Vous êtes sur la page 1sur 154

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS

PROCURADORIA GERAL DE JUSTIÇA

REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO


DO ESTADO DE GOIÁS

ANO XII – N.19 – OUTUBRO DE 2009

GOIÂNIA – GOIÁS
Conselho Editorial: Alice de Almeida Freire
Altamir Rodrigues Vieira Júnior
Fabíola Marquez Teixeira
Flávio Cardoso Pereira
João Porto Silvério Júnior
Marcelo Henrique dos Santos
Paulo Henrique Otoni
Reuder Cavalcante Motta
Spiridon Nicofotis Anyfantis

Revista do Ministério Público / Ministério Público do Estado de Goiás - ,


n.19 (outubro/dezembro 2009) - . - Goiânia : ESMP-GO. 1996 -
v.; 22cm.
154p.

Trimestral
ISSN 1809-5917

1. Direito – periódicos. 2. Escola Superior do Ministério Público de Goiás.

CDU 34 (051)
T.G.G. CRB 1842
A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.

Pede-se permuta On demande l'échange We ask for exchange

Editoração: Ana Holowate


Edição, Organização e Capa: Coordenação de Editoração da ESMPGO
Foto capa: Weimer Carvalho
Impressão: GRAFSET Gráfica e Editora Ltda.
Revisão ortográfica: Mirela Adriele da Silva Castro

Tiragem: 1000 exemplares


Ministério Público do Estado de Goiás
Procuradoria Geral de Justiça do Estado de Goiás
Procurador Geral de Justiça - Eduardo Abdon Moura
Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás
Diretora - Alice de Almeida Freire
Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás – ESMP-GO
Rua 23, esquina c/ Av. Fued Sebba, Qd.06, Lts.15/24
Jardim Goiás - Goiânia - CEP 74.805 – 100 Fone: (62) 3243 8000
e.mail: esmp@mp.go.gov.br; editoracao@mp.go.gov.br
http://www.mp.go.gov.br
SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................................... .....05

ARTIGOS

Improbidade administrativa: configuração e reparação do dano moral ..... .....07


Emerson Garcia

A Judicialização da Educação .................................... ............................. .....29


Carlos Roberto Jamil Cury
Luiz Antonio Miguel Ferreira

A convenção de Palermo no âmbito do Estado de Direito Constitucional


e Transnacional ........................................................................................ .....73
Angela Acosta Giovani de Moura

O Direito e a polêmica do início da vida humana ............................................93


Lucas Danilo Vaz Costa Júnior

A prisão preventiva nos casos de violência doméstica ...................................97


Maria Aparecida Nunes Amorim

Custo do não investimento na infância e juventude .......................................103


Mário Luiz Ramidoff

A efetividade das ações coletivas na comarca de Itumbiara ........................109


Maria Carolina Carvalho Motta
José Querino Tavares Neto

Antecipação terapêutica do parto ................................................................129


Paulo Rangel de Vieira

Uma abordagem interdisciplinar para o direito: a contribuição


da antropologia ............................................................................................135
Fernanda Brian

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 3


Artigo Parecer Ministerial - Apelação criminal 34734-2/213
(2008-0466-3313)..................................................................... ..................145
Fernanda Brian

4 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


APRESENTAÇÃO

A edição nº 19 da Revista do Ministério Público do Estado


de Goiás traz em sua capa o único chafariz de caldas presente em
nosso país, localizado na cidade de Goiás, Patrimônio Cultural da
Humanidade e erguido em 1778 como símbolo da fase áurea da
mineração em nosso Estado. Essa iniciativa visa alertar para a
necessidade da preservação do rico patrimônio histórico e
representa um resgate de nossas raízes.
Dando continuidade às publicações anteriores, este número
busca contribuir para o enriquecimento do debate no meio
institucional a respeito de diversos temas da atualidade, com ênfase
na abordagem jurídica e multidisciplinar, visando sobretudo à
formação sistêmica e contínua dos membros e servidores do
Ministério Público goiano.

Boa leitura a todos!

Alice de Almeida Freire


Diretora da ESMP-GO
Presidente do Conselho Editorial da Revista MPGO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 5


6 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA:
CONFIGURAÇÃO E REPARAÇÃO DO DANO MORAL

Emerson Garcia*

Resumo:
O ato de improbidade administrativa, enquanto prática deletéria ao
patrimônio público, pode ensejar a configuração de um dano não
patrimonial de natureza objetiva, que alcançará tanto a pessoa jurídica de
direito público, mediata ou imediatamente lesada, como a própria
coletividade. O objetivo dessas breves linhas é identificar em que
intensidade tais pessoas jurídicas podem ser vítimas de danos dessa
natureza e se é possível pleitear a sua reparação, juntamente com a do
dano moral coletivo, na própria relação processual voltada ao
sancionamento do ímprobo.

Palavras-chave: dano moral, improbidade administrativa, pessoa


jurídica de direito público, ressarcimento integral do dano.

Delimitação do plano de estudo

Dano, em seus contornos mais amplos, é “a perda que


alguém teve e o ganho que deixou de ter”1. Quando o dano resulta
de uma ação à margem da ordem jurídica, surge, para aquele que o
sofreu, o direito de ser ressarcido, e, para o autor, direto ou indireto,

*
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Doutorando e
Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.
Especialista em Education Law and Policy pela European Association for
Education Law and Policy (Antuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e
Internacionais pela Universidade de Lisboa. Ex-Consultor Jurídico da
Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação
Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Membro da
International Association of Prosecutors (The Hague – Holanda).
1
POTHIER, A. Oeuvres de Pothier, Traité des Obligations. Tome Premier.
Paris: Chez L’Éditeur, 1821. p. 180-181.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 7


o dever de indenizar2. Essa construção, de origem romana3 e que se
sedimentou na esfera civilista, alcançou o direito público, onde há
muito se reconhece o dever de o Poder Público ressarcir os danos
causados aos particulares4. Sua simplicidade estrutural, no
entanto, encobre um incontável número de polêmicas, que variam
desde o exato alcance da concepção de dano, passando pela
individualização dos sujeitos ativo e passivo, até alcançar o
quantum da indenização devida.
Conquanto se reconheça, face à sua inegável amplitude, que
a temática faria melhor figura num tratado, não num breve artigo,
cremos seja possível tecer algumas considerações a respeito da
conexão existente entre improbidade administrativa e uma
modalidade específica de dano, o moral. Para tanto, é necessário
compreender a amplitude do dever jurídico de ressarcir o dano
causado com o ato de improbidade, bem como refletir sobre os
contornos estruturais do dano moral e a possibilidade de as pessoas
jurídicas, mais especificamente daquelas que se enquadrem no
conceito de sujeito passivo do ato de improbidade, virem a sofrê-lo.

Os atos de improbidade e as sanções cominadas

Diversamente ao que muitos afirmam, improbidade não


guarda identidade com imoralidade e muito menos é por ela
absorvida. O acerto dessa afirmação resulta da exegese do art. 37
da Constituição da República, que enunciou um extenso rol de
regras e princípios vinculantes para a Administração Pública e, em
seu § 4º, conferiu ao Legislativo plena liberdade de conformação
para definir o que seriam atos de improbidade. Assim, ainda que o
léxico estabelecesse a vinculação que ora se afasta, o que

2
Cf. SOURDAT, M. A. Traité Général de la Responsabilité ou de L’Action en
Dommages-Intérêts en Dehors des Contrats. Tome 1, 5. ed. Paris: Marchal et
Billard, 1902. p. 1.
3
Cf. SAVIGNY, M. F. C. de. Traité de Droit Romain. Tome Premier. Paris:
Firmin Didot Frères Libraires, 1840. p. 107.
4
Cf. WALINE, M. Droit Administratif. 9. ed. Paris: Éditions Sirey, 1963. p. 826
e ss.; BASSI, F. Lezioni di Diritto Amministrativo. 7. ed. Milano: A. Giuffrè
Editore, 2003. p. 301 e ss.

8 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


efetivamente não faz, pois probidade deriva do latim probus (pro +
bho – da raiz bhu, nascer, brotar), indicando o que é bom, de boa
qualidade, vale dizer, o que é correto, não apenas o que é moral,
deve-se ter sempre presente que o semântico pode, apenas, ajudar a
construir, mas não sobrepor-se ao normativo. Nessa linha, poderia
a legislação constitucional considerar, como efetivamente fez, ato
de improbidade a violação a todo e qualquer princípio regente da
atividade estatal, cuja imperatividade não precisa ser lembrada5, e
não apenas à moralidade administrativa.
Na sistemática da Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, que
regulamentou o § 4º do art. 37 da Constituição da República, são três
as modalidades de atos de improbidade administrativa: aqueles que
importam em enriquecimento ilícito (art. 9º), causam dano ao
patrimônio público (art. 10) ou violam os princípios regentes da
atividade estatal (art. 11). Todas, no entanto, possuem um epicentro
estrutural comum, a violação à juridicidade, terminologia cunhada
por Merkl e que absorve todos os padrões normativos de observância
obrigatória no Estado de Direito, como regras, princípios, costumes,
etc.6. Em qualquer caso, sempre será necessário aferir a presença de
um referencial de proporcionalidade na própria incidência da Lei n.
8.429/1992, evitando submeter o agente público a um processo dessa
natureza em situações de pouca ou nenhuma lesividade ao interesse
público7.
Avançando, ainda é possível alcançar uma segunda
conclusão: todo ato de improbidade, e não apenas o tipificado no art.
11, viola algum princípio regente da atividade estatal. Essa

5
Cf. ALEXY, R. Theorie der Grundrechte. Baden-Baden: Surhkamp Taschenbuch
Verlag, 1994. p. 72; DWORKIN, R. Taking rights seriously. Massachussets:
Harvard University Press, 1999. p. 22 e ss.; ZAGREBELSKY, G. Manuale di
Diritto Costituzionale. Volume Primo - Il Sistema delle Fonti del Diritto. Torino:
Unione Tipográfico-Editrice Torinese, 1987. p. 107; MIRANDA, J. Manual de
Direito Constitucional. Tomo II. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 250; e
GARCIA, E. Conflito entre normas constitucionais. Esboço de uma teoria geral.
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 177 e ss.
6
Cf. GARCÍA DE ENTERRÍA, E.; FERNÁNDEZ, T.-R. Curso de Derecho
Administrativo. v. I, 2. ed. Madrid: Civitas Edicionaes, 1977. p. 251.
7
Para maior desenvolvimento do tema, vide, de nossa autoria, a primeira parte
da obra, intitulada “Improbidade Administrativa” (2008, p. 99-104), sendo a
segunda parte da lavra de Rogério Pacheco Alves.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 9


constatação é particularmente clara em relação ao enriquecimento
ilícito, isto em razão de sua elevada carga de ilegalidade e
imoralidade, e não menos exata em relação ao dano causado ao
patrimônio público, pois o prejuízo, para que seja tido como ilícito,
configurando a improbidade administrativa, sempre será antecedido
pela violação a algum princípio. Nesse particular, deve-se lembrar
que a atividade estatal, conquanto ostente inegável utilidade para o
interesse público, pode se mostrar extremamente arriscada (v.g.: um
plano econômico) ou indiscutivelmente deficitária (v.g.: subvenções
que busquem o desenvolvimento de uma região mais pobre), sendo o
prejuízo financeiro plenamente aceitável.
Em consequência, o iter de individualização dos atos de
improbidade há de iniciar, sempre, pela verificação da
compatibilidade da conduta com os princípios regentes da atividade
estatal. Presente a incompatibilidade, ter-se-á a aparente
configuração do ato de improbidade descrito no art. 11. Se a conduta,
além disso, importar em enriquecimento ilícito ou causar dano ao
patrimônio público, ter-se-á o deslocamento da tipologia,
respectivamente, para os arts. 9º e 10. Identificado o enquadramento
da conduta na tipologia da Lei n. 8.429/1992, o que também exige
sejam analisados o elemento subjetivo do agente, a qualidade dos
sujeitos envolvidos e a presença de um critério de proporcionalidade,
ter-se-á, como consequência desfavorável para o autor, a incidência
das sanções cominadas no art. 12.
Não obstante o distinto grau de lesividade ao interesse
público, o fato de as três modalidades de atos de improbidade
pertencerem a um gênero comum ensejou a opção legislativa de
sujeitá-las a feixes de sanções praticamente idênticos. Com
exceção da “perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao
patrimônio”, somente cominada às hipóteses de enriquecimento
lícito, todo e qualquer ato de improbidade, a depender dos
circunstancialismos do caso concreto, pode redundar em
“ressarcimento integral do dano”, “perda da função pública”,
“suspensão dos direitos políticos”, “pagamento de multa civil” e
“proibição de contratar com o Poder Público ou receber incentivos
fiscais ou creditícios”.
De modo diverso ao que se verifica em relação ao inciso II
do art. 12, onde o “ressarcimento integral do dano” é da própria

10 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


essência do ato de improbidade previsto no art. 10, cuja tipologia é
direcionada aos atos que causam dano ao patrimônio público, há
previsão expressa, nos incisos I e III do referido art. 12, de
preceitos que relacionam as sanções cominadas às duas outras
modalidades de atos de improbidade, de que esse ressarcimento só
terá lugar “quando houver” dano. Observa-se, de imediato, que
essa técnica legislativa não suscita maiores dúvidas em relação ao
enriquecimento ilícito, pois tanto é possível que o agente público
dê causa ao empobrecimento do patrimônio público em razão do
seu enriquecimento pessoal (v.g.: apropriando-se de recursos
públicos), como pode igualmente ocorrer que ele enriqueça sem
que haja qualquer prejuízo patrimonial imediato para o sujeito
passivo do ato de improbidade (v.g.: o recebimento de propina para
acelerar um processo administrativo). A mesma clareza, no
entanto, não se manifesta quando o ato de improbidade é daqueles
que tão somente viola os princípios regentes da atividade estatal.
Afinal, preservando um padrão mínimo de coerência em relação ao
que afirmamos acima, a simples ocorrência do dano já seria
suficiente para atrair a incidência da tipologia do art. 10. Haveria,
assim, uma contraditctio in terminis ao se associar a figura do art.
11 da Lei de Improbidade ao “ressarcimento do dano”.
Não obstante o aparente êxito desse raciocínio inicial, é
possível afirmar que o “ressarcimento do dano” previsto no inciso
III do art. 12, além de compatível com a tipologia do art. 11,
apresenta uma total harmonia sistêmica com a Lei de Improbidade.
Como verdadeiro dogma do moderno direito sancionador,
tem-se que a incidência da sanção pressupõe a existência de um claro
liame entre a vontade do agente e o comportamento tido como
ilícito8. Enquanto a tipologia do art. 10 aceita tanto o dolo como a
culpa, a do art. 11, por ser silente a respeito do elemento subjetivo do
agente público, somente se harmoniza com o dolo. Assim, agindo
dolosamente, o agente pode violar apenas os princípios regentes da
atividade estatal ou avançar e, também, causar dano ao patrimônio
público. Mesmo que pare no minus, é plenamente factível que de sua
conduta possa advir um dano indireto ao patrimônio público, que
absorve não só os aspectos financeiros, como, também, o conjunto de
8
Cf. NIETO, A. Derecho Administrativo sancionador. 3. ed. Madrid: Editorial
Tecnos, 2002. p. 342 e ss.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 11


bens e interesses de natureza moral, econômica, estética, artística,
histórica, ambiental e turística9.
Ressalte-se, no entanto, que essa linha limítrofe entre o fim do
primeiro atuar doloso e o início do segundo é normalmente encoberta
pela unidade existencial da conduta praticada pelo agente, o que torna
impossível ou particularmente difícil a sua individualização. De
qualquer modo, esse óbice será afastado quando a própria Lei incluir,
sob a epígrafe do art. 11, condutas que normalmente redundam num
dano ao patrimônio público. É o caso, por exemplo, da figura do inciso
V do art. 11: “frustrar a licitude de concurso público”. Esse ato de
improbidade pode redundar na anulação do concurso público e,
consequentemente, acarretar a perda de todo o numerário despendido
pelo Poder Público com a sua organização. Apesar de a Lei n.
8.429/1992 não deixar margem a dúvidas quanto à sua inclusão no art.
11, ter-se-á um dano e o correlato dever de ressarci-lo.
Em outras situações, a tarefa do operador do direito será
sensivelmente mais complexa. É o caso, por exemplo, do inciso I do art.
11 (“praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso
daquele previsto, na regra de competência”), cuja generalidade não
precisa ser realçada e que, por isso, será necessariamente infringido em
praticamente todos os atos de improbidade contemplados nos arts. 9º e
10. Assim, a depender das especificidades do caso concreto, não haverá
óbice ao enquadramento da conduta em tipologias mais específicas,
como soem ser as desses últimos artigos.
Constatado que o dever de ressarcir o dano causado pode
decorrer de qualquer dos atos de improbidade previstos na Lei n.
8.429/1992, resta verificar a sua natureza jurídica, os contornos gerais
do denominado dano moral e a possibilidade, ou não, de o ato de
improbidade vir a causar um dano dessa natureza ao Poder Público.

O ressarcimento integral do dano

A ideia de ressarcimento integral do dano indica que a


esfera jurídica do lesado deve retornar ao estado em que se
encontrava por ocasião da prática do ato ilícito. Não obstante a
sistemática adotada pela Lei n. 8.429/1992, que o incluiu sob a
9
Cf. GARCIA, op. cit., p. 252-254.

12 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


epígrafe das sanções, ele não representa uma punição para o
ímprobo; afinal, busca, apenas, repor o status quo10. Jérémie
Bentham, há mais de dois séculos, já observava que se a medida
aplicada ao criminoso consiste numa soma de dinheiro que dele é
exigida como equivalente à perda que causou a terceiro, tem-se um
ato de satisfação pecuniária (satisfaction pécuniaire), não de
punição11. Kelsen12, do mesmo modo, averba que

a obrigação de reparar o dano infligido a outro


Estado, seja ela diretamente estipulada pelo
Direito internacional geral ou estabelecida por
meio de acordo entre os dois Estados envolvidos,
não é uma sanção – tal como caracterizado às vezes
– mas uma obrigação substitutiva que ocupa o
lugar da obrigação original violada pelo delito
(rectius: ato ilícito) internacional.

Em seus contornos gerais, o dever de ressarcir pressupõe:


a) a ação ou omissão do agente, residindo o elemento volitivo no
dolo ou na culpa; b) o dano; c) a relação de causalidade entre a
conduta do agente e o dano ocorrido; d) que da conduta do agente,
lícita (ex.: agente que age em estado de necessidade) ou ilícita,
surja o dever jurídico de reparar. Especificamente em relação ao
nosso objeto de estudo, tem-se que a prática do ato de improbidade
faz surgir, para o agente, o público e os terceiros com ele
conluiados, o dever de ressarcir o dano causado, o que decorre não
só do “sancionamento” instituído pelo art. 12, como, também, do
dever jurídico veiculado pelo art. 5º, verbis: “[o]correndo lesão ao
patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do
agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano”.
O vocábulo ressarcimento exprime a ideia de equivalência na
contraprestação, apresentando-se como consequência da atividade
do agente que ilicitamente causa dano ao sujeito passivo do ato de
10
No mesmo sentido: CARRARA, F. Programa do curso de Direito Criminal. v.
II. Trad. de José Luiz V. de A. Franceschini. São Paulo: Editora Saraiva, 1957.
§ 693, p. 145.
11
Cf. DUMOND, É. Theorie des Peines et des Récompenses. Extraits des Manuscrits
de Jérémie Bentham. Bruxelas: Societé Belge de Librarie, 1840. p. 14.
12
KELSEN, H. Teoria geral do Direito e do Estado. Trad. de Luís Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 13


improbidade. A reparação, consoante a dicção da Lei n. 8.429/1992,
há de ser integral, o que torna cogente o dever de ressarcir todos os
prejuízos sofridos pela pessoa jurídica lesada, qualquer que seja a sua
natureza. Insuficiente o quantum fixado a título de reparação, caberá
à Fazenda Pública ajuizar as ações necessárias à complementação do
ressarcimento13. Sob esse aspecto, é relevante observar que a
independência com a esfera cível foi levada a extremos, já que a
pessoa jurídica lesada será instada a integrar o polo ativo da ação caso
não a tenha ajuizado14 (art. 17, § 3º); terá total liberdade para suprir as
falhas e omissões detectadas na inicial; poderá produzir as provas
que demonstrem a dimensão do dano; e terá ampla possibilidade de
apresentar as irresignações recursais pertinentes; inexistindo, assim,
justificativa para a injurídica possibilidade de renovação da lide.
Com o objetivo de harmonizar referida norma com o instituto da
coisa julgada15, entendemos que o ulterior pleito indenizatório
somente deve ser admitido quando: (1) a Fazenda Pública não
houver integrado o polo ativo; (2) a dimensão do dano não tenha sido
discutida; ou (3) fatos supervenientes, não valorados na lide
originária, embasem a lide posterior.
Tratando-se de dano causado por mais de um agente público,
ou por um agente público e um terceiro, uma vez demonstrado que
concorreram voluntariamente para o resultado, ter-se-á a obrigação
solidária de reparar, do que decorre a possibilidade de o montante
devido ser integralmente cobrado de qualquer deles16.
Se o dever jurídico de ressarcir não parece suscitar maiores
dúvidas, o mesmo não pode ser dito em relação ao que está
incluído sob a epígrafe do “dano”. É nesse ponto que iniciamos
nossas considerações a respeito do dano moral na seara da
improbidade administrativa.

13
Lei n. 8.429/1992, art. 17, § 2º.
14
Lei n. 8.429/1992, art. 17, § 3º.
15
CR/1988, art. 5º, XXXVI.
16
Código Civil, art. 942. Em harmonia com o sistema, o TJRS decidiu que
“responde pelos prejuízos causados ao erário, solidariamente, tanto o
servidor, beneficiado pela irregularidade, como o prefeito municipal, na
qualidade de gestor dos gastos públicos, tendo conhecimento do ato ilegal,
causador do dano sujeito à reparação” (3ª CC, AP n. 598331445, rel. Des. Luiz
Ari Azambuja Ramos, j. em 11/3/1999).

14 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Contornos gerais do dano moral no âmbito privado

O dano moral, por vezes, é caracterizado como uma ofensa


de natureza não patrimonial, atingindo, primordialmente, os
direitos da personalidade, assentados num referencial de
humanidade e insuscetíveis de exata mensuração econômica. Sob
essa perspectiva, somente a pessoa humana poderia sofrê-lo, não a
pessoa jurídica, criação de ordem legal ou contratual desprovida de
personalidade subjetiva, não sentindo dor ou emoção. Essa
concepção inicial, no entanto, não se coaduna com a constatação
de que alguns atributos da personalidade, como a imagem e a
reputação, podem assumir contornos objetivos, não
necessariamente associados ao referencial de humanidade.
A honra, além do aspecto subjetivo, afeto aos sentimentos
característicos da espécie humana, também alcança a reputação e o
bom nome da pessoa junto a terceiros que com ela se relacionem, ou
que estejam em vias de se relacionar. A honra, assim, possui
contornos de imanência, refletindo a própria estima, e de
transcendência, indicando o reconhecimento externo do próprio
valor17. Partindo-se dessa distinção, pode-se falar, como o faz parte
da doutrina italiana, em danos não patrimoniais subjetivos (dor física
e moral) e danos não patrimoniais objetivos (ofensas ao bom nome, à
reputação, etc.)18, o que bem demonstra a estreiteza do entendimento
que contextualiza a honra num plano puramente personalista19.
Afinal, é plenamente factível que também as pessoas jurídicas
possuem um conceito, uma reputação, permitindo, assim, venham a
sofrer danos não patrimoniais objetivos.
A configuração do dano moral, como é intuitivo, pressupõe a
violação de um bem ou interesse juridicamente tutelado. Nessa
perspectiva, é necessária a verificação do referencial de juridicidade
que dá sustentação aos direitos das pessoas naturais e jurídicas. Os

17
Cf. ROSADO IGLESIAS, G. La titularidad de derechos fundamentales por
la persona jurídica. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 197.
18
Cf. CORTESE, W. La responsabilità per danno all’immagine della pubblica
amministrazione. Padova: CEDAM, 2004. p. 105 e ss.
19
Nesse sentido: BALAGUER CALLEJÓN, M. L. El derecho fundamental al
honor. Madrid: Editorial Tecnos, 1992. p. 142; e COSSIO, M. de. Derecho al
honor. Técnicas de protección y limites. Valencia: Tirant lo Blanch, 1993. p. 181.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 15


direitos da personalidade (v.g.: honra, intimidade, etc.), nitidamente
reconduzíveis à ideia de dignidade humana, costumam encontrar
contemplação expressa ou implícita em diversas Constituições, não
havendo maior dúvida quanto à juridicidade de seus contornos. Em
relação às pessoas jurídicas, tem-se que algumas ordens
constitucionais, como a portuguesa20 e a alemã21, prevêem,
expressamente, que também elas possuem direitos fundamentais,
desde, naturalmente, que sejam compatíveis com a sua natureza; são
excluídos, assim, os direitos que pressupõem, como requisito
essencial à sua fruição, a condição humana (v.g.: direito à integridade
física, à vida, etc.), e absorvidos aqueles que não a exijam (v.g.: o
direito à reputação). Nessa linha, identificada a violação dos direitos
fundamentais que lhes são inerentes, será plenamente possível a
configuração do dano moral.
Mesmo nos sistemas em que a ordem constitucional é silente a
respeito da temática – a grande maioria, diga-se de passagem –, tem
sido acolhido o argumento de que o fenômeno associativo é
indissociável da realidade social, sendo uma forma de maximizar o
atendimento às necessidades individuais. A pessoa jurídica, assim,
enquanto instrumento a serviço da pessoa humana, deve ter os
contornos de sua proteção definidos em harmonia com a sua essência e
ratio existencial, o ser humano. Nessa perspectiva, não haveria sentido,
por exemplo, em reconhecer a liberdade de culto individual e negá-la à
organização religiosa constituída especificamente para esse fim,
estando plenamente difundido o argumento de que também as pessoas
jurídicas possuem alguns direitos tidos como fundamentais.
O Tribunal Constitucional espanhol já teve oportunidade
de afirmar que “nuestro ordenamiento constitucional, aun cuando
no se explicite en los términos con que se proclama en los textos
constitucionales de otros Estados, los derechos fundamentales
rigen también para las personas jurídicas nacionales”22.

20
Constituição portuguesa de 1976, art. 12, 2: “As pessoas colectivas gozam dos
direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”.
21
Grundgesetz alemã de 1949, art. 19, 3: “Os direitos fundamentais, na medida
em que sejam compatíveis com sua natureza, também protegem as pessoas
jurídicas nacionais”.
22
Sentença n. 32/1989, de 13/02/1989. No mesmo sentido: Sentença n.
241/1992, de 21/12/1992.

16 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


No direito italiano, a Suprema Corte de Cassação23,
centrando sua atenção na lei civil, entendeu que o dano não
patrimonial deve ser ressarcido não só nas hipóteses expressamente
previstas na letra do art. 2059 do Código Civil de 194224, como,
também, em todos os casos em que o ato ilícito tenha lesado um
interesse ou valor de relevo constitucional25. Em relação à pessoa
humana, isso decorreria da inviolabilidade dos direitos
fundamentais26 e da necessária interpretação evolutiva do texto
constitucional. Quanto às pessoas jurídicas, somente a partir da
Sentença n. 12.929/2007 a Corte efetivamente equiparou pessoas
físicas e jurídicas, entendendo que as últimas estariam igualmente
suscetíveis de sofrer danos não patrimoniais, isto com exceção
daqueles de natureza biológica, no qual o aspecto físico é requisito
imprescindível; em sua fundamentação, aduziu que a força
normativa do art. 2º da Constituição de 1947 projeta-se, igualmente,
sobre as formações sociais integradas pelos seres humanos27.
23
Sentença n. 26972, 24/06/2008, publicada em 11/11/2008.
24
“Il danno non patrimoniale deve essere risarcito solo nei casi determinati dalla legi”.
25
No mesmo sentido: Sentenças n. 8827 e 8828/2003.
26
Nas palavras do Tribunal: “[d]al princípio del necessario, per i diritti
inviolabili della persona, della minima tutela costituita dal risarcimento,
consegue che la lesione dei diritti inviolabili della persona che abbia
determinato um danno non patrimoniale comporta l’obbligo di risarcire tale
danno, quale che sia la fonte della responsabilità , contrattuale o
extracontrattuale” (Sentença n. 26972/2008, considerando 4.1).
27
Nas palavras do Tribunal: “[p]oiché anche nei confronti della persona giuridica e
in genere dell’ente collettivo è configurabile la risarcibilità del danno non
patrimoniale allorquando il fatto lesivo incida su una situazione giuridica della
persona giuridica o dell’ente che sia equivalente ai diritti fondamentali della
persona umana garantiti dalla Costituzione, e fra tali diritti rientra l’immagine
della persona giuridica o dell’ente; allorquando si verifichi la lesione di tale
immagine è risarcibile, oltre al danno patrimoniale, se verificatosi, e se
dimostrato, il danno non patrimoniale costituito dalla diminuzione della
considerazione della persona giuridica o dell’ente che esprime la sua immagine,
sia sotto il profilo della incidenza negativa che tale diminuzione comporta
nell’agire delle persone fisiche che ricoprano gli organi della persona giuridica o
dell’ente e, quindi, nell’agire dell’ente, sia sotto il profilo della diminuzione della
considerazione da parte dei consociati in genere o di settori o categorie di essi con
le quali la persona giuridica o l’ente di norma interagisca. Il suddetto danno non
patrimoniale va liquidato alla persona giuridica o all’ente in via equitativa,
tenendo conto di tutte le circostanze del caso concreto”.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 17


No direito brasileiro, à mingua de restrição no texto
constitucional, que não distingue entre pessoas humanas e pessoas
jurídicas, prevendo uma cláusula geral de reparação dos danos
morais28, bem como por estar em plena harmonia com a natureza
das coisas, tem sido acolhida a tese de que a pessoa jurídica pode
sofrê-los, não sendo possível estabelecer uma simbiose entre a
reputação dos seus membros e a sua. Trata-se de entendimento
sedimentado pelas duas Turmas que compõem a Seção de Direito
Privado do Superior Tribunal de Justiça29, sendo convertida em
enunciado de sua Súmula30, o que denota a atual tendência em se
buscar a ampla reparação do dano causado. O Supremo Tribunal
Federal, do mesmo modo, também admitiu a possibilidade de
reparação do dano moral causado à pessoa jurídica31, que não
poderia ser alijada dos direitos fundamentais reconhecidos às
pessoas em geral.
É indiscutível que determinados atos podem diminuir o
conceito da pessoa jurídica junto à comunidade32, ainda que não

28
CR/1988, art. 5º, V: “É assegurado o direito de resposta, proporcional ao
agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.
CR/1988, art. 5º, X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação”.
29
“Responsabilidade civil. Dano moral. Pessoa jurídica. A honra objetiva da
pessoa jurídica pode ser ofendida pelo protesto indevido de título cambial,
cabendo indenização pelo dano extrapatrimonial daí decorrente. Recurso
conhecido, pela divergência, mas improvido” (STJ, 4ª Turma, REsp. n. 60.033-
2-MG, rel. Min. Ruy Rosado, j. em 9/8/1995, RJSTJ 85/269). “Protesto
indevido. Danos morais. Pessoa jurídica. Responde o banco pelos prejuízos
decorrentes do protesto indevido de título já pago. Pacificou-se o entendimento
desta Corte no sentido de que as pessoas jurídicas podem sofrer danos morais”
(STJ, 3ª Turma, REsp. n. 251.078-RJ, rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. em
18/5/2000, DJ de 14/8/2000). No mesmo sentido: 4ª Turma, REsp. n. 112.236-
RJ, rel. Min. Ruy Rosado, j. em 28/4/1997, RJSTJ 102/370, e 3ª Turma, REsp. n.
58.660-7-MG, rel. Min Waldemar Zveiter, j. em 3/6/1997, RSTJ 103/175.
30
Súmula n. 227: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.
31
2ª T., AGREG n. 244.072/SP, rel. Min. Néri da Silveira, j. em 02/04/2002, DJ
de 17/05/2002.
32
O art. 219 do Código Penal Militar pune a conduta do militar que venha a
propalar fatos que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar
o crédito das Forças Armadas ou a confiança que estas merecem do público.

18 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


haja uma repercussão imediata sobre o seu patrimônio. Existindo o
dano não patrimonial ou moral, o que se constata a partir da
avaliação da conduta tida como ilícita e das regras de experiência,
deve ser promovido o seu ressarcimento integral, o que será feito
com o arbitramento de numerário compatível com a qualidade dos
envolvidos, as circunstâncias da infração e a extensão do dano,
tudo sem prejuízo da reparação das perdas patrimoniais.

A causação de dano moral às pessoas jurídicas de direito público

Do mesmo modo que as pessoas jurídicas de direito


privado, as de direito público também gozam de determinado
conceito junto à coletividade, do qual muito depende o equilíbrio
social e a subsistência de várias negociações, especialmente em
relação: a) aos organismos internacionais, em virtude dos
constantes empréstimos realizados; b) aos investidores nacionais e
estrangeiros, ante a frequente emissão de títulos da dívida pública
para a captação de receita; c) à iniciativa privada, para a formação
de parcerias; d) às demais pessoas jurídicas de direito público, o
que facilitará a obtenção de empréstimos e a moratória de dívidas
já existentes, etc.
O grande obstáculo que se enfrenta, no entanto, é
identificar a base normativa que dá sustentação ao direito à
imagem e à reputação das pessoas jurídicas de direito público, que,
juntamente com algumas pessoas jurídicas de direito privado, são
sujeitos passivos em potencial dos atos de improbidade.
Inicialmente, observa-se que os direitos fundamentais
surgiram como fatores de limitação à atuação do Estado, que
reconhece e assegura a indenidade de uma esfera jurídica afeta ao
indivíduo. Lembrando o título da sugestiva monografia de Paul
Kirchhof33, o Estado normalmente se apresenta como “garantidor e
inimigo da liberdade”. Em consequência, seria contraditório, ao
menos sob a ótica de parte da doutrina, que o principal algoz dos
direitos fundamentais, justificador de sua própria existência, seja

33
KIRCHHOF, P. Der Staat als Garant und Gegner der Freiheit – Von Privileg und
Überfluss zu einer Kultur des Masses. München: Ferdinand Schöningh, 2004.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 19


por eles beneficiado34; em outras palavras, não seria possível a
“confusão” entre destinatário e titular dos direitos fundamentais.
Como afirmou o Tribunal Constitucional espanhol, “no pueden
desconocerse las importantes dificultades que existen para
reconocer la titularidad de derechos fundamentales a tales
entidades, pues la noción misma de derecho fundamental que está
en la base del art. 10 CE resulta poco compatible con entes de
naturaleza pública”35. Assim, caso um ente público viole certos
aspectos da esfera jurídica de outro ente público, ainda que
facilmente enquadráveis na categoria dos direitos fundamentais, o
que se teria, em verdade, seria mero conflito de competências.
Mesmo aqueles que apregoam a exclusão das pessoas
jurídicas de direito público da titularidade e do âmbito de proteção
dos direitos fundamentais reconhecem que alguns entes públicos,
enquanto realidades distintas do Estado-comunidade (rectius: o
Poder Público), com interesses próprios e autonomia de ação,
como são os conselhos de fiscalização profissional e as
universidades, possuem os direitos fundamentais compatíveis com
a sua natureza36. Acresça-se, em reverência à juridicidade e por
imperativo de ordem lógica, que não se pode negar às pessoas
jurídicas de direito público certas garantias processuais, como o
devido processo legal e o princípio do juiz natural, sejam, ou não,
cognominadas de direitos fundamentais.
Reconheça-se, ou não, que a funcionalidade dos direitos
fundamentais projeta-se sobre as pessoas jurídicas de direito
público, é inegável que também elas, enquanto unidades
existenciais autônomas, dotadas de capacidade jurídica e que
estabelecem relações intersubjetivas no âmbito do Estado de
Direito, têm uma esfera jurídica própria e, por via reflexa, possuem
“direitos”. Esses “direitos” tanto podem estar expressos na
Constituição e na lei como derivar de sua essência, do referencial
de juridicidade que permeia todo e qualquer Estado de Direito.
Nessa linha, se não se nega a coerência lógica da tese que afirma

34
Cf. ROSADO IGLESIAS, op. cit., p. 251-253.
35
Sentença n. 91/1995, de 19/06/1995.
36
MIRANDA, J.; MEDEIROS, R. Constituição Portuguesa anotada. Tomo I.
Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 114.

20 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


estarem os direitos fundamentais primordialmente voltados à
proteção do indivíduo contra o Estado, não se pode negar,
igualmente, que também o Estado possui direitos em relação ao
indivíduo (v.g.: direito de propriedade, direito de defesa, etc.).
A dimensão objetiva dos direitos fundamentais torna
evidente que também eles influenciarão na interpretação da ordem
jurídica, o que necessariamente contextualiza seus comandos num
padrão de juridicidade, terminando por influir no delineamento de
todo e qualquer “direito”, seja, ou não, fundamental, seja, ou não,
outorgado a pessoas privadas. Não é por outra razão que o Tribunal
Constitucional espanhol já reconheceu que as pessoas jurídicas de
direito público têm direito à “tutela efectiva de los jueces y
tribunales”, o que decorre da capacidade de ser parte de um
processo37; e possuem os mesmos direitos de liberdade de que
desfruta a generalidade dos cidadãos, em especial aqueles
previstos no art. 20 da Constituição espanhola38.
Conquanto seja difícil definir, com precisão, a exata
extensão dos “direitos” afetos às pessoas jurídicas de direito
público, observa-se que alguns deles, mais especificamente
aqueles afetos à sua personalidade jurídica e à sua capacidade de
agir, são facilmente perceptíveis. A personalidade jurídica de um

37
Sentença n. 19/1983, de 14/03/1983.
38
Constituição espanhola de 1978, art. 20: “1. Se reconocen y protegen los
derechos: a) A expresar y difundir libremente los pensamientos, ideas y
opiniones mediante la palabra, el escrito o cualquier otro medio de
reproducción. b) A la producción y creación literaria, artística, científica y
técnica. c) A la libertad de cátedra. d) A comunicar o recibir libremente
información veraz por cualquier medio de difusión. La ley regulará el derecho
a la cláusula de conciencia y al secreto profesional en el ejercicio de estas
libertades. 2. El ejercicio de estos derechos no puede restringirse mediante
ningún tipo de censura previa. 3. La ley regulará la organización y el control
parlamentario de los medios de comunicación social dependientes del Estado
o de cualquier ente público y garantizará el acceso a dichos medios de los
grupos sociales y políticos significativos, respetando el pluralismo de la
sociedad y de las diversas lenguas de España. 4. Estas libertades tienen su
límite en el respeto a los derechos reconocidos en este Título, en los preceptos
de las leyes que lo desarrollen y, especialmente, en el derecho al honor, a la
intimidad, a la propia imagen y a la protección de la juventud y de la infancia.
5. Sólo podrá acordarse el secuestro de publicaciones, grabaciones y otros
medios de información en virtud de resolución judicial”.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 21


ente é claro indicativo de que ele existe juridicamente,
configurando uma unidade a que se atribui a capacidade de ter
direitos e deveres. Em torno dessa unidade existencial aglutinam-
se inúmeros “direitos” afetos à sua própria essência, como são, por
exemplo, os de: (1) ter denominação ou símbolo próprio; (2)
expressar, por meio de seus agentes, o entendimento a respeito de
temáticas específicas; e (3) ter uma imagem, daí decorrendo a
proteção de sua reputação. É plenamente possível, assim, que o ato
de improbidade venha a macular o conceito de que gozam as
pessoas jurídicas relacionadas no art. 1º da Lei n. 8.429/1992, daí
decorrendo um dano de natureza não patrimonial passível de
indenização39 40.
Não se sustenta, é evidente, que todo e qualquer ato de
improbidade seja suscetível de causar danos não patrimoniais ao
respectivo sujeito passivo. Em múltiplas situações, no entanto, tal
será inequívoco. À guisa de ilustração, mencionaremos apenas
algumas, dentre as hipóteses previstas na Lei n. 8.429/1992, que
poderão eventualmente acarretar um prejuízo não patrimonial: a)
recebimento de vantagem de qualquer natureza para tolerar a
prática do contrabando e do narcotráfico (art. 9º, V); b) perceber
vantagem para intermediar a liberação de verba pública (art. 9º,

39
Também admitindo a reparação do dano moral: FAZZIO JÚNIOR, W.
Improbidade administrativa e crimes de Prefeitos. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2001. p. 304; MATTOS NETO, A. J. de. Responsabilidade civil por
improbidade administrativa. Revista dos Tribunais n. 752/40, jun. 1998;
TOURINHO, R. A. R. A. “O Estado como sujeito passivo de danos morais
decorrentes de ato de improbidade administrativa”. Revista Fórum
Administrativo, p. 39, jan. 2002; ______. Discricionariedade administrativa,
ação de improbidade & controle principiológico. Curitiba: Editora Juruá,
2004. p. 210-211; e GOMES, J. J. Apontamentos sobre a improbidade
administrativa. In: ______. Improbidade administrativa. 10 anos da Lei n.
8.429/92. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002. p. 264-265.
40
Juarez Freitas entende que a multa cominada no art. 12 da Lei n. 8.429/1992
tem a função de reparar o dano moral (FREITAS, J. Do princípio da
probidade administrativa e de sua máxima efetivação. Revista de Informação
Legislativa, n. 129/55). Em nosso entender, inexiste similitude entre a multa
civil e o dano moral. Aquela tem natureza punitiva, sendo estabelecida com
observância dos valores relativos estabelecidos na Lei n. 8.429/1992. O dano
moral, por sua vez, tem natureza indenizatória, sendo mensurado de acordo
com a dimensão da mácula causada.

22 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


IX); c) causar dano ao erário com a realização de operação
financeira sem a observância das normas legais (art. 10, VI); d)
liberar verba pública ou aplicá-la com inobservância da
sistemática legal (art. 10, XI); e) revelar indevidamente o teor de
medida econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou
serviço (art. 11, VII).
Ao reconhecermos que o direito à imagem e à reputação é
ínsito e inseparável da própria personalidade jurídica, integrando a
esfera jurídica do sujeito passivo do ato de improbidade, temos de
atribuir, por via reflexa, ao sujeito ativo do ato de improbidade, o
dever jurídico de respeitá-lo ou, em caso de descumprimento, o
dever de ressarcir integralmente o dano causado. Em casos tais,
deverá o órgão jurisdicional contextualizar o ilícito praticado,
transcendendo os lindes do processo e identificando a dimensão da
mácula causada à reputação do ente estatal, o que permitirá a
correta valoração do dano não patrimonial e a justa fixação da
indenização devida, que será revertida à pessoa jurídica lesada
pelo ilícito41.

Os atos de improbidade e o dano moral coletivo

Além do dano não patrimonial de natureza objetiva, é


importante perquirir a possibilidade de o ato de improbidade
causar um dano não patrimonial de natureza subjetiva (dor física e
moral). Sendo evidente que a pessoa jurídica não pode sofrer uma
dor moral, o prisma de análise há de ser deslocado para a
coletividade, que efetivamente poderá experimentar um
sofrimento com o dano a bens jurídicos de natureza não
econômica. Note-se que estamos perante um evidente
redimensionamento do individualismo oitocentista, que
estabelecia uma correspondência biunívoca entre direito e
personalidade, sendo ontologicamente refratário à própria defesa
coletiva de direitos alheios.
O reconhecimento do dano moral enquanto dano in actio
ipsa, o que dispensa a demonstração da efetiva dor e sofrimento,

41
Lei n. 8.429/1992, art. 18.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 23


exigindo, apenas, a prova da conduta tida como ilícita, é um claro
indicativo da possibilidade de sua defesa no plano transindividual,
volvendo o montante da indenização em benefício de toda a
coletividade, que é vista em sua inteireza, não dissecada numa
visão anatômica, pulverizada entre os indivíduos que a integram.
Como se percebe, para que seja demonstrada a existência e a
possibilidade de reparação do dano moral coletivo, sequer é
preciso recorrer à figura dos danos punitivos (punitive damages).
Na modernidade, o direito deixa de ser visto como panacéia
do indivíduo e assume a funcionalidade de fator de integração e
pacificação social, daí a crescente importância atribuída à tutela
coletiva de interesses patrimoniais ou puramente morais.
A Lei n. 8.429/1992, como temos defendido, não se destina
unicamente à proteção do erário, concebido como o patrimônio
econômico dos sujeitos passivos dos atos de improbidade,
devendo alcançar, igualmente, o patrimônio público em sua
acepção mais ampla, incluindo o patrimônio moral. Danos ao
patrimônio histórico e cultural, bem como ao meio ambiente, afora
o prejuízo de ordem econômica, mensurável com a valoração do
custo estimado para a recomposição do status quo, causam
evidente comoção no meio social, sendo passíveis de caracterizar
um dano moral coletivo, o qual encontra previsão expressa no art.
1º da Lei n. 7.347/1985, com a redação dada pela Lei n.
8.884/199442.
A reparabilidade do dano moral coletivo, no entanto,
suscitará algumas dificuldades. A primeira delas é constatada pelo
fato de a Lei n. 8.429/1992 somente abordar os danos causados ao
patrimônio das pessoas jurídicas referidas em seu art. 1º43, o que
poderia não incluir o dano moral causado à coletividade. Para
contornar o obstáculo, deve-se observar que o patrimônio público,
de natureza moral ou patrimonial, em verdade, pertence à própria
coletividade, o que, ipso facto, demonstra que qualquer dano
causado àquele erige-se como dano causado a esta. Assim, ao se
falar num dano dessa natureza, apesar da separação das partes que
42
A Lei n. 7.347/1985, art. 1º: “Regem-se pelas disposições desta Lei, sem
prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e
patrimoniais causados [...]”.
43
Lei n. 8.429/1992, art. 10.

24 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


atingem a pessoa jurídica lesada e a coletividade, não se está
instituindo uma verdadeira dicotomia entre os sujeitos passivos do
ilícito, mas, unicamente, individualizando uma parcela do dano
experimentado pelo verdadeiro titular do bem jurídico, o povo.
A segunda dificuldade é vislumbrada no mecanismo a ser
utilizado para a identificação do dano. Aqui, será necessário aquilatar
a natureza do bem imediatamente lesado pelo ímprobo, a natureza
dessa lesão e a dimensão do impacto causado na coletividade, o que
permitirá a aferição da comoção e do mal-estar passíveis de
individualizar um dano moral de proporções coletivas.
Em terceiro lugar, não se pode deixar de mencionar a
dificuldade em se mensurar o valor da indenização a ser fixada a
título de compensação pelo dano moral causado, o que, em
passado recente, chegou a ser erguido à categoria de óbice
intransponível à própria reparação do dano moral. Nessa última
etapa, entendemos que o valor da indenização deve ser suficiente
para desestimular novas práticas ilícitas e para possibilitar que o
Poder Público implemente atividades paralelas que possam
contornar o ilícito praticado e recompor a paz social (v.g.: o agente
público que determine a destruição de área de proteção ambiental
diuturnamente utilizada pela população local, além de ser
condenado a recompô-la, deve ser condenado a indenizar o dano
moral causado à coletividade, que se viu privada da utilização de
uma área de lazer, sendo o numerário direcionado à
implementação de atividades de natureza similar, como a criação
de um horto).
Acresça-se, ainda, que todos os membros da coletividade
têm o direito44 de exigir dos administradores públicos que atuem
com estrita observância ao princípio da juridicidade, o que pode
ser considerado um direito transindividual e indisponível, de
natureza eminentemente difusa, já que pulverizado entre todas as
pessoas. Essa concepção, no entanto, em que pese o fato de todos
auferirem os efeitos de uma boa administração, não deve ser
conduzida a extremos, culminando em identificar a ocorrência do

44
Esse direito é decorrência lógica das regras e dos princípios instituídos pelo
art. 37 da CR/1988 e da própria disciplina dispensada à ação popular pelo art.
5º, LXXIII, da CR/1988.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 25


dano moral sempre que for violado algum princípio administrativo
ou mesmo lesado o erário.
Por último, observa-se que a indenização do dano moral
causado à coletividade não deve reverter à pessoa jurídica lesada,
tal qual preceitua o art. 18 da Lei n. 8.429/1992 em relação aos
danos causados aos sujeitos passivos dos atos de improbidade.
Apesar da unidade do ato ilícito, os seus efeitos devem ser vistos de
forma bipartida, vale dizer, aqueles causados ao sujeito passivo do
ato de improbidade e aqueles causados à coletividade, aplicando-
se, em relação aos últimos, o disposto no art. 13 da Lei n.
7.347/1985 (“Havendo condenação em dinheiro, a indenização
pelo dano causado reverterá a um fundo [...]”).

Epílogo

A contenção da improbidade administrativa, enquanto ato


ilícito que desestabiliza as relações político-administrativas e
causa um evidente custo social, exige sejam envidados esforços no
sentido de se buscar a máxima efetividade da Lei n. 8.429/1992, o
que inclui o “ressarcimento integral do dano causado”. Na medida
em que o sujeito passivo do ato de improbidade, titular de direitos e
deveres por força de sua personalidade jurídica, pode sofrer um
dano não patrimonial que comprometa a sua imagem e reputação,
tem-se o surgimento, para o sujeito ativo, do dever de ressarci-lo.
Acresça-se que a unidade existencial do ato de improbidade
permite que, na mesma relação processual, seja igualmente
imposta a obrigação de ressarcir o dano não patrimonial causado à
coletividade.

Referências

ALEXY, R. Theorie der Grundrechte. Baden-Baden: Surhkamp


Taschenbuch Verlag, 1994.

BALAGUER CALLEJÓN, M. L. El derecho fundamental al honor.


Madrid: Editorial Tecnos, 1992.

26 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


BASSI, F. Lezioni di Diritto Amministrativo. 7. ed. Milano: A. Giuffrè
Editore, 2003.

CARRARA, F. Programa do curso de Direito Criminal. v. II. Trad. de


José Luiz V. de A. Franceschini. São Paulo: Edição Saraiva, 1957.

CORTESE, W. La responsabilità per danno all’immagine della pubblica


amministrazione. Padova: CEDAM, 2004.

COSSIO, M. de. Derecho al honor. Técnicas de protección y límites.


Valencia: Tirant lo Blanch, 1993.

DUMOND, É. Theorie des peines et des récompenses. Extraits des


Manuscrits de Jérémie Bentham. Bruxelas: Societé Belge de Librarie, 1840.

DWORKIN, R. Taking rights seriously. Massachussets: Harvard


University Press, 1999.

FAZZIO JÚNIOR, W. Improbidade administrativa e crimes de


Prefeitos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

FREITAS, J. Do princípio da Probidade Administrativa e de sua máxima


efetivação. Revista de Informação Legislativa, n. 129/55.

GARCIA, E. Conflito entre normas constitucionais. Esboço de uma


teoria geral. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

GARCÍA DE ENTERRÍA, E.; FERNÁNDEZ, T.-R. Curso de Derecho


Administrativo. v. I, 2. ed. Madrid: Civitas Edicionaes, 1977.

GOMES, J. J. Apontamentos sobre a Improbidade Administrativa. In:


______. Improbidade Administrativa. 10 anos da Lei n. 8.429/92. Belo
Horizonte: Editora Del Rey, 2002. p. 264-265.

KELSEN, H. Teoria geral do Direito e do Estado. Trad. de Luís Carlos


Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

KIRCHHOF, P. Der Staat als Garant und Gegner der Freiheit – Von
Privileg und Überfluss zu einer Kultur des Masses. München: Ferdinand
Schöningh, 2004.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 27


MATTOS NETO, A. J. de. “Responsabilidade civil por improbidade
administrativa”. Revista dos Tribunais n. 752/40, jun. 1998.

MIRANDA, J. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. Coimbra:


Coimbra Editora, 2003.

NIETO, A. Derecho Administrativo sancionador. 3. ed. Madrid:


Editorial Tecnos, 2002.

POTHIER, A. Oeuvres de pothier, traité des obligations. Tome Premier.


Paris: Chez L’Éditeur, 1821.

ROSADO IGLESIAS, G. La titularidad de derechos fundamentales por


la persona jurídica. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

SAVIGNY, M. F. C. de. Traité de Droit Romain. Tome Premier. Paris:


Firmin Didot Frères Libraires, 1840.

SOURDAT, M. A. Traité général de la responsabilité ou de l’action en


dommages-intérêts en dehors des contrats. Tome 1. 5. ed. Paris: Marchal
et Billard, 1902.

TOURINHO, R. A. R. A. Discricionariedade administrativa, ação de


improbidade & controle principiológico. Curitiba: Editora Juruá, 2004.

______. “O Estado como sujeito passivo de danos morais decorrentes de


ato de improbidade administrativa”. Revista Fórum Administrativo, p.
39, jan. 2002.

WALINE, M. Droit Administratif. 9. ed. Paris: Éditions Sirey, 1963.

ZAGREBELSKY, G. Manuale di Diritto Costituzionale. Volume Primo


- Il Sistema delle Fonti del Diritto. Torino: Unione Tipográfico-Editrice
Torinese, 1987.

28 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


A JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Carlos Roberto Jamil Cury* Luiz Antonio Miguel Ferreira**

Resumo:
O presente texto busca apresentar as relações que se firmam entre o
direito e a educação, com a consequente intervenção do Poder Judiciário,
do Ministério Público e do Conselho Tutelar no cotidiano escolar, e os
reflexos que apresenta essa relação.

Palavras-chave: Educação e Direito, educação e exigibilidade,


educação e justiciabilidade, Direito à educação e cidadania.

Introdução

A atual Constituição Federal de 1988 representou um


marco significativo no encaminhamento dos problemas relativos à
educação brasileira, posto que estabeleceu diretrizes, princípios e
normas que destacam a importância que o tema merece.
Reconheceu a educação como “um direito social e fundamental,
possibilitando o desenvolvimento de ações por todos aqueles
responsáveis pela sua concretização, ou seja, o Estado, família,
sociedade e a escola (educadores)”1, bem como a concebeu como
um direito público subjetivo, assim compreendido como a
faculdade de se exigir a prestação prometida pelo Estado2.

*
Professor Titular da UFMG (aposentado); Professor Adjunto da PUC Minas.
**
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em
educação pela UNESP. Autor do livro O Estatuto da Criança e do Adolescente
e o Professor: reflexos na sua formação e atuação. (Cortez, 2008).
1
FERREIRA, L. A. M. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o professor:
reflexos na sua formação e atuação. São Paulo: Cortez, 2008. p. 37.
2
E “se há um direito público subjetivo à educação, o Estado pode e tem de
entregar a prestação educacional” (José Cretella Júnior apud MUNIZ, R. M. F.
O direito à Educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 99).

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 29


Na verdade, estabeleceu uma verdadeira declaração de direitos
relativos à educação que, segundo Oliveira3, resumem-se em:

?
gratuidade do ensino oficial em todos os níveis;
?
garantia do direito aos que não se escolarizaram na idade ideal;
?
perspectiva da obrigatoriedade do ensino médio, substituída pela
perspectiva de sua universalização com a EC. 14;
?
atendimento especializado aos portadores de deficiência;
?
atendimento, em creche e pré-escola, às crianças de até cinco anos de
idade (redação de acordo com a Emenda Constitucional n. 53/06);
?
oferta do ensino noturno regular;
?
previsão dos programas suplementares de material didático-escolar;
?
prioridade de atendimento à criança e ao adolescente.

Essa versão legal do direito à educação, dentro desse


conjunto, não se mostrava presente nas constituições passadas e,
por consequência, no ordenamento jurídico vigente. Até então,
tínhamos boas intenções e proteção limitada com relação à
educação, mas não uma proteção legal, ampliada e com
instrumentos jurídicos adequados à sua efetivação. Basta analisar
o que afirma Konzen4 a respeito do assunto:

Até a vigência da atual Constituição Federal, a


educação, no Brasil, era havida, genericamente,
como uma necessidade e um importante fator de
mudança social, subordinada, entretanto, e em
muito, às injunções e aos acontecimentos políticos,
econômicos, históricos e culturais. A normatividade
de então limitava-se, como fazia expressamente na
Constituição Federal de 1967, com a redação que lhe
deu a Emenda Constitucional n. 01, de 17 de outubro
de 1969, ao afirmar da educação como um direito de

3
OLIVEIRA, R. P. de. A educação na Assembléia Constituinte de 1946. In:
FÁVERO, O. (Org.). A educação nas constituintes brasileiras – 1823-1988. 2.
ed. Campinas: Autores Associados, 2001. p. 41.
4
KONZEN, A. A. O direito a educação escolar. In: BRANCHER, L. N.;
RODRIGUES, M. M.; VIEIRA, A. G. (Orgs.). O direito é aprender. Brasília:
FUNDESCOLA/MEC, 1999. p. 659.

30 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


todos e dever do Estado, com a conseqüente
obrigatoriedade do ensino dos 7 aos 14 anos e a
gratuidade nos estabelecimentos oficiais,
restringindo-se, quanto ao restante, inclusive na
legislação ordinária, a dispor sobre a organização
dos sistemas de ensino. Em outras palavras, a
educação, ainda que afirmada como um direito
de todos, não possuía, sob o enfoque jurídico e em
qualquer de seus aspectos, excetuada a
obrigatoriedade da matrícula, qualquer
instrumento de exigibilidade, fenômeno de
afirmação de determinado valor como direito
suscetível de gerar efeitos práticos e concretos no
contexto pessoal dos destinatários da norma.

Assim, a partir da atual Constituição e das leis que se


seguiram, a educação passou a ser efetivamente regulamentada,
com instrumental jurídico necessário para dar ação concreta ao que
foi estabelecido, pois de nada adiantaria prever regras jurídicas
com relação à educação (com boas intenções) se não fossem
previstos meios para a sua efetividade.
Dessa forma, a partir de 1988, o Poder Judiciário passou a
ter funções mais significativas na efetivação desse direito.
Inaugurou-se, no Poder Judiciário, uma nova relação com a
educação, que se materializou através de ações judiciais visando a
sua garantia e efetividade. Pode-se designar este fenômeno como a
judicialização da educação, que significa a intervenção do Poder
Judiciário nas questões educacionais em vista da proteção desse
direito até mesmo para se cumprir as funções constitucionais do
Ministério Público e outras instituições legitimadas.
Essa nova relação foi bem analisada, por exemplo, no
artigo denominado “A judicialização das relações escolares e a
responsabilidade civil dos educadores”, de autoria de Álvaro
Chrispino e Raquel S. P. Chrispino5, no qual o tema educação e
direito voltou a ser debatido.

5
CHRISPINO, Á.; CHRISPINO, R. S. P. A Judicialização das relações
escolares e a responsabilidade civil dos educadores. Ensaio: Avaliação e
políticas públicas em educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 58, jan./mar. 2008.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0104-403620080001
00002&script=sci_arttext&tlng=pt.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 31


Como destacado no texto, os autores caracterizaram “a
judicialização das relações escolares como aquela ação da Justiça no
universo da escola e das relações escolares, resultando em
condenações das mais variadas”, destacando que os profissionais da
educação não estão sabendo lidar com todas as variáveis que
caracterizam as relações escolares. Fundamentaram o texto no
Código Civil, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código
de Defesa do Consumidor para destacar a responsabilidade civil dos
educadores, apresentando várias decisões da Justiça brasileira sobre
ações envolvendo as escolas. Destacam, por fim, a necessidade de se
firmar um novo pacto entre os atores educacionais (professores,
gestores e comunidade), a fim de preparar os educadores para que
possam dar direção e tomar decisões sobre o universo escolar.
Os autores apontam a responsabilidade objetiva (dano e
relação de causalidade, sem a necessidade de demonstração de culpa)
dos estabelecimentos de ensino (públicos ou privados) nas relações
escolares, como, por exemplo, na obrigação de guarda e vigilância do
aluno, acidentes que ocorrem em laboratório de química ou na aula de
educação física, e outras hipóteses, citando várias decisões a respeito.
Não obstante o citado artigo revelar, com muita
propriedade, uma face da judicialização das relações que se
firmam com a escola e os educadores, ou seja, a responsabilidade
civil, não há como negar que outras relações também se verificam
e acabam por colocar a educação sob atribuições do poder
judiciário. Este estudo busca apresentar essas outras situações.
Isso porque, como já afirmado, a partir da Constituição
Federal de 1988, com o efetivo reconhecimento da educação como
direito social e direito público subjetivo e da judicialização destes
direitos (saúde, educação, proteção à maternidade e a infância,
trabalho, segurança, lazer, moradia), cada vez mais o poder
judiciário está sendo chamado a dirimir questões das mais variadas
e que antes não eram levadas ao seu conhecimento.
De sorte que, além da responsabilidade civil da escola e dos
educadores, outras demandas surgiram envolvendo esses atores. A
consolidação dos direitos sociais apresentou como reflexo uma
nova faceta, que não tem precedente na história do direito: uma
relação direta entre a justiça e a educação. Como a mesma ocorre?
É o que se passa a demonstrar.

32 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Justiça e educação

A educação está regulamentada por meio do capítulo de


educação na Constituição Federal de 1988, e por meio de leis como
a do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394/96), o
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e Valorização do Magistério – FUNDEF, agora
substituído pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e da Valorização dos Profissionais da Educação –
FUNDEB, o Plano Nacional de Educação, e inúmeros decretos e
resoluções que direcionam toda a atividade educacional, com
reflexos diretos para os estabelecimentos escolares e os sistemas
de ensino onde estão presentes responsáveis pelo ensino como
diretores, coordenadores pedagógicos, supervisores, professores,
os próprios alunos e dirigentes de ensino, seja dos órgãos
executivos, seja dos órgãos normativos.
Essa legislação, em síntese, regulamentou a educação
como um direito de todos e um dever do Estado e da família,
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. Buscou
a universalização do ensino público (em especial, do ensino
fundamental, dado seu caráter obrigatório), garantindo escola para
todos, inclusive àqueles que não tiveram acesso na idade própria,
ou seja, uma educação para todos, criando mecanismos para a sua
garantia.
Não há como negar uma relação especial entre o direito (a
lei) e a educação e a necessidade de seu conhecimento para o pleno
desenvolvimento de suas atividades, apesar do desconhecimento
de aspectos específicos da parte de muitos educadores, o que pode
gerar posturas de resistência a essa novidade.
Com esse paradigma, novas situações surgiram,
envolvendo a escola e outros atores que até então não participavam
diretamente da questão educacional a não ser esporadicamente.
Com efeito, como a universalização e obrigatoriedade do ensino
(fundamental) implicam em colocar todas as crianças na escola, ou
seja, todas as crianças com suas características pessoais, o sistema
educacional passou a conviver com uma maior grandeza de
diversidade sociocultural, em que as crianças adentram pela escola

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 33


com peculiaridades próprias. Tal situação faz aparecer as pessoas e
suas individualidades, rompendo com um imaginário
homogeneizante.
Não que tal realidade relativa às peculiaridades não
existisse, mas como a educação era elitista e seletiva, a grandeza
numérica, associada a um perfil sociocultural mais homogêneo,
não ganhava tanta expressão. Por exemplo, em 1950, de acordo
com o IBGE, pouco mais de 17% possuía o grau primário
completo, o que impunha sérios obstáculos à democratização do
ensino para todos6.
Por outro lado, a atual legislação também acabou por
estabelecer um sistema de garantia dos direitos da criança e do
adolescente (entre eles o direito à educação) envolvendo o Poder
Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a
Segurança Pública, o Conselho de Direitos da Criança e do
Adolescente e o Conselho Tutelar. Essas instituições, chamadas a
operar na área educacional e da infância e da juventude, também
não se apresentavam devidamente preparadas para tal desafio, até
porque, os conselhos de direitos e conselhos tutelares foram
criados nessa oportunidade, ou seja, inexistiam antes da vigência
do Estatuto da Criança e do Adolescente. O Poder Judiciário e o
Ministério Público desempenhavam outras atividades na área
menorista, pouco voltada à questão educacional. A entrada da LDB
e das leis reguladoras do FUNDEF e do FUNDEB criaram os
Conselhos de Acompanhamento e Controle dos Recursos que
devem ser aplicados na educação escolar.
Soma-se a essa situação o reconhecimento, na Constituição
Federal, da educação como o primeiro dos direitos sociais. Assim,
foi estabelecido: “Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde,
6
Nesse sentido, afirma Esteves (ESTEVES, J. M. Mudanças sociais e função
docente. In: NOVOA, A. (Org.). Profissão professor. 3. ed. Portugal: Porto
Celina, 1995. p. 96): A passagem de um sistema de ensino de elite para um
sistema de ensino de massas implica um aumento quantitativo de professores e
alunos, mas também o aparecimento de novos problemas qualitativos, que
exigem uma reflexão profunda. Ensinar hoje é diferente do que era há vinte
anos atrás. Fundamentalmente, porque não tem a mesma dificuldade
trabalhar com um grupo de crianças homogeneizadas pela seleção ou
enquadrar a cem por cento as crianças de um país, com os cem por cento de
problemas sociais que essas crianças levam consigo.

34 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição” (grifos nossos).
Esse reconhecimento implica na obrigação do Poder
Público de garantir a educação visando a igualdade das pessoas e,
por outro lado, garante ao interessado o poder de buscar no
Judiciário a sua concretização.
A Constituição de 1988 foi além, estabelecendo, em capítulo
próprio, várias disposições relacionadas ao direito à educação e
apontando ao Estado algumas obrigações como, por exemplo:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do


Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho.
Art. 208. O dever do Estado com a educação será
efetivado mediante a garantia de:
I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito,
assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos
os que a ele não tiveram acesso na idade própria;
II - progressiva universalização do ensino médio
gratuito;
III - atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência, preferencialmente na
rede regular de ensino;
IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às
crianças até 5 (cinco) anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da
pesquisa e da criação artística, segundo a
capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às
condições do educando;
VII - atendimento ao educando, no ensino
fundamental, através de programas suplementares
de material didático-escolar, transporte,
alimentação e assistência à saúde.
§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é
direito público subjetivo.
§ 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório
pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa
responsabilidade da autoridade competente.
§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 35


educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a
chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis,
pela freqüência à escola.

Em face desses dispositivos, com eficácia plena, fica


evidente que se o Poder Público, como Poder Executivo, não
cumpre com a sua obrigação, poderá o interessado acionar o Poder
Judiciário visando a sua responsabilização.
Nesse sentido, afirma Muniz7 que

as normas constitucionais que disciplinam o


direito à educação, ora vista como integrante do
direito à vida, ora como direito social, hão de ser
entendidas como de eficácia plena e aplicabilidade
imediata, produzindo efeitos jurídicos, onde todos
são investidos no direito subjetivo público, com o
efetivo exercício e gozo indispensáveis para o
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho.

Resulta dessa situação uma relação direta envolvendo o


direito e a educação, sendo que a justiça passou a ser chamada
amiúde a solucionar conflitos no âmbito escolar que extrapolam a
questão da responsabilidade civil8, ou seja, se antes se
contemplava, na esfera do judiciário, ações de indenizações ou
reparação de danos envolvendo o sistema educacional, ou
mandados de segurança para garantia de atribuições de aulas a
professores, hoje a realidade é bem diversa e várias são as
situações em que se provoca o judiciário com questões
educacionais. A efetividade do direito à educação prevista no
Constituição Federal, a ocorrência de atos infracionais ocorridos
no ambiente escolar e a garantia da educação de qualidade
passaram a ser objeto de questionamento judicial.

7
MUNIZ, R. M. F. O direito à Educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 122.
8
E até mesmo a responsabilidade penal, posto que poucas são as informações
que mostram a aplicação do art. 246 do Código Penal, que estabelece o crime
de abandono intelectual, prevendo: Art. 246 – Deixar sem justa causa de
prover à instrução primária de filho em idade escolar – Pena: Detenção de
quinze dias a um mês e multa.

36 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


A educação e a proteção judicial à educação

Do que foi exposto, pode-se resumir que a garantia do direito


à educação, sob o enfoque legal, ocorre nos seguintes tópicos:

?
Universalização do acesso e da permanência da criança e do
adolescente;
?
Gratuidade e obrigatoriedade do ensino fundamental;
?
Atendimento especializado aos portadores de deficiência;
?
Atendimento em creche e pré-escola às crianças de 0 a 5 anos de
idade;
?
Oferta de ensino noturno regular e adequado às condições do
adolescente trabalhador;
?
Atendimento no ensino fundamental por meio de programas
suplementares de material didático-escolar, transporte,
alimentação e assistência à saúde;
?
Direito de ser respeitado pelos educadores;
?
Direito de contestar os critérios avaliativos, podendo recorrer às
instâncias escolares superiores;
?
Direito de organização e participação em entidades estudantis;
?
Acesso à escola próximo da residência;
?
Ciência dos pais e ou responsáveis do processo pedagógico e
participação na definição da proposta educacional;
?
Pleno desenvolvimento do educando;
?
Preparo para o exercício da cidadania e para o trabalho;
?
Qualidade da educação;

Quando um destes direitos relacionados à educação não for


devidamente satisfeito pelos responsáveis públicos ou, quando for
o caso, privados, gera aos interessados a possibilidade do
questionamento judicial. Daí o surgimento da judicialização da
educação, que ocorre quando aspectos relacionados ao direito à
educação passam a ser objeto de análise e julgamento pelo Poder
Judiciário. Em outros termos, a “educação, condição para a
formação do homem é tarefa fundamental do Estado, é um dos
deveres primordiais, sendo que, se não o cumprir, ou o fizer de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 37


maneira ilícita, pode ser responsabilizado” 9 . Essa
responsabilização com a intervenção do Poder Judiciário
consolida o processo de judicialização da educação.
Esse fenômeno se verifica em face da ocorrência de fatores
que impliquem na ofensa a esse direito, decorrentes de:

a) Mudanças no panorama legislativo;


b) Reordenamento das instituições judicial e escolar;
c) Posicionamento ativo da comunidade na busca pela
consolidação dos direitos sociais.

A nova legislação, que reconhece a criança e o adolescente


como sujeitos de direitos; a educação como direito social e público
subjetivo; que garante a busca pelos interessados da efetividade e
consolidação desse direito; a acessibilidade da Justiça, com
mudança de paradigma em relação a questões como educação,
saúde, criança e adolescente; o surgimento da intervenção de
outras instituições como Conselho Tutelar e Ministério Público,
apresentam-se como fatores determinantes desse novo fenômeno:
a judicialização da educação.
Como afirmado, o paradigma atual é o da educação para
todos. Os índices de escolaridade aumentaram significativamente,
demonstrando que após o novo comando constitucional está
ocorrendo a efetiva matrícula das crianças no ensino obrigatório,
cumprindo-se a determinação legal. Diante dessa nova realidade e
dos conflitos e problemas oriundos dessa relação, fica evidente que
a intervenção judicial não mais se limita a questões como a da
responsabilidade civil dos educadores ou criminal dos pais ou
responsáveis. Novos questionamentos relacionados à educação
são levados diariamente ao Poder Judiciário, que passou a ter uma
relação mais direta, com uma visão mais social e técnica dos
problemas afetos à educação.
Decorre dessa nova realidade o chamamento do Poder
Judiciário por parte do próprio interessado (aluno e/ou
responsável), Ministério Público, Defensores Públicos ou
Conselho Tutelar, com inúmeras hipóteses de judicialização das

9
MUNIZ, op. cit., p. 211.

38 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


relações educacionais10. Para além da garantia de acesso ao ensino
público de qualidade, são exemplos de situações que envolvem o
Poder Judiciário e a educação, entre outras11:

a. Merenda escolar: a Constituição Federal (art. 208, VII), o


Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 54, VII), a LDB (art.
4.º, VIII) e a meta 18 do capítulo do ensino fundamental do
Plano Nacional de Educação estabelecem a necessidade de
atendimento ao educando, no ensino fundamental, de programa
suplementar de alimentação. Assim, o fornecimento e a
qualidade da alimentação passaram a ser objeto de análise
judicial, como se observa das seguintes ementas:

Ação Civil Pública proposta pelo Ministério


Público Federal em face do Município de Sapé –
PB e FNDE – Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação. A ação tramita
perante o Tribunal Regional Federal da Paraíba –
Seção judiciária – 2007.82.00.008137-5. Consta
como pedido da ação civil pública: a) a
regularização do fornecimento da merenda
escolar, conforme o cardápio elaborado, sem
deixar faltar um item sequer para a elaboração dos
alimentos, inclusive os envolvidos na preparação
(açúcar, óleo, gás de cozinha, água filtrada, etc.),
promovendo a adequação do programa a todas as
exigências previstas na lei e no regulamento; b)
providencie a adequação das condições de
transporte de alimentos perecíveis às escolas
situadas fora do núcleo urbano, disponibilizando
para tanto acondicionamento adequado por meio
de freezers, etc. c) providencie a adequação das
condições das escolas para a conservação e
armazenamento dos gêneros alimentícios,
disponibilizando água encanada, filtros,

10
Podem-se obter mais informações a respeito dessas instituições através dos
sites: www.tj.sp.gov.br, www.mp.sp.gov.br, www.mj.gov.br/defensoria,
www.stj.gov.br.
11
Nos tópicos seguintes são citadas ementas (súmulas - resumos) de decisões
dos Tribunais, bem como de ações promovidas pelo Ministério Público (ação
civil pública ou inquéritos civis) relacionadas à educação.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 39


geladeiras, armários, e tudo o mais necessário
conforme as normas de correta manipulação de

40 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Responsabilidade e dever do estado. Obrigação de
fazer. Descumprimento. Multa. Cabimento. Prazo
e valor da multa. Necessidade de apreciação do
conjunto probatório.16

c. Falta de professores: a falta de professores prejudica o pleno


desenvolvimento do educando, regra básica prevista na
Constituição Federal (art. 205), Estatuto da Criança e do
Adolescente (art. 53) e LDB (art. 2, 12 e 13). Por outro lado, a
LDB estabelece toda uma política de organização educacional
(arts. 10 a 13) e normas relativas aos profissionais da educação
(art. 67) que, uma vez desrespeitadas, enseja medida judicial,
como a ação a seguir mencionada:

Ação Civil Pública proposta pelo Ministério


Público do Estado do Amapá objetivando que o
Estado do Amapá imediatamente lote professores
em todas as disciplinas ministradas nas seguintes
escolas da rede estadual sediadas na Cidade de
Calçoene: Professor Sílvio Elito da Lima Santos,
Amaro Brasilino de F. Filho e Lobo Dálmada,
fixando multa diária a ser paga pessoalmente pelo
senhor secretário de Estado da Educação, no caso
do não-cumprimento da obrigação, conforme
previsto no art. 213, § 2º, do ECA.

É certo que essa questão é extremamente complexa, posto que


nem sempre a decisão judicial encontra efetividade, uma vez
que em muitos situações não existem professores habilitados
ou interessados nas vagas abertas. A intervenção judicial, nesse
caso, somente encontrará resultado desde que ocorra demanda
para as vagas existentes.
12
Apelação cível n. 59.494-0/0 - Comarca de Ituverava - TJSP - Relator Des.
Nigro Conceição - j. 09/11/00.
13
Apelação com revisão 5383415200 - Relator(a): Paulo Dimas Mascaretti -
Comarca: Igarapava - Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Público - Data do
julgamento: 16/07/2008 - Data de registro: 22/07/2008.
14
Apelação cível n. 241.185-5/0-00. Apelantes: Prefeitura Municipal de
Teodoro Sampaio e Fazenda Pública Estadual - Apelado: Ministério Público.
15
Apelação cível n. 110.690-0/5-00, da comarca de São Paulo. Apelante:
Municipalidade de São Paulo. Apelado: Promotor de Justiça da Vara da
Infância e da Juventude do Foro Regional de Santana.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 41


d. Condições para o desenvolvimento do aluno com deficiência: o
atendimento educacional especializado ao aluno com
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino (CF,
art. 208, III, ECA, art. 54, III, e LDB, art. 4º, III) provocou
medidas judiciais para a garantia desse direito, conforme se
observa a seguir:
APELAÇÃO CÍVEL - Ação civil pública com
pedido de tutela antecipada. Criança portadora de
paralisia cerebral infantil aliada a retardo mental.
Liminar deferida. Procedência da ação sob pena de
multa diária, condenando o apelante a inserir a
criança em unidade de educação infantil.17

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Fornecimento de


tratamento a portadores de síndrome de autismo -
Educação especializada - Art. 5º CF - Norma
constitucional de proteção à saúde pública -
Controle jurisdicional dos atos discricionários -
Garantia de direito à saúde pública - Recurso não
provido.18

APELAÇÃO CÍVEL - Mandado de Segurança


com pedido de Liminar - Portadora de Deficiência
Física - Direito a ensino especializado -
Legalidade - Dever do Município - Inteligência dos
Artigos 208, I e III da CF; 227 “Caput” da CE; e da
Lei 7853/89 - Sentença Mantida - Recursos oficial
e voluntário do Secretário da Fazenda Municipal
de Araçatuba Improvidos.19

Ensino Especializado Criança com retardo no


desenvolvimento neuropsicomotor, atraso na fala e
epilepsia. Inexistência de escola especializada na
rede pública. Necessidade de garantir plena
efetividade ao direito à educação - Inteligência do
artigo 208 da CF, artigo 249, § 1°t da CE, Lei n° 8
069/1990 (ECA), Leis Federais n° 7.853/1989 e
9.394/1996 - Segurança concedida para determinar
a matrícula do impetrante em instituição particular

16
AgRg no Ag 646.240/RS, Rel. Ministro José Delgado, 1ª turma, julgado em
05/05/2005, DJ 13.06.2005, p. 178.

42 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


de ensino especializado - Recurso voluntário e
reexame necessário não providos.20

e. Adequação do prédio escolar: O atendimento ao aluno com


deficiência requer a adequação da unidade escolar. Essa regra
está prevista na Constituição Federal (art. 227, § 2º e 244) e em
leis específicas como a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989
(art. 2º, parágrafo único), o Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro
de 1999 (art. 24 e 46) e a Lei n. 10.098, de 19 de dezembro de
2000 (art. 11, 12 e 21), que estabeleceu normas para a promoção
da acessibilidade das pessoas com deficiência mediante a
supressão de barreiras e obstáculos.
O Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei n.
10.172/2001, estabeleceu como um dos objetivos e metas da
educação básica a acessibilidade das escolas, com a adaptação
para o atendimento do aluno com deficiência. Assim, várias são
as ações visando dar cumprimento a essa previsão legal.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Obrigação de Fazer –


Interesse difuso – Adaptação de prédio de escola
pública para portadores de deficiência física –
Obrigação prevista nos artigos 127, par. 2º e 244 da
CF, artigo 280 da CE – Legitimidade ativa do
Ministério Público – Lei Federal nº 7853/89 –
Inexistência de violação do princípio da violação
da separação dos Poderes – Multa diária para o
caso de descumprimento da obrigação –
Inexistência de ilegalidade – Artigo 644 do CPC –
Recurso provido para julgar a ação procedente.21

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Objetivo – Facilitação


do acesso de deficientes físicos em escola
pública estadual – Obrigação de fazer por parte
do Estado – Exegese dos artigos 227, parágrafos

17
Apelação cível n. 149.237-0/9-00 - São Paulo - TJSP - Câmara Especial - voto
n. 3.636.
18
Apelação cível n. 564.314.5/5-00-00 - Comarca de São Paulo. Apelante: Juízo
ex officio. Apelado: Victor Martucelli (menor representado por genitora).
19
Apelação cível n. 279.484-5/7-00. Comarca: Araçatuba. Apelante: Secretário
Municipal da Fazenda de Araçatuba e Outro. Recorrente: Juízo ex-officio.
Apelada: Maria Luiza Domingues Cardoso (menor representada por sua mãe).

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 43


2º e 244 da Constituição da República e das Leis
Estaduais nºs. 5500/86 e 9086/95 – Recurso
provido.22

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Deficiente físico –


Acesso as salas de aula em escola pública
dificultado por escadas – Obrigação de fazer
consistente na realização de obras para as
devidas adaptações do prédio – Admissibilidade
– Direito de livre circulação em imóvel de uso
comum assegurado na Constituição Federal de
1988, sobretudo a escola pública, que deve facilitar
o quanto se pode o acesso ao ensino – Norma cuja
aplicabilidade não pode ser condicionada à edição
de lei estadual, que, passados dezesseis anos da
Constituição Federal, não foi providenciada,
constituindo reprovável conduta que fere
princípios éticos e ostenta flagrante
inconstitucionalidade por omissão – Ação
procedente – Recursos improvidos.23

f. Vaga em creche e pré-escola: existem ainda as hipóteses em que


não se garantiu o oferecimento adequado de educação para
todos, em especial para creche e pré-escola às crianças de 0 a 5
anos de idade24, gerando também a intervenção judicial:
CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE.
ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-
ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO
ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO
CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV).
COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO
CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER
JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO
PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO
MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). RECURSO
EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E
IMPROVIDO.

20
Apelação n. 752.718.5/4-00 - Comarca: Campinas (Paulinia). Apte: Prefeitura
Municipal de Paulinea. Apdos: Paulo Eduardo Rodrigues da Silva (rep. p/
genitora) e outro.
21
Apelação cível n. 231.136-5/9-00, da Comarca de Ribeirão Preto. Apelante:
Ministério Público. Apelada: Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto.

44 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


- A educação infantil representa prerrogativa
constitucional indisponível, que, deferida às
crianças, a estas assegura, para efeito de seu
desenvolvimento integral, e como primeira etapa
do processo de educação básica, o atendimento em
creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV).

- Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe,


ao Estado, por efeito da alta significação social de que
se reveste a educação infantil, a obrigação
constitucional de criar condições objetivas que
possibilitem, de maneira concreta, em favor das
“crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208,
IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e
unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se
inaceitável omissão governamental, apta a frustrar,
injustamente, por inércia, o integral adimplemento,
pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs
o próprio texto da Constituição Federal.

- A educação infantil, por qualificar-se como


direito fundamental de toda criança, não se expõe,
em seu processo de concretização, a avaliações
meramente discricionárias da Administração
Pública, nem se subordina a razões de puro
pragmatismo governamental.

- Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no


ensino fundamental e na educação infantil (CF, art.
211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato
constitucional, juridicamente vinculante, que lhes
foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental
da República, e que representa fator de limitação
da discricionariedade político-administrativa dos
entes municipais, cujas opções, tratando-se do

22
Apelação cível n. 244.235-5/0-00, da comarca de Ribeirão Preto. Apelante:
Ministério Público. Apelado: Fazenda Pública Estadual.
23
Apelação cível n. 275.964-5/9-00, da comarca de Ribeirão Preto. Apelante:
Fazenda Pública Estadual. Apelado: Ministério Público.
24
Várias decisões referem-se à pré-escola para crianças até 6 anos de idade. Contudo,
a alteração da Constituição Federal promovida pela Emenda Constitucional n. 53,
de 2006 ao artigo 208, IV, estabeleceu como dever do estado a educação infantil, em
creche e pré-escola, às crianças até 5 anos de idade.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 45


atendimento das crianças em creche (CF, art. 208,
IV), não podem ser exercidas de modo a
comprometer, com apoio em juízo de simples
conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia
desse direito básico de índole social.

- Embora inquestionável que resida,


primariamente, nos Poderes Legislativo e
Executivo, a prerrogativa de formular e executar
políticas públicas, revela-se possível, no entanto,
ao Poder Judiciário, ainda que em bases
excepcionais, determinar, especialmente nas
hipóteses de políticas públicas definidas pela
própria Constituição, sejam estas implementadas,
sempre que os órgãos estatais competentes, por
descumprirem os encargos político-jurídicos que
sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem
a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a
integridade de direitos sociais e culturais
impregnados de estatura constitucional. A questão
pertinente à “reserva do possível”.25

MENOR - Mandado de Segurança - Creche


municipal - Garantia de vaga à criança -
Requisitos ensejadores presentes - Recurso
oficial improvido.26

EDUCAÇÃO - Mandado de segurança visando


matrícula de menor impúbere em creche -
Alegação da municipalidade de insuficiência de
vagas para atender à demanda - fato que não
exime a administração de cumprir sua
obrigação não podendo se beneficiar da própria
omissão - Segurança concedida - Recursos
Improvidos.27

MANDADO DE SEGURANÇA - Direito das


crianças à creche - Garantia
constitucionalmente prevista -
Responsabilidade prioritária do Município pelo
atendimento da educação infantil - Imposição
de obrigação de fazer ao Município como
decorrência da própria atividade jurisdicional -
Violação do princípio da Independência dos
Poderes não configurada - Recursos improvidos.28

46 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


MENOR - Apelação - Ação civil pública para
compelir o Município à abertura de matrículas na
rede de ensino infantil a todas as crianças de zero a
seis anos de idade, sem exceção - Legitimidade do
Ministério Público reconhecida - Dever estatal
com a educação - Competência municipal para o
atendimento em creches e pré-escolas das crianças
de zero a seis anos - Necessidade que se equivale à
obrigatoriedade - Sentença de procedência
mantida - Recurso improvido.29

g. Outras hipóteses: a intervenção judicial nas questões


educacionais ocorre da forma mais diversa possível e em
relação a temas variados. Tendo sempre como fundamento a
Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, os Pareceres
e Resoluções dos Conselhos de Educação e portarias, as
decisões a seguir, refletem a relação estabelecida entre a Justiça
e a Educação e os inúmeros temas que são levados a
julgamento.

Transferência compulsória do aluno:


APELAÇÃO CÍVEL - Mandado de Segurança -
Ensino - Transferência compulsória de aluno -
Não obediência ao due process of law -
Descabimento da medida - Concessão da
segurança. Recurso provido.30

MANDADO DE SEGURANÇA - Transferência


compulsória de aluno - Necessidade de
preservação do direito de defesa no processo

25
Recurso extraordinário 541.281-4 São Paulo- relator: min. Celso de Mello -
recorrente: município de São Paulo - advogado: Luiz Henrique Marquez -
recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo.
26
Apelação Cível 1641620600 - Relator: Eduardo Pereira - Comarca: F.D.
Paulínia/Campinas. Órgão julgador: Câmara Especial - Data do julgamento:
30/06/2008 - Data de registro: 17/07/2008.
27
Apelação com revisão 7356475500 - Relator: Luiz Burza Neto - Comarca: São
José do Rio Preto. Órgão julgador: 12ª Câmara de Direito Público. Data do
julgamento: 25/06/2008 . Data de registro: 14/07/2008.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 47


administrativo - Recurso improvido.31

Problemas disciplinares:

ENSINO ESTADUAL - Freqüência do aluno ao


estabelecimento em que se encontra matriculado -
Questões disciplinares ensejaram transferência
de escola - Inexistência de direito líquido e certo -
Ordem denegada - Recurso desprovido.32

MANDADO DE SEGURANÇA. Suspensão do


direito da utilização de serviço público gratuito,
por motivo disciplinar. Observância do devido
processo legal e direito de defesa. Não desatende ao
devido processo legal e não exclui o direito de
defesa, a suspensão do beneficio (transporte escolar
gratuito) por motivo de indisciplina, se precedida da
devida notificação ao responsável que, não obstante,
não adotou nenhuma providência corretiva -
Segurança mal concedida. Recurso oficial provido
para denegar a segurança.33

Criação de cursos:
Ação Civil Pública. Criação de vagas em curso
de ensino médio - Princípio da Inafastabilidade da
jurisdição. Ingerência do Judiciário na
Administração Pública inocorrente. Possibilidade/
necessidade para garantia de direito constitucional.
Repercussão orçamentária que não afasta a
imposição constitucional. Obrigação de fazer
regularmente imposta por preceito
constitucional.34

28
Apelação cível 1639550800 - Relator: Viana Santos. Comarca: Campinas.
Órgão julgador: Câmara Especial. Data do julgamento: 23/06/2008. Data de
registro: 04/07/2008.
29
Apelação n. 63.969.0/2-00. Recorrente: Município de Assis. Recorrido:
Promotor de Justiça da Vara da Infância e Juventude de Assis.
30
Apelação cível n. 252 557 5/3-00 - Votuporanga - Apelante Valdonir da Silva -
Apelado Diretor da Escola Estadual Cecília Meireles e Conselho da Escola
Estadual Cecília Meireles.

48 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Fechamento de salas de aula:

Mandado de Segurança - Autoridade de Ensino


não pode suprimir salas de aulas, com
fundamento na Resolução n. 97/2004 e Resolução
SE n. 125/98, as quais violam o disposto nos
artigos 208 e seus incisos e 227, “caput” todos da
Constituição Federal. As referidas Resoluções
apenas determinam que a matrícula do aluno
deverá respeitar o turno de seu trabalho, inclusive
dos que comprovarem ser aprendizes, na forma do
Estatuto da Criança e do Adolescente. Desta forma,
o ato da autoridade impetrada que implicou em
retrocesso social, fato expressamente vedado pelos
artigos 208 e seus incisos e 227 “caput” todos da
Constituição Federal violou direito líquido e certo
dos alunos.35

Cancelamento de matrículas:

Ação Civil Pública – Determinação da


Secretaria de Educação que cancelava a
matrícula de crianças e adolescentes que não
comparecessem nos primeiros dez dias do ano
letivo. Manifesta ilegalidade. Determinar o
cancelamento da matrícula de crianças e
adolescentes em razão de falta escolares, ainda que
injustificadas, viola o direito de acesso à
educação.36

Mandado de Segurança – Ensino. Anulação de ato


administrativo. Indeferimento de matrícula em
curso de língua estrangeira, ministrado pelo
Centro de Estudos de Línguas, da Secretaria

31
Apel. n. 148.524-5/0. Comarca: Garça. Apte: Juízo Ex-Officio. Apelado:
Marcus Vinícius Marques Ogeda - menor representado por sua mãe Ana Luiza
César Marques Cavalcante.
32
AC n. 382.260.5/1-00 - Serra Negra - 2a Vara Cível - Voto n. 13.715 - Apte.
Juliano Matrandrea de Barros Silveira (AJ). Apd°. Diretora da Escola Estadual
Jovino Silveira.
33
Apelação cível n. 115.743.5/2-00, da Comarca de Palestina, em que é
recorrente o Juízo. Ex Officio e recorrida Ana Rosa Araújo Gavião Silva.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 49


Estadual da Educação, com fundamento na
Resolução n. 6, de 22/01/2003, que estabeleceu
como beneficiários do curso de línguas somente
aqueles alunos matriculados na rede pública de
ensino. Alegação de incompatibilidade
superveniente do impetrante com o programa CEL
diante do fato de não mais estar matriculado na
rede pública de ensino. Inadmissibilidade. Aluno
carente que foi contemplado com bolsa de estudos
em escola da rede particular para o ensino médio.
Hipossuficiência não afastada. Ofensa aos
dispositivos constitucionais que garantem o acesso
integral à educação. Segurança concedida.
Decisão Mantida.37

Licença gestante:

Mandado de Segurança - Adolescente - Estudante


- Licença gestante com prazo de 120 dias - Dirigente
Regional de Ensino que concedeu afastamento de
apenas 90 dias, fundado na Lei n. 6.202/75. - Prazo
de 120 dias previsto no artigo 7º, inciso XVIII, da
CF. Prevalência da norma constitucional. Ordem
concedida. Sentença mantida.38

Progressão continuada:

Ação Civil Pública proposta pelo Ministério


Público do Estado de São Paulo - Comarca de
Várzea Paulista objetivando que o Estado e o
Município passem a adotar o sistema de avaliação
dos alunos do ensino fundamental, exigindo a
comprovação, em média anual, de absorção de
pelo menos 50% do conteúdo ministrado, por
matéria, fixando multa diária no caso do não-

34
Tribunal de Justiça de São Paulo - Apelação Cível n. 335.913.5/3-00. Comarca
de Sumaré. Recorrente: Fazenda Pública do Estado de São Paulo. Apelado:
Ministério Público.
35
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível 427.364-5/2-00.
Comarca de Pacaembu. Apelante: Fazenda do Estado de São Paulo. Apelado:
Ministério Público.
36
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Recurso ex officio n. 60.258-0/6-
00. Fazenda Pública do Estado de São Paulo e Ministério Público.

50 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


cumprimento da obrigação.

h. Escolas particulares: além dos temas mencionados, existem


outros que se referem especificamente às escolas particulares.
Na discussão que se trava com as escolas particulares, o
fundamento legal extrapola o já mencionado, ou seja, a
Constituição Federal, LDB, ECA, resoluções e portarias,
incluindo como suporte o Código de Defesa do Consumidor –
Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. As discussões travadas
têm ligação direta com eventual cobrança por parte das escolas.
São exemplos de decisões que bem demonstram essa relação:

Apelação - Cobrança - Prestação de serviços


educacionais – Comprovação do réu de
cancelamento de matrícula solicitada pelo aluno.
Tendo a instituição de ensino demonstrado
expressamente que o réu protocolou pedido de
cancelamento de sua matrícula, não há como exigir-
se o pagamento das mensalidades restantes.39

Fornecimento de histórico escolar - Negativa ante


a existência de débito - Inadmissibilidade -
Segurança concedida - Recurso improvido.40

Mandado de Segurança - Prestação de serviços


educacionais. Recusa de fornecimento de
certificado de conclusão de curso de ensino médio.
Inadmissibilidade. O caput do artigo 6º da Lei n.
9.870, de 23 de novembro de 1999, proíbe a
retenção de documentos escolares ou a aplicação
de quaisquer outras penalidades pedagógicas por
motivo de inadimplemento. Além disso, a negativa
da autoridade impetrada atenta contra o artigo 205
da CF, uma vez que impede a continuidade dos
estudos do impetrante.41

Prestação de serviços - Aplicabilidade do Código

37
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação n. 465.757-5/4.
Apelante: Fazenda do Estado de São Paulo. Comarca de Araçatuba.
38
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação cível n. 161.501-0/02 –
Presidente Prudente. Apelante: Fazenda do Estado de São Paulo. Apelado:
Ministério Público.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 51


de Defesa do Consumidor à prestação de serviços
educacionais - Multa limitada à 2% - Desconto
pontualidade que configura multa disfarçada e
inadmissível “bis in idem” - Retenção de
documentos escolares - Dano moral - Indenização
reduzida - Recurso improvido.42

Não pode a apelante, sem justa causa, recusar-se a


fornecer os documentos necessários para a
transferência do apelado, uma vez que a Lei nº
9.870/99 no seu artigo 6º “caput” e §1º, proíbe a
aplicação de penalidades em razão de
inadimplemento e, ainda, dispõe expressamente,
que a instituição de ensino tem o dever de expedir,
a qualquer tempo, os documentos mencionados.
Recurso improvido.43

Contrato de prestação de serviços educacionais -


Diploma - Cobrança de taxa para expedição -
Ilegalidade. Conseqüência lógica da freqüência a
qualquer curso, de ensino fundamental, médio ou
superior, é que, após a sua conclusão, seja emitido
o correspondente certificado ou diploma, cujo
custo por nova proveniente do Conselho Federal de
Educação, presume-se incluído na mensalidade.44

Cobranças ilegais ou abusivas, às vezes não se limitam a escolas


particulares, atingindo também as públicas. As decisões a seguir
transcritas referem-se à cobrança feita por escolas públicas.

MATÉRIA CONSTITUCIONAL - Acesso ao ensino


fundamental e médio - Garantia da gratuidade -
Cobrança de taxa para inscrição ao exame supletivo -
Ilegalidade - Recurso parcialmente provido.45

ACÃO CIVIL PÚBLICA - Exames supletivos - Taxa


de inscrição - gratuidade de ensino público
(Constituição Federal, artigo 206, IV) - A norma do

39
Apelação cível n. 1117339-0/2, Santo André, TJSP, Relatora: Des. Lino
Machado.
40
Apelação cível n. 1160767-0/2, Ituverava, TJSP, Relator: Des. João Omar
Marçura.
41
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Recurso n. 1.075.234.0/1. São Paulo.

52 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


artigo 206, IV, da Constituição Federal, de eficácia
limitada, no que diz respeito a educação de jovens e
adultos (“ensino supletivo”) foi integrada pela norma
do artigo 37 da LDB, e assim é aplicável - As normas
dos artigos 249, § 3º, e 250 da Constituição do Estado
de São Paulo, estabelecem a gratuidade do ensino
supletivo fundamental e médio - Recurso do Ministério
Público provido para julgar procedente a ação.46

Ato infracional

Diante da diversidade dos alunos que integram o sistema


educacional, há que se distinguir um ato infracional de um ato
(in)disciplinar.
Ato infracional, define o Estatuto da Criança e do
Adolescente: “Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta
descrita como crime ou contravenção penal”.
Assim, toda infração prevista no Código Penal, na Lei de
Contravenção Penal e Leis Penais esparsas (ex. Lei de tóxico,
porte de arma), quando praticada por uma criança ou adolescente,
corresponde a um ato infracional. O ato infracional, em obediência
ao princípio da legalidade, somente se verifica quando a conduta
do infrator se enquadra em algum crime ou contravenção prevista
na legislação em vigor. Um dos principais problemas que a escola
pública enfrenta refere-se à ocorrência de ato infracional quando
se defronta com a questão da violência, sobretudo a física.
Hoje, mais do que nunca, diante das relações de conflitos
existentes em nossa sociedade, a escola passou a experimentar,
com mais frequência, a ocorrência de atos infracionais. Quando
essa situação se verifica, o problema sai da esfera escolar para
atingir o sistema de garantia de direitos, ou seja, o Conselho
Tutelar (quando o ato infracional for praticado por criança) ou a

42
Apelação cível n. 930565-0/9, São Jose do Rio Preto,TJSP, Relator: Des.
Eduardo Sá Pinto Sandeville.
43
Apelação cível n. 1050329-0/4, São Paulo, Relator: Des. Gomes Varjão.
44
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Comarca de Bebedouro. Recurso
n. 010107.
45
Apelação cível n. 118.878-5 - São Paulo - 2ª Câmara de Direito Público -
Relator: Alves Bevilacqua – 20/06/00 - V.U.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 53


Polícia (civil e militar), Ministério Público e Poder Judiciário
(quando o ato for praticado por adolescente)47.
Essas situações acabam por judicializar ações envolvendo
a escola, mas que digam respeito à prática de crimes ou
contravenções penais. Vários são os exemplos de medidas
aplicadas a adolescentes infratores que praticam ato infracional
relacionados ao ambiente escolar, como, por exemplo, em caso de
lesão corporal ou vias de fatos (por brigas entre alunos, alunos e
funcionários ou professores), desacato e injúria (ofensas dirigidas
aos alunos e aos professores), crimes de dano (quando danificam a
escola ou mesmo os veículos de professores), porte de
entorpecente e de arma, tráfico de entorpecente, etc.
Nessas hipóteses, quando o adolescente infringe a lei, é
responsabilizado, ficando sujeito a uma das medidas
socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a


autoridade competente poderá aplicar ao
adolescente as seguintes medidas:
I - advertência;
II - obrigação de reparar o dano;
III - prestação de serviços à comunidade;
IV - liberdade assistida;
V - inserção em regime de semi-liberdade;
VI - internação em estabelecimento educacional.

Assim, o adolescente envolvido com a prática de ato


infracional na escola é devidamente responsabilizado. A violência
que resulta em ato infracional ultrapassa os limites da escola e
acaba por judicializar essa relação.
Quando a conduta não caracterizar ato infracional, deve ser
analisada de forma exclusiva pela própria escola em face do
regimento escolar, como ato de indisciplina, que deve ser

46
Apelação cível n. 76.640-0/1 - São Paulo - Câmara Especial - Relator: Alvaro
Lazzarini – 12/07/01 - U.V.
47
Estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente que se considera criança a
pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18
anos de idade (art. 2º).

54 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


considerado como:

Se entendermos por disciplina comportamentos


regidos por um conjunto de normas, a indisciplina
poderá se traduzir de duas formas: 1) a revolta
contra estas normas; 2) o desconhecimento delas.
No primeiro caso, a indisciplina traduz-se por uma
forma de desobediência insolente; no segundo,
pelo caos dos comportamentos, pela
desorganização das relações.48

Assim, a indisciplina escolar se apresenta como o


descumprimento das normas fixadas pela escola e demais
legislações aplicadas (ex. Estatuto da Criança e do Adolescente -
ato infracional). Ela se traduz num desrespeito, seja do colega, seja
do professor, seja ainda da própria instituição escolar (depredação
das instalações, por exemplo).

Evasão escolar

Antes da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, os


casos de evasão escolar se restringiam à intervenção da própria escola.
A escola era competente para analisar o fato e utilizar os
mecanismos necessários para fazer o aluno voltar a estudar. Hoje, a
situação é diferente, pois os casos envolvendo evasão escolar e
elevados níveis de repetência devem ser comunicados ao Conselho
Tutelar e, na ausência de solução, ser levados ao conhecimento do
Poder Judiciário. Essa regra está prevista no artigo 56 do Estatuto
da Criança e do Adolescente. Implica essa intervenção judicial na
busca da efetividade do direito à educação.
São várias e as mais diversas as causas da evasão escolar ou
infrequência do aluno. No entanto, levando-se em consideração os
fatores determinantes da ocorrência do fenômeno, pode-se
classificá-las, agrupando-as, da seguinte maneira:

?
Escola: não atrativa, autoritária, professores despreparados, em
número insuficiente, ausência de motivação, etc.;

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 55


?
Aluno: desinteressado, indisciplinado, com problema de saúde,
gravidez, etc.;
?
Pais/responsáveis: não cumprimento dos deveres decorrentes do
poder familiar, desinteresse em relação ao destino dos filhos, etc.;
?
Social: trabalho com incompatibilidade de horário para os estudos,
agressão entre os alunos, violência em relação a gangues, etc.

Essas causas são concorrentes e não exclusivas, ou seja, a


evasão escolar se verifica em razão da somatória de vários fatores e
não necessariamente de um especificamente. Detectar o problema
e enfrentá-lo é a melhor maneira para proporcionar o retorno
efetivo do aluno à escola.
Verifica-se, em relação às causas que existem, algumas de
competência exclusiva do sistema de justiça, como, por exemplo, as
relacionadas à violência, descumprimento dos deveres referentes ao
poder familiar, entre outras. Nesse caso, a intervenção judicial se faz
necessária para garantir o aluno na escola, resultando dessa relação a
judicialização de outro tema referente à educação.

Qualidade da educação

A Constituição Federal (art. 205), o Estatuto da Criança e


do Adolescente (art. 53) e a LDB (art. 2º) traçaram os seguintes
objetivos para a educação:

?
desenvolvimento pleno da criança e do adolescente;
?
preparo para o exercício da cidadania;
?
qualificação para o trabalho.

O objetivo é dar uma diretriz única para os fins da educação e


traz implicitamente à tona a questão da qualidade do ensino, posto que
somente uma educação de qualidade pode favorecer esse

48
LA TAILLE, Y. A indisciplina e o sentimento de vergonha. In: AQUINO, J. G.
(Org.). Indisciplina da escola: alternativas teóricas e práticas. 4. ed. São Paulo:
Summus Editorial, 1996. p. 10.

56 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


desenvolvimento, bem como seu preparo para a cidadania e
qualificação para o trabalho. Um aluno que deixa o ensino fundamental
sem o conhecimento básico das disciplinas ministradas, sem saber ler e
escrever adequadamente, não se desenvolveu plenamente e pode ter
comprometido a sua qualificação para o trabalho.
Quando isso ocorre, ou seja, na hipótese da educação
ministrada não atingir ou não contemplar esses objetivos,
questiona-se: pode ser discutida, no âmbito do poder judiciário, a
qualidade da educação? Como discutir este tema?
A Constituição Federal apresenta, de forma mais direta, a
questão da qualidade da educação e os responsáveis pela mesma,
quando estabelece:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios:
[...]
VII - garantia de padrão de qualidade.
[...]
Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios organizarão em regime de colaboração
seus sistemas de ensino.
§ 1º A União organizará o sistema federal de ensino
e o dos Territórios, financiará as instituições de
ensino públicas federais e exercerá, em matéria
educacional, função redistributiva e supletiva, de
forma a garantir equalização de oportunidades
educacionais e padrão mínimo de qualidade do
ensino mediante assistência técnica e financeira
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios;
§ 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no
ensino fundamental e na educação infantil;
§ 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão
prioritariamente no ensino fundamental e médio;
§ 4º Na organização de seus sistemas de ensino, os
Estados e os Municípios definirão formas de
colaboração, de modo a assegurar a universalização
do ensino obrigatório;
§ 5º A educação básica pública atenderá
prioritariamente ao ensino regular.

Dessa forma, antes mesmo de discutir o que é qualidade da


educação e se é possível o questionamento legal da mesma, a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 57


Constituição Federal deixou clara quem são os responsáveis por
essa qualidade. Nesse sentido, esclarece Cabral49, quanto a
organização do sistema de ensino:

Portanto, conforme a CF/88 e a organização do sistema


de ensino brasileiro, acima descrito, compete aos
Municípios e ao Estado promover o ensino fundamental
de qualidade, o Município é responsável pelas séries
iniciais do ensino fundamental (primeira à quinta série)
e o Estado pelas demais séries (sexta a nona série), sendo
que a União deve exercer a função redistributiva e
supletiva, de forma a garantir padrão mínimo de
qualidade do ensino mediante assistência técnica e
financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios, ou seja, a União em caso de oferta irregular
por falta de qualidade no ensino fundamental, responde
judicialmente de forma concorrente, solidária, com o
Estado ou Município – dependendo da série em que se
promova a deficiência na qualidade educacional –
sendo ambos responsáveis pela promoção de uma
educação de qualidade no ensino fundamental.

Essa questão é de extrema importância, posto que não


somente em relação à qualidade da educação, mas todo e qualquer
questionamento jurídico da educação no Poder Judiciário deve
levar em consideração o ente responsável pelo ensino que se
pretende questionar. Em outras palavras, quem é a parte legítima
passiva para responder a ação judicial que se vai ingressar. Isso
porque, adverte Cabral50, “a falta de conhecimento sobre quem é
quem no âmbito da execução de nossos direitos, das políticas
públicas e, mais especificamente, do direito à educação, muitas
vezes inviabiliza o próprio exercício do direito”.
Ciente de quem são os responsáveis pela educação, a
segunda etapa consiste em saber o que é qualidade e como esse
debate se realiza no Judiciário. É inegável que todos os temas já
abordados, como, por exemplo, transporte escolar, merenda, falta de
professores, extinção de salas de aulas, etc., indiretamente tem uma
ligação com a questão da qualidade. Na verdade, todos os temas
49
CABRAL, K. M. A Justicialidade do Direito à qualidade do ensino fundamental
no Brasil. 2008. 195p. Dissertação [Mestrado em Educação] - Faculdade de
Educação, Universidade do Estado de São Paulo – UNESP, 2008. p. 105.

58 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


referidos resumem-se na busca da qualidade da educação. Mas essa
questão vai além e é muito complexa, como bem esclarecem
Romualdo Portela de Oliveira e Gilda Cardoso de Araújo51:

É muito difícil, mesmo entre os especialistas


chegar-se a uma noção do que seja qualidade de
ensino [...] provavelmente, essa questão terá
múltiplas respostas, seguindo valores,
experiências e posição social dos sujeitos. Uma das
formas para se apreender essas noções de
qualidade é buscar indicadores utilizados
socialmente para aferi-la. Nessa perspectiva, a
tensão entre qualidade e quantidade (acesso) tem
sido o condicionador último da qualidade possível,
ou, de outra forma, a quantidade (de escola)
determina a qualidade (de educação) que se queira.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.


9.394/96) estabelece:

Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos


seguintes princípios:
[...]
IX - garantia de padrão de qualidade;
[...]
Art. 4º O dever do Estado com educação escolar
pública será efetivado mediante a garantia de: [...]
IX - padrões mínimos de qualidade de ensino,
definidos como a variedade e quantidade
mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis
ao desenvolvimento do processo de ensino-
aprendizagem. (grifos nossos)

Constata-se que se trata de afirmação vaga e sem a


consistência necessária para colocar, no âmbito do Poder Judiciário,
a discussão referente à qualidade da educação. Como afirma Cury52,
“esse padrão de qualidade deverá ter algum parâmetro de referência
até para se ter uma certa verificabilidade de resultado no âmbito do
50
CABRAL, op. cit., p. 105.
51
OLIVEIRA, R. P. de; ARAÚJO, G. C. de. Qualidade do ensino: uma nova
dimensão da luta pelo direito à educação. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 28, p.
6-8. 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&
pid=S1413-24782005000100002&lng=pt&nrm =iso>. Acesso em: nov. 2008.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 59


que é a finalidade das instituições escolares”.
Existem vários estudos referentes à qualidade da educação,
levando-se em consideração a questão do custo-aluno qualidade
ou a qualidade aferida mediante testes padronizados em larga
escala53. Na verdade, existem diversos indicadores para se aferir a
qualidade da educação. Como afirma Cury54: a “qualidade é, assim,
um modo de ser que afeta a educação como um todo envolvendo
sua estrutura, seu desenvolvimento, seu contexto e o nosso modo
de conhecê-la”.
Para a Justiça, o ideal seria o estabelecimento de
mecanismos objetivos para avaliação da qualidade do ensino, de
modo a unificar a atuação do Judiciário, como, por exemplo,
utilizando-se dos parâmetros mínimos estabelecidos por Pinto55,
fixar a análise por aluno, de modo que qualquer Juiz do País possa
avaliar diretamente a situação de seu município, levando-se em
consideração:

?
Tamanho: considera-se que as escolas não
devem nem ser muito grandes (o que dificulta as
práticas de socialização e aumenta a
indisciplina), mas, ao mesmo tempo, devem ter
um número de alunos que permita à maioria dos
professores lecionar em apenas uma escola;
?
Instalações: assegurando-se salas ambientes
(bibliotecas, laboratórios, etc.), espaços de
alimentação, lazer e de prática desportiva, com
dotação orçamentária para uma manutenção
adequada;
?
Recursos didáticos em qualidade e quantidade,
aqui incluídas as tecnologias de comunicação e
informação, garantidos os recursos para a
manutenção dos equipamentos;
?
Razão alunos/turma que garanta uma relação
mais próxima entre os professores e seus alunos;
?
Remuneração do pessoal: assegurar um piso
salarial nacionalmente unificado, associado ao
grau de formação dos trabalhadores da educação

52
CURY, C. R. J. Qualidade em Educação. Belo Horizonte: [s.n.], 2007. [não
paginado]

60 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


e um plano de ascensão na carreira que estimule a
permanência na profissão;
?
Formação: dotação anual de recursos
financeiros para a formação continuada de todos
os profissionais da escola;
?
Jornada de trabalho: definição de jornada
semanal de 40 horas, com 20% da mesma, no
caso do professores destinados a atividades de
planejamento, avaliação e reuniões com os pais,
cumpridas nas escolas. No caso das creches (0 a 3
anos), optou-se pela jornada padrão de 30 horas
semanais para os professores, também com 20%
para atividades complementares;
?
Jornada do aluno: fixação de uma jornada
mínima de 10 horas/dia, no caso das creches
(cuja média nacional já é superior a 8 horas/dia) e
de 5 horas/dia, nas demais etapas (cuja média
nacional é um pouco acima de 4 horas/dia);
?
Projetos especiais da escola: garantia de um
repasse mínimo de recursos para que as escolas
possam desenvolver atividades próprias
previstas em seu projeto pedagógico;
?
Gestão democrática: entende-se que a gestão
democrática envolve uma série de aspectos que
não possuem, necessariamente, um impacto
monetário no custo aluno, mas é evidente que
quando se propicia a jornada exclusiva do
professor em uma escola, o tempo remunerado
para atividades extra-classe, a proximidade da
escola das residências dos alunos, um menor
número de alunos/turma e de alunos/escola,
todas estas medidas, facilitam muito (embora
não assegurem) a construção de relações mais
democrática em sala de aula e na escola.

53
Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB); Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM); Avaliação Nacional do Rendimento Escolar
(ANRESC) e a Avaliação da Educação Básica (ANEB). Em nível
internacional, tem-se o Programa Internacional de Avaliação de Alunos
(PISA).
54
CURY, op. cit.
55
PINTO, J. M. de R. Da vinculação constitucional de recursos para a
educação, passando pelos fundos, ao custo-aluno qualidade. [São Paulo]:
[s.n.], 2006. [não paginado]

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 61


Além desses indicadores, verificar o resultado dos índices
dos testes padronizados aplicados aos alunos.
Constata-se, do exposto, que a questão da qualidade da
educação é complexa e talvez, por conta disso, afirma Cabral56,

não há nenhuma decisão emitida pelos Tribunais


Superiores brasileiros – Supremo Tribunal Federal
e Superior Tribunal de Justiça – sobre ações
pleiteando a qualidade do ensino ou a
responsabilização do Poder Executivo pela falta de
qualidade, em nenhum nível de ensino.

Assim, não obstante o reconhecimento legal pela


Constituição Federal e demais legislações da necessidade de uma
educação de qualidade, no âmbito do Poder Judiciário essa questão
ainda não foi debatida como deveria.
Na verdade, o que se discute no Poder Judiciário é a não
qualidade. Isso porque, como diz Oliveira57, “[...] na falta de uma
noção precisa de qualidade, é certo que tenhamos acordo, no
momento, no que diz respeito à constatação de sua ausência”.
E a não qualidade, assevera Cury58 é a

falta de escolas, é a falta de vagas nas escolas, são


as barreiras excludentes da desigualdade social
inclusive legais como era o caso dos exames de
admissão, a discriminação que desigualava o
ensino profissional, os limites do ensino não-
gratuito e a descontinuidade administrativa. A não
qualidade se expressou e ainda está presente nas
repetências sucessivas redundando nas
reprovações seguidas do desencanto, da evasão e
abandono. Como diz Oliveira (2006): passávamos
da exclusão da escola para a exclusão na escola.

Em síntese, o debate sobre a qualidade da educação no


âmbito judicial ainda está centrado em situações pontuais como a
falta de vagas, a falta de professores, de transporte, de merenda,
etc. Não se constata uma análise mais ampla no sentido de se

56
CABRAL, op. cit., p. 150.

62 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


discutir uma ação afirmativa que pontue todas essas questões sob o
signo da qualidade.

Consequências da judicialização da educação

É inegável que, em razão dessa relação estabelecida entre a


justiça e a educação, várias são as consequências para os atores
envolvidos. Merecem destaque as seguintes hipóteses:

Sistema de educação

a) Transferência de responsabilidade: Grande parte das questões


escolares, que devem ser solucionadas na própria escola, são
transferidas para a esfera judicial. Os responsáveis pela
educação não assumem o compromisso que é próprio da
educação em esgotar os recursos internos baseados no diálogo.
Exemplo típico dessa situação refere-se à questão da violência.
Hoje, muitos casos encaminhados à justiça revestem-se mais de
características de ato de indisciplina do que ato infracional. A
escola, muitas vezes, sequer esgota os mecanismos previstos no
próprio regimento escolar, preferindo provocar a atuação do
Judiciário, Ministério Público, Autoridade Policial e Conselho
Tutelar. Sendo ato de indisciplina, a competência para analisá-
lo continua sendo da própria escola e não do sistema de garantia
de direitos;
b) Desconhecimento da legislação relacionada à criança e ao
adolescente: Outra questão da judicialização da educação diz
respeito a esse desconhecimento legal. Várias são as situações
em que a escola provoca a instituição errada para o
encaminhamento das ocorrências. Provoca-se o Poder
Judiciário ou o Ministério Público quando, na verdade, o caso
deveria ser encaminhado ao Conselho Tutelar. Desconhecem-

57
OLIVEIRA, R. P. de. A educação na Assembléia Constituinte de 1946. In:
FÁVERO, O. (Org.). A educação nas constituintes brasileiras – 1823-1988. 2.
ed. Campinas: Autores Associados, 2001. p. 55.
58
CURY, op. cit.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 63


se as atribuições do sistema de garantia de direitos. Há também
situações em que esse desconhecimento legal acaba por levar ao
Judiciário ou ao Conselho Tutelar situações que não poderiam
ser encaminhadas antes do esgotamento das medidas
administrativas. No mesmo sentido, ocorre essa hipótese
quando da instauração de procedimento em face do aluno e não
são obedecidos os princípios constitucionais básicos da ampla
defesa e do contraditório.

Vale lembrar que não está se pretendendo que todo e qualquer


profissional da educação tenha o conhecimento do direito. No
entanto, toda legislação que lhe diga respeito diretamente não
pode ser ignorada. Exemplo dessa situação ocorre com o capítulo
do direito à educação previsto no Estatuto da Criança e do
Adolescente, que não pode ser desconhecido do educador.
Como afirma Batista59, “os graves problemas da escola brasileira
não podem ser solucionados sem a ação dos profissionais que nela
trabalham”. Mas, nesse caso, tais profissionais devem ter ciência
da legislação relacionada à sua atuação.
c) Trabalho em parceria: Não há como negar que a tarefa educativa
é de competência do professor. Contudo, vários problemas que
ocorrem na escola, antes mesmo de se transformarem em
questões judiciais, podem ser resolvidos com um trabalho
conjunto do sistema educativo (diretores, coordenadores,
supervisores e professores) com o sistema de proteção dos
direitos da criança e do adolescente (Conselho Tutelar, Poder
Judiciário, Ministério Público, Polícia Militar e Civil). Nesse
sentido, vale destacar Batista60 quando este afirma que

o pedagogo precisa estar preparado para ações


integradas com os demais profissionais e com o
espaço educativo como um todo, assim como para
o entendimento da realidade e a produção de
saberes pedagógicos com vistas à construção de
práticas educativas que veiculem os
conhecimentos e valores necessários à sociedade
contemporânea.

Até porque “os problemas escolares deixaram de ser

64 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


eminentemente educacionais, os problemas sociais converteram-
se em problemas escolares e os professores não estão preparados
pra enfrentar essa nova realidade”61. O enfrentamento desses
problemas deve ocorrer de forma conjunta. Todos em prol de uma
educação de qualidade.

Sistema de proteção

a) Desconhecimento do sistema educacional: Nessa situação,


ocorre o inverso do que foi mencionado no item anterior, ou
seja, o despreparo dos integrantes do sistema de proteção – Juiz
de Direito, Promotor de Justiça, Delegado de Polícia, Policial
Militar, Conselheiro Tutelar e Conselheiro Municipal –
desconhecem o sistema de ensino e há um despreparo para lidar
com os problemas da educação. Para muitos integrantes desse
sistema, o problema educacional ainda está restrito ao
professor. Se a escola é ruim ou não atrativa, se ela não
apresenta educação de qualidade, se os alunos são
indisciplinados: a culpa é do professor transformado em
culpado de todos os fracassos escolares.
Nesse sentido, aponta Almeida62:

Os professores foram transformados em


verdadeiros bodes expiatórios frente aos imensos
problemas presentes nos sistemas de ensino,
favorecendo o enfraquecimento de sua
profissionalização e do seu reconhecimento social.
Responsabilizá-lo pelos insucessos da escola
atende a vários interesses, dentre eles aos dos
governantes, que podem se eximir das
responsabilidades quanto ao que acontece; aos dos
pais, que não tem que enfrentar os problemas
escolares com seus filhos; aos dos pesquisadores,
que não precisam rever a direção de suas

59
BATISTA, J. B. Formação de educadores: desafios e possibilidades. Revista
Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 26, p. 231-241, jul./dez.1999. p. 233.
60
BATISTA, op. cit., p. 237.
61
ALMEIDA, M. I. O sindicato como instância formadora de professores: novas
contribuições ao desenvolvimento profissional. Tese (doutorado em educação) –
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 1999. p. 12.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 65


pesquisas, em boa parte sem sintonia com a
realidade escolar.

Mesmo posicionamento aponta Esteves63:

Grande parte da sociedade, alguns meios de


comunicação e também alguns governantes
chegaram à conclusão simplista e linear de que os
professores, como responsáveis diretos do sistema
de ensino, são também os responsáveis diretos de
todas as lacunas, fracassos, imperfeições e males
que nele existem.

Acabam por culpar o professor e consequentemente a escola


pelo fracasso do aluno. Conforme esclarece Schön64:
“atribuímos à culpa às escolas e aos professores, o que equivale
a culpar as vítimas”. Sim, porque outros fatores se somam para
apontar a situação atual da escola, como financiamento,
retribuição salarial, jornada, carreira e condições de trabalho,
entre outras. A aplicação da lei na esfera educacional requer do
profissional do direito o conhecimento real da situação
educacional, sob pena de cometer erros e equívocos.
b) Exagero na forma de agir: existe ainda a situação em que, na
ânsia de provocar a defesa do direito à educação, os integrantes
do sistema de proteção extrapolam na judicialização dos atos,
instaurando protocolados, inquéritos civis, procedimentos
judiciais de situações que não deveriam merecer a atenção do
sistema de justiça. Nessa hipótese, há uma indevida invasão do
sistema legal no educacional.
c) Burocratização das ações: em um mundo informatizado e
dinâmico, as instituições jurídicas ainda convivem, em sua
grande maioria, com um sistema retrógrado e burocratizante.
As relações entre esse sistema e o educacional ficam muitas
vezes emperradas. Exemplo típico dessa intervenção
burocrática diz respeito ao combate à evasão escolar. Quando
ocorre a efetiva intervenção, esta muitas vezes é tardia, posto
que a criança e o adolescente não mais têm condições de voltar

62
ALMEIDA, op. cit., p. 11.
63
ESTEVES, op. cit., p. 104.

66 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


ao sistema de ensino.

Considerações finais

Afirma Pimenta65 que

a educação é um processo de humanização que


ocorre na sociedade humana com a finalidade
explícita de tornar os indivíduos participantes do
processo civilizatório e responsáveis por levá-lo
adiante. Enquanto prática social é realizada por
todas as instituições da sociedade. Enquanto
processo sistemático e intencional ocorre em
algumas, dentre as quais se destaca a escola.

A garantia da educação como um direito social e público


subjetivo decorre de ações e medidas na esfera política e
administrativa. A ausência de política pública que garanta o processo
educacional, realizada de forma sistemática pela escola, acaba por
acarretar medidas judiciais que interferem no cotidiano educacional.
Poderia se indagar, diante dessa situação: não estaria o Poder Judiciário
invadindo atribuições exclusivas do Poder Executivo? A resposta é
dada pelo Desembargador Roberto Vallim Bellocchi, quando afirma:
É função essencial do Poder Judiciário, por
intermédio da atividade jurisdicional reconhecer
os direitos subjetivos dos jurisdicionados e lhes
conceder tutela útil e efetiva. Em outras palavras, o
respeito aos direitos subjetivos dos cidadãos
legitima o Poder Judiciário a imposição de
comandos a todos aqueles, incluindo o Estado, que
vierem a molestá-los.66

Ademais, esclarece Cabral67: “[...] os juízes são impelidos a

64
SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA,
A. (Org.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1997. p. 79.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 67


agir sobre assuntos políticos referentes à Administração Pública,
pois houve uma evolução das expectativas dos cidadãos a respeito
da responsabilidade política”.

Essa relação que se firma entre a educação e a justiça na


sociedade contemporânea está muito evidente, conforme ficou
demonstrado pelas decisões citadas, quando se está em questão a
existência de um molestamento de direitos pelos responsáveis.
Contudo, extrapola o Poder Judiciário, sendo que outras
instituições também se apresentam relevantes na garantia do
direito à educação, podendo ser citado como exemplo o Ministério
Público. Apenas a título de ilustração, em levantamento realizado
junto ao Conselho Superior do Ministério Público do Estado de
São Paulo, constatou-se, no período de 01 de janeiro de 2008 a 19
de agosto de 2008, que foram protocolados 628 expedientes
relacionados à área da Infância e da Juventude. Desse total, 288
referem-se à questão educacional, o que representa um total de
45,85%. Em vários Estados da federação, o Ministério Público está
organizado de forma a contemplar Centros de Apoio aos
Promotores de Justiça na área da educação. Essa informação revela
como o tema educação tem se apresentado para as instituições
jurídicas, como o Ministério Público, que integra o sistema de
garantia dos direitos da criança e do adolescente.
Em síntese, pode-se afirmar que a judicialização da educação
representa a busca de mais e melhores instrumentos de defesa de
direitos juridicamente protegidos. Essa proteção judicial avança na
consolidação desse direito da criança e do adolescente e significa a
exigência da obrigatoriedade da transformação do legal no real.

Referências

ALMEIDA, M. I. O sindicato como instância formadora de professores:


65
PIMENTA, S. G. Formação de professores: identidade e saberes da docência.
In: PIMENTA, S. G. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. 2. ed.
São Paulo: Cortez, 2000. p. 23.
66
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação civil n. 107.397-0/0-00,
comarca de Bauru.
67
CABRAL, op. cit., p. 148.

68 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


novas contribuições ao desenvolvimento profissional. Tese (doutorado
em educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
USP, São Paulo, 1999.

BATISTA, J. B. Formação de educadores: desafios e possibilidades.


Revista Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 26, p. 231-241, jul./dez.1999.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. 24. ed. São Paulo: Saraiva,
2000. (Coleção Saraiva de Legislação)

______. Estatuto da Criança e do Adolescente: promulgado em 13 de


julho de 1990. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. (Coleção Saraiva de
Legislação)

______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9394


de 20 de dezembro de 1996.

CABRAL, K. M. A Justicialidade do Direito à qualidade do ensino


fundamental no Brasil. 2008. 195p. Dissertação [Mestrado em
Educação] - Faculdade de Educação, Universidade do Estado de São
Paulo – UNESP, 2008.

CHRISPINO, Á.; CHRISPINO, R. S. P. A Judicialização das relações


escolares e a responsabilidade civil dos educadores. Ensaio: Avaliação e
políticas públicas em educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 58, jan./mar.
2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0104-
40362008000100002&script=sci_arttext&tlng=pt.

CURY, C. R. J. Qualidade em Educação. Belo Horizonte: [s.n.], 2007.


[não paginado]

ESTEVES, J. M. Mudanças sociais e função docente. In: NOVOA, A.


(Org.). Profissão professor. 3. ed. Portugal: Porto Celina, 1995. p. 93-124.

FERREIRA, L. A. M. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o


professor: reflexos na sua formação e atuação. São Paulo: Cortez, 2008.

KONZEN, A. A. O direito a educação escolar. In: BRANCHER, L. N.;


RODRIGUES, M. M. e VIEIRA, A. G. (Org.). O direito é aprender.
Brasília: FUNDESCOLA/MEC, 1999. p. 659-668.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 69


LA TAILLE, Y. A indisciplina e o sentimento de vergonha. In: AQUINO,
J. G. (Org.). Indisciplina da escola: alternativas teóricas e práticas. 4. ed.
São Paulo: Summus Editorial, 1996.

MUNIZ, R. M. F. O direito à Educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

OLIVEIRA, R. P. de. A educação na Assembléia Constituinte de 1946.


In: FÁVERO, O. (Org.). A educação nas constituintes brasileiras –
1823-1988. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2001. p. 153-189.

OLIVEIRA, R. P. de; ARAÚJO, G. C. de. Qualidade do ensino: uma


nova dimensão da luta pelo direito à educação. Rev. Bras. Educ., Rio de
Janeiro, n. 28, 2005. Disponível em: http://
w w w. s c i e l o . b r / s c i e l o . p h p ? s c r i p t = s c i _ a r t t e x t & p i d = S 1 4 1 3 -
24782005000100002&lng=pt&nrm =iso>. Acesso em: nov. 2008.

PIMENTA, S. G. Formação de professores: identidade e saberes da


docência. In: PIMENTA, S. G. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade
docente. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

PINTO, J. M. de R. Da vinculação constitucional de recursos para a


educação, passando pelos fundos, ao custo-aluno qualidade. [São
Paulo]: [s.n.], 2006. [não paginado]

SCHÖN, D. A. Formar professores como profissionais reflexivos. In:


NÓVOA, A. (Org.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom
Quixote, 1997.

70 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 71
72 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009
A CONVENÇÃO DE PALERMO NO ÂMBITO DO
ESTADO DE DIREITO CONSTITUCIONAL
E TRANSNACIONAL

Angela Acosta Giovani de Moura*

Resumo:
O Decreto n. 5015, de 12 de março de 2004, que ratificou a Convenção das
Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, também chamada
de Convenção de Palermo, sustentou recente determinação do Conselho
Nacional de Justiça que, através da Recomendação n. 3, de 30 de maio de
2006, orienta e recomenda ao Conselho de Justiça Federal, aos Tribunais
Regionais Federais e aos Tribunais de Justiça dos Estados, a criação de varas
especializadas para o combate ao crime organizado, “com apoio na
necessidade de resposta judicial ágil e pronta, em relação às medidas especiais
de investigação aplicáveis no combate ao crime organizado, nos termos da
Lei nº 9.034/95 e da Convenção de Palermo”1. No entanto, as normas que
criam ou ampliam o jus puniendi do Estado Brasileiro, por força do princípio
da reserva legal, se originam na lei formal, fruto do poder que representa a
soberania popular, com autoridade única e exclusiva para limitar o direito à
liberdade. Trata-se de conquista oriunda da evolução que marcou os modelos
de Estado de Direito, desde a vitoriosa derrocada do Estado Absolutista, com
o objetivo de restringir e limitar o poder punitivo do Estado. O atual e
moderno Estado de Direito Constitucional e Transnacional tem como
característica a incorporação, na ordem interna, do direito internacional de
direitos humanos, e justamente pelo conteúdo voltado à preservação da
dignidade da pessoa humana é que os Tratados e Convenções Internacionais
de Direitos Humanos têm aplicação imediata, tão logo ratificados por Decreto
Presidencial. Todavia, num ordenamento jurídico penal garantista, amparado
por uma Constituição Democrática e Cidadã, não se admite o mesmo
tratamento quando o conteúdo do Tratado Internacional é voltado para o
direito penal incriminador, tendo em vista a restrição e a limitação que impõe

*
Promotora de Justiça do Estado de Goiás em Quirinópolis. Professora de
Direito Penal na Faculdade de Direito de Quirinópolis.
1
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Ata da 20ª sessão ordinária, de 30
de maio de 2006. Disponível em: <https:// www.cnj.jus.br/siteantigocnj/
index.php?option=com_content&task=view&id=84&Itemid=158&font
style=f-default)>. Acesso em: 24 abr. 2009.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 73


aos direitos e garantias individuais ao longo do tempo conquistadas. Assim
sendo, a Convenção de Palermo não pode sustentar a criação de varas
especializadas para julgamento de crimes que ainda não foram os tipificados
pela legislação ordinária interna.

Palavras-chave: Direito Internacional, Convenção de Palermo, Estado de


Direito Constitucional e Transnacional, Crime organizado, Direito Penal.

Introdução

Em maio de 2003 o Congresso Nacional aprovou, por meio


de decreto legislativo, o texto da Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York,
em 15 de novembro de 2000, oportunizando, assim, ao Presidente
da República, através do Decreto n. 5015, de 12 de março de 2004,
determinar, em seu artigo primeiro, a execução e o cumprimento
do texto legal daquele diploma que passou, a partir da sua
publicação, a integrar a ordem jurídica interna.
Referido diploma elege uma série de instrumentos legais
objetivando o combate ao crime organizado transnacional e
também conceitua a conduta que caracteriza crime organizado,
levando o Conselho Nacional de Justiça ao entendimento de que
estando o crime organizado tipificado legalmente em nosso
ordenamento normativo, impusera-se a criação de varas
especializadas para o seu julgamento.
O tema, no entanto, merece reflexão no âmbito do atual
Estado de Direito Constitucional, enfocando-se os direitos e as
garantias individuais da pessoa humana ao longo da evolução
histórica, bem como a feição assumida pelo moderno Direto Penal
que pretende ser garantista, indagando-se, num primeiro
momento, se um Decreto presidencial, embasado em um Decreto
Legislativo, pode criminalizar condutas e, ao mesmo tempo,
guardar harmonia com o princípio constitucional da reserva legal
que, dentre outros, informa o atual e moderno Estado de Direito
Constitucional e Transnacional.

74 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Do Estado de Direito legal ao Estado de Direito Constitucional

O moderno e atual Estado Democrático de Direito


ideologicamente foi construído ao longo de árdua caminhada
evolutiva, apresentando-se, inicialmente, num modelo absolutista,
por centralizar o poder na figura do monarca, a quem cabiam todas
as decisões relativas aos assuntos públicos.
Nesse período, o Estado, apesar de criador da ordem
jurídica, a ela não se submetia.
O poder, exercido de forma arbitrária, sucumbiu diante das
ideias reacionárias e filosóficas que permearam o Século das
Luzes, dando lugar ao surgimento do Estado Liberal, que tinha
como pressuposto não mais a sujeição do cidadão ao arbítrio e aos
interesses do monarca, mas ao governo das leis provenientes de
uma assembleia popular.
A evolução do Estado de Direito Liberal, Positivista ou
Legal, marca o início de sua trajetória com o movimento
iluminista, com a derrocada do absolutismo e com a revolução
francesa e estadunidense, culminando com a limitação do poder
político do Estado pelo Direito, por meio de garantias individuais e
pelas liberdades de expressão e associação.
Nesse modelo de Estado legalista ou positivista, surge a
teoria da tripartição dos poderes e a teoria da soberania popular,
assim como a forma republicana, o sistema representativo e o
regime democrático:

A consolidação desse novo modelo e seus


pressupostos impunha que o Estado possuísse uma
ordem normativa em função da qual o próprio
poder político estaria limitado, ou seja, exigiu-se
que a política fosse o exercício de uma ação
normatizada, o que resultou na elaboração da idéia
do Estado de direito. Nesse sentido, Bonavides
(2004, p. 41) evidencia que “Foi assim – da
oposição histórica e secular, na Idade Moderna,
entre a liberdade do indivíduo e o absolutismo do
monarca – que nasceu a primeira noção de Estado
de Direito, mediante um ciclo de evolução
histórica e decantação conceitual [...]”. A pugna
decide-se no movimento de 1789, quando o direito

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 75


natural da burguesia revolucionária investe no
poder o terceiro estado.2

A teoria do contrato social modelou o perfil desse novo


modelo de Estado, que encontrou no respeito à Razão e à
Liberdade os alicerces para a construção de um novo paradigma,
com prioridade do cidadão diante do Estado, submissão do
exercício do poder estatal ao respeito à liberdade individual,
proteção dos direitos naturais da pessoa humana que o Estado se
propunha reconhecer e proteger, como contraprestação da parcela
cedida pelos cidadãos de sua liberdade.
O Estado Liberal trazia como característica central a
submissão do poder (agora tripartido) à lei criada pelo Estado,
através da participação popular, e à mesma se submeter. O Estado
deve se limitar pelo Direito (princípio da legalidade) que ele
mesmo elabora.
A Lei criada pelo Estado é aquela que “provém do poder
legislativo que, fazendo uso de sua soberania, a elabora de acordo
com a vontade geral, para fazer respeitar os direitos individuais dos
cidadãos, para acabar com os desmandos do antigo regime etc.”3.
Esclarece a doutrina que esse modelo de Estado de Direito
legal, inaugurando, por um lado, uma nova fase voltada para a
dignidade da pessoa humana, contaminou-se, por outro lado, pelo
apego demasiado a letra fria da lei, pelo exagerado formalismo e
legalismo conduzido pelo pensamento de Kelsen, que não
comportava qualquer discussão em torno do conteúdo da lei, que
sempre deveria prevalecer, sem a necessidade de ter a sua fonte na
Constituição Federal, uma vez que era resultado da vontade geral.
O período marca o poder judiciário como um órgão
legalista, mero aplicador da lei, descomprometido com o valor
justiça, pois havia confusão em torno de vigência da lei e sua
validade, conforme acentua Luiz Flávio Gomes. Uma vez em
vigor, era válida e, portanto, perfeitamente aplicável ao caso

2
JUNIOR, J. N. M. Estado Constitucional de Direito: Breves considerações sobre o
Estado de Direito. 2007. Disponível em: http://www2.uel.br/revistas/direitopub/
pdfs/VOLUME_2/num_3/joao% 20nunes.pdf.
3
GOMES, L. F. Definição de crime organizado e a Convenção de Palermo. p.
18. Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: 06 mai. 2009.

76 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


concreto, em nada importando se o seu conteúdo divorciava-se das
garantias apregoadas no texto constitucional.
Destarte, maculado pelo legalismo, o Direito deixa de ser a
garantia dos direitos, reduzindo-se a lei a mero instrumento
político e, nessa condição, “ela não se legitima por um conteúdo de
justiça e sim por ser expressão da vontade política do povo”4.
Outros modelos de Estado surgiram em reação ao
individualismo burguês que marcou o Estado Legal, contestando a
insuficiente garantia que o Direito representava para a grande parcela
da população, a ausência de proteção efetiva dos direitos individuais
e econômicos, a irrealização da igualdade material, etc.
Foi com essa postura que o Estado democrático e social de
Direito, representando a soma das liberdades conquistadas com o
Estado liberal, objetivando possibilitar a todos a justiça social,
substituiu o modelo legalista do Estado Liberal e somente não se
firmou porque não alcançou o modelo constitucionalista.
A crise dos modelos anteriores marcadas, segundo
Ferrajoli5, pela crise da legalidade, crise na sua função social e
crise no tradicional conceito de soberania, aliados aos horrores das
duas Grandes Guerras, contribuíram para a busca de um novo
paradigma de Estado, fundado, dentre outros, nos princípios da
dignidade da pessoa humana.
O Estado Constitucional de Direito, identificado pela
incorporação de diversos princípios ético-políticos aos seus
estatutos fundamentais, substitui o modelo anterior, somando às
conquistas adquiridas a eleição da Carta Magna como referencial
de validade para as leis infraconstitucionais.
Dentro desse contexto se apresenta o Estado constitucional
de direito que, para além do Estado de direito clássico, é
caracterizado por possuir três fatores relevantes:

a) a supremacia da constituição, e, dentro desta, dos direitos


fundamentais, sejam estes de natureza liberal ou social;
b) a consagração do princípio da legalidade como subsunção

4
ACKERMAN, B. A nova separação dos poderes. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009. p. VII.
5
FERRAJOLI apud GOMES, op. cit., p. 28.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 77


efetiva de todos os poderes públicos ao direito; e
c) a funcionalização de todos os poderes do Estado para garantir o
desfrute dos direitos de caráter liberal e a efetividade dos
direitos sociais.

O Estado Constitucional de Direito tem seu principal foco


na Constituição, por estar o poder submetido ao direito e, portanto,
à lei, que é geral e abstrata, com sua origem na vontade geral,
diferindo do modelo anterior, Estado Legal ou Liberal, cujo poder
era concentrado no Legislativo, sem eleição da Constituição como
instrumento legal de controle e limite desse poder.
Nesse novo modelo de Estado de direito, assume relevância o
papel do Poder Judiciário como poder constituído que tem a última
palavra em nome dos sujeitos de direito, cabendo-lhe fazer valer as
garantias e os direitos fundamentais conquistados no Estado Liberal,
pois o Juiz não se limita a função de simples aplicador da lei,
executando a vontade do legislador ordinário, como no passado
legalista e positivista. Cumpre-lhe agora a função de interpretar a lei
diante da Constituição, fonte de validade da primeira.
A Constituição Federal, de acordo com a visão piramidal
proposta por Kelsen, é a fonte de validade de todas as outras que
lhe são inferiores, as quais não podem contrariá-la, sob pena de
serem expurgadas do ordenamento jurídico, face o vício de
inconstitucionalidade.

A Emenda Constitucional n. 45/2004 e a nova pirâmide normativa

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, parágrafo


segundo, incorporou as normas internacionais de direitos humanos
ao ordenamento jurídico interno. Essa incorporação alarga o
campo constitucional dos direitos e garantias individuais
elencados no dispositivo, aprimorando o moderno e atual modelo
de Estado de Direito: Estado de Direito Constitucional e
Transnacional.
Flavia Piovesan, enfrentando o tema, assinala que a
introdução do parágrafo segundo e terceiro no artigo 5º da
Constituição Federal, que se deu com a Emenda Constitucional n.

78 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


45 de 2004, deram ao Estado Constitucional do Direito uma
perspectiva internacional6.
O Estado Constitucional é regido pela Constituição Federal
e, com a reforma de 1988 e a Emenda n. 45 de 2004, deve ser
enfocado sob a ótica internacional a essa ordem incorporado,
quando a matéria é de direitos humanos.
Importa afirmar que o sistema piramidal de hierarquia das
leis abriu espaço para aglutinar o direito internacional de direitos
humanos na ordem interna.
No Estado Liberal e positivista, a Lei Ordinária era o foco e
único instrumento de solução dos conflitos. No Estado
Constitucional, a Constituição Federal assume a direção de comando
no sistema normativo piramidal e leis inferiores não lhe podem
contrariar. No Estado Constitucional e Transnacional de Direito, que
surge da somatória dos modelos anteriores, possuem relevância não
somente a Constituição Federal, mas, ainda, o Direito Internacional
de Direitos Humanos. Assim, o Estado Constitucional e
Transnacional de Direito é constituído de normas constitucionais,
infraconstitucionais e internacionais de direitos humanos.

A posição normativa hierárquica do Direito Internacional de


Direitos Humanos na ordem interna

A Constituição Federal de 1988, inaugurando nova ordem


jurídica, possibilitou a integração do direito internacional de
direitos humanos na ordem interna, embora nem sempre houvesse
a devida atenção pelos interpretes jurídicos, tanto que tratados e
convenções de direitos humanos em que o Brasil é signatário há
décadas, como o Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção
Americana de Direitos Humanos e outros, somente agora, frente à
recente posição do Supremo Tribunal Federal, passaram a ter, na
ordem interna, o devido tratamento.
De acordo com as disposições contidas na Constituição
Federal em seu art. 5º, § 1º, as normas definidoras dos direitos e

6
PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional.
São Paulo: Saraiva, 2009. p. 48.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 79


garantias fundamentais têm aplicação imediata. Vale dizer que,
uma vez ratificada, integra a ordem interna com o status de lei
ordinária, segundo a melhor doutrina.
Todavia, a Emenda Constitucional n. 45/2004, altera o
status normativo do direito internacional de direitos humanos,
quando aprovado pela maioria qualificada do Congresso Nacional,
conforme disposto no § 3º do mesmo dispositivo constitucional.
A propósito: “§ 3º Os tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais” (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de
2004) (Decreto Legislativo com força de Emenda Constitucional).
Assim, ante o texto constitucional, o direito internacional
de direitos humanos pode também ter o valor normativo de
emenda constitucional, se aprovado pela maioria qualificada das
duas casas legislativas.
No entanto, somente no final do ano passado o Supremo
Tribunal Federal firmou posição no sentido de acolher o direito
internacional na ordem interna, e objetivando encerrar o debate na
doutrina acerca do status normativo dos tratados e convenções de
direito internacional quando em conflito com lei nacional,
assevera que os mesmos não devem ser compreendidos sob a ótica
da horizontalidade ou temporalidade legal, mas à luz do princípio
pro homine.

T R ATA D O S I N T E R N A C I O N A I S D E
DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES
COM O DIREITO INTERNO BRASILEIRO E A
QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO
HIERÁRQUICA. - A Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter
subordinante dos tratados internacionais em
matéria de direitos humanos e o sistema de
proteção dos direitos básicos da pessoa humana. -
Relações entre o direito interno brasileiro e as
convenções internacionais de direitos humanos
(CF, art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes. - Posição
hierárquica dos tratados internacionais de direitos

80 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


humanos no ordenamento positivo interno do
Brasil: natureza constitucional ou caráter de
supralegalidade? - Entendimento do Relator, Min.
CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia
constitucional às convenções internacionais em
matéria de direitos humanos. A
I N T E R P R E TA Ç Ã O J U D I C I A L C O M O
INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL
DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos
informais de mutação constitucional e o papel do
Poder Judiciário: a interpretação judicial como
instrumento juridicamente idôneo de mudança
informal da Constituição. A legitimidade da
adequação, mediante interpretação do Poder
Judiciário, da própria Constituição da República,
se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante
exegese atualizadora, com as novas exigências,
necessidades e transformações resultantes dos
processos sociais, econômicos e políticos que
caracterizam, em seus múltiplos e complexos
aspectos, a sociedade contemporânea.
HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A
N O R M A M A I S FAV O R Á V E L C O M O
CRITÉRIO QUE DEVE REGER A
INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. -
Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua
atividade interpretativa, especialmente no âmbito
dos tratados internacionais de direitos humanos,
devem observar um princípio hermenêutico básico
(tal como aquele proclamado no Artigo 29 da
Convenção Americana de Direitos Humanos),
consistente em atribuir primazia à norma que se
revele mais favorável à pessoa humana, em ordem
a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. - O
Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que
prestigia o critério da norma mais favorável (que
tanto pode ser aquela prevista no tratado
internacional como a que se acha positivada no
próprio direito interno do Estado), deverá extrair a
máxima eficácia das declarações internacionais e
das proclamações constitucionais de direitos,
como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e
dos grupos sociais, notadamente os mais
vulneráveis, a sistemas institucionalizados de
proteção aos direitos fundamentais da pessoa
humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 81


respeito à alteridade humana tornarem-se palavras
vãs. - Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o
Artigo 29, ambos da Convenção Americana de
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa
Rica): um caso típico de primazia da regra mais
favorável à proteção efetiva do ser humano.7

A decisão da Suprema Corte foi prolatada em habeas


corpus que invocava a ilegalidade da prisão de depositário infiel,
frente às disposições contidas no artigo 7º, item 7, da Convenção
Americana Sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de
São José da Costa Rica, que determina que “Ninguém deve ser
detido por dívidas.Este princípio não limita os mandados de
autoridade judiciária competente expedidos em virtude de
inadimplemento de obrigação alimentar”8.
Depois de longo debate, o Supremo Tribunal Federal
acolhe as disposições contidas no referido Diploma Internacional,
incorporado na ordem interna pelo Decreto 678/92, antes da
Emenda Constitucional n. 45/2004, para restabelecer a liberdade
do depositário infiel, malgrado a disposição contida no artigo 5º,
LXVII, da Carta Magna, prevendo e permitindo a prisão civil em
situação semelhante.
Insta observar, de acordo com a moderna doutrina, que a
decisão do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição
Federal, longe de derrogar seus princípios, orientou-se de acordo
com o novo paradigma que marca o Estado de Direito
Constitucional e Transnacional, que para solucionar os conflitos
que envolvam restrição a liberdade, ou que violem qualquer
garantia individual, pauta-se pelas orientações normativas que
melhor promovam a dignidade humana. Não houve eleição do
direito internacional em desprestígio à ordem constitucional, nem
esta fora revogada por aquela, pois a nova pirâmide normativa não
deve ser compreendida sob o patamar antigo e legalista orientado
pela horizontalidade e temporalidade das leis, uma vez que o
sistema legal interno e o sistema internacional incorporado a
ordem interna devem ser compreendidos como sistemas que se

7
HC 90.450/MG, Rel. Min. Celso de Mello.
8
Convenção Americana dos Direitos Humanos, Decreto 678/1992.

82 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


completam, não se excluem, e que exigem, para serem
interpretados, a eleição do método do diálogo proposto pela antiga
teoria do diálogo das fontes, aplicando-se ao caso concreto a
espécie normativa que melhor o soluciona.
Assim, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal
corrobora com a tendência marcante do atual modelo de Estado de
Direito Constitucional e Transnacional que, após árdua
caminhada, vem coroar os propósitos iluministas que ergueram
bandeiras a favor da dignidade da pessoa humana ao proclamar no
acórdão acima citado que

[o] Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico


que prestigia o critério da norma mais favorável (que
tanto pode ser aquela prevista no tratado
internacional como a que se acha positivada no
próprio direito interno do Estado), deverá extrair a
máxima eficácia das declarações internacionais e
das proclamações constitucionais de direitos, como
forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos
grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a
sistemas institucionalizados de proteção aos direitos
fundamentais da pessoa humana, sob pena de a
liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade
humana tornarem-se palavras vãs.

Valor normativo dos Tratados e Convenções de Direito Penal


na ordem interna

Característica marcante do atual modelo de Estado de


Direito Constitucional e Transnacional está a relevância que o
direito internacional assume na ordem interna, ocupando posição
hierárquica de destaque quando a matéria é de direitos humanos.
Todavia, a mesma solução não se verifica quando a
internacionalização se refere a Tratados e Convenções em matéria
não penal, conforme acentua a melhor doutrina.
O Direito Penal Internacional estabelece, a princípio, as
relações do indivíduo com organismos internacionais, com definição
de crimes e penas, como se verifica com o Tratado de Roma, que traz
a criminalização internacional de condutas ao definir os crimes

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 83


internacionais. Nesse caso, o jus puniendi pertence ao Tribunal Penal
Internacional ao qual, inclusive, o Brasil reconhece e se submete,
conforme artigo 5º da CF, pois são os Estados soberanos que
subscreveram e ratificaram o respectivo tratado.
No entanto, na ordem interna, a relação se verifica entre o
indivíduo e o jus puniendi do Estado brasileiro, de forma que tais
tratados e convenções não podem servir de fonte do Direito penal
incriminador, ou seja, nenhum documento internacional, em
matéria de definição de crimes e penas, pode ser fonte normativa
direta e válida para o Direito interno brasileiro, como acentua o
professor Luiz Flávio Gomes.
As normas penais incriminadoras que criam ou ampliam o
jus puniendi são originadas na lei. Decorre do principio da reserva
legal, um dos princípios resultantes das conquistas individuais que
derrogou o Estado Absolutista, impondo a prévia existência de lei
formal para a punição de crimes. Essa formalidade a que se refere o
princípio da Reserva Legal é aquela que decorre da expressão da
soberania popular.
O procedimento constitucional previsto para aprovação e
validade na ordem jurídica interna dos Tratados e Convenções, de
acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, que se inicia com a celebração de acordos internacionais, é
de competência privativa do Presidente da República, conforme
determina o seu artigo 84, inciso VIII.
Todavia, conforme demonstrado no mesmo dispositivo
legal, apesar da competência para a celebração de tratados,
convenções e atos internacionais ser privativa do chefe do
executivo, tais tratados internacionais devem sujeitar-se ao
referendo do Congresso Nacional.
Vale ressaltar, porém, que o objetivo desse referendo
limita-se a autorizar ou rejeitar a ratificação do tratado, não
podendo, em nenhuma hipótese, interferir no conteúdo do tratado
ou alterar o seu texto original.
Verifica-se, pois, que mesmo os Tratados e Convenções
Internacionais, por força do disposto no artigo 84, VIII, são
celebrados pelo Presidente da República, e embora tenham que
obter aprovação do Legislativo, não podem ser por este alterados,
pois ele se limita apenas a aprovar ou não o texto do Tratado

84 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Internacional, via Decreto Legislativo. O Congresso Nacional, no
exercício da soberania popular, não pode alterar o conteúdo do que
foi unilateralmente pactuado pelo Chefe do Executivo.
A partir da referida autorização do Poder Legislativo, o
Presidente da República deve ratificar o tratado, exprimindo,
assim, sua vontade de obrigar-se no plano internacional.
A ratificação deve ser um ato formal, e se materializa
através de um instrumento de ratificação, o qual é assinado pelo
chefe do executivo, e a troca dos instrumentos de ratificação por
parte dos Estados contratantes fixa o momento da entrada em vigor
do tratado celebrado na ordem jurídica internacional.
A última fase do procedimento de celebração de um tratado
internacional no Brasil é a fase integrativa de eficácia, que
compreende a promulgação e a publicação.
A promulgação ocorre através de decreto do Presidente da
República e representa o ato pelo qual o Estado contratante torna
público o tratado celebrado.
Além disso, o referido decreto deve ser publicado no Diário
Oficial da União, para que produza efeitos ex tunc, abrangendo, assim,
as datas previstas no tratado para a sua entrada em vigor, tendo em vista
que na maioria dos tratados celebrados pelo Brasil há a previsão da
entrada em vigor após a troca de instrumentos de ratificação.
Portanto, não se pode dar aos Tratados e Convenções
Internacionais de Direito Penal o mesmo tratamento dispensado
aos Tratados e Convenções de Direitos Humanos, pois estes
ampliam direitos e garantias, enquanto aqueles cerceiam,
restringem direitos e garantias, sobretudo o direito à liberdade. Daí
porque somente a espécie normativa resultante da vontade popular
representada pelo Poder Legislativo pode criminalizar condutas
ou restringir direitos e garantias: “Como dizia o Marquês de
Beccaria, Cesare Bonessana, só uma norma procedente do poder
legislativo, que representa toda uma sociedade unida pelo contrato
social, pode limitar a sagrada liberdade do indivíduo, definindo os
delitos e estabelecendo penas”9.
O Tratado de Palermo, que definiu o crime organizado

9
GOMES, L. F. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica.
São Paulo: Premier, 2008. p. 41.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 85


transnacional, não possui valor normativo suficiente para
delimitar internamente o conceito de organização criminosa,
mesmo depois de referendado pelo Congresso Nacional e
ratificado pelo Executivo, como se verifica com os Tratados de
Direitos Humanos, uma vez que aqui há sempre uma ampliação de
direitos e garantias individuais, devendo ser imediatamente
aplicado. Porém, no Tratado Internacional de direito penal
incriminador, como a Convenção de Palermo, ocorre o inverso, ou
seja, verifica-se a criminalização de condutas, verdadeira
limitação à liberdade individual, exigindo-se maior intervenção do
poder que representa a soberania popular.
Dessa forma, não se prestando à criminalização de
condutas, os Tratados e Convenções de Direito Penal
Incriminador, embora aprovados por Decreto Legislativo e
ratificados por Decreto do Presidente da República, integram o
ordenamento jurídico interno, servindo apenas de instrumento
para orientar o Legislativo na produção de norma legal que atenda
aos compromissos assumidos pelo Brasil junto à comunidade
internacional e, mesmo assim, desde que não se afastem dos
princípios constitucionais que sustentam o atual modelo garantista
do Estado Constitucional de Direito.

Da tipificação de crime organizado no sistema jurídico nacional

Inicialmente, importa afirmar não existir, até então no


Brasil, legislação penal incriminadora que tenha definido e
tipificado conduta que caracterize crime organizado.
Em pleno vigor, a Lei 9.034/95, alterada pela Lei
10.217/01, não define o tipo penal de crime organizado, estando
em pauta acirrada discussão doutrinária e política referente ao
conceito de organização criminosa. Maior discussão se assenta na
composição do número de agentes mínimos, características e
finalidade da organização.
Todavia, com a inclusão da Convenção de Palermo no
ordenamento jurídico brasileiro, trazendo o conceito de
organização criminosa, alguns setores da doutrina passaram a
entender por encerrada a discussão em torno do tema, tendo a

86 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Convenção condições de ser aplicada de imediato. Essa é a posição
do Conselho Nacional de Justiça, órgão dirigido atualmente pelo
Presidente do Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, registra-se a decisão do Supremo Tribunal
Federal que, em habeas corpus impetrado com o objetivo de
trancamento de ação penal, externou o entendimento de plena
vigência da Convenção de Palermo no ordenamento jurídico,
ainda que tipificando conduta criminosa.

Apesar de ser um procedimento totalmente


inconstitucional, o STJ, Quinta Turma, no HC
77.771-SP, rel. Min. Laurita Vaz, j. 30.05.08,
acabou aceitando tal definição, para uso no Direito
penal interno brasileiro: “HABEAS CORPUS.
LAVAGEM DE DINHEIRO. INCISO VII DO
A RT. 1 . º D A L E I N . º 9 . 6 1 3 / 9 8 .
APLICABILIDADE. ORGANIZAÇÃO
CRIMINOSA. CONVENÇÃO DE PALERMO
APROVADA PELO DECRETO LEGISLATIVO
N.º 231, DE 29 DE MAIO DE 2003 E
PROMULGADA PELO DECRETO N.º 5.015,
DE 12 DE MARÇO DE 2004. AÇÃO PENAL.
TRANCAMENTO. IMPOSSIBILIDADE.
EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS SUFICIENTES
PARA A PERSECUÇÃO PENAL.10

Referidos posicionamentos parecem não se ajustar ao


princípio da reserva legal e ao princípio da legalidade,
sustentáculos do Estado de Direito Constitucional com vistas ao
modelo garantista em matéria penal, pois a Convenção de
Palermo, embora integrando o ordenamento jurídico interno, no
sistema penal brasileiro somente se admite a existência de crime
quando lei formal previamente o defina.
Embora o decreto legislativo aprovando o Tratado de
Palermo se insira entre as espécies normativas previstas no
ordenamento jurídico, não pode ser fonte de direito penal
incriminador, com autoridade para tipificar condutas.
O artigo 22 da Constituição Federal expressamente
determina que somente a União pode legislar sobre Direito penal.

10
GOMES, 2009, internet.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 87


Somente o Estado, através do poder legislativo, detentor do direito
de punir, é único titular da criação e ampliação do jus puniendi,
cabendo-lhe exclusivamente a criação de normas penais que
incriminam condutas.
O Estado, embora detentor do jus puniendi, na criação e
ampliação de criminalização de condutas, não pode exercê-lo à
margem dos princípios limitadores do seu direito de punir, pois
esta é uma característica do Estado de Direito Constitucional.

Em matéria penal que incrimina condutas, o princípio


da reserva legal adquire dimensão de destaque.
Inserido no inciso XXXIX, do artigo 5º da
Constituição Federal, exige que a conduta, para ser
crime, deve subsumir-se ao tipo legal definido por lei.
Mas ainda há que se perguntar: que lei? A resposta
é: a lei formal, a lei produzida pelo Congresso
Nacional segundo o procedimento
constitucionalmente estabelecido, pois cabe a União
legislar sobre a matéria (art. 22, I). Não se admite a
definição de infração penal nem por decreto, nem
por lei delegada e, conseqüentemente, nem por lei
delegada.11

Ainda, colhe-se da doutrina de Rogério Greco:

Um direito Penal que procura estar inserido sob


uma ótica garantista deve obrigatoriamente
discernir os critérios de legalidade formal e
material, sendo ambos indispensáveis à aplicação
da lei penal. Por legalidade formal entende-se a
obediência aos trâmites procedimentais previstos
pela Constituição para que determinado diploma
legal possa vir a fazer parte de nosso ordenamento
jurídico. Contudo, em um Estado Constitucional
de Direito, no qual se pretende adotar um modelo
penal garantista, além da legalidade formal deve
haver, também, aquela de cunho material. Devem
ser obedecidas não só as formas e procedimentos
impostos pela Constituição, mas também, e
principalmente, o seu conteúdo, respeitando-se

11
SILVA, J. A. Comentários contextuais à Constituição. 6. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2009. p. 138.

88 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


suas proibições e imposições para a garantia de
nossos direitos fundamentais por ela previstos.12

Atualmente não se pode deixar de considerar que o modelo


de direito penal se pauta, no Brasil, pelos princípios limitadores do
poder punitivo do Estado, previstos na Constituição Federal,
deixando de ser legítima a intervenção Estatal no direito à
liberdade do cidadão quando se apresentar criminalizando
condutas por vias avessas à legalidade formal e material.
A norma penal no modelo garantista deve não somente ter
vigência, mas apresentar-se válida. A norma é vigente quando presente
a legalidade formal. No entanto, somente será válida e, portanto,
passível de aplicação, se estiver conforme o texto constitucional.
O modelo atual de Estado Constitucional de Direito que
incorporou o direito internacional de direitos humanos à ordem
interna exige, ainda, que a validade da norma também se
condicione à conformidade com os tratados e convenções de
direitos humanos incorporados à ordem interna.
O ordenamento jurídico penal ainda não apresenta lei
vigente e válida que conceitue crime organizado, ante a ausência
da descrição típica da referida conduta proibida. A Convenção de
Palermo, além de ser espécie normativa desprovida de legalidade
formal, não se prestando a criminalização de condutas na ordem
interna, conceitua o que vem a ser crime organizado transnacional,
não preenchendo o vácuo existente pela falta de conceituação legal
de crime organizado sem os contornos da transnacionalidade.
Ademais, é princípio basilar do Estado Constitucional a vedação
do emprego de analogia ou qualquer outro recurso para a
criminalização de condutas.

Conclusão

O moderno Estado Constitucional de Direito


Transnacional está intimamente relacionado com o princípio da
legalidade, sobretudo em matéria penal, pois a subordinação de

12
GRECO, R. Curso de Direito Penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Impetus,
2008. p. 98-99.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 89


todos à lei é a única forma de se evitar a intervenção arbitrária do
Estado nos direitos e garantias dos cidadãos, além de impedir que o
Estado detenha o poder absoluto.
A Resolução do Conselho Nacional de Justiça que
determina a criação de varas especializadas para o julgamento de
crimes que sequer encontram tipificação no direito penal e o
posicionamento do Supremo Tribunal Federal, admitindo a
conceituação de organização criminosa adotado pela Convenção
de Palermo, instrumento legal que, embora integrado a ordem
interna, não se submeteu ao devido processo constitucional para
sua formalização, parecem afrontar a Constituição Federal.
Esse pró-ativismo da Suprema Corte em matéria penal
pode comprometer as garantias conquistadas ao longo do processo
evolutivo do Estado de Direito, pois qualquer restrição ao direito a
liberdade do cidadão sem a observância da legalidade formal e
material, aumentando o poder punitivo do Estado, é suscetível de
ensejar um retrocesso ao antigo e derrocado modelo de Estado
Absolutista, com a diferença do poder se concentrar não mais nas
mãos de um soberano, mas sob a autoridade daquele órgão que
deveria, no atual e moderno Estado de Direito Constitucional, ser o
fiel guardião das garantias conquistadas, sobretudo ao aplicar o
Direito e promover a Justiça.

Referências

ACKERMAN, B. A nova separação dos poderes. Rio de Janeiro: Lumen


Juris, 2009. p. VII.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Ata da 20ª sessão ordinária, de 30


de maio de 2006. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/
siteantigocnj/index.php?option=com_content&task=view&id=84&
Itemid=158&fontstyle=f-default)>. Acesso em: 24 abr. 2009.

GOMES, L. F. Definição de crime organizado e a Convenção de Palermo.


Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: 06 mai. 2009.

______. Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica.


São Paulo: Premier, 2008.

90 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


GRECO, R. Curso de Direito Penal. Parte geral. Rio de Janeiro:
Impetus, 2008.

JUNIOR, J. N. M. Estado Constitucional de Direito: Breves


considerações sobre o Estado de Direito. 2007. Disponível em:
http://www2.uel.br/revistas/direitopub/pdfs/VOLUME_2/num
_3/joao%20nunes.pdf.

PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional


Internacional. São Paulo: Saraiva, 2009.

SILVA, J. A. Comentários contextuais à Constituição. 6. ed. São Paulo:


Malheiros Editores, 2009.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 91


6
FARIAS, op. cit., p. 138.

92 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


O DIREITO E A POLÊMICA DO INÍCIO
DA VIDA HUMANA

Lucas Danilo Vaz Costa Júnior*

Resumo:
O presente artigo científico versa sobre a grande celeuma instaurada no
cenário jurídico-científico acerca da definição do início da vida humana,
a partir da Lei da Biossegurança, cuja constitucionalidade foi
confirmada pela Suprema Corte na Ação Direta de Inconstitucionalidade
3510. Após elencar os argumentos empregados no voto líder, de lavra do
eminente Min. Carlos Brito, relator da referida ação, o texto aponta a
viabilidade científica e terapêutica na utilização de embriões sem
potencialidade reprodutiva para a pesquisa com células-tronco,
verdadeira mutação bioética de cariz evolutivo-social, sem qualquer
vulneração à dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: início da vida, momento, mutação bioética, pesquisa,


células-tronco, embriões inviáveis, fins terapêuticos.

Os estudos bioéticos demonstram que se tornou inadiável


instaurar um debate público e amplo sobre o que seria certo ou
errado frente aos avanços das ciências biológicas. Com efeito, a
Lei 9.434/97 redefiniu o término da vida com base no fim do
funcionamento cerebral, em substituição ao critério da parada
cardiorrespiratória, o que implica mutação bioética com relação ao
momento da morte. De igual maneira, a reprodução assistida,
agora contemplada no art. 1.597 do Código Civil, pode implicar
alteração quanto ao momento do início da vida.
A discussão atual versa sobre a manipulação de células-
tronco embrionárias para fins terapêuticos, ou seja, a utilização de
embriões inviáveis ou congelados há três anos ou mais, devido ao
não aproveitamento em fecundação assistida. Segundo os
cientistas, as células embrionárias possuem maior utilidade
*
Promotor de Justiça em Goiás. Especialista em Direito Processual.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 93


terapêutica se comparadas com as células adultas, por serem
dotadas da capacidade natural de dar origem a órgãos complexos
do corpo humano.
Presente esse contexto, em 24/03/2005, o Congresso
Nacional aprovou a Lei Federal 11.105/2005, conhecida como Lei
da Biossegurança, a qual, dentre outros aspectos, regulamentou a
utilização das denominadas células-tronco embrionárias para fins
terapêuticos e de pesquisa científica no país.
Entretanto, sob o entendimento de que tal diploma
normativo vulneraria o direito à vida, o Procurador-Geral da
República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510,
em face do art. 5º da Lei de Biossegurança, para que o Supremo
Tribunal Federal decidisse qual seria o momento do início da vida
para, então, julgar a inconstitucionalidade da antedita lei. Todavia,
o Pretório Excelso, sem fixar qual seria o marco do início da vida,
julgou improcedente o pedido formulado na sobredita ADI, ao
argumento de que a Constituição Federal não garante a
inviolabilidade absoluta do direito à vida nem confere dignidade
ao embrião humano mantido em laboratório.
O eminente Min. Carlos Ayres Brito, relator da ADI 3510,
defendeu que a Constituição Federal, quando se refere a direitos e
garantias constitucionais, fala do indivíduo-pessoa, ser humano, já
nascido, desconsiderando o estado de embrião e feto, apesar de a
legislação infraconstitucional ter cuidado do direito do nascituro,
do ser concebido e ainda não nascido. O ministro sustentou a tese
de que, para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha
sido implantado no útero humano. Segundo ele, tem de haver a
participação ativa da futura mãe. E o embrião, como mero material
genético, não sobrevive no útero sem a mãe. Afirmou ainda que o
zigoto (embrião em estágio inicial) é a primeira fase do embrião
humano, a célula-ovo ou célula-mãe, mas representa uma
realidade distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro
formado1.
Convém distinguir embrião e nascituro. Com efeito, o

1
DISTRITO FEDERAL. Ação Direita de Inconstitucionalidade 3.510-0.
Dispnível em: http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/
adi3510relator.pdf.

94 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


nascituro é o ente humano concebido, mas não nascido. Trata-se de
homem ou mulher em processo de gestação no útero da mãe.
Conforme Silva2, indica aquele que há de nascer, o ente gerado ou
concebido que tem existência no ventre materno.
Já o embrião, não obstante ser dotado de carga genética própria,
é um organismo celular resultante da união do óvulo com o
espermatozóide, cujo êxito forma uma única célula denominada zigoto
(ou ovo), o qual, implantado no útero materno, dá ensejo à concepção.
Nessa esteira, sobre o momento em que se inicia a vida
humana, Maria Helena Diniz, citada por Vieira3, ressalta, com
propriedade:

[...] a vida teria início, naturalmente, com a


concepção no ventre materno. Desse modo, na
fertilização in vitro, embora seja a fecundação do
óvulo pelo espermatozóide que inicia a vida, seria
a nidação do zigoto ou do ovo que a garantiria;
logo, para alguns autores o nascituro só seria
‘pessoa’ quando o ovo fecundado fosse implantado
no útero materno, sob a condição de nascimento
com vida. Entretanto, noutra ponta há a corrente
minoritária que afirma que o embrião já é pessoa.

Conquanto polêmico o tema, notadamente por conta de


incursões de ordem religiosa, temos que a pesquisa científica não
ameaça a dignidade humana quando se trata do emprego de células-
tronco de embriões inviáveis, pois o legislador, acertadamente,
permitiu pesquisas com embriões sem potencialidade reprodutiva,
para os quais havia duas saídas, o descarte ou a pesquisa direcionada
à utilidade terapêutica. Na ponderação de interesses, de forma
correta, o legislador optou pela segunda alternativa.
Por certo, o tema divide opiniões e trava o embate a respeito
da definição do início da vida. Assim como o conceito de morte
evoluiu para atender aos anseios da sociedade, a saber, transplante
de órgãos, o início da vida tende a ser amparado por conceitos

2
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2009. p. 942.
3
VIEIRA, T. R. et al. Células-tronco embrionárias e os direitos do nascituro -
parte I. Revista Jurídica Consulex, ano X, n. 223, p. 14, 30 de abril de 2006.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 95


científicos para atender aos fins terapêuticos, sem qualquer
violação ao disposto na Constituição Federal.

Referências

DISTRITO FEDERAL. Ação Direita de Inconstitucionalidade 3.510-0.


Dispnível em: http://www.stf.gov.br/ arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/
anexo/adi3510relator.pdf.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 28. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2009.

VIEIRA, T. R. et al. Células-tronco embrionárias e os direitos do


nascituro - parte I. Revista Jurídica Consulex, ano X, n. 223, p. 14, 30 de
abril de 2006.

96 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


A PRISÃO PREVENTIVA NOS CASOS DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Maria Aparecida Nunes Amorim*

Resumo:
O sistema processual penal brasileiro consubstanciado no Código de
Processo Penal de 1941 foi elaborado partindo-se da premissa de um
juízo de antecipação da culpabilidade. Cabe, portanto, ao operador do
Direito, interpretar o Título IX do CPP, “Da Prisão e da Liberdade
Provisória”, à luz da Constituição da República de 1988, bem como
sobre a batuta dos princípios constitucionais implícitos da
proporcionalidade e da razoabilidade. É diante desse alerta que se
analisará a constitucionalidade do inciso IV, do art. 313 do Código de
Processo Penal, frente à nova jurisprudência dos Tribunais Superiores
acerca da prisão preventiva e o princípio da não culpabilidade ou
presunção de inocência.

Palavras-chave: Prisão preventiva, Lei Maria da Penha,


Constitucionalidade.

O ano de 2009 está sendo brindado com lúcidas decisões do


Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça acerca
da prisão preventiva, cautelar por excelência, e o princípio da não
culpabilidade. É o reflexo de anos de trabalho de doutrinadores
acerca das incongruências do Código de Processo Penal frente ao
sistema de direitos e garantias constitucionais brasileiro.
Certamente chegará aos Tribunais Superiores a controvérsia
envolvendo o disposto no art. 313, IV, do Código de Processo
Penal, e espera-se uma decisão que coadune com a Constituição de
1988. O art. 313, IV, do CPP dispõe:

*
Promotora de Justiça do Estado de Goiás, pós-graduada em Direito Penal pela
Universidade Federal de Goiás, Especialista em Direito Penal pela Universidade
de Brasília.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 97


Art. 313. Em qualquer das circunstâncias,
previstas no artigo anterior, será admitida a
decretação da prisão preventiva nos crimes
dolosos:1
[...]
IV - se o crime envolver violência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos da lei
específica, para garantir a execução das medidas
protetivas de urgência.2

Rômulo de Andrade Moreira3, Procurador de Justiça da


Bahia, em obra de sua coautoria, A Lei Maria da Penha – aspectos
criminológicos, de política criminal e procedimento penal,
escreve sobre o referido artigo:

Aqui mais um absurdo e uma


inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha.
Permite-se que qualquer que seja o crime (doloso),
ainda que apenado com detenção (uma ameaça,
por exemplo), seja decretada a prisão preventiva,
bastando que estejam presentes o fumus commissi
delicti (indícios da autoria e prova da existência do
crime – art. 312, CPP) e que a prisão seja necessária
para garantir a execução das medidas de proteção
de urgência. A lei criou, portanto, este novo
requisito a ensejar a prisão preventiva.

É certo que os defensores árduos da Lei Maria da Penha


(Lei n. 11.340/06), talvez cegados por posições ideológicas
extremadas que impedem de vislumbrar inconstitucionalidades na
referida lei em nome da defesa do gênero mulher, entendem que
houve apenas um equívoco do legislador, vez que o disposto no art.
313, IV, do CPP deveria constar de fato na redação do art. 312
daquele diploma legal. Eles consideram que há a natureza de
verdadeiro fundamento da prisão preventiva no disposto no inciso
quarto do art. 313, CPP, e que é possível, portanto, sem pecha de

1
Redação dada pela Lei n. 6.416, de 24/05/1977.
2
Incluído pela Lei n. 11.340, de 2006.
3
GUIMARÃES, I. S.; MOREIRA, R. de A. A Lei Maria da Penha – aspectos
criminológicos, de política criminal e do procedimento penal. Salvador:
JusPodivm, 2008. p. 157.

98 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


inconstitucionalidade, a decretação da preventiva para que se
garanta a eficácia das medidas protetivas previstas na Lei Maria da
Penha. Nessa visão distorcida não seria mais necessária a
demonstração dos requisitos da garantia da ordem pública ou
econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei
penal, além da magnitude da lesão causada nos casos dos crimes
contra o Sistema Financeiro Nacional4. Data vênia, o debate não
pode se resumir a tal assertiva, pois o problema reside em
reconhecer a preventiva in casu como verdadeira prisão de cunho
obrigacional 5, bem como a possibilidade de infligir uma
verdadeira prisão pena a alguém que não foi definitivamente
julgado, podendo ser que a pena definitiva, se culpado o agressor,
seja bem menor do que a pena cautelar cumprida durante o
decorrer do processo6.
Ambas situações são incompatíveis com a Constituição
Federal e com o sistema de princípios penais e processuais penais
plasmados no sistema brasileiro. A primeira tese, de que a prisão
preventiva, no caso do art. 313, IV, não pode ser entendida como de
cunho obrigacional, é defendida por Nestor Távora, defensor
público em Alagoas, e por Rosmar Alencar, Juiz Federal. Eles
compreendem que não há que se imprimir a tal preventiva um
efeito coativo à realização das medidas protetivas em razão da
própria interpretação sistemática do diploma 11.340/06. O art. 22
da referida lei traz:

Constatada a prática de violência doméstica e


familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o
juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em
conjunto ou separadamente, as seguintes medidas
protetivas de urgência, entre outras: [...]§ 3 Para
o

garantir a efetividade das medidas protetivas de


urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer
momento, auxílio da força policial. § 4 Aplica-se
o

às hipóteses previstas neste artigo, no que


couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art.
4
GUIMARÃES; MOREIRA, op. cit., p. 156.
5
TÁVORA, N.; ALENCAR, R. R. Curso de Direito Processual Penal. 3.ed.
rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2009. p. 483.
6
NUCCI, G. de S. Leis penais e processuais penais comentadas. 3.ed. rev. atual
e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 1141-1142.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 99


461 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973
(Código de Processo Civil)7. (grifos nossos)

Ora, se o legislador inseriu na lei a possibilidade de o juiz


requisitar a força policial a qualquer tempo para efetivação das
medidas protetivas, não há que se valer, portanto, da decretação da
prisão preventiva, vez que outra alternativa menos onerosa e mais
condizente com a ordem constitucional foi oferecida ao
magistrado. Impende notar, ainda, que o parágrafo quarto do art.
22 em tela invoca a aplicação de dispositivos do Código de
Processo Civil que tratam de ferramentas de coação para dar
efetividade a certas obrigações, imposição de astreintes, busca e
apreensão etc. Há, portanto, outros meios eficazes para a proteção
da mulher e menos onerosos ao réu para se percorrer. E quanto ao
segundo questionamento acerca da preventiva nos delitos de
violência doméstica, Guilherme de Souza Nucci8 critica a
possibilidade da preventiva em todos os delitos que envolvem
violência doméstica, e alerta:

Se preenchidos os requisitos legais (art. 312, CPP),


cabe a custódia cautelar. Entretanto, é fundamental
muita cautela para tomar essa medida. Há delitos
incompatíveis com a decretação de prisão
preventiva. Ilustrando: a lesão corporal possui
pena de detenção de três meses a três anos; a
ameaça, de detenção de um a seis meses, ou multa.
São infrações penais que não comportam
preventiva, pois a pena a ser aplicada, no futuro,
seria insuficiente para “cobrir” o tempo de prisão
cautelar (aplicando-se, naturalmente, a detração
conforme art. 42 do Código Penal). Leve-se em
conta, inclusive, para essa ponderação, que vigora
no Brasil a chamada política da pena mínima, vale
dizer, os juízes, raramente, aplicam pena acima do
piso e, quando o fazem é um elevação ínfima, bem
distante do máximo. Estaria configurada uma
violação abominável contra o réu, que ficaria

7
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato 2004-2006/2006/Lei/L11340.htm> Acesso em: 30
mai. 2009.
8
NUCCI, op. cit., p. 1141-1142.

100 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


cautelarmente detido por mais tempo do que a pena
futura a ser aplicada. Por tal motivo, o juiz deve
ponderar, como se faz nos processos criminais
comuns, se a prisão preventiva é, realmente,
necessária e compatível com o crime cometido em
tese.

Insta observar que a aplicação do art. 313, inciso IV,


somente será possível se presentes pelo menos os requisitos da
preventiva, bem como uma das hipóteses da decretação da
cautelar, no art. 312 do Código de Processo. A aplicação da prisão
preventiva somente tendo como escopo a efetividade das medidas
protetivas pode ensejar injustiças maiores perante o sistema penal,
seja em razão de existirem outros meios que impõem uma eficácia
às medidas protetivas, seja em razão de a prisão cautelar no caso se
consubstanciar em uma injustiça em virtude da possibilidade de o
réu ficar preso cautelarmente por um tempo superior ao de sua
condenação futura e definitiva. Dessarte, é muito provável que a
interpretação futura dos Tribunais Superiores possa corrigir a
distorção efetivada pela falta de técnica legislativa do parlamentar
brasileiro, em respeito à unidade da Constituição e da interpretação
de todo o sistema legislativo, de acordo com a Constituição
Federal, e não o contrário. A prisão preventiva nos delitos de
violência doméstica e familiar contra a mulher será possível se
presente a comprovação da materialidade, os indícios da autoria e a
subsunção a uma das hipóteses autorizadoras da decretação
constantes no art. 312 do CPP. Dessa forma, a proteção será
oferecida de maneira equânime à ofendida, bem como ao acusado,
em respeito ao princípio da proporcionalidade e ao princípio da
isonomia.

Referências

BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/
L11340.htm>. Acesso em: 30 mai. 2009.

GUIMARÃES, I. S.; MOREIRA, R. de A. A Lei Maria da Penha –


aspectos criminológicos, de política criminal e do procedimento
penal. Salvador: JusPodivm, 2008.

NUCCI, G. de S. Leis penais e processuais penais comentadas.


3.ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

TÁVORA, N.; ALENCAR, R. R. Curso de Direito Processual


Penal. 3.ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2009.

102 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


CUSTO DO NÃO INVESTIMENTO NA
INFÂNCIA E NA JUVENTUDE

Mário Luiz Ramidoff*

Resumo:
O custo econômico, político e social da falta de investimento humano,
estrutural e responsável na infância e na juventude impede a efetivação
dos direitos fundamentais afetos às pessoas que se encontram na peculiar
condição de desenvolvimento, isto é, crianças e adolescentes. A
promoção e a defesa dos direitos fundamentais afetos à criança e ao
adolescente se consolidam na implementação da dotação orçamentária
destinada às políticas sociais públicas formuladas em prol da infância e
da juventude, com absoluta prioridade.

Palavras-chave: Direito da Criança e do Adolescente, políticas


públicas, direitos fundamentais, doutrina da proteção integral, absoluta
prioridade.

O custo econômico, político e social da falta de


investimento humano, estrutural e responsável na infância e na
juventude, por certo somente é superável pelo desinvestimento
congênere que se opera através do desmantelamento das políticas
públicas já estabelecidas. Por política pública entende-se, aqui, na
área infanto-juvenil, principalmente, a vinculação legislativa da
destinação de recursos públicos a programas e planos de
atendimento das necessidades vitais básicas afetas à criança e ao
adolescente. Isto é, a determinação legal de dotação orçamentária
específica para o desenvolvimento e manutenção de programas e
planos de custeio de ações e serviços que atendam às demandas
próprias e inerentes à formação pessoal, familiar e comunitária das
crianças e dos adolescentes.

*
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Mestre (CPGD-
UFSC) e Doutor em Direito (PPGD-UFPR). Professor da UniCuritiba.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 103


Por isso, é importante ressaltar que os aspectos
econômicos, políticos e sociais não são estanques e muito menos
puros. Ou seja, não podem ser considerados isolados ou mesmo
destacadamente um dos outros, pois, na verdade, imbricam-se
num verdadeiro mix conceitual para que se possa efetivamente
contemplar as complexas condições humanas elementares da
existência humana, quais sejam: a infância e a juventude. Por mais
grave que seja a falta ou a carência econômico-financeira pessoal e
familiar desses seres humanos que se encontram na condição
peculiar de desenvolvimento, é certo que continuam a sustentar a
titularidade de direitos fundamentais pertinentes à condição
jurídica de “sujeitos de direito”.
Tal condição humana elementar à criança e ao adolescente,
enquanto ser humano em formação da personalidade
(desenvolvimento físico e psíquico), enseja o reconhecimento
legal da absoluta prioridade (garantia) na “efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária”, nos termos do
art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente1.
Idêntica proposição afirmativa dos direitos fundamentais
afetos à infância e à juventude já havia sido consignada no texto
constitucional – art. 227, da Constituição da República de 1988 –
através da adoção da denominada “doutrina da proteção integral”,
cuja vertente humanitária2 se fundamenta na “teoria do interesse”3,
1
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber
proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos
serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na
execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos
públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude (BRASIL.
Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/ L8069.htm).
2
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada em
Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989.
3
MACCORMICK, N. Derecho legal y socialdemocracia: ensayos sobre filosofía
jurídica y política. Trad. de Maria Lola González Soler. Madrid: Tecnos, 1990.

104 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


isto é, do superior e do “melhor interesse da criança”4 e do
adolescente, enquanto opção político-ideológica social do
Constituinte de 1987/1988.
A compreensão para o enfrentamento das inúmeras e
diferenciadas espécies de ameaças e de violências – por vezes
endêmicas, como, por exemplo, a corrupção5 – aos direitos
fundamentais afetos à infância e à juventude, perpassa não só pela
análise de suas “origens e teorias”6, mas, também, pela elaboração
de estudos e pesquisas acerca das reais condições de vida
experimentadas pela população infanto-juvenil7. Por isso, é
fundamental a participação popular nas discussões acerca da
formulação da “Lei de Diretrizes Orçamentárias”, bem como do
“Plano Plurianual” e da “Lei Orçamentária Anual”8.
Os baixos níveis de escolaridade e desempenho acadêmico
da população infanto-juvenil, então, associados aos altos índices

4
PEREIRA, T. da S. (Coord.). O melhor interesse da criança: um debate
interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
5
RAMIDOFF, M. L. Repúdio à responsabilização penal de adolescentes
infratores. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/. Acesso em: 11 out.
2007. Vale dizer, “é certo que tais medidas legislativas de caráter meramente
repressivo-punitivo não reduzirão, como nunca reduziram, sequer,
minimamente, a violência estrutural – isto é, a miséria, o desemprego, a falta
de apoio institucional às famílias, a corrupção (“mensalões”, “sanguessugas”,
“apagões aéreos”, “operação furacão”, etc.) –, na qual se encontra histórico e
culturalmente mergulhada a família, a sociedade e o Estado brasileiro”.
6
BAUER, G. G. T. Origens e teorias sobre a violência. Curitiba, 2007. Texto
inédito. O autor destaca o aspecto político do conteúdo da violência, a qual, por
vezes, “é decorrente de relacionamentos sociais” vinculados a questões
estruturais, como, por exemplo, a “situação de autoridade”, que produz faltas e
desvios de poder. A violência necessita de instrumental “para se efetivar,
obedecendo a uma lógica de realização, utilizando-se dos meios mais
apropriados para atingir os objetivos almejados [...] passando-se a fazer uso de
meios administrativo-burocráticos estatais e de conhecimentos científicos
para a eliminação ou extermínio de grupos e povos inteiros, como meta e ação
fundamental da política”.
7
CUNNINGHAM, W. (Coord.). Jovens em situação de risco no Brasil. v. I.
(Achados relevantes para as políticas públicas – Policy Briefing). v. II
(Relatório Técnico). Brasília: Unidade de Gerenciamento do Brasil, do Banco
Mundial, 2007.
8
VENERI, T. Orçamento público do Paraná. Curitiba: Assembléia Legislativa
do Paraná, 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 105


de miserabilidade dos núcleos familiares em que se encontra
inserido considerável número de crianças e adolescentes, no
Brasil, aumentam consideravelmente as possibilidades de
vitimização dessas pessoas que se encontram na condição peculiar
de desenvolvimento, principalmente quando desenvolvem
comportamentos relacionados à “atividade sexual, violência, uso
ilegal de drogas e desemprego”9.
Dessa forma, a identificação de “determinantes
contextuais e conjunturais”, aliada à comparação das
“experiências internacionais”, constituem-se importantes
elementos “na formulação e na execução das políticas sociais
públicas” (art. 4º do Estatuto), em prol da efetivação dos direitos
fundamentais afetos à criança e ao adolescente.
As políticas sociais públicas perpassam pelo investimento de
recursos públicos na (re)estruturação material – como, por exemplo,
instalações adequadas para o regular funcionamento do Conselho
Tutelar – e pessoal – como, por exemplo, contratação e formação
profissional permanente, plano de cargo e salários, etc. – dos
equipamentos, das instituições públicas e organizações sociais que
realizam atendimento direto e indireto a crianças e adolescentes que se
encontram em situação de ameaça ou de violência – art. 70, do Estatuto.
Os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente,
juntamente com as Secretarias Especiais da Criança e do
Adolescente, por seu turno, deverão deliberar acerca das diretrizes
das políticas sociais públicas a serem implementadas através da
intervenção de proposições afirmativas das organizações sociais.
A articulação das esferas de poder – Federal, Estadual,
Distrital e Municipal – deve atentar para a estratégia político-
administrativa de descentralização do atendimento. Contudo, é
importante frisar que a descentralização, enquanto diretriz da
política de atendimento que se opera através da municipalização –
inc. I, do art. 88, do Estatuto –, por certo não isenta as demais
esferas de poder da responsabilidade, principalmente, acerca do
investimento de recursos públicos e financiamentos de programas
e planos de atendimento – art. 227, da Constituição da República
de 1988 e art. 4º, § único, alínea “d”, do Estatuto.

9
CUNNINGHAM, op. cit.

106 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Política de atendimento, assim, enquanto expressão das
políticas sociais públicas destinadas à efetivação dos direitos
fundamentais inerentes à criança e ao adolescente, constitui-se num
instrumental obrigatório e vinculante para o Administrador Público.
Assim, por política de atendimento também deve ser entendida a
destinação orçamentária de recursos públicos (dotação) para fins
previamente especificados por lei para execução de ações e serviços
de atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
A promoção e a defesa dos direitos fundamentais afetos à
criança e ao adolescente se consolidam na implementação da
dotação orçamentária destinada às políticas sociais públicas
formuladas em prol da infância e da juventude, devendo-se, assim,
constituírem-se em compromissos democráticos da família, da
comunidade (sociedade civil) e, principalmente, dos Poderes
Públicos que se entendam como expressões constitucionais10 do
Estado Democrático de Direito.
Enfim, o custo econômico, político e social da falta de
investimento humano, estrutural e responsável, na infância e na
juventude, importa na redução drástica do “capital social”11
brasileiro. Isto é, a diminuição da “riqueza que nasce do
relacionamento entre os indivíduos dispostos a aceitar desafios
conjuntos”, segundo Gilberto Dimenstein12, para quem “há muitos
estudos mostrando a relação entre desenvolvimento econômico e
capital social, especialmente quando vinculados a investimento em
qualificação educacional, ou seja, na produção de capital humano”.
Dessa maneira, será possível diminuir o custo pessoal,
familiar e comunitário decorrente do não investimento econômico
(dotações orçamentárias), político (políticas sociais públicas) e
social (fortalecimento dos Conselhos dos Direitos e dos Conselhos
Tutelares) na infância e na juventude brasileira.

10
CADEMARTORI, S. U. de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem
garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
11
DIMENSTEIN, G. Quanto custa Renan Calheiros. Jornal Folha de São
Paulo, Cotidiano, p. C11, Domingo 16 de setembro de 2007.
12
Segundo o autor (op. cit.), “não há fórmula matemática para calcular o custo da
desconfiança, mas, certamente, a falta de confiança nas instituições explica
uma boa parte da miséria brasileira”.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 107


Referências

BAUER, G. G. T. Origens e teorias sobre a violência. Curitiba, 2007.

BRASIL. Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da


Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil/LEIS/ L8069.htm.

CADEMARTORI, S. U. de. Estado de direito e legitimidade: uma


abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

CUNNINGHAM, W. (Coord.). Jovens em situação de risco no Brasil. v.


I. (Achados relevantes para as políticas públicas – Policy Briefing). v. II
(Relatório Técnico). Brasília: Unidade de Gerenciamento do Brasil, do
Banco Mundial, 2007.

DIMENSTEIN, G. Quanto custa Renan Calheiros. Jornal Folha de São


Paulo, Cotidiano, p. C11, Domingo 16 de setembro de 2007.

MACCORMICK, N. Derecho legal y socialdemocracia: ensayos sobre


filosofía jurídica y política. Trad. de Maria Lola González Soler. Madrid:
Tecnos, 1990.

PEREIRA, T. da S. (Coord.). O melhor interesse da criança: um debate


interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

RAMIDOFF, M. L. Repúdio à responsabilização penal de adolescentes


infratores. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/. Acesso em: 11
out. 2007.

VENERI, T. Orçamento público do Paraná. Curitiba: Assembléia


Legislativa do Paraná, 2007.

108 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


A EFETIVIDADE DAS AÇÕES COLETIVAS NA
COMARCA DE ITUMBIARA/GO
(1998/2008)
Maria Carolina Carvalho Motta* José Querino Tavares Neto**

Resumo:
O presente trabalho tem por objetivo investigar a efetividade das Ações
Coletivas na Comarca de Itumbiara/Goiás, no período compreendido entre
1999 a 2008. Para tanto, além da pesquisa doutrinária e jurisprudencial
sobre a temática, realizou-se também uma pesquisa de campo que
investigou arquivos do Ministério Público local, bem como do Fórum
local. O levantamento dos dados possibilitou responder as problemáticas
colocadas no início do trabalho, quais sejam: se houve iniciativas, nesta
última década, pela busca da tutela jurisdicional coletiva; se os legitimados
legais têm cumprido seu papel, agindo na defesa dos interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos; se o judiciário tem correspondido
positivamente no que tange às ações coletivas processadas em âmbito
local; se há efetividade das iniciativas jurisdicionais, resultando nos
benefícios almejados. Os resultados colocam em xeque a questão da
acessibilidade à justiça e da efetividade da tutela jurisdicional.

Palavras-chave: Ações coletivas, direitos coletivos, efetividade.

Introdução

As ações coletivas têm o intuito de abarcar direitos que


atingem a sociedade como um todo ou, ainda, determinados grupos

*
Advogada. Professora do Curso de Direito do Iles/Ulbra Itumbiara/GO.
Mestranda do programa de Mestrado em Direito da UNAERP/SP.
**
Pós-doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Mestre
em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (1997), Doutor em
Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(2001). Atualmente é professor adjunto da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Goiás, professor titular da Universidade de Ribeirão
Preto, do Mestrado em Direito da UNAERP/SP e do Mestrado em
Desenvolvimento Regional das Faculdades ALFA, em Goiânia/GO.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 109


devidamente organizados. E por esse motivo, tutelar esses direitos
têm sido, ao mesmo tempo, um desafio e uma missão, já que a
legislação outorga legitimidade para essas ações a determinados
órgãos específicos. São eles: o Ministério Público, a União, os
Estados e Municípios, bem como o Distrito Federal, entidades e
órgãos da administração pública, direta e indireta, ainda que sem
personalidade jurídica, especificamente destinados à tutela dos
interesses e direitos que se quer proteger e associações constituídas
há mais de ano, que incluam, entre seus fins institucionais, a defesa
dos interesses e direitos que se quer proteger.
Tornar a proteção dos interesses coletivos, difusos e
individuais homogêneos mais eficaz através do processo coletivo é
uma preocupação que se inicia com o advento da Lei 7347/85, que
disciplinou os procedimentos pertinentes à Ação Civil Pública
para proteger o meio ambiente, o consumidor, os bens e direitos de
valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. A
constituição de 1988, por sua vez, colocou a Ação Popular no rol
dos direitos fundamentais e, ainda, ampliou sua abrangência para
alcançar, ao lado da defesa do patrimônio público, também a
defesa do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural (art.
5o, inciso LXXIII). Deu status constitucional à Ação Civil Pública
ao elencá-la entre atribuições do Ministério Público (art. 129,
inciso III). Quanto à defesa do consumidor, esta foi colocada como
fundamento da ordem econômica (art. 170, inciso V) e também
como dever do Estado e Direito Fundamental (art. 5o, inciso
XXXII). Mas foi com a Lei 8078/90, mais conhecida como Código
de Defesa do Consumidor, que se consolidou a ideia de eficácia
desses direitos em seu Título III, tratando da defesa do consumidor
em juízo e autorizando, portanto, as ações coletivas, bem como
definindo o que viriam a ser os direitos coletivos, difusos e
individuais homogêneos. Da completa interação entre o Código de
Defesa do Consumidor (art. 90) e a Lei da Ação Civil Pública (art.
21), surgiu na doutrina o reconhecimento da existência de um
microssistema integrado para a tutela jurisdicional coletiva.
Os diplomas legais foram surgindo para regulamentar uma
preocupação antiga de que determinadas categorias de direitos não
poderiam ficar relegadas a procedimentos comuns que tanto
abarrotam o judiciário. O velho brocardo “A Justiça tarda, mas não

110 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


falha”, amplamente divulgado, não mais surte efeito nos meios
jurídicos e, atualmente, está em descrédito. O que se assiste no
cenário jurídico nacional é a falta de celeridade do processo,
causando, assim, um retardo exagerado das decisões que, muitas
vezes, inviabilizam a concretização do direito levado a juízo.
Nesse diapasão, nasceu a necessidade de investigar se a
sociedade itumbiarense tem gozado das benesses legais ou se tem
sido relegada ao esquecimento. Para tanto, necessário se fez
responder aos seguintes questionamentos: Houve iniciativas, nesta
última década, pela busca da tutela jurisdicional coletiva? Os
legitimados legais têm cumprido seu papel, agindo na defesa dos
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos? O
judiciário tem correspondido positivamente no que tange às ações
coletivas processadas em âmbito local? Há efetividade das
iniciativas jurisdicionais, resultando nos benefícios almejados?
A relevância desses questionamentos nos conduziu ao
efetivo estudo dos interesses legitimados pelas ações coletivas. O
debate em torno do assunto tem se acentuado nas últimas décadas,
visto que há no Congresso Nacional um projeto de lei que visa
estabelecer na ordem jurídica brasileira um Sistema Único de
Processo Coletivo para imprimir à tutela dos interesses coletivos,
difusos e individuais homogêneos mais efetividade.
A panorâmica do arcabouço legislativo brasileiro nos
indica que a violação aos direitos metaindividuais não se dá por
falta de lei, em tese. Por outro lado, é lugar comum e fato notório
que as violações aos interesses metaindividuais são inúmeras,
havendo uma sensação de que poucos têm sido os avanços no
combate a tais violações. Esse panorama é nacional e não só do
Município de Itumbiara.
Surgem as hipóteses de que ou não está havendo atuação na
defesa de tais interesses ou os legitimados a defender tais
interesses não têm obtido os resultados esperados. O que nos leva a
buscar saber também as principais causas para a ausência de
resultados.
A nossa pesquisa buscou, dentro do recorte de tempo e
espaço escolhido, responder aos questionamentos acima. Sua
importância transcende a Comarca de Itumbiara, eis que as
conclusões aqui obtidas podem bem espelhar a situação de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 111


inúmeras Comarcas no País, cujas causas de falta de efetividade
das ações podem ser as mesmas ou semelhantes.
Assim, o que se buscou com a presente pesquisa foi a
verificação, a confrontação de que os mecanismos legais postos à
disposição para a efetivação dos direitos coletivos estão
cumprindo a sua função social, resolvendo o problema global do
acesso à justiça, garantia essa que, como já dito anteriormente, tem
guarita constitucional.

A problemática do acesso à justiça

O problema do acesso à justiça para efetivação dos direitos


violados do cidadão no Brasil é crônico. Vivemos numa sociedade
capitalista que atualmente demonstra seu lado mais cruel exibindo-
se sob o manto do neoliberalismo. A consequência direta deste
“estilo” de vida sob a tutela dos direitos é exatamente a desigualdade
das partes que em última análise leva a parte economicamente mais
frágil da relação jurídica ficar às margens do sistema jurisdicional.
Para resgatar tais circunstâncias nasceu a necessidade de
imprimir ao sistema jurisdicional mecanismos mais enérgicos, que
colocassem o cidadão comum ao menos em posição de reclamar os
direitos fundamentais que lhes foram reconhecidos
constitucionalmente. Para tanto, necessário se faz que esse cidadão
tenha a sua disposição caminhos de acesso à justiça a fim de
efetivar tais direitos.
São ensinamentos de Mauro Cappelletti1:

Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo


crescentemente aceito como um direito social
básico nas modernas sociedades, o conceito de
‘efetividade’ é, por si só, algo vago. A efetividade
perfeita, no contexto de um dado direito
substantivo, poderia ser expressa como a completa
‘igualdade de armas’ – a garantia de que a
conclusão final depende apenas dos méritos

1
CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Grace
Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1998. p. 31.

112 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


jurídicos relativos das partes antagônicas, sem
relação com diferenças que sejam estranhas ao
Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e
reivindicação dos direitos. Essa perfeita igualdade,
naturalmente, é utópica. As diferenças entre as
partes não podem jamais ser completamente
erradicadas. A questão é saber até onde avançar na
direção do objetivo utópico e a que custo.

E mais adiante completa:

O recente despertar de interesse em torno do acesso


efetivo à Justiça levou a três posições básicas, pelo
menos nos países do mundo ocidental. Tendo
início em 1965, estes posicionamentos emergiram
mais ou menos em seqüência cronológica.
Podemos afirmar que a primeira solução para o
acesso – a primeira ‘onda’ desse movimento novo
– foi a ‘assistência judiciária’; a segunda dizia
respeito às reformas tendentes a proporcionar
representação jurídica para os ‘interesses difusos’,
especialmente nas áreas da proteção ambiental e do
consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que
nos propomos a chamar simplesmente ‘enfoque de
acesso a justiça’ porque inclui os posicionamentos
anteriores, mas vai muito além deles,
representando dessa forma, uma tentativa de atacar
as barreiras ao acesso de modo mais articulado e
compreensivo.2

Dessa forma, é de se verificar que não há como se falar em


acesso à justiça sem refletir sobre os princípios e garantias do
processo que têm como objetivo último a efetividade dos direitos.
Muitas vezes o acesso à justiça se confunde com a garantia de
ingresso em juízo, mas, se assim o fosse, estaríamos a imprimir-lhe
um significado simplista. A garantia de ingresso em juízo deve ser
somada à necessidade de universalidade do processo e da
jurisdição, bem como à garantia do devido processo legal.
Várias tentativas têm sido empregadas pelo legislador em
prol da universalidade do processo e da jurisdição, quais sejam: a

2
CAPELLETTI; GARTH, op. cit., p. 31.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 113


busca da inclusão de pequenos conflitos ou de pessoas menos
favorecidas no Poder Judiciário e a legitimação de pessoas e
entidades à postulação judicial, como ocorre com os interesses
difusos. Nesse sentido, o legislador também dá a sua contribuição
no direito material ao dar-lhe modificações que diminuem o
campo de incidência da impossibilidade jurídica de determinado
pedido que, anteriormente, era disciplinado por normas restritivas.
Soma-se a isso o fato da necessidade de aprimoramento do
instrumento estatal destinado a fornecer tutela jurisdicional
através do implemento de princípios que tenham por objetivo a
segurança do processo. É nesse sentido que se afirma que o
processo deve ser o meio apto para atingir a pacificação social, e
isso somente se torna possível quando se assegura o correto
desenvolvimento da relação processual, possibilitando às partes
condições rigorosamente iguais de participação efetiva na
formação do convencimento do juiz.
Nesse diapasão, Cândido Rangel Dinamarco3 assim se
posiciona:

Nem a garantia do contraditório tem valor próprio,


todavia apesar de tão intimamente ligada à idéia do
processo, a ponto de hoje dizer-se que é parte
essencial deste. Ela e mais as garantias de ingresso
em juízo, do devido processo legal, do juiz natural,
da igualdade entre as partes – todas elas somadas
visam a um único fim, que é a síntese de todas e dos
propósitos integrados no direito processual
constitucional: o acesso à justiça. Uma vez que o
processo tem por escopo magno a pacificação com
justiça, é indispensável que todo ele se estruture e
seja praticado segundo essas regras voltadas a
fazer dele um canal de condução à ordem jurídica
justa.
Tal é o significado substancial das garantias e
princípios constitucionais e legais do processo.
Falar da efetividade do processo, ou da sua
instrumentalidade em sentido positivo, é falar da
sua aptidão, mediante a observância racional

3
DINAMARCO, C. R. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 375.

114 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


desses princípios e garantias, a pacificar segundo
critérios de justiça.

Ocorre que é preciso encontrar a justa medida da aplicação


da técnica processual sem transformá-la num formalismo
excessivo que acaba por impedir o ingresso em juízo e, por
consequência, a aplicação da jurisdição em prol da efetividade dos
direitos. Sem a busca do bom senso processual, surgirá a
problemática da morosidade como obstáculo à sua efetividade,
causando inevitáveis prejuízos às partes.
José Roberto dos Santos Bedaque4 assim sintetiza essa
questão:

O caminho mais seguro é a simplificação do


procedimento, com a flexibilização das exigências
formais, a fim de que possam ser adequadas aos
fins pretendidos ou até ignoradas, quando não se
revelarem imprescindíveis em determinadas
situações. O sistema processual não deve ser
concebido como uma camisa de força, retirando do
juiz a possibilidade de adoção de soluções
compatíveis com as especificidades de cada
processo. As regras do procedimento devem ser
simples, regulando o mínimo necessário à garantia
do contraditório mas, na medida do possível, sem
sacrifício da cognição exauriente.

3. Obstáculos à efetividade do direito coletivo

É notório que os conflitos sociais que surgem no âmbito da


tutela coletiva dos direitos transcendem a esfera do indivíduo
atingindo uma coletividade cada vez maior de pessoas. Necessário
se faz que haja, então, uma mudança de paradigma processual para
viabilizar a adoção de um sistema que privilegia o tratamento
coletivo dos problemas enfrentados por um número considerável
de pessoas, tutelando direitos relevantes ou até mesmo aqueles
considerados como de “bagatela”, mas com alto valor se

4
BEDAQUE, J. R. dos S. Efetividade do processo e técnica processual. 2. ed.
São Paulo: Malheiros, 2007. p. 51.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 115


coletivamente considerados.
Com o intuito de dar efetividade a esse novel processo
coletivo surgiram inúmeros institutos jurídicos (Ação Popular,
Ação Civil Pública, Ação Popular Ambiental, Mandado de
Segurança Coletivo, entre outros) além de normas específicas para
a aplicação dos direitos coletivos (Lei da Ação Popular – Lei
4717/65, Lei da Ação Civil Pública – Lei 7347/85, Código de
Defesa do Consumidor – Lei 8078/90, Lei da Improbidade
Administrativa – Lei 8429/92, Estatuto da Criança e do
Adolescente – Lei 8069/90, Lei da Pessoa portadora de
deficiências – Lei 7853/89, Lei protetiva dos investidores de
Mercado de Valores Imobiliários – Lei 7913/89 e Lei de prevenção
e repressão às Infrações contra a Ordem Econômica/Antitruste –
Lei 8884/94) que formam um único sistema interligado de
proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
A justificativa para que esses diversos textos legais formem
todo um sistema interligado se dá pelo fato de que havendo lacuna
ou ausência de disciplina normativa em um texto legal, aplica-se
primeiramente a norma de outra lei pertencente ao sistema único
coletivo e só depois dispositivo do Código de Processo Civil. Isso
porque as leis esparsas guardam entre si características afetas aos
direitos coletivos em contrapartida ao Código de Processo Civil
que guarda características próprias a direitos individuais.
A existência desse sistema único coletivo, apesar de não ser
expressamente reconhecido na legislação, encontra respaldo em
algumas jurisprudências, senão vejamos:
Processual civil. Recurso especial. Ação civil
pública. Ressarcimento de danos ao patrimônio
público. Prazo prescricional da ação popular.
Analogia (Ubi eadem ratio ibi eadem legis
dispositio). Prescrição reconhecida.

1. A ação civil pública e a ação popular veiculam


pretensões relevantes para a coletividade.
2. Destarte, hodiernamente ambas as ações fazem
parte de um microssistema de tutela dos direitos
difusos onde se encartam a moralidade
administrativa sob seus vários ângulos e facetas.
Assim, à míngua de previsão do prazo prescricional
para a propositura da ação civil pública, inafastável a

116 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


incidência da analogia legis, recomendando o prazo
quinquenal para a prescrição das ações civis
públicas, tal como ocorre com a prescritibilidade da
Ação Popular, porquanto ubi eadem ratio ibi eadem
legis dispositio.5

Processo Civil. Ação Civil Pública. Defesa da


Moralidade. Improbidade administrativa.
Declaração de nulidade de contratos temporários.
Litisconsortes passivos. Quase 300. Citação por
edital. Possibilidade. Art. 94 da Lei 8.078/90,
aplicada por força do art. 21 da Lei 7.347/85. Art.
7º, II, da Lei 4.717/65. Recurso desprovido.

1. É possível citar litisconsortes passivos por edital,


em ação civil pública visando à defesa da moralidade
pública, considerando a existência de quase 300 réus.
2. Agravo desprovido.
Decisão: A Turma, por unanimidade, NEGOU
PROVIMENTO ao agravo de instrumento, nos
termos do voto do Juiz Relator.6

Processo civil. Agravo de Instrumento. Ação civil


pública. Litisconsorte passivo necessário. Citação
por edital. Possibilidade.

1. Na ação civil pública, quando expressivo o número


de litisconsortes passivos, aplica-se, por analogia, o
disposto no art. 94 do Código de Defesa do
consumidor e no art. 7º, II, da Lei de Ação Popular, que
prescrevem citação por edital. Precedentes esta corte.
2. Agravo de instrumento improvido.
Decisão: A Turma, por unanimidade, negou
provimento ao agravo de instrumento.7

5
Precedentes do STJ:REsp 890552/MG, Relator Ministro José Delgado, DJ de
22.03.2007 e REsp 406.545/SP, Relator Ministro Luiz Fux, DJ 09/12/2002. [...]
(STJ – Resp No. 727.131-SP, REL. Luiz Fux, j. 11.3.2008 – DJU 23.04.2008).
6
TRF 1a. região. Processo: AG 2000.01.00.046939-7/DF; Agravo de Instrumento
Relator: Des. Federal I’talo Fioravanti Sabo Mendes. Convocado: Juiz Federal
Glaucio Maciel Gonçalves. Órgão Julgador: Quarta Turma Pub.: 07/02/2006.
DJ, p.37, Decisão: 12/12/2005.
7
TRF 1a. região - Processo: AG 2000.01.00.046922-/DF; Agravo de Instrumento,
Relator: Juiz Federal Carlos Augusto Pires Brandão. Órgão Julgador: Segunda
Turma Suplementar. Pub: 23/09/2005 DJ p. 151 Decisão: 31/08/2005.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 117


No entanto, ocorre que apesar de reconhecida uma relativa
integração entre esses dispositivos legais, verifica-se que os
mesmos carecem de uma readequação, visto que a diversidade de
textos normativos deixa algumas dúvidas de ordem técnica,
atingindo a própria atuação dos legitimados ativos. Entraves à
efetividade do processo podem surgir aqui, já que os aspectos
estruturais atinentes ao Poder Judiciário, bem como à legislação,
podem acabar por emperrar a contraprestação jurisdicional.
No que concerne ao Poder Judiciário, a diversidade de
legislações abrindo uma discussão ampla sobre técnicas processuais
adequadas pode ensejar interpretações múltiplas de uma mesma
regra, acabando por ocasionar insegurança jurídica. Soma-se a isso o
fato de que as interpretações divergentes podem refletir no resultado
da demanda, vez que a demora na entrega da prestação da tutela
jurisdicional coletiva pode ensejar o acentuamento da gravidade dos
danos ocasionados em função da destacada importância dos objetos
por ela tutelados como, por exemplo, o meio ambiente.
Aurélio Wander Bastos8, analisando a situação, assim se
posiciona:

[...] no quadro de crise política, o que o Poder


Judiciário precisa é reconhecer seus próprios
limites e programar as suas reformulações, tendo
em vista as suas tradicionais competências, os
efeitos residuais dos fatos sociais novos, os fatos
consuetudinários que necessitam de proteção
legal, as próprias relações sociais juridicamente
desprezadas, o envolvimento judicial nos conflitos
em processo de complexificação e, especialmente,
o seu papel nos conflitos de poderes.

Por outro lado, a elaboração legislativa da técnica


processual revela a necessidade de uma formação mais precisa e
harmoniosa com a realidade brasileira, o que por si só acarretaria
menor número de dúvidas e cederia menos espaço para tantas e
tamanhas controvérsias acerca de normas e institutos integrantes

8
BASTOS, A. W. Conflitos sociais e limites do Poder Judiciário. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 240.

118 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


da legislação relativa aos direitos ou interesses metaindividuais.
A melhoria da técnica processual no sentido da unificação
dos institutos postos a disposição dos interesses difusos, coletivos ou
individuais homogêneos contribuiria também para que o processo
alcançasse os resultados desejados pelo direito material, daí
decorrendo a maior efetividade, atingindo as garantias básicas de
economia e celeridade do processo. Isso porque há uma tendência da
interpretação de dispositivos e institutos afetos à legislação e aos
princípios relativos aos direitos metaindividuais exclusivamente à
luz da caracterização desses institutos segundo a sistemática
individualista do Código de Processo Civil. Nesse sentido, merece
aplauso a iniciativa da propositura do Projeto de Lei 5.139/2009 para
dar nova redação à Lei da Ação civil Pública, revogando todos os
dispositivos processuais conflitantes até então vigentes.
Há que se ressaltar, ainda, que não é suficiente a existência
de uma boa legislação para a efetividade dos direitos; necessário se
faz que paralelamente a ela surja uma nova mentalidade e atitude
dos operadores do direito no sentido da conscientização dos
fenômenos conflituosos da sociedade de massas.

Quadro geral das ações coletivas em Itumbiara/Goiás (1999/2008)

Na defesa de direitos difusos e individuais homogêneos na


comarca de Itumbiara, Goiás, existem duas promotorias
especializadas, a saber: a terceira promotoria, que tem competência
para atuar na defesa do patrimônio público, do consumidor, das
fundações e do cidadão; e a quarta promotoria, que atua também na
defesa do patrimônio público e do meio ambiente. Tais promotorias
também atuam perante as varas cíveis da comarca (duas), bem como
a de fazendas públicas e juizado cível.
A atuação do Ministério Público na defesa desses direitos,
cumprindo função constitucional, é notória. O banco de dados, bem
como os arquivos das promotorias acima elencadas, demonstra que a
partir do ano de 1999 há atuação para a propositura de Ações Civis
Públicas, sendo que o número de protocolo dessas ações tem um
aumento considerável a partir do ano de 2004, chegando em seu ponto
máximo em 2006 e mantendo uma regularidade em 2007 e 2008.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 119


Não se pode deixar de registrar, aqui, que, no intuito de colher
provas para uma instrução processual satisfatória, a lei dá ao
Ministério Público a prerrogativa da instalação de Inquéritos Civis.
Assim, no decorrer das investigações que o membro do Ministério
Público instaura, pode-se constatar a fragilidade dos argumentos ou a
falta de provas que evidenciam a desnecessidade da defesa em juízo
dos direitos difusos e individuais homogêneos. Acresce-se a isso o
fato de que em alguns casos é permitido ao Ministério Público, no
âmbito das suas funções, estabelecer acordos com as partes
indiciadas, evitando, assim, o ingresso em juízo de uma demanda.
Ademais, a atuação do Ministério Público na defesa do
patrimônio público e do meio ambiente ensejou, no caso de
Itumbiara, diversas ações penais que acabaram por requerer
dedicação dos membros do Ministério Público.
Dessa forma, como o foco do trabalho se reveste da função
jurisdicional efetivamente aplicada na condução das Ações
Coletivas, a atuação do Ministério Público nos inquéritos civis e
seus respectivos acordos, bem como nas ações penais resultantes
de danos coletivos, não foram objeto de análise no presente
trabalho, mas nem por isso podem deixar de serem lembrados
como forma de atuação na defesa dos interesses difusos e
individuais homogêneos na comarca de Itumbiara/Goiás.
No levantamento dos dados encontrou-se o seguinte
resultado: nos anos de 1999/2000 apenas uma (1) Ação Civil Pública
foi ajuizada; no ano de 2001 há o ajuizamento de uma (1) Ação Civil
Pública e uma Ação popular; no ano de 2002 o número de Ações
Civis Públicas sobe para duas; em 2003 para três; em 2004 para nove;
em 2005 para onze; em 2006 para trinta e duas; em 2007 o número cai
para vinte e seis e em 2008 para dezenove. O número total de Ações
Civis Públicas efetivamente ajuizadas no Poder Judiciário da
comarca de Itumbiara/Goiás, em que o Ministério Público é o
legitimado ativo, nos últimos dez anos, é cento e cinco (105).
Verifica-se, ainda, que de autoria do Ministério Público local há
registro de um Mandado de Injunção no ano de 2008. E ainda a
propositura por particulares de duas Ações Populares: uma em 2001 e
outra em 2004. Não há nenhum registro de qualquer mecanismo
processual coletivo utilizado por Associações ou qualquer outro órgão

120 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


legitimado nos últimos dez anos na comarca de Itumbiara/Goiás.
Dessas ações propostas, a grande maioria versa sobre
defesa do patrimônio público, sendo que a maior parte delas se
traduz em Ações Civis Públicas de Improbidade Administrativa.
Pudemos observar que nos anos de 1999 e 2000 as ações
registradas na ordem de duas, uma para cada ano, versam sobre
defesa do patrimônio público. Já em 2002, uma das duas ações
propostas também se refere à defesa do patrimônio público. Em
2003, esse número sobe para três; em 2004 e 2005 para oito em
cada ano, em um total de dezesseis; em 2006 para dezenove; em
2007 e 2008 para quinze em cada ano, em um total de trinta,
totalizando o número de setenta e uma (71) Ações Civis Públicas
em defesa do patrimônio público na comarca de Itumbiara/Goiás.
Há um grande destaque para a defesa do Meio Ambiente na
comarca de Itumbiara/Goiás a partir do ano de 2005. Anterior a
essa data registra-se apenas uma ação ambiental no ano de 2001.
Assim, em 2005 são três Ações Civis Públicas ambientais; doze em
2006; dez em 2007; e duas em 2008, totalizando o número de vinte
e oito (28) ações afetas a essa área.
As áreas afetas a direitos do consumidor e matérias afins
aos direitos coletivos têm uma atuação diminuta em relação às
duas outras áreas já analisadas. Assim, registra-se uma Ação Civil
Pública nesse âmbito nos anos de 2002, 2004, 2006 e 2007, em um
total de quatro (4) e duas (2) na área do consumidor no ano de 2008,
totalizando o número de seis (6) ações.
Há, portanto, um total geral de cento e oito (108) ações
coletivas ajuizadas na comarca de Itumbiara/Goiás entre os anos
de 1999 a 2008.
No que tange à parte passiva dessas ações, é de se observar
que são demandados, na área da proteção ao patrimônio público, o
município, o agente público e o particular, normalmente prestador
de serviços ao poder público ou algum beneficiário do ato danoso.
No âmbito do meio ambiente, bem como nas áreas afins à proteção
dos direitos difusos, são demandados, de uma maneira geral, o
município, o agente público e o particular, destaca-se apenas a área
do consumidor em que os demandados são apenas particulares.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 121


Situação atual das ações propostas

A análise do resultado das ações efetivamente propostas na


comarca de Itumbiara/Goiás se torna interessante, visto que será a
partir desse exame que será possível dimensionar qual tem sido o
impacto dessas demandadas, seja em caráter institucional, seja em
caráter social.
As ações propostas em 1999 e 2000, no total de duas, obtiveram
uma sentença em primeiro grau no ano de 2007. A Ação Civil Pública
proposta no ano de 2001 se finda sem julgamento do mérito em 2003 e a
Ação Popular tem sentença de mérito em 2008. Das duas ações
propostas em 2002, uma se finda com sentença de mérito que julga
procedente o pedido inicial em 2006 e a outra se extingue sem
julgamento de mérito em 2007. Daquelas propostas em 2003 (2), uma
tem o pedido julgado procedente em 2006, em outra o pedido é julgado
improcedente no ano de 2007 e há, ainda, uma pendente de julgamento
em primeira instância. Seis ações interpostas em 2004 tiveram os
pedidos julgados procedentes em 2004 (1), 2005 (2), 2006 (2) e 2007
(1) e três (3) ainda carecem de decisão no juízo de primeiro grau. Das
onze ajuizadas em 2005, quatro tiveram os pedidos julgados

122 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


procedentes em 2006, três em 2007 e três em 2008 e uma teve o pedido
julgado improcedente em 2006.
O ano de 2006 é atípico, pois há a proposição de trinta e
duas ações, sendo que vinte e duas têm os pedidos julgados
procedentes, sete em 2006, doze em 2007 e três em 2008, três têm
os pedidos julgados improcedentes: uma em 2007, uma em 2008 e
uma em 2009. Há ainda uma ação extinta sem julgamento do
mérito em 2008 e seis que padecem de julgamento de primeiro
grau. Já no ano de 2007, das vinte e seis ações que foram propostas,
onze tiveram os pedidos julgados procedentes por sentença de
primeiro grau, sendo que cinco foram julgadas em 2007, seis em
2008 e três em 2009. Uma teve seu pedido julgado improcedente e
onze ainda não foram julgadas pelo juiz de primeiro grau. O ano de
2008 tem apenas quatro das suas dezenove ações com pedidos
julgados procedentes, uma com pedido julgado improcedente e
onze sem julgamento de primeiro grau.
Existem ainda alguns processos pendentes de recurso no
Tribunal de Justiça do estado de Goiás e no Superior Tribunal de
Justiça. Estão para julgamento em segundo grau vinte processos
oriundos dos anos de 1999 (1), 2000 (1), 2001 (1), 2004 (1), 2006
(11) e 2007 (5) e apenas um aguarda julgamento de Agravo de
Instrumento no Superior Tribunal de Justiça.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 123


Ações Coletivas em instâncias superiores x ano de
propositura -
Comarca de Itumbiara 1999/2008

p2008

p2007 5
Ano de propositura da ação coletiva

p2006 11

p2005 1

p2004 1

p2003 TJ

p2002 STJ

p2001 1

p2000 1

p1999 1

0 2 4 6 8 10 12

Quantidade de ações pendentes de julgamento em instância superior maio/2009


Fonte: MPGO

Problemas levantados pela pesquisa para a efetividade das


ações coletivas em Itumbiara/Goiás

Conforme se pode comprovar diante dos dados colhidos, as


ações coletivas, apesar de contarem com um rol de legitimados para a
sua propositura, são intentadas na sua ampla maioria pelo Ministério
Público. Registramos, apenas, duas Ações Populares em que a parte
autora era outra que não o membro do Ministério Público.
As Ações Civis Públicas, conforme salientado no primeiro
capítulo, podem ser propostas pelo Ministério Público, pela
Defensoria Pública, pela União, pelos Estados, pelo Distrito
Federal e pelos Municípios; pelas autarquias, empresas públicas,
fundações ou sociedades de economia mista, bem como por
associações que, concomitantemente, estejam constituídas há pelo
menos 1 (um) ano, nos termos da lei civil, e incluam, entre suas
finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao
consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao
patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
No âmbito da Comarca de Itumbiara/Goiás, o que se pode
constatar é que o Ministério Público cumpre tal função, ainda que
apresente falhas. Não há atuação da Defensoria Pública porque o
Estado de Goiás não conta com essa instituição sistematizada,

124 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


sendo tal função cumprida por advogados dativos e pelo próprio
Município, que mantém um diminuto quadro de advogados que
prestam serviços para o público carente. No que tange aos entes
federados e suas entidades de administração direta ou indireta a
atuação também é nula. No entanto, não se pode deixar de registrar
que na grande maioria dos casos são eles os entes passivos
daquelas ações propostas pelo Ministério Público. Nem mesmo o
PROCON, órgão criado para a proteção do consumidor, assume tal
função, priorizando atividades meramente administrativas.
O fato mais agravante desse quadro é a apatia das
Associações locais que, quando muito, encaminham uma
problemática ao membro do Ministério Público. Não há registro,
no período analisado (1999-2008), sequer de propositura de
Mandado de Segurança Coletivo, quiçá de Ação Civil Pública por
esses entes legitimados.
Apenas em dois momentos (2001 e 2004) tem-se o registro
da propositura de Ação Popular por cidadãos que as intentaram em
desfavor do poder público local visando anulações de atos
administrativos lesivos à coletividade.
Tendo em vista a concentração desses trabalhos no órgão
do Ministério Público surgiu a necessidade de avaliar qual a visão
que seus profissionais têm sobre a efetividade das ações por eles
interpostas. Através de entrevista direcionada ao titular da terceira
Promotoria de Justiça da Comarca de Itumbiara/Goiás, verificou-
se que a falta de atuação das Associações locais na defesa dos
interesses coletivos foi atribuída à desestruturação dessas
Associações, que não contam sequer com uma assessoria jurídica
adequada. Tais fatores impediriam o acesso à justiça por esses
entes legitimados. Observou-se, também, que no tocante aos entes
federados e seus órgãos de administração direta e indireta o
problema se concentra na falta de prioridade política em defender
os direitos coletivos.
A ideia de efetividade deve, forçosamente, perpassar pela
retribuição da tutela jurisdicional em tempo hábil. Dessa forma, o
fato da demora no provimento final das ações coletivas é
interpretada pelo membro do Ministério Público local como fato
impeditivo de efetividade dessas ações. Acresce-se a isto a
interpretação de que o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás ainda

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 125


mantém posição conservadora, mormente no que tange à proteção
do patrimônio público, visto que as liminares concedidas em
primeiro grau são em sua grande maioria cassadas em segundo
grau, estendendo o dano coletivo no tempo de forma a reduzir sua
reparação.
Ainda, em sua avaliação tal fato não traz prevenção geral,
capaz de inibir outras condutas violadoras desses interesses.
Soma-se a isso a convicção de que faltam ações institucionais do
próprio Ministério Público no intuito de aproximar-se da
sociedade civil demonstrando suas atuações e conquistas.

Considerações finais

Vimos que existem algumas hipóteses que impedem a


efetividade das Ações Coletivas. A que mais chama a atenção,
depois da realização da pesquisa de campo local, é a forma com a
qual o Poder Judiciário do Estado de Goiás tem se posicionado
frente aos casos que lhe são entregues via Ações Coletivas,
principalmente no que tange à segunda instância, como no
exemplo de Itumbiara/GO, em que a maioria dos casos refere-se à
matéria de improbidade administrativa.
A sociedade jurídica brasileira, de uma maneira geral, tem
assimilado com indiferença o posicionamento tradicionalista dos
Tribunais Estaduais nas questões relacionadas à defesa do
patrimônio público. Isso é fato facilmente comprovado em todo país
nas ações em que, não obstante haverem provas irrefutáveis de
malversação do dinheiro público, são os agentes públicos afastados
de seus cargos por decisões de primeira instância e reconduzidos por
decisões de segunda instância. Um desses casos mais emblemáticos
tratou-se do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta.
No Brasil, como um todo, tem-se assistido inúmeras Ações
Coletivas serem interpostas em desfavor de agentes públicos. Em
Itumbiara/Goiás não há exceção a essa regra. Na grande maioria
das vezes que uma Ação Coletiva é interposta o poder público
aparece como ente passivo, seja através de atos de seus agentes ou
de seus prestadores de serviços. Ou seja, sempre haverá uma
decisão que interferirá na gestão pública, o que divide opiniões na

126 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


atuação do Poder Judiciário.
Existem aqueles que afirmam que decisões que afetam a
gerência do Poder Executivo são decisões que põem em perigo a
separação dos poderes. Há aqueles que afirmam que o Poder
Judiciário tem o dever constitucional de aplicar a Justiça e que não
pode se furtar a esse dever diante de atos de ilegalidade evidentes.
O fato é que a postura atual tem criado um quadro de insegurança
no tocante a ações inibidoras da violação dos direitos coletivos.
Trata-se, sem dúvida, de uma crise política.
Diante disso, podemos afirmar que a efetividade das Ações
Coletivas na Comarca de Itumbiara/Goiás é deficitária. Como
podemos verificar nos dados colhidos, há um grande contingente
de ações propostas com pedidos julgados procedentes em primeira
instância com a confirmação em segundo grau, porém tal
constatação não nos conduz a uma visão otimista do quadro.
Em todas as ações analisadas há pedido liminar, seja em
ações cautelares, seja como pedidos incidentais, e na grande
maioria delas esse pedido antecipatório é atendido em decisões de
primeiro grau, havendo, portanto, um reconhecimento do
Periculum in mora. E em todos esses casos o Tribunal de Justiça do
Estado de Goiás cassou essas liminares, relegando a segundo plano
o perigo de agravamento do dano pelo decurso do tempo.
Segundo informações colhidas na entrevista ao membro do
Ministério Público local, constatou-se que quando as ações
chegam ao resultado final com o julgamento em segunda instância
o dano já ocorreu e só resta requerer sua reparação. Ademais,
forçoso se faz lembrar que em média os julgamentos das demandas
demoram de dois a seis anos para se efetivarem e que alguns estão
pendentes de julgamento há mais de sete anos.
No entanto, verifica-se que a partir de 2004 o tempo médio
de julgamento das ações em primeira instância diminuiu, tendo
registrado que algumas ações foram finalizadas em primeiro grau
no mesmo ano de sua proposição ou no ano seguinte. A
interpretação que se faz desse fato é a de que houve um
amadurecimento do Magistrado na instrução e julgamento dessas
ações, viabilizando uma maior efetividade em suas decisões e
cumprindo sua função na tutela jurisdicional local.
É de se verificar, assim, que o intuito da pesquisa se cumpriu,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 127


conseguindo responder a problemática inicial e estabelecendo um
panorama geral da efetividade das Ações Coletivas na Comarca de
Itumbiara/Goiás, no período entre 1999 e 2008.

Referências

BASTOS, A. W. Conflitos sociais e limites do Poder Judiciário. Rio de


Janeiro: Lumen Juris, 2001.

BEDAQUE, J. R. dos S. Efetividade do processo e técnica processual. 2.


ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Grace


Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1998.

DINAMARCO, C. R. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São


Paulo: Malheiros, 2005.

128 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO

Paulo Rangel de Vieira*

Resumo:
O presente artigo discorre sobre um tema que atormenta a comunidade
jurídica: Trata-se da possibilidade de antecipar o parto em casos de
anencefalia do feto. Outras hipóteses definidas, genericamente, pela
doutrina pátria como aborto eugenésico não serão aqui debatidas,
porquanto a anencefalia possui peculiaridades em relação às
mencionadas hipóteses.

Palavras-chave: Anencefalia, Estado laico, ADPF, ATP, aborto.

Introdução

A ciência médica atua com grau de certeza igual a 100%


(cem por cento) no sentido de inviabilidade da vida de um feto que
não desenvolve o cérebro ou as funções cerebrais.
No entanto, o artigo 128 do Código Penal não prevê essa
hipótese como descriminante do crime de aborto, daí surgindo
duas grandes correntes doutrinárias, cada uma delas sustentando
argumentos relevantes para defender sua posição.
Trata-se de um debate antigo dentre os juristas, mas que
ganhou relevância a partir do ano de 2004, com o ajuizamento pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde da ADPF n.
54, que tem como objetivo obter decisão do Supremo Tribunal
Federal, com efeito vinculante, permitindo a Antecipação
Terapêutica do Parto em casos de anencefalia do feto.

* Promotor de Justiça Substituto do MP/GO, atualmente respondendo pelas


Promotorias de Justiça das comarcas de Alvorada do Norte e Iaciara.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 129


Divergência doutrinária

Aqueles que entendem não ser possível interromper a


gestação nas hipóteses de anencefalia sustentam, resumidamente,
que a vida humana é o maior bem jurídico, de maneira que o Estado
deve utilizar de todos os instrumentos jurídicos para exercer a
tutela do direito à vida.
Dessa forma, uma vez que o Código Penal somente
descriminaliza duas hipóteses de aborto (quais sejam, risco de vida
da gestante e gravidez decorrente de estupro), é incabível a
interpretação extensiva ou analogia in malam partem para permitir
abortamento em outras situações, sob pena de quem assim
proceder responder pelo delito de aborto.
No entanto, filiamo-nos à segunda corrente doutrinária.
De fato, há vários fundamentos para sustentar a
possibilidade de interrupção da gestação em caso de fetos
anencefálicos.
O primeiro deles (e o principal no nosso entendimento) diz
respeito à própria tipicidade da conduta.
Com efeito, o artigo 3º da Lei n. 9.434/97 dispõe que
somente após diagnosticada a morte encefálica é que poderá haver
a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de
transplante.
Ficou, pois, definido como critério jurídico para aferição
da ocorrência da morte a cessação do funcionamento das funções
cerebrais.
Assim, uma vez constatada a ausência de funções cerebrais
em um feto não há que falar-se em vida humana, razão pela qual
não há bem jurídico a ser protegido pelo Direito.
Portanto, o fato é atípico, sendo esta a grande peculiaridade
da anencefalia em relação às demais hipóteses denominadas pela
doutrina de aborto eugenésico: Nessas hipóteses, há vida humana
segundo o critério jurídico acima citado, o que não ocorre nos
casos de ausência de funções cerebrais.
No caso em comento não foi definido um momento em que
inicia a vida humana. Ocorreu apenas a visualização de um quadro
onde não há vida humana em nenhum instante.
Isso porque, se para o ordenamento jurídico pátrio a morte

130 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


ocorre no instante em que cessam as funções cerebrais, certamente
nunca ocorreu vida na hipótese de um ser que sequer desenvolveu
as mencionadas funções.
Essa foi uma das teses sustentadas pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Saúde na mencionada ADPF n. 54,
que se encontra ainda pendente de julgamento.
A relevância desse fundamento é evidente, já que sequer
poderia ser denominada “aborto” a conduta de interromper a
gravidez nas hipóteses de anencefalia, porquanto o abortamento
pressupõe vida humana a ser preservada.
Assim sendo, o ato de expelir feto que não possui funções
cerebrais deve ser considerado apenas como ATP – Antecipação
Terapêutica do Parto, visando preservar a saúde física e
psicológica da gestante.
Embora pareça óbvio, o fundamento acima exposto
encontra grande resistência tanto entre segmentos religiosos,
quanto entre parte da comunidade jurídica.
Sobre a resistência de grupos religiosos, não há problema
algum porquanto a Constituição da República consagra a liberdade
de expressão. O que não se pode aceitar são decisões judiciais que
negam autorização para interrupção da gravidez em casos de
anencefalia com fundamento no credo religioso do magistrado.
Não raras vezes, gestantes têm pedidos de autorização negados
pelo Poder Judiciário não com fundamentos jurídicos, mas sim
com argumentos religiosos.
Sem dúvida, o magistrado que assim procede esquece-se
de que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático
de Direito Laico, não havendo mais vinculação entre o Estado e a
Igreja, que tantos males causou à humanidade durante séculos de
História.
Essa noção de laicização é fundamental para a
compreensão e solução do problema, uma vez que a possibilidade
de realização da ATP é uma questão jurídica e não religiosa! Já
demonstramos que, embora não sejamos a eles adeptos, existem
argumentos jurídicos que podem ser sustentados para denegar
autorização em tais casos.
Outro ponto abordado na ADPF n. 54 e que, no nosso
entendimento, revela-se correto, é que a imposição à gestante de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 131


carregar no ventre um ser que jamais terá vida é conduta análoga à
tortura e que fere por demais a dignidade da mulher.
De fato, a Carta Magna determina que ninguém será
submetido a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante
(art. 5º, inciso III, CR), ao mesmo tempo em que consagra a
dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art.
1º, inciso III, CR) e garante a saúde como direito de todos e dever
do Estado (artigo 196, CR).
É desnecessário tecer maiores comentários sobre o abalo
psicológico da gestante que é constrangida a conduzir uma
gravidez até o final quando existe certeza científica da
inviabilidade da vida do feto em gestação.
Ademais, a própria saúde médica da gestante também é
ameaçada, uma vez que várias vezes a gravidez conduzida até o
final deixa sequelas de natureza física.
Por último, vale lembrar que existe ainda outra posição
favorável à ATP, mas por outro fundamento. Para esses
pensadores, a conduta, embora típica, não é punível por incidir a
causa supralegal genérica de exclusão da culpabilidade
inexibilidade de conduta diversa.

Conclusão

Diante de todo o exposto, podemos concluir citando o


ilustre Jurista Luís Roberto Barroso, quando este afirma:

Pois bem. A antecipação terapêutica do parto em


hipóteses de gravidez de feto anencefálico não está
vedada no ordenamento jurídico. O fundamento
das decisões judiciais que têm proibido sua
realização data vênia de seus ilustres prolatores,
não é a ordem jurídica vigente no Brasil, mas sim
outro tipo de consideração. A restrição à liberdade
de escolha e à autonomia da vontade da gestante,
nesse caso, não se justifica, quer sob o aspecto do
direito positivo, quer sob o prisma da ponderação
de valores: como já referido, não há bem jurídico
em conflito com os direitos aqui descritos.

132 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Portanto, esperamos que a Suprema Corte adote este
entendimento, reconhecendo a atipicidade da ATP nas hipóteses de
anencefalia, para que possa prevalecer o direito fundamental à
saúde e à não submissão a tortura, preservando,
consequentemente, a dignidade das gestantes.

Referências

CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA.


Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: Ed. Letras Livres,
2004.

GRECO, R. Código Penal comentado. Niterói: Ed. Ímpetus, 2008.

MIRABETTE, J. F. Manual de Direito Penal. Parte Especial. São Paulo:


Ed. Atlas, 2005.

133
134 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009
UMA ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR PARA O DIREITO:
A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA

Fernanda Brian*

Resumo:
Este artigo discute a interdisciplinaridade como instrumento de
compreensão das questões jurídicas no campo da bioética. Inicia-se
destacando importantes contribuições da Antropologia, tratando-se de uma
ciência sobre a diferença cultural das sociedades, cuja missão é
compreender os fenômenos socioculturais para além do senso comum, do
etnocentrismo, do estereótipo, da homogeneidade dos olhares, que tem
sempre como objeto o comportamento humano em sua singularidade
cultural. Esse olhar propõe uma releitura do alcance da norma e das
decisões sobre os acontecimentos humanos jurisdicionados, porquanto
diante de cada caso concreto existe um acervo de singularidades. Adentra-
se no tema da anencefalia e da união homoafetiva, em que se infere
constantes tendências de julgamentos pré-formados, confessionais, morais
e até religiosos. Diante disso, torna-se relevante a análise do que representa
a laicidade no ordenamento jurídico brasileiro e qual é a razão pública para
um julgamento, o que culmina no entendimento de que seja qual for o liame
proposto no caso concreto, deverá sempre perseguir o que é razoável para
tutelar o princípio da dignidade humana, cuja acepção tem caráter subjetivo
para cada ser humano, sempre nos parâmetros da autonomia privada.

Palavras-chave: Bioética, Antropologia, interdisciplinaridade,


dignidade da pessoa humana.

Uma abordagem interdisciplinar para o Direito: a contribuição


da Antropologia

A análise aprofundada de questões jurídicas requer a

* Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Goiás – UCG, especialista em


Direito Público com ênfase em Direito Tributário pelo Complexo Jurídico Damásio
de Jesus. Atualmente servidora pública do Ministério Público do Estado de Goiás.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 135


contribuição de diversas áreas do conhecimento, isto é, da
interdisciplinaridade.
AAntropologia, assim como a filosofia, a história, a literatura
e a psicologia são relevantes perspectivas argumentativas para os
estudos jurídicos na bioética, em especial as questões jurídicas
tratadas no âmbito dos direitos sexuais e da anencefalia.
A universalidade de conceitos jurídicos baseado no aspecto
literal da lei acabou por negligenciar aspectos importantes do meio
social e da cultura, que são conceitos chaves para a Antropologia.
Segundo Everardo Rocha1, a ciência sobre a diferença entre
os seres humanos é a Antropologia, cuja missão é superar o senso
comum, o etnocentrismo, o estereótipo, a homogeneidade dos
olhares, que tem sempre como objeto a presença do humano em
sua singularidade sociocultural.
Para a Antropologia, cultura é todo complexo que inclui
conhecimento, crença, leis, moral, costumes e quaisquer outras
capacidades adquiridas pelo homem em sociedade. A cultura é,
portanto, a representação do que somos.
Outrossim, o etnocentrismo, definição essencial na
Antropologia, significa conceber o mundo sob seu próprio ponto
de vista, desconsiderando o contexto dos outros em seus próprios
valores. É, em suma, a dificuldade de pensar a diferença.
Como bem ressaltado por Everardo Rocha2, as ideias que
temos sobre “mulheres”, “negros”, “paraíbas”, “surfistas”,
“velhos”, “gays”, todos são “outros” que representam juízos de
valores perigosamente etnocêntricos.
O que se contrapõe ao etnocentrismo é a relativização.
Relativizar é olhar o “outro” no seu próprio contexto, sem
verdades absolutas. É nesse exercício que o Direito encontra mais
dificuldade, já que o campo do saber jurídico é baseado em
formulações pragmáticas e tem como objeto a solução de conflitos
de interesses levadas a juízo, segundo o qual uma decisão é
baseada em leis, analogias, princípios, costumes e, muitas vezes,
em julgamentos pré-formados, confessionais, morais e até
cristãos. Isso caracteriza, fundamentalmente, uma visão

1
ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
2
ROCHA, op. cit.

136 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


etnocêntrica do mundo, desconsiderando as singularidades da
presença humana.
A teoria jurídica tradicional aponta que o método pelo qual
o juiz torna efetiva a aplicação do direito é lógico, pelo processo do
silogismo. Segundo a doutrina jurídica clássica, é antiga a
discussão acerca da aplicação da lei pelo juiz, que foi marcada no
Iluminismo pela vontade de se estabelecer uma segurança jurídica
absoluta através de normas rigorosamente planejadas. Em outro
momento histórico, pensou-se na vinculação do juiz apenas à lei
em seu aspecto literal. Já na modernidade, permaneceu a
vinculação à lei, porém, com mais liberdade de interpretação e,
atualmente, já existe uma maior autonomia, tendo à disposição dos
juízes os métodos de interpretação, sob a égide do livre arbítrio nos
limites da legalidade.
Com efeito, toda a trajetória do direito em atingir seu objetivo
maior de justiça ganha grandes contornos ao se considerar a
contribuição antropológica de examinar a individualidade do
homem social em seu contexto singular, já que o centro gravitacional
do direito reside em positivamente conferir direitos e impor deveres.
Nesse prisma, é importante perceber que a realidade é pura
construção e tal assertiva é premissa fundamental para entender
que nada é pronto e acabado. Logo, nenhuma lei pode ditar uma
verdade seguramente absoluta, sob pena de destituir todo o
complexo dinâmico dos valores humanos.
Observa-se que as regulamentações jurídicas não raro se
tornam posteriormente inócuas pelo fato de ocorrerem constantes
transformações culturais, progressos científicos, etc. A dinamicidade
do cenário humano faz as normas se tornarem incoerentes ao
contexto social vivido. Daí a dificuldade do campo jurídico em
acompanhar as constantes transformações sociais de forma coerente.
Nesse contexto e sob a égide de que o objeto de estudo da
Antropologia é a dinâmica dos cenários humanos, podemos
afirmar que essa reflexão do ser humano social é uma ferramenta
argumentativa para as bases de decisão no campo jurídico. Esse
olhar propõe uma releitura do alcance da norma e das decisões
sobre os acontecimentos humanos jurisdicionados, porquanto
diante de cada caso concreto existe um acervo de singularidades.
Vislumbra-se, então, a impossibilidade de dissociar essa

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 137


interdisciplinaridade com a ciência jurídica, já que o direito é uma
invenção humana, um fenômeno cultural e histórico, concebido
como técnica para solução de conflitos e pacificação social3.
Por exemplo, no campo da união homoafetiva, questão de
singular importância é o conceito de família. O antropólogo belga
Lévi-Strauss4 demonstra, em seu livro As Estruturas Elementares
do Parentesco (1982), que nossa concepção de família como
unidade central do núcleo social é etnocêntrica. Daí resulta que
Lévi-Strauss estendeu seu olhar a outro aspecto do parentesco, que
junta os elos da fraternidade, descendência e afinidade. Nessa
visão antropológica, como podemos querer sustentar que somente
um homem e uma mulher com fins reprodutivos constitui família?
Ainda no tema da união homoafetiva, a argumentação
principal proposta no artigo de Roberto Arriada Lorea5 (2006) é a
de que não há necessidade de se criar uma nova lei para regular a
união civil entre pessoas do mesmo sexo. Não se afigura plausível
a intenção legislativa de regular o casamento entre homossexuais,
diferentemente do casamento entre heterossexuais, sob pena de
incorrer em discriminação.
O articulista aprofunda o questionamento propondo a
questão: qual o fundamento legal para se autorizar a discriminação
dos homossexuais? Não há fundamento legal – o discurso é sempre
moral. E o campo da moralidade é a absoluta incoerência.
Diz ainda o autor que a relevância de um Estado Laico
adquire maior visibilidade quando se enfrentam temas que são afetos
aos direitos sexuais, sendo fundamental que se possam debater
questões vinculadas à sexualidade à luz do ordenamento jurídico
vigente, e não na doutrina da religião. Não há necessidade de se
justificar o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ao
contrário, a negativa de acesso é que deveria ser justificada.
Outra relevante temática é o caso da anencefalia. Conforme

3
BARROSO, L. R. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito
Constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina>. Acesso em: 09 nov. 2008.
4
LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis:
Vozes, 1982.
5
LOREA, R. A. Acesso ao casamento no Brasil: uma questão de cidadania
sexual. Ver. Estud. Fem., v. 14, n. 2, p. 488-496, set. 2006.

138 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


apreciado por Débora Diniz e Janaína Penalva6, a ADPF 547 é uma
ação constitucional com o objetivo de reconhecer a atipicidade da
interrupção da gestação, em caso de anencefalia do feto, não
caracterizando o procedimento médico de antecipação do parto
como aborto, que é considerado crime no Brasil. A medida judicial
visa proteger os direitos de personalidade da mulher e obrigá-la a
manter esse tipo de gestação caracteriza um desrespeito aos
princípios constitucionais da dignidade, da intimidade, da
liberdade e da não tortura, ou seja, é uma violência do Estado.
Nessa reflexão aparecem duas questões fundamentais,
conforme discutido pela Dra. Débora Diniz8, que atingem o âmago
da complexidade do papel do julgador, ao proferir uma decisão
judicial sobre a vida particular das pessoas, no caso da necessidade
de autorização da antecipação do parto perante um diagnóstico da
anencefalia; da autorização para adoção pleiteada por casais
homossexuais; no reconhecimento da união civil entre pessoas do
mesmo sexo, etc. – são elas em duas vertentes intrínsecas – qual a
razão pública para um julgamento? O que é laicidade para o
ordenamento jurídico vigente?
Em verdade, muito há que se percorrer sobre esses
questionamentos, contudo, o ponto fundamental é eleger o valor
que fundamenta todo o ordenamento jurídico brasileiro na
atualidade. O valor basilar que todas as normas perseguem é o
princípio da dignidade da pessoa humana. É o que
axiologicamente se elegeu como premissa na aplicação das leis, ou
seja, toda aplicação jurídica se justifica para atender ao princípio

6
DINIZ, D.; PENALVA, J. Anencefalia e Tortura. Boletim IBCCRIM. No prelo.
Novembro 2008.
7
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo Conselho
Nacional dos Trabalhadores da Saúde, em abril de 2004, perante o Supremo
Tribunal Federal. O pleito constitucional ainda está pendente de julgamento e
tem como argumento principal o fato de que, por ser a anencefalia uma
malformação incompatível com a vida, a interrupção da gestação, nesse caso,
não deveria ser tipificada como crime, mas como um procedimento médico
amparado em princípios constitucionais como o direito à saúde, à dignidade, à
liberdade e a de estar livre de tortura.
8
Minicurso de extensão proferido no Ministério Público do Estado de Goiás no
dia 31/10/2008, sobre o tema “Bioética:Desafios”.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 139


da dignidade da pessoa humana. Logo, a razão pública para um
julgamento e o que representa a laicidade, seja qual for o liame
proposto no caso concreto, deverá perseguir o que é razoável para
tutelar a dignidade humana, cuja acepção subjetiva está na ordem
individual de cada ser humano.
É nesse contexto de autonomia privada que partilhamos da
reflexão da antropóloga Débora Diniz, ao analisar a questão dos
direitos reprodutivos no Brasil, sustentando que “um Estado
verdadeiramente laico é aquele que reconhece o aborto como
matéria de ética privada”9.
No campo da bioética, a questão da anencefalia e dos direitos
sexuais está intrinsecamente ligada aos direitos de personalidade, às
liberdades pessoais e à faculdade de autodeterminação do homem,
com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, que
alicerça o ordenamento jurídico brasileiro.
Um questionamento interessante é o proposto por Karl
Engisch10, penalista alemão, que trata, em seu livro Introdução ao
pensamento jurídico (1996), entre outras questões, da problemática
da aplicação da lei na vida in concreto, da interpretação e
compreensão do direito, das questões do direito deficitário – lacunas
e incorreções. No capítulo VII de sua obra, quando critica a valoração
pessoal das normas, propõe o pertinente questionamento: “Com que
Direito é lícito presumir, ou muito menos concluir, que aquilo que
convém a um particular também convém a outro?”.
Esse questionamento faz menção à contribuição proposta
pela antropologia no que tange a relativização, cujo intuito é
sempre dissociar-se de um reducionismo literal das realidades.
Logo em seguida, Engisch11 assevera: “A semelhança entre
a ofensa corporal e a privação da liberdade consiste precisamente
no fato de que, aqui como ali, são lesados bens jurídicos pessoais
que, dentro de certos limites, são confiados ao poder de disposição
do prejudicado”.
9
DINIZ, D.; VÉLEZ, A. C. G. Aborto e razão pública: o desafio da anencefalia
no Brasil. Número Especial Gênero, Religião e Políticas Públicas,
Mandrágora, São Bernardo do Campo, v. 13, p. 22-32, 2007.
10
ENGISCH, K. Introdução ao pensamento jurídico. 7. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1996. p. 289.
11
ENGISH, op. cit., p. 290.

140 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Na atualidade, sobre o poder de disposição, ou seja, as
liberdades pessoais, Roxana Cardoso Brasileiro Borges12 discute o
assunto em seu livro Disponibilidade dos direitos de
personalidade e autonomia privada (2005).
Objetiva, em seu trabalho, demonstrar que há outras
formas de exercício dos direitos de personalidade além da simples
tutela negativa contra terceiros. Analisa a jurista, acerca do
exercício positivo dos direitos de personalidade, que decorre do
poder de autodeterminação das pessoas.
A autora argumenta que os direitos de personalidade são
direitos que decorrem da personalidade humana, em que se protege
o que é próprio da pessoa, como o direito à vida, o direito à
integridade física e psíquica, o direito à integridade intelectual, o
direito ao próprio corpo, o direito à intimidade, o direito à
privacidade, o direito à liberdade, à honra, ao nome, entre outros.
Todos esses direitos são expressões da pessoa humana13.
Assim, de modo a garantir a eficácia da tutela dos direitos de
personalidade, é necessário considerar uma acepção aberta do direito,
capaz de adaptar-se às novas circunstâncias que surgem a cada dia na
sociedade – interpretação sistemática do direito14. Caso contrário,
haveria o risco de não assegurar a ampla proteção da pessoa.
Os direitos de personalidade são, além de uma liberdade
negativa, uma liberdade positiva. Em sua vertente positiva,
significa dar ênfase a autonomia jurídica individual e a autonomia
privada, necessárias para uma tutela plena da autodeterminação do
homem15.

12
BORGES, R. C. B. Disponibilidade dos direitos de personalidade e
autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005.
13
BORGES, op. cit., p. 21.
14
BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Editora da UNB,
1999. p. 76. Chama-se “interpretação sistemática” aquela forma de interpretação
que tira os seus argumentos do pressuposto de que as normas de um
ordenamento, ou, mais exatamente, de uma parte do ordenamento (como Direito
privado, Direito penal) constituam uma totalidade ordenada (mesmo que depois
se deixe um pouco no vazio o que se deva entender com essa expressão), e,
portanto, seja lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente integrar uma
norma deficiente recorrendo ao chamado “espírito do sistema”, mesmo indo
contra aquilo que resultaria de uma interpretação meramente literal.
15
BORGES, op. cit., p. 89.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 141


Rosângelo Rodrigues de Miranda16, escrevendo sobre a
proteção da dignidade pessoal, pondera que:

Quando a Convenção Americana de Direitos


Humanos consagra o direito à proteção da dignidade
da pessoa, ela também, de modo implícito, está
agasalhando e tutelando o princípio da autonomia
privada, conditio sine qua non para o pleno florescer
das capacidades humanas e, por via de conseqüência,
para a efetiva apreensão do significado maior do
conceito de dignidade da pessoa humana.

Desse modo, na esfera da bioética a verdadeira acepção


perseguida é a tutela do princípio da dignidade humana, a fim de
garantir a emancipação do homem, através do respeito por suas
diferenças, do respeito por suas características, por sua
consciência e sua faculdade de autodeterminar conforme seu
próprio sentimento de dignidade17.
Reconhecer a subjetividade concreta do homem é requisito
para compreender a necessidade de proteger-lhe a vontade e,
consequentemente, sua necessidade de autonomia, sob a égide do
princípio da dignidade da pessoa humana18.
Isso posto, a releitura jurídica sob o olhar da Antropologia,
contribui para uma compreensão da complexidade da sociedade
atual, bem como para o perigo da ditadura da maioria, da
homogeneização da sociedade e da parcialidade das concepções
morais e religiosas, que marcam muitas das decisões jurídicas
quando está em pauta questões pertinentes à bioética. A partir
dessa interdisciplinaridade, pondera-se que a tutela de direitos,
especialmente no caso da anencefalia e da união homoafetiva, só
se torna possível diante do livre desenvolvimento da personalidade
humana.

16
MIRANDA, R. R. de. Ensaio sobre a tutela da autonomia privada na
Convenção Americana de Direitos Humanos. In: BORGES, R. C. B.
Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São
Paulo: Saraiva, 2005. p. 138.
17
BORGES, op. cit., p. 112.
18
Ibidem., p. 146.

142 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Referências

BARROSO, L. R. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito


Constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out.
2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina>. Acesso em: 09
nov. 2008.

BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Editora


da UNB, 1999.

BORGES, R. C. B. Disponibilidade dos direitos de personalidade e


autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005.

DINIZ, D.; PENALVA, J. Anencefalia e Tortura. Boletim IBCCRIM. No


prelo. Novembro 2008.

DINIZ, D.; VÉLEZ, A. C. G. Aborto e razão pública: o desafio da


anencefalia no Brasil. Número Especial Gênero, Religião e Políticas
Públicas, Mandrágora, São Bernardo do Campo, v. 13, p. 22-32, 2007.

ENGISCH, K. Introdução ao pensamento jurídico. 7. ed. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco.


Petrópolis: Vozes, 1982.

LOREA, R. A. Acesso ao casamento no Brasil: uma questão de cidadania


sexual. Ver. Estud. Fem., v. 14, n. 2, p. 488-496, set. 2006.

MIRANDA, R. R. de. Ensaio sobre a tutela da autonomia privada na


Convenção Americana de Direitos Humanos. In: BORGES, R. C. B.
Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São
Paulo: Saraiva, 2005. p. 138.

ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 11. ed. São Paulo: Brasiliense,


1994.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 143


144 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009
ARTIGO PARECER MINISTERIAL -
APELAÇÃO CRIMINAL 34734-2/213 (2008-0466-3313)

Edison Miguel da Silva Jr. *

Parecer: 1 / 6036 / 2008


Natureza: Apelação criminal 34734-2/213 (2008-0466-3313)
Comarca: Goiânia
Apte.: JOSE LUIZ TERRA
Apdo.: Ministério Público
Câmara: 2ª Criminal
Relator: Desa. Nelma Branco Ferreira Perilo
Procurador de Justiça: Edison Miguel da Silva Jr

Colenda Câmara Criminal julgadora,

JOSÉ LUIZ TERRA, 24 anos na data do fato, foi


denunciado nas penas do artigo 129, §9º, do Código Penal, c/c art.
5º, III e art. 7º, I, da Lei 11.340/06. Segundo a denúncia, no dia
03/10/07 ofendeu a integridade física da sua mãe Maria das Graças
Ferreira Terra.

Não foi realizado exame do corpo de delito. Consta apenas


Relatório médico com o seguinte registro (fls. 19): “Trauma em
coluna lombar com dor e sem lesão neuro-vascular”.

Em 26/10/07 (fls. 48), a denúncia foi recebida. No


interrogatório (fls. 62-64), declarou que chegou à casa de sua mãe
embriagado e começaram a discutir por assuntos de família; que
ela começou a dar-lhe tapas e vassouradas; que, quando estava

*
Promotor de Justiça em Goiás.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 145


saindo, ela pulou nas suas costas e, ao retirá-la, ela caiu no chão;
que não a agrediu; que está arrependido pelo ocorrido.

Em 17/06/08 (fls. 105-v), a denúncia foi julgada


procedente, como incurso nas sanções do artigo 129, §9º, do
Código Penal Brasileiro (fls. 103).

A pena-base foi fixada em 06 (seis) meses de detenção;


agravada em 01 (um) mês por ser contra ascendente; restando
definitiva em 7 meses de detenção, regime inicial aberto (fls. 104),
com sursis pelo prazo de 2 anos (fls. 105).

Em 08/07/08 (fls. 115), foi intimado da condenação; a


defesa técnica (Assistência Judiciária), em 29/08/08 (fls. 119-v).
Em 29/08/08 (fls. 120), apelou. Nas razões (fls. 126-137), apontou
nulidade do feito por ausência do exame de corpo de delito;
insuficiência da prova para condenação e excesso na dosagem da
pena. Ao final, requereu: (a) absolvição; (b) nulidade do feito; (c)
redução da pena e substituição por restritiva de direito.

Nas contrarrazões (fls. 139-142), o Ministério Público no


1º Grau manifestou-se pelo não conhecimento do recurso, pois
fora do prazo recursal, sem análise do mérito.

É o relatório.

Presentes os pressupostos, o recurso deve ser conhecido. A


defesa técnica (Assistência Judiciária) foi intimada da sentença na
mesma data que apelou (fls. 119-v e 120). Logo, o recurso é
tempestivo.

1 Crime de gênero contra mulher – A Lei 11.340/06 (Lei Maria


da Penha) estabeleceu no seu artigo 5º os crimes da sua
abrangência nos seguintes termos:

configura violência doméstica e familiar contra a

146 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


mulher qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial: (I) – no âmbito da unidade doméstica,
compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo
familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
(II) – no âmbito da família, compreendida como a
comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
(III) – em qualquer relação íntima de afeto, na qual
o agressor conviva ou tenha convivido com a
ofendida, independentemente de coabitação.

1.1 Assim, o artigo 5º é taxativo: para os efeitos da Lei 11.340/06,


configura violência doméstica e familiar contra a mulher somente
a conduta baseada no gênero. Vale dizer, a Lei Maria da Penha
não abrange toda e qualquer violência doméstica contra a mulher
porque exige conduta baseada no gênero.

1.2 Por outro lado, interpretar o mencionado artigo 5º ignorando a


exigência da relação de gênero para qualificar a conduta ou
simplesmente atribuir ao termo gênero o mesmo significado de
mulher, violaria o princípio constitucional da igualdade de sexos,
pois: “o simples fato de a pessoa ser mulher não pode torná-la
passível de proteção penal especial” (NUCCI, G. de S. Leis penais
e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p.
1043).

1.3 Enfim, sob pena de inconstitucionalidade, violência doméstica


não se confunde com violência de gênero. É necessário: “atentar
para a diferença existente entre violência doméstica e a violência
de gênero (art. 5º) por essência discriminatória, da qual a mulher é
principal vítima” (PRADO, L. R. Curso de direito penal
brasileiro. 7. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 142).

1.4 Com efeito, o termo gênero não pode ser confundido com sexo.
“Este (sexo), na maioria das vezes, descreve características e

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 147


diferenças biológicas, enfatizando aspectos da anatomia e
fisiologia dos organismos pertencentes ao sexo masculino e
feminino. As diferenças sexuais assim descritas são dadas pela
natureza” (TELES, M. A. de A.; MELO, M. de. O que é violência
contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 17).

1.5 Por isso, recusando o essencialismo biológico, o conceito de


gênero é utilizado largamente nas ciências sociais designando a
construção social do masculino e do feminino. A precursora desse
conceito foi Simone de Beauvoir, que condensou os seus
fundamentos na famosa frase: “Ninguém nasce mulher, mas se
torna mulher” (SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado,
violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 45 e
107).

1.6 A crença segundo a qual a mulher é mais fraca que o homem


não é biológica, mas cultural. É a cultura que proclama nos mais
diversos aspectos as diferenças sociais entre mulher e homem. É a
cultura que aponta para o lar como o lugar da mulher, o cuidar da
casa, o cuidado com os filhos... e a submissão ao homem.

1.7 O termo gênero, então, é utilizado para:

demonstrar e sistematizar as desigualdades


socioculturais existentes entre mulheres e homens,
que repercutem na esfera da vida pública e privada
de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais
diferenciados que foram construídos
historicamente, e criaram pólos de dominação e
submissão. Impõe-se o poder masculino em
detrimento dos direitos das mulheres,
subordinando-as às necessidades pessoais e
políticas dos homens, tornando-as dependentes.
(TELES E MELO, op. cit., p. 16)

1.8 Portanto, não é a anatomia que define o papel social do


feminino ou do masculino, mas a cultura. É a cultura que determina
à mulher o papel social feminino e ao homem o papel social
masculino, ou seja, o comportamento que se espera de cada um.

148 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


Especificamente, o comportamento da mulher no âmbito da
unidade doméstica, da família ou em qualquer relação de afeto não
é definido pela sua anatomia, mas pela cultura na qual ela está
inserida. Se for uma cultura machista, a mulher deve ser submissa
ao homem. Deve servi-lo, com dedicação. Qualquer transgressão
autoriza ideologicamente ao homem castigar a mulher para que ela
aprenda o seu papel, compreenda o seu lugar na ordem das coisas.
Quando assim age, o homem realiza uma conduta baseada no
gênero.

1.9 Por isso – ou seja, porque dirigida contra todas as mulheres – a


violência de gênero carrega um estigma como se fosse um sinal no
corpo e na alma da mulher. “É como se alguém tivesse
determinado que se nem todas as mulheres foram espancadas ou
estupradas ainda, poderão sê-lo qualquer dia desses. Está escrito
em algum lugar, pensam” (TELES E MELO, op. cit., p. 11).

APELAÇÃO CRIMINAL - LEI N. 11.340/06


(MARIA DA PENHA) - MEDIDAS
PROTETIVAS DE URGÊNCIA - NÃO-
APRECIAÇÃO POR CONSIDERADOS
INCONSTITUCIONAIS ALGUNS DOS
DISPOSITIVOS NELA ALBERGADOS -
PRINCÍPIO DA ISONOMIA - NÃO-
FERIMENTO. - Por isonomia não cabe entender o
conferir o mesmo tratamento a todos, mas tratar
desigualmente os desiguais. – “A razão é simples.
Aquilo que se há de procurar para saber se o cânone
da igualdade sofrerá ofensa em dada hipótese não é
o fator de desigualação assumido pela regra ou
conduta examinada, porquanto, como se disse,
sempre haverá nas coisas, pessoas, situações ou
circunstâncias, múltiplos aspectos específicos que
poderiam ser colacionados em dado grupo para
apartá-lo dos demais. E estes mesmos aspectos de
desigualação, colhidos pela regra, ora aparecerão
como transgressores da isonomia ora como
conformados a ela. Em verdade, o que se tem de
indagar para concluir se uma norma desatende a
igualdade ou se convive bem com ela é a seguinte:
se o tratamento diverso outorgado a uns for
'justificável', por existir uma 'correlação lógica'

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 149


entre o 'fator de discrímen' tomado em conta e o
regramento que se lhe deu, a norma e a conduta são

150 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009


mínima inferior a um ano (presente os demais requisitos), enseja
proposta de suspensão condicional do processo, nos termos do
artigo 89 da Lei 9.099/95.

ISTO POSTO, o Ministério Público no 2º Grau manifesta-


se pela nulidade do processo desde o recebimento da denúncia
(inclusive), em razão da incompetência absoluta do Juizado de
violência doméstica e familiar contra a mulher, com a remessa ao
Juízo comum para proposta de suspensão condicional do processo.

Goiânia (GO), 11 de dezembro de 2008

Edison Miguel da Silva Jr – Procurador de Justiça


18ª Procuradoria de Justiça

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 151


152 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS

?O Conselho Consultivo da ESMP-GO definiu que a Revista


do Ministério Público é de opinião doutrinária, cujo objetivo é
fomentar o debate jurídico em temas que guardem pertinência
e oportunidade com a atuação ministerial.
?Os artigos deverão ser preferencialmente inéditos.
?Serão aceitos artigos doutrinários e peças funcionais,
observada a gramática normativa.
?Cada artigo, na primeira lauda, deverá vir acompanhado de:
1- resumo (com o máximo de setenta palavras), sem parágrafos;
2- palavras-chave (no máximo cinco palavras);
3- título do trabalho;
4- nome completo do autor (ou autores);
5- minicurrículo (créditos), contendo o nome do autor (ou autores),
com endereço, fax e e-mail, situação acadêmica, títulos,
instituições às quais pertença e a principal atividade exercida.
?Formatação: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5,
justificado, sem recuos, deslocamentos ou espaçamentos, antes ou
depois, e, tampouco, tabulador para determinar os parágrafos, os
quais serão abertos automaticamente. Tamanho de papel A4,
margens superior e inferior 2,5 cm e laterais 3,0 cm. Os artigos
deverão conter de 3 a 6 laudas, utilizando os editores de texto
Word (Microsoft) ou Writer (BrOffice).
?Bibliografia: as referências bibliográficas seguirão as normas
da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas,
atendendo ao disposto na NBT ABNT 6023/2002. As citações
deverão ser feitas em sistema de chamada, numérico ou
autor/data, conforme especificado na NBR 10520/2002. A
exatidão e a adequação das referências a trabalhos que tenham
sido consultados e mencionados no corpo do artigo são de
responsabilidade exclusiva do autor (ou autores).

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009 153


?Remessa: Todo o material deverá ser gravado em CD e enviado
via e-mail, em arquivo anexo, para o seguinte endereço
eletrônico < editoracao@mp.go.gov.br >. É obrigatório, ainda,
que sejam enviadas à ESMP-GO (duas) cópias impressas,
devidamente assinadas pelo seu autor (ou autores).
?Aprovação: a ESMP-GO, ao receber os trabalhos, fará a sua
análise pelo Conselho Editorial. O relator designado analisará
o artigo que lhe for distribuído, conforme as regras
estabelecidas pelo Conselho Consultivo.
?Trabalho aprovado será submetido à revisão gramatical e, se for o
caso, será submetido à concordância do autor.
?Em caso de rejeição do artigo para publicação, somente será
feita a comunicação ao seu autor (ou autores) havendo
consulta pessoal à direção da ESMP-GO.
?Os trabalhos recebidos para seleção não serão devolvidos.
?Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração
pela publicação dos trabalhos na revista.
?Os artigos publicados a partir da 16ª edição já seguem o novo
acordo ortográfico da Língua Portuguesa.

154 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XII, n. 18, Outubro/2009

Vous aimerez peut-être aussi