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Jerzy Kosinski

O Pássaro
Pintado
Círculo do Livro

Tradução de
Christiano Oiticica e Marina Colasanti

Para minha ex-esposa Mary Hayward Weir,


sem a qual até mesmo o passado perderia
sua significação.

E só Deus, na sua onipotência, soube que


eram mamíferos de uma outra espécie.
M AIAKÓVSKI

I
Nas primeiras semanas da Segunda Guerra
Mundial, no outono de 1939, um menino de
seis anos de idade, proveniente de uma
grande cidade da Europa central, foi
enviado por seus pais, como centenas de
outras crianças, em busca da segurança de
uma aldeia distante.
Mediante farto pagamento, um viajante a
caminho do leste prometeu encontrar uma
família disposta a cuidar temporariamente
da criança. Sem outra escolha, os pais lhe
confiaram o menino.
Ao separar-se da criança os pais
acreditavam ser este o melhor meio de
preservá-la da guerra. Eles próprios,
devido a atividades antinazistas do pai,
anteriores à guerra, foram obrigados a se
esconder para evitar trabalhos forçados na
Alemanha ou o confinamento num campo
de concentração. Pretendiam salvar a
criança e esperavam reencontrá-la mais
tarde.
Os acontecimentos, entretanto, alteraram
seus planos. No caos da guerra e da
ocupação, em meio ao contínuo deslocar-se
dos refugiados, os pais perderam contato
com o homem encarregado de entregar a
criança na aldeia, e viram-se em face da
possibilidade de jamais encontrarem o
filho.
Enquanto isso, dois meses depois da
chegada do menino, sua mãe adotiva
morreu, deixando-o ao desabrigo,
vagueando de uma aldeia a outra, ora
abrigado, ora rechaçado.
As aldeias nas quais ele haveria de passar
os próximos quatro anos eram etnicamente
diferentes de sua terra de origem. Os
habitantes locais, isolados e circunscritos,
eram louros, de pele clara e olhos azuis. O
menino era moreno, de pele mate e olhos
pretos. Falava a língua das classes
educadas, praticamente incompreensível
para os camponeses do leste.
Tomaram-no por um cigano ou por um
judeu, num tempo em que abrigar ciganos
ou judeus, cujo lugar eram os guetos e os
campos de extermínio, expunha os indi-
víduos e as comunidades aos mais severos
castigos por parte dos alemães.
Durante séculos as aldeias daquela região
haviam sido esquecidas. Inacessíveis e
distantes de qualquer centro urbano,
podiam ser consideradas as mais atrasadas
da Europa central. Não havia escolas nem
hospitais, somente algumas estradas
pavimentadas, algumas pontes, nenhuma
eletricidade. Vivia-se em pequenos
núcleos, quase medievais, regidos pelo
direito aos rios, aos bosques, aos lagos. A
única lei era a do mais forte e mais rico
sobre o mais fraco e pobre. Divididos entre
a fé católica e a ortodoxa, os habitantes
encontravam na extrema superstição e nas
numerosas doenças que vitimavam
igualmente homens e animais seu único
ponto de contato.
Eram inapelavelmente brutos e ignorantes.
O solo era pobre e o clima rigoroso. Os
rios, pouco piscosos, invadiam
freqüentemente os pastos e os campos,
brejos e pântanos entrecortavam a região,
enquanto as densas florestas abrigavam
desde sempre bandos de bandidos e
rebeldes.
A ocupação alemã apenas aumentou a
miséria e o atraso daquela parte do país.
Os camponeses eram obrigados a entregar
a maior parte de sua magra colheita, quer
às tropas regulares, quer aos guerrilheiros.
A recusa acarretava incursões punitivas,
que reduziam as aldeias a ruínas
fumegantes.
Eu vivia na cabana de Marta, esperando dia após
dia, hora após hora, que meus pais viessem
buscar-me. Chorar não adiantava, e Marta não
prestava atenção às minhas lágrimas.
Ela era velha e estava sempre encurvada, como
se tentasse inutilmente partir-se ao meio. Seus
cabelos compridos, nunca penteados, tinham-se
embaraçado em inúmeras tranças grossas,
impossíveis de desfazer. Ela as chamava
melenas. Demônios se aninhavam nas melenas,
torcendo-as e atraindo a senilidade.
Ela claudicava apoiada num bastão nodoso,
resmungando de si para si numa língua que eu
mal entendia. Seu rosto murcho e pequeno era
coberto de rugas, a pele escura e avermelhada
como uma maçã assada. O corpo ressequido
tremia tangido por tempestades interiores, e os
dedos das mãos nodosas de juntas retorcidas
pela doença tremiam sem parar, enquanto a
cabeça, do alto do pescoço descarnado, anuía
em todas as direções.
Enxergava pouco. Buscava a luz através da
estreita fenda dos olhos encravados sob as
sobrancelhas espessas. As pálpebras eram como
sulcos num solo arado. Lágrimas escorriam sem
cessar do canto de seus olhos, descendo pelo
rosto ao longo de caminhos já traçados para
encontrar-se com a gosma pendente do nariz e a
baba espumosa que gotejava de seus lábios.
Parecia às vezes um velho cogumelo podre, à
espera de que uma última rajada de vento
dispersasse sua negra poeira interior.
Eu a temi a princípio, e fechava os olhos a cada
vez que ela se aproximava. Tudo o que eu
percebia então era o cheiro repugnante que dela
emanava. Sempre dormia vestida. Era essa, no
seu dizer, a melhor defesa contra o perigo das
inúmeras doenças que o ar fresco podia trazer
para dentro do quarto.
Para garantir a saúde, dizia ela, era necessário
lavar-se apenas duas vezes por ano, no Natal e
na Páscoa, e assim mesmo sumariamente e sem
tirar a roupa. Usava água quente somente para
aliviar a dor que calos, joanetes e unhas
encravadas infligiam a seus pés disformes. Uma
ou duas vezes por semana ela os punha de
molho.
Freqüentemente acariciava-me os cabelos com
as velhas mãos trêmulas, tão semelhantes a
ancinhos, e me encorajava a brincar no quintal, a
procurar a amizade dos animais domésticos.
Aos poucos percebi que eram menos perigosos
do que pareciam. Lembrei-me das histórias que
minha babá lia para mim num livro de figuras.
Esses animais tinham sua própria vida, seus
amores e desavenças, discutiam numa
linguagem própria.
As galinhas se apinhavam no galinheiro,
empurrando umas às outras na ânsia de alcançar
os grãos que eu lhes jogava. Algumas passeavam
aos pares, outras bicavam as mais fracas e
banhavam-se solitárias nas poças deixadas pela
chuva ou sentavam-se sobre os ovos e ajeitavam
as penas afetadamente antes de adormecer.
Coisas estranhas aconteciam no quintal. Pintos
amarelos e pretos surgiam de dentro dos ovos,
parecendo eles próprios ovos vivos sobre as
pernas longas. Um dia, um pombo solitário veio
unir-se ao bando. Foi mal recebido. Quando
aterrou entre as galinhas num redemoinho de
asas e poeira, elas fugiram espavoridas. Quando
começou a cortejá-las, arrulhando e perseguindo-
as em pequenos passos, elas se afastaram
olhando para ele com desdém. Invariavelmente,
quando ele se aproximava demasiado, fugiam
cacarejando.
Um dia, enquanto o pombo tentava como de
costume confraternizar com galinhas e pintos,
uma forma negra surgiu das nuvens. As galinhas
fugiram aterrorizadas para o celeiro e o
galinheiro. A forma preta caiu como uma pedra
no meio do bando. Só o pombo não tinha onde se
esconder. Antes que tivesse sequer o tempo de
abrir as asas, um pássaro possante prendeu-o ao
solo e feriu-o com o grande bico adunco. As
penas do pombo tingiram-se de sangue. Marta
saiu correndo da cabana, empunhando um
bastão, mas o gavião levantou vôo mansamente,
levando no bico o corpo inerte do pombo.
Marta criava uma cobra num jardim de pedras
cuidadosamente cercado. A serpente deslizava
sinuosa por entre as folhas agitando a língua
bífida como estandarte em parada militar.
Parecia indiferente ao resto do mundo, e nunca
soube se havia jamais reparado em mim.
Certa ocasião a cobra escondeu-se debaixo do
musgo que crescia no seu ninho, lá
permanecendo longo tempo sem água ou
comida; participava de estranhos mistérios dos
quais até mesmo Marta preferia não falar.
Quando finalmente apareceu sua cabeça luzia
como fruto maduro. Seguiu-se uma estranha
cerimônia. A serpente imobilizou-se, o corpo
anelado percorrido de longos arrepios. Em
seguida rastejou calmamente para fora da
própria pele, parecendo de súbito mais magra e
mais jovem. Já não agitava a língua e parecia
esperar a consolidação de sua nova pele. O velho
invólucro, quase translúcido, jazia com-
pletamente esquecido, logo coberto de moscas
desrespeitosas. Marta ergueu-o cuidadosamente
para escondê-lo num lugar secreto. Uma pele
daquelas, disse, tinha valiosas propriedades
medicinais, que eu era demasiado criança para
entender.
Marta e eu tínhamos observado a transformação
fascinados. Explicou-me que do mesmo modo o
homem se desfaz do corpo, para poder voar aos
pés do Senhor. Após longa jornada Deus o
recebe nos braços, devolve-lhe a vida com seu
sopro, para transformá-lo num anjo celeste ou
para lançá-lo à eterna tormenta das chamas do
inferno.
Um pequeno esquilo vermelho costumava visitar
a cabana. Depois de alimentado improvisava
uma dança no quintal, batendo com a cauda no
chão, soltando pequenos guinchos, rolando,
saltando, aterrorizando galinhas e pombos.
O esquilo me visitava diariamente, sentava no
meu ombro, beijava-me as orelhas, o pescoço, o
rosto, brincava nos meus cabelos com suas
patinhas delicadas. Depois partia, voltava para o
bosque além do campo.
Um dia ouvi vozes e corri para o morro vizinho.
Escondido no mato, vi horrorizado que alguns
meninos da aldeia perseguiam meu esquilo,
através do campo. Em corrida alucinada o
bichinho tentava alcançar a segurança da
floresta, enquanto os garotos atiravam pedras
para cortar-lhe o caminho. O esquilo
enfraquecido arrefeceu os saltos, atrasou-se. Os
meninos o apanharam. Mas ainda ele se defendia
debatendo-se e tentando morder. Os meninos
então debruçaram-se, encharcando o esquilo
com o líquido de uma lata. Percebendo que algo
horrível estava para acontecer, pensei
desesperadamente em alguma maneira de salvar
meu amigo. Mas era tarde demais.
Um dos meninos tirou uma madeira em brasa de
dentro da lata que trazia pendurada no ombro, e
com ela tocou o bichinho, jogando-o ao chão.
Incendiou-se imediatamente. Com um guincho
que me cortou o fôlego, saltou para o alto como
se quisesse escapar ao fogo. As chamas o
envolveram; somente a cauda inquieta ainda se
agitou por um segundo. O corpinho fumegante
rolou no chão e logo quedou-se. Os meninos
ficaram olhando, rindo, cutucando-o com um
pedaço de pau.
Meu amigo morto, eu não tinha mais por quem
esperar. Contei a Marta o acontecido, mas ela
não pareceu entender. Resmungou algo para si
mesma, rezou e lançou um esconjuro secreto
sobre a casa para afastar a morte, que, ela
garantia, estava nos rondando, querendo entrar.
Marta adoeceu. Queixava-se de uma dor aguda
sob as costelas, lá onde o coração, para sempre
retido, bate as asas. Explicou-me que Deus ou o
Diabo tinha enviado uma doença para destruir
mais um ser e assim pôr fim à sua permanência
na terra. Eu não podia entender por que Marta
não se desfazia da pele como a cobra,
recomeçando a vida.
Quando sugeri que o fizesse, zangou-se e me
amaldiçoou, chamando-me de cigano blasfemo,
bastardo e aparentado com o Diabo. Disse que a
doença entra nas pessoas quando elas menos
esperam; pode estar sentada atrás da gente na
carroça, pular nos nossos ombros quando nos
abaixamos para colher framboesas no mato, ou
sair de dentro da água enquanto o bote
atravessa o rio. Invisível e astuta, a doença se
infiltra no corpo através do ar, da água, por
contato com um animal ou outra pessoa, ou
mesmo — e nesse ponto lançou-me um olhar
desconfiado — através de um par de olhos
escuros separados por um nariz adunco. Tais
olhos, conhecidos como pertencentes a bruxas e
ciganos, podiam aleijar, trazer peste ou morte.
Por isso me proibia de olhá-la diretamente ou a
qualquer animal da casa. Ordenou-me que
cuspisse três vezes rapidamente e fizesse o
sinal-da-cruz se, mesmo sem querer, a
encarasse.
Freqüentemente se enraivecia se a massa de
fazer pão azedava. Acusava-me de ter lançado
uma praga e me deixava dois dias de castigo
sem comer pão. Tentando não encarar Marta,
para agradá-la, eu andava na cabana de olhos
fechados, esbarrando nos móveis e virando os
baldes, lá fora pisoteava os canteiros e tropeçava
como um inseto ofuscado pela luz. Enquanto isso
Marta juntava penugens de ganso, que lançava
sobre as brasas, soprando a fumaça em todas as
direções e murmurando rezas para exorcizar os
maus espíritos.
Afinal, anunciava que a praga estava
esconjurada. E tinha razão, pois a próxima
fornada sempre produzia pão saboroso.
Marta sobrevivia à dor e à doença, contra as
quais mantinha uma luta selvagem e constante.
Quando a dor começava a incomodá-la, picava
cuidadosamente um pedaço de carne crua e a
colocava num pote de barro. Em seguida
despejava sobre ela água do poço, tirada antes
do amanhecer, e enterrava o pote num canto da
cabana. Dizia que isso lhe aliviava as dores por
alguns dias, até a carne apodrecer. Logo, porém,
quando as dores voltavam, repetia novamente
toda a cerimônia.
Marta jamais bebia na minha presença, e nunca
sorria. Acreditava que se o fizesse me daria a
oportunidade de contar-lhe os dentes, e cada
dente contado significava um ano a menos na
sua vida. Na verdade, não tinha muitos dentes,
mas eu compreendi que na sua idade até mesmo
um ano é muito precioso.
Eu também tentava beber e comer sem mostrar
os dentes, e treinava olhando minha imagem no
espelho azulado do poço, procurando sorrir sem
abrir os lábios.
Marta proibiu-me também de catar do chão os
cabelos que ela perdia. Era conhecido o poder do
olhar maligno, que pousado sobre um único fio
podia acarretar as piores dores de garganta.
À noite Marta sentava-se perto do fogo,
balançando a cabeça e murmurando orações. Eu
sentava por perto pensando nos meus pais.
Lembrava-me dos meus brinquedos, que agora
provavelmente pertenciam a outras crianças. O
urso de pelúcia com olhos de vidro, o avião com
suas hélices e os passageiros visíveis através das
janelinhas, o pequeno tanque fácil de
movimentar, o carro de bombeiros e sua longa
escada.
À medida que as imagens ficavam mais vívidas e
reais, a cabana de Marta parecia aquecer-se ao
meu redor. Via minha mãe sentada ao piano.
Ouvia as palavras de sua canção. Relembrava o
medo antes da operação de apêndice, feita
quando tinha apenas quatro anos, o chão bri-
lhante do hospital, a máscara de clorofórmio que
os médicos tinham posto no meu rosto
impedindo que eu contasse sequer até dez.
Esse meu passado, porém, transformava-se
rapidamente numa espécie de ilusão, fabuloso
como as histórias da minha velha babá.
Perguntava-me se meus pais jamais me
achariam. Saberiam eles que não deviam beber
ou sorrir diante de pessoas de mau-olhado que
lhes pudessem contar os dentes? Preocupava-me
lembrando o sorriso aberto e franco de meu pai,
tão cheio de dentes que se olhos malignos os
contassem não tardaria a morrer.
Um dia, ao acordar, percebi que a cabana estava
fria. Não havia fogo e Marta ainda estava
sentada no meio do quarto, com as saias
arregaçadas e os pés metidos no balde cheio de
água.
Tentei falar-lhe, mas não me respondeu. Segurei-
lhe a mão rígida e fria; os dedos nodosos não se
moveram, a mão continuou pendurada ao longo
da cadeira, imóvel como roupa molhada na corda
em dia sem vento. Quando lhe ergui a cabeça, os
olhos aguados pareceram me encarar. Olhos
assim eu tinha visto uma só vez, nos peixes
mortos trazidos pela correnteza.
Concluí que Marta preparava-se para mudar de
pele, e, como a cobra, não devia ser perturbada.
Sem saber o que fazer, tentei ser paciente.
Era outono avançado. O vento fazia estalar os
galhos arrancando as últimas folhas secas, que
se dispersavam no céu. As galinhas encorujadas
nos poleiros, tristes e sonolentas, abriam, um de
cada vez, os olhos desgostosos. Fazia frio e eu
não sabia acender o fogo. Meus esforços para
obter de Marta uma resposta foram inúteis. Ela
continuava sentada, imóvel, olhando fixamente
para algo que eu não conseguia ver.
Não tendo mais nada a fazer voltei a dormir,
certo de que ao acordar encontraria Marta
andando pela cozinha, murmurando seus
lúgubres salmos. Mas quando acordei, já noite,
ela ainda estava com os pés de molho. Eu tinha
fome e medo do escuro.
Decidi acender a lâmpada de querosene.
Procurei os fósforos que Marta guardava
escondidos. Apanhei a lâmpada da prateleira,
mas escorregou-me levemente da mão e um
pouco de querosene molhou o chão.
Os fósforos não queriam acender. Quando
finalmente um se inflamou, partiu-se ao meio e
caiu na poça de querosene. A chama hesitou a
princípio, envolta em fumaça azulada. De
repente, pulou para o meio do quarto.
No clarão, via Marta perfeitamente. Não parecia
ligar para o que estava acontecendo, como se
não visse a chama que àquela altura se alastrava
pela parede e lambia as pernas de sua cadeira.
Já não fazia frio. As chamas se aproximavam do
balde em que Marta banhava os pés. Apesar do
calor, devia estar sentindo frio, mas não se
mexeu. Admirei-lhe a coragem. Depois de ter
estado sentada uma noite e um dia, continuava
imóvel.
O calor no quarto aumentava. Monstruosas
trepadeiras, as chamas subiam pelas paredes,
gemendo e crepitando como cascas que estalam
sob o pé, sobretudo perto da janela, por onde
penetrava um sopro de ar. Eu permanecia junto à
porta, pronto para correr, mas ainda à espera de
Marta. Ela porém continuava sentada, alheia a
tudo. As chamas começaram a lamber-lhe as
mãos pendentes, como o teria feito um cão
amigo. Cobriram-nas de marcas rubras, e
subiram em busca dos cabelos emaranhados.
Marta cintilava como uma árvore de Natal, até
que uma labareda abriu-lhe um chapéu de fogo
sobre a cabeça, e ela não foi mais do que uma
tocha. As chamas rodeavam-na por todos os
lados, ternamente. Pedaços de seu velho casaco
de pele de coelho caíam chiando na água do
balde. Por entre as chamas eu via a pele
enrugada e as manchas brancas dos braços
ossudos.
Chamei-a pela última vez e fugi para o quintal.
No galinheiro perto da casa as galinhas
cacarejavam, batendo as asas
desesperadamente. A vaca, em geral tão calma,
mugia golpeando com a cabeça a porta do
celeiro. Decidi não esperar a permissão de Marta
e soltar as galinhas por minha conta. Saíram
correndo histéricas, tentando voar num frenético
bater de asas. A vaca conseguiu derrubar a
porta. Distante do fogo, escolheu um ponto de
observação e, pensativa, pôs-se a ruminar.
O interior da cabana era um braseiro. Chamas
saltavam pelas janelas e aberturas. Fumaça
grossa desprendia-se do teto de palha.
Espantava-me Marta. Até tal ponto ia sua
indiferença? Teriam podido seus sortilégios e
magias imunizá-la contra um fogo que
transformava tudo o mais em cinzas?
Ainda não saía. Tive que afastar-me para o canto
mais remoto do quintal. O calor estava
insuportável. Agora também o galinheiro e o
celeiro ardiam. Ratos assustados pelo fogo
cruzavam o quintal em todas as direções. Os
olhos de um gato, refletindo as chamas,
brilharam amarelos na beira escura do campo.
Marta não aparecia, apesar da minha certeza de
que pudesse surgir ilesa. Mas quando uma das
paredes ruiu, mergulhando no interior devastado
da cabana, comecei a duvidar de que alguma vez
tornaria a vê-la.
Pareceu-me distinguir uma estranha forma
oblonga nas nuvens de fumaça que subiam aos
céus. O que seria? Talvez a alma de Marta
fugindo a caminho do paraíso? Ou a própria
Marta, renascida do fogo, livre de sua velha pele
enrugada, deixando a terra montada numa
vassoura como as bruxas das histórias que
minha mãe me contava?
Ainda fascinado pelo espetáculo de chamas e
centelhas, fui arrancado de meus devaneios por
vozes de gente e ladrar de cães. Eram os
fazendeiros chegando. Marta tinha-me prevenido
contra os moradores da aldeia. Dizia que se
alguma vez me pegassem sozinho tratariam de
me afogar como um gato ou me matariam a
machadadas.
Comecei a correr assim que o primeiro apareceu
no círculo de luz. Não me viram. Corri feito louco,
esbarrando nos tocos de árvore, rasgado pelos
arbustos espinhentos. Afinal, caí num barranco.
Ouvia as vozes distantes e o baque das paredes
desabando. Então adormeci.
Acordei ao alvorecer, gelado. Estendido como
uma teia de aranha, um sudário de neblina ia de
um lado a outro do barranco. Escalei o topo do
morro. Fios de fumaça e pequenas chamas
indecisas erguiam-se no monte de cinzas e
madeira calcinada onde havia sido a cabana de
Marta.
Ao redor, o silêncio. Tinha certeza de que, agora,
encontraria meus pais no fundo do barranco. Por
mais longe que estivessem, saberiam o que me
tinha acontecido. Não era eu seu filho? E para
que servem os pais senão para socorrer seus
filhos na hora do perigo?
Pensando que talvez estivessem perto, chamei
por eles. Ninguém respondeu.
Sentia-me enfraquecido pela fome e pelo frio.
Não sabia o que fazer nem aonde ir. Meus pais
não chegavam.
Fui tomado de arrepios e vomitei. Precisava
encontrar alguém. Tinha que ir até a aldeia.
Manquejando sobre o capim amarelecido pelo
outono, os pés e as pernas machucados,
encaminhei-me lentamente para o povoado
distante.
II
Meus pais não estavam em parte alguma.
Comecei a correr através dos campos em direção
às cabanas dos camponeses. Um crucifixo
apodrecido, outrora pintado de azul, surgiu na
encruzilhada. No alto pendia uma imagem sacra
cujos olhos apenas visíveis pareciam fixar, cheios
de lágrimas, os campos desertos e o halo
vermelho do sol nascente. Um pássaro cinzento
estava pousado num dos braços da cruz. Ao ver-
me, abriu as asas e fugiu.
Vinha no vento o cheiro do incêndio. Das cinzas
já frias um fio de fumaça subia para o céu
escuro.
Trêmulo e aterrorizado, entrei na aldeia. Dos dois
lados da estrada as cabanas de tetos de palha e
janelas trancadas pareciam afundar na terra.
Os cães amarrados às cercas perceberam minha
presença e começaram a latir, retesando as
correntes. Apavorado, parei no meio da estrada,
à espera de que um deles se soltasse a qualquer
instante.
O pensamento monstruoso de que meus pais não
estavam comigo, nem viriam, atravessou-me a
mente. Sentei-me no chão chorando enquanto
chamava meu pai, minha mãe e até mesmo
minha velha babá.
Homens e mulheres reuniam-se ao meu redor
falando num dialeto que eu não entendia. Seus
gestos e olhares suspeitosos enchiam-me de
medo. Alguns seguravam cães que rosnavam e
ameaçavam lançar-se contra mim.
Alguém me golpeou por trás com um ancinho.
Pulei para o lado. Espetaram-me com um
forcado. Pulei novamente, gritando.
A multidão foi se animando. Uma pedrada me
atingiu. Estirei-me de rosto colado ao chão sem
querer saber o que aconteceria em seguida.
Bombardeavam-me a cabeça com bosta seca de
vaca, batatas podres, pedaços de maçãs,
punhados de terra e pedras. Eu cobria o rosto
com as mãos, os gritos abafados na poeira da
estrada.
Alguém me ergueu do chão. Um homenzarrão
ruivo agarrou-me pelo cabelo, puxando-me a si
enquanto com a outra mão me torcia uma
orelha. Eu resistia desesperadamente. A
multidão gargalhava. O homem me deu um
safanão e chutou-me com o tamanco. Todos
riam, os homens seguravam o ventre, os cães
lutavam para se soltar, cada vez mais próximos.
Um camponês abriu caminho na multidão; trazia
um saco de lona. Agarrou-me pelo pescoço e me
enfiou o saco na cabeça. Em seguida me jogou
no chão, tentando enfiar-me inteiro no saco
fétido.
Eu bracejava e esperneava, mordia e arranhava.
Até que um golpe na nuca tirou-me a
consciência.
Acordei cheio de dores. O saco em que eu jazia
enrodilhado ia sendo carregado nas costas de
alguém cujo calor eu sentia através do pano
grosso. Acima da minha cabeça a boca do saco
tinha sido amarrada com uma corda. Mas quando
tentei me libertar o homem me botou no chão e
me encheu de pontapés. Com medo de fazer
sequer um gesto, deixei-me ficar quieto e
enrodilhado num semi-torpor.
Pelo cheiro de esterco, pelo balir de uma cabra e
o mugir de uma vaca soube que tínhamos
chegado a uma granja. O saco foi depositado no
chão de uma cabana e chicoteado. A pele em
fogo, saltei pela boca do saco. Lá estava o
camponês de chicote em punho, agora
golpeando as minhas pernas, enquanto eu
pulava como um esquilo. Pessoas foram se
aproximando: uma mulher enrolada num avental
sujo, criancinhas que saíam de trás da cama e do
fogão, rastejando como baratas, e dois
trabalhadores.
Rodearam-me. Um tentou tocar-me os cabelos,
mas quando olhei para ele retirou rapidamente a
mão. Nos comentários que faziam a meu respeito
e que quase não entendia, distingui a palavra
"cigano", muitas vezes repetida. Tentei explicar,
mas minha língua e meu modo de falar eram
para eles cômicos e incompreensíveis.
O camponês que me tinha trazido recomeçou a
chicotear-me as pernas. Eu saltava cada vez
mais alto, enquanto crianças e adultos torciam-
se de rir.
Deram-me um pedaço de pão e me trancaram no
depósito de lenha. Meu corpo ardia lanhado de
chicotadas, não conseguia adormecer. Na
escuridão do depósito ouvia os ratos remexendo
ao meu lado, e, cada vez que me roçavam as
pernas, gritava assustando as galinhas que
dormiam além da parede.
Nos dias que se seguiram famílias inteiras de
camponeses vieram à cabana me examinar. Para
que eu pulasse como uma rã, o dono da casa me
chicoteava os tornozelos já cobertos de cascas
de feridas. Minha única vestimenta era o saco, no
qual tinham aberto dois buracos para as pernas.
Freqüentemente, quando pulava, o saco caía. Os
homens então gargalhavam e as mulheres riam
contrafeitas enquanto eu tentava cobrir meus
pequenos órgãos. Encarei alguns deles, e sempre
desviavam o olhar, ou cuspiam três vezes
abaixando as pálpebras.
Um dia, uma mulher de idade chamada Olga, a
Sábia, veio à cabana. Foi tratada com visível
respeito. Examinou-me bem, perscrutou os olhos
e os dentes, apalpou-me os ossos e mandou que
urinasse numa bacia, estudando em seguida a
cor da urina.
Depois contemplou longamente a cicatriz no meu
abdome, lembrança da apendicite, e me apalpou
o estômago. Finda a inspeção, regateou longa e
decididamente com o camponês, terminando por
atar-me uma corda ao pescoço e levar-me
consigo. Eu havia sido vendido.
Comecei a viver em sua choupana. Eram dois
quartos um pouco abaixo do nível do solo,
entulhados de folhas, feixes de ervas secas,
arbustos, pedrinhas coloridas de estranhos
feitios, rãs, toupeiras e potes fervilhantes de
vermes e lagartixas. No meio da choupana ardia
um fogo sobre o qual se punham a ferver os
caldeirões.
Olga me mostrou tudo. Dali por diante fiquei
encarregado de cuidar do fogo, trazer lenha da
floresta e tratar dos bichos. Havia também na
cabana os mais variados pós, que Olga
preparava num almofariz, socando e misturando
os diversos componentes. Ajudá-la nisso era
outra de minhas tarefas.
De manhã cedo Olga me acordava para visitar as
cabanas da aldeia. Homens e mulheres
persignavam-se ao nos ver, mas, apesar disso,
assim mesmo nos recebiam delicadamente. Os
doentes esperavam lá dentro.
Se por acaso encontrássemos uma mulher
chorosa segurando o ventre com as mãos, Olga
me mandava massagear a barriga macia e
quente sem abandoná-la com o olhar, enquanto
ela própria murmurava estranhas palavras e
descrevia sinais sobre nossas cabeças. Certa vez
fomos atender uma criança com uma perna
infeccionada, de onde o pus sanguinolento
escorria sobre a pele já escura e enrugada. O
cheiro era tão fétido que até mesmo Olga via-se
obrigada a abrir a porta a cada instante para
deixar entrar lufadas de ar fresco.
Durante todo o dia olhei fixamente a perna
gangrenada enquanto a criança ora chorava, ora
dormia. A família desesperada rezava em voz
alta do lado de fora. Quando a atenção da
criança arrefecia, Olga aplicava sobre a perna
um ferro em brasa, cauterizando
cuidadosamente a ferida. O doente debatia-se
em todas as direções, gritava, desmaiava,
voltava a si. O cheiro de carne queimada
empestava o quarto, a ferida chiava como bacon
na frigideira. Em seguida Olga cobria a ferida
com pedaços de pão molhado misturado com
mofo e teias de aranha recém-colhidas.
Olga conhecia o tratamento para quase todas as
doenças, e minha admiração por ela crescia
gradativamente. Pessoas vinham consultá-la
sobre todos os males e ela sempre sabia como
ajudá-las. Se alguém tinha dor de ouvido, Olga
lavava-lhe as orelhas com óleo de cominho e
introduzia em cada uma um pedaço de linho
enrolado em feitio de funil e molhado na cera
quente, cujas pontas incendiava. O paciente,
atado à mesa, gritava de dor enquanto o fogo
queimava o pano dentro dos ouvidos. Olga então
soprava para retirar os resíduos, "a serragem",
como ela dizia, e medicava a área queimada com
um unguento feito do sumo de uma cebola, bile
de um bode ou coelho, e um pouco de vodca
bruta.
Ela sabia também acabar com furúnculos,
tumores e quistos, e arrancar dentes estragados.
Guardava os furúnculos no vinagre, onde os
deixava imersos até que por sua vez se
transformassem em remédios. Recolhia cuida-
dosamente o pus que escorria das feridas para
que fermentasse durante alguns dias em
potinhos especiais. Quanto aos dentes extraídos,
eu próprio os pulverizava no almofariz, e secava
o pó em pedaços de cortiça colocados sobre o
fogão.
Às vezes, no meio da noite, um camponês
assustado vinha buscar Olga para atender um
parto, e lá ia ela, coberta com um xale, tiritando
de frio e sono. Se partia para alguma aldeia
vizinha e demorava alguns dias, eu cuidava da
casa, alimentava os animais e mantinha o fogo
aceso.
Apesar do dialeto de Olga me ser estranho,
chegamos a nos entender perfeitamente. No
inverno, quando a tormenta imperava e a aldeia
jazia envolta no abraço de neves intransponíveis,
nós ficávamos sentados no calor da cabana
enquanto Olga me contava das criaturas de Deus
e dos espíritos do Demônio.
Ela me chamava o Moreno. Dela, soube pela pri-
meira vez ser possuído por um mau espírito que
se aninhava em mim como uma toupeira no
fundo de sua toca, e cuja presença eu
desconhecia. Pessoas como eu, possuídas por
maus espíritos, podiam ser reconhecidas por
seus olhos pretos e enfeitiçados, que não
pestanejavam diante de brilhantes olhos claros.
Daí, declarou Olga, eu poder olhar para os outros
e, sem querer, lançar uma praga.
Explicou-me que os olhos pretos não só podem
lançar pragas, como eliminá-las. Ao ajudá-la na
cura de uma pessoa, de um animal, ou mesmo
de uma planta, eu devia tomar cuidado e afastar
todo pensamento estranho, pois basta um olhar
enfeitiçado para que uma criança saudável
adoeça, um bezerro caia fulminado por súbita
doença e o feno apodreça depois da colheita.
O espírito maligno que me habitava atraía por
sua própria natureza outros seres misteriosos.
Fantasmas adejavam ao meu redor. Silenciosos,
reticentes e quase sempre invisíveis, os
fantasmas são, porém, muito persistentes;
perseguem as pessoas nos campos e florestas,
esgueiram-se nas casas, podem transformar-se
em gatos malévolos ou em cães raivosos, e à
meia-noite viram lobisomens.
Almas do outro mundo acompanham os maus
espíritos. São pessoas de há muito mortas,
condenadas à danação eterna, que voltam à vida
somente na lua cheia, com poderes sobre-
humanos; seus olhos tristes estão sempre
voltados para o leste.
Os vampiros, talvez a mais perigosa dessas
ameaças impalpáveis, adquirem forma humana,
e são, eles também, atraídos por seres
possessos. Trata-se de crianças afogadas antes
de receber o batismo ou abandonadas pelas
próprias mães. Até a idade de sete anos crescem
nas florestas e nas águas, para só então
readquirirem forma humana e, sob forma de
vagabundos, rondar as igrejas católicas e
uniatas. Conseguindo entrar, mantêm-se junto
aos altares, conspurcando as imagens,
mordendo, quebrando ou destruindo os objetos
do culto e, se possível, sugando o sangue de
pessoas adormecidas.
Olga suspeitava que eu fosse um vampiro e não
me escondia suas suspeitas. Para conter os
desejos do meu espírito maligno e evitar que se
transformasse num fantasma ou numa alma do
outro mundo, preparava cada manhã uma
infusão amarga que eu bebia mastigando um
pedaço de carvão esfregado com alho. Os outros
também me temiam. Todas as vezes que eu
tentava atravessar a aldeia sozinho, as pessoas
viravam o rosto e faziam o sinal-da-cruz, as
mulheres grávidas fugiam espavoridas, e os mais
corajosos soltavam seus cães em cima de mim.
Não tivesse eu aprendido a correr rápido e a
nunca me afastar demais da cabana de Olga, não
teria voltado vivo dessas incursões.
Eu ficava a maior parte do tempo na cabana, cui-
dando para que o gato albino não matasse a
galinha de estimação de Olga, que, preta e rara,
vivia engaiolada. Tomava conta dos sapos de
olhar embaçado que pulavam no fundo de um
pote, atiçava o fogo, remexia misturas
borbulhantes e descascava batatas podres, cujo
mofo, medicamento para feridas e queimaduras,
recolhia cuidadosamente numa tigela.
Olga era muito respeitada na aldeia, e quando a
acompanhava eu não temia ninguém.
Chamavam-na freqüentemente para borrifar os
olhos do gado e desse modo protegê-lo contra o
mau-olhado a caminho do mercado. Ela ensinava
aos camponeses como cuspir três vezes antes de
perseguir um porco, e como preparar uma massa
especial de ervas bentas para alimentar as
novilhas antes de cruzá-las com o touro.
Ninguém na aldeia comprava vacas ou cavalos
sem o beneplácito de Olga. Derramava água
sobre o bicho, e, após observá-lo enquanto se
sacudia, dava o veredicto do qual dependiam o
preço e, às vezes, a própria venda.
Aproximava-se a primavera. O gelo rompia sua
crosta sobre o rio, raios oblíquos de sol varavam
os redemoinhos, brincavam no contínuo
enovelar-se da água. Libélulas azuis pairavam
sobre a correnteza, lutando contra súbitas
lufadas do ar ainda frio e úmido. Farrapos de
bruma formavam-se na superfície do lago
aquecido pelo sol, para logo, envolvidos nos
turbilhões do vento, desfazer-se em flocos e
desaparecer.
Entretanto, quando o calor tão longamente
esperado chegou afinal, trouxe consigo a peste.
Suas vítimas contorciam-se de dor como vermes
trespassados, eram sacudidas por temores e
morriam sem recobrar a consciência. Eu
acompanhava Olga de cabana em cabana,
olhando fixamente para os doentes na esperança
de arrancá-los à morte, mas sem resultado. A
doença era por demais poderosa.
Atrás das janelas fechadas, na penumbra das
cabanas, os doentes e os moribundos gemiam e
gritavam. As mulheres apertavam os filhos ao
peito, corpinhos enrolados em panos dos quais a
vida fugia rapidamente. Homens desesperados
cobriam com edredons e peles de carneiro as
mulheres devoradas pela febre. As crianças
olhavam horrorizadas para o rosto azulado de
seus pais mortos.
A peste persistia.
Os habitantes da aldeia vinham à porta de suas
cabanas e erguiam os olhos em busca de Deus.
Só ele podia aliviar a dor. Só ele podia conceder
aos corpos atormentados a graça de um sono
tranqüilo. Só ele podia transformar os terríveis
enigmas da doença em saúde infindável. Só ele
podia apaziguar o desespero de uma mãe
chorando o filho morto. Só ele. . .
Mas Deus, na sua infindável sabedoria,
aguardava. Acendiam-se fogueiras ao redor das
cabanas, defumando os caminhos, os jardins e os
quintais. Ouviam-se os golpes de machado e o
desabar das árvores nas florestas vizinhas,
enquanto os homens providenciavam a lenha
necessária para manter o fogo aceso. O som
cortante das lâminas e o barulho dos troncos
caindo atravessavam o ar claro e parado,
enfraquecendo, abafados, à medida que alcan-
çavam os pastos e a aldeia; como a neblina
esconde a chama da vela, assim a atmosfera
densa e empestada envolvia os sons em sua
rede mortífera.
Uma noite meu rosto começou a arder e fui
sacudido por tremores incontroláveis. Olga
estudou-me os olhos por um momento e
encostou a mão fria em minha testa. Em seguida,
sem dizer palavra, carregou-me rapidamente
para um campo distante, cavou um poço
profundo, despiu-me e ordenou que eu pulasse
para dentro dele.
De pé, tremendo de frio e febre, vi Olga encher o
poço novamente, enterrando-me até o pescoço.
Nivelou o chão ao meu redor, alisando-o com a
pá, assegurou-se de não haver por perto nenhum
formigueiro, e acendeu três fogueiras de turfa.
Enfiado na terra gélida, meu corpo esfriou
rapidamente, como a raiz de uma planta seca.
Perdi o conhecimento. Qual repolho solitário
minha cabeça incorporou-se ao campo.
Olga não me esquecia. Várias vezes durante o
dia trouxe bebidas frias que me despejava na
boca e pareciam escorrer do meu corpo para a
terra. A fumaça das fogueiras que ela alimentava
com musgos frescos ardia-me nos olhos e
sufocava-me a garganta. Vistas do nível do chão
nas raras ocasiões em que o vento dispersava a
fumaça, a terra parecia um tapete grosseiro, as
plantinhas que cresciam ao redor adquiriam
proporções de árvores, e a figura de Olga que se
aproximava lançava sobre minha paisagem uma
sombra gigantesca.
Tendo me alimentado pela última vez ao
entardecer, Olga lançou mais turfa nas fogueiras
e foi dormir na cabana. Fiquei sozinho no campo,
preso à terra, que parecia querer tragar-me para
suas profundezas.
As fogueiras ardiam devagar, soltando centelhas
que subiam como vaga-lumes na escuridão da
noite. Parecia-me ser uma planta ansiando pelo
sol, mas com os galhos retidos na terra. Ou então
sentia a cabeça subitamente independente do
corpo, rolando e rolando, cada vez mais rápida,
até atingir o disco do sol, que a tinha tão gentil-
mente aquecido durante o dia.
Às vezes, quando o vento me acariciava a testa,
ficava tomado de pavor. Imaginava exércitos de
formigas e baratas reunindo-se e marchando em
direção à minha cabeça para introduzir-se no
cérebro e construir novos ninhos. Ali
proliferariam, comendo meus pensamentos um
depois do outro, até deixar-me tão vazio quanto
uma casca de abóbora.
Fui acordado por um ruído. Abri os olhos sem
saber ao certo onde estava. Fundido na terra,
sentia a cabeça pesada num tumulto de
pensamentos. Clareava. As fogueiras estavam
apagadas. Sentia nos lábios o frescor do orvalho
que me escorria do rosto e dos cabelos.
Os ruídos se fizeram ouvir novamente. Um bando
de corvos sobrevoava minha cabeça. Um deles
pousou perto, num farfalhar de asas, e
aproximou-se devagar, enquanto os outros
começavam a descer.
Aterrorizado, via o brilhar de suas penas negras e
o seu olhar penetrante. Rodearam-me, cada vez
mais próximos, avançando com o pescoço
estendido, tentando descobrir se eu estava vivo
ou morto.
Não esperei mais. Gritei. Os corvos, assustados,
recuaram. Alguns ergueram-se em breve vôo,
pousando mais adiante. Desconfiados, fecharam
o círculo e tornaram a avançar.
Gritei novamente. Mas dessa vez nem sequer se
assustaram; com redobrada coragem,
aproximavam-se. Meu coração parecia romper-se
no peito. Não sabia o que fazer. Tornei a gritar.
Inútil. Os pássaros já estavam a poucos palmos
do meu rosto. Pareciam aumentar a cada passo,
os bicos mais e mais cruéis, as garras
espalmadas sobre o chão.
Um dos corvos estacou a poucos centímetros do
meu nariz. Gritei com todas as minhas forças,
mas o corvo estremeceu apenas e abriu o bico.
Antes que eu pudesse gritar de novo, bicou-me a
cabeça, arrancando-me um chumaço de cabelos.
Outro golpe me atingiu, vi mais cabelos
pendentes do bico.
Sacudi a cabeça de um lado para outro, afofando
a terra ao redor do pescoço. Mas meus
movimentos pareciam atiçar a curiosidade das
aves, que me rodeavam bicando a esmo. Meus
gritos já enfraquecidos não conseguiam erguer-
se para alcançar a cabana de Olga.
Os pássaros divertiam-se. Quanto mais eu
sacudia a cabeça, mais excitados e atrevidos
ficavam. Parecendo desprezar meu rosto,
atacavam a cabeça e a nuca.
As forças me deixavam. Mover a cabeça me era
tão doloroso quanto carregar um saco de trigo.
Estonteado, via tudo através de densa neblina.
Desisti da luta. Agora pássaro, eu tentava libertar
da terra minhas asas enregeladas, até que, livre,
juntei-me ao bando de corvos. Erguido numa
lufada de vento, voei para o raio de sol que se
desenhava no horizonte, nítido e retesado.
Acompanhavam-me os gritos alegres de meus
companheiros alados.
Olga me encontrou em meio à massa palpitante
dos corvos, enregelado e com a cabeça lacerada
pelos muitos golpes. Desenterrou-me
rapidamente.
Só me restabeleci muitos dias depois. Olga disse
que a terra fria tinha arrancado a doença do meu
corpo e que um bando de fantasmas disfarçados
em corvos tinha vindo buscá-la, provando meu
sangue para se assegurar de que eu fosse um
deles. Só por isso, garantiu-me ela, não me
tinham arrancado os olhos.
Passaram-se semanas. A peste continuava, e
sobre os numerosos túmulos novos crescia capim
em que não se devia tocar, pois continha
certamente o contágio dos mortos.
Uma bela manhã Olga foi chamada na beira do
rio, de onde um enorme peixe-gato, de longos
bigodes eriçados, estava sendo puxado para a
margem. Era um peixe monstruoso, de aspecto
aterrador, um dos maiores jamais vistos na
região. Ao pescá-lo, um pescador tinha se
cortado na rede. Enquanto Olga aplicava um
torniquete no braço para estancar o sangue, os
outros destriparam o peixe e, em meio à alegria
geral, extraíram a bexiga natatória, que estava
intacta.
De repente, estando eu absolutamente tranqüilo
e distraído, um homenzarrão levantou-me no ar,
gritando para os outros coisas que eu não
conseguia entender. A multidão aplaudiu, e fui
rapidamente passado de mão em mão. Antes
que me desse conta do que acontecia, vi-me na
água, agarrado à bexiga natatória, que, meio
afundada e empurrada pelo chute de um dos
homens, afastou-se da margem. Com braços e
pernas, eu me agarrava freneticamente ao balão
flutuante, submergindo a todo momento na água
fria e lamacenta do rio, gritando por socorro.
Mas derivava rapidamente; via as pessoas
correndo na margem, alguns atirando pedras que
caíam a meu lado espirrando água, uma delas
quase atingindo a bexiga. A correnteza me
levava para o meio do rio. As margens pareciam
inatingíveis. A multidão desapareceu atrás de um
morro.
Uma brisa fria, nunca percebida em terra,
encrespava a superfície da água. Docemente, eu
deslizava rio abaixo. Numerosas vezes a bexiga
ameaçou afundar, tangida pelas marolas. Mas
logo voltava a boiar, navegando lenta e
majestosamente. De súbito, fui tragado por um
redemoinho. A bexiga girava num torvelinho,
mergulhando, sem sair do lugar.
Balancei o corpo, tentando com meu próprio
movimento arrancá-la dali. Aterrorizava-me a
idéia de passar a noite girando. Se a bexiga
estourasse eu morreria, pois não sabia nadar.
Aos poucos o sol se punha. A cada volta da
bexiga os últimos raios ofuscavam-me os olhos,
os reflexos cintilavam na superfície turbulenta.
Sentia-me enregelado. O vento aumentava. A
bexiga, atraída por novos repuxos, escapou ao
redemoinho.
Eu estava a muitos quilômetros da aldeia de
Olga. A correnteza me arrastava para uma
prainha submersa em sombras profundas. Aos
poucos comecei a distinguir a margem
pantanosa, os juncos ondulantes, os ninhos dos
patos adormecidos. A bexiga aproximou-se
lentamente através dos tufos de vegetação.
Pernilongos voavam nervosos ao meu redor. Os
cálices amarelos dos nenúfares farfalhavam, uma
rã assustada pulou na água rasa. Súbito, um
caniço furou a bexiga, e eu pisei no fundo
esponjoso.
Tudo estava parado. Vozes longínquas, de gente
ou de animais, vinham dos bosques de bétulas e
dos alagadiços vizinhos. Arrepiado, torcia-me de
cãibras. Por mais atenção que prestasse, nada
havia além do silêncio.

III
Assustava-me a solidão. Mas lembrei-me das
duas coisas que Olga considerava básicas para
sobreviver sem ajuda de ninguém. O
conhecimento de plantas, animais, venenos e
ervas medicinais; a posse de fogo, ou de um
"cometa". O primeiro era mais difícil de obter,
pois requeria grande experiência. Mas o segundo
consistia apenas numa lata de conserva, aberta
numa extremidade e cheia de furos de pregos
nos lados, à qual se amarrava uma alça de
arame para poder balançá-la quer como um laço,
quer como um incensório.
O fogãozinho portátil servia como uma fonte
constante de calor e como cozinha em miniatura;
bastava enchê-lo de qualquer combustível,
mantendo sempre algumas brasas no fundo.
Rodando a lata energicamente, o ar entrava
pelos buracos, agindo como um fole, enquanto a
força centrífuga mantinha seguro o combustível.
A escolha apropriada do combustível e o
apropriado movimento rotativo permitiam a
obtenção de temperaturas diversas para vários
fins, e a alimentação constante do cometa
garantia sua duração. Para cozinhar batatas,
nabos ou peixe bastava o fogo brando de turfa e
folhas úmidas, enquanto para assar passarinhos
era necessária a chama viva de palha e gravetos
secos, e nada era melhor do que fogo de casca
de batatas para preparar os ovos tirados dos
ninhos.
Para manter o fogo durante a noite, devia-se
encher o cometa de musgos úmidos, colhidos
nos troncos das mais altas árvores. Queimavam
lentamente, assustando com sua fumaça cobras
e insetos; em caso de perigo, bastavam algumas
rodadas no ar para acender um fogo chamejante.
Em dias de neve, o cometa, alimentado
freqüentemente com casca de árvore ou
madeiras secas e resinosas, exigia constantes e
vigorosas rodadas. Em dias quentes, secos ou
com vento quase não era preciso sacudir o
cometa, mas seu fogo podia ser abrandado
acrescentando-se-lhe capim fresco, ou borrifando
as brasas com água.
O cometa constituía também valiosa proteção
contra cães e pessoas. Mesmo os cães mais
ferozes paravam imediatamente diante daquele
objeto ondeante cujas centelhas ameaçavam
incendiar-lhe o pêlo, e nem mesmo o mais
corajoso dos homens arriscava-se a perder a
vista ou a ter o rosto desfigurado pelo fogo.
Armado das brasas de um cometa, qualquer
homem tornava-se uma fortaleza, vencível
apenas quando atacado com lanças ou
apedrejado.
Por isso, deixar que o cometa se apagasse por
falta de cuidado, excesso de sono ou chuvas
súbitas, era muito perigoso. Havia poucos
fósforos naquela região, caros e de difícil
obtenção, e quem os tinha rachava cada palito
ao meio para economizá-los.
Assim, mantinha-se o fogo sempre aceso nos
fogões e nos fornos. Antes de se recolher para a
noite, as mulheres empilhavam achas sobre as
brasas para ter certeza de que continuariam
ardendo até de manhã. E ao amanhecer faziam o
sinal-da-cruz antes de reavivá-las. O fogo,
diziam, não é amigo natural do homem, por isso
deve-se-lhe satisfazer os caprichos. Acreditavam
também que partilhar o fogo ou mesmo
emprestá-lo podia acarretar somente desgraças;
os que pedem fogo emprestado na terra talvez o
devolvam no inferno. Por outro lado, levar o fogo
para fora de casa secava o leite das vacas e as
tornava estéreis, enquanto deixar apagar um
fogo podia ter sinistras conseqüências em caso
de parto.
Assim como o fogo era essencial para o cometa,
este era essencial para a vida. Indispensável
para entrar nas aldeias sempre protegidas por
bandos de cães ferozes, para evitar o
congelamento no inverno e para garantir comida
quente.
Todos carregavam sacolas nas costas ou presas
no cinto para a coleta de combustíveis. De dia,
os camponeses que trabalhavam no campo
assavam em seus cometas legumes, peixes e
pássaros; de noite, homens e garotos a caminho
de casa agitavam-nos com força, deixando que
brilhassem no escuro, vermelhos discos
chamejantes. O nome lhes vinha dos círculos
amplos que a cauda luminosa desenhava no céu;
pareciam realmente cometas, aqueles cuja
aparição, segundo Olga, anunciava guerras,
pragas ou morte.
Difícil era obter uma lata para confeccioná-lo. En-
contravam-se somente ao longo de estradas de
ferro distantes por onde passavam os comboios
militares, e os habitantes locais evitavam que
outros as levassem, recolhendo-as todas e
cobrando por elas preços extorsivos. As
comunidades de ambos os lados da estrada
lutavam pela posse das latas, enviando
diariamente grupos de homens e garotos
equipados com sacos e armados de machados,
destinados a desencorajar as equipes rivais.
Foi Olga quem me deu meu primeiro cometa,
recebido em pagamento por tratar de um
doente. Eu cuidava dele com carinho, martelando
os buracos que ameaçavam aumentar, limando
as arestas, polindo o metal. Temeroso de que me
roubassem meu único bem, enrolei no pulso
parte do arame da empunhadura, jamais me
separando dele. O cintilar do fogo me enchia de
orgulho e segurança, e eu nunca perdia
oportunidade de encher minha sacola com os
combustíveis apropriados. Quando, enviado por
Olga em busca de ervas medicinais, atravessava
a floresta, bastava a presença do cometa para
que me sentisse protegido.
Mas Olga estava distante, e eu não tinha meu
cometa. Tiritava de frio e de medo. Os pés
sangravam, cortados pelas arestas afiadas das
pedras. Arranquei das pernas as sanguessugas
inchadas de meu próprio sangue. Sombras
longas e sinuosas envolviam o rio, sons abafados
escalavam as margens tenebrosas. No estalar
dos ramos das faias, no gemer dos chorões que
arrastavam suas folhas sobre a água, eu
reconhecia as vozes dos seres misteriosos de
que Olga falava. Capazes de adquirir formas
estranhas — de corpo ondulante e cara pontuda,
como serpentes com cabeça de morcego —,
enroscavam-se nas pernas dos homens,
sugando-lhes a vontade e obrigando-os a deita-
rem-se em busca de um sono eterno. Eu já tinha
visto dessas serpentes nos estábulos,
aterrorizando o gado. Dizia-se que sugavam o
leite das vacas, ou, pior ainda, rastejavam para
dentro do animal, onde devoravam todos os
alimentos até matá-los de fome.
Correndo através de juncos e ervas cortantes,
afastei-me do rio, varei a barreira de arbustos,
rastejando sob impenetráveis camadas de galhos
entrelaçados, ameaçado a todo instante de cair
sobre espinheiros e pedras aguçadas.
Uma vaca mugiu ao longe. Rapidamente subi
numa árvore e, esquadrinhando o campo,
descobri a luz dos cometas. Os homens voltavam
dos pastos. Cauteloso, segui em sua direção,
atento aos movimentos do cão que a vegetação
rasteira transmitia.
As vozes se aproximavam. Havia certamente um
caminho além da espessa parede de folhagens.
Ouvia o bufar das vacas e as vozes dos jovens
pastores. De vez em quando as centelhas de
seus cometas acendiam-se no céu escuro, para
logo desaparecer rodopiando. Eu os acom-
panhava através do mato, decidido a atacá-los e
roubar um cometa.
Diversas vezes o cão que os acompanhava,
percebendo meu cheiro, investiu contra o mato,
mas visivelmente não se sentia seguro na
escuridão; bastava que eu assoviasse como uma
cobra para que voltasse à trilha, rosnando de vez
em quando. Os pastores, pressentindo o perigo,
ficaram silenciosos, atentos aos sons da floresta.
Aproximei-me da trilha. As vacas quase roçavam
as ancas nos galhos que me escondiam. Estavam
tão perto que sentia seu calor. O cachorro tentou
outro ataque, mas o assovio o rechaçou.
Quando as vacas se aproximaram ainda mais,
fustiguei duas delas com uma vareta. Mugindo,
partiram a trote seguidas pelo cão. Então lancei
um grito aterrador e golpeei no rosto o pastor
mais próximo. Antes que se desse conta do que
estava acontecendo, agarrei seu cometa e voltei
para o mato.
Os outros, assustados pelo grito e pela fuga das
vacas, saíram correndo em direção à aldeia,
arrastando consigo o companheiro atordoado. Eu
penetrei na profundeza da floresta, abafando o
fogo com folhas secas.
Somente quando me vi bastante afastado, soprei
no cometa. Sua luz revelou bandos de insetos
escondidos na escuridão. Vi bruxas debruçadas
nas árvores. Olhavam-me tentando confundir
meus passos. Ouvia distintamente o murmurar
das almas penadas saídas dos cadáveres dos pe-
cadores. Na luz avermelhada de meu cometa via
as árvores dobrando-se sobre mim. Ouvia os
lamentos e o mover-se de espíritos e fantasmas
tentando escapar de seus caixões.
Aqui e acolá percebia machadadas nos troncos.
Lembrei-me de que Olga havia contado que os
camponeses entalhavam as árvores para lançar
maldições contra seus inimigos. Repetindo o
nome da pessoa odiada e visualizando seu rosto
enquanto a lâmina busca a seiva da árvore, é
certo que doença e morte se abaterão sobre o
inimigo. Havia muitas cicatrizes nos troncos ao
meu redor. Os moradores destas redondezas
certamente tinham muitos inimigos e grande era
seu trabalho no afã de abatê-los.
Assustado, eu rodava o cometa violentamente. Vi
filas intermináveis de árvores curvando-se
obsequiosas em minha direção, convidando-me a
penetrar cada vez mais profundamente.
Mais cedo ou mais tarde eu teria que atender a
seu convite, pois queria manter-me afastado das
aldeias ribeirinhas.
Prossegui, firmemente convencido de que os
encantamentos de Olga me conduziriam até ela.
Não dizia sempre que se eu tentasse fugir
encantaria meus pés, obrigando-os a me trazer
de volta? Não tinha nada a temer. Forças
desconhecidas, que me habitavam ou me
seguiam, levavam-me inapelavelmente para
Olga.

IV
Morava agora com o moleiro, a quem os aldeões
tinham apelidado Ciumento. Era ainda mais
taciturno que os outros habitantes do lugar.
Mesmo quando os vizinhos vinham visitá-lo,
ficava quieto bebericando vodca, murmurando
uma palavra de vez em quando, perdido em seus
próprios pensamentos ou olhando fixamente uma
mosca morta grudada na parede.
Abandonava seus devaneios apenas quando a
mulher entrava no aposento. Igualmente quieta e
taciturna, sentava-se sempre atrás dele,
baixando o olhar modestamente toda vez que
outros homens entravam e a olhavam furtivos.
Eu dormia no sótão, bem em cima do- quarto
deles. À noite era acordado por suas brigas. O
moleiro suspeitava que a mulher flertasse com
um jovem ajudante, mostrando-lhe o corpo cheio
de lascívia nos campos e no moinho. A mulher
não negava as acusações, mas continuava
sentada e quieta. Às vezes as brigas ficavam
mais violentas. O moleiro, furioso, acendia as
velas, calçava as botas e batia na mulher.
Através de uma fresta nas tábuas do chão, eu
espiava o moleiro, que armado de chicote
golpeava o corpo nu da mulher. A mulher
tentava se proteger com um edredom de plumas
arrancado à cama, mas o homem o arrancava,
atirando-o contra a porta, e, de pé diante dela
com as pernas afastadas, continuava
chicoteando o corpo roliço. Após cada golpe,
vergões de sangue apareciam na pele delicada.
O moleiro era impiedoso. Com um gesto amplo
do braço baixava a língua de couro nas nádegas
e nas coxas, lanhava os seios e o pescoço, feria
os ombros e as pernas. A mulher, enfraquecida,
gemia no chão. Depois rastejava para as pernas
do marido, implorando perdão.
Finalmente o moleiro jogava fora o chicote e,
após soprar as velas, entrava na cama. A mulher
continuava gemendo. No dia seguinte encobria
as feridas, movia-se com dificuldade e enxugava
as lágrimas do rosto com as mãos machucadas.
Havia, na casa, outro morador: uma bela gata
malhada. Um dia foi tomada por estranho delírio.
Soltando pequenos miados deslizava ao longo
das paredes sinuosas como uma serpente,
meneava o corpo e rastejava, esfregando-se na
saia da mulher do moleiro. Seus gemidos roucos,
seu ronronar foram deixando todos enervados. À
noitinha a gata gritava enlouquecida, o nariz
ardendo de febre, a cauda batendo nos flancos.
O moleiro trancou a fêmea ardente no celeiro e,
depois de avisar à mulher que traria o ajudante
para jantar, saiu em direção ao moinho. Sem
dizer palavra, a mulher começou a aprontar a
comida e a pôr a mesa.
O ajudante, um órfão, tinha vindo recentemente
trabalhar com o moleiro. Era um rapaz alto e
taciturno, de cabelos louros sempre caídos sobre
os olhos. O moleiro sabia o que toda a aldeia
comentava. Diziam que sua mulher mudava
quando via o rapaz, que, sem abandonar com o
olhar os seus olhos azuis e indiferente ao risco de
ser descoberta pelo marido, erguia com uma
mão a saia acima dos joelhos, enquanto com a
outra abaixava o corpete do vestido desnudando
os seios palpitantes.
O moleiro voltou acompanhado pelo rapaz. No
saco que trazia ao ombro vinha um gato
emprestado pelo vizinho. Era um gatarrão de
enorme cabeça e cauda possante. A gata,
trancada no celeiro, miava lasciva. Solta pelo
moleiro, pulou no meio do quarto. Os dois gatos
começaram a andar um ao redor do outro,
desconfiados, ofegantes, aproximando-se
lentamente.
A mulher do moleiro serviu o jantar. Comiam em
silêncio, o moleiro sentado ao meio, a mulher de
um lado e o ajudante de outro. Eu jantava
acocorado perto do fogão, admirado com o
apetite dos dois homens, em cujas gargantas
desapareciam nacos de pão e carne tragados
como avelãs em meio a fartas goladas de vodca.
Somente a mulher comia devagar. E, a cada vez
que baixava a cabeça sobre o prato, o ajudante
envolvia com um olhar rápido seu busto farto.
Subitamente, no meio do quarto, a gata arqueou
o dorso, arreganhou dentes e unhas e pulou
sobre o gato. Este estacou enrijecido, lançando
jatos de saliva nos olhos inflamados da fêmea, e
recuou. A gata, andando ao seu redor,
aproximava-se e afastava-se em pequenos
saltos, a arranhar-lhe o focinho com a pata. O
gato caminhou para ela cauteloso, sorvendo seu
cheiro intoxicante. Ergueu o rabo e tentou
chegar-se por detrás. Mas a fêmea não deixava;
achatada contra o chão, rodava sobre si mesma,
toda unhas e dentes.
Fascinados, o moleiro e os outros dois olhavam a
cena em silêncio, comendo. O rosto da mulher
enrubesceu, o sangue pulsava-lhe no pescoço. O
ajudante levantou os olhos para tornar a baixá-
los imediatamente; o suor escorria-lhe pelo
cabelo, que ele afastava sem parar da testa
escaldante. Só o moleiro continuava jantando
calmamente, olhando os gatos, relanceando um
olhar ora para a mulher ora para o convidado.
De repente, o gato decidiu-se. Seus movimentos
tornaram-se mais leves. Avançava. Ela se mexeu,
ameaçando recuar, mas o macho, de um pulo,
caiu'sobre a gata. Afundou-lhe os dentes no
pescoço. Intento firme, penetrou-a. Só então,
saciado, exausto, afrouxou a presa. A gata,
pregada ao chão, soltou um grito lancinante e,
num salto, libertou-se dele. Pulou para o fogão
apagado remexendo-se como um peixe,
esfregando as patas no pescoço, roçando a
cabeça contra a parede ainda morna.
A mulher do moleiro e o ajudante pararam de
comer. Olhavam-se fixamente, arfavam com as
bocas cheias de comida. Respirando fundo, sem
se dar conta do que fazia, a mulher apertou os
seios com as mãos. O ajudante olhava
alternadamente para ela e para os gatos; passou
a língua nos lábios secos, engoliu a custo a
comida.
O moleiro limpou o prato, reclinou a cabeça para
trás e bebeu de um gole seu copo de vodca.
Apesar de bêbado, levantou-se brandindo a
colher, e, batendo com ela sobre a mesa,
aproximou-se do rapaz, que o olhava enfeitiçado.
A mulher recolheu a saia e começou a remexer
no fogão.
O moleiro inclinou-se para o ajudante,
murmurando-lhe alguma coisa ao ouvido. Como
se espetado por uma faca, o rapaz ergueu-se,
negando. Desta vez em voz alta, o moleiro
perguntou-lhe se desejava sua mulher. O rapaz
enrubesceu e não deu resposta. A mulher do
moleiro, ofegante, continuava limpando as
panelas.
O moleiro apontou para o gato e, novamente,
murmurou algo para o rapaz. Este tentou afastar-
se da mesa para deixar o quarto. O moleiro
avançou com a colher em punho, e, antes que o
ajudante percebesse o que acontecia, empurrou-
o contra a parede, esmagando-lhe a garganta
com o braço, enquanto o seu joelho mergulhava-
lhe no estômago. O rapaz estava imobilizado. Em
pânico, arquejante, murmurou alguma coisa
ininteligível.
A mulher precipitou-se para junto do marido,
implorando e soluçando. Do alto do fogão a gata,
subitamente desperta, olhou a cena; o gato,
assustado, pulou para cima da mesa.
Com um pontapé o moleiro afastou a mulher, e
num gesto rápido, como o das mulheres ao
limpar batatas, mergulhou a colher num dos
olhos do rapaz e rodou-a na órbita.
O olho saltou-lhe do rosto como uma gema de
ovo, rolou pela mão do moleiro e caiu no chão. O
ajudante gritava e guinchava, mas o moleiro o
mantinha preso contra a parede. A colher
ensangüentada mergulhou no outro olho, que
saltou ainda mais depressa. Pareceu ficar por um
momento indeciso, depois rolou pela camisa até
o chão.
Tudo tinha acontecido num minuto. Eu não
conseguia acreditar no que tinha visto. Uma
esperança me atravessou a mente, de que os
olhos arrancados pudessem ser recolocados no
lugar. Gritando, a mulher do moleiro correu para
o outro quarto e acordou as crianças, que
começaram também a gritar aterrorizadas. O
ajudante lançou um uivo pungente, depois, em
silêncio, cobriu o rosto com as mãos. Filetes de
sangue jorraram por entre os seus dedos, escor-
reram-lhe pelos braços, pingando lentamente na
camisa e nas calças.
O moleiro, ainda enraivecido, empurrou-o para a
janela, como se esquecido de que o outro estava
cego. O rapaz tropeçou, gritou, quase caiu sobre
a mesa. O moleiro agarrou-o pelos ombros e,
abrindo a porta com o pé, lançou-o lá fora. O
rapaz tornou a gritar, vacilou no umbral, e caiu
no pátio. Os cães, sem saber o que tinha
acontecido, começaram a latir.
Os olhos continuavam no chão. Caminhei ao seu
redor, sempre ao alcance de seu olhar.
Timidamente os gatos se aproximaram do centro
do quarto e começaram a brincar com eles como
se fossem novelos; à luz do lampião de
querosene, suas próprias pupilas tornaram-se
estreitas como fendas. Os gatos cheiravam,
lambiam, rolavam os olhos, que passavam um
para o outro, empurrando-os delicadamente, com
as patas macias. Parecia-me agora que os olhos
me olhavam de todos os cantos do quarto, como
se donos de uma nova vida independente.
Eu os observava fascinado. Não fora a presença
do moleiro, os teria pegado para mim.
Certamente ainda viam. Eu os guardaria no
bolso, e os usaria quando preciso, por cima dos
meus, passando a ver o dobro ou quem sabe até
mais. Talvez os pudesse prender na nuca, para
que me dissessem, não sabia bem como, o que
se passava às minhas costas. Ou, melhor ainda,
poderia deixar os olhos nalgum lugar e eles me
contariam depois o que tinha acontecido em
minha ausência.
Talvez os olhos não quisessem servir a ninguém.
Podiam facilmente fugir dos gatos e rolar porta
afora, vagueando em seguida pelos campos,
lagos e florestas, olhando tudo, livres como
pássaros fora da gaiola. Libertos do corpo, não
morreriam mais, e assim pequenos poderiam se
esconder em qualquer lugar, espionando as
pessoas. Excitado, decidi fechar a porta e
capturar os olhos.
O moleiro, evidentemente aborrecido com a
brincadeira dos gatos, chutou os animais e
esmagou os olhos sob as botas pesadas. Ouviu-
se um estalo. Um espelho maravilhoso, capaz de
refletir o mundo inteiro, tinha sido partido. Ficava
no chão apenas uma espécie de geléia, e em
mim o terrível sentimento de perda.
Sem me dar atenção, o moleiro sentou-se, escor-
regando aos poucos à medida que adormecia.
Levantei-me silenciosamente, peguei a colher
ensangüentada e comecei a juntar a louça. Era
minha obrigação arrumar e varrer o quarto.
Mantinha-me afastado dos olhos, por não saber o
que fazer com eles, mas afinal, sem olhar, varri-
os rapidamente para dentro da pá e joguei-os no
fogão.
De manhã, acordei cedo. Ouvia lá embaixo o
ressonar do moleiro e da mulher. Com cuidado
preparei uma sacola de comida, enchi o cometa
de brasas e, distraindo o cachorro com uin
pedaço de salsicha, abandonei a casa.
Encostado na parede do moinho, perto do
estábulo, jazia o ajudante. A princípio pensei em
passar por ele rapidamente, mas logo lembrei-
me de que ele não enxergava. Estava ainda sob
o efeito do choque; o rosto coberto com as mãos,
chorava e gemia, todo ensangüentado. Tive
vontade de dizer alguma coisa, mas refreei-me,
com medo de que me perguntasse o que havia
sido feito de seus olhos, obrigando-me a contar
que o moleiro os tinha esmagado. Sentia muita
pena dele.
Perguntava a mim mesmo se a perda da visão
implicaria também o esquecimento de tudo o
que havia sido visto antes. Se assim fosse, o
homem não enxergaria realmente mais, nem em
sonho. Caso contrário, porém, mantida a visão da
memória, a cegueira não seria assim tão ruim. O
mundo parecia-me quase igual em toda parte, e
apesar de as pessoas serem diferentes umas das
outras, como os animais e as árvores, não
deveria ser difícil saber-lhes as feições depois de
tê-las visto durante tantos anos. Eu tinha vivido
apenas sete anos, mas já lembrava muitas
coisas, e quando fechava os olhos reencontrava,
ainda mais vívidos, inúmeros detalhes. Quem
sabe sem os olhos o ajudante talvez descobrisse
um mundo novo e fascinante.
Ouvi sons vindos da aldeia. Temendo que o
moleiro acordasse, prossegui meu caminho,
tocando os olhos de vez em quando. Caminhava
com cuidado, pois sabia agora que os olhos têm
raízes delicadas. Quando a gente se abaixa,
pendem como maçãs no galho, e podem cair
facilmente. Resolvi pular as cercas de cabeça
erguida; mas, na primeira tentativa, tropecei e
caí. Assustado, levei os dedos aos olhos para
certificar-me de que ainda estavam no lugar.
Depois de perceber que se abriam e fechavam
corretamente, contemplei feliz a revoada de
perdizes e tordos. Voavam ligeiros, mas eu os
acompanhava com o olhar e os precedia quando
se escondiam sob as nuvens, menores do que
gotas de chuva. Prometi a mim mesmo lembrar
tudo o que visse. Assim, se me arrancassem os
olhos, guardaria para sempre a memória de
todas as minhas imagens.

V
Meu trabalho era colocar armadilhas para Lekh,
que vendia pássaros em várias aldeias. Era
insuperável na profissão. Costumava trabalhar
sozinho, e só me empregou por eu ser muito
pequeno, muito magro e muito leve, o que me
permitia colocar armadilhas lá onde Lekh não
alcançava: galhos mais frágeis, densos
emaranhados de cardos e urtigas, ilhotas
alagadiças de brejos e pântanos.
Lekh não tinha família. Sua cabana vivia cheia de
pássaros de todas as qualidades, do modesto
pardal à sábia coruja. Os camponeses trocavam
os pássaros de Lekh por comida, de modo que
ele não precisava preocupar-se com o essencial:
leite, manteiga, coalhada, queijo, pão, salsichas,
vodca, frutas e até mesmo roupas. Tudo isso ele
trazia dos povoados quando levava seus
pássaros engaiolados, gabando-lhes a beleza e
as qualidades canoras.
Lekh tinha o rosto sardento e cheio de espinhas.
Os camponeses garantiam ser essa a marca dos
que roubam ovos de andorinha no ninho. Para
Lekh, isso ocorrera porque cuspira
descuidadamente no fogo durante a sua
juventude, dizendo que seu pai era um escrivão
de aldeia que queria fazer dele um padre. Mas
Lekh tinha a vocação da floresta. Estudava a vida
dos pássaros e lhes invejava a capacidade de
voar. Um dia fugiu da casa de seu pai e como um
pássaro selvagem começou a errar de aldeia em
aldeia, de floresta em floresta. Aprisionou seus
primeiros pássaros. Observava os hábitos
surpreendentes da codorna e da cotovia,, sabia
imitar o chamado alegre do cuco, o grito rouco
da gralha, o pio plangente da coruja. Conhecia o
ritual amoroso do pisco chilreiro, a fúria ciumenta
da galinha-d'água macho rodeando o ninho
abandonado pela fêmea; e a tristeza da
andorinha cujo ninho foi destruído em
brincadeiras de meninos. Entendia os mistérios
do vôo do. falcão, e admirava a paciência da
cegonha ao pescar rãs. Ao rouxinol, invejava o
canto.
Assim, passou sua juventude em meio às árvores
e às aves. Agora estava perdendo o cabelo, os
dentes apodreciam, a pele do rosto pendia
enrugada, e começava a perder a vista. Tinha-se
estabelecido numa cabana construída por ele
mesmo, da qual ocupava apenas um canto,
reservando o resto para os viveiros. Foi no fundo
de um deles que conseguiu um lugar para mim.
Lekh falava freqüentemente dos pássaros. Eu o
ouvia atento. Aprendi que as cegonhas dão sorte
às casas em que nidificam, e que chegam
sempre em bandos no dia de São José, vindas de
terras longínquas. Ficam nas aldeias até que São
Bartolomeu expulsa as rãs para dentro da lama.
Sem ouvir-lhes o coaxar as cegonhas não podem
caçá-las, e são obrigadas a partir.
Meu patrão era o único da região capaz de
preparar-lhes ninhos com antecedência, e elas
sempre os ocupavam. Mas Lekh cobrava caro, e
só os fazendeiros mais ricos podiam dar-se ao
luxo de encomendá-los.
Era um trabalho que exigia atenção. Em primeiro
lugar Lekh colocava no telhado escolhido um
gradeado que servisse de estrutura, sempre
ligeiramente orientado para o leste, de modo a
evitar os ventos dominantes. Depois disso
atravessava grandes pregos na ossatura do
ninho, para que as cegonhas trançassem neles
os gravetos e a palha que elas próprias
recolhiam. Afinal, antes da chegada dos bandos,
amarrava no meio do gradeado um pedaço de
pano vermelho, para chamar-lhes a atenção.
Dizia-se que ver a primeira cegonha da
primavera em vôo trazia boa sorte, mas vê-la
pousando era presságio de um ano inteiro de
infelicidade. As cegonhas forneciam também
elementos para saber o que acontecia na aldeia,
pois nunca voltavam a um telhado sob o qual
algum crime tivesse sido cometido em sua
ausência, nem que abrigasse pecadores.
Eram aves estranhas. Lekh contou-me como
havia sido bicado por uma fêmea que chocava,
ao tentar corrigir a posição do ninho. Vingou-se
colocando um ovo de pato entre os da cegonha.
Quando os ovos se abriram, as cegonhas
olharam espantadas sua prole. Um dos filhotes
era aleijado, de pernas curtas e bico chato. O
macho acusou a fêmea de adultério e queria
matar o bastardo imediatamente. Mas a mãe
achou que o nenê devia continuar no ninho. As
discussões familiares continuaram durante al-
guns dias. Afinal a mãe decidiu salvar o filhote
por sua própria conta, e o fez rolar pelo teto de
palha, de onde caiu em segurança no pátio.
Poderia parecer que isso encerrava o caso,
restaurando a paz familiar, mas quando chegou a
hora da partida todas as cegonhas
conferenciaram como de costume. No debate
decidiu-se que a fêmea era culpada de adultério
e que não tinha direito a acompanhar o marido.
A sentença foi executada duramente. Antes que
o bando levantasse vôo em formação perfeita, a
esposa infiel foi atacada com asas e bicos. Caiu
morta junto ao telhado de palha no qual tinha
vivido com o marido. Ao lado do corpo os
camponeses encontraram um patinho feio em
lágrimas.
As andorinhas também tinham vidas
interessantes. Pássaros favoritos da Virgem
Maria, são mensageiras da primavera e da
alegria. No outono abandonam os homens, para
pousar, cansadas e sonolentas, nos caniços de
pântanos distantes. Lekh dizia que descansavam
no caniço até que este se quebrasse sob seu
peso, mergulhando-as na água. Acreditava-se
que ficassem ali durante todo o inverno,
protegidas pela capa gelada.
O chamado do cuco podia significar muitas
coisas. Quem o ouvisse pela primeira vez em
cada estação devia sacudir imediatamente as
moedas do bolso e contar todo o seu dinheiro,
garantindo assim pelo menos a mesma quan-
tidade durante todo o ano. Se ainda não
houvesse folhas nas árvores, era aconselhável
abandonar qualquer plano de furto, pois não
daria certo.
Lekh tinha especial carinho por cucos.
Considerava-os seres humanos, nobres,
transformados em pássaros, pedindo inutilmente
a Deus que lhes restituísse a forma humana.
Reconhecia a ligação com seus antepassados na
maneira de criarem os filhos. Os cucos, dizia,
nunca se dedicam à educação das próprias crias,
mas contratam lavandiscas para alimentá-los e
criá-los, enquanto eles continuam voando na
floresta e pedindo ao Senhor que os transforme
novamente em cavalheiros.
Lekh tinha nojo dos morcegos, meio pássaros e
meio ratos. Via-os como emissários dos maus
espíritos em busca de novas vítimas, capazes de
se agarrar aos cabelos de uma pessoa,
infundindo-lhe desejos pecaminosos. Entretanto,
até mesmo os morcegos tinham sua utilidade.
Certa vez Lekh capturou um morcego no sótão,
com uma rede, e o colocou no alto de um
formigueiro ao lado da casa. No dia seguinte
restavam apenas ossos descarnados. Lekh pegou
cuidadosamente o esqueleto, retirando dele a
fúrcula, que passou a usar pendurada no
pescoço. Após pulverizar o resto dos ossos
misturou-os a um copo de vodca e o deu de
beber à mulher que amava. Isso, disse, aumen-
taria seus ímpetos amorosos.
Lekh me ensinou que um homem deve sempre
observar os pássaros atentamente e tirar
conclusões de seu comportamento. Vê-los
voando em grande número e de diferentes
espécies contra o céu vermelho do entardecer
significa que maus espíritos à procura de almas
danadas cavalgam suas asas. Quando corvos e
gralhas se juntam num campo, pode-se ter
certeza de que a reunião é promovida por um
demônio que tenta incutir-lhes ódio pelos outros
pássaros. O aparecer de corvos brancos de
longas asas anuncia um aguaceiro e patos
selvagens em vôo rasante durante a primavera
significam um verão chuvoso e uma colheita
pobre.
De madrugada, quando os pássaros dormiam,
saíamos para surpreendê-los nos ninhos. Lekh
caminhava na frente, saltando silencioso por
cima de galhos e arbustos. Eu o seguia. Mais
tarde, quando a luminosidade do dia alcançava
até mesmo os cantos mais escuros dos campos e
das florestas, recolhíamos os pássaros
aterrorizados que se debatiam nas armadilhas
colocadas por nós no dia anterior. Lekh os
levantava com cuidado, quer falando-lhes cari-
nhosamente, quer ameaçando-os de morte. Em
seguida os colocava numa sacola que trazia ao
ombro, onde lutavam e se debatiam até perder
as forças. A chegada de cada novo prisioneiro
reanimava os outros, e a sacola agitava-se
contra as costas de Lekh. No alto, acima de
nossas cabeças, os parentes e amigos da vítima
voavam em círculos, amaldiçoando-nos com seus
gritos estridentes. Lekh então erguia o olhar por
sob as sobrancelhas grisalhas, insultan-do-os por
sua vez. Se insistiam, depositava a sa ;ola no
chão, pegava o estilingue, tomava uma pedra
pontiaguda e, fazendo pontaria cuidadosamente,
atirava-a no meio do bando. Nunca errava: o
pássaro morto despencava do céu, sem que Lekh
se dignasse sequer a examinar-lhe o corpo.
À medida que a manhã avançava, Lekh
apressava o passo e enxugava o suor da testa
com redobrada freqüência. Aproximava-se a hora
mais importante de seu dia. Uma mulher
apelidada Ludmilla, a Idiota, o esperava nalguma
clareira da floresta conhecida somente dos dois.
Eu trotava orgulhoso atrás dele, carregando a
sacola dos pássaros.
A floresta tornava-se densa e intransponível. Os
troncos das faias, lodosos, manchados como
couro de cobra, erguiam-se contra as nuvens. As
tílias, que no dizer de Lekh tinham assistido ao
início da raça humana, surgiam festonadas pela
pátina cinzenta dos musgos, como gigantescas
cotas de malha. Os carvalhos estendiam seus
galhos como pescoços de aves famintas em
busca de comida, vedando a luz do sol,
mergulhando em sombra pinheiros e choupos.
Lekh parava de vez em quando para observar
rastos deixados nas fendas das cortiças
apodrecidas, estudar os nós das árvores, os
bugalhos cheios de buracos escuros em cujo
fundo via-se cintilar o brancor da madeira nua.
Atravessávamos bosquetes de jovens bétulas em
brotamento, que vergavam seus galhos flexíveis
e delicados ao nosso passar.
Bandos de pássaros debruçados nos galhos
fugiam em revoada ao verem a nossa
aproximação através da diáfana cortina de
folhagem. Seus gritos misturavam-se ao zunir
das abelhas, que enxameavam ao nosso
derredor como nuvem cintilante. Lekh protegia o
rosto com as mãos, abrigando-se em moitas mais
densas, enquanto eu o acompanhava sem deixar
cair nem a sacola dos pássaros nem a cesta das
armadilhas, e sacudindo a mão livre para afastar
o enxame feroz e vingativo.
Ludmilla, a Idiota, era uma mulher estranha, que
eu temia cada vez mais. Bem feita, mais alta do
que a maioria das mulheres, de longos cabelos
aparentemente nunca cortados, seios fartos que
pendiam até quase a cintura, pernas musculosas,
vestia-se no verão apenas com um saco des-
botado que lhe revelava o busto e o tufo ruivo do
sexo. Homens e rapazes gabavam-se do que
faziam com ela quando estava disposta.
Freqüentemente as mulheres da aldeia tentavam
agarrá-la, mas, como dizia Lekh com orgulho,
Ludmilla era mais veloz do que o vento e
ninguém podia alcançá-la contra a sua vontade.
Desaparecia no mato, reaparecendo somente
findo o perigo.
Ninguém sabia onde era sua toca. Às vezes, ao
alvorecer, indo para o campo de foice ao ombro,
os camponeses a viam acenando-lhes ao longe.
Então paravam e acenavam de volta, apagando
com o gesto do braço a vontade de trabalhar.
Traziam-nos novamente à realidade os gritos das
mães e esposas, que se aproximavam carre-
gando as enxadas e que, vez ou outra, soltavam
os cães em cima de Ludmilla. Entretanto, o mais
feroz jamais lançado ao seu alcance preferiu não
voltar, e a partir de então ela sempre aparecia
trazendo-o amarrado por uma corda, pondo em
fuga os outros cães.
Diziam que Ludmilla, a Idiota, vivia maritalmente
com o cachorro. Outros afirmavam que um dia
acabaria dando à luz crianças peludas, de quatro
patas, com orelhas caninas, monstros que
ficariam vagueando na floresta.
Lekh nunca repetiu essas histórias a respeito de
Ludmilla. Contou-me apenas que quando ela era
muito jovem e inocente os pais ordenaram-lhe
que casasse com o filho do salmista da aldeia,
conhecido por sua feiúra e perversidade. A
recusa de Ludmilla enfureceu o noivo de tal
forma que ele a atraiu para longe do povoado,
entregando-a a um bando de camponeses
bêbados para que a violentassem até deixá-la
desacordada. Ludmilla mudou depois disso, ficou
com a mente abalada, e como ninguém se
lembrasse da sua família apelidaram-na Ludmilla,
a Idiota.
Vivia na floresta, atraindo os camponeses para o
mato, e envolvendo-os em tais prazeres que lhes
tornava odiosa a visão de suas esposas gordas e
fedorentas.
Não bastava um homem para satisfazê-la;
tinham que ser vários, um depois do outro. Era,
apesar disso, o grande amor de Lekh. Para ela,
compunha doces canções em que a descrevia
como pássaro de cores estranhas em vôo para
terras longínquas, mais lindo e veloz do que
qualquer outro. Ele a via como pertencente ao
mundo primitivo e pagão de pássaros e florestas,
onde tudo é infinitamente abundante, selvagem,
florescente, cheio de nobreza no seu ciclo
perpétuo de decadência, morte e renascença,
ilícito e adverso ao mundo dos homens.
Todos os dias Lekh e eu caminhávamos para a
clareira onde ele esperava encontrar Ludmilla.
Ao chegar, Lekh piava imitando coruja, e
Ludmilla, a Idiota, surgia por entre a grama, os
cabelos entrelaçados de papoulas e flores azuis.
Lekh corria ansioso para ela. Abraçados,
ondulavam levemente como a grama ao redor,
os corpos unidos, árvores crescendo de uma só
raiz.
Eu os observava da margem da clareira, por trás
das samambaias. Na sacola, os pássaros,
assustados pela súbita calma, gritavam e
esvoaçavam agitados, batendo as asas uns
contra os outros. O homem e a mulher beijavam-
se nos cabelos e nos olhos, roçavam os rostos,
intoxicados pelo cheiro e pelo contato dos
próprios corpos. Aos poucos as mãos tornavam-
se mais ativas. As de Lekh, pesadas e calosas,
desciam pelos braços macios da mulher,
enquanto ela aproximava ainda mais seu rosto
do dele. Juntos, deixavam-se escorrer na grama,
que agora ondeava ao ritmo de seus corpos,
escondendo-se ao olhar curioso dos pássaros que
sobrevoavam a clareira. Mais tarde me dizia Lekh
que enquanto jaziam abraçados Ludmilla lhe
contava sua vida e suas tristezas, revelando
voltas e labirintos de suas selvagens e estranhas
emoções, todos os atalhos e passagens secretas
por onde vagueava sua mente frágil.
Fazia calor. Sem vento, o topo das árvores
permanecia imóvel. Ouvia-se o zumbir de
libélulas e gafanhotos. Uma borboleta varava os
raios do sol, levada por brisa invisível. O pica-pau
cessava sua tarefa, o cuco calava. Eu adormecia.
Acordavam-me as vozes. De pé, o homem e a
mulher abraçados pareciam nascer do solo.
Diziam-se coisas que eu não entendia e se
separavam a contragosto. Ludmilla, a Idiota,
acenava com a mão. Lekh caminhava para mim.
O passo incerto, um sorriso sonhador nos lábios,
virava-se repetidas vezes para olhá-la.
A caminho de casa colocávamos mais
armadilhas. Lekh vinha cansado e taciturno. Só à
noite, quando os pássaros adormeciam nas
gaiolas, recobrava o bom humor. Então, falava
de Ludmilla. Seu corpo tremia, ele ria sozinho
fechando os olhos, seu rosto pálido e sardento
recobrava a cor.
Às vezes passavam-se dias sem que Ludmilla, a
Idiota, aparecesse na floresta. Uma raiva
silenciosa apossava-se de Lekh, que,
murmurando algo de si para si, fixava lon-
gamente os pássaros nas gaiolas. Afinal, após
demorados estudos, escolhia o pássaro mais
forte, amarrava-o ao pulso, e, misturando os
mais variados ingredientes, preparava tintas
fétidas de diferentes cores. Quando estas o
satisfaziam, virava o pássaro e pintava-lhe as
asas, a cabeça e o peito em tons brilhantes, até
torná-lo mais colorido do que um buquê de flores
silvestres.
Íamos então para a parte mais densa da floresta;
Lekh me entregava o pássaro pintado, mandando
que eu o apertasse de leve nas mãos. Cedo seus
gritos atraíam companheiros da mesma espécie,
que se punham a revoar sobre nossas cabeças.
Vendo-os, o prisioneiro debatia-se gritando ainda
mais, e o coraçãozinho, trancado no peito recém-
pintado, batia violentamente.
Quando o número de pássaros era suficiente,
Lekh fazia-me um sinal para soltar o prisioneiro.
Livre e feliz, lançava-se para o alto, pequeno
arco-íris contra o céu cinzento, mergulhando na
revoada escura de seus irmãos. Por um instante
a surpresa tolhia os pássaros. A mancha colorida
voava em meio ao bando, tentando convencê-los
de que lhe pertencia. Mas, confundidos pela
plumagem brilhante, os outros o rodeavam
incrédulos, e quanto mais o pássaro pintado
tentava incorporar-se ao bando mais o
rejeitavam. Logo, um depois do outro,
começavam a atacá-lo, arrancando-lhe as penas
multicores, até fazê-lo perder as forças,
precipitando-o ao chão.
Estes incidentes aconteciam com freqüência, e,
geralmente, quando recolhíamos o pássaro
pintado, já o encontrávamos morto. Lekh
examinava atentamente as feridas. Por entre as
asas coloridas o sangue gotejava, diluindo a
pintura e manchando-lhe as mãos.
Ludmilla, a Idiota, não voltava. Lekh, sombrio e
carrancudo, retirava das gaiolas um pássaro
depois do outro, pintava-os de cores ainda mais
alegres e os soltava no ar, entregues à
ferocidade de seus congêneres. Um dia, tendo
capturado um enorme corvo, pintou-lhe as asas
de vermelho, o peito de verde e a cauda de azul.
E, quando um bando de corvos sobrevoou nossa
cabana, libertou-o. Assim que alcançou o bando
começou uma batalha desesperada. De todos os
lados atacavam o impostor. Penas pretas,
verdes, vermelhas, azuis caíam aos nossos pés.
Tomados de fúria assassina os corvos
esvoejavam contra ele, até vê-lo cair a pique
sobre os campos arados. Ainda vivia, o bico
aberto, as asas buscando em vão seu movi-
mento, os olhos arrancados, o sangue
escorrendo sobre as penas coloridas. Fez uma
última tentativa para alçar-se sobre o chão, mas
já não tinha mais forças.
Lekh emagreceu e quase não saía da cabana,
bebendo a vodca que ele próprio destilava e
cantando canções que falavam de Ludmilla. Às
vezes sentava-se na beira da cama e, debruçado
sobre o chão sujo, fazia desenhos na terra com
um bastão. Aos poucos a forma se delineava,
figura de mulher de longos cabelos e busto farto.
Quando não houve mais pássaros a pintar, Lekh
começou a percorrer os campos com uma
garrafa de vodca despontando debaixo do
paletó. Às vezes, quando eu o acompanhava ao
longe, receoso de que algo pudesse lhe
acontecer nos charcos, ouvia-o cantar. Sua voz
profunda e sentida erguia-se sobre o lodaçal,
espalhando a tristeza como névoa de inverno. A
canção seguia nas asas dos pássaros
migratórios, remota à medida que se aproximava
das profundezas da floresta.
Nas aldeias riam-se de Lekh. Diziam que
Ludmilla, a Idiota, o tinha encantado
incendiando-lhe os rins com chamas que o
levariam à loucura. Lekh negava, amaldiçoando-
os e ameaçando enviar pássaros que lhes
cavariam os olhos. Certa vez avançou para mim
golpeando-me no rosto, dizendo que minha
presença afastava a mulher, temerosa do meu
olhar de cigano. Durante dois dias adoeceu.
Quando se levantou, botou um pão na mochila e
encaminhou-se para a floresta, mandando que
eu continuasse a colocar armadilhas e capturar
pássaros.
Passaram-se semanas. Nas armadilhas que eu
colocava segundo as ordens de Lekh encontrava
quase que somente tênues teias de aranha
trazidas pelo vento. Cegonhas e andorinhas
tinham partido. Aos poucos a floresta ia ficando
deserta, habitada apenas por cobras e lagartos, à
cada dia mais numerosos. Nas gaiolas, os
pássaros empoleirados enfunavam as plumas.
E chegou um dia de tempestade. Nuvens de
formas indefinidas barravam o céu como espesso
edredom, escondendo o sol anêmico. O vento
fustigava os campos, deitando as ervas contra o
chão e arrancando a palha mofada do teto das
cabanas. No bosque, onde antes na vegetação
rasteira os passarinhos ciscavam tranqüilos, o
vento revolvia a penugem cinzenta dos cardos,
arrastando de um lado para outro, talos
apodrecidos.
De repente Ludmilla, a Idiota, apareceu, trazendo
o enorme cão amarrado pela corda. Seu
comportamento era estranho. Perguntou-me por
Lekh, e quando lhe disse que tinha partido há
muitos dias e não sabia onde estava começou a
rir e a chorar ao mesmo tempo, percorrendo a
cabana em largos passos sob o olhar
imperturbável do cão e dos pássaros. Viu o velho
boné de Lekh, apertou-o contra o rosto e desatou
a chorar. Depois jogou o boné no chão,
pisoteando-o. Achou a garrafa de vodca que Lekh
tinha deixado debaixo da cama, bebeu-lhe o
conteúdo, virou-se para mim e, olhando-me
furtivamente, ordenou-me que a acompanhasse
ao pasto. Tentei fugir, mas ela soltou o cão no
meu encalço.
Os pastos começavam logo atrás do cemitério.
Havia vacas pastando por perto, alguns rapazes
se aqueciam junto a uma fogueira. Para evitá-los
atravessamos depressa o cemitério e escalamos
o muro alto. Do outro lado, onde não podiam ver-
nos, Ludmilla, a Idiota, amarrou o cão numa
árvore e ameaçando-me com o cinto mandou-me
tirar as calças, enquanto ela própria se libertava
do saco. Nua, me abraçou.
Apesar da minha resistência, aproximou meu
rosto de si, exigindo que me deitasse entre suas
coxas. Tentei escapar, mas ela me chicoteou
com o cinto. Meus gritos atraíram os pastores.
Percebendo o aproximar-se dos rapazes,
Ludmilla, a Idiota, abriu ainda mais as pernas. Os
pastores aproximaram-se lentamente, fascinados
por seu corpo.
Rodearam-na sem uma palavra. Dois tiraram as
calças imediatamente; os outros permaneciam
indecisos. Ninguém ligava para mim. O cachorro,
atingido por uma pedrada, lambia a ferida.
O pastor mais alto montou a mulher, que,
torcendo-se debaixo dele, gemia a cada
movimento. O homem apalpava-lhe os seios,
mordiscando os bicos, massageava-lhe o ventre.
Quando acabou e levantou-se, outro tomou seu
lugar. Ludmiila, a Idiota, estremecia de prazer,
agarrándose ao homem com pernas e braços. Os
outros pastores, acocorados ao redor, olhavam a
cena rindo e gesticulando.
Por trás do muro do cemitério apareceu
subitamente uma multidão de mulheres armadas
de pás e ancinhos, lideradas pelas mais moças,
que gritavam abanando os braços. Os pastores
levantaram as calças, mas não fugiram; pelo
contrário, seguraram Ludmilla, que lutava para
se libertar. Rosnando, o cachorro esticou a corda,
que, forte, não cedeu. As mulheres se
aproximavam. Sentei-me perto do muro do
cemitério, a uma distância segura. Só então
percebi Lekh correndo através dos pastos. Certa-
mente, de volta à aldeia, tinha sabido o que se
passava.
As mulheres agora estavam muito próximas.
Antes que Ludmilla tivesse tido tempo de se
levantar, o último dos rapazes escalou o muro, e
as mulheres a agarraram. Lekh ainda estava
longe. Exausto, se atrasava e, os passos
trêmulos, vinha aos tropeções.
As mulheres, sentadas sobre os braços e as
pernas de Ludmilla, mantinham-na grudada ao
solo. Batiam-lhe com os ancinhos, rasgavam-lhe
a pele a unhadas, arrancavam-lhe os cabelos,
cuspiam-lhe no rosto. Lekh tentou se aproximar,
mas lhe barraram a passagem. Tentou lutar, e
elas o derrubaram golpeando-o violentamente.
Quando parou de lutar, várias mulheres viraram-
no sobre as costas e montaram em seu peito. Em
seguida mataram o cachorro a golpes de pá. Os
pastores assistiam à cena montados no muro. Eu
me mantinha afastado, pronto a fugir para den-
tro do cemitério, onde encontraria refúgio entre
os túmulos, pois todos temiam os espíritos que
os habitavam.
Ludmilla, a Idiota, jazia em seu sangue.
Equimoses azuis manchavam-lhe o corpo.
Gritava arqueando as costas espasmodicamente,
tentando em vão libertar-se. Uma das mulheres
aproximou-se segurando uma garrafa cheia de
estrume. Acompanhada por gargalhadas roucas
e encorajada pelas outras, ajoelhou-se entre as
pernas de Ludmilla, enfiando-lhe a garrafa inteira
na martirizada fenda do sexo, enquanto a Idiota
urrava como bicho ferido. As outras olhavam
para ela calmamente. De repente, com toda a
força, uma delas chutou o fundo da garrafa, que
surgia por entre as coxas de Ludmilla. Ouviu-se o
som abafado do vidro partido. Agora todas as
mulheres começaram a chutar a Idiota, o sangue
jorrando sob os golpes. Quando a última mulher
terminou, Ludmilla estava morta.
Finda a fúria, as mulheres voltaram para a aldeia
conversando em voz alta. Lekh levantou-se, o
rosto ensangüentado. Cambaleou sobre as
pernas fracas, cuspiu alguns dentes, e jogou-se
soluçando sobre o cadáver. Acariciou-lhe o corpo
mutilado, murmurou alguma coisa por entre os
lábios inchados, e fez o sinal-da-cruz.
Tremendo, eu continuava sentado no muro, sem
ousar me mexer. Aos poucos o céu escureceu. Os
mortos sussurravam ao redor da alma de
Ludmilla, que implorava perdão por todos os
seus pecados. A lua surgiu, iluminando com sua
luz pálida a silhueta do homem ajoelhado e os
cabelos claros da morta deitada no chão.
Eu cochilava. O vento se encarniçava contra os
túmulos, lançando folhas secas contra os braços
das cruzes. As almas gemiam, ouvia-se o uivo
distante dos cães.
Quando acordei, Lekh ainda estava ajoelhado
junto ao corpo de Ludmilla, as costas sacudidas
por soluços. Falei com ele, mas não me
respondeu. Sem coragem para voltar à cabana,
decidi partir. Sobre nossas cabeças, pássaros
cantavam e gritavam em todas as direções.

VI
O carpinteiro e sua mulher estavam convencidos
de que meu cabelo preto atrairia o raio sobre sua
fazenda. É realmente, quando nas noites secas e
quentes de verão o carpinteiro me roçava a
cabeça com um pente de osso, desprendiam-se
dele centelhas azuladas, verdadeiros "piolhos do
Demônio". A eletricidade da região
descarregava-se em tempestades freqüentes e
abruptas, causando incêndios na aldeia, matando
homens e animais. Referiam-se ao raio como a
um dardo chamejante enviado pelo céu, e não
tentavam sequer apagar os incêndios, certos de
que a força humana nada podia contra eles.
Diziam que, ao atingir uma casa, o raio mergulha
terra adentro para, assim escondido, aumentar
sua força e atrair outro raio ao mesmo lugar,
sete anos depois. Qualquer objeto salvo de in-
cêndio provocado pelo raio é igualmente
possesso, podendo atrair novos raios.
Freqüentemente, quando ao crepúsculo as velas
e as lâmpadas de querosene começavam a
brilhar nos casebres, o céu se adensava de
nuvens pesadas que corriam oblíquas por sobre
os telhados de palha. Os camponeses emu-
deciam, espiavam assustados por detrás das
janelas, prestavam ouvidos ao ronco longínquo.
As velhas, acocoradas junto às estufas de louça,
interrompiam suas orações e discutiam os nomes
dos que seriam protegidos pelo Todo-Poderoso,
ou punidos por Satã onipresente, com fogo,
destruição, doença e morte. O bater das portas
desconjuntadas, o gemido das árvores dobradas
pelo vento e o uivar do vento eram então
maldições de pecadores há muito mortos,
atormentados pela incerteza do limbo ou lenta-
mente queimados nas chamas eternas do
inferno.
Nessas horas o carpinteiro jogava sobre os
ombros um casaco pesado e, após persignar-se
várias vezes, passava-me ao redor do tornozelo
uma corrente com cadeado, prendendo a outra
ponta a uma velha canga. Em meio à
tempestade, enquanto os relâmpagos
estouravam luminosos, colocava-me numa
carroça e, chicoteando os bois furiosamente, me
levava para fora da aldeia, até um campo
distante onde me abandonava. Não havia por
perto nem árvores nem casas, e o carpinteiro
sabia que a canga não me permitiria voltar ao
casebre.
Eu ficava só e amedrontado ouvindo a carroça se
afastar. Os relâmpagos acendiam-se, revelando
por instantes os contornos das casas distantes,
que logo desapareciam como se nunca tivessem
existido.
Por algum tempo fazia-se maravilhosa quietude e
a vida das plantas e dos animais parecia como
que paralisada. Contudo, eu podia ouvir o gemer
dos campos desolados e dos troncos de árvores e
o frêmito das pradarias. Ao meu redor os
lobisomens da floresta surdiam lenta e
furtivamente. Demônios translúcidos surgiam a
voar, num rufiar de asas de pântanos
fumegantes, e vampiros desgarrados dos
túmulos colidiam no ar num entrechoque de
ossos. Sentia o seu toque seco na pele, a
galharia trêmula e o vento álgido de suas asas
congeladas. Cheio de pavor, deixei de pensar.
Lancei-me por terra, nas poças largas,
arrastando pelas correntes os arreios
encharcados.
Acima de mim estava Deus em pessoa, livrando-
se no espaço e cronometrando o horroroso
espetáculo com o seu relógio perpétuo. Entre
mim e ele adensava-se a tenebrosa noite.
E agora a obscuridade podia ser tocada,
agarrada como um grumo de sangue coagulado
esfregado contra o meu rosto e o meu corpo.
Absorvia-me nela, sorvia-a, afogava-me nela.
Delineava ela novos caminhos em torno de mim
e transformava a campina plana num abismo
insondável. Erguia montanhas intransponíveis,
nivelava colinas, alastrava-se por rios e vales. No
seu amplexo destruía aldeias, florestas, capelas,
corpos humanos. Muito além dos limites da
Terra, lá se achava o Demônio arremessando
relâmpagos sulfurinos, lançando raios que fen-
diam as nuvens. Cada trovão abalava a terra até
os seus alicerces e fazia as nuvens descerem
mais e mais, até que a chuva diluviai a tudo
transformasse num lamaçal.
Horas depois, pela madrugada, quando a lua,
com uma alvura de ossos, dava lugar ao sol
mortiço, o carpinteiro conduzia a sua carroça
pelos campos e me levava de volta à cabana.
Numa tarde tormentosa o carpinteiro adoeceu. A
esposa andava de um lado para outro
preparando-lhe essências amargas e não podia
levar-me para fora da aldeia. Quando ressoaram
os primeiros trovões escondi-me no estábulo sob
o feno.
De súbito o estábulo foi abalado por violenta tro-
voada. Pouco depois uma parede irrompeu em
chamas, que reverberaram pelas pranchas
embebidas de resina. Atiçado pelo vento, o fogo
crepitava alto, e suas línguas estendiam-se até a
cabana e o estábulo.
Precipitei-me para o pátio em completa
confusão. Nas cabanas circundantes, as pessoas
agitavam-se na escuridão. A aldeia estava em
polvorosa; ouviam-se gritos em todas as
direções. Uma multidão estonteada, empu-
nhando machados e ciscadores, corria em
direção do estábulo em chamas do carpinteiro.
Os cães uivavam, e as mulheres com crianças
nos braços lutavam para manter abaixadas as
saias, que o vento impudentemente erguia até as
suas cabeças. Todo ser vivo saíra
precipitadamente do local da catástrofe. Com as
caudas erguidas, tomadas de pavor, as vacas
mugiam e corriam, fustigadas pelos cabos de
machados e pás, enquanto os bezerros,
procurando suster-se nas pernas finas e
trêmulas, tentavam em vão ficar presos aos
úberes das mães. Pisoteando as cercas
derrubadas na sua passagem, pondo abaixo as
portas dos estábulos, os bois, desorientados,
avançavam de cabeça baixa. As galinhas,
enlouquecidas pelo incêndio, batiam
desordenadamente as asas.
Persuadido de que a minha amaldiçoada
cabeleira atraíra o raio e de que aquela multidão
ululante não hesitaria em dar cabo de mim,
empreendi a fuga, embrenhando-me com grande
esforço na floresta, lutando contra a tempestade,
tropeçando nas pedras, escorregando nas valas e
poças de água. Quando alcancei a estrada de
ferro que cortava a floresta, a tempestade
amainara e grossas gotas de chuva
tamborilavam, dentro da noite, nas folhas das
árvores. Foi num bosque cerrado das vizinhanças
que encontrei abrigo, e ali, a ouvir o sussurro das
vozes da floresta, aguardei o despontar do dia.
Um trem passaria por ali pela madrugada. A
estrada servia principalmente para o transporte
de madeira entre duas estações, situadas a cerca
de vinte quilômetros uma da outra. Uma
pequena e velha locomotiva arrastava os vagões
carregados de toros
Quando a composição se aproximou, corri por
algum tempo ao lado do último vagão, saltei no
degrau inferior e me deixei levar ao recesso da
floresta acolhedora. Ali chegando, notei um
espesso tapete de relva, onde saltei, sem que me
percebessem.
Aquela parte da floresta era a menos espessa.
Quando caminhava por ela, descobri uma
estrada pavimentada invadida por ervas
daninhas e, evidentemente, há muito
abandonada. Na sua extremidade erguia-se um
fortim de cimento armado.
Pairava em derredor um profundo silêncio.
Ocultei-me detrás de uma árvore e atirei uma
pedra, que ricocheteou na porta fechada. O eco
logo se fez ouvir, e tudo caiu em silêncio
novamente. Caminhei em torno do fortim,
pisando caixotes quebrados de munições,
pedaços de metal e latas de conserva vazias.
Galguei a parte superior da fortificação e em
seguida o seu próprio topo, onde encontrei latas
amassadas e, um pouco mais adiante, uma larga
abertura; debruçando-me sobre ela, senti um
mau cheiro de matéria decomposta e de
umidade, ouvindo ao mesmo tempo guinchos
abafados. Apanhei um velho capacete e lancei-o
pela abertura. Os guinchos multiplicaram-se. Ra-
pidamente comecei a arremessar torrões de
terra no orifício, além de pequenas rodelas de
metal das caixas de munição e pedaços de
cimento armado. Os grunhidos tornaram-se mais
audíveis. Sem sombra de dúvida o local
fervilhava de bichos.
Com um pedaço de aço polido, fiz refletir um raio
de sol no interior do fortim. Alguns metros mais
abaixo, vi agitar-se um oceano de grandes ratos
negros, animado de um movimento de vagas
desordenadas e reluzente de milhares de
pequenos olhos. A luz revelava dorsos molhados
e caudas hirsutas. Vez por outra, como a
arrebentação de uma vaga, dezenas de
compridos ratos esqueléticos assaltavam com
saltos espasmódicos as paredes lisas do fortim,
para mais uma vez caírem sobre os seus compa-
nheiros.
Fiquei a contemplar aquela massa ondeante e vi
como os ratos se assassinavam e se entre-
devoravam, lançando-se uns sobre os outros
furiosamente, arrancando-se pedaços de carne e
fragmentos de pele. Os esguichos de sangue
incitavam maior número de ratos à luta. Cada
rato tentava escapar àquela massa viva,
conquistar um lugar no topo da vaga, escalar a
parede — e mais uma vez caía pesadamente ao
solo.
Rapidamente cobri a abertura com uma chapa de
ferro e reencetei minha viagem através da
floresta. Pelo caminho alimentei-me de drupas.
Esperava alcançar alguma vila antes que a noite
sobreviesse.
À tardinha, quando o sol se punha, vi os
primeiros prédios da fazenda. Quando me
aproximei, alguns cães saltaram de trás de uma
cerca e avançaram na minha direção. Agachei-
me diante da cerca, agitei as mãos vigo-
rosamente, pulei como rã, uivei e atirei pedras.
Os cães estancaram, surpresos, não sabendo
mais o que eu era, nem o que deveriam fazer.
Não reconheciam mais em mim um ser humano.
Enquanto ficaram a espreitar-me, confusos, com
os focinhos abaixados e de banda, pulei por cima
da cerca.
Meus gritos e seus latidos haviam atraído a
atenção de um lavrador. Quando o vi,
compreendi de chofre que por uma ironia do
destino retornara à mesma aldeia de onde fugira
na noite anterior. O rosto do camponês era-me
por demais conhecido — tinha-o visto por mais
de uma vez na cabana do carpinteiro.
Reconheceu-me imediatamente. Gritou algo para
um dos peões da fazenda, que se dirigiu
apressadamente para a cabana do carpinteiro,
enquanto outro se mantinha de guarda,
contendo os cães em suas correias. Logo chegou
o carpinteiro, acompanhado da mulher.
O primeiro golpe me fez rolar aos seus pés. Pôs-
me de pé e, segurando-me para que eu não
caísse, esbofeteou-me repetidas vezes. Depois,
agarrando-me pelo pescoço como a um coelho,
arrastou-me até a sua herdade, rumo às ruínas
ainda fumegantes do estábulo. Uma vez ali,
jogou-me por terra num monte de esterco.
Desferiu-me um golpe na cabeça e desmaiei.
Quando recobrei os sentidos, o carpinteiro
encontrava-se por perto, preparando um saco de
grande tamanho. Lembrei-me de que ele
costumava afogar gatos doentes em sacos
daquela espécie. Atirei-me aos seus pés, mas o
camponês afastou-me com um pontapé e
calmamente prosseguiu na sua tarefa.
De súbito recordei-me de que o carpinteiro falara
a sua mulher sobre guerrilheiros que ocultavam
em velhos fortins seus troféus de guerra e seus
víveres. Arrastei-me novamente em sua direção,
desta vez jurando que, se ele não me afogasse,
mostrar-lhe-ia um ninho de metralhadoras
repleto de velhas botinas, uniformes e cinturões,
que eu descobrira durante a minha fuga.
O carpinteiro ficou intrigado, embora fingisse
descrença. Acocorou-se ao meu lado, apertando-
me com força. Repeti minha oferta, tentando
convencê-lo ao máximo sobre o grande valor do
tesouro.
No dia seguinte, pela madrugada, sem nada
dizer à mulher e aos vizinhos, atrelou um boi ao
carro, muniu-se de uma machadinha e amarrou-
me as mãos com um barbante. Prendendo este
ao seu punho, fez-me subir com ele na carroça.
A caminho, procurei libertar-me, mas o barbante
era forte. Quando chegamos ao fortim, o
carpinteiro parou a carroça e caminhamos até o
local. Levei-o ao terraço, e por algum tempo agi
como se desconhecesse onde ficava a abertura.
Finalmente chegamos até lá. O carpinteiro
empurrou avidamente para um lado o tampo de
ferro. Um odor insuportável atingiu-nos as
narinas, e os ratos começaram a guinchar,
ofuscados pela luz. Ele se inclinou sobre a borda
do orifício, porém a obscuridade não deixava que
visse coisa alguma.
Lentamente caminhei para o lado oposto da
abertura, que agora me separava do carpinteiro,
retesando o barbante ao qual me achava ligado.
Sabia que, se não conseguisse escapar em
poucos segundos, o camponês daria cabo de
mim e me lançaria naquela armadilha.
Tomado de pavor a esse pensamento, puxei com
tal violência o barbante que ele me cortou o
punho até o osso. Com o choque, o carpinteiro
precipitou-se para a frente, soltou um grito e,
agitando as mãos, caiu pela abertura do fortim.
Firmei os pés contra o rebordo desigual de
cimento sobre o qual estivera o tampo. O cordel
retesou-se ainda mais, raspou a parte acerada da
abertura e partiu-se de repente. O homem emitiu
um grito lancinante, inarticulado, e estatelou-se
lá embaixo num baque surdo. Um leve tremor
percorreu as paredes da cidadela. Ergui-me até a
abertura e, como na véspera, iluminei o negro
fosso com um pequeno pedaço de metal.
A cabeça e os braços do carpinteiro estavam
ocultos sob a massa ululante dos ratos. Vaga
após vaga, subiam-lhe pelas pernas e pelo
ventre, até encobri-lo completamente, num
horrível turbilhão que se tingia de sangue
castanho-vermelho. Os carniceiros lutavam por
acesso ao festim, agitando freneticamente as
caudas e deixando à mostra os dentes
rebrilhantes. Os olhos luziam como as contas
negras de um rosário.
Fiquei a observar aquele espetáculo como se
estivesse hipnotizado, incapaz de afastar-me da
borda do orifício, sem bastante força de vontade
para cobri-lo com o tampo de ferro. De súbito, as
vagas ondulantes de ratos fenderam-se, e
lentamente, sem se dar pressa, com o gesto de
um nadador, uma mão descarnada, com os
dedos distendidos, ergueu-se, acompanhada pelo
braço inteiro do homem. Por um momento pairou
imóvel acima dos ratos, que se agitavam de um
lado para o outro. Fez-se breve trégua e logo a
ressaca ululante descobriu o cadáver já
esbranquiçado do carpinteiro, recoberto ainda de
farrapos de carne vermelha e de roupa cinza.
Entre as costelas, sob as axilas, e no local onde
estivera o ventre, roedores descarnados lutavam
ferozmente pelo que restava de músculos e
intestinos. Loucos de avidez, arrancavam uns dos
outros pedaços de pano, de pele e nacos
informes do tronco.
Mergulhavam no interior do corpo para, roendo-
o, saírem pelo outro lado. O cadáver afundava
sob os ataques renovados. Depois desapareceu
novamente na cava de uma nova vaga e quando
ressurgiu não era mais que um esqueleto.
Nervosamente apanhei a machadinha e fugi.
Quando alcancei a carroça, ofegava; o boi
pastava tranqüilamente. Pulei para o banco e
puxei as rédeas, mas o animal não queria andar
sem o seu dono. Olhando para trás, certo de que
a qualquer momento o exercito de ratos iria
lançar-se em minha perseguição, chicoteei o boi.
Este, incrédulo, olhou em torno, e logo os golpes
do látego acabaram por convencê-lo de que não
esperaríamos pelo carpinteiro.
A carroça sacolejava violentamente nos sulcos da
estrada há muito não percorrida; as rodas
arrancavam os arbustos e esmagavam as ervas
daninhas. Eu não sabia para onde ir e procurei
afastar-me o máximo possível do fortim e da
aldeia. Lancei o animal numa louca disparada por
bosques e clareiras, evitando as estradas
freqüentadas. Ao cair da noite, escondi o veículo
detrás de uma touceira de arbustos e me instalei
nele para dormir.
Viajei assim durante dois dias, e em certa
ocasião quase fui parar num posto avançado
situado numa serraria. O boi, esgotado,
emagrecia a olhos vistos. Mas eu o impelia
sempre e sempre para a frente, até que me
certifiquei de que estava em segurança.
Cheguei finalmente a uma pequena aldeia, e
parei na primeira cabana. Ao ver-me, um dos
camponeses persig-nou-se. Ofereci-lhe a carroça
e o boi em troca de abrigo e de alimento. Ele
coçou a cabeça, consultou a mulher e os vizinhos
e, por fim, após examinar minuciosamente os
dentes do animal e os meus, aceitou.
VII
A aldeia ficava longe da estrada de ferro e do rio.
Três vezes ao ano um destacamento de soldados
alemães dirigia-se para ali a fim de receber os
gêneros alimentícios e os materiais que os
camponeses eram obrigados a fornecer ao
Exército.
Encontrava-me alojado na casa de um ferreiro
que era também o chefe da aldeia. Todos o
respeitavam e estimavam, e, graças a ele,
tratavam-me melhor. De quando em quando,
contudo, quando haviam bebido, os camponeses
afirmavam que eu só podia trazer-lhes infortúnio
e que se os alemães encontrassem ali um cigano
puniriam a vila inteira. Mas ninguém ousava
dizer essas coisas diretamente ao ferreiro, e de
modo geral eu não era importunado. Na verdade,
o ferreiro gostava de esbofetear-me vez por
outra quando estava ligeiramente embriagado e
eu o atrapalhava, porém não havia
conseqüências maiores. Os seus dois auxiliares
preferiam brigar entre si, e o filho do ferreiro,
que era conhecido na aldeia por suas façanhas
amorosas, quase nunca se encontrava na
fazenda.
Todas as manhãs, a mulher do ferreiro dava-me
um copo de borsht quente e um pedaço de pão
dormido, que eu embebia no líquido. Depois,
atiçava o fogo do meu cometa e levava o gado
para o pasto antes dos outros vaqueiros.
À noite, a dona da casa fazia as orações,
enquanto o marido roncava perto do fogão. Os
dois empregados cuidavam dos animais, e o filho
perambulava pela aldeia. A mulher do ferreiro
costumava dar-me o paletó do marido para
libertá-lo dos piolhos. Sentava-me no ponto mais
iluminado da sala, virando e revirando o casaco
em vários lugares nas costuras, à cata dos
insetos lerdos e empanturrados de sangue.
Apanhava-os, punha-os na mesa e esmagava-os
com a unha. Quando os piolhos eram excep-
cionalmente numerosos, a mulher do ferreiro
participava do meu trabalho fazendo rolar uma
garrafa sobre a mesa. Eles arrebentavam com
um pequeno estalido, e seus corpos achatados
jaziam em minúsculas poças de sangue negro.
Os que caíam no chão fugiam apressadamente
em todas as direções. Era quase impossível
esmagá-los com o pé.
A mulher do ferreiro não me deixava exterminar
todos os piolhos e percevejos. Sempre que
encontrávamos um piolho especialmente grande
e forte, ela cuidadosamente o apanhava e
lançava num recipiente reservado para esse fim.
Via de regra, quando o número desses bichinhos
alcançava uma dúzia, a mulher retirava-os e
transformava-os numa massa. Para essa
operação acrescentava ela um pouco de urina
humana e de cavalo, uma grande quantidade de
esterco, uma aranha morta e uma pitada de
excremento de gato. Esse preparado era
considerado o melhor remédio para dor de
barriga. Quando o ferreiro sofria desse seu mal
periódico, tinha de ingerir várias pílulas dessa
mistura. Isso fazia-o vomitar e, conforme lhe
assegurava a esposa, provocava a cura completa
da moléstia, que imediatamente fugia do seu
corpo. Exausto de vomitar e de tremer como um
caniço, o ferreiro deitava-se na esteira ao pé do
forno e estertorava como um fole. Depois tomava
água morna com mel, o que o acalmava. Mas,
quando a dor e a febre não cediam, a mulher
preparava-lhe mais remédios. Pulverizava ossos
de cavalos até reduzi-los a uma farinha bem fina,
adicionava-lhe uma colher de piolhos e de
formigas, que brigavam entre si, misturava tudo
com ovos de galinha e acrescentava um pouco
de querosene. O paciente tinha que engolir tudo
aquilo de um só trago e era então recompensado
com um copo de vodca e um pedaço de salsicha.
De quando em quando o ferreiro era visitado por
estranhos convivas a cavalo, que portavam fuzis
e revólveres. Procediam a uma inspeção da casa
e em seguida sentavam-se à mesa com o
ferreiro. Na cozinha, eu e o ferreiro
preparávamos vodca de fabricação caseira, salsi-
cha bem condimentada, queijo, ovos duros e
costeletas de porco assadas.
Eram guerrilheiros. Iam à aldeia com grande
freqüência, sem nunca avisarem. O ferreiro
explicava à mulher que os guerrilheiros estavam
divididos em duas facções — os "brancos", que
desejavam combater tanto contra os alemães
como contra os russos, e os "vermelhos", que
desejavam ajudar o Exército Vermelho.
Diversos rumores circulavam pela aldeia. Os
"brancos" desejavam a manutenção da
propriedade privada, deixando aos latifundiários
os seus privilégios. Os "vermelhos", apoiados
pelos soviéticos, lutavam pela reforma agrária.
Cada facção exigia crescente ajuda da aldeia.
Os guerrilheiros "brancos", cooperando com os
latifundiários, vingavam-se de todos os que eram
suspeitos de prestar auxílio aos "vermelhos".
Estes favoreciam as aldeias pobres e infligiam
penalidades às que dessem qualquer assistência
aos "brancos", perseguindo especialmente as
famílias dos camponeses abastados.
A aldeia era também revistada por soldados
alemães, que interrogavam os camponeses sobre
as visitas dos guerrilheiros e fuzilavam um ou
dois aldeões para servir de exemplo. Nessas
ocasiões o ferreiro ocultava-me no depósito de
batatas, ao mesmo tempo que ele próprio
procurava abrandar os comandantes alemães,
prometendo-lhes entregas extras e pontuais de
gêneros alimentícios e de cereais.
Às vezes as facções dos guerrilheiros atacavam e
exterminavam-se umas às outras quando iam à
aldeia. Esta se transformava então num campo
de batalha: metralhadoras matraqueavam,
granadas explodiam, cabanas se incendiavam,
bois e cavalos mugiam e relinchavam e crianças
seminuas choravam. Os camponeses escondiam-
se em porões abraçados às mulheres, que
oravam. Velhas meio cegas, surdas e
desdentadas balbuciavam orações
ininteligivelmente e se persignavam com mãos
artríticas, caminhando diretamente ao encontro
do fogo das metralhadoras, amaldiçoando os
combatentes e clamando aos céus por vingança.
Após o combate, a aldeia retomava lentamente a
sua vida normal. Mas havia refregas entre os
camponeses e meninos pelas armas, uniformes e
botinas abandonados pelos guerrilheiros, e
também discussões em torno de quem deveria
cavar as sepulturas e enterrar os mortos.
Transcorriam dias em discussões intermináveis à
medida que os cadáveres se decompunham,
farejados pelos cães durante os dias e roídos
pelos ratos à noite.
Fui despertado uma bela noite pela mulher do
ferreiro, que me pedia encarecidamente que
fugisse. Mal tive tempo de saltar da cama antes
que vozes masculinas e o estrépito de armas de
indivíduos que cercavam a cabana se fizessem
ouvir. Ocultei-me furtivamente no sótão, com um
saco atirado sobre o corpo, agarrado a uma
fenda nas pranchas, através da qual podia ver
boa parte do pátio.
Ordenaram ao ferreiro que saísse. Dois
guerrilheiros armados arrastaram-no seminu
para o meio do pátio. Tremia de frio e segurava
como podia as calças, que teimavam em cair-lhe
pelas pernas abaixo. Envergando um grande
sobretudo, com as dragonas recobertas de
estrelas, um oficial aproximou-se dele e
interrogou-o. Consegui ouvir o fragmento de uma
frase: — ...você ajudou os vermelhos, os piores
inimigos da pátria.
O ferreiro levou as mãos ao alto, jurando em
nome do Filho e da Santíssima Trindade. O
primeiro golpe fê-lo rolar por terra. Continuou a
negar, pondo-se lentamente de pé. Um dos
homens arrancou uma estaca da cerca, girou-a
no ar e atingiu o ferreiro no rosto. O homem caiu,
e os guerrilheiros começaram a dar-lhe pontapés
por todo o corpo com as pesadas botinas. O
ferreiro gemia, contorcendo-se de dor, mas os
homens não paravam. Inclinaram-se sobre ele
torcendo-lhe as orelhas, pisando-lhe os órgãos
genitais, arrebentando-lhe os dedos com os
tacões das suas botas.
Quando cessou de gemer e o corpo esmoreceu,
os guerrilheiros agarraram os dois ajudantes, a
mulher do ferreiro e o filho. Abriram de par em
par as portas do estábulo e lançaram a mulher e
os homens atravessados no varal de uma carroça
de tal forma que, com o varal sob a barriga,
pendiam como sacos de cereais mal arrumados.
Arrancaram em seguida as vestes das suas
vítimas e amarraram-lhes as mãos aos pés.
Arregaçaram as mangas e, com fios de aço
tirados dos postes telegráficos, começaram a
fustigar os corpos que se retorciam.
O ruído das vergastadas ressoava alto das
nádegas retesadas, enquanto as vítimas se
contorciam, encolhendo-se e se intumescendo, e
uivavam como uma matilha de cães torturados.
Eu tremia e suava de pavor.
Os golpes se sucediam, um após outro. Somente
a mulher do ferreiro continuava a gemer,
enquanto os guerrilheiros soltavam piadas sobre
suas coxas finas e arqueadas. Como a mulher
não parava de gemer, puseram-na de costas,
com o rosto voltado para o céu, os seios brancos
pendendo de ambos os lados do busto. Os
homens chicoteavam-na ferozmente, lanhando-
lhe as nádegas e o ventre, de onde escorriam
filetes de sangue. Os corpos no varal pendiam
inertes. Os torturadores vestiram as túnicas e en-
traram na cabana, destruindo os móveis e tudo o
que lhes caía nas mãos.
Penetraram no sótão e me encontraram.
Ergueram-me no ar pelo pescoço, e fazendo-me
dar uma volta no ar esmurraram-me e puxaram-
me os cabelos. Compreenderam imediatamente
que eu era um enjeitado e ainda por cima cigano.
Depois surgiu uma discussão para saberem o que
deveriam fazer comigo. Um dos oficiais propôs
que eu fosse entregue aos alemães que
guarneciam um posto situado a uns quinze
quilômetros de distância. Segundo ele, isso
apaziguaria o comandante, furioso com o atraso
de víveres. Outro acrescentou que essa medida
evitaria que os alemães incendiassem a aldeia, o
que não deixariam de fazer se viessem a saber
que os camponeses haviam ocultado um dos
malditos ciganos.
Amarraram-me então os pés e as mãos e me
levaram. Os guerrilheiros convocaram dois
aldeões, a quem cuidadosamente disseram algo
enquanto apontavam em minha direção. Os
camponeses ouviam sem dizer palavra,
assentindo obsequiosamente com um sinal de
cabeça. Amarraram-me então a uma das peças
da carroça. Os dois camponeses ocuparam os
seus lugares e puseram-se a caminho.
Esgotado pelos raios de sol e pela minha posição
desconfortável, caí num estado de sonolência.
Sonhei que era um esquilo, agachado no oco de
uma árvore, a contemplar com ironia o mundo
aos meus pés. Subitamente transformei-me num
gafanhoto de pernas longas e elásticas, com as
quais cobria grandes extensões de terra. De vez
em quando, como através de um nevoeiro, ouvia
as vozes dos condutores, o relinchar do cavalo e
o chiar das rodas.
Chegamos à estação ferroviária ao meio-dia e
imediatamente fomos cercados por soldados
alemães envergando uniformes desbotados e
botinas gastas pelo uso. Os camponeses fizeram
uma mesura e entregaram-lhes uma nota escrita
pelos guerrilheiros. Enquanto um guarda saía
para chamar um oficial, vários soldados
aproximaram-se do carro e ficaram a olhar-me
fixamente, trocando impressões. Um deles, já um
tanto idoso, visivelmente fatigado pelo efeito do
calor, usava óculos embaçados por gotículas de
suor. Encostou-se à carroça e fitou-me de perto,
com uns olhos impassíveis e de um azul aquoso.
Sorri para ele, mas continuou na sua postura.
Olhei diretamente dentro dos seus olhos e fiquei
a imaginar se isso não lhe traria mau-olhado.
Pensei que ele poderia adoecer mas, apiedando-
me dele, desviei o olhar.
Um jovem oficial saiu do prédio da estação e
aproximou-se da carroça. Os soldados
rapidamente ajeitaram os uniformes e se
perfilaram. Os camponeses, não sabendo bem o
que fazer, tentaram imitar os soldados e também
servilmente ficaram em posição de sentido.
O oficial deu uma breve ordem a um "dos
soldados, que avançou da fileira, chegou-se para
perto de mim, rudemente pegou em meus longos
cabelos com a mão suada, fitou-me bem dentro
dos olhos enquanto me levantava as pálpebras e
examinou as cicatrizes nos meus joelhos e per-
nas. A seguir deu conta das suas observações ao
oficial. Este voltou-se para o velho soldado de
óculos, transmitiu-lhe uma ordem e partiu.
Os soldados dispersaram-se. No prédio da
estação ouvia-se alegre melodia. Na alta torre de
observação, eriçada de metralhadoras, os
guardas ajustavam os capacetes.
O soldado de óculos aproximou-se de mim, sem
dizer palavra, desatou a corda que me prendera
à carroça, enrolou uma das pontas no pulso e
com um movimento de mão ordenou que o
acompanhasse. Voltei-me para olhar os dois
camponeses; já se encontravam na carroça,
chicoteando o cavalo.
Passamos pela estação. No caminho o soldado
parou num armazém, onde lhe entregaram uma
pequena lata de gasolina. Em seguida
caminhamos ao longo da linha férrea em direção
à floresta que se adensava.
Sabia que o soldado recebera ordens para matar-
me, lançar gasolina no meu corpo e queimá-lo.
Vira isso acontecer muitas vezes. Lembrei-me de
como os guerrilheiros haviam fuzilado um
camponês acusado de delação. Naquele caso a
vítima fora obrigada a cavar um fosso no qual o
seu cadáver pouco depois foi lançado. Recordei-
me dos alemães atirando num guerrilheiro ferido
que fugia para a floresta, e das chamas altas que
depois se levantaram do seu corpo.
Eu temia a dor. O fuzilamento com certeza seria
muito doloroso e a queima com gasolina ainda
pior. Mas eu nada podia fazer. O soldado estava
armado de um fuzil e a corda atada à minha
perna estava enrolada no seu pulso.
Estava descalço e os dormentes, aquecidos pelo
sol, queimavam-me os pés. Pulava de um lado
para outro nos fragmentos agudos do cascalho
que servia de lastro entre os dormentes. Várias
vezes tentei caminhar sobre o trilho, mas a corda
atada à minha perna de certa forma impedia que
eu mantivesse o equilíbrio. Era difícil
acompanhar com minhas curtas passadas o
andar cadenciado e os longos passos do soldado.
Olhava-me e esboçou um sorriso na minha
tentativa de realizar acrobacias na via férrea. O
sorriso foi por demais fugaz para que significasse
algo; ele ia matar-me.
Já havíamos deixado a área da estação e
estávamos agora pelo último ponto de manobra
dos trilhos. Anoitecia. Aproximamo-nos mais da
floresta e o sol morria por detrás das copas das
árvores. O soldado estacou, pôs a lata de
gasolina no chão e passou o fuzil para o braço
esquerdo. Sentou-se à margem da ferrovia,
estirou as pernas. Calmamente tirou os óculos,
enxugou o suor que porejava nas espessas
sobrancelhas com a manga e retirou a pequena
pá que pendia do cinturão. Puxou um cigarro do
bolso superior da túnica e acendeu-o, apagando
cuidadosamente o fósforo.
Silenciosamente observava a minha tentativa de
afrouxar o nó da corda, que esfolava a pele da
perna. Depois tirou um pequeno canivete do
bolso da calça, abriu-o, e movendo-se mais para
perto segurou-me a perna com uma das mãos,
enquanto com a outra cuidadosamente cortou a
corda. Enrolou-a e jogou-a no terrapleno com um
gesto largo.
Sorri, numa tentativa de externar a minha
gratidão, mas ele não retribuiu o meu sorriso. E
ficamos ali, ele tirando baforadas do seu cigarro,
e eu a contemplar as pequenas nuvens de fumo
azulado que voluteavam em torno dele.
Pensava que, das inúmeras maneiras de morrer,
somente duas me haviam impressionado até
então. Recordava-me muito bem desse dia, nos
primeiros tempos da guerra, em que uma bomba
caíra no fim da rua, bem atrás da casa dos meus
pais. Todas as nossas vidraças se haviam
partido. Todos nós ouvimos as paredes se
desmoronarem, a terra tremer e vizinhos
desconhecidos morrerem soltando gritos. Vira
portas, tetos, paredes ainda adornadas de qua-
dros ruírem confusamente no vácuo, como uma
avalancha rolando pela rua; vira voar pelos ares
um majestoso piano de cauda, cuja tampa se
abria e se fechava, pesadas e gordas poltronas,
depois a bateria de cozinha, os tachos de cobre,
os urinóis de metal brilhante. Páginas de livros
desfeitos rodopiavam sobre a caliça, semelhando
o vôo de pássaros feridos. Banheiras, que
pareciam ter sido arrancadas deliberadamente
dos seus canos, encontravam-se presas, como
por encanto, entre os balaústres da escada e as
goteiras.
Quando a poeira assentou, a casa em ruínas
exibia timidamente as suas entranhas.
Cadáveres desmembrados jaziam sob o
emaranhado dos pavimentos, como velhos
trapos tapando uma brecha. Mal começavam a
tingir-se de vermelho. Pedaços de papel ou de
estuque haviam-se colado nesses farrapos
viscosos, como moscas esfaimadas, e na
agitação que reinava sobre as ruínas somente
esses cadáveres pareciam repousar em paz.
Por toda parte ouviam-se os gritos e os gemidos
dos feridos, imprensados sob vigas tombadas,
empalados em vergalhões de ferro ou canos,
semi-estraçalhados ou esmagados sob blocos de
parede. Uma velha surgiu de um buraco.
Agarrava-se desesperadamente a uma fieira de
tijolos, e quando abriu a boca desdentada para
gritar nenhum som saiu-lhe da garganta. Estava
seminua, e os seios flácidos pendiam-lhe sobre o
peito esquelético. Conseguiu erguer-se até um
monte de pedras que orlava a rua e ficou um
momento bem ereta sobre aquela elevação. Mas
logo caiu de costas e desapareceu sob os
escombros.
Também se podia morrer, de maneira menos
espetacular, às mãos de um homem. Não há
muito, quando eu morava na casa de Lekh, dois
camponeses haviam lutado em público. Haviam-
se lançado um sobre o outro no meio da cabana,
agarrados pela garganta, e rolaram no chão.
Mordiam-se como cães enfurecidos, arrancando-
se pedaços de roupa e de carne. As mãos
calosas, os joelhos, os ombros, os pés pareciam
animados de uma vida autônoma. Estremeciam e
se contorciam sob os golpes, numa dança
selvagem. Os punhos nus batiam como martelos
nos crânios e os ossos estralejavam.
Os camponeses dispostos em círculo em torno
dos dois antagonistas ouviram então uma
pancada mais forte que as outras, seguida de um
estertor. Um dos contendores estava em posição
de superioridade, e o outro arfava ruidosamente.
Parecia esgotado, mas achou ainda forças para
cuspir no rosto do seu vencedor. Este não lhe
perdoou. Sob a afronta, inchou de súbito como
um sapo e desferiu-lhe com a rapidez de um raio
um terrível murro na cabeça. Esta não chegou
sequer a se mexer, mas pareceu estourar numa
poça de sangue. O homem estava morto.
Quanto a mim, sentia-me como aquele cão
sarnento encontrado pelos guerrilheiros.
Começaram por acariciar-lhe a cabeça e coçar-
lhe as orelhas. O animal, felicíssimo, gania de
felicidade e de gratidão. Depois atiraram um
osso numa campina cheia de flores e de
borboletas. O cão correu agitando a sua pobre
cauda. No momento em que abocanhava todo
orgulhoso o seu osso, os guerrilheiros abateram-
no com um tiro de fuzil.
O velho soldado afivelou o cinturão. Tentei
calcular a distância que nos separava da floresta
e o tempo que ele levaria para agarrar o fuzil e
atirar, se eu fugisse de repente. A floresta estava
muito longe, e eu cairia a meio caminho sobre o
talude de areia. Na melhor das hipóteses,
alcançaria a orla de capim alto, onde não podia
nem ocultar-me nem correr.
Ele se ergueu e se espreguiçou com um ronco.
Pairava uma quietude por toda a parte. Uma leve
brisa dissipava para longe o cheiro da gasolina, e
nos trazia um odor fresco de manjerona e de
resina de pinho. Pensei que ele ia dar-me um tiro
na nuca. Habitualmente prefere-se matar as
pessoas sem ver-lhe os olhos. Voltou-se em
minha direção e com um gesto de mão mostrou-
me a floresta com um ar de quem diz: "Safe-se!
Salve-se!" A morte não estava longe. Fiz uma
expressão de que não havia compreendido e me
aproximei dele. Recuou vivamente, como se
receasse o meu contato, e indicou-me
novamente a floresta, ocultando os olhos com as
mãos.
Para mim, aquilo não era senão uma forma hábil
de enganar-me. Continuava preso ao lugar onde
me encontrava como se tivesse raízes. Ele se
impacientava, e me gritou algumas palavras na
sua língua gutural. Eu lhe sorria afavelmente,
porém isso só o fazia irritar-se ainda mais. Mais
uma vez, estendeu os braços em direção à
floresta. Mas eu continuava ainda paralisado.
Então deitou-se entre os trilhos, sobre o fuzil,
cujo dispositivo de segurança ele prendera.
Calculei novamente a distância. Pareceu-me
dessa vez que eu tinha alguma chance. Comecei
a afastar-me com pequenas passadas e, pela
primeira vez, o velho soldado me sorriu. Quando
alcancei o alto do talude, voltei-me em sua
direção: estava imóvel, deitado sobre os
dormentes, como que adormecido pelo calor do
verão.
Fiz-lhe um rápido sinal, depois saltei como uma
lebre por baixo do talude, corri sem parar em
direção da floresta e mergulhei na sombra fresca
das árvores. Arranhei-me nas samambaias, mas
continuei a correr até cair, sem fôlego, numa
touceira de musgos.
Logo pude ouvir, no meio dos ruídos da floresta,
dois tiros de fuzil na via férrea: o soldado
simulava minha execução. Os pássaros,
despertados em sobressalto, refugiaram-se na
folhagem. Bem na minha frente, um pequeno
lagarto surgia de uma raiz e me contemplava
com olhos espantados. Poderia tê-lo esmagado
com a mão, porém estava cansado demais.

VIII
Depois de um outono extemporâneo, que
destruiu certa parte das safras, instalou-se um
inverno rigoroso. A princípio, nevou por dias a fio.
Conhecedor do tempo de sua região o povo
apressou-se em armazenar víveres para si e para
o gado, tapou com palha toda e qualquer
abertura em suas casas ou celeiros, e tratou de
firmar as chaminés e os tetos fendidos contra os
ventos violentos. Chegou então a geada,
solidificando tudo sob espessa camada de neve.
Ninguém se dispunha a abrigar-me. O alimento
escasseava e cada boca a alimentar era um
problema a mais. Além disso, não havia trabalho
para mim. Nem sequer era possível remover o
esterco dos celeiros, obstruídos pela neve até os
beirais dos telhados. As pessoas compartilhavam
seu abrigo com galinhas, bezerros, coelhos,
porcos, bodes e cavalos, homens e animais
aquecendo-se uns aos outros com o calor de
seus corpos. Mas para mim não havia lugar.
O inverno não veio melhorar a situação. O céu
pesado, coberto de nuvens plúmbeas, parecia
pesar fisicamente sobre os telhados de colmo.
Vez por outra, uma nuvem, mais escura que as
outras, passava correndo como um balão de
borracha, arrastando atrás de si uma sombra
aflita, que a espreitava da mesma maneira que
os maus espíritos espreitam o pecador. As
pessoas sopravam pequenas aberturas nas
janelas congeladas pela geada. Ao perceberem a
sombra sinistra esvoaçar por sobre a aldeia,
faziam o sinal-da-cruz e murmuravam orações.
Estavam crentes de que o Demônio percorria a
região montado na nuvem negra, e enquanto ele
por ali rondasse só se podia esperar o pior.
Envolto em andrajos, restos de peles de coelho e
de couro de cavalo, eu vagueava de uma a outra
aldeia, aquecido apenas pelo calor do cometa
que construíra de uma lata vazia encontrada na
via férrea. Transportava às costas uma sacola
cheia de combustível, que ansiosamente tornava
a encher a qualquer oportunidade que se
apresentasse. Assim que ela se tornava mais
leve, dirigia-me para a floresta, cortava alguns
ramos, um pouco de cortiça, escavava alguma
turfa e musgo. Depois que enchia a sacola
prosseguia em meu caminho com uma sensação
de satisfação e segurança, fazendo rodopiar o
meu cometa e alegrando-me com o calor que
dele se desprendia.
Não era difícil encontrar o que comer. A nevada
incessante conservava o povo abrigado em seus
esconderijos, o que me permitia escavar meu
caminho até os celeiros ilhados pela neve e
escolher as melhores batatas e beterrabas, que
mais tarde cozinhava no meu fogareiro. Mesmo
quando me avistavam pela janela — um montão
informe de trapos movendo-se furtivamente
através da neve — tomavam-me por um espectro
e limitavam-se a soltar os cães em meu encalço.
Mesmo estes relutavam em deixar os seus covis
nas cabanas aquecidas e patinhavam com
dificuldade na neve profunda. Quando finalmente
me alcançavam, era-me fácil assustá-los com o
auxílio do meu cometa incandescente. Friorentos
e estafados, regressavam às cabanas com um
ganido maquinal.
Eu calçava enormes tamancos de madeira
atados com tiras de pano. A largura do calçado,
associada à leveza do meu corpo, permitia-me
movimentar-me com facilidade através da neve
sem afundar-me até o pescoço. Enrolado em
trapos até os olhos, percorria os caminhos
livremente, sem nada encontrar além de corvos
de olhar voraz.
Dormi na floresta, metido num buraco entre
raízes de árvores, tendo por teto um monte de
neve acumulado pelo vento. Enchi o meu cometa
com turfa úmida e folhas secas, que aqueceram
o meu esconderijo com uma fumaça perfumada.
O fogo durou a noite toda, permitindo-me dormir
em paz.
Finalmente, ao cabo de uma semana de ventos
brandos, a neve começou a desmanchar-se e os
camponeses a sair de seus abrigos. Já não me
restava escolha. Os cães, bem descansados,
rondavam agora incessantemente as casas das
fazendas, não mais me permitindo roubar
alimento e obrigando-me a permanecer
constantemente em guarda. Impunha-se
procurar alguma aldeia distante, prudentemente
afastada dos postos avançados alemães.
Em minhas andanças pela floresta, flocos de
neve molhada caíam freqüentemente sobre mim,
ameaçando apagar o meu cometa. No segundo
dia, um grito me fez parar. Agachei-me atrás de
um arbusto, temeroso de mover-me, ouvidos
atentos às folhagens murmurantes. O grito
repetiu-se. Um bando de corvos esvoaçou,
atemorizado. Esgueirando-me de uma árvore a
outra, aproximei-me finalmente do ponto de
onde vinha o ruído. Numa trilha estreita e
encharcada, dei com uma carroça virada e um
cavalo, embora não houvesse sinal de ser
humano.
Ao avistar-me, o animal empinou as orelhas e
voltou a cabeça em minha direção. Aproximei-
me. Estava tão magro que todos os seus ossos
sobressaíam; cada cordão de músculo exposto
pendia qual uma corda umedecida. Fitou-me com
olhos turvos e injetados, que pareciam prestes a
fechar-se. Moveu a cabeça debilmente, e de seu
pescoço descarnado escapou-se um grunhido
semelhante ao de um sapo.
Uma das patas do cavalo estava fraturada um
pouco acima da junta. Uma farpa aguda do osso
sobressaía, e cada vez que o animal se movia a
ferida mais se agravava.
Urubus pairavam em bando por sobre o animal
ferido, sem perder de vista a presa. Vez por
outra um deles pousava num galho, fazendo
despencar flocos de neve, que se descongelavam
ao tocar o solo com o baque surdo de panquecas
atiradas à frigideira. A cada impacto o cavalo
erguia a cabeça, extenuado, e mirava em torno.
Vendo-me rodear a carroça, moveu a cauda num
gesto amistoso. Ao aproximar-me, apoiou a
pesada cabeça em meu ombro, esfregando-se
contra o meu rosto. Quando lhe afaguei as
narinas ressecadas, moveu o focinho, farejando-
me mais de perto.
Debrucei-me para examinar-lhe a perna. O
animal voltou a cabeça em minha direção,
esperando pelo meu veredicto. Encorajei-o a
caminhar alguns passos, o que ele fez, gemendo
e mancando; foi inútil, porém. Envergonhado e
resignado, baixou a cabeça. Segurando-lhe o
pescoço, observei que nele a vida ainda pulsava
normalmente. Tentei persuadi-lo a acompanhar-
me; permanecer na floresta só podia significar
para ele a morte. Falei-lhe sobre o estábulo
aquecido, sobre o perfume do feno, e assegurei-
lhe que alguém lhe recolocaria o osso no lugar e
lhe faria um curativo com ervas.
Falei-lhe sobre os campos luxuriantes ainda
cobertos de neve, à espera apenas da primavera.
Confessei que, se conseguisse levá-lo até a
aldeia e devolvê-lo ao seu proprietário, isso
poderia representar uma melhoria nas minhas
relações com o pessoal do lugar. Quem sabe me
permitiriam inclusive permanecer na aldeia. Ele
ouvia atentamente, de tempos em tempos
enviesando o olhar em minha direção, para
certificar-se de que eu falava a verdade.
Recuei um passo e procurei fazê-lo caminhar,
mediante uma leve pancada com um galho seco.
Ele cambaleou, suspendendo no ar a pata ferida.
Claudicava, mas finalmente logrei persuadi-lo a
mover-se. O avanço foi lento e penoso. Vez por
outra, o cavalo estacava e tombava bruscamente
ao solo, onde se deixava ficar imóvel. Nessas
ocasiões eu lhe rodeava o pescoço com o braço,
afagando-o, e sustentava-lhe a perna fraturada.
Passado algum tempo recomeçava a andar,
como se animado por alguma reminiscência, por
algum pensamento que temporariamente lhe
escapara. Coxeava, perdia o equilíbrio,
tropeçava. De cada vez que se apoiava na perna
fraturada o osso partido emergia de sob a pele,
de tal forma que, na neve ou na lama, aquele
toco de osso constituía praticamente o seu único
ponto de apoio. Cada um de seus relinchos
doloridos cortava-me o coração. Esqueci-me dos
andrajos que me envolviam os pés e
experimentei a sensação de caminhar também
eu sobre as pontas irregulares de minhas tíbias,
arrancando um gemido de dor a cada passo.
Exausto, coberto de lama, atingi finalmente a
aldeia, acompanhado pelo cavalo. Fomos
imediatamente rodeados por uma malta de cães
que rosnavam ameaçadoramente. Mantive-os a
distância com o auxílio do meu cometa,
chamuscando o pêlo dos mais atrevidos. O
cavalo mantinha-se impassível a meu lado,
mergulhado em torpor.
Alguns camponeses saíram de suas cabanas e
rodearam-nos. Um deles era o proprietário do
animal, que, agradavelmente surpreendido,
referiu-me ter ele fugido em disparada há dois
dias atrás. Depois de afugentar os cães,
examinou a perna fraturada, declarando que o
animal teria que ser sacrificado. Sua única
utilidade seria a de fornecer alguma carne, o
couro para curtir, e ossos para fins medicinais.
Naquela região, presentemente, os ossos
constituíam o artigo mais valioso. As doenças
mais graves eram tratadas com várias doses
diárias de uma infusão de ervas misturadas com
ossos de cavalo triturados. Para dor de dente,
aplicava-se uma compressa feita de coxa de rã
misturada com um pouco de dente de cavalo
reduzido a pó. Os cascos, depois de queimados,
constituíam remédio infalível contra resfriados,
curando-os em dois dias, enquanto os ossos
ilíacos do cavalo, aplicados sobre o corpo de um
epiléptico, amenizavam e espaçavam os acessos.
Enquanto o camponês examinava o animal,
mantive-me afastado. Logo em seguida, foi a
minha vez. O homem inspecionou-me dos pés à
cabeça, querendo saber onde eu estivera antes e
o que tinha feito. Respondi o mais
cautelosamente possível, ansioso por evitar
qualquer coisa que pudesse despertar-lhe as
suspeitas. Fez-me repetir por diversas vezes a
minha história e riu-se das minhas tentativas
frustradas de falar o dialeto local. De tempos em
tempos, perguntava-me se eu era um órfão
judeu ou cigano. Jurei por tudo e por todos em
que pude pensar que era um verdadeiro cristão e
um trabalhador obediente. Outros homens
haviam-se agrupado em torno de nós e observa-
vam-me com olhar crítico. Não obstante, o
camponês decidiu-se a contratar-me para ajudá-
lo no trabalho. Caí de joelhos e beijei-lhe os pés,
agradecendo-lhe profusamente.
Na manhã seguinte, o fazendeiro tirou do
estábulo dois cavalos fortes, de grande porte.
Atrelou-os a um arado e conduziu-os até junto do
animal ferido, que aguardava pacientemente
junto a uma cerca. Jogou um laço sobre o
pescoço do cavalo aleijado e atou a outra extre-
midade da corda ao arado. Os cavalos fortes
moveram levemente as orelhas, olhando com
indiferença para a vítima, que ofegava sentindo o
pescoço comprimido pelo nó apertado. Eu
contemplava a cena, imaginando como me seria
possível salvar-lhe a vida, como poderia conven-
cê-lo de que jamais me ocorrera que o estava
trazendo de volta à granja para aquilo. Quando o
camponês aproximou-se do cavalo para controlar
a posição do laço, o animal, num movimento
súbito, voltou-se e lambeu-lhe a face. O homem,
sem olhá-lo, deu-lhe, com a mão espalmada, um
tapa vigoroso no focinho. O animal voltou a
cabeça, magoado e humilhado.
Minha vontade era atirar-me aos pés do
fazendeiro e implorar-lhe que salvasse a vida do
animal, mas interceptei-lhe o olhar de censura.
Ocorreu-me então o que deveria acontecer
quando um homem ou um animal prestes a
morrer conta os dentes daquele que é
responsável por sua morte. Temi pronunciar uma
palavra durante todo o tempo em que o cavalo
me fitava com aquele olhar resignado,
impressionante. Esperei, mas ele não despregava
os olhos de mim.
Repentinamente, o fazendeiro, depois de cuspir
nas mãos, tomou de um chicote feito de nós e
açoitou as ancas dos dois cavalos fortes. Estes
saltaram violentamente para diante, esticando a
corda, e com isso apertando o nó no pescoço do
condenado. Arquejando roucamente, ele foi
arrastado e tombou como uma cerca derrubada
pelo vento. Foi brutalmente arrastado sobre o
solo macio por mais alguns metros. Quando os
cavalos estacaram, ofegantes, o camponês
aproximou-se da vítima e chutou-a algumas
vezes no pescoço e nas juntas dos joelhos. O
animal não se moveu. Os cavalos fortes,
farejando a morte, pisoteavam o chão
nervosamente, como se procurassem evitar a
fixidez dos olhos mortos, dilatados.
Passei o resto do dia ajudando o camponês a
esfolar o couro e a cortar a carcaça do animal.
Passaram-se semanas e a aldeia pareceu ter se
esquecido de mim. Alguns dos rapazes, vez por
outra, sugeriam que eu devia ser entregue às
autoridades alemãs, ou que se deveria informar
os soldados da presença do bastardo cigano na
aldeia. As mulheres evitavam cruzar comigo nas
estradas, voltando cuidadosamente para o lado a
cabeça dos filhos, quando tal acontecia. Os
homens examinavam-me em silêncio, e não raro
cuspiam em minha direção.
Essa gente falava pausadamente e com
deliberação, medindo cuidadosamente as
palavras. Seus hábitos estabeleciam que se
poupassem as palavras como poupavam o sal, e
uma língua solta era considerada o pior inimigo
do homem. As pessoas que falavam demais eram
consideradas vagabundas e desonestas,
decididamente treinadas por cartomantes judeus
ou ciganos. O povo costumava sentar-se em
meio a um pesado silêncio, ocasionalmente
rompido por alguma observação insignificante.
Ao falar ou rir, cobriam a boca com as mãos,
para evitar expor os dentes ao mau-olhado. Só a
vodca tinha o poder de soltar-lhes a língua e de
relaxar-lhes os gestos.
Meu amo era muito respeitado e freqüentemente
convidado aos casamentos e festas locais. Às
vezes, quando as crianças gozavam saúde e nem
a mulher nem a sogra faziam objeção, levava-me
também com eles. Durante essas recepções
ordenava-me que exibisse aos convidados o meu
acento urbano, e que recitasse os poemas e as
histórias que aprendera antes da guerra com
minha mãe e minhas governantas. Comparada à
fala local, macia e arrastada, minha maneira de
falar citadina, eivada de consoantes ásperas que
espocavam como rajadas de metralhadoras,
assemelhava-se a uma caricatura. Antes do meu
desempenho, fui forçado pelo fazendeiro a beber
um copo de vodca de uma só vez, e tropeçando
por sobre pés que tentavam derrubar-me
alcancei com dificuldade o centro da sala.
Dei início ao meu número imediatamente,
procurando evitar fitar os olhos ou os dentes dos
assistentes. Quando me pus a recitar poesia a
grande velocidade, os camponeses arregalaram
os olhos de espanto, julgando que eu estivesse
meio doido e que minha fala rápida fosse alguma
demonstração da doença.
Mostraram-se literalmente fascinados pelas
fábulas e histórias rimadas versando sobre
animais. Ouvindo os casos do bode que viajava
pelo mundo em busca da capital do reino dos
bodes, do gato metido em botas de sete léguas,
do touro Ferdinando, de Branca de Neve e os
Sete Anões, Mickey Mouse e Pinóquio, os
convidados riam-se a valer, engasgando-se com
a comida e cuspindo vodca.
Terminada a representação, era chamado de
mesa em mesa para repetir alguns poemas e
forçado a beber novos brindes. Se recusava,
derramavam-me a bebida pela garganta abaixo.
Habitualmente, pelo meio da noite encontrava-
me completamente bêbado e incapaz de me
inteirar do que se passava ao meu redor. As
fisionomias que me rodeavam assumiam aos
poucos as feições dos animais das histórias que
eu recitava, como ilustrações vivas de certos
livros infantis de que ainda guardava a
lembrança. Tinha a sensação de despencar ao
longo de um poço profundo, de paredes macias e
úmidas, revestidas de musgo esponjoso. No
fundo do poço, ao invés de água, estava a minha
cama quente, segura, onde eu poderia
adormecer em paz e esquecer tudo.
O inverno chegava ao fim. Diariamente, eu me
dirigia à floresta, em companhia do meu amo, a
fim de recolher lenha. Uma umidade morna
transpirava no ar, fazendo inchar as massas
lanosas de musgos que pendiam dos galhos das
árvores gigantescas como se fossem peles de
coelho acinzentadas e semicongeladas.
Apresentavam-se ensopadas de água, pingando
gotas escuras sobre as folhas de córtex meio
arrancadas. Pequeninos fios de água corriam em
todas as direções, saltando aqui para mergulhar
além sob raízes pantanosas e prosseguir adiante
em sua corrida caprichosa.
Uma família das vizinhanças organizou uma
grande recepção de casamento para a filha, aliás
muito atraente. Envergando seus melhores trajes
domingueiros, os camponeses dançavam no
celeiro, que fora varrido e decorado para a
ocasião. O noivo, seguindo uma antiga tradição,
beijava na boca a todos os presentes. A noiva, já
meio tonta depois de tantos brindes, ora
chorava, ora ria, sem ligar muito para os homens
que lhe beliscavam as nádegas ou acariciavam
os seios.
Quando a sala se esvaziou e os convidados
lançaram-se às danças, corri para a mesa em
busca da refeição que o meu desempenho me
assegurara. Sentei-me no canto mais escuro,
ansioso por furtar-me aos motejos dos bêbados.
Dois homens entraram na sala, enlaçados num
abraço fraternal. Eu os conhecia a ambos.
Contavam-se entre os mais prósperos
fazendeiros da aldeia. Cada um deles possuía
diversas vacas, uma parelha de cavalos e vários
alqueires da melhor terra.
Esgueirei-me por detrás de alguns barris vazios,
a um canto. Os dois homens sentaram-se num
banco junto à mesa, ainda carregada de comida,
e puseram-se a conversar em voz baixa.
Ofereciam-se mutuamente doses de comida e,
segundo o costume, evitavam fitar-se nos olhos e
mantinham fisionomias carrancudas. Então, um
deles levou lentamente a mão ao bolso.
Enquanto com uma das mãos escolhia um
pedaço de lingüiça, com a outra extraía do bolso
uma faca longa e afiada. Súbito, mergulhou-a
com toda a força nas costas de seu
despreocupado companheiro.
Sem olhar para trás, deixou a sala, mastigando a
salsicha com prazer. O homem apunhalado
tentou erguer-se. Olhou em torno com olhos
vidrados; ao avistar-me procurou dizer algo, mas
de sua boca saiu apenas um pedaço meio
mastigado de repolho. Novamente procurou
erguer-se, mas cambaleou e deslizou
mansamente entre o banco e a mesa. Tendo-me
assegurado de que não havia mais ninguém por
perto, e esforçando-me em vão por parar de
tremer, esgueirei-me como um rato para fora da
porta entreaberta e corri para o celeiro.
À luz mortiça do crepúsculo, os rapazes da aldeia
agarravam as raparigas e arrastavam-nas para o
celeiro. Sobre uma pilha de feno, um homem,
com as nádegas descobertas, estava deitado
sobre uma mulher de braços e pernas
estendidos. Bêbados tropeçavam por toda a
extensão do pátio, praguejando uns contra os
outros e vomitando, perturbando os casais de
namorados e despertando os que dormiam.
Arranquei uma tábua dos fundos do celeiro e
esgueirei-me através da abertura, correndo em
direção ao celeiro do meu amo e enfiando-me
rapidamente no monte de feno do estábulo que
constituía o meu leito.
O cadáver não foi removido imediatamente.
Depositaram-no numa peça lateral, enquanto a
família se reunia na sala principal. Entrementes,
uma das mulheres mais idosas da aldeia
desnudara o braço esquerdo do defunto e lavara-
o com uma mistura de cor parda. Homens e
mulheres que sofriam de bócio penetravam no
quarto, um por um, com os sacos disformes de
carne inflamada pendendo-lhes sob o queixo e
rodeando-lhes o pescoço. A anciã fazia cada um
aproximar-se do cadáver, executando um certo
número de gestos cabalísticos sobre a parte
atingida, erguendo a seguir a mão inanimada
para tocar por sete vezes a zona inflamada. O
paciente, pálido de medo, devia repetir depois
dela: "Que a doença vá para onde esta mão não
tardará a ir".
Findo o tratamento, os pacientes pagavam à
família do morto pela cura. O corpo permanecia
no aposento, a mão esquerda sobre o peito, a
direita sustentando uma vela benta. Ao final do
quarto dia, quando o odor do quarto começou a
tornar-se mais intenso, convocaram um padre da
aldeia e tiveram início os preparativos do funeral.
Por muito tempo depois do enterro, a mulher do
fazendeiro ainda se recusava a lavar as manchas
de sangue do aposento onde ocorrera o crime.
Estas eram claramente visíveis no chão e sobre a
mesa, como um cogumelo cor de ferrugem para
sempre impregnado na madeira. Todos
acreditavam que aquelas manchas, testemunhas
do crime, terminariam, mais cedo ou mais tarde,
por atrair o assassino, contra a sua vontade, ao
local do crime, onde seria justiçado.
E, no entanto, esse mesmo assassino, cuja
fisionomia eu gravara nitidamente na lembrança,
costumava jantar com freqüência naquela
mesma sala onde cometera o crime,
locupletando-se com as fartas refeições que ali
eram servidas. Custava-me crer como podia
permanecer insensível àquelas manchas de
sangue. Entretinha-me com freqüência em
observá-lo caminhar sobre elas, fumando
imperturbavelmente seu cachimbo ou
mordiscando um pedaço de pepino em conserva,
depois de deglutir num único gole um copo cheio
de vodca.
Naquelas ocasiões, eu me sentia mais tenso que
um estilingue prestes a disparar. Esperava ver
acontecer algo de extraordinário: um alçapão
escuro abrindo-se sob as manchas de sangue,
que o engoliria sem deixar sinal, ou um ataque
de dança de São Vito. Entretanto, o assassino
caminhava impune por sobre as manchas. Às
vezes, à noite, eu conjeturava se elas teriam
perdido o seu poder de vingança. Afinal de
contas, estavam agora já meio desbotadas: os
gatinhos haviam feito sujeira sobre elas, e a
própria dona da casa, esquecida de sua
resolução, esfregara o assoalho por mais de uma
vez.
Por outro lado, eu tinha consciência de que os
processos da justiça eram quase sempre
excessivamente demorados. Na aldeia, contava-
se o caso de um crânio que escapara de um
túmulo e pusera-se a rolar por um declive, por
entre as cruzes das sepulturas, evitando
cuidadosamente os canteiros floridos. O coveiro
tentara interceptá-lo com uma pá, mas ele
lograra escapulir e rumara para a porta do
cemitério. Um caçador que passava tentou igual-
mente detê-lo com um tiro de fuzil. O crânio,
destemeroso de todos os obstáculos, prosseguiu
rolando ao longo da estrada que conduzia à
aldeia. Esperou pelo momento oportuno e então
lançou-se entre as patas dos cavalos de um
fazendeiro das redondezas. Estes empinaram,
derrubando a carroça e ocasionando a morte
imediata do condutor.
Ao ouvir relatar o acidente, o povo da aldeia
ficou curioso e tratou de investigar mais a fundo
o episódio. Descobriram então que o crânio
saltara da cova do irmão mais velho da vítima do
acidente. Dez anos antes, o irmão mais velho
estivera a ponto de herdar a propriedade da
família. O irmão mais novo e sua mulher mostra-
ram-se evidentemente invejosos de sua sorte.
Então, uma noite, o irmão mais velho morreu
subitamente. Seu irmão e sua cunhada
providenciaram um enterro rápido, não per-
mitindo sequer aos parentes do defunto
visitarem o corpo.
Na ocasião, diversos rumores circularam pela
aldeia acerca dessa morte súbita, embora nada
fosse apurado em definitivo. Aos poucos, o irmão
caçula, que entrementes se tornara o dono da
propriedade, prosperou e cresceu na estima
geral.
Após o acidente próximo ao portão do cemitério,
o crânio desistiu de suas andanças e deixou-se
ficar imobilizado na poeira da estrada. Um
exame mais acurado demonstrou que um
enorme prego enferrujado fora cravado
profundamente no osso.
Assim, passados vários anos, a vítima punia o
seu carrasco, e a justiça prevalecia. Passou-se a
acreditar então que nem a chuva, nem o fogo,
nem o vento apagariam jamais a mancha de um
crime. Pois a justiça paira sobre o mundo como
um imenso cutelo suspenso por um braço
poderoso, que precisa deter-se por um momento
antes de se abater com violência sobre a vítima
descuidada. Como era costume dizer nas aldeias,
até uma partícula de poeira torna-se visível à luz
do sol.
Enquanto os adultos habitualmente deixavam-
me em paz, cumpria-me estar permanentemente
atento aos outros rapazes da aldeia. Todos eles
tinham a mentalidade de grandes caçadores; eu
era a caça indefesa. Meu amo, ele próprio,
prevenia-me para que me conservasse fora de
seu alcance. Acostumei-me a conduzir o gado
para o extremo do pasto, o mais afastado
possível dos outros rapazes. O capim ali era mais
abundante, mas era preciso vigiar as vacas
incessantemente para que não se desgarrassem
nos terrenos vizinhos, prejudicando as colheitas.
Entretanto, encontrava-me aqui relativamente a
salvo de expedições inimigas e praticamente fora
do alcance de meus perseguidores. Vez por
outra, contudo, alguns pastores pegavam-me de
surpresa e investiam contra mim, obrigando-me
a correr para os campos. Nessas ocasiões,
costumava preveni-los em altos brados de que,
se as vacas prejudicassem as colheitas enquanto
eu me encontrava afastado, meu amo haveria de
puni-los. A ameaça costumava surtir efeito,
fazendo-os retornar aos seus rebanhos.
Ainda assim, eu temia extremamente tais
ataques e não encontrava um só momento de
tranqüilidade. Cada movimento dos pastores,
cada ajuntamento, cada sinal de ação enchia-me
da apreensão de alguma trama secreta.
Suas outras brincadeiras e aventuras giravam
em torno de equipamento militar encontrado na
mata, em particular cartuchos de fuzil e minas
terrestres, localmente denominadas "sabonetes"
devido ao seu formato. Para encontrar um
esconderijo de munições, era suficiente
embrenhar-se um pouco na floresta e vasculhar
a vegetação rasteira. As armas haviam sido
abandonadas por dois destacamentos de
guerrilheiros que há três meses atrás ali se
haviam empenhado numa batalha interminável.
Os "sabonetes" eram particularmente
abundantes. Alguns camponeses sustentavam
que eram deixados pelos guerrilheiros "brancos"
em fuga; outros juravam que se tratava de
produto de pilhagem dos "vermelhos", que os
"brancos" não podiam transportar juntamente
com todo o equipamento restante.
Era possível também encontrar na floresta fuzis
inutilizados. Os rapazes retiravam-lhes os canos,
que cortavam em porções menores, para adaptá-
los em pistolas com cabos improvisados de
ramos. Esse tipo de pistola utilizava munição de
rifle, também facilmente encontrada nas matas.
O cartucho era detonado mediante um prego
preso a uma tira de borracha.
Por mais primitivas que fossem, essas pistolas
podiam ser de efeito mortal. Dois rapazes da
aldeia ficaram seriamente feridos quando, depois
de uma discussão, enfrentaram-se com as ditas
armas. Outra dessas pistolas de fabricação
caseira explodiu na mão de um garoto,
arrancando-lhe todos os dedos, e ainda uma
orelha. O caso mais patético foi o do filho
paralítico e aleijado de nossos vizinhos. Alguém
se lembrou de fazer com ele uma brincadeira
pesada, colocando diversos cartuchos de
munição de rifle no fundo de seu fogareiro.
Quando o menino, despreocupado, acendeu o
seu fogareiro pela manhã, balançando-o entre as
pernas, os cartuchos explodiram.
Havia também o método conhecido como
"pulverização". Consistia em retirar-se a bala do
invólucro do cartucho e lançar fora um pouco da
pólvora. A bala era então inserida
profundamente no invólucro semi-vazio e o
restante da pólvora era colocado por cima,
recobrindo a bala. O cartucho assim adulterado
era então enfiado na fenda de uma prancha, ou
enterrado no solo quase até o topo, e apontado
na direção do alvo. A pólvora da parte superior
era acesa. Quando o fogo atingia a parte mais
baixa, a bala disparava a uma distância de vinte
pés ou mais. Os peritos em "pulverização"
empenhavam-se em campeonatos e faziam
apostas em torno de que bala dispararia mais
rápido, e de qual proporção de pólvora no fundo
e no topo seria melhor. Os rapazes mais ousados
procuravam impressionar as garotas disparando
as balas ao mesmo tempo que retinham os
cartuchos. Freqüentemente o cartucho vazio ou o
detonador atingiam o operador ou algum
assistente. O rapaz de melhor aparência da
aldeia tinha um desses detonadores engastado
numa determinada parte de seu corpo a cuja
menção todos se punham a rir. Mas ele
caminhava em geral sozinho, evitando os olhares
furtivos das mulheres, que riam às escondidas.
Acidentes desse tipo, contudo, não preocupavam
ninguém. Tanto adultos como meninos se
haviam acostumado a trocar entre si munição,
sabonetes, canos de fuzil e ferrolhos, tendo
passado horas a fio numa exploração meticulosa
da vegetação rasteira e espessa dos bosques
adjacentes.
Uma granada com o estopim era um achado
sensacional. Podia ser negociada por uma pistola
de fabricação caseira, de coronha de madeira, e
vinte cartuchos. Essas granadas eram
necessárias para fabricar as minas com os
sabonetes. Bastava inserir o estopim na bola de
sabonete, acendê-lo e fugir às pressas do local
da explosão, que sacudia as janelas de todas as
casas da aldeia. Por ocasião de casamentos e
batizados, a procura de estopins redobrava. As
explosões constituíam atração à parte, e as
mulheres gritavam de excitação enquanto
aguardavam a detonação das minas.
Ninguém sabia que eu escondera no celeiro uma
granada com o estopim e três sabonetes,
encontrados no bosque quando colhia tomilhos
silvestres para a mulher do meu amo. A granada
estava praticamente nova e tinha um pavio
excepcionalmente longo.
Às vezes, quando não havia ninguém por perto,
eu retirava os objetos do esconderijo e brincava
com eles. Havia algo de extraordinário naquelas
peças de estranho material. As minas não
queimavam bem por si mesmas; mas, quando se
colocava o estopim no interior e se acendia, a
chama levava pouco tempo para correr ao longo
do pavio, produzindo uma explosão capaz de
fazer ir pelos ares toda a casa da fazenda.
Eu procurava visualizar o tipo de gente que
fabricava essas granadas e minas. Certamente
seriam alemães. Não era voz corrente nas
aldeias que ninguém podia resistir ao poder dos
alemães porque eles tinham o hábito de devorar
os miolos dos poloneses, russos, ciganos e
judeus?
Eu ficava a imaginar como o povo chegava a
criar essas invencionices. Por que seriam os
camponeses locais incapazes de realizar algo
que a seus olhos conferia tamanho poder a um
determinado povo?
Os arados, as foices, os ancinhos, as rodas de
fiar, os poços, os moinhos acionados por cavalos
lerdos ou bois enfermiços eram tão rudimentares
que o mais boçal dos indivíduos poderia inventá-
los e compreender-lhes o uso e o funcionamento.
Entretanto, a fabricação de um estopim capaz de
injetar um poder destruidor no interior de uma
mina ficava indiscutivelmente muito além da
compreensão do mais inteligente dos
fazendeiros.
Se era verdade que os alemães eram capazes de
tais inventos, e também que estavam
determinados a eliminar da face da terra todos
os indivíduos morenos, de olhos escuros, nariz
longo e cabelos negros, nesse caso as minhas
chances de sobreviver eram obviamente muito
reduzidas. Mais cedo ou mais tarde voltaria a
cair-lhes nas mãos, e desta vez poderia não ter a
mesma sorte que no passado.
Lembrei-me do alemão de óculos que permitira a
minha fuga para a floresta. Não resta dúvida de
que era louro e tinha olhos azuis, mas não
parecia particularmente inteligente. Que
utilidade havia em ficar postado numa estação
perdida e perseguir gente insignificante como
eu? A ser verdade o que dizia o mais respeitado
dos camponeses da aldeia, quem se ocuparia de
levar a cabo todos os inventos enquanto os
alemães estavam ocupados em vigiar as
pequenas estações ferroviárias? Era de se
imaginar que nem mesmo o mais brilhante dos
intelectos chegasse a inventar o que quer que
fosse numa estaçãozinha miserável como aquela.
Imerso num estado de semitorpor, eu visualizava
todas as invenções que gostaria de ter a meu
crédito. Por exemplo, um estopim para o corpo
humano que, quando aceso, trocaria a pele
usada por nova e alteraria a cor dos olhos e dos
cabelos. Ou ainda um estopim que, colocado sob
uma pilha de material de construção, levantasse
em um dia uma casa que seria a mais bela
dentre todas as existentes na aldeia. Um estopim
capaz de proteger a qualquer um contra mau-
olhado. Depois disso, pensava, ninguém mais
temeria a minha presença e minha vida se
tornaria mais fácil e mais agradável.
Os alemães intrigavam-me. Que desperdício,
refletia. Um mundo tão cruel e desumano, valeria
a pena que alguém se empenhasse em
governar?
Certo domingo, um grupo de rapazes aldeães, de
volta da aldeia, avistou-me na rua. Tarde demais
para fugir, tratei de aparentar indiferença e
esforcei-me por disfarçar o medo que sentia. Ao
cruzarem comigo, um deles agarrou-me,
empurrando-me para dentro de um profundo la-
maçal. Outros cuspiam-me diretamente nos
olhos, rindo-se cada vez que acertavam o alvo.
Em altos brados, exigiam que eu lhes ensinasse
alguns "truques ciganos". Procurei escapar-lhes
ao cerco e fugir, mas o círculo apertava-se à
minha volta. Mais altos do que eu, rodeavam-me
como uma rede viva prendendo um passarinho.
A perspectiva do que pudessem fazer em
seguida apavorava-me. Baixando os olhos para
as suas pesadas botinas domingueiras, percebi
que, estando descalço, poderia correr mais
rápido do que eles. Focalizei o mais forte da
turma e, apossando-me de uma pesada pedra,
lancei-a com força contra o seu rosto. Ele
fraquejou e contraiu-se sob o impacto; tombou,
sangrando abundantemente. Os demais
recuaram, assustados. Aproveitando a
oportunidade, saltei por sobre o corpo caído e
disparei através dos campos em direção à aldeia.
Ao alcançar a casa procurei pelo fazendeiro a fim
de referir-lhe o acontecido e pedir-lhe proteção.
Ele ainda não voltara da igreja com a família.
Apenas a velha e desdentada sogra
movimentava-se pelo pátio.
Senti as pernas começarem a tremer. Um grupo
numeroso de homens e rapazes aproximava-se,
vindo da aldeia. Todos portavam cacetes e paus,
e aviavam-se à medida que se aproximavam.
Aquilo seria provavelmente o meu fim.
Seguramente, o pai ou os irmãos do rapaz ferido
fariam parte da multidão, e eu não podia contar
com a menor mercê de sua parte. Disparei para
a cozinha, introduzi alguns carvões ardentes em
meu fogareiro e corri para o celeiro, fechando a
porta atrás de mim.
Meus pensamentos dispersavam-se qual um
bando de pintos assustados. A qualquer
momento, a turba me teria entre as mãos.
Subitamente, lembrei-me das minas com os
estopins. Tratei de escavar-lhes rapidamente os
esconderijos. Com dedos trêmulos, inseri o
estopim entre as minas estreitamente amarradas
uma contra a outra e acendi-o com o auxílio do
fogareiro. A extremidade do estopim ardeu, e o
ponto rubro pôs-se a rastejar lentamente ao
longo da mecha, em direção às minas. Arrastei
tudo para baixo de uma pilha de arados e grades
inutilizados, jogados a um canto do celeiro, e em
desespero escavei um abrigo na parede dos
fundos.
A turba já atingira o pátio da fazenda; eu podia
ouvir-lhes nitidamente os gritos. Apossando-me
do fogareiro, deslizei para fora do abrigo até
atingir as medas firmes de trigo colocadas atrás
do celeiro. Ali depositei o meu engenho, correndo
em direção à floresta como se fora uma toupeira.
Encontrava-me a meio caminho dos campos
quando o solo foi sacudido pela explosão. Olhei
para trás. Duas paredes melancolicamente
apoiadas uma à outra eram tudo quanto restava
do celeiro. Entre elas rodopiava uma massa de
tábuas rachadas e feno torvelinhante. Por cima,
pairava uma nuvem de poeira semelhante a um
gigantesco cogumelo.
Ao alcançar a orla da floresta, logrei finalmente
descansar. Alegrei-me ao constatar que não
houvera incêndio na fazenda de meu amo.
Distinguia apenas"o tumulto de vozes. Ninguém
me perseguiu.
Tinha consciência de que jamais poderia retornar
para ali. Embrenhei-me na floresta, pesquisando
cuidadosamente a vegetação rasteira, onde
estava certo de que existiam ainda em profusão
cartuchos, sabonetes e granadas.

IX
Por dias a fio perambulei pelas matas, com
tentativas ocasionais de aproximar-me das
aldeias. Da primeira vez, pude observar gente
que corria de uma casa para outra, gritando e
agitando os braços. Sem ter idéia do que podia
ter acontecido, pareceu-me mais sensato
manter-me a distância. Na aldeia seguinte ouvi
ruído de tiros, significando a proximidade de
guerrilheiros ou alemães. Desanimado, prossegui
por mais dois dias em minha vagabundagem.
Finalmente, faminto e exausto, decidi-me a
tentar a próxima aldeia, que da orla da floresta
onde me encontrava parecia relativamente
calma.
Ao emergir das moitas vi-me a bem dizer
precipitado sobre um indivíduo que lavrava um
campo de dimensões reduzidas. Era um tipo
gigantesco, com pés e mãos descomunais.
Apresentava a face recoberta, praticamente até
os olhos, por costeletas avermelhadas, e seus
cabelos longos e desgrenhados assemelhavam-
se a um emaranhado de juncos. Seus olhos de
um cinzento descorado observavam-me com
cautela. Esforçando-me por imitar o dialeto local,
expliquei-lhe que, em troca de um lugar para
dormir e algum alimento, eu estava pronto a
ordenhar-lhe as vacas, varrer o estábulo, levar os
animais até o pasto, rachar lenha, armar laços
para caça e lançar feitiços de toda espécie contra
doenças de homens e animais. O camponês
ouviu-me com atenção, examinou-me dos pés à
cabeça e levou-me para casa sem pronunciar
palavra.
Não tinha filhos. A mulher, depois de confabular
com alguns vizinhos, concordou em aceitar-me.
Mostrou-me um lugar para dormir no estábulo e
explicou-me as minhas obrigações.
A aldeia era extremamente pobre. As cabanas
eram construídas de troncos revestidos dos dois
lados com barro e palha. As paredes eram
profundamente encravadas no solo e suportavam
telhados de colmo encimados por chaminés
feitas de uma mistura de salgueiro e argila.
Poucos moradores possuíam celeiros, e estes
eram levantados lado a lado a fim de poupar
uma parede. Vez por outra, soldados alemães de
uma estação ferroviária próxima invadiam a
aldeia e apoderavam-se de todo alimento que
encontravam.
Quando os alemães chegaram e constatou-se ser
tarde demais para procurar refúgio na floresta,
meu amo escondeu-me numa adega habilmente
camuflada sob o celeiro. A entrada era muito
estreita e tinha pelo menos dez pés de
profundidade. Eu pessoalmente ajudara a
escavá-la e ninguém mais, além dos meus
patrões, sabia de sua existência.
Era provida de uma farta despensa, repleta de
enormes pedaços de manteiga e queijo,
presuntos defumados, enfiadas de salsichas,
garrafas de licor de preparo doméstico e outras
iguarias. O fundo da adega era sempre fresco.
Enquanto os alemães pesquisavam a casa toda
em busca de comida, correndo atrás dos porcos
no campo, esforçando-se desajeitadamente por
agarrar as galinhas no quintal, eu ficava ali
escondido, deleitando-me com as deliciosas
fragrâncias. Vez por outra, ficavam de pé na
tábua que cobria a entrada do celeiro. Nessas
ocasiões, eu tapava o nariz para evitar respirar,
enquanto prestava atenção à sua fala
ininteligível. Logo que o ruído dos caminhões
militares se diluía na distância, meu amo vinha
buscar-me para que reassumisse as minhas
obrigações rotineiras.
Começara a temporada dos cogumelos. Os
aldeães famintos acolhiam-na com prazer e
embrenhavam-se pelas matas em busca da farta
colheita. Cada pedaço de terra era disputado, e
meu amo cuidava sempre de levar-me consigo.
Bandos numerosos de camponeses de aldeias
próximas vagueavam pela floresta, em busca dos
produtos menores. Meu amo dera-se conta de
que eu aparentava ser cigano e, ansioso por não
se ver denunciado aos alemães, fizera-me raspar
o cabelo preto. Quando saía com ele, obrigava-
me a enfiar um velho capuz que me cobria parte
do rosto, chamando menos atenção sobre minha
pessoa. Ainda assim, sentia-me pouco à vontade
ante os olhares suspeitosos dos outros
camponeses, e esforçava-me sempre por ficar
próximo ao meu amo. Sentia que lhe era
suficientemente útil para que ele quisesse
conservar-me por uns tempos.
A caminho das plantações de cogumelos,
costumávamos cruzar a estrada de ferro que
percorria a floresta. Diversas vezes por dia,
grandes locomotivas fumegantes trafegavam por
ali, trazendo atrás de si longos comboios de
carga. Metralhadoras sobressaíam do teto dos
vagões ou alinhavam-se numa plataforma
vizinha à locomotiva. Soldados revestidos de
capacetes perscrutavam o céu e as matas com
possantes binóculos.
Então, surgiu na linha um novo tipo de trem:
trazia gente empilhada em vagões de gado. Os
homens que trabalhavam na estação trouxeram
a notícia à aldeia. Esclareciam tratar-se de
judeus e ciganos, que haviam sido capturados e
condenados à morte. Cada vagão comportava
duzentos deles, imprensados qual feixes de trigo,
braços erguidos para poupar espaço. Eram
velhos e moços, homens, mulheres e crianças,
até mesmo bebês. Alguns camponeses da aldeia
vizinha, temporariamente contratados para a
construção de um campo de concentração,
espalhavam estranhas histórias. Contavam que,
após deixar o trem, os judeus eram separados
em grupos, deixados nus e privados de tudo o
que traziam consigo. Tinham o cabelo cortado,
alegadamente para ser usado em colchões. Os
alemães também lhes examinavam os dentes, e
encontrando algum de ouro imediatamente o
extraíam. As câmaras de gás e os fornos
crematórios não davam vazão ao material huma-
no; grande número daqueles que morriam
intoxicados pelo gás não eram incinerados, mas
simplesmente enterrados em fossas escavadas
em torno do campo.
Os camponeses ouviam tais relatos com
circunspeção.
Comentavam que o castigo divino atingira
finalmente os judeus, que o mereciam de longa
data — desde que haviam crucificado o Cristo.
Deus jamais esquecera a ofensa. Embora
ignorando-a por tão longo período de tempo, não
a perdoara. Agora, servia-se dos alemães como
seu instrumento de justiça. Aos judeus seria
negado o privilégio de uma morte natural.
Haveriam de morrer pelo fogo, sofrendo aqui na
terra as torturas do inferno. Estavam sendo
punidos com justiça vergonhosos crimes de seus
ancestrais, por rejeitarem a única Verdadeira Fé,
por matarem impiedosamente criancinhas cristãs
e lhes beberem o sangue.
Os aldeães passaram a mirar-me com maior
hostilidade. "Judeuzinho cigano", xingavam-me.
"Você ainda há de ser queimado, bastardo." Eu
fingia que aquilo não me dizia respeito, inclusive
no dia em que alguns pastores me agarraram e
tentaram arrastar-me até uma fogueira e
queimar-me a sola dos pés, como Deus o
determinava. Lutei ferozmente para escapulir,
arranhando-os e mordendo-os. Não queria ser
queimado numa fogueira ordinária como aquela,
quando tantos outros eram incinerados em
fornalhas especiais e complicadas, construídas
pelos alemães e equipadas com motores mais
possantes que os das maiores locomotivas.
Fiquei acordado a noite toda, perguntando-me se
Deus teria a intenção de punir-me também. Meus
pais sempre haviam freqüentado a igreja aos
domingos, e ocasionalmente levavam-me
também, juntamente com a governanta. Seria
possível que a ira divina estivesse reservada
unicamente para pessoas de cabelos e olhos
escuros, a quem se denominava ciganos? Por
que razão meu pai, de quem eu me recordava
bem, tinha cabelos louros e olhos azuis, ao passo
que minha mãe era morena? Qual a diferença
entre um cigano e um judeu, se ambos tinham a
pele trigueira e estavam fadados a um fim
comum? Terminada a guerra, tudo indicava, só
restariam no mundo criaturas louras, de olhos
azuis. Então, perguntava-me, o que aconteceria
aos filhos de gente loura que acaso nascessem
morenos?
Quando os trens que transportavam os judeus
passavam pela aldeia, durante o dia ou à
tardinha, os camponeses postavam-se de ambos
os lados da via férrea e acenavam para o
maquinista, para o foguista e para os poucos
guardas. Através das exíguas janelas quadradas
rasgadas junto ao teto dos vagões trancados, era
possível divisar-se ocasionalmente uma
fisionomia humana. Essa pessoa teria
presumivelmente subido aos ombros de outra
para verificar de onde provinham as vozes que
lhes chegavam de fora. Diante dos acenos
amigáveis dos camponeses, os prisioneiros
teriam provavelmente julgado que aquela ca-
lorosa acolhida era dirigida a eles. Então,
desapareciam os rostos, substituídos por um mar
de braços magros, enlaciados, que acenavam em
desespero.
Os camponeses observavam as composições
com curiosidade, atentos ao estranho eco
sussurrante do aglomerado humano, que não era
bem gemido, nem choro, nem canto. O trem
passava, e enquanto se perdia na distância era
ainda possível distinguir, contra o cenário
sombrio da floresta, braços humanos soltos que
se agitavam incansavelmente pelas janelas.
Às vezes, durante a noite, essa gente que se
destinava aos fornos crematórios lançava os
filhos pequenos pelas janelas, na esperança de
salvar-lhes a vida. Vez por outra logravam
arrancar uma tábua do soalho do vagão e um ou
outro mais afoito esgueirava-se pela abertura,
projetando-se sobre o leito da via férrea formado
por pedrinhas miúdas, sobre os trilhos ou sobre
os retesados fios semafóricos. Despedaçados
pelas rodas, seus troncos mutilados rolavam pelo
talude abaixo até o capim espesso.
Vagueando junto à linha férrea, no dia seguinte,
os camponeses encontravam esses despojos e
rapidamente lhes subtraíam roupas e sapatos.
Desajeitadamente, receando serem
contaminados pelo sangue amaldiçoado dos não-
batizados, rasgavam o forro das vestes das
vítimas, à procura de valores. Era freqüente
ocorrerem disputas e lutas corporais em torno da
presa. Mais tarde, os corpos desnudos eram
depositados no leito da ferrovia, entre os trilhos,
onde eram encontrados pelo vagão de patrulha
que passava diariamente. Os soldados ou
embebiam em gasolina os corpos contaminados
e ateavam-lhes fogo ali mesmo, ou então
enterravam-nos nas proximidades.
Certo dia, chegou à aldeia a notícia de que
diversas composições transportando judeus
haviam passado à noite, uma depois da outra. Os
camponeses terminaram a colheita dos
cogumelos mais cedo que de costume e fomos
todos até a ferrovia. Pusemo-nos a caminhar ao
longo dos trilhos, dos dois lados, em fila indiana,
perscrutando os arbustos, procurando vestígios
de sangue nos postos de sinalização e nas
margens da ribanceira. Durante algumas milhas
nada foi encontrado. Depois, uma das mulheres
percebeu alguns ramos pisados numa moita de
rosas silvestres. Alguém afastou a vegetação
espinhosa e encontramos um menino de seus
cinco anos estirado no chão. Tinha a camisa e as
calças em tiras. Seus cabelos eram pretos e
longos e as sobrancelhas escuras e arqueadas.
Parecia estar adormecido ou morto. Um dos
homens pisou-lhe a perna. O menino estremeceu
e abriu os olhos. Vendo aquelas pessoas
debruçadas sobre ele, tentou falar alguma coisa,
mas apenas um filete de sangue escorreu-lhe
lentamente da boca, descendo-lhe pelo queixo e
pelo pescoço. À vista de seus olhos negros, os
camponeses, receosos, afastaram-se
rapidamente, antes que ele pudesse ter tempo
de contar-lhes os dentes.
Ouvindo vozes às suas costas, a criança tentou
virar-se. Mas provavelmente teria partido os
ossos, porque limitou-se a gemer e uma grande
bolha de sangue formou-se em sua boca. Tornou
a cair e fechou os olhos. Os camponeses
observavam-no receosos, de longe. Então, uma
das mulheres aproximou-se vagarosamente, e
arrancou os sapatos usados que ele trazia nos
pés. O menino moveu-se, gemeu, e vomitou
nova golfada de sangue. Reabriu os olhos e
cravou-os nos camponeses, que se apressaram
em escapulir novamente de seu campo de visão,
persignando-se, cheios de pânico. A criança
tornou a cerrar os olhos e permaneceu imóvel.
Dois homens agarraram-no pelas pernas e
viraram-no de borco. Estava morto. Tiraram-lhe o
paletó, a camisa e as calças e carregaram-no
para o leito da via férrea. O vagão de patrulha
não deixaria de avistá-lo.
Fizemos meia-volta para regressar. Enquanto
caminhávamos, relanceei os olhos para trás. O
corpo permanecia estirado sobre os seixos
brancos entre os dormentes. Apenas era possível
divisar-se a negra cabeleira.
Procurei imaginar o que teria ele pensado antes
de morrer. Ao ser lançado para fora do trem,
seus pais ou seus amigos seguramente lhe
teriam garantido que encontraria um abrigo
entre gente bondosa, que o salvaria de uma
morte horrível na imensa fornalha. Deve ter sido
tremenda sua decepção. Teria certamente
preferido aninhar-se junto ao calor dos corpos de
seu pai e de sua mãe, no vagão superlotado,
sentir o odor quente e acre da aglomeração
humana, sabendo que não estava sozinho, rece-
bendo de todos a garantia de que tudo não
passava de um mal-entendido.
Embora eu lamentasse a tragédia do menino, no
íntimo do coração experimentava uma sensação
de alívio com a sua morte. Mantê-lo na aldeia
não beneficiaria a ninguém, raciocinava. As vidas
de todos nós estariam ameaçadas. Se chegasse
aos ouvidos dos alemães a presença ali de um
enjeitado judeu, convergiriam todos para a
aldeia. Dariam busca de casa em casa,
encontrariam o menino, e me encontrariam
também a mim, abrigado no porão.
Provavelmente presumiriam que também eu fora
atirado do trem, e nos eliminariam a ambos
imediatamente, punindo mais tarde a aldeia
inteira.
Enterrei o capuz o máximo que pude sobre os
olhos, arrastando-me em último lugar na fila. Não
seria mais fácil, refleti, modificar os olhos e os
cabelos das pessoas do que construir grandes
fornalhas e caçar judeus e ciganos para serem
nelas queimados?
A colheita de cogumelos tornara-se rotina diária.
Por toda parte viam-se cestos cheios deles
secando ao sol, para depois serem escondidos
nos paióis e celeiros. Brotavam nas matas em
quantidades espantosas. Cada manhã, os
aldeões dispersavam-se pela floresta,
transportando cestos vazios. Abelhas
pesadamente carregadas do néctar que extraíam
de flores semi-fenecidas zumbiam
preguiçosamente ao sol de outono, dentro da
quietude da espessa vegetação rasteira,
encimada pelas cúpulas das altas árvores.
Debruçando-se para colher os cogumelos, as
pessoas chamavam umas pelas outras em vozes
alegres cada vez que encontravam uma touceira
bem sortida. Respondia-lhes a deliciosa
cacofonia dos pássaros que chilreavam nas
moitas de aveleira e de junípero, nos ramos dos
carvalhos e das carpas. Vez por outra fazia-se
ouvir o pio sinistro de uma coruja, mas ninguém
lograva avistá-la, metida no oco profundo de
algum tronco. Uma raposa de pele avermelhada
passava em disparada, embrenhando-se nas
moitas após ter-se regalado com ovos de perdiz.
Víboras rastejavam nervosamente, silvando para
incutir coragem umas às outras. Uma lebre gorda
saltava para dentro da moita em pulos nervosos.
A sinfonia da floresta só era rompida pelo apito
de uma locomotiva, o estrépito dos vagões, o
chiar dos freios. Os camponeses imobilizavam-se,
os rostos voltados na direção do leito da ferrovia.
Os pássaros silenciavam, a coruja metia-se mais
profundamente em seu oco de tronco, enrolando-
se com dignidade em seu manto cinzento de
plumas. A lebre estacava, eriçando as longas
orelhas, e logo, tranqüilizada, recomeçava a
saltar.
Nas semanas que se seguiram, até terminar a
estação dos cogumelos, caminhávamos com
freqüência ao longo da via férrea.
Ocasionalmente passávamos junto a pequenos
montes oblongos de cinzas negras e um ou outro
osso chamuscado, partido e misturado ao
cascalho. Os homens detinham-se então, o cenho
franzido. Alguns temiam que, mesmo depois de
incinerados, os cadáveres daqueles que se
haviam lançado para fora dos trens pudessem
contaminar a gente e os animais, e apressavam-
se em empurrar terra com o pé para cima das
cinzas.
Certa vez, fingi que me abaixava para apanhar
um cogumelo que caíra de meu cesto e agarrei
um punhado dessa poeira humana. Grudava-se
em meus dedos e cheirava a gasolina. Examinei-
a de perto, mas não pude encontrar nela o
menor vestígio de um ser humano. E, no entanto,
essa cinza não era igual àquela outra que sobra
dos fornos de cozinha, onde são queimados
lenha, turfa seca e musgo. Comecei a sentir
medo. Esfregando nos dedos o punhado de cinza,
tinha a impressão de que o espírito da pessoa
queimada pairava sobre mim, espionando-me e
recordando-me de tudo o que lhe acontecera
nesta vida. Sabia que o espírito poderia nunca
mais se desprender de mim, que poderia
acompanhar-me para sempre, perseguir-me à
noite, instilar doença em minhas veias e loucura
em minha mente.
Depois da passagem de cada composição eu
visualizava batalhões inteiros de fantasmas
dotados de fisionomias maldosas, vingativas,
baixando à terra. Os camponeses costumavam
dizer que a fumaça dos fornos crematórios subia
direto ao céu, desdobrando aos pés de Deus um
tapete macio, sem manchá-los sequer. Eu me
perguntava se seriam precisos tantos judeus
para compensar o Senhor pela perda de seu
filho. Quiçá o mundo não tardaria a transformar-
se num colossal incinerador destinado a queimar
seres humanos. Acaso o padre não dissera que
todos estávamos destinados a perecer, a passar
"de cinzas a cinzas"?
Ao longo do talude, entre os trilhos, encontramos
inúmeras folhas de papel com anotações,
cadernos de notas, folhinhas, fotografias de
família, documentos impressos, passaportes
antigos e diários. As fotografias eram,
evidentemente, o que maior interesse
despertava, já que ninguém na aldeia sabia ler.
Algumas delas apresentavam pessoas idosas,
empertigadas, vestindo trajes estranhos. Em
outras, casais elegantemente vestidos apareciam
com os braços em torno dos ombros dos filhos,
todos sorridentes e envergando trajes de um tipo
que ninguém na aldeia jamais avistara. Às vezes
encontrávamos fotografias de lindas jovens, mais
belas do que anjos de igreja, ou ainda de homens
com barbas e olhos negros e penetrantes. Havia
ainda fotografias de homens idosos, que se
assemelhavam aos antigos apóstolos, e de
velhas senhoras de sorrisos desmaiados. Outras
revelavam crianças brincando num parque,
bebês chorando ou recém-casados abraçando-se.
No verso podiam-se ler, rabiscadas, mensagens
de despedida, blasfêmias, ou ainda trechos
religiosos traçados por mãos flagrantemente
tornadas trêmulas pelo medo ou pelo movimento
do trem. As palavras apresentavam-se com
freqüência esmaecidas por efeito do orvalho
matutino ou descoradas pelo sol.
Os camponeses recolhiam ansiosamente esses
objetos. As mulheres davam risadinhas e
cochichavam entre si sobre as fotografias
masculinas, ao passo que os homens formulavam
piadas e comentários obscenos acerca dos re-
tratos das mulheres. Os moradores da aldeia
negociavam essas fotografias, para depois
dependurá-las em suas cabanas e celeiros. Em
algumas habitações era comum ver-se, numa
parede, uma imagem de Nossa Senhora, em
outra a do Cristo, numa terceira um crucifixo, e
na outra, numerosas fotografias de judeus. Os
fazendeiros acostumaram-se a encontrar seus
empregados trocando entre si fotografias
femininas, que examinavam com olhares
excitados, soltando piadas indecentes a seu
respeito. Corria também o boato de que uma das
mais atraentes moças da aldeia apaixonou-se de
forma tão absoluta por um dos belos homens
retratados nas estampas que nunca mais quis
saber do noivo.
Certa feita, um menino, de volta dos campos de
cogumelos, espalhou a notícia de que uma moça
judia fora encontrada próximo ao leito da estrada
de ferro. Estava viva, não apresentando senão
uma entorse no ombro e algumas contusões.
Presumiu-se que houvesse escapulido através de
uma fenda no soalho do vagão, quando o trem
diminuíra a marcha numa curva, escapando
assim a ferimentos mais sérios.
Todos saíram de casa para conhecer o
fenômeno. A jovem avançava aos tropeções,
amparada por alguns dos homens. Suas feições
finas apresentavam uma palidez intensa. Tinha
sobrancelhas espessas e olhos de um negro
profundo, a cabeleira longa e sedosa, atada por
uma fita, descia-lhe até o meio das costas. O
vestido rasgado permitia distinguir as manchas
arroxeadas que se espalhavam pelo corpo
inteiro. Com o braço são procurava amparar o
que fora ferido.
Conduziram-na à presença do mais antigo dos
habitantes da aldeia. Logo se formou uma
multidão de curiosos, que a examinavam
meticulosamente. A moça parecia nada
compreender do que se passava. Sempre que
algum dos homens se aproximava, unia as mãos
como se rezasse e murmurava frases em
linguagem ininteligível. Aterrorizada, mirava em
torno de si com as pupilas, de um negro de tinta,
dilatadas ao máximo, no centro dos globos
oculares de um branco azulado. O chefe dos
aldeães conferenciou com alguns dos mais
idosos do lugar, e também com Arco-íris, o
homem que encontrara a judia. Ficou assentado
que, de acordo com os regulamentos oficiais, ela
seria recambiada para o posto alemão no dia
imediato.
Os camponeses dispersaram-se lentamente,
rumo às suas casas. Entretanto, alguns dos mais
afoitos permaneceram no local, observando a
rapariga e soltando piadas. Velhas meio cegas
cuspiram três vezes em sua direção e,
resmungando baixo, preveniram os netos contra
ela.
Em seguida Arco-lris tomou a rapariga pelo braço
e conduziu-a em direção à sua cabana. Embora
tivesse fama de ser um pouco estranho, era
geralmente benquisto na aldeia. Interessava-se
especialmente por sinais celestiais,
especialmente arco-íris, de onde lhe derivava o
apelido. À noite, quando se reunia aos vizinhos,
era comum discorrer horas a fio sobre arco-íris.
Ouvindo-o falar de um canto escuro, fiquei
sabendo que o arco-íris é uma longa haste
arqueada, oca como uma palha; uma de suas
extremidades permanece imersa num rio ou num
lago, de onde extrai a água, que é então
distribuída equitativamente pelos arredores.
Juntamente com a água são aspirados peixes e
outros pequenos animais, daí serem encontradas
as mesmas variedades de peixes em lagos,
poços e rios separados por distâncias
consideráveis.
A cabana de Arco-íris era parede-meia com a de
meu amo. Seu celeiro confinava com aquele em
que eu dormia. Morrera-lhe a mulher há algum
tempo atrás, mas Arco-íris, jovem ainda, não se
decidia a tomar outra companheira. Os vizinhos
costumavam caçoar com ele que aqueles que se
habituam a contemplar arco-íris por muito tempo
tornam-se incapazes de enxergar um poste
diante de seu nariz. Uma velha do lugarejo
cozinhava-lhe as refeições e tomava conta de
seus filhos, enquanto Arco-lris trabalhava nos
campos e vez por outra, por divertimento,
embebedava-se.
Ficara decidido que a judia passaria a noite em
casa de Arco-íris. Naquela noite, fui despertado
por ruídos e gritos vindos do celeiro. A princípio,
fiquei assustado. Não tardei porém a descobrir
uma abertura através da qual pude assistir ao
que se passava. No centro da eira varrida de
fresco, a jovem estava deitada sobre alguns
sacos. Próximo, um lampião a óleo ardia sobre
um velho cepo. Arco-íris encontrava-se sentado à
sua cabeceira. Nenhum dos dois se movia. Então
Arco-íris, num gesto brusco, arrancou o vestido
dos ombros da moça. A alça arrebentou. Ela
tentou fugir, mas Arco-íris ajoelhou-se sobre a
sua longa cabeleira, segurando-lhe o rosto entre
os joelhos.
Inclinou-se um pouco, e rasgou a outra alça. A
moça soltou um grito, mas permaneceu imóvel.
Arco-íris rastejou para trás até chegar-lhe aos
pés, que prendeu entre as pernas, e com um
puxão violento arrancou-lhe o vestido. Ela
procurou levantar-se e segurar a fazenda com a
mão livre, mas ele a empurrou de volta. Ela
estava agora despida. A luz vacilante da
lamparina desenhava sombras em seus seios
arfantes.
Arco-íris sentou-se ao lado da moça e pôs-se a
acariciar-lhe o corpo com suas mãos enormes. O
volume de seu tronco escondia-lhe as feições de
minhas vistas, mas eu podia distinguir os seus
soluços mansos, ocasionalmente entrecortados
por um grito. Em movimentos lentos, Arco-íris
tirou as pesadas botas e as calças, conservando
apenas uma camisa de tecido grosseiro.
Montou sobre a moça prostrada e delicadamente
acariciou-lhe os ombros, os seios, o estômago.
Ela gemia e lamentava-se, murmurando palavras
estranhas em sua língua natal, sempre que a
pressão se fazia mais brutal. Arco-íris respirava
pesadamente. Apoiado nos cotovelos, deslizou
um pouco mais para baixo, e com um repelão
brutal afastou-lhe as pernas e mergulhou nela
com um baque surdo.
A moça arqueou o corpo, soltou um grito agudo,
e pôs-se a abrir e fechar os dedos como se
tentasse agarrar alguma coisa. Então, ocorreu
algo estranho. Arco-íris estava deitado sobre ela,
as pernas entrelaçadas, porém esforçando-se por
soltar-se. De cada vez que se levantava, ela
gritava de dor; também ele resmungava e
praguejava. Ainda uma vez procurou libertar-se
daquela forquilha, mas parecia incapaz de fazê-
lo. Uma força estranha retinha-o dentro do corpo
da mulher, como se fora uma lebre ou uma
raposa agarrada numa armadilha.
Deixou-se ficar por alguns instantes deitado
sobre ela, tremendo violentamente. Passado
algum tempo recomeçou seus esforços, mas de
cada vez a rapariga contorcia-se de dor. Também
ele parecia sofrer. Enxugou a transpiração do
rosto, soltou uma praga e cuspiu para o lado. Na
próxima tentativa, a moça tentou ajudá-lo.
Abrindo mais as pernas, empinou os quadris e
com a mão válida empurrou o estômago do
homem. Tudo em vão. Um laço invisível
mantinha-os ligados um ao outro.
Eu testemunhara freqüentemente a mesma cena
entre cães. Às vezes, depois de copularem
violentamente, ansiavam por libertar-se um do
outro, mas dir-se-ia serem incapazes de fazê-lo.
Debatiam-se intensamente contra a dolorosa
prisão, afastando-se mais e mais um do outro,
até ficarem unidos apenas pelos traseiros. Dir-se-
ia um corpo com duas cabeças, e duas caudas
crescendo no mesmo lugar. De maiores amigos
do homem transformavam-se numa aberração
da natureza. Uivavam e ganiam sem cessar, o
corpo agitado por movimentos convulsivos. Seus
olhos injetados de sangue, implorando auxílio,
escancaravam-se com indescritível angústia em
direção àqueles que os perseguiam com
ancinhos e varas. Rolando pelo pó e sangrando
sob o efeito dos golpes, redobravam os esforços
para separar-se um do outro. Os assistentes
gargalhavam, chutavam os cães, atiravam-lhes
em cima pedras e gatos uivantes. Os animais
tentavam escapar, mas rumavam em direção
oposta. Terminavam por correr em círculos. En-
raivecidos, tentavam morder um ao outro.
Finalmente, desistiam e esperavam por auxílio
humano.
Alguns rapazes da aldeia costumavam atirá-los,
assim enlaçados, dentro de algum rio ou lagoa.
Os animais tentavam desesperadamente manter-
se à tona, mas seus esforços apenas tendiam a
aproximá-los mais um do outro. Estavam
completamente indefesos, e apenas suas
cabeças emergiam de tempos em tempos,
espumando pela boca, fracos demais para
conseguirem latir. À medida que a correnteza os
carregava para mais longe, uma multidão
deleitada acompanhava-os ao longo da margem,
lançando gritos excitados, atirando-lhes pedras
de cada vez que as cabeças emergiam da água.
Em outras ocasiões, pessoas que não desejavam
perder seus cães dessa maneira separavam-nos
com brutalidade, o que implicava, para o macho,
mutilação, ou morte lenta por hemorragia.
Algumas vezes os animais conseguiam separar-
se após vaguearem nessas condições por dias a
fio, caindo dentro de valas, deixando-se
aprisionar em cercas e moitas.
Arco-lris redobrou seus esforços. Em voz alta,
invocou a proteção da Virgem Maria. Bufava e
arquejava. Fez outra tentativa violenta,
procurando arrancar-se de dentro da moça. Esta
lançou um grito agudo e pôs-se a golpear com os
punhos o rosto do homem perplexo, a arranhá-lo
com as unhas, a morder-lhe as mãos. Arco-íris
lambeu o sangue que lhe escorria do lábio e,
soerguendo-se num braço, desferiu com o outro
um tremendo tapa na jovem. O pânico ter-lhe-ia
provavelmente obscurecido os sentidos,
porquanto arriou novamente o corpo sobre o
dela, mordendo-lhe os seios, os braços e o
pescoço. Martelou-lhe o corpo com os punhos,
depois agarrou-lhe a carne como se pretendesse
arrancá-la. A moça soltou um grito agudo e
uniforme que só cessou quando sua garganta
pareceu ter secado — para em seguida
recomeçar no mesmo diapasão. Arco-íris
continuou a esmurrá-la até sentir-se exausto.
Os corpos colados um ao outro deixaram-se ficar
estirados, imóveis e silenciosos. A única coisa
que se movia no aposento era a chama vacilante
da lamparina.
Arco-íris começou a gritar por socorro. Seus
gritos atraíram a princípio um bando de cães que
ladravam furiosamente, depois alguns vizinhos
alarmados, armados de machados e facões.
Abriram a porta do celeiro e detiveram-se,
estupefatos, contemplando o casal estirado no
solo. Em voz enrouquecida, Arco-íris explicou
rapidamente a situação. Fecharam então a porta
e, não permitindo a entrada de mais ninguém,
saíram em busca de uma parteira-feiticeira que
sabia como lidar com casos desse tipo.
A velha chegou, ajoelhou-se ao lado do casal
entrelaçado, e com a ajuda de outras pessoas fez
algo que não me foi possível distinguir. Ouvi
apenas o último e lancinante grito da moça.
Depois disso, reinou silêncio e o celeiro de Arco-
íris submergiu numa total escuridão. Ao raiar da
aurora corri até a abertura na parede. Os raios
de sol começavam a atravessar as frestas
existentes entre as tábuas da parede, originando
fachos luminosos de poeira dourada. Na eira,
próximo à parede, jazia uma forma humana,
recoberta dos pés à cabeça por uma manta de
cavalo.
Enquanto a aldeia ainda dormia, competia-me
levar o gado para o pasto. De volta, à tardinha,
ouvi os camponeses discutindo os
acontecimentos da noite anterior.
Arco-íris transportara o corpo de volta à via
férrea, onde o vagão de patrulha deveria passar
pela manhã.
Por semanas a fio a aldeia contou com um tópico
animado de conversa. O próprio Arco-íris, depois
de ter ingerido algumas doses, contava em
detalhes como a judia o atraíra para dentro dela
e não o deixara sair.
Passei a ser perseguido por estranhos pesadelos.
O celeiro ressoava de gemidos e gritos abafados,
e uma mão gelada parecia acariciar-me o rosto,
enquanto madeixas negras e lisas de cabelo
recendendo a gasolina lambiam-me as faces.
Pela madrugada, quando conduzia o gado até as
pastagens, fitava temerosamente a neblina que
pairava sobre os campos. De quando em vez, o
vento esgarçava um tênue farrapo de fuligem,
que avançava nitidamente em minha direção.
Nesses momentos, estremecia, sentindo um suor
gelado escorrer-me pelas costas. A tira de
fuligem descrevia um círculo sobre minha
cabeça, encarando-me com fixidez, e então
desaparecia nas alturas do firmamento,
estendendo-se aos pés do próprio Deus.

X
Quando as patrulhas alemãs começaram a
vasculhar as florestas circunvizinhas, instando
sobre as entregas compulsórias, compreendi que
minha estada na aldeia estava chegando ao fim.
Certa noite, meu amo ordenou-me que fugisse
imediatamente para a floresta. Fora informado
de uma próxima batida. Os alemães haviam
tomado conhecimento da existência de um judeu
escondido numa das aldeias. Diziam que vivera
ali desde o início da guerra. A aldeia em peso
conhecia-o: ao que consta, seu avô era
proprietário de uma grande extensão de terras e
bastante querido pela comunidade. Conforme
costumavam dizer, apesar de judeu era um
sujeito bastante decente. Esperei unia hora
tardia para escapulir. A princípio a noite estivera
encoberta, porém as nuvens não tardaram a
separar-se, revelando uma imensidão de
estrelas, entre as quais pontificava uma lua cheia
luzidia como metal faiscante. Ocultei-me numa
moita que a lua tingia de prata.
Ao despontar a aurora transferi-me para os
trigais ondulantes, sempre procurando manter-
me afastado da aldeia. Embora me doessem os
pés, machucados pelas hastes novas e ásperas,
tentei alcançar o centro do campo. Tinha que
avançar com cuidado: não queria deixar atrás de
mim demasiados talos pisados que pudessem
atestar minha presença. Finalmente, achei que já
me embrenhara o suficiente entre as espigas.
Tremendo com o frio da madrugada, enrolei-me
como uma bola e procurei adormecer.
Despertei com o som de vozes ásperas chegando
de todas as direções. Os alemães haviam
cercado o campo. Colei-me ao solo, mas, à
medida que os soldados avançavam pela
plantação, o ruído das hastes pisadas chegava-
me mais nitidamente aos ouvidos.
Quase tropeçaram em mim. Tomados de
surpresa, apontaram-me o cano de seus fuzis;
quando me pus de pé, engatilharam-nos. Eram
dois, jovens ainda; envergavam uniformes
verdes, novos em folha. O mais alto agarrou-me
pela orelha, e ambos puseram-se a rir, trocando
observações a meu respeito. Compreendi que
indagavam se eu era cigano ou judeu. Sacudi a
cabeça em negativa. Aquilo pareceu diverti-los
ainda mais; continuaram rindo e fazendo
comentários jocosos. Pusemo-nos a caminho da
aldeia, eu adiante e eles acompanhando-me de
perto, pilheriando sem cessar.
Entramos na rua principal. Moradores
aterrorizados espiavam pelas frestas das janelas.
Ao me reconhecerem, apressavam-se em fechá-
las.
Na praça central da aldeia encontravam-se
estacionados dois enormes caminhões. À volta
deles, soldados de uniformes desabotoados
agachavam-se, bebendo de seus cantis. A todo
instante outros chegavam, vindos do bosque, e,
depois de ensarilharem as armas, agachavam-se
ao lado dos companheiros.
Alguns deles acercaram-se de mim. Apontaram-
me com o dedo, alguns rindo, outros
carrancudos. Um deles chegou até bem perto e
endereçou-me um sorriso cordial, afetuoso.
Preparava-me para sorrir-lhe de volta quando ele
inesperadamente desferiu-me tremendo murro
no estômago. Perdi o fôlego e caí de costas,
gemendo e ofegando. Os soldados estouraram
na gargalhada.
De uma cabana próxima surgiu um oficial, que,
ao avistar-me, aproximou-se. Os soldados
puseram-se de pé num salto e perfilaram-se.
Também eu me levantei, permanecendo de pé,
sozinho no centro do círculo de homens. O oficial
examinou-me friamente e emitiu uma ordem.
Dois soldados agarraram-me pelos braços e,
arrastando-me até a cabana, abriram a porta e
empurraram-me para dentro.
No centro do aposento, imerso em semi-
obscuridade, havia um homem prostrado por
terra. Era de baixa estatura, moreno e muito
magro. Os cabelos emaranhados tombavam-lhe
sobre a testa; um golpe de baioneta rasgara-lhe
o rosto de lado a lado. Tinha as mãos atadas
atrás das costas, e a manga semi-arrancada do
paleto deixava à mostra um fundo ferimento.
Agachei-me a um canto. O homem fitava-me
com olhos negros e brilhantes, que pareciam
querer transpassar-me, por baixo das espessas
sobrancelhas. Aquele olhar aterrorizava-me.
Procurei não fitá-lo.
Lá fora, os motores arrancavam; botas rangiam,
cantis e armas entrechocavam-se. Ordens de
comando elevaram-se no ar e não tardou que os
caminhões partissem, em meio a um ruído
infernal.
A porta abriu-se e um grupo de camponeses e
soldados penetrou na cabana. Arrastaram o
ferido para fora pelas mãos e arriaram-no no
assento de uma carroça. Suas articulações
quebradas pendiam frouxamente como as de um
fantoche balouçante. Estávamos sentados de
costas um para o outro; eu, voltado para as
costas dos condutores; ele, de frente para a
estrada, que ia ficando para trás. Ao lado dos
dois camponeses que guiavam a carroça
sentava-se um soldado. Da conversa dos
camponeses deduzi que éramos levados para o
posto policial de uma cidade dos arredores.
Por horas a fio trafegamos por uma estrada
aparentemente muito usada, que trazia marcas
recentes da passagem de caminhões. Mais tarde
deixamos a estrada e embrenhamo-nos na
floresta, assustando pássaros e lebres. O ferido
ia apáticamente vergado. Eu não podia saber ao
certo se estava vivo; sentia-lhe apenas o corpo
inerte, preso pelas cordas aos varais da carroça e
a mim.
Por duas vezes paramos. Os dois camponeses
ofereceram parte da refeição que levavam ao
alemão, que por sua vez presenteou a cada um
com um cigarro e um bombom amarelado. Os
camponeses agradeceram servilmente.
Sorveram largos tragos das garrafas que traziam
sob o assento e depois urinaram dentro das
moitas.
A nós, ignoraram-nos por completo. Eu me sentia
faminto e debilitado. Da floresta emanava uma
brisa suave, recendendo a resina. O ferido
gemeu. Os cavalos balançavam a cabeça,
impacientes, afugentando as moscas com o
auxílio das longas caudas.
Prosseguimos viagem. O alemão respirava
pesadamente, como se estivesse adormecido.
Sua boca escancarada fechava-se como que
automaticamente sempre que uma mosca
procurava enveredar por ela.
Antes do pôr do sol chegávamos a uma cidade
pequena, porém intensamente povoada. Aqui e
ali as casas apresentavam paredes de tijolo e
chaminés. As cercas dos jardins eram pintadas
de branco ou de azul. Nos canos das calhas,
aconchegavam-se pombos sonolentos.
Ao transpormos as primeiras casas, algumas
crianças que brincavam na rua deram pela nossa
presença. Rodearam a nossa carroça, que
avançava lentamente, e puseram-se a
acompanhá-la, mirando-nos com curiosidade. O
soldado esfregou os olhos, estirou os braços,
puxou as calças para cima e, saltando da
carroça, pôs-se a caminhar ao lado dela,
indiferente ao que o rodeava.
O bando de crianças engrossava a cada instante;
de cada casa surgiam novos elementos. De
repente, um dos rapazes mais velhos fustigou o
prisioneiro com uma longa vara de vidoeiro. O
ferido estremeceu e encolheu-se instintivamente.
Aquilo excitou os meninos, que começaram a nos
alvejar com um tiroteio de pedras e detritos de
toda espécie. O ferido pareceu desfalecer; senti-
lhe os ombros, grudados aos meus, ensopados
de suor. Algumas pedras acertaram-me também;
mas eu representava um alvo mais difícil,
colocado como estava entre o ferido e os condu-
tores. Estávamos constituindo um divertimento
excepcional para os meninos. Alvejavam-nos
com torrões ressecados de excremento de vaca,
tomates podres, pequenos cadáveres infectos de
pássaros. Um dos jovens brutamontes
concentrou-se em minha pessoa. Caminhava
paralelamente à carroça, e com o auxílio de uma
vara atingia metodicamente determinadas partes
de meu corpo. Em vão me esforcei por reunir
saliva suficiente para cuspir-lhe no rosto de
expressão escarninha.
Aos poucos, adultos agregavam-se à multidão
que rodeava a carroça. Aos gritos de
"Espanquem os judeus, espanquem os
bastardos", incitavam os meninos a prosse-
guirem em seus ataques. Os condutores, pouco
dispostos a expor-se a golpes acidentais, haviam
saltado de seu assento e agora caminhavam lado
a lado com os cavalos. O ferido e eu
representávamos agora alvos excelentes. Uma
nova saraivada de pedras atingiu-nos. Eu tinha
um talho no rosto, um dente quebrado que me
pendia da boca e o lábio inferior partido. Cuspi
sangue no rosto dos que me estavam mais
próximos, mas eles saltavam agilmente para
trás, preparando novos golpes.
Alguns mais perversos arrancavam pela raiz
feixes inteiros de hera e de samambaias que
brotavam ao longo do caminho e com eles
açoitavam ao ferido e a mim. O corpo todo doía-
me, e, como as pedras me acertassem agora
com maior precisão, mergulhei o queixo no peito,
receoso de que alguma delas viesse a ferir-me os
olhos.
Inesperadamente, de uma casa de aspecto
pouco atraente frente à qual passávamos, surgiu
a figura de um padre robusto, de baixa estatura.
Vestia uma batina surrada e desbotada. As faces
coradas de excitação, meteu-se entre a turba
brandindo uma bengala, com a qual se pôs a
golpeá-los nas mãos, no rosto e na cabeça.
Ofegante, transpirando, trêmulo de exaustão,
logrou finalmente dispersar a multidão.
Caminhava agora ao lado da carroça,
recuperando lentamente o fôlego. Com uma das
mãos enxugava a fronte, enquanto a outra
apertava a minha. O ferido indubitavelmente
desmaiara, porquanto eu sentia que seus ombros
esfriavam gradativamente, ao mesmo tempo que
seu corpo balouçava como o de um fantoche
pendente de um cordel.
A carroça penetrou no pátio do prédio ocupado
pela polícia militar. O padre teve que permanecer
do lado de fora. Dois soldados desataram a corda
e, tendo retirado o ferido da carroça, recostaram-
no contra a parede. Eu mantinha-me de pé a seu
lado.
Pouco depois, um oficial SS de porte gigantesco,
envergando um uniforme cor de fuligem, dava
entrada no pátio. Jamais em minha vida eu
avistara um uniforme tão impressionante. No
topo do capacete, que se erguia orgulhosamente,
reluzia uma caveira sob a qual apareciam dois
ossos entrelaçados, enquanto símbolos
semelhantes a relâmpagos enfeitavam o
colarinho. Na manga, destacava-se uma
braçadeira vermelha, ostentando o atrevido
emblema da suástica.
Após ter ouvido o relatório apresentado por um
dos soldados, o oficial encaminhou-se para o
prisioneiro, os tacões das botas batendo
compassadamente contra o chão de concreto do
pátio. Com um movimento destro da ponta de
sua reluzente bota de montaria, fez voltar-se o
rosto do homem para a luz.
O seu aspecto era hediondo — um rosto
mutilado, com o nariz calcado para dentro e a
boca escondida por pele dilacerada. Fragmentos
de hera, torrões de esterco animal e de terra
grudavam-se às suas pálpebras inflamadas. O
oficial agachou-se junto a essa face amorfa que
se refletia na superfície polida de suas botas de
montaria. Pareceu segredar ou perguntar algo ao
prisioneiro.
A pasta sangrenta que substituía o que fora
outrora um rosto moveu-se lentamente, como se
pesasse mil quilos. O corpo magro, mutilado, fez
um movimento para soer-guer-se, apoiado sobre
as mãos atadas. O oficial afastou-se para o lado.
Seu rosto aparecia agora banhado pela luz solar,
e apresentava uma beleza pura e fascinante,
com sua pele da textura da cera e os cabelos
louros como os de um querubim. Veio-me à
lembrança uma imagem que avistara certa vez,
pintada na parede de uma igreja, banhada pela
música do órgão, e apenas tocada de leve pela
luz coada dos vitrais.
O homem ferido continuava a soerguer-se com
esforço, até chegar quase a sentar-se. O silêncio
pesava sobre o pátio como um pesado manto. O
resto da soldadesca permanecia imóvel,
fascinado pelo espetáculo. O ferido respirava
com dificuldade. Abrindo a boca com esforço,
balançou o corpo como um espantalho sob o
efeito de uma rajada de vento. Percebendo a
proximidade do oficial, inclinou-se em sua
direção.
O militar, enojado, dispunha-se a erguer-se da
posição agachada em que se encontrava quando
inesperadamente o outro tornou a abrir a boca,
grunhiu algo, e então, em tom de voz
extremamente alto, pronunciou uma palavra
curta que soou aos ouvidos de todos como
"porco", e tombou novamente para trás, batendo
a cabeça contra o cimento.
Ouvindo aquilo, os soldados estremeceram e
entreolharam-se, estupefatos. O oficial ergueu-se
e lançou uma ordem em tom áspero. Os soldados
bateram os calcanhares, empunharam os fuzis e,
aproximando-se do vulto caído, desfecharam-lhe
várias descargas seguidas. O corpo
esfrangalhado estremeceu e imobilizou-se. Os
soldados remuniciaram seus fuzis e
conservaram-se alerta.
Com ar despreocupado, o oficial aproximou-se de
mim, brandindo sua bengala de passeio contra o
vinco recente das calças de montaria. Desde o
momento em que o avistei não fui mais capaz de
despregar os olhos de cima dele. De sua pessoa
parecia emanar algo de totalmente sobre-
humano. Contra o cenário de cores esmaecidas,
sua estampa projetava-se com nitidez absoluta.
Num universo em que evoluíam homens com
fisionomias devastadas, com olhos pisados,
membros sangrentos, feridos e desfigurados,
entre os corpos humanos fétidos e estraçalhados,
dos quais eu já vira tantos, ele surgia como um
exemplo de perfeição impoluta: provavam-no a
maciez e a delicadeza da pele de seu rosto, o
cabelo de um louro dourado que aparecia sob o
capacete pontiagudo, os olhos de uma limpidez
metálica. Cada movimento de seu corpo parecia
impulsionado por uma tremenda força interior. O
som granítico de seu idioma natal parecia
idealmente destinado a comandar a morte de
criaturas inferiores, desamparadas. Senti-me
invadido por um sentimento de inveja que antes
jamais experimentara em minha vida, e
contemplei com admiração a caveira com os
ossos rebrilhantes que lhe ornamentavam o alto
capacete. Acudiu-me subitamente como teria
sido melhor possuir um daqueles crânios
lustrosos e calvos em lugar daquela fisionomia
cigana que era tão temida e antipatizada pelas
pessoas de bem.
O oficial perscrutava-me com atenção
concentrada. Eu me sentia como se fosse uma
lagarta esmigalhada esvaindo-se em poeira, um
ser vivo que, embora inofensivo, não podia
despertar senão aversão e repugnância. Colo-
cado em presença de uma criatura tão
esplêndida, revestida de todos os símbolos do
poder e da majestade, senti-me sinceramente
envergonhado de minha aparência. Não objetava
a que ele me eliminasse. Cravei os olhos na
fivela enfeitada do cinto do oficial, que ficava
exatamente ao nível de meus olhos, e aguardei o
seu sábio veredicto.
O pátio estava novamente silencioso. Os
soldados continuavam obedientemente em
forma, esperando pelos próximos
acontecimentos. Eu sabia que, de alguma ma-
neira, minha sorte estava sendo decidida, mas
aquilo era-me totalmente indiferente. Depositava
uma confiança infinita na decisão do indivíduo à
minha frente. Sabia que ele possuía poderes que
eram inatingíveis ao comum dos mortais.
Outra breve ordem de comando elevou-se no ar.
O oficial afastou-se. Um soldado empurrou-me
com brutalidade em direção ao portão.
Lamentando ver encerrado aquele magnífico
espetáculo, transpus o portão a passos lentos e
caí literalmente nos braços robustos do padre,
que aguardava do lado de fora. Parecia ainda
mais esmolambado do que antes. Sua batina era
um trapo infeto em comparação com o uniforme
adornado com a caveira, os ossos cruzados e os
relâmpagos faiscantes.

XI
O padre levou-me consigo numa carroça
alugada. Disse que na aldeia vizinha encontraria
alguém para cuidar de mim até que terminasse a
guerra. Antes de atingirmos o aglomerado de
casas, paramos defronte à igreja local. O padre
deixou-me na carroça e dirigiu-se sozinho à
residência do vigário. Em pouco percebi que
ambos discutiam acaloradamente, com farta
gesticulação. Finalmente, ambos se
encaminharam para o meu lado. Saltei da
carroça e cumprimentei polidamente o vigário,
beijando-lhe a manga da batina. Ele me encarou
e regressou ao vicariato sem pronunciar uma
palavra.
O padre seguiu caminho, e finalmente paramos
no extremo oposto da aldeia, numa granja algo
isolada. Ele entrou e se demorou lá por tanto
tempo que comecei a me perguntar se lhe teria
acontecido algo. Um cão de tamanho
descomunal, com ar de poucos amigos, montava
guarda ao portão.
Finalmente, o padre surgiu, acompanhado por
um camponês de baixa estatura e compleição
robusta. O cão encolheu a cauda sob os fartos
traseiros e parou de rosnar. Depois de relancear
os olhos sobre mim, o camponês afastou-se para
o lado com o padre. Eu não conseguia ouvir
senão trechos de sua conversa. O homem estava
visivelmente perturbado. Apontando para mim,
declarou em voz alta que bastava um olhar para
discernir que eu era um bastardo cigano não-
batizado. O padre tentou protestar calmamente,
mas o homem não queria dar-lhe ouvidos.
Argumentava que o fato de abrigar-me poderia
expô-lo a enorme perigo, uma vez que os
alemães visitavam freqüentemente a aldeia, e no
caso de me encontrarem seria tarde demais para
qualquer intervenção.
O padre perdia aos poucos a paciência. De
repente, tomou o homem pelo braço e
murmurou-lhe algo ao ouvido. O camponês
pareceu render-se aos seus argumentos e,
praguejando, ordenou-me que o acompanhasse
ao interior da cabana.
O padre aproximou-se e fitou-me nos olhos.
Encaramo-nos um ao outro em silêncio. Eu não
sabia exatamente o que fazer. Procurando beijar-
lhe a mão, beijei a minha própria manga e senti-
me terrivelmente confuso. Ele se riu, fez o sinal-
da-cruz sobre minha cabeça e partiu.
Assim que se certificou de que o padre se
afastara, o homem agarrou-me pela orelha,
quase levantando-me do solo, e empurrou-me
para o interior da cabana. Ao ouvir-me gritar,
pressionou-me com tanta força as costelas que
quase perdi o fôlego.
Éramos três moradores na casa. O fazendeiro,
Garbos, de feições ásperas, como que talhadas
em pedra, e boca perpetuamente entreaberta; o
cão, Judas, de olhar astuto e vigilante; e eu. Vez
por outra, no correr de uma discussão, os
vizinhos referiam-se a uma órfã judia por nome
Lilka, que Garbos aceitara como pensionista dos
pais em fuga, tempos atrás. Toda vez que
alguma das vacas ou porcos de Garbos
danificava as propriedades vizinhas, os aldeães
recordavam-lhe maldosamente a jovem.
Contavam que ele costumava espancá-la
diariamente, violentá-la e forçá-la a cometer
tamanhas depravações que a moça acabava por
desmaiar. Enquanto isso, com o dinheiro que
recebia para o seu sustento, Garbos remodelava
a fazenda. Garbos ouvia essas acusações sem
esconder a sua ira. Nessas ocasiões, soltava
Judas e açulava-o contra os difamadores. Cada
vez que isso acontecia, os vizinhos trancavam-se
em casa e espreitavam a fera enfurecida através
das frestas das janelas.
Ninguém jamais visitava Garbos. Passava os dias
sozinho em sua cabana. Minhas funções
consistiam em tomar conta de dois porcos, uma
vaca, uma dúzia de galinhas e dois perus.
Sem proferir palavra, Garbos costumava
espancar-me imprevistamente, sem qualquer
motivo. Surgia inesperadamente por trás de mim
e fustigava-me as pernas com um chicote, ou
então torcia-me as orelhas, puxava-me os cabe-
los, ou ainda fazia-me cócegas nos sovacos ou
nas solas dos pés até me ver tremendo sem
poder controlar-me. Estava certo de que eu era
um cigano e mandava-me contar histórias de
minha raça. O máximo que eu podia fazer, no
entanto, era recitar os poemas e as histórias que
aprendera em casa, antes da guerra. Ouvindo-os,
Garbos mostrava-se freqüentemente raivoso, por
motivos que nunca descobri. Costumava então
bater-me novamente ou ameaçava soltar Judas
no meu encalço.
Judas representava uma ameaça constante. Com
uma dentada de suas possantes mandíbulas
podia matar um homem. Os vizinhos criticavam
Garbos por certa vez ter soltado a fera sobre um
pobre-diabo que roubava maçãs. O infeliz tivera
a garganta dilacerada e morrera instanta-
neamente.
Garbos constantemente incitava Judas contra
mim. Aos poucos, o animal deve ter chegado à
conclusão de que eu era o seu pior inimigo. A
simples visão de minha pessoa era suficiente
para fazê-lo eriçar-se como um porco-espinho.
Seus olhos tornavam-se injetados, o focinho e a
boca tremiam, e escorria espuma por dentre os
seus colmilhos ameaçadores. Precipitava-se
sobre mim com tamanho ímpeto que eu receava
vê-lo romper a coleira de ferro que o mantinha
seguro, embora ao mesmo tempo ansiasse por
que ela o enforcasse. Constatando a fúria do
animal e o meu próprio temor, Garbos
costumava às vezes soltar Judas e, mantendo-o
apenas pela coleira, fazê-lo imprensar-me contra
a parede. A bocarra rosnante, espumante, estava
a apenas algumas polegadas de minha garganta,
e o corpo possante do animal estremecia de fúria
selvagem. Por pouco se engasgava, espumando
e cuspindo, enquanto seu dono incitava-o com
ordens ásperas e incitações brutais. A tal ponto
se aproximava que seu hálito morno e úmido
bafejava-me a face.
Em momentos como esse, sentia a vida
praticamente exaurir-se de mim, ao passo que o
sangue corria-me pelas veias com um pulsar
lento e preguiçoso, como o pesado mel da
primavera escoando-se através do estreito
gargalo de uma garrafa. Tamanho era o meu
terror que quase me transportava ao outro
mundo. Fitava alternadamente os olhos
enraivecidos do animal e a mão cabeluda e
sardenta do dono, que segurava a coleira. A
qualquer momento os dentes do animal
poderiam cravar-se em minha carne. Não tendo
especial empenho em sofrer, eu prazerosamente
estenderia o pescoço para a primeira e decisiva
mordida. Só então pude avaliar a compaixão da
raposa ao matar o ganso decepando-lhe o
pescoço com uma única dentada.
Entretanto, Garbos não soltava o cão. Ao invés,
permanecia sentado à minha frente, bebendo
vodca de fabricação caseira e admirando-se em
altos brados de que às criaturas como eu fosse
permitido estar vivas, enquanto seus filhos
haviam morrido em tão tenra idade. Costumava
propor-me essa interrogação com freqüência, e,
como eu não soubesse o que responder, agredia-
me.
Eu não conseguia compreender o que ele
pretendia de mim, ou a razão por que me
agredia. Meu comportamento era o mais discreto
possível. Obedecia cegamente a todas as suas
ordens, mas nem assim ele deixava de agredir-
me. À noite, costumava entrar furtivamente na
cozinha, onde eu dormia, e despertava-me
soltando um grito agudo em meu ouvido. Ao ver-
me despertar sobressaltado, punha-se a rir,
enquanto Judas, acorrentado do lado de fora,
movimentava-se inquieto, pronto a avançar. De
outras vezes, enquanto eu dormia, Garbos
penetrava furtivamente na cozinha, e, tendo
atado com o auxílio de trapos o focinho do
animal, atiçava-o sobre mim, na escuridão. O cão
revolvia-se sobre mim, enquanto eu,
aterrorizado, sem ter noção de onde me
encontrava ou do que estava acontecendo,
lutava contra a imensa fera cabeluda que me
arranhava com as patas.
Um belo dia, o vigário apresentou-se em sua
carroça para visitar Garbos. Depois de ter-nos
abençoado a ambos, constatou manchas negras
e azuladas em meu pescoço e em meus ombros
e quis saber quem me espancava e por quê.
Garbos reconheceu que fora obrigado a punir-me
por negligência no trabalho. O vigário censurou-o
moderadamente, recomendando-lhe que no dia
seguinte me levasse à igreja.
Assim que o padre se retirou, Garbos levou-me
para dentro, despiu-me e açoitou-me com uma
vara de salgueiro, evitando atingir as partes
visíveis, como o rosto, braços e pernas. Como de
costume, proibiu-me de chorar; no entanto,
quando atingia um ponto mais sensível, eu não
suportava a dor e deixava escapar um soluço. De
sua fronte porejavam gotas de suor e uma veia
começou a inchar em seu pescoço. Meteu-me
pela boca adentro um chumaço de pano e,
lambendo de tempos em tempos os lábios res-
secados, continuou a flagelar-me.
Na manhã seguinte, bem cedo, pus-me a
caminho da igreja. Sentia a camisa e a calça
coladas às feridas sangrentas que trazia nas
costas e nas nádegas. Entretanto, Garbos
prevenira-me de que, se dissesse uma palavra
sobre o espancamento, lançaria Judas sobre mim
à noite. Mordi os lábios, jurando que não deixaria
escapar uma palavra e fazendo votos para que o
vigário nada percebesse.
À luz incipiente da aurora, uma multidão de
mulheres idosas esperava diante da igreja.
Apresentavam os pés e o corpo envoltos em toda
sorte de andrajos, e murmuravam preces
ininteligíveis, enquanto seus dedos desfiavam as
contas do rosário. Ao verem surgir o padre
punham-se de pé, vacilantes, balançando-se em
suas bengalas nodosas, e aglomeravam-se para
saudá-lo, disputando a prioridade em beijar-lhe a
manga da batina sebosa. Afastei-me para um
lado, procurando manter-me despercebido. Mas
algumas delas, de visão mais acurada, fitaram-
me com desdém, chamando-me de vampiro ou
de enjeitado cigano, e cuspiram três vezes em
minha direção.
O ambiente da igreja tinha o dom de
transformar-me. E, no entanto, tratava-se de
mais uma casa de Deus espalhada pelo mundo. É
fato que ele não vivia em nenhuma delas, mas
por algum motivo presumia-se que estivesse
presente em todas elas ao mesmo tempo. Deus
era como se fosse hóspede imprevisto para
quem os fazendeiros mais ricos sempre
guardavam um lugar vago em sua mesa.
O padre notou minha presença e afagou-me
carinhosamente a cabeça. Minha confusão
crescia à medida que respondia às suas
perguntas, assegurando-lhe que de agora em
diante seria obediente e que o fazendeiro não
teria mais motivos para espancar-me. O padre
interrogou-me acerca de meus pais, de meu lar
antes da guerra, e da igreja que freqüentávamos,
e que eu não conseguia rememorar
suficientemente. Percebendo minha total
ignorância no que dizia respeito à religião e às
cerimônias rituais, conduziu-me à presença do
organista, a quem solicitou que me explicasse o
significado dos objetos litúrgicos e assim me
adestrasse para servir de sacristão na missa
matinal e no serviço de vésperas.
Passei a freqüentar a igreja duas vezes por
semana. Esperava nos fundos até que as
mulheres idosas se tivessem instalado em seus
genuflexórios, e aí colocava-me num lugar ao
fundo, próximo à fonte de água benta, que tinha
o poder de desorientar-me tremendamente. Era
uma água que se assemelhava a outra qualquer;
não tinha cor, nem cheiro; impressionava muito
menos do que, por exemplo, ossos de cavalo
reduzidos a pó. E, no entanto, os seus poderes
mágicos deviam exceder em muito os de
qualquer erva, fórmula mágica ou feitiçaria de
que eu já ouvira falar em minha vida.
Eu não podia compreender nem o significado da
missa, nem o papel que o padre desempenhava
no altar. Tudo aquilo, para mim, era bruxaria
mais elaborada e caprichada do que a feitiçaria
de Olga, mas tão difícil de compreender como
esta. Fitava com admiração o acabamento de
barro vidrado do altar, o refinamento das toalhas
que dali pendiam, o majestoso tabernáculo onde
se abrigava o espírito divino. Com temor e
respeito tocava os objetos de estranho formato
guardados na sacristia: o cálice em cujo interior
polido, faiscante, o vinho transformava-se em
sangue, a patena dourada sobre a qual o padre
distribuía a santa comunhão, a bolsa quadrada e
chata em que era guardado o corporal. Essa
bolsa abria-se por um único lado e assemelhava-
se a uma harmônica. Em comparação, como
parecia pobre a cabana de Olga, empestada de
odor de sapos e baratas e de feridas humanas.
Quando o padre não se encontrava na igreja e o
organista estava atarefado com o seu
instrumento, no balcão superior, eu me
esgueirava de mansinho até a misteriosa
sacristia para admirar o véu umeral que o padre
enfiava pela cabeça e depois, com um
movimento destro, fazia deslizar pelos braços e
atava em torno do pescoço. Corria os dedos
voluptuosamente ao longo da alva colocada
sobre o véu umeral, alisando-lhe as franjas do
cinto, aspirando a permanente fragrância do
manipulo que o padre usava suspenso do braço
esquerdo, admirando o comprimento
precisamente calculado da estola, os padrões de
infinita beleza das casulas, cujas cores, segundo
me explicou o sacerdote, simbolizavam o
sangue, o fogo, a esperança, a penitência e o
luto.
Enquanto murmurava suas fórmulas cabalísticas,
a fisionomia de Olga costumava assumir
expressões cambiantes, que infundiam
alternadamente medo e respeito. Revirava os
olhos, balançava ritmadamente a cabeça e
executava movimentos complicados com os
braços e as mãos. Em compensação, o padre, ao
rezar a missa, permanecia a mesma pessoa que
era na vida diária. Apenas usava uma vestimenta
diferente e falava numa linguagem estranha.
Sua voz sonora e vibrante parecia apoiar a
abóbada da igreja, despertando as velhas
apáticas que dormitavam nos bancos altos. Estas
juntavam às pressas as mãos pendentes e
soerguiam com dificuldade as pálpebras enruga-
das que lembravam cascas murchas de ervilhas
colhidas fora de estação. As pupilas
inexpressivas de seus olhinhos turvos giravam
temerosamente em volta, sem saber onde se
encontravam ao certo, até que, retomando a
ruminação das palavras de uma prece
interrompida, as velhas voltavam a se deixar
embalar pelos sons como urze definhada
balançada ao vento.
Terminada a missa, as velhas mulheres
apinhavam-se nas naves laterais, empurrando-se
umas às outras para beijar a mão do padre. O
órgão emudecia. À porta, o organista
cumprimentava afetuosamente o padre e ace-
nava-me de longe. Era tempo de regressar ao
trabalho, varrer os cômodos, alimentar o gado,
preparar a refeição.
De cada vez que eu regressava dos pastos, do
galinheiro ou do estábulo, Garbos levava-me
para o interior da casa e inventava, a princípio
incidentemente e aos poucos mais e mais
entusiasticamente, novas maneiras de flagelar-
me com uma haste de salgueiro, ou de castigar-
me com os dedos e os punhos. Meus cortes e
ferimentos, sem possibilidade de cicatrização,
transformavam-se em chagas abertas, de onde
ressudava um pus amarelado. À noite, o pavor
de que Judas surgisse inesperadamente não me
permitia conciliar o sono. Ao menor ruído, a cada
estalido das tábuas do assoalho, ficava à
espreita, sobressaltado. Encolhendo-me contra a
parede, procurava transpassar com os olhos a
impenetrável escuridão em torno. Experimentava
a sensação de que minhas orelhas cresciam
desmesuradamente, tamanho era o esforço que
despendiam para capturar o menor movimento
na casa ou no pátio.
Mesmo depois que conseguia adormecer, meu
sono era perturbado por sonhos de cães uivando
pelos campos em torno. Via-os erguendo o
focinho para a lua, farejando em torno, e
experimentava a sensação de minha morte
iminente. Ouvindo-lhes o chamado, Judas
esgueirava-se até junto do meu catre e, a uma
ordem de Garbos, saltava sobre mim e
machucava-me como podia. O contato de sua
saliva originava-me novas empolas pelo corpo, o
que obrigava o curandeiro local a queimá-las
com um atiçador em brasa.
Nessas ocasiões, eu despertava aos gritos, e
Judas punha-se a latir, investindo contra as
paredes. Garbos, semi-desperto, precipitava-se
para a cozinha, julgando que ladrões houvessem
irrompido na fazenda. Ao verificar que eu gritara
sem motivo, espancava-me e pisoteava-me até
perder o fôlego. Contundido e sangrando, eu me
deixava ficar imobilizado no colchão, receoso de
tornar a adormecer e ter novo pesadelo.
Durante o dia, movimentava-me num estado de
semi-atordoamento, e era espancado por
negligenciar minhas tarefas. Vez por outra,
adormecia em meio aos montes de feno do
celeiro, enquanto Garbos procurava-me por toda
parte. Quando me encontrava desocupado,
recomeçava toda a cena.
Cheguei à conclusão de que os acessos de raiva
aparentemente imotivados de Garbos deveriam
ter alguma causa misteriosa. Vieram-me à
memória as mágicas feitiçarias de Marta e Olga,
destinadas a influir em doenças e outras coisas
não relacionadas com a magia propriamente
dita. Decidi-me a observar todas as
circunstâncias que acompanhavam os acessos
de fúria de Garbos. Por uma ou duas vezes
julguei ter descoberto uma pista. Em duas
ocasiões consecutivas fui espancado
imediatamente após ter coçado a cabeça. Quem
sabe haveria alguma ligação entre os piolhos da
minha cabeça, que indubitavelmente se viam
transtornados em sua rotina normal pelos meus
dedos inquisidores, e o comportamento de
Garbos. Imediatamente deixei de coçar-me,
embora a comichão fosse insuportável. Depois
de conceder dois dias de repouso às pulgas, fui
novamente espancado. Tive que reiniciar as
especulações.
Minha próxima suspeita dizia respeito à porteira
existente na cerca divisória com o campo de
trevos. Por três vezes depois que cruzei esse
portão Garbos chamou-me e esbofeteou-me sem
qualquer motivo. Deduzi que algum espírito
hostil cortava-me o caminho naquele portão e
incitava o fazendeiro contra mim. Deliberei evitar
o mau espírito na porteira, saltando a cerca. Esta
iniciativa de pouco ou nada serviu. Garbos não
podia compreender por que eu me demorava em
galgar uma cerca alta ao invés de tomar o
caminho mais curto, através do portão. Julgou
que eu zombava dele propositadamente e fez-me
passar por um espancamento mais violento
ainda.
Suspeitava que eu tivesse premeditação
criminosa e atormentava-me sem cessar.
Divertia-se em fincar-me um cabo de enxada
entre as costelas. Empurrava-me sobre canteiros
de urtigas e moitas de espinhos, tal qual um gato
enjeitado, e depois ria-se da maneira comoveu
coçava as mordeduras em minha pele. Ameaçou-
me de que, se continuasse a desobedecer,
colocaria um camundongo sobre meu estômago,
tal como faziam os maridos para com as esposas
infiéis. Aquilo aterrorizava-me mais do que qual-
quer outra coisa. Em pensamento, via um
camundongo preso numa redoma de vidro sobre
o meu umbigo, e sentia a indiscutível agonia
produzida pelos esforços do roedor ao escavar
seu caminho pelas minhas entranhas adentro.
Imaginava diversas maneiras de lançar um
feitiço sobre Garbos, porém nenhuma delas era
praticável. Certo dia, quando, tendo atado meu
pé a um banco, ele se divertia em fazer-lhe
cócegas com uma espiga de centeio, veio-me à
mente uma das histórias de Olga. Falara-me
sobre um morcego que trazia no corpo o
emblema da morte, semelhante àquele que eu
vira enfeitando o uniforme do oficial germânico.
Se alguém conseguisse agarrar um desses
morcegos e soprasse por três vezes sobre ele, a
pessoa mais velha da casa não tardaria a morrer.
Era por esse motivo que jovens casais, à espera
da herança de avós ainda vivos, passavam noites
inteiras a caçar esses morcegos.
Depois disso, habituei-me a vaguear pela casa à
noite, depois que Garbos e Judas haviam
adormecido, abrindo as janelas para permitir que
os morcegos entrassem. Chegavam em bandos,
lançando-se numa andança alucinada em torno
da lamparina vacilante, atropelando-se uns aos
outros no ar. Alguns voavam para dentro da
chama e morriam queimados, ou ficavam
grudados à cera derretida da vela, que se
espalhava sobre a mesa. Era voz corrente que a
Divina Providência encarnava neles diversas
criaturas sucessivamente, e que, de cada vez,
cumpria-lhes suportar os padecimentos
correspondentes aos pecados de cada um. A
mim, porém, pouco importava a sua penitência.
Embora estivesse à procura de um único
morcego, cumpria-me balançar o candeeiro na
janela, convidando-os todos a entrar. A luz e a
minha própria movimentação assustaram Judas,
cujos latidos por sua vez despertaram Garbos.
Este esgueirou-se por trás de mim. Vendo-me
saltar por todo o aposento, de vela na mão,
rodeado de um enxame de mariposas, morcegos
e outros insetos, convenceu-se de que eu
praticava algum sinistro rito cigano. No dia
seguinte fui exemplarmente punido.
Não desisti, porém. Passadas muitas semanas,
pouco antes de raiar a aurora, capturei
finalmente o ambicionado morcego marcado com
os curiosos sinais. Soprei sobre ele
cuidadosamente por três vezes, e então soltei-o.
Depois de esvoaçar sobre a estufa por alguns
momentos, desapareceu. Convenci-me de que
Garbos só tinha alguns poucos dias de vida pela
frente. Passei a olhá-lo com piedade. Mal sabia
ele que seu algoz encontrava-se a caminho,
vindo de um estranho limbo habitado pela
doença, pela dor e pela morte. Talvez já se
encontrasse dentro da própria casa, esperando
ansiosamente para cortar o fio de sua vida da
mesma forma que a foice secionava o talo frágil.
Nem sequer me importava de ser espancado,
porque enquanto isso fitava-o intensamente nos
olhos, à espreita dos sinais de morte. Se ele ao
menos desconfiasse do que estava à sua espera!
Não obstante, Garbos continuava aparentemente
forte e sadio. No quinto dia, quando eu
começava a suspeitar que a morte negligenciava
suas obrigações, ouvi-o gritar no celeiro. Corri
para lá, na esperança de vê-lo ofegando
mortalmente e implorando a presença do padre,
mas constatei que estava apenas curvado sobre
o cadáver de uma pequena tartaruga que
herdara de seu avô. O animalzinho era
perfeitamente domesticado e vivia a um canto
do celeiro. Garbos orgulhava-se dele por ser o
mais antigo dos animais de toda a aldeia.
Pouco a pouco, esgotei todos os meios possíveis
de eliminá-lo. Entrementes, Garbos inventava
novas maneiras de perseguir-me. Vez por outra,
pendurava-me pelos braços a um galho do velho
carvalho do quintal, deixando Judas solto
embaixo. Só o providencial aparecimento do
padre em sua charrete impedia-o de levar
adiante a brincadeira.
O mundo parecia fechar-se sobre minha cabeça
como uma abóbada de chumbo maciço. Pensei
em contar ao padre o que se passava, mas temi
que se limitasse a repreender Garbos,
oferecendo-lhe com isso a oportunidade de
espancar-me novamente por ter me queixado.
Durante algum tempo planejei fugir da aldeia,
mas havia na vizinhança um sem-número de
postos avançados alemães e eu receava que, no
caso de ser novamente agarrado por eles, me
tomassem por um bastardo judeu, e nesse caso
ninguém podia prever o que me aconteceria.
Certa vez, ouvi o padre explicar a um velho da
aldeia que certas orações valiam, aos olhos de
Deus, de cem a trezentos dias de indulgência.
Percebendo que o camponês não alcançava o
sentido daquelas palavras, o padre lançou-se a
uma longa exposição sobre o assunto. Do que foi
exposto depreendi que aqueles que rezam mais
ganham mais dias de indulgência, o que por sua
vez exerce uma influência imediata em suas
vidas; com efeito, quanto maior o número de
orações oferecidas, tanto melhor se haveria de
viver, e, quanto menos se rezasse, maiores
seriam as dores e provações por que passaria a
criatura.
Inesperadamente, a ordem dominante no mundo
descortinou-se à meus olhos com clareza
insofismável. Compreendi por que certas pessoas
eram fortes e outras fracas, algumas livres e
outras escravas, ricas algumas e outras pobres,
umas sadias e outras doentes. Simplesmente, as
primeiras haviam percebido com antecedência a
necessidade de orar e de colecionar o maior
número possível de indulgências. Em alguma
parte lá em cima, todas essas orações vindas da
terra eram devidamente classificadas, de forma
que todas as criaturas possuíam uma espécie de
arca onde os seus dias de indulgência eram
armazenados.
Em minha mente descortinavam-se as
infindáveis pastagens celestiais, onde se
enfileiravam as arcas, algumas enormes e
transbordantes de dias de indulgência, outras
pequenas e quase vazias. Um pouco afastadas
divisava outras, sem uso, destinadas a acomodar
aqueles que, como eu, ainda não haviam
descoberto o valor da oração.
Cessei de criticar os outros; a culpa, afinal de
contas, pensei, era exclusivamente minha. Minha
inteligência fora insuficiente para fazer-me
encontrar a norma orientadora do mundo das
criaturas, dos animais e dos acontecimentos.
Agora, porém, a ordem e a justiça pareciam
finalmente instalar-se no universo. Tudo o que se
tinha a fazer era rezar, concentrando-se nas
orações que traziam consigo o maior número de
dias de indulgência. Então, um dos auxiliares do
Senhor haveria de notar imediatamente o novo
devoto, reservando-lhe um lugar onde seus dias
de indulgência passariam a acumular-se como
sacos de trigo empilhados em época de colheita.
Eu confiava plenamente em minha força. Tinha
certeza de que dentro de breve prazo
conseguiria reunir um maior número de dias de
indulgência que os demais, de que minha arca
haveria de se encher rapidamente, de tal forma
que o céu teria que destinar-me outra maior; e
esta mesma acabaria por transbordar, fazendo-
me precisar de outra maior, tão grande quanto a
própria igreja.
Aparentando um interesse casual, pedi ao padre
que me mostrasse o livro de orações. Anotei
rapidamente aquelas que eram beneficiadas com
o maior número de dias de indulgência, e pedi-
lhe que as ensinasse a mim. Embora até certo
ponto surpreso pela minha preferência por certas
orações e indiferença por outras, ele concordou e
leu-as diversas vezes para mim. Concentrei todas
as forças de minha mente e de meu corpo em
memorizá-las. Não tardei a conhecê-las
perfeitamente. Estava pronto para iniciar uma
nova vida. Tinha tudo o que era preciso e
exultava com a certeza de que os dias de castigo
e humilhação estavam prestes a ter fim. Até
então, eu fora um verme insignificante que
qualquer um poderia esmagar. Doravante, o
verme haveria de se transformar num touro
feroz.
Não havia tempo a perder. Todos os momentos
disponíveis podiam ser aproveitados para mais
uma oração, com isso conquistando dias extras
de indulgência para o meu cômputo celestial.
Muito breve eu seria recompensado com a graça
divina, e Garbos deixaria de me atormentar para
sempre.
Todo o meu tempo era agora dedicado a rezar.
Recitava as orações atabalhoadamente, uma
após outra, encaixando ocasionalmente alguma
que trazia menor número de dias de indulgência.
Não queria que o Senhor imaginasse que eu
desprezava totalmente as orações mais hu-
mildes. Afinal de contas, não se vai querer
ludibriar o Senhor.
Garbos não podia compreender o que me
acontecera. Vendo-me constantemente a
murmurar baixinho, dando pouca atenção às
suas ameaças, suspeitou que estivesse lançando
contra ele alguma feitiçaria cigana. Eu não tinha
interesse em contar-lhe a verdade. Receava que,
de uma maneira ou de outra, me proibisse de
rezar, ou que, pior ainda, na sua qualidade de
cristão mais antigo do que eu, usasse sua
influência no céu para inutilizar o efeito de
minhas orações ou quiçá transferir algumas delas
para a sua arca mais que provavelmente vazia.
Passou a espancar-me com maior freqüência. Às
vezes, se me perguntava algo e eu me
encontrava no meio de uma prece, não
respondia imediatamente, ansioso por não
perder os dias de indulgência que estava em vias
de conquistar. Garbos julgava que eu estava
sendo insolente e redobrava a fúria de seus
golpes. Preocupava-se também em que eu me
tornasse atrevido o bastante para queixar-me ao
padre dos espancamentos. E assim decorria
minha vida, repartida entre orações e surras.
Eu rezava incessantemente, desde o raiar do dia
até o crepúsculo, perdendo a conta dos dias de
indulgência que estava ganhando, mas quase
podendo enxergar a pilha deles elevando-se
incessantemente, até que um ou outro santo,
detendo-se em sua caminhada ao longo das
paragens celestiais, considerasse com olhar
aprovador as nuvens de orações que se
elevavam da terra como bandos de andorinhas
— todas provenientes de um menino de cabelos
e olhos negros. Visualizava meu nome sendo
mencionado no conselho dos anjos, depois no de
alguns santos menores, em seguida no dos mais
importantes, com isso mais e mais se
aproximando do trono celestial.
Garbos acusava-me de perder o respeito por ele.
Mesmo quando me espancava com mais
brutalidade que a de costume, eu não perdia
tempo em lamentar-me, e continuava
acumulando os meus dias de indulgência. Afinal
de contas, a dor era algo passageiro, ao passo
que as indulgências permaneciam em minha
arca para todo o sempre. Se o presente se
afigurava sombrio era precisamente porque eu
não tinha conhecimento anteriormente de uma
maneira tão maravilhosa de melhorar o meu
futuro. Não me podia permitir perder mais
tempo; cumpria recuperar o tempo perdido.
Garbos convencera-se de que eu me encontrava
mergulhado numa espécie de estado cataléptico,
originado nos meus poderes de magia, e do qual
nada de bom poderia advir. Jurei-lhe que estava
simplesmente rezando, mas ele não me deu
crédito.
Seus receios não tardaram a confirmar-se. De
uma vez, uma vaca forçou a porta do celeiro e
invadiu o jardim vizinho, causando prejuízos
consideráveis. O proprietário, furioso, irrompeu
no pomar de Garbos, armado de um machado, e,
por vingança, derrubou todas as pereiras e
macieiras ali existentes. Na ocasião, Garbos
dormia profundamente, curtindo uma vasta
bebedeira, enquanto Judas esforçava-se
inutilmente por romper sua corrente. Para
completar a desgraça, uma raposa penetrou no
dia seguinte no galinheiro, matando algumas
galinhas poedeiras.
Naquela mesma noite, com uma única patada,
Judas massacrou um belo peru que Garbos
adquirira recentemente por alto preço e do qual
se orgulhava particularmente.
Garbos sucumbiu de uma vez. Tendo-se
embebedado com vodca de fabricação caseira,
revelou-me o seu segredo. Há muito tempo teria
me matado, não fosse o medo que
experimentava por Santo Antônio, seu patrono.
Sabia, outrossim, que eu lhe contara os dentes, e
que portanto minha morte haveria de custar-lhe
muitos anos de vida. Evidentemente,
acrescentou, se acontecesse a Judas matar-me
ocasionalmente, ele estaria inteiramente a salvo
de minhas bruxarias e Santo Antônio não teria
motivo para puni-lo.
Entrementes, o padre adoeceu. Ao que tudo
indicava, pegara uma pneumonia na igreja
gelada. Com febre alta, ficava deitado em seu
quarto, num estado de semi-alucinação, falando
consigo mesmo ou com Deus. Certa vez, levei-
lhe uns ovos, presente de Garbos, e subi na
cerca para vê-lo pela janela. Estava pálido e
abatido. A irmã mais velha, uma mulher baixa e
rechonchuda, o cabelo empilhado em coque,
atarefava-se à volta da cama, enquanto a
curandeira local fazia-lhe sangrias e aplicava-lhe
ventosas que inchavam imediatamente depois
de aplicadas no corpo emaciado.
Eu estava perplexo. Aquele padre teria
certamente acumulado um número
extraordinário de dias de indulgência, no
decorrer de sua vida devota, e no entanto ali
estava arriado, doente como qualquer outro
mortal.
Um novo padre veio tomar conta do vicariato.
Era idoso, calvo, e tinha a pele do rosto
extremamente fina, semelhante a um
pergaminho. Usava uma faixa roxa sobre a
batina. Ao avistar-me, regressando com o cesto
vazio, chamou-me para indagar de onde eu
provinha, moreno como era. Vendo-nos juntos, o
organista segredou ao padre algumas rápidas
palavras. Ele me abençoou e se afastou.
O organista confiou-me então que o novo vigário
preferia que eu não ficasse muito em evidência
na igreja. Muita gente vinha ali, e, embora ele
não acreditasse que eu fosse cigano ou judeu, os
alemães, sempre desconfiados, podiam pensar
diferentemente, o que redundaria em severas
represálias para a paróquia.
Precipitei-me para o altar-mor e pus-me a rezar
desesperadamente, selecionando as orações
dotadas do maior número de indulgências.
Restava-me pouco tempo para agir. Ademais,
quem sabe, orações proferidas no próprio altar,
debaixo do olhar tristonho do Filho de Deus e da
contemplação maternal da Virgem Maria,
poderiam talvez representar maior valor do que
as que eram recitadas em outro local. Porventura
seria mais curto o seu caminho até o céu, ou
quiçá seriam transportadas por um mensageiro
especial que se utilizasse de um meio de
transporte mais rápido, como uma composição
deslizando sobre trilhos. O organista viu-me
sozinho na igreja e voltou a chamar-me a
atenção sobre a advertência do novo vigário.
Assim sendo, despedi-me pesarosamente do
altar e de seus objetos familiares.
Em casa, encontrei Garbos à minha espera. Logo
que entrei, arrastou-me até um cômodo vazio,
nos fundos. Ali, no ponto mais alto do teto, dois
imensos pregos haviam sido cravados nas traves,
a menos de dois pés de distância um do outro.
De cada um deles pendia uma correia, dobrada
como uma alça.
Garbos subiu num banco, levantou-me bem alto
e mandou-me segurar com cada mão numa alça.
Deixando-me suspenso no ar, trouxe Judas para
dentro do quarto. Ao sair, trancou a porta.
Ao me ver dependurado no teto, Judas
imediatamente saltou, esforçando-se por
agarrar-me os pés. Encolhi as pernas a tempo de
vê-lo errar o alvo por algumas polegadas. Tentou
novamente, e mais uma vez fracassou. Após
mais algumas tentativas deitou-se e ficou à
espera.
Eu tinha que vigiá-lo atentamente. Se deixados
pendentes, meus pés não ficavam a mais de seis
pés de altura do solo e Judas poderia alcançá-los
facilmente. Eu ignorava por quanto tempo iria
ficar pendurado assim. Calculei que Garbos
imaginasse que eu acabaria por cair e seria
atacado por Judas. Isso viria frustrar os esforços
que viera envidando no correr de todos aqueles
meses, contando os dentes de Garbos, inclusive
os amarelos e os que ainda estavam por nascer,
bem ao fundo das gengivas.
Por vezes sem conta, enquanto Garbos,
embriagado com vodca, roncava de boca aberta,
eu tivera o cuidado de contar-lhe os dentes
repugnantes. Era a arma de que dispunha contra
ele. Sempre que se alongava demais em seus
espancamentos, eu lhe recordava o número de
seus dentes; se não me acreditava, podia
verificá-lo por si mesmo. Eu os conhecia a todos
perfeitamente, por mais balouçantes, por mais
putrefatos, por mais que quase totalmente
ocultos, sob as gengivas. Se me matasse, poucos
anos lhe restariam para viver. Não obstante, se
eu caísse ocasionalmente entre as mandíbulas
expectantes de Judas, a consciência de Garbos
estaria em paz. Ele nada teria a temer, e seu pa-
trono, Santo Antônio, haveria de absolvê-lo pela
minha morte acidental.
Meus ombros começavam a sofrer cãibras.
Procurei soerguer o corpo, abrindo e fechando as
mãos, e relaxei lentamente as pernas, baixando-
as perigosamente até próximo do solo. Judas
estava agachado no canto, fingindo que dormia.
Mas eu lhe conhecia os truques, tão bem quanto
ele conhecia os meus. Ele sabia que ainda me
restavam forças de reserva e que eu podia
levantar as pernas mais rapidamente do que ele
poderia atingi-las. Sendo assim, decidiu esperar
até que o cansaço me derrubasse.
A dor que eu sentia pelo corpo tomava duas
direções diferentes. Uma delas corria das mãos
até os ombros e o pescoço, a outra das pernas
até a cintura. Eram dois tipos diferentes de dor,
que me transpassavam até a cintura como se
fossem duas toupeiras perfurando cada qual o
seu túnel debaixo da terra. A dor das mãos era
mais suportável. Podia disfarçá-la balançando o
peso do corpo de um braço para outro, relaxando
os músculos para depois retomar o peso,
deixando-me ficar suspenso de uma das mãos
enquanto esperava o sangue voltar à outra. A dor
que provinha das coxas e do abdome era mais
persistente, e, uma vez instalada em meu
estômago, recusava-se a partir. Era como se
fosse um caruncho que, tendo encontrado um
lugarzinho confortável atrás de um nó da ma-
deira, instala-se aí definitivamente.
Era uma dor estranha, surda e penetrante. Eu a
imaginava semelhante à que sofrera um
indivíduo que Garbos mencionara, em conversa,
a título de advertência. Contava-se que esse
homem matara de emboscada o filho de um
fazendeiro influente, e o pai decidira punir o
assassino à maneira tradicional. Juntamente com
dois de seus primos, o homem conduziu o
criminoso para a floresta. Ali prepararam uma
estaca de doze pés de altura, aguçada numa das
pontas como se fora um lápis gigantesco.
Deitaram-na no solo, a ponta rombuda apoiada
contra um tronco de árvore. Então, atrelaram um
cavalo possante a cada um dos pés da vítima,
colocando-lhe a junção das pernas ao nível da
ponta ameaçadora. Os cavalos, gentilmente con-
duzidos, puxaram o homem contra a
extremidade pontiaguda, que mergulhava pouco
a pouco na carne retesada. Quando a ponta já
havia penetrado profundamente nas entranhas
da vítima, os três homens ergueram a estaca,
com o homem empalado sobre ela, e firmaram-
na num buraco anteriormente preparado. Ali o
deixaram para morrer lentamente.
Suspenso ao teto como me encontrava, eu podia
ver em pensamento o pobre-diabo urrando de
dor em plena noite, esforçando-se por erguer
para o céu indiferente os braços, que lhe
pendiam dos lados do tronco intumescido. Deve
ter ficado semelhante a um passarinho
derrubado de uma árvore por um golpe de
atiradeira e tombado frouxamente sobre um
galho seco e pontiagudo.
Sempre aparentando indiferença, Judas
despertou embaixo de mim. Bocejou, coçou as
orelhas e catou as pulgas da cauda. De quando
em vez relanceava um olhar furtivo em minha
direção, mas à vista das minhas pernas encolhi-
das virava a cabeça, desgostoso.
Só uma vez conseguiu enganar-me. Julgando-o
realmente adormecido, estirei as pernas. Judas
imediatamente saltou do seu canto, pulando
como um gafanhoto. Não consegui encolher um
dos pés com suficiente rapidez, permitindo-lhe
arrancar-me um pouco de pele do calcanhar. O
medo e a dor quase me fizeram cair. Judas
lambeu triunfantemente os lábios e encolheu-se
contra a parede. Espreitando-me por entre as
pálpebras semicerradas, dispôs-se a esperar.
Tive a impressão de que não agüentava muito
mais. Decidi saltar e planejei uma forma de me
defender de Judas, muito embora soubesse que,
antes que tivesse tempo de erguer a mão, já ele
estaria aferrado à minha garganta. Não havia
tempo a perder. Então, repentinamente, lembrei-
me das orações.
Pus-me a balançar o peso de uma para outra
mão, movendo simultaneamente a cabeça,
encolhendo e estirando as pernas
alternadamente. Judas olhou-me, desencorajado
por essa demonstração de força. Por fim, virou-se
contra a parede e deixou-se ficar imóvel.
O tempo corria, ao mesmo tempo que minhas
orações se multiplicavam. Milhares de dias de
indulgência esgueiraram-se através do teto de
colmo em direção aos céus.
Pelo final da tarde, Garbos entrou no quarto.
Depois de examinar meu corpo encharcado e o
poço formado pelo suor no soalho, desprendeu-
me com brutalidade das correias e chutou o cão
para fora. Durante toda aquela noite não fui
capaz de caminhar ou sequer de mover os
braços. Estirado no colchão, rezava sem cessar.
Os dias de indulgência contavam-se às centenas,
aos milhares. Naquele momento, haveria
provavelmente mais deles acumulados no céu
para mim do que grãos de trigo no campo. Era
impossível que, lá no alto, tudo isso não
estivesse sendo registrado e que os santos não
estivessem considerando alguma melhoria
radical em minha vida.
Garbos acostumou-se a pendurar-me todos os
dias. Às vezes fazia-o pela manhã, às vezes à
tardinha. E não fosse o fato de precisar de Judas
no pátio, receoso de raposas e ladrões, teria feito
o mesmo à noite.
A situação era sempre a mesma. Enquanto me
restava alguma força, o cão permanecia
calmamente estirado no solo, fingindo dormir ou
ocasionalmente catando alguma pulga. Quando a
dor em meus braços e pernas se fazia mais
intensa, ele ficava alerta, como se percebesse o
que se passava no meu interior. Nessas ocasiões,
o suor porejava de todo o meu corpo, descendo
em fios regulares ao longo de meus músculos
entorpecidos, pingando sobre o soalho a
intervalos regulares. Assim que estirava as
pernas, Judas invariavelmente saltava-me sobre
os calcanhares.
Passaram-se os meses. Garbos precisava cada
vez mais de mim, porque adquirira o costume de
embebedar-se com freqüência e cada vez
desleixava mais o trabalho.
Pendurava-me apenas quando não encontrava
alguma tarefa imediata a entregar-me. Quando
retornava ao seu estado normal e ouvia os
porcos grunhindo de fome e a vaca mugindo,
soltava-me dos ganchos e punha-me a trabalhar.
Os músculos de meus braços tornaram-se
condicionados pela suspensão, de tal forma que
agora eu conseguia tolerá-la por horas a fio sem
maior esforço. Embora a dor que me chegava ao
estômago demorasse agora mais a chegar, sofria
de cãibras que me deixavam aterrorizado. E
Judas nunca desprezava uma oportunidade de
avançar sobre mim, embora a esta altura já
provavelmente duvidasse de um dia poder
encontrar-me desprevenido.
Enquanto pendente das alças de couro, eu
concentrava-me nas orações, à exclusão de tudo
mais. Quando as minhas forças pareciam chegar
ao fim, convencia-me a mim mesmo de que era
capaz de agüentar mais umas dez ou vinte,
antes de abdicar. Recitadas estas, comprometia-
me comigo mesmo a recitar mais umas dez ou
quinze. Acreditava que a qualquer momento algo
podia acontecer, que cada mil dias extras de
indulgência poderiam salvar-me a vida, quiçá
nesse instante mesmo.
Vez por outra, a fim de distrair a atenção da dor
e do entorpecimento dos músculos dos braços,
eu provocava Judas. Primeiramente, sacudia os
braços como se estivesse a ponto de cair. O cão
latia e saltava, enraivecido. Quando estava
prestes a adormecer novamente, eu o acordava
com gritos, estalidos de lábios e ranger de
dentes. O animal não compreendia o que se
passava. Acreditando que aquilo significava o
término da minha resistência, punha-se a saltar
por toda parte como louco, batendo contra as
paredes, na escuridão, derrubando o banco que
ficava junto à porta. Gemia de dor, resfolegava
pesadamente, e por fim sossegava. Eu
aproveitava a oportunidade para esticar as
pernas. Quando o quarto ecoava com os roncos
do animal fatigado, eu poupava forças
estabelecendo, para uso próprio, prêmios
correspondentes à minha capacidade de
resistência — mil dias de indulgência davam-me
direito a esticar uma perna, dez orações
permitiam-me descansar um braço, e quinze
autorizavam-me a mudar completamente de po-
sição.
Quando menos esperava, eu ouvia o ruído da
chave girando na fechadura, e Garbos
apresentava-se. Encon-trando-me com vida,
amaldiçoava Judas, a quem chutava e espancava
até que a fera chorasse e se lamuriasse como um
cachorrinho novo.
Tamanha era a sua fúria nesses momentos que
eu conjeturava se não seria ele um enviado do
Senhor. Encarando-o no rosto, porém, eu não
encontrava nele o menor sinal da presença
divina.
As sessões de espancamento tornaram-se aos
poucos mais e mais espaçadas. O processo de
suspender-me do teto era demorado, e a granja
exigia cuidados especiais. Fiquei imaginando por
que motivo insistia em pendurar-me no teto.
Teria ainda esperança de que o cão me estra-
çalhasse, depois de ter fracassado tantas vezes?
Depois de cada sessão de suspensão eu levava
algum tempo a me recuperar. Os músculos,
retesados como fio na roda de fiar, recusavam-se
a retomar a sua tensão normal. Movia-me com
dificuldade. Sentia-me como se fora uma haste
frágil tentando suportar o peso de uma floração
de girassóis.
Quando eu me atrasava no trabalho, Garbos
costumava dar-me pontapés, proclamando que
não estava disposto a agüentar um vagabundo, e
ameaçando entregar-me ao posto avançado
alemão. Eu dava o máximo de meus esforços
para convencê-lo de minha eficiência, mas ele
nunca parecia satisfeito. Cada vez que se
embebedava pendurava-me nas traves do teto,
enquanto Judas esperava pacientemente
embaixo.
A primavera de 1943 escoara-se. Eu contava já
dez anos de idade e havia acumulado sabe Deus
quantos dias de indulgência para cada dia de
minha vida. Aproximava-se uma importante festa
religiosa, e nas aldeias em torno o povo
atarefava-se com os preparativos. As mulheres
teciam coroas de tomilho silvestre, de dróseras,
de tílias, flores de maçã e cravos silvestres, que
seriam abençoadas na igreja. A nave e os altares
eram decorados com ramos verdes de bétula, de
choupo e de salgueiro. Passada a festa, esses
ramos adquiriam grande valor: seriam plantados
em canteiros e em plantações de couve, de
cânhamo e de linho, para assegurar o
crescimento rápido das mesmas e proteção
contra pragas.
No dia da festa, de manhã cedinho, Garbos
rumou para a igreja. Eu permaneci na fazenda, o
corpo todo marcado e dolorido em conseqüência
do último espancamento sofrido. O eco
intermitente dos sinos da igreja badalando
festivamente ressoava através dos campos, e o
próprio Judas, que se espreguiçou ao sol,
imobilizou-se para ouvi-lo.
Era festa de Corpus Christi. Constava que, nesse
dia, a presença real do Filho de Deus fazia-se
mais sensível na igreja do que em qualquer outra
festividade do ano. Todo mundo comparecia à
igreja nesse dia: justos e pecadores, os que
rezavam constantemente e os que nunca o
faziam, ricos e pobres, enfermos e sadios. Eu,
porém, fora deixado para trás, em companhia de
um cão que não tivera a oportunidade de levar
uma vida menos dura, muito embora fosse
também ele, uma criatura de Deus.
Tomei uma rápida decisão. A bagagem de
orações que viera acumulando até então podia
certamente rivalizar com a de muitos santos
menores. E, embora não houvessem produzido
frutos apreciáveis, teriam indubitavelmente sido
observadas no céu, onde a justiça é lei.
Eu nada tinha a temer. Pus-me a caminho da
igreja, caminhando ao longo das trilhas de terra
que separavam entre si os diferentes campos.
O pátio da igreja já transbordava de uma
multidão colorida, que chegava em suas carroças
e montarias alegremente enfeitadas. Ocultei-me
a um canto, aguardando um momento oportuno
para esgueirar-me para o interior da igreja por
uma das portas laterais.
De repente, a governanta do vigário deu pela
minha presença. Contou-me que um dos
sacristães fora vítima de envenenamento, e
anunciou que eu devia dirigir-me imediatamente
à sacristia para trocar de roupa e substituí-lo no
altar. Eram ordens expressas do novo vigário.
Uma onda de alegria invadiu-me. Voltei os olhos
para o céu. Finalmente, alguém lá no alto dera-se
conta de minha existência. Haviam tomado
conhecimento das minhas orações, amontoadas
qual uma pilha imensa de batatas após a
colheita. Dentro de poucos instantes eu estaria
ao lado d'Ele, em seu altar, debaixo da proteção
de seu vigário. Aquilo era apenas o começo.
Daqui por diante começaria para mim uma nova
vida, mais fácil. Eu chegava ao fim de um
pesadelo aterrorizante que sacode a criatura até
fazê-la vomitar as entranhas, como estoura uma
casca de papoula sob a ação do vento. Não
haveria mais espancamentos de Garbos, nem
suspensão pelas correias, nem a ameaça de
Judas. Ante meu olhos descortinava-se uma nova
vida, tão suave quanto os trigais dourados que
ondulavam ao sopro brando da brisa. Precipitei-
me em direção à igreja.
Não foi fácil entrar. No meio da multidão vistosa
que se acotovelava no pátio, alguém avistou-me
e chamou a atenção sobre mim. Os camponeses
acorreram e passaram a fustigar-me com
chibatas e galhos de vidoeiro. Os aldeães mais
idosos riam tanto da cena que tinham que deitar-
se no chão. Fui colocado entre os varais de uma
carroça e amarrado à cauda do cavalo. Este
relinchou, recuando, e escoiceou-me uma ou
duas vezes antes que eu pudesse libertar-me.
Alcancei a sacristia ainda trêmulo; todo o corpo
me doía. O sacerdote, impaciente com o meu
atraso, estava prestes a iniciar o ofício religioso;
os acólitos por sua vez tinham acabado de vestir-
se. Eu tremia de nervosismo enquanto enfiava a
sobrepeliz sem mangas de sacristão. Sempre que
o padre se virava, os outros meninos passavam-
me rasteiras ou davam-me socos nas costas. O
padre, intrigado com a minha morosidade,
irritou-se a tal ponto que me empurrou com
brutalidade; caí sobre um banco, machucando o
braço. Finalmente, tudo ficou pronto. As portas
da sacristia se abriram e, no silêncio da igreja
apinhada, expectante, tomamos nossos lugares
ao pé do altar, três de nós de cada lado do
sacerdote.
A missa teve início em todo o seu esplendor.
A voz do padre parecia mais melodiosa que
normalmente; o órgão trovejava através de suas
centenas de corações pulsantes; os sacristães
desempenhavam com solenidade suas funções
meticulosamente inculcadas.
Inesperadamente, fui chutado nas canelas pelo
sacristão colocado a meu lado. Fazia com a
cabeça um movimento nervoso em direção ao
altar. Fitei-o sem compreender, sentindo ao
mesmo tempo o sangue latejar-me nas
têmporas. Ele repetiu o gesto, e pude observar
que também o padre lançava-me olhares
ansiosos. Eu devia fazer qualquer coisa — mas o
quê? Entrei em pânico, perdi a respiração. O
acólito voltou-se para mim e segredou-me que
devia carregar o missal.
Compreendi então que era minha obrigação
transferir o missal de um lado do altar para o
outro. Já vira aquela cena repetida inúmeras
vezes. Um dos sacristães se aproximava do altar,
segurava o missal juntamente com o suporte em
que se achava apoiado, recuava até o centro do
degrau mais baixo do altar, fazia uma
genuflexão, transportando o missal entre as
mãos, para depois erguer-se e levá-lo até o lado
oposto do altar, voltando finalmente ao seu
lugar.
Chegara a minha vez de executar todo esse
ritual.
Podia sentir os olhares de toda a multidão
pregados em minha pessoa. Enquanto isso, o
organista, como que emprestando deliberada
importância à cena de um cigano atendendo ao
altar do Senhor, acelerou subitamente o anda-
mento do órgão.
Pairou sobre a nave um silêncio absoluto.
Dominando o tremor de meus joelhos, galguei os
degraus do altar. Ali, o missal, o livro sagrado
cheio de orações consagradas reunidas pelos
santos e sábios para celebrar a maior glória de
Deus através dos séculos, encontrava-se apoiado
num pesado tripé de madeira, com os pés
revestidos de bolas de cobre. Mesmo antes de
pousar as mãos sobre ele, intuí que não teria
força suficiente para erguê-lo e transportá-lo até
o lado oposto do altar. O livro por si mesmo já
era excessivamente pesado, mesmo sem o
suporte.
Entretanto, era tarde demais para recuar.
Encontrava-me na plataforma superior do altar,
as chamas esguias das velas tremulando ante
meus olhos. Sua incessante palpitação parecia
fazer voltar à vida o corpo transido pela agonia
de Jesus crucificado. Ao perscrutar-lhe a
fisionomia, contudo, esta não parecia fixar
distraidamente o vácuo; dir-se-ia que os olhos de
Jesus fixavam-se em algum ponto para além do
altar, para além de todos nós.
Ouvi às minhas costas um assovio impaciente.
Firmei as palmas úmidas das mãos sob o suporte
metálico do missal, aspirei profundamente o ar,
e, num esforço inaudito, soergui-o. Recuei
cautelosamente, tateando com o pé a borda do
degrau. Subitamente, num instante breve como
a picada de uma agulha, o peso do missal
tornou-se excessivo e empurrou-me para trás.
Tropecei e fui incapaz de recuperar o equilíbrio.
O teto da igreja oscilava ante meus olhos. O
missal e seu suporte degringolaram pelos
degraus abaixo. De minha boca escapou-se um
grito involuntário. Quase simultaneamente,
minha cabeça e meus ombros tocavam o solo.
Quando abri os olhos, fisionomias irritadas,
transtornadas pela cólera, debruçavam-se sobre
mim.
Mãos rudes levantaram-me do solo com
brutalidade e empurraram-me em direção à
saída. Os assistentes dispersaram-se, tomados
de estupefação. Do balcão superior, uma voz
masculina bradou: "Vampiro cigano!", e diversas
outras ficaram a repetir o estribilho. Mãos
estranhas apertavam-me o corpo com
brutalidade torturante, maltratando-me a carne.
Uma vez fora da igreja, quis gritar e implorar
misericórdia, mas nenhum som brotava da minha
garganta. Tentei novamente. A voz não saía.
O ar fresco atingiu-me o corpo aquecido. Os
camponeses arrastaram-me diretamente rumo a
um imenso poço de excrementos. Fora escavado
há dois ou três anos atrás, e a pequena casinha
levantada ao lado, com suas janelas pequenas
recortadas em formato de cruz, era objeto de
especial orgulho para o padre. Era a única em
seu gênero, em toda a região. Os camponeses
estavam acostumados a atender às necessidades
da natureza diretariíente nos campos, servindo-
se do poço apenas quando compareciam à igreja.
Assim mesmo, um novo estava sendo escavado
do lado oposto do presbitério, porque o antigo
estava completamente cheio e o vento às vezes
trazia odores desagradáveis até a igreja.
Quando percebi o que me esperava, tentei mais
uma vez gritar. Mas nenhum som escapava de
minha garganta. Cada vez que me debatia, uma
mão pesada de camponês abatia-se sobre mim,
tapando-me a boca e o nariz. O mau cheiro vindo
do poço crescia a cada passo. Encontravamo-nos
agora muito próximos dele. Por mais uma vez
tentei libertar-me, mas os homens mantinham-
me bem seguro, enquanto comentavam sem
parar o acontecido na igreja. Não tinham dúvida
de que eu era um vampiro e de que a
interrupção da santa missa só podia acarretar
malefícios para a aldeia.
Chegando à borda do poço, paramos. Sua
superfície castanha, ondulada, malcheirosa,
lembrava uma asquerosa película boiando na
superfície de uma tigela de trigo fervente. Sobre
essa superfície enxameavam miríades de
pequeninas lagartas esbranquiçadas, do
comprimento aproximado de uma unha. Um
pouco acima esvoaçavam nuvens de moscas,
zumbindo monotonamente, seus belos corpos
azuis e arroxeados rebrilhando ao sol, colidindo
entre si, tombando por instantes no poço e
voltando a levantar vôo em seguida.
Senti ânsias de vômito. Os camponeses
agarraram-me pelas mãos e pelos pés e
balançaram-me no ar. As nuvens pálidas
recortadas no céu azul bailaram diante de meus
olhos. Fui precipitado bem ao centro do escuro
poço de sujeira, que se abriu em dois para
engolir-me.
A luz do dia desapareceu sobre minha cabeça, e
senti-me sufocar. Agitava-me instintivamente no
denso elemento, movimentando braços e pernas.
Toquei o fundo, e de lá tomei um impulso
inverso, o mais rápido que pude. Uma série de
vagas esponjosas conduziu-me de volta à
superfície. Abrindo a boca, sorvi um hausto de ar.
Fui aspirado de volta, e novamente tomei
impulso no fundo. O poço não tinha mais do que
doze pés quadrados. Por mais uma vez
mergulhei e subi à superfície, desta vez próximo
à borda. No último instante, quando estava
prestes a afundar novamente, consegui agarrar-
me a uma longa e espessa raiz das ervas
daninhas que cresciam à borda do poço. Lutei
contra a sucção da massa nauseabunda e
consegui alçar-me à borda do poço, mal
conseguindo enxergar através das pálpebras
coladas pelo lodo.
Arrastei-me para fora do atoleiro e fui
imediatamente assaltado de ânsias de vômito.
Essas torturaram-me por tanto tempo que
minhas forças se exauriram, fazendo-me tombar,
completamente exausto, sobre as moitas
espinhosas de cardos, fetos e hera.
Chegou-me aos ouvidos o som distante do órgão
e de cânticos, e refleti que, uma vez terminada a
missa, o povo, ao sair da igreja, poderia lembrar-
se de me atirar novamente ao poço, se me
encontrasse com vida entre as moitas. Cumpria-
me fugir a toda pressa, e foi o que fiz, disparando
em direção à floresta. O sol cozinhava a crosta
castanha que me recobria, e nuvens de moscas e
insetos de toda sorte perseguiam-me sem
cessar.
Logo que me encontrei sob a proteção das
árvores pus-me a rolar sobre o musgo fresco e
macio, esfregando-me com folhas e vomitando.
Com o auxílio de cascas de árvore raspei a
sujeira restante. Esfreguei areia no cabelo, e
depois tornei a rolar na grama, novamente presa
de vômitos.
Repentinamente, senti que algo acontecera à
minha voz. Tentei gritar, mas em minha boca
aberta a língua agitava-se inutilmente. Perdera a
voz. Aterrorizado, coberto de um suor gelado,
recusei-me a crer na evidência e procurei
convencer-me de que a voz me voltaria a qual-
quer momento. Esperei alguns instantes e fiz
nova tentativa. Nada aconteceu. O silêncio
reinante na floresta era rompido apenas pelo
zumbido das moscas que me rodeavam.
Sentei-me no chão. Aquele último grito que eu
lançara ao deixar cair o missal ecoava-me ainda
aos ouvidos. Teria sido o último de toda a minha
vida? Teria minha voz fugido juntamente com
ele, como o chamado de um ganso solitário,
desgarrado sobre a superfície mansa de um
lago? Para onde teria ela ido? Em pensamento,
visualizava minha voz esvoaçando solitária sob
as altas e imponentes arcadas do teto da igreja.
Vi-a chocando-se contra as frias paredes de
cimento, contra as imagens sagradas, contra as
grossas vidraças coloridas das janelas, que os
raios do sol mal conseguiam transpor. Acompa-
nhei-lhe a peregrinação desordenada ao longo da
nave mergulhada em sombra, onde flutuava do
altar até o púlpito, do púlpito ao balcão, e deste
novamente ao altar, impelida pelos ecos difusos
do órgão e pelas ondas dos cânticos da multidão,
embaixo.
Revi em pensamento todos os mudos que eu já
conhecera em minha vida. Não eram muito
numerosos, e a privação do dom da palavra
fazia-os assemelharem-se curiosamente uns aos
outros. As ridículas contorções de suas
fisionomias esforçavam-se por substituir o som
da voz que lhes faltava, enquanto a
movimentação frenética de suas mãos tomava o
lugar das palavras que não lhes chegavam aos
lábios. As pessoas normais costumavam encará-
los suspeitosamente: surgiam a seus olhos como
criaturas estranhas, sacudindo-se, careteando,
babando pesadamente pelo queixo abaixo.
Teria havido certamente alguma causa para que
eu perdesse repentinamente a voz. Alguma força
superior, com a qual eu não lograra ainda
comunicar-me, comandava o meu destino.
Ocorreu-me que talvez se tratasse de Deus ou de
algum de seus santos. Entretanto, refletia, com
meu crédito assegurado por um número infinito
de orações, que implicavam incontáveis dias de
indulgências, não havia motivo para que Deus
me impusesse tão terrível castigo. O mais
provável é que eu tivesse incorrido na ira de
outras forças desconhecidas, que alongavam
seus tentáculos sobre aqueles que, por uma ou
outra razão, o Senhor abandonara
momentaneamente.
Cada vez me afastava mais da igreja,
embrenhando-me na floresta, que se fazia aos
poucos mais densa. Do solo escuro que a luz do
sol nunca alcançava emergiam os troncos de
árvores há muito derrubadas. Esses tocos
isolados erguiam-se como aleijões,
impossibilitados de recobrir seus corpos
enfezados e mutilados. Tortos e atarracados,
careciam da força necessária para alçar-se até
onde havia ar e luz. Força alguma seria capaz de
alterar-lhes a condição; sua seiva jamais se
transformaria em galhos ou folhagens. Imensos
nós abrindo-se na base de seus troncos eram
como olhos privados de vida, fixados para toda a
eternidade nos topos ondulantes de seus irmãos
animados de vida. Não corriam o risco de ser
arrancados ou retorcidos pelos ventos, mas
apodreceriam lentamente, como vítimas
tombadas da umidade e da deterioração do solo
da floresta.

XII
Quando os rapazes da aldeia, que me
aguardavam emboscados na floresta, acabaram
por encontrar-me, imaginei que algo de terrível
estava a ponto de me acontecer. Ao invés disso,
fui conduzido à presença do aldeão mais idoso, o
qual certificou-se de que eu não apresentava
quaisquer feridas ou úlceras pelo corpo, e de que
estava em condições de fazer o sinal-da-cruz. Só
então, após algumas tentativas infrutíferas para
assegurar-me uma colocação junto a outros
camponeses, entregou-me a um fazendeiro por
nome Makar.
Este vivia em companhia de um casal de filhos
numa granja afastada do corpo da aldeia.
Supunha-se que sua mulher tivesse morrido há
muito tempo atrás. Ele tampouco era bem
conhecido na aldeia; chegara havia relati-
vamente poucos anos e era tratado como um
estranho. Entretanto, circulavam rumores de que
evitava as outras pessoas em conseqüência da
vida pecaminosa que levava, tanto com o rapaz
que intitulava filho como com a moça que
chamava de filha. Makar era um tipo baixo e
robusto, com um pescoço musculoso. Suspeitava
que eu apenas fingisse ser mudo para evitar trair
meu sotaque cigano. Às vezes, tarde da noite,
entrava inopinadamente no acanhado sótão onde
eu dormia, procurando forçar-me a emitir um
grito de medo. Eu despertava apavorado e abria
a boca qual um pinto recém-nascido à espera do
alimento, mas som algum escapava dali. Ele me
observava atentamente e o resultado parecia
desapontá-lo. Tendo repetido diversas vezes a
experiência, acabou desistindo.
Seu filho Anton contava então vinte anos. Era um
tipo ruivo, de olhos desbotados, sem pestanas.
Na aldeia, era tão evitado quanto o pai. Quando
alguém lhe dirigia a palavra, costumava lançar-
lhe um olhar indiferente e voltar-lhe as costas em
silêncio. Devido ao seu hábito de falar
exclusivamente consigo mesmo e de nunca
atender a vozes estranhas, fora apelidado d e
Codorna.
A filha, Ewka, era um ano mais moça que o
Codorna. Era alta, magra e loura, com seios que
se assemelhavam a pêras não-amadurecidas e
quadris que lhe permitiam esgueirar-se com
facilidade entre as estacas de uma cerca. Ewka
jamais aparecia na aldeia. Quando Makar saía
com o Codorna para vender coelhos e peles de
coelhos nas aldeias vizinhas, ela ficava só.
Ocasionalmente era visitada por Anulka, a
curandeira local.
Ewka não era popular entre os habitantes da
aldeia, que diziam que seu olhar encerrava uma
bruxaria qualquer. Caçoavam do princípio de
bócio que começava a desfigurar-lhe o pescoço,
e também de sua voz rouca. Sustentavam que,
em sua presença, as vacas perdiam o leite, razão
pela qual Makar criava apenas coelhos e cabras.
Eu ouvia murmurar com freqüência que a
estranha família de Makar devia ser expulsa da
aldeia, e sua casa incendiada. Makar, porém, não
dava ouvidos a essas ameaças. Trazia
permanentemente uma comprida faca escondida
na manga, e podia arremessá-la com tão perfeita
pontaria que certa vez pregou uma barata contra
a parede a cinco passos de distância. E o
Codorna trazia sempre no bolso uma granada de
mão, que encontrara em poder de um
guerrilheiro morto, e com a qual costumava
ameaçar quem quer que se metesse com ele,
com seu pai ou sua irmã.
No quintal dos fundos, Makar criava um cão bem
adestrado, a que chamava de Ditko. Nas
construções anexas que circundavam o pátio
ficavam as gaiolas dos coelhos, dispostas em fila.
Uma simples rede de arame separava-as entre si.
Os coelhos podiam farejar-se e comunicar-se
mutuamente, enquanto Makar vigiava-os a todos
de uma vez só.
Makar era um entendido em coelhos. Mantinha
nas gaiolas magníficos espécimes, cujo preço era
considerado excessivamente elevado, inclusive
pelos fazendeiros mais abastados. Criava na
fazenda quatro cabras e um bode. O Codorna era
encarregado de vigiá-las, de ordenhá-las, de
conduzi-las ao pasto; vez por outra trancava-se
com elas no estábulo. Quando Makar regressava
de uma venda bem sucedida, ele e o filho
costumavam embebedar-se e meter-se no
estábulo das cabras. Ewka sugeria maliciosa-
mente que estavam se divertindo lá dentro. Em
tais ocasiões, amarravam Ditko junto à porta, a
fim de evitar a aproximação de estranhos.
Ewka não apreciava particularmente o pai nem o
irmão. Passava às vezes dias inteiros sem sair de
casa, temendo que Makar e o Codorna a
forçassem a passar a tarde inteira com eles no
estábulo das cabras.
Ewka gostava que eu ficasse à seu lado
enquanto trabalhava na cozinha. Eu ajudava a
descascar os legumes, carregava a lenha e
jogava fora as cinzas.
Às vezes pedia-me que me sentasse junto às
suas pernas e as beijasse. Eu lhe segurava os
tornozelos finos e me punha a beijá-los com a
máxima delicadeza, ao mesmo tempo que lhe
alisava suavemente os músculos retesados das
pernas, subindo até as coxas alvas e macias,
beijando-lhe a delicada concavidade sob o joelho.
Aos poucos, levantava-lhe mais e mais a saia. Ela
a tanto me incitava, com leves tapas nas costas,
e eu "me apressava em atendê-la, com beijos e
mordidas leves na carne tenra. Quando alcancei
o tépido montículo, o corpo de Ewka pôs-se a
tremer incontrolavelmente. Enfiou os dedos des-
vairadamente pelos meus cabelos, acariciou-me
o pescoço e beliscou-me as orelhas, ofegando
convulsivamente. Apertou-me então o rosto
contra o corpo e, após um momento de êxtase,
tombou para trás no banco, totalmente
esgotada.
A etapa seguinte foi igualmente agradável.
Sentada no banco, Ewka firmava-me o corpo
entre as pernas abertas, afagando-me e
acariciando-me gentilmente, beijando-me o rosto
e o pescoço. Seus cabelos finos, semelhantes à
urze, esvoaçavam-me pelo rosto, enquanto eu
lhe fitava os olhos de um tom esmaecido e
notava um rubor intenso descer-lhe da face até o
pescoço e os ombros. Minhas mãos e minha boca
voltaram a movimentar-se. Ewka recomeçou a
tremer e a respirar profundamente, ao passo que
seus lábios esfriavam e que suas mãos trêmulas
comprimiam-me contra o seu corpo.
Quando pressentíamos a chegada dos homens,
Ewka precipitava-se para a cozinha, ajeitando o
cabelo e a saia, enquanto eu corria para as
coelheiras, para a alimentação da noite.
Mais tarde, depois que Makar e seu filho tinham
ido dormir, ela trazia a minha refeição. Comia-a
às pressas, enquanto ela se deitava, nua, a meu
lado, afagando-me ansiosamente as pernas,
beijando-me os cabelos, tirando-me a roupa às
pressas. Deitávamo-nos lado a lado e Ewka
apertava-se contra meu corpo, exigindo que a
beijasse e chupasse, ora aqui, ora ali. Eu atendia
a todos os seus desejos, fazendo tudo o que me
pedia, mesmo quando me parecia doloroso ou
inútil. Os movimentos de Ewka transformavam-se
em espasmos; estremecia debaixo de mim,
trepava sobre meu corpo, fazia-me sentar em
cima dela, agarrava-me ansiosamente entre as
pernas, enterrando as unhas em minhas costas e
em meus ombros. Assim passávamos a maioria
das noites, cochilando por breves períodos para
novamente despertar e dar vazão aos seus
instintos descontrolados. Todo o seu corpo
parecia atormentado por misteriosas tensões
internas. Distendia-se qual uma pele de coelho
esticada numa prancha para secar, e então
voltava a relaxar-se.
Vez por outra, Ewka vinha ao meu encontro nas
coelheiras, durante o dia, quando o Codorna
estava sozinho lidando com as cabras, e Makar
ainda não regressara a casa. Juntos saltávamos a
cerca e desaparecíamos por entre as altas
espigas dos trigais. Ewka ia na frente e escolhia
um lugar seguro e escondido. Deitávamo-nos no
chão coberto de restolhos, e ela insistia em que
eu me despisse rapidamente, puxando-me as
roupas com impaciência. Eu me debruçava sobre
ela e procurava satisfazer-lhe os caprichos,
enquanto as pesadas espigas balançavam-se
sobre nossas cabeças como as vagas de um mar
tranqüilo. Quando acontecia a Ewka adormecer
por momentos, eu me entretinha a perscrutar
esse dourado oceano de trigo, observando as
moscas varejeiras adejando timidamente os raios
de sol. Bem mais alto, as andorinhas, em suas
complicadas evoluções, anunciavam bom tempo.
Borboletas ziguezagueavam em perseguição des-
cuidada, enquanto um falcão solitário pairava
bem alto no céu, qual advertência permanente, à
espreita de algum pombo descuidado.
Sentia-me então seguro e feliz. Ewka movia-se
em seu sono; sua mão procurava-me
instintivamente, fazendo curvar as espigas pelo
caminho. Eu rastejava até onde ela se
encontrava, metia-me entre suas pernas e
beijava-a.
Ewka esforçava-se por fazer de mim um homem.
Procurava-me à noite e titilava-me os órgãos
genitais, introduzindo ali finas hastes de palha,
apertando, lambendo. Eu me surpreendia ao
perceber algo que até então desconhecia: coisas
que eu era incapaz de controlar começavam a
acontecer. Por enquanto eram movimentos
espasmódicos e imprevisíveis, ora rápidos, ora
retardados; mas eu sabia que não mais seria
capaz de controlar a sensação.
Cada vez que Ewka adormecia a meu lado, res-
mungando em sonhos, eu me punha a refletir
sobre tudo isso, enquanto ouvia os ruídos
produzidos pelos coelhos em torno de nós.
Não havia nada que eu não me dispusesse a
fazer por Ewka. Esqueci-me de minha sina de
cigano mudo destinado a perecer no fogo. Deixei
de ser o duende de quem os pastores
escarneciam, que lançava mau-olhado nas
crianças e nos animais. Em meus sonhos,
transformava-me numa figura alta, elegante, de
pele clara e olhos azuis, e cabelos do tom das
folhas secas de outono. Passava a ser um oficial
germânico metido num uniforme negro e bem
ajustado; ou então tornava-me um apanhador de
pássaros, conhecedor de todas as veredas
secretas das matas e dos pântanos.
Nesses sonhos, minhas mãos experientes
despertavam paixões selvagens nas moças da
aldeia, transformando-as em impudicas Ludmillas
que me perseguiam ao longo de veredas floridas,
deitando-se comigo em canteiros de tomilho
silvestre, entre campos de virgáureas.
Sonhava que estava abraçado a Ewka,
aprisionando-a qual uma aranha, enroscando-me
nela com os inúmeros pés de uma centopeia. Eu
crescia dentro de seu corpo como uma pequena
vergôntea, enxertada por hábil jardineiro numa
macieira de galhos fortes.
Outro sonho repetia-se constantemente,
trazendo consigo uma visão diferente. As
tentativas de Ewka em fazer de mim um adulto
obtinham êxito imediato. Determinada parte de
meu corpo crescia rapidamente até transformar-
se num tronco de dimensões desproporcionais,
enquanto o resto do corpo permanecia
inalterado. Tornava-me assim um aleijão
hediondo; trancado numa jaula, era exposto à
curiosidade excitada do povo. Então, Ewka
surgia, nua, do meio da multidão, e enlaçava-me
num abraço grotesco. Eu me tornava uma
excrescência disforme em seu corpo delicado. A
feiticeira Anulka rondava por perto com um
imenso facão, pronta para separar-me para
sempre da moça, para mutilar-me
traiçoeiramente e atirar-me às formigas.
Os sons que acompanham a aurora punham fim
aos meus pesadelos. As galinhas cacarejavam,
os galos lançavam para o alto o seu canto
triunfal, os coelhos pisoteavam o chão das
gaiolas, esfaimados, enquanto Ditko, aborrecido
com toda aquela algazarra, punha-se a rosnar e
depois a latir furiosamente. Ewka esgueirava-se
furtivamente para casa e eu distribuía entre os
coelhos o capim que o calor de nossos corpos
aquecera.
Makar inspecionava as coelheiras diversas vezes
ao dia. Conhecia todos os animais pelo nome e
nada escapava à sua atenção. Havia algumas
fêmeas cuja alimentação timbrava em vigiar
pessoalmente, e não se afastava das gaiolas
cada vez que alguma tinha uma ninhada. Uma
delas — um gigante branco de olhos rosados,
que nunca tivera cria — era a sua predileta.
Makar costumava levá-la consigo para casa e
conservava-a ali por dias a fio, depois do que o
animal parecia doente. Depois de algumas
dessas visitas a grande coelha branca aparecia
sangrando sob a cauda, recusava-se a comer e
parecia indisposta.
Um belo dia Makar chamou-me, e apontando
para ela ordenou-me que a matasse. Eu mal
podia crer no que ouvia. O animal era muito
valioso, pois as peles inteiramente brancas são
raras. Ademais, grande como era, resultaria em
excelente reprodutora. Makar repetiu a ordem,
sem fitar a mim ou ao animal. Eu não sabia como
agir. Makar costumava matar os coelhos
pessoalmente, receoso de que eu não tivesse
força suficiente para liquidá-los rapidamente e
sem dor. Competia-me depois esfolá-los e limpá-
los. Mais tarde, Ewka preparava com eles pratos
saborosos. Notando minha hesitação, Makar
esbofeteou-me e repetiu a ordem.
A coelha era pesada, e tive dificuldade em
arrastá-la até o pátio. Como se debatesse muito,
guinchando sem parar, não me foi possível
suspendê-la pelas patas traseiras para desferir-
lhe entre as orelhas o golpe mortal. Não tive
outro jeito senão liquidá-la sem levantá-la do
chão. Esperei o momento propício e atingi o
animal com toda a minha força. Por segurança,
desferi-lhe nova bordoada. Quando julguei que a
lebre estivesse morta, dependurei-a num poste
especialmente destinado a esse fim. Amolei o
facão sobre uma pedra e dei início ao
esfolamento.
Primeiramente cortei a pele das patas,
separando cuidadosamente os tecidos dos
músculos, evitando danificar de alguma forma o
couro. Depois de cada corte puxava a pele para
baixo, até chegar ao pescoço. Ali me vi em
apuros, pois o golpe entre as orelhas sangrava
de tal forma que encontrei dificuldade em
distinguir entre a pele e o músculo. Sabendo que
o menor dano causado a uma daquelas preciosas
peles deixava Makar enfurecido, eu não ousava
pensar no que poderia acontecer sé arranhasse
aquela.
Tratava de soltar a pele com redobrado cuidado,
puxando-a lentamente em direção à cabeça,
quando subitamente um estremecimento
percorreu o corpo pendente do gancho. Um suor
gelado cobriu-me todo. Esperei um instante, mas
o corpo permanecia imóvel. Tranqüilizei-me e,
julgando ter sido vítima de uma ilusão, retomei
minha tarefa. Então, novo estremecimento
percorreu o corpo. A coelha teria provavelmente
ficado apenas atordoada.
Corri para pegar o cacete, para acabar de matá-
la, mas um grito medonho me fez estacar. A
carcaça parcialmente esfolada pôs-se a saltar e a
debater-se, no poste de onde estava suspensa.
Atônito, desnorteado, soltei o animal indócil. A
coelha caiu ao chão e pôs-se imediatamente a
correr, ora para diante, ora para trás. Arrastando
a pele atrás de si, rolava pelo chão, guinchando
interminavelmente. Serragem, folhas secas,
poeira e esterco colavam-se à carne nua,
ensangüentada. Estremeções cada vez mais
violentos percorriam-na toda. Perdeu
completamente o senso de direção, cegada pelas
tiras de pele que lhe desciam sobre os olhos,
arrastando consigo gravetos e ervas, como se
fosse uma meia descalçada pela metade.
Seus gritos agudos desencadearam um
pandemônio no pátio. Os coelhos, aterrorizados,
endoidavam nas gaiolas, as fêmeas, excitadas,
pisoteavam os filhotes, os machos lutavam entre
si, guinchando, batendo os flancos contra as
paredes. Ditko saltava e puxava a corrente como
se quisesse arrebentá-la. As galinhas batiam as
asas, numa tentativa desesperada de fugir de
tudo aquilo, para logo a seguir tombarem,
resignadas e humilhadas, entre os tomates e as
cebolas empilhados no pátio.
A coelha, agora totalmente rubra, continuava
correndo. Ora disparava pelo capim, ora voltava
até as gaiolas, ou ainda precipitava-se sobre as
plantações de favas. Cada vez que sua pele meio
despregada prendia-se a algum obstáculo,
estacava com um guincho penetrante e
esguichava sangue.
Por fim, Makar precipitou-se do interior da casa,
armado com um machado. Correu atrás do
animal ensangüentado e com um golpe único
partiu-o ao meio. Depois, passou a golpear
incansavelmente a pasta ensangüentada. Seu
rosto estava de uma palidez amarelada, e
vociferava pragas assustadoras.
Quando do animal não restava senão uma polpa
sangrenta, Makar deu pela minha presença e
aproximou-se, trêmulo de ódio. Não pude
encolher-me a tempo, e um tremendo pontapé
no estômago me fez voar, sem fôlego, por sobre
a cerca. Foi como se o mundo inteiro rodopiasse
por sobre a minha cabeça. Fiquei cego, como se
minha própria pele me descesse sobre a cabeça
qual negro capuz.
O pontapé imobilizou-me semanas a fio. Fiquei
estirado numa antiga coelheira. Uma vez por dia,
o Codorna ou Ewka traziam-me algum alimento.
Às vezes Ewka vinha só, mas saía sem proferir
palavra, ao verificar as condições em que eu me
encontrava.
Uma vez, Anulka, que ouvira falar sobre o que
me acontecera, trouxe-me de presente uma
toupeira viva, que abriu ao meio diante de meus
olhos, aplicando-a sobre o meu abdome até que
o corpo do animal esfriasse por completo. Ao
terminar a operação, mostrava-se confiante em
que o seu tratamento haveria de fazer-me
restabelecer muito em breve.
Eu sentia falta da presença de Ewka, de seu
calor, de seu contato, de seu sorriso. Fiz o
possível para melhorar rapidamente, mas a força
de vontade por si não bastava. Cada vez que
tentava ficar de fé, um espasmo doloroso no
estômago deixava-me paralisado minutos a fio.
Só o fato de arrastar-me para fora do abrigo para
urinar já representava uma verdadeira agonia, e
não raro eu desistia do esforço e satisfazia
minhas necessidades ali mesmo.
Finalmente, Makar, ele próprio, veio ver-me, e
anunciou que se eu não voltasse ao trabalho
dentro de dois dias iria denunciar-me aos
camponeses. Estes estavam empenhados em
entregar algumas cotas de mantimentos na
estação ferroviária e não teriam escrúpulos em
entregar-me à polícia militar alemã.
Comecei a exercitar-me na marcha. Mas as
pernas não me obedeciam e cansava-me
facilmente.
Certa noite, ouvi ruídos do lado de fora. Espiando
por uma fresta entre as tábuas, avistei o
Codorna, que conduzia o bode para o quarto do
pai, onde uma lamparina ardia fracamente.
O bode era raramente levado para fora. Tratava-
se de um animal enorme e malcheiroso, bravio e
desteme-roso. O próprio Ditko preferia não ter
que enfrentá-lo. O bode atacava galinhas e perus
e atirava-se de cabeça contra cercas e troncos
de árvore. Certa feita correu-me no encalço, mas
eu me escondi nas coelheiras até que o Codorna
conseguiu afastá-lo.
Intrigado por essa estranha visita ao quarto de
Makar, subi ao teto da casinhola, de onde podia
vislumbrar o interior da cabana. Não tardou que
Ewka surgisse no quarto, enrolada num lençol.
Makar aproximou-se do bode e cutucou-lhe o
baixo-ventre com varas de vidoeiro, até ver o
animal suficientemente excitado. Então, com
alguns golpes leves da vara, forçou-o a pôr-se de
pé, as patas dianteiras apoiadas numa prateleira.
Ewka arrancou o lençol do corpo, e pude
verificar, horrorizado, que estava nua por baixo.
Deslizou para baixo do animal, agarrando-se a
ele como se fosse um homem. De tempos em
tempos Makar puxava-a de lado c excitava ainda
mais o animal. Por fim, deixou que Ewka
copulasse exaltadamente com o bode,
revolvendo-se, introduzindo-se entre suas patas,
e finalmente abraçando-se violentamente ao seu
corpo.
Alguma coisa desmoronou em meu íntimo. Meus
pensamentos desgarraram-se e desmantelaram-
se em pequenos fragmentos, como uma jarra
partida. Senti-me vazio como uma bexiga de
peixe repetidamente aguilhoada, afundando em
águas profundas e lamacentas.
Todos esses recentes acontecimentos tornaram-
se repentinamente óbvios e evidentes. Eles
refletiam a expressão que eu ouvira utilizar com
freqüência, a respeito de pessoas com grande
êxito na vida: "Tem trato com o Demônio".
Os camponeses costumavam acusar-se uns aos
outros de aceitar auxílio de demônios distintos,
como Lúcifer, Cadáver, Mammon, Exterminador,
e diversos outros. Se era verdade que as Forças
do Mal se encontravam tão facilmente à
disposição dos camponeses, elas estariam tam-
bém rondando em torno de qualquer outra
pessoa, prontas a entrar em ação a qualquer
sinal de encorajamento, ao menor sintoma de
fraqueza.
Procurei visualizar a maneira como operavam os
espíritos malignos. As mentes e as almas das
criaturas encontravam-se tão expostas a essas
forças como um campo recém-arado, e era nesse
campo que esses Maus Espíritos espalhavam
incansavelmente a sua semente maligna. Se
desabrochassem para a vida, se se sentissem
bem acolhidas, essas sementes proporcionavam
todo o auxílio que pudesse vir a ser necessário,
sob condição de ser utilizado para fins egoístas e
exclusivamente em detrimento de outrem. Desde
o instante em que firmava um pacto com o
Demônio, quanto mais malefícios, prejuízos e
amargores a criatura pudesse infligir entre
aqueles que a rodeavam, tanto mais auxílio
poderia esperar. Se se abstivesse de espalhar o
mal em torno de si, se sucumbisse aos sen-
timentos de amor, amizade e compaixão, não
tardaria a tornar-se mais fraca e sua própria vida
haveria de absorver os sofrimentos e desgraças
que poupava aos demais.
Essas entidades que se instalavam no espírito
humano passavam a observar atentamente não
apenas cada ação do indivíduo, como também os
seus motivos e emoções determinantes. O que
importava acima de tudo era que a criatura
promovesse conscientemente o mal, encontrasse
prazer em prejudicar os outros, em alimentar e
utilizar os poderes diabólicos que lhe haviam sido
conferidos pelos Maus Espíritos de uma forma
calculada para causar em torno de si tanta
miséria e sofrimento quanto possível.
Só aqueles que eram dotados de um sentimento
suficientemente intenso de ódio, ambição,
vingança ou tortura para atingir algum objetivo
pareciam estar em condições de fazer um trato
proveitoso com as Forças do Mal. Os outros,
confusos, inseguros sobre o objetivo a atingir,
perdidos entre preces e maldições, entre a
taberna e a igreja, lutavam sozinhos ao longo da
vida, sem contar com o auxílio de Deus ou do
Diabo.
Até então eu fora um desses. Recriminava-me a
mim mesmo por não haver compreendido mais
cedo as verdadeiras regras deste mundo. Era
evidente que os Maus Espíritos apenas se
interessavam por aqueles que já haviam
revelado uma dose suficiente de ódio e maldade
inatos.
A criatura vendida aos Maus Espíritos
permaneceria por toda a vida debaixo de sua
influência. De tempos em tempos deveria
comprovar um número crescente de más ações.
Estas, porém, não eram avaliadas
equitativamente pelos seus superiores. Um ato
que prejudicasse a uma única pessoa tinha
evidentemente menos valor do que outro que
atingisse a muitas. Igualmente importantes eram
as conseqüências da má ação. Arruinar a vida de
um rapaz ainda jovem era indubitavelmente mais
proveitoso do que fazer o mesmo a um homem
idoso, que de qualquer maneira não tinha muito
tempo de vida pela frente. Ademais, se o mal
feito a alguém tivesse por conseqüência alterar-
lhe o caráter de tal forma a orientar-lhe as
tendências definitivamente para o mal, tornava-
se merecida uma gratificação especial. Assim,
espancar simplesmente um homem inocente
tinha menos valor do que incitá-lo a odiar a
outros. Todavia, o ódio concentrado de grupos
numerosos representaria provavelmente o ato
mais valioso de todos. Era difícil avaliar o prêmio
a que fazia jus aquele que lograva inculcar em
todas as criaturas louras, de olhos azuis, um ódio
permanente pelos de pele morena.
Outrossim, comecei a compreender o
extraordinário sucesso dos germânicos. Lembrei-
me de certa vez ter ouvido o padre explicar a
alguns camponeses que, desde épocas remotas,
os germânicos apreciavam envolver-se em
guerras com os povos vizinhos. A paz nunca os
atraíra verdadeiramente. Não se interessavam
por arar o solo, e tampouco tinham paciência de
esperar o ano inteiro pelo tempo da colheita;
preferiam atacar outras tribos e roubar-lhes as
safras. Nessa ocasião, ao que tudo indica, os
alemães foram percebidos pelos Maus Espíritos.
Ansiosos por espalhar o mal em torno de si,
concordaram em submeter-se integralmente à
sua influência. Eis por que tinham autoridade
para impor aos demais todos os seus refinados
métodos de procedimento nefasto. O êxito
representava para eles um círculo vicioso:
quanto mais danos causassem entre os outros,
tanto mais forças secretas garantiam para
exercer o mal.
Ninguém podia detê-los. Eram invencíveis:
cumpriam sua função com magistral habilidade.
Contaminavam a outros com o ódio de que
estavam possuídos, condenavam nações inteiras
ao extermínio. Era provável que todos os
alemães houvessem vendido a alma ao Diabo
desde o berço. Aí residia o segredo de seu poder
e de sua força.
Um suor frio invadia-me o corpo, no abrigo
imerso em trevas. Pessoalmente, eu tinha
inúmeras pessoas a quem odiar. Por quantas
vezes sonhara com o dia em que seria forte o
bastante para voltar, incendiar suas habitações,
envenenar-lhes os filhos e o gado, atraí-los para
pantanais mortíferos! Num certo sentido, eu já
fora recrutado pelas Forças do Mal e com elas
assentara um pacto. Tudo o de que necessitava
agora era sua assistência para poder disseminar
o mal. Afinal de contas, eu era ainda muito moço:
os Poderes Maléficos tinham motivos de sobra
para acreditar que eu tinha todo um futuro a
dedicar-lhes, que possivelmente minha
capacidade de ódio e meu apetite pelo mal
desabrochariam qual erva daninha, espalhando
sua semente sobre campos sem fim.
Sentia-me mais forte e mais confiante. O tempo
da passividade escoara-se; a crença no efeito do
bem, no poder da oração, dos altares, dos padres
e de Deus só havia resultado para mim na
privação da fala. Por outro lado, meu amor por
Ewka, meu anseio em dedicar-me inteiramente a
ela haviam encontrado sua justa recompensa.
Tomei a deliberação de aliar-me àqueles que
eram ajudados pelos Poderes Maléficos. Até
então, eu não contribuíra verdadeiramente para
a sua obra, mas no devido tempo quiçá me
tornaria tão importante quanto alguns dos
alemães mais preeminentes. Poderia candidatar-
me a prêmios e condecorações, bem como a
poderes adicionais que me permitissem destruir
a outras criaturas através dos métodos mais
sutis. Aqueles que entrassem em contato comigo
ficariam por seu lado infetados pelo mal. Eles
levariam avante a tarefa de destruição, e cada
um de seus êxitos representaria novos poderes
em meu favor.
Não havia tempo a perder. Cumpria-me erigir um
potencial de ódio que me forçasse a agir e a
atrair a atenção das Forças do Mal. Se elas
realmente existiam, dificilmente perderiam a
oportunidade de utilizar um elemento como eu.
Já não sentia dor alguma. Rastejei até a casa e
espiei pela janela. No quarto, a brincadeira com o
bode terminara; o animal estava tranqüilamente
de pé a um canto. Ewka divertia-se agora com o
Codorna. Ambos estavam nus e espojavam-se
alternadamente um sobre o outro, saltavam
como sapos, rolavam pelo chão e abraçavam-se
da maneira como Ewka me ensinara. Makar,
também despido, mantinha-se um pouco
afastado e observava-os de cima. Quando a
moça punha-se a espernear e a sacudir-se,
enquanto por cima dela o Codorna permanecia
rígido e impassível como um mourão de cerca,
Makar ajoelhava-se ao lado deles, próximo ao
rosto da filha, e seu corpo gigantesco escondia-
os de minhas vistas.
Demorei-me a observá-los por alguns momentos.
A visão destilava-se na minha mente entorpecida
como gotas de água gelada escorrendo ao longo
de um pingente de gelo.
Fui presa de um violento desejo de agir e
arrastei-me para fora, claudicando. Ditko,
familiarizado com os meus movimentos, limitou-
se a rosnar e voltou a dormir. Caminhei até a
cabana de Anulka, no extremo oposto da aldeia,
e esgueirei-me até a porta, procurando por toda
parte um fogareiro. As galinhas, assustadas pela
minha presença, puseram-se a cacarejar
insistentemente. Espiei pela fresta da porta
acanhada.
A velha despertara com o ruído. Agachei-me
atrás de um grande barril e quando Anulka saiu
da porta emiti um grunhido aterrador,
sobrenatural, ao mesmo tempo que lhe golpeava
as canelas com uma vara. A velha feiticeira fugiu
correndo e implorando o auxílio do Senhor e de
todos os santos, tropeçando nas estacas que
amparavam as plantações de tomates do jardim.
Entrei na única e abafada peça e não tardei a
encontrar um velho fogareiro, junto ao fogão.
Alimentei-o com alguns carvões em brasa e
disparei em direção à floresta. Às minhas costas
ouvia a voz aguda de Anulka e os sons
longínquos de latidos e vozes humanas que
respondiam aos seus apelos.

XIII
Naquela época do ano não era difícil fugir de
uma aldeia. Por mais de uma vez eu vira os
rapazes atarem patins de fabricação caseira aos
seus sapatos e enrolarem à cabeça retalhos de
tela, deixando que o vento os empurrasse sobre
a lisa superfície do gelo que recobria os pântanos
e os pastos.
Os pantanais estendiam-se por muitas milhas
entre as aldeias. No outono, o nível das águas
subia, submergindo caniços e arbustos. Peixes
pequenos e outros animais multiplicavam-se
rapidamente nos lodaçais. Não raro era possível
avistar-se uma serpente, a cabeça
atrevidamente erguida, nadando com
determinação. Os pantanais não costumavam
congelar tão rapidamente quanto os poços e
lagos naturais. Dir-se-ia que, pelo simples fato de
agitarem a água, os ventos e os caniços se
estavam defendendo a si mesmos.
Ao final, porém, o gelo tomou conta de tudo.
Apenas o topo dos altos caniços sobressaía aqui
e ali, revestido de uma camada gelada onde
flocos de neve se empoleiravam precariamente.
Os ventos chegaram, bravios e tempestuosos.
Tendo ultrapassado os alojamentos humanos,
conquistaram velocidade sobre os pantanais
rasos, carregando em seu rastro nuvens de neve
desfeita em pó, arrastando consigo galhos velhos
e hastes secas de batatas, fazendo curvar-se as
frondes altivas das árvores mais altas que ainda
sobressaíam da camada de gelo. Eu sabia que
existiam diferentes tipos de ventos e que estes
disputavam entre si, barrando-se uns aos outros,
esforçando-se incessantemente por conquistar
mais terreno.
Prevendo que algum dia teria que sair
definitivamente da aldeia, eu já confeccionara
com antecedência um par de patins, unindo com
arame sólido duas longas tiras de madeira,
encurvadas numa das extremidades. Com o
auxílio de tiras de fazenda, fixei-as então
solidamente às botas, também confeccionadas
por mim. Consistiam elas em solas retangulares
de madeira e tiras de pele de coelho, reforçadas
no exterior com pedaços de tela.
Tendo atingido a borda do pantanal, atei os
patins às botas e, pendurando ao ombro o
fogareiro incandescente, desfraldei a vela sobre
a cabeça. A mão invisível do vento se encarregou
de empurrar-me. A cada rajada que me impelia
para mais longe da aldeia, aumentava a minha
velocidade. Enquanto meus patins deslizavam
sobre a superfície gelada, o calor do fogareiro
aquecia-me o corpo. Encontrava-me agora no
centro de uma imensa planície gelada, impelido
pelos ventos uivantes, enquanto nuvens
acinzentadas de bordas coloridas competiam
comigo na carreira durante todo o trajeto.
Deslizando ao longo daquela planície alva e
interminável eu me sentia livre e só como um
estorninho revoluteando no ar, inconsciente de
sua velocidade, arrastado a uma sarabanda
desenfreada. Entregando-me totalmente à
discrição do vento, soltei ainda mais à larga a
minha vela. Era difícil acreditar que os moradores
locais encarassem o vento como um inimigo e
fechassem suas janelas para defender-se contra
ele, receando que pudesse trazer-lhes epidemias,
paralisia e morte. Era crença popular que o Diabo
era o chefe dos ventos, que lhe obedeciam às
ordens perversas.
O ar gelado empurrava-me agora a um ritmo
acelerado. Eu voava literalmente sobre o gelo,
desviando-me de choques ocasionais contra talos
congelados. A luz do sol era pálida e coada, e
quando finalmente parei senti os ombros e os
tornozelos enrijecidos pelo frio. Decidi que era
tempo de descansar e aquecer-me um pouco,
mas ao tentar alcançar meu fogareiro verifiquei
que se apagara. Nem uma centelha restava.
Senti-me fraquejar de medo, sem saber o que
fazer. Não podia voltar à aldeia, e não tinha
forças suficientes para perseverar naquela
interminável batalha contra o vento. Ignorava se
existiam fazendas nas proximidades, se chegaria
a atingi-las antes do cair da noite e, mesmo no
caso de alcançá-las, se me dariam abrigo.
Ouvi algo que se assemelhava a um riso
reprimido, no vento que assobiava. Estremeci à
idéia de que o próprio Demônio punha-me à
prova, fazendo-me rodopiar em círculos, à espera
do momento em que eu lhe aceitasse o
oferecimento.
Enquanto o vento me açoitava eu ouvia outros
suspiros, murmúrios e gemidos. Finalmente, as
Forças do Mal se interessavam pela minha
pessoa. Para adestrar-me no ódio haviam
começado por separar-me de meus pais, depois
tinham afastado de mim Marta e Olga, me
atirado entre as mãos do carpinteiro, me privado
da palavra, entregue Ewka ao bode. Agora
arrastavam-me através de um deserto gelado,
atiravam-me neve ao rosto, agitavam-me os
pensamentos em meio à maior confusão. Eu me
encontrava totalmente em seu poder, sozinho
sobre uma fina camada de gelo que os próprios
Maus Espíritos haviam estendido entre aldeias
distantes entre si. Eles davam saltos mortais
sobre minha cabeça e tinham o poder de atirar-
me para onde quisessem, a seu critério.
Pus-me a caminhar com os pés doloridos,
esquecido do tempo. Cada passo era-me penoso,
e tinha que descansar a intervalos freqüentes.
Sentava-me então sobre o gelo, procurando
movimentar as pernas enregeladas, esfregando
as bochechas, o nariz e as orelhas com a neve
recolhida do cabelo e da roupa, massageando os
dedos enrijecidos, procurando despertar alguma
sensação nos artelhos dormentes.
O sol estava rente com a linha do horizonte e
seus raios oblíquos pareciam-me tão frios quanto
os da lua. Quando me sentei para descansar, o
mundo em torno afigurou-se-me uma imensa
caçarola cuidadosamente polida por uma exímia
dona de casa.
Novamente estendi o pedaço de tela sobre a
cabeça, esforçando-me por distinguir qualquer
alteração na paisagem, à medida que avançava
rumo ao sol poente. Quando já estava a ponto de
desesperar, avistei os contornos distantes de
tetos de colmo. Minutos depois, quando a aldeia
já se delineava nitidamente, distingui um bando
de garotos que se aproximavam sobre patins.
Sem poder contar com o auxílio do meu
fogareiro, senti-me tomado de receio, e procurei
desviar-me cortando caminho em ângulo, em
direção aos arrabaldes da localidade. Era tarde
demais, porém; eles já se haviam apercebido de
minha presença.
O grupo rumou em minha direção. Pus-me a
correr contra o vento, mas faltava-me o fôlego e
era com dificuldade que conseguia firmar-me nas
pernas. Sentei-me no solo gelado, agarrando
firmemente a alça do fogareiro.
Os rapazes aproximavam-se. Eram em número
de dez ou mais. Balançando os braços,
amparando-se uns aos outros, avançavam
disciplinadamente contra o vento. As rajadas de
ar jogavam-lhes as vozes para trás; eu nada
podia ouvir do que diziam.
Ao chegarem bem próximo repartiram-se em
dois grupos e aproximaram-se cautelosamente.
Dobrei-me em dois sobre a superfície gelada e
cobri o rosto com a tela, na esperança de que me
deixassem em paz.
Não tardaram a rodear-me, suspeitosos. Três dos
mais fortes do grupo aproximaram-se.
— Um cigano — anunciou um deles. — Um bas-
tardo cigano.
Os demais não se moveram, porém quando fiz
um movimento para erguer-me saltaram sobre
mim, torcendo-me os braços atrás das costas. A
excitação contagiou o grupo. Golpearam-me no
rosto e no estômago. O sangue congelou-se em
meus lábios, fechando-me um olho. O mais alto
dos rapazes disse qualquer coisa, com o que os
outros pareceram concordar entusiasticamente.
Enquanto uns seguravam-me pelas pernas, os
outros começaram a tirar-me as calças. Percebi o
que estavam intentando fazer; já assistira
anteriormente a um bando de pastores
violentarem um rapaz da aldeia vizinha que se
aventurara em seus terrenos. Sabia que só um
imprevisto poderia salvar-me daquela situação.
Deixei que me tirassem as calças, fingindo que
estava exausto e sem forças para reagir. Calculei
acertadamente que não se dariam ao trabalho de
tirar-me as botinas e os patins, por estarem bem
presos aos meus pés. Constatando que eu não
oferecia resistência, os rapazes relaxaram a
pressão. Dois dos mais fortes agacharam-se
junto ao meu abdome descoberto e golpearam-
no com suas luvas congeladas.
Contraí os músculos e, encolhendo
imperceptivelmente uma das pernas, desferi um
pontapé num dos rapazes que se debruçava
sobre mim. Alguma coisa estalou em sua cabeça.
Julguei a princípio que fosse o patim, mas
constatei que estava inteiro, quando o arranquei
à força do olho do rapaz. Outro tentou agarrar-
me pelas pernas; chutei-o no pescoço com a
lâmina do patim. Os dois caíram sobre o solo
gelado, sangrando abundantemente. Os demais
garotos entraram em pânico; a maioria tratou de
arrastar os dois companheiros feridos em direção
à aldeia, deixando no gelo um rastro de sangue.
Quatro deles ficaram para trás.
Estes me imobilizaram com uma longa vara,
usada para a pescaria nos buracos do gelo.
Quando parei de me debater, arrastaram-me até
uma abertura próxima. À aproximação da água,
resisti desesperadamente, mas eles estavam em
superioridade numérica. Dois deles se encar-
regaram de alargar a abertura, e depois todos
juntos atiraram-me à água, empurrando-me para
debaixo da camada de gelo com a ponta
aguçada da vara. Procuravam certificar-se de
que eu não mais poderia emergir.
A água gelada fechou-se sobre minha cabeça.
Fechei a boca e prendi a respiração, consciente
da dolorosa pressão da vara a empurrar-me para
baixo. Deslizei para debaixo do gelo, que me
arranhava a cabeça, os ombros e as mãos nuas.
Pouco depois, a vara, que os meninos haviam
abandonado, oscilava-me entre os dedos.
O frio rodeava-me de todos os lados. Minha
própria mente congelava-se. Eu mergulhava
cada vez mais fundo, sentindo-me asfixiar.
Felizmente, a água aqui era rasa, e minha única
esperança era poder usar a vara para tomar um
impulso no fundo e alçar-me até a fenda no gelo.
Agarrado a ela, movimentei-me paralelamente à
superfície gelada. Quando sentia os pulmões a
ponto de estourar e me dispunha a abrir a boca e
engolir o que quer que fosse, encontrei-me
próximo à abertura no gelo. Com mais um
impulso consegui fazer emergir a cabeça e
aspirei um sorvo de ar que me fez o efeito de
uma colherada de sopa fervendo. Firmei as mãos
na borda aguçada do gelo, agarrando-me a ela
de forma a poder respirar sem ser obrigado a
emergir com muita freqüência. Ignorando até
onde os rapazes se haviam afastado, preferi
esperar um pouco.
De vivo em mim, só sentia o rosto; o resto de
meu corpo estava completamente entorpecido.
Eu não o sentia de todo; parecia-me fazer parte
do gelo que me rodeava. Esforcei-me por
movimentar os braços e as pernas.
Espreitando cautelosamente por sobre a borda
do gelo, avistei os rapazes que desapareciam a
distância, seus vultos diminuindo
progressivamente. Quando julguei que estavam
suficientemente afastados, alcei-me para a
superfície. Minhas roupas imediatamente se
congelaram, estalando a cada movimento. Pus-
me a saltar e a estirar os braços e as pernas
enrijecidos, ao mesmo tempo que friccionava o
corpo com punhados de neve, mas a sensação
de calor retornava apenas por poucos segundos,
para logo em seguida desvanecer-se. Amarrei à
altura dos joelhos os restos esfarrapados das
calças, e, retirando a vara da fenda do gelo, pus-
me a caminho apoiando-me com toda a força do
corpo sobre ela. O vento empurrava-me para o
lado; tinha dificuldade em conservar o rumo.
Quando me senda fraquejar, montava sobre a
vara e caminhava sobre ela, como se fora um
cavalo de pau.
Afastava-me aos poucos das cabanas, tomando o
rumo de uma floresta visível a distância. Era hora
do crepúsculo, e o disco incandescente do sol
surgia recortado pelas silhuetas geométricas dos
telhados e chaminés. Cada lufada de vento
privava-me o corpo de preciosas reservas de
calor. Eu sabia que não devia descansar nem
parar por um instante que fosse até alcançar a
floresta. Comecei a distinguir os desenhos
formados pelas cascas das árvores. Uma lebre
assustada saltou de sob um arbusto.
Ao atingir as primeiras árvores, senti a cabeça
girar. Parecia-me estar em pleno verão, com as
espigas douradas dos trigais balançando-se
sobre minha cabeça, enquanto Ewka afagava-me
com suas mãos suaves. Assaltavam-me visões de
comida: uma imensa terrina de carne temperada
com vinagre, alho, pimenta e sal; uma tigela de
pirão grosso enriquecida com folhas de couve e
fatias de suculento toucinho; fatias de pão de
cevada encharcadas numa sopa grossa feita de
cevada, batatas e trigo.
Com mais alguns passos sobre o solo gelado,
atingia a orla da floresta. Meus patins
emaranharam-se em raízes e moitas. Tropecei
uma vez e sentei-me num tronco de árvore.
Quase imediatamente comecei a afundar num
leito morno cheio de travesseiros macios e de
quentes cobertores. Alguém debruçava-se sobre
mim, ouvia uma voz feminina, transportavam-me
para algum lugar. Tudo se dissolvia numa
mormacenta noite de verão, plena de brumas
úmidas e inebriantes.

XIV
Acordei numa cama larga e baixa, encostada à
parede e coberta com peles de carneiro. Fazia
calor no quarto, e a luz bruxuleante de uma vela
grossa permitia distinguir um chão de terra
batida, paredes caiadas e um teto de colmo. A
chaminé era encimada por uma cruz. Junto às
altas chamas estava sentada uma mulher.
Estava descalça; vestia uma saia justa de linho
grosseiro, e sua jaqueta feita de peles de coelho
e cheia de perfurações estava desabotoada até a
cintura. Percebendo que eu despertara, aproxi-
mou-se e sentou-se na borda da cama, que
gemeu sob o seu peso. Levantando-me o queixo,
examinou-me atentamente. Tinha os olhos de
um azul esmaecido, e quando falava não cobria a
boca com a mão, como era costume aqui. Ao
invés disso, revelava duas fileiras de dentes
amarelados, desiguais.
Falava-me num dialeto local que eu não
compreendia inteiramente. Insistia em chamar-
me de pobre ciganinho, de judeuzinho enjeitado.
A princípio, não queria acreditar que eu fosse
mudo. Costumava inspecionar-me a boca, dar-
me tapas na garganta, e procurava assustar-me
para ver se eu reagia; mas não tardou a cessar
essas manobras, ao perceber que eu continuava
em silêncio.
Naquela noite, fez-me ingerir um caldo quente e
espesso e inspecionou cuidadosamente minhas
orelhas, pés e mãos enregelados. Disse-me
chamar-se Labina. Desde o início senti-me
seguro e contente a seu lado. Entendia-me muito
bem com ela.
Durante o dia, Labina empregava-se como
doméstica para um ou outro fazendeiro mais
rico, especialmente os que tinham esposas
doentes ou um número elevado de filhos. Era
freqüente levar-me consigo, para que eu pudesse
fazer uma refeição decente, muito embora na
aldeia todos comentassem que eu deveria ser
entregue aos alemães. A essas observações,
Labina replicava com uma torrente de injúrias,
bradando que todos eram iguais diante de Deus
e que ela não era nenhum Judas para vender seu
próximo por algumas moedas.
Quase todas as noites, Labina recebia visitas em
sua cabana. Homens que conseguiam escapulir
de suas casas apresentavam-se com garrafas de
vodca e cestos de mantimentos.
A cabana comportava uma cama única e de
tamanho descomunal, que podia acomodar
facilmente três pessoas. Entre uma de suas
extremidades e a parede sobrava um espaço
amplo onde Labina empilhava sacos vazios,
trapos velhos e peles de carneiro, com o que me
fornecia um canto para dormir. Eu
invariavelmente me acomodava ali muito antes
da chegada dos convivas, mas freqüentemente
era despertado pelos seus cantos e brindes
ruidosos. Entretanto, fingia estar adormecido.
Não desejava expor-me à surra com a qual
Labina, quase sempre a contragosto, me
ameaçava. Por entre os olhos semicerrados podia
observar o que se passava no aposento.
Tudo começava com uma rodada de bebidas,
que se estendia até tarde da noite.
Habitualmente, um dos homens ficava, depois
que os outros se tinham despedido. Ele e Labina
sentavam-se então ao lado do fogão morno e
bebiam do mesmo copo. Quando ela começava a
cambalear e a recostar-se em seu ombro, ele
apoiava a mão enorme e enegrecida sobre as
coxas flácidas da mulher e fazia-a subir
lentamente por sob a sua saia.
Labina a princípio mostrava-se indiferente, e a
seguir debatia-se um pouco. A outra mão do
homem deslizava-lhe do pescoço até o interior
da blusa, apertando-lhe os seios com tamanha
força que a fazia gritar e ofegar roucamente. Vez
por outra o homem, de joelhos no chão,
mergulhava o rosto agressivamente em sua
virilha, mordendo-a por sobre a saia ao mesmo
tempo que com ambas as mãos lhe apertava as
nádegas. Era comum que lhe golpeasse a virilha
com a borda da mão, fazendo-a curvar-se sobre
si mesma e gemer.
A vela era então apagada. Despiam-se no escuro,
entre risadas e xingamentos, tropeçando sobre
os móveis e um sobre o outro, espalhando as
roupas com impaciência, derrubando garrafas,
que rolavam pelo chão do quarto. Quando
tombavam sobre a cama, eu temia, a cada vez,
que esta arriasse. Enquanto minha mente se
fixava nos ratos que nos faziam companhia na
cabana, Labina e seu visitante espojavam-se no
leito, ofegando e debatendo-se, chamando ora
por Deus ora por Satanás, o homem a uivar como
um cão, ela grunhindo como um porco.
Com freqüência, em plena noite, interrompendo-
me os sonhos, eu despertava no solo, entre a
cama e a parede. A cama estremecia sobre
minha cabeça, deslocada pelos corpos que se
movimentavam em acessos convulsivos. Fi-
nalmente, passava a deslizar pelo chão inclinado,
em direção ao centro do aposento.
Impossibilitado de alçar-me de volta ao leito do
qual acabara de cair, não me restava senão
arrastar-me para debaixo dele e puxá-lo de volta
contra a parede. Feito isto, retornava à minha
enxerga. O chão de terra batida, sob a cama, era
frio e úmido, e recoberto de excrementos de
gatos e de restos de passarinhos que estes
haviam trazido consigo. Enquanto me arrastava
no escuro, roçava em grossas teias de aranha, e
estas, assustadas, corriam-me pelo rosto e pelos
cabelos. Pequenos camundongos disparavam em
direção aos seus esconderijos, roçando-me o
corpo de passagem.
O contato entre esse mundo asqueroso e o meu
corpo despido costumava encher-me de revolta e
temor. Esgueirando-me de sob a cama, e depois
de limpar as teias de aranha que se agarravam
ao meu rosto, eu aguardava, tremendo de frio,
pelo momento propício para empurrá-la de volta
contra a parede.
Pouco a pouco, meus olhos habituavam-se à
escuridão. Ficava à espreita, enquanto o corpo
volumoso e suarento do homem cavalgava a
mulher excitada. Ela lhe cingia as nádegas
volumosas com as pernas, que se assemelhavam
às asas de um pássaro esmagado sob uma
pedra.
O camponês grunhia e suspirava pesadamente e,
suspendendo o corpo da mulher com um braço,
alçava o seu próprio corpo, e com as costas da
mão golpeava-lhe os seios. A pancada ecoava
como se fora um pano molhado batido contra
uma pedra. Ele tornava a abater-se sobre ela e a
mantinha imobilizada sobre a cama. Labina, cho-
rando incoerentemente, golpeava-lhe as costas
com as mãos. Vez por outra o homem soerguia-
lhe o corpo, forçava-a a ajoelhar-se no leito
apoiando-se sobre os cotovelos, e penetrava-a
por trás, batendo-lhe ritmadamente com o
estômago e as coxas.
Invadido por uma sensação de desapontamento
e desgosto, eu contemplava os dois vultos
humanos interligados e estrebuchantes. Assim,
era isto o amor: selvagem como um touro
atiçado com um espigão, brutal, malcheiroso,
suarento. Esta espécie de amor era como se fora
uma rixa em que o homem e a mulher
arrancassem prazer à força um do outro,
debatendo-se, incapazes de raciocínio, semi-
atordoados, arquejantes, em condições
equiparáveis às de um animal.
Vinham-me então à mente os meus momentos
de convivência com Ewka. Como fora diferente a
minha maneira de tratá-la. Meu toque era suave;
minhas mãos, minha boca, minha língua
adejavam conscientemente sobre sua pele,
suave e delicada como gaze flutuando no ar
morno e parado. Esforçava-me continuamente
por encontrar pontos novos e sensíveis que ela
mesma ignorava, fazendo-os vibrar com meu
toque, como os raios de sol fazem reviver uma
borboleta entorpecida pela frialdade do ar de
uma noite de outono. Recordava os elaborados
esforços que despendera, e como estes haviam
despertado no corpo da jovem certos desejos e
prazeres que de outra forma teriam ali
permanecido aprisionados para sempre. Eu os
libertava, ansioso sempre por que ela
encontrasse o prazer em si mesma.
Os amores de Labina e seus convidados eram de
breve duração. Assemelhavam-se às curtas
chuvaradas de primavera, que umedecem as
folhas e a grama, porém jamais atingem as
raízes. Recordei-me de como minhas
brincadeiras com Ewka jamais cessavam
verdadeiramente, e sim apenas diminuíam de
intensidade cada vez que Makar ou o Codorna
interferiam em nossas vidas. Estendiam-se pela
noite adentro, como uma fogueira de turfa
brandamente alimentada pelo vento. E no
entanto esse próprio amor fora extinto com a
mesma rapidez com que carvões ardentes são
abafados com uma manta grosseira de pastor.
Logo que me vi provisoriamente incapaz de di-
vertir-me com ela, Ewka esqueceu-me por
completo. Ao calor de meu corpo, às ternas
carícias de meus braços, ao contato delicado de
meus dedos e de minha boca, preferia um bode
cabeludo e malcheiroso e sua odiosa e profunda
penetração.
Passado algum tempo a cama cessava de
estremecer, e as carcaças amolecidas,
esparramadas ali como gado recém-abatido,
mergulhavam num sono profundo. Eu então
empurrava a cama contra a parede, subia nela, e
encolhia-me no meu canto gelado, puxando
sobre o corpo todas as peles disponíveis.
Nas tardes chuvosas, Labina tornava-se
melancólica e desandava a falar sobre seu finado
marido, Laba. Há muitos anos atrás, ao que
consta, Labina fora uma bela jovem, a quem os
camponeses mais ricos faziam a corte. Contra
todos os conselhos da razão, porém, apaixonou-
se pelo empregado mais pobre da aldeia, Laba,
também conhecido pela alcunha de Boa Pinta, e
com ele se casou.
Laba era realmente um tipo bem apessoado, alto
e ágil como um choupo. O sol tirava reflexos
dourados de seus cabelos, ele tinha os olhos
mais azuis que o céu de verão, e a pele mais
macia que a de uma criança. Quando cruzava o
olhar com uma mulher, o sangue desta transfor-
mava-se em fogo e pensamentos lúbricos lhe
perpassavam pela mente. Laba tinha noção de
sua boa aparência e sabia que costumava
despertar nas mulheres admiração e
pensamentos lascivos. Nada lhe dava maior
prazer do que vaguear pela floresta e banhar-se
no lago totalmente despido. Um relancear de
olhos entre os arbustos convencia-o de que
estava sendo observado por jovens donzelas e
mulheres casadas.
Apesar de tudo isso, porém, era o mais pobre de
todos os trabalhadores da aldeia. Era contratado
pelos camponeses mais abastados e tinha que se
sujeitar a um sem-número de vexames.
Conscientes de que suas esposas e filhas o
desejavam, procuravam humilhá-lo de todas as
maneiras possíveis. Costumavam também
atenazar Labina, sabendo que seu marido sem
vintém dependia inteiramente deles e jamais
poderia tomar qualquer iniciativa por conta
própria.
Num dia de verão, Laba não regressou de seu
trabalho no campo. Também não apareceu no
dia imediato, ou no outro. Desapareceu
simplesmente, como uma pedra lançada ao
fundo de um lago.
Pensou-se que se tivesse afogado ou houvesse
sido sugado por algum pantanal, ou ainda que
algum rival ciumento o tivesse apunhalado e
enterrado à noite na floresta.
A vida prosseguiu sem Laba. Só o refrão "belo
como Laba" foi conservado na aldeia.
Um ano inteiro se passou sem que Laba
aparecesse. O povo em geral esqueceu-se dele, e
apenas Labina acreditava que ele ainda estava
vivo e haveria de voltar um dia. Numa tarde de
verão, enquanto os aldeães descansavam na
reduzida sombra das árvores, da orla da floresta,
surgiu uma carroça puxada por um cavalo bem
nutrido. A carroça transportava uma mala
descomunal, recoberta por um pedaço de
fazenda; a seu lado caminhava o Boa Pinta Laba,
envergando uma bela jaqueta de couro atirada
sobre os ombros à maneira dos hussardos, calças
do mais fino tecido e botas reluzentes de cano
alto.
Os garotos da aldeia apressaram-se em percorrer
as cabanas, levando a notícia, e em pouco tempo
todos os habitantes, homens e mulheres,
enxameavam em direção à estrada. Laba
acolhia-os a todos com um cumprimento
indiferente, ao mesmo tempo que enxugava o
suor que lhe escorria da fronte e espicaçava o
animal.
Labina, prevenida, já se encontrava à espera na
porta da cabana. Viram-no beijar a mulher,
descarregar a mala de tamanho exagerado e
desaparecer no interior da cabana. Os vizinhos
aglomeraram-se à porta, tomados de admiração
ante o cavalo e a carruagem.
Depois de aguardar impacientemente que Laba e
Labina reaparecessem, os aldeães começaram a
soltar piadas. Em casos como aquele, diziam, era
preciso derramar água fria sobre o casal.
Inesperadamente, as portas da cabana abriram-
se, e a multidão, atônita, prendeu a respiração.
No limiar da porta apresentava-se o Boa Pinta
Laba, envergando um traje de incrível esplendor.
Usava uma camisa de seda listrada cujo
colarinho engomado cingia-lhe o pescoço
queimado de sol, e ainda uma gravata vistosa. O
terno de flanela macia era evidentemente
imaculado. Do bolso superior sobressaía qual
uma flor um lenço de cetim. O conjunto
completava-se com um par de botas
envernizadas de preto e, como distinção
suprema, do bolso do colete pendia-lhe um
relógio de ouro.
Os camponeses estavam boquiabertos de
espanto. Nada desse gênero ocorrera até então
na crônica da aldeia. Seus habitantes vestiam
habitualmente jaquetas de fabricação caseira,
calças emendadas de dois comprimentos de
tecido e botas de couro mal curtido pregadas a
uma sola de madeira inteiriça. Enquanto isso,
Laba extraía de sua mala um número
despropositado de paletós coloridos de corte
invulgar, calças, camisas, sapatos de verniz, que
brilhavam a ponto de poderem servir de
espelhos, e ainda lenços, gravatas, meias e
roupas internas. O Boa Pinta Laba passou a ser o
objeto supremo do interesse local. Histórias
curiosas passaram a circular a seu respeito. Vá-
rias hipóteses foram aventadas em torno à
origem desses objetos de valor inestimável.
Labina via-se pressionada por perguntas às quais
não podia dar resposta, porquanto Laba limitava-
se a fornecer respostas vagas, que ainda mais
contribuíam para o reforço da lenda.
Durante os ofícios religiosos, ninguém olhava
para o padre no altar. Todos os olhares
convergiam para o canto direito da nave, onde o
Boa Pinta Laba instalava-se, retesado, ao lado da
mulher, envergando seu traje de cetim negro
combinando com a camisa florida. No pulso,
ostentava um relógio vistoso, que de quando em
vez consultava ostensivamente. As vestes
sacerdotais, que até então haviam constituído o
máximo em matéria de ornamentação, pareciam
agora tão insípidas quanto um céu hibernal. Os
que gozavam do privilégio de sentar-se próximo
a Laba deliciavam-se com as fragrâncias
invulgares que emanavam de sua pessoa. Labina
confidenciava que provinham de pequenas
garrafas e frascos misteriosos.
Terminada a missa, o povo transferia-se para o
pátio do presbitério e desconhecia a presença do
vigário, por mais que este se esforçasse em
chamar-lhe a atenção. Ficavam à espera de
Laba. Ele se encaminhava para a saída com
andar altivo e compassado, os tacões dos
sapatos batendo com força contra o chão da
nave. O povo abria-lhe passagem
respeitosamente. Alguns camponeses mais ricos
aproximavam-se e cumprimentavam-no com
familiaridade, convidando-o para suas casas, em
jantares oferecidos em sua homenagem. Sem se
dar ao trabalho de baixar a cabeça, Laba
apertava com ar superior as mãos que se lhe
estendiam. As mulheres interpunham-se em seu
caminho e, indiferentes à presença de Labina,
suspendiam as saias de forma a que as coxas
aparecessem, ao mesmo tempo que repuxavam
os decotes, para tornar os seios mais
proeminentes.
O Boa Pinta Laba já não trabalhava no campo.
Recusava-se inclusive a auxiliar a mulher nos
afazeres domésticos. Passava os dias a banhar-
se no lago. Pendurava suas roupas de cores
extravagantes em alguma árvore próxima à
praia, enquanto pelos arredores mulheres
excitadas espiavam-lhe o corpo musculoso.
Comentava-se que Laba permitia que algumas
delas o tocassem, à sombra das moitas, e que
elas se prontificavam a cometer com ele atos
vergonhosos, pelos quais um castigo terrível
poderia ser exigido.
À tardinha, quando os aldeães regressavam dos
campos, suados e cobertos de poeira, cruzavam
com o Boa Pinta Laba, que perambulava em
sentido oposto, tomando o cuidado de pisar na
parte mais firme da estrada, a fim de não
manchar os sapatos reluzentes, consertando a
gravata e polindo o relógio com um lenço cor-de-
rosa.
À noite, montarias eram especialmente enviadas
a Laba, que seguia para recepções, não raro em
locais a dezenas de milhas de distância. Labina
ficava em casa, semimorta de cansaço e
humilhação, cuidando da fazenda, do cavalo e
dos tesouros do marido. Para o Boa Pinta Laba o
tempo como que estacara, mas Labina
envelhecia a olhos vistos; pendiam-lhe os seios e
as coxas tornavam-se flácidas.
Passou-se um ano.
Certa tarde de outono, Labina regressava dos
campos, contando encontrar o marido no sótão,
em companhia de seus tesouros. O sótão era
reino exclusivo de Laba, que trazia pendurada ao
pescoço, juntamente com uma medalha da
Virgem, a chave do cadeado que lhe garantia a
porta. Naquele dia, porém, a casa estava
absolutamente silenciosa. Da chaminé não se
desprendia fumaça, e tampouco se ouvia o som
costumeiro da voz de Laba, enfei-tando-se para
os programas da noite.
Labina, assustada, precipitou-se em direção à
cabana. A porta do sótão estava aberta; subiu
até lá. O que viu deixou-a aterrorizada. No chão
estava o baú escancarado, com a tampa
arrebentada e o fundo à mostra. No gancho
resistente onde costumava dependurar as
roupas, o corpo do Boa Pinta Laba, suspenso por
uma gravata de motivos florais, oscilava como
um pêndulo de movimento retardado. Uma
abertura no teto denunciava o local por onde o
ladrão carregara o conteúdo da mala. Os pálidos
raios do sol poente iluminavam a face exangue
do Boa Pinta Laba e a língua azulada que lhe
pendia para fora da boca. Em torno, esvoaçavam
moscas irisadas.
Labina adivinhou o que se passara. Ao voltar do
banho no lago para envergar um de seus ternos
de gala, Laba encontrara o teto esburacado e o
baú vazio. Todas as suas belas roupas tinham
desaparecido. Restava apenas uma única
gravata, jogada como flor decepada sobre a
palha do solo.
Com o conteúdo do baú, desaparecera para Laba
a razão de viver. Não mais os casamentos em
que ninguém reparava nos noivos, não mais os
enterros em que, de pé ao lado da cova
escancarada, o Boa Pinta Laba atraía os olhares
de admiração da assistência contrita, não mais
as orgulhosas exibições no lago e o afagar de
mãos femininas e ansiosas.
Com um gesto cuidadoso e ponderado que
nenhum outro habitante da aldeia era capaz de
imitar, Laba vestira a gravata pela última vez.
Depois, puxara o baú vazio para baixo do gancho
pendurado no teto e, subindo nele, largara o
corpo.
Labina jamais descobriu como o marido adquiriu
o seu tesouro. Ele jamais se referira ao seu
período de ausência. Ninguém tinha
conhecimento de onde estivera, do que andara
fazendo, do preço que pagara por tanta coisa
valiosa. Toda a aldeia podia avaliar o que
representaria para ele a perda daquele tesouro.
Nem o ladrão nem qualquer dos objetos
roubados foi jamais encontrado. Circulavam
rumores de que teria sido algum marido ou noivo
enganado o autor da façanha. Outros
suspeitavam que alguma mulher
desvairadamente ciumenta seria a responsável.
Diversos moradores da aldeia, enfim,
suspeitavam da própria Labina. Quando ouvia
essa acusação, sua face tornava-se lívida, as
mãos tremiam-lhe, e um esgar de ódio contorcia-
lhe a boca. Os dedos em garra, precipitava-se
sobre o acusador, e os assistentes eram
obrigados a separá-los. Labina voltava então
para casa, bebia até o embrutecimento, e
aninhava-me entre os braços, gemendo e
soluçando.
Durante uma dessas cenas violentas, seu
coração estourou. Ao ver um grupo de homens
transportando seu cadáver para a cabana,
percebi que era chegado o momento de fugir.
Enchi o meu fogareiro com tições incandescen-
tes, alcancei, debaixo da cama, onde Labina a
escondera, a preciosa gravata com a qual o Boa
Pinta Laba se enforcara, e escapuli. Era crença
geral que a corda de um suicida traz sorte.
Esperava nunca perder a gravata.

XV
O verão escoava-se rapidamente. Feixes de trigo
amontoavam-se nos campos. Embora
trabalhassem com o maior afinco, os
camponeses não dispunham de cavalos ou bois
em número suficiente para recolher a safra a
tempo.
Uma alta ponte de estrada de ferro estendia-se
entre as margens de um largo rio próximo à
aldeia. Era protegida por metralhadoras pesadas
instaladas em abrigos de cimento.
À noite, quando o ronco de aviões passando a
grande altura ecoava nos céus, tudo na ponte
ficava imerso em trevas. Pela manhã, o
movimento recrudescia. Soldados envergando
capacetes manejavam as metralhadoras, e no
ponto mais alto da ponte a forma angular da cruz
suástica, bordada numa bandeira, tremulava ao
vento.
Numa noite cálida, chegaram até a aldeia os
ecos de um fogo de artilharia. O som abafado
atravessou os campos, alarmando pássaros e
gente. À distância, luziam clarões de relâmpagos.
Os homens da aldeia, observando os relâmpagos
fabricados por outros homens, comentavam: "O
jront se aproxima". Outros acrescentavam: "Os
alemães estão perdendo". Com isso, muitas
discussões tinham início.
Alguns camponeses sustentavam que, à sua
chegada, os comissários soviéticos distribuíram
as terras eqüitativamente entre todos, tirando
dos ricos para distribuir entre os pobres. Isto
representaria o fim da exploração por parte de
donos de terras, de funcionários corruptos e
policiais brutais.
Outros discordavam violentamente. Jurando
pelas imagens sagradas que traziam consigo,
bradavam que os soviéticos viriam dispostos a
nacionalizar tudo, inclusive esposas e filhos.
Fixando o clarão que iluminava o céu, para as
bandas do Oriente, garantiam que a chegada dos
Vermelhos significaria que o povo haveria de
afastar-se dos altares, esquecer os ensinamentos
de seus ancestrais, e entregar-se a uma vida
pecaminosa, até que a justiça divina o
transformasse em estátuas de sal.
Irmão lutava contra irmão, pais agrediam-se
diante dos filhos. Uma força invisível cindia o
povo, dividia famílias, confundia as mentes. Só
os mais idosos conservavam-se sensatos,
correndo de um lado para outro, implorando aos
combatentes que fizessem as pazes. Em suas
vozezinhas estridentes proclamavam que já
havia guerra demais no mundo para iniciar uma
nova na aldeia.
O surdo ribombar dos canhões avizinhava-se
assustadoramente. Seu estrondo esfriava as
discussões. O povo esqueceu como por encanto
os comissários e a ira divina, em sua ânsia de
escavar abrigos em seus celeiros e adegas.
Ali escondiam estoques de manteiga, de carne
de porco e de vitela, de centeio e trigo. Alguns,
em segredo, tingiam lençóis de vermelho para
acolher os novos governantes, enquanto outros
cuidavam de esconder em lugar seguro
crucifixos, imagens de Jesus e de Maria, e ícones.
Embora não chegasse a compreender tudo, eu
sentia a tensão reinante no ar. Ninguém mais se
ocupava comigo. Eu vagava por entre as
cabanas, ouvindo ora rumores de escavações,
ora cochichos nervosos, ou ainda orações.
Quando, em campo aberto, encostava o ouvido
ao solo, distinguia nitidamente um pulsar
distante e regular.
Seria o Exército Vermelho que se aproximava? A
vibração transmitida pelo solo lembrava a
palpitação de um coração. Eu ficava
conjeturando por que motivo, se era tão fácil a
Deus transformar pecadores em estátuas de sal,
este seria tão dispendioso. E por que razão não
transformava outros em estátuas de carne ou de
açúcar? Era inegável que, para os aldeães,
seriam tão ou mais preciosos que o sal.
Estirado de costas, eu contemplava as nuvens.
Passavam flutuando de tal maneira que também
eu tinha a impressão de flutuar. Se era verdade
que mulheres e crianças poderiam tornar-se
propriedade comum, nesse caso todas as
crianças teriam diversos pais e mães, irmãos e
irmãs em número incontável. Aquilo parecia-me
bom demais para chegar a realizar-se. Pertencer
a todo mundo! Aonde quer que me dirigisse,
inúmeros pais me afagariam a cabeça com mãos
carinhosas, tranquilizadoras, mães sem conta
haveriam de aconchegar-me ao seu regaço, e
muitos irmãos mais velhos defender-me-iam
contra os cães ferozes. A mim competiria vigiar
os meus irmãozinhos menores. Não parecia
existir motivo para que os camponeses se mos-
trassem tão atemorizados.
As nuvens dissolviam-se umas nas outras,
tornando-se ora mais escuras ora mais
luminosas. De algum ponto do céu, Deus
comandava-as a todas. Compreendia agora por
que ele dispunha de pouco tempo para ocupar-se
de um verme escuro e desprezível como eu. Ele
tinha, sob as suas ordens, um número incontável
de exércitos numerosos, homens, animais e
máquinas entrechocando-se em combate em seu
nome. A ele cumpria decidir quem devia vencer e
quem perderia, quem devia viver e quem devia
morrer.
Entretanto, se era realmente a Deus que cumpria
decidir sobre o que estava por acontecer, que
motivo teriam os camponeses para preocupar-se
sobre sua fé, sobre as igrejas e o clero? Se os
comissários soviéticos tinham verdadeiramente
intenção de destruir as igrejas, arrasar os altares,
matar os padres e perseguir os crentes, não
restava ao Exército Vermelho a mais remota
possibilidade de vencer a guerra. Nem mesmo o
Deus mais sobrecarregado poderia ignorar essa
ameaça que pairava sobre seus filhos. Mas,
então, isso não significaria que os vencedores
seriam os alemães, que também demoliam
igrejas e assassinavam gente? Do ponto de vista
divino, parecia mais sensato que todos
perdessem a guerra, uma vez que todos eram
assassinos.
"Propriedade comum de mulheres e crianças",
diziam os camponeses. Aquilo soava algo
misterioso. Fosse como fosse, eu refletia, com
um pouco de boa vontade os comissários
soviéticos poderiam incluir-me entre as crianças.
Embora inferior em estatura à maioria dos
meninos de oito anos, eu contava atualmente
quase onze, e afligia-me pensar que os russos
poderiam tratar-me como adulto ou, pelo menos,
não me considerar mais criança. Acresce que eu
era mudo. Outrossim, sofria de perturbações
digestivas. Era fora de dúvida que merecia
tornar-me propriedade pública.
Certa manhã, observei uma atividade inusitada
na ponte. Soldados envergando capacetes
enxameavam por toda parte, desmontando o
canhão e as metralhadoras, arriando a bandeira
alemã. À medida que possantes caminhões se
afastavam para oeste, do lado oposto da ponte,
diluía-se no ar o som áspero das canções
germânicas. "Estão fugindo", comentavam os
camponeses. "Perderam a guerra", murmuravam
alguns mais ousados.
No dia seguinte, ao meio-dia, apresentou-se na
aldeia um bando de cavaleiros. Eram uma
centena, ou talvez mais. Dir-se-ia formarem um
todo único com as suas montarias; cavalgavam
com extraordinário desembaraço, sem qualquer
ordem preestabelecida. Envergavam uniformes
germânicos de cor verde enfeitados com botões
reluzentes e casquetes enfiados quase até os
olhos.
Os camponeses reconheceram-nos
instantaneamente. Aterrorizados, anunciaram
que os calmucos se aproximavam e que as
mulheres e crianças deviam esconder-se às
pressas, sob pena de serem raptadas. Por meses
a fio, na aldeia, haviam circulado histórias
terríveis acerca desses cavaleiros, habitualmente
conhecidos como calmucos. No dizer dos
camponeses, uma vez tendo ocupado uma área
significativa do território soviético, ao até então
invencível Exército alemão havia-se juntado um
bom número de calmucos, em sua maioria
voluntários, que desertavam das fileiras
soviéticas. Odiando os Vermelhos, aderiam aos
alemães, que lhes ofereciam a oportunidade de
raptar e violentar, nos moldes de seus costumes
guerreiros e tradições varonis. Essa a razão por
que os calmucos eram enviados a aldeias e
cidades que deviam ser punidas por alguma
insubmissão, e particularmente àquelas que fica-
vam no trajeto do avanço do Exército Vermelho.
Os calmucos avançavam a pleno galope,
inclinados sobre suas montarias, usando as
esporas e lançando gritos roucos. Os uniformes
entreabertos permitiam entrever-lhes a pele
bronzeada e nua. Alguns cavalgavam sem selins,
outros traziam pesados sabres à cinta.
Instalou-se na aldeia uma confusão atroz. Era
tarde demais para pensar em fugir. Eu
examinava os cavaleiros com interesse. Todos
tinham cabelos pretos e oleosos, que reluziam ao
sol. De um negro quase azulado, eram ainda
mais escuros que os meus, como mais escuros
eram os olhos e o moreno da pele. Tinham
dentes grandes e alvos, zigomas salientes e
faces alargadas que pareciam inchadas.
Ao contemplá-los, de início, senti-me invadido
por um sentimento de orgulho e satisfação.
Afinal de contas, aqueles valorosos cavaleiros
tinham cabelos e olhos negros e peles tisnadas.
Distinguiam-se dos habitantes da aldeia como a
noite do dia. A chegada daqueles calmucos
morenos conduzia os louros aldeães a um pânico
quase sobrenatural.
Entrementes, os cavaleiros faziam estacar as
montarias junto às casas. Um deles, um tipo
atarracado trajando um uniforme abotoado até o
pescoço, lançou algumas ordens. Os homens
desmontaram e prenderam os animais aos
mourões das cercas. De baixo dos selins tiraram
nacos de carne que haviam sido cozinhados pelo
calor conjunto do animal e do cavaleiro. Comiam
com as mãos aquela carne cinza-azulada, e
sorviam largos tragos de seus cantis, tossindo e
cuspindo à medida que engoliam.
Alguns estavam já embriagados. Invadindo as
cabanas, arrancaram de dentro as mulheres que
não tinham podido esconder-se. Os homens
tentaram defendê-las, lançando mão de suas
foices; um calmuco cortou um deles ao meio com
um único golpe de sabre. Outras mulheres
tentaram fugir mas foram detidas por disparos
de revólver.
Os calmucos espalharam-se pela aldeia. A
gritaria era generalizada e chegava de todos os
lados. Saltei para dentro de uma densa moita de
framboesas, que ficava bem ao centro da praça,
e estendi-me rente ao solo, como se fora um
verme.
Enquanto eu tudo observava com atenção, a
aldeia explodiu em pânico. Os homens
procuravam defender as moradias que os
calmucos já haviam invadido. Mais disparos
ecoaram, e um homem ferido na cabeça pôs-se a
correr em círculo, cegado pelo próprio sangue.
Um calmuco liquidou-o sumariamente. As
crianças espalharam-se por todos os lados,
tropeçando em valas e cercas. Uma delas correu
para dentro da moita onde eu estava escondido,
mas, ao avistar-me, fugiu novamente e foi
atropelada por cavalos a galope.
Os calmucos arrastavam agora de uma casa uma
mulher seminua. Ela se debatia e gritava,
tentando em vão agarrar-se às pernas de seus
carrascos. Um grupo de mulheres e de moças
eram arrebanhadas e chicoteadas por cavaleiros
gargalhantes. Os pais, maridos e irmãos corriam-
lhes em torno implorando clemência, mas eram
enxotados a golpes de chicote e de sabre. Um
fazendeiro corria pela rua principal com a mão
decepada, à procura da família. O sangue
jorrava-lhe do coto, deixando no solo uma trilha
rubra.
Perto dali, os soldados haviam forçado uma
mulher a deitar-se ao solo. Um deles a segurava
pelo pescoço, enquanto outros abriam-lhe as
pernas. Um deles montou sobre ela e pôs-se a
mexer-se ritmadamente, entre gritos de
entusiasmo dos demais. A mulher gritava e se
debatia. Quando o primeiro terminou, os outros
violentaram-na por seu turno. A mulher desistiu
de lutar; seu corpo ficou flácido.
Foi a vez de outra. Gritava e implorava, mas os
calmucos arrancaram-lhe a roupa e lançaram-na
ao chão. Dois deles estupraram-na
simultaneamente, sendo um na boca. Se tentava
voltar a cabeça de lado ou trancar a boca, era
vergastada com um chicote. Finalmente,
exausta, submeteu-se passivamente. Outro
grupo de soldados violentava pela frente e por
trás duas mocinhas, passando-as de mão em
mão, forçando-as a executar os movimentos
mais estranhos. Quando resistiam, eram
chicoteadas e pisoteadas.
Os "gritos das mulheres violentadas eram
ouvidos em todas as casas. Uma jovem
conseguiu soltar-se e saiu correndo, seminua, o
sangue escorrendo-lhe pelas coxas abaixo,
uivando como um cão ferido. Dois soldados
também parcialmente despidos saíram-lhe ao
encalço, às gargalhadas, e perseguiram-na ao
redor da praça, entre risadas e pilhérias dos
camaradas. Finalmente a agarraram. Crianças
em prantos acompanhavam a cena.
Novas vítimas eram agarradas sem cessar. Os
calmucos bêbados, cada vez mais excitados,
tornavam-se frenéticos. Alguns copulavam entre
si, depois porfiavam em violar as mulheres de
maneiras excêntricas: ora se punham dois ou
três sobre a mesma, ora possuíam-na em rápida
sucessão. As mais jovens e mais desejáveis eram
praticamente rasgadas ao meio, e algumas rixas
explodiam entre os soldados a seu respeito. As
mulheres soluçavam e rezavam em voz alta.
Seus maridos e pais, filhos e irmãos, agora
trancafiados no interior das casas,
reconhecendo-lhes a voz, respondiam com gritos
enrouquecidos.
No centro da praça, alguns calmucos exibiam sua
perícia copulando com as mulheres montados a
cavalo. Um deles arrancou o uniforme, ficando
apenas com as botas sobre as pernas cabeludas.
Fez o animal trotar em círculos e destramente
levantou do chão uma mulher nua, que os outros
lhe haviam trazido. Obrigou-a a escarranchar-se
no cavalo, de frente para ele. Enquanto o animal
apressava o trote, o cavaleiro puxou a mulher
para mais perto de si, fazendo-a deitar-se sobre
a crina. A cada impulso do cavalo penetrava-a de
novo, com um grito triunfal a cada novo êxito. Os
outros acompanhavam-lhe a exibição com
aplausos. O cavaleiro fez então girar habilmente
a mulher em sentido oposto, de forma a deixá-la
de costas para ele. Soerguendo-a ligeiramente,
repetiu a façanha por trás, ao mesmo tempo que
lhe apertava os seios.
Incitado pelos demais, outro calmuco saltou
sobre o mesmo cavalo, atrás da mulher e de
costas para a crina do animal. O cavalo gemeu
sob o excesso de peso e diminuiu a andadura,
enquanto os dois soldados violentavam
simultaneamente a mulher semidesmaiada.
Seguiram-se outras façanhas. Um dos calmucos
tentou copular com uma égua; outros excitaram
um garanhão e tentaram colocar-lhe uma jovem
por baixo, levantando-a pelas pernas.
Transido de horror e de nojo, rastejei mais para o
fundo da moita. Agora compreendia tudo.
Compreendia por que razão Deus não atendia às
minhas preces, por que era pendurado de
ganchos no teto, por que Garbos me espancava,
por que perdera a voz. Eu era de outra raça. Meu
cabelo e meus olhos eram tão negros quanto os
daqueles calmucos. Evidentemente, num outro
mundo, eu e eles pertencíamos a uma mesma
classe. Não podia haver clemência para criaturas
como eu. Algum demônio horrível sentenciara-
me a ter olhos e cabelos negros em comum com
essa horda de bárbaros.
Súbito, de um dos celeiros emergiu um ancião de
cabeça branca. Os camponeses alcunhavam-no o
Santo, e talvez ele mesmo se julgasse como tal.
Sustinha com ambas as mãos uma pesada cruz
de madeira e sobre a cabeça branca ostentava
uma coroa de folhas de carvalho amarelecidas.
Seus olhos sem vida estavam erguidos para o
alto. Os pés descalços, deformados pela idade e
pela doença, buscavam em vão um caminho. De
sua boca desdentada escapavam-se, num
lamento fúnebre, as palavras de um salmo.
Apontava a cruz em direção aos inimigos, que
não lograva divisar.
Os soldados contiveram-se por instantes. Mesmo
os mais bêbados dentre eles fitavam-no
desajeitados, visivelmente perturbados. Então,
um dos calmucos correu em direção ao ancião e
passou-lhe uma rasteira. Ele caiu, perdendo o
controle da cruz. Os calmucos zombaram dele e
ficaram na expectativa. Com gestos emperrados,
o velho tentou erguer-se, tateando em busca da
cruz. Suas mãos ossudas e nodosas pesquisavam
pacientemente o solo, enquanto o soldado
chutava a cruz para mais longe, cada vez que ele
se aproximava. O ancião rastejava em torno,
balbuciando palavras soltas e gemendo
mansamente. Por fim, parecia exausto e
respirava pesadamente, com um som sibilante. O
calmuco soergueu a pesada cruz e manteve-a
por instantes no ar, abatendo-a depois
pesadamente sobre o vulto derreado. O velho
soltou um gemido e imobilizou-se.
Um dos soldados atirou uma faca sobre uma das
moças, que tentava fugir rastejando. Ficou ali
mesmo, sangrando na poeira; ninguém lhe deu
atenção. Calmucos bêbados passavam de mão
em mão mulheres salpicadas de sangue, que
espancavam e forçavam a praticar atos
indecorosos. Um deles invadiu uma casa e trouxe
do interior uma menina de uns cinco anos de
idade. Ergueu-a no ar de forma a que os
companheiros pudessem vê-la bem, e então
rasgou-lhe o vestido de alto a baixo. Depois, deu-
lhe um pontapé no ventre, enquanto a mãe
rastejava no pó, implorando clemência. Com
gestos vagarosos, desabotoou e despiu as
calças, enquanto com a mão livre mantinha a
menina junto ao peito. Então, agachou-se, e num
golpe rápido transpassou a criança, que gritava
sem parar. Ao ver-lhe o corpo flácido lançou-a
para dentro de uma moita e voltou-se para a
mãe.
Na porta de uma cabana, um grupo de soldados
seminus empenhava-se em luta com um
camponês de compleição robusta, que, no limiar
da porta, tomado de fúria selvagem, balançava
uma enxada. Quando lograram finalmente
dominá-lo, os soldados arrastaram do interior,
puxando-a pelos cabelos, uma mulher semi-
emudecida de terror. Enquanto três deles
imobilizavam o marido, os restantes torturavam
e violentavam a mulher.
A seguir, arrastaram para fora duas filhas
adolescentes do camponês. Aproveitando-se de
um momento de distração dos calmucos, o
homem reagiu, desferindo um golpe certeiro
naquele que lhe ficava mais próximo. O soldado
tombou, o crânio esmagado como se fora um ovo
de andorinha. Sangue, entremeado com pedaços
esbranquiçados de miolos, semelhantes à polpa
de uma noz esmigalhada, misturou-se aos seus
cabelos. Os soldados enfurecidos rodearam o
camponês, imobilizaram-no e a seguir violen-
taram-no. Em seguida, castraram-no, à vista da
mulher e das filhas. A primeira, desesperada,
correu em sua defesa, mordendo e arranhando
os torturadores. Retorcendo-se de gozo, os
calmucos imobilizaram-na, abriram-lhe a boca à
força e empurraram-lhe os retalhos sangrentos
de carne pela garganta abaixo.
Uma das casas incendiou-se. Em meio à
confusão resultante, alguns camponeses
tomaram o rumo da floresta, arrastando consigo
mulheres semi-inconscientes e crianças andando
aos tropeções. Os calmucos, disparando a esmo,
atropelaram alguns deles com seus cavalos,
capturando novas vítimas, que torturaram no
local.
Semiparalisado de terror, agachei-me entre as
moitas de framboesas. Calmucos bêbados
vagueavam por todo lado, e minhas
probabilidades de manter-me ali despercebido
diminuíam a cada passo. Gelado de terror, já
nem raciocinava mais. Fechei os olhos.
Ao reabri-los, avistei um dos calmucos, que
cambaleava em minha direção. Estendi-me ainda
mais rente com o solo, e quase parei de respirar.
O soldado colheu algumas framboesas e comeu-
as. Penetrando mais adiante na moita, pisou
sobre minha mão estendida. O salto e os pregos
de sua botina penetraram-me na carne, mas,
embora a dor fosse terrível, não me movi.
Apoiado ao fuzil, o soldado urinou
tranqüilamente. De repente, perdendo o
equilíbrio, deu um passo à frente e tropeçou em
minha cabeça. Quando saltei, procurando
escapar, ele me agarrou e me golpeou no peito
com a coronha do fuzil. Senti que alguma coisa
estalava por dentro. Embora derrubado, logrei
passar uma rasteira no soldado. Vendo-o cair,
fugi ziguezagueando em direção às casas. O
calmuco disparou, mas a bala ricocheteou no
chão e passou zunindo a meu lado. Tornou a
atirar, mas eu já ganhara alguma distância.
Arranquei uma tábua da parede de um dos
celeiros, saltei para dentro e escondi-me entre a
palha.
De lá, podia ainda ouvir os gritos das pessoas e
dos animais, os tiros de fuzis, o estalido de
telheiros e cabanas ardendo, o relinchar de
cavalos e o riso estridente dos calmucos. Vez por
outra, uma mulher gemia- em surdina. Mergulhei
mais profundamente na palha, embora cada
movimento me doesse. Fiquei imaginando o que
se teria partido dentro de meu peito. Apoiei a
mão sobre o coração: batia ainda. Acima de tudo,
receava ficar aleijado. Apesar do barulho,
adormeci, exausto e atemorizado.
Despertei assustado. Uma poderosa explosão
fazia estremecer o celeiro; algumas vigas caíram,
e nuvens de poeira obscureceram tudo. Chegou-
me aos ouvidos um tiroteio esparso de fuzis e o
matraquear incessante de metralhadoras.
Espreitando cautelosamente por uma fresta,
pude avistar cavalos que disparavam, tomados
de pânico, enquanto calmucos seminus, ainda
embriagados, tentavam montá-los. Vindos da
direção do rio e da floresta, distinguia o troar de
canhões e o ronco de motores. Um avião com
uma estrela vermelha pintada na asa sobrevoou
a aldeia a baixa altura. Passados instantes,
cessava o canhoneio, mas o ruído dos motores
intensificava-se. Era evidente que os soviéticos
estavam próximos; os comissários, o Exército
Vermelho, haviam finalmente chegado.
Arrastei-me para fora do abrigo, embora a dor
súbita no peito por pouco não me derrubasse.
Tossi, cuspindo um pouco de sangue. Algum osso
pontiagudo achava-se deslocado entre minhas
costelas. Esforcei-me por caminhar, e em breve
atingia o morro. A ponte desaparecera: prova-
velmente fora destruída pela possante explosão.
Da floresta emergiam tanques em marcha lenta;
acompanhavam-nos soldados envergando
capacetes, que caminhavam lentamente como se
estivessem passeando numa tarde de domingo.
Nas proximidades da aldeia, alguns calmucos
haviam-se escondido atrás de montes de feno. À
aproximação dos tanques, porém, abandonavam
seus esconderijos, ainda cambaleantes, e
levantavam os braços. Desfaziam-se dos fuzis c
dos cinturões; alguns tombavam de joelhos e
imploravam misericórdia. Os soldados vermelhos
arrebanhavam-nos sistematicamente,
golpeando-os com baionetas. Em breve espaço
de tempo a maioria foi capturada. Suas
montarias pastavam calmamente por perto.
Os tanques haviam cessado de desfilar, mas
novas formações de infantaria emergiam sem
cessar da floresta. Um pontão surgiu no rio;
sapadores examinaram a ponte destruída. Alguns
aviões sobrevoaram o local, balançando as asas
em saudação. Eu sentia-me até certo ponto desa-
pontado; dir-se-ia que a guerra terminara.
Os campos que rodeavam as aldeias agora
enxameavam de máquinas. Os homens erguiam
tendas e cozinhas de campanha e estendiam fios
de telefone. Falavam e cantavam numa língua
que se assemelhava ao dialeto local, embora eu
não chegasse a compreendê-la totalmente. Sabia
que era russo.
Os camponeses olhavam os visitantes com
desconfiança. Ao deparar com as fisionomias dos
usbeques e dos tártaros, que lembravam os
calmucos, as mulheres gritavam e fugiam,
tomadas de pânico, embora os recém-chegados
se mostrassem amáveis e sorridentes.
Um grupo de camponeses rumou para o
acampamento militar transportando bandeiras
vermelhas onde foices e martelos haviam sido
desajeitadamente pintados. Os soldados
acolheram-nos entre aclamações e o
comandante do regimento saiu de sua tenda
para ir ao encontro da delegação. Apertou a mão
de todos e convidou-os a entrar. Embaraçados,
os camponeses, tendo tirado os bonés, não
sabiam o que fazer com as bandeiras; acabaram
por deixá-las do lado de fora.
Junto a um caminhão com uma estrela vermelha
pintada no teto, um médico de jaqueta branca e
seus assistentes cuidavam das mulheres e
crianças feridas. Uma multidão curiosa rodeava a
ambulância.
As crianças rodeavam os soldados, pedindo
balas. Os homens pegavam-nas ao colo e
brincavam com elas.
Por volta de meio-dia correu na aldeia a notícia
de que os soldados vermelhos haviam
dependurado pelos pés a todos os calmucos
capturados, nos galhos dos carvalhos que
margeavam o rio. A despeito da dor que sentia
no peito e na mão, arrastei-me até lá,
acompanhando uma turba de homens, mulheres
e crianças tomados de curiosidade.
A distância, já era possível divisar os vultos dos
calmucos pendendo das árvores qual pinhas
murchas e descomunais. Cada um deles fora
pendurado a uma árvore diferente, atado pelos
tornozelos, as mãos presas atrás das costas.
Soldados soviéticos de rostos sorridentes e
expressões amigáveis passeavam por perto,
calmamente ocupados em enrolar cigarros em
tiras de jornal. Embora não fosse permitido aos
camponeses aproximar-se, algumas mulheres,
reconhecendo seus algozes, puseram-se a
amaldiçoá-los em voz alta e a atirar pedaços de
pau e de barro sobre os corpos frouxamente
pendentes.
Moscas e formigas rastejavam sobre os calmucos
imobilizados. Insinuavam-se em suas bocas
escancaradas, em seus narizes e olhos; faziam
ninho em suas orelhas; enxameavam por entre
os seus cabelos emaranhados. Chegavam aos
milhares, disputando entre si os melhores
pontos.
Os corpos balançavam ao sabor do vento, alguns
deles revolvendo-se lentamente como salsichas
ao fogo. Alguns eram percorridos por
estremecimentos e ocasionalmente emitiam um
grito ou um gemido rouco. Outros pareciam
inanimados. Tinham os olhos fixos e arregalados,
e as veias do pescoço monstruosamente
inchadas. Os camponeses acenderam uma
fogueira próximo ao local, e famílias inteiras
ficaram a vigiar os calmucos pendentes,
recordando seus atos de crueldade e regozij
ando-se com o seu fim.
Uma lufada de vento sacudiu as árvores. Os
corpos balançavam mais forte, descrevendo
círculos mais largos. Os camponeses presentes
persignaram-se. Eu procurei a morte, cujo sopro
sentia no ar. Trazia as feições da falecida Marta,
ao galopar por entre os galhos de carvalho,
afagando suavemente os corpos balouçantes,
cingindo-os com os fios emaranhados que tecia,
qual uma aranha, de seu corpo translúcido. Ela
lhes sussurrava aos ouvidos palavras traiçoeiras,
fazia correr-lhes um calafrio pelo coração e lhes
estrangulava a voz na garganta.
Sentia-a mais próxima de mim do que nunca.
Quase podia tocar-lhe a tênue mortalha, fitar-lhe
os olhos enevoados. Deteve-se em minha frente,
enfeitando-se com coqueteria e sugerindo um
próximo encontro. Eu em absoluto a temia; pelo
contrário, esperava que me conduzisse ao lado
oposto da floresta, aos pantanais insondáveis
borbulhantes de vapores sulfurosos, onde à noite
é possível ouvir-se o rumor leve e seco de
fantasmas entrechocando-se em seus amplexos
amorosos e o gemido interminável do vento por
entre as copas das árvores, como um violino
numa sala distante.
Estendi a mão para alcançá-la, mas a morte
desvaneceu-se por entre as árvores curvadas ao
peso de suas folhagens farfalhantes e dos
cadáveres balançando ao sabor do vento.
Alguma coisa parecia queimar-me por dentro.
Sentia a cabeça girar, e tinha o corpo recoberto
de suor. Caminhei até a margem do rio. A brisa
úmida refrescou-me; sentei-me num tronco de
árvore.
O rio era largo nesse local. Sua corrente
caudalosa carregava toras de madeira, galhos
partidos, retalhos de aniagem, feixes de palha,
em redemoinhos volteantes. Vez por outra,
passava flutuando o cadáver intumescido de um
cavalo. Certa vez, julguei ter visto um corpo
humano, azulado, apodrecido, flutuando
imediatamente sob a superfície. Por momentos,
as águas correram limpas. Então, veio um bando
de peixes mortos em conseqüência das ex-
plosões. Eles se revolviam, deslizavam de barriga
para cima e amontoavam-se, como se para eles
não houvesse mais lugar nesse rio, ao qual o
arco-íris os conduzira, tempos atrás.
Meu corpo todo tremia. Decidi aproximar-me dos
soldados vermelhos, muito embora não estivesse
certo de como eles tratariam pessoas de olhos
negros, enfeitiçantes. Ao passar pela exposição
de corpos dependurados, julguei reconhecer o
homem que me agredira com a coronha de seu
fuzil. Girava em largos círculos, a boca aberta e
cheia de moscas. Ergui a cabeça
negligentemente, para obter um melhor ângulo
de seu rosto. A dor voltou a transpassar-me o
peito.

XVI
Obtive alta do hospital regimental. Muitas
semanas haviam decorrido; estávamos agora no
outono de 1944. A dor em meu peito
desaparecera, e o que quer que tivesse sido
atingido pela coronha do fuzil do calmuco já se
achava cicatrizado.
Contrariamente ao que eu temia, permitiram-me
ficar com os soldados, mas eu sabia que era
coisa provisória. Sabia que seria deixado para
trás em alguma aldeia, quando o regimento
partisse para a linha de frente. Entrementes,
acampávamos próximo ao rio, e nada sugeria a
proximidade de uma partida. Tratava-se de um
regimento de comunicações, formado
principalmente por soldados muito jovens e
oficiais recentemente recrutados, que ainda
eram meninos quando a guerra começara.
Canhão, metralhadoras, caminhões,
equipamento telegráfico e telefônico, tudo era
novo em folha e bem lubrificado, e ainda não
testado pela guerra. A tela das tendas e os
uniformes dos soldados ainda não tinham tido
tempo de desbotar.
A linha de frente encontrava-se já bastante
avançada em território inimigo. O rádio noticiava
diariamente novas derrotas do Exército
germânico e seus aliados esgotados. Os soldados
ouviam atentamente os comunicados, menea-
vam orgulhosamente a cabeça e prosseguiam
em seus exercícios de treinamento. Aos parentes
e amigos endereçavam cartas extensas, nas
quais manifestavam suas dúvidas de chegarem a
engajar-se em combate antes de terminada a
guerra, porquanto os alemães vinham sendo
sistematicamente derrotados pelos seus
companheiros de armas mais antigos.
A vida no regimento era tranqüila e bem
organizada. A intervalos regulares, um pequeno
bimotor aterrava no campo de aviação
provisório, trazendo correspondência e jornais.
As cartas traziam notícias de casa, onde o povo
começava a reconstruir as ruínas. Os jornais
estampavam cidades soviéticas e germânicas
bombardeadas, fortalezas arrasadas e fileiras
intermináveis de prisioneiros alemães de faces
barbudas. Entre os oficiais e os soldados rumores
do término da guerra circulavam com insistência
sempre crescente.
Dois homens ocupavam-se de mim com
regularidade: Gavrila, um funcionário político, de
quem se dizia ter perdido a família inteira nos
primeiros dias da invasão nazista, e Mitka,
conhecido como Mitka, o Cuco, instrutor de tiro
do regimento. Gozava também da proteção de
muitos de seus amigos.
Diariamente, Gavrila passava algumas horas em
minha companhia, na biblioteca do
acampamento. Afinal de contas, dizia, eu já tinha
mais de onze anos. Os meninos russos de minha
idade não apenas sabiam ler e escrever, mas po-
diam inclusive enfrentar o inimigo, quando
necessário. Eu não queria ser considerado como
criança: aplicava-me ao estudo, observando a
maneira de proceder dos soldados e imitando-
lhes o procedimento.
Os livros impressionavam-me tremendamente.
Simples folhas de papel permitiam arquitetar um
mundo tão real quanto aquele que era
apreendido pelos sentidos. Ademais, o mundo
dos livros — à semelhança do que ocorre com a
comida enlatada — era de certa forma mais rico
e mais saboroso que o dia-a-dia convencional. Na
vida diária, por exemplo, encontra-se uma
porção de gente sem se chegar a conhecê-la
verdadeiramente, ao passo que nos livros fica-se
sabendo inclusive o que essas pessoas pensam e
planejam fazer.
Li o primeiro livro de minha vida com a
assistência de Gavrila. Intitulava-se Infância, e
seu herói, um menino de minha idade,
aproximadamente, perdia o pai logo às primeiras
páginas. Reli-o depois várias vezes; a cada lei-
tura, o livro incutia-me uma esperança renovada.
Seu personagem principal tampouco tivera uma
vida fácil. Depois da morte da mãe ficou
praticamente abandonado no mundo, mas, a
despeito de inúmeras dificuldades, revelou-se, no
dizer de Gavrila, um grande homem. Tratava-se
de Máximo Gorki, considerado um dos maiores
escritores soviéticos. Suas obras ocupavam
diversas prateleiras da biblioteca do regimento e
eram conhecidas em todo o mundo.
Eu gostava também de poesia. Era escrita de
uma forma que se assemelhava à oração, e, se
possível, ainda mais bela e mais inteligível. Por
outro lado, os poemas não asseguravam dias de
indulgência. Entretanto, ninguém recitava poesia
em penitência por seus pecados; a poesia era
exclusivamente para o prazer individual. As
palavras sonoras, buriladas, engrenavam-se
umas às outras como pedras de moinho bem
lubrificadas e ajustadas entre si. Não era a
leitura, contudo, minha principal ocupação. Mais
importante que tudo eram as aulas com Gavrila.
Aprendi com ele que a ordem do mundo nada
tinha a ver com Deus, e que Deus não tinha
qualquer relação com o mundo. A razão para isso
era a mais simples possível: Deus não existia. Os
padres, sempre ardilosos, é que o haviam
inventado a fim de poderem lograr as pessoas
estúpidas, supersticiosas. Não havia Deus, nem
Santíssima Trindade, nem tampouco demônios,
fantasmas ou vampiros emergindo das tumbas;
não existia a figura da Morte a pairar por toda
parte, em busca de novos pecadores a seduzir.
Tudo isso não passava de balelas destinadas a
criaturas ignorantes e incapazes de compreender
a ordem natural do mundo, a criaturas que, por
não acreditarem em suas próprias forças, eram
obrigadas a procurar refúgio na crença em algum
deus.
No dizer de Gavrila, as próprias pessoas é que
determinavam o rumo de suas vidas e eram os
senhores únicos de seu destino. Eis por que cada
indivíduo em si era importante, e por que era
essencial que cada um soubesse o que fazer e o
que procurar obter na vida. A pessoa isolada
podia achar que seus atos careciam de
importância, porém tal conceito era ilusório. Suas
ações, à semelhança das de um número infinito
de outras, configuravam um imenso e intrincado
padrão, capaz de ser decifrado apenas por aque-
les que dominavam os altos postos da sociedade,
assim como os pontos aparentemente
descuidados da agulha de uma mulher
contribuíam para o belo padrão floral que uma
toalha de mesa ou colcha de cama recém-
concluída ostentava.
Ainda no dizer de Gavrila, de acordo com uma
das normas da história da humanidade, um
homem despontava ocasionalmente dentre a
imensa e indistinta massa humana; um homem
que ambicionava o bem de seus semelhantes, e
que, em vista de seu conhecimento e sabedoria
superiores, sabia que não adiantaria muito aos
assuntos terrenos esperar pelo auxílio divino.
Homens desse tipo tornavam-se líderes, uns dos
poucos que conduziam os demais no tocante ao
que pensar e ao que fazer, tal como um tecelão
conduz seus fios coloridos ao longo dos
complicados desenhos do padrão.
Imagens e fotografias desses chefes eram
exibidas na biblioteca do regimento, no hospital
local, no salão de recreio, nas barracas de
refeições e nos alojamentos dos soldados. Por
mais de uma vez eu contemplava as feições
desses homens sábios e importantes. A maioria
estava morta. Alguns tinham nomes curtos e
sonoros e ostentavam barbas longas e
emaranhadas. O último deles, porém, vivia
ainda. Suas fotografias eram maiores, mais
brilhantes e mais elaboradas que as de qualquer
dos outros. Era sob a sua liderança, no dizer de
Gavrila, que o Exército Vermelho vinha
derrotando os alemães e trazendo aos povos
libertos uma nova maneira de vida que tornava a
todos iguais. Não haveria mais ricos nem pobres,
exploradores ou oprimidos; terminaria a
perseguição dos de pele escura pelos de cabelos
louros, a execução nas câmaras de gás. Tal como
os demais oficiais e soldados do regimento,
Gavrila devia àquele homem tudo o que possuía:
educação, lar, posto militar. A biblioteca a ele
devia todos os seus livros custosamente
impressos e encadernados. Eu devia a ele o
cuidado que me fora dispensado pelos médicos
militares e minha recuperação. Cada cidadão
soviético devia ser grato a esse homem por tudo
quanto possuía e por tudo o que de bom lhe
acontecia.
O nome desse homem era Stálin.
Suas pinturas e fotografias apresentavam uma
fisionomia bondosa e olhos indulgentes. Dir-se-ia
um avô ou um tio muito querido, há muito
perdido de vista, ansioso por querer-nos de volta
entre os braços. Gavrila lia e contava-me um
sem-número de histórias acerca da vida de
Stálin. Fiquei sabendo que na minha idade o
jovem Stálin, então apelidado Soso, lutava pelos
direitos dos desprotegidos, enfrentando a
exploração secular dos pobres indefesos por
parte dos ricos impiedosos.
Eu me detinha a examinar as fotografias de
Stálin quando jovem. Tinha cabelos muito
escuros e encaracolados, olhos negros,
sobrancelhas espessas, e posteriormente um
vasto bigode também negro. Parecia mais cigano
do que eu, mais judeu que o tipo liquidado pelo
oficial germânico de uniforme negro, ou que o
menino encontrado pelos camponeses ao lado
dos trilhos da ferrovia. Stálin, pensava eu, tinha
sorte em não ter passado os anos de sua
juventude nas aldeias que eu conhecera. Se em
criança tivesse sido espancado constantemente
pelo fato de ter a pele morena, talvez não lhe
tivesse sobrado tempo para ajudar a outrem;
provavelmente o trabalho de escorraçar os
outros meninos e os cachorros da aldeia tê-lo-ia
mantido demasiado ocupado.
Acontece que Stálin era georgiano. Gavrila es-
quecera-se de me informar se os alemães
haviam planejado incinerar os georgianos. No
entanto, ao examinar as pessoas que rodeavam
Stálin nas fotografias, eu não tinha a menor
dúvida de que, se tivessem sido capturadas
pelos alemães, teriam todas tomado o rumo das
fornalhas. Eram tipos morenos, de cabelos
negros, olhos escuros e chamejantes.
Pelo fato de Stálin viver ali, Moscou era o próprio
coração do país, a cidade ambicionada pelas
massas obreiras de todo o mundo. Os soldados
cantavam-na em verso, escritores descreviam-na
em livros, poetas elogiavam-na em rimas. Filmes
eram rodados sobre Moscou e à seu respeito
contavam-se histórias fascinantes. Falava-se
que, a grande profundidade debaixo de suas
ruas, profundamente sepultadas qual
gigantescas toupeiras, longas e reluzentes
composições deslizavam maciamente e freavam
sem ruído em estações decoradas com
mármores e mosaicos mais delicados que os das
mais belas igrejas.
A moradia de Stálin era o Kremlin. Ali, em um
conjunto reunido atrás de alta muralha,
levantavam-se numerosos palácios e igrejas,
com suas cúpulas, lembrando gigantescos
rabanetes, apontadas para o céu. Outras foto-
grafias mostravam os alojamentos do Kremlin
onde vivera anteriormente Lênin, o finado mestre
de Stálin. Dentre os soldados, alguns deixavam-
se impressionar mais por Lênin, outros por Stálin,
da mesma maneira como alguns camponeses
referiam-se com mais freqüência a Deus Pai e
outros a Deus Filho.
Propalava-se entre os soldados que as janelas do
gabinete de trabalho de Stálin no Kremlin
ficavam acesas até altas horas e que para essas
janelas convergiam os olhares do povo de
Moscou, juntamente com os de todas as massas
trabalhadoras do mundo, que ali encontravam
nova inspiração e esperança para o futuro. Era ali
que o grande Stálin vigiava e trabalhava por
todos eles, e estudava a melhor maneira de
ganhar a guerra e destruir os inimigos das
massas obreiras. Sua mente transbordava de
preocupação pelo povo sofredor, inclusive por
aqueles que, em países distantes, viviam ainda
sob terrível opressão. Entretanto, o dia de sua
libertação aproximava-se, e para torná-lo mais
próximo impunha-se que Stálin trabalhasse até
altas horas da noite.
Depois de ouvir todos esses ensinamentos de
Gavrila, eu geralmente saía a caminhar pelos
campos, e refletia intensamente. Lamentava o
tempo que perdera em orações. Considerava
desperdiçados os inúmeros dias de indulgência
que acumulara com elas. Se realmente não
existia um Deus, um Filho de Deus, uma Mãe
Santíssima, nenhum dos santos menores, que
fim teriam levado todas as minhas preces? Quem
sabe estariam girando em círculo no céu vazio
qual um bando de pássaros cujos ninhos um
bando de garotos tivesse destruído? Ou estariam
resguardadas em algum local secreto e, tal como
minha voz perdida, lutando para libertar-se?
Recordando certas frases dessas orações, senti-
me como que ludibriado. Concordava com
Gavrila quando sustentava que estavam cheias
de palavras sem sentido.
Como não chegara a percebê-lo antes? Por outro
lado, achava difícil aceitar que os padres, eles
próprios, não acreditavam em Deus e serviam-se
dele apenas para enganar a outrem. E que dizer
das Igrejas, a Romana e a Ortodoxa? Teriam sido
também erigidas, como sustentava Gavrila,
simplesmente com a finalidade de intimidar o
povo através do suposto poder do Senhor,
forçando-o a amparar o clero? Por outro lado, se
os padres agiam de boa-fé, o que lhes acontecia
se descobrissem repentinamente que Deus não
existia, e acima da cúpula da mais alta igreja do
mundo nada mais existia senão um espaço
infinito onde voavam aviões com estrelas
vermelhas pintadas nas asas? Qual seria sua
atitude quando se compenetrassem de que todas
as suas orações eram inúteis, e que tudo o que
ensinavam ao público no púlpito não passava de
uma fraude?
A descoberta dessa terrível verdade haveria de
abatê-los mais do que o choque da morte de um
pai, ou a última visão do seu cadáver. A lei da
natureza determinava que os pais, que a fé em
Deus confortara ao longo de toda a vida,
morressem normalmente antes dos filhos. Seu
único consolo era a convicção de que, depois de
mortos, Deus haveria de guiar seus filhos em sua
vida nesta terra, assim como, para os filhos, o
único reconforto era imaginar que Deus lhes
acolheria os pais além do túmulo. Deus estava
onipresente nas mentes humanas, inclusive
quando ele próprio estava demasiado ocupado
para ouvir suas orações e contabilizar-lhes os
dias de indulgência acumulados.
Ocasionalmente, os ensinamentos de Gavrila in-
cutiam-me confiança redobrada. Segundo ele,
existiam neste mundo formas realistas de
promover o bem e pessoas que haviam dedicado
toda a sua vida a esse objetivo. Estas eram os
membros do Partido Comunista. Selecionadas
dentre o total da população, e tendo recebido
treinamento especial, recebiam um determinado
número de tarefas a cumprir. Eram preparadas
para suportar trabalhos pesados, e inclusive a
morte, se a causa do povo trabalhador o
exigisse. Os membros do Partido situavam-se na-
quela culminância social a partir da qual as ações
humanas, ao invés de serem encaradas como
confusão sem sentido, passavam a constituir
uma parcela de um padrão definido.
O Partido enxergava melhor que o mais hábil
atirador. Eis por que cada membro do Partido
não apenas conhecia o significado dos
acontecimentos, mas também os configurava e
orientava em direção a novos objetivos. Eis a
razão por que nenhum membro do Partido se
deixava jamais surpreender pelo que quer que
fosse. O Partido representava para os
trabalhadores o que a locomotiva significa para
um trem. Ele conduzia as pessoas para os
objetivos mais selecionados, apontando-lhes
novos rumos para o aperfeiçoamento de suas
vidas. E Stálin era o maquinista dessa
locomotiva.
Das reuniões do Partido, que eram sempre
longas e acidentadas, Gavrila voltava sempre
rouco e exausto. Por ocasião dessas reuniões,
que ocorriam com freqüência, os membros do
Partido costumavam avaliar-se uns aos outros,
cada um criticando aos demais e a si mesmo,
elogiando quando era o caso ou apontando
defeitos, quando merecido. Tinham perfeito
conhecimento do que ocorria em torno deles, e
esforçavam-se incessantemente por frustrar as
atividades prejudiciais de indivíduos
influenciados por padres e donos de terras. Essa
incessante vigilância tornava os membros do
Partido temperados como aço de qualidade.
Havia entre eles homens de todas as idades e
militares de todas as classes. A força do Partido,
conforme Gavrila o explicava, residia em sua
habilidade para desvencilhar-se daqueles
elementos que, como se fossem a roda avariada
de uma carruagem, opõem um empecilho ao
progresso. Essa auto-acusação tinha lugar
durante as reuniões. Era ali que os membros
conquistavam a necessária rijeza.
Eu encontrava em tudo aquilo algo de
imensamente cativante. Olhava-se para um
homem vestido como todos os demais,
trabalhando e lutando como o faziam todos. Dir-
se-ia apenas mais um soldado de um grande
exército. Era possível, porém, que se tratasse de
um membro do Partido; no bolso do uniforme,
diretamente sobre o coração, poderia estar
trazendo o cartão de inscrição do Partido. Assim
sendo, ele modificava-se à meus olhos, como o
fazia o papel sensibilizado na escuridão da
cabina do fotógrafo do regimento. Tornava-se
com isso um dos melhores, um dos eleitos, um
daqueles mais bem informados que os outros.
Sua apreciação das coisas tinha mais força que
uma caixa de explosivos. Os outros silenciavam
quando ele falava, ou falavam com mais cuidado
quando sabiam que ele ouvia.
No mundo soviético, o indivíduo era situado de
acordo com a opinião que os outros faziam dele,
e não de acordo com a sua própria. Apenas o
grupo, que eles designavam como "a
coletividade", estava qualificado para determinar
o valor e a importância do indivíduo. O grupo
decidia sobre o que poderia torná-lo mais útil e o
que reduziria sua utilidade com relação aos
demais. Ele próprio passava a ser um composto
de tudo quanto os outros dissessem a seu
respeito. Chegar a conhecer a intimidade da
natureza de um indivíduo era, no dizer de
Gavrila, um processo interminável. Não havia
maneira de discernir se, no mais íntimo de seu
ser, como se fora um poço profundo, não se
escondia um inimigo dos trabalhadores, um
agente dos capitalistas. Todo indivíduo tinha que
ser constantemente fiscalizado por aqueles que o
rodeavam, pela coletividade a que pertencia.
O ser humano parecia ter inúmeras faces; era
possível que uma fosse esbofeteada enquanto a
outra estava sendo beijada, ou ainda
temporariamente desconhecida. A cada instante
era avaliado segundo padrões de eficiência
profissional, origem familiar, êxito coletivo ou
partidário, e comparado com outros indivíduos
capazes de substituí-lo a qualquer momento ou
de serem por ele substituídos. O Partido
examinava a pessoa simultaneamente através
de lentes de focos distintos, mas de precisão
invariável; ninguém podia prever a imagem final
que dali emergiria.
Tornar-se membro do Partido era na realidade o
máximo a que alguém podia aspirar. O caminho
para atingir essa culminância não era suave, e
quanto mais intimamente eu me entrosava na
vida do regimento mais me capacitava da
complexidade do universo em que Gavrila se
movimentava.
Ao que tudo indicava, para atingir o pináculo o
indivíduo devia galgar diversas escadas
concomitantemente. Era possível que já se
encontrasse a meio caminho da escada
profissional e apenas iniciando a escalada da
escada política. Podia estar subindo por uma e
descendo a outra. Assim sendo, suas
probabilidades de alcançar o cume variavam, e
esse cume, no dizer de Gavrila, situava-se fre-
qüentemente a um passo adiante e dois atrás.
Ademais, mesmo depois de atingir esse cume,
era fácil ao indivíduo cair e ter que reiniciar a
escalada.
Pelo fato de a conceituação do indivíduo
depender em parte de sua origem social, os
antecedentes familiares pesavam, inclusive no
caso de não serem vivos os pais. Sua
oportunidade de elevar-se na escada política era
maior no caso de seus pais terem sido
trabalhadores industriais do que camponeses ou
funcionários de escritório. Essa sombra familiar
acompanhava as criaturas sem descanso, da
mesma forma que o conceito de pecado original
obcecava mesmo o mais perfeito dos católicos.
Eu estava cheio de apreensões. Embora me fosse
difícil recordar a ocupação exata de meu pai,
lembrava-me da presença em nossa casa de
cozinheiras, arrumadeiras e governantas, que
certamente seriam qualificadas como vítimas da
exploração capitalista. Sabia outrossim que nem
meu pai nem minha mãe haviam sido
trabalhadores. Acaso isso significaria que, tal
como meu cabelo e olhos negros eram invocados
em meu desfavor pelos camponeses, também a
minha origem social poderia prejudicar o meu
novo sistema de vida em companhia dos
soviéticos?
Na escala militar, a posição do indivíduo era
determinada pelo seu posto e pela função que
exercia no regimento. Um membro veterano do
Partido devia obedecer explicitamente às ordens
de seu comandante, que inclusive podia não
pertencer ao Partido. Posteriormente, em reunião
do Partido, era-lhe facultado criticar as atividades
desse mesmo capitão, e, no caso de suas
acusações serem procedentes e apoiadas por
outros membros do Partido, podiam provocar a
transferência do comandante a um posto inferior.
Às vezes, verificava-se o oposto. Um comandante
punia um oficial que pertencia ao Partido, e este
posteriormente rebaixava de categoria o oficial.
Por outro lado, porém, oficiais de carreira tinham
mais prestígio que os outros. Paralelamente,
oficiais de carreira treinados pelo Partido
possuíam mais influência no regimento do que os
que contavam apenas com treinamento técnico.
Eu me sentia perdido em meio a essa confusão.
No mundo em que Gavrila procedia à minha
iniciação, aspirações e expectativas humanas
entrelaçavam-se umas às outras como as raízes
e os galhos de árvores seculares numa floresta
densa, cada uma delas porfiando por mais
umidade do solo e mais luminosidade do céu.
Minha inquietação crescia a cada passo. Que me
estaria reservado para o futuro? Como me
apresentaria, ao ser observado pelos
inumeráveis olhos do Partido? Qual a minha
essência mais íntima: um miolo saudável como o
de uma maçã madura, ou apodrecido como o
caroço bichado de uma ameixa mirrada?
Que sucederia se os outros, a coletividade,
decidissem que eu estava mais habilitado para
outro tipo de trabalho, qual fosse, por exemplo, o
de mergulhador de profundidade? Acaso
importaria o fato de que eu adquirira horror à
água, porque cada mergulho me fazia recordar o
meu quase-afogamento debaixo do gelo? A
coletividade poderia julgar que aquilo fora uma
experiência das mais valiosas, que me habilitara
a treinar para mergulhador. Ao invés de tornar-
me inventor de detonadores, eu teria que passar
o resto da vida como mergulhador, odiando
embora a própria visão da água, tremendo de
angústia antes de cada mergulho. Que sucederia,
nesse caso? Raciocinando como Gavrila, eu me
perguntava: como pode o indivíduo ousar impor
sua decisão acima da decisão da comunidade?
Eu absorvia cada uma das palavras de Gavrila,
fazendo perguntas cuja resposta solicitava fosse
escrita no quadro-negro com o qual me
presenteara. Prestava atenção às conversas dos
soldados, antes e depois das reuniões; assistia a
estas sem ser pressentido, através das paredes
de tela que dividiam as tendas.
A vida desses adultos soviéticos não era
propriamente fácil. Quiçá fosse tão árdua quanto
peregrinar entre uma e outra aldeia e ser
confundido com um cigano. O indivíduo tinha
uma infinidade de caminhos a escolher, estradas
incontáveis se lhe descortinavam ao longo do
território da vida. Algumas eram becos sem
saída, outras conduziam a atoleiros, a ciladas e
armadilhas perigosas. No dizer de Gavrila, só o
Partido conhecia o caminho certo e o destino
seguro.
Eu me esforçava por conservar na memória os
ensinamentos de Gavrila, por não perder uma só
palavra dos mesmos. Ele costumava sustentar,
por exemplo, que para tornar-se feliz e útil
cumpria aderir à marcha dos trabalhadores,
acertando o passo com os demais no lugar desig-
nado na coluna. Avançar demasiado em direção
à frente da coluna resultava tão
contraproducente quanto deixar-se ficar para
trás. Poderia implicar perda de contato com as
massas, conduzindo à decadência e à
degeneração. Cada passo em falso poderia
representar um atraso para toda a coluna, e
aqueles que caíam arriscavam-se a ser
pisoteados pelos que vinham atrás.

XVII
Ao cair da tarde, grupos de camponeses vieram
das aldeias. Trocaram frutas e verduras pela
saborosa carne de porco enlatada vinda para o
Exército Vermelho da América, por sapatos, ou
por uma peça de barraca de lona da qual
pudessem ser confeccionados um par de calças
ou uma jaqueta.
À medida que os soldados iam terminando suas
tarefas da tarde, ouvia-se aqui e ali a música de
acordeões e cantorias. Os camponeses ouviam
atentamente as músicas, pouco entendendo das
palavras. "Lutaremos contra os burgueses, os
proprietários e o resto; selaremos a sorte dos
kulaks 1 , estas danadas e pestilentas
sanguessugas; nós, soldados do Exército
Vermelho, lutamos pelos pobres, para dar
liberdade ao povo e garantir a segurança de suas
vidas." Alguns camponeses aderiam ruidosa e
ousadamente à música. Outros pareciam
alarmados, desconfiadamente observando as
fisionomias de seus vizinhos, que exibiam uma
afeição repentina e inesperada para com o
Exército Vermelho.
Mulheres desceram das aldeias em número
crescente, juntamente com seus homens.
Algumas delas flertavam abertamente com os
soldados, tentando atraí-los, por trás das costas
dos maridos ou irmãos que comerciavam alguns
passos adiante. Com seus cabelos acinzentados
e olhos claros, elas arriavam as blusas
esfarrapadas e levantavam com ar casual as
1 Palavra russa que designa mercadores prósperos, cruéis e mes-
quinhos, e também os usurários das aldeias. (N. do E.)
saias rasgadas, balançando os quadris à medida
que passeavam em volta. Os soldados se
achegavam, trazendo de suas barracas
reluzentes latas de carne de porco e de vaca de
procedência americana, pacotes de fumo e papel
para enrolar cigarros. Menosprezando a presença
dos homens, fixavam profundamente os olhos
das mulheres, acidentalmente esfregando-se
contra seus corpos rechonchudos e aspirando
seu perfume.
Alguns soldados ocasionalmente escapavam do
campo e visitavam as aldeias, a fim de continuar
o comércio com os fazendeiros e encontrar as
moças de lá. O comando do regimento fez o
máximo para evitar tais contatos secretos com a
população. Os funcionários políticos, os
comandantes dos batalhões e mesmo os boletins
de informação preveniam os soldados contra tais
escapadas individuais. Assinalavam que alguns
dos mais ricos fazendeiros estavam sob a
influência dos partidários nacionalistas que
vagavam pelas florestas numa tentativa de
tornar mais vagarosa a marcha vitoriosa do
Exército soviético e evitar a vitória próxima de
um governo de trabalhadores e lavradores.
Revelavam que homens de outros regimentos
voltavam de tais excursões cruelmente
derrotados, e que alguns haviam desaparecido
totalmente.
Certo dia, no entanto, alguns soldados
menosprezaram o risco do castigo e tramaram
escapulir do acampamento. As sentinelas
fingiram nada ver. A Vida no acampamento era
monótona e os soldados, esperando pela partida
ou pela entrada em ação, estavam desesperados
atrás de algum divertimento. Mitka, o Cuco,
sabia desse espairecimento de seus amigos e
poderia até mesmo ter ido com eles, se não fosse
aleijado. Costumava dizer que, desde que os
soldados do Exército Vermelho arriscavam suas
vidas por essa gente local guerreando os
fascistas, não haveria razão para evitar sua
companhia.
Mitka vinha cuidando de mim desde que eu
entrara para o hospital do regimento. Graças à
sua alimentação eu aumentara de peso. Mitka
fisgava do grande caldeirão os melhores pedaços
de carne e coava a gordura da sopa para mim.
Ele também me acompanhava em minhas dolo-
rosas injeções, incentivando-me a coragem antes
dos exames médicos. Certa vez, quando tive
uma indigestão de muito comer, Mitka sentou-se
comigo durante dois dias, segurando minha
cabeça quando eu vomitava e enxugando meu
rosto com um pano úmido.
Enquanto Gavrila ensinava-me coisas sérias,
explicando o papel principal do Partido, Mitka
introduzia-me à poesia e entoava-me canções,
arranhando um acompanhamento em seu violão.
Foi Mitka que me levou ao cinema do regimento
e cuidadosamente explicou-me os filmes. Em sua
companhia apreciei os mecânicos consertando os
motores dos poderosos caminhões Zis e
Studebaker, e foi Mitka que me levou a ver os
artilheiros treinando.
Mitka era um dos melhores e mais respeitados
homens no regimento. Possuía uma boa ficha
militar. Em dias de parada, seu desbotado
uniforme ostentava condecorações que fariam
inveja aos comandantes de regimento ou mesmo
de divisão. Mitka era um Herói da União
Soviética, a mais alta glória militar, e um dos
homens mais condecorados em toda a divisão.
Ele era também um candidato ao Partido.
Suas façanhas como artilheiro eram descritas em
jornais e revistas para crianças e adultos. Por
diversas vezes foi caracterizado no cinema e
visto por milhares de cidadãos soviéticos em
fazendas coletivas e fábricas. O regimento tinha
grande orgulho de Mitka; foi fotografado para os
jornais da divisão e entrevistado por
correspondentes.
Em volta das fogueiras noturnas do
acampamento, os soldados costumavam contar
histórias acerca das perigosas missões de que
ele havia sido encarregado apenas um ano
antes. Discutiam indefinidamente os atos
heróicos que praticara sozinho, na retaguarda do
inimigo, onde ele saltara de pára-quedas e
atirara isoladamente em oficiais e mensageiros
do Exército alemão com extraordinária pontaria.
Extasiavam-se ante os artifícios de que Mitka lan-
çava mão para voltar da retaguarda inimiga em
tempo apenas para ser novamente enviado em
outra perigosa missão.
Durante tais conversas eu me sentia inflamar de
orgulho. Sentado ao lado de Mitka, encostado em
seu braço possante, escutava atentamente sua
voz, de modo a não perder uma palavra do que
ele dizia ou das perguntas que os outros lhe
endereçavam. Se a guerra durasse até que eu
tivesse idade suficiente para servir, talvez eu
também pudesse tornar-me um artilheiro, um
herói, acerca do qual os trabalhadores
comentariam em suas refeições.
O fuzil de Mitka era objeto de constante
admiração. Dócil às solicitações, ele o tirava de
seu estojo, soprando invisíveis partículas de
poeira na mira e na coronha. Trêmulos de
curiosidade, jovens soldados curvavam-se sobre
o fuzil com respeito igual ao dos padres diante
do altar. Velhos soldados de mãos grandes e
calosas seguravam a arma com sua coronha
suavemente polida assim como uma mãe levanta
um bebê de seu berço. Prendendo a respiração,
examinavam as lentes claras como cristal da
mira telescópica. Era através dessa mira que
Mitka via o inimigo. Essas lentes lhe
aproximavam tanto os alvos que lhe tornavam
possível distinguir os rostos, os gestos e os risos.
Ajudavam-no a mirar sem erro no ponto abaixo
das barras metálicas onde batia o coração dos
alemães.
O semblante de Mitka ensombrecia-se quando os
soldados admiravam seu fuzil. Ele
instintivamente tocava o lado doloroso e
enrijecido de seu corpo, no qual os fragmentos
de uma bala alemã continuavam encravados.
Aquela bala havia posto um ponto final em sua
carreira de franco-atirador, um ano atrás.
Importunava-o diariamente. Transformara-o de
Mitka, o Cuco, como era conhecido
anteriormente, em Mitka, o Mestre, como era
agora chamado mais freqüentemente.
Continuava sendo o artilheiro-instrutor do
regimento, e ensinava aos jovens soldados sua
arte; mas não era isso o que o seu coração
ambicionava. À noite, eu lhe vislumbrava às
vezes os olhos brilhantes e comoventes total-
mente abertos, fixos no teto triangular da tenda.
Provavelmente revivia aqueles dias e noites
quando, emboscado nos arbustos ou nas moitas
muito atrás das linhas inimigas, aguardava o
momento certo de escolher um oficial, um
estafeta, um piloto ou um operador de tanque.
Quantas vezes teria olhado o inimigo de frente,
seguido seus movimentos, medindo a distância
mais uma vez, acertando sua mira. Com cada
uma de suas bem dirigidas balas ele fortalecia a
União Soviética, suprimindo um dos seus
inimigos.
Esquadrões especiais alemães com cães
domesticados procuravam seus esconderijos, e
as caçadas humanas cobriam grandes áreas.
Quantas vezes devera ter imaginado nunca mais
regressar! Entretanto, eu sabia que esses teriam
sido provavelmente os dias mais felizes da vida
de Mitka. Ele não trocaria esses dias, quando era
tanto juiz como executor, por quaisquer outros.
Sozinho, guiado pela mira telescópica de seu
fuzil, ele despojava o inimigo de seus melhores
homens. Reconhecia-os por suas condecorações,
pelas insígnias de seu posto, pela cor de seus
uniformes. Antes de puxar o gatilho haveria de
perguntar a si mesmo se aquele homem merecia
morrer por uma bala do fuzil de Mitka, o Cuco.
Talvez ele devesse esperar por uma vítima
melhor. Um capitão em lugar de um tenente, um
major em lugar de um capitão, um piloto em vez
de um artilheiro de tanque, um oficial do Estado-
Maior em vez de um comandante de batalhão.
Todos os seus tiros poderiam trazer a morte não
apenas ao inimigo, mas também a si próprio,
roubando assim ao Exército Vermelho um de
seus melhores soldados.
Meditando acerca de tudo isso, eu admirava
Mitka cada vez mais. Aqui, deitado numa cama a
poucos pés de mim, estava um homem que
lutara por um mundo melhor e mais seguro, não
por meio de preces nos altares, mas
sobressaindo-se em sua pontaria. O oficial
alemão, no seu magnífico uniforme negro, que
gastava seu tempo matando prisioneiros
desamparados ou decidindo o destino de pe-
quenos vermes insignificantes como eu, parecia-
me agora uma miserável nulidade em
comparação com Mitka.
Quando os soldados que haviam escapado do
campo para a aldeia não retornaram, Mitka
começou a preocupar-se. Aproximava-se a hora
da inspeção noturna e sua ausência poderia ser
notada a qualquer momento. Estávamos
sentados na barraca. Mitka passeava
nervosamente, esfregando as mãos úmidas de
emoção. Tratava-se de seus melhores amigos:
Gricha, um bom cantor, a quem Mitka
acompanhava em seu acordeão; Lonka, que era
seu conterrâneo; Anton, um poeta, que podia
declamar melhor que qualquer outro; e Vanka, o
qual, no dizer de Mitka, salvara-lhe certa vez a
vida.
O sol se havia posto e a guarda fora mudada.
Mitka continuava observando o mostrador
luminoso de seu relógio, que conquistara como
saque de guerra.
Do lado de fora houve um tumulto entre as
sentinelas. Alguém gritou por um médico,
quando uma motocicleta surgiu à velocidade
máxima através do acampamento, em direção
ao quartel-general.
Mitka apressou-se em sair, puxando-me com ele.
Outros igualmente vieram correndo atrás.
Muitos soldados estavam já dispostos na fileira
da guarda. Rodeando quatro corpos inertes,
diversos soldados cobertos de sangue
ajoelhavam-se ou mantinham-se de pé. De suas
palavras incoerentes pudemos depreender que
haviam comparecido a uma festa numa aldeia
próxima e haviam sido atacados por alguns
camponeses bêbados, que se haviam mostrado
ciumentos de suas mulheres. Os lavradores os
haviam excedido em número, desarmando-os.
Quatro dos soldados foram mortos a
machadadas e outros gravemente feridos.
O comandante-chefe do regimento chegou,
seguido por outros oficiais graduados. Os
soldados abriram caminho para eles e
permaneceram em posição de sentido. Os feridos
tentaram em vão levantar-se. O comandante-
chefe, pálido, porém calmo, ouviu o relato de um
dos homens feridos e então emitiu as ordens. Os
feridos foram imediatamente transportados para
o hospital. Alguns deles podiam andar
vagarosamente, uns escorando os outros e en-
xugando nas mangas da camisa o sangue do
rosto e dos cabelos.
Mitka agachou-se aos pés dos mortos, fixando
silenciosamente seus rostos rígidos e
massacrados. Outros soldados mantinham-se por
ali, respirando pesadamente.
Vanka estava estirado de costas, seu pálido rosto
voltado para os assistentes. A luz fraca de uma
lanterna permitia distinguir em seu peito filetes
de sangue coagulado. O rosto de Lonka havia
sido dividido em dois pelo terrível golpe de um
machado. Lascas de ossos do cérebro estavam
misturadas com faixas de músculos do pescoço.
Os rostos espancados e inchados dos outros dois
eram apenas reconhecíveis.
Uma ambulância apareceu. Enquanto os corpos
eram retirados, Mitka colericamente agarrou meu
braço.
A tragédia foi comentada no relatório noturno. Os
homens engoliram em seco, ouvindo as novas
ordens proibindo qualquer contato com a hostil
população local e qualquer ação que pudesse
mais tarde agravar suas relações com o Exército.
Mitka passou aquela noite murmurando e
resmungando consigo mesmo, socando a cabeça
com o punho cerrado e a seguir sentando-se em
meditativo silêncio.
Vários dias se passaram. A vida do regimento
voltava ao normal. Os homens mencionavam
com menor freqüência os mortos. Recomeçaram
a cantar e preparavam-se para a visita de um
teatro ambulante. Mas Mitka não estava bem, e
outro substituiu-o em suas funções de trei-
namento.
Uma noite, Mitka acordou-me de madrugada.
Mandou que me vestisse rapidamente, sem
qualquer outro esclarecimento. Quando estava
pronto, ajudei-o a enfaixar os pés e colocar as
botas. Ele gemeu de dor, mas movimentou-se
com presteza. Quando estava vestido, certificou-
se de que os demais homens ainda dormiam, e
então tirou seu fuzil de trás da cama. Sacou a
arma do estojo marrom e jogou-a sobre o ombro.
Cuidadosamente recolocou o estojo vazio atrás
da cama, trancando-o a fim de dar a impressão
de que o fuzil continuava em seu interior. A
seguir, descobriu o telescópio e colocou-o no
bolso, juntamente com um pequeno tripé.
Verificou seu cinto de munição e tirou um
binóculo do gancho, enlaçando-o em meu
pescoço.
Esgueiramo-nos em silêncio da barraca,
passando pela cozinha. Quando os homens de
sentinela passaram por nós, corremos em
direção ao mato, cruzamos o campo vizinho, e
logo estávamos fora do acampamento.
O horizonte estava ainda envolto na neblina
noturna. A pálida réstia de uma vereda rural
recortava-se entre as opacas camadas de neblina
que envolviam os campos.
Mitka enxugou o suor que lhe escorria do
pescoço, amarrou o cinto e acariciou-me a
cabeça, à medida que corríamos para a mata,
apenas visível a distância.
Eu não sabia para onde nos dirigíamos. No
íntimo, porém, intuía que Mitka estava
fazendo algo por determinação própria, algo
que não devia fazer, algo que poderia lhe
custar sua posição no Exército e frente à
opinião pública.
E, no entanto, ao compreender tudo isso, eu
me enchia de orgulho por ser a pessoa
escolhida para acompanhá-lo e ajudar um
Herói da União Soviética em sua misteriosa
missão.
Caminhávamos rapidamente. Mitka
obviamente estava cansado, coxeando e
puxando o fuzil, que teimava em escorregar-
lhe do ombro. Sempre que tropeçava, ele
praguejava, coisa que geralmente proibia os
outros soldados de fazer, e, notando que o
ouvia, ordenava-me que esquecesse
imediatamente tudo. Eu acenava com a
cabeça em assentimento, apesar de que daria
tudo para recobrar a fala de modo a poder
repetir esses magníficos impropérios da
língua russa, tão saborosos como ameixas
maduras.
Cautelosamente ultrapassamos uma vila
adormecida. Nenhuma fumaça escapava das
chaminés, e os cães e galos estavam
silenciosos. O rosto de Mitka retesou-se e
seus lábios ficaram secos. Abriu uma garrafa
de café frio, tomou um gole e deu-me o resto.
Apressamo-nos em frente.
Era madrugada quando entramos na floresta,
mas a mata ainda estava mergulhada em
sombra. As árvores mantinham-se imóveis
como monges sinistros em hábitos pretos,
guardando os atalhos e clareiras 'com as
largas mangas de seus ramos. Num certo
ponto o sol achou um pequeno claro no topo
das árvores e seus raios brilharam através
das palmas abertas das folhas dos
castanheiros.
Após alguma reflexão, Mitka escolheu uma
alta e troncuda árvore, próxima aos campos
que bordejavam a floresta. O tronco era
escorregadio; mas havia nós e largos galhos
cresciam bem baixo. Mitka começou por
ajudar-me a galgar um desses galhos,
entregando-me a seguir o longo fuzil, o
binóculo, o telescópio e o tripé, que eu
pendurei com todo o cuidado nos ramos. Foi
então minha vez de ajudá-lo a subir. Quando
Mitka, gemendo e bufando, molhado de suor,
alcançou-me no galho, subi para o seguinte.
Assim, ajudando-nos mutuamente, conseguimos
alcançar quase o topo da árvore com o fuzil e
todo o equipamento.
Após um momento de descanso, Mitka
habilmente dobrou para trás alguns galhos que
atrapalhavam nossa visão, cortou alguns deles e
amarrou outros. Logo tivemos um ninho
razoavelmente confortável e bem disfarçado.
Pássaros despercebidos agitavam-se nos topos
das árvores próximas.
Acostumando-me à altura, discerni os contornos
dos prédios da aldeia bem à nossa frente. As
primeiras rajadas de fumaça começavam a
erguer-se no céu. Mitka prendeu o telescópio ao
fuzil e fixou o tripé com firmeza. Sentou-se
recostado e cuidadosamente colocou o fuzil em
seu suporte.
Gastou muito tempo pesquisando a aldeia com o
binóculo. A seguir o entregou a mim e começou a
inspecionar a aldeia. Com sua imagem
admiravelmente aumentada, as casas pareciam
estar bem em frente à floresta. A imagem era tão
nítida e clara que eu quase podia contar as
palhas das coberturas dos telhados. Distinguia
galinhas ciscando nos quintais e um cão
espreguiçando-se no fraco sol do começo da
manhã.
Mitka pediu-me o binóculo. Antes de devolvê-lo,
fiz outra rápida inspeção da aldeia. Vi apenas um
homem alto saindo de uma casa. Estirou os
braços, bocejou e olhou o céu limpo. Pude ver
que sua camisa estava toda aberta na frente e
que havia grandes remendos nos joelhos de suas
calças.
Mitka pegou o binóculo e colocou-o fora do meu
alcance. Completamente imóvel, estudou a cena
através de seu telescópio. Eu forcei a vista, mas
sem as lentes nada mais divisei senão as casas
reduzidas ao mínimo, a distância.
Um tiro ecoou. Assustei-me, ao mesmo tempo
que os pássaros alvoroçaram-se na folhagem.
Mitka levantou o rosto vermelho e suado e
murmurou algo. Tentei apanhar o binóculo. Ele
sorriu, desculpando-se, e manteve segura minha
mão. Embora a recusa de Mitka me ofendesse,
pude adivinhar o que havia acontecido. Na minha
imaginação, vi o fazendeiro debruçando-se,
tentando alcançar o alto da cabeça com as mãos,
como se procurasse o apoio de uma invisível
ajuda, enquanto desmoronava na soleira de sua
casa.
Mitka remuniciou o fuzil, colocando o cartucho
usado no bolso. Com o auxílio do binóculo,
inspecionou calmamente a aldeia, assoviando
brandamente através dos lábios cerrados.
Tentei visualizar o que ele enxergava por lá. Uma
velha mulher envolta em trapos escuros saindo
de casa, olhando o céu, persignando-se e ao
mesmo tempo deparando com o corpo estirado.
Aproximando-se dele com passos desajeitados e
cambaleantes e agachando-se a fim de virar-lhe
o rosto, deparava com o sangue e corria aos
brados em direção às casas vizinhas.
Alarmados com seus gritos, homens vestindo às
pressas as calças e mulheres não totalmente
despertas começaram a sair correndo das casas.
A aldeia logo enxameava de gente correndo de
um lado para outro. Os homens debruçavam-se
sobre o corpo, gesticulando ferozmente e
olhando desesperançados em todas as direções.
Mitka mudou imperceptivelmente de posição.
Tinha o olho grudado na mira telescópica e
pressionava a coronha do fuzil contra o ombro.
Gotas de transpiração cintilavam-lhe na testa.
Uma delas caiu, rolou em suas espessas
sobrancelhas, emergiu na base de seu nariz e
começou a correr-lhe pelo sulco lateral da
bochecha, a caminho do queixo. Antes que lhe
alcançasse os lábios, Mitka disparou três vezes
em rápida sucessão.
Fechei os olhos e revi nitidamente a aldeia, com
os três corpos escorregando para o chão. Os
camponeses remanescentes, incapazes de ouvir
os tiros àquela distância, espalhavam-se em
pânico, olhando em torno com perplexidade e
imaginando de onde poderiam ter vindo.
O medo tomou conta da aldeia. As famílias dos
mortos soluçavam violentamente e puxavam os
corpos pelas mãos e pelos pés para dentro das
casas e dos celeiros. Crianças e moradores mais
idosos, desprevenidos do que estava
acontecendo, perambulavam sem qualquer
objetivo por ali. Após alguns momentos todos
desapareceram. Até mesmo os postigos foram
fechados.
Mitka examinou bem a aldeia. Não deve ter
ficado ninguém do lado de fora, pois sua
inspeção levou algum tempo. Subitamente
colocou o binóculo de lado e pegou o fuzil.
Eu conjeturava se seria talvez algum jovem
esgueirando-se por entre as casas, tentando
escapar ao franco-atirador e voltar rápido à
sua cabana. Não sabendo de onde vinham as
balas, parava aqui e ali e olhava em redor.
Quando alcançou uma fileira de roseiras
silvestres, Mitka atirou novamente.
O homem parou como que pregado ao chão.
Curvou um joelho, tentou curvar o outro e a
seguir estatelou-se nos roseirais. Os ramos
espinhosos balançaram incomodamente.
Mitka apoiou-se em seu fuzil e descansou. Os
camponeses estavam todos em suas casas;
nenhum se aventurava a sair.
Como invejava Mitka! Subitamente
compreendi uma boa parte do que um dos
soldados dissera numa discussão com ele.
"Ser Humano — este é um título glorioso. O
homem carrega em si mesmo sua própria
guerra particular, a qual lhe compete
desencadear, ganhe ou perca — e sua própria
justiça, a qual só a ele compete ministrar."
Agora, Mitka, o Cuco, havia imposto a
vingança pela morte de seus amigos, a
despeito das opiniões dos outros, do risco de
sua posição no regimento e de seu título de
Herói da União Soviética. Se não pudesse
vingar seus amigos, de que teriam valido
todos aqueles dias de treino na arte de
franco-atirador, o controle da visão, da mão e
da respiração? Que valor teria o título de
Herói, respeitado e adorado por dezenas de
milhares de cidadãos, se ele não mais o
merecia a seus próprios olhos?
Havia outro elemento na vingança de Mitka.
Um homem, não importa quão popular e
admirado, vive principalmente consigo
mesmo. Se ele não estiver em paz consigo
mesmo, se estiver contrariado acerca de algo
que não fez, mas que deveria ter feito a fim
de preservar a imagem que guarda de si
mesmo, ele é como o "infeliz Demônio,
espírito desterrado, pairando muito acima do
mundo pecador".
Compreendi também algo mais. Havia muitos
atalhos e muitas elevações guiando-nos à
culminância da moral. Mas podia-se também
atingir o topo sozinho, com a ajuda, na maioria
das vezes, de um único amigo, do modo como
Mitka e eu havíamos subido na árvore. Este era
um topo diferente, separado da marcha das
massas trabalhadoras.
Com um sorriso carinhoso, Mitka entregou-me o
binóculo. Inspecionei ansiosamente a aldeia, mas
nada havia para se ver, exceto as casas muito
bem fechadas. Aqui e ali uma galinha ou um peru
ciscavam. Dispunha-me a devolver-lhe o
binóculo quando um enorme cão apareceu entre
as casas. Balançou a cauda e esfregou as orelhas
com uma das patas traseiras. Lembrei-me de
Judas. Ele fazia exatamente isto, quando
zombava de mim, dependurado nos ganchos do
teto.
Toquei o braço de Mitka, ao mesmo tempo que
apontava para a aldeia com a cabeça. Ele pensou
que eu quisesse dizer que havia algum morador
à vista e concentrou-se em sua mira telescópica.
Não vendo ninguém, olhou-me com ar inquiridor.
Fiz-lhe saber por sinais que desejava que ele
matasse o cão. Ele se mostrou surpreso e negou-
se a fazê-lo. Insisti. Ele recusou, olhando-me com
desaprovação.
Estávamos sentados em silêncio, atentos ao
sussurro amedrontador da floresta. Mitka
examinou novamente a aldeia, mas nada havia
para ver. Dobrou então o tripé e retirou a mira
telescópica. Iniciamos vagarosamente nossa
descida; às vezes, Mitka gemia de dor quando se
pendurava pelos braços, procurando embaixo um
apoio para os pés.
Enterrou os cartuchos usados sob o musgo e
apagou todos os vestígios de nossa presença.
Caminhamos então em direção ao campo, onde
podíamos ouvir os motores sendo testados pelos
mecânicos. Entramos sem ser notados.
À tarde, quando os outros homens trabalhavam,
Mitka limpou rapidamente o fuzil e a mira e
recolocou-os em seus estojos.
Naquela noite ele estava doce e carinhoso como
antes. Numa voz sentimental, entoou baladas
acerca de Tchapaievsk, sobre a beleza de
Odessa, sobre artilheiros que, com milhares de
tiros, vingavam as mães que haviam perdido os
filhos na guerra.
Os soldados sentados por perto faziam o coro.
Suas vozes levantavam-se altas e claras. Da
aldeia veio o débil e firme badalar de sinos
anunciando os funerais.

XVIII
Não aceitei de bom grado a idéia de deixar
Gavrila, Mitka e todos os meus amigos do
regimento. Mas Gavrila mostrou-se inflexível: a
guerra ia terminar, nosso país já estava
totalmente libertado e, segundo as convenções
em vigor, todas as crianças perdidas deviam ser
encaminhadas para os centros de recepção, onde
se cuidaria delas enquanto se esperava conhecer
o paradeiro de seus pais.
Enquanto ele me expunha as suas razões, eu o
olhava com toda a atenção e mal podia conter as
lágrimas. Também Gavrila parecia infeliz. Eu
sabia que Mitka e ele haviam conversado sobre o
meu futuro, e, se tivesse havido outra solução,
por certo eles a teriam encontrado. Gavrila
prometeu-me que, se três meses após o fim da
guerra ninguém me tivesse reclamado, ele
próprio se ocuparia de mim e me mandaria para
uma escola, onde eu aprenderia novamente a
falar. Até lá, exortou-me a ter coragem, a jamais
esquecer o que me ensinara e a ler diariamente
o Pravda.
Os soldados deram-me um saco cheio de
presentes e livros. O alfaiate do regimento
confeccionara para mim, sob medida, um
uniforme do Exército soviético. No bolso da
túnica encontrei uma pistola de madeira, ornada,
na coronha, com os retratos de Stálin e Lênin.
Chegou a hora da partida. Foi o Sargento Iuri
quem me levou. Devia ir até a cidade onde eu
vivera antes da guerra, um grande centro
industrial, onde se achava instalado um dos
centros de recepção. Gavrila assegurou-me pela
última vez que meus documentos pessoais
estavam em perfeita ordem; havia lançado todas
as informações que me diziam respeito: meu
nome, meu antigo endereço e as informações
que eu lhe pudera fornecer sobre meus pais,
sobre nossos parentes e amigos.
O motorista deu partida ao motor. Mitka deu-me
um tapa amigável no ombro, recomendando-me
que honrasse o Exército Vermelho. Gavrila
abraçou-me calorosamente; todos me apertaram
a mão, como a um homem. Tinha vontade de
chorar, mas mantive a cabeça erguida, o olhar
firme.
O veículo partiu e nos levou até a estação. O
trem estava apinhado de militares e civis. Parou
em campo raso, pôs-se novamente em marcha e
parou mais uma vez. Atravessou cidades
destruídas, cidades desertas. Às margens dos
taludes havia um número incontável de viaturas
calcinadas, tanques e armas abandonados,
aviões de asas e cauda arrancadas. Aqui e ali,
pessoas andrajosas dispu-nham-se em filas ao
longo dos vagões, mendigando cigarros e pão;
crianças seminuas contemplavam o trem com
grandes olhos espantados. Levamos dois dias
para alcançar a cidade.
Todas as estradas estavam destinadas ao
transporte de tropas, aos comboios da Cruz
Vermelha ou ao encaminhamento do material de
guerra. No cais comprimia-se uma multidão de
soldados soviéticos e de prisioneiros libertados,
envergando uniformes de todos os tipos,
acotovelando-se com inválidos de muletas, civis
esfarrapados, cegos que tateavam o chão com as
suas bengalas. Os soldados observavam em
silêncio esses egressos dos fornos e dos campos
de concentração que retornavam à vida. Agarrei-
me à mão de Iuri sem poder afastar o olhar das
fisionomias cinzentas, de olhos ardendo em
febre, brilhantes como dois estilhaços de vidro na
cinza.
Uma locomotiva fez parar diante da estação um
vagão novo em folha, de onde desceu uma
delegação de oficiais estrangeiros, de uniformes
rutilantes, constelados de condecorações. Uma
guarda de honra formou-se rapidamente
defronte da porta e uma orquestra militar exe-
cutou um dobrado. Os garbosos oficiais
cruzaram, sem uma palavra, pelo cais estreito,
com os egressos dos campos de concentração
nas suas roupas listradas.
Bandeiras inteiramente novas tremulavam na
frente da estação, e alto-falantes, com suas
vozes roufenhas, espalhavam uma música
alegre, interrompida por discursos e votos de
boas-vindas, Iuri consultou o relógio e saímos da
estação.
Um motorista do Exército concordou em
conduzir-nos. As ruas da cidade estavam
apinhadas de comboios militares e as calçadas
fervilhavam de gente. O centro de recepção
ocupava vários prédios antigos numa pequena
rua lateral. Centenas de crianças nos olhavam
pelas janelas.
Fizeram-nos esperar no vestíbulo por mais de
uma hora. Iuri lia um jornal, eu fingia a maior
despreocupação. Finalmente a diretora veio até
nós e nos dirigiu algumas palavras amáveis.
Examinou meus documentos, assinou alguns
papéis e entregou-os a Iuri. Em seguida, pôs a
mão no meu ombro. Agitei-me vivamente: as
dragonas do meu uniforme não tinham sido
feitas para mãos femininas.
Era chegado o momento de nos separarmos. Iuri
afetava bom humor. Fazia brincadeiras,
enterrava minha boina na cabeça e puxava o
barbante do embrulho que eu trazia debaixo do
braço — presentes de Mitka e de Gavrila.
Despedimo-nos com um abraço, como se fôsse-
mos dois homens. A diretora esperava.
Toquei a estrela vermelha presa no bolso
esquerdo da minha túnica. Ali se via o perfil de
Lênin. Eu pensava que essa estrela, que guiava
milhões de trabalhadores pelo mundo, podia
também trazer-me felicidade. Acompanhei a
diretora. Os corredores estavam cheios de uma
multidão de crianças. De passagem, percebi,
através das portas abertas, salas de aula onde
professores ministravam suas lições. Vendo-me
fardado, os garotos, que faziam bagunça, fizeram
um gesto em minha direção, enquanto soltavam
gargalhadas. Um deles me arremessou um talo
de maçã. Abaixei-me para desviar-me dele e foi a
diretora quem o recebeu nas nádegas.
Os primeiros dias no orfanato foram para mim
uma grande provação. A diretora quis logo que
eu tirasse o uniforme e passasse a usar as
roupas civis enviadas pela Cruz Vermelha
Internacional. Uma enfermeira tentou tirar-me a
túnica, mas eu ameacei desferir-lhe uma pan-
cada na cabeça, e finalmente deixaram-me em
paz. Dormia com o uniforme debaixo do colchão.
No fim de algum tempo, minhas roupas
começaram a exalar mau cheiro, mas eu me
recusava a tirá-las, até mesmo para serem lava-
das. A diretora não admitiu essa insubordinação.
Dessa feita mandou duas enfermeiras para me
despirem à força. Um bando de garotos assistia
rindo à operação. Mas consegui desvencilhar-me
das mãos daquelas mulheres desajeitadas e
escapei para a rua.
Abordei quatro soldados soviéticos que flanavam
por perto. Fi-los compreender que era mudo.
Num pedaço de papel que arranjaram, escrevi
que era filho de um oficial do Exército Vermelho,
e que esperava sua volta do front no orfanato.
Escrevi também que a diretora era filha de
fidalgotes provincianos e que me fazia punir, por
causa do meu uniforme, pelas enfermeiras que
ela explorava.
Conforme eu esperava,, minha mensagem
provocou a indignação dos jovens soldados.
Acompanharam-me até o orfanato, e enquanto
um deles quebrava sistematicamente todos os
vasos de flores sobre o tapete da diretora, os
outros perseguiam as enfermeiras, davam-lhes
piparotes e beliscavam-lhes as nádegas. As
mulheres soltavam gritos de pavor.
Desde então, deixaram-me em paz. Recusei-me
a aprender a ler e a escrever no idioma do país.
Com um giz, no quadro-negro, expliquei ao
professor que a minha língua materna era o
russo, que a Rússia abolira a exploração do
homem pelo homem e que lá, os professores não
perseguiam os alunos.
Acima da minha cama, num grande calendário,
riscava os dias com um lápis vermelho. Não
sabia quanto tempo ainda iria durar a guerra,
que prosseguia na Alemanha. Mas eu confiava no
Exército Vermelho. Este faria todo o possível
para acelerar a vitória.
Todas as manhãs, escapulia para ir comprar o
Pravda, com o dinheiro que Gavrila me havia
dado. Lia impacientemente todos os
comunicados do Exército, examinava com
interesse as últimas fotografias de Stálin. Sentia-
me reassegurado. Stálin parecia em plena forma
e sempre jovem. Tudo ia bem. A guerra logo
chegaria ao fim.
Um belo dia, fui convocado para uma visita
médica. Consenti em despir-me diante do
médico, mas conservei meu uniforme debaixo do
braço durante todo o exame. Depois passei por
uma espécie de comissão social. Um senhor
idoso estudou cuidadosamente os meus
documentos, chamou-me pelo nome e
perguntou-me amigavelmente se eu sabia
quando os meus pais tinham a intenção de
aparecer, depois de me terem deixado no
campo. Fiz uma expressão de não haver
compreendido e um intérprete traduziu a
pergunta para o russo. Acrescentou que lhe
parecia ter conhecido meu pai antes da guerra.
Escrevi tranqüilamente numa folha de caderno
que meus pais tinham sido mortos durante um
bombardeio. Os membros da comissão
contemplaram-me com um olhar de
desconfiança. Fiz-lhes uma saudação militar e
deixei o aposento. Aquele interrogatório me
deixara perturbado.
Éramos ao todo quinhentas crianças no centro de
recepção, divididas em vários grupos, e nos
davam aulas em pequenas salas abarrotadas e
imundas. Numerosos daqueles meninos e
meninas eram mutilados. Tinham um
comportamento estranho. Eu me sentava ao lado
de um menino de minha idade, que não cessava
de gemer: "Onde está meu papai? Onde está
meu papai?" Passeava o olhar em torno, como se
o pai fosse surgir de trás de uma das carteiras.
Logo atrás de nós havia uma garotinha que
perdera todos os dedos numa explosão. Olhava
fixamente para os dedos das outras crianças,
que se mexiam como vermes nas mesas. Quando
observavam seu olhar, as outras escondiam as
mãos como se tivessem medo. Um pouco mais
afastado, sentava-se um aluno desprovido de um
braço e de parte da mandíbula. Na cantina, seus
colegas tinham que ajudá-lo a comer;
desprendia-se dele um odor de ferida
apodrecida. Vários outros alunos eram parcial-
mente paralíticos.
Observavamo-nos mutuamente com um ódio
mesclado de temor. Cada um se perguntava o
que devia recear do seu vizinho. Alguns rapazes
da minha classe eram mais idosos e mais fortes
que eu. Sabiam que era mudo e me tinham na
conta de débil mental. Chamavam-me de todos
os nomes e algumas vezes me espancavam. Pela
manhã, quando chegava à aula após uma noite
insone no dormitório, sentia-me prisioneiro,
aterrorizado e presa de enorme apreensão.
Ficava retesado como o elástico de uma
atiradeira e o menor incidente fazia-me perder
todo o comedimento. Temia menos ser atacado
pelos outros alunos do que ferir gravemente um
deles ao defender-me. Haviam-nos prevenido:
isso representaria a prisão. Para mim, adeus
esperanças de encontrar-me novamente com
Gavrila.
Numa briga, fui incapaz de controlar meus
gestos. Meus punhos adquiriram vida autônoma
e não largavam o adversário. Muito tempo depois
da refrega, fui incapaz, de acalmar-me; revivia as
peripécias do combate, arrebatado por nova
excitação. Aliás, não sabia evitar uma afronta.
Quando via um grupo avançar contra mim, longe
de fugir, eu me imobilizava. Tentava persuadir a
mim mesmo que agia dessa forma a fim de
evitar ser atacado pelas costas, e que seria
melhor enfrentar a força e as intenções do
adversário. Na verdade, porém, era inteiramente
incapaz de fugir, mesmo se quisesse fazê-lo.
Minhas pernas tornavam-se estranhamente
pesadas; os tornozelos e as coxas
transmudavam-se em chumbo, enquanto os joe-
lhos continuavam flexíveis. Um misterioso
mecanismo pregava-me ao solo, diante do
adversário.
Pensava incessantemente no que me ensinara
Mitka: ninguém devia deixar-se maltratar, porque
então perderia o respeito de si mesmo e sua vida
não teria mais sentido. O que dá valor a cada um
de nós é a faculdade de tirar vingança dos que
nos injuriaram. Toda injustiça exige uma re-
paração. E cabe a cada um medir a injustiça que
sofreu, preparar a vingança segundo sua
natureza e os meios de que dispõe, em função da
dor, da amargura, da humilhação sofridas. Se nos
tratam grosseiramente, e se essa grosseria nos
fere como um chicote, convém vingar-nos como
se tivéssemos recebido uma chicotada. Se um
único golpe nos feriu como mil, devemos vingar-
nos dos mil golpes. A vingança deve ser
proporcional à dor, à amargura e à humilhação
infligidas pela atitude de nosso contendor. Uma
bofetada pode ocasionar dois tipos de reação: a
um, pode passar quase despercebida; a outro,
pode fazer reviver o suplício sofrido ao longo de
dias seguidos de passados espancamentos. No
primeiro caso, uma hora é suficiente para fazer
esquecer a afronta; o segundo pode ser
atormentado por semanas a fio de dramáticas
recordações. O contrário é igualmente válido; se
alguém nos desferir uma cajadada, mas se esta
nos atingir como um simples tapa, não devemos
vingar-nos senão com uma simples bofetada.
A vida no orfanato era repleta de brigas. Cada
um tinha o seu apelido. Havia na turma um rapaz
chamado Tanque, porque desferia murros em
quem quer que se atravessasse no seu caminho;
outro apelidado Canhão, porque lançava sobre
nós, sem razão aparente, todo objeto pesado que
lhe caísse nas mãos; havia o Sabre, que abatia o
seu adversário com a quina da mão; o Avião, que
lançava o adversário ao solo e lhe pisoteava o
rosto; o Atirador Furtivo, que lançava rajadas de
pedras; o Lança-Chamas, que punha fósforos
com enxofre nas roupas e nas pastas.
Também às meninas não faltavam apelidos. A
Granada rasgava o rosto de seus inimigos com
um prego dissimulado na palma da mão; a
Guerrilheira, uma coisinha insignificante, ficava
de cócoras no chão e fazia cair suas colegas
prendendo-lhes as pernas, ao passo que sua
aliada, a Torpedo, deitava-se sobre elas como se
pretendesse praticar o ato amoroso, e depois
lhes assentava uma terrível joelhada no sexo.
Os professores e inspetores viam-se inteiramente
sobrecarregados. Temiam os rapazes mais fortes
e evitavam intervir nas brigas. Houve incidentes
graves. O Canhão um dia atirou um sapato cheio
de pregos numa menina que se recusara a beijá-
lo; ela morreu em poucas horas. O Lança-
Chamas encheu de fósforos enxofrados três
rapazes que ele trancou na sala de aula. Dois
deles, com graves ferimentos, foram levados
para o hospital.
As lutas eram sempre sangrentas. Rapazes e
moças batiam-se até a morte, e nada podia detê-
los. À noite, aconteciam coisas piores. Os
rapazes atacavam as meninas nos corredores
escuros. Alguns deles violaram uma enfermeira
na adega. Retiveram-na lá durante horas, convi-
dando seus camaradas a participarem da festa, e
submeteram-na a todos os requintes de
perversão sexual que haviam aprendido aos
azares da guerra. Deixaram-na num estado de
frenesi demencial. Urrou a noite inteira, até que
uma ambulância foi buscá-la.
Muitas moças procuravam atrair os rapazes.
Despiam-se diante deles e se prestavam a todos
os jogos eróticos. Evocavam da forma mais
grosseira as exigências sexuais que inúmeros
homens haviam satisfeito nelas durante a guerra.
Algumas diziam não poder dormir antes de
praticar o ato amoroso. Saíam à noite para os
jardins públicos e apanhavam soldados
embriagados.
Outras moças e numerosos rapazes ficavam, ao
contrário, totalmente amorfos. Mantinham-se
sentados contra as paredes, com os olhos fixos
em imagens que somente eles viam. Dizia-se que
alguns deles vinham de guetos ou de campos de
concentração. Se as tropas soviéticas não
tivessem chegado, estariam mortos há muito
tempo. Outros haviam estado sob os cuidados de
padrastos brutais e cúpidos, que os exploravam
sem piedade e os flagelavam ao menor pretexto.
Sobre algumas crianças, postas no orfanato pelo
Exército ou pela polícia, nada se sabia, nem de
onde vinham, nem a origem de seus pais, nem
onde tinham vivido durante a guerra.
Recusavam-se a dizer fosse o que fosse; a
qualquer pergunta só respondiam por frases
evasivas ou meios sorrisos soberanamente
desdenhosos. À noite, eu tinha medo de dormir.
Sabia que os rapazes se divertiam pregando
entre si as peças mais cruéis. Dormia
inteiramente vestido, trazendo num dos bolsos
uma faca e no outro um soco-inglês.
Cada manhã, pontualmente, riscava um dia no
meu calendário. O Pravda dizia que o Exército
Vermelho penetrara no ninho das víboras
nazistas.
Pouco a pouco, prendi-me por laços de amizade
a um rapaz que era chamado de Silencioso.
Comportava-se como se fosse mudo. Desde a
sua chegada ao orfanato, ninguém jamais ouvira
o som de sua voz. Sabia-se que não era
absolutamente doente, mas que num certo
período da guerra julgara inútil continuar a falar.
Os outros tentavam por todos os meios vencer-
lhe a resistência, porém, por mais que o
cobrissem de pancadas, nem uma só palavra
saía de sua boca.
Era mais velho e mais forte do que eu. De início,
nós nos evitávamos. Eu pensava que, recusando-
me a falar-lhe, ele zombaria de mim. Aliás, se
nos vissem juntos, haveria o risco de os outros
pensarem que eu não era mais mudo.
Um belo dia, porém, sem motivo aparente, ele
veio em meu socorro e fez rolar por terra um
rapaz que me maltratara num corredor. No dia
seguinte, senti-me obrigado a apoiá-lo numa
briga surgida durante o recreio.
A partir de então, sentávamo-nos no mesmo
banco, bem no fundo da sala. De início,
trocávamos bilhetes, mas logo nos fizemos
compreender por sinais. O Silencioso
acompanhava-me em minhas fugas até a
estação, onde fazíamos amigos entre os soldados
soviéticos. Chegamos a roubar a bicicleta de um
carteiro bêbado; atravessamos o jardim
municipal ainda cheio de minas alemãs e
interditado ao público; olhávamos as garotas
pelas vigias do estabelecimento de banhos.
À noite, escapávamos do dormitório e íamos
perambular pelas ruas e jardins públicos,
assustando os casais que praticavam o ato
amoroso, jogando pedras pelas janelas abertas,
atacando os transeuntes de surpresa. O Silen-
cioso, mais alto e mais forte do que eu, era quem
tomava sempre as iniciativas.
Todas as manhãs, éramos despertados pelo apito
de um trem, que trazia para a cidade os
camponeses que se dirigiam ao mercado. À
noite, o mesmo trem os reconduzia para as
aldeias espalhadas ao longo da via férrea. Suas
luzes penetravam a folhagem das árvores qual
enxame de pirilampos.
Nos belos dias de verão, eu e o Silencioso
caminhávamos ao longo da estrada de ferro,
sobre os dormentes aquecidos pelo sol, evitando
os seixos, que nos feriam os pés nus. Às vezes,
quando os rapazes e moças do bairro se
encontravam ao longo da estrada, nós lhes
oferecíamos um espetáculo. Alguns minutos
antes da chegada do trem, eu me deixava ficar
entre os trilhos, com o rosto voltado para a terra,
os braços sobre a cabeça, achatando-me o
quanto podia no solo. O Silencioso, com gestos
teatrais, reunia o público. Quando o trem se
aproximava, sentia o ranger das rodas sobre os
trilhos e dormentes com tanta força que eu
próprio tremia. Quando a locomotiva chegava
sobre mim, achatava-me ainda mais e esforçava-
me por não pensar. Ela me envolvia no seu hálito
quente, rolava furiosamente sobre os meus rins.
Depois os vagões se sucediam acima da minha
cabeça, com o ritmo trepidante das suas
ferragens, e, esperando o fim da composição, eu
remontava o pensamento à época em que
praticávamos o mesmo jogo com os jovens
camponeses das cidades onde havia morado.
Certa feita, no momento exato em que passava
sobre o rapaz deitado entre os trilhos, o foguista
deixou cair um montão de brasas. Após a
passagem do trem, encontramos o corpo
calcinado do nosso companheiro como uma
batata aquecida num forno. Alguns afirmavam
que o foguista vira o nosso camarada e deixara
cair as brasas de propósito. Também me
recordava de que uma corrente que pendia a
pouca altura do solo atingira um dia a cabeça de
um deles, deitado na via férrea. Seu crânio
estalara como uma vagem.
Entretanto, apesar dessas lembranças sinistras,
achava prodigiosamente empolgante ficar assim
estendido entre os trilhos, enquanto o trem
passava-me por cima da cabeça. Entre a
chegada da locomotiva e a passagem do último
vagão, via desfilar uma imagem da minha vida,
mais pura que um fio de leite filtrado. Nada mais
importava, a não ser o fato exclusivo de estar
vivo. Esquecia tudo: o orfanato, o Silencioso,
Gavrila e minha condição de mudo.
Experimentava, bem no âmago dessa
experiência insensata, uma alegria nova e sem
mistura: sobreviver.
Quando o trem acabava de passar, levantava-
me, as mãos a me tremerem e os joelhos fracos.
Sentia uma satisfação maior que a que me teria
proporcionado uma vingança particularmente
violenta contra um dos meus inimigos.
Tentei preservar em mim esse sentimento para o
futuro. Num momento de angústia ou de dor,
poderia necessitar dele. Em comparação com o
terror que se apossava de mim quando o trem
passava por cima, qualquer outra sensação de
pavor parecia benigna.
Punha-me então a caminhar pelo talude, fingindo
indiferença ou tédio. O Silencioso aproximava-se
de mim com o sorriso protetor de um bom irmão.
Limpava a areia e os fragmentos de madeira que
tinham ficado presos à minha roupa. Eu
dominava o tremor das mãos, das pernas e dos
lábios. As crianças me cercavam e me
contemplavam com admiração.
Quando voltávamos ao orfanato, sentia-me
orgulhoso e sabia que o Silencioso nutria o
mesmo sentimento por mim. Nenhum outro
rapaz do centro ousaria fazer o que eu fizera;
pouco a pouco, começaram a respeitar-me. Mas
sabia que de vez em quando tinha que repetir a
façanha, sem o que não iriam mais acreditar nela
e duvidariam da minha coragem. Apertava a
estrela vermelha no peito, estendia-me na
estrada e ficava à espreita do ruído do primeiro
trem.
Eu e o Silencioso passávamos boa parte do nosso
tempo na ferrovia. Ficávamos a ver passar as
composições e, às vezes, saltávamos juntos no
degrau da escada do último vagão, esperando
que o trem reduzisse a marcha numa curva a fim
de podermos descer.
Isso nos levava a vários quilômetros da cidade.
Antes da guerra, iniciara-se a construção de um
entroncamento que nunca foi concluído. O ramal
estendia-se por várias centenas de metros até
uma das margens escarpadas do rio, de onde se
havia projetado lançar uma ponte. A agulha, que
jamais tivera serventia, fora atacada pela
ferrugem e invadida pelo mato. Por várias vezes
tínhamos tentado acionar a alavanca. Mas não
havia meio de desemperrá-la.
Um dia, no orfanato, um serralheiro coríseguiu
abrir uma porta emperrada simplesmente pondo
azeite no ferrolho. No dia seguinte, o Silencioso
roubou uma garrafa de azeite da cozinha e
naquela mesma noite derramamo-la nas rodas
dentadas da agulha. O azeite penetrou lenta-
mente nas molas e engrenagens; depois,
reunindo todas as nossas forças, empurramos a
alavanca. Ela cedeu imediatamente e, rangendo,
as agulhas exerceram pressão sobre os trilhos do
entroncamento. Assustados por esse êxito
inesperado, largamos apressadamente a
alavanca e fugimos.
Depois disso, sempre que passávamos pela
alavanca, o Silencioso e eu trocávamos olhares
entendidos. Aquele era o nosso segredo. Muitas
vezes, sentado à sombra de uma árvore, ficava a
contemplar um trem que surgia na estrada.
Sentia-me dono de um poder imenso; a vida de
todos aqueles passageiros estava nas minhas
mãos. Bastava-me abaixar a alavanca e todo o
trem mergulharia por cima da margem, nas
águas tranqüilas do rio. Apenas baixar uma
alavanca...
Recordava-me de composições que levavam os
deportados para as câmaras de gás e os fornos
crematórios. Os que organizavam essas
execuções deveriam ter experimentado uma
alegria, um poder semelhante sobre as suas
vítimas inermes. Eram senhores do destino de
milhões de pessoas, das quais não conheciam
nem os nomes nem os rostos, e estava em suas
mãos permitir que continuassem vivendo ou se
transformassem em fuligem transportada pelo
vento. Não tinham senão que dar uma ordem, e
por toda parte, nas cidades e nas aldeias, grupos
especiais de soldados e de policiais
arrebanhavam pessoas para enviá-las aos guetos
e aos campos de concentração. Somente eles
tinham o poder de acionar as alavancas que
seriam levantadas ou baixadas, no sentido da
vida ou da morte.
Poder decidir o destino de criaturas que não
conhecemos seria provavelmente uma sensação
empolgante. Minha dúvida era saber se o prazer
experimentado dependia apenas da consciência
desse poder, ou propriamente do seu uso.
Semanas depois, fui com o Silencioso a um dos
mercados de arrabalde, onde os camponeses das
aldeias vizinhas iam vender os produtos das suas
herdades. Sempre dávamos um jeito de
conseguir algumas maçãs, algumas cenouras ou
mesmo um copo de creme fresco em troca dos
sorrisos que prodigalizávamos às ricas esposas
dos hortelãos.
O mercado fervilhava de gente: os lavradores
apregoavam seus produtos, as mulheres
experimentavam saias e blusas de cores
berrantes, de permeio com os mugidos de
novilhas espantadas e os grunhidos dos porcos.
Eu tinha os olhos fixos na reluzente motocicleta
de um policial, e por isso tropecei na barraca de
um lavrador: os recipientes de creme, de leite e
de soro espalharam-se pelo chão. Antes que
pudesse esquivar-me, o camponês, rubro de
furor, desferiu-me um murro bem em cheio no
rosto. Caí para trás e cuspi três dentes
quebrados, juntamente com sangue. O homem
agarrou-me em seguida pela pele do pescoço,
como se fora um coelho, e pôs-se a espancar-me,
a tal ponto que sua camisa ficou salpicada pelo
meu sangue. Depois, afastando a multidão de
curiosos que se formara, enfiou-me de cabeça
num barril de chucrute vazio e jogou-me por
cima de um montão de detritos e de imundícies.
Por alguns momentos perdi a consciência do que
me estava acontecendo. Ouvia o riso dos
camponeses; sentia a cabeça que girava como
um pião, dentro da barrica; o sangue invadia-me
a boca e me sufocava.
De súbito vi, sobre mim, o rosto do Silencioso.
Pálido e a tremer, ele tentava tirar-me do barril.
Os camponeses riam dos seus vãos esforços e
me chamavam de cigano. Temendo um novo
ataque, rolei o barril um pouco mais para longe,
até perto de um chafariz. Os garotos da região
corriam todos ao derredor. O Silencioso os pôs
em fuga com um cajado.
Todo sujo de sangue e de detritos, as mãos
arranhadas de espinhos, logrei rastejar para fora
do barril. Cambaleante, segui para o orfanato
apoiado aos ombros do Silencioso.
O médico fez-me um curativo na boca e tratou-
me os ferimentos. O Silencioso esperava no
corredor; quando saí, examinou-me longamente
o rosto intumescido.
Duas semanas depois, numa certa manhã, meu
amigo veio despertar-me antes do raiar do dia.
Estava coberto de poeira; a camisa, encharcada
de suor, estava colada à pele. Devia ter passado
toda a noite fora. Fez sinal para que o
acompanhasse; vesti-me apressadamente e
reencontrei-me com ele na rua, sem que
ninguém houvesse notado.
Levou-me até um quartel abandonado, não longe
da nossa agulha, e me fez subir até o telhado.
Acendeu uma ponta de cigarro encontrada pelo
caminho e começou a fumar tranqüilamente. Não
sabia o que estava para acontecer, e fiquei à
espera.
O sol começava a surgir. Sobre o teto alcatroado
do prédio, o orvalho evaporava-se pouco a
pouco, e vermes castanhos saíam de seus
buracos, sob a goteira.
Ao longe, ouvimos um silvo. O Silencioso
aprumouse e me designou com a mão o trem
que surgia da bruma e avançava lentamente em
nossa direção. Era dia de feira, e os vagões
estavam pejados de camponeses vindos de todas
as aldeias circunvizinhas. Cachos de passageiros
penduravam-se pelos degraus.
O Silencioso aproximou-se de mim. Transpirava,
tinha as mãos úmidas; passava a língua pelos
lábios e atirava mechas de cabelo para trás.
Pareceu-me de súbito que envelhecera vários
anos.
O trem aproximou-se do entroncamento. Os
camponeses comprimiam-se contra as janelas, os
cabelos louros flutuando ao vento. O Silencioso
apertou-me o braço com tanta força que dei um
salto para trás. No mesmo instante, a locomotiva
virou bruscamente, como torcida por uma força
invisível.
Somente os dois vagões da frente obedeceram à
máquina e seguiram-na pelo entroncamento. Os
outros deram violentos solavancos e, como
cavalos fogosos, altearam-se uns sobre os
outros, e desabaram como uma só massa no
talude, com um estrondo medonho, entremeado
de rangidos agudos, de urros e gritos
penetrantes.
Eu tremia como um fio de telefone sacudido pelo
vento. O Silencioso deixou-se cair de joelhos,
sacudido por um espasmo, os olhos fixos na
poeira que pairava sobre os vagões tombados.
Depois ergueu-se e se precipitou para a estrada,
arrastando-me na sua fuga. Escondemo-nos,
evitando as pessoas que acorriam para o local do
sinistro. Já as sirenas das ambulâncias se faziam
ouvir de todos os lados.
No orfanato, todos ainda dormiam. Antes de
alcançar o dormitório, contemplei longamente o
meu camarada. Seu rosto não traía a menor
angústia. Sorriu para mim. Não fossem as
ataduras que me cobriam o rosto e a boca, teria
sorrido também para ele.
Na aula, nos dias seguintes, não se falava em
outra coisa senão no acidente da estrada de
ferro. Os jornais, com tarjas negras, traziam a
relação das vítimas; a polícia farejava uma
sabotagem política e interrogava suspeitos. Na
estrada, guindastes erguiam os vagões
tombados, deformados e engavetados uns nos
outros.
O Silencioso levou-me mais uma vez à feira.
Andamos sem destino através da multidão.
Muitos dos locais estavam vazios, e avisos
fúnebres, afixados em tabuletas de madeira,
anunciavam mortes por acidente. . . O Silencioso
lia-os conscienciosamente e não me ocultava a
sua satisfação.
Chegamos diante da barraca do nosso inimigo.
Atrás dos potes de leite e de creme, de blocos de
manteiga embrulhados, à semelhança de uma
marionete de feira agitava-se a cabeça do
homem que me quebrara os dentes a murro e
me enfiara de cabeça num barril de chucrute.
Lancei um olhar inquieto na direção do meu
camarada. Ele contemplava o lavrador com uma
espécie de estupor. Depois, tomou-me pela mão
e levou-me rapidamente para fora do mercado.
Ao alcançar a estrada, deixou-se cair no capim
do talude e pôs-se a chorar e a gemer, como se
atingido por terrível dor, abafando seus
queixumes contra a terra. Foi a primeira vez que
ouvi o som de sua voz.

XIX
Uma certa manhã, em plena aula, chamaram-me
à sala da diretora. Meu primeiro pensamento foi
que Gavrila voltara. Mas não ousava esperar
tanto.
A diretora me aguardava, juntamente com o
intérprete da comissão social que julgava ter
conhecido meus pais antes da guerra.
Receberam-me cordialmente e me fizeram
sentar. Tentavam visivelmente ocultar seu
nervosismo. Eu lançava olhares inquietos ao meu
derredor.
O intérprete dirigiu-se à sala contígua, e ouvi
quando trocou algumas palavras com os
visitantes. Quando retornou, pela grande porta
aberta vi chegar um casal.
Seus rostos me pareceram curiosamente
familiares, e, sob a estrela vermelha do
uniforme, sentia palpitar o meu coração. Afetei
perfeita indiferença, e examinei-lhes os traços
fisionômicos com atenção. Não era possível
haver engano. Eu me parecia com eles — como
um filho se parece com os pais. Agarrei-me aos
rebordos da cadeira, enquanto meus
pensamentos tumultuavam no cérebro. Meus
pais... Não sabia qual o partido a tomar: iria
reconhecê-los? Ou fingiria ignorá-los?
Aproximaram-se. A mulher inclinou-se diante de
mim, e de súbito as lágrimas inundaram-lhe o
rosto. O homem ajustou nervosamente os óculos
e pegou a mão da esposa. Também ele soluçava.
Mas dominou a emoção e começou a falar-me
mansamente, em russo. Sua fala era tão clara e
pura como a de Gavrila. Pediu-me que abrisse a
túnica: devia ter sobre o peito, do lado esquerdo,
um sinal de nascença.
Eu sabia muito bem que tinha essa marca.
Hesitei um instante: se a mostrasse, tudo estaria
perdido; ele não teria mais dúvida sobre a minha
identidade. Mas tive pena dos soluços da mulher.
Lentamente, desabotoei o uniforme.
Não podia sair daquela situação. Gavrila
explicara-me por mais de uma vez que os pais
têm direitos sobre os filhos. Eu não era maior,
pois contava apenas doze anos. Mesmo que não
o desejassem, o dever deles era levar-me.
Observei-os novamente. A mulher sorria-me
através das lágrimas que lhe rolavam pelo rosto
empoado. O homem cruzava e descruzava as
mãos. Não pareciam pessoas que iriam bater-me.
Ao contrário, tinham uma aparência frágil e
tímida.
Quando abri a túnica, e revelei meu sinal de
nascença, meus pais tomaram-me em seus
braços e me cobriram de beijos. Eu ainda me
interrogava. Evidentemente, poderia fugir, saltar
num daqueles trens apinhados de passageiros e
desaparecer sem deixar vestígios. Mas eu queria
que Gavrila me encontrasse novamente, e
aquela não era, portanto a melhor solução. Por
conseguinte, se eu acompanhasse os meus pais,
isso seria o fim dos meus sonhos: jamais me
tornaria um grande inventor de explosivos
maravilhosos, capaz de trocar a cor da pele das
pessoas, jamais iria trabalhar no país de Mitka e
de Gavrila, TIO país do grande Stálin, onde o
futuro já começara.
O mundo se encolhia de súbito às dimensões de
um celeiro de camponês. A cada instante, o
homem arrisca-se a cair nas armadilhas lançadas
pelos seus inimigos ou nos braços daqueles que
o amam e desejam protegê-lo. Dificilmente
aceitava a idéia de tornar-me um filho, de me ver
cercado de cuidados e mimado, de dever
obediência aos pais, não porque fossem mais
fortes que eu e pudessem punir-me, mas
simplesmente porque eram meus pais e tinham
direitos sobre mim.
Evidentemente, quando uma criança é pequena,
os pais têm a sua utilidade. Mas uma pessoa da
minha idade devia viver livre de qualquer
entrave. Devia poder escolher a sua família, os
seus amigos e os seus professores. Assim
mesmo, não conseguia decidir-me a fugir.
Contemplava o rosto banhado em lágrimas
daquela mulher que era minha mãe, as mãos
trêmulas daquele homem que era meu pai,
hesitante entre afagar-me a cabeça ou o ombro,
e uma força telúrica prendia-me àquele lugar.
Sentia-me semelhante ao pássaro pintado de
Lekh, que um instinto indomável lança em
direção àqueles da sua raça.
Meu pai saiu para cumprir as formalidades e eu
fiquei sozinho na sala com minha mãe.
Assegurou-me que eu seria feliz junto dela e que
me deixaria toda a liberdade. Mandaria fazer um
novo uniforme para mim, em todos os pontos
semelhante ao que eu usava.
Ao ouvi-la falar, pensava na coelha que Makar
um dia apanhara pelo pescoço. Era um grande e
belo animal. Sentia-se nela uma necessidade de
liberdade, um profundo desejo de dar
cambalhotas, de saltar, de correr pelo campo.
Encerrada em sua jaula, enfurecia-se, arranhava
a terra com as patas, batia com a cabeça contra
as grades. No fim de algum tempo, Makar,
furioso, lançou-lhe por cima uma pesada lona. O
animal debateu-se a princípio como um demônio,
mas acabou por render-se. Pouco a pouco foi
ficando manso, até chegar a comer na minha
mão. Uma noite em que estava embriagado,
Makar esqueceu-se de fechar a porta da
coelheira. A coelha de um salto saiu de sua
prisão e partiu na direção da pradaria. Pensei
que iria mergulhar no capinzal e desaparecer
para sempre. Mas parecia saborear a liberdade e
ficou sentada, de orelhas eretas. Dos campos e
bosques vizinhos vinham ruídos que somente ela
podia ouvir, eflúvios e perfumes que somente ela
podia compreender.
Depois, de súbito, mudou de atitude. As orelhas
murcharam, encolheu-se. Deu um salto, os
bigodes fremiram, mas não fugiu. Eu dava
assovios bem alto, na esperança de despertá-la
para o sentimento de sua liberdade. Mas
contentou-se em dar uma volta, e depois, como
se subitamente tivesse envelhecido e diminuído,
voltou-se, rastejante, em direção da jaula. Só tive
o trabalho de fechar a porta. Na verdade, ela
trazia a jaula dentro de si mesma; ela lhe
entravava o coração e o espírito, paralisava-lhe
os músculos. A liberdade, que a distinguia
outrora dos coelhos amorfos e resignados,
desertara dela, como o perfume se evola no
outono do trevo ressequido.
Meu pai retornou. Tomou-me entre os braços,
contemplou-me longamente, e disse algumas
palavras de ternura a minha mãe. Era chegado o
momento de deixar o orfanato. Fui despedir-me
do Silencioso. Este lançou um olhar de
desconfiança aos meus pais, sacudiu a cabeça e
recusou-se a cumprimentá-los.
Depois de termos saído, meu pai ajudou-me a
carregar os livros. A cidade ainda estava
mergulhada no mais completo caos. Criaturas
andrajosas, desvairadas, arrastando fardos,
voltavam para as suas casas, e discutiam com as
famílias que haviam ocupado suas moradas du-
rante a guerra. Eu caminhava entre os meus
pais, sentia-lhes a pressão das mãos nos ombros
e na cabeça, já acabrunhado pelo seu amor e
proteção.
Levaram-me para a casa deles. À custa de mil
dificuldades, quando haviam sabido que um
menino que correspondia à descrição do seu filho
se encontrava no centro de recepção,
conseguiram alugar um apartamento na cidade.
Aguardava-me uma surpresa: tinham outro filho,
uma criança de quatro anos. Explicaram-me que
era um órfão, cujos pais e irmã mais velha
tinham morrido num bombardeio. Sua velha
ama-de-leite salvara-o e o confiara a meus pais,
quando do terceiro ano da guerra. Haviam-no
adotado, e estava patente que o amavam muito.
Isso não fez mais do que fortalecer as minhas
dúvidas. Não tinha interesse em viver só, à
espera de Gavrila, que talvez me adotasse? Teria
preferido retomar minha vida errante, de aldeia
em aldeia, de uma cidade a outra, sem jamais
saber o que me reservava o futuro. Aqui, tudo
estava previsto antecipadamente.
O apartamento compreendia apenas uma sala e
a cozinha. O banheiro ficava no patamar da
escada. Vivíamos amontoados. Meu pai tinha o
coração fraco. À menor emoção empalidecia, o
rosto cobria-se de suor, tinha que tomar
comprimidos. Minha mãe saía de madrugada,
para postar-se em filas intermináveis diante dos
armazéns. Quando voltava, ficava atarefada na
cozinha e cuidando da casa.
O menino era exasperante. Pedia-me sem cessar
que brincasse com ele, perturbava-me quando
eu lia, nos jornais, as proezas do Exército
Vermelho. Agarrava-se às minhas roupas,
remexia-me os livros. Um dia, esgotada a
paciência, agarrei-lhe um dos braços e torci-o
com toda a minha força, Ouvi um estalido; o
garoto pôs-se a urrar. Meu pai chamou um
médico, que constatou uma fratura. Puseram-lhe
o braço num aparelho de gesso. No seu leito, a
criança gemia e me olhava com pavor. Meus pais
me observavam em silêncio.
Muitas vezes escapava para ir ter com o
Silencioso. Um dia, não apareceu. Soube depois
que fora transferido para outro centro.
Chegou a primavera. Num dia chuvoso do mês
de maio, anunciaram que a guerra tinha
acabado. As pessoas dançavam nas ruas,
abraçavam-se e se felicitavam. Durante a noite
as ambulâncias recolheram em toda a cidade os
numerosos feridos, vítimas de brigas de bêbados.
Nos dias seguintes eu ia com freqüência ao
orfanato, esperando encontrar uma carta de
Mitka ou de Gavrila. Mas não vinha nada.
Lia cuidadosamente as notícias, e esforçava-me
por compreender o que acontecia no mundo.
Nem todos os soldados voltavam aos seus lares.
Era preciso ocupar a Alemanha, e poderiam
decorrer anos antes do retorno dos meus dois
amigos.
A vida na cidade tornava-se cada vez mais difícil.
Multidões chegavam dos quatro cantos do país;
esperavam, ao emigrarem para os grandes
centros industriais, melhorar suas condições de
existência e recuperar o que haviam perdido.
Incapazes de encontrar trabalho ou abrigo, ho-
mens desarvorados perambulavam pelas ruas,
disputando os lugares nos bondes e nas tascas.
Estavam nervosos, agressivos e prontos para a
luta. Dizia-se que cada um se julgava escolhido
pelo destino, pelo único fato de ter sobrevivido à
guerra, e imaginava que todas as atenções lhe
eram devidas.
Um domingo, meus pais me deram algum
dinheiro para ir ao cinema. Exibiam um filme
soviético, a história de um homem e de uma
moça que haviam combinado encontrar-se às
seis horas, no primeiro dia da paz.
Havia uma longa fila parada diante da bilheteria,
e ali me deixei ficar pacientemente durante
horas. Quando chegou enfim a minha vez,
descobri que não tinha bastante dinheiro para
pagar a entrada. Quando compreendeu que eu
era mudo, a caixa pôs meu ingresso de lado para
evitar que eu entrasse na fila uma segunda vez.
Corri até casa para apanhar mais dinheiro;
menos de meia hora depois, estava de volta
diante do cinema, e tentei entrar. Mas um
empregado mandou-me de volta para o fim da
fila. Não trazia comigo a minha lousa; tentei
explicar-lhe por sinais que já entrara na fila e que
a caixa guardara um ingresso para mim. Ele nem
sequer procurou compreender-me. Para alegria
de todos os espectadores, agarrou-me pela
orelha e lançou-me brutalmente para fora.
Escorreguei e caí na calçada. O sangue jorrou-me
do nariz e correu pelo meu uniforme. Voltei para
casa, apliquei uma compressa fria e ruminei a
minha vingança.
Naquela mesma noite, enquanto meus pais se
preparavam para dormir, vesti-me novamente.
Inquietos, perguntaram-me para onde ia. Com
alguns gestos, respondi-lhes que tinha vontade
de passear. Tentaram convencer-me de que era
perigoso sair à noite — mas em vão.
Dirigi-me diretamente ao cinema. Não havia mais
muita gente, e o empregado que me havia
jogado para fora caminhava tranqüilamente de
um lado para outro da entrada. Apanhei na rua
dois grossos tijolos e galguei a escada de um
imóvel contíguo ao cinema. Do patamar do
terceiro andar joguei para baixo uma garrafa
vazia. Como eu esperava, o ruído despertou a
atenção do empregado, que se precipitou para
ver o que se passava; e, enquanto se abaixava
para examinar a garrafa quebrada, atirei-lhe os
dois tijolos na cabeça. Depois corri escada abaixo
e fugi.
Após esse incidente, só saía à noite. Meus pais
protestavam, mas eu não lhes dava ouvidos.
Dormia o dia inteiro e, quando a noite descia,
preparava-me para as minhas expedições
noturnas.
À noite todos os gatos são pardos, diz o
provérbio. O mesmo não ocorre com os homens;
ao contrário, é durante o dia que eles se
assemelham, quando se ocupam de obrigações
uniformes. À noite, tornam-se irreconhecíveis.
Vêem-se suas silhuetas a errar pelas ruas, surgir
das sombras, saltar como insetos de um
revérbero para outro, parando de quando em
quando para beber do gargalo de uma garrafa.
Nas portas dos carros, as mulheres os esperam,
a blusa aberta, a saia colante. Aproximam-se
delas em passo vacilante, e desaparecem juntos.
Da rala vegetação do jardim público elevam-se
os gemidos dos casais que se estreitam. Nas
ruínas das casas abandonadas, os rapazes
violentam moças que cometeram a loucura de
aventurar-se a sair. Por vezes ouve-se o lamento
de uma ambulância, que se afasta num ranger
de pneus; um incêndio ruge num bar e as
vidraças voam aos pedaços.
Logo me familiarizei com essa vida noturna.
Conheci as ruelas recônditas onde meninas mais
jovens do que eu se ofereciam a homens mais
idosos que meu pai. Descobrira os locais onde
rapazes elegantes, de relógio de pulso de ouro,
revendiam toda espécie de objetos, cuja simples
posse poderia custar-lhes anos de prisão; uma
casa de aparência banal, onde conspiradores
imprimiam milhares de cartazes que afixavam
nos edifícios públicos e que milicianos e soldados
rasgavam furiosamente. Assisti a uma caçada a
um homem organizada pela polícia, e vi também
alguns homens assassinarem um soldado.
Durante o dia, o mundo vivia em paz; à noite, a
guerra retomava os seus direitos.
Todas as noites ia passear pelo jardim que orlava
o zoológico, nas proximidades da cidade.
Homens e mulheres ali se encontravam para
traficar, beber e jogar cartas. Alguns me davam
chocolate, artigo ainda muito raro, ou me
ensinavam a lançar a faca, a desarmar um
adversário. Em troca, pediam-me que entregasse
encomendas em vários endereços, evitando os
milicianos e os policiais. Quando retornava
dessas missões, mulheres de corpo perfumado
roçavam-se em mim, convidando-me a deitar-me
ao lado delas e a fazer-lhes carícias, como Ewka
me ensinara. Sentia-me à vontade entre aquela
gente, cujos rostos eram dissimulados pela
escuridão. Eu não os importunava. Pelo contrário,
não poderiam encontrar melhor mensageiro do
que um mudo para as suas discretas missões.
Mas certa noite, de súbito, surgiram por trás das
árvores os clarões de lanternas elétricas, ao
mesmo tempo que ressoavam estridentes apitos.
O parque estava cercado pela milícia, e fomos
todos presos. A caminho, torci o dedo de um
oficial de polícia, que me empurrou brutalmente,
sem levar em conta a estrela vermelha que eu
trazia ao peito.
Na manhã seguinte, meus pais foram buscar-me.
Após aquela breve estada no posto policial, eu
estava hirsuto e esmolambado. Deixei com pesar
meus novos amigos, pastores familiares da noite.
Meu pai e minha mãe, sem me dirigirem
reprimendas, contemplavam-me com estupor.

XX
Eu estava muito magro e não crescia. O médico
aconselhou um lugar alto e exercícios. Os meus
professores também eram de opinião que a
cidade não servia para mim. No outono, meu pai
achou um novo emprego e partimos para as
colinas do oeste. Desde as primeiras nevadas,
mandaram-me para a montanha. Um velho
professor de esqui aceitou abrigar-me em sua
casa. Meus pais vinham ver-me uma vez por
semana.
Nós nos levantávamos muito cedo. Sob o meu
olhar indulgente, o velho ajoelhava-se para rezar.
Na sua idade, e embora educado na cidade,
comportava-se como um simples campônio: não
podia aceitar a idéia de que era só no mundo e
que não devia aceitar a ajuda de ninguém. Ora,
cada um de nós está sozinho, e mais vale saber
logo que os Gavrilas, os Mitkas e os Silenciosos
não fazem senão passar por nossa vida. Pouco
importa que se seja mudo — porque, de qualquer
maneira, os homens não se compreendem. Eles
se ferem ou se agradam, se abraçam ou se
espezinham, mas cada um não pensa senão em
si próprio. Nossas lembranças, nossas
recordações e nossos sentidos nos isolam dos
outros com tanta certeza como a cortina dos
caniços separa o rio da sua margem. Seme-
lhantes aos cimos nevados das montanhas,
muito altos para passarmos despercebidos,
baixos demais para alcançarmos o céu, nós nos
contemplamos uns aos outros além de vales
intransponíveis.
Passava os dias a esquiar pelas pistas. As colinas
estavam desertas. A guerra destruíra todos os
hotéis, exilara todos os habitantes dos vales.
Novos lavradores mal começavam a se instalar.
O instrutor era um homem taciturno e paciente.
Eu me esforçava por seguir-lhe os conselhos e
seus raros estímulos enchiam-me de
contentamento.
Um belo dia, no decorrer de uma das nossas
longas caminhadas, desencadeou-se de súbito a
tormenta, afogando os picos e as encostas das
montanhas sob turbilhões de neve. Perdi de vista
o meu guia e comecei a descer sozinho ao longo
da pista abrupta, para alcançar o mais depressa
possível o refúgio. Meus esquis derrapavam na
neve endurecida; a velocidade deixava-me sem
fôlego. Quando percebi a ravina, era tarde
demais.

O sol de abril aquecia o quarto da clínica. Sacudi


a cabeça, assombrado por não sentir nenhuma
dor. Ergui-me no leito quando o telefone tocou. A
enfermeira havia saído, e a campainha chamava
insistentemente.
Levantei-me com grande esforço e dirigi-me a
vacilar na direção da mesa. Apanhei o fone e
ouvi uma voz masculina, que se impacientava.
No outro lado do fio, havia alguém, talvez um
amigo, que procurava encontrar-me...
Experimentei um desejo irresistível de falar. O
sangue afluía-me ao cérebro; julguei que os
olhos iam saltar-me das órbitas e rolar no soalho.
Abri a boca e aspirei o ar com todas as minhas
forças. Sons ininteligíveis subiam-me pela
garganta. À custa de uma concentração
dolorosa, consegui reuni-los em sílabas, depois
em palavras. Ouvia-as distintamente surgir de
mim, uma após outra, como os grãos de ervilha
de uma vagem esmagada. Recoloquei o fone no
lugar, mal acreditando naquele milagre. Comecei
a emitir palavras e frases e os versos das
canções de Mitka. Minha voz, perdida numa
longínqua igreja campestre, finalmente voltava.
Ela enchia todo o aposento. Falava muito alto,
muito depressa, sem parar, primeiro o dialeto
dos camponeses, depois a gíria dos arrabaldes,
cativado por aqueles sons pesados de sentido,
como a neve se acha pesada de água.
Assegurava-me mais, mais e sempre mais, de
que aquela voz era mesmo a minha, e que não
tinha a intenção de escapar mais uma vez pela
porta aberta sobre a sacada.
O AUTOR E SUA OBRA

Jerzy Kosinski foi professor de literatura e


crítica na Yale University School of Drama,
no período de 1973-1974, e professor
residente no Davenport College, de Yale,
desde 1970. Anteriormente, havia ensinado
literatura inglesa nas universidades de
Princeton e Wesleyan.
Kosinski nasceu na Polônia em 1933. Chegou
aos Estados Unidos em 1957, completou
nesse país seus cursos de graduação e pós-
graduação, obtendo o título de Master-of-
Arts em história e ciência política.
Kosinski escreve apenas em inglês, e, além
de "O pássaro pintado", publicou "Passos"
("Steps"), "O vidiota" ("Being there") e "The
devil tree". Sua obra não-ficcional inclui
crítica literária e dois volumes de psicologia
social, escritos sob o pseudônimo de Joseph
Novak. Seus livros foram traduzidos para
quase todos os principais idiomas.
Foi bolsista das fundações Ford e
Guggenheim, recebeu o National Book
Award, dos Estados Unidos, por "Passos", e o
premio de Melhor Livro Estrangeiro, da
França, por "O pássaro pintado". Ê também
detentor do prêmio de literatura do National
Institute of Arts and Letters, e em maio de
1973 foi eleito presidente da seção nacional
do Pen Club, que reúne cerca de mil e
quinhentos destacados poetas, dramaturgos,
ensaístas, editores e romancistas
americanos.

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