, envolvendo um perigo muito
grande, e que alguém ou alguma coisa havia deixado que isso acontecesse, numa situação
quase inimaginável.

Vários agentes centrais foram surgindo nesse drama. Em primeiro lugar, a CNEN,
órgão fundado em 1962, que centralizava os esforços brasileiros na área nuclear. É através
dessa agência que o Estado brasileiro exerce o monopólio sobre o setor. Surgiu no Acidente
através de técnicos, como foram chamados, peritos na área de radioproteção. José de Júlio
Rosenthal, então diretor da CNEN, foi o primeiro porta-voz desse grupo (chegaram entre o
dia 30 de setembro e 1 de outubro cerca de 15 técnicos). Rosenthal confirmou que o
acidente era grave, assim como o estado das vítimas. Disse desconhecer acidente
semelhante, e que haviam sido tomadas medidas para isolar o cilindro com concreto60. A
CNEN também explicou qual era o seu papel - na linguagem burocrática, quais eram suas
competências e atribuições, e quais os requisitos que uma clínica de radioterapia deveria
cumprir.

José de Júlio Rozental explicou ontem à tarde que a CNEN - Comissão Nacional de
Energia Nuclear é a instituição que controla todo esse tipo de material no país. “A CNEN”
- disse - “executa a política, a normalização e a fiscalização do programa nuclear
brasileiro. Todos os órgãos e entidades que lidam com material radioativo, sejam médicos,
engenheiros, reatores, precisam da autorização da CNEN”. Ele revelou que o Instituto
Goiano de Radioterapia “está credenciado na CNEN, tendo sido fiscalizado. Acontece que
eles desativaram esse irradiador e não nos comunicaram. Para a CNEN, o equipamento
continuava operando normalmente. E eu também não sabia da situação em que esse
irradiador estava, nem o local onde deveria estar funcionando. De forma que, quando ao
problema da penalidade, nós teremos que avaliar”.

60
JORNAL DA TARDE, 01/10/87. Goiânia: césio contamina 20 pessoas.
51

Ele disse que o “que mais preocupa agora é o problema da contaminação das pessoas que
estiveram expostas à radiação. Estamos cuidando desta primeira etapa. Depois, faremos
um levantamento, abriremos um inquérito, para saber por que o Instituto Goiano de
Radioterapia permitiu que a peça fosse roubada”. Disse também que a CNEN tem normas
específicas e que, no caso de Goiânia, elas foram passadas para o Instituto. O
credenciamento passa por uma série de exigências, como manter um convênio com o
Colégio Brasileiro de Radiologia; ter um médico especialista que passa por um exame
nesse mesmo Colégio, além da necessidade de ter um equipamento adequado. A empresa
goiana passou, segundo ele, por tudo isto. Rozental afirmou que o governo e a CNEN
terão que, a partir de agora, dar toda a cobertura ao tratamento das pessoas afetadas, que
ainda poderão ir à Justiça reclamar direitos e cobrar indenizações.61

A CNEN, portanto, teria a responsabilidade de ‘solucionar’ o Acidente desde o


tratamento para as vítimas até a verificação das culpas. Tomou para si as tarefas principais,
no sentido técnico da palavra, e também enquanto autoridade do setor, e prometeu manter a
“opinião pública” informada. Esses ‘funcionários especializados’, no sentido weberiano, são
participantes de um tipo especial de sistema perito (Giddens, em Beck et alii, 1994: 82-91)
pela sua ligação com o Estado, portanto pelo papel político e normativo que possuem.

O governo do Estado de Goiás, que foi outro ator de destaque, aparece na pessoa do
então governador, Henrique Santillo, do PMDB, eleito em 1986, e do secretário da saúde,
Antônio Faleiros. A polícia estadual, a quem coube começar a investigação, seria depois
substituída pela Polícia Federal. Tanto a CNEN quanto o governo estadual já falavam na
necessidade do inquérito e em apuração de responsabilidade: atribui-se portanto um sentido
de crime para o Acidente, o que também é significativo num país onde os milhões de
acidentes de trabalho e de trânsito não são, na maioria, considerados como crimes, mas
como ‘acidentes’.

Outro grupo da maior importância, mas que nos primeiros dias não estavam em
destaque62, até pelas limitações de sua condição, era aquele composto pelas vítimas da
radiação. O termo contaminado, que vai delimitar quais são as pessoas normais e quais as
condenadas, já era usado para qualificar aqueles que tiveram contato com a radiação,
embora, do ponto de vista técnico, a contaminação diga respeito a apenas uma das formas
de interação com a fonte radioativa (a outra é a irradiação, na qual alguém ou alguma coisa
fica exposta aos ‘raios’ propriamente ditos, mas não entra em contato com a substância ou
equipamento que provoca a radiação). Estar contaminado tem uma evidente conotação de
doença, sujeira, impureza ou envenenamento contagioso; portanto, de ameaça.

61
JORNAL DO BRASIL, 01/10/87. Césio em ferro-velho espalha radioatividade em Goiânia
62
Por exemplo, não se noticiou exatamente quantas pessoas eram, quem e em qual estado de saúde estavam.
52

Outro grupo de atores importantes foi o dos donos do Instituto Goiano de


Radioterapia, a quem pertencia o aparelho e que supostamente o abandonaram ao mudar de
endereço. Foram, desde o começo, os principais suspeitos de serem os culpados por todo o
desastre. Foram indiciados pela polícia, julgados e sentenciados, num processo que durou
quase dez anos entre apelações e recursos63. Toda essa demora parece ter reforçado a
sensação de impunidade sobre o Acidente, pois outras responsabilidades, como a da própria
CNEN, não foram, até esta data, judicialmente esclarecidas.

O último ‘ator’ importante desse primeiro impacto do acidente foi a própria


radioatividade, no caso, provocada pelo césio-137, os seus termos e unidades de medida,
seus efeitos conhecidos ou supostos. Alguns conceitos importantes, como o de meia-vida,
foram apresentados de maneira confusa, para não dizer errada. O césio-137 foi apresentado
como sendo uma substância empregada em medicina nuclear, para o tratamento de câncer,
e que também foi liberado pelo acidente de Tchernobyl. Sua radiação poderia provocar o
câncer, ao invés de curar, ou em grau mais elevado, hemorragias, paralisia do sistema
nervoso central e até a morte. Poderia provocar catarata, leucemia, anemia, abortos ou
malformações. A apresentação pode ter sido confusa, mas ressaltava o perigo inerente do
césio-137 e sua ligação com o sistema nuclear: a radioterapia é uma das poucas aplicações
pacíficas, ao lado das aplicações industriais, que se tornaram práticas (mas não menos
problemáticas) diante das mirabolantes promessas de cinqüenta ou quarenta anos atrás,
quando se prometiam fornos domésticos, carros e aviões nucleares e energia barata e
inesgotável. Se isso tivesse sido tentado, pode se imaginar que césio-137 em ferros-velhos
seria a regra, não a exceção.

Para facilitar um pouco o entendimento do papel desse último ator, o césio-137 e a


radioterapia, e também para apresentar alguns coadjuvantes, é necessário emprestar alguns
conhecimentos dos sistemas peritos.

A radioterapia é uma técnica importante no tratamento de diversos tipos de câncer. O


aparelho de radioterapia consiste basicamente de uma fonte de radiação que fornece um
feixe, que deve ser apontado ao tumor, em uma dose e distância determinadas, a fim de que
a radiação faça o tumor regredir. A fonte de radiação consiste de elementos físseis, no caso,
137
o isótopo césio 137 (cujo símbolo é Cs), acondicionada numa blindagem de chumbo, a
qual despertou o interesse dos catadores de papel. O uso correto da radioterapia implica a
superposição de conhecimentos da medicina e da física nuclear, sendo que o ideal é a
presença de profissionais de ambos os campos na sua operação. O aparelho deve ser
instalado numa sala com paredes blindadas com chumbo ou concreto. Há uma série de

63
O GLOBO. 28/01/1996.
53

procedimentos quanto à correta manutenção, treinamento e manuseio por especialistas,


calibragem, e controle da radiação ambiente numa instalação de radioterapia, mas que não
são tão diferentes, em grau, do cuidado que se deva tomar, por exemplo, num laboratório
com produtos químicos ou biológicos ou mesmo num aparelho de raios-X de um dentista. O
ponto a notar é que os aparelhos de radioterapia, aparentemente, foram inventados para
funcionar em ambientes bastante específicos, sob cuidados constantes; o problema do que
fazer com esses aparelhos depois de sua vida útil não é tão óbvio, embora seja sob qualquer
ângulo inaceitável que seja abandonado, jogado fora ou mandado para um ferro-velho.
Simplesmente, não é uma máquina qualquer.

As fotos de um aparelho semelhante divulgadas pela imprensa64 mostram uma torre


metálica em forma de tubo de cerca de vinte centímetros de largura, fixada em um largo
pedestal, e onde na altura de cerca de dois metros, por meio de um volumoso suporte, está
fixado o cabeçote com diversos controles, no qual está afixado uma placa de aviso caution
(“cuidado”: note-se que está em inglês) e o símbolo de radioatividade (que se diz, é um
núcleo atômico estilizado, mas pode parecer ao leigo apenas uma “pizza” vista de cima ou
um mero símbolo comercial65). As fotos em questão não trazem, mas há também uma cama
metálica, onde fica o paciente. O conjunto todo lembra vagamente a forma de um secador de
cabelo, dos encontrados em salões de beleza, mas muito mais robusto: um conjunto
completo pesa cerca de uma tonelada, e foi feito para resistir a quedas e incêndios.
66
As unidades de medida utilizadas pelo estudo das radiações também são variadas ,
e requerem alguma familiaridade, muito embora a radiação possa ser reduzida a alguns
termos simples para fins de entendimento. Pode-se imaginar que a radiação seja uma
espécie de ‘luz invisível’ cuja intensidade decai rapidamente com a distância, e que essa ‘luz’
emana de cada átomo de substâncias como o césio-137, carregando uma dose maior ou
menor de energia conforme o tipo de radiação - a radiação é, simplificando bastante, uma
maneira da energia se propagar: no caso, a que advém da instabilidade de forças entre os
prótons e nêutrons no núcleo atômico de certas substâncias. O que se mede é a intensidade
da radiação, em termos de quantos átomos se desintegram, em Bequeréis (Bq) ou Curies
(Ci); a dose de radiação absorvida pela matéria, em rads ou Grays (Gy); e os efeitos
biológicos, em REM ou em Sieverts (Sv). É importante notar que, na maioria dos casos, as
doses consideradas perigosas de radiação são devidas a aplicações artificiais, embora

64
FOLHA DE S. PAULO, 06/10/87
65
O símbolo de radioatividade não lembra de modo algum, para quem não o conheça, o perigo envolvido. Isso não deve ser
coincidência, pois o sistema nuclear sempre procurou evitar as conotações de seu perigo.
66
A esse respeito ver, por exemplo, Gomes, in CIÊNCIA HOJE, vol.7 n. 40, p.6, 36-7, suplemento Autos de Goiânia.
(SBPC, 1988) Também algumas obras sobre energia nuclear ou política nuclear trazem anexos sobre as unidades utilizadas.
54

existam no ambiente diversas substâncias que são radioativas. Numa emergência, falar de
‘desintegrações’ radioativas deve ter sido assustador: cada átomo que se ‘desintegra’ na
verdade, ao perder partículas nucleares, ‘decai’ e se transforma num outro elemento químico
(de menor peso atômico), que também pode ser instável e decair sucessivamente até se
transformar num elemento estável. O césio-137, por exemplo, não existe livre na natureza,
mas somente como produto da desintegração do urânio em reatores ou bombas.

O ecologista, jornalista e escritor, então deputado constituinte pelo Partido Verde do


Rio de Janeiro, Fernando Gabeira, procurou descrever a situação do Acidente em termos da
estranheza que provocou (Gabeira, 1987). Inspirado num clássico texto de Freud, O
‘Estranho’, de 191967, Gabeira nota que os segredos, a invisibilidade da radiação, os termos
técnicos herméticos colocam a quase todos numa posição de “meio marginais, meio
estranhos” (:52) diante da questão. Para ele, nada mais estranho que um acidente nuclear
numa cidade como Goiânia, que não se dedicava a atividades do setor, “nada menos familiar
e estrangeiro do que desintegrações atômicas atingindo catadores de papel”(:55). A partir
daí, Gabeira procura relacionar a situação de Goiânia com as dificuldades do Programa
Nuclear, Angra I em especial, apontando a inexistência de planos de evacuação da cidade de
Angra dos Reis em caso de acidente. Entretanto, parece haver outros aspectos familiares na
estranheza do Acidente, um pouco mais à maneira de Freud. Um acidente tão incrível que, à
primeira vista, pareceu ser falso, mas que, por ter acontecido no Brasil, de catadores de
papel e de descuidos inaceitáveis68 - por ser, portanto, tão familiar - ao mesmo tempo,
pareceu ser tão caracteristicamente real. Isto é, na estranheza do acidente se viu algo tão
familiar quanto vergonhoso, que eram os defeitos nacionais. Transformar algo ‘bom’, bem
feito ou bem pensado no seu oposto, estragar e degradar algo por interesses mesquinhos
parecia ser muito familiar a quem convivia com a crise econômica brasileira pós Plano
Cruzado, quando uma promissora bolha de prosperidade foi transformada em ardil eleitoral.

No dia 2 de outubro, dezenove dias depois do começo do Acidente, algumas


manchetes já procuravam passar a idéia da gravidade do que estava acontecendo. Luiz
Arrieta, diretor de segurança nuclear da CNEN considerou o Acidente “como o pior da
história nuclear, depois de Chernobyl69”. Já eram 23 os técnicos no local (chegariam a mais

67
Edição brasileira 1976. Freud analisa um conto de Hoffman a partir dos sentidos da palavra alemã unheimlich. A estranheza
adviria do que se sente diante do fato de não se saber se um ser estava ou não vivo, do que haveria de familiar numa
situação estranha
68
Os termos ‘descuido’ ou ‘negligência’ não são suficientes para a descrição desse aspecto: talvez manifeste um estágio da
violência que subjaz na relação entre indivíduos e/ou classes no Brasil (basta ver quão pouco ela é formalmente punida
pelos aparelhos de justiça criminal, em relação ao quanto são disseminados acidentes de trabalho ou de trânsito). O
‘descuido’ talvez seja um termo ‘doce’ que apenas encubra a agressão potencial por trás de cada norma de segurança básica
sistematicamente contornada.
69
O ESTADO DE S. PAULO. 02/10/87. Radiação: só Chernobil supera Goiânia.
55

de 100, durante todo o evento), além da CNEN, vinculados à Furnas (estatal do setor elétrico
responsável pela operação de Angra I), e à Nuclebrás (outra empresa estatal, uma holding
voltada à industria nuclear). Além deles, foram mobilizados a Aeronáutica e a Marinha, dona
do único hospital no país capacitado a atender vítimas de acidentes nucleares, o Hospital
Marcílio Dias, no Lins, zona norte do Rio de Janeiro, para onde foram levadas seis vítimas
em estado mais grave: Devair, Ivo, Roberto, Wagner, Ernesto e a menina Leide. As outras
vítimas estavam sendo atendidas por um esquema que utilizou o Hospital Geral do INAMPS
de Goiás (HGG), que cedeu uma ala para recebê-los, e cerca de meia dúzia de médicos
especialistas, profissionais raros e convocados inicialmente nas agências nucleares
nacionais. Vários contaminados estavam ainda isolados no Estádio Olímpico da cidade, onde
a CNEN montara um centro de monitoração (depois seriam levados dali para o HGG ou para
instalações da Febem de Goiânia). O atendimento às vítimas constituiu uma das principais
frentes do Acidente, pelo menos na imprensa, que procurou acompanhar a evolução dos
tratamentos e o estado das vítimas. Por exemplo, nos primeiros dias já eram descritos os
procedimentos de descontaminação através de banhos, para retirar as partículas de césio-
137 da pele, e o uso do medicamento radiogardase, conhecido também como Azul da
Prússia.

No mesmo dia (ainda no dia 1, noticiado no dia 2 de outubro), a CNEN já afirmava ter
o controle da situação. Ou pelo menos, de parte dele:

CNEN afirma que processo de radiação está sob controle - (...) Em entrevista coletiva à
imprensa, às 16h de ontem, os técnicos da CNEN informaram que já está sob controle o
processo de contaminação radiativa em Goiânia. Segundo o físico José Júlio Rozental, sua
equipe já tem mapeadas onze áreas contaminadas ou suspeitas, para onde teria sido levada
uma das peças do aparelho, denominado “bomba de césio”.70

Pouco depois, ver-se-ia que esse controle não era tão bom quanto dizia a CNEN. Já
se começava também a detalhar quais as responsabilidades do Estado, no caso, da CNEN,
na fiscalização e controle de fontes radioativas. Fernando Bianchini, presidente interino da
Comissão, revelou que a desativação da bomba não fora comunicada, como previa a norma,
à CNEN. Por outro lado, admitiu que a CNEN tinha falta de pessoal para a fiscalização71.
Bianchini também pediu calma à população, negando o temor de uma contaminação
generalizada. Um dos donos da bomba, o médico Orlando Alves Teixeira, foi entrevistado e
disse não ser responsável pelo Acidente. Segundo ele, foi impedido de levar a bomba por
uma ordem judicial, quando o IGR mudou de endereço, em favor do IPASGO (Instituto de

70
FOLHA DE S. PAULO. 02/10/87.
71
idem.
56

Previdência e Assistência Social de Goiás), que comprara o terreno do hospital da Santa


Casa de Misericórdia local. O IPASGO teria impedido o acesso aos técnicos responsáveis
pela manutenção do equipamento. O presidente do IPASGO, entretanto, negou a
informação.

Na cidade, várias ruas e quarteirões em torno dos “focos” de radiação tinham sido
evacuados e isolados. Pelo fato de o césio-137 estar na forma de um pó, ele havia se
impregnado nas casas, roupas, objetos e pessoas que estiveram em contato com ele, que
chegaram a esfregá-lo no corpo “como purpurina”, mas, segundo os técnicos, apenas quem
estivera em contato direto ou muito próximo dos pontos de radiação corria algum perigo. As
ruas da cidade e os trajetos do material radioativo teriam sido monitoradas, não se
encontrando níveis acima do “mínimo suportável” pelo ser humano72.

Alguns focos começaram a se formar nos relatos da imprensa. Um deles é o já


referido sobre as vítimas, dividido entre as que permaneceram em Goiânia, no Hospital do
INAMPS (que enfrentava uma greve dos funcionários por melhores salários), e as em estado
mais grave, transferidas para o Marcílio Dias. Outro foco dizia respeito à procura pelos
pontos de radiação na cidade, que iria depois evoluir nos trabalhos de descontaminação e
guarda do lixo radioativo. O terceiro vinculava-se à busca dos culpados. Na verdade,
conforme foram surgindo os fatos, ou eles foram sendo produzidos pelo trabalho da
imprensa, os focos vão se alternando e se cruzando.

No Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio, o diretor de saúde da Marinha, almirante


Amihay Burlá recebeu os jornalistas em entrevista nervosa:

Aqui é a Marinha, a Marinha de Guerra. É claro que temos que estar preparados para uma
emergência (...)73

Estamos capacitados a fazer esse atendimento e já fizemos alguns de menor gravidade.


Nossos equipamentos e equipe estão permanentemente preparados, mas nunca pensamos
que pudéssemos precisar utilizá-los74

Na mesma entrevista, o almirante também declarou que três das vítimas tinham
“chances mínimas” de sobrevivência: Roberto, Devair e Leide. Pode-se questionar o quanto
há de real preparo num hospital que achava que nunca iria ser utilizado, mas a frase é
sintomática de que, por algum motivo, não se levava a sério a possibilidade de um acidente.

72
O ESTADO DE S. PAULO. 02/10/87. Preocupação e medo na cidade. (Vale lembrar que o conceito de ‘mínimo
suportável’ não é aceito por vários críticos do sistema nuclear.)
73
ISTOÉ. 14/10/87. Diante da morte e perplexos.
74
O ESTADO DE S. PAULO. 03/10/87. Pouca chance para vítimas da radiação.
57

O Marcílio Dias contava com uma enfermaria especial, com isolamento de chumbo,
aparelhos e equipe especializada, e que havia sido montada como parte das exigências de
segurança das normas internacionais (da AIEA, Agência Internacional de Energia Atômica)
para o funcionamento de Angra I. O hospital receberia o auxílio de alguns médicos
estrangeiros, alguns com a experiência do Acidente de Tchernobyl. O hospital foi cercado por
tropas armadas e em trajes de combate, e os jornalistas e curiosos foram mantidos à
distância durante quase o mês inteiro. O cerco do hospital apavorou a vizinhança,
‘exportando’ o clima do Acidente para a cidade do Rio.

Semanas depois, o Jornal do Brasil publicou uma matéria na qual revelava que o
‘preparo’ do hospital não era tão bom como informou o almirante. Citando médicos do
hospital cujas identidades não foram reveladas, a reportagem indicou uma série de erros e
medidas equivocadas, “provocadas pela falta de conhecimento prático”:

O problema maior foi de ignorância, de completo desconhecimento de como se tratar,


efetivamente, as vítimas da radiação (...) “Com falta de entrosamento e de informações e
vários fatores contra, acabamos por cometer ações precipitadas, que quase geraram uma
tragédia no hospital”, revelou um outro especialista. A primeira dessas ações precipitadas
foi logo na chegada dos irradiados, no momento em que eles tomaram o banho de
descontaminação: as vítimas foram colocadas no lavabo sem nenhuma precaução.
Resultado: a radiação gama se espalhou por todo o local, além de contaminar corredores
por onde os pacientes passaram (...) As paredes, as roupas, tudo ficou contaminado (...) a
diretoria do Marcílio Dias foi obrigada a tomar uma atitude drástica. Mandou quebrar
todas as paredes e pisos dos locais por onde passaram os pacientes, arrancando azulejos,
f’órmicas e até pedaços de parede (...) depois de a situação estar mais controlada, da
entrada em ação da CNEN e da chegada de médicos estrangeiros - também eles com pouco
conhecimento de como tratar pessoas contaminadas por césio - acidentes continuaram
acontecendo, mesmo com pessoas bem preparadas. Um enfermeiro, com curso de
radioproteção, ao passar o soro de uma das vítimas de um frasco para outro, contaminou as
mãos, que teve de lavar durante duas horas (...) “Nós ainda estamos sofrendo muito com a
falta de conhecimentos. Cada dia para nós é uma novidade e os pacientes acabaram
virando nossas cobaias, já que estamos testando neles tratamentos que só conhecíamos na
teoria. A gente nunca sabe como vai ser o dia seguinte, e o risco da contaminação ainda
existe, principalmente por parte da Leide (...) que chegou a engolir pó de césio. Ela está
irradiando o equivalente a 10 bombas de cobalto ou ao que irradiava a água de lavagem do
reator nuclear que vazou em Three Mile Island (...) Mesmo assim, estamos conseguindo
alguns progressos, já que nossa maior luta agora é manter os contaminados bem
protegidos, pois eles estão tão debilitados que não podem pegar nem um resfriado” -
explicou um médico.75

A imprensa não teve muito acesso ao Marcílio Dias, mesmo quando, por efeito da
reportagem do Jornal do Brasil, os jornalistas foram convidados a conhecer parte das
instalações, mas sem ver as vítimas (no mesmo dia em que morreram duas delas). Os
boletins sobre a evolução do estado de saúde das vítimas, publicados diariamente, são o

75
JORNAL DO BRASIL. 22/10/87. Despreparo espalhou a radiação pelo Marcílio Dias
58

retrato de uma agonia lenta e dolorosa, falando sobre radiodermites, síndrome aguda de
radiação, destruição das defesas imunológicas, e outros efeitos da radiação.

Desde o primeiro dia da descoberta do Acidente, as vítimas foram isoladas para


tratamento. O médico Alexandre Rodrigues de Oliveira, da Nuclebrás, diz que voltou a
própria formação para a possibilidade de acidentes, tendo tido a oportunidade de fazer
estágios no exterior e de obter alguma experiência prática. Convocado pela CNEN, chegou à
Goiânia dia 30 de setembro, impressionando-se com o movimento e o aparato montado no
Estádio Olímpico. Descreve assim como estavam as vítimas:

Tomamos todas as precauções: usamos calça, bota, avental, máscara, gorro, luvas duplas e
sobressapatos. Acompanhados de dois físicos de radioproteção, entramos finalmente na
enfermaria, o Dr. Brandão e eu. Foi uma situação que nos chocou muito. Os onze
pacientes estavam no fundo, todos sentados, juntos. Alguns apresentavam lesões graves e
sentiam dor. Entre eles, havia duas crianças. Mostravam-se visivelmente atemorizados,
angustiados, e sofriam. Não tinham idéia do que estava acontecendo: de uma hora para
outra ficaram doentes, foram internados, isolados e tratados como suspeitos. A cena me
causou certa emoção.76

A frente formada para os cuidados com as vítimas começou a enfrentar a falta de


pessoal para o tratamento no hospital geral do INAMPS de Goiânia, e pouco depois, no
próprio Marcílio Dias. Os funcionários do hospital em Goiânia, além da greve, com medo, se
negaram a atender os pacientes. Somente uns poucos, após serem instruídos, foram
voluntários, num primeiro momento. Apenas uma médica desse hospital inteiro, Dra. Rosana
Farina, se juntou prontamente à equipe da CNEN, sendo que ela, depois, ainda conseguiu o
auxílio de mais pessoas. Ela própria descreve o motivo de sua participação:

Não tive receio no contato com os contaminados. Se havia gente competente se expondo
da forma que se expôs, não haveria razão para ter medo. Apesar disso e dos
esclarecimentos sobre como trabalhar, a colaboração da classe médica de Goiânia foi
mínima, para não dizer nula. No início, por desinformação ou medo, o pessoal se negava
até a entrar no hospital. Não tiro a razão, cada um tem sua razão. Eu diria que é um
problema goiano mesmo.77

O medo, que se espalhava pela cidade, na descrição dos jornais, levou a algumas
manchetes preocupantes. Por exemplo: Muitos contaminados fogem de Goiânia, no O
Estado de S. Paulo, ou a afirmação da Folha de S. Paulo que nada menos que quarenta
mil pessoas começavam a abandonar bairros inteiros, ainda no dia 3 de outubro. Mesmo que
tantas pessoas não tivessem fugido ao mesmo tempo e em total descontrole emocional (o

76
CIÊNCIA HOJE. Op. Cit. (SBPC, 1988: p.7)
77
Idem. p.11
59

que caracterizaria o pânico no sentido estrito do termo), a vizinhança dos locais


contaminados parece ter se dividido entre os que voluntariamente procuraram outros locais,
e os que não quiseram ou não puderam sair. Em algumas ruas interditadas pela CNEN, a
polícia teve de retirar alguns moradores. Duas mil pessoas já faziam diariamente uma
enorme fila, no Estádio Olímpico, para serem monitoradas pelos contadores Geiger
(aparelhos que medem a radiação). Algumas delas iriam retornar diariamente, outras se
convenciam que estavam contaminadas, mesmo sem nenhuma contagem nos aparelhos78.

Uma onda de boatos percorria a cidade79, sobre pessoas ou locais contaminados.


Uma forte chuva que caiu na cidade no começo de outubro levantou o temor de que as
águas pudessem carregar o césio-137 para os rios e reservatórios, contaminando a água da
cidade. A CNEN e outras autoridades procuravam tranqüilizar a população, que se queixava
de que não estava sendo informada sobre a gravidade do problema, quanto a essa e outras
dúvidas. Note-se que eram técnicos, procurando explicar aos leigos o que estava
acontecendo. Dever-se-iam esperar dificuldades de comunicação entre os que estão
acostumados à linguagem técnica ao lidarem, pela primeira vez, com a comunicação para as
massas. É tão difícil, para eles, quanto é para um sociólogo explicar, em poucos minutos, o
que é, por exemplo, “classe social” ou “ideologia”. A possibilidade de ser mal compreendido,
numa situação aflitiva, é quase total. Uma primeira avaliação do coordenador da Defesa Civil
de Goiás, coronel Nelito Barbosa, o fazia acreditar que se levaria pelo menos um mês para
terminar a emergência (na verdade, levou quase três meses).

É difícil avaliar o quanto a população da cidade e do Brasil, que acompanhava o


acontecimento, acreditava nos técnicos da CNEN, ou o quanto seria apreendido nesse
aprendizado forçado de conceitos de física das radiações. De outro lado, é certo que atitudes
como a da Dra. Farina foram raras, uma confiança extrema na competência dos técnicos a
ponto de assumir um risco pessoal. Para tornar mais complexa a situação, a imprensa trouxe
ao debate público opiniões de peritos que contrastavam com as da CNEN, como, por
exemplo, e ainda no dia 3, a do físico da Unicamp (Universidade de Campinas) Rogério
Cézar de Cerqueira Leite, um crítico costumeiro do programa nuclear, mas também do
movimento ecológico:

O físico Rogério Cézar de Cerqueira Leite, da Universidade Estadual de Campinas


(Unicamp) e membro do Conselho Editorial da Folha, afirmou ontem em Campinas que a
contaminação radiativa pelo césio-137 “é um exemplo da irresponsabilidade que existe no
setor, e que deve ser punida com cadeia, pois acidentes como esse não ocorrem quando há
um mínimo de cuidado”. (...). Ele acredita que o césio-137 esteja localizado, mas adverte

78
FOLHA DE S. PAULO. 03/10/87. Moradores deixam área atingida pela radiação.
79
JORNAL DA TARDE. 03/10/87. Goiânia: os técnicos trabalham na descontaminação.
60

que se houver uma transposição, com infiltração em lençóis freáticos, a contaminação


poderá atingir proporções maiores (...)80

Outro personagem destacado pela imprensa foi o deputado constituinte Fábio


Feldmann (PMDB de São Paulo), eleito com uma plataforma ecologista:

O deputado Fábio Feldmann (PMDB-SP) disse ontem em Brasília que o acidente ocorrido
em Goiânia demonstra, mais uma vez, a necessidade de criação de mecanismos, a nível
constitucional, visando a defesa da população. (...) a nova Constituição precisa garantir à
população o conhecimento prévio do que é feito na área nuclear, para opinar a respeito.
(...) A questão nuclear, disse o deputado, foi de difícil discussão, por se tratar de assunto
considerado de segurança nacional. O atual projeto de Constituição já representou um
grande avanço, na sua opinião, ao determinar que a energia nuclear só seja utilizada para
fins pacíficos e com prévio consentimento do Congresso. Feldmann afirmou que, na
próxima segunda feira, solicitará informações à Comissão Nacional de Energia Nuclear e
ao Ministério das Minas e Energia, pois considera “gravíssimo” o fato de “não haver
transparência de informações quando se trata da área nuclear”.81

Das características apontadas pelos atores acima, irresponsabilidade, interesses


estratégicos e falta de transparência, começavam a surgir, como um tema para as massas
envolvidas no acompanhar do acontecimento, a questão de quem e o que, afinal, estava por
trás da CNEN. Nesse sentido, iria se aprofundar um aspecto da politização do Acidente, que
começou por apenas apontar para a questão do que representava a CNEN, o programa
nuclear e o governo militar e outros temas impopulares. Com o desenrolar dos
acontecimentos, esse aspecto - isto é, o dos segredos e dos interesses ocultos no sistema
nuclear - chegaria a ficar óbvio, mesmo sem ser nunca admitido claramente pela CNEN
durante o Acidente.

Ignorância inocente e não-inocente


Sistema nuclear e catadores de papel, Goiânia e radioatividade, técnicos e Estado,
imprensa e vítimas, população e medo, começavam a esboçar novas ou renovadas relações
no cenário do acontecimento do acidente tecnológico com o césio-137. Cerca de apenas 20
gramas de uma substância artificial, até então, desconhecida da grande massa, fora, por
assim dizer, libertada do seu estrito controle, da sua existência planejada e monitorada,
onde, apesar do seu perigo, ela teria finalidade e utilidade. No Brasil, naquela situação,
aconteceu do césio-137 atravessar a barreira da ciência para a história, para o social, onde,
quase que por definição, seus efeitos eram imprevisíveis e seus controles são outros. Ou dito

80
FOLHA DE S. PAULO. 03/10/87. Acidente é caso de cadeia, afirma físico da Unicamp
81
FOLHA DE S. PAULO. 03/10/87. Deputado diz que uso nuclear deve ser fiscalizado
61

de outra maneira, do social que invadiu o mundo da ciência e da técnica, transtornando as


relações cuja aparente estabilidade garantiriam a segurança.

O país voltava sua atenção para um drama provocado por um acidente tecnológico à
moda da casa, e à moda da sociedade de classes. Pobres foram envolvidos aparentemente
pelo descuido das elites, das classes dirigentes e esclarecidas, que agora surgiam
prometendo solucionar e explicar o crime, o problema, a emergência, na figura de
especialistas, médicos e a polícia, e os governantes prometiam tomar todas as medidas para
proteger a população. Surgiu a questão do medo, do perigo desconhecido que poderia estar
se alastrando, das dúvidas e dos segredos agora vislumbrados, e também, pode-se dizer, do
inusitado, do contingente, mas também de aspectos coletivos como a irresponsabilidade, os
descuidos, que nos lembravam que éramos não só uma sociedade insegura, mas também
atrasada, incapaz de tomar um mínimo de cuidado, como disse Cerqueira Cézar. Um grupo
de pessoas estava sofrendo e morrendo pela única propriedade do césio que não se previu
que poderia ser, em qualquer medida, perigosa: a bela luminescência azul82, que iluminou o
galpão de um ferro-velho numa noite em Goiânia.

Por outro lado, a inocência de Devair e dos outros encantados pela beleza da
natureza artificial, é mais do que prevista: é temida pelo sistemas peritos. A inocência,
ignorância ou não-conhecimento do leigo são fatores de risco pelos quais os sistemas peritos
entendem ser necessário seu controle direto ou sua mediação sobre processos ou artefatos:
os sistemas peritos almejam o controle do chamado fator humano83, sempre imprevisível
nesse sentido. Os leigos não sabem identificar perigos invisíveis como a radiação ou a
contaminação química ou bacteriológica; o mecanismo de defesa dos leigos contra esses
perigos é a confiança nos sistemas peritos. Giddens demonstra que a confiança só é exigida
onde existe a ignorância (1991: 92), confiança que porém deve ser constituída socialmente,
metodicamente (através, por exemplo, do que ele chama de “currículo oculto” de respeito às
ciências, implícito na educação formal); e que sempre é ambivalente pela ignorância também
propiciar, ao lado da confiança, o ceticismo e a cautela. Mas a ignorância é produzida pelas
ciências tanto quanto o conhecimento84; pois qualquer conhecimento que se produz,

82
A cor azul é característica do césio e lhe deu o nome, derivado do latim, e que significa céu azul.
83
Dessa situação advém repetidos apelos para que a população seja informada sobre este ou aquele aspecto perigoso de coisas
disseminadas como medicamentos, produtos químicos de limpeza ou elevadores. Num outro nível, se desenvolveram os
métodos gerenciais do trabalho, lançando mão da psicologia e da sociologia industrial ou das organizações visando um
maior controle do “fator humano”.
84
Na formulação de Popper [1976], conhecemos muito, mas também “Nossa ignorância é sóbria e ilimitada. De fato, ela é,
precisamente, o progresso titubeante das ciências naturais (...), que constantemente, abre nossos olhos mais uma vez à
nossa ignorância, mesmo no campo das próprias ciências naturais. Isto dá uma nova virada na idéia socrática de
ignorância. A cada passo adiante, a cada problema que resolvemos, não só descobrimos problemas novos e não
solucionados, porém, também, descobrimos que aonde acreditávamos pisar em solo firme e seguro, todas as coisas são, na
verdade, inseguras e em estado de alteração contínua.”(:13)
62

aumentando o repertório do que se sabe, também aumenta concomitantemente o repertório


do que não se sabe ou ainda falta saber. O que se chama de ignorância (sobre a ciência) é
tão produto da ciência quanto seu saber - deste ponto de vista, o cientista é mais ignorante
do que o leigo. O cientista ou perito, que sabe o que não sabe, pode porém melhor controlar
sua ignorância que o leigo (e assim fazendo, não ser tão inocente), que nem pode se
entender assim, pois não sabe que não sabe algo que, para todos os efeitos, lhe é externo.
Na formulação de Virilio: “(...) acreditamos que a tecnologia e a razão andavam de mãos
dadas em direção ao progresso (...) chega de ilusões a respeito da tecnologia. Não
controlamos o que produzimos. Saber como fazer não significa que saibamos o que estamos
fazendo. Vamos tentar ser um pouco mais modestos, e vamos tentar entender o enigma do
que produzimos. As invenções, as criações dos cientistas são enigmas que expandem o
campo do desconhecido, que, por assim dizer, ampliam o desconhecido. E aqui temos uma
inversão. Essa inversão não é pessimista per se, é uma inversão de princípios. Já não
partimos de uma idéia relativística. O problema é o seguinte: a tecnologia é um enigma,
então, vamos trabalhar sobre o enigma e parar de trabalhar apenas sobre a tecnologia”
(Virilio & Lotringer : 65).

Construídos sobre a inocência, ou dizendo de outra maneira, sobre a produção de


não-conhecimento dos outros, e sobre as demonstrações de utilidade ou suposta autoridade,
os sistemas peritos que lidam com perigos como esses têm de deixar qualquer resquício de
inocência fora de seus portões, e isso não é uma metáfora. Portas, muros, caixas, trancas,
blindagens, capôs, sensores, e num outro nível, treinamentos e certificados, permissões,
regulamentos e normas, monitorações, rotinas, avaliações, vigilância, e ainda, a linguagem
hermética, servem para os sistemas peritos manter os leigos fora, mas dependentes.
Constróem-se assim os segredos, mistérios e enigmas na relação entre pessoas e coisas
cujo funcionamento desconhecem, a distância estrutural (como entendida na Antropologia)
entre peritos e leigos, os mecanismos sociais de desencaixe que operam na base da
confiança (Giddens), isto é, esquemas de poder que constituíram o mundo das coisas e dos
perigos no qual nos socializamos. A inocência já foi uma característica infantil, mas agora
todo o processo educativo massacrante e acelerado luta contra a inocência da criança, para
que ela possa sobreviver cercada de tomadas elétricas, bicos de gás, calmantes e produtos
de limpeza, vírus, trânsito e assaltantes. Não foi falado, todos sabiam: Leide deveria ter
lavado as mãos antes de comer.

Se a inocência é a inimiga da técnica, ela seria uma inimiga da modernidade. Pode-se


dizer, na modernidade simples, a inocência foi combatida com a educação em massa, com a
definição de papéis sociais, com a organização e separação dos locais de trabalho, na
confiança nos sistemas peritos e pela vigilância. Na modernidade reflexiva, o indivíduo
63

autoconsciente, adulto, se vê diante de conseqüências não previstas e não desejadas dos


principais sistemas que o mantém: para enfrentá-las, só lhe resta ser ainda mais previdente,
tomar e exigir mais cuidados, questionar mais os segredos, ser ainda menos inocente. Por
essa via, questionar as bases assimétricas da confiança: é menos uma questão do leigo ser
informado ou esclarecido nas questões da ciência e da técnica (e por essa via criticar e
defender-se dos perigos inerentes desses sistemas), e mais dele próprio decifrar sua
participação no enigma: é ele, o homem, que hoje propõe à Esfinge que o decifre. Pessoas
que deram marretadas numa bomba, que se encantaram e brincaram com a radiação oculta
na beleza do azul do césio, propõem às ciências que decifrem o que fizeram.

Pode-se aqui somente propor uma tentativa de decifração, à maneira de Beck (1992:
cap. 7): a inocência/ignorância são opostas à técnica e à ciência, mas ao mesmo tempo são
produzidas e, em outro nível, também são funcionais, necessárias à técnica e à ciência, pois
mantêm as relações (como a confiança) que necessitam para legitimar-se e institucionalizar-
se. A técnica e a ciência quando encontram a inocência e/ou ignorância, na verdade
encontram a si mesmas como, e nas, conseqüências não previstas, não percebidas de suas
próprias ações85, como problemas que não vem mais da natureza, mas de um mundo
transformado e em larga medida criado por elas. A ciência e a técnica são, portanto, elas
mesmas as ‘inimigas’ da modernização, criaram seus limites na sua, e pela sua, implantação.
Porém, para Beck, este aparente paradoxo mostra não o fim da modernização, mas é um
indicador de que ela se volta para si mesma, como uma “modernização da modernização”,
como auto-confrontação. A modernização se tornando reflexiva. Talvez daqui venha a
estranheza, pois o que a ciência (em sentido amplo, de busca pelo esclarecimento) consegue
imediatamente ver num acidente tecnológico, como o de Goiânia, também é, no fundo, o
familiar que foi esquecido. É a inocência, como a de Devair, cuja curiosidade sem
prevenções é a mesma da ciência na época que esta ainda não havia produzido,
intencionalmente ou não, o poder de, por exemplo, destruir o mundo.

85
Uma interpretação marxista poderia ser que a ciência e a técnica, trabalho e engenho humano, fetichizadas, aparecem numa
forma não mais reconhecida pelos seus próprios autores.
64

Capítulo 5 - Pessoas, cães e ratos atômicos: lixo


nuclear, políticos e técnicos
Neste capítulo, se atentará para os focos, criados pelo trabalho da imprensa, que
procuraram seguir, dia-a-dia, em primeiro lugar, a evolução do estado das vítimas e, em
segundo, as tarefas de recuperação da cidade, essas últimas tendo criado um problema
adicional, que foi o do lixo radioativo. Neste e no capítulo seguinte, por conta dessa maneira
de exposição, que não é cronológica, mas temática em primeiro lugar, poderão se observar
algumas idas e vindas no tempo, dentro do período do acidente (procurando, porém, seguir a
cronologia interna a esses temas).

Por volta dos dias 3 e 4 de outubro, a situação seguia mais ou menos o seguinte
arranjo: a CNEN vasculhava pessoas e ruas atrás de novos focos de radiação, e planejava o
que fazer para descontaminar os locais atingidos, o que nunca havia sido feito nessa escala
e nem no meio de uma cidade, com tudo o que existe dentro dela: casas, pessoas, árvores,
móveis, roupas, ruas, animais. Pensou-se até nos pombos, que poderiam carregar partículas
pela cidade. Já estavam na cidade 43 técnicos para os trabalhos do Acidente. As chuvas
abundantes ainda provocavam especulações sobre se o césio poderia contaminar a água, o
que chegou a provocar manchetes alarmistas86. Mais quatro vítimas em estado grave foram
transferidas para o Marcílio Dias, por um avião da FAB (Força Aérea Brasileira): Maria
Gabriela, mulher de Devair, fotografada pela última vez com vida, em trajes hospitalares, de
luvas e máscara; Luiza Odete Motta dos Santos, Kardec Sebastião dos Santos (o outro
catador de papel, que retirou a segunda parte da peça dos escombros do IGR), e Admilson
Alves de Souza, empregado de Devair (e que viria a ser outra vítima fatal).

Já começava a ser sentida a queda no movimento, no comércio que se situava


próximo do acidente, primeiro indício do que seria mais tarde reclamado como uma
discriminação aos produtos fabricados no Estado. Um número telefônico colocado à
disposição da população para responder dúvidas vinha atendendo a duas mil chamadas por
dia. As perguntas mais freqüentes eram sobre quais os lugares onde havia radiação e se as
pessoas podiam transitar (além de boatos e denúncias fantasiosas como a de um fazendeiro
que teria dado césio-137 misturado ao sal para o gado87). As dúvidas também foram objeto
de diferentes opiniões de técnicos dentro e fora da CNEN, pois não se sabia ainda se partes
da cidade deveriam ser interditadas por longos períodos, de até dezenas de anos: ainda não

86
O ESTADO DE S. PAULO. 08/10/87. Água pode ser contaminada
87
FOLHA DE S. PAULO. 04/10/87. Cai movimento em mercado da cidade.
65

se sabia quanto material radioativo fora perdido, onde ele se espalhara, qual a intensidade da
radiação, informações básicas para a ação.

Um dos personagens mais memoráveis do Acidente, o presidente da CNEN, Rex


Nazareth, havia chegado ao Rio, proveniente de um congresso da Agência Internacional de
Energia Atômica, AIEA, em Viena, indo direto para o Hospital Marcílio Dias para ter
informações sobre o estado das vítimas. Prometeu que levaria “às últimas conseqüências” a
apuração de responsabilidades, e defendeu a radioterapia, dizendo que “não permitiremos
88
que essa tecnologia seja atropelada por atos irresponsáveis” . Isto é, na sua visão, a
tecnologia também era vítima e necessitava ser defendida. No dia seguinte, Nazareth não
deu chance de vida para três vítimas (Devair, Roberto e Leide), e anunciou a intenção de
pedir auxílio à Polícia Federal. Após ter afirmado que o Acidente seria o mais grave ‘acidente
radiológico da história’, descartou a comparação com Tchernobyl: “Em Chernobyl não houve
um acidente radiológico, foi um acidente nuclear com conseqüências radiológicas. É
impossível comparar coisas diferentes”. Nesse ponto, houve concordância com Cerqueira
Leite, que também descartou a comparação por serem desastres de origens diferentes.89 A
tal diferença, no entanto, parece ser menos que uma sutileza técnica, e mais um jogo de
palavras90. Entretanto, no dia seguinte, 6 de outubro, a Folha de S. Paulo dava em título:
Acidente em GO foi o maior do mundo, diz Rex Nazareth. Já no primeiro parágrafo do corpo
da matéria, vê-se que a notícia não era bem essa. Nazareth afirmara que o Acidente “foi o
maior acidente de contágio com o produto [césio-137] ocorrido no mundo”. Nazareth havia
solicitado formalmente a ajuda internacional prevista em acordo com a AIEA, e anunciou a
chegada de médicos e físicos estrangeiros. Prometeu também um “amplo debate” para
definir o local onde ficaria o lixo atômico produzido no Brasil.

Enquanto isso, a questão do lixo radioativo já começava a ocupar um lugar de


destaque. Numa reunião com a participação do governo estadual e da OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil) secção de Goiás, do presidente do Tribunal de Justiça, da CNEN, dos
presidentes da Assembléia Legislativa de Goiás e da Câmara de Vereadores de Goiânia,
entre outros, ficou decidido que a área seria um terreno, na periferia de Goiânia,
supostamente desabitado. Foi a primeira e única vez em que foi noticiado algum ato como
decisão coletiva e que envolvia outros representantes da sociedade. Muito nervoso, Santillo
prometeu, ao final da reunião, que o depósito seria provisório, que depois deveria ser levado

88
FOLHA DE S. PAULO. 04/10/87. CNEN promete rigor na apuração.
89
FOLHA DE S. PAULO. 05/10/87. CNEN descarta chance de vida para três vítimas.
90
Aparentemente, a diferença entre acidente nuclear e radiológico é que, no primeiro, estão envolvidas reações nucleares e
alta liberação de energia, como a fissão; no segundo, a radiação é devida apenas à radioatividade inerente ao elemento.
66

pela CNEN para outro lugar. “Goiânia não será a Chernobyl dos cerrados”, disse várias
91
vezes Santillo.

Na mesma noite, a Folha de S. Paulo ‘comprovou’ que o local era habitado, próximo
de uma escola, de uma granja e de uma criação de peixes. Uma das moradoras mais
próximas, uma senhora de 83 anos, teve problemas cardíacos ao saber da notícia e teve de
ser socorrida às pressas. Um grupo de moradores montou uma vigília no local para tentar
impedir a entradas das máquinas que preparariam o terreno.92 A reação dos moradores, que
se armaram com paus e pedras, suspendeu o início dos trabalhos.

“O que eles queriam era um absurdo, como botar toda aquela porcaria aqui, junto da
estrada, em área com tanta gente e a menos de 300 metros de um grupo escolar”, explicou
Manuel Dias, presidente da Associação dos Moradores da Vila Pedroso. Ele fez questão
de dizer que “não pertence a nenhum Partido Verde ou ao PT, sou independente, mas luto
por nossas crianças”.93

Tratamento militar: o sofrimento das vítimas


Enquanto isso, por volta do dia 7 de outubro, eram 34 as vítimas sob cuidados: dez no
Marcílio Dias, cinco no HGG, dezenove em observação na Febem (Fundação Estadual do
Bem Estar do Menor) de Goiânia, número que aumentou à medida que foram aparecendo
outros contaminados, até um total de 249 pessoas (das quais, pouco menos da metade se
contaminou de fato ou recebeu níveis altos de radiação), o que pode ter provocado a
impressão que o acidente se alastrava. O almirante Amihay Burlá teve de desmentir o boato
que uma das vítimas havia morrido, mas o boletim médico diário indicava que a morte de
algumas das vítimas ou a necessidade de amputação de membros era iminente. A chegada
e o trabalho dos médicos estrangeiros teve presença bastante discreta na imprensa, embora
fosse divulgado que vários deles tinham estado em Goiânia ou no Rio de Janeiro (no Marcílio
Dias), como Juan Carlos Gimenez, argentino, que explicou que devido à raridade de
ocorrências com radiação, eram poucos os médicos especializados, em todo o mundo. Sobre
os sobreviventes, se aventavam as possibilidades de adquirirem câncer ou leucemia, e a
necessidade de um acompanhamento constante, até a terceira geração.

No dia 14 de outubro, Roberto teve o antebraço direito amputado, pouco abaixo do


cotovelo. Seu estado geral era considerado gravíssimo, assim como o de Devair, de Leide,
de Wagner e Maria Gabriela. Roberto, Wagner e Devair, entretanto, ainda se salvariam
dessa vez, contra vários prognósticos. A situação das vítimas e as condições de tratamento,

91
O ESTADO DE S. PAULO e FOLHA DE S. PAULO. 06/10/87
92
FOLHA DE S. PAULO. 06/10/87. Lixo radiativo será depositado em local habitado: O governo de Goiás decidiu
levar o material contaminado para a periferia de Goiânia, perto de uma escola.
93
O ESTADO DE S. PAULO. 07/10/87. População reage e vence.
67

entretanto, não eram claras. Através de depoimentos de funcionários, em off, divulgou-se o


seguinte fato que teria acontecido na enfermaria do Marcílio Dias:

A voz nem sempre obedece aos movimentos dos lábios, mas pela expressão estampada em
seu rosto os médicos do Hospital Marcílio Dias conseguiram entender: Devair Alves
Ferreira (...) queria que a cortina de chumbo, própria para evitar a contaminação, não fosse
mais colocada entre a sua cama e a da filha, a menina Leide das Neves Ferreira, de seis
anos, que como ele também é paciente terminal. O pedido foi prontamente atendido, e a
cena que se seguiu comoveu até os mais experimentados funcionários daquela unidade:
Devair sorriu e com as mãos queimadas tocou o corpo da filha para depois adormecer, em
um dos raros momentos em que a dor, sempre presente, acabou substituída por um misto
de felicidade e amor paterno. A cortina de chumbo não foi mais colocada entre a cama dos
dois e eles continuam unidos no sofrimento94.

A notícia, entretanto, continha pelo menos um erro, já que Leide não é filha de Devair,
mas de Ivo. A imprensa, aliás, teve muitos erros quanto aos nomes e parentescos das
95
vítimas, erros que não costuma cometer quando se trata de pessoas ‘importantes’ .
Segundo um outro relato, entretanto, Devair, já desenganado, auxiliava o tratamento de
Leide dando-lhe de comer, já que a menina estava tão contaminada que enfermeiras e
médicos não podiam ficar muito tempo próximos a ela, para não ultrapassarem os limites de
exposição. Os funcionários que deram o depoimento acima estariam revoltados com os erros
e descasos das autoridades para com as vítimas, que estariam isoladas do mundo exterior,
para que não viessem a cobrar os seus direitos. No contato com os pacientes, os
funcionários souberam que assim que ficaram doentes, os pacientes teriam procurado a
secretaria de saúde de Goiás, que não teria acreditado inicialmente na gravidade dos
sintomas nem que a peça levada à secretaria seria a causadora das doenças. Estavam
revoltados, sobretudo, com a suposta versão que as autoridades já sabiam de tudo antes,
mas evitaram divulgar a notícia para não atrapalhar a realização da etapa do campeonato
mundial de motociclismo, que lotou os hotéis da cidade, lembrando para eles o prefeito do
filme Tubarão (de Steven Spielberg).

No dia 19, Maria Gabriela de Abreu, de 57 anos, e Israel Batista dos Santos, de 22,
foram transferidos do HGG para o Marcílio Dias. Maria Gabriela era a sogra de Devair, e teria
passado uma noite num leito ao lado do cilindro com o césio-137. Israel era empregado de
Devair, sorriu para fotos e fez sinais para os jornalistas dizendo que estava bem. Israel
morreria poucos dias depois. No mesmo dia, Ernesto Fabiano teve alta do Marcílio e voltou
para o HGG. Em entrevistas, algumas dadas pela janela do hospital, Ernesto falou de suas

94
JORNAL DA TARDE. 16/10/87. A dor de Devair, ao lado da filha.
95
Em novembro de 1996, com a queda de um avião na cidade de São Paulo, praticamente todas as 99 vítimas tiveram suas
biografias levantadas e comentadas na imprensa. Quase todos eram executivos e profissionais liberais.
68

dores, da pedrinha que ganhou do irmão Edson e que carregou no bolso da calça durante 45
minutos, das bolhas que foram aparecendo e virando uma grande ferida na perna direita, que
ele quase perdeu. Sua mulher Dalva acabou jogando a pedra no vaso sanitário (cuja fossa a
CNEN teve depois que concretar). “O tratamento foi militar; eles não informavam nada, não
contavam nada. Só tratavam da gente.(...) Quero ir para casa96”. Os pacientes no Marcílio
ficavam isolados, mas às vezes era permitido que se encontrassem. “Houve momentos em
que eu pensei que ia desintegrar, desaparecer”. O Marcílio Dias “é uma prisão, a gente não
tem direito de falar nada, não tem ar livre, só ar condicionado (...) [porém] eles dão de tudo,
97
até cigarro. Só não dão cachaça, por não podermos beber. Mesmo assim, foi horrível. ”.

Aparentemente, a vida das vítimas que ficaram em Goiânia também não era fácil. A
avaliação de uma equipe local que procurou dar apoio psicológico e enfrentou dificuldades,
descreve assim as condições psíquicas gerais: “No Hospital Geral de Goiânia (HGG), o
comportamento oscilava entre reações depressivas e maníacas, entre a tristeza e a revolta e,
em alguns casos, havia grande excitação psicomotora. Estados de insegurança e ansiedade
surgiam como manifestações diante da possibilidade de morte, gerando certa regressão. As
dúvidas e as indagações sobre o estado de saúde eram respondidas apenas em termos de
probabilidades, o que favorecia as fantasias e a forte tensão emocional. A impotência diante
das limitações impostas pelas barreiras físicas e psíquicas gerava a apatia, a depressão e a
revolta, que se misturavam com o medo e a angústia, acompanhadas de eventuais
sentimentos de culpa pela perda da própria saúde e das demais pessoas atingidas, em geral
familiares e amigos.”(Helou & Costa, orgs. 1995: 15-6) Essas reações das vítimas foram
descritas apenas de passagem na imprensa, como dificuldades causadas por “excepcionais”
ou deficientes mentais. As vítimas eram vigiadas, na Febem, pela polícia98.

A indefinição da situação das vítimas, segundo esses autores, provocou efeitos como
o comprometimento da identidade do Ego, manifestações agressivas e crises depressivas
naqueles internados na Febem. “Os radioacidentados albergados na Febem reagiam
agressivamente contra suas instalações, por elas motivarem o medo, o desamparo, a
discriminação e a perda. Depredavam o prédio e espalhavam fezes e urina pelas instalações,
com o intuito de contaminar o ambiente. Entre eles eram freqüentes os gritos, as crises de
choro e os pedidos de socorro. Havia resistência às informações e ao tratamento
preconizado. Entre as crianças, além do medo e da agressividade, percebia-se o sono
sobressaltado, a enurese noturna e a fantasia da perda de membros” (:17). Mesmo depois de

96
O ESTADO DE S. PAULO. 21/10/87
97
FOLHA DE S. PAULO. 22/10/87. Vítima da radiação quer processar os responsáveis.
98
FOLHA DE S. PAULO. 21/10/87. Excepcionais são vigiados na Febem. (A matéria é ilustrada por uma foto de crianças
sorridentes)
69

passada a emergência, ainda ficaram para as vítimas as seqüelas físicas, mentais, a ameaça
à saúde, o desamparo material e a discriminação. Durante a cobertura intensiva do acidente,
entretanto, o tom reservado para observações sobre essas pessoas não passava, na maioria
dos casos, de descrições secas de doentes e seus sintomas, copiados pela imprensa dos
boletins médicos. Mal chegavam a personagens, mas apareciam apenas como vítimas.

No dia 23 de outubro, sexta feira, por volta das 12 horas, morreu Maria Gabriela,
mulher de Devair, então com 38 anos. Sua sobrinha Leide morreu no mesmo dia, às 18
horas.

Caixões especiais de chumbo e covas de concreto já tinham sido providenciados, e


eram necessários, pois os corpos ainda poderiam irradiar. Nesse dia, Rex Nazareth não falou
à imprensa, que queria saber dos detalhes sobre as mortes, como seria feito o traslado e o
enterro. Santillo chegou a lamentar a morte de Leide antes que esta tivesse de fato ocorrido,
fazendo com que a mãe da menina entrasse em estado de choque, e cancelou as
festividades do aniversário da cidade, no dia 24. Israel morreu na manhã do dia 27. Admilson
morreu no dia seguinte. Ambos os jovens eram empregados de Devair no ferro-velho.

A mãe de Leide Ferreira, Lurdes Ferreira, disse ontem que a única coisa que espera agora
é saber quem foram os responsáveis pelo acidente radiativo (...) “Se fosse doença, era mais
fácil me conformar. Mas só de saber que isso podia ter sido evitado...”. Lurdes disse que,
se pudesse, passaria o resto da vida no centro de recuperação da Febem, onde se encontra
em observação junto com outras 22 vítimas da radiação: “Para mim, Goiânia acabou.”99

Maria Gabriela tinha 11 irmãs. Uma delas a descreveu como muito trabalhadora,
“enquanto o Devair, marido dela, ficava bebendo.”100 Israel era órfão de mãe, tendo sido
criado por uma tia. Admilson morava nos fundos do ferro-velho de Devair. Sua família, do
interior de Goiás, só ficara sabendo que ele estava internado havia 15 dias. O secretário de
saúde de Goiás, Antonio Faleiros, explicou que os enterros seriam realizados num cemitério
da periferia de Goiânia (onde depois se soube, eram enterrados os pobres e indigentes da
cidade), e que não ofereceriam nenhum perigo de vida. No dia 24, o então presidente da
Câmara, do PMDB e do Congresso Constituinte, Ulysses Guimarães, fez uma visita de
solidariedade à cidade, participando de uma missa na Praça Cívica, na qual estiveram cerca
de mil pessoas.

A morte das vítimas, principalmente de Leide e Maria Gabriela, foi uma espécie de
anti-clímax previsível do Acidente, pela gravidade de seu estado de saúde. Envolvendo
pessoas não ligadas profissionalmente ao setor, elas talvez tenham sido as primeiras vítimas

99
FOLHA DE S. PAULO. 25/10/87. Mãe da menina morta por radiação quer apuração da responsabilidade.
100
O ESTADO DE S. PAULO. 24/10/87. Em Goiânia, a dor da família.
70

da radiação admitidas como tal desde Hiroshima, excluindo os acidentes nucleares que
ocorreram em segredo. Do ponto de vista do sistema nuclear e de suas afirmações quanto à
segurança, nada mais grave poderia ocorrer. Os peritos defensores da energia nuclear são
particularmente hábeis em produzir estudos minimizando riscos e conseqüências (Myers III,
[1977]). Mesmo a incidência de câncer e leucemia nos trabalhadores da indústria nuclear,
nas vizinhanças de usinas, ou em militares americanos como os que tiveram que assistir a
testes nucleares é refutada como não sendo ‘cientificamente’ comprovada. Nos acidentes
tecnológicos, as investigações invariavelmente apontam para ‘erros humanos’101, como em
Three Mile Island e Tchernobyl. Daí a afirmação de Nazareth, que esperava que os culpados
pelas mortes fossem responsabilizados criminalmente (ele se referia aos donos do IGR),
“pelo bem da energia nuclear no Brasil”102. Isto é, para sacramentar a ‘inocência’ do sistema
nuclear.

Governantes em luta: quem fica com o lixo radioativo?


Outro foco do Acidente, entretanto, propiciou vislumbrar modo exemplar, embora de
modo também fragmentário e pela visão da imprensa, que a energia nuclear, no Brasil ou em
qualquer país, têm problemas internos evidentes e pouco têm a ver com ‘erros humanos’. Os
problemas podem ser resumidos na questão: o que fazer com o lixo radioativo? (Nos termos
de Beck, como lidar com os efeitos colaterais da sociedade industrial, que passaram ao
primeiro plano)

No Acidente, como foi visto, a questão derivou da necessidade de descontaminação


dos locais atingidos, o que geraria um grande volume de objetos que deveriam ser
convenientemente acondicionados e isolados. Não existia no país sequer a previsão de um
depósito de lixo radioativo permanente para os rejeitos da operação de Angra I, que são
armazenados provisoriamente dentro das próprias instalações. A operação de Angra I produz
como subproduto, em poucas horas, a mesma quantidade de césio-137 espalhada em
Goiânia, entre vários outros elementos decorrentes da fissão do urânio. A questão do que
fazer com o lixo radioativo, mesmo de um ponto de vista técnico, é bastante complexa e cara,
se é que será possível arranjar uma solução. Por exemplo, uma das propostas era embarcar
o lixo em foguetes e despachá-lo para o espaço: para os opositores da energia atômica, tal
proposta é uma expressão das intransponíveis limitações do uso da energia nuclear (Myers
III, [1977]).

101
Beck diz que o imperativo que recai sobre todos os membros da sociedade diante das ameaças produzidas pela tecnologia é
de que não podemos errar. Não há humanidade sem erros, embora seja isso o que postula a tecnologia. Como os seres
humanos vão continuar errando, todos seremos os bodes expiatórios da tecnologia: uma sociedade bode expiatório
(scapegoat society). (Beck, 1992. Op.cit.: 49, 75)
102
FOLHA DE S. PAULO. 25/10/87.
71

Embora a maior parte dos resíduos radioativos gerados por toda a atividade nuclear,
cuja atividade dura relativamente poucos anos, seja de manejo conhecido, a parte dos
resíduos de alta radioatividade, geralmente rejeitos das usinas nucleares, constitui um
problema cuja solução não foi alcançada: devem ser guardados por períodos de centenas de
milhares de anos em condições especiais e sob refrigeração, tal o seu nível de radiação - e
simplesmente nenhum artefato humano pode ser garantido por tal período. É um problema
tão grave que poderia ter inviabilizado as usinas nucleares, por exemplo, se o custo do lixo
radioativo fosse acrescentado ao da geração de energia: esse ‘inconveniente’ foi sempre
minimizado ou censurado pelos defensores da energia nuclear103.

No nível doméstico, ainda no dia 6 de outubro, o governo de Goiás teve de recuar da


sua intenção de depositar o lixo em Vila Pedroso, diante da reação dos moradores da área,
que, segundo o governo, era desabitada. A segunda opção seria um terreno de uma colônia
de leprosos, a 20 km do centro de Goiânia. A idéia de colocar junto rejeitos radioativos e
leprosos é expressiva, e não deve ser uma coincidência. Leprosos (como aidéticos,
pestilentos, loucos e como se veria, os contaminados) provocam pavor e devem ser
segregados, tal como o lixo radioativo. A idéia da colônia de leprosos foi posteriormente
abandonada, mas em favor de outra proposta que se mostrou depois também desastrada104.

A idéia que o Acidente formou do empreendimento nuclear como algo terrível


espalhou-se por todo o país: Em São Paulo, fez-se um levantamento do paradeiro dos
aparelhos de radioterapia (alguns pacientes apavorados largaram seus tratamentos),
mobilizaram-se debates nas câmaras de vereadores, na Assembléia Legislativa, em
associações e escolas. Indústrias que utilizavam materiais radioativos foram fechadas ou
fiscalizadas pelos órgãos estaduais, depósitos de rejeitos industriais foram ‘descobertos’ no
bairro de Santo Amaro, numa fábrica da Nuclemon/Nuclebrás, e em Itu, interior do Estado.
Praticantes de jogging e estudantes evitavam os arredores do IPEN, dentro do campus da
USP; e moradores do bairro do Butantã, onde fica o campus, alarmaram-se com a
possibilidade de o lixo radioativo de Goiânia ser trazido para lá. Um caminhão que trazia
aparas de papel, fracamente contaminadas no ferro-velho de Goiânia, apavorou cidades do
interior como São Carlos, Araras e Osasco, obrigando o então governador Orestes Quércia a
aparecer para a imprensa, garantindo que não haveria perigo, que “todas as providências”
tinham sido tomadas, e que não permitiria que o lixo radioativo de Goiânia viesse para São
Paulo.

103
Ver Biasi (1979). O autor é totalmente favorável ao programa nuclear brasileiro, e toca no assunto dos rejeitos radioativos
como se fosse apenas um detalhe técnico.
104
FOLHA DE S. PAULO, 09/10/87. Aeronáutica diz que serra do Cachimbo pode abrigar lixo atômico de Goiânia.
72

Na cidade do Rio de Janeiro, no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro -


UFRJ

... professores, alunos, cientistas e todo o corpo dirigente estão em estado de alerta
máximo para impedir que os resíduos radioativos do acidente sejam levados para ser
enterrados no depósito do Instituto de Energia Nuclear, sediado na área da universidade.105

Para o IEN da UFRJ foram levados os rejeitos hospitalares radioativos do hospital


Marcílio Dias. O fato dessa operação ter apavorado e mobilizado a comunidade universitária,
que é por definição parte da elite ilustrada da nação, é sintomático da desconfiança da
população na capacidade dos peritos e do governo e do medo profundo que o acontecimento
gerava (ou do medo que, por sua vez, gerava o acontecimento). Como o nome diz, o Instituto
de Energia Nuclear é uma instituição especializada, e o manejo de rejeitos hospitalares (que
é uma atividade de rotina: a diferença era apenas de volume) apresentaria, teoricamente,
poucos perigos. Mesmo que se leve em conta um possível exagero do jornal na notícia, o
fato é que o próprio acontecimento estava demonstrando que quanto mais se procurava
esclarecer, e quanto mais esclarecido se ficava, mais ficava claro o perigo da radiação e o
fato de que não haviam controles confiáveis no Brasil, muito embora acompanhar o Acidente
pela imprensa trouxesse mais dúvidas do que as dirimia.

No dia 7 de outubro, Rex Nazareth anunciou que iria propor que o lixo radioativo fosse
depositado numa base da Aeronáutica na Serra do Cachimbo, sul do Estado do Pará. Nessa
mesma base existiam instalações apropriadas para testes subterrâneos de armas atômicas,
que tinham sido construídas secretamente dentro do programa nuclear paralelo. A escolha
teria se baseado nas condições geológicas supostamente propícias para as instalações. O
governador Santillo mantinha a posição de não permitir que o lixo permanecesse no Estado
de Goiás, nem mesmo em caráter provisório, e insistia que o problema do lixo era do governo
federal e da CNEN, “que nunca se importou em prever a situação atual106”.

Em cadeia nacional de rádio e televisão107, no dia 9, Rex Nazareth, além de fazer um


balanço otimista da situação e de reafirmar que a situação estava sob controle, anunciou a
determinação do Presidente da República, José Sarney, em utilizar a base de Serra do
Cachimbo, para onde já existiriam estudos geológicos para depositar o lixo radioativo. Em
Goiás, tais estudos ainda teriam de ser feitos. No Pará, o terreno seria apropriado para uma

105
O ESTADO DE S. PAULO. 07/10/87. Estrangeiros já estudam a radiação.
106
JORNAL DA TARDE, 09/10/87.
107
O uso do recurso da cadeia nacional de rádio e televisão dá uma idéia da importância que adquiriu o Acidente.
73

108
construção adequada à meia-vida do césio, respeitando as normas da própria CNEN. A
alternativa da Serra do Cachimbo, porém, seria atacada imediatamente, tanto pelo seu lado
técnico quanto político.

Pelo lado técnico, por exemplo, Rogério Cézar Cerqueira Leite afirmou que levar o lixo
até a Serra do Cachimbo era um cuidado excessivo, “um requinte”. Na sua opinião, os
rejeitos do Acidente não eram de manejo complicado, necessitando uma caixa de concreto e
chumbo, coberta com terra, sendo um problema menor diante das tarefas de
descontaminação. Por outro lado, a operação de levar os rejeitos de caminhão até o Pará
esbarrava no perigo desse transporte e na ausência de estradas. Outra opinião discordante
foi a do geólogo do Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, Taylor Collier, para
quem Serra do Cachimbo não teria as condições de terreno necessárias para o depósito.
Pelo lado político, os jornais noticiaram que a cidade de Itaituba, de 110 mil habitantes, a 400
(ou 600, como noticiou outro jornal) quilômetros da Serra do Cachimbo estaria revoltada e/ou
assustada109. O governador do Pará, Hélio Gueiros, atacou Nazareth, dizendo que a idéia
“era uma pilhéria de muito mau gosto desse tal senhor Rex, que pensa que o Pará é uma
lixeira”. Nazareth não comentou essas declarações, dizendo que “Minha atividade é técnica,
não política”. Ainda no mesmo dia, o governador do Estado do Rio de Janeiro declarava que
não ficaria com os rejeitos de Angra I nem os do hospital Marcílio Dias. “Quem produz o lixo
que cuide dele”, afirmou. Na cidade do Rio de Janeiro, uma vereadora propôs a criação de
uma lei que “desnuclearizaria” a cidade.110

Gueiros dirigiu-se, então, diretamente a Sarney em carta aberta, dizendo que estava
estarrecido e horrorizado, pedindo para que o Presidente revisasse sua decisão, protestando
pelo fato de não ter sido consultado, e chamando o presidente da CNEN de “rato atômico”.
Gueiros considerou um desrespeito não ter sido previamente informado de “tão arriscada
decisão, como se este território fosse reserva para lixeira de detritos que o resto do Brasil
não quer ou vaso sanitário no fundo do qual se lance tudo quanto não presta ou como se isto
111
aqui fosse terra de ninguém, sem autoridades constituídas” . Naquele ano, a procissão do
Círio de Nazaré, em Belém, foi marcada pelos protestos dos paraenses contra a decisão de
Sarney. Os índios caiapós, moradores da Serra do Cachimbo, fizeram mais: embarcaram
para Brasília e dançaram diante do Palácio do Planalto e para as câmaras da televisão em

108
Meia-vida é o tempo necessário para que um elemento radioativo decaia à metade de sua radioatividade original, que para
o césio-137 é de 30 anos, mas chega a milhares de anos para elementos como o plutônio. Note-se que não é um decaimento
linear: quanto mais o tempo passa, mais vagaroso é o decaimento da atividade.
109
Para se ter uma idéia do ‘exagero’, São Paulo está a cerca de 300 km da usina de Angra dos Reis, enquanto o Rio de
Janeiro a pouco mais de 100 km. Entretanto, alguém de mais bom senso diria que Angra I é que está no lugar errado.
110
FOLHA DE S. PAULO. 10/10/87.
111
O ESTADO DE S. PAULO e FOLHA DE S. PAULO . 11/10/87
74

112
protesto contra o lixo. Segundo Gabeira (1987, op.cit.: 44), a pajelança arrancou de Sarney
a promessa de que voltaria atrás na sua decisão.

Enquanto o problema do lixo atômico passava para o próprio Presidente da


República, Santillo, irritado com a demora da CNEN, passou a tomar suas próprias iniciativas
para iniciar a descontaminação, pedindo à Alemanha Ocidental máquinas robôs, que tinham
sido supostamente utilizadas em Tchernobyl. A CNEN mantinha a atitude de depender, o
menos possível, de ajuda estrangeira, e portanto, a atitude de Santillo deflagrou um conflito
que vinha latente, com acusações de parte a parte. Santillo reclamaria que a CNEN dependia
do governo do estado para tudo, máquinas, carros, até alicates; não conseguira ainda
terminar o plano de descontaminação e temia que a demora aumentasse ainda mais a
discriminação contra pessoas e produtos de Goiás, o que estava prejudicando a economia do
Estado. A CNEN queixava-se da burocracia e de que as máquinas que o governo destinava
ao trabalho eram todas velhas e quebradas, pois o governo temia que elas virassem lixo
radioativo. A CNEN também dizia que o seu planejamento estava sendo prejudicado pela
indefinição do local de depósito provisório do lixo atômico. O conflito sintetizou-se,
literalmente, numa mesma fórmula com os seus elementos trocados: para Santillo, a CNEN
“era excessivamente técnica e pouco política”, para a CNEN o seu próprio papel era “técnico,
e não deveria entrar no terreno minado da política”113 para onde, segundo a instituição,
Santillo estava querendo levar a CNEN.

Empurrado de um lado para outro no campo dos planos e das intenções, e depois de
apavorar boa parte do território nacional, onde supostamente passaria ou ficaria, a batata
quente do lixo radioativo acabou ficando mesmo com o Estado de Goiás, bem próximo da
capital, na cidade de Abadia de Goiás. Quando a decisão foi anunciada, a população da
localidade bem que tentou protestar (segundo uma notícia, unindo a Igreja, o PC do B e até a
UDR114 local), mas, dessa vez, a polícia interveio. Num gesto de propaganda, Santillo
resolveu passar os seus fins de semana num sítio próximo do local, levando seu neto e
sendo fotografado promovendo um animado churrasco. O depósito consistiu de uma área
aplainada e concretada, depois cercada com arame, onde foram empilhados a céu aberto
contêineres, caixas e tambores com os resíduos115.

112
José Sarney é um supersticioso notório, mas, aparentemente, Sarney desejava não contrariar o governador de um Estado
por onde passaria a grande obra que planejara, a ferrovia Norte-Sul.
113
(citar a fonte)
114
“Um dos diretores da UDR, o fazendeiro Márcio Ribeiro, com propriedades próximas ao local, sugeriu que o lixo fosse
depositado a pouco mais de 140 km dali, no sítio de São José do Pericumã, do presidente Sarney”. JORNAL DA TARDE.
18/10/87. População fecha estrada para o depósito nuclear.
115
Consiste em 3.000 m3 de lixo atômico em 1.219 caixas, 2.822 tambores e 14 containers. CIÊNCIA HOJE. Op.cit.
(SBPC, 1988: 5).
75

Para anunciar a decisão de voltar atrás na escolha de Serra do Cachimbo, Sarney


viajou a Goiânia “de surpresa” dia 14 de outubro. Anunciou que enviaria ao Congresso um
projeto de lei para os resíduos radioativos, com a exigência de que cada Estado construísse
um depósito para esse material. Ainda durante a visita, Santillo voltava a dizer que o lixo
atômico não ficaria em Goiás. Sarney repetiu diversas vezes que a situação estava sob
controle, que as responsabilidades seriam apuradas com “todo o rigor”, que o que
acontecera em Goiânia não fora um acidente nuclear, mas um “acidente radioativo”. Sarney
visitou as vítimas no HGG, onde foi fotografado de jaleco branco e touca, esteve na rua 57,
onde ficava a casa de Roberto, conversou com técnicos da CNEN, os quais elogiou pela
“dedicação”. Quando foi embora, havia deixado, para a cidade em emergência e para um
Congresso ocupado com a feitura da nova Constituição, o problema do lixo radioativo. Uma
nítida manobra política, ou de modo mais analítico, um exemplo da ‘técnica política’ de lidar
com um problema ‘técnico’: pode ser eficaz do ponto de vista do político, mas nulo ou
atrapalhador no referente à solução do problema ‘técnico’. Isso poderia ser afirmado se
existir um problema técnico que não seja, simultaneamente, e em algum nível, um problema
político. A política pode ser uma maneira de domesticar a técnica (e vice-versa: a técnica
pode ser usada para frear a irracionalidade política. No limite, entretanto, a questão
permanece política).

Embora pareça típico do modo de agir que a oligarquia atrasada utiliza no Brasil,
aplicado a um problema da modernidade, o qual seria, por definição, impotente para resolver,
nos países industrializados e democráticos, há exemplos de que, quando se trata da questão
do lixo radioativo, não há muitos canais possíveis de negociação política que permita o
trânsito livre da vontade dos peritos. Não importa o quanto os técnicos garantam a segurança
de instalações de lixo radioativo, as populações próximas dos locais escolhidos têm por
hábito protestar, e muito, e não se encontrou ainda uma solução política e tecnicamente
viável. Não é à toa que a Inglaterra despejava seus resíduos químicos e radioativos no Mar
do Norte secretamente, ameaçando poluir a costa da Irlanda com plutônio, até que foi
denunciada pelo Greenpeace.

Nos EUA, a AEC (Atomic Energy Commission), equivalente à CNEN até 1974,
quando foi dividida, utilizou, nas décadas de 60 e 70, alguns subterfúgios para tratar com o
crescente problema do lixo de alta radioatividade de usinas nucleares, como classificá-lo não
como lixo, mas como ‘recurso’. Uma das soluções apontadas foi a de utilizar uma mina de sal
abandonada. Nos fins dos anos 70, a AEC encontrou uma que parecia adequada, na região
da cidade de Lyons, no Kansas, com apenas 5 mil habitantes. Anunciada como solução com
entusiasmo, aos poucos a resistência dos habitantes, de seus representantes políticos, dos
76

cientistas e até da empresa proprietária da mina, bem como estudos mais aprofundados,
obrigou a AEC a desistir:

O fiasco de Lyons demonstrou um padrão que se repetiu então subseqüentemente. Os


proponentes nucleares declaram que a solução para o problema dos resíduos é certo ou
iminente. Então numa lufada de entusiasmo, a AEC ou o Departamento de Energia
anuncia que descobriu um lugar ou uma técnica, ou ambos, para implementar a solução, e
apressa planos para tornar a solução realidade. Então cientistas críticos, alguns deles de
dentro do establishment nuclear, apontam problemas técnicos fatais no plano. O
Congresso ou o presidente recomendam que o projeto seja abandonado, então os
proponentes nucleares voltam ao começo do ciclo, prometendo uma solução iminente e
declarando que os problemas são somente políticos, não técnicos. A busca começa
novamente por uma solução técnica e/ou um lugar exeqüível politicamente. (Clarfield &
Wiecek , 1984: 362)116

Segundo o Greenpeace (1996), em 1994, havia 130 mil toneladas de lixo radioativo
acumuladas nas piscinas de refrigeração117 de reatores em todo o mundo, sem uma solução
definitiva para o problema. Embora o lixo radioativo de Goiânia não fosse tão perigoso
quanto o de um reator, as preocupações que deveriam ser consideradas quanto à segurança
são, basicamente, as mesmas. A contragosto dos moradores, o depósito definitivo do lixo do
Acidente foi construído a poucos metros de onde está o provisório, em Abadia. No início de
1997, deveriam estar em curso as operações de transporte do segundo para o primeiro, com
um atraso de quase dez anos em relação às primeiras estimativas.

Descontaminando a cidade: a CNEN e seus críticos


Os trabalhos de descontaminação podem ser divididos em duas frentes: em relação
às pessoas, em primeiro lugar, as que tiveram de ser internadas para descontaminação, que
foram as que manusearam ou estiveram em contato próximo com a fonte de césio ou as
‘pedrinhas’, e os seus amigos e parentes, e que tiveram contaminação externa e interna (por
inalação ou ingestão do pó do césio-137), um grupo que chegou a 129 pessoas118; em
segundo lugar, um grupo de 120 pessoas que tiveram apenas calçados e roupas
contaminados, resultando num total de 249. A CNEN estimou em cerca de mil as pessoas
que foram irradiadas pelo césio, em doses “acima daquela oriunda da radiação natural” (de

116
“The Lions fiasco demonstrated a pattern that has repeated itself subsequently. Nuclear proponents declare that a
solution to the problem of wastes is either certain or imminent. Then in a flurry of enthusiasm, the AEC or the Department
of Energy announces that it has discovered a site or a technique, or both, to implement the solution, and it rushes ahead
with plans to make its solution a reality. Then scientist critics, some of them inside the nuclear establishment, point out fatal
technical flews in the scheme. Congress or the president recommends that the project be dropped, and nuclear proponents
return to the beginning of the cycle, promising an imminent solution and declaring that the problems are only political, not
technical. The search begins once again for a technical fix and/or a politically feasible site.”
117
Um dos problemas técnicos do lixo de alta radioatividade é que ele produz calor: ninguém conseguiu pensar num meio de
manter esses resíduos refrigerados, por milhares de anos.
118
Das 129, 49 tiveram de ser internadas, 21 necessitaram de tratamento médico intensivo.
77

0,2 a 0,3 miliroentgen/h), incluindo vizinhos e transeuntes nas ruas onde estavam os
principais focos, mais as que estiveram no ônibus onde Maria Gabriela e Geraldo levaram a
fonte para o prédio da Vigilância Sanitária, mais alguns funcionários dessa repartição
(incluindo o veterinário Paulo Monteiro, que atendeu a Maria Gabriela). Ainda segundo a
CNEN, de 30 de setembro a 22 de dezembro foram monitoradas 112.800 pessoas no Estádio
Olímpico (o que representa cerca de 10% da população de Goiânia)119. A descontaminação
dessas pessoas produziu rejeitos hospitalares, roupas, utensílios, excrementos etc., mas que
foram considerados, na maioria, lixo de baixa radioatividade.

A outra frente de descontaminação teve a tarefa de limpar o césio-137 em sete


pontos principais: a casa de Roberto, na rua 57 (a qual se tornou um dos símbolos do
Acidente); uma casa na rua 63; o ferro-velho de Devair, o ferro-velho de Ivo; outro ferro-velho
na rua P 19; a casa de Ernesto Fabiano e o prédio da Vigilância Sanitária. O pó de cloreto de
césio, segundo as descrições, é denso, pesado, solúvel em água mas também aderente a
diversos materiais, e quando ingerido, foi incorporado pelo organismo das pessoas pelo
metabolismo, justamente por suas qualidades químicas. Num depoimento, um técnico do
Instituto de Radioproteção e Dosimetria sintetiza assim o problema, terminando por criticar o
restante da comunidade científica:

A história do acidente dá uma idéia da amplitude da nossa tarefa: o “pó venenoso”,


contendo cloreto de césio, foi manuseado, levado para casa em vidrinho, colocado no
bolso, esfregado no corpo. Foi varrido para debaixo do armário, para a cozinha, para o
quintal. Foi lavado pela chuva e carregado pelo vento. Mais grave ainda foi a sua
disseminação pelas pessoas, que o deixavam onde colocavam as mãos, os pés ou onde se
sentavam. Nos locais em que trabalhamos, era possível seguir o rastro da contaminação,
nos bancos, mesas, torneiras, azulejos e outros objetos. Era possível traçar o caminho do
césio e reconstituir o trajeto das pessoas contaminadas (...) O trabalho de descontaminação
foi duro, principalmente pelos riscos que envolveu. Procurar cloreto de césio em Goiânia
era a mesma coisa que procurar um punhado de sal perdido em algum quintal da cidade
(...) Mas era um trabalho que precisava ser feito. Tratava-se de uma emergência. Eu, por
exemplo, levei uma dose alta, mas que não equivale a duas radiografias de coluna (...) O
meio científico cometeu enganos terríveis de avaliação do acidente, além de uma omissão
inaceitável e imperdoável. Vi a universidade cruzando os braços, fazendo, à distância,
críticas sobre o trabalho que estávamos realizando em Goiânia. Sinto-me à vontade para
falar disso porque faço parte do meio acadêmico, leciono em universidade há vários anos
(...) posso afirmar que a omissão do meio acadêmico foi enorme (...) Além de uma dose
extrema de paciência, esse trabalho exige que não se pense no título de mestre ou doutor
como escudo para não se usar as mãos. A descontaminação consiste, basicamente, num
trabalho braçal.120

Na mesma publicação rebateu-se a acusação de omissão da comunidade científica:

119
Todos os dados foram fornecidos pela CNEN à SBF (Sociedade Brasileira de Física). CIÊNCIA HOJE, (SBPC, 1988: 16)
120
Medeiros. Idem: 12-13.
78

É uma mentira. Eu mesmo estive em Goiânia duas vezes e cumpri meu papel (...)
Fundamentalmente, nós levantamos de imediato uma série de questões que visavam
auxiliar na correção de medidas tomadas pela CNEN. Nossa função é pedagógica. Será
que a comunidade científica deveria ter ido a Goiânia para catar lixo atômico? Essas
coisas exigem treinamento profissional. As Forças Armadas existem para isso, são elas as
encarregadas da segurança nuclear. Se os bombeiros não conseguem extinguir um
incêndio, eles não reclamam porque a população não ajudou a apagá-lo.121

A tarefa de descontaminação dos locais atingidos afligiu os que acompanhavam o


Acidente, como se exemplificou, sendo foco de ácidas discussões entre os técnicos da
CNEN, políticos, ecologistas e acadêmicos, mas a tarefa de descontaminação, em si, acabou
sendo mais tarde reconhecida como ‘bem sucedida’122. Tais discussões, parcialmente
mostradas pela imprensa, em pleno momento de emergência, no entanto, provavelmente
provocaram ainda mais confusão e medo entre os leigos, reforçando a idéia de que tudo que
se estava fazendo era tecnicamente improvisado. Note-se que todas as polêmicas são
simultâneas e se entrecruzam no turbilhão do acontecimento: o lixo radioativo, acusações
contra a omissão da CNEN na fiscalização, a localização de novos contaminados e novos
focos enquanto a CNEN assegurava que tinha a situação sob controle, a discriminação
contra os goianenses, as declarações de governantes, a agonia das vítimas, as
investigações da polícia, as críticas de cientistas (como Goldemberg, Cerqueira Leite e
Pinguelli Rosa, entre os mais conhecidos), as críticas de ecologistas como Gabeira, os
programas de televisão sensacionalistas, as comparações com Tchernobyl, a suposta
contaminação da água, os boatos e alarmes falsos etc..

Também parece haver um aspecto simbólico na questão da descontaminação.


Descontaminar tem um sentido básico e amplo de limpar, purificar, recuperar uma condição
normal saudável e higiênica; no caso, descontaminar o diabólico e enigmático césio-137,
parecia ser, no auge da emergência, algo que ninguém conseguia demonstrar que pudesse
ser feito: a imprensa noticiou que alguns lugares iriam ficar inabitáveis por até dezenas de
anos, que o césio-137 permaneceria no organismo das pessoas, que havia sido levado pelas
chuvas para os rios, que o câncer e outras doenças iriam atacar a cidade por décadas. A
aflição com que se acompanhavam os vacilos da CNEN na limpeza da cidade é
compreensível, desse ponto de vista, aliado ao fato de que a situação, na prática, era de uma
dependência ambígua da CNEN. Esta era mostrada como parte do governo, cuja omissão

121
Pinguelli Rosa. Idem: 18. As emergências radioativas, aliás, são das poucas, senão a única, emergência que o Corpo de
Bombeiros não é preparado para combater.
122
Isso quer dizer, basicamente, que os níveis de radiação, após os trabalhos de descontaminação, baixaram a níveis
considerados pelos técnicos, incluindo aqueles críticos à CNEN, como ‘aceitáveis’. Uma parte do césio-137 não foi
recuperada no trabalho de descontaminação, diluiu-se e disseminou-se no meio ambiente da cidade. As conseqüências a
longo prazo são desconhecidas.
79

permitiu que ocorresse o Acidente; seu aparente e às vezes assumido despreparo para a
eventualidade, sua linguagem técnica e as repetidas garantias de que controlava a situação
contra evidências de que isso não era verdade minaram sua credibilidade, sem contar o seu
passado de envolvimentos misteriosos como com o programa nuclear paralelo. Por outro
lado, não havia a quem mais recorrer, pela especificidade do saber requerido na tarefa de
descontaminação radioativa. Uma situação ao mesmo tempo de dependência e de
desconfiança no sistema perito: a mesma CNEN que aparecia como causa do problema,
paradoxalmente, era a principal encarregada da solução.

Negligência, omissão, irresponsabilidade e incompetência foram termos bastante


usados pela imprensa para caracterizar as causas e culpas do Acidente, visando o governo
Sarney (que se deve lembrar, despencou de uma taxa de quase 90% de aprovação durante
o Plano Cruzado para quase a mesma percentagem de desaprovação logo após), as
evidentes debilidades governamentais em garantir a segurança e outros direitos básicos, a
inexistência de fiscalização dos aparelhos radioativos pela CNEN, os fracassados e caros
programas nucleares, a inaceitável atitude de abandonar o aparelho de césio-137, entre
outros fatores, foram bastante destacados. Por outro lado, a imprensa mostrou também não
estar preparada para informar com precisão e equilíbrio, cometendo exageros. Por exemplo,
transformar a afirmação de um técnico durante uma explicação de que havia uma ‘pequena’
probabilidade de contaminação da água, num título ameaçador: Água pode ser
contaminada123. A imprensa não conseguiu também descrever com exatidão ou coerência
como o aparelho foi abandonado, quem o retirou, para onde o levou, como funcionava, em
quantas partes foi dividido, etc., fazendo circular muitas versões, errando nomes e
parentescos: em parte isso se explica pela dependência da imprensa em ter na CNEN como
fonte privilegiada de informações.

A imprensa também errou quando lidou com números em geral, tanto de pacientes
quanto de focos, pesos, distâncias, percentagens, unidades de medida de radiação, o que é,
pelo menos, expressão de uma dificuldade estrutural de lidar com quantidades,
probabilidades, dimensões; e outras noções básicas de ciências, por exemplo, o que vem a
ser um isótopo ou para que serve um fusível. Noções que se exigem, por exemplo, de
vestibulandos. Mesmo quando entrevistou cientistas críticos, a imprensa centrou-se mais nas
discordâncias políticas do que nas concordâncias técnicas.

Um outro fator é que não havia, para o leigo, como relativizar, avaliar e comparar as
propostas técnicas, como a do lixo radioativo. O conflito e a discordância de opiniões são

123
O ESTADO DE S. PAULO. 08/10/87. Também FOLHA DE S. PAULO, idem. Ventos e chuvas podem ter levado
material radiativo a cursos d’agua
80

inerentes e internamente funcionais à ciência e à tecnologia, mas se tornam fontes de


insegurança e medo do leigo (quase todos nós), ainda mais em situação de emergência. A
aflição que se experimenta quando dois médicos de uma mesma especialidade dão
diferentes diagnósticos e tratamentos para um mesmo caso é um exemplo muito simples
dessa situação.

A CNEN não tinha apenas dificuldades em enfrentar a situação de um acidente


inédito, para o qual estava pouco preparada, mas também pelo fato de ter de agir
publicamente, ter de justificar seus atos, negociar politicamente, comunicar-se pela imprensa
e diretamente com a população. Para complicar, essa comunicação tinha de traduzir a
linguagem dos técnicos para termos mais compreensíveis, para o que esbarrava nas
dificuldades da imprensa que se atribuía essa mesma tarefa. (Ninguém disse claramente, por
exemplo, que o lixo radioativo seria blindado em embalagens especiais e a partir daí não
ofereceria riscos imediatos). A paciência, a calma, o planejamento meticuloso e a atitude
cautelosa diante da situação inédita e perigosa para os próprios técnicos e levando em conta
os recursos disponíveis, que eram requisitos do trabalho de descontaminação, contrastavam
fortemente com o desejo de voltar, o mais rapidamente possível, à normalidade. Essa tensão
perpassou a forma como o Acidente apareceu na imprensa.

A CNEN começou a trabalhar na descontaminação pelas bordas, dos pontos menos


para os mais contaminados. Nos menos afetados, pelas descrições, o trabalho consistiu
basicamente numa faxina em objetos e lugares, para o que foram utilizados desde água e
sabão até lixadeiras e resinas especialmente confeccionadas. Essa estratégia, no entanto,
teve alguns problemas, como a disseminação de poeira radioativa dos pontos ‘quentes’,
durante quase dois meses. Um helicóptero dotado de instrumentos para detectar novos focos
teria contribuído para disseminar um pouco dessa poeira, por voar baixo sobre a cidade;
esse trabalho, no entanto, achou um novo ponto de radiação e comprovou que a maior parte
da cidade estava dentro dos ‘limites’ da normalidade. Os próprios trabalhos de
descontaminação dos pontos quentes, que demandaram movimento de máquinas pesadas,
corte de árvores, demolição de paredes e remoção de uma camada do solo acabaram por
levantar alguma poeira. A CNEN, na semana do Natal de 1987, considerou que o principal do
trabalho de descontaminação havia acabado, restando apenas uma limpeza ‘fina’ nos
arredores.

Durante esse período, no entanto, teve-se de lidar com problemas inusitados. Um


ladrão chegou a entrar numa residência contaminada e levar alguns objetos, mas foi preso
depois e os objetos recuperados. Apenas com a chegada de agrônomos especialistas do
CENA, Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da USP de Piracicaba, interior de São
81

Paulo, se percebeu o fenômeno de dispersão do césio-137 por duas mangueiras, à sombra


das quais Roberto havia aberto a bomba. As árvores foram podadas, seus frutos, galhos e
folhas viraram lixo radioativo, e somente então se percebeu, na segunda quinzena de
outubro, a possibilidade de que hortas e árvores da vizinhança pudessem sofrer do mesmo
fenômeno, contaminando alimentos124. Da mesma maneira, algumas hortaliças também
jazem no depósito de Abadia.

Um outro grupo de vítimas do Acidente também foi inusitado, e seu principal


personagem é um cachorro viralata, chamado Sheik, que pertencia à mãe de Roberto. O
cachorro, que ficou vários dias trancado na casa da rua 57, isolada pela CNEN, contaminou-
se no quintal, assim como porcos e galinhas. Segundo noticiado no dia 10 de outubro, o
cachorro estava contaminado com 70 milirems, e se tornou um problema para os técnicos da
CNEN porque ninguém sabia o que fazer com ele. Também gatos e pombos se tornaram
preocupações, pois poderiam entrar nos locais isolados, se contaminar e espalhar césio-137
por onde andassem (no caso dos pombos, por toda a cidade). Gabeira insistiu no sacrifício
dos animais125, enquanto outra alternativa seria aproveitá-los para estudos, como cobaias.
Essa última hipótese foi abandonada porque seria muito complicado transportar os animais.
Apenas no dia 27 de outubro a CNEN se decidiu a sacrificar os animais: foram 37, alguns
mortos a pauladas ou por estrangulamento, enquanto Sheik foi envenenado, mas tendo
levado sete horas para morrer126. O caso de Sheik só se tornou um fato noticiado,
aparentemente, porque demonstrava as fraquezas da CNEN: a imprensa se comprazeu com
imagens de técnicos nucleares correndo atrás de galinhas, e Gabeira (1987) em seu livro
gasta mais espaço falando do que a CNEN deveria ter feito com o cachorro do que, por
exemplo, de Leide.

Sob o título Indigência, a revista semanal IstoÉ, de 14/10/87 encerrou uma longa
matéria de cobertura do acidente, muito crítica ao governo, com um ‘box’ consistindo de duas
fotos e um texto curto:

O despreparo das autoridades brasileiras tornou-se flagrante quando funcionários


encarregados de rastrear e combater a radiação aparecem nas ruas de Goiânia com
uniformes quase indigentes (...). Muitos não usavam luvas ou máscaras. Ninguém estava
com a cabeça totalmente coberta, mas apenas com chapéus esportivos. Os macacões eram
comuns, comprados em supermercados. Para se ter uma idéia, é só comparar com o
equipamento usado por funcionários alemães (...) para combater as radiações espalhadas
desde a União Soviética pela explosão de Chernobyl.

124
In CIÊNCIA HOJE, op.cit. (SBPC, 1988: 29-35).
125
O ESTADO DE S. PAULO. 17/10/87. Goiás define área para guardar lixo radioativo.
126
JORNAL DA TARDE e FOLHA DE S. PAULO. 28/10/87.
82

Muito provavelmente, os técnicos brasileiros não estariam de fato preparados para um


acidente grave, e pode-se culpar o governo pelo despreparo, mas a questão é que o efeito
da comparação pode ser patético, mas é falso. Nas fotos, os dois grupos sequer estão
fazendo a mesma coisa: os alemães vestem capas, capuzes e máscaras, e estão lavando as
rodas de um caminhão, descontaminando-as presumivelmente. Os brasileiros, em grupo,
formam uma roda e conversam, parecendo se preparar para algo, e seriam de fato
indistinguíveis de um grupo de frentistas de posto de gasolina se não estivessem portando
alguns aparelhos. Mas o principal não é a diferença de vestimenta, mas a pressuposição
implícita de que o técnico alemão é por definição melhor que o nosso, indigente, que, pelo
que quer dizer a legenda, sequer saberia o perigo que estava enfrentando. Portanto, o
governo alemão seria melhor que o nosso, e assim por diante. A revista avaliou a capacidade
técnica pela roupa, como um colunista social faria numa festa. Mas o mais importante é
demonstrar que a disposição de crítica à CNEN também levou a imprensa a ‘enganos’ que,
propositais ou não, fazem parte da maneira como o acidente pôde ser conhecido e discutido
pelos leigos.

Não quer dizer que a CNEN não deva ser criticada, que não tenha sido de fato omissa
na fiscalização, que não tenha procurado resguardar seus segredos, que não tenha sido
inábil ou incompetente em vários pontos, que não tenha em larga medida responsabilidade
sobre o Acidente, que não haja por trás do que apareceu na imprensa fatos apavorantes
sobre ela e o Acidente que não sabemos, nem temos como saber. Não quer dizer que a
CNEN não possa e não deva ser responsabilizada, avaliada, reformada ou tudo que seja
necessário para que possa cumprir, pelo menos, o seu papel básico de evitar acidentes. Mas
ver as aparências somente, como no caso da roupa, amplifica e/ou mascara outros
problemas.

Como foi assumido, a imprensa também é um sistema perito que, tanto quanto o
nuclear, participou da produção do Acidente de Goiânia como acontecimento. Voltando à
questão da separação entre as linguagens da ciência e do mundo da vida, com Habermas já
se podia entender que a tarefa de aproximar as duas linguagens era, ela mesma, uma tarefa
agora também de caráter técnico. “Mas se tecnologia provém da ciência, e penso a técnica
de influenciar o comportamento não menos que a de dominar a natureza, então a
assimilação dessa tecnologia no mundo da vida prático, em conjunção com o controle técnico
de áreas particulares dentro do alcance da comunicação de homens em ação, na verdade
requer a reflexão científica. O horizonte pré-científico da experiência se torna infantil quando
127
ele ingenuamente incorpora contato com os produtos da mais intensiva racionalidade”

127
“But if technology proceeds from science, and I mean the technique of influencing human behavior no less than that of
dominating nature, them the assimilation of this technology into the practical life-world, bringing the technical control of
83

(Habermas, 1970: 56). Ao papel da imprensa como sistema perito, portanto, caberia a
mesma crítica que ela própria fez à CNEN: não estaria preparada para o acidente, não foi
‘tecnicamente’ competente, pois embora conseguisse produzir muitas manchetes as quais
atraiam a atenção, pouca informação sem correções conseguia veicular. A imprensa,
entretanto, é apenas parte do problema. Esse aspecto não passou despercebido pelos
cientistas.

O ponto de vista dos cientistas, especialmente físicos, quanto à cobertura que a


imprensa fez do acidente nos seus aspectos ‘científicos’ foi, como se poderia esperar,
bastante crítico. Em um artigo, o físico José Roberto Iglesias (1989) reproduz a manchete do
jornal gaúcho Correio do Povo: “Becqueréis do césio são os mesmos de Tchernobyl”.
Bequeréis são apenas unidades de medida (v. capítulo 4), assim como Volts, gramas ou
metros, e são os mesmos não só em Tchernobyl, como em qualquer outro lugar onde tais
unidades sejam aceitas por convenção. Iglesias prossegue sua análise: “O importante é
constatar que nos meios de comunicação se refletem os mesmos fatores que originaram o
acidente de Goiânia: a desinformação e a irresponsabilidade. Irresponsabilidade e
desinformação dos donos da clínica que abandonaram um equipamento (...);
irresponsabilidade do físico que não alertou os órgãos responsáveis pela fiscalização;
irresponsabilidade da classe médica que em vez de denunciar e punir os radioterapeutas e o
dono da clínica, prefere (...) acobertar os infratores (...); irresponsabilidade e desinformação
dos que roubaram a cápsula de chumbo (...), e temerariamente a quebraram com
marretadas, mostrando mais uma vez que em sociedades sincréticas e com excesso de
religiosidade primitiva, as pessoas temem mais os perigos imaginários que os reais; (...) da
Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) (...). Irresponsabilidade, desinformação e,
finalmente, um toque de mística, magia e carnaval, fizeram as vítimas ficarem hipnotizadas,
por uma pedra que emitia luz própria, e levaram uma criança à morte por espalhar sobre a
pele o pó radioativo. (...) Já no fim de um século que se caracterizou pelas constantes
inovações tecnológicas, pelo papel da eletrônica, da informática, da biotecnologia, da
radioterapia, como fatos integrantes do cotidiano, a grande maioria dos meios de
comunicação não tem editor científico, nem jornalistas especializados em divulgação
científica. (...)” (:163-64). O autor continua o seu artigo, na maior parte dedicado, na verdade,
a ressaltar a importância do desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (C&T) para o Brasil,
lamentando a ignorância, fruto de uma sociedade que despreza a ciência; a impunidade,
porque não haveria sido constituído o conceito de responsabilidade; a incompetência, como a

particular areas within the reaches of the communication of acting men, really requires scientific reflection. The
prescientific horizon of experience becomes infantile when it naively incorporates contact with the products of the most
intensive rationality”.
84

de jornalistas e médicos; a estrutura social fracassada, incompatível com o modelo de


desenvolvimento de um Brasil moderno etc. A tese que defende é que o acidente não foi
acidente, mas conseqüência natural de uma estrutura social injusta, baseada na miséria e
ignorância, derivado de um modelo deliberadamente desenvolvido e aplicado, perpetuado na
incompreensão das ciências “apresentadas como um mito, uma religião profana” (:165), e
através da escola, da imprensa e dos programas de televisão populares. Poderia se
concordar ou discordar do autor em vários pontos, mas o aspecto que se deve ressaltar é a
politização que construiu na sua problematização, utilizando, para tanto, inclusive conceitos
da sociologia.

Em editorial de um suplemento especialmente dedicado ao Acidente de Goiânia da


revista Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC - de
maio de 1988, publicação voltada à divulgação científica, a politização é bem menos
abstrata, e a desinformação provocada pelas autoridades entendida como um crime: “Pânico
e incerteza paralisaram Goiânia. A CNEN e o governo mostraram-se mais preocupados em
esconder as próprias responsabilidades e proteger a imagem do programa nuclear do que
em proteger a população. Os interesses da segurança nacional - nuclear, militar -
prevaleceram. (...) as responsabilidades principais pelo crime de Goiânia - seja o da bomba
ou o da desinformação - são do governo (...) Por outro lado, preocupa constatar que,
passados seis meses, o acidente caminha para o esquecimento. Pouco restou da lição. A
CNEN, impune, nem ao menos foi desmembrada, com a atribuição da radioproteção a um
instituto independente, como foi sugerido repetidas vezes. Os subterrâneos militares não o
permitem, como não permitem que as questões nucleares sejam tratadas de modo civilizado,
aberto e informado.” (: 3). A SBPC, neste texto, não se refere à atuação da imprensa,
provavelmente porque identificou que a fonte da desinformação, e portanto, dos erros
cometidos, estava no governo fiador do programa nuclear militar. A posição da SBPC
também corrobora a imagem veiculada pela imprensa da ‘politização’ mesquinha (para dizer
o mínimo) que o governo fez do acidente, com este procurando escamotear sua
incompetência e seus compromissos semi-secretos.

A falta de ciência e o ‘excesso’ de politização que a imprensa apontou na ação da


CNEN e no governo também podem, entretanto, ser vistas nos erros da própria imprensa,
fechando o círculo de erros. Poderia se explicar como no mecanismo conhecido pela
psicanálise: fala-se do outro a partir de si, portanto falar do outro é também se revelar. Mas o
mais importante aqui seja talvez não o mecanismo, e nem mesmo o que e quanto se errou,
mas o conteúdo da discussão subjacente: tratar das vítimas e descontaminar a cidade, como
se afirmou, era também ultrapassar a emergência e recuperar a normalidade. Mas a
normalidade anterior à emergência já não era aceitável, pois nas suas falhas (pobreza,
85

ignorância, irresponsabilidade, compromissos ocultos, desvelados pelo acidente) estavam


identificadas as próprias causas da emergência. O que se constituía a partir do acidente era
a idéia de que a normalidade que se necessitava (para ser mais segura) era uma
normalidade outra, nova ou melhorada. Portanto, a necessidade elaborada era a de
mudanças, tanto institucionais e democráticas como sociais. Contra ou a favor dessas
mudanças, socialmente impulsionadas, politicamente elaboradas, é outro recorte no qual
podemos posicionar os nossos agentes (tendo a CNEN o papel conservador de defensora do
status quo128). Ocorre que o déficit de ciência, ou seja, de esclarecimento e informação,
condenou toda essa discussão (como muitas outras) a ser apenas formal, com poucos
efeitos práticos quanto a rearranjos institucionais.

No tratamento das vítimas e na questão da contaminação/ descontaminação, pode-se


entretanto vislumbrar, mesmo para o leigo (ou principalmente para este) o grau e a
especificidade do perigo com que se estava lidando, e seus efeitos terríveis, surgidos numa
forma que nem o mais criativo dos escritores de ficção científica conseguiria imaginar. Se
parece claro que, apesar disso, a existência de aplicações como a radioterapia é necessária
e representa algum ganho nas condições de vida, também nos impõe pensar nos seus
riscos, e principalmente, nos riscos do sistema do qual a radioterapia é um simples derivado,
que é o sistema nuclear. A decisão de dominar a tecnologia nuclear ou semelhantes, como
aponta Beck (1992: 204-12), era dada apenas internamente ao sistema e sem nenhum
controle anterior por parte nem dos leigos, nem de parlamentos, na forma de ‘progressos’
científicos e tecnológicos dentro de sistemas auto-institucionalizados. A sua legitimidade
vinha das suas aplicações práticas, ou, no caso, determinadas pelas aplicações estratégico-
militares semi-secretas.

A liberdade indiscriminada de aplicação de inovações industriais e científico-


tecnológicas revolucionou o mundo, acarretando mudanças permanentes em esferas
relacionadas como a da divisão do trabalho, da relação de gêneros e da família, e ao mesmo
tempo, produziu perigos e riscos que agora estão sendo reconhecidos através dos seus
efeitos indesejados, como acidentes tecnológicos. É a ciência a principal fonte sobre os
riscos que ela mesma produziu, é a ciência que volta seus métodos e sua crítica às suas
próprias conseqüências; é a ciência que seculariza a si mesma e a seus mitos. É ela que,
invadindo e sendo invadida pelo social e pelas outras ciências quando confrontada com seus
efeitos, possibilitaria, no entender de Beck , a ocorrência de uma segunda onda de
racionalização. Significa que necessitamos e produzimos não menos, mas mais ciência. Mas

128
Quando uma agência de desenvolvimento tecnológico pode ser socialmente e/ou politicamente conservadora, e no contexto
de mudança da época, é um sinal claro que essa agência é não só anacrônica ou antidemocrática, mas também o
desenvolvimento que ela propõe.
86

não só. “Onde os riscos da modernização foram ‘reconhecidos’ - e aqui há muito envolvido,
não somente conhecimento, mas conhecimento coletivo deles, crença neles, e a iluminação
política das cadeias associadas de causa e efeito - onde isso aconteceu os riscos
desenvolveram uma dinâmica política incrível. Eles confiscaram tudo, sua latência, sua
‘estrutura de efeitos colaterais’ pacificantes, sua inevitabilidade. De modo súbito, os
problemas simplesmente estão ali, sem justificação, como puros e explosivos desafios à
ação. Pessoas emergem por detrás das condições e restrições objetivas. Causas se voltam
para os causadores e suas declarações. Os ‘efeitos colaterais’ falam abertamente,
organizam-se, entram em campo, afirmam-se, recusam-se a ser ainda desviados. Como se
disse, o mundo mudou. Aqui está a dinâmica da politização reflexiva produzindo consciência
do risco e conflito. Isso pode não ajudar automaticamente a conter o perigo, mas escancara
áreas e oportunidades para a ação que estavam ainda fechadas. Produz o súbito ponto de
fusão da ordem industrial, onde o impensável e impossível se tornam possibilidades para um
breve período”. (:77)129

A história da energia nuclear e suas ramificações no Brasil é razoavelmente


conhecida e estudada130, gerando personagens, como o almirante Álvaro Alberto, criador do
CNPq, programas nucleares, a usina de Angra I, a Nuclebrás, a CNEN etc. A relação dessas
instituições sempre se deu mais no nível interno da definição dos interesses estratégicos, isto
é, dentro do Estado. O mais próximo que o tema esteve da população foi através da relação
com a comunidade científica, uma relação que teve aproximações e, como à época do
Acidente, distanciamentos; pela atuação de alguns poucos militantes ecológicos; e pela
oposição a planos como o Programa Nuclear Alemanha-Brasil. O único grande efeito prático,
até então, tinha sido o aumento da dívida externa para financiar os programas nucleares,
pois tanto seus benefícios como a geração de energia, quanto seus malefícios como a
fabricação de armas estavam ainda nos estágios iniciais.

Outros usos da energia nuclear, problematizados pelo Acidente, como os usos


industriais e para fins terapêuticos, no entanto, haviam se disseminado de forma razoável e,
de certa forma, coerente com o nível de industrialização e de desenvolvimento técnico-

129
“Where modernization risks have been ‘recognized’ - and there is a lot involved in that, not just knowledge, but collective
knowledge of them, belief of them, and the political illumination of the associated chains of cause and effect - where this
happens the risks develop an incredible political dynamic. They forfeit everything, they latency, their pacifying ‘side effect
structure’, their inevitability. Suddenly the problems are simply there, without justification, as pure, explosive challenges to
action. People emerge from behind the conditions and objective constraints. Causes turn into causators and issue
statements. ‘Side effects’ speak up, organize, go to court, assert themselves, refuse to be diverted any longer. As was said,
the world has changed. These are the dynamics of reflexive politicization producing risk consciousness and conflict. This
does not automatically help to counteract danger, but it opens up previously closed areas and opportunities for action. It
produces the sudden melting point of the industrial order, where the unthinkable and unmakeable become possibilities for a
short period.”
130
Embora provavelmente não se conheça muito mais do que já se sabe.
87

científico e suas contradições. Isto é, não era de espantar a existência de um serviço de


radioterapia, que é uma técnica sofisticada, mas também disseminada, na cidade de Goiânia.
O espantoso, ali como em qualquer lugar, é que uma bomba tenha sido abandonada, isso
tendo sido feito, aparentemente, porque já não era sofisticada o bastante - era obsoleta. Mas
espantoso apenas quando se tem em conta tanto o perigo da radiação quanto a imperativa
existência de múltiplos controles para que algo como um serviço de radioterapia possa
funcionar, isto é, quando se tem em conta a complexidade socialmente necessária para
manter essa tecnologia. Essa complexidade compreende não só a capacitação profissional
tecnológica propriamente dita, no caso, de médicos e físicos, mas também instituições
organizadoras e legitimadoras dos sistemas peritos, como universidades e associações, e as
agências do Estado, como a CNEN e os Ministérios, e seu respectivo corpo de especialistas,
e algum nível de desenvolvimento econômico. Tudo isso já existia e estava estruturado de
alguma maneira, incluindo uma legislação extensa e detalhista, e embora todos esses
aspectos possam ser questionados, a questão que mais apareceu no acidente está
relacionada com o cumprimento efetivo de todos os papéis implícitos, com o funcionamento
real de todo esse aparato. Finalmente, tal complexidade é pressuposta na base da relação
de confiança da população leiga com os sistemas peritos abstratos. O que foi sentido como
espantoso e inadmissível, portanto, não foi que todo o sistema nuclear funcionasse,
conseguindo a alardeada proeza do domínio do ciclo do urânio, mas que, pelo contrário, que
ele (tão obrigatoriamente sofisticado) não funcionasse para cuidar de um aparelho de
radioterapia, sendo ele o único que tinha a dimensão do perigo; aparentemente, contaminado
pelos ainda largos e profundos laços com um Brasil atrasado e simplório onde a
sobrevivência do nuclear não seria ‘ecologicamente’ compatível.

Entretanto, isso não talvez não seja o essencial. Espera-se que o sistema perito
funcione (e de modo racional), nisto reside a base da confiança do leigo no saber dos
sistemas abstratos (Giddens: 1991). A CNEN tinha um grupo de emergência, com certa
experiência. Existia um serviço especializado no hospital Marcílio Dias, que, como disse o
almirante Amihay Burlá, nunca se esperou que fosse utilizado. Existiram também os
exemplos de acidentes nucleares anteriores, como Tchernobyl, que gerou no Brasil inclusive
um grupo de trabalho que produziu recomendações, entre outras, sobre a segurança de
Angra I131. Mas boa parte do que apareceu na imprensa, como dificuldades no tratamento
das vítimas e dos pontos de radiação, como incompetência, imprevisão, omissão,
negligência, etc. teria sido impossível sem o saber perito que identificou e publicizou os
problemas, e que gerenciou a emergência, porque apenas ele sabia como e com o que
estava lidando, a radiação invisível e impalpável para os leigos. Foram os técnicos, seus

131
Pinguelli Rosa, in CIÊNCIA HOJE,.op.cit. (SBPC, 1988: 17)
88

aparelhos e conceitos, que definiram, em última instância, a gravidade do fato e o próprio


acontecimento. Foram eles que identificaram as vítimas, que as trataram, que falaram sobre
suas chances, que isolaram e demoliram suas casas, que definiram como lixo radioativo tudo
o que o césio-137 tocou, que levantaram as hipóteses negativas que, felizmente, não se
confirmaram, que propuseram cada problema que enfrentaram e cada erro que cometeram,
assim como os acertos, inclusive os políticos. Mesmo as críticas, se são internas, são
inerentes ao mesmo corpo de saberes; se externas, são o seu próprio conhecimento
reflexivamente apropriado. Mas quando externas, também são politicamente reflexivas.

O acidente tecnológico em Goiânia, de uma maneira ou de outra, provocou essa


politização reflexiva, ao expor os perigos do sistema nuclear muito além das especulações.
Tornou esses perigos reais. Ninguém quis ser uma nova vítima do césio-137, ninguém quis
ser vizinho do lixo radioativo. Ninguém deseja que algo semelhante volte a ocorrer, mas
nessa hipótese, seria bom que os nossos técnicos fossem tão bem preparados (e vestidos)
quanto os alemães, que a nossa imprensa fosse sóbria e precisa, nossa população educada
e respeitada, e que nossos governantes não fossem tão ‘políticos’ nas emergências. Num
país de programas nucleares secretos, das manchetes apavorantes, da CNEN e de Sarney,
de bombas abandonadas e de vítimas (muito mais que) indefesas, tudo isso é ainda utopia,
pequena utopia diante do fato de que, o que podemos, e devemos desejar, é poder
prescindir dos perigos da energia nuclear.
89

Capítulo 6 - Medo e culpa: responsabilizar, fiscalizar,


esquecer
O medo foi um dos aspectos mais presentes nos relatos da imprensa, mesmo que
apenas implícito, e evoluiria em diversas manifestações, como a discriminação da qual foram
objeto as vítimas, os moradores da cidade e de Goiás. O medo da radiação era de algo que
era provavelmente desconhecido e/ou incompreendido pela maioria, mas não se pode dizer
que, durante o acontecimento, a população chegou, propriamente, a ‘aprender’ sobre os
perigos da física nuclear a despeito de toda a informação que foi produzida132. ‘Aprender’
sobre os perigos não era mais importante do que descobrir quem eram os especialistas,
portadores desse conhecimento sobre o perigo, agora tão necessário, e o que estavam
fazendo nessa emergência, o que e de que maneira falavam: essa relação leigo-sistema
perito durante o acidente era nova e foi criada pela imprensa. Mais propriamente, tornaram-
se públicos e se problematizaram os papéis sociais dos agentes (sistemas peritos e do
Estado) encarregados de controlar os perigos.

O Acidente de Goiânia foi um momento de descoberta coletiva. Os perigos e riscos


envolvidos na radiação eram, para muitos, apenas uma possibilidade distante: com o
acidente, seus riscos e, principalmente, seu controle se tornaram um assunto de massa. Um
‘novo’ sistema perito se tornou público, passou a se relacionar com a massa de leigos, de
uma maneira ambivalente: parecia óbvio que a falta de controle perito (e estatal) estava
envolvido nas causas do acidente. Por outro lado, a gravidade do acidente demonstrava que
os perigos desencadeados só podiam ser controlados através dessa mesma perícia que já
havia falhado. Estava se explicitando uma dependência ao sistema perito representado pela
CNEN, ao mesmo tempo indesejável, não confiável, mas também essencial para
restabelecer a segurança.

Os perigos da radiação são apenas um primeiro fator que pode ser destacado como
desencadeador do medo. O segundo fator assustador referiu-se às expectativas sobre o
controle que se deveria ter sobre esses perigos tão graves: por que o aparelho radioativo
tinha sido abandonado, a ponto de poder ser destruído com marretadas, e se demoraram
preciosos dias para que fosse descoberto. Catadores de ferro-velho provocaram o acidente,
mas também ficou claro que autoridades, médicos e outros especialistas também falharam e
estariam, até, mais envolvidos nas causas do desastre do que aqueles que marretaram a

132
Embora parte da população possa ter absorvido informações através da imprensa, se tivermos como paradigmas os cursos
acadêmicos, a relação com os perigos, principalmente, tem um outro enfoque: é diferente escolher lidar com tais perigos,
por profissão, do que ser obrigado a tal, sem escolha. De qualquer maneira, assuntos técnicos e científicos demandam, para
a maioria das pessoas, uma dedicação bastante grande ao aprendizado, mesmo de conceitos básicos.
90

bomba, pessoas que não tinham a dimensão do que haviam feito. Se o primeiro fator se
refere ao medo diante dos perigos e aos efeitos, digamos, materiais ou concretos, o segundo
se refere a um temor ligado ao fato que responsabilidades, papéis sociais supostos não
tinham sido cumpridos: nos termos mais simples, que o responsável por ‘tomar conta’, por
cuidar do tal aparelho tinha sido negligente ou irresponsável, e somente por isso o acidente
acontecera. O fator humano incontrolável estivera em ação, surgindo de quem menos se
esperava - quem, por dever e responsabilidade, conhecia os riscos envolvidos. Ao longo dos
dias, a dificuldade da CNEN de controlar o acidente levantou o temor sobre se o acidente
seria mesmo controlável, ao mesmo tempo em que o papel da CNEN nos antecedentes do
desastre, por omissão e/ou negligência, também se tornou público. A experiência concreta
com o sistema perito nuclear brasileiro era agora o desastre (e Angra I e os programas
nucleares más referências); a segurança era uma promessa em que poucos confiavam.

Os dois fatores desencadeantes do medo devem ser entendidos como interligados,


nos conceitos de Giddens de perigo e risco. Perigo corresponde, portanto, ao primeiro fator,
do medo da radiação e seus efeitos; e os riscos, que envolvem o cálculo e o controle do
perigo, isto é, envolvem o entendimento técnico-científico sobre o seu controle (inclusive os
aspectos sociais), com o segundo. Entre um e outro, portanto, devem estar as relações de
confiança: são estas relações que transformam o controle de risco em segurança. Em
situações normais, para garantir a segurança os leigos se relacionam com os perigos através
da mediação do conhecimento perito, mas sem se tornarem peritos ou incorporarem o seu
conhecimento, ou nem mesmo se relacionarem face-a-face: basta que as normas (como não
martelar bombas ou não mexer em tomadas elétricas) sejam conhecidas e/ou impostas; no
entanto, espera-se, em contrapartida, que os peritos não falhem em suas tarefas básicas
(não abandonem bombas ou construam tomadas que dêem choque), tendo sucesso em
controlar os perigos. O estabelecimento de relações de confiança é um processo histórico e
social, relacionado com o desenvolvimento técnico e científico e com o aumento da
importância desses fatores, de maneira que as próprias normas de segurança se tornem
socializadas e base de condutas individuais, tanto para leigos quanto para peritos. Num
acidente tecnológico, a confiança pode ser quebrada ou estremecida: em Goiânia, de certo
modo, a relação de confiança sequer existia antes do acontecimento, pela peculiaridade de o
sistema perito nuclear nunca ter se relacionado de forma massiva e democrática, tendo de a
comunicação ser estabelecida em plena emergência. Isto é, os leigos não tinham consciência
de como sua segurança se relacionava com a existência e atuação desse sistema perito
misterioso, os funcionários nucleares do Estado. Criar ou explicitar essa relação de confiança
era uma tarefa implícita nos esforços de recuperar a segurança e a normalidade.
91

Medo e discriminação
O primeiro fator, isto é, o medo da radiação, não foi propriamente um foco no
noticiário da imprensa, mas o background por trás das maiorias das ações e preocupações
que foram noticiadas. O segundo fator formou nos noticiários um foco consistente que se
pode chamar de debate da responsabilidade (O que veremos mais adiante).

A divulgação do acidente fez com que na cidade de Goiânia muitas pessoas


133
passassem a procurar ajuda especializada, espontaneamente, desde o primeiro momento,
provavelmente alarmadas com as descrições dos efeitos da radiação e pela informação do
césio-137 ser um elemento perigoso que estava espalhado pela cidade. Vômitos, diarréia,
queimaduras e bolhas, queda de cabelos, sangramentos, foram divulgados como sintomas
de envenenamento radioativo, mas também o são de diversas doenças muito menos graves,
e ganharam, na cidade, conotações assustadoras.

Bernardo Blum, médico do Ibram (Instituto Brasileiro de Medicina Nuclear) e professor


de radiobiologia da Universidade Santa Úrsula, afirma que, dependendo da quantidade de
radiação liberada sobre uma pessoa, o césio 137 pode provocar, de imediato, hemorragias
gástricas, paralisia do sistema nervoso central e morte. A longo prazo, pode causar câncer,
catarata, leucemia e anemia aplástica (paralisação da produção das células vermelhas do
sangue pela medula óssea).
Blum explicou que uma mulher grávida pode abortar se for exposta ao césio 137, elemento
capaz de provocar má formação nos fetos, dependendo da quantidade de radiação que
absorver.134

A formação da imagem da gravidade do Acidente de Goiânia envolveu não só os


perigos da radioatividade, através da descrição dos seus terríveis efeitos nas vítimas e
diversas especulações sobre o seu futuro e da cidade, mas também a comparação com o
acidente de Tchernobyl, que se tornara um paradigma de acidente tecnológico nuclear.
Concretamente, o fato de a radiação invisível ter se espalhado pela cidade, ter se transmitido
de pessoa para pessoa, ser descrito como um ‘pó’ brilhante, e de não se saber exatamente a
extensão do acidente, trouxeram ao acontecimento o seu elevado grau de incerteza e de
suspense, acentuando sua conotação dramática: os fatores se acumulavam e
potencializavam o medo, principalmente nos primeiros dias. Mas a principal característica a
trazer a incerteza a este e a outros acidentes tecnológicos é que radiação, como outros
perigos advindos da sociedade industrial, é invisível, inacessível aos sentidos: entre os leigos
e tais perigos invisíveis é obrigatória a mediação da ciência e da técnica.

133
JORNAL DO BRASIL, 01/10/87. Césio em ferro-velho espalha radioatividade em Goiânia. Já nos dois primeiros dias,
cerca de três mil pessoas procuraram o posto da CNEN, no estádio olímpico.
134
JORNAL DO BRASIL, 01/10/87. Um remédio mortal.
92

Apesar da CNEN, já nos primeiros dias, afirmar que a situação estava sobre
135
controle , o desenrolar dos acontecimentos pareceu demonstrar que não foi essa a
impressão que passou à população. “O governo diz que tudo está sob controle, mas todo dia
mais pessoas são internadas por causa da radioatividade. Se tivesse para onde ir, fugia
daqui”, dizia uma moradora do Setor Aeroporto136. No dia seguinte à sua afirmação (1 de
outubro), o diretor da CNEN Rosenthal já pedia à população paciência para com os trabalhos
de descontaminação137, dizendo que em dez dias ou ‘pouco mais’ os mais atingidos poderiam
voltar às suas casas, o que na verdade levou três meses.

Nas ruas de Goiânia o assunto não é outro: os perigos de uma contaminação generalizada.
Antonio Faleiros [o secretário de saúde] esclarece que somente quem teve contato direto
ou prolongado com a peça radioativa necessita de cuidados médicos especiais, passando
primeiramente por um aparelho medidor de radioatividade. “As regiões circunvizinhas por
onde a partícula atômica de césio-137 passou no trajeto até chegar à Coordenadoria de
Vigilância Sanitária da Organização de Saúde do Estado já foram liberadas (...) 138

A descrição da situação da cidade, do estado das vítimas e da própria atitude de


vários envolvidos na situação, como no caso da equipe do hospital de Goiânia, por si mesmo,
é capaz de provocar no leitor mais indiferente a sensação de quase vertigem provocada pela
emergência.

As ruas onde se localizam as casas de Wagner, Ernesto e Edson também foram


interditadas e a vizinhança está em pânico. Algumas das residências próximas dos locais
contaminados estão vazias, abandonadas voluntariamente pelos moradores que têm onde
ficar, como casa de parentes ou hotéis. Os mais pobres, no entanto, insistem em voltar para
suas casas contaminadas e são contidos com dificuldades pela polícia goiana. O clima é
tenso e todos reclamam da falta de informações confiáveis.
O medo chegou também ao Hospital Geral de Goiânia, do Inamps, onde as enfermeiras se
negaram a atender os pacientes, sendo que somente duas aceitaram trabalhar
voluntariamente depois de instruídas. (...) Os sintomas dos que foram mais expostos à
radioatividade, segundo o diretor do Hospital Geral (...) são: baixa nas taxas de glóbulos
brancos e vermelhos, radiodermite (queimaduras provocadas pela radiação), queda de
cabelo e dentes e sangramento de gengivas. A radiação afeta diretamente a medula óssea
fazendo cair a produção dos glóbulos, reduzindo acentuadamente a capacidade
imunológica dos pacientes (...)139

Como já foi visto, outros medos chegaram a constituir focos nos temas explorados
pela imprensa, como o do lixo radioativo. Ou, como o medo de contaminação da água da

135
FOLHA DE S. PAULO, 02/10/87. CNEN afirma que processo de radiação está sob controle
136
O ESTADO DE S. PAULO, 07/10/87. Apesar de calma, Goiânia tem medo.
137
JORNAL DA TARDE, 03/10/87. Goiânia: os técnicos trabalham na descontaminação.
138
O ESTADO DE S. PAULO, 01/10/87. Preocupação e medo na cidade.
139
O ESTADO DE S. PAULO, 03/10/87. Muitos contaminados fogem de Goiânia.
93

cidade pelas chuvas, foram ampliados pela imprensa. Nos primeiros dias, a população de
Goiânia se queixava de não estar sendo informada, ou estar sendo apenas de forma
superficial, pelos técnicos.

O pavor das pessoas criou um ambiente altamente propício a uma enorme onda de boatos,
já prevista pelo secretário estadual da Saúde, Antonio Faleiros. Ontem, era freqüente o
comentário de que na praça do Bandeirante, a poucos quilômetros da área diretamente
afetada, o grau de radioatividade seria elevado. O físico e médico Carlos Eduardo
Almeida, um dos técnicos da CNEN, tranqüilizou a população, argumentando que já foi
feita a medição no local (...)140

A população da cidade, a despeito dos boatos (ou motivada pelos mesmos),


aparentemente entendeu de imediato a mecânica envolvida. Técnicos da CNEN passaram a
ser intensamente solicitados para medições de inúmeros locais, à menor suspeita de
radiação, afora o rastreamento em casas de parentes e amigos de vítimas, cursos d’água, e
em milhares de pessoas que se apresentavam na fila do medo, no estádio Olímpico. Isso
provocou algumas situações inusitadas, como no caso citado numa publicação, de que os
técnicos foram chamados por uma madame apavorada, segundo teriam constatado, com a
morte de seu peixinho de aquário141. Por outro lado, houve suspeitas mais razoáveis. No fim
do mês de outubro, foi solicitada à CNEN, pela Vigilância Sanitária, a varredura de todos os
ferros-velhos de Goiânia, para que nesses locais, onde os seus funcionários se recusavam a
entrar142, se pudessem realizar os trabalhos de combate ao mosquito da dengue. Em outro
incidente, freqüentadores de um clube mobilizaram a imprensa e a CNEN porque um menino
tinha tido contato com o césio-137 e chegara a nadar na piscina antes do acidente ter sido
descoberto143, e temiam a contaminação da água e dos vestiários.

Um panfleto, distribuído em praças, hospitais e escolas, e encartados nos jornais


diários locais, não desfez a desinformação e talvez tenha assustado ainda mais a população.
Classificado como confuso e cheio de termos técnicos, orientava as pessoas a não entrar em
áreas isoladas e impedir que crianças e animais o fizessem, não tocar em “material
suspeito”, procurar os técnicos em caso de mal-estar generalizado, náuseas, vômito, diarréia
e alterações de pele144. A falta de informações, sentida pela população, deu margem a que
os alguns boatos se direcionassem para a idéia de que as autoridades teriam
deliberadamente sonegado informações, a fim de preservar a corrida de motociclismo. O

140
JORNAL DA TARDE, 03/10/87. Goiânia: os técnicos trabalham na descontaminação
141
IMPRENSA. Novembro de 1987. A síndrome da manchete radioativa.
142
O ESTADO DE S. PAULO, 30/10/87. CNEN decide examinar todos os ferros-velhos.
143
JORNAL DA TARDE, 09/10/87. Ninguém aceita o lixo radioativo.
144
O ESTADO DE S. PAULO, 08/10/87. Temporal piora situação em Goiânia.
94

prefeito de Goiânia, Daniel Antonio de Oliveira, que se encontrava afastado, e com seu
mandato sub judice por acusações de corrupção, foi um dos que manifestou essa versão,
145
embora estivesse mais preocupado em não ser acusado de culpa no acidente.

Enquanto o governador Santillo esbravejava que não aceitaria jamais o depósito de


lixo radioativo, e entrava em choque com a CNEN, os primeiros casos de discriminação
aberta começaram a ser noticiados. Um dos moradores desalojados pelo acidente foi expulso
com toda sua família, quando o gerente do hotel onde estavam hospedados descobriu sua
condição. Uma docente da Universidade Federal de Goiás teve sua reserva cancelada em
um hotel do Rio de Janeiro, onde iria passar suas férias. Segundo ela, a resposta que teve
ao telefone quando informou de que cidade era foi “não, de Goiânia não aceitamos ninguém,
146
não temos vagas” . A greve por melhores salários, que estava acontecendo no HGG,
transformou-se em “greve do medo”. Os funcionários recusavam-se a trabalhar no terceiro
andar, onde estavam internadas as vítimas, ou até a tomar os elevadores e transitar nos
corredores por onde os doentes haviam passado. Os poucos que aceitaram trabalhar
passaram a ser discriminados pelos colegas, parentes e vizinhos. Na porta do andar das
vítimas, cartazes feitos à mão alertavam: “cuidado, pacientes contaminados”. Os doentes
comuns deixaram de procurar o pronto-socorro do hospital, onde eram atendidas,
diariamente, cerca de 900 pessoas. Os esforços de esclarecimentos feitos por técnicos da
CNEN e alguns poucos funcionários do hospital não conseguiram acalmar os demais147.
Estudantes de um colégio da cidade de São Paulo, que estavam em Goiânia disputando um
campeonato esportivo, tiveram que voltar às pressas devido à preocupação dos pais. Alguns
deles disseram que levariam os filhos, já em São Paulo, para testes no IPEN, embora o
máximo que se pôde constatar nas crianças foi que algumas estavam resfriadas: “Com todas
essas notícias nunca se sabe se é ou não um simples resfriado. Tomara que seja só muito
148
sorvete e banho gelado, disse uma das mães” . As dúvidas da população foram surgindo
de todos os lados:

“É verdade que a cidade será evacuada?”. “Todas as mulheres grávidas terão de deixar
Goiânia para que seus bebês não nasçam com problemas?”. “O césio foi transportado de
ônibus e contaminou todo o transporte público?”. “É verdade que os pombos, pássaros,
cães, gatos, ratos, insetos, estão espalhando a radioatividade?”.
Estas foram algumas das perguntas mais freqüentes no debate organizado ontem entre
técnicos, autoridades, jornalistas e a população, durante três horas, por uma cadeia de
rádio e televisão, com grande audiência.149
145
JORNAL DA TARDE, 08/10/87. Prefeito acusa: autoridades sabiam de tudo há um mês.
146
JORNAL DA TARDE, 09/10/87. Ninguém aceita o lixo radioativo.
147
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. Medo afasta até doentes do hospital.
148
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. Estudantes paulistas deixam jogos e voltam.
149
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. População faz debate direto com técnicos.
95

Num congresso de radiologia, em São Paulo, o presidente da Sociedade Brasileira de


Radioterapia, Miguel Miziara, afirmou que os pacientes estavam abandonando os seus
tratamentos por causa do medo provocado pelo Acidente. “Todos pensam que vão se
contaminar. Até mesmo parentes desses pacientes estão se recusando a levá-los até os
150
centros de radioterapia” .

Na sexta feira, dia 9 de outubro, uma passeata de cerca de 400 pessoas (ou cinco
151
mil, de acordo com outra notícia ) percorreu as ruas centrais da cidade. A passeata, que
exigiu a retirada do lixo radioativo da cidade, foi organizada por Fernando Gabeira, Harlen
dos Santos (superintendente do meio ambiente de Goiás) e por artistas como Siron Franco
(artista plástico de Goiânia, que usou o acidente como tema de seu trabalho)152. Nela, surgiu
a idéia da criação de um monumento, com a participação de Burle Marx, além de Siron
Franco. A idéia do monumento foi depois encampada por Santillo, incluindo-se um projeto do
arquiteto Oscar Niemeyer (o que configura uma ‘receita típica’ das obras monumentais
brasileiras: Niemeyer-Burle Marx). A passeata, embora muito plástica e alegre, com pessoas
mascaradas, fantasiadas, e performances, foi uma das poucas manifestações de protesto
noticiadas a se realizar fora do espaço dos debates acadêmicos, dos textos e entrevistas, ou
dos gabinetes.

A discriminação, num primeiro momento, atingiu não só as vítimas e seus parentes


diretos como também aqueles que moravam ou estiveram mais próximos dos pontos
contaminados, isto é, a população de bairros inteiros. Alguns se queixaram de que o governo
não havia garantido ressarcir os prejuízos que estavam tendo por terem de se mudar.
Crianças passaram a ser recusadas nas escolas que freqüentavam, sendo, na prática,
expulsas. Revoltados, alguns vizinhos tentaram incendiar a casa de Maria Gabriela,
pensando em acabar com a contaminação. Nos bairros onde estavam os pontos
contaminados, os carteiros se recusaram a entregar a correspondência. Tripulações de uma
companhia aérea se negaram a pernoitar na cidade. Um cantor de bossa-nova (Francis
Hime) se recusou a se apresentar na cidade. Radialistas destacados para cobrir um jogo de
futebol chegaram apenas pouco antes da partida e foram correndo para Brasília ao seu
término. 153

150
JORNAL DA TARDE, 15/10/87. O cerco às aparas contaminadas.
151
O GLOBO, 10/10/87. Manifestantes mascarados protestam em Goiânia.
152
FOLHA DE S. PAULO, 10/10/87. Passeata de protesto pelo centro de Goiânia.
153
O ESTADO DE S. PAULO, 11/10/87. Medo, uma rotina agora na cidade. IMPRENSA. Op.cit.
96

“Esse acidente vai mudar a cidade”, avalia o superintendente de política do meio ambiente
de Goiás, Jadson Araújo Pires. “O país vai ter asco de Goiânia, o Estado vai sofrer uma
queda na sua exportação agrícola e até mesmo de roupas produzidas na cidade”, calcula
ele. Na verdade, alguns goianos vão ter asco de outros goianos, gerando um grupo de
párias tão discriminados quanto os portadores de AIDS. Muitos residentes nas
vizinhanças das áreas contaminadas foram retirados de suas casas e não conseguem abrigo
sequer na casa de parentes. Todos têm medo de contaminação. Hotéis recusam hóspedes,
hospitais repelem pacientes e empresas demitem empregados que de alguma forma
tiveram contato com as áreas atingidas pelo césio.154

Discriminação anunciada. Moradores de Goiânia passaram a ser barrados em ônibus


interestaduais, tendo que tirar atestados com os técnicos da CNEN comprovando que não
estavam contaminados, tarefa que cresceu e chegou a mobilizar técnicos que faltavam nas
155
tarefas de descontaminação . Chegaram a ser solicitados quatrocentos atestados por dia.
Não foi só a discriminação nacional que ocorreu. Duas freiras italianas só puderam retornar
depois que também comprovaram junto ao seu governo que não estavam contaminadas156.

Com todo esse quadro de medo, é compreensível que Santana Nunes Fabiano,
mulher de Edson Fabiano, tenha escondido até o dia 15 de outubro que ela tinha dormido na
casa de parentes, numa cidade do interior de Goiás157, após ter uma briga com o marido,
aparentemente no mesmo dia em que ele trouxe um fragmento de césio-137 para casa para
mostrar à mulher, sujando o chão da cozinha, o que teria provocado o desentendimento.
Santana, por não ter ficado na casa contaminada e ainda ter levado os filhos, escapou de
uma exposição mais prolongada158. A CNEN vasculhou a casa dos parentes de Santana e
nada encontrou. Em entrevista, uma das irmãs de Maria Gabriela se queixou de ser
discriminada apenas por ser sua parente159.

Durante a construção dos túmulos especiais de Maria Gabriela e de sua sobrinha


Leide, por volta do dia 25 de outubro, os moradores dos arredores do cemitério Parque já se
manifestavam veementemente:

“Nós não vamos deixar que enterrem os corpos da Leide e Maria Gabriela aqui no
cemitério Parque. ”Essa ameaça foi feita ontem por Maria Vieira, moradora das
proximidades (...) Ela foi um das responsáveis pelo início de um movimento de moradores
de cinco bairros das redondezas do cemitério, que começaram a se organizar no início da
tarde de ontem, para impedir que os corpos sejam ali depositados.

154
ISTOÉ, 14/10/87. Diante da morte e perplexos.
155
FOLHA DE S. PAULO, 03/11/87. Morador sem atestado não pode sair de GO.
156
FOLHA DE S. PAULO, 10/10/87. Sarney autoriza o depósito do lixo atômico de Goiânia na Serra do Cachimbo.
157
O ESTADO DE S. PAULO, 16/10/87. Goiás pode ter novos focos de radiação.
158
O ESTADO DE S. PAULO, 26/11/87. Goiânia prepara-se para o Natal.
159
O ESTADO DE S. PAULO, 24/10/87.
97

Bastante exaltados, vários moradores (...) começaram a chegar ao cemitério e a se reunir


em volta do túmulo recém-construído. Eles alegavam que os imóveis dos bairros serão
desvalorizados e o comércio local sofrerá prejuízos se os corpos forem enterrados no
cemitério.
“Minha mãe está enterrada bem aqui do lado, e eu não quero que os corpos delas venham
para cá. Eu não quero que os corpos sejam considerados lixo radioativo, mas não vou
aceitar isso. Se elas forem enterradas aqui, eu não vou mais poder visitar o túmulo de
minha mãe”, afirmou Carlos do Nascimento, outro morador. Os moradores prometeram
convocar toda a população que reside nas vizinhanças do cemitério para fazer um
movimento de protesto contra a escolha do local - que abriga os corpos de diversos
indigentes - e pretendem até mesmo enfrentar as autoridades para impedir que o enterro se
realize. (....)
“Estou surpreso. Não sei por que eles fazem uma coisa dessa natureza”, disse o chefe do
Departamento de Instalações Nucleares da CNEN, Julio Rosental (...)160

No dia seguinte, 26, os caixões blindados que vieram do Rio de Janeiro, cercados de
cuidados de segurança no seu transporte, encontraram, no cemitério, os populares dispostos
a cumprir suas ameaças. Durante o protesto, gritaram e deitaram-se em frente ao caminhão
que trazia os caixões, atiraram pedras, cruzes e blocos de concreto no veículo, que chegou a
ter os vidros quebrados, e cerca de 50 moradores tiveram de ser contidos por duas dezenas
de policiais. Nem todos porém, protestavam: em solidariedade aos familiares, muitas
pessoas gritavam “tem de enterrar, sim”, e aplaudiram os policiais que afastavam à força
quem tentava impedir o enterro. Dentre as cerca de mil pessoas presentes, os vizinhos do
cemitério somente se acalmaram, na descrição dos jornais, após notarem a emoção e a dor
dos familiares e ouvirem as explicações de Rosenthal, que garantiu repetidamente que não
haveria perigo nenhum nas sepulturas.161

Não faltaram, no entanto, os parlamentares oportunistas que tentaram coordenar os


trabalhos, querendo mostrar algum serviço à comunidade. Esse foi o caso do vereador José
Nelto, do PDC, que chegou prometendo que outros corpos não seriam enterrados ali.
“Fora daqui”, foi o que ele ouviu em resposta às suas falsas promessas.162

No enterro das outras duas vítimas, Israel e Admilson, a polícia goiana se preparou
melhor para impedir manifestações, mobilizando uma tropa de choque, com cães e muitos
homens, que manteve curiosos à distância, e não foram registrados incidentes parecidos:
foram quase enterros normais, isto é, apenas muito tristes. No feriado do dia 2 de novembro,
dia de Finados, “centenas” de populares levaram flores e acenderam velas nos túmulos de
concreto, em solidariedade. Entretanto, o movimento no cemitério foi menor que nos anos
anteriores. Em São Paulo, o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, durante a missa de Finados,

160
JORNAL DA TARDE, 26/10/87. Moradores contra o enterro das vítimas.
161
O ESTADO DE S. PAULO, JORNAL DA TARDE e FOLHA DE S. PAULO, 27/10/87.
162
O ESTADO DE S. PAULO, 27/10/87. idem.
98

disse que o Brasil inteiro rezara pelas vítimas, e que “a vida delas serviu de exemplo para
todo o nosso futuro (...) há sempre quem sirva de semente para que as plantas da nação
163
possam crescer” .

Nos primeiros dias do Acidente pode-se dizer que o governo de Goiás e a CNEN até
164
procuraram tranqüilizar a população , que, embora alarmada, mesmo na própria Goiânia
procurou manter a sua rotina. Mas logo, durante um certo período, o medo e a discriminação
contra os produtos produzidos em Goiás provocaria alterações e prejuízos econômicos, tais
como os que já estavam ocorrendo no pequeno comércio mais próximo dos pontos
radioativos, abandonados por seus fregueses habituais. O movimento no comércio, por volta
da segunda semana após a descoberta do acidente, havia caído de 30% a 40%, pois
circulavam boatos de que vários alimentos, verduras, carnes, leite e até a cerveja e mesmo
notas e moedas de dinheiro estariam contaminados. Vários pedidos às indústrias de Goiás
foram cancelados por compradores de outros Estados, provocando queixas de industriais e
de entidades patronais, que apontavam manobras de concorrentes e tentativas de
desvalorização de mercadorias. A CNEN teve de atestar a qualidade da produção do Estado,
efetuando várias medições, a pedido dos empresários afetados.

Apesar de tudo, a vida segue em Goiânia e a população de tanto ouvir falar no césio-137,
que gerou todo o problema, acabou fazendo combinações com o número para jogar na
Loto, enquanto vários banqueiros do jogo do bicho resolveram cortar o 137, que passou a
pagar a metade por ser muito apostado. 165

Alguns programas de televisão, exibidos em todo o país, reforçaram a discriminação e


o medo contra os goianos. Hebe Camargo e Marília Gabriela, apresentadoras de programas
de entrevistas, foram citadas como exemplos de discriminação contra Goiás e Goiânia e
disseminadoras do pânico na população. Com relação à primeira, houve um pedido na
Câmara de vereadores para que fosse declarada persona non grata na cidade.166

No início de novembro, uma barraca com produtos goianos foi impedida de participar
167
de uma feira beneficente, promovida pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Como forma de
protesto, os organizadores da barraca montaram-na do lado de fora do Parque de
Exposições do Riocentro, onde ocorria a feira. A barraca conseguiu vender rapidamente todo

163
FOLHA DE S. PAULO, 03/11/87. Em Goiânia, centenas de moradores visitam os túmulos das quatro vítimas.
164
Matérias pagas do governo de Goiás e da CNEN reafirmavam que a situação estava sob controle, muito embora ambas as
instituições estivessem em choque por causa da questão do lixo radioativo. O ESTADO DE S. PAULO, e O GLOBO,
10/10/87.
165
O ESTADO DE S. PAULO, 11/10/87. Medo, uma rotina agora na cidade.
166
JORNAL DA TARDE, 16/10/87. E lá vão os técnicos, à procura de novos focos. IMPRENSA, op.cit.
167
FOLHA DE S. PAULO, 05/11/87. Goianos são impedidos de participar de beira beneficente.
99

seu estoque de produtos, o que Gabeira (1987: 82) interpretou como uma reação de parte da
população à discriminação que estavam sofrendo os goianos.

Um ano depois, a avaliação dos empresários sobre o acidente inverteu-se totalmente:

“O césio fez o Brasil descobrir Goiânia e Goiás.” A constatação é do empresário Silvio


Eduardo do Val, 1º vice presidente da Associação do Comércio e Indústria do Estado de
Goiás - Acieg -, que insiste: “Pode parecer absurdo, mas do ponto de vista do
desenvolvimento da cidade e do estado, o retorno foi maior do que imaginávamos”.
Assim, o acidente radiativo, que num primeiro momento provocou prejuízos à economia
goiana, um ano depois é apontado como um fator de desenvolvimento. Como Sílvio, Ciro
Miranda Gifford, presidente da Acieg, diz inclusive, que a campanha de solidariedade do
Brasil para com seu estado acabou gerando um boom de crescimento, particularmente para
a cidade de Goiânia. (...)
- Estamos indo muito bem. Passou a fase do preconceito e da rejeição - avalia Gifford. (...)
O medo da contaminação radiativa não alcançou os investidores, que tocam seus projetos
normalmente.(....)168

Gifford, um ano antes, havia reclamado dos prejuízos causados à economia pela
discriminação aos produtos de Goiás dizendo que “a ignorância é muito grande” sobre o que
estava acontecendo. Mas talvez não tenha sido exatamente a ignorância que prejudicou a
economia e os habitantes do Estado, porque não é propriamente a apenas a ignorância, a
ausência de saber, que impele à discriminação, mas também o surgimento de algum tipo de
conhecimento que prescinde (ou recusa) sistemas explicativos e normativos tais como a
religião, a ciência ou as normas legais, e as verdades estabelecidas por eles. Discriminação
e medo tiveram aqui a mesma fonte, que é não só falta de conhecimentos, mas também
conhecimento científico reflexivamente apropriado, mas de maneira negativa, distorcida,
deslegitimadora, fragmentada e descontrolada - os conhecimentos da ciência, espiralando
(como diz Giddens) no corpo social, criaram não só vítimas, mas também os alvos da
discriminação, imputaram-lhes um estigma.

Goffman, através de sua idéia de que um estigma pode ser imputável a alguém
através de informação prévia sobre a sua condição, informação sem a qual o estigmatizado
pode escapar de sua condição, possibilita pensar que a discriminação não advém da
‘ignorância’, simplesmente, mas de algum tipo de conhecimento adquirido (mesmo errado,
deformado ou incompleto). De outro lado, Goffman demonstra pelo seu conceito de
“informados” que se relacionam pela estrutura social com os indivíduos estigmatizados, como
“a filha do ex-presidiário, o pai do aleijado, o amigo do cego, a família do carrasco, todos
estão obrigados a compartilhar um pouco o descrédito do estigmatizado com o qual eles se
relacionam” (Goffman, 1982: 39). Por exemplo, a noção de que se deve manter distância e

168
JORNAL DA TARDE, 10/10/88. A tragédia faz Goiás crescer. “O retorno foi maior que imaginávamos”.
100

não tocar em nada contaminado traduziu-se em procurar impedir o enterro, evitar os goianos
e coisas de Goiás, em outras palavras, frente a um perigo invisível, discriminá-los todos. Tal
como na ciência, as pessoas estabeleceram sua própria teoria de relações causais e suas
próprias conseqüências normativas. Quando Rosenthal, da CNEN, disse não entender a
atitude dessas pessoas, provavelmente estava sendo sincero: ele como técnico podia ‘ver’ o
perigo, calculá-lo e controlar seu próprio medo. Os populares puderam, com poucas noções,
imaginá-lo, e portanto, libertar o medo. A essa imaginação descontrolada também se chamou
ignorância. O que faria surgir a discriminação é menos a ignorância que um conhecimento e
uma produção de sentido descontrolada, e não é coincidência que a domesticação da
linguagem promovida como antídoto pelo ‘politicamente correto’, tenha surgido no ambiente
acadêmico norte-americano, crivado de militantes vigias do sentido. Sentidos diversos e
imaginação, ignorância científica ou esperteza comercial, as noções da física, espiralando,
deixam de ser conceitos próprios à ciência; e seus novos usos, nada nobres e até opostos
aos originais, mas tomam um sentido próprio e prático de lidar com o medo da maneira mais
elementar, de afastar-se do perigo ou procurar se salvar sem o limite de nenhuma regra,
moral, legal ou científica: aqui se pode identificar o pânico.

A imagem de um físico ou engenheiro nuclear, cercado por uma multidão que queria
impedir o enterro de vítimas de sua arte, mas secundado por policiais, clamando para que
confiassem em suas garantias, em suas palavras, poderia ser uma daquelas cenas
cinematográficas com final edificante. Ali estariam o cientista, representando a razão, os
policiais pelo Estado, o cemitério pela religião, os populares que apoiavam o enterro e os
parentes emocionados representando a moral e os bons sentimentos humanos, contra
aqueles que representavam o irracional, a discriminação, a ignorância, a violência ilegítima e
o ódio. O mocinho iluminista teria até uma ‘face humana’, dividida pela culpa das mortes
causada por seus colegas de profissão. Se na ficção o filme-catástrofe poderia terminar por
aqui, até com final feliz, estando salvos os valores da civilização, na realidade o drama se
estende.

A discriminação pôde ser superada pelos interesses econômicos (a seu modo,


racionais), mas o conhecimento científico, ele próprio, não pôde ajudar as vítimas, pois não
desfez até hoje a discriminação de que são alvos, o que é por si só um indicador que o medo
não foi superado. O modo de lidar com o acidente não foi o do estabelecimento de
confiança169, mas o do recalque: negar e esquecer.

169
O estabelecimento ou restabelecimento da confiança nos sistemas peritos são processos que Giddens chama de “reencaixe”,
a atualização das relações sociais entre leigos e sistemas peritos (1991: 83-113)
101

Quase todos os moradores de Goiânia afirmam que o acidente radioativo, ocorrido há


quase 200 dias - até agora ninguém sabe ao certo a data exata - já foi esquecido. Mas quem
se aventura a andar pelas ruas da cidade, no entanto, percebe que as toneladas de concreto
que enterraram o césio-137, liberado da cápsula do aparelho de radioterapia, não foram
suficientes para acabar com o medo das pessoas. A cidade procura não demonstrar seu
receio, mas basta uma conversa um pouco mais demorada para que os temores dos
goianenses venham à tona.
Falar do acidente radioativo com os moradores de Goiânia é começar a arrumar encrenca.
É preciso ter muito tato e paciência para colocar as pessoas à vontade. Quando isso
acontece, elas começam a falar. Algumas não dormem à noite, pensando que a tragédia do
césio ainda não terminou. Outras preferem se manter distantes de tudo e de todos que
tiveram contato com a radioatividade. Apesar disso, a cidade precisa prosseguir em sua
rotina: as pessoas então se mantém caladas e fingem que nada aconteceu. “É melhor usar
uma máscara de normalidade a encarar o acidente e pensar em toda a gravidade do
problema”, diz o professor primário Carlos Alberto Junqueira.170

O estabelecimento da confiança nos sistemas abstratos depende de que esse


demonstre seu sucesso em controlar o ambiente de risco. Mesmo que o consiga, a incerteza
quanto ao risco pode aparecer como fracasso.

Passados oito meses do acidente com o césio-137 em Goiânia na prática pouca coisa
mudou. O sistema de fiscalização de aparelhos radiativos ainda não foi modificado, o lixo
atômico continua num depósito provisório, sem que se saiba onde será colocado
definitivamente, e os médicos responsáveis pelo aparelho cuja violação provocou a
tragédia que comoveu o país continuam a trabalhar com equipamento de radioterapia. Só
para as vítimas a vida não é mais a mesma: elas trazem no corpo as marcas do acidente.
(...). É impossível saber como vai evoluir o estado de saúde dessas pessoas. “Não há como
prever quem vai ter comprometimento hematológico ou citogenético, nem até quando”, diz
a médica Maria Paula Curado, coordenadora da Fundação Leide das Neves, criada pelo
governo de Goiás para atender as vítimas. “É preciso acompanhá-los o tempo todo”,
completa outra médica da equipe, a pneumologista Rosana Farina, contratada pela CNEN
(Comissão Nacional de Energia Nuclear).171

Como se afirmou, acidentes quebram a confiança da população na técnica e nos


sistemas peritos, pois são demonstrações da falibilidade de um saber que se apóia,
idealmente, na metódica construção do sucesso, na infalibilidade e na previsibilidade, muito
embora na realidade esse processo seja bastante mais pontuado por erros, fracassos e
incertezas do que os sistemas peritos costumam admitir (Giddens, 1991. Op.cit: 89-90).
Quando parece evidente que não há porque depositar confiança num sistema perito, naquele
que deveria justamente zelar pela segurança dos leigos, as reações extremadas aparecem
apenas como negações irracionais (anti-científicas ou anti-técnicas), mas expressam talvez
mais do que apenas desinformação ou temores infundados. Expressam a vontade de não se
expor a perigos que nem mesmo pode ser identificada. De recusar alguém ou instituição em

170
JORNAL DA TARDE 28/10/87. Goiânia: o césio se foi. O medo, não.
171
JORNAL DO BRASIL, 29/05/88. Acidente com césio 137 só mudou a vida das vítimas.
102

quem não se confia, não se sabe quem é, que não consegue expressar-se em termos que se
possam entender, que tem um passado duvidoso, que impõe uma dependência sem
garantias e que, finalmente, não tem a legitimidade de nos obrigar a aceitar esses riscos,
sejam eles reais ou imaginários.

A fronteira entre o real e o imaginário, ou informação e desinformação, é neste caso,


porém, impalpável, já que a radiação é invisível, não sensibiliza qualquer dos sentidos, e só
pode ser definida por mediação justamente daqueles em quem a confiança estava quebrada.
O perigo de algo como a radiação deve ser constatado por instrumentos especiais, cujas
indicações devem ser interpretadas por técnicos treinados nas teorias correspondentes, e
depois, traduzidas como discurso inteligível para os leigos. Essa última etapa é de uma
complexidade tão grande quanto as primeiras, e é essencial para a qualidade do
relacionamento do sistema perito com os outros, e tem um objetivo político implícito, que é a
172
validação ou reconhecimento social desse sistema perito . O risco ou perigo é uma
formulação social, tanto quanto a segurança: ambos são agora formulados pelos discursos
permanentes dos sistemas peritos. Acidentes e outros erros não podem ser esquecidos por
esses sistemas, devem ser, pelo contrário, incorporados ao seu saber (como exemplos para
o futuro, como disse o cardeal Arns), e simbolicamente expiados (como aconteceu com os
operadores de Tchernobyl, que foram julgados e condenados). Por assim dizer, o sistema
perito científico e tecnológico é um circuito aberto que transforma tanto o desastre mais
horrível, ou o erro mais estúpido, quanto o sucesso mais impressionante, em auto-impulso.

Esse discurso, no processo histórico, se presta, entretanto, para a mistificação, para a


manipulação, para o estabelecimento de poderes e instituições, e também, por outro lado,
para a obtenção de ganhos em termos de resultados práticos: apenas pelo controle desses
riscos pela ciência e pela técnica, dentro de certas margens, é que a sociedade pôde tomar a
forma que tem hoje. Tomando um exemplo próximo, os microorganismos patológicos, como
vírus e bactérias, também não são visíveis a olho nu. No entanto, o processo histórico
concreto os estabeleceu socialmente; poucos são os que, hoje, duvidam de sua existência.
Os microorganismos são ameaçadores, provocam medo, que é, porém, proporcional à idéia
que se tem agora sobre os meios de controlá-los, no que a medicina avançou bastante: não
só desenvolveu meios para curar e prevenir uma série de doenças como se tornou a
mediadora entre esses riscos e as pessoas, quer dizer também, criou vínculos de
dependência entre as pessoas e os médicos e seu saber e discurso específicos. Sem esse

172
Tais operações legitimantes, como vimos, não mobilizam apenas conhecimentos, pseudo-conhecimentos ou promessas com
bases em probabilidades, mas também a ‘necessidade de segredos’, o nacionalismo e objetivos militares, a crença no
progresso, a ignorância e a atitude de respeito para com a ciência. É uma mistura, portanto, de argumentos ‘racionais’ e
‘irracionais’.
103

vínculo, sem essa relação, a instituição da medicina não teria conseguido avançar até aqui, e
os países não veriam, como conseqüência, o aumento na expectativa de vida. Não se
raciocinaria por hábito na relação entre vírus e gripes, e não se elaboraria através dela nosso
temor de adoecer e morrer. Entretanto, continua-se a adoecer e morrer, mesmo que do
modo transformado pela medicina, um modo no qual nos socializamos, e somente dentro do
qual é possível, agora, pensar em doença e morte (dentro do que se convencionou como
racional).

A confiança quebrada no sistema perito, num acidente tecnológico ou num erro, irá
restabelecer-se desde que, por um lado, o sistema perito invista na demonstração de que
não eram seus princípios que estavam errados ou falhos (princípios que são intra-validados:
médicos avaliam médicos e físicos nucleares avaliam físicos nucleares), mas sim os
operadores (não o sistema abstrato mas os humanos concretos). De outro, é necessário
investir, em fazer com que os leigos aceitem, esqueçam, perdoem ou se resignem com seus
malefícios, em vista de promessas de aperfeiçoamentos no controle, na segurança e nos
benefícios. Uma outra solução, como a de optar por não depender de algum sistema perito
(por exemplo, recusando a medicina em favor de práticas animistas, ou recusando a tomar
água fluoretada), só poderia ser individual e em contextos específicos (Giddens. 1991:?). De
certo modo, a recusa total de confiança ao saber perito também significaria negar grande
parte das certezas que se tem sobre o mundo, o que levaria, ao mesmo tempo, a abdicar de
boa parte do sentimento de segurança que essas certezas proporcionam, o que, por sua vez,
levaria à conseqüências psicológicas. Por exemplo, se não confiar na solidez de uma casa
ou ponte, ou de qualquer outro objeto construído por outros, se não for capaz de viver de
alguma maneira com os riscos implícitos em atividades comuns como deslocar-se numa
cidade ou trabalhar, uma pessoa pode impedir-se de ter relacionamentos normais de
qualquer tipo. Para Giddens, por esses e outros fatores, a “antítese profunda de confiança é
o angst, pavor existencial“(: 102), não a desconfiança, simplesmente. Leigos, e mesmo
peritos, em decorrência, têm limites quanto à extensão da revisão que pode ser feita por
ocasião de erros ou acidentes. Limites que vão além de algo como entraves corporativos e
mecanismos auto-legitiminantes de manutenção de sistemas peritos. Apesar (melhor seria
dizer: por causa) da dinâmica dos erros e acidentes, provavelmente, nunca será o caso de
uma revisão de princípios que leve a um retrocesso no saber perito, na ciência.

Os leigos, entretanto, também aprendem com os erros dos peritos: todos nos
tornamos menos céticos, mais cautelosos e desconfiados, apesar de não menos
dependentes de peritos. O próprio desenvolvimento da técnica implica em renovação de
padrões de exigência, tanto quanto à sua eficácia quanto à segurança e ao risco envolvido. E
sempre haverá um cientista, ou um grupo deles, que apóie uma visão mais crítica e menos
104

assimétrica entre peritos e leigos, ou mesmo, ampare as desconfianças dos leigos, que
surgem em episódios como acidentes tecnológicos ou pela disseminação do reconhecimento
social dos riscos da modernização. É através da crítica científica à ciência, ou como, na
proposição de Beck (1992: Cap. 7), é na crítica à ciência, comprometida com o social
ameaçado, reflexivamente voltada às suas conseqüências, que a ciência seculariza a si
mesma e renova o impulso racional da modernização. O medo e a discriminação parecem ter
surgido, no Acidente de Goiânia, não somente como indicador de que esse aspecto foi
renegado em favor do recalque, mas também como necessidade e possibilidade histórica.

‘Apuração de responsabilidades’
No Acidente de Goiânia, como foi apontado, uma outra questão, que pode ser
resumida na pergunta: de quem foi a culpa? também prendeu a atenção da imprensa.
Apontar os culpados faz parte do processo de restaurar a segurança, de controlar o medo,
que relaciona perigos a indivíduos perigosos. O nervoso debate sobre esse processo é
indicativo de questões que extrapolaram o que poderia parecer apenas como uma discussão
institucional. No início do Acidente, como em várias outras tragédias, as autoridades se
disseram comprometidas em ‘apurar as responsabilidades’, ‘até as últimas conseqüências’ e
‘com o máximo rigor’. Para tanto, essas autoridades estavam ‘determinando a abertura de
inquéritos’, prometendo ‘manter a opinião pública informada’. Esses jargões, junto com o já
citado ‘a situação está sob controle’, foram a parte inicial, superficial e algo formal do foco do
debate da responsabilidade.

Dos atores principais desse debate, a CNEN, conforme foi apresentada por seu
diretor Rosenthal (no capítulo 4), teve a atribuição das tarefas de cuidado das vítimas; de
detecção, isolamento e descontaminação dos locais atingidos pelo césio (o que incluiu o
manejo e armazenamento do lixo radioativo); e de procurar esclarecer e informar a
população sobre todos os aspectos do Acidente. Formalmente, ela teria também a atribuição
de verificar a conduta dos responsáveis pelo aparelho de radioterapia, tarefa que delegou à
Polícia Federal. Como já foi apontado, a CNEN já tinha alguma experiência em acidentes
radioativos, mas a situação em Goiânia era inédita, bem como a exposição à mídia e à
críticas que veio a sofrer. Desde logo, entretanto, a CNEN reconheceu ter dificuldades para
cumprir um de seus papéis essenciais, que era a de fiscalizar todos os equipamentos
nucleares no Brasil (o que foi admitido até mesmo por Rex Nazareth, em entrevista173). A

173
FOLHA DE S. PAULO, 08/10/87. Cnen vai solicitar que lixo atômico seja depositado na serra do Cachimbo - “(...)
Durante as cerca de três horas em que debateu com parlamentares em Brasília, Nazareth rebateu críticas dirigidas à
CNEN, que, a seu ver, age de forma ‘transparente’. Segundo ele, a atuação do órgão em Goiânia foi ‘eficaz’. Mas no Rio,
às 6h15 de ontem, Nazareth admitiu que o órgão também é responsável pelo acidente. (...) afirmou ainda que cabe ao
usuário a responsabilidade primeira pelo material, ‘logicamente, com a responsabilidade central resguardada’. (...)
Segundo Nazareth, ‘a CNEN tem responsabilidade. Não estou, de maneira nenhuma, dizendo que a CNEN não tem
105

‘dificuldade’ em fiscalizar, logo se percebeu, era na verdade ausência de fiscalização: esse


aspecto, que foi entendido como negligência por parte da CNEN e portanto, do Estado,
abalou a legitimidade da Comissão: duvidou-se abertamente de sua capacidade em controlar
a situação de emergência, já que ela própria teria sido, por omissão, uma das causadoras do
Acidente.

A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) deverá punir o Instituto Goiano de


Radiologia, apontado pelo físico Júlio Rosenthal como o principal responsável pelo
acidente de Goiânia. O instituto, assim como os médicos responsáveis, poderá ser
inabilitado pela CNEN que controla toda a atividade nuclear do País. Rosenthal, assim
como o físico Carlos Eduardo de Almeida, reconhece que há deficiência no sistema de
fiscalização. Eles alegam ser impossível promover a fiscalização física permanente sobre
todos os equipamentos radiativos existentes no País. Para suprir essa deficiência, explica
Almeida, há o rigoroso processo de credenciamento, mas a responsabilidade é delegada a
um médico radiologista e a um físico. O controle passa a ser feito pelo Correio.(...). A
fiscalização desses aparelhos, no entanto, deveria ser realizada pela CNEN pelo menos
uma vez ao ano. O aparelho de Goiânia, no entanto, estava desativado desde 1984 e
abandonado num prédio semidestruído. Durante três anos, a CNEN não teve conhecimento
de seu paradeiro ou funcionamento. Só veio a ter notícia do aparelho de césio na trágica
terça-feira passada. (...)174

Nas primeiras notícias do Acidente também já apareceram os principais suspeitos de


terem sido os responsáveis pelo abandono da bomba: os médicos donos do Instituto Goiano
de Radioterapia, que acabaram sendo indiciados pela Polícia Federal. Esses médicos,
segundo se pode reconstituir pelo noticiário, em 1985 haviam comprado o estabelecimento
de outro médico, Amaurillo Monteiro de Oliveira, o qual construíra o prédio, em acordo, num
terreno da Santa Casa de Misericórdia da cidade, situado na rua Paranaiba. Na versão dos
donos do IGR, o terreno foi vendido pela Santa Casa de Misericórdia local ao Instituto de
Previdência dos Servidores Públicos de Goiás - IPASGO . O IPASGO moveu e ganhou uma
ação judicial contra o antigo proprietário do IGR para que saísse do terreno. Antes que os
novos donos do IGR providenciassem a mudança do aparelho para um outro prédio, o
IPASGO tomou posse da construção, por meio de ordens judiciais e de vigias, impedindo o
acesso dos antigos donos. Uma ou duas tentativas de mudar os equipamentos do prédio
teriam sido impedidas por um oficial de justiça, em favor do IPASGO . Em maio de 1987, o
prédio começou a ser demolido (não se identificou por ordem de quem), ainda com o
equipamento em seu interior, ação que teve de ser interrompida com a chamada da polícia
militar. Até então, alegam os proprietários do IGR, o equipamento estava abrigado e em
segurança. Em setembro, os vigias do IPASGO foram retirados, e o prédio, abandonado,

responsabilidade. À CNEN caberia a fiscalização do aparelho instalado no Instituto de Radiologia de Goiânia’. Nazareth
disse que será o primeiro a ‘tomar as medidas para a correção do sistema’, caso sejam verificadas falhas da CNEN.
174
O ESTADO DE S. PAULO, 04/10/87. Comissão quer punir responsáveis pelo acidente em Goiânia
106

chamou a atenção dos catadores de papel Wagner e Roberto. Segundo o médico Orlando
Alves Teixeira, um dos donos do IGR, “Ninguém ignorava que naquele prédio havia uma
bomba de césio. Nem a CNEN, nem a Santa Casa nem o Instituto de Previdência de Goiás.
175
É lamentável o que aconteceu. Mas não podemos assumir a culpa sozinhos”. A CNEN,
entretanto, alegou que não havia sido comunicada da desativação do aparelho, o que seria
obrigação do IGR. O então presidente do IPASGO afirmou desconhecer a participação do
instituto no caso, pois, segundo ele, naquela altura (outubro de 1987) o Instituto ainda não
havia recebido o terreno da Santa Casa, mas admitiu que havia recorrido à polícia para
impedir a saída de material da antiga clínica, “mas não se tratava do aparelho e sim de
telhas, portas, janelas e grades que estavam retirando da casa”176.

Como se pode perceber, há uma série de inconsistências nas falas dos envolvidos no
que de fato interessava saber, isto é, quem havia sido responsável pelo abandono da bomba
(o que evidentemente ninguém queria assumir, sendo, portanto, as declarações
propositadamente parciais), além de pendências judiciais que, por vezes, são tão difíceis de
entender quanto a física nuclear, o que motivou um debate jurídico paralelo (pode-se dizer
que mais um sistema perito agregou-se à situação). Por exemplo, o presidente da Sociedade
Brasileira de Direito do Meio Ambiente, Paulo Affonso Leme Machado “[queria]
responsabilizar tanto o Instituto de Radiologia por negligência quanto a CNEN por omissão
na fiscalização”177. A OAB - Ordem dos Advogados do Brasil - secção de Brasília; manifestou
que o Estado de Goiás poderia ser responsabilizado, caso ficasse comprovado que a guarda
do equipamento era da Justiça estadual, tendo havido negligência de oficiais de Justiça que
teriam impedido a retirada da bomba, conforme a versão dos donos do IGR.

No mesmo dia em que se anunciava a abertura do inquérito da PF, o procurador das


Curadorias de Proteção ao Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo,
Edis Milaré, também considerava que a União poderia ser “responsável solidária” à
responsabilidade principal do IGR caso se comprovasse a falta de empenho na fiscalização
por parte da CNEN, citando a existência da lei 6.453, de 17 de outubro de 1977, que previa
responsabilidades civis e criminais em atividades nucleares (mas que parecia excluir o caso
de radioisótopos como o césio). O jurista Eduardo Carvalho Tess, presidente do Instituto dos
Advogados de São Paulo, apontava artigos do Código Civil que poderiam ser utilizados
contra o IGR, ressaltando que, no entanto, a responsabilização civil recebia “historicamente
uma interpretação muito tímida nos tribunais brasileiros”. Ainda na mesma notícia, informava-

175
JORNAL DA TARDE, 13/10/87. Falam os médicos acusados.
176
FOLHA DE S. PAULO, 02/10/87. CNEN afirma que processo de radiação está sob controle.
177
FOLHA DE S. PAULO, 06/10/87. Negligência com equipamento causa acidente.
107

se que a Comissão da Sociedade Brasileira de Física para o Acompanhamento do Programa


Nuclear distribuíra uma nota afirmando que, além da apuração da responsabilidade pelo
abandono da bomba, era necessária uma revisão em profundidade do sistema de proteção
178
radiológica nacional, para o qual a CNEN se demonstrara desaparelhada.

Esse desaparelhamento da CNEN é o ponto central da argumentação do advogado


Wanderley da Costa Lima, doutor em Direito Atômico, e que trabalhava para a AIEA.
Considerando que a CNEN tinha uma responsabilidade “primária” (ao contrário de Milaré),
em vista do monopólio da União sobre as atividades nucleares e pela competência em
fiscalizar da CNEN, o advogado considerava que não havia tanto uma deficiência normativa,
mas sim de aplicação das normas. “A palavra chave no Brasil hoje é impunidade”, disse,
cobrando “seriedade” e aplicação das normas, isto é, eficiência da fiscalização.179

Se, por um lado, o Acidente deveria ser interpretado como um crime, portanto,
mobilizando não só os aparelhos da polícia, justiça e os respectivos especialistas, mas
também as expectativas de que era necessário que alguém fosse identificado e punido, por
outro, questionava-se também o papel da CNEN, e por meio desse, se evoluiria para o
questionamento do próprio programa nuclear. Isto é, o debate sobre a responsabilidade se
politizou, em vários sentidos.

Não alivia ninguém o fato de saber que serão tomadas providências para apontar os
culpados pelo acidente - até porque já se sabe quem são. O que espanta é a facilidade com
que ele ocorreu. Mergulhadas num programa nuclear a longo prazo e ambicioso, as
autoridades governamentais ligadas ao setor costumam gabar, por exemplo, os sistemas de
segurança da usina de Angra dos Reis. Garantem que ela é capaz de agüentar o impacto de
um avião Jumbo 747, de tão segura. O que assusta o contribuinte, contudo, é saber que de
repente, apesar de tão segura, a usina pode explodir porque queimou um simples fusível
por falta de fiscalização.
“O que a gente pode concluir deste acidente é que o sistema de radioproteção no Brasil
precisa de maior atenção”, diz o físico Enio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC). “Como a CNEN tem se ocupado de tantas tarefas,
como o enriquecimento de urânio e a construção de submarinos, sobra pouco tempo para
dar atenção à sua principal atividade, que seria justamente o controle de todas as
atividades em que se utiliza energia nuclear. Para Paulo Nogueira Neto, que durante doze
anos foi secretário nacional do Meio Ambiente, “foi um desleixo de alto nível”, com
imprevisíveis conseqüências para o meio ambiente (...).180

Através dessas e de várias outras manifestações, uma verdadeira mas


aparentemente desarticulada frente de oposição ao governo, à CNEN e à política nuclear
utilizou a oportunidade do acidente para a crítica. Muito embora várias dessas críticas fossem

178
FOLHA DE S. PAULO, 07/10/87. Instituto e União podem ser responsabilizados.
179
FOLHA DE S. PAULO, 05/11/87. CNEN é responsável pelo acidente com césio, diz advogado.
180
ISTOÉ, 07/10/87 (28-30), Trágica negligência.
108

corretas, principalmente em relação à ausência de fiscalização de equipamentos perigosos e


de controle democrático do programa nuclear, deve-se ressaltar que alguns prognósticos
mais alarmistas, que visavam traduzir a gravidade do Acidente, podem ter ajudado a
amedrontar a população (embora esconder a gravidade de um acidente não seja um
procedimento que se possa considerar correto), sem contar alguns ‘enganos’: nem usinas
nucleares nem o chuveiro podem explodir se um fusível queimar, porque fusíveis são
equipamentos de proteção, que devem queimar em caso de sobrecargas. Por exemplo, de
um modo bastante simplificado, o acidente de Tchernobyl foi imputado a erros de operadores
que desligaram os sistemas de proteção (os ‘fusíveis’) para fazer alguns testes.

A comissão de deputados constituintes, integrada por Gabeira, Feldmann e Carlos


Minc (PT-RJ) pediu a demissão de Rex Nazareth e criticou o programa nuclear brasileiro, em
visita de “solidariedade ao povo e ao governo de Goiás”181. A comissão entregou a Rosenthal
182
um questionário de 150 perguntas, que seriam debatidas na Constituinte . Em debate na
Câmara Federal, Rex Nazareth procurou defender a Comissão que presidia, principalmente,
das propostas que visavam separar as atribuições da CNEN, de promoção e de fiscalização
das atividades nucleares, que passariam a uma entidade a ser criada.

Um dos proponentes dessa ‘divisão de poderes’ era um membro do próprio governo


federal, o ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer (que quando foi deputado
questionou, entre outras coisas, o programa nuclear Brasil-Alemanha). Entre outras
declarações, Nazareth afirmou que o acidente havia sido o primeiro causado por golpes de
marreta numa fonte radioativa, e não significaria um questionamento internacional (via AIEA)
da capacidade brasileira de lidar com a energia nuclear183. Se, para um leigo, isso é um
contra-senso, pois então seria necessário que Angra I fosse para os ares e devastasse a
região sudeste para que só então se duvidasse da capacidade técnica nacional, para um
técnico acostumado a classificar, separar e estabelecer causalidades talvez não seja tão
estranho, pois o acidente ocorreu fora de qualquer utilização mais complexa de energia
nuclear e, principalmente, o fator humano imprevisível (e leigo) é que teria provocado o
abandono e a violação da bomba.

Cientistas, em off, criticaram duramente a CNEN, atribuindo-lhe uma deficiência na


fiscalização que seria a co-responsável pelo acidente. Propuseram também, como Archer, a
divisão das atribuições da CNEN entre duas entidades separadas, a exemplo do que
ocorrera nos Estados Unidos, ao que Nazareth contra-argumentou com motivos estratégicos

181
FOLHA DE S. PAULO, 07/10/87. Governo volta atrás; lixo atômico será colocado em área desabitada.
182
Não se localizou no material pesquisado se tal questionário foi respondido e devolvido à Gabeira.
183
FOLHA DE S. PAULO, 08/10/87. CNEN vai solicitar que lixo atômico seja depositado na serra do Cachimbo.
109

(que eram também posição do Conselho de Segurança Nacional, o que era mais que
significativo), pois segundo ele, isso significaria um retrocesso no estágio do programa
nuclear paralelo, pela dispersão de recursos, e pela subordinação à entidade fiscalizadora.
Nazareth rebateu também as críticas quanto à fiscalização, dizendo que as atividades da
CNEN obedeciam às normas internacionais, que recomendavam inspeções a cada cinco
anos, ou no caso de desativação da fonte.

Além disso, Nazareth levantou um argumento que não parecia ser óbvio: que não
havia motivos para suspeitar que “pessoas qualificadas e de elevado nível cultural”, médicos
especialistas, membros de uma elite profissional, negligenciassem as normas de
segurança184, o que parece ser um outro aspecto do que Giddens chama de confiança em
sistemas abstratos (motivo pelo qual não se poderia suspeitar dos médicos), embora pelo
avesso, isto é, quando a confiança não foi confirmada. Mas o argumento de Nazareth vale
também para a própria CNEN: à medida que foi ficando claro que a CNEN era uma
instituição suspeita, cercada de segredos, estreitamente ligada aos governos militares,
omissa na fiscalização e, até aquele momento, aparentemente incompetente em lidar com a
emergência, e que ela própria não era formada somente por técnicos ‘qualificados e de alto
nível cultural’, foi ficando cada vez mais isolada, e portanto, mais difícil de acreditar que
pudesse a situação controlar. Em outra das várias ocasiões em que foi entrevistado,
Nazareth pode adicionar argumentos à sua tese, e se manifestou favorável ao aumento das
penalidades civis e criminais para culpados de acidentes provocados por negligência.
Entretanto, disse que não concordava com uma afirmação de José Goldemberg, físico e
reitor da Universidade de São Paulo - USP, que teria dito que bastariam à CNEN apenas
quatro fiscais para todas as fontes radioativas importantes, por Goldemberg ter esquecido de
milhares de fontes de uso industrial. Nazareth disse que, a não ser que se montasse um
enorme Estado policial, com um fiscal para cada operador, o sistema de segurança não
funcionaria sem a responsabilidade do usuário da fonte radioativa185.

O professor Ênio Candotti, vice presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da


Ciência - SBPC, disse ontem que o acidente de Goiânia provocou um trauma gravíssimo
na população brasileira e demonstrou que não está havendo um equilíbrio nas prioridades
do governo em investimentos em pesquisas e controle e segurança nuclear.
Candotti considera esse problema seríssimo, cuja responsabilidade deveria ser assumida
pelo próprio presidente Sarney. “É querer tapar o sol com a peneira” a insistência em
atribuir todas as responsabilidades do acidente a um ferro-velho. Candotti diz que não se
trata de um caso de polícia e não pertence ao âmbito da CNEN, e sim do Palácio do
Planalto.

184
O ESTADO DE S. PAULO, 09/10/87
185
O ESTADO DE S. PAULO, 27/10/87. Perigo pode ficar para sempre.
110

Na sua opinião, a responsabilidade transcende à CNEN, que há anos não dispõem de


recursos para montar suas equipes de fiscalização e controle do setor nuclear, a fim de
garantir a segurança do público.
No entanto, Candotti destacou que há suspeitas de omissão da CNEN quanto à fiscalização
e faz um desafio público para que este órgão mostre o cadastro e o fichário de todas as
entidades que lidam com radioatividade no País. A comissão terá que demonstrar que
existe um controle eficaz. A CNEN, disse Candotti, já se mostrou despreparada diante dos
efeitos de Chernobyl, pois permitiu a importação do leite em pó contaminado.186

No dia 9 de outubro, em cadeia de rádio e televisão, Rex Nazareth fez um balanço da


situação em Goiânia, apelou à população para que mantivesse a calma, desmentiu que a
água estivesse contaminada, anunciou a decisão de Sarney (depois revertida) de levar o lixo
radioativo para a Serra do Cachimbo, anunciou a abertura do inquérito pela Polícia Federal,
agradeceu aos cientistas, brasileiros e estrangeiros. “Devo informar que as leis vigentes
sobre as atividades radiológicas na medicina atribuem claramente sua regulamentação e
fiscalização a vários órgãos do Governo e da sociedade civil: em diversos nível de
competência de autoridade e de responsabilidade”. Lembrou-se também do valor da
radioterapia como técnica de combate ao câncer, prometeu um aperfeiçoamento nas
medidas de segurança, declarou que a CNEN superara suas atribuições obrigatórias na
emergência e, encerrando o discurso, garantiu novamente que a situação em Goiânia estava
sob controle. “O povo deve tranqüilizar-se na continuada confiança em nossos homens de
ciência, em sua seriedade, seu saber e - diria mesmo - sua abnegação” 187.O fato de utilizar
uma cadeia nacional de rádio e televisão ilustra a dimensão do Acidente, e a necessidade de
procurar acalmar virtualmente toda a população do país. Mas diferente do que queria
Nazareth, a CNEN não conseguiu fixar a imagem de ‘homens de ciência’, mas algo entre o
burocrata politicamente comprometido, omisso e negligente, e o técnico incompetente (isto é,
a CNEN não teria imagem diferente da dos demais funcionários do Estado). Note-se que,
durante todo o período do acidente, o pessoal da CNEN é chamado de ‘técnico’, enquanto
que seus opositores na maioria das vezes são ‘cientistas’, e que há portanto uma hierarquia
implícita: entre a opinião do técnico e a do cientista, o último é quem, em princípio, merece
mais credibilidade. A denominação de técnico, no Brasil, abrange desde aquele profissional
que cuida da manutenção da geladeira, e tem uma péssima imagem, até o técnico de time
de futebol, idem. Técnico também é a denominação dada a diversos profissionais nos ramos
industriais, de formação de nível médio e que são subordinados a engenheiros: em quaisquer
desses exemplos, o sentido de ‘competência’ não é agregado ao ‘técnico’, de modo
automático.

186
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. Tecnologia sem segurança.
111

O próprio tom da imprensa é quase sempre desvaforável à CNEN. Por exemplo,


esses ‘dropes’ editoriais (cada sentença destacada em uma moldura) do jornal O Globo:

Na busca de responsabilidades pelo acidente de Goiânia, só um setor - o oficial - não foi


colocado sob suspeita. Tudo, diz-se, foi feito corretamente: vistorias nos devidos tempos,
normas técnicas cumpridas.
E deu no que deu.
Entenda-se: quando se lida com riscos dessa grandeza, não há proteção completa. Existe,
sim, a obrigação de tentar o máximo em matéria de prevenção.
Não é esse o caminho que vêm seguindo as autoridades. Em vez de buscarem o
aperfeiçoamento das normas de segurança, preferem, na prática, afrouxá-las. Regra aceita
pela Aiea e pela Cnen estabelece que o local ideal para o depósito de rejeitos radioativos
deve ser seco e plano.
No entanto, o próprio Presidente da Cnen, Rex Nazareth, anuncia a decisão de armazenar
o lixo radioativo na Serra do Cachimbo. Que, como o nome indica, não é um terreno
plano; e onde o índice pluviométrico supera 2 mil milímetros ao ano.
A imprudência desenvolve-se, pois, em cadeia. E contamina os que deviam, mais do que
todos, ser rigorosos, vigilantes e sensatos.188

Reunidos num congresso em São Paulo, no dia 12 de outubro, físicos que


trabalhavam com radioterapia discutiram o Acidente de Goiânia. Concluíram pela
necessidade de mudanças e de aumento da fiscalização, sob o risco de novos acidentes
acontecerem. Uma das causas apontadas pelas dificuldades no setor era a baixa
remuneração, e o fato de existirem muitas pessoas não habilitadas lidando com fontes
radioativas. Disseram que existiam 208 institutos de radioterapia no país, “mas não temos
208 físicos de radioterapia”. A CNEN não acompanhava a construção e operação desses
institutos, e nem de empresas industriais, que não tomavam todos os cuidados necessários,
provocando acidentes que não eram noticiados. Apontaram também a existência de
contrabando de aparelhos, que estariam, portanto, fora de qualquer controle. É interessante
perceber que, nesse conceito de pessoas não habilitadas, se incluem implicitamente os
médicos, sendo citado o caso de um deles que transportava material radioativo em sua
maleta de mão, em vôos comerciais189. A esse respeito, uma outra reportagem dizia da
descoberta de poluição radioativa em um rio, causada por hospitais que, sem controles,
despejavam resíduos nos esgotos: o rio é o Sena, em Paris190. Médicos são membros de um

187
O GLOBO, 10/10/87. Rex Nazareth fala em cadeia de rádio e televisão: Situação em Goiânia está totalmente sob
controle.
188
O GLOBO, 10/10/87. A cadeia da imprudência.
189
JORNAL DA TARDE, 13/10/87. Novos acidentes poderão ocorrer.
190
O ESTADO DE S. PAULO, 10/10/87. Físicos franceses mostram os perigos.
112

poderoso sistema perito, em qualquer lugar do mundo, e em especial no Brasil: fiscalizar


191
suas atividades, quaisquer que sejam, é uma tarefa sempre complicada .

No Estado de São Paulo, porém, a Secretaria de Saúde estadual mantinha uma


equipe própria de fiscalização de equipamentos radiológicos, ligada ao Centro de Vigilância
Sanitária192. A imprensa também descobriu facilmente onde estavam em São Paulo outras
duas bombas de césio-137 similares à de Goiânia, e como essa, desativadas. A diferença,
ressaltada no noticiário, é que as bombas em São Paulo estavam em condições de
segurança consideradas adequadas.

A pedido do presidente da CNEN, Rex Nazareth, a Polícia Federal, através do então


diretor-geral Romeu Tuma, abriu um inquérito para apurar as responsabilidades criminais no
Acidente. Tuma, que foi a Goiânia especialmente para abrir o inquérito, declarou que o
Ministro Paulo Brossard (da Justiça) e o Presidente José Sarney estavam preocupados com
o caso. O inquérito da PF foi presidido pelo superintendente regional da PF, delegado
Francisco de Barros Lima. Um outro inquérito, que havia sido aberto pela polícia de Goiás, foi
então incorporado à PF, ficando a polícia goiana com a apuração de responsabilidade civil.
Ao mesmo tempo, o governo federal estava envolvido na discussão sobre o destino do lixo
radioativo.

O presidente Sarney não ficou indiferente às críticas à atuação da própria CNEN,


ordenando que Romeu Tuma abrisse uma sindicância interna para apurar responsabilidades
indiretas no Acidente, com ordem de demitir os culpados, e ainda pedindo na televisão a
prisão dos donos da bomba. A PF, enquanto isso, indiciou criminalmente os médicos Carlos
Bezerril, Orlando Alves Teixeira e Criseide Castro Dourado, os donos da bomba,
enquadrando-os no crime de lesões corporais gravíssimas a terceiros (ainda não haviam
vítimas fatais, o que agravaria o enquadramento). Segundo o delegado Barros de Lima,
caracterizou-se a negligência dos médicos, que não teriam usado de todos os recursos para
a retirada, em segurança, da bomba do prédio em que foi abandonada, pois somente eles
tinham o conhecimento dos perigos envolvidos. Pelo lado da defesa, o advogado dos
acusados negou todas as acusações, reclamando do tratamento da polícia a seus clientes.
Um dos indiciados, Carlos Bezerril, disse lamentar o acontecido, mas não se sentir culpado
por entender não ter responsabilidade. Criticou ainda a imprensa, que segundo ele não
divulgava os fatos corretamente, gerando pânico na população, ressaltando que teria sido
impedido pela Justiça de remover o aparelho, e que estavam sendo transformados em bodes

191
A receita federal, por exemplo, não consegue fiscalizar o imposto de renda de médicos, para não falar dos aspectos
profissionais propriamente, como os chamados erros médicos.
192
FOLHA DE S. PAULO. 03/10/87. Acidente é caso de cadeia, afirma físico da Unicamp; Deputado diz que uso
nuclear deve ser fiscalizado; Secretaria da Saúde faz a fiscalização em SP.
113

expiatórios. A PF também decidiu não indiciar os catadores de papel, porque a bomba teria
193
sido abandonada, e sua retirada do local não caracterizava o furto . Nessa altura, a PF
estaria estudando o indiciamento de alguém vinculado à CNEN e ao IPASGO . A AMB,
Associação Médica Brasileira, por outro lado, através do seu presidente, manifestou apoio à
versão dos donos do IGR, lembrando que o IPASGO era do governo estadual, que poderia
procurar preservar-se no episódio194.

No dia 13 de outubro, a PF indiciou também o físico Flamarion Goulart, responsável


pelos equipamentos do IGR. No dia 17, os professores da Unicamp (Universidade Estadual
de Campinas) Nelson Massini e Fortunato Badan Palhares (que haviam trabalhado com
Romeu Tuma na descoberta da ossada do nazista Joseph Mengele, caso que deu
notoriedade a todos eles) entregaram um laudo encomendado pela PF sobre o estado das
vítimas, para ser incorporado ao inquérito. Além de averiguar qual o papel da CNEN e do
IPASGO , a PF pediu informações sobre o nível de responsabilidade do Ministério da Saúde
e da Secretaria estadual de Saúde de Goiás, além de vários depoimentos de vigias, policiais,
oficiais de justiça e populares, além das vítimas. Rex Nazareth, Júlio Rosenthal e Carlos
Eduardo de Almeida e outros técnicos da CNEN, também depuseram no inquérito.

O delegado Barros de Lima apontou as dificuldades da legislação, que não deixava


claro de quem era a responsabilidade pela fiscalização do aparelho, dividida entre a CNEN, o
Ministério e a Secretaria da Saúde estadual (e nem a suposta diferença entre acidente
nuclear e acidente radiológico). Mesmo assim, o inquérito da PF terminou por indiciar sete
pessoas: além dos três médicos e o físico do IGR, também o antigo proprietário da clínica,
Amaurillo Monteiro de Oliveira; Júlio Rosenthal, da CNEN; e Sebastião Ferreira de Camargo,
da Vigilância Sanitária goiana (que não teria cumprido a legislação, não fiscalizando as
condições sanitárias do IGR). O procurador da República em Goiás, Wagner Natal Batista,
entretanto, optou por transformar em réus no processo judicial apenas os cinco primeiros, por
entender que a fiscalização que a CNEN deveria executar não tinha critérios estabelecidos.
Essa decisão polêmica, na prática isentava a CNEN de fiscalizar, embora seja bastante
provável que a legislação dificultasse a criminalização de funcionários do Estado ligados à
área nuclear.

A questão de quem era responsável pela fiscalização, entretanto, repercutiu em vários


atores antes da conclusão do inquérito. Durante um depoimento à PF, o diretor de Normas e

193
O ESTADO DE S. PAULO, 11/10/87. Polícia Federal indicia os 3 donos do instituto. FOLHA DE S. PAULO,
11/10/87. PF indicia proprietários da bomba de césio.
194
JORNAL DA TARDE, 13/10/87. Falam os médicos acusados.
114

especificações da CNEN, Marcos Grimberg, afirmou à imprensa que a bomba estava em


desuso, e que por definição, deveria ser considerado rejeito.

(...) Além disso, explicou que o [IGR], segundo as normas, ao desativar o aparelho deveria
ter comunicado imediatamente o fato à CNEN, aguardando que a comissão definisse um
local definitivo para depositar a fonte. Até que isso ocorresse, o IGR teria a obrigação de
controlar o acesso ao césio, guardando-o sob condições de segurança e vigilância
constante. (...) Sobre a responsabilidade da CNEN no acidente, (...) “a CNEN não tem
culpa no caso”, a não ser que tenham sido descumpridos os regulamentos que definem
sobre os deveres da comissão.(...)195

Para que o acidente pudesse ocorrer, entretanto, todas essas normas tinham sido
descumpridas, no dizer de uma revista semanal, “num devastador efeito dominó de
negligências”196. “Novos acidentes podem ocorrer no país a qualquer momento”, diz José
Goldemberg à revista. “Há um flagrante desleixo por parte de pessoas que têm material
radioativo sob sua responsabilidade, e a fiscalização da CNEN é falha”. Em outra entrevista,
entretanto, o então reitor da USP faz um comentário, no mínimo, bairrista.

O físico José Goldemberg, reitor da Universidade de São Paulo, afirmou que a


contaminação por césio poderia ter acontecido em São Paulo, se dependesse da
fiscalização realizada pela CNEN. “Nossa sorte é que os diretores de hospitais paulistas
não seriam tão desligados a ponto de abandonarem um aparelho de radiação”, disse o
reitor (...)197

Um outro fator que chegou a ser visto como incapacidade de assumir


responsabilidades foi a suspeita aventada de que os técnicos da CNEN não eram
capacitados para a tarefa de lidar com o desastre (idéia que se apegava até à aparência dos
técnicos):

Chegava a ser ridícula a seriedade com que tecnicamente maltrapilhos os funcionários da


CNEN rastreavam a trajetória do césio-137: ninguém usava capacetes ou máscaras, mas
bonés esportivos; muitos trabalhavam sem luvas, e a maioria dos macacões, comuns aos
frentistas de postos de gasolina, tinha sido comprada em supermercados, à falta de
estoques especiais nos almoxarifados do governo. A maioria andava de tênis pelas áreas
contaminadas, tomando apenas o cuidado de envolvê-los em prosaicos sacos plásticos
quando era necessário pisar em locais de contaminação mais intensa.198

Em artigo de jornal, baseado em nota da Sociedade Brasileira de Física, o físico


nuclear Luiz Pinguelli Rosa, porta voz da comunidade acadêmica, comentou a gravidade do

195
JORNAL DA TARDE, 12/10/87. Os donos do césio, fichados e indiciados.
196
VEJA. 14/10/87. Desolação radioativa. Em Goiânia, a paisagem do descontrole da energia nuclear.
197
FOLHA DE S. PAULO, 08/10/87. Goldemberg [dropes]
198
ISTOÉ, 14/10/87. Diante da morte e perplexos.
115

Acidente, chegando a dizer que ele foi o maior do mundo em número de vítimas imediatas e
não-profissionais da área. Pinguelli concordava com as primeiras medidas tomadas pela
CNEN, envolvendo a localização e tratamento das vítimas da radiação, a localização e
isolamento dos locais contaminados etc. “É fundamental, por outro lado, a apuração da
responsabilidade pelo abandono do equipamento em local sem vigilância e, ao mesmo
tempo, fazer uma revisão em profundidade do sistema de proteção radiológica nacional a
cargo da CNEN. Esta se revelou desaparelhada para cumprir essa missão (...) É fundamental
que o governo federal e o Congresso levem em conta as recomendações da SBPC, da
Sociedade Brasileira de Física e de duas comissões que trataram da questão nuclear com
participação de autoridades, cientistas e técnicos, formadas por determinação do próprio
presidente da República no âmbito do Ministério de Minas e Energia [uma dessas comissões
tratou de avaliar as conseqüências de Tchernobyl]”. Pinguelli destacou a recomendação da
divisão de funções da CNEN, entre desenvolvimento e fiscalização, apontando a ênfase que
a CNEN dava à primeira, no programa paralelo, em detrimento da segunda. Destacou
também a necessidade de democratizar e descentralizar os órgãos ligados à segurança
nuclear, que herdaram suas estruturas do período autoritário. Por fim, sintetizou as
responsabilidades envolvidas, posição das entidades de cientistas: “Cabe ao governo, que
promove o uso da energia nuclear, cuidar de proteger a população através da fiscalização e
orientação; cabe a quem a usa cumprir com rigor as normas de segurança; cabe à sociedade
cobrar isso do governo e das instituições e empresas de forma aberta e democrática” 199. Tais
responsabilidades são, vistas agora, tão óbvias que a questão que se pode levantar é
justamente sobre o por quê de tais responsabilidades óbvias terem de ser enunciadas,
repetidas, e colocadas como objetivos para alcançar não um estágio superior, mas um nível
ainda básico de normalidade institucional: a resposta parece ser a constatação que mesmo
esse estágio básico de organização estava longe de ser percebido.

Com exceção de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, não há controle no país sobre os
centros de radiologia. A afirmação foi feita ontem pelo presidente da Associação
Brasileira dos Físicos em Medicina (ABFM), Homero Cavalcanti de Melo. Segundo ele, a
responsabilidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) recai apenas sobre as
fontes geradores de radiação dos aparelhos radioterápicos, (...) cabendo às autoridades
estaduais a fiscalização dos centros de diagnóstico. “Esse descontrole ameaça a saúde de
pacientes, médicos e de qualquer um que se exponha a aparelhos fora das especificações
normais de funcionamento, afirmou Melo200.

Um outro aspecto que corroeu a credibilidade da CNEN, mas que não foi muito
explorado pelo noticiário, foi o possível envolvimento de alguns de seus técnicos com

199
FOLHA DE S. PAULO, 14/10/87. A responsabilidade pelo Acidente de Goiânia. Artigo de Luiz Pinguelli Rosa.
200
FOLHA DE S. PAULO, 14/10/87. Não há controle sobre centros, afirma físico.
116

empresas que fabricavam e/ou vendiam equipamentos para o setor, além de clínicas de
radioterapia:

O deputado federal Fábio Feldman (PMDB-SP) anunciou ontem [13/10/87] que ingressará
com uma representação ao procurador-geral da República, Sepúlveda Pertence, pedindo a
instauração de inquérito civil para apurar o tipo de relacionamento mantido por técnicos e
funcionários da CNEN com empresas e instituições de radioterapia. Feldman acha que
existem “fortes evidências” de que funcionários da CNEN trabalham como “consultores”
dos próprios serviços de medicina nuclear que deveriam fiscalizar. O inquérito deverá
também, segundo o deputado, verificar os termos de um suposto convênio pelo qual a
CNEN transferiu funções de fiscalização para o Colégio Brasileiro de Radioterapia.
Feldman disse “estranhar” a posição assumida pela Associação Médica Brasileira (AMB)
e pela Associação Brasileira de Físicos em Medicina (ABFM) que, segundo ele, fizeram
uma “intransigente defesa” da CNEN.201

Um outro físico, Anselmo Paschoa, consultor da CNEN, de certa forma concordava


com as críticas, dizendo que o Brasil tinha muito que aprender com o episódio, e que a
responsabilidade pela fiscalização teria então de ser reavaliada, não podendo ser assumida
pelas secretarias de saúde estaduais. Disse que a repercussão do acidente no exterior, nos
meios científicos, foi terrível, “aumentando a impressão de que o Brasil é um país em que
202
falta cuidado nas coisas sérias” .

Quando visitou Goiânia no dia 14 de outubro para anunciar a proposta de lei sobre o
lixo radioativo, o presidente Sarney declarou que “Este acidente é resultado da
irresponsabilidade e ignorância”, mas referindo-se apenas aos donos da bomba, e disse
também que (provavelmente confiando em Romeu Tuma) as responsabilidades seriam
apuradas com todo o rigor. Antes de embarcar de volta a Brasília, Sarney passou por uma
medição completa por contadores Geiger e cintilômetros da CNEN, para ter certeza de que
não estava levando nenhum resíduo radioativo.203 Outras autoridades também trataram de
anunciar providências: O Ministério da Educação ordenou um levantamento de quantas
fontes radioativas existiam em seus 38 hospitais, ligados às universidades, a mando do
ministro Jorge Bornhausen204. O Secretário de Saúde do Estado de São Paulo, José
Aristodemo Pinotti, estudou a criação de um serviço especializado em atender vítimas de
radiação, dentro do Hospital das Clínicas205.

201
FOLHA DE S. PAULO, 14/10/87. Para Nazareth, consultoria é legal.
202
JORNAL DA TARDE, 26/10/87. Descontaminação total? Quase impossível.
203
O ESTADO DE S. PAULO, 15/10/87. Sarney anuncia lei para lixo atômico.
204
FOLHA DE S. PAULO, 20/10/87. MEC inicia levantamento.
205
FOLHA DE S. PAULO, 20/10/87. Saúde quer equipar o HC.
117

Lutando contra a tarefa de ficar com o lixo radioativo, Henrique Santillo, após a
desistência de Sarney da opção da Serra do Cachimbo, criticou tanto o Presidente quanto a
CNEN, que segundo ele, nunca havia estudado a sério a questão dos depósitos de rejeitos,
desde a sua fundação, em 1962. Para ele, a responsabilidade do assunto era da CNEN, que
deveria arranjar um local adequado para o depósito definitivo (desde que não fosse em
Goiás). Admitiu, porém que, no futuro Goiás deveria ter um local próprio, definido pela
Universidade Federal de Goiás e pela comunidade científica nacional. Uma decisão, que
neste caso, seria “técnico-científica e não política”206.

Henrique Santillo passou dois dias (19 e 20/10) em viagem pelo Rio de Janeiro e São
Paulo, para “convencer” os principais jornais e tevês do país de que estariam noticiando o
acidente de forma sensacionalista, prejudicando Goiás e a cidade de Goiânia. Santillo, como
outras autoridades goianas, acusaram jornalistas “de fora” de prejudicar a imagem do
207
Estado . De volta a Goiânia, Santillo resolveu cobrar da União todos os gastos com o
transporte e armazenamento do lixo radioativo, cerca de 220 milhões de cruzados, pois
considerava a União responsável pela fiscalização dos equipamentos radioativos (e portanto,
pode-se dizer, pelo acidente). Santillo reclamou do Ministério da Saúde, que não participara
de nenhuma das atividades na cidade, cobrando uma maior participação do governo federal.
Reclamou também das universidades, que segundo ele, estavam numa redoma, isoladas do
povo pelo excessivo corporativismo, embora no mesmo dia Goldemberg tenha visitado a
cidade, a seu convite.

Nessa visita, Goldemberg voltou a polemizar com Nazareth e atribuir à CNEN o papel
de omissa na fiscalização: “Os órgãos de fiscalização existem justamente para lembrar a
existência de normas a serem respeitadas”. Após visitar os locais contaminados, entretanto,
Goldemberg elogiou os trabalhos de descontaminação dirigidos por Rosenthal208. A polêmica
entre Goldemberg e Nazareth chegou a ponto de o primeiro ter declarado que Nazareth
deveria se demitir, ao que este replicou que respeitava muito Goldemberg, mas este deveria
fazer uma avaliação geral antes de acusações.

Em artigo de jornal, Goldemberg fez um apanhado de suas posições, indo direto à


questão política, que chamou de crise de legitimidade. Segundo ele, o acidente foi grave,
mas definido, em termos de vítimas e locais afetados, não havendo possibilidade de
contaminação generalizada.

206
O ESTADO DE S. PAULO, 16/10/87. Governador protesta contra lei para lixo.
207
FOLHA DE S. PAULO, 20/10/87. Governador faz críticas a imprensa.
208
O ESTADO DE S. PAULO, 28/10/87. Governador cobra tudo da União. Goldemberg visita área e lamenta omissão.
118

O governo, entretanto, foi incapaz de passar essa mensagem simples à população, tanto
porque as autoridades brasileiras ainda não se convenceram de sua responsabilidade de
dizer a verdade aos cidadãos sobre o que está ocorrendo e o que estão fazendo, como
porque sua credibilidade está completamente destruída. Aliás, esses dois aspectos estão
claramente interligados. Em virtude disso, os desencontros de informações e o
comportamento dos dirigentes da Comissão Nacional de Energia Nuclear, assim como do
próprio presidente da República, estabeleceram uma situação de insegurança tal, que levou
ao pânico uma população enorme. A radiatividade foi concebida como um eflúvio ou
miasma que contaminava a todos, sem possibilidade de defesa.
O esforço do governo se concentrou em mostrar que não era responsável pelo acidente.
Ante a gravidade da situação, isso era, no momento irrelevante. Cabia à autoridade pública
tomar medidas firmes em defesa da população (...). Mas a questão da responsabilidade
também não podia ser evadida. Era necessário, para resguardar a credibilidade do governo,
afastar os servidores da Comissão (...) cuja omissão permitiu que o acidente ocorresse.
Entretanto, para resguardar uma comissão que inclui veteranos do regime autoritário
ligados ao aparato militar, o presidente não tomou até agora nenhuma medida concreta de
caráter político, mesmo que simbólica, para restabelecer a confiança da população em
relação às autoridades públicas.
Numa situação em que as informações prestadas são parciais e contraditórias, as omissões
não são cobradas e a ação é sempre atrasada e lenta, não é de estranhar que a população
manifeste uma profunda incredulidade em relação à capacidade do poder público de agir
em sua defesa (...)
É por isso que esse incidente é tão revelador - ele indica o processo pelo qual se perde a
credibilidade, que é o que o Poder Público mais necessita no momento209.

Goldemberg, ainda no citado artigo, compara a situação de Goiânia com a de outras


áreas, onde a atuação do governo teria se pautado pelo mesmo processo, dando como
exemplo a aventada extinção do Ministério da Ciência e Tecnologia para resolver problemas
políticos, que revelavam “completa incompreensão do papel de ciência e tecnologia como
motores de uma sociedade moderna”. Apontou que essa credibilidade, necessária à
governabilidade e à transição democrática, existia em vários setores da vida nacional, mas
não no governo.

A SBPC produziu um relatório sobre o Acidente de Goiânia, elaborado por uma


comissão de cientistas coordenada por Alfredo Aveline, físico da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, criticando a estrutura de fiscalização, falhas nos trabalhos de
descontaminação e apontando o risco de novos acidentes e o papel de formação e
preparação de quadros especializados que a CNEN não estaria cumprindo. Além de um
balanço de todas as medidas que já tinham sido tomadas, o relatório trazia diversas
recomendações, como um levantamento de todos os usuários e fontes no país.

“É necessário ainda um vigoroso programa de formação de pessoal para o efetivo


cumprimento das disposições de segurança da manipulação dos materiais nucleares. Esta
formação, no entanto, não deverá enfatizar apenas aspectos técnicos, mas incluir também

209
FOLHA DE S. PAULO, 01/11/87. Credibilidade na transição. Artigo de José Goldemberg.
119

as atitudes de respeito aos seres humanos em suas ansiedades e incertezas, adotando uma
postura vigilante de que a energia nuclear pode, de fato, mesmo em pequena quantidade
manipulada, ser uma real ameaça à vida, à tranqüilidade, à ordem social e econômica e às
finanças públicas”210

A comunidade científica pareceu portanto ter uma posição bastante clara e


progressista em vista da situação. O que se propôs vinha ao encontro da necessidade de
que controles técnicos, institucionais e democráticos - e básicos - fossem implementados.
Teve de expor as politizações e motivações (estratégico-militares) envolvidas, de explicar as
tarefas políticas aos políticos (como a importância da credibilidade). Lutou contra o país
atrasado representado por Sarney e suas alianças clientelísticas, contra a desinformação e a
ignorância (que ‘causaram’ o acidente e provocaram o medo), isto é, manteve acesa a
tradição iluminista que se espera de cientistas. Se é certo que suas propostas apontavam
para a modernização necessária até para a segurança da sociedade, entretanto, a crença
iluminista que os animava também, de certa maneira, acabou por limitar a sua atuação
crítica. Físicos nucleares, certamente, confiam no seu ofício, e crêem na possibilidade de
controlar as forças da matéria, talvez até porque seja possível teorizar e planejar esses
controles. As aplicações práticas, entretanto, são muito mais problemáticas. A grande
tragédia científica do projeto Manhattan talvez seja a de que, naquele evento, se conseguiu
fazer cooperar egos e Q.I.’s211 cujos tamanhos devem ser medidos em quilotons212 porque os
cientistas se mobilizaram contra o fascismo obscurantista, e criaram a arma que o derrotaria;
mas, também seriam os primeiros a se horrorizar com ela e procurar impedir o seu uso de
fato (o melhor exemplo é do físico húngaro Leo Szillard213): “tragicamente, a própria guerra
nuclear foi filha do antifascismo (Hobsbawn, 1995: 525-6)”. Os cientistas não estavam fora
das “paixões políticas” (:526), que os motivou a construir a bomba, justamente as paixões
que procuraram abstrair dos planos de controle de armas nucleares, para que essas não
fossem usadas. Na proposta da SBPC, a indicação da necessidade de respeito, por parte
dos técnicos, às “ansiedades e incertezas dos seres humanos” é louvável e também
progressista, mas também indica que a qualidade humana ainda foi pensada como externa
(deveria ser trazida como uma atitude a ser ensinada ao técnico, como se esse não fosse

210
O ESTADO DE S. PAULO, 04/11/87. Radiação pode repetir-se, diz SBPC.
211
Quocientes de inteligência.
212
Um quiloton equivale a potência de mil toneladas de TNT (dinamite).
213
Além dele, Niels Böhr, Linus Pauling e vários outros cientistas que participaram da criação da bomba atômica logo
anteviram as conseqüências de suas descobertas, inclusive o risco de uma corrida armamentista, e chegaram a iniciar um
movimento pelo controle da energia nuclear por um organismo supranacional. O fracasso relativo de sua empreitada, a
despeito de quem eram, amplifica as dimensões da tragédia, embora atitudes de cientistas como eles sejam responsáveis por
boa parte do que se sabe sobre os problemas da utilização da energia nuclear. Todo o desenvolvimento histórico posterior da
energia nuclear, como risco, já fora previsto e apontado por estes cientistas, portanto poderia em tese ter sido evitado.
120

também um ser humano), e subordinada, reduzida à necessidade de controlar os perigos da


radiação, isto é, como um aspecto que racionalmente aperfeiçoaria os mecanismos de
controle: levar em conta ansiedades e incertezas passou a ser visto como um
aperfeiçoamento técnico.

Toda a questão da responsabilidade e irresponsabilidade pode ser, analiticamente,


colocada na questão do outro: como apontou Scott Lash, o breakdown, no caso, o acidente
tecnológico em Goiânia, foi uma situação em que agentes se viram sujeitos e confrontaram
discursos e ações em relação aos outros. Na confusão do acontecimento-espetáculo pela
mídia vislumbrou-se uma multiplicidade de oposições: técnicos contra políticos, ecologistas
contra técnicos, polícia contra culpados, vítimas contra médicos, governantes contra a
imprensa, brasileiros contra goianos, técnicos contra técnicos, cientistas contra governantes,
e assim por diante, formando-se frentes e alianças, esclarecendo-se os adversários e os
lados que defendiam. Na situação da emergência, do excepcional, uns e outros se
perguntaram intensamente onde estavam e como cumpriam suas responsabilidades (seus
papéis supostos) na normalidade, isto é, o quanto cumpriam seus compromissos, éticos,
profissionais, técnicos ou políticos, quais interesses e segredos escondiam. Por essa via, o
questionado foi o que se entendia por normalidade.

Quanto à responsabilidade, Beck, entre outros aspectos, notava que as cadeias de


causalidades e interdependência dos riscos envolvem uma multiplicidade de agentes,
deslocados no tempo e espaço, o que desafia a possibilidade de isolar os fatores individuais.
“... correspondendo à altamente diferenciada divisão do trabalho, o que existe é uma
cumplicidade geral, e essa é igualada a uma falta geral de responsabilidade. Qualquer um é
causa e efeito, e também não-causa (...) Isto revela de modo exemplar o significado ético do
conceito de sistema: alguém pode ter feito algo e continuar fazendo-o sem ter de
assumir uma responsabilidade pessoal. O que é como se alguém houvesse agido
enquanto estava pessoalmente ausente. Alguém age fisicamente, sem agir moralmente ou
politicamente. O outro generalizado - o sistema - age dentro e através de si mesmo: essa é a
moralidade escrava da civilização, na qual as pessoas agem pessoalmente e socialmente
como se fossem sujeitos de um destino natural, a ‘lei da gravitação do sistema’ (1992: 32-
3)214. Beck observava que países do Terceiro Mundo, em busca de alguma autonomia
econômica e premidos pela necessidade de alimentar sua população, eram um campo fértil

214
“ ... corresponding to the highly differentiated division of labor, there is a general lack of responsibility. Everyone is cause
and effect, and thus non-cause (...) This reveals in exemplary fashion the ethical significance of the system concept: one can
do something and continue doing it without having to take personal responsibility for it. It is as if one were acting while
being personally absent. One acts physically, without acting morally or politically. The generalized other - the system - acts
within and through oneself: this is the slave morality of civilization, in which people act personally and socially as if they
were subject to a natural fate, the ‘law of gravitation’ of the system.”
121

para a atração de indústrias perigosas, num movimento de exportação de riscos, dos países
industrializados para a periferia. Nesses países, a população assumiria, sem consciência,
riscos considerados inimagináveis nos países industriais, isto é, a implantação e legitimação
de riscos seria livre onde a consciência dos mesmos seria nula. Regulamentos de proteção e
segurança, bem como a legislação, poderiam inexistir ou ser apenas um monte de papéis.
Neste contexto, facilmente se poderia atribuir a responsabilidade por acidentes à cegueira
cultural quanto às ameaças (: 42).

Os aspectos notados por Beck não deixaram de estar, de alguma maneira, presentes
no Acidente. Apesar de a única culpa formalmente verificada ter sido a dos médicos do IGR,
a crítica na imprensa procurou explicitamente apontar como culpados os últimos, e também a
CNEN, Sarney, o programa nuclear, os governos militares, e também os problemas
‘culturais’, como a ignorância e o atraso; os problemas políticos, como a necessidade de
democratização do setor; e mesmo os ‘técnicos’, como a necessidade de estabelecer locais
para o lixo nuclear, isto é, as diferentes responsabilidades tanto no acidente quanto no
aperfeiçoamento das condições de segurança. Por alguns meses, o outro generalizado e
normalmente oculto no subsistema nuclear estatal teve nome, cargo e rosto, teve de ser
sujeito, na defesa do status quo (e apenas por isso já seria criticável), e se pôde vislumbrar
sua relação com os outros sujeitos, mesmo que mediada pela imprensa. Como acidente
tecnológico, toda a discussão também se orientava para o futuro, como aperfeiçoamentos da
segurança, como mudanças necessárias nas instituições, como esclarecimento e verificação
de papéis e de responsabilidades. A grande questão, entretanto, é que a discussão sobre os
papéis dos envolvidos no acidente não envolve apenas a atuação conjuntural, específica e
particular, deste ou daquele agente real, mas também e concomitantemente, o do conteúdo
no relacionamento com um ou mais sistemas abstratos, portanto formais, e em relação aos
quais se formam as expectativas de confiança.

Virilio (Virilio & Lotringer, 1984) diz que acidentes estão para as ciências sociais como
o pecado está para a natureza humana, “uma certa relação com a morte, ou seja, a
revelação da identidade do objeto” (:41). Médicos que matam ao invés de curar, assim como
aparelhos de radioterapia que provocam câncer ao invés de tratá-lo, técnicos nucleares
especializados mas negligentes, fiscais que não fiscalizam, são imagens relacionadas
diretamente a um duplo pecado, um pecado paradoxal, assim como Papas pecadores, mães
prostitutas, policiais bandidos, juizes corruptos, cientistas loucos, presidentes subservientes
etc.. Há ambivalência, estranheza e ambigüidade intoleráveis nessas imagens, e isto quer
dizer, não há confiança, responsabilidade ou compromisso possível, já que todo discurso
desses elementos é hipócrita pela duplicidade: não se firma nem como verdade e nem como
mentira, nem bem nem mal. São agentes da confusão, da divisão e da relatividade, da
122

dinâmica incontrolável - do contingente, do extraordinário, do acidente. Da tragédia. Ao


mesmo tempo, são imagens atraentes, instigantes e enigmáticas, provocam uma curiosidade
incontrolável pelos seus conteúdos contraditórios e variedade de sentidos, e provocaram
reações extremas numa sociedade que já se deseja baseada na confiança linear, no
exercício de papéis formais, no cálculo e na utilidade instrumental. Numa sociedade que,
diante do Acidente, quer ser moderna.

É o que parece ser um elemento chave para a atenção nacional presa, de forma
aflita, ao acidente de Goiânia: se os acontecimentos provocaram tal desaprovação, medo,
indignação, pode ser porque, além da situação de emergência, houve um drama composto
por valores contraditórios coexistindo, o pequeno ladrão da bomba, o médico descuidado, o
técnico negligente, o político oportunista, as crianças inocentes, um governo pusilânime, um
Brasil de pequenos expedientes tolerados, misturados à radiação invisível, dos materiais
estranhos, siglas, efeitos permanentes, regras rígidas, normas inquebráveis, altas
tecnologias, nucleares e atômicos - o mundo sério, duro e inexorável das instituições
modernas corroído pelos pequenos vícios nacionais, pelos defeitos genéticos de um país
que, nesse instante, foi pego em flagrante, expôs suas fraquezas e se envergonhou tanto
quanto se amedrontou, se culpou tanto quanto acusou. O acidente de Goiânia condensou e
precipitou, mesmo (ou por causa) da maneira confusa e emocional em que ocorreu, uma
elaboração coletiva sobre elementos que nos caracterizariam como nação e que surgiram na
problematização do acidente pelos seus comentadores e atores: a negligência, a
imprevidência, a ignorância, a tecnocracia, a covardia, o medo, a impunidade, a
irresponsabilidade, o oportunismo, a burocracia, o bacharelismo, a indecisão, o
sensacionalismo, a incompetência, e vários outros aspectos, surgiram nas diferentes notícias
para explicar, ilustrar, mostrar, comentar e, principalmente, politizar o acidente, suas causas
e as responsabilidades na sua emergência.

Dessa maneira, o que se elaborou foi a idéia de que o acidente é uma comprovação
do ‘atraso’ nacional (até a bomba era obsoleta), provocada por uma espécie de ‘impotência’
em ser moderno, ancorada em características culturais amplamente compartilhadas - daí a
sensação de estranheza diante algo que nos era, no fundo, familiar - aspectos que geraram,
no entanto, um evento inesperado no modo e na gravidade concreta, e que foram
identificados como defeitos capitais nas ações do Estado e do sistema perito. Os
desdobramentos a partir da descoberta do acidente, conforme foi focalizado e exposto pela
imprensa, tocam constantemente nessa ferida: alguns comentadores, cuja autoridade lhes
permitiu, foram trabalhados pela imprensa de forma que seu discurso foi sutilmente
editorializado, isto é, claramente, a imprensa tomou o partido de pôr em relevo os críticos da
ação governamental, trabalhando uma espécie de ressentimento geral contra o Estado.
123

Fazendo isso, alimentou a expectativa da população (ou pelo menos, de seus leitores) de
que o Estado não estava, de antemão, capacitado para a emergência, como não estava para
nenhuma tarefa importante: controlar a inflação, realizar políticas sociais, agir
democraticamente, em resumo, ser um Estado moderno e democrático, do modo como a
imprensa e parte da elite formulavam essa questão.

Por outro lado, o efeito da atuação da imprensa pode ter ajudado a comprovar a sua
própria tese, pois ao postular a incompetência e irresponsabilidade do Estado, pode ter
prejudicado as ações de emergência e agravado as suas conseqüências, isto é, ajudou a
constituir justamente o que gostaria de demonstrar: a impotência estatal. Por essa via,
contribuir para inviabilizar, ao menos no imaginário vigente, a possibilidade de que a
população se tranqüilizasse, já que ninguém estaria autorizado a resolver o acidente, ao
contrário, auxiliando menos para o esclarecimento do que para a desinformação e o medo.
E, em decorrência, também para o surgimento das manifestações discriminatórias e
irracionais.

Se existiu essa problematização em torno do que nomeamos como um certo atraso e


impotência nacionais, existiu também, por suposto, no mesmo movimento, toda uma
problematização em torno do que seriam, então, o avanço e o poder. Esse último aspecto
pode ser lido, em primeiro lugar, no avesso de todos os discursos que ressaltaram o lado
negativo do acidente e de seus envolvidos: como o exemplo, já visto, de uma revista
semanal215 que produziu, na sua reportagem, um box comparando, em duas fotos, os
técnicos da CNEN em ação em Goiânia e técnicos alemães ocidentais enfrentando as
conseqüências de Tchernobyl. Estes últimos, paramentados futuristicamente, com máscaras,
botas, equipamentos etc. Os primeiros, com bonés, macacões de frentistas de posto de
gasolina e tênis de lona. O efeito sobre os leitores é contundente, ao menos para os leigos,
isto é, para praticamente todos. O avanço e o poder estariam no modelo dos países
industrializados, modernos, na maior capacidade técnica, e, por extensão, na aparente maior
racionalidade e eficácia das soluções que esse modelo propõe.

Em segundo lugar, o avanço não foi apenas uma questão material, mas de
descompasso entre discurso e práticas, entre intenções e ações. O Estado e o sistema perito
assumiram seu lugar na emergência, na forma vigente na atualidade: o Estado apropriou-se
do acidente, monopolizou-o, procurou solucioná-lo através da CNEN, isto é de seu aparato
técnico, procurou apurar as responsabilidades através de seu aparato policial e judiciário,
procurou assistir as vítimas, proteger os demais cidadãos e recuperar a normalidade da
cidade, procurou tranqüilizar a população, envolvendo-se de modo raras vezes visto. No

215
ISTOÉ, 07/10/87. op.cit.
124

entanto, poucas dessas ações foram vistas, em tempo real, como adequadas, ou mesmo,
como legítimas, poucos resultados positivos foram reconhecidos. Os diversos agentes do
Estado, quando foi o caso, explicaram quais eram seus papéis formais, que poderiam ser
considerados tecnocráticos ou burocráticos, mas não ‘atrasados’. Nada disso, porém,
confirmou as ações concretas, principalmente dos governantes, vindos em geral de uma
tradição política de fato atrasada, tanto que não realizaram a ligação fundamental entre a
ciência e a técnica e a política, isto é, não deram primazia ao racional, principal fator de
legitimação nos Estados modernos, quando essa ligação era mais necessária, em plena
emergência.

Em terceiro lugar, o avanço em questão pode ser encontrado na problematização


sobre as conseqüências do acidente: se já temos acidentes nucleares, deveríamos ter,
portanto, um programa nuclear. As questões foram colocadas, na forma de perguntas sobre
a segurança da usina de Angra, sobre a organização da CNEN e seu monopólio sobre as
atividades nucleares, sobre o lugar do depósito de rejeitos radioativos, sobre o controle
democrático das atividades nucleares, etc. Se todos os aperfeiçoamentos e críticas sugeridas
fossem trabalhadas, pelo menos no plano da segurança nuclear, e da avaliação e controle do
programa nuclear, haveria ‘avanços’ reais, isto é, naquele momento, houve a capacidade
social de delinear um projeto que, no final, poderia redundar em mais segurança à
população, mais legitimidade ao próprio programa nuclear, e portanto, maior inserção do país
nesse mundo dos países avançados e tão desejado - com todos os riscos que isso
acarretaria, como Tchernobyl simbolizou.

Essa discussão lembra, numa perspectiva sociológica clássica, e embora de um


modo algo distante, e em um contexto completamente diferente, a questão levantada por
Max Weber (1981) da ética protestante e da modernização capitalista pelo empreendimento
racional. Se os aspectos que relacionam atrasos e responsabilidades existiram, tal como se
tentou demonstrar, existiu uma dimensão ética nessa discussão sobre o acidente. Essa foi
também uma discussão sobre as exigências da modernização, racionais e éticas, isto é, um
debate político entre os agentes do acidente sobre as responsabilidades, portanto, sobre o
outro, sobre a expectativa na ação do outro, em um contexto em que essas
responsabilidades foram publicamente discutidas e explicitadas (e que envolvem,
teoricamente, os conceitos weberianos de ação social e de relação social). Entretanto, se nos
atermos à perspectiva weberiana, estaria dificultado o entendimento de que essa discussão
também se relaciona com os limites e as conseqüências indesejáveis do processo de
modernização, como acidentes tecnológicos. E aqui a discussão ética se problematiza, pois o
empreendimento racional, que para Weber era voltado à construção do capitalismo pela
produção de riqueza, ao sucesso individual do capitalista, agora se tornou um
125

empreendimento que deve ser racional também para, no caso brasileiro, ao mesmo tempo,
lidar com os perigos e riscos, com o medo coletivo, com efeitos que, agora, não são
simplesmente colaterais, mas simultâneos, do processo de modernização.

Finalmente, o avanço foi problematizado no simples desejo implícito de que médicos


curem, de que os técnicos sejam cuidadosos, de que culpas sejam punidas, de que bombas
não terminem em ferros-velhos, de que os governantes sejam previdentes e generosos, de
que se possa ser capaz de entender os riscos que corremos e de protestar, se assim
quisermos. Que nossos técnicos sejam tão bons quanto pensamos que são os alemães,
podendo inclusive usar a mesma roupa. Que haja menos absurdos. Mas esse desejo só
pode ser entendido na relação com o atraso: no acidente de Goiânia, todas as falhas, os
erros, irresponsabilidades, a ignorância, a impunidade, o burocratismo, a imprevidência etc.,
que foram deplorados surgiram como indicadores de que a disposição, o desejo coletivo
desse avanço, esquematizado acima, existe, e isto quer dizer que a modernidade, a
racionalidade, e por extensão, sua moralidade, são um projeto nacional.
126

Conclusões: como os acidentes tecnológicos


terminam?
Pode-se esboçar um balanço do Acidente de Goiânia em termos de que ele, dez anos
depois, ainda é um problema, ou vários. Em relação às suas vítimas fatais, além de Marília
Gabriela, Leide, Israel e Admilson, oficialmente admitidas, fala-se em outras 12 mortes216. A
única que teve algum comentário na imprensa foi a de Devair, em 1995, inicialmente
atribuída pelo agora suspeito médico legista Fortunato Badan Palhares217 a uma cirrose
advinda do alcoolismo, sem ligação com o acidente218. A causa da morte de Devair,
entretanto, foi contestada por um outro laudo, apontando câncer na próstata e esôfago,
danos na medula e na mucosa do intestino, o que liga sua morte diretamente ao césio-137.
Ernesto Fabiano nunca conseguiu curar a ferida na perna, apesar de vinte e quatro cirurgias,
e recebe R$ 196,00 reais como pensão vitalícia do governo de Goiás (pode-se perguntar
quem consegue ser saudável apenas com essa pensão). Ivo, irmão de Devair e pai de Leide,
sofre de depressão, reumatismo, gastrite, pedra nos rins e lesões pelo corpo, perdeu dois
dedos das mãos e ganhou um feio enxerto na palma esquerda. Sofre por lembrar sua
história. “Me lembro de um tal doutor Sampaio. Ele dizia para o enfermeiro: ‘enche a
geladeira do quarto deles de iogurte, pelo menos essa gente morre de barriga cheia’. Eu quis
matar aquele homem”.

Os sobreviventes criticam duramente, quanto aos cuidados que recebem, a Fundação


Leide das Neves Ferreira (Funleide), criada legalmente em fevereiro de 1988, voltada à
assistência aos radioacidentados e ao fomento de pesquisas médicas sobre o acidente. A
Funleide também é acusada de ser um cabide de emprego, e de não ter um orçamento que
lhe permita cumprir suas atribuições. Os dirigentes da Fundação, como é de se esperar, se
defendem, dizendo que as vítimas tinham problemas psicossociais, mesmo antes do
acidente. As vítimas sentem-se também cobaias de médicos de diversas nacionalidades,
interessados nos efeitos da contaminação. Além das incertezas quanto à sua saúde, da
penúria financeira e das vidas destroçadas, as vítimas ainda são discriminadas por outras
pessoas: “Parece que fomos nós os culpados pela tragédia”, diz Ernesto. Mesmo as crianças
que nasceram depois do acidente, aparentemente saudáveis, são discriminadas. As crianças

216
ATENÇÃO!. Ano 2, nº 9, 1996. (: 10-6). Goiânia - 137. Reportagem de Laura Greenhalgh. Várias informações e citações
a seguir foram retiradas dessa matéria, bastante abrangente.
217
Autor, entre outros trabalhos polêmicos, do laudo de P.C. Farias, assassinado em circunstâncias misteriosas em Maceió,
1996.
218
Embora o alcoolismo poder ser considerado, de um outro ponto de vista, uma doença desencadeada, no caso, pelo próprio
acidente.
127

e outras vítimas chegaram a ser tratadas em Cuba, através de um acordo oferecido por Fidel
Castro quando esteve no Brasil para a Eco 92, no Rio de Janeiro. Cuba tem experiência com
milhares de crianças soviéticas afetadas pelo acidente de Tchernobyl, e um grupo de 50
vítimas usufruiu, ao que parece, de um clima diferente. “Tínhamos de tudo: casa, comida,
exames, remédios, lazer e um atendimento bem diferente do que existe no Brasil. Lá, médico
é igual ao paciente. Ele não chega para dar ordens nem para meter medo”. O acordo com
Cuba foi unilateralmente interrompido pelo governo brasileiro, Ministério da Saúde, CNEN,
Funleide, como pretexto de que o mesmo tratamento era oferecido aqui. “Disseram que
fizemos turismo e que o tratamento cubano só fez bem para a nossa cuca. Não é verdade.
Mas, se fosse, seria um ganho. Aqui, nem a cabeça da gente os médicos consertam”.

Um outro grupo de vítimas surgiu na imprensa, pouco menos de um ano após o


acidente, envolvendo militares que trabalharam na descontaminação da cidade, como o caso
do bombeiro Adão Rocha, que teria se irradiado ao ficar 16 horas exposto ao cilindro que
Maria Gabriela levou ao prédio da Vigilância Sanitária de Goiânia. O bombeiro, entre outros
efeitos, ficou impotente, e encabulado, só pediu ajuda tempos depois. Rumores dentro das
corporações, da polícia militar e dos bombeiros, apontavam a ocorrência de casos
semelhantes219. Em 1996, o acúmulo de doenças graves entre 59 militares que trabalharam
no acidente chegou ao ponto deles se reunirem e processarem o Estado de Goiás. “Os
técnicos ficavam de longe, dando ordens, e nós botávamos a mão na massa. Se
recusássemos o serviço, era cadeia na certa” lembra um policial que trabalhou no isolamento
da rua 57. O coronel Nelito Barbosa, chefe da Defesa Civil na época do acidente, culpa-se de
ter obrigado seus homens a enfrentarem a situação sem preparo nem equipamentos.
Segundo ele, todos foram reformados por problemas de saúde. Ele próprio foi contaminado,
aposentado e sofre de leucopenia aguda (redução de leucócitos no sangue). A reação da
corporação parece ter tardado a aparecer por ameaças do Comando da PM e do governador
Íris Resende, que, em 1994, mandou prender por indisciplina o coronel Vasco Martins
Cardoso, médico da PM, que em depoimento a um juiz, rompeu o silêncio do governo e
afirmou que as autoridades sabiam que a bomba de césio-137 estava abandonada no prédio
abandonado da rua Paranaíba, antes do acidente. O coronel Vasco foi quem contestou o
laudo de Devair feito por Badan Palhares, um ano depois desse incidente220.

O lixo radioativo depositado em Abadia, 2.600 habitantes, a 22 km do centro de


Goiânia, espera até esta data que sejam efetivadas todas as obras de construção do
depósito definitivo, adiadas por sucessivos cortes no orçamento. Enquanto as obras não se

219
ISTOÉ. 01/06/88. Seqüelas do acidente. Casos de impotência de bombeiros de Goiânia são atribuídos à contaminação
por césio-137.
220
ATENÇÃO!. idem.
128

realizavam, as cercas de arame em volta do depósito caíram, vigilantes nas guaritas foram
rareando, e crianças utilizavam o depósito como atalho, caminhando entre tambores e
contêineires enferrujando a céu aberto. As diversas administrações do lixo radioativo da
221
CNEN atribuíam a demora a interesses políticos . A construção do depósito definitivo
custou cerca de R$ 8 milhões, e a sua manutenção custará, segundo estimativa, R$ 1 milhão
por ano.

Quem vive em Goiânia sabe que seus filhos, netos, bisnetos e seus descendentes
continuarão a conviver com o problema do césio-137 - ainda que a solução funcione, os
rejeitos estarão ali, a 20 quilômetros da cidade; exigirão cuidados permanentes e terão
sobrevida de mais de três séculos. Sabe o que é viver numa cidade estigmatizada na época
do acidente, com seus moradores até apedrejados em outras partes do País nos primeiros
dias?222

Em 1989, a CNEN realizou uma operação de fiscalização que cobriu todo o território
nacional, e na qual recolheu nada menos que 14 mil fontes radioativas em situação de risco
ou irregulares, em hospitais, clínicas e indústrias. Apesar disso, fontes e cápsulas de material
radioativo ainda são perdidas, roubadas, e/ou abandonadas em beiras de estrada, ferros-
velhos e depósitos de lixo. A CNEN não foi dividida entre uma agência de desenvolvimento e
outro de fiscalização das atividades nucleares, como parecia ser consenso no sistema perito
não-estatal à época do acidente. Lembre-se que, em 1987, o país sequer havia conseguido
ter eleições diretas para presidente, o que só veio acontecer em 1989, e que nem a
Constituinte que foi simultânea ao acidente, conseguiu democratizar a questão nuclear além
da necessidade de aprovação pelo Congresso de iniciativas do Executivo, e da necessidade
de lei federal para instalação de novas usinas nucleares223. A redemocratização e a crise
econômica, entretanto, coincidiram com a interrupção dos investimentos energéticos,
incluindo a construção das plantas nucleares planejadas, como o complexo Angra, que
chegou a ter oito usinas previstas. A lei federal que regulamentaria a questão dos depósitos
definitivos de rejeitos nucleares ainda está tramitando no Congresso.

Ninguém tem certeza quanto aos danos ao meio ambiente e à saúde dos habitantes
de Goiânia. Até porque a abordagem científica dos efeitos é controversa, não só em Goiânia,
e nem mesmo indicadores de que doenças como o câncer aumentam na população da
cidade são conclusivos em indicar que a causa tenha sido o césio-137 ou devido a outros
fatores. Também não se sabe quais serão os efeitos através das sucessivas gerações, já

221
Idem, ibidem.
222
GAZETA MERCANTIL. 10/12/96. Notícias de um velho pesadelo. Artigo de Washington Novaes.
223
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Art. 21, XXIII; art.22, XXVI; art. 49, XIV; art.
225, § 6.
129

que é teoricamente possível a transmissão de defeitos genéticos que podem se manifestar


em descendentes longínquos. Os efeitos do acidente de Goiânia ou o de Tchernobyl não
acabaram - e nem acabarão durante as próximas gerações. Em Tchernobyl, talvez jamais
seja possível contar as vítimas, não porque possam chegar a milhões, mas porque há tantos
efeitos maléficos e tantos critérios e probabilidades a considerar, e portanto interesses a
contemplar ou a ferir, que nenhum número pode ser considerado o ‘exato’ ou a estimativa
mais confiável. Pelo menos é o que se constata, à luz do conhecimento atual. Ninguém
descarta para o futuro que os médicos possam consertar gene por gene defeituoso, que se
cure o câncer como resfriado, e que nossos temores sejam lembrados com a mesma
condescendência com que olhamos nossos avós apavorados pela varíola.

Os principais acusados pelo acidente, os médicos radioterapeutas donos do Instituto


Goiano de Radioterapia, enfrentaram um demorado processo na Justiça.

Acidente com césio condena quatro médicos. Pena por homicídio culposo será
cumprida em regime aberto. GOIÂNIA. Quatro pessoas envolvidas no desastre do césio
137, ocorrido em Goiânia há nove anos, foram condenadas por homicídio culposo das
quatro vítimas da radiação. Após uma demorada batalha judicial, a sentença se tornou
definitiva anteontem, porque os cinco acusados não recorreram da decisão do Tribunal
Regional Federal do Distrito Federal, que reformou as penas impostas pela Justiça de
Goiânia. Os médicos Carlos Bezerril, Criseide Castro Dourado e Orlando Alves Teixeira e
o físico hospitalar Flamarion Barbosa Goulart cumprirão em regime aberto a sentença de
três anos e dois meses de prisão.
Em 1992, todos os envolvidos tinham recebido penas mais brandas, mas um recurso
impetrado junto ao TRF alterou toda a situação. A condenação não vai impedir, porém,
que eles mantenham suas atividades profissionais. Eles poderão exercer a medicina
durante o dia, devendo, à noite, se recolher à Casa do Albergado, onde também ficarão nos
fins de semana e feriados224.

A condenação definitiva dos donos do IGR mereceu poucas linhas na imprensa, com
alguns jornais dando apenas pequenas notas em páginas internas. O pouco destaque dado a
um dos mais aguardados desfechos do Acidente, quase dez anos atrás, entre várias
interpretações possíveis, talvez esteja demonstrando não que o acidente tenha sido
esquecido, mas que a imprensa, à sua maneira, desaprovou a demora e a aparente brandura
da punição que receberam os médicos. A maneira da imprensa fazer isso, de manifestar seu
desacordo, é negando espaço e destaque, e portanto, atribuindo uma certa desimportância
ao desfecho. Um gesto que significa algo como um certo desprezo, um silêncio mais eficaz
que manchetes e editoriais.

Durante o acidente, como se procurou demonstrar, a participação dos órgãos do


Estado, principalmente a CNEN, mas também o próprio governo, o Conselho de Segurança

224
O GLOBO. 28/01/1996.
130

Nacional (agora extinto), ministérios, governo, justiça e secretarias estaduais de Goiás, o


IPASGO , todos foram lembrados como tendo responsabilidades a serem cobradas na
Justiça, mas nenhum chegou a ser denunciado como réu na ação criminal, que terminou
quase em silêncio, como se pode ver. A ação cível acusa a União, a CNEN, o Estado de
Goiás, o IPASGO , os médicos, e até esta data ainda está tramitando. O promotor que
presidiu o inquérito, Sullivan Silvestre Oliveira, foi exonerado225.

Talvez qualquer brasileiro medianamente informado não se surpreenda com os


desfechos parciais, aqui apenas resumidos. São bastante semelhantes a diversos outros
episódios trágicos, não só acidentes tecnológicos, onde as vítimas foram esquecidas,
culpados não foram punidos, e medidas preventivas aparentemente não foram tomadas ou o
foram apenas formalmente. São tantos exemplos que citá-los é até desnecessário, embora
seja óbvia e urgente a necessidade de pesquisá-los, de maneira crítica e minuciosa, bem
como de elaboração de políticas e práticas públicas voltadas não somente à segurança, mas
também a uma sociedade menos injusta do ponto de vista da distribuição de riquezas e de
riscos. Esta última proposição, aparentemente seria consensual, isto é, não haveria quem se
opusesse. No entanto, como entender a continuidade de desastres que poderiam ser
evitados com cuidados básicos, banais e até mesmo baratos, sem a hipótese de que
mecanismos sociais poderosos atuam ativamente contra esse objetivo? - e sem colocar a
discussão ainda em termos de sociedade industrial e/ou risk society, onde a
prevenção/segurança é quase um ramo da produção. Alguns desses mecanismos foram
nomeados no Acidente de Goiânia e em vários outros: a pobreza, a ignorância, a
irresponsabilidade, e dizer que são mecanismos significa que se considera que sejam
socialmente constituídos, não são ‘naturais’ nem ‘heranças culturais’. No mesmo movimento,
preconizam-se as soluções: redistribuição de renda, educação, responsabilização, aplicação
das leis. Equivale a dizer que um país mais seguro será um país transformado, mudado ou
reformado, mas também adverte que devemos esperar esse país mais seguro apenas no
futuro. Do mesmo modo, a não-implantação aparente dessas mudanças também é
socialmente construída, de maneira ativa, como conseqüência.

A repetição de desastres, a continuidade da pobreza, da ignorância, da


irresponsabilidade, do ‘atraso’, é evidentemente articulada com vários outros aspectos, como
a teimosa permanência, no cenário, de figuras como o político José Sarney, não por ele
pessoalmente, mas porque é representativo de continuidades tão lamentáveis quanto as
primeiras. As diferentes fases da modernização econômica, como a que atualmente
sofremos, pautada nas palavras de ordem de competitividade e globalização, através das

225
ATENÇÃO! Idem.
131

quais finalmente estaríamos entrando no rol dos países industrializados, tampouco parecem
garantir que estejamos construindo mecanismos eficazes e democráticos de segurança
social ligados a um modelo de welfare state. Antes o contrário, como representam por
exemplo os projetos de desregulamentação do mercado de trabalho e privatização da
previdência social226. Acidentes, tecnológicos ou não, irão continuar ocorrendo, mas em que
medida isso será devido a contingências ou, como se pode interpretá-los, continuarão sendo
socialmente produzidos?

Aqui, no Brasil, no caso do Acidente de Goiânia, como se procurou demonstrar, várias


das causas apontadas para o acidente se deveram a que atividades sofisticadas, como a
energia nuclear, conviviam com práticas atrasadas e com a miséria, que existiria uma certa
incompatibilidade de artefatos, instituições e práticas modernas, no Brasil de compromissos
com o passado autoritário, de desinformação e de irresponsabilidades. Essa idéia é bastante
razoável. Veja-se essa definição de Alain Touraine (1994): “A idéia de modernidade substitui
Deus no centro da sociedade pela ciência, deixando as crenças religiosas para a vida
privada. Não basta que estejam presentes as aplicações tecnológicas da ciência para que se
fale em sociedade moderna. É preciso, além disso, que a atividade intelectual seja protegida
das propagandas políticas ou das crenças religiosas, que a impersonalidade das leis proteja
contra o nepotismo, o clientelismo e a corrupção, que as administrações públicas e privadas
não sejam os instrumentos de um poder pessoal, que vida pública e vida privada sejam
separadas, assim como devem ser as fortunas privadas do orçamento do Estado ou das
empresas.” (: 18) Portanto, por definição, não éramos e não somos uma sociedade moderna
- pelo menos, não inteiramente. Além do mais, Touraine conhece bem o Brasil. Como os
comentadores do Acidente deixaram claro, a idéia que o Brasil não seja auto-reconhecido,
não possua a auto-imagem de um país moderno, é quase consensual. O fato de o Acidente
ter ocorrido quando se faziam esforços de reformas, justamente na direção da modernidade
(e nas maneiras para tal não há muito consenso), marcou esses comentários. Isto é, de
alguma maneira, o que o acidente tecnológico de Goiânia colocou como problema foi
justamente o fato de que as aplicações tecnológicas da ciência e seus perigos estão
presentes, mas não os demais fatores: a centralidade da ciência na sociedade, a sua
‘despolitização’, a impessoalidade das leis e das administrações do Estado. A idéia levantada
foi a de que o acidente de Goiânia não teria acontecido se estivéssemos numa sociedade
moderna, e nem a forma com que foi mostrado e as reações que provocou seriam as
mesmas. Simultaneamente, durante o acidente, também se formulou, às vezes como projeto,

226
Apenas um comentário é necessário para dar uma idéia de como os termos dessa discussão parecem estar todos invertidos.
Na forma como se organiza, a desregulamentação do mercado de trabalho leva logicamente ao enfraquecimento da
previdência pública, embora o contrário é que é veiculado como ‘verdade’, isto é, a falência da previdência é que tornaria
necessária a desregulamentação do trabalho. O capital, libertado, agradece.
132

às vezes como desejo (mas sempre politicamente), o Brasil como sociedade moderna,
porque a idéia de ‘segurança’ aqui adere à idéia de modernidade (como de fato está na idéia
da modernidade clássica). O problema foi colocado, em termos teóricos mais abrangentes (e
um tema sociológico), como o descompasso aparente entre o desenvolvimento das técnicas
e do atraso dos homens, das relações e práticas sociais (Mannheim, 1962. ): essa
formulação implicitamente traz a idéia de que os homens são dominados pelas suas
criações, que elas seriam mais evoluídas que eles próprios, e demonstrativos de uma
separação entre os mundos da ciência e do social (Arendt, 1991; e Habermas, 1970.). A idéia
de mudança social e de modernização passaria pela adaptação do social às imposições da
modernização tecnológica, e conforme a normatividade imposta pelo ambiente produzido em
decorrência da centralidade da ciência; ou, na formulação de Habermas, pelo contato com as
aplicações práticas derivadas da ciência; ou ainda, na de Arendt, pelo fato de os cientistas
serem os únicos ainda capazes de agir politicamente e de criar mudanças.

Também se procurou desenvolver aqui a idéia de que a modernidade não significa


apenas segurança, mas, como querem Giddens e Beck, uma modernidade reflexiva que
ultrapassa e dissolve a si mesma (e essa idéia de segurança) nos países industrializados,
não apenas a modernidade ‘simples’ ou ‘clássica’, que se sentiu, através de eventos como o
Acidente de Goiânia, que não estaríamos conseguindo atingir. Nesse contexto é que foi
colocada a hipótese central desta dissertação: que o que ‘provocou’ o Acidente de Goiânia
como acontecimento não foi o atraso, mas pelo contrário, foi o desenvolvimento moderno, o
que há de especificamente moderno no contexto brasileiro, ao contrário do que se poderia
pensar. No Brasil, a modernização reflexiva poderia estar dissolvendo a base da
modernização clássica ao mesmo tempo em que esta ainda se implanta: a modernização
pode não estar paralisada, mas ao contrário, acelerada pela excessiva voracidade
modernizadora. Poder-se-ia considerar essa hipótese em condições de ser comprovada ou
verificada, nos limites desta dissertação?

Deve-se pensar em como os acidentes tecnológicos ‘terminam’ para tentar lançar


alguma luz sobre esta pergunta (sem esquecer que a interpretação aqui proposta não
pretende ser completa nem única, e, nem ao menos, se pode assegurar seja correta). Em
certo sentido, acidentes tecnológicos e outros perigos da modernização são ‘resolvidos’
dentro do princípio de aprender com os erros, que parece ter passado do método científico
para a tecnologia e para os negócios. Acidentes aceleram processos internos à tecnologia de
vigilância e prevenção, talvez com ganhos de segurança ou pretensa redução da incerteza,
pelo menos até o próximo imprevisto/acidente. Pode-se detectar toda uma fração dos
sistemas peritos dedicados ao estudo de acidentes, ligados a ramos industriais, como a
aviação, onde cada acidente real serve como revelação de algum ponto falho imprevisto, ou
133

nas indústrias de automóveis, onde acidentes são simulados com riqueza de detalhes.
Acidentes são pedagógicos, devem ser sempre lembrados por esse aspecto, pois quando se
tem em vista tanto a necessidade de renovação de confiança quanto exigências do mercado,
cada vez mais atento a aspectos de segurança, repetir o erro é indesculpável. Lembrar de
acidentes, estudá-los cientificamente, prever suas variáveis, dentro desse mecanismo é,
portanto, uma atividade racionalizada, profissional, voltada ao conhecimento, mas também
intrínseca e funcional à produção - é um investimento, não um custo. Levantar o passado em
termos de variáveis falhas, de construir uma história técnica dos acidentes e de utilizá-la em
cada novo artefato produzido constitui não apenas uma genealogia ou uma cadeia evolutiva
da técnica, mas também um sentido suposto e impositivo dessa história (do menos para o
mais seguro), tanto quanto se tornou uma ideologia, da necessidade imanente de
aperfeiçoamento constante, de evolução, de ultrapassagem de limites, de expansão de
controle para manter ou atingir tal segurança.

Isto é, a expansão da racionalidade e do conhecimento para todas as esferas, como


uma lei natural da sociedade, implicou também a expansão dos controles, uma expansão
que também ocorreu a partir dos erros e acidentes. Entretanto, o objetivo de maior
segurança não foi atingido, pelo menos não na medida esperada - a certeza, a
previsibilidade, a infalibilidade. Na formulação de Giddens: “... Mesmos os mais pessimistas
observadores conectaram conhecimento e controle. A ‘rígida gaiola de aço’ de Max Weber -
na qual ele pensava que a humanidade estava condenada a viver no futuro previsível - é a
casa-prisão do conhecimento técnico; todos somos, para mudar a metáfora, pequenos
dentes nas engrenagens da gigantesca máquina da razão técnica e burocrática. Agora
nenhuma imagem chega perto de capturar o mundo da alta modernidade, que é muito mais
aberto e contingente do que qualquer imagem sugere - e é precisamente por causa do
conhecimento que acumulamos sobre nós mesmos e sobre o meio ambiente material, e não
a despeito dele. É um mundo onde oportunidade e perigo estão balanceados em igual
medida”227 (Giddens, em Beck et alii. : 58. Grifo no original). Esta última idéia, que Beck
chama de reconhecimento da ambivalência da modernidade, noção emprestada de Zygmunt
Bauman, já possui internamente, entretanto, a possibilidade de crítica: “Sociedade industrial,
a ordem social civil e, particularmente, o welfare state e o Estado de segurança [insurance
state: apud F. Ewald] são sujeitos à demanda de tornar as situações da vida humana

227
“...Even more pessimistic observers connected knowledge and control. Max Weber’s ‘steel-hard cage’ - in which he
thought humanity was condemned to live for the foreseeable future - is a prison-house of technical knowledge; we are all,
to alter the metaphor, tove small cogs in the gigantic machine of technical and bureaucratic reason. Yet neither image
comes close to capturing the world of high modernity, which is much more open and contingent than any such image
suggests - and is so precisely because of, not in spite of, the knowledge that we have accumulated about ourselves and
about the material environment. It is a world where opportunity and danger are balanced in equal measure.” (Grifo no
original)
134

controláveis pela racionalidade instrumental, manufaturáveis, utilizáveis e (individual e


legalmente) contabilizáveis [accountable]. Por outro lado, na sociedade de risco (risk society)
o lado imprevisível e os efeitos secundários dessa demanda por controle, conduzem em
troca, ao que havia sido considerado ultrapassado, o reino da incerteza, da ambivalência, em
resumo, da alienação. Agora, entretanto, isso é também a base de uma autocrítica
expressiva da sociedade”228 (Beck, em Beck et alii. :10). Beck observa que os efeitos
colaterais que vem sendo reconhecidos como inaceitáveis impõem novas condições ao
desenvolvimento técnico-científico, que deve garantir a habilidade de aprender, de por em
prova os caminhos de seu avanço. Quando as opções tomadas levam a situações
irreversíveis, como a energia nuclear, onde não há espaço para erros (e acidentes), a ciência
deve perceber que “... pensamento e ação humanas induzem, atraem enganos e erros. Onde
o desenvolvimento tecnológico começa a contradizer essa única certeza (...) sobrecarrega a
humanidade com o insuportável fardo da infalibilidade. Como os riscos se multiplicam,
cresce a pressão para fazer passar a si mesmo como infalível, e, de tal modo, priva-se da
229
habilidade de aprender ” (Beck. 1992. : 177). Beck, eloqüentemente, nota que exigir a
infalibilidade é roubar das pessoas sua humanidade, e condená-las à perfeição por toda a
eternidade. É, portanto, torná-las coisas.

A demanda por segurança e controle leva a paroxismos, através dos quais pode-se
vislumbrar o desenvolvimento suposto pelo movimento da técnica em direção à segurança a
qualquer preço. Pegue-se um exemplo, também retirado da imprensa:

Alemães vendem cadáver de filho para teste de segurança em carros. Das agências
internacionais - cerca de 900 cadáveres de crianças são vendidos por ano a laboratórios de
pesquisa na Alemanha, revelou ontem o jornal ‘Bild’ - o mesmo que levantou o caso do
uso de corpos em lugar de bonecos por uma universidade alemã para testar sistemas de
segurança em automóveis.
De acordo com o jornal, os pais vendem os cadáveres de seus filhos por valores entre US$
130 e US$ 900 aos laboratórios que fazem testes de segurança.
Provas semelhantes foram realizadas nos últimos 50 anos pelos laboratórios das maiores
universidades dos EUA, financiados pelo governo e pelas três grandes indústrias
automobilísticas do país - Chrysler, Ford e GM.
‘Você não pode usar um manequim de loja em testes como esses”, disse Albert King,
bioengenheiro da Universidade Estadual Wayne, de Detroit (Michigan, centro-norte
oriental).

228
“Industrial society, the civil social order and, particularly, the welfare state and the insurance state are subject to the
demand to make human living situations controllable by instrumental rationality, manufacturable, available and
(individually and legally) accountable. On the other hand, in risk society the unforeseeable side and after-effects of this
demand for control, in turn, lead to what had been considered overcome, the realm of the uncertain, of ambivalence, in
short, of alienation. Now, however, this is also the basis of a multiple-voiced self-criticism of society.”
229
“... the entrapment of human thought and action in mistakes and errors. Where technological developments begin to
contradict this one certainty (...) they encumber humanity with the unbearable burden of infallibility. As risks multiply, the
pressure grows to pass oneself off as infallible and thereby deprive oneself of the ability to learn”.
135

King argumentou que os testes com cadáveres não só são mais eficientes que os feitos com
bonecos, por mostrarem os efeitos dos choques no corpo humano, mas também ajudam a
aperfeiçoar os próprios bonecos - para que as provas com cadáveres possam ser
abandonadas.
‘Tenho a consciência tranquila’, afirmou Dimitrios Kallieris, 55, o responsável pelos
testes feitos com cadáveres na Universidade de Heidelberg (sul da Alemanha) por
encomenda de indústrias automobilísticas.
A Universidade de Heidelberg fez testes entre 1972 e 1989 com 200 cadáveres, entre os
quais os de 8 crianças, disse o diretor do Instituto Médico Legal da universidade, Rainer
Mattern.230

Cerca de um ano depois, se a primeira notícia já parecia ser horrível o suficiente,


mesmo colocando à parte o aspecto sensacionalista, temos a seguinte conclusão:

Alemanha aprova experiências com cadáveres humanos em acidentes. Das agências


internacionais. - Cientistas da Alemanha vão usar cadáveres humanos em testes sobre
segurança de carros.
De acordo com autoridades alemãs, o Instituto de Medicina Legal da Universidade de
Heidelberg recebeu autorização hoje para prosseguir com experiências que utilizam
cadáveres em choques frontais de automóveis.
(...) A condição, disseram autoridades do governo regional de Baden Wurttemberg
(sudoeste da Alemanha), é que o Instituto respeite os princípios da comissão de ética da
universidade.
As experiências já vinham sendo realizadas pela universidade, mas foram interrompidas
ao serem divulgadas pela imprensa local, há cerca de um ano.
Após a divulgação dos testes, a procuradoria geral de Heidelberg iniciou uma investigação
sobre o assunto (...)
Klaus von Trotha, ministro regional da Ciência do governo de Baden-Wurttemberg, disse
que os testes com cadáveres são éticos.
Segundo ele, os testes fornecem conhecimentos que salvam a vida de motoristas em
acidentes de automóveis.231

Quanto a esse exemplo, poder-se-ia perguntar se os milhares de acidentes reais que


podem ser, infelizmente, encontrados só na cidade de São Paulo, já não seriam casos de
estudo suficientes para toda a indústria mundial de automóveis conseguir construí-los à
prova de acidentes. A resposta seria não. ‘Acidentes’ simulados são necessários à ciência
porque todas as variáveis têm de estar sob controle para que possam ser estudadas,
inclusive o ‘fator humano’ do motorista morto (portanto obediente), o que nunca acontece
num acidente real. Um automóvel à prova de acidentes seria aquele que não saísse do lugar,
ou outro que estivesse sob um controle tão completo e perfeito que exigiria homens e
sociedade ‘perfeitos’ e infalíveis para existir. Para a técnica, acidentes reais estão passando
a ser insuficientes, porque se ater ao real é não dominar nem antecipar ou controlar sua
própria história técnica, nem que para tanto seja necessário que se mate duas vezes uma

230
FOLHA DE S. PAULO, 26/11/93.
136

pessoa, na segunda, de forma racional, em nome da ciência e da segurança. Acrescente-se


que tais testes devem ser tidos como éticos. Cientificamente éticos, legalmente éticos,
reconhecidos pelas autoridades como tais, fundamentais à indústria de trilhões de dólares e
milhões de motores poluentes. Aqui temos a ciência no centro da sociedade. Note-se que,
por ironia, a Universidade de Heidelberg, citada nas notícias como sendo um dos locais de
teste, era a universidade de Max Weber, a quem devemos, no mínimo, uma intuição sobre o
mundo dessa racionalidade total.

A ‘consciência tranqüila’ de cientistas, como o exemplo aponta, é um pequeno mas


importante detalhe, porque são consciências que se visam sobretudo. A consciência a
tranqüilizar é a dos leigos, pelos mecanismos de confiança nos sistemas abstratos que
realizam o desencaixe das relações sociais, leigos que devem continuar a consumir e usar
carros, aviões ou energia nuclear pela fé na ciência, mesmo que exemplos incômodos e
‘acidentais’ os advirtam sobre o contrário, e que esse processo torne os leigos cada vez
menos leigos. Foi essa a advertência que soou em Goiânia, e que talvez quase ninguém
tenha visto claramente. Os atores entenderam que se a modernização estivesse vigente no
Brasil, isso evitaria o acidente, ou possibilitaria compreendê-lo, contorná-lo, antecipá-lo,
preveni-lo, podendo-se, dessa forma, dominar o acontecimento. Possibilitaria conhecê-lo de
frente e não ter medo, e lidar com ele de maneira aparentemente mais civilizada, menos
emocional, mais racional. Poder-se-ia confiar nos técnicos nucleares, nos governantes, na
imprensa. Entretanto, não foi essa a maneira com que se lidou com o Acidente de Goiânia.
Mas, aparentemente, essas características estão além de ser especificamente brasileiras.

Acidentes tecnológicos são problemáticos em qualquer lugar. O acidente de Three


Mile Island (março de 1979, Pennsylvania, EUA), causado por uma seqüência de falhas
mecânicas e de erros de operação na usina nuclear, que derreteu o seu núcleo, provocou
pânico e evacuação de cento e quarenta mil pessoas que viviam num raio de 8 quilômetros
ao seu redor, que ignoraram os pedidos de autoridades (as quais apenas no último momento
admitiram a gravidade do acidente, embora depois se tenha avaliado que ninguém sabia o
que estava realmente acontecendo e quais medidas deveriam ser tomadas) para que
permanecessem em calma, nas suas casas e não se expusessem ao ar livre. Mesmo essas
orientações não foram passadas de maneira clara. Um observador notou que vários, entre os
primeiros a fugir, eram médicos. O descaso da fiscalização do governo norte-americano foi
lembrado, pois a usina era de propriedade privada e a política norte-americana para o setor
era a da auto-regulamentação. Apenas em 1982, através de câmeras robôs que entraram no
edifício selado, é que se pôde ter idéia da extensão dos danos e do perigo enfrentado. A

231
FOLHA DE S. PAULO, 18/04/94.
137

coincidência do acidente de TMI com um filme de ficção chamado The China Sindrome
(Síndrome da China) que dramatizava um acidente nuclear semelhante, e a cobertura da
imprensa, que passou a um tom crítico, diante dos desencontros de autoridades e técnicos,
levou a um expressivo impulso os movimentos antinucleares americanos, agrupados pelo
slogan No Nukes (Clarfield & Wiecek : 383-9). No acidente de Tchernobyl, a cidade de
Pripyat, vizinha às usinas, sofreu contaminação por 48 horas antes de ser evacuada. Seus
habitantes só bem depois souberam o que havia acontecido. Raras imagens, feitas por uma
equipe que filmava os preparativos da comemoração do 1º de maio na cidade, são todas
marcadas por estranhos clarões, brilhos e riscos, tendo flagrado, involuntariamente, a
chegada de uma enorme fila de ônibus e tropas do exército que evacuariam a cidade. As
anomalias no filme já se deviam à enorme dose de radiação no ambiente. As autoridades da
então URSS só admitiram externamente o acontecimento do acidente quando uma nuvem
radioativa foi detectada nos países escandinavos. A URSS era um país autoritário, como se
sabe: houve censura à imprensa interna, e mesmo as inspeções internacionais foram
cuidadosamente guiadas. À época de Goiânia, falava-se do heroísmo dos bombeiros e
técnicos que combateram e controlaram o acidente e do sucesso relativo dessa empreitada
(existem na Ucrânia monumentos em sua homenagem e um museu do acidente). O
desmantelamento da URSS e a necessidade da recém independente Ucrânia de conseguir
cooperação internacional e dinheiro (24 bilhões de dólares) para reformar seu parque de
usinas, aparentemente mudou a versão: 600 mil homens teriam sido forçados pelo governo
soviético a trabalhar na descontaminação da usina, 800 deles protegidos por pedaços de
borracha e de chapas de metal amarrados ao corpo, equipados nos primeiros e decisivos
dias apenas com pás comuns para limpar o teto da usina, sendo que cada um cumpriu
turnos de trabalho de 90 segundos, onde e quando receberam doses de radiação que se
calculavam o máximo admissível a um ser humano por toda a vida. Desses homens, 350 já
teriam morrido, até 1994, em conseqüência.232

O que se quer dizer com esses exemplos é que apesar das impressões iniciais, que
julgavam o acidente tão representativamente brasileiro, em acidentes tecnológicos
assemelhados, mas em países diferentes, as reações de governantes, sistemas peritos e da
população foram mais semelhantes entre si do que poderia supor, e isso não é oculto, mas
somente possível, como produto das cores e condições locais, e há razões plausíveis para
que isso se dê. Em primeiro lugar, as ciências, as técnicas, os sistemas peritos e,
principalmente, suas criações, seus artefatos e sistemas são globalizados, basicamente os
mesmos em qualquer lugar do mundo, não obstante suas sempre ressaltadas variações

232
Crianças de Tchernobyl. Documentário exibidio pela Rede Cultura de Televisão, em 4/8/95. O governo soviético admitiu
oficialmente, durante quase cinco anos, apenas 31 mortes, a maioria de bombeiros.
138

tecnológicas, assim como suas leis e sua linguagem. Assim sendo, se a radiação é invisível e
segue as mesmas leis naturais em qualquer país, também seus problemas técnicos não
serão diferentes, e mesmo suas respectivas propostas de solução e até mesmo a atitude dos
técnicos, que mistura otimismo, ceticismo, conflitos e desacordos e a característica
inabilidade política será semelhante. As diferenças advêm do fato que esses sistemas, como
quaisquer outros, não se distribuem de modo homogêneo entre os diferentes países,
gerando diferenças e/ou graduações de competência, de capacidade para a ação e de
influência nas decisões, de recursos materiais e humanos, de instituições, de diferentes
histórias parciais. O que aparece, então, é sempre a relação entre o global e o local, o ideal e
o real, o teórico e o prático, o estágio em que se está e o estágio que se deve atingir, entre
estrutura e conjuntura. Seja qual for o nome que se dê, o acidente tecnológico explicita, mas
não cria tal relação: ao contrário, o acidente tecnológico decorre dela, manifesta e realiza
essa relação.

Em segundo lugar, acidentes tecnológicos são problemas de Estado. Formalmente


voltado à manutenção da ordem e à garantia da integridade e segurança de seus cidadãos,
na verdade o aparelho estatal é palco de exigências contraditórias, e aqui faz diferença se há
ou não mecanismos democráticos de decisão e de questionamento de segredos, de
atualização e revisão de compromissos. Nas ações práticas da emergência (isolamento,
atendimento de feridos, logística, transportes), a autoridade distinguível é sempre dos
agentes do Estado. Numa outra etapa, passada a emergência, quando as tarefas estão já
mais divididas, o Estado deverá se gerenciar e aos interesses em conflito no acidente, além
das medidas práticas, como, no mais das vezes, arcar com os custos do acidente. As
investigações oficiais deverão decidir se houve crime ou negligência, se a regulação anterior
funcionou ou não, se seu corpo de leis e normas estava adequado, quem foi prejudicado e
merece reparação. No caso do sistema nuclear, a sua confusão com o aparelho de Estado,
interesses estratégicos, segredos técnicos e políticos, interesses econômicos representados
ou interesses pessoais dos governantes233, todos esses fatores, podem tornar as ações do
Estado mais ou menos legítimas, mais ou menos eficazes e em decorrência marcar o
entendimento que a sociedade possa ter a respeito dos governantes e do próprio acidente.
Mesmo o governo soviético teve que se justificar aos camaradas, definindo e punindo
culpados por Tchernobyl, louvando o heroísmo dos mártires, bombeiros que primeiro
combateram o acidente e morreram pela irradiação que sofreram, e mistificando as falhas
humanas para salvar a tecnologia nuclear soviética. Da mesma maneira, o Estado brasileiro
teve basicamente as mesmas tarefas e sofreu questionamentos sobre sua atuação e de seus
componentes, de ponta-a-ponta, desde os funcionários da saúde pública de Goiás que

233
Como cinco anos de mandato ou a ferrovia norte-sul para Sarney, à época do acidente.
139

demoraram a identificar o acidente, até os funcionários e dirigentes da CNEN, governantes


como Santillo e Sarney, a polícia, o aparelho judiciário, os interesses militares etc.. O Estado
exerce uma espécie de monopólio do acidente tecnológico, e, portanto, ele sempre será um
evento político, por mais que se confunda com uma atividade técnica, nas diferentes facetas
e maneiras com que o acidente é tido como provocado, resolvido e prevenido.

Em terceiro lugar, mesmo para as ditaduras, acidentes tecnológicos não podem mais
ser facilmente escondidos - pela ‘exportação’ de conseqüências e dos avanços nos meios de
detectá-los e de mostrá-los como notícia - e portanto, há uma globalização de perigos, de
riscos e do medo. A morte nuclear, atômica ou radioativa, é uma ameaça para todos,
trabalhada como ficção, como espetáculo, como política ou como conseqüência da ciência,
ameaça que é exemplar e tornou patente a transformação da relação com a natureza -
inclusive a íntima e individual - como fenômeno global. Como argumentam Giddens e Beck, a
interligação e interdependência no tempo e no espaço transformados das atividades
humanas tornou obsoleta a separação entre natureza e sociedade. A sociedade absorve
completamente o natural quando as decisões humanas implicam a continuidade ou não da
existência da natureza. Os perigos e o medo não advêm mais das forças naturais ‘puras’,
mas das realizações da sociedade industrial. Mesmo o entendimento popular acerca dos
acidentes tecnológicos não se detém em nacionalismos234, e acidentes nucleares são
entendidos como sendo de sistemas globalizados, da tecnologia em si, e não de países em
particular, pois o medo pode ser compartilhado sem (ou além das) fronteiras. Foram
mostrados goianos com medo de vítimas, brasileiros com medo de goianos, todos com medo
do lixo radioativo e do césio 137, perigo porém oficialmente circunscrito a partes de três
bairros na cidade. Poucos não teriam algum medo, não só brasileiros. A lamentável
discriminação que ocorreu aqui, entretanto, não só não é inédita (sobreviventes de Hiroshima
também o foram)235, como é uma espécie de reação recorrente (e complexa) na história
diante de situações desconhecidas, doenças (como a AIDS, mas antes a peste, o cólera, o
câncer), estrangeiros etc.. No Acidente de Goiânia, o medo foi entendido como fruto da
incapacidade das autoridades de tranqüilizarem a população, através de ações claras de
informação, tarefa para a qual foi apontado que não teriam a credibilidade necessária, e da
distorção dos fatos pela imprensa, o que parece até razoável, pois é possível imaginar os
modos de atuação que minimizassem as preocupações populares, embora seja difícil dizer
se tais ações seriam realmente possíveis, numa situação confusa e grave como o acidente

234
Como alegações de especialistas, ingleses e americanos, de que Tchernobyl aconteceu, por um lado, por falhas no projeto
soviético, e por outro, por características culturais que não valorizavam as condutas de segurança. Isso para defender seus
respectivos projetos e condutas de segurança em seus países. (Disaster, série de televisão inglesa sobre desastres, veiculada
pelo canal a cabo GNT-Globosat, em abril/97)
235
VEJA, 02/08/95. Hiroshima 50 anos. Memórias dos Filhos do Clarão
140

em Goiânia, e envolvendo os atores que envolveu. Entretanto, quando se trata de algo,


historicamente, tão perigoso e tão carregado de significados quanto a energia nuclear, o
efeito ‘racional’ é de que quanto mais se esclarece e se informa, mais preocupado se fica
236
com os aspectos pouco claros da sua segurança . Contudo, é a ciência, reflexivamente
voltada às conseqüências (materiais, sociais e políticas) da sociedade industrial que ela
própria constituiu, mais que nenhuma outra instituição ou esfera, quem deve criticamente
descrever, assumir e desmistificar sua própria face assustadora: os outros meios apontam
para a alienação, o recalque, o retorno periódico de um medo profundo que hoje é expresso
pela morte nuclear, mas ainda é o mesmo medo da natureza desconhecida, sentido pelos
homens ancestrais que criaram a sociedade.

Por fim, acidentes tecnológicos são modernos, no aspecto em que significam ao


mesmo tempo destruição do antigo e criação do novo, participam da dinâmica da incessante
renovação social e material, característica dessa fase histórica, mesmo sendo convidados
indesejados, como espetáculos por vezes dramatizados de forma a banalizá-los pela mídia,
como objeto visível por instantes para todos, foco de atenção angustiada em mecanismos,
sentidos e ações ocultas no cotidiano, transformados em acontecimento, e portanto, em
história. Estados, instituições e indivíduos são questionados, forçados a discursos, a
explicações sobre decisões tomadas e sobre alternativas e soluções, sobre erros, são
levados a ações, a transformar teorias em práticas, a propor interdições e normas e cobrar
responsabilidades. Tudo isso num espaço público, como política e como crítica do presente,
como salvação e garantia do futuro. O acidente tecnológico em Goiânia não nos afastou da
modernidade, nem nos tornou o primeiro país a entrar no ‘clube atômico’ pela porta dos
fundos, mas pelo contrário, e mesmo como espetáculo, nos colocou dessa vez no mesmo
mundo dos perigos tecnologicamente constituídos onde o pecado mortal não é o acidente,
mas a incapacidade de aprender, de apropriar-se da experiência, e mudar, transformar a
sociedade contra e apesar das forças contrárias237.

O desfecho em Goiânia, como apontado acima, apenas aparentemente parece


desmentir qualquer modernização, e mesmo se fosse assim, portanto, a tornaria mais
urgente. Mecanismos tradicionais (não no sentido de velho ou antigo, mas do
conservadorismo implícito), como a política clientelística ou a lentidão ineficaz do aparelho

236
Durante a Guerra Fria, um filme destinado a treinar as populações para o caso de um ataque nuclear, e que optou por uma
abordagem realista da situação, teve de ser censurado pelas autoridades britânicas, pois era tão apavorante que o seu efeito
nos espectadores era exatamente o contrário do pretendido. Nos EUA, optou-se por desenhos animados, jingles e outros
truques de propaganda para o mesmo treinamento. (The BBC People’s Century, série de televisão, exibido pelo canal a
cabo GNT- Globosat em abril/97).
237
Como as forças econômicas elas próprias, que aqui tiram vantagem da pobreza (pelo barateamento da força de trabalho), da
ignorância (que facilita a dominação política) e da irresponsabilidade (que na economia se confunde com a livre iniciativa).
141

judiciário, o esquecimento e abandono de vítimas, a cegueira científica de governantes, as


prioridades deslocadas e irracionais, passam por baixo e através das transformações formais
pelas quais o país atravessou e atravessa, e são a linha de frente daqueles mecanismos
sociais apontados como causa do Acidente de Goiânia, a pobreza, a ignorância, a
irresponsabilidade. Mas parece que, justamente, propor a modernização do país como
solução para esses e outros problemas, como modelo de ação e sociedade, transforma a
modernização em mero instrumento, e como tal, manipulável, mesmo com o objetivo de, na
prática, barrar as transformações. A modernização transformada em conceitos manipuláveis,
em objeto de escolha em relação a objetivos, em modernização dessacralizada e
instrumental, é, quase por definição, reflexiva.

Quando o Estado brasileiro optou pela modernização, por exemplo, através do


desenvolvimento da tecnologia nuclear em lugar de desenvolver a ciência e a educação em
massa, com os supostamente poucos recursos de um país pobre, ele fez uma opção em
relação a uma determinada visão de Estado, sociedade e de mundo. O mundo mudou, basta
lembrar a transformação dos países como a URSS, e o Brasil enfrenta as conseqüências
inesperadas e não previstas da sua escolha: o modelo de país auto-suficiente em áreas
estratégicas é apontado como tendo se esgotado. Dentre essas conseqüências imprevistas e
indesejáveis, ressalta a idéia dominante de que hoje o Brasil é um país inseguro, não
confiável, violento e injusto, pois lhe falta educação. Uma continuidade da pobreza,
ignorância e irresponsabilidade, já tão lamentadas há dez anos atrás.

A hipótese desta dissertação é a de que as bases da modernização clássica


dissolvem-se antes de se implantar, e isso está relacionado como ‘causa’ do Acidente de
Goiânia. As bases da modernização clássica, apontadas por Beck, são o modelo de
sociedade industrial e suas instituições: a divisão de classes, o welfare state, a divisão entre
público e privado, a família e os papéis sexuais, o trabalho, o ensino, a democracia
parlamentar, o papel da ciência na produção, a individualização etc.. Essas bases são agora
reflexivamente questionadas através da confrontação com seus efeitos, muitos deles não
previstos, e da sua politização e racionalização. Cada uma dessas bases tem sua história,
em cada país e também no Brasil; e aqui, para cada uma delas, se pode encontrar pelo
menos uma interpretação e evidências empíricas que neguem sua implantação (muito
embora todas essas bases venham sofrendo transformações históricas vertiginosas), tal
como se entende ter ocorrido nos países industrializados238 , isto é, que negue sua
modernidade. É o nosso atraso, e aqui está a causa mais alegada para o Acidente de

238
Mesmo nos países industrializados, quando deixam de ser pensados como modelos perfeitos e homogêneos, podem ser
encontradas áreas onde ‘atrasos’ são apontados como fatores de risco. Um exemplo são as piores condições de vida dos
negros americanos, na média mais insegura que a dos brancos.
142

Goiânia, do qual seria também uma demonstração. Nós somos atrasados, portanto, tivemos
um acidente como esse. Não foi azar nem obra dos deuses. Mas de certa maneira, o que
ocorreu foi que a consciência desse atraso não é tão anterior ao acidente, mas foi elaborada
por ele - e mesmo que já existisse, o acidente a atualizou e reelaborou em relação a um
outro objeto. O país confrontou-se com as conseqüências indesejadas de haver se
constituído da maneira que se constituiu, politizou e racionalizou suas causas, nomeou-as
como atraso - e, para tanto, foi postulado como projeto, desejo e necessidade o avanço, a
mudança, a transformação em direção à modernidade. Esse processo criou o acontecimento
“Acidente de Goiânia”.

Menos que verificar uma hipótese, para o que, no mínimo se precisaria uma base
empírica maior e mais consistente, a análise aqui proposta procurou dar conta de aspectos
que não só desafiam a sociedade como problema, mas também sobre os quais a sociologia
pouco contribuiu para uma visão menos convencional e crítica. Num mundo de atividades
interligadas, onde o íntimo se conecta ao global, e onde todas as atividades e atos começam
a ganhar a urgência e a radicalidade de colocar o destino do planeta como opção consciente
de um sujeito coletivo, que agora equivale a toda a humanidade, a sociologia está
obviamente colocada diante do desafio de não ser só uma ciência entre as outras, para ter
também um papel no planejamento da sobrevivência (Giddens, 1991: 151-72). O próximo
acidente tecnológico, como o de Goiânia, pode ser o último, para alguém sozinho ou para
todo um país. A sociologia, quem sabe, pode afinal salvar vidas se contribuir para evitá-lo
não procurando, como a técnica, eliminar o erro, controlar e prever o contingente, mas ao
contrário, mostrando que lidar com o contingente, o fortuito, é menos uma questão de
aperfeiçoamento técnico, que sempre pode ser desejável, e mais a necessidade de se
constituir uma sociedade em que um acidente possa ser prevenido porque essa própria
sociedade poderá decidir prescindir de produzir seus maiores perigos, auto-infringidos por
meio desse desenvolvimento técnico: “Talvez a verdadeira sociedade se farte do
desenvolvimento e deixe, por pura liberdade, possibilidades sem utilizar, ao invés de se
precipitar, com uma louca compulsão, rumo a estrelas distantes” (ADORNO, 1992: 138). Tal
proposta, é claro, é utópica, joga contra as probabilidades. Acidentes também, mas não é por
isso que deixam de acontecer. Por menor que seja, essa probabilidade existirá, enquanto for
possível, ao menos, imaginá-la.
143

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148

Notícias da imprensa (em ordem cronológica):

VEÍCULO Data Título


JORNAL DA TARDE 1/10/87 Goiânia: césio contamina 20 pessoas
JORNAL DO BRASIL 1/10/87 Césio em ferro-velho espalha radioatividade em Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 2/10/87 Cnen afirma que processo de radiação está sob controle
FOLHA DE S. PAULO 2/10/87 Internadas no Rio seis vítimas da contaminação radiativa em
Goiânia
JORNAL DA TARDE 2/10/87 O caso mais grave desde Chernobyl
O ESTADO DE S. PAULO 2/10/87 Radiação: só Chernobil supera Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Acidente é caso de cadeia, afirma físico da UNICAMP
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Ala de hospital é isolada devido a internamentos
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Cnen descarta chance de vida para três vítimas
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Deputado diz que uso nuclear deve ser fiscalizado
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Mais 4 pacientes serão internados no Rio
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Moradores deixam área atingida pela radiação
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Para coronel, situação dura ainda um mês
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Secretaria da saúde faz a fiscalização em SP
FOLHA DE S. PAULO 3/10/87 Três vítimas têm chances mínimas de sobrevivência
JORNAL DA TARDE 3/10/87 A CNEN assegura: não há perigo para a água de Goiânia
JORNAL DA TARDE 3/10/87 Goiânia: os técnicos trabalham na descontaminação
O ESTADO DE S. PAULO 3/10/87 Muitos contaminados fogem de Goiânia.
O ESTADO DE S. PAULO 3/10/87 Pouca chance para vítimas da radiação
FOLHA DE S. PAULO 4/10/87 Removidas ao Rio mais 4 vítimas da radiação
O ESTADO DE S. PAULO 4/10/87 A peça, de mão em mão
O ESTADO DE S. PAULO 4/10/87 Comissão quer punir responsáveis pelo acidente em Goiânia
O ESTADO DE S. PAULO 4/10/87 É um batismo de fogo
O ESTADO DE S. PAULO 4/10/87 Incidência de câncer deverá crescer muito
O ESTADO DE S. PAULO 4/10/87 Radiação: mais vítimas deixam Goiás
FOLHA DE S. PAULO 5/10/87 Encontrados mais dois focos radiativos em Goiânia
JORNAL DA TARDE 5/10/87 Goiânia: um novo foco de radiação
FOLHA DE S. PAULO 6/10/87 Acidente em GO foi o maior do mundo, diz Rex Nazareth
FOLHA DE S. PAULO 6/10/87 Divulgada a relação das 34 pessoas que se contaminaram
FOLHA DE S. PAULO 6/10/87 Divulgada a relação das 34 pessoas que se contaminaram
FOLHA DE S. PAULO 6/10/87 Lixo radiativo será depositado em local habitado
FOLHA DE S. PAULO 6/10/87 Negligência com equipamento causa acidente
FOLHA DE S. PAULO 6/10/87 Negligência com equipamento causa acidente
JORNAL DA TARDE 6/10/87 Pode haver mais gente contaminada;. uma das vítimas
transportou a peça radioativa pela cidade. Há evidências de
radioatividade em um ponto de ônibus.
O ESTADO DE S. PAULO 6/10/87 Brasil pede ajuda contra a radiação
O ESTADO DE S. PAULO 6/10/87 Comissão diz que Goiás não deve ter medo
O ESTADO DE S. PAULO 6/10/87 O lixo nuclear provoca protesto dos moradores
O ESTADO DE S. PAULO 6/10/87 Remoção vai demorar três dias
O ESTADO DE S. PAULO 6/10/87 Vítimas pioram
FOLHA DE S. PAULO 7/10/87 Em São Paulo há 2 equipamentos com potência semelhante ao
de GO
FOLHA DE S. PAULO 7/10/87 Estado de saúde dos contaminados ainda é indefinido
FOLHA DE S. PAULO 7/10/87 Governo volta atrás; lixo atômico será colocado em área
desabitada
FOLHA DE S. PAULO 7/10/87 Helicóptero vai rastrear novos focos radiativos
FOLHA DE S. PAULO 7/10/87 Instituto e União podem ser responsabilizados
FOLHA DE S. PAULO 7/10/87 Tuma anuncia hoje a abertura de inquérito para apurar
responsáveis
ISTOÉ 7/10/87 Trágica negligência st. falta de fiscalização causa acidente
O ESTADO DE S. PAULO 7/10/87 Apesar de calma, Goiânia tem medo
O ESTADO DE S. PAULO 7/10/87 Estrangeiros já estudam a radiação
O ESTADO DE S. PAULO 7/10/87 Médico não faz previsão
O ESTADO DE S. PAULO 7/10/87 População reage e vence
149

VEÍCULO Data Título


O ESTADO DE S. PAULO 7/10/87 Técnicos localizam novo foco
FOLHA DE S. PAULO 8/10/87 (dropes)
FOLHA DE S. PAULO 8/10/87 Cnen vai solicitar que lixo atômico seja depositado na serra do
Cachimbo
FOLHA DE S. PAULO 8/10/87 Mais dois técnicos estrangeiros chegam para dar assistência
FOLHA DE S. PAULO 8/10/87 Última vistoria na clínica ocorreu há 5 anos
FOLHA DE S. PAULO 8/10/87 Ventos e chuvas podem ter levado material radiativo a cursos
d'água
JORNAL DA TARDE 8/10/87 Prefeito acusa: autoridades sabiam de tudo há um mês
JORNAL DA TARDE 8/10/87 Tuma abre o inquérito
O ESTADO DE S. PAULO 8/10/87 Água pode ser contaminada
O ESTADO DE S. PAULO 8/10/87 Temporal piora situação em Goiânia
9/10/87 Acidente é "sério", afirma AIEA Folha de S. Paulo
FOLHA DE S. PAULO 9/10/87 Aeronáutica diz que serra do Cachimbo pode abrigar lixo
atômico de Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 9/10/87 Governador diz que focos estão controlados
FOLHA DE S. PAULO 9/10/87 Governo ocultou acidente, diz vereadora
FOLHA DE S. PAULO 9/10/87 Sobe para 24 o número de vítimas isoladas em unidades da
LBA
JORNAL DA TARDE 9/10/87 Ninguém aceita o lixo radioativo
O ESTADO DE S. PAULO 9/10/87 Cientistas garantem que houve erro da Comissão
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 Cnen diz ter controlado radiação em Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 Descontaminação dos internados pode durar 1 mês
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 Físico afirma que serra do Cachimbo é um requinte
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 Moreira Franco afirma que material radioativo "não vai ficar"
no Rio
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 No Rio, pacientes dão os primeiros depoimentos à
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 O governador do Pará não comenta a decisão
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 Passeata de protesto pelo centro de Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 Sarney autoriza o depósito do lixo atômico de GO na serra do
cachimbo
FOLHA DE S. PAULO 10/10/87 Só contato direto com pó e vítimas traz problemas
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 A radioatividade em Goiânia- mat. Pub. Gov. Goiano
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Acidente radioativo de Goiânia, o pior
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Estudantes paulistas deixam jogos e voltam
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Físicos franceses mostram os perigos
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Goiânia, "pior acidente do mundo"
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Lixo radioativo vai ficar em Cachimbo
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Medo afasta até doentes do hospital
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 População faz debate direto com técnicos
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Sérgio, 13 anos, com queimaduras nas mãos: mais um
contaminado
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Tecnologia sem segurança
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Uma ameaça para os índios
O ESTADO DE S. PAULO 10/10/87 Vítimas pioram no hospital
O GLOBO 10/10/87 Cnen anuncia que todos os focos de radiação de Goiânia estão
mapeados
O GLOBO 10/10/87 Contaminação de viralata preocupa especialistas
O GLOBO 10/10/87 Manifestantes mascarados protestam em Goiânia
O GLOBO 10/10/87 Moreira confirma que se Furnas não ajudar, pede o fechamento
de Angra I
O GLOBO 10/10/87 Presidente autoriza depósito do lixo radioativo em Cachimbo
O GLOBO 10/10/87 Proprietários de clínica em Goiânia estão proibidos de deixar o
Brasil
O GLOBO 10/10/87 Sarney manda Tuma fazer sindicância na Cnen
O GLOBO 10/10/87 Situação em Goiânia está totalmente sob controle - Rex
Nazareth fala em cadeia de rádio e televisão
FOLHA DE S. PAULO 11/10/87 Exército vai participar do recolhimento do material
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VEÍCULO Data Título


contaminado em Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 11/10/87 Gueiros apela a Sarney contra lixo
FOLHA DE S. PAULO 11/10/87 PF indicia proprietários da bomba de césio
O ESTADO DE S. PAULO 11/10/87 Medo, uma rotina agora na cidade
O ESTADO DE S. PAULO 11/10/87 Polícia Federal indicia os 3 donos do instituto
JORNAL DA TARDE 12/10/87 Os donos do césio, fichados e indiciados
JORNAL DA TARDE 13/10/87 Falam os médicos acusados
JORNAL DA TARDE 13/10/87 Goiânia: áreas liberadas a partir de amanhã
JORNAL DA TARDE 13/10/87 Novos acidentes poderão ocorrer
FOLHA DE S. PAULO 14/10/87 A responsabilidade pelo acidente de Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 14/10/87 Governador do Pará ameaça ir à justiça contra envio do lixo
FOLHA DE S. PAULO 14/10/87 Médico fala em caso mais grave do mundo
FOLHA DE S. PAULO 14/10/87 Para Nazareth, consultoria é legal
FOLHA DE S. PAULO 14/10/87 Santillo pede máquinas à Alemanha
FOLHA DE S. PAULO 14/10/87 Seis focos de radiatividade surgem em SP; Quércia diz que não
há perigo
FOLHA DE S. PAULO 14/10/87 Técnico nega na PF responsabilidade com bomba de césio
ISTOÉ 14/10/87 Diante da morte e perplexos
O ESTADO DE S. PAULO 14/10/87 Mais crianças atingidas
O ESTADO DE S. PAULO 14/10/87 Pedidos cancelados
O ESTADO DE S. PAULO 14/10/87 Polícia Federal indicia físico em Goiás
VEJA 14/10/87 Desolação radioativa
JORNAL DA TARDE 15/10/87 A polícia indicia um quinto responsável
JORNAL DA TARDE 15/10/87 Campanha em Araras. Para esclarecer.
JORNAL DA TARDE 15/10/87 O cerco às aparas contaminadas
JORNAL DA TARDE 15/10/87 Osasco: 25 toneladas. Mas com radiação baixa
JORNAL DA TARDE 15/10/87 São Carlos: isolamento. Depois incineração.
JORNAL DA TARDE 15/10/87 São Paulo recebeu sucata da área contaminada
JORNAL DO CAMPUS 15/10/87 Brasil entra mesmo na era nuclear
O ESTADO DE S. PAULO 15/10/87 Sarney anuncia lei para lixo atômico
O ESTADO DE S. PAULO 15/10/87 Situação sob controle
O ESTADO DE S. PAULO 15/10/87 Vítima perde o antebraço
JORNAL DA TARDE 16/10/87 A dor de Devair, ao lado da filha
JORNAL DA TARDE 16/10/87 E lá vão os técnicos, à procura de novos focos.
O ESTADO DE S. PAULO 16/10/87 Goiás pode ter novos focos de radiação
O ESTADO DE S. PAULO 16/10/87 Governador protesta contra lei para lixo
O ESTADO DE S. PAULO 16/10/87 Ipen faz exames no papel contaminado
O ESTADO DE S. PAULO 16/10/87 Polícia investiga a guarda do césio 137
O ESTADO DE S. PAULO 17/10/87 Goiás define área para guardar lixo radioativo
FOLHA DE S. PAULO 18/10/87 (sem título)
O ESTADO DE S. PAULO 18/10/87 Goiânia: 30 anos de atenção contra o câncer
O ESTADO DE S. PAULO 18/10/87 Laudo chega à polícia federal
O ESTADO DE S. PAULO 18/10/87 População fecha estrada para o depósito nuclear
JORNAL DA TARDE 19/10/87 Goiânia: a retirada do lixo já pode começar
FOLHA DE S. PAULO 20/10/87 Governador faz críticas à imprensa
FOLHA DE S. PAULO 20/10/87 Governo deposita lixo radiativo em Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 20/10/87 Mais 2 vítimas transferidas para o Rio
FOLHA DE S. PAULO 20/10/87 MEC inicia levantamento
FOLHA DE S. PAULO 20/10/87 Paulínia define hoje situação de empresa que utiliza irídio
FOLHA DE S. PAULO 20/10/87 Saúde quer equipar o HC
O ESTADO DE S. PAULO 20/10/87 Desembarque sem problemas
O ESTADO DE S. PAULO 20/10/87 Rio interna mais duas vítimas de Goiás
FOLHA DE S. PAULO 21/10/87 Cnen ainda precisa encontrar 40g de césio
FOLHA DE S. PAULO 21/10/87 Empresa que usava irídio é fechada
FOLHA DE S. PAULO 21/10/87 Excepcionais são vigiados na Febem
FOLHA DE S. PAULO 21/10/87 O povo que virou sucata
FOLHA DE S. PAULO 21/10/87 PF quer relatório da saúde
FOLHA DE S. PAULO 21/10/87 Técnico goiano pede orientação a professor e pesquisador
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VEÍCULO Data Título


japonês
O ESTADO DE S. PAULO 21/10/87 Mais um paciente chega ao Rio em estado grave
O ESTADO DE S. PAULO 21/10/87 Vítima da radiação conta o seu drama
FOLHA DE S. PAULO 22/10/87 Transporte do lixo pára por 7 dias
FOLHA DE S. PAULO 22/10/87 Vítima da radiação quer processar os responsáveis
JORNAL DO BRASIL 22/10/87 Com quanto césio se faz uma tragédia?
JORNAL DO BRASIL 22/10/87 Despreparo espalhou a radiação pelo Marcílio Dias
FOLHA DE S. PAULO 23/10/87 Governo de Goiás vai cobrar da União gastos com depósito
FOLHA DE S. PAULO 23/10/87 No Rio, quatro vítimas da radiação já começam a apresentar
infecções
FOLHA DE S. PAULO 24/10/87 Contaminação ocorreu há um mês
JORNAL DA TARDE 24/10/87 Césio 137: morrem duas vítimas
O ESTADO DE S. PAULO 24/10/87 Em Goiânia, a dor da família
O ESTADO DE S. PAULO 24/10/87 Morrem duas vítimas da radiação
FOLHA DE S. PAULO 25/10/87 Mãe da menina morta por radiação quer apuração da
responsabilidade
O ESTADO DE S. PAULO 25/10/87 O medo em Goiânia discrimina até pessoas não contaminadas
JORNAL DA TARDE 26/10/87 Descontaminação total? Quase impossível
JORNAL DA TARDE 26/10/87 Moradores contra o enterro das vítimas
FOLHA DE S. PAULO 27/10/87 Cnen diz que a cápsula tinha 19g de césio
FOLHA DE S. PAULO 27/10/87 No Rio, erro de trajeto atrasa embarque no aeroporto
FOLHA DE S. PAULO 27/10/87 Vítimas do césio são enterradas com tumulto
JORNAL DA TARDE 27/10/87 No Rio, mais um paciente entra em estado grave
JORNAL DA TARDE 27/10/87 Pedras contra os caixões
O ESTADO DE S. PAULO 27/10/87 Exames liberam família que estava no hospital
O ESTADO DE S. PAULO 27/10/87 Goiânia enterra as vítimas da radiação
O ESTADO DE S. PAULO 27/10/87 Perigo pode ficar para sempre
FOLHA DE S. PAULO 28/10/87 Cnen sacrifica animais contaminados
FOLHA DE S. PAULO 28/10/87 Entre Berlim e Goiânia - art. Werner Zulauf
FOLHA DE S. PAULO 28/10/87 Morre a terceira vítima da radiação de Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 28/10/87 PF ouve três fiscais da Saúde de Goiás
JORNAL DA TARDE 28/10/87 Morre a terceira vítima do césio
JORNAL DA TARDE 28/10/87 Parentes lamentam a morte "longe de casa"
JORNAL DA TARDE 28/10/87 Santillo: indenização é com governo federal
JORNAL DA TARDE 28/10/87 Técnicos sacrificam animais contaminados
O ESTADO DE S. PAULO 28/10/87 Goldemberg visita área e lamenta a omissão
O ESTADO DE S. PAULO 28/10/87 Governador cobra tudo da União
O ESTADO DE S. PAULO 28/10/87 Laboratório controlará água
O ESTADO DE S. PAULO 28/10/87 Morre mais uma vítima da radiação
O ESTADO DE S. PAULO 28/10/87 Parentes choram em Goiânia
O ESTADO DE S. PAULO 28/10/87 Técnicos decidem matar os animais contaminados
FOLHA DE S. PAULO 29/10/87 Físico critica a fiscalização
FOLHA DE S. PAULO 29/10/87 Nazareth depõe hoje na PF
FOLHA DE S. PAULO 29/10/87 Radiação de Goiânia mata quarta pessoa no Rio
O ESTADO DE S. PAULO 29/10/87 A quarta morte por radiação
O ESTADO DE S. PAULO 29/10/87 Acabam caixões especiais
O ESTADO DE S. PAULO 30/10/87 Acidente radioativo pode ficar impune
O ESTADO DE S. PAULO 30/10/87 Cnen decide examinar todos os ferros-velhos
O ESTADO DE S. PAULO 30/10/87 Doentes não deixam goiânia
FOLHA DE S. PAULO 31/10/87 Ipen atende empresas
FOLHA DE S. PAULO 31/10/87 Mais quatro internados devem deixar Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 31/10/87 Piora estado de vítima
FOLHA DE S. PAULO 31/10/87 Polícia garante enterro
FOLHA DE S. PAULO 31/10/87 São Paulo rejeita o lixo radiativo do Rio
O ESTADO DE S. PAULO 31/10/87 Polícia goiana garante enterro
REV. IMPRENSA 31/10/87 A síndrome da manchete radioativa
FOLHA DE S. PAULO 1/11/87 Credibilidade na transição - José Goldemberg
FOLHA DE S. PAULO 1/11/87 Mais 2 vítimas do césio são levadas para hospital no Rio
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VEÍCULO Data Título


FOLHA DE S. PAULO 1/11/87 Resíduo radiativo de Itu precisa de novos tanques
JORNAL DO BRASIL 1/11/87 Entre a pobreza e a ignorância, a tragédia nuclear
FOLHA DE S. PAULO 2/11/87 Medo da radiação já levou 75 mil aos postos da CNEN
FOLHA DE S. PAULO 2/11/87 Principais focos ainda não foram descontaminados
FOLHA DE S. PAULO 2/11/87 Um dos contaminados pelo césio pode deixar hospital
FOLHA DE S. PAULO 3/11/87 Césio permanecerá no organismo dos pacientes contaminados,
afirma química
FOLHA DE S. PAULO 3/11/87 Em Goiânia, centenas de moradores visitam os túmulos das
quatro vítimas
FOLHA DE S. PAULO 3/11/87 Lixo radiativo ficará no Rio, diz Goldemberg
FOLHA DE S. PAULO 4/11/87 Artista usa terra de Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 4/11/87 Dois pacientes que estão no Marcílio Dias devem retornar para
Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 4/11/87 Morador sem atestado não pode sair de GO
FOLHA DE S. PAULO 4/11/87 Para governador goiano, exigência do documento reforça a
discriminação
FOLHA DE S. PAULO 4/11/87 Parte do césio não será recuperada e poderá contaminar, diz
professor
FOLHA DE S. PAULO 4/11/87 Relatório aponta risco de contaminação em tanques de resíduos
FOLHA DE S. PAULO 4/11/87 Vereador quer proibir depósito dos rejeitos radiativos em São
Paulo
O ESTADO DE S. PAULO 4/11/87 Radiação pode repetir-se, diz SBPC
FOLHA DE S. PAULO 5/11/87 CNEN é responsável pelo acidente com césio, diz advogado
FOLHA DE S. PAULO 5/11/87 Expedição de atestados atrasa remoção do lixo
FOLHA DE S. PAULO 5/11/87 Goianos são impedidos de participar de feira beneficente
FOLHA DE S. PAULO 5/11/87 PF discute enquadramento
FOLHA DE S. PAULO 5/11/87 Três vítimas da radiação voltam a Goiânia
JORNAL DA TARDE 5/11/87 Governador pede providências urgentes a Sarney
O ESTADO DE S. PAULO 5/11/87 Goiânia começa a remover lixo
O ESTADO DE S. PAULO 5/11/87 Radiação ameaça técnicos da Cnen
FOLHA DE S. PAULO 6/11/87 Mais lixo é retirado do centro de Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 6/11/87 Material radiativo disperso dificulta a descontaminação
FOLHA DE S. PAULO 6/11/87 PF conclui que falta de fiscalização contribuiu para o acidente
com césio
O ESTADO DE S. PAULO 6/11/87 Polícia aponta culpados por radiação
O ESTADO DE S. PAULO 7/11/87 Goiânia, uma cidade dividida
FOLHA DE S. PAULO 8/11/87 Cnen permanece fiscalizando, diz Nazareth Alves
FOLHA DE S. PAULO 8/11/87 Continua lento o trabalho de remoção do lixo
FOLHA DE S. PAULO 8/11/87 Físico diz que não expedirá mais atestados
FOLHA DE S. PAULO 8/11/87 Governo afirma que radiação reduziu ICM em Goiás
FOLHA DE S. PAULO 8/11/87 Greve de técnicos nucleares vai atrasar remoção do lixo
FOLHA DE S. PAULO 8/11/87 Ignorância causou acidente em GO, diz soviético
FOLHA DE S. PAULO 8/11/87 Universidade vai rever trabalho da CNEN em Goiânia
O ESTADO DE S. PAULO 8/11/87 Acidente radioativo traz prejuízos para economia
O ESTADO DE S. PAULO 8/11/87 Vendas chegam a cair 42%
O ESTADO DE S. PAULO 10/11/87 Governo goiano critica desempenho da CNEN
O ESTADO DE S. PAULO 11/11/87 Técnicos lamentam as críticas à Cnen
O ESTADO DE S. PAULO 13/11/87 As dificuldades na remoção de árvores
O ESTADO DE S. PAULO 13/11/87 Mais quatro contaminados em Goiânia
O ESTADO DE S. PAULO 13/11/87 Operação de guerra para lixo de Goiás
O ESTADO DE S. PAULO 17/11/87 Alemão leva pânico a Goiânia
FOLHA DE S. PAULO 18/11/87 A crítica da crítica do acidente de Goiânia - art Luiz Pinguelli
Rosa
FOLHA DE S. PAULO 18/11/87 Angra-1 vai ficar mais onze meses parado
FOLHA DE S. PAULO 18/11/87 Telex comprovará formação de físico que apontou
contaminação em Goiânia
ISTOÉ 18/11/87 Estigma da radiação - combate aos problemas cíclicos do
acidente
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VEÍCULO Data Título


O ESTADO DE S. PAULO 19/11/87 Visita de Sarney leva mais ânimo a Goiânia
O ESTADO DE S. PAULO 25/11/87 Goiânia livre da radiação, diz Cnen
O ESTADO DE S. PAULO 26/11/87 Goiânia prepara-se para o Natal
O ESTADO DE S. PAULO 26/11/87 Senado instala CPI para apurar responsabilidade
O ESTADO DE S. PAULO 28/11/87 Radiação: parecer sai segunda
O ESTADO DE S. PAULO 1/12/87 Procurador culpa cinco pelo acidente radioativo
O ESTADO DE S. PAULO 3/12/87 Localizada a blindagem do césio
O ESTADO DE S. PAULO 13/12/87 Goiânia: última semana para a descontaminação
O ESTADO DE S. PAULO 20/01/88 Césio pode ter contaminado até mil pessoas em Goiânia
O GLOBO 21/01/88 Césio: as vítimas quase esquecidas
O ESTADO DE S. PAULO 24/02/88 Vítima do césio em São Paulo
O ESTADO DE S. PAULO 11/03/88 Cnen garante que Goiânia está livre da radioatividade
O ESTADO DE S. PAULO 30/3/88 Césio deforma moscas goianas
JORNAL DA TARDE 28/4/88 Goiânia: o césio se foi. O medo, não.
O ESTADO DE S. PAULO 29/4/88 No fim o inquérito de Goiânia
JORNAL DA TARDE 21/5/88 A volta de Fabiano, a última vítima do césio
O ESTADO DE S. PAULO 21/5/88 Vítima do césio tem alta e volta a Goiânia
JORNAL DO BRASIL 29/5/88 Acidente com césio 137 só mudou a vida das vítimas
JORNAL DO BRASIL 29/5/88 Deficiência da fiscalização continua
JORNAL DO BRASIL 29/5/88 Destino do lixo divide cientistas
JORNAL DA TARDE 30/5/88 Goiás: o césio-137 ainda assusta. Agora no depósito de Abadia
ISTOÉ 10/6/88 Seqüelas do acidente
JORNAL DA TARDE 13/7/88 O acidente de Goiânia. As lições aprendidas. Por quem esteve
lá.
O ESTADO DE S. PAULO 14/7/88 Goiânia ainda discrimina vítimas do césio
O ESTADO DE S. PAULO 14/7/88 O medo e a revolta continuam
O ESTADO DE S. PAULO 14/7/88 Vida é normal, mas com riscos
O ESTADO DE S. PAULO 17/7/88 Carro movido a gás já preocupa Goiânia
JORNAL DA TARDE 10/9/88 “O retorno foi maior que imaginávamos"
JORNAL DA TARDE 10/9/88 A Fundação Leide: um fracasso?
JORNAL DA TARDE 10/9/88 A tragédia faz Goiás crescer
JORNAL DA TARDE 10/9/88 Desolação, amargura. E revolta.
O ESTADO DE S. PAULO 10/9/88 Revolta e dor marcam as 110 vítimas do césio
FOLHA DE S. PAULO 13/9/88 A contaminação, passo a passo
O ESTADO DE S. PAULO 3/10/88 Pedra vira brinquedo mortal
JORNAL DA TARDE 3/12/88 Muita gente na fila do trem do césio em Goiânia
O ESTADO DE S. PAULO 28/12/88 Vítima do césio será tratada na Unicamp
O ESTADO DE S. PAULO 20/2/89 Na rua 57, exames são rotineiros
O ESTADO DE S. PAULO 1/7/89 Tragédia nuclear em La Plata
FOLHA DE S. PAULO 17/6/91 erupções e terremotos nas Filipinas
FOLHA DE S. PAULO 16/7/91 7 terremotos, 10 erupções e tufão provocam destruição no
Oriente
JORNAL DO BRASIL 30/9/91 Empresas criam técnicas próprias
JORNAL DO BRASIL 30/9/91 Lixo, rejeito, matéria prima
JORNAL DO BRASIL 30/9/91 País nunca contou seus equipamentos radioativos
O ESTADO DE S. PAULO 20/3/92 Promotor responsabiliza união por acidente com césio em
Goiânia
ECOLOGIA E 1/6/92 Césio 137
DESENVOLVIMENTO
ECOLOGIA E Junho Césio 137
DESENVOLVIMENTO 1992
JORNAL DO CFM 1/8/92 Cuba dá assistência a brasileiros contaminados pelo césio
GAZETA MERCANTIL 3/8/92 Vítimas do césio 137 serão tratadas em Cuba
FOLHA DE S. PAULO 6/8/92 Médicos são condenados no caso do acidente radiativo com
césio
O ESTADO DE S. PAULO 6/8/92 Falta de dinheiro poderá impedir vítimas de ir a Cuba
O ESTADO DE S. PAULO 6/8/92 Justiça condena 4 por acidente com césio 137
O ESTADO DE S. PAULO 6/8/92 População terá de conviver com lixo radioativo por 3 décadas
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VEÍCULO Data Título


FOLHA DE S. PAULO 9/8/92 Aquecimento causou dois vazamentos de radiação
FOLHA DE S. PAULO 9/8/92 Tchernobil inglesa vira Disneylândia atômica
FOLHA DE S. PAULO 4/10/92 Tchernobil flutuante pode passar pelo Brasil
FOLHA DE S. PAULO 10/10/92 Vítimas do césio 137 retornam de Cuba
FOLHA DE S. PAULO 22/10/92 Ionesco e a energia nuclear Rogério Cezar de Cerqueira Leite
NEWSWEEK 23/11/92 The science of doom
FOLHA DE S. PAULO 2/12/92 Cometas são o novo alvo militar dos EUA
FOLHA DE S. PAULO 27/12/92 Mundo corre mais riscos de ataques nucleares
FOLHA DE S. PAULO 12/3/93 Assaltantes levam carro com carga radioativa
FOLHA DE S. PAULO 8/4//93 Rússia tem novo vazamento nuclear
FOLHA DE S. PAULO 8/4//93 Tchernobil foi o pior acidente da história; (box com escala aiea
de acidentes nucleares)
FOLHA DE S. PAULO 26/7/93 Morcegos atômicos
FOLHA DE S. PAULO 2/8/93 Zona sul ganha herança radiativa Nuclemon sai da cidade,
deixando operários doentes e poluição no Brooklin e em
Interlagos
FOLHA DE S. PAULO 3/10/93 Inteligência artificial fica nua
FOLHA DE S. PAULO 3/11/93 País desperdiça US$ 300 mi por ano com paralisação de Angra
2
FOLHA DE S. PAULO 26/11/93 Alemães vendem cadáver de filho para teste de segurança em
carros
FOLHA DE S. PAULO 30/1/94 Cidade tem 4 "Joelmas" em potencial
FOLHA DE S. PAULO 24/2/94 Dez anos depois, Vila Socó pode se repetir
FOLHA DE S. PAULO 13/3/94 EUA abafaram queda de bombas H em 61
FOLHA DE S. PAULO 31/5/94 Procurador reabre caso Césio 137 em GO
FOLHA DE S. PAULO 1/6/94 Depoimentos do caso Césio começam dia 19
FOLHA DE S. PAULO 26/4/95 Radiação de Tchernobil matou 125 mil pessoas
VEJA 10/05/95 Susto radioativo.
VEJA 2/8/95 Hiroshima 50 anos. Memórias dos filhos do clarão
FOLHA DE S. PAULO 8/10/95 Cacos da bomba atômica
O GLOBO 28/1/96 Acidente com césio condena 4 médicos
CORREIO BRAZILIENSE 28/2/96 Desastre do césio 137 condena quatro
FOLHA DE S. PAULO 28/2/96 5 são condenados por acidente com Césio 137
JORNAL DA TARDE 28/2/96 Césio 137
FOLHA DE S. PAULO 10/4/96 Tchernobil elevou câncer até cem vezes, diz OMS
FOLHA DE S. PAULO 21/4/96 Novo Tchernobil ameaça Leste Europeu
FOLHA DE S. PAULO 23/6/96 A explosão do paraíso
FOLHA DE S. PAULO 28/7/96 Países ‘sérios’devem estocar armas nucleares, diz Prêmio
Nobel de física
FOLHA DE S. PAULO 18/8/96 A onipresença do horror. Art. Javier Marías
ATENÇÃO! 12/96 Goiânia 137
Ano2 nº9
GAZETA MERCANTIL 10/12/96 Notícias de um velho pesadelo
FOLHA DE S. PAULO 27/12/96 Famílias de mortos em hemodiálise terão pensão
SUPERINTERESSANTE Janeiro O núcleo do futuro
1997
JORNAL DA TARDE 17/4/97 Mais um acidente em usina nuclear
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Documentários e séries de televisão:

Retorno a Hiroshima. Documentário produzido pela BBC/ Entertainment Net. 1990. Dir.:
Edward Goldwin. Exibido pela TV cultura, 2/8/95.
Rádio Bikini. Documentário dirigido por Robert Stone. Exibido pela TV Cultura, 3/8/95.
Crianças de Tchernobyl. Documentário dirigido por Clive Gordon. Exibido pela TV Cultura,
4/8/95.
Globo Ecologia: Césio-137. Programa jornalístico da Rede Globo. Exibido em setembro/93.
The BBC People’s Century. Episódio: Fallout. Série de televisão, prod. BBC. Exibido pela
GNT-Globosat, em abril de 1997
Disaster. Episódio: Meltdown. Série de televisão. Exibido pela GNT-Globosat, em março de
1997.
Grandes mistérios e mitos do século XX. Série de televisão. Episódio: Tchernobyl. Exibido
pelo Discovery Channel, em abril de 1997.

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