Vous êtes sur la page 1sur 103

Caio Porfírio Carneiro

Trapiá

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira
totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles
que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até
mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer
circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua
este livro livremente.

Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim
você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.

*Capa meramente ilustrativa


Caio Porfírio Carneiro
Trapiá
EDIÇÕES
UFC
Fortaleza 2008
Trapiá
2008 Copyright by Caio Porfírio Carneiro Impresso no Brasil / Printed in Brazil
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Editora Universidade Federal do Ceará — UFC
Av. da Universidade, 2995 — Benfica — fortaleza — Ceará
CEP: 60020-181 — Tel./fax: (085) 3366.7327/3366.7499
Internet: www.editora.ufc.br— E-mail: editora@ufc.br
Coordenação Editorial
Ronaldo Pereira de Souza
Revisão
Maria Vilaní Mano e Silva Leonora Vale de Albuquerque
Normalização
Perpétua Socorro Tavares Guimarães
Digitalização
Gustavo Gondim Guimarães
Diagramação
Luiz Carlos Azevedo
Capa
Heron Cruz
Catalogação na Fonte Bibliotecária Perpétua Socorro Tavares Guimarães CRB 3
801/98
C289t Carneiro, Caio Porfírio
Trapiá./Caio Porfírio Carneiro. 5ª. ed. — Fortaleza: Edições
UFC, 2008.
122 p.
(Coleção Literatura no Vestibular, 15)
ISBN: 978-85-7282-276-3
1. Literatura brasileira — Contos I. Título
CDD: 800
Editora filiada à
Associação Brasileira das Editoras Universitárias
COMO NASCEU TRAPIÁ

Naqueles tempos, era só uma oiticica, dominando o descampado. E bem


de junto à grota, um velho trapiazeiro. Por ali se cruzavam os caminhos que
iam da vila do Coité ao Serrote do Machado e da Fazenda Taimbé no rumo dos
cafundós do sertão. Os cambiteiros arriavam suas cargas debaixo da oiticica e
ficavam horas e horas gozando a fresca, pernas espichadas, no bem-bom,
descansando das caminhadas.
Um dia, apareceram uns retirantes, dizem que vindos de Pernambuco, e
armaram uma venda ao pé do trapiazeiro. Não demorou muito, chegaram
outras famílias, tangidas pela grande seca do setenta e sete. Construíram-se
casebres, alguns espalhados no descampado. Aquilo tudo era terra muita,
vastidão de caatinga sem serventia.
Contam os mais antigos que cangaceiro Nestor Amarício amanheceu um
belo dia dependurado no galho da oiticica, fora enforcado com a correia de
cangalha de algum arrieiro.
Os feitos de Nestor Amarício corriam mundo. Nem depois de falecido
deu sossego aos vivos. Mas noites de temporal seus gemidos vinham do pé da
oiticica, ganhavam as lonjuras.
Então derrubaram a árvore. O espírito de Nestor Amarício se aquietou.
Ficou só o trapiazeiro dominando a paisagem, ali de junto à grota, no oitão da
venda dos pernambucanos.
E, nas épocas de safra, o chão amanhecia coalhado de trapiás maduros.
Até quando durou a vida do trapiazeiro ninguém dá notícia ao certo. A
tradição guardou muitas datas. Negra velha Aparecida conta uma história
desconforme: a árvore se encantara. Para o violeiro Zé de Melo, dos Meios do
pé da serra, ela fora derrubada a mando do vigário do Coité, para levantar uma
capela. A velha capela de São Sebastião, mais tarde transformada em igreja,
com seu cruzeiro, onde os filhos dos coronéis, nas festas do padroeiro,
amarravam seus cavalos para banhá-los com cerveja.
Assim veio ao mundo a vila do Trapiá. Irmã de Taimbé, irmã de
Pitombeira. Viu secas e viu farturas. Perdeu até muito sangue na briga que
durou uns pares de anos dos Castros com os senhores das "Contendas".
E o grito dos comboieiros dentro da noite, tangendo as tropas,
acompanha toda a sua história.
MILHO EMPENDOADO

Para Hélio Pólvora

A mão balançava, o indicador apontando:


— Trinta e seis... trinta e sete... trinta e oito... Eu não disse, Camilo? Hoje
foi a Pedrés...
O velho dançou a vista desinteressada do terreiro para a mulher, da
mulher para o terreiro.
— Besteira. Deve andar no mato.
— No mato? Pois sim. É ladrão, Camilo. — Tolice. Chama ela.
— Estou morta de chamar. Outro dia foi o Capão, na semana passada a
Pintada. Tem ladrão nas galinhas, Camilo.
O velho agora olhava o horizonte esperando chuva e cofiando o bigode.
— Besteira. Estão no mato.
— Depois diga que eu não avisei...
O velho saiu com as mãos cruzadas atrás, problemas mais importantes
na cabeça.
— Romualdo! Ô Romualdo Já cortou o capim?!
A velha Rita ficou no seu vexame, atravessando o terreiro em todos os
sentidos, procurando as aves extraviadas:
— Tê... tê... tê... Foi ladrão. Não tem quem me tire da cabeça.
Aproximou-se de manso, como quem não queria nada, o seixo na mão.
Parou. Olhou em torno, assoviando sem sentido, e num movimento rápido
desferiu a pedrada. A ave ainda quis gritar, mas caiu de cabeça esfolada,
batendo asas, esticando as canelas:
Ficou um instante parado, despistando. Depois foi tomando chegada, se
aproximando de frente e de costas, procurando empinar o corpo, dando jeito
de inocente. Acocorou-se segurando o cós das calças como quem vai fazer uma
precisão e, num gesto nervoso e instantâneo, escondeu a ave debaixo do
paletó. Prendeu-a bem na altura da cintura para o sangue não escorrer e de
cabeça enterrada, olhos no chão como quem procura vereda, sumiu-se no
mata-pasto.
Jogou a penosa em cima do fogão de barro, penas miúdas voaram como
flocos de algodão.
— Pode fazer a canja. Taí a galinha.
O olhar assombrado da velha prendeu-se no rosto do genro.
— Coronel Camilo descobre, Chico.
Não deu resposta. Escorou-se na ombreira da porta, a mão desceu
catando um cigarro, a vista se perdeu na caatinga. A sogra olhava a ave de
pescoço escangotado, o sangue gotejando no barro. Do quarto, choro fraco de
criança.
— Como vai a Maria?
A sogra, os olhos pregados no sangue que pingava, não respondeu.
A mão agora subia e descia levando o cigarro à boca que soltava longas
baforadas. Os olhos na caatinga ondulante, sem fim.
O gesto brusco de Chico despertou a velha:
— Vai ou não vai preparar a canja?
A sogra olhou-o com ar de angústia e resolveu se mexer, levando a
galinha pela perna. Chico fazia sermão, dava suas razões, abria os braços:
— Ela não tem que tomar a canja? Pois! O que eu vou fazer? O dedo
apontava na direção da casa-grande:
— Ele está lá no bem-bom e a velha Rita nem conhece a capoeira toda...
Não estou roubando. É precisão, você sabe...
A sogra, de cabeça baixa, no serviço, as mãos afogando a ave no balde de
água quente. A voz veio tímida, na contestação indecisa:
— Mas Chico, e se ele descobre?...
— Descobre lá nada! A Maria é que não pode ficar sem a canja... Saiu
para o terreiro e deixou a velha só na sua ocupação.
Sentou-se no toco de carnaúba e ficou esgravatando as rachaduras dos
pés com as unhas. O pensamento por longe. Indo da mulher, estirada no
quarto, de cria, para o roçado distante, secando, com o milho empendoado.
Levantou a vista para o nascente e ficou sem ver nada, sem pensar nada.
— Tê... tê... tê...
Os olhos da velha Rita iam de canto a canto do terreiro na busca
infrutífera.
— Joana! Ô Joana! Você viu o Indiano, Joana?
A negra botou a cabeça na janela da cozinha para a resposta:
— Vi não, dona Rita.
A velha continuou procurando e reclamando:
— O Indiano desapareceu, Joana. Estão acabando com a capoeira. Todo
dia na hora do milho ele aparecia logo. Hoje não veio. É ladrão. Tê... tê... tê...
Joana! .
— Senhora!
— Chama o Camilo.
O velho desceu o batente do terreiro no passo mole, o polegar e o
indicador presos às narinas, sufocando a pitada de rapé.
— Outra vez, Rita?
— O Indiano não veio hoje, Camilo. Sumiu. Tê... tê... tê... O espirro forte
veio antes da exclamação:
— O Indiano!
Joana avisou da janela, as mãos gordas areando talher:
— Ontem eu não vi ele no poleiro. Fui no chiqueiro à boquinha da noite e
só ele não tava lá...
— Por que não avisou?
— Eu pensava que ele ainda vinha, seu Camilo.
A velha Rita descarregava toda a culpa no ladrão invisível, mas não
abandonava a busca:
— Tê... tê... tê...
Velho Camilo dessa vez não achou que era besteira a ausência do galo.
Ave bonita, vistosa, elegante, uma beleza de galo, encantava qualquer terreiro.
— Já quantas, Rita?
Os dedos da mão espalmaram-se.
— Quatro. O Capão, a Pintada, a Pedrês e agora o Indiano. Em menos de
quinze dias.
Os olhos do velho presos na habilidade dos bicos que faziam
desaparecer, como por encanto, o milho espalhado no chão. O pensamento
voando, procurando solucionar o problema. A velha Rita na procura e na
recriminação:
— Tê... tê... tê... Eu não lhe avisei no começo, logo que senti falta do
Capão?... Agora taí... E quando acaba você dizia que era besteira minha. Tê...
tê... tê...
É ladrão. E é bem capaz de ser cabra do Doroteu.
— Gente do Doroteu acho que não é, Rita.
— É gente dele. Ora se não é... Se lembra do ano passado?
— Arte de moleque. Tolice.
— Pois sim. Tê... tê... tê... Abanou os braços, desiludida:
— Desapareceu. Coitado do Indiano...
O velho voltou a subir o batente no passo mole e foi falando:
— Vou ver o que é isso. Se for ladrão pego o cabra. Mas acho que gente
do Doroteu não é...
Escorou o corpo no pilar do alpendre, procurando esconder a fralda da
camisa por dentro das calças, o chapéu embolado debaixo do braço, e se dirigiu
sem jeito:
— Chamou, Coronel?...
Com a mão ossuda, o velho diminuiu o embalo da rede e descruzou as
pernas para a compostura melhor antes de dar a resposta:
— Chamei.
A expectativa de Chico não era grande. Estava habituado àqueles
chamados.
A mão ossuda voltou a embalar mais a rede.
— E o milho, Chico?
— Empendoado, Coronel. Mais uma chuvinha...
A vista do velho se perdia na contemplação do Serrote do Machado
fazendo contornos no horizonte.
— Ainda não vi sinal no Barriga, Chico.
O sinal por todos esperado. A fumacinha surgindo por detrás do serrote,
tomando corpo, despejando no céu nuvens amojadas d'água.
— E o roçado do Malaquias, Chico? — Também no pendão, Coronel.
Parou o embalo, levantou-se da rede e deu o grito:
— Chi, porcoíí! O diabo desse porco só quer viver no alpendre! Voltou a
se sentar na rede, os ossos estalando.
— Tem gente metendo a mão no galinheiro, Chico.
O sangue fez glut-glut nas veias, fugiu todo, quase desmaia.
— Ladrão, Chico.
O suor frio veio chegando nas mãos, nos pés, no fim da espinha. O
coração aos sopapos, no latejo desordenado. A mão do velho voltou a dar o
impulso para o embalo gostoso.
— A Rita acha que é gente do Doroteu. Será, Chico? Será que aquela
cabroeira ainda não aprendeu?
O coração diminuiu o ritmo, foi entrando nos eixos. O sangue tornou a
esquentar as mãos, os pés, o fim da espinha. Até arriscou:
— não é raposa, Coronel?...
— Que raposa, homem! Aqui tem lá raposa! Você sabe disso...
— É mesmo, Coronel...
O embalo para lá e para cá, acompanhando o ventinho bom. Os olhos do
velho no Machado distante.
— Lhe chamei, Chico, pra dar um serviço.
— Diga, Coronel.
— Pois é. Quero que você dê uma pastorada. As bichas passam o dia no
meio da gerimataia, pro lado do cercado do Bento. Dê uma espiada nelas
ciscando.
— Está direito, Coronel.
— Pois está certo, Chico. Adeus.
Saiu de manso, escorregando, procurando se ajeitar. O chapéu continuou
embolado debaixo do sovaco. Nem notou-lhe a presença. Tomou o rumo de
casa, sem saber o que pensar.
Ainda fez menção de desferir a pedrada. Mas baixou a mão, abriu os
dedos e o seixo pingou no chão num pof surdo. As galinhas ali bem perto,
ciscando à vontade, indiferentes à sua presença. Olhou para o mourão da
vazante. E se arrombasse a cerca, para culpar a gente do Doroteu? Aproximou-
se do arame farpado, olhou para todos os lados.
A coragem foi embora. Voltou devagar, ainda com vontade de levar a
vermelha que ciscava faceira debaixo da cerca.
A sogra não abriu o bico quando ele chegou com as mãos abanando.
Ficou mexendo o caldo.
— Como vai a Maria?
— Dormindo.
Cuspiu no terreiro a bola de fumo que mascava e substituiu o vício:
acendeu o cigarro fazendo concha.
— Será que ela ainda quer canja?
A sogra pareceu adivinhar o pensamento do genro.
— Precisa mais não, Chico. Já chega. Está no fim do resguardo. Chico
apanhou o rabo-de-galo de cima do tamborete, experimentou o fio na palma
da mão e avisou:
— Vou dar uma roçada. Voltou do terreiro.
— Não sobrou nadinha, hem?
— Nadinha.
— Então diga pra ela que não tem mais canja não.
Acordou com o pé-d'água nas telhas. As goteiras metralhando. Meteu os
pés e chamou a mulher:
— Maria!
— Estou ouvindo, Chico.
— Tu tava acordada?
— Que tempo que chove...
— Vigia se tem goteira na rede do menino, Chico — avisou a sogra, da
sala.
Tateou a lamparina no escuro.
— E o fósforo? Onde eu botei o fósforo?
Na escuridão de breu, Chico meteu a mão em todos os bolsos do paletó
pendurado no prego.
— Achei.
A lamparina encheu o quarto de claridade. O pingo impertinente caía em
cima do baú.
— Vai molhar tudo, Maria. A rede do menino tá seca. Nenhum pingo
aqui.
— Fala baixo pra ele não acordar.
— Só me lembro do roçado. Vai ficar uma beleza ma...
— Foi a minha promessa — garantiu a sogra.
O relâmpago comendo de esmola, chicoteando. O trovão de estalo
disparou, tremendo tudo. -Chuvão, Maria. Precisava...
— O menino acaba acordando, Chico.
— Acorda lá nada. Chuvão bom danado...
— É capaz de fazer estrago. O riacho vai tomar água...
— Faz estrago não. Tudo que é de grota secou... Acendeu o cigarro no
pavio.
— Olha o fumaceiro, Chico.
— Tem nada. O roçado vai ficar uma beleza. Eu tava adivinhando. Aquele
fumaceiro no Machado não era queimada...
O menino resmungou mas ficou nisso.
Os relâmpagos continuavam um atrás do outro, e os trovões
acompanhando em cima. Chico estirou-se na rede, baforando. A goteira do baú
parecia cusparada.
— Vai molhar tudo, Chico.
— Deixa. Tem nada não.
Ficou olhando feliz para as telhas.
Chegou de manso e ficou ali parado no batente.
O vaqueiro Tadeu, sentado no parapeito, dava notícias do gado. Velho
Camilo escutava sem fazer comentário. Arrependeu-se de ter chegado em hora
pouco oportuna. Esperava encontrar o velho só, na rede, para fazer o convite.
Não fora idéia sua. Coisa da sogra mais a mulher.
— Alguma novidade, Chico?
— Era.
Olhou para o vaqueiro e perdeu a coragem de continuar.
— E o roçado?
— De pendão bonito, Coronel...
— Eu não disse que chovia, Chico? Eu nunca erro, Chico. Que é que tu
quer?
Chico voltou a olhar para o vaqueiro, ali escanchado, fazendo do
parapeito cavalo. Desembuchou de vez:
— Eu vim convidar o senhor pra padrinho do Francisco...
O velho fez que não tinha ouvido. Virou-se para o vaqueiro.
— E a vaquinha Laranja, Tadeu?
— É o diabo, Coronel... andei até no Taimbé...
— Procurou pro lado de Pitombeira?
— Virei tudo, Coronel.
Então deu resposta ao convite, encarando Chico de frente:
— Está certo. Obrigado. Avise o dia do batizado.
— A gente também queria a dona Rita pra madrinha.
— Está direito.
Velho Camilo reatou a conversa com o vaqueiro. Chico então resolveu
escapulir. Foi dando boa-tarde e saindo
— Pere aí, homem.
E o velho soltou o grito:
— Rita! Rita! Vem cá, Rita!
— Chico veio convidar a gente, Rita, para compadre dele.
— Obrigada, Chico. Como vai a Maria?
— Acabando o resguardo, dona Rita. Já anda
— Pra quando é o batizado?
— Pro mês. Nas Missões. -E o menino?
— Vai com saúde, com a ajuda de Deus.
Velho Camilo entrou na conversa para a pergunta:
— E as galinhas, Chico? Nem sinal do guabiru, hem?
— não vi ninguém, Coronel...
— Pois já concordo com a Rita. Foi gente do Doroteu. Bastou você andar
dando uma espiada por lá pra não se sumir mais nem uma... É gente de lá, ora
meu Deus!... Lembra aquela nesga de terra?
— Lembro.
— Pois é gente de lá. Gente capaz de tudo. Palavra ali morreu. Chico não
quis encompridar a conversa e foi saindo sem jeito como chegara, se
despedindo de qualquer maneira, procurando se sumir. Vaqueiro Tadeu
aproveitou a oportunidade e foi também se curvando batente abaixo, avisando
que ia ainda dar uma busca atrás da Laranja.
— Dá uma volta lá pro lado do Trapiá, Tadeu. Pode estar junta com o
gado do compadre Firmo, do "Maracajá".
— Já corri por lá, Coronel.
— Compadre Firmo anda muito triste com a morte da comadre Amélia?
— Não vi ele, Coronel. Vi a negra Raimunda... Me avisaram que tinha um
rasto da Laranja pro lado do Coité. Vou dar uma espiada por lá.
O velho ficou só com sua velha. Dona Rita catava arroz no alguidar. A
rede ia e vinha no embalo uniforme.
— Rita, a gente precisa fazer uma visita ao compadre Firmo. Comadre
Amélia morreu faz um mês.
Mudou de assunto:
— Não sumiu mesmo mais nenhuma, Rita?
— Depois do Indiano, nunca mais.
— Eu sabia.
Velha Rita olhou para o marido sem compreender.
Ele fitava o Machado acinzentado, com promessa de novas chuvas.
— Vem chuvarada aí, Rita.
Sacou do corrimboque e aspirou a pitada de rapé.
— Eu sabia.
— O quê, Camilo?
— não peguei o cabra mas acabei com o ladrão, Rita.
— O que é que está dizendo, Camilo?
A rede vinha e ia, os olhos meio fechados na contemplação do Machado.
— A gente dá fim a guabiru, Rita, é mandando ele correr atrás do ladrão.
Velha Rita fitava o marido. O alguidar esquecido nas mãos. A curiosidade
dilatou as órbitas e espremeu a voz:
— Você sabia quem era, Camilo?
A mão ossuda aumentou o embalo da rede. O espirro forte fez ranger os
armadores.
— Tem alguém de cria aqui na "Queimada", fora a Maria?...
— Acho que não, Camilo.
— Então vai catar o teu arroz calada. Lá vem ele de novo... Levantou-se
gemendo e soltou o berro:
— Chi, porco!!! O diabo desse porco só quer viver no alpendre!...
O PATO DO LILICO
para Ricardo Ramos

O pai chamou o filho:


— Lilico, quer ir amanhã ao Coité?
Lilico deixou cair o cavalo de talo de carnaúba, morto de alegre. O dedo
na boca, sorriso aberto.
— Quero.
— Pois então vai pra dentro te assear. Guarda o brinquedo. Tem que
meter os pés cedo.
Lilico sumiu-se e o tropeiro João ficou passando sebo nas correias, a
língua de fora e fazendo careta, os dedos dos pés ajudando no serviço. Dona
Ana ali no canto, sentada no chão, as pernas cruzadas, as mãos ágeis trançando
os bilros da almofada.
— Vou levar ele amanhã, Ana.
A mulher não deu resposta. Continuou fazendo renda. O sebo passeando
nas correias e escorrendo entre os dedos grossos do marido.
— Vou levar ele. Tenho de entregar a carga de coco de seu Moreira.
Volto logo.
— O bichinho vai cansar, João.
— Cansa lá nada! Se cair no choro, trepo ele no meio da carga. Vive
amalucando a gente... Diabo de correia! Se não ensebar bem, apodrece que
nem mameleiro.
Levantou-se gemendo e foi pendurá-las no prego, na entrada do copia.
Mudou de conversa de lá:
— Nosso Senhor tá pra nascer, não tá? Hoje é véspera de Natal.
— Acho que é...
João tirou o cabresto de cima da cangalha e avisando que ia prender o
burro foi completando a conversa:
— Disse o padre Eduardo que Ele veio pro mundo só pra sofrer.
Coitado...
Atravessou o oitão e desceu no rumo da capoeira.
Lilico quase nem pregou olho. Ficou se remexendo na rede até muito
tarde. Chegava a não acreditar no passeio. Não tinha coisa mais maravilhosa
que um passeio ao
Coité. Cidade grande, cheia de gente nas ruas. Só estivera lá uma vez.
Fazia muito tempo. Foi naquela vez que sua mãe o levou para pedir a bênção
ao avô, quando ele passou no trem para outra cidade. Não ficou com o avô
nem cinco minutos. O trem levou-o para longe e ele, Lilico, Ficou passeando
pela cidade, levado pela mão para cima e para baixo. Tanto animal amarrado
nas árvores, caminhões, gente demais na rua, até uma casa com uma parede
de vidro e coisas bonitas por detrás.
Virava-se na rede sem sossego. O ronco do pai vinha do quarto. Só tinha
de ruim que o pai não era como a mãe. Nunca puxava conversa, não lhe dava
atenção, falava só. E quando o chamava era aos gritos, por qualquer besteira
soltava o berro.
— Lilico! Mete os pés! Anda!
Acordou sobressaltado, ainda com escuro, o galo cantando lá fora.
— Tá na hora, pai?
— Já mandei meter os pés. Anda logo, senão fica. Atarantado, ficou
ciscando, atrás das alpargatas. Calçou-as e foi na direção da cozinha, ainda
tonto. A mãe estava lá, escorada ao fogão, passando café. Pediu a bênção e
água para lavar o rosto. Voltou depois do terreiro, a cabeça pingando, a cuia na
mão.
— Enxuga aí mesmo.
Puxou o pano pendurado no barbante esticado. Tropeiro João apareceu
metendo a fralda da camisa para dentro das calças.
— E o café, Ana?
— A água já tá quente. Dirigiu-se ao filho:
— Vá ver se o burro comeu a forragem.
Então se aproximou da porta do terreiro e soltou o berro na direção da
casa de seu Miguel.
— Compadre Miguel!!! Ô compadre Miguel!!! Tá de pé, compadre?!!
Vou pro Coité! Quer alguma coisa pra lá?!!
O sol já apontava. O estirão de estrada subia e descia. Lilico sentia-se
cansado.
— Tá pregado, Lilico?
— Não,pai.
— Então anda ligeiro. E vai tangendo. O burro tá com reima... Burro!!!
A viagem que fizera com a mãe foi bem diferente. Sentado na carroça do
seu Miguel o tempo todo. O Coité era longe.
— Tá longe, pai?
— Tu tá que não anda mais. Passa pra cima da carga. Segurou-o pelas
axilas e o sentou-o entre os grajaús.
— Burro!!! Diabo de burro emperrado! Burro!!!
O animal resolveu apressar o passo e foi sacolejando a carga e o menino
estrada afora. Tropeiro João saiu acompanhando o trote, chiando as
alpargatas.
Passaram em frente à casa do Coronel Aparício, na fazenda "Contendas",
com o sol alto, esquentando na pele. Tinha gente debruçada nas janelas, alguns
por debaixo das mangueiras. Tropeiro João tirou o chapéu e deu bom-dia.
Adiante, parou para puxar conversa com o homem que tangia uns burros em
sentido contrário. Demoraram-se na conversa. Lilico sentia sede e dor nos
quartos. Começou a chegar saudade da mãe e do cavalo de talo de carnaúba.
— Tá longe, pai?
— Pera, menino!
O homem que conversava com seu pai olhou-o curioso, mas continuou
na conversa mole.
O sol estava bem em cima. Vinha até cochilando. Uma sede medonha.
— Tamos chegando, Lilico.
Viu a cidade e se esqueceu do sono, do sol e da sede. Uma beleza de
cidade lá embaixo, a torre grande da igreja se destacando.
— É o Coité, pai?
— É. Lá você bebe água...
Gente passava por eles constantemente. Iam para a cidade, vinham de
lá. Tropeiro João não tirava a mão do chapéu.
— Bom-dia. Bom-dia.
Foram para o mercado. Gente muita nas ruas. Nas janelas. Caminhões
buzinando, o burro andando e correndo, espantado, jogando os quartos para o
lado. Meninos brincando nas calçadas. Nunca vira tanto menino brincando.
Cada brinquedo que era uma maravilha.
— Por aí não, Lilico. Puxa o cabresto!
O burro ia subindo a calçada, espantando o povo.
— Olha a leseira, menino!
— Tava vendo aquele brinquedo, pai...
— Te trouxe foi pra isso? Me dá o cabresto.
O tropeiro João saiu puxando o animal, Lilico continuou vendo a
meninada se divertindo. Brinquedos de todo jeito. Um pato pulando. E não era
pato de verdade. Como podia ser? O pato andava que nem pato.
— Vigia ali, pai. Um pato, pai.
— Tu nunca viu pato, menino?
— Mas aquele...
— Fica quieto. Tamos chegando.
Ainda se virou um pedaço. O pato se rebolava, andava, pulava, — uma
beleza nunca imaginada.
— Fica aí pastorando que eu já volto. Vou dar uma prosa ligeira com o
Roque.
Ficou ali na beira da calçada, comendo o pedaço de rapadura, admirando
as novidades de todos os lados. Resolveu se sentar no cimento quente. O povo
entrançava entre ele, conversas muitas, música tocando alto. Do outro lado, a
meninada se divertindo, brinquedos de todos os jeitos. Dava pra ver
perfeitamente o pato aos pinotes, no remelexo, se requebrando todo. Parecia
coisa encantada, como nas histórias de sinhá Mundoca. Deu vontade de ver de
perto a beleza se exibindo, para quando contar ao Beto ele não sair dizendo
que era mentira. Abandonou os grajaús e atravessou pelo meio do povo. Ficou
ali por perto da meninada, sem jeito, esquecido da rapadura, com medo de
tomar mais chegada. O de blusa azul mexia no pato que saía como doido
pinoteando. Não resistiu à tentação e foi se encostando. Quando deu fé, a
turma estava virada para o lado dele.
— Vai embora, moleque, ninguém quer canelau aqui não. Saiu andando
de costas, com medo do cerco. A turma marchava para cima, diminuindo a
distância. Apressou o passo para trás. Quando quis se sumir, peitou nas pernas
atravessadas no caminho. Olhou para cima, o coração fora dos eixos. O homem
bem vestido, charuto no queixo, olhava para ele. A perseguição não diminuiu, a
roda se fechava. O homem segurou-o pelo braço.
— Me solte. Eles vêm bater neu.
O homem bem vestido protegeu-o com as mãos, tangeu a meninada de
volta. A roda foi se desmanchando e se formando de novo em torno do pato.
— Deixe eu ir embora — os olhos nos grajaús distantes. O homem abria
o sorriso, o charuto pendurado.
— Tava vendo o pato... Me solte.
Os olhos do homem foram dele para o pato, do pato para ele.
— Você quer um brinquedo desse, garoto? Quer um pato desse para
você? ficou de boca aberta, indeciso, meio com medo e meio espantado. —
Onde você mora?
— Na "Queimada"...
— Ah, do Coronel Camilo? -É...
— Como é o seu nome?
— Lilico.
O homem parecia que era bom. Ria para ele.
— Venha comigo.
Saiu puxando-o pelo braço. Já não procurava escapulir Mas se virava na
direção dos grajaús, abandonados na calçada do mercado.
O homem entrou com ele na casa que tinha uma parede de vidro. Tanta
coisa para ver que um dia só não chegava. Fez finca-pé na porta. O homem
insistiu:
— Vamos. Não tenha medo.
Dentro da loja, tomou um susto. Um velho grande, quase da altura da
casa, todo vestido de vermelho, a barba branca muito comprida, um saco nas
costas. Parou abismado, boca aberta, a rapadura no chão. Quem seria aquele
velho? As botas pretas, como as do Coronel Camilo. Se contasse ao Beto toda
aquela maravilha era bem capaz de brigar com ele, porque o Beto ia espalhar
que era mentira.
— Tome. É seu.
A surpresa não foi deste mundo. O homem lhe estendia um pato igual
àquele do menino de azul. Quis recuar. Botou o braço para trás, escondendo o
corpo, desconfiado.
— É seu.
Foi levando a mão bem devagarinho, temendo uma decepção. Os olhos
estudando o homem de charuto no queixo.
— Vamos. É seu. Pode levar.
Segurou o brinquedo e puxou-o para o peito. Saiu caminhando de costas,
ainda sem acreditar.
— Diga ao seu pai que é presente desse velhinho. É presente do Papai
Moel.
Olhou rápido para a figura grande do velho. Continuou deslizando, se
afastando. Ma porta da rua, virou-se num movimento rápido e desabalou no
rumo do mercado, peitando com o povo, o coração desembestado, o pato
preso com força junto ao peito.
O homem do charuto ficou rindo, as mãos nos quartos.
Não encontrou nem os grajaús, nem o pai. Olhou atarantado para todos
os lados, os braços cruzados sobre o pato, angustiado. Chegou a se esquecer do
presente, o pavor veio chegando. Foi quando avistou o pai atravessando a rua
na sua direção. Correu ao encontro dele.
— Onde se socou, moleque?
Exibiu o pato, os olhos quase chorando uma alegria transbordante.
— Ganhei, pai.
Tropeiro João estancou ali no meio da rua, os olhos abertos no
brinquedo bonito.
— Onde andou metendo a mão, Lilico?
— O homem me deu, pai.
— Que homem?
Apontou na direção da loja de parede de vidro.
— Um homem, pai. Ele me deu.
Num movimento rápido, arrancou o pato das mãos do filho.
— Menino espritado. Me dá isso. Tá com potoca, moleque.
— É de vera, pai. Ele me deu.
Tropeiro João escondeu o pato por dentro das calças, entre a barriga e o
cinturão. Deitou chispas para o filho. Agarrou-o com força pelo braço.
— Em casa a gente conversa.
— Mas pai...
— Tranca o bico, peste. Eu não mandei vigiar os cocos?
— Pai, o pato...
— Já disse pra se calar. Em casa a conversa é outra.
O choro veio fraco. O Caraolho do açougue, pautando os dentes
escorado ao poste, achava graça. Os soluços foram aumentando, o choro ia
longe. O povo passava entortando a cabeça. Tropeiro João, impassível, prendia
os grajaús nos cabeçotes. Deu a ordem com voz espremida:
— Fecha a tramela, vamos.
As mãos fortes agarraram-no sem cuidado. Lilico caiu com o peso entre
os grajaús. O burro compreendeu e foi no rumo da saída da cidade. Tropeiro
João disfarçava o berreiro do filho:
— Burro!!! Êh, burro!!! Burro emperrado da moléstia!!!
Na volta, foi um choro sem fim. Tropeiro João fazia que não ouvia,
tangendo o animal com raiva. O comboieiro Chico Bento cruzou o caminho, na
direção do Trapiá.
Tropeiro João não parou para puxar conversa. Falou de longe. O
comboieiro ainda ficou esperando.
Às vezes, o choro aumentava numa angústia de fim-de vida. Na fazenda
"Contendas", chamou a atenção do povo. As cabeças apareceram nas janelas e
no alpendre para a saudação, os olhos porém no menino. A repreensão então
vinha forte, sem mexer a boca:
— Engole o diabo do choro, desgraçado.
O ódio aumentou. A chibatada cantou feia no lombo do animal.
— Peste de burro sem mãe!!! Burro!!!
Lilico às vezes tinha vontade de voltar a explicar, o homem lhe dera o
presente. O pato encantado, uma beleza de pato. Se encontrasse o homem do
charuto... Olhava para os lados, numa esperança derradeira. Arriscou outra vez:
— Pai...
— Eu te racho de peia, peste.
Abriu o eco no mundo. O choro cantou solto, desenfreado. Lilico foi
entrando e se agarrando às saias da mãe.
— O meu pato, mãe.
Dona Ana espantou-se. Deixou de lado o remendo. Olhou para o marido,
curiosa. Tropeiro João ajeitava os grajaús no copia Escanchou a cangalha no
parapeito.
— O que foi, João?
O marido primeiro foi cuidar do burro, depois entrou e foi tirando o relho
do armador.
— Prepara os couros, tapuru de gente!
Lilico procurava se coser nas saias da mãe. Tropeiro João tomou jeito de
aplicar a surra.
— Vem cá, peste ruim!
As mãos de dona Ana para trás, na defesa do filho. Os olhos bem abertos
de admiração.
— Mas o que é isso, João?
Sacou o pato de debaixo da camisa. O brinquedo brilhou aos olhos da
mulher. A mão vibrava o presente rico.
— Esse cabrito andou fazendo arte, Ana. Andou metendo a mão...
O protesto vinha rápido, desesperado:
— Foi não, mãe. O homem me deu. Tou mentindo não, mãe. Deixe ele
me bater não...
Agarrava-se às saias, por detrás, apontando só os olhos. Tropeiro
João espumava de raiva, procurava se aproximar fazendo volta.
— Puxa já pra cá, mucuim do inferno!
Dona Ana se afastava empurrando o filho, cobrindo-o com as saias.
— Deixa, João.
Tropeiro João ainda quis dar um passo. Recuou e largou o relho no chão.
— Você tá botando o moleque a perder... Roubou essa coisa lá no Coité.
— É não, mãe. Roubei não. O homem me deu. Disse que era presente do
velho.
Dona Ana entortou a cabeça para o lado do filho.
— Que velho?
Tentava explicar. Não tinha jeito, não sabia dizer.
— O velho de barba branca... O homem disse o nome. Esqueci, mãe. Tou
mentindo não. Juro, mãe.
Tropeiro João repreendeu.
— Bate na boca, moleque! Ainda jura por cima... Dona Ana quase passa
para o lado do marido.
— Tá com história, Lilico?
Sentia-se desnorteado, confuso, só sabia repetir:
— É de vera, mãe. Tou mentindo não. O velho grande, de encarnado...
Dona Ana olhava para o filho e para o marido. Tropeiro João agora bebia
água. Jogou o caneco e prosseguiu fazendo sermão:
— Se ele der pra ruim não vá depois botar culpa em mim! Você tá
deixando o diabo do menino se perder... Faz uma arte dessa e você ainda
protege...
Dona Ana lembrou do vizinho.
— Fala baixo, João. O compadre Miguel pode ouvir! A voz aumentada:
— Tenho lá nada com o compadre Miguel! O filho é dele?! Jogou o pato
no chão e pisou em cima de raiva. Lilico soltou o berreiro. Ainda se desprendeu
das saias para socorrer o presente. Faltou coragem. Dona Ana via o quadro
esfregando as mãos, sem saber o que fazer.
Tropeiro João apanhou os cacos e desceu com eles no rumo do oitão e
falando alto, recriminando o filho, culpando a mulher.
— cabra só se ajeita com uma surra de cipó de jurema.
Dona Ana viu o compadre Miguel botar a cabeça na janela e fazer como
se estivesse só fumando. Entrou levando o filho.
— Pára com o chororô, Lilico. Pra que tu fez isso, menino?
Não tinha mais coragem de explicar. Caiu no canto da sala soluçando
baixinho, esfregando as mãos nas pernas. Dona Ana falava lá da cozinha:
— Te cala, Lilico. Não faça isso outra vez não, meu filho, Nosso Senhor
castiga.
O GAVIÃO
para Jorge Medauar

Chegou pondo o coração pela boca, olhos saltando das órbitas:


— Pai, ele tá de novo no mourão da porteira.
João Raimundo não desmanchou a calma. Capinando estava, capinando
ficou.
— Tá no mourão, comendo o calango. Depressa, pai, senão ele voa...
João Raimundo encostou a enxada, ar aborrecido, rumou para o curral.
— Vá buscar a espingarda.
O filho saiu correndo e João Raimundo parou a uns trinta metros do
mourão, vendo de longe a ave bicando a presa.
— Traz logo a espingarda, Beto! Dona Rosa estendia panos no arame.
— O que foi, João?
— O gavião. Está outra vez ali no mourão da porteira. Dessa vez ele
emborca. Traz logo, Beto!
O menino chegou arrastando a arma, sacola da munição na outra mão.
João Raimundo preparou-se para carregá-la. Prendeu-a entre as pernas
cruzadas, cano para cima, palma da mão despejando os chumbos, sacola da
munição presa nos dentes, não desviava a vista.
— Ele acaba voando, pai...
João Raimundo fez esforço para responder como ventríloquo:
— Fica quieto.
Dona Rosa via o quadro de longe, esquecida dos panos. A ave bicava o
calango, equilibrando-se por cima dele, no topo do mourão, asas abrindo-se e
fêchando-se.
— Acaba voando, pai... !
Beto não encontrava posição, vista correndo ligeira do pai para a ave e
vice-versa, coçando-se na sarna da impaciência. A vareta socava a bucha, não
controlando a pressa.
— Espera. Segura.
Beto recebeu a sacola e prendeu-a ao peito. O coração pulsava na
expectativa. João Raimundo recuou, foi para a direita, para a esquerda,
estudando o melhor alvo.
A ave olhava e tornava a bicar a vítima.
— Daqui está bom. Desafasta, Beto.
O menino recuou para mais longe, olhos fixos no pai. João Raimundo
firmou-se nas pernas, uma para a frente e outra para trás. Aproximou a arma
do rosto e começou a dormir na pontaria. Foi quando o cacarejar quebrou o
silêncio e uma galinha surgiu no canto da cerca, correndo no rumo da porteira,
escorregando para os lados, cachorro Mantiqueira na perseguição. Com o
espanto, a ave sentiu-se insegura e o vôo partiu num bater ligeiro de asas,
deixando o calango escangotado escorregar para o chão.
— Voou, João.
Não deu resposta à mulher. Baixou a arma sem encarar o filho e
preparou-se para voltar ao serviço. Beto ainda controlou um instante sua raiva.
Depois disparou no choro.
— Deixa, Beto. Ele volta.
Acontecera há dias. De manhã cedinho. Fora limpar a gaiola, mudar a
água, o alpiste? Primeira coisa que fazia, logo que metia os pés. Antes mesmo
de pedir a bênção, antes de se ajeitar. Primeiro o canário, o resto depois.
Distraído na tarefa, soprando o alpiste. O vruuu rápido zuniu-lhe no pé-
da-orelha. Virou-se espantado, adivinhando: a gaiola vazia, portinhola
escancarada. A mão baixou, entornando o alpiste sobre os pés, os olhos
procurando desesperados o canário que cantava bonito por perto, escondido
entre as folhas. Uma sensação esquisita inundou-o por dentro. Aperreado,
andava para um lado e para outro, vista correndo ligeira, orientando-se pelo
canto. Ainda lhe socorreu uma idéia de trazê-lo de volta à gaiola. Abandonou
em tempo o gesto, lembrando-se que aquilo era para chamar galinha. Só o pai
poderia socorrê-lo. Mal abriu a boca para chamá-lo, outro vruuu, despencando
do pé de urucu, chamou-lhe a atenção. O canário escapulia, voando incerto,
em ziguezague, uma ave muito maior atrás perseguindo, procurando prendê-lo
nas garras, cobri-lo com as asas.
— Um gavião!
Viu perfeitamente o abraço mortal, o bico entortando.
— Pegou...
Agora somente as asas grandes, espalmadas, voavam, num volteio
bonito, as asinhas debatendo-se, pulverizando o ar de flocos alaranjados.
— O gavião pegou ele, pai!
Apontava, gritava desesperado, correndo de costas para não perder de
vista o seu canário, equilibrando-se na ponta dos pés, pescoço espichado.
— Um gavião pegou o meu canário, papai!
João Raimundo lavava o rosto na janela do oitão. Ficou com a lata
suspensa, rosto pingando.
— O que é, Beto?
— Um gavião! Ele levou o meu canário...
João Raimundo entortou a cabeça por fora da janela, virada para cima, a
água entrando-lhe nos olhos.
— Cadê?
Beto agora fazia cara de choro, mão indicando a direção, a outra coçando
a cabeça num gesto de desespero.
— No mourão, pai!
-Já vi. Vá buscar a espingarda. Não chegue pra perto que ele voa.
Beto ficou vendo a cena, angustiado, esfregando as mãos, as lágrimas
querendo correr, uma vontade louca de partir para cima e socorrer o canário.
O gavião ajeitava-se sobre a presa, equilibrando o corpo, estirando e
encolhendo as asas. As bicadas partiam violentas, peninhas amarelas desciam
leves para o chão.
João Raimundo voltou com a espingarda, desceu o batente. Dona Rosa,
curvando o corpo para fora da janela da cozinha, pano de coar café na mão,
consolava o filho:
— Chore não, Betinho. Seu pai lhe dá outro.
João Raimundo aprumava o corpo, levava a arma para o rosto.
— Vou esbagaçar o infeliz. Afaste, Beto.
Beto estancou o choro para apreciar o resultado. O gavião se
banqueteava com calma, sem desmanchar a pose, olhando às vezes com
elegância. João Raimundo dormiu, dormiu, dormiu, e... O gavião ainda se
tremeu com o susto. Depois circulou a vista curioso e resolveu ir para longe,
fora do barulho, em vôo rasteiro, levando a ração.
— Puxa! Errei...
Beto disparou no choro, acocorado, como sentindo cólicas. João
Raimundo ainda ficou vendo a ave ganhar distância, descambando no rumo da
capoeira. Arrastou a arma para dentro de casa, a toalha de rosto na outra mão.
— Não chore, meu filho. Eu lhe dou outro canário.
Beto passou o dia todo ou perto da mãe ou encostado ao pai,
reclamando o canário, soluçando. João Raimundo prometeu-lhe um mais
cantador, garantiu-lhe que esbagaçaria o gavião, de chumbo, na primeira
oportunidade. Não houve consolo possível. Não quis almoçar. Azucrinando o
pai no serviço, por ali acocorado, soltando sua mágoa.
Atrás da mãe na cozinha, atrapalhando-lhe o serviço. Dona Rosa contou-
lhe histórias de gaviões malvados. Não deu ouvido às histórias. Jamais se
conformaria com tamanha monstruosidade. O seu canário morto. Reuniu até
os amigos para verem a beleza. Zequinha ficou de queixo caído, procurou
esconder o seu, que trouxera para o confronto. Até Mestre Ernesto, do Coité,
oferecera uma cédula pelo pássaro. Não sabia como podia acontecer desgraça
tamanha. Não haveria injustiça maior. Se pegasse o gavião, arrancar-lhe-ia
todas as penas e depois o espatifaria em pedacinhos miúdos naquela pedra
grande, como seu Tadeu, vaqueiro, fizera com a cascavel. Não era possível que
tudo terminasse na casa do sem-jeito. Existiria — tinha que existir — um
castigo para um crime dessa natureza.
De tardinha, João Raimundo ainda o encontrou choramingando perto do
fogão, atrapalhando a mãe. Perdeu a paciência. Prometeu-lhe uma surra.
Aquilo já era má-criação, passava dos limites. Continuasse no chororô e não
receberia mais canário nenhum. Ficava por isso mesmo.
Beto jantou engulhando, os olhos do pai em cima, duros, traduzindo
contrariedade. Dona Rosa também recriminava. Um despropósito aquele choro
todo.
À noite, no alpendre, arriado no canto da coluna, choro estancado,
engolido com esforço, Beto admirava-se da conversa do pai com a mãe.
Falavam de muitas coisas, da festa do Trapiá, só não falavam do seu canário.
Como podia ser? O pai até achava graça. O canário sofrendo na barriga do
gavião e João Raimundo fumando, rindo, soltando risada. A mãe remendando
pano, na conversa animada, esquecida da desgraça. Como podia ser? Veio
vontade de tocar no assunto, lembrar a tragédia. Mas o pai podia se zangar.
Sentia-se irremediavelmente só, abandonado na sua desgraça, sofrendo sem
ajuda, sem solidariedades. O choro veio novamente subindo, subindo,
entalando na garganta. Quando ia rebentar, chegou a ordem:
— Pra rede, Beto!
Saiu correndo, soluçando alto.
Custou a se habituar com a ausência do canário. Logo que metia os pés,
cedinho, o primeiro pensamento era para ele. Rondava o terreiro, corria a
capoeira, olhos para cima, procurando. Encontraria o gavião, mais dia, menos
dia. O pai não acreditava:
— besteira, Beto, Tem muito gavião. É tudo igual.
Com o passar dos dias, foi esmorecendo, conformando-se. O
pensamento demorando-se agora no outro canário que o pai traria do Trapiá.
Voltaria a causar inveja ao Lilico, que andava com pabulagem.
Foi quando viu, de tardinha, o gavião banqueteando-se com o calango. E
na hora da vingança apareceu cachorro Mantiqueira para atrapalhar. Ainda
tinha vontade de ver a ave malvada crivada de chumbos, caindo murcha, sem o
porte altaneiro. Arrastá-la-ia pelo pé até à pedra grande, lá onde seu Tadeu,
vaqueiro, dera fim à cobra e acabaria de completar o serviço. Depois reuniria
os amigos e exibiria o seu feito.
Beto ia ao riacho, dar água ao burro. Mal virou o alpendre, parou. Deixou
o animal seguindo sem auxílio. O coração descontrolado. O gavião novamente
ali no mourão da porteira, agora sem vitima, tomando a fresca, passeando a
vista, despreocupado, nunca vira bicho tão decidido. Todos os gaviões que
conhecera só passavam por longe, só paravam nos galhos mais altos. Aquele
era diferente. Tio mourão da porteira fazendo o seu ponto, perto de casa,
desafiando. Ainda abriu a boca para chamar o pai, mas não desmanchou a
posição. Ave bonita aquela. Elegante, olhando de cima, com soberba. Tomou
chegada, devagarinho. A ave espantava o olhar, mas não bulia o corpo. Beleza
de ave.
Seu Tadeu contou que já criara um gavião. Andava por dentro de casa.
Voava que se sumia e depois voltava. Não comia pinto, nem calango, nem
canário. Comia na mão.
Mansinho, mansinho. Mas o gavião de seu Tadeu não podia ser mais
bonito que aquele. Se conseguisse agarrá-lo, queria ver depois a cara do
Zequinha, do Lilico, do Teteu. Seu Tadeu contou que precisava muito jeito para
pegar um gavião. O bico era afiado, capaz de arrancar um pedaço.
Foi se afoitando, se chegando, o baticum do coração mais forte. A ave se
espantava, estirava as asas, como tomando jeito para voar. Parou. Olhou para
os lados, para trás. Podia ter gente observando. Continuou mudando as
passadas, pisando de leve, como se equilibrando. Tornou a parar, agora com o
espanto do vôo, em descaída, depois tomando altura, voando, voando,
perdendo-se no infinito do céu.
— Voou...
Voltou a pedir a vaqueiro Tadeu para contar a história do seu gavião,
Ouviu-a embevecido, Fez perguntas. Se gavião gostava de menino, se comia
alpiste. Foi ao pai, não queria mais o canário que viria do Trapiá. Canário dava
muito trabalho. João Raimundo concordou. Começou então a sondar com jeito,
sem ferir o assunto de frente. Se não achava que gavião era uma ave bonita. O
pai outra vez concordou. Dirigiu-se à mãe:
— É necessário um gavião para proteger os pintos. Andavam por aí
soltos, espalhados. Para gavião só outro gavião.
— Que conversa é essa, Beto?
Desviou o assunto, assoviou sem jeito, chutou vento.
De noite, ficava horas e horas se virando na rede, não podia esquecer a
cara dos amigos, abobalhados. E ele, Beto, a exibir o gavião. O seu nome
crescendo muito. Imprimiria respeito. Causaria admiração. "Você viu como o
Beto é valente? Anda com um gavião debaixo do braço". Serviria, inclusive,
para defendê-lo nas brigas. Lilico não bancaria mais o duro para o seu lado.
Poria o gavião na frente para protegê-lo, mandaria a ave bicar-lhe as canelas.
Via-se no meio dos amigos, a roda bem aberta, todos mudos de medo diante
dele, Beto, a exibir sua grandeza. O gavião debaixo do braço, pronto para
entrar em ação. Sua opinião passaria a ser voz de comando, rios banhos do
riacho, nas brincadeiras de esconde-esconde.
Virava-se e revirava-se, sem o sono chegar. Ouvia galo cantar, cachorro
Mantiqueira latir, arrieiros tangendo seus burros, estalando os chicotes dentro
da noite.
Olhos fechados, pensamentos por longe, sonhando acordado.
Estava lavando o rosto na cozinha, cedinho, quando ouviu primeiro o
tiro. Depois o pai chamando:
— Beto! Vem cá, Beto!
O pressentimento chegou de repente, olhou para a mãe espantado.
— O gavião!
Saiu correndo pelo corredor, o rosto pingando. Estacou na ponta da
calçada, os olhos curiosos procurando. João Raimundo, nu da cintura para
cima, espingarda na mão, apontava o seu feito:
— Acabei com o bicho. Olhe ali, Beto.
Perto do mourão da porteira o gavião ainda ciscava, abrindo o bico no
esgar da agonia, estirando as asas num último desespero de vida.
— Pronto, meu filho. Dei fim ao infeliz.
Beto olhava parado, sem ação, sensação de vazio. Dona Rosa botou a
cabeça fora da janela da cozinha.
— Matou, João?!
— Matei! Está ali estrebuchando... Vá lá, Beto, e acabe de matar o
bicho...
Beto tomou chegada devagarinho, o bolo subindo para a goela, fazendo
esforço para se controlar. Parou pertinho. A ave estremecia-se toda, contorcia-
se, o sangue pintando as penas, a baba escorrendo do bico. Uma beleza de ave,
mais bonita que aquela não haveria, O bolo apertava, querendo sair. Sufocava-
o com esforço, lábios contraídos.
João Raimundo saiu arrastando a arma, satisfeito, assoviando.
— Pronto, meu filho. Ele pagou bem caro. Sacuda ele do outro lado da
cerca e venha tomar o café...
— Sim, senhor...
O pai entrou. Então o bolo pôde ir saindo de mansinho, nos soluços
rápidos, na água que chegava aos olhos.
A DÍVIDA
Na curva, surgiu a beira do rio. Estava perto. Apressou o passo. Já
avistava a grande cajazeira do oitão. Olhou para trás, o medo estampado nos
olhos. Encostou-se mais para o lado da cerca, evitando a estrada. Enxugou o
suor do rosto com a aba do paletó.
Começou a atravessar a areia frouxa do rio, a boca semi-aberta, bufando
de cansaço. Agora estava bem perto. Era só subir o morro. E se o Qerardo não
estivesse lá, como se arranjaria? Fez pala sobre a vista e espremeu os olhos. A
janela do oitão estava aberta. Os pés escaldavam na areia quente. A boca
pregava de seca. Tornou a olhar para trás, virando-se para todos os lados, o
coração acelerado.
Iniciou a subida do morro. As pernas emperradas, o esforço estampado
no rosto para levar o corpo para a frente. Abandonou a vereda, entrou no
mata-pasto. E foi quebrando gravetos. Não queria ser visto por ninguém. A
roupa de mescla estava rasgada em vários pontos, os joelhos de fora. Um
ferimento na mão. Uma tejubina entrançou nos seus pés e ele pinoteou de
susto. A cajazeira surgiu-lhe imponente, frondosa. Parou e virou-se outra vez. A
vista ia longe, alcançava o estirão de estrada, nenhum ser vivo em toda a
extensão. Olhou para o sol e calculou que já passava do meio-dia. A janela do
oitão escancarada. Ficou indeciso. E se o amigo recusasse socorrê-lo?
Com mistura de medo e vexame, passou por debaixo da cajazeira e se
dirigiu à porta da frente. Subiu o batente alto e com esforço gritou:
— Oi de casa!
Olhou em todas as direções. A casa do vaqueiro lá embaixo. A baixa de
bananeiras, ali atrás do açude. O curral do lado, o gado deitado, curtindo a
modorra do calor.
De gente, ninguém.
— Oi de casa!
— Quem é?!
Reconheceu a voz do amigo. O coração disparou. O que ele iria pensar,
como o receberia? E o que iria dizer dona Luíza?
— Sou eu, Qerardo!
A parte de cima da porta gemeu nas dobradiças e um rosto sonolento
apareceu.
— É você, Pereira?!... Vem chegando agora da Pitombeira?
— Deixe eu entrar, Qerardo, que eu tenho uma coisa pra lhe contar.
O amigo abriu a porta e olhou-o curioso, naquela roupa rasgada, o
sangue coagulado na mão. Pereira postou-se no meio da sala, olhando para os
cantos sem jeito.
— E a dona Luíza?
— Foi ontem pro Taimbé, pras Missões. Mas o que foi que houve, você
desse jeito?...
Pereira encarou o amigo, olhou depois para o fundo do corredor para a
rede armada ali na sala, a sela pendurada no armador.
— Você tá desocupado?
— Tou, sim. Mas o que é que há, homem?
Como se todas as suas emoções explodissem de repente. Pereira deixou-
se cair na rede, as mãos cobrindo o rosto, os dedos enfiados nos cabelos.
— Fiz uma desgraça, Qerardo. Fiz uma desgraceira hoje de manhã.
— O quê?
Qerardo puxou a cadeira de couro para perto. Lembrou-se e foi fechar a
porta. Sentou-se depois, curioso.
— Que é que você tá dizendo?
Pereira agora chorava, as mãos esfregando o rosto e os cabelos, num
gesto desesperado.
— Tou morrendo de sede, Qerardo.
— Mas me conta logo, rapaz. O que foi que você fez?
— Matei o seu Queiroz, na feira do Trapiá.
— Você ficou doido, Pereira!
O susto pôs Qerardo de pé, a cadeira tombou para o lado.
— Você tá brincando...
As mãos passeavam agora de leve pelos cabelos, a cabeça baixa, quase
encostando nos joelhos.
— Matei, sim. Foi tentação do diabo.
Qerardo petrificado, sem querer acreditar, os olhos abertos de espanto.
— E como tu veio parar aqui?
— Sei lá... Tomei um rumo doido. Vim bater aqui... Tou andando desde
oito da manhã.
— Ninguém te seguiu?
— Seguiu não. Acho que não... Tou morrendo de sede. Qerardo foi
buscar água e na volta trancou a janela do oitão.
— Me conta logo como foi.
Pereira bebia a água com sofreguidão, as mãos trêmulas segurando o
caneco. Pôs a vasilha no chão e limpou a boca com a manga do paletó.
— Tou desgraçado, Qerardo. O que vai ser da Carminha e dos meninos?
— Foi rixa, Pereira?
Sentia-se mais calmo. Sem aquela sede torturante, o desespero fugira, os
nervos acalmaram-se mais. Ficara o remorso, o medo das conseqüências.
— Ele me devia aquele dinheiro, como você sabe...
— Sei lá de nada! Que dinheiro?
— Uns bezerros que eu vendi pra ele, no ano passado. Nunca nem me
deu satisfação. Eu fui cobrar e ele achou ruim, que era homem direito, de
palavra, não carecia de ninguém atrás dele cobrando.
— E você matou ele?
— Ele primeiro me xingou. Fiquei no meu canto quieto. Todo mundo viu.
Aí ele xingou a Carminha e eu perdi a cabeça...
— Como foi que foi?
Pereira acariciava a mão ferida.
— Empurrei ele por riba duma saca de farinha. Partiu pra cima deu e eu
aparei o golpe aqui na mão. Olhe aí como tá. Tomei a faca dele. O Zé da
Mundoca e o Mamede quiseram apartar, mas aí foi tarde...
Com o indicador da mão sadia escorreu o suor da testa.
— Dei lá nele só uma...
— no coração?
— Acho que foi. Ele caiu estrebuchando e eu escapuli... não vi ninguém
correr atrás de mim. Ficaram só olhando eu fugir.
Pereira ofegava. A cabeça caída, sem jeito. Os olhos pregados no chão. A
mão sadia protegendo a outra. Qerardo para lá e para cá, dando com a mão
direita socos na esquerda.
— E agora, Pereira, que é que você vai fazer? Respondeu sem
desmanchar a posição:
— Sei não. Até pensar eu nem posso... Tou assim numa leseira... Qerardo
voltou ao passeio curto. Parou de repente:
— Vou falar com o doutor Soares. Aqui é que você não pode.
Pereira só fez levantar a vista, o pensamento distante.
— Pois é, vou agorinha no Trapiá. Você fica aqui trancado.
— E a Carminha?
— não digo nada pra tua mulher. Vou dar uma espiada, ver o movimento
como quem não quer nada. Explico pro doutor Soares.
— Será que ele dá um jeito?
As mãos espalmaram-se, os braços estenderam-se.
— Tem que dar. Você não é eleitor dele? Pois Tem que dar um jeito...
Dou uma espiada na casa do finado Queiroz, pra ver a coisa por lá.
Tirou a sela do armador e dirigiu-se à porta.
— Acho melhor, Pereira, cê ir lá pra dentro. Vou deixar a casa trancada.
Se o vaqueiro Barbosa bater, fique firme. De noite, tou de volta, na despensa
tem comida.
— Vá com Deus, Qerardo.
Ouviu o barulho da chave dando volta na fechadura. Depois, os passos do
amigo no oitão, selando o animal. E o trote por debaixo da cajazeira, descendo
o morro. Só então se sentiu isolado do mundo, dentro daquele casarão de
cumeeira alta, os morcegos pregados nas vigas. Atravessou o corredor. A mesa
da sala de jantar, onde jogara tantas vezes o trinta-e-um, a Carminha ali no
canto fuxicando com dona Luíza, Qerardo na cabeceira, o vaqueiro Barbosa
dando notícias das bicheiras do gado.
Foi à cozinha. As panelas penduradas, o pilão estendido no chão, o pote
de aparar água no canto, um pano amarrado na boca.
Um porco grunhiu por detrás da casa. Assustou-se. Lembrou-se de seu
Queiroz, a faca entrando macia no peito, caindo de borco com todo o corpo.
Aquilo teria mesmo acontecido? Parecia coisa passada há muitos anos. Olhou a
mão ferida, a brecha de quatro dedos de comprimento. Não sentia nenhuma
dor. Era como se o raspão não existisse. Faca danada de amolada. Bastou
encostar, entrou fácil como num queijo. Seu Queiroz só teve tempo de cair de
frente.
Pereira escorregou o corpo e sentou-se no pilão. O alguidar de torrar
café ali perto, tostado, o preto brilhando. Torradeira de café como a Carminha
não existia.
Vinha gente de longe. Até dona Francisca, mulher do seu Queiroz.
Coitada, levava surra do marido sem motivo. Seu Queiroz quando cismava... Ele
foi quem viera propor o negócio dos bezerros. Mais de um ano sem dar
satisfação, encontrando-se toda semana com ele na feira. Sempre sorrindo,
batendo no chapéu, mas sem falar no dinheiro.
Nunca cobrara um vintém de ninguém, não tinha jeito. Mas a precisão
obrigou, seis bezerros custavam muito dinheiro. Zangara-se sem motivo. Agora
estava morto, estirado na sala, os pés juntos, a família toda chorando, o velório
enchendo a sala, a porta da rua, o nome dele, Pereira, em todas as bocas. E a
polícia? Delegado Rafael doido atrás dele, não tinha dúvida. Homem besta, seu
Rafael. Só porque representava a Justiça, queria pisar em todo o mundo. O
único que não se vergava era doutor
Soares. Também doutor Soares era doutor Soares, homem de prestígio,
de cama e mesa com o governo. Mandou mais de uma vez delegado Rafael
enxergar o seu lugar. E seu Rafael não abria o bico. Mas descarregava o ódio
nos eleitores de doutor Soares. Se caísse nas mãos dele...
Pereira sentiu pontadas no estômago. Agora a fome chegava, não teve
forças, porém, para se levantar do pilão. Continuou arriado, o pensamento
voando. Olhou para as telhas pretas de fumaça e comparou-as com as de sua
cozinha. Precisavam de uma caiada, não adiantava pensar nisso, necessitava
era sair daquela situação. A Carminha devia andar numa aflição medonha,
socorrendo-se de Deus e do mundo. E os meninos? Deixara o Zequinha no
mercado, perdido no meio do povo. Se fosse preso, seria levado para Coité,
como o compadre Belarmino. A mulher e os filhos por aí ao deus-dará... Mas
Belarmino não era eleitor de doutor Soares, de dona Bonina, aos gritos,
implorando: — Doutor Soares, proteja o Belarmino.
— não ajudo gente da oposição.
Com ele, Pereira, não aconteceria assim, era eleitor fiel de doutor Soares,
fazia tudo o que ele mandava. Roubara aquela urna debaixo duma chuva
danada, doutor Soares tinha de auxiliá-lo agora. Trabalhão perigoso arrancar a
urna ainda com o povo votando, um pano cobrindo o rosto, só os olhos de fora,
Pedro Rocha e Chico Neves fazendo a cobertura. Doutor Soares mandaria o
delegado Rafael cantar noutra freguesia. Era só querer. Homem bom o doutor
Soares.
— Rafael, deixe minha gente em paz. Andei ouvindo umas histórias. É
bom ficar no seu canto, Rafael.
Como se apresentaria na Pitombeira, no Trapiá, no Taimbé, no Coité?
Dona Francisca, arrodeada de meninos, sem o marido para o sustento. Como se
arranjaria? Homem moço, forte, até simpático, seu Queiroz. Mas não estava
direito aquela mania de dever a todo o mundo e ficar pautando os dentes. Bem
que seu
Guilherme do mercado avisara:
— Cuidado com Queiroz, Pereira. Abra o olho. Tudo acabara naquela
desgraceira. Nunca fizera mal a uma mosca e era agora criminoso. Bastara uma
facada, mais para se defender do que para atacar, para liquidar com a vida de
um cristão no mínimo teria de escapulir. Doutor Soares resolvia os seus casos
assim. Só voltaria quando a coisa esfriasse. Felizmente, Carminha tinha o seu
povo, os meninos não ficariam de todo abandonados. Para onde iria? Doutor
Soares tinha os lugares todos na cabeça:
— Zé Henrique, esconda o Malaquias no "Brejo da Ema". Zé Henrique,
leve o Vicente para a Serra do Machado.
Longe de casa, longe dos seus uma eternidade, o roçado abandonado, a
criação na mão dos outros, a mulher e os filhos na casa dos parentes. A
saudade aumentando e sem poder voltar. E se Zé Henrique o levasse para
"Canta Galo"? No fim do mundo "Canta Galo", depois da Serra do Machado,
naquele mundo de meu Deus. Todos falavam mal de "Canta Galo". Diziam que
mal o cabra chega lá vai logo apanhando maleita. O Luiz Rosa esteve lá curtindo
o seu desterro e voltou na espinha, coberto de doenças, amarelo que nem
açafroa. A Serra do Machado era outra coisa. Só tinham palavras de elogio para
a Serra do Machado. Dava de um tudo, podia até mesmo levar a família, se
doutor Soares consentisse, Quem sabe a desgraça acontecera para o seu bem?
Bastariam vinte braças de terra na serra para dar fartura e grandeza. Quando
voltasse ao Trapiá, ao Taimbé, ao Coité, a Pitombeira, depois de alguns tempos,
deixaria todos de queixo caído. No cavalo bom, no chapéu de massa.
— Vocês já viram o Pereira? Aquele que matou o seu Queiroz? Chegou
ontem. Está rico.
O povo nas janelas, curioso, e ele, Pereira, para cima e para baixo no
cavalo, sem falar com todo o mundo. O negro Clemente quando voltou da
Serra do Machado até a viúva do falecido riu para ele. Deu um banho de
cerveja no cavalo, diante do Cruzeiro, para quem quisesse ver. Diria ao doutor
Soares:
— Doutor Soares, me mande pra aquele lugar que o senhor conhece, lá
na Serra do Machado.
Pereira foi caindo numa modorra leve, os pensamentos se esfumando,
seu Queiroz rindo na frente dele, que não pagaria os bezerros, mostrando a
faca. Pereira procurara avançar, cheio de ódio. Pregado no chão, não dava um
passo. Seu Queiroz às gargalhadas, a faca tirando sujo das unhas. Depois
esquartejou um bezerro na frente dele, sempre rindo, sacudindo os pedaços
para cima. Ali pregado, só fazia ver. Queria gritar, dizer umas verdades a seu
Queiroz. A língua presa, enchendo a boca. Seu Queiroz na zombaria, fazendo
graça diante dele. Então se aproximou um sujeito num cavalo bonito. Pereira
ficou vendo ele, Pereira, descer do animal, chapéu de massa, rebenque na
mão, acabando com a alegria de seu Queiroz:
— Vim da Serra do Machado. Me pague já os bezerros.
Seu Queiroz empalideceu, soltou a faca, meteu a mão trêmula no bolso e
puxou o bolo de notas.
— Me perdoe, seu Pereira.
Dona Francisca se aproximou, abraçou-se com ele e estendeu a língua
para o marido. Seu Queiroz saiu de cabeça baixa. Pereira ficou batendo as
botas, tinindo as esporas, exibindo sua grandeza à dona Francisca.
Acordou num estremeção e não viu nada. Escuridão completa. Conversa
e arrastar de esporas na sala. O coração acelerou. Seria o delegado Rafael?
Reconheceu a voz de Qerardo:
— Pereira! Ô Pereira! Onde você tá?!
Teve medo de responder. Se seu Rafael estivesse ali, estaria perdido.
— Pereira!
Uma claridade de candeeiro se aproximou da cozinha. A outra voz não
lhe era estranha. Mas não era o delegado Rafael. Conhecia a fala do delegado
de longe. Voz fanhosa, arrastada.
— Vim mais o Mamede, Pereira! O homem está vivo!
O coração agora quase pára. Seu Queiroz vivo? E a faca entrando macia,
ele caindo de crista? Levantou-se sentindo tontura. Dor em todas as juntas.
A brecha da mão latejava.
— Tou aqui na cozinha, Qerardo!
O candeeiro iluminou tudo e Pereira viu os dois rindo na sua frente.
— O homem está vivo, Pereira. Tava lá conversando e andando.
Abobalhado, olhava para os dois. Mamede abriu a boca:
— Tamos falando de vera, Pereira. Ele caiu de frouxo. Foi pra casa
andando.
Não sabia o que falar. Mamede informava:
— O doutor Soares soube de tudo. Deu um prazo pra ele pagar os
bezerros.
Sentiu uma coisa esquisita. Frio na espinha.
— Vou tomar água, Qerardo... Saiu pelo corredor. Os dois foram atrás,
clareando. Parou ao lado do pote, ficou indeciso.
— Tá sentindo alguma coisa, Pereira?
— Tava pensando na Serra do Machado. Lá é bom demais, né?
— O quê? Não respondeu. Abaixou-se para apanhar o caneco d'água.
COME GATO

Na ponta da calçada, encolhido, apanhando sol. A meninada fazendo


roda.
— Come Gato!
Despistava. Fazia que não ligava. Armava jeito de assoviar, olhando para
o lado.
— Come Gato!
O cerco apertava, pela frente e por detrás. Zezinho da Mundica
comandava o bando.
Teve vontade de se levantar e rumar para o mercado, perder-se no meio
do povo. Lá estaria seguro. A distância era grande. A molecada faria cordão
atrás, soltando insulto. Viciam as cascas de banana.
Ali encolhido estava melhor, longe das risadas do povo nas janelas, dos
que passavam.
— Come Gato!
A casca de manga bateu-lhe no ombro e ficou. A pagodeira foi grande.
Zezinho da Mundica encolhia-se de tanto rir.
— Virou capitão, Come Gato?
Não se mexeu para tirar o galão. Continuou embiocado, mãos presas
entre as coxas, dando jeito de friorento. A raiva por dentro aumentando. Se
pegasse um deles pelo cangote... Na hora não faria nada, como das outras
vezes. A mão suspensa, pronta para desferir a pancada, ficava no gesto,
trêmula, raiva contida. No dia em que agarrara o Zezinho da Mundica de
surpresa, quando ele vinha assoviando, as compras nas mãos, estava certo que
lavaria o peito. Mas fez foi afrouxar os dedos e rir para o moleque. O
arrependimento não foi deste mundo, quando Zezinho dobrou a esquina e
disparou:
— Come Gato!
O círculo agora estava bem fechado, menino por todo lado. A bosta seca
de vaca atingiu-lhe os peitos e ele desmanchou a posição, se limpando, a
meninada se espalhou silenciosa, com medo do bote. Alguns corriam de costas
para preparar o insulto de mais longe.
Resolveu enfrentar a distância para o mercado. Levantou-se. A meninada
arredou toda para trás, afastada, formando cortejo. Mal deu os primeiros
passos, a gandaia cantou solta, forte, as cascas de frutas voando. Só olhava
para o chão. Sabia que o mulherio estava rindo nas janelas, os homens se
divertindo nas calçadas.
— Come gato!
Quando avistou o mercado, sentiu-se mais aliviado. No meio da feira
estaria seguro.
Sentou-se na beira da calçada alta.
— Boa-tarde, Coronel.
— Boa-tarde, Olavo.
Os dois meninos que vinham soltando o insulto resolveram voltar.
Coronel Leocadio imprimia respeito. Sentado na espreguiçadeira tomando a
fresca, braços por cima do espaldar, blusa de pijama.
— Não ligue para isso não, Olavo. Brincadeira de menino.
— Me importo o quê, Coronel...
O único que não o tratava pelo apelido. Gostava de ouvir o Coronel
pronunciar o seu nome. Sentia-se outro.
— Já comeu hoje, Olavo?
— Tiquim, Coronel...
— Vá à cozinha e fale com a Guilhermina.
Já esperava a ordem. Bastava se aproximar da calçada alta e dar boa-
tarde. Mas tinha vergonha de aparecer todos os dias. Vinha até com raridade.
Medo de desgostar Coronel Leocadio com sua presença.
Muitas vezes voltara da esquina, esmorecido vendo o Coronel cercado de
amigos, no bate-papo, soltando risada grossa.
— Com sua licença, Coronel...
E foi corredor adentro, andando meio de lado, devagar, temendo tocar
nos móveis. Parou na sala de jantar e aguardou outra autorização, balançando
a cabeça, sorriso amarelo, submisso.
— Boa-tarde, dona Matilde. Seu Leocádio deu ordem pr'eu entrar...
— Fale com a Guilhermina.
A criada descobriu-o primeiro, na entrada da copa:
— Como vai, Come Gato?
— Boa-tarde, dona Guilhermina.
Não tinha queixa dos modos da negra. Guilhermina dava-lhe comida a
fartar.
— Sente-se ali perto do fogão, seu Come Gato.
— Tá direito...
Ficou observando os movimentos da negra, ali mexendo nas panelas.
— Você hoje tá mais sujo, seu Come Gato. Chega fede. Procurou se
encolher, sentia-se envergonhado.
— Falta d'água adonde moro, dona Guilhermina...
— O rio tão perto...
Só fez abrir o sorriso torto. Depois ficou de olhos compridos, vendo a
comida crescer no prato, as mãos sumidas entre as pernas juntas.
Coronel Leocádio, vermelho que nem malagueta, deu um murro na mesa
e se afastou. Voltou de braços abertos, bufando:
— Estou ou não no meu direito?
As cabeças concordavam, silenciosas, algumas bebendo café. Coronel
Leocádio corria a vista, conferindo a solidariedade.
— Ele pode ser rei nas "Contendas". No meu terreiro eu canto. Velho
Cirilo era o único que tentava argumentar, mexendo-se na cadeira:
— Mas, Coronel, o Trapiá agora é município, eleitorado independente...
Seu Aguiar...
— O Aguiar me traiu, Cirilo. Ou duvida?
— Duvido não, Coronel. Mas não é isso...
— É isso, Cirilo! O cachorro não brinca comigo! Faço com ele como fiz
com o Chico Tadeu, no trinta e quatro. O Elísio me contou que ele almoçou nas
"Contendas".
As cabeças agora concordavam paradas. Coronel Leocádio passeando,
blusa do pijama aberta, cabelos do peito aparecendo.
Seu Oseas, do Coité, só fazia estalar os dedos. A perna de delegado
Rafael balançava a bota, que ia até à ponta do rebenque e voltava, em
solidariedade ao Coronel, lamentar a atitude de seu Aguiar Ferreira, que se
bandeara para o lado de Coronel Aparício, senhor das "Contendas", agora que
o Trapiá se tornara município.
— O melhor é esperar pra ver como fica, Coronel...
— O Aguiar já se afoitou demais, Cirilo! Ou está esmorecendo? Velho
Cirilo procurava explicar, sem jeito, sem encontrar palavras, quase pedindo
desculpa. Coronel Leocádio fazia que não ouvia, passeando, blusa mais aberta,
suado.
Do lado de fora, os cavalos amarrados, a molecada cercando admirada.
Um deles descobriu:
— Vigia ali o Come Gato! Vai no rumo do rio! Esqueceram os animais e
correram.
— Come Gato! Come Gato!
Sentado na calçada alta, Come Gato só esperava a ordem do Coronel
para entrar e ir falar com a negra Guilhermina. Foi quando chegou outra
visita...
— Boa-tarde, Coronel...
— Então, Pedro?...
— Seu Aguiar nem me recebeu, Coronel...
Coronel Leocádio quase derruba a espreguiçadeira. Ficou com muita
raiva. — Ele fez isso, Pedro?
— Foi sim, Coronel...
— Entre aqui. Vou mandar outro bilhete para o cachorro. O cabra seguiu
atrás, chapéu na mão, olhos nos retratos. Come Gato continuou sentado na
beira da calçada, agora vexado. Vinha lá de dentro a voz áspera de Coronel
Leocádio, achou melhor dar o fora e voltar noutro dia. Coronel Leocádio
andava diferente, pensamentos por longe. Mal lhe respondera o boa-tarde.
Metido nas suas cismas, cara fechada.
Olhou para as esquinas, temendo a meninada, Saiu de cabeça baixa. A
voz de Coronel Leocádio continuava lá dentro, forte.
Mal atingiu a esquina.
— Come Gato! Come Gato!
Apressou o passo, atravessando a praça da Matriz. A meninada
engrossando atrás.
Passava do meio-dia. Sol queimando. Olavo atravessava a praça da
Matriz, ia para casa — o quarto lá dos fundos da oficina de seu Tiago, perto da
ribanceira. Mexia a cabeça, intrigado. Pela primeira vez, nenhum menino atrás
puxando o insulto. Chegou a parar e se virar em todas as direções. Viu gente
correndo do outro lado, dobrando a esquina. Alguma coisa diferente estaria
acontecendo. Mulheres surgiam nas calçadas, fazendo pala com a mão por
causa do sol. Quis também saber o que se passava. Foi se afoitando, esquecido
da meninada. Descobriu logo que a romaria era na rua de Coronel Leocádio. O
coração acelerou. Ouvira dizer que o Coronel sofria de umas vertigens.
Continuou se aproximando pela calçada defronte. As mulheres das janelas e os
homens que passavam e faziam roda nem notavam a sua presença. Até os
meninos por ali espalhados estavam esquecidos da provocação. Um ainda
arriscou, sem entusiasmo:
— Come Gato!
Ninguém acompanhou, tinham a atenção voltada para a novidade.
Ficou parado bem em frente, encostado à parede, vendo o fuxico do
povo entrando e saindo da casa escancarada do Coronel, a conversaria na
calçada, no meio da rua.
Arriscou ao mais próximo:
— Que foi?
O homem olhou-o de cima a baixo, teve intenção de não dizer, mas
acabou dizendo:
— O Tacanha deu umas lapadas lá no Coronel.
— Quem?!
Perguntou mais por espanto. Conhecia de longe a fama do cabra
Tacanha, homem encarregado pelos malfeitos de Coronel Aparício, das
"Contendas".
— E o Coronel?...
— Tá lá dentro, nem se levanta...
Olavo continuou escorado e espiando o movimento. Delegado Rafael
chegou, metido nas suas botas. Seu Raimundo açougueiro animava a roda,
perto do poste. Resolveu ir se chegando para lá. Ficou ouvindo, quieto. Seu
Raimundo gesticulava:
— O delegado Rafael está se derretendo de medo. O cabra passou na
frente dele e ainda cumprimentou.
Foi de grupo em grupo. Escutando de perto, de mais loiro se chegando,
se afastando. Ficou sabendo que a surra fora feia. Tacanha entrara sem licença,
rebenque na mão. Fizera o serviço na sala de jantar, na frente de dona Matilde,
de negra Guilhermina. Depois passou no bar de seu Pereira, bebeu cerveja e
pagou para os presentes.
As mulheres entravam e voltavam com outras novidades. Coronel
Leocádio continuava na sua angústia, respirando difícil.
Viu quando velho Cirilo riscou o cavalo, afastando a meninada. Voltou a
se escorar na parede, observando a confusão de longe. Parecia dia de feira,
animação na rua toda.
— Come Gato!
Outra vez ninguém deu por isso.
Chegou nas "Contendas" com escuro. A caminhada fora grande. Quatro
léguas puxadas. Pulou a cancela e viu o vulto da casa-grande entre as
mangueiras. Fez volta por longe com medo de algum latido e foi sair muito
atrás do terreiro. Ainda andou um bom pedaço, atravessou um mandiocal. Por
detrás do jatobá descobriu a casa de taipa, o alpendre meio arriado, agüentado
por estacas de carnaúba. Não tomou chegada. Sentou-se fora da vereda e ficou
esperando dia clarear. Animais espalhados por perto, pastando, outros
deitados. Ajeitou-se e abraçou os joelhos. Soprava a viração fraca do vento
Aracati. A madorna chegou, de leve, bambeando-lhe a cabeça.
Acordou com uma cabra fossando nos seus pés. Amanhece de todo. A
banda de cima da porta estava aberta e a fumaça subia de detrás da casa. Viu a
mulher aparecer no terreiro e jogar fora um alguidar de água. Depois foi o
homem que veio com um caneco e ficou lavando o rosto, curvado, pernas
abertas. A mulher tornou a voltar, agora com um pote na cabeça, e sumiu-se
por detrás do canto de cerca.
Olavo levantou-se e foi se chegando. Parou na entrada do alpendre.
— Oi de casa!
O homem botou a cabeça, ainda pingando.
— Trago notícia pra vosmecê, seu Tacanha... Cabra Tacanha aproximou-
se ajeitando as calças, abotoando a braguilha, com modos indecentes.
— Que é?
— Vosmecê acho que me conhece. Eu é o Olavo, lá do Taimbé. Mas tem
quem me chame de Come Gato.
— Já ouvi falar. O que é?
Olavo se distraía tirando sujo das unhas, mal feito de corpo, sorriso
murcho.
— Mas seu Tacanha, o que vosmecê fez acha que tá direito? O cabra
franzia a testa, cara fechada.
— Não tá direito o quê? Continuava interessado nas unhas.
— A surra, seu Tacanha. Pra que mode vosmecê fez isso? Coronel
Leocádio é pessoa de tanto agrado...
O cabra fechava mais a cara, curioso, olhando se tinha mais gente por
perto.
— Veio pra me dizer isso? Quer um ensino, porqueira?
— Vosmecê fez besteira, seu Tacanha. Faltou com o respeito... O cabra
perdia a calma, ia para cima. Aí a posição se
desmanchou, o sorriso desapareceu, os olhinhos fuzilaram.
— Vá rezando, seu Tacanha, queu vou lhe despachar...
O cabra ainda quis alcançar o relho, ali no armador. A lâmina brilhou
rápida na sua frente.
— Dê sua alma a Deus, seu Tacanha. Pense em Mosso Senhor. Foi tão
rápido que o cabra só teve tempo de apertar as mãos no vazio, careta feia
espalhada na cara.
— Vá rezando o "Ofício de Nossa Senhora", seu Tacanha. Se arrependa
do malfeito.
Agora foi pelas costas, perto do espinhaço, entrando como em queijo. O
cabra caiu de crista mole e ficou ciscando, querendo balbuciar, esticando a
canela.
— Vosmecê fez besteira, seu Tacanha. Em Coronel Leocádio ninguém
encosta a mão.
Limpou a faca na roupa da vítima, já quieta, olhos vidrados para baixo, e
guardou-a na bainha escondida na cintura, por dentro da blusa. Saiu depois no
passo bambo, entrou no mandiocal e foi fazendo curva, evitando a casa-
grande.
A notícia veio do Trapiá, antes do meio-dia. Espalhou-se num átimo por
todo o Taimbé. As mulheres botavam a cabeça nas janelas. As mais afoitas iam
fuxicar nas casas dos vizinhos. Os homens faziam roda perto dos postes, no sol
quente, nas esquinas, no bar do seu Pereira, onde a animação era grande, na
rua de Coronel Leocádio o movimento era de festa. Cavalos parados à porta,
escoiceando para espantar as moscas, gente entrando e saindo, meninos
espantados entrançando por ali.
O Coronel, na sala, abraçava os amigos, peito lavado:
— Já vi que tenho amigos nas "Contendas". Me disseram que o cabra
morreu na porta de casa.
Não tardou chegar o delegado Rafael nas suas botas altas.
— Quem terá sido, Rafael?
Não tenho notícia, Coronel. Mas o senhor tem seus amigos por todo
lado. Eu sabia que o cabra não ia ficar contando a história. Já tinha tomado as
minhas providências.
Coronel Leocádio arriscou uma ponta de preocupação:
— E o velho Aparício?
— Se mexe não, Coronel. Se bole o quê! Sentiu a pancada. Vai continuar
no seu canto, murcho. Seu Aguiar a esta hora deve andar arrependido da
brincadeira.
Chegavam correligionários. O velho Cirilo foi o primeiro dos de longe.
Depois, seu Oseas, do Coité, seu Belarmino, irmão de padre Zefé, velho Camilo
da fazenda "Queimada", doutor Soares.
E muitos outros, vindos do Trapiá, da Pitombeira, do Coité.
Na rua, a novidade adquiria detalhes, o cabra ficara mais furado que
paliteiro. Seu Raimundo açougueiro vendia o seu peixe:
— Furaram até o branco dos olhos. Diz que o velho Aparício cercou a
casa-grande e ficou lá dentro se cagando de medo.
Um menino que vinha pela calçada defronte descobriu e tentou insuflar:
— Come Gato!
Ninguém acompanhou. Só davam ouvidos à novidade.
Olavo via o movimento de defronte, perto do poste. O povo entrava e
saía, a mulherada nas janelas, por fora, batendo boca com as do lado de
dentro, faziam roda no meio da rua, misturadas com os homens.
Olavo foi se afastando no rumo da esquina, pelo canto da parede, passo
bambo.
— Come Gato!
Outra vez não surtiu efeito.
Era de tarde e Olavo vinha do lado do mercado, por debaixo dos pés de
oitissica, uns poucos moleques atrás:
— Come Gato!
As poucas pessoas que passavam e as que estavam por ali paradas não
davam atenção. Nem mesmo o povo sentado nas calçadas para a fresca.
Muitos dos meninos, àquela hora, não tomavam parte do cortejo. Ficavam nas
suas portas, roupa mudada, penteados, e se divertiam com leves gritos de
longe. Só os mais sujos não abandonavam a perseguição:
— Come Gato!
Passou em frente ao bar de seu Pereira, pela coxia, e fez o cumprimento.
Os que estavam lá responderam. Um ainda arriscou:
— Coitado do Come Gato. A molecada não larga ele... Atravessou a praça
da Matriz, pelo meio, e alguns meninos desertaram. Só dois ainda persistiam:
— Come Gato! Come Gato!
Da esquina, avistou Coronel Leocádio na espreguiçadeira, braços para
cima, blusa de pijama, gozando a fresca. Foi se chegando, cabeça baixa. Os dois
meninos ficaram na esquina, espiando, sem coragem de continuarem no
insulto.
Olavo arriou-se na beira da calçada e fez a saudação:
— Boa-tarde, Coronel...
— Boa-tarde, Olavo.
Ficou ali meio de costas, encolhido, cabeça baixa, coçando as canelas.
— E a meninada, Olavo?
— Importo não, Coronel...
Apanhou do chão um graveto e ficou inventando distração.
— Já comeu hoje, Olavo? — Tiquim, Coronel...
— Vá falar com a Guilhermina. Largou o graveto e não demorou:
— Com sua licença, Coronel...
Foi corredor adentro, meio de lado, com jeito, para não tocar em nada.
MATA-PASTO
para Carlos Pontes

O capinzal tomava conta de tudo. Espalhava-se por todo o oitão. Mata-


pasto cerrado, dando nos joelhos de um homem. Arrancasse, cresceria de
novo. Viçoso o inverno todo.
— Dá uma capinada no oitão, Chico!
A enxada trabalhava o dia todo, subindo e descendo, acumulando o
mato morto em montes.
— Alguma cobra, Chico?
— Duas, Coronel. Uma cascavel e uma coral.
A meninada formava círculo em torno, curiosa. Os lombos reluzentes de
malacacheta brilhando ao sol.
No outro dia a babugem já dava sinal de vida, pintando de verde a área
capinada. Tomava corpo. Espalhava-se.
— Não tem jeito. Não adianta. É deixar crescer...
— Não tem jeito mesmo, Coronel.
— Este inverno deixo ele crescer. Quero ver até onde vai o mato.
— Faz bem, Coronel.
O mato subindo, subindo. Cada dia mais viçoso, escondendo o batente,
dando abrigo aos calangos e à molecada do esconde-esconde.
— Aí tem cobra, Zeca! Aí tem cobra, Jucá! — Tem não, Vó!
— Mando cortar não. Já disse. No verão ele seca. Quero saber até onde
esse mato sobe.
— Um perigo, Henrique. Vai encher de cobra. Olha as crianças.
— Cobrinhas. A velha Clotilde escondeu o seu resmungo. Não voltou ao
assunto nem abriu mais a janela. Mas à noite soltava o seu pigarro de protesto
quando ouvia o arranhar do galhinho na madeira.
Algumas semanas depois, a mataria já alcançava os peitos. Parecia
capinzal de baixa: bonito, entremeado de carrapichos, a babugem alta sufocada
pela canarana.
— Qualquer dia entra de casa adentro, Henrique!
— Nada. No verão seca. — As crianças...
— Deixa a meninada brincar.
A molecada o dia todo no esconde-esconde, no mãos-para-o-ar.
Alimentava a idéia há muito tempo. Horas seguidas de olhos no casarão
de cumeeira alta, oitão branco que se avistava de longe.
— Olha o serviço, Chico! Cismando?
— Tava matutando...
Voltava à enxada, olhos no chão, pensamentos na casa-grande. Como
quem nada queria, vez por outra levantava a vista. Lá estava o oitão branco, o
mata-pasto esbarrando nele. O projeto tomava vulto, delineava-se: esconder-
se-ia no capinzal e na primeira oportunidade entraria pela porta do oitão. Atrás
da farinhada ninguém o encontraria. Noite alta, o povo ressonando, faria o
serviço. O quarto da velha não tinha tranca, o baú não tinha chave. Bem que
dissera ao Coronel que não adiantava cortar o capinzal. Ia ser de grande
serventia. Podia alcançar a porta do oitão sem ser notado. O mato ia até o
batente.
Era fazer o serviço logo, antes que o Coronel mudasse de idéia e deitasse
abaixo a mataria.
— Cismando de novo, Chico?! Olha a moleza!
— Tava matutando...
— Acaba com a leseira, homem! Tira a mão do bolso do Coronel!
Chico chegou nesse dia contando potoca à mulher:
— Vou viajar hoje. Vou no Trapiá.
— Fazer o quê, Chico?
— Ver minha tia. Sonhei que ela está mais pra lá do que pra cá... Tou
com a impressão o dia todo no coco. De madrugadinha tou de volta.
— Deixa pro domingo, homem.
— Vou hoje. Ela pode morrer.
— É cisma, Chico.
— Tem uma coisa me avisando... — Mas Chico...
— Bota a janta calada. Eu vou, já disse. A lua tá bonita: é um pé lá, outro
aqui...
Não disse mais nada. No prato de feijão, as moedas brilhavam como no
dia em que viu a velha arrumando o baú. Muitas moedas na lata grande de
biscoitos. Seria fácil.
Enterraria a lata alguns dias para ninguém desconfiar.
— Quede o facão?
— Taí debaixo do banco.
— Vou levar ele.
Não encarou a mulher. Prendeu o facão no cós, limpou a boca na manga
da camisa e disse até logo. Brinco quis acompanhá-lo.
— Desafasta. Chama ele, Joana.
— Tu sempre não anda com ele?
— Hoje vou só. Chama ele daqui.
— Vem, Brinco! Passa pra cá!
O cachorro aninhou-se entre as pernas de Joana e ficou de olhos
compridos no dono, que se perdia na vereda.
Entrou no mata-pasto e foi abrindo caminho, curvado para a frente para
a cabeça não ficar de fora, o chapéu embolado no bolso do fundo. Aproximou-
se do oitão branco.
A claridade da lua deixava ver até as rachaduras da parede. A janela do
quarto da velha estava fechada. A porta, aberta somente a parte de cima.
Chegavam-lhe aos ouvidos pedaços de conversas, gargalhada de criança.
— Bota o pote no sereno, Lourdes! Vai chover de noite!
Viu quando a criada saiu pela porta dos fundos arrastando o pote. O
mata-pasto espinhava-lhe os pés. As muriçocas martirizavam-no. Subiu a gola
da camisa, agasalhou-se melhor. De onde estava via perfeitamente a porta do
oitão, ali a poucos metros. Ouviu o pigarrear do Coronel e sua voz grossa
repreendendo alguém na sala de jantar.
"Quando ele vier lavar os pés no batente e deixar a porta aberta,
aproveito..."
Dez anos naquela vida. Plantando de meia. Trabalhando feito burro sem
mãe. Aquele dinheiro iria auxiliá-lo muito. Já escolhera o local para enterrá-lo.
Ali ao pé da oiticica. Depois de uns dias...
— Pra rede, meninada! Vamos! Tua avó já foi se deitar!... Resolveu
aguardar sentado que chegasse a hora. Acamou o mato e acomodou-se como
pôde, sentado sobre as pernas. Sentiu o espinho no dedão do pé direito.
Passou a mão sobre o local atingido e aproximou os dedos bem perto dos
olhos. Viu sangue. Levantou-se e olhou em torno. A penumbra impedia-o de
ver o chão. Sentiu o pé meio dormente. "Deve ser a frieza". Afastou-se um
pouco para o lado. Ajeitou-se da melhor maneira e voltou a se sentar. Uma
moleza começou a tomar conta de seu corpo, espécie de vertigem. Levantou-se
para espantar a morrinha.
As pernas bambas, o pé doendo, pasta na vista. Passou a mão na testa
para limpar o suor e procurou se acalmar. "Nunca senti isto..." A dor subiu para
a perna. "Acho que a janta me fez mal..." Tornou a sentar-se no chão brejado.
Coronel Henrique escancarou a porta e aproximou-se do batente com
uma bacia de água. Começou a lavar os pés.
"É agora". Tentou levantar-se e caiu. Tontura e zumbido nos ouvidos. A
perna dormente. Apalpou o pé. Inchado, insensível. "Parece que foi cobra..."
Quis levantar-se outra vez. Não pôde. Tentou gritar, chamar Coronel Henrique,
ali pertinho lavando os pés, um esfregando o outro. A língua pesava. Começou
então a se arrastar, a pasta aumentando na vista. Coronel Henrique dançava no
remoinho, aproximava-se e afastava-se com a bacia de água. Uma dor de
cabeça violenta chegou de repente, querendo partir os ossos. O Coronel ali a
poucos metros, a muitos metros, bem perto, muito distante...
Coronel Henrique calçou as alpargatas, deitou a água fora e foi guardar a
bacia, deixando a porta escancarada. Depois voltou e trancou-a.
— Acho que a Clotilde tem razão. Vou mandar o Chico amanhã cortar
esse mato. A muriçoca está demais...
Quem primeiro viu foi o Jucá. Deu o alarma, espavorido. A meninada
correu. Coronel Henrique correu. A velha Clotilde abriu a janela.
— É Chico. Saiam de perto.
Chegou vaqueiro Eduardo. Chegou criada Lourdes. Zé Caraolho pulou do
burro e se aproximou, olhar de exclamação, estrabismo acentuado:
— Arreda, meninada!
Rostos petrificados, braços inativos.
— Acho que foi mordido, Coronel. Vigia o pé dele... -Será, Zé?...
— Parece...
— Levem ele daqui. Vamos! Ajuda, Hermínio! Ajuda, Caraolho! Tragam
pro alpendre. Arreda, molecada!
Conduziram o corpo para fora do mata-pasto. Jucá tentava explicar:
— Eu tava brincando de esconde-esconde, Vovô...
— Não quero saber de nada! Quem eu pegar nesse mato, apanha! Vou
mandar botar isso abaixo...
Velha Clotilde sentenciou da janela:
— Eu não dizia, Henrique? Você é maluvido...
Estiraram o corpo de Chico nos tijolos do alpendre. Um mundo de
curiosos olhava e fazia perguntas. Joana chegou e caiu sobre o marido aos
gritos. Zé Caraolho abria a roda com os braços, protegendo o morto, vista
enviesada para o lado. Coronel Henrique, impassível, olhava o corpo estirado, o
pé roxo. Com a mão trêmula cofiava o bigode. Sentenciou baixinho, intrigado:
— Que diabo foi fazer ali o Chico?...
Jucá via a cena de longe, espantado, dedo na boca.
O lençol era curto. Os pés sobrando. Um fino e outro grosso inchado. A
velha Lindaura vigiava as velas, caixa-de-fósforos na mão. As visitas por ali nos
tamboretes, nas caixas de querosene, encostadas à parede. Gente no corredor,
mulheres consolando dona Joana, na cozinha, que se acabava nos soluços.
Brinco sem saber o que fazer, abrindo vereda na floresta de pernas.
Aproximava da mesa, empinava as orelhas e levantava a vista, adivinhando
quem estava ali em cima. Saía para o terreiro, latia sem vontade para os que
chegavam. Voltava, aninhava-se entre as pernas da dona Joana.
Zé Caraolho, no parapeito da janela, contava para fora as vantagem de
curado de cobra:
— Só dou uma cusparada. O cabra se levantava achando graça.
Debaixo da ingazeira, a turma acocorada, no bate-papo e cachaça,
gozando o feriado do velório. Belarmino riscava o chão com um garrancho,
contava casos de picadas violentas:
— O filho do velho Melquíades se estrepou todo. Morreu com todo o
corpo.
De vez em quando a angústia de dona Joana aumentava. O choro ia
longe.
A criada Lourdes chegou pela porta dos fundos, a lata debaixo do braço.
Foi abrindo brecha e se aproximou de dona Joana, desajeitada de corpo, sem
saber como começar.
Ficou alguns segundos com a lata estendida na direção da cabeça baixa.
— Dona Joana... Dona Joana...
Preocupada com sua angústia, dona Joana não ouvia nada. Soluçava com
o pano nos olhos. As mulheres desviaram para lata sua curiosidade.
— Dona Joana... Dona Joana...
Lourdes cansou o braço e resolveu se desincumbir logo de sua obrigação.
Abriu a lata e amparou-a no colo de dona Joana.
Tirou o pano do rosto e olhou para o peso que sustinha no colo. entre as
lágrimas viu as moedas brilhando na lata de biscoitos.
— Foi a dona Clotilde que mandou. Disse que tinha aí trezentos mil rés.
Uma ajuda pra senhora...
MACAMBIRA
para Juarez Barroso Ferreira

Sentou-se no banco, encostado à parede, no alpendre de fora, o olhar


perdido no poente ensangüentado com a aproximação da noite. O velho
Aracati campeava solto, levantando nuvens de pó, trazendo ciscos para os
olhos. O cavalo Cardão cochilava perto da cerca da vazante. O peru subiu o
batente, ficou por ali estufando, quis entrar pela porta aberta.
— Chô!
O peru recolheu as penas e disparou de volta, tropeçando no batente,
zonzo, saiu na direção do oitão. Velho Firmo ficou com os seus pensamentos.
Estirou as pernas, estalando as juntas. Os olhos presos no céu sem sinal de
inverno. O Aracati trazendo a sua viração agradável, levando as esperanças de
chuva.
Identificou o vulto que ia lá na estrada, levantando pó das alpargatas,
cumprimentando de longe.
— É o Berto?!
O homem se aproximou, chapéu enterrado, saco nas costas. Saudou de
novo na entrada do alpendre:
— Adeus, seu Firmo.
— Boa-tarde, Berto. Vem do serviço?
O homem arriou o saco, escorou-se no parapeito, suspirando, tirou o
chapéu e ficou coçando a cabeça suada.
— Sim. Saí de lá com o sol queimando.
— Muita gente trabalhando?
— Uns trezentos.
— E o pagamento?
— Inda nada, seu Firmo. Tão falando que o Governo já deu dinheiro faz
uma porção de tempo...
O velho gritou para dentro pedindo café. Ofereceu a cadeira de couro.
Berto sentou-se e encostou o saco para perto. Deitou olhar de peixe morto no
chão, o chapéu embolado entre as pernas.
— Vou levando aí uma raçãozinha, seu Firmo. O armazém desconta
quarenta por cento... Diz que é de lei...
— Se a seca continua, hem, Berto?
— Bata na boca, seu Firmo. Esse ano tem de chover...
O velho olhava o céu de nuvens vermelhas. O Cardão agora cochilava por
perto.
— Não vejo sinal de chuva, Berto. Estou pensando em vender o restinho
do gado. A macambira está cara...
Chegou preta Raimunda com o café. Ficou esperando, escorada na
ombreira da porta, o bule na mão.
— Quer mais, seu Berto?
— Agradecido, dona Raimunda.
A negra entrou e os dois ficaram conversando até escurecer de todo. Na
despedida, Berto lembrou-se de perguntar:
— E a rapaziada?
— Notícia pouca.
— O senhor sozinho, hem, seu Firmo?
— É...
— Largue isto, seu Firmo. Vá pra junto dos seus meninos. Isto tá
acabado. Se ao menos a finada Amélia fosse viva...
Fez que não tinha ouvido. Levantou-se e foi até à porta do alpendre.
Ficou olhando para além da vastidão de seu mundo esquecido da visita.
— Vou indo, seu Firmo.
— Boa-noite, Berto.
Berto se foi no seu passo bambo, saco nas costas, chapéu enterrado,
nuvem de pó acompanhando o seu andar. Velho Firmo ainda ficou abandonado
nas suas cismas, olhar distante, vendo a noite descer. Depois entrou e foi
gritando pela lamparina.
Acordou e acendeu a lamparina para ver as horas. Depois abriu a janela e
olhou o tempo. A lua passeava no céu estrelado. O Aracati soprava frio. A
ingazeira gemia desfolhada. Viu o vulto do Cardão, deitado perto da porteira. O
galo cantou por detrás da casa. Para o outro lado da vazante, o grito do arrieiro
varava a noite, o chicote estalando.
Velho Firmo fechou a janela e voltou para a rede, pigarreando. Ficou
tomando embalo com o pé, sem sono, os armadores rangendo. Pensou na
pitada de rapé, mas não se moveu. Agora alguém passava na estrada,
conversando. Devia ser gente que ia para o serviço do Governo. Lembrou-se
das palavras de Berto. Fechar a porteira e ir para a companhia dos filhos no Sul.
Mandavam contar grandezas. A última carta do Pedrinho só falava em dinheiro
grosso. O Henrique, pelo retrato, parecia outro, metido na farda de oficial.
Ainda fez o gesto para falar. Recolheu o braço e continuou no embalo.
Força do hábito. A esposa se fora há mais de seis meses. Mas vez por outra, nas
noites de insônia, fazia jeito de quem ia puxar conversa, na impressão de que
ela continuava ali deitada ao seu lado.
Negra Raimunda tossiu lá do quarto pegado à cozinha.
Foi parando o embalo. O cochilo chegando.
A primeira claridade da manhã encontrou velho Firmo encostado no
parapeito do alpendre, cumprimentando os que passavam. O Aracati cessara
de todo. O céu bonito, sem nuvens. Caboclo Tadeu passava, já encourado
àquela hora.
— Alguma cabeça perdida, Tadeu?
Respondeu de longe, escorando-se no pescoço do animal, desajeitando-
se na sela:
— O novilho Mimoso. Furou a cerca, seu Firmo! Coronel Camilo nem
dorme! Tou virando desde o Taimbé!
— E como vai o compadre?!
— Andou adoentado, mas passou!
— Muita rés no chão?!
— Quatro. Uma de cria! Trabalheira muita, seu Firmo. Me deram um
rasto do novilho pro lado do rio! Tou indo pra lá!
Chegou negra Raimunda se cocando, xícara de café na mão. Velho Firmo
ficou bebendo, olhando o Cardão, parado ao lado do alpendre, arriado,
sonolento.
— O Cardão está no fim, hem, Raimunda?
— Não agüenta nem uma caminhada, seu Firmo.
— Ainda tem milho?
— Restinho.
— Bota de molho pra ele.
Chegou vaqueiro João mais o filho. O menino trazia a garrafa de leite.
— Só tirou esse leite, João?
— Tá no fim, seu Firmo. A vaquinha parece que anda escondendo... O
menino entrou com a garrafa no rumo da cozinha, sem pedir licença. O
vaqueiro ficou dando notícias do gado.
— A Pintada passou a noite caída.
— E a macambira?
— Recebi. Seu Costa já disse pro senhor que aumentou o preço?
Velho Firmo ficou nervoso, começou a passear, as mãos atrás.
— Outra vez?! Aquele cachorro ainda fala em outro aumento? Vaqueiro
João explicava, quase se desculpando:
— Ele disse que a macambira tá pouca. Tá trazendo de muito longe, do
outro lado do rio.
Velho Firmo estancou o passeio. Mudou de assunto:
— Estou pensando em vender o resto do gado, João. O Modesto andou
por aqui, interessado. O diabo é o preço. Cento e cinqüenta mil réis por cabeça.
Não sei se deva negociar com essa gente...
Olhou o nascente. Depois tomou uma pitada de rapé. Guardou o
corrimboque e voltou ao passeio, olhos nos tijolos, pensamentos por longe. O
vaqueiro ficou ali calado, arriado no parapeito, fazendo um cigarro.
— Se o senhor vender o restinho, vou embora mais os meninos e a
patroa.
Velho Firmo encarou o vaqueiro. Depois deu meia-volta e continuou
andando.
— O senhor sabe, seu Firmo, sem serviço a gente não fica... O velho fazia
que não ouvia, indo e vindo. O menino voltou com a garrafa vazia e ficou entre
as pernas do pai. Vaqueiro João agora fumava, cabeça baixa.
— Se o senhor quer vender o restinho, seu Firmo, pro mode que não
fecha a porteira? O senhor tem a meninada bem no Sul... nem deixou o
vaqueiro terminar, entortou logo o assunto:
— João, prenda o Cardão na capoeira e mande buscar milho no Chico
Pedrosa. Receba a macambira e deixe que eu me entendo com o Costa.
Informou-se lá para dentro:
— O milho do Cardão está de molho, Raimunda?!
Com o sol quente, pôs o chapéu na cabeça e foi ver o gado, recolhido no
cercado para o trato, ninguém notou sua chegada. Ficou escorado na trave de
cima da porteira, o pé descansando no pau de baixo. Reses magras, órbitas
dilatadas, espalhadas pelos cantos de cerca, os homens lá do outro lado
tentando levantar uma vaca. Vaqueiro João dava ordens:
— Segura com jeito, Terto! Assim ela arreia...
A pirâmide de batatas de macambira no canto da porteira, do lado de
fora. Um garrote se aproximou bem perto de velho Firmo e ficou de olho morto
nas batatas. Quase não se sustinha de pé, os ossos da alcatra querendo furar o
couro.
Velho Firmo soltou o grito:
— João! Ô João!
O vaqueiro descobriu o patrão e veio correndo. Os outros quiseram
também se aproximar. O velho despachou de volta:
— Continuem no serviço! Basta o João!
Vaqueiro João chegou e foi dando boa-tarde. Meteu a tapa no garrote
para ele se afastar.
— A vaquinha está mole, hem, João?
— Não tem jeito, seu Firmo. Arreia os quartos todo o tempo.
— Uma estaca mais por debaixo do vazio ajuda melhor... -Já tentei. Serve
nada. Ela vai acabar dando o couro às varas. Os olhos do velho passeavam pelo
curral.
— A Bordada parece que vai agüentando...
— Vai vivendo, seu Firmo. A Pretinha é que enjeita a macambira. Tem
jeito não. Tou dando a ela o restinho de caroço de algodão que sobrou.
Velho Firmo apontou para o monte de batatas.
— Só chegou isto, João?
— É a sobra que tem. Deve chegar outro bocado amanhã cedinho.
Ficaram conversando, vendo de longe a trabalheira para
levantarem a vaca caída. Vaqueiro João procurava despregar do corpo a
camisa molhada de suor.
— Acho que vou perder essa também, João. Está muito mole. O vaqueiro
achou melhor não responder.
Velho Firmo tirou o pé da trave, desencostou-se e deu as costas. Saiu no
passo incerto e de longe ainda falou:
— Prejuizão! Acho que não é direito negociar com esse povo... O
vaqueiro ficou com o braço apoiado na porteira, corpo arriado, pernas
cruzadas, sem coragem de tornar ao serviço, o suor pingando do queixo.
Lá pelas três horas, o sol queimando nas pedras e o vento Aracati já
iniciando o seu sopro, velho Firmo armou a rede no alpendre para puxar uma
palha. Urubus descreviam círculos no céu azulado, igual. Os ciscos e folhas
secas entravam no alpendre, passavam para a sala, iam até à cozinha.
Velho Firmo ficou se embalando, de leve, pensamentos nos dois filhos no
Sul. Chegou também lembrança da sua velha, ali sentada na cadeira larga de
couro, puxando conversa, consertando remendos. Até o último instante
perguntou pelos meninos, chamou-os pelo nome.
Preta Raimunda veio avisar que ia lavar uns panos na cacimba da
vazante. Desceu com a trouxa e o velho ficou só no seu casarão. Sem ter com
quem puxar conversa.
Até compadre Leopoldo, da "Mata Fresca", aparecia pouco, metido com
o seu gado, falando em se mudar para a capital, vender suas terras, sua casa do
Trapiá.
A madorna não chegava. Só vinham as lembranças. O gado gordo, a
fartura grande, dinheiro fácil para a educação dos filhos. Dona Amélia nas
prensas de queijo, seu grito de comando ecoando pela casa. As festas de São
Pedro, gente muita espalhada pelo alpendre, entulhando os quartos, a sala, a
cozinha. Coronel Camilo, da "Queimada", no seu rape e nos seus espirros;
Coronel Aparido, das "Contendas", com suas novidades políticas; doutor
Soares, gente do Trapiá, do Coité, de Pitombeira, do Taimbé.
Padre Zefé contando histórias de suas Missões. A alegria entrando pela
noite, a animação no terreiro, os candeeiros pendurados no alpendre, e gente
chegando.
Velho Firmo ouviu primeiro as pisadas do animal. Era seu Costa,
descendo do cavalo. Deu boa-tarde e ficou parado no alpendre. O velho mudou
de posição na rede.
— Sente-se, Costa.
— É ligeiro, seu Firmo. O João já avisou pro senhor sobre a macambira?...
Ficou calado. Preferiu pigarrear.
— A macambira tá rareando, seu Firmo. Tou trazendo a batata de longe,
do outro lado do rio.
— Já sei, Costa.
— Não tem outro jeito, seu Firmo. Tou com prejuízo...
— Já sei, Costa. Você é o dono da batata. É quem manda. Está no seu
direito.
O visitante se calou, sem saber como continuar. Velho Firmo se embalava
de leve, olhando o tempo, distraído.
— Ouvi dizer que o senhor quer vender o restinho do gado, seu Firmo...
Nem ouvia, se embalando.
— Todo o mundo anda vendendo o gado. Este ano parece que também
não chove. Vai ser igual ao setenta e sete... O restinho de semente de gado vai
desaparecer. O seu
Leopoldo, da "Mata Fresca", já anda falando, mandou até me chamar. Eu
compro, seu Firmo.
Velho Firmo parou o embalo. Falou sem olhar:
— Você também anda metido nisso, Costa?
— Eu levo pro pé da serra, seu Firmo. Tenho lá um restinho de
macambira. Tento escapar... Tou arriscando o meu dinheiro...
O velho continuava como se não ouvisse. Seu Costa se mexia na cadeira:
— Por que o senhor não fecha a porteira, seu Firmo? Isto tá acabado.
Coronel Camilo, da "Queimada", já perdeu pra mais de cem cabeças. O senhor,
seu Firmo, tá velho, viúvo...
Velho Firmo levantou-se e foi até à ponta do alpendre. Soltou de costas:
— Costa!
— Diga, seu Firmo.
— Você já me avisou do preço da macambira. Está direito, Costa. Pago o
aumento. Pode continuar encostando a batata. Como vai sua rapaziada?
Ficou ali parado, mãos para trás, sem ligar à visita. Seu Costa resolveu se
levantar e sair.
— Vou indo, seu Firmo. Até logo.
— Adeus, Costa. Vá com Deus.
Os pensamentos de velho Firmo se misturavam. Ali à cabeceira da mesa,
jantando sozinho, mastigando distraído. O oferecimento chegara há poucos
instantes, na carta que seu Júlio trouxera, Descobriu logo a letra fina de
Pedrinho. Só fazia oferecer dinheiro. Mandasse dizer se precisava. Era só
escrever. Estava bem, ganhando fácil.
Dava notícias de Henrique. Ele também estava às ordens.
Continuou mastigando a comida engolida, na distração, revia os filhos ali
juntos, dona Amélia também do lado, mesa farta. Depois, Pedrinho se
despedindo, garantindo que era só por uns tempos, voltaria logo. Henrique
exibindo a farda, contando no alpendre histórias do quartel, dona Amélia
achando graça.
Preta Raimunda veio interromper a sua distração:
— A carta era do seu Pedrinho, seu Firmo?
Velho Firmo voltou à comida de repente, para despistar.
— Era.
A preta ficou encostada, esperando novidade.
— Coisa pouca, Raimunda. Os meninos vão bem. Estão na lordeza.
Empurrou o prato e levantou-se. Foi até à porta do oitão.
— O menino está feito lorde, Raimunda. De crista levantada. Henrique
também tem os seus esporões. Já oferecem esmola...
Saiu para o alpendre, no passo mole, e se sentou no banco encostado à
parede para esperar a chegada da noite.
Seu Modesto apareceu com escuro para voltar ao assunto da compra das
reses. Encontrou velho Firmo se embalando na rede de corda, no canto da sala.
Custou a tocar no assunto. O velho só falava noutras coisas. Depois de muita
espera, seu Modesto criou coragem:
— Seu Firmo, e o gadinho? Ainda quer fazer negócio?
— Que negócio, Modesto?
— O senhor não falou em vender?... Velho Firmo soltou o ar de riso
forçado.
— O gado vai escapando. Vendo não, Modesto. Vendo o quê! A seca está
braba, mas de ver coisa feia já criei casca grossa. Não me enverguei no quinze
nem no dezenove.
— O senhor era mais moço, seu Firmo.
— Conheço muito moço frouxo. Ainda não morri. E não é esta que vai
matar o Firmo de Sousa Mendes. Fica aí o gadinho, Modesto.
Seu Modesto procurava argumento:
— E se não chover este ano, seu Firmo? Embalou a rede com mais força,
olhar na parede.
— Capoto, Modesto, mas vou ver muita gente grande mergulhar
também. Agüento o repuxo. Nem os meus meninos conhecem o pai...
Seu Modesto fez como se só perguntasse:
— E a macambira, seu Firmo, continua recebendo?...
Só se ouvia o ranger dos armadores e o arrastar de chinelas da negra
Raimunda na cozinha. O velho olhava para as telhas. A lamparina, apaga-não-
apaga, projetava sua sombra imensa. O pé magro dava empurrão na parede
para o embalo. Gente passava na estrada. Seu Modesto achou melhor desviar a
conversa:
— Será que é gente do serviço do Governo?
— O Costa é um ladrão, Modesto! Tem macambira para dar e vender.
Quer fazer o seu pé-de-meia. Você também tem muita macambira, hem,
Modesto? O meu gado na sua mão ficava gordo.
O visitante se defendia, procurando jeito:
— Coisinha pouca, seu Firmo, não dá pra vender. Mas umas reses dava
pra escapar...
— Pois escape as de outro, Modesto. Meu gado não vendo, nem arredo
o pé do "Maracajá". A terrinha é boa, o céu é que não presta...
— Seu Leopoldo, da "Mata Fresca"...
— Eu me chamo Firmo, Modesto. Toma um cafezinho?
Seu Modesto ainda puxou outros assuntos, fazendo hora. O velho
respondia em monossílabos. Olhar na parede, pensamentos longe.
Continuava a conversaria na estrada. Turmas que iam para o serviço do
Governo, vindas de distante, enfrentando o estirão das léguas. Comboieiros
passavam lá embaixo, para o lado de trás da casa, no rumo do Trapiá,
estalando o relho dentro da noite, o eco de seus brados ganhando as lonjuras.
Seu Modesto achou que devia ir indo. Não faria o negócio. Levantou-se.
— Vou indo, seu Firmo. A patroa anda adoentada. Boa-noite, seu Firmo.
Se o senhor se resolver...
Já no alpendre, ouviu o grito:
— Apareça, Modesto!
Os armadores rangiam. O vento entrava pela porta aberta, zunia no
corredor. Da cozinha chegava chiado das chinelas de preta Raimunda.
Bastou seu Júlio chegar com notícia de chuva grossa no Serrote do
Machado. Foram dias de intensa expectativa. Olhando o nascente, sem quase
se afastar do alpendre.
Levantava-se muitas vezes à noite para estudar o tempo. O céu sempre
estrelado, a viração agradável, a ingazeira gemendo.
Nem acompanhava mais direito as notícias de vaqueiro João. Perdera a
Cambraia, a Bordada estava caída. A macambira rareando, seu Costa
carregando no preço. Não chamava mais os que passavam na estrada para
puxar conversa, pedir notícias da situação de outras fazendas. Os olhos só
tinham a direção do horizonte distante, de onde surgiriam as nuvens escuras,
amojadas.
Chuvarada no Machado era sinal de inverno forte. O aguaceiro
apareceria, mais dia, menos dia. Grudado ao alpendre, na sua observação sem
fim, segurando com as mãos o parapeito, o olho perdido. À noite, não
procurava mais o canto da sala para o embalo. Trazia a rede de corda para fora,
armava-a ali no alpendre e continuava na sua esperança. Se aparecia visita, ela
ficava sem ter com quem conversar, velho Firmo só dava boa-noite.
De manhã cedinho, os que passavam faziam a saudação lá da estrada,
mas não recebiam a devida resposta. Só à negra Raimunda é que velho Firmo
soltava:
— No vinte e quatro foi assim, Raimunda.
As esperanças já tinham ido embora, no vinte e quatro. O povo fazia suas
preces, organizava suas procissões, e o vento Aracati cada vez mais forte,
levantando redemoinhos, gemendo nos paus secos. Padre Oliveira organizara
até uma cruzada no Coité, visitou toda a freguesia com os romeiros chorando
suas orações. Varou os sertões, foi do Coité ao Trapiá, a Pitombeira, ao Taimbé,
pedindo para os homens fazerem penitência. Foi quando caiu o pé-d'água na
Serra do Machado. E o invernão cantou alguns dias depois, empapando a terra,
transbordando o rio, vergando para o chão as árvores murchas com o peso das
águas. Arriou a casa de velho Policarpo, no Taimbé. Mergulhou a parte baixa no
cemitério do Trapiá.
— Vai ser igual ao vinte e quatro, Raimunda.
Dormira um pouco mais. Andava exausto das vigílias. Acordou com o
aviso de negra Raimunda:
— Seu Firmo, tá trovejando. O senhor ouviu?
Meteu os pés, procurando as alpargatas. O dia já amanhecera. Saiu se
abotoando para o alpendre, o coração disparado. Descobriu o céu cinzento,
coberto de nuvens, chegadas de repente. O trovão cantando longe.
— Eu não disse, Raimunda?! Aproximou-se do parapeito, mãos trêmulas.
— Apareça o Costa! Cadê o Modesto?!
Vaqueiro João chegou correndo. O menino atrás com a garrafa de leite.
— A chuva vem aí, seu Firmo.
— Adeus, João. Vem água e muita. Eu sabia. O vaqueiro ainda
desconfiava:
— Será que é o inverno, seu Firmo? Ou vai ficar nisso?
— Anda com visagem, João?! Vem água e muita. Vaqueiro João estendeu
o braço:
— Já tá pingando...
Negra Raimunda entrou com o menino. Depois ele voltou e ficou ao lado
do pai, garrafa vazia na mão. Velho Firmo gesticulava, lembrava outros
invernos atrasados.
Ia e voltava, passadas mais ligeiras, olhos no tempo.
— Amélia, o meu corrimboque!
Mudou de repente, parando:
— Raimunda! O meu corrimboque, Raimunda!
Esqueceu um segundo o céu, as nuvens escuras, as trovoadas. O
pensamento no cemitério do Trapiá. Mas tornou logo ao passeio, dando ordens
a vaqueiro João. O menino informou:
— Tá engrossando, pai...
A chuva chegava com seus pingos grossos, molhando o chão, levantando
cheiro da terra. O peru entrou no alpendre e velho Firmo não se importou.
Deixou que ele entrasse na sala e ficasse ali arrastando suas asas, dando suas
voltas. Só tinha olhos para a chuva que estava ali.
Vaqueiro João se foi arrastando o menino, correndo da chuva que
engrossava. O velho sentou-se no banco, ficou cocando o queixo. Invernão, não
tinha dúvida. Fartura muita. O gado gordo, leite para queijo fresco. Se sua velha
fosse viva, estaria agora dando ordens, mandando limpar as prensas. Tomava a
frente de tudo, soltava o seu brado de comando, as mulheres dos moradores
trabalhando depressa sob suas ordens. Nem o delírio da febre tirou suas forças.
Morreu com toda a lucidez, chamando pelos meninos.
Velho Firmo tomou uma pitada de rapé. A água tamborilava firme no
telhado. A bica do oitão despejava o jorro em pancadas surdas. Devia estar
chovendo assim no cemitério do Trapiá.
— Raimunda!
— Pronto, seu Firmo.
— Traz café.
Ali sentado, cismando. O peru ficou rodando entre seus pés. A chuva
agora molhava o alpendre, fazendo pequenas poças entre os tijolos. Os
respingos invadiam o casarão com o vento. O peru rodava, bufando, querendo
espocar.
O vulto veio correndo, rente ao alpendre, pelo lado de fora, fugindo da
água, entrou sem pedir licença.
— Bom-dia, seu Firmo.
— Como vai, Berto?
Respirando difícil, Berto batia o chapéu de palha na perna.
— Água muita...
— Sente-se, Berto.
Berto puxou a cadeira de couro, mais para o lado da parede, contra o
parapeito, por causa da chuva que entrava.
— Mas, seu Firmo, o senhor já viu terra mais desbilotada? Ainda ontem o
solzão...
— Ela chega de repente, Berto. Mas dá o seu sinal. Não foi trabalhar
hoje?
Mãos cruzadas entre as pernas, prendendo o chapéu, pés para debaixo
da cadeira, Berto baixou a voz:
— Seu Firmo... fui dispensado... Eu mais uma porção...
— Por que, Berto?
— O serviço acabou, seu Firmo. Vão fazer outro mais distante, pro lado
do Coité. Toda gente do Trapiá e do Taimbé foi dispensada.
— O quê!
— Vou caçar Outro serviço... A chuva tá aí, com a graça de Deus.
Mas até o milho crescer, seu Firmo, minha gente precisa de sustento.
O vento varria por baixo. A chuva cantava forte. Velho Firmo não tirava a
mão do queixo, vendo a água cair. Berto se mexia.
— Seu Firmo... eu vim aqui... pro mode me pedir uma ajuda.
— Diga, Berto.
— Tou sem nadinha lá em casa. Não tem de comer desde ontem... Varei
a seca toda sem aperrear ninguém. Mas agora, seu Firmo, no finzinho... Fiquei
até devendo no armazém do Governo. A lei cobrava quarenta por cento.
Ficou ali embiocado, murcho. Velho Firmo levantou-se e pôs-se a
passear.
— Vou mandar fechar mais esse alpendre. Molha tudo. A Amélia vivia
reclamando.
Parou diante do outro:
— Vou lhe dar o que fazer, Berto. Não estou necessitando, mas pra você
dou serviço. Muita gente debandou, ganhou o mundo. Vão voltar com a
fartura. Você agüentou o repuxo, Berto. Perdi a Amélia, meus meninos estão
na grandeza, no Sul. Oferecem até esmola. Não conhecem o pai, Berto.
Berto agradecia e balançava a cabeça.
— O seu Leopoldo foi com a família pra capital. Deixou a fazenda na mão
de vaqueiro Romualdo. Fechou até a casa dele do Trapiá.
— Eu sei, Berto. Gente esmorecida eu conheço não é de hoje. Tornou à
esquina do alpendre. O trovão cantava agora em cima da casa. A chuva
despencava feia. Velho Firmo ficou olhando sem ver a cerca apodrecida da
vazante. O peru agora ali parado perto da porteira, pingando, murcho.
— Pode ir no Chico Pedrosa, Berto. Tire lá a sua ração. Na volta dê uma
passada no cemitério. Me avisaram que a cruz da Amélia está caída. E com essa
chuva... Vou mandar você fazer lá um serviço.
— Tá direito, seu Firmo. Nosso Senhor lhe dá a paga.
Velho Firmo continuava de costas, vista por longe. Dobrou o alpendre.
Sumiu-se. Depois voltou, mãos para trás, olhos no chão.
— Berto!
— Diga, seu Firmo.
— Não fechei a porteira, Berto.
Berto remexeu-se encabulado, cabeça baixa, lembrando-se do conselho.
Soltou sem dar fé:
— Mas o senhor falou em vender o gadinho, não foi, seu Firmo?
Respondeu logo, cara amarrada, fuzilando:
— Queria ver a cara da canalha. Ou não me conhece, Berto? Murcho,
encolhido, desculpou-se:
— Eu sei, seu Firmo. Vi que o senhor não tava falando de vera.
— Pois é. Velho Firmo sentou-se no banco, ar distraído, coçando o
queixo.
— Um homem não se dobra, Berto. Nem quando perde a mulher.
Silêncio longo. A chuva afinava.
— Seu Firmo, vou indo. Deus tá vendo sua ajuda. O velho saiu de suas
cismas:
— Não se esqueça de dar uma passada no cemitério.
— Esqueço não, seu Firmo. Deus lhe dá a recompensa pela sua ajuda.
— Não tem agradecimento, Berto. Faço o que está direito. Berto se foi e
velho Firmo continuou mergulhado nas suas cismas, coçando o queixo. Filetes
escorriam das telhas. A bica do oitão despejava o jorro d'água em pancadas
mais leves. Serviço mandado fazer pela finada para aparar água. Fosse viva,
estaria agora dando ordens à negra Raimunda para botar o pote debaixo da
bica.
O peru entrou encolhido, pingando, e passou para a sala, entrou pelo
corredor. Velho Firmo levantou-se para tangê-lo. Descobriu, pela primeira vez,
o seu casarão mais vazio, escancarado na sua solidão.
A chuva voltava a engrossar. Devia estar chovendo assim no cemitério do
Trapiá.
— Amélia!
Descobriu logo o engano e mudou o grito:
— Raimunda! O café, Raimunda!
O PADRINHO

A mulher, a barriga volumosa da gravidez, procurava consolar a criança,


embalando a rede. Pedro demorava a se ajeitar, contrariado.
— Vai logo, Pedro.
Abriu os braços, deixou as calças caindo.
— Tu já viu uma coisa dessa? Acordar Coronel Aparício agora de
madrugada?
— É o jeito, Pedro. A bichinha tá piorando... Ela n'é afilhada dele?
Saiu do quarto se abotoando, cara trancada. Parou na cozinha, no
escuro, sem coragem. Bebeu um caneco d'água. O choro da criança continuava
fraco, persistente. A mulher ninando, cantando cantiga sem sentido. Abriu a
porta do terreiro e o vento entrou frio, trazendo a claridade da lua. Acendeu
um cigarro. Continuou indeciso, olhando o pé de urucu do quintal. Veio
vontade de fechar a porta e voltar para o quarto, explicar para a mulher que
bem cedinho iria falar com o Coronel.
— Ainda tá aí, Pedro?!
Custou a responder. Jogou o cigarro fora. Voltou a se ajeitar, para ganhar
tempo.
— Tou indo!
— Vai logo, Pedro! A bichinha tá se acabando... Tomou a resolução sem
pensar, resmungando, e rumou na direção da casa-grande, deixando a porta
escancarada.
Quando avistou o oitão, o calafrio subiu pela espinha. Demorou-se no
passo, tomando chegada devagarinho. Aproximou-se da calçada alta e se
sentou para criar coragem. A vaca, deitada ali I perto, olhava para ele,
remoendo. Enxugou o suor frio do rosto com a palma da mão. Avistou a casa
do vaqueiro Mena. Andava para as Canafístulas, ferrando reses. Se ele
estivesse em casa seria mais fácil, iria pedir o seu auxilio.
O pigarro forte veio do quarto, atravessando a janela. Ainda fez ação de
se esconder, o coração batendo. Levantou-se e deu alguns passos sem rumo,
procurando esquentar o sangue. Melhor esperar o dia clarear e depois inventar
uma desculpa para a Mundica. E se a Ritinha não tivesse fôlego para esperar?
Podia ser meia-noite. A febre continuava forte, tirando as forças da criança.
Fez mais sem pensar do que por coragem, como quem quer se ver livre
de uma vez. Subiu o batente e bateu na janela, mas a voz quase não sai:
— Coronel Aparício...
Ficou petrificado, aguardando as conseqüências, sem ver nada.
— Quem é?
O coração disparou, o bolo subiu pela goela. Molhou os lábios para
facilitar a resposta:
— Sou eu, Coronel, o Pedro...
— O que é?
Não respondeu. Mas sentiu que ia se desentalando, o coração voltando
aos eixos, já que estava na casa do sem-jeito. Ouviu arrastado de chinelas e o
cochicho com a velha Lindaura. Depois zoada de tranca. Afastou— se e ficou
esperando. O velho pôs a cabeça na janela, curioso.
— O que é?
Não sabia como começar. Foi falando como pôde, sem lugar para pôr as
mãos:
— A Ritinha, Coronel... Está com febre alta... A Mundica pediu pra eu vir
aqui... O senhor desculpe... Febre danada...
— E para que veio me avisar?
— A gente queria uma ajuda pra eu ir no Trapiá comprar um remédio...
Velho Aparício se aborrecia, falava para dentro:
— É a menina dele que está doente. Veio pedir dinheiro a essa hora.
Pedro aguardava de cabeça baixa. A velha Lindaura falava alguma coisa
dentro do quarto. Velho Aparício se preparava para fechar a janela.
— Venha de dia. Agora é tarde.
Só soube dizer sim, senhor. Ficou ainda parado, ouvindo conversa dentro
do quarto. Sentia-se aliviado, mais leve. Desceu o batente no rumo de casa,
mas parou logo.
Podia ir ao Trapiá, talvez seu Henrique fiasse. Se chegasse em casa com
as mãos abanando, a mulher ficaria falando. Seu Henrique atendia todo mundo
fora de hora.
O diabo é que devia aqueles remédios desde o ano passado. Nunca
pudera pagar. Munca dera satisfação. Não tinha jeito de inventar desculpas.
Mas podia arriscar. Pelo menos a Mundica não teria o que dizer. De madrugada
estaria de volta.
Acendeu um cigarro e meteu o pé na estrada. A lua clareava tudo. Dava
para enxergar longe. Passou pela casa de velho Raimundo Benedito, depois
pelo terreiro de cabra Tacanha. Atravessou o riacho e pegou o canto de cerca.
Avistou o vulto que vinha no cavalo, em sentido contrário. Encostou-se mais
para o lado. Era seu Clemente.
— Para onde vai, Pedro, essa hora?
— Boa-noite, seu Clemente. Vou no Trapiá.
— Agora? Fazer o quê?
Contou sua história, escorado no pau-de-cerca.
— Já experimentou um chá fraquinho da cabacinha?
— A Mundica andou ajeitando um lambedor de contra-erva e cumaru...
Coisinha fraca, que a dona Chica ensinou... Resolveu nada, seu Clemente. Febre
danada...
O homem se desculpou:
— Não lhe arranjo o dinheiro porque não tenho, Pedro. Mas se precisar
de mim, pode bater lá em casa.
— Obrigado, seu Clemente. Será que seu Henrique vende o remédio?
— É bem capaz... Conte direito pra ele... Seu Henrique conhece uns
remédios que é ver...
Pedro achou que devia ir andando. Estava perdendo tempo. Despediu-
se. E foi apressando o passo.
Por detrás da oiticica, descobriu o Trapiá. As casas todas trancadas. Subiu
pelo beco e chegou na praça. Olhou para os lados para ver se via alguém. A
mercearia de seu Tarcísio, agora no silêncio, parecia mais imponente. A igreja
pintada de novo, cercada de mata-pasto, animais por perto. A farmácia de seu
Henrique ficava no outro lado, perto do mercado.
Foi atravessando a praça, espantando os animais. Quando avistou a placa
da farmácia, o coração começou a acelerar. Parou na calçada e ficou correndo a
vista. Mas não veio a indecisão. Bateu com força:
— Seu Henrique! Ô seu Henrique!
Olhou para as outras casas, temendo acordar alguém. O silêncio
continuava. Esperou passeando. A lua descambava. Voltou a chamar mais alto:
— Seu Henrique! Ô seu Henrique!
Continuou preocupado com os vizinhos. A casa de doutor Soares, ali
perto, toda azul.
— Quem é?
Reconheceu a voz do farmacêutico.
— Sou eu, o Pedro!
— Que Pedro?!
— O Pedro, das "Contendas"!
Ouviu passos dentro de casa. Tomou posição. Zoada na fechadura.
Recuou.
Seu Henrique abriu a banda da porta e apareceu com a lamparina na
mão, camisa fora das calças.
— Boa-noite, seu Henrique...
— O que é, Pedro?
— Seu Henrique... é a minha filha... Uma febre danada... Vim até qui... Tá
piorando... Febre danada...
O farmacêutico cortou logo a conversa:
— E aquela continha, Pedro?
Custou a explicar, procurando ajeitar as palavras com as mãos:
— Inda não pude, seu Henrique... Mas não me esqueci. Vivo falando pra
Mundica... O senhor me dê mais um tempinho... O inverno tá pegado...
Parou. Esperou a reação. Seu Henrique calado, olhando para ele, a
lamparina bem suspensa. Resolveu então continuar, dizer logo que estava sem
dinheiro, era só mais um remédio, viria pagar de dia. A menina precisava,
estava se acabando de febre, a Mundica não sabia o que fazer.
Seu Henrique permanecia com os olhos em cima dele. Depois começou a
fazer uma porção de perguntas sobre o estado da moça. Pedro foi
respondendo como pôde.
— Só vendo a menina, Pedro. Pode ser intestino. Vou lhe dar um
remédio. É muito bom. Se não melhorar, volte aqui de dia que eu vou ver se
dou um pulo lá.
Pedro ficou esperando, passeando na calçada. O mercado àquela hora
parecia mais baixo, a porta da barbearia de seu Nestor apoiada numa escora.
Seu Henrique voltou com um vidro na mão desocupada. Explicou como
seria o tratamento. Tornou a falar na dívida, despesa muita.
Quando entrou e trancou a porta, Pedro ainda permaneceu na calçada, o
vidro na mão, ouvindo o arrastar de tamancos do farmacêutico dentro de casa.
Veio vontade de se sentar um pouco, descansar da caminhada. Mas pensou na
filha se acabando, na aflição da mulher. Foi mais para agradecer que gritou:
— Adeus, seu Henrique!
Atravessou a praça no passo ligeiro, concentrado nos pensamentos
vazios.
De longe, avistou movimento em casa. Lamparinas acesas, gente
entrando e saindo. Veio o pressentimento, o coração começou a bater na
goela. Apressou-se. Encontrou o Vicente, que ia na mesma direção.
— Foi assim de repente, Pedro?
— O quê?
— A bichinha... A morte dela...
Estacou e olhou para o outro. Saiu quase correndo e entrou em casa
peitando com o povo. A mulher, sentada no baú, chorava, o ventre volumoso
balançando. A rede do anjo cercada de gente. Ficou sem saber a quem se
dirigir, que atitude tomar. Olhos curiosos caíam em cima dele. Vieram
perguntas e palavras de consolo. Sem ação, suado, entalado. Velha Candoca
explicava:
— Ela foi me acordar... A bichinha tava se acabando...
Encostou-se na parede, os olhos na rede do outro lado, o volume
pequeno dentro. Procurou um cigarro e não encontrou. Conseguiu dizer:
— Fui atrás de remédio... Tá aqui ele... Tou chegando do Trapiá.... Vinha
mais gente. Iam diretos para a rede, ver o anjo, esquecidos dele.
Resolveu se retirar, sem coragem de falar com a mulher, sem querer ver
a filha. No terreiro, foi cercado. Queriam a história direito. Não sabia contar,
confuso.
Afastou-se para debaixo do pé de urucu e ficou, acocorado, respirando
difícil, limpando o suor do rosto com a fralda da camisa, o remédio
abandonado no chão. Outros se solidarizaram: acocoraram-se por perto.
— Mas como foi, Pedro?
Chegava até ali o choro da mulher. Vultos apontavam nas veredas.
— Fui caçar remédio... Taí ele... Tou chegando do Trapiá... De manhã vou
avisar Coronel Aparício... É padrinho dela...
Só tinha vontade de ficar acocorado, sem pensar nada. Começou a
quebrar um graveto, os olhos perdidos. Os outros não tinham ânimo de puxar
conversa, por ali calados.
Gente chegava, entulhando a casa. O choro da mulher vinha às vezes
forte, às vezes se sumia fraco.
Coronel Aparício tomava café. Mandou que entrasse. Pedro ficou parado
na entrada da sala de jantar, chapéu na mão, encolhido. Deu bom-dia. Dona
Lindaura, do outro lado da mesa, foi quem respondeu. Coronel Aparício
preferiu primeiro beber o seu café antes de perguntar:
— O que é, Pedro?
— Coronel... n'é mais o dinheiro não... Vim avisar que a Ritinha morreu...
Não recebeu resposta. Na cabeceira da mesa, Coronel Aparício
continuava entretido no seu café. Velha Lindaura foi quem se informou:
— A que horas, Pedro?
— De madrugadinha... Quase de repente... A febre só passou no fim...
Tinham voltado do enterro. Dona Mundica ainda soluçava, perto do
fogão. A velha Candoca do lado, despachada, procurando animar. Vicente
tentando puxar conversa com
Pedro, sentado no caixão de querosene, perto do pote.
Não havia animação. O mundo parecia mais despovoado. O cheiro de
vela ainda rondava. Dona Mundica não se conformava:
— A bichinha já chamava mamãe, dona Candoca...
A velha disfarçava, dizia que a criança estava na graça de Deus. Pedro só
fazia tirar sujo das unhas com a ponta da faca, lábios contraídos, dando mostra
de conformado.
Vicente via as panelas emborcadas, o fogo apagado.
— Vou falar pra Maria pra mandar de comer pra vocês.
— Precisa não, Vicente. Tamos sem fome.
Velha Candoca garantia que era uma felicidade morrer inocente, sem
conhecer os pecados do mundo. Deus chamava os que queria bem. Ritinha
estava no céu, ia vigiar por eles de lá.
Os soluços persistiam, balançando o ventre disforme. Vicente levantou-
se e arrastou Pedro para debaixo do pé de urucu. Ficaram ali mudos, vendo a
noite chegar tangida pelo vento Aracati.
Pedro encontrou Coronel Aparício na sala de fora, na conversa animada
com doutor Soares. Deu boa-tarde para notarem sua presença. Mas doutor
Soares continuou concordando,
Coronel Aparício nas suas razões:
— Por isso, Doutor, não dou os votos da minha gente. Estou na oposição,
Doutor.
Ia e voltava, testa franzida. Descobriu Pedro e parou.
— O que é, Pedro?
Olhou primeiro para doutor Soares. Depois abriu o sorriso amarelo:
— Coronel, a Mundica descansou hoje...
— Menino?
— Menina. A gente deu o mesmo nome da outra... Rita... Coronel
Aparício já pensava noutras coisas:
— Pois eu lhe digo, Doutor, nem o compadre Camilo, da "Queimada",
conta mais comigo. Briguei com o Leocádio, do Taimbé. Meu candidato é o
Aguiar, já disse. Duvida da minha palavra, Doutor?
Pedro aguardava oportunidade para continuar. Na ombreira da porta,
um pé para trás, escondido pelo outro. Coronel Aparício na sua contrariedade,
passeando. Veio parar perto dele.
— Só isso, Pedro?
— A gente queria convidar o senhor pra padrinho dela... A dona Lindaura
também...
— Está certo. Avise o batizado, para eu mandar uma carta ao padre Zefé.
E o serviço da parede do açude?
— Tá pronto, Coronel. Só atrasou por causa da morte da Ritinha...
— Já sei.
Voltou a se dirigir à visita:
— É isso, Doutor. Fiquei na política do Governo vinte anos. Só me deram
o açude. Fico agora do outro lado. Na eleição do Trapiá quero ver quem é mais
forte. O Leocádio anda avançando muito. Não agüento isto, Doutor. Ensino a
ele o caminho do respeito. Ou duvida, Doutor?
Pedro resolveu ir saindo. Fez a saudação num gesto sumido. Nem
notaram. Retirou-se satisfeito, o coração pulsando forte.
CANDEIAS
para João Antônio

— Vai levando devagar, Pedro.


A canoa se aproximou mais uma vez da cabaça com a vela, ali solta
dentro d'água, tangida pelo vento, procurando localizar o afogado.
— Besteira. Vigia pra onde o diabo da cabaça vai indo, Zeca. A cabaça
navegava distante, bamboleante, vira-não-vira, a velinha dentro apaga-não-
apaga. Pedro suspirou. Deixou o remo atravessado, os braços caídos. Zeca
coçava as canelas por causa dos pernilongos.
— Te coça direito, Zeca. Não tá vendo que a balsa faz onda?
— É o diabo do muriçocal...
A cabaça cada vez mais se distanciava, pontinho iluminado solto ao sabor
das águas.
— Lá vai a cabaça de novo na direção da oiticica, Zeca. Ela só quer saber
daquela raiz...
A cabaça rodopiava na massa líquida, rumando na direção da oiticica, o
lume da vela aumentando e diminuindo.
— Deixa ela ir sozinha, Pedro. Depois a gente toma chegada. Pedro
cocou a cabeça e se desiludiu:
— Já viramos o diabo do açude todo...
Olhou em todas as direções, espremendo a vista para varar o escuro, as
mãos agarradas nas bordas da canoa.
— Mas onde o moleque se socou, hem, Zeca?... A cabaça só pára no
canto errado. Agora só quer saber daquela oiticica.
Parecia dia na ribanceira. As candeias, suspensas acima das cabeças,
clareavam tudo. Ninguém abria a boca. A saparia cantava solta. Vagalumes
borrifavam por perto.
Dona Arminda, acocorada, só fazia soluçar:
— Eu vivia dizendo: Rafael, acaba com a mania de viver de molho...
As mulheres em volta, no consolo mudo. Mestre Leôncio foi mais para a
ponta da ribanceira, deixou a candeia equilibrada na cabeça, fez concha com as
mãos e resolveu se informar, soltando o seu grito:
— inda nada, Pedro?!
A resposta negativa chegou num eco, como saída de dentro d'água.
Então Mestre Leôncio voltou para o seu lugar entre os homens, trazendo a
candeia na mão. Animados com a quebra do silêncio, voltaram a puxar
conversa.
— É melhor deixar para amanhã. Está tarde. Veio o protesto, as cabeças
confirmando:
— Amanhã é besteira. O menino tá de molho desde cedo.
A conversaria foi tomando vida. Trocavam sugestões, os braços
apontando para a água. Chamaram mais uma vez o menino Qerardo para
confirmar.
— Foi naquele rumo mesmo, Qerardo?
A resposta era a mesma, os olhos espantados.
— Ele foi pro lado da oiticica. Eu disse pra ele que era afoiteza. A
distância do nada era cirande.
— Você não se enganou não, Qerardo?
— É de vera. Ele até achava graça... Quando dei fé e espiei ele tinha se
sumido...
Mestre Leôncio continuou no seu ponto de vista:
— Foi cobra. Aí dentro tem cobra. Tão esquecidos do filho do Zesérgio,
na Lagoa do Meio?
O de nu da cintura para cima abria os braços, dava as costas para Mestre
Leôncio, a lamparina agitada na mão, o querosene dentro fazendo glut-glu!
— O moleque era afoito. Vivia de molho. Foi afoiteza. Aqui tem lá
cobra...
O psiu veio do lado das mulheres, agrupadas em volta de dona Arminda,
ali acocorada, aguardando notícias do filho desaparecido. Então os homens
resolveram se calar.
Ficaram espremendo os olhos na direção da canoa, perdida lá distante
açude adentro, no rastro da cabaça com a vela. Uma voz ainda soltou:
— A gente só vê a cabaça. A canoa se sumiu.
Menino Gerardo voltou a se sentar no barranco, perto dos
companheiros. Todos calados, na expectativa que era mais medo. Bentinho já
nem sentia as costas ardendo da surra que levara. O pai descontava nele todas
as tragédias.
— Toma, corno! Toma, cabrito!
Nem estava no banho. Quando Qerardo espantou o Trapiá com seus
gritos, os olhos esbugalhados, dizendo que Rafael tinha se sumido no açude,
ele, Bentinho, vinha chegando da capoeira tangendo os jumentos. Não
adiantou explicar, apontar para os animais, mostrar sua verdade. Megro Araújo
cantou a correia nas suas costas.
-Já não te disse pra não se banhar naquele lugar, bicho ruim?
Passou o resto do dia com as costas em brasa. Mas não arredou pé da
beira do barranco, esquecido das obrigações, os animais abandonados, vendo
de perto o vexame dos homens de encontrar o amigo, a busca entrando noite
adentro. Cochichou para Qerardo:
— Ele tá morto de vera?...
Não veio resposta. Todos se aconchegavam, protegendo-se do medo. O
companheiro, ali no fundo das águas, morto, sofrendo sozinho. Só Teteu não
tomava parte da roda, agarrado por trás das saias da mãe. Não quisera ficar em
casa, dormindo na companhia dos menores. O amigo estava ali dentro d'água,
padecendo sem ar. Tinha medo da alma dele. Velha Candoca, na roda da
calçada, contava histórias de assombração. Cada uma de espantar. As almas
dos mortos vinham fazer visagens, puxar pelo pé, pedir rezas para suas penas.
— Ele tá vivo, mãe?
A pergunta quase não sai, os olhos presos na água impassível. Rafael
gostava de aperreá-lo. Naquela vez, no banho, puxou-o pelo braço até o fundo,
a água banhando o pescoço. Escapuliu com dificuldade. Voltou para o raso,
espavorido. Rafael era uma piaba no nado, ia até às moitas de canaranas.
Ficava fazendo graça de lá, exibindo seu feito. Às vezes, se sumia no mergulho
e todos ficavam rodando as cabeças, procurando. Quase sempre Rafael surgia
junto deles, assustando, soltando risadas.
No Trapiá, por detrás dos mandacurus e mofumbós, só ficou a meninada
miúda, mais a velha Candoca, cachimbando na solidão, sentada no tamborete,
na porta de fora.
Aguardava o cortejo, conduzindo o corpo do menino Rafael. Os olhos no
beco, do outro lado da praça, de onde deviam surgir as candeias. Desde que o
marido se afogara, na cheia de vinte e quatro, nunca mais quisera ver corpo de
afogado. Só o reconhecera pelos cabelos e pela roupa. O corpo era outro,
deformado, bem maior, azulado.
Ha certa, acontecera o mesmo ao menino Rafael. Inchado, azulado. Bem
diferente do moleque que todos os dias embirrava com ela:
— Velha Cachimbeira!
Fazia que não ouvia. O menino era muito vadio. Mandava os outros sujar
os panos do coradouro. Comandava o bando.
— Velha Cachimbeira!
Tinha a quem puxar. Finado Misael perdera-se naquela arruaça. Deixara
dona Arminda cheia de filhos e com mais um na barriga, matando-se na
lavagem de roupa, servindo de cozinheira para doutor Soares quando ele
aparecia para ver seus eleitores. O mais velho, Rafael, só queria a vadiagem,
como o pai.
— Velha cachimbeira!
Um vulto passou perto da igreja. Era seu Antônio que ia atrasado para o
barranco.
— Ficou só, dona Candoca?! Respondeu diferente:
— Boa-noite, seu Antônio!
— Nada do menino?!
— Acho que não!
Seu Antônio se foi, levantando nuvens de pó das alpargatas. Velha
Candoca ficou com seus pensamentos, cachimbando, vendo as estrelas no céu,
esperando o cortejo surgir no beco, do outro lado da praça.
O caboré, na torre da igreja, soltava o seu piado de rasga-mortalha. O
dedo apontou:
— Espia, Zeca. A cabaça continua parada perto da oiticica. Não arreda de
lá.
Zeca olhou na direção indicada. A cabaça boiava, vira-não-vira dentro do
círculo fechado, a velinha dentro diminuindo e aumentando sua claridade.
— Ela caiu no funil, Pedro. Rodando no mesmo lugar.
— É por causa da raiz da oiticica. Aposto.
— Vambora até lá.
Pedro foi remando com jeito, evitando onda, o remo batendo de leve,
fazendo glut-gJut Zeca esquecido dos carapanãs, olhos vidrados na cabaça.
— Não chega perto não, Pedro, que ela sai do funil e o vento leva...
O braço suspendeu o remo e a canoa ainda deslizou alguns metros. Zeca
ficou de pé, se equilibrando. A cabaça gingava dentro do funil, em órbita
uniforme.
— Será que o menino tá aí, Zeca? A cabaça pode tar apontando o lugar
direito. Tu quer mergulhar dessa vez?
Zeca demorou a responder. Olhou para a oiticica, o tronco grosso
mergulhado dentro d'água, os olhos roçando na superfície.
— Ali tem cobra, Pedro...
— Tem lá nada. Se é medo, eu mergulho. Mas acho que a cabaça não sai
do canto pro mode o funil da raiz da oiticica.
Zeca resolveu criar coragem.
— Agarra a cabaça, Pedro, e vigia bem o lugar. Eu pulo. Pedro foi
remando com as mãos, de mansinho, empurrando as águas com carícia. A
cabaça descreveu sua órbita pela última vez e peitou na canoa. A mão içou-a.
— Pula logo, Zeca. É bem aqui.
Zeca ainda olhou para os pontinhos de luz das candeias lá distantes na
ribanceira e sumiu-se no mergulho rápido. A água ficou borbulhando. Pedro
pôs a cabaça no fundo da canoa com cuidado e começou a fazer um cigarro. A
saparia cantava desesperada no tronco da oiticica. Uma coruja piava dentro da
moita de canaranas.
Ia botando o cigarro na boca quando a cabeça apareceu de volta,
espargindo água. Zeca falava apressado, a boca que nem chafariz:
— Pisei numa coisa mole, Pedro, bem debaixo da garrancheira. Acho que
é ele. Vem me ajudar...
Pedro sacudiu o cigarro n'água e se despiu depressa.
— É fundo?
— Fundura danada. Mais do que no "Poço da Ema". Precisa cuidado com
a garrancheira.
Pulou rente à cabeça do amigo. Sumiu-se debaixo d'água. A canoa ficou
bamboleando, abandonada com os trapos e a cabaça.
A demora foi grande. A saparia cantando, os vagalumes piscando, a
canoa gingando de leve com a brisa.
Surgiram três cabeças: duas em pé e uma caída.
— Traz com jeito, Zeca...
Pedro alcançou a canoa. Pulou para dentro dela.
— Me dá aqui ele.
Puxou o corpo do menino Rafael para dentro da canoa, afastando com o
pé os panos e a cabaça.
— Já tá inchado, Zeca.
— E fedendo...
Vestiram-se e se sentaram um de frente para o outro, pernas abertas, o
anjo no meio.
— Tá diferente, hem, Pedro?
A velinha da cabaça iluminava o afogado, rosto disforme, lábios abertos,
dentes aparecendo.
— Olha a barriga dele, Pedro.
— Quero ver não...
Pregou os olhos n'água, evitando o cadáver.
— Ele até que nadava. Se desgraçou foi na garrancheira, não foi, Pedro?
— Também acho. Garrancheira danada...
— Será que dona Arminda quer ver ele?
Foram remando ligeiro na direção das candeias, Pedro sentindo agonia
com a perna fria do morto roçando na sua.
Zeca soltou o grito de longe, avisando. O alvoroço na ribanceira foi
grande. A meninada correu para trás das mulheres, procurando se esconder do
amigo Rafael que chegava. Mestre Leôncio e o de nu da cintura para cima
entraram n'água até às canelas para auxiliar.
A canoa foi arrastada para o seco. As candeias fecharam-se num círculo,
a conversaria e as ordens se entrançavam.
— Pega com jeito, Pedro!
— É ele, gente!
— Diferente, Virge!
Dona Arminda criou forças e se aproximou para ver o filho. As mulheres
seguiram, protegendo-a. Os meninos atrás, vendo de longe, os olhos
espantados. Teteu não largava a saia da mãe.
— É ele, mãe?
Mestre Leôncio dava instruções, distribuía serviços.
— Traz a rede, Malaquias!
Dona Arminda mal viu o filho. Aumentou o seu eco. As mulheres
arrastaram-na para mais longe. Teteu se tremia todo, agarrado à mãe, olhos
abertos de medo.
— É o Rafael, mãe?
Velha Candoca ainda cachimbava. Os olhos no beco. A lembrança da
morte do marido. deformado, os pés inchados, a barriga grande. A morte feia
na grande cheia de vinte e quatro.
Mais de um dia debaixo d'água. Achado entre duas carnaubeiras, os
braços abertos.
A romaria entrando pela noite. A chuva tamborilando sem parar, a
enchente levando os roçados.
Viu a primeira luzinha surgindo no beco. A conversaria atrás. Levantou-
se, guardou o tamborete e foi para a janela. As candeias surgiam em procissão.
Marchavam na sua direção, atravessando a praça. Iam para a casa da comadre
Arminda. Já avistava a rede bamboleando, a meninada se espalhando,
acompanhando de longe. Sentiu uma pena infinita do menino Rafael. O marido
também chegara numa rede, o povo acompanhando. Só que a noite não era
assim estrelada. A chuva cantava feia. Bateu o fumo do cachimbo no parapeito
em sinal de respeito.
A rede passava agora na sua frente, o corpo fazendo volume. Os homens
conversavam. Viu comadre Arminda protegida pelas amigas. A rede gingava.
Menino Rafael na certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque.
Sentiu água nos olhos. Nunca mais ouviria a provocação:
— Velha Cachimbeira!
O CANOEIRO

— Mas seu Chico, está caro.


— É o preço, dona.
Atravessar o rio desse jeito... Dois mil réis pela dona mais o menino.
— Mil e quinhentos, seu Chico...
— Já falei o preço, dona.
— Mas outro dia...
— Outro dia foi outro dia. O Laurindo leva por menos.
— Mas a canoa do Laurindo parece que é perigosa... A comadre Rita me
disse.
— Então, dona, resolva.
Chico Preto ficou coçando o pé, sentado na canoa, olhando para outro
lado. A chuvinha miúda pingava. A mulher ali parada, segurando o menino pela
mão, sem coragem de insistir, necessitava atravessar o rio, visitar a filha
doente, levar o neto. O mundo d'água se espalhava até quase onde a vista
alcançava, ululando, fazendo corrupios nos troncos das carnaúbas.
Desconversou, despistando:
— Que chuvarada, hem, seu Chico? ... — É.
Resolveu-se:
— Pois está certo, seu Chico. Será que a gente chega em paz? Chico
Preto soltou o pé, encarou a mulher:
— Não acontece nada, dona. A cheia é besteira. Vai longe... Tá chovendo
ainda nas cabeceiras, vai descer mais água... A dona suba que eu ajeito o
menino.
A mulher acomodou-se como pôde. Puxou o neto para perto da saia.
Chico Preto tomou posição na outra extremidade, o varejão na mão. Deu o
impulso. A canoa deslizou mansa, ganhando o rio.
— Sinto medo da correnteza, seu Chico.
— Faz medo lá nada, dona.
O varejão atolava n'água até o fundo, fazendo glut-glut. Chico Preto
soltava suspiros fortes a cada impulso. A canoa se distanciava.
— Mas o senhor é careiro, hem, seu Chico?... Fez que não tinha ouvido.
Entortou a conversa:
— A dona mora nessas bandas?
— Tou chegando do Taimbé, seu Chico. Vou pra casa da minha filha que
anda doente no Trapiá. Ele aqui é meu neto, filho dela.
Continuaram calados. O menino com o dedo na boca, espantado com a
água, agarrado na avó. Chico Preto esgrimia a vara com esforço, gemendo.
— Mas dois mil réis, seu Chico?!...
— Cobro direito, dona. Com o rio desse jeito, só eu mais o Laurindo
atravessa. O resto pinicou. E o Laurindo não vai longe. Já anda falando... É só a
cheia aumentar.
Cobro o preço direito, n'é preciso ficar aí se tremendo. Eu chego do outro
lado em paz...
Atingiram o meio do rio. A vara sumia-se quase toda dentro d'água.
Chico Preto cada vez fazia mais força no empurrão. Os balseiros nadavam por
perto, rodopiando.
A água barrenta espumava, descendo na correnteza, caudalosa,
chorando feio.
— Precisa jeito, dona. Força e jeito.
Zefélix, escorado no balcão, pelo lado de dentro, espiava a chuva
pingando com insistência lá fora. De vez em quando saía da modorra para
atender.
— Uma chamada, Zefélix!
Uns escorados pelos cantos, o pé na parede. Outros nas sacas de farinha.
Laurindo arriado no balcão, de costas, pelo lado de fora, o ramo de pega-pinto
na boca, olhando a chuva. Velho Clemente, de cabeça baixa, no lugar de
sempre, ali no canto, perto da balança, encolhido, o braço apoiado no rolo de
fumo. A chuva cantando. Galinhas procuravam entrar na bodega, encolhidas,
despistando, fugindo da água, sem coragem de ciscar. Encontravam um pé pela
frente:
— Chô!
O rio tomando água, espalhando-se, ganhando mais distância, ululante.
A outra margem perdendo-se no camaubal mergulhado.
— Será que ele sobe até aqui, Laurindo?
Quem respondeu foi o velho Clemente, homem de muitas cheias:
— La o quê! Cheia igual à de vinte e quatro tou pra ver. Chegou a bem
dizer até àquela oiticica. Terra doida desbilotada... Quando chove, é desse
jeito. O pai morre de sede e o filho morre afogado. Encostou a canoa,
Laurindo?
Cismou ainda um instante antes de responder. Escorado, brincando com
o ramo na boca, a barriga de fora, cabelos do peito aparecendo:
— O rio tá brabo, seu Clemente. Tenho família seu Clemente. Vou
esperar ele escorrer mais.
O silêncio caiu de novo. Os pingos metralhavam nas telhas, entravam
pela porta aberta, frios. A moleza reinando. Moscas em quantidade enchiam o
balcão e as paredes, grudavam na saca de açúcar. Zefélix saiu da pasmaceira,
tirou a mão do queixo:
— E o teu roçado, Firmo?
— Debaixo d'água. Nadando... A correnteza levou até a cerca. Velho
Clemente mostrava as gengivas no riso enigmático. Um dos presentes foi até à
porta olhar o tempo.
— Eh, vai longe...
Aguçou a vista na direção do rio, curvado para a frente, a mão fazendo
pala, olhos espremidos.
— Lá vai o Chico atravessando, gente! O cabra é disposto. As cabeças
aglomeraram-se, umas por cima das outras, entulhadas na porta. Pescoços
espichavam-se na direção indicada. Zefélix pulou o balcão. Só Laurindo
continuou inventando distração com o ramo de pega-pinto na boca, derreado,
o despeito crescendo, estufando a barriga. Velho Clemente se admirava:
— O cabra é doido. O pai também era maluvido. Teve sua fama. Chico
Preto sumia-se na canoa rio adentro, curvado sobre a vara, fazendo voltas em
torno dos balseiros.
Tornaram depois aos seus lugares para curtir a preguiça. Alguns pediam
cachaça para espantar a moleza. A conversaria sobre Chico Preto generalizou-
se. Uma temeridade meter a canoa no rio transbordante, cheio de funis. Velho
Clemente contava histórias de outras cheias, os feitos do pai de Chico:
— O Chico tem a quem puxar. O pai deixou nome.
Laurindo encontrou de repente uma desculpa para cair fora.
Ajeitou a camisa por dentro das calças e marchou para a chuva,
mastigando o ramo. Então a turma ficou calada, trocando olhares. Velho
Clemente achou melhor mudar de assunto:
— Tem recebido fumo novo, Zefélix?
No sonho, o sujeito batia com uma pedra na canoa. Tentava impedir.
Não saía do canto. Pregado. Nem podia falar, língua pesada. O sujeito batendo
sempre com mais força, provocando, achando graça.
Acordou com pancadas na porta. A voz chamava:
— Ôi de casa!
Meteu os pés, zonzo. A mulher também se mexeu.
— É bem capaz de ser gente pra atravessar, Chico.
— Numa hora dessa? Não atravesso ninguém de madrugada. Acendeu a
lamparina. Os meninos roncavam por ali, nas redes.
A voz não parava:
— Ôi de casa!
— Tou indo!
Abriu a parte de cima da porta e sentiu o vento mais os respingos. Um
grupo conversava no alpendre. O das pancadas se informou:
— É seu Chico Preto?
— Tá falando com ele. Boa-noite.
O homem virou-se na direção dos outros, pedindo auxílio para explicar.
Eles se aproximaram e deram boa-noite, mas continuaram calados. Então o das
pancadas enfrentou sozinho:
— Seu Chico, a gente quer um favor de vosmecé. Passar pro outro lado.
Tamos levando um finado.
Chico Preto engoliu o protesto.
Na entrada do alpendre, dois homens com uma rede nos ombros. O
volume era grande.
— Cês vem donde?
— Da fazenda "Serrota". Tamos levando o seu Limo pro cemitério do
Trapiá.
— Quem é ele?
— Seu Lino, da "Serrota". Aquela mulher ali é dele.
Viu a mulher acocorada no canto do parapeito, um pano cobrindo a
cabeça. Lembrou-se e fez o pelo-sinal com a mão esquerda, por causa da
lamparina. Ainda pensou em pôr obstáculo. Atravessar o rio àquela hora era
perigoso. Suspendia as travessias quando o sol descambava. Só soube dizer:
— Não conheço ele.
O homem criou coragem, foi explicando:
— Seu Lino morreu desde de manhã bem cedo. A caminhada foi puxada.
Tudo que é de grota cheia. Avisaram pra gente que só vosmecê tá
atravessando...
— Morreu de quê?
— De repente. Tava ajudando a ferrar e virou ali mesmo... Nem abriu a
boca.
A lembrança veio chegando. Chico franzia a testa.
— Será seu Lino, que deu vinte contos pra igreja do Trapiá?
— É ele mesmo. Vosmecê conhece?
— Ouvi falar... Já vi ele de longe, no Coité.
Voltou a pensar na travessia àquela hora. Não podia ficar ali na conversa
mole. Olhou para a mulher acocorada.
— Maria, cuida da dona ali. Dá um banco pra ela se ajeitar. Virou-se de
novo para o homem.
— Nunca atravessei nessa hora. É perigoso. Balseiro por todo lado.
Mas lembrou-se do preço bom que iria cobrar. A travessia Jeria que ser
feita de duas vezes. Gente muita. Uma trabalheira medonha com o rio daquele
jeito. Podia carregar no preço. Uma ajuda gorda para comprar a barca de
finado Anacleto. Canoa nova, espaçosa. Seu Anacleto nunca chegou a usá-la. A
viúva queria se desfazer dela. Queimava no preço.
— O finado, seu Chico, não pode esperar até o dia amanhecer. Morreu
cedo.
Faria inveja ao Laurindo, a todos os canoeiros. Tomaria a freguesia deles
todos. Não precisaria ir e voltar muitas vezes. A canoa faria o serviço de vez,
transportaria qualquer comboio com facilidade.
— Agora de noite é bem caro. É mais carregado. Perigo muito.
O homem não sabia como explicar. Olhava para os outros, ali mudos,
escorados, olhos para o chão. A mulher encolhida, agora no tamborete.
Afoitou-se, afinal:
— Seu Chico... a gente tá sem dinheiro. A morte foi de repente, pegou a
dona Clara desprevenida. O seu Antônio, filho dele, anda pras Canafístulas,
nem sabe. Ele manda lhe pagar, seu Chico.
Não esperava por essa. Atravessar o rio numa noite assim, e fiado.
— Fiado não posso. A trabalheira é grande.
Continuou falando, zangado. Ir duas vezes ao outro lado do rio, no
escuro, e fiado. O finado podia esperar o dia clarear. A voz ia aumentando, a
lamparina balançando a mão, o querosene querendo pular fora. Mas parou
quando viu a mulher se levantar do tamborete e se aproximar.
— Eu pago a sua caridade, seu Chico Preto. Meu marido precisa chegar
cedo no Trapiá... Meu filho vem aqui lhe agradecer. Faça essa caridade. Nosso
Senhor dá a recompensa. Ficou entalado, nó na goela. A mulher ali perto, toda
molhada. O morto na rede, na entrada do alpendre. Dona Maria passou para o
lado da viúva:
— Vai, Chico. Leva ele. É o jeito.
Deu as costas, com má vontade, levando a lamparina deixando o povo no
escuro. Falou lá de dentro, quase gritando:
— Vão se preparando! Se não vier ninguém me pagar, vou buscar! Inda
mais essa! Atravessar o rio numa hora dessa! E fiado! Vão se ajeitando!!!
Viagem penosa. Desviando dos balseiros no momento exato.
Agüentando a correnteza na vara, pendurando-se nela. O toco foi de encontro
à canoa. Pancada chocha. A canoa rodou, quase vira. Chico falou em voltar.
Mas viu seu Limo no fundo da canoa embrulhado na rede, aumentando o
respeito com a sua ausência. A mulher encolhida, cabeça baixa.
Os homens se aconchegavam, tremelicando. Chico envergava a vara,
quase se pendurando nela, bufando com o peso da correnteza. A canoa
dançava no escuro. A garrancheira cercava.
— Este diabo é que atrapalha. E no escuro...
A mulher agora rezava, seu murmúrio se perdendo com o gemer das
águas. O canto da saparia chegava de longe. E os pingos da chuva impertinente
caíam constantes, frios, batendo de lado com o vento.
— Tamos chegando.
A vara agora ficava quase toda de fora. Com pouco mais a canoa
encostou na areia, dando um sopapo.
Chico ajudou a retirar o morto. Acomodaram-no em cima do barranco.
— Cuidado aí com o barranco. Tá mole. A ribanceira é muito lisa. A
mulher ficou do lado do marido, pastorando. Os outros por perto, acocorados,
guardando silêncio. Então Chico voltou para trazer o resto do pessoal.
Na segunda travessia foi bem mais fácil. Os homens até puxaram
conversa. Chico ficou informado de que o morto era homem de posses. Tinha
os seus amigos no Trapiá, sua casa de três janelas, no Coité.
— O filho não sabe mesmo que ele morreu?
— Sabe não. Anda pras Canafístulas, vendo umas reses. Quando embicou
no barranco, estava até satisfeito.
— O senhor é bom numa canoa, hem, seu Chico?
Riu com superioridade. A proeza causara admiração. Os homens
elogiavam o seu feito, a mulher agradecia. Demorou-se no bate-papo,
contando outras travessias difíceis.
Acendeu um cigarro. Apontou para o volume: — Ele era muito velho?
— Homem forte. Mas de uns tempos pra cá andava sentindo umas
dores...
Continuou olhando para a rede enrolada com o corpo dentro. Teve pena.
Jogado ali seu Lino, homem de respeito. Carregado nas costas, atravessando o
sertão numa noite chuvosa para ser enterrado no Trapiá. Longe de sua fazenda,
da sua casa de três janelas, de suas terras, de seu povo.
A mulher sempre do lado, como sentinela. Chico sentiu de repente um
grande desejo de fazer caridade. Mostrar que ele, Chico Preto, tinha bom
coração. Quando deu fé estava soltando:
— Dona, sabe duma coisa? Não quero nadinha não. Fica por isso.
Apontou para o finado:
— Ele merece, dona. Vi ele uma vez, no Coité... Deu ajuda pra igreja do
Trapiá. Fica de graça, dona. Precisa pagar nadinha não. Dê meus pêsames pro
seu filho.
Os homens ouviram calados, olhos abertos. Não encontravam resposta.
Chico Preto sentia-se envergonhado. Andava de costas, batia nos bolsos,
procurando o que fazer. Nunca fizera caridade tão grande.
A mulher abandonou o marido e se chegou:
— Meu filho vem lhe agradecer, seu Chico. Deus Nosso Senhor tá vendo
sua ação.
Chico não quis encompridar a conversa. Nem disse adeus. Foi para a
canoa, procurando se safar. Ainda ficaram de pé no barranco olhando para ele.
Impulsionou a vara com força e foi se afastando, ganhando o rio.
Chegava agora um arrependimento ligeiro, subindo pelas canelas. Devia
ter ficado calado. Abrir a boca para falar bobagem.
Espantou o pensamento. Já avistava com nitidez os troncos de árvores
levados pelas águas. Olhou para o nascente. A barra vinha quebrando.
A estiagem chegou. Em poucos dias as águas se escoaram, o chão foi
aparecendo, o rio voltou ao leito. O sol brilhava intensamente. O milho que se
salvou balançava empendoado, o verde lustroso brilhando, penachos
levantados.
Os homens voltaram a ajeitar os roçados, consertar os estragos. A
meninada aparecia para os banhos. As lavadeiras traziam suas trouxas, panos
coloridos estendidos no coradouro. A espuma branca de sabão enfeitava as
águas. Os mais velhos botavam os tamboretes para fora para gozarem o sol.
Galinhas ciscavam à vontade, soltavam co-co-ro-cós gasguitos. Galos cantavam
sem quê nem para quê. As carnaubeiras estendiam para o azul do céu suas
palmas verdes. Homens sem serviço assoviavam suas modinhas.
Zefélix só tinha agora velho Clemente para puxar conversa. Escorado no
balcão, por dentro, e o velho nas suas histórias sem fim de muitas cheias e
muitas secas, ali perto da balança, o braço sobre o rolo de fumo.
Laurindo tornou às travessias. Depois Romualdo, mais embaixo. E
Jacinto, lá no Peixe Gordo. Então Chico Preto descobriu que a freguesia fugia
dele. Ficava o tempo todo esperando, se esquentando ao sol, coçando as
pernas, sentado na ponta da canoa, esperando gente. Laurindo não parava,
bem ali adiante. Passava o dia n'água.
Gente esperando nas duas margens, conformada com a demora, sem se
socorrer dele, Chico Preto.
Comentou para a mulher. Estavam fugindo dele, não sabia o motivo.
— É porque diz que tu é careiro, Chico. Diz que tu meteu a unha na
enchente.
Deu suas razões, abriu os braços, descompôs. E o jeito foi ir comendo o
apurado. A economia diminuindo. Adeus canoa do finado Anacleto. Canoa
nova, a bem dizer um batelão. Transportaria todo um comboio de uma vez.
Fugira até da bodega do Zefélix, onde fazia o seu ponto, exibia seus
feitos, contava sua grandeza de melhor canoeiro. Falavam dele, à tardinha,
quando se reuniam para os aperitivos.
Os comboieiros passavam na sua frente e mal cumprimentavam.
Levavam suas cargas para a canoa de Laurindo ou desciam no rumo da de
Romualdo. A canoa de Laurindo não merecia confiança. Canoa menor, velha,
perigosa, comida pelas águas. Para transportar uma carga de rapadura,
Laurindo ia e vinha várias vezes.
Encostado o dia todo. Sem freguesia. Abandonado ao sol com a coceira
de suas canelas. Comendo o dinheirinho junto com avareza. Laurindo sem
parar. Jacinto, no Peixe
Gordo, sem dar vencimento. Romualdo perdido de serviço. Ele, Chico
Preto, de tradição, o único que enfrentara a enchente, abandonado na sua
pasmaceira, entregue às suas coceiras, assistindo o dia todo às lavadeiras no
seu baticum de panos, os meninos na algazarra dentro d'água.
Estava no alpendre sentado. Já nem ficava perto da canoa. Quando viu
foi o cavalo riscar e o homem descer. Levantou-se e se aproximou
cumprimentando. Homem novo, bigode aparado, chapéu de abas largas.
— Aqui é que mora o seu Chico Preto?
— Tá falando com ele.
O homem estendeu a mão e disse que era filho do finado Lino, da
"Serrota". Chico ofereceu o banco. Dona Maria botou a cabeça para ver quem
era. Chico aproveitou:
— Traz café, Maria. O moço aqui é filho do finado que eu levei pro outro
lado naquela noite.
Dona Maria deu bom-dia e se sumiu. O homem ficou conversando,
puxando assunto. Chico calado procurando melhor posição no tamborete. Por
fim, o visitante mudou de rumo:
— Seu Chico, vim lhe agradecer e pagar o seu serviço.
— Fiz o serviço de graça, moço. Eu disse pra sua mãe. Palavra é palavra.
O homem tornou a agradecer. Mas não se conformou, queria pagar. A
trabalheira fora grande, lhe disseram.
— Eu sei, moço. Mas dei minha palavra. Falei de vera. Chegou café.
Ficaram bebendo, calados. Dona Maria, bandeja na mão, via de longe,
encostada à parede, a barriga por acolá.
— Os negócios vão bem, seu Chico?
Quase responde sim. Mas ficou calado. Esperou que a mulher se sumisse
com as xícaras. Resolveu então desabafar:
— Que nada! A cambada toda fugiu de mim. Quando a enchente tava
braba, só eu agüentei o repuxo...
O homem balançava a cabeça:
— Eu sei, eu sei. Se não fosse o senhor, meu pai tinha ficado do lado de
cá.
— Pois é. Aumentei o preço, que o perigo era grande. Pensei até em
comprar a carroa do finado Anacleto, o serviço era muito.
— Barca de quem?
— Do finado Anacleto. Um vizinho que eu tinha aqui perto. Morreu sem
quê nem pra quê. Amanheceu esticado. Canoa nova, nem chegou a botar ela
n'água. Dá bem dizer duas da minha. Pois bastou a água diminuir, a cambada
fugiu...
O homem ouvia calado. Cabeça baixa, batendo com o rebenque no tijolo.
— O senhor ainda pensa na canoa do finado, seu Chico? Remexeu no
banco:
— Cheguei a juntar um dinheirinho. Coisa pouca. Duzentos mil réis. Mas
tou comendo o apurado. A canoa do finado bem que é de mais serventia...
— E quanto é a canoa, seu Chico?
— A viúva tá pedindo um conto e quinhentos...
— O senhor tem muita precisão dela?
Achou que devia defender sua canoa. Tinha tradição. Fora do velho.
Muitos anos de serviço puxado.
— A minha é bem boa. Agüentou a cheia. Viu a de vinte e quatro. Foi do
velho pai. Mas a do finado Anacleto é maior, faz o serviço de vez. Não precisa
tar indo e voltando...
O homem de cabeça baixa, brincando com o rebenque, distraído.
— E no verão, seu Chico, como se arranja?
— Planto a minha rocinha na vazante. A canoa fica encostada. Quando o
inverno é seguro, trabalho nela seis meses. Dá pra ir agüentando a vida.
A conversa foi morrendo. O homem não se despedia. Chico Preto ali na
frente dele, sem mais o que dizer. Dona Maria botou outra vez a cabeça e saiu.
— Seu Chico, e se eu lhe arranjasse o dinheiro para comprar a canoa?
Encarou o visitante. Aprumou-se melhor. Cruzou e descruzou as pernas.
— Como é?...
— Lhe empresto o dinheiro. Depois o senhor vai me pagando.
— Mas é dinheiro muito...
— Posso lhe arranjar. Não lhe aperreio. Vai me pagando devagar. Ainda
mexeu os lábios para falar. Disfarçou gritando pedindo mais café. Lembrou-se e
arriscou a inconveniência do negócio:
— Mas, seu moço, só lhe posso pagar um tico em cada inverno...
— Importa não. Espero.
— E se aparecer uma seca?
— Fica pro outro ano. A gente se entende.
Encolheu-se envergonhado, a satisfação veio chegando, disparando o
coração. Levantou-se para tanger a galinha, procurando despistar o
nervosismo. Falou de costas:
— Mas não tou cobrando o serviço. Já disse que falei de vera.
— Eu sei, eu sei, seu Chico. Estamos fazendo um trato. Criou coragem,
deu meia-volta:
— Pois agradeço a sua bondade...
Quis continuar agradecendo. Não teve palavras. A canoa do finado
Anacleto ali diante dos olhos, os outros canoeiros de boca aberta. Viu o homem
meter a mão no bolso e despistou, virando a cabeça, sem lugar para pôr as
mãos. Tangeu de novo a galinha que já não estava ali.
O dia vinha amanhecendo. As casas ainda trancadas. Pereira ia comprar
café, assoviando. Parou bem na porta da bodega de Zefélix. Ficou olhando, a
testa franzida, assovio suspenso. Zefélix, àquela hora sozinho, quis saber lá de
dentro.
— O que é, Pereira?
— Vigia ali o Chico Preto, Zefélix. Tá na canoa grande do finado Anacleto.
O bodegueiro pulou o balcão, cheio de curiosidade:
— Onde?
Chico Preto passeava no rio, deslizando a canoa em volteios elegantes.
Uma beleza de canoa, faixa azul, grande, a bem dizer um batelão.
— Será que comprou, hem, Pereira?...
— Acho que comprou. Ele não tá ali se divertindo nela? Chegaram outros
e foram engrossando o grupo. Velho
Guilherme, que morava vizinho, botou a cabeça na janela, pano de
enxugar o rosto no pescoço, perguntou o que era. Quando viu Chico Preto na
canoa, soltou o riso murcho:
— O Chico aproveitou a cheia, gente! Outra dessa e ele põe uma venda.
Laurindo também se aproximou, ficou por ali esperando, a garrafa de
querosene na mão.
— Já viu, Laurindo?
Entortou a cabeça, fez que não ligava. Entrou na bodega e ficou batendo
no balcão com o dinheiro, chamando Zéfelix para atender:
— Avia, Zéfelix! Tou com pressa!
A roda aumentava, alguns deles nus da cintura para cima, todos
comentando a novidade. Zéfelix nem dava ouvidos a Laurindo.
No meio do rio, Chico dançava a canoa sobre as águas, exibia suas
habilidades. Desceu até muito longe, margeando pelo outro lado, no rumo do
"Cercado da Ilha". Depois veio voltando, brincando com a correnteza,
deslizando macio. O povo na ribanceira olhava.
Quando encostou a canoa e desceu, acabando com a exibição,
mandando a meninada arredar, o arrieiro se dirigiu risonho:
— Seu Chico, bom-dia. Quer fazer uma travessia?
Encarou o tropeiro com superioridade. Viu os jumentos por perto,
cochilando com o peso da carga.
— Pra que foi que eu comprei a bicha, mestre?
— Tou só perguntando, seu Chico...
Chico virou-se pra os lados. Viu as mulheres paradas, esquecidas das
trouxas. A meninada peruando. Os homens mais por longe. Falou para todo o
mundo ouvir:
— Hoje é de graça! Hoje não cobro nada!
O comboieiro se espantou. Os outros mais as mulheres ficaram trocando
olhares.
— Vá trazendo as sacas! A canoa agüenta tudo! De quanto é a carga?
— Dez sacas, seu Chico.
— É coisinha pouca... Vá arrumando tudo!
Fez a travessia devagar. Varadas curtas. A canoa deslizava serena sobre
as águas barrentas, puxando os animais que resfolegavam contra a correnteza.
— Canoão macio, hem, seu Chico? Quanto foi? Respondeu doutro jeito:
— Tamos chegando.
Embicou na outra margem e a meninada de lá veio ver de perto a beleza
que chegava, atrapalhando.
— Arreda, meninada!
Comboieiros já esperavam. Sacas empilhadas, urus, mercadorias do
Trapiá para o comércio do Coité, de Pitombeira, do Taimbé. A novidade
atravessara o rio com o vento.
Não careceu mais avisar que aquele dia não cobraria nada. Os da frente
foram se preparando, sorrindo, dando bom-dia. Fregueses habituais de
Laurindo misturavam-se por ali, puxando conversa. Velha Aninha distribuía
café, fazia o seu comércio. Chico Preto fumava, sem dar muita confiança,
superior.
— Seu Chico, deixe eu ir desta vez...
Reconheceu o homem, ali encolhido, sujo, riso amarelo.
— Donde vem, Come Gato?
— Tou chegando do Trapiá. Vou pro Taimbé.
— Suba.
Outros tropeiros chegavam, os jumentos badalando seus chocalhos.
— Arreda, meninada! Vamos, gente! Hoje é de graça, já disse. Chico
Preto não parou um instante, nem para o almoço. O sol subiu e desceu. O dia
todo atravessando o rio, a canoa sempre cheia, gente dos dois lados
esperando. Laurindo com pouca freguesia, o povo esquecido dele.
Só encostou a canoa quando escureceu, depois da hora de costume, já
com a saparia cantando. Chegou em casa com os braços bambos, a satisfação
enchendo o peito. Arriou-se na rede armada na sala de jantar. Ficou se
embalando com o pé, os pensamentos por longe. Dona Maria apareceu, o mais
novo no braço, choramingando.
— Tá pronta a janta, Maria? Ela antes se informou:
— A canoa nova cansa, Chico?
— Cansa lá nada. Desliza que nem muçu...
A mulher voltou para tratar do de comer, o menino aos berros.
Chico se balançava, de leve, cismando, gozando a fresca que entrava pela
porta do alpendre. A voz de dona Maria veio da cozinha:
— foi a tua caridade, Chico. A alma do finado te ajudou!
Os armadores gemiam, o pé empurrava a parede para o vaivém da rede.
— Com um tal de Pereira, gente do doutor Soares. Diz que foi pro mode
uns bezerros que seu Queiroz devia.
Chico procurou na memória.
— Conheço ele não. Messe Queiroz já ouvi falar, diz que não paga
ninguém.
Depois se prepararam para a travessia.
— De quanto é a carga?
— Oito urus de rapadura, seu Chico.
— Já sabe: dois mil réis por cada uru... O comboieiro arregalou os olhos.
— Tá muito caro, seu Chico!
— É o preço. E é barato.
Voltou a se sentar na canoa, coçando as pernas, olhando para outro lado.
— Deixe por menos, seu Chico... Mil e quinhentos...
— Já disse o preço. Resolva.
— Mas ontem...
— Só ontem foi de graça. Hoje é outro dia. O Laurindo ali leva por
menos.
— Mas a canoa do Laurindo é pequena e perigosa, seu Chico.
— Então resolva. É o preço. Cobro direito.
O homem mudou de assunto. Ficou puxando conversa mole. Chico Preto
respondendo sem dar atenção. Então o homem resolveu:
— Pois tá direito, seu Chico.
Levantou-se da canoa e começou a dar ordens:
— Vá arriando a carga. Puxe os jumentos pra cá. Com jeito pro mode a
lama.
— Mas o senhor é careiro, hem, seu Chico?
Fez-se de surdo. E não puxou conversa durante toda a travessia.
Do outro lado, àquela hora, só uma mulher de preto esperava, sentada
numa pedra, mais o menino do lado. A canoa embicou. Então a mulher foi para
mais longe, puxando o menino, deixando os animais passarem salpicando água,
relinchando. Depois se chegou.
— Bom-dia, seu Chico. Vai esperar mais gente pra atravessar? Chico
Preto recebia o dinheiro de costas, o homem ainda achando que era muito:
— Da outra vez deixe por menos, seu Chico...
— É o preço. O Laurindo fica ali perto.
O homem se foi com seus animais e a mulher tornou a dar bom-dia.
— Vou esperar mais gente, dona. Só a dona mais o menino dá prejuízo.
— Tá direito, seu Chico. Espero.
Arrastou o menino para junto da pedra, para aguardar ali a chegada de
mais passageiros. Chico Preto foi se lembrando:
— Dona, venha cá. É o seu neto, n'é?
— É.
Ficou em posição de descansar, varejão na mão, vendo para dentro.
— Vou levar logo a senhora, dona. Vá se ajeitando mais o menino.
— E o preço, seu Chico? Ainda é aquele?
Quase dizia que era outro, ainda mais caro. Canoa nova, viagem segura.
Fez foi perguntar:
— E a sua filha, dona? Ela melhorou, a mãe do menino aí?
— Morreu, seu Chico. Se enterrou no Trapiá. Sofreu até o fim. O menino
admirava a canoa, dedo na boca, agarrado às saias da avó. Chico Preto olhava
para ele, pensamento no finado Lino, enterrado também no Trapiá, rebolado
ali no barranco, dentro da rede molhada, a mulher do lado como sentinela.
— Dona, vou lhe levar de graça. Pode subir mais o menino.
— Deus pague a sua caridade, seu Chico. A canoa foi o senhor que fez?
— Comprei ela.
A mulher ali sentada, no vestido preto, o menino do lado. Chico Preto
olhava os dois com o rabo de olho. Foi dando varadas leves, a canoa se
afastando de manso, ganhando o leito do rio.
— Dona, a senhora conheceu o finado Lino, da "Serrota"?
— Vi o enterro dele, seu Chico. Tinha muita gente. A minha filha se
enterrou no mesmo dia.
— Ele era meu amigo, dona.
— Meus pêsames, seu Chico.
Não respondeu. Apressou as varadas, gemendo com a força da
correnteza.
VENTANIA
para Paulo Dantas

Velho Aristides recebeu a notícia e fez que não ouviu. Informou-se de


outras coisas e deitou-se na rede, olhos distantes. Ficou perdido no embalo,
esquecido do vaqueiro Nena, ali escorado, esperando. Urubus passeavam no
céu azulado, sem nuvens. O vento levantava redemoinhos lá embaixo, na
vastidão da caatinga, como de costume.
Os armadores davam sinal de vida, no seu gemido uniforme,
cadenciando o silêncio.
— Nena!
— Tou aqui, seu Aristides...
— Pode ir, Nena.
O vaqueiro só esperava pela ordem. Mal se despediu. Conhecia os
silêncios de velho Aristides.
— Nena!
Voltou do oitão, o coração vexado, parou no batente.
— Tou aqui, seu Aristides...
O velho ainda guardou um mutismo prolongado.
— Diga pro Sabino que eu tenho uma conversa com ele.
— Tá certo, seu Aristides. Ficou esperando outras ordens.
— Adeus, Nena.
— Té logo, seu Aristides.
Vaqueiro Nena se foi ligeiro. Velho Aristides dava impulsos no cajado
para aumentar o embalo da rede. Não trêmula, nervosa, segurando o cacete
com toda a sua fortaleza.
Agora chegava da cozinha o baticum do pilão, entrando na cadência do
ringue-ringue dos armadores. A rede subia e descia no embalo uniforme.
A mão forçou o cajado como escora na greta do tijolo e o embalo
estancou. Velho Aristides levantou-se como sentindo dores, os ossos estalando.
Foi até à ponta do alpendre. Deixou o cajado de lado, segurou o parapeito com
as mãos, e estendeu a vista para a vastidão do seu mundo. A cerca de pau-a-
pique, o Serrote do Machado acinzentado além muito longe. O sol brilhava na
sua intensidade e o vento continuava tangendo os redemoinhos, jogando
ciscos para dentro do alpendre, grudando no corpo esguio de velho Aristides a
camisa de fustão. Do serrote, a vista escorregou para a esquerda, à direção do
juazeiro, e ali parou. Para mais distante, as terras de doutor Tancredo. Ficou
cismando, jogando a vista em pensamento para o outro lado da extrema,
vendo doutor Tancredo na sua sala de visitas cheia de belezas e novidades.
O juazeiro, bem na extrema, servindo de sentinela, impedindo que
doutor Tancredo avançasse, os braços verdes estendidos para o vento,
imponentes, frondosos.
O gesto de contrariedade voltou a se traduzir no hábito antigo: velho
Aristides cofiava o bigode, de leve, de leve.
— Tomou o remédio, Aristides?
Saiu de suas cismas, rápido, pigarreou. Não deu resposta à mulher.
Desencostou-se, segurou o cajado e voltou para a rede, deixando velha Teresa
sozinha na porta da sala, abandonada com sua pergunta. Tornou a se deitar,
agora tossindo forte. Velha Teresa se aproximou, insistiu:
— Tomou o remédio, Aristides?
— Já disse que não quero, mulher!!!
Velha Teresa ainda ficou um instante parada, submissa. Voltou depois
para suas obrigações de dentro de casa e velho Aristides continuou
concentrado nos seus pensamentos, olhos perdidos nos urubus distantes, se
embalando de manso, soltando pigarro forte. A mão se contraía, forçando o
cajado para o embalo, a outra passeando no bigode, de leve, de leve.
Sabino chegou com escuro. Gritou "Compadre Aristides!", e ficou
esperando no batente. A porta de fora escancarada. Enxergava uma claridade
de lamparina na sala de jantar. Velha Teresa foi quem deu a ordem:
— Vamos entrando, compadre!
Seu Sabino foi entrando devagar para não peitar em nada no corredor
escuro e parou na entrada da sala de jantar, dando boa-noite.
— Me chamou, compadre?
— Sente-se, Sabino.
Velho Aristides, na cabeceira da mesa, mexia a xícara. Velha Teresa
dirigiu-se à cozinha, de onde chegava pedaço de modinha de criada Raimunda.
Seu Sabino se sentou mais afastado, perto da parede, e ficou esperando,
chapéu rodando nas mãos, pés trançados por debaixo da cadeira. Soubera,
pela boca de vaqueiro Nena, que doutor
Tancredo fechara a manga para o gado de velho Aristides. A renitência
do velho irritara doutor Tancredo. Gado da fazenda "Cerrado" não beberia mais
água na manga, enquanto o velho não cedesse as vinte braças de caatinga para
aumentar o bebedouro, facilitar água para todas as fazendas vizinhas. Velho
Aristides continuava sem se envergar, não venderia uma braça.
O velho mexia a xícara, indiferente, cabeça baixa, paciente. Vinha de fora
latido de cachorro e ton-fraco de capote.
— Sabino!
— Diga, compadre...
A lamparina, no centro da mesa, projetava a cabeça de velho Aristides na
parede, deformada, gigante, alcançando o teto. Velha Teresa agora ralhava
com criada Raimunda.
— Sabino, e o teu gado?
— Vai de pé, compadre, agüentando o verãozão. O vento é que não é
bom sinal.
Seu Sabino continuou esperando. Velho Aristides soltava o seu pigarro
forte, chiando na respiração. Virou a xícara em goles miúdos, depois passou a
mão no bigode, e ficou com os dedos ali passeando, olhos perdidos.
— Toma um cafezinho, Sabino?
— Obrigado, compadre.
Velho Aristides se levantou se apoiando na mesa, saiu escorado no
cacete até à porta do oitão, demorou-se olhando para fora, na direção do
juazeiro, esquecido da visita. Seu Sabino conhecia aquela mania do velho.
Cismava horas e horas no alpendre, os olhos no juazeiro da extrema, sozinho
no descampado, verde perdido no meio do barba-de-bode seco.
Velho Aristides escorou os cotovelos na mesa, dedos passeando no
bigode.
— Meu poço tem pouca água, Sabino. O catavento trabalha pouco.
Sabino se remexeu e arriscou, de jeito:
— E a manga, compadre?...
O velho levantou-se e foi armar a rede no canto, respirando difícil.
Informou de lá:
— Fico sem a serventia da manga, mas no juazeiro ninguém toca, nem o
Governo.
Seu Sabino conhecia de longe a renitência do velho. A história do
juazeiro era para despistar. Não queria ceder um palmo do "Cerrado". Preferia
levá-lo para a ruína, perder a manga, ficar sem água para o gado.
— O gado vai amanhã, Sabino. Muito agradecido. Seu Sabino só então se
apressou em ficar às ordens:
— O "Tabuleiro" é de Vossa Senhoria, compadre. Tou às ordens...
Velho Aristides se virou de repente, tornou a se sentar gemendo,
encarou o outro de frente:
— Sabino, o meu juazeiro ninguém derruba. Duvida, Sabino? Seu Sabino
sem o que responder. Concordou de cabeça.
— Se não tivesse o juazeiro, Sabino, eu vendia as vinte braças. Disse isso
pra ele. Mas no juazeiro ninguém toca. Meu gado fica sem água, Sabino, mas o
juazeiro fica de pé.
O vento zunia lá fora. Pisotear de rês no oitão. O cachorro agora latia
distante.
— Sabino, já falei com o Nena.
— Sim, compadre... Diga.
— Vou juntar amanhã o meu gado com o seu. São cento e cinqüenta e
três cabeças, mais os bezerros. Fico só com as vaquinhas de leite.
Seu Sabino espantou-se com a notícia. Julgara que o velho Aristides
mandara-o chamar para pedir o seu auxílio junto a doutor Tancredo. O
"Cerrado" sempre utilizara a manga da fazenda "Lajedo", desde o tempo de
ajudante Malaquias. Ficou sem o que falar. Velho Aristides olhava para outro
lado, indiferente. Velha Teresa apareceu e entrou no quarto. Criada Raimunda
voltou a cantar na cozinha, mexendo em pratos.
— O vento anda brabo, hem, Sabino?
— É...
O velho agora se arriava, estalando as juntas, gemendo, soltando o
cacete debaixo da rede.
— Se lembra do Lino, Sabino? O Lino, da "Serrota"?
— Conheço, compadre...
— Pois é. Morreu. Diz que estava forrando e o coração não agüentou...
Voltou ao assunto, de repente:
— Lhe dou vinte cabeças, Sabino. E nas crias é de meia.
— Carece não, compadre...
— Lhe dou vinte cabeças, Sabino. Pode escolher, nas crias é como disse.
— Mas compadre...
— Se for de muito trabalho, Sabino, procuro o Camilo, da "Queimada".
Seu Sabino se remexia, cruzava e descruzava as pernas, sem saber como
negar o presente:
— Pode contar com seu compadre, Coronel. Espero o gado amanhã.
Agradecido pelo presente, mas não carecia...
O velho, dentro da rede, na posição de costume, cabeça meio levantada,
dedos trêmulos passeando no bigode. Respirando com chiado. Velha Teresa
tornou a aparecer.
— Quer o chá agora, Aristides?
— Mais tarde.
Da cozinha, nem mais sinal de criada Raimunda. Velha Teresa trancou a
porta do oitão, falou em vento nas costas do marido. Um jumento relinchou lá
fora, distante.
Uma tropa passava lá embaixo, os gritos dos comboieiros varando a
noite. Velha Teresa voltou para o quarto, deixou os dois no silêncio. O relógio
velho de parede batia um tic— Tac gasguito.
— Sabino!
— Diga, compadre...
— Não demoro muito, Sabino.
Seu Sabino se esforçou para entender. Velho Aristides com os seus
pensamentos voando distantes.
— O teu filho meu afilhado está ainda no colégio?
— Está, sim, compadre.
— Vai ser doutor?
— Se Deus for servido...
Velho Aristides olhava a parede, dedos no bigode. Seu Sabino teve
vontade de se despedir. Os gritos dos arrieiros agora vinham de distante.
— Não demoro muito, Sabino. Seu Sabino agora compreendia.
— Mem fale nisso, compadre Aristides. O senhor é homem ainda forte,
vai longe...
— Não diga besteira, Sabino. Não demoro, você sabe. Outro silêncio
prolongado. A criada Raimunda voltava a mexer na cozinha. A lamparina, no
centro da mesa, apaga-não-apaga com o vento que entrava pela porta aberta
da sala de fora, zoando no corredor. Seu Sabino achou de ir indo, morava
longe. Levantou-se pedindo licença. Voltou a garantir que estava às ordens,
ficava aguardando o gado. Chamaria vaqueiro Rafael para auxiliar vaqueiro
Nena a soltá-lo no cercado da "Capoeira Velha". Ainda criou um tico de
coragem para perguntar a velho Aristides se podia falar com doutor Tancredo.
Mas não mexeu a boca, ficou só na intenção.
— Teresa! O Sabino já vai, Teresa!
Velha Teresa apareceu para as despedidas, o terço na mão, vinha de suas
rezas no quarto. Velho Aristides nem respondeu o "até logo, compadre, deixe
disso, o senhor vai longe..." Ficou passando os dedos de leve no bigode, bem
de leve.
Seu Sabino já ia no corredor, quando veio o grito:
— Sabino!
— Diga, compadre!
— No meu juazeiro ninguém bole, Sabino!
Seu Sabino ainda guardou um minuto parado. Depois soltou outro "boa-
noite!" e foi saindo. Os dedos do velho continuavam passeando no bigode, de
leve, de leve.
Velha Teresa levantou-se ainda com o quebrar das barras, os gaios
cantando, e estranhou encontrar o marido dentro da rede, dormindo
silencioso, sem o chiado da respiração.
Velho Aristides metia os pés cedo e ficava remexendo por dentro de
casa, quebrando o silêncio com as batidas do cacete nos tijolos, soltando
pigarro alto. Dava seus gritos no alpendre, chamando vaqueiro Nena.
Velha Teresa aproximou-se da rede de seu velho e viu o volume
encolhido dentro.
— Aristides!
Puxou o punho da rede, o volume balançou, mas não deu resposta. A
claridade era pouca, entrando pelas gretas do telhado. Velha Teresa abriu a
janela e a manhã que vinha chegando entrou, clareando melhor.
— Aristides! Está me ouvindo, Aristides!
Curvou-se para apreciar de perto. Velho Aristides olhava para cima, no
rumo das telhas, boca aberta, braço abandonado para fora da rede.
— Raimunda! Raimunda!
A criada, àquela hora já escorada na cozinha, se coçando, vendo a água
ferver, veio abrindo a boca, tangendo o resto de preguiça.
— O Aristides teve uma coisa, Raimunda. Nem responde. Criada
Raimunda, com seu espanto, esqueceu o sono de vez.
— Virge, dona Teresa! Parece que ele tá é morto...
Os olhos do velho vidrados, frios para cima, na direção da cumeeira, boca
esperando ar. Velha Teresa sacudia o marido pelos ombros.
— Aristides! Aristides!
— Ele tá morto de vera, dona Teresa... Virge, Maria!
A velha aumentava sua angústia, chamando o marido para a vida. Criada
Raimunda, dizendo "vala-me, Deus", foi para o alpendre soltar o alarma:
— Seu Aristides morreu! Avia, minha gente! Seu Aristides morreu!!
Zeca da Iaiá, que passava lá embaixo na direção do Trapiá, veio
inventando vereda, chegando em zigue-zague, pelo meio do mato seco.
Esbugalhou os caroços dos olhos na entrada do alpendre:
— Morreu mesmo?
— Se finou dormindo, seu Zeca... Tá no quarto mais dona Teresa...
Zeca da Iaiá entrou cheio de respeito, pisando de leve, chapéu na mão
trêmula, se benzendo, criando coragem para pôr a vista em cima do falecido.
Parou na porta do quarto, coração estancado, dizendo de mau jeito, os olhos
pregados no morto:
— Deus dê o vosso descanso, Coronel...
Criada Raimunda agora chorava. Velha Teresa soluçava baixinho de junto
à rede de seu velho, ali impassível na sua posição, vigiando as telhas, boca
aberta.
— Ele morreu, seu Zeca...
Zeca parado, petrificado, entalado, sem atitude a tomar, nem sabe como
disse:
— Acenda uma vela, dona Teresa...
Apareceu a cabeça espantada de vaqueiro Nena na janela do oitão.
— O que foi?
Olhou espantado para os presentes e depois para dentro da rede.
— Virge, Maria!
Arrodeou para entrar, chapéu na mão, se benzendo. Mas antes soltou o
grito, alarmando, bem da ponta do alpendre:
— Coronel Aristides morreu!!!
Já vinha subindo Manuel da Pupuca e, por detrás da casa, desviando dos
pés de cansanção, chegava a mulher de comboieiro Chico Brito.
O quarto foi se enchendo. Outros por fora, na sala de jantar, temendo
enfrentar a morte de velho Aristides. Mestre Manuel mais a mulher, seu Brito,
vaqueiro Mena, Zeca da Iaiá, seu Aparecido mais as duas filhas, todos faziam
roda em volta da rede, guardando respeito. Velho Aristides indiferente, olhos
para cima. Velha Teresa arriada no baú, soltando o choro, cercada pelas
comadres. Velha Assunção, mulher de seu Sabino, despachada, comandava o
consolo. Mestre Romualdo foi quem criou coragem:
— Vambora ajeitar ele?
Zeca da Iaiá saiu empurrando os de fora, avisando que ia chamar padre
Zefé, no Trapiá, dar o aviso na vila.
No alpendre, pelo corredor, na sala, o povo ia entulhando. Outros mais já
se espalhando no terreiro, temendo se aproximar. Criada Raimunda sentada no
pilão, na cozinha, soluçava alto. Algumas amigas por perto, assistindo ao seu
choro, capiongas, sem jeito para interferir.
A novidade ganhava rápida a vastidão das caatingas, levada pelo vento
nos seus redemoinhos, trazendo o povo que passava, alcançando as fazendas
distantes.
Parecia dia de festa. Só que não havia gandaia. O casarão escancarado
para receber as visitas. Gente por fora, por dentro, homens escorados no
parapeito do alpendre, acocorados no terreiro. Animais amarrados nos paus-
de-cerca, na pitombeira do quintal, amontoados na frente da casa. As janelas
da sala de fora cheias de cabeças, curiosas, umas por cima das outras olhando
para dentro.
E mais gente vindo de todas as direções. Gente silenciosa, os homens de
chapéu na mão, as mulheres com seus rosários, panos na cabeça, orações na
boca.
O vento zunia, levantando os redemoinhos, entrando na sala, apagando
as velas, brincando de manso nos cabelos grisalhos de velho Aristides. Na sua
imponência de morto, estendido em cima da mesa, impondo respeito com sua
ausência e sisudez, metido na roupa preta, nas botas de couro. Os mais
importantes por perto. Padre Zefé, Coronel Amarício, das "Marrecas", lrineu,
irmão de Manuel Alves, Coronel Aparício, das "Contendas", seu Oséas, do
Coité, Renato, filho de velho Renato, seu Sabino, Coronel Camilo, da
"Queimada", gente da "Mata Fresca", Leopoldo, cunhado do falecido velho Das
Onças, chefe político de Pitombeira. Todos ali em torno, graves, sem palavras.
Gente nas cadeiras, uma velha puxando a reza num canto. Homens escorados
nas paredes, pelo corredor. Vaqueiro Nena perto de vaqueiro Rafael.
No quarto, estirada na rede, velha Teresa entregue ao seu sofrer. A
sobrinha Matilde, que morava no Trapiá, ali do lado, como sentinela.
Conhecidas e comadres fazendo roda. Na cozinha, no tamborete, criada
Raimunda agora conversava baixo com as amigas, contava passagens e
bondades de velho Aristides.
Os que estavam no terreiro, por detrás da casa, conversavam em grupo,
uns em pé, outros arriados, na pasmaceira. Zeca da Iaiá se orgulhava de ter
sido o primeiro a socorrer velho Aristides. Outros lembravam bravuras
passadas do falecido na briga com os Castros:
— Entrou com uma chibata e meteu a lenha até nos cabritos...
Recordavam a primeira eleição do Coité. Velho Aristides mandando acabar com
a festa. Zesérgio informava:
— Meu pai tomou parte no serviço. Velho Aristides chamou ele aqui e
deu dez mil-réis.

Alguns bebiam cachaça, outros enjeitavam por respeito. Vicente, irmão


de vaqueiro Mena, tocou no assunto das vinte braças que doutor Tancredo
queria adquirir do
"Cerrado". Vinte braças de caatinga sem serventia. O "Cerrado" era terra
muita. Renitência do velho. O apego ao juazeiro só podia ser renitência ou
caduquice. Doutor
Tancredo era homem da praça, tinha saber, queria resolver o caso da
água de vez. Carecia de vinte braças de terras para estender a manga,
favorecendo os vizinhos, inclusive o próprio falecido. Só vinte braças de
caatinga, a bom preço, para alargar a manga e depois entregá-la ao povo, sem
dono.
Uns ouviam calados, outros pediam respeito. O morto estava na sala,
ausente.
O vento rodopiava no terreiro, obrigando os homens a se protegerem.
Zunia no alpendre, nos armadores tranqüilos, indiferentes, sem a rede para
balançar. Entrava na sala, apagava as velas, bulia de manso no bigode de velho
Aristides. Bigode vasto, amarelecido, caindo pelos cantos da boca. Bigode de
tradição, igual aos de seus antepassados. Major Farrapo, tio de velho Aristides
Cunha, impusera respeito e terror com o seu bigode. Reconheciam-no de
longe, o preto do bigode se destacando.
Acariciava-o de leve, o cacoete tinha tradição, vinha do passado,
acompanhava a dinastia da família, perdia-se na história dos donos do
"Cerrado".
Padre Zefé agora mandava deitar o morto na rede, breviário aberto, suas
orações esquisitas baixando a cabeça do povo, trazendo os de fora para mais
perto. Vizinhos atrasados ainda chegavam. Major Abílio, nas botas altas,
rebenque na mão. Doutor Zacarias Peixoto, dos Peixotos de "Campo Belo".
Comboieiros de aguardente paravam lá na estrada, sem coragem de tomar
chegada, apreciando de longe.
Os de detrás da casa se aproximavam no passo leve, alguns fazendo roda
por longe, temendo enfrentar o morto. Velho Aristides se preparava para
deixar seu casarão, a vastidão de suas terras. Não tinha filho para continuar a
dinastia dos Cunhas, para reinar no "Cerrado", garantir as extremas, vigiar o
juazeiro.

Começava a chuviscar de leve no cemitério, ali no canto da Capoeira


Velha, de junto às terras de seu Sabino. Túmulos antigos, cruzes podres,
arriadas, sem nomes.
Ali estavam todos os Cunhas falecidos e mais gente de velho Renato, de
seu Sabino, de Coronel Cirilo. Anjos, filhos de moradores, as pequenas cruzes
espalhadas entre os túmulos altos. De junto ao portão, o túmulo já sem reboco
de ajudante Malaquias, cruz meio caída, um braço penso, algarismos comidos
pelo tempo.
O povo arrodeava por fora, junto à cerca. Mulheres soltando o choro.
Homens de chapéu na mão, procurando jeito para posição decente. Padre Zefé
na frente, olhos no livro negro, esquecido dos presentes. Os importantes
cercando o falecido, a rede nos ombros dos cabras. Uma velha puxava o "Fio
Céu, no Céu, com minha Mãe estarei..."
O coro saía fraco, penoso, os homens com vergonha de cantar.
Velho Aristides aproximava-se de seus antepassados, de ajudante
Malaquias, de Major Farrapo. A cova aberta, o monte de terra fresca jogado
por cima das cruzes, de junto ao túmulo de velha Mariinha, sua madrasta, que
morrera de varíola, numa noite chuvosa de começo de inverno. Meia hora
antes de falecer, velha Mariinha ainda deu ordem para derrubar a cerca da
extrema com a fazenda do velho Das Onças, chefe político de Pitombeira,
originando a briga que durou uns pares de anos. Velha Mariinha deixou nome.
Seus feitos ainda lembrados no Trapiá, no Coité, no Taimbé, em Pitombeira.
Velha Mariinha chegou a reunir os parentes para vergarem o dono do "Lajedo",
o velho Ambrósio, seu parente por um lado. Velho Ambrósio enfrentou dona
Mariinha de frente. Houve morte, a mana pegou fogo, o corpo de negro
Valdomiro amanheceu um dia pendurado no galho do juazeiro da extrema.
Gente dos Meios entrou para fazer a paz. Negro Valdomiro foi enterrado, a
tragédia de sua morte correu mundo, mas a manga ficou com o "Lajedo". Era o
grande sonho de velha Mariinha ver o "Cerrado" na posse da manga,
imponente, sem carecer de ninguém. Mas velha Mariinha morreu com sua
varíola, seu ódio e sua desilusão. Veio Aristides e continuou de boa paz, se
servindo da manga do "Lajedo", para viver. Outros fazendeiros da redondeza,
como os de "Marrecas" e "Mata Fresca", também lutaram pela presa e tiveram
o mesmo fim do "Cerrado". Viviam todos da caridade do "Lajedo" para o
sustento de seus rebanhos. Até que apareceu doutor Tancredo, homem da
praça, adquiriu as terras dos herdeiros de velho Ambrósio. Procurou os
vizinhos, tentou uma solução. Queria beneficiar a todos, sem distinção,
estender a manga, inundar vinte braças sem serventia de caatinga do
"Cerrado". Oferecera um bom preço. Velho Aristides permaneceu firme,
preferia levar sua fazenda para a ruína, desenterrando ódios antigos.
A chuvinha continuava peneirando, chicoteando nos rostos, tangendo as
folhas, levada pela ventania. Velho Aristides já debaixo do chão, os mais
importantes jogando pás de terra por riba. Padre Zefé sem se afastar das
orações, concentrado, esquecido de todos. O povo esperando, no silêncio
prolongado. Chegava nítido, de detrás do cemitério, chocalho de animal
pastando. As mulheres apenas mexiam a boca nas rezas mudas. Um menino
tentou trepar no túmulo de Major Farrapo. O cochicho veio rápido:
— Arreda daí.
Velas eram acesas ao pé das cruzes. Mulheres que aproveitaram a
caminhada para visitar seus mortos. Mulher de Mestre Romualdo ajoelhou-se
de junto à cruz do filho, morto no tempo das febres, quando já falava papai e
mamãe.
A escuridão vinha chegando, trazendo sua tristeza e os pingos da chuva
mais frios. Um trovão agora ecoava longe, para os lados do "Lajedo",
denunciando chuvarada grossa para a noite. Alguns debandavam, olhando o
tempo, entortando a cabeça para se protegerem da ventania. A batina de
padre Zefé trapejava. Os mais importantes se cobriam.
Velho Aristides já se sumira debaixo da terra. Os pingos engrossavam, o
trovão se chegando. As velas se apagavam, as ainda acesas lutando
desesperadas contra o vento.
Velha Teresa ficara no casarão, mais a sobrinha e criada Raimunda. A
ventania tremia as janelas fechadas, zunia nas gretas. Rondava ainda cheiro de
vela pela casa.
Uma cabra pisoteava no alpendre, na mesma cadência do cajado de
velho Aristides. O catavento dava sinal de vida, gemendo vagaroso. O tic-tac do
relógio, na sala de jantar, acusava a passagem do tempo.
Na extrema, o juazeiro jogava seus galhos verdes para um lado e para
outro, enfrentando a ventania. Tinha os seus pares de anos. Assistira às
disputas dos Cunhas com o vizinho, a briga feia pela conquista da manga, ali ao
seu pé. Do seu galho pendera enforcado negro Valdomiro. Contavam que
negro Valdomiro não tinha mais sossego, o juazeiro era a sua morada. O zunido
do vento, nos galhos frondosos, o chorar de suas penas. Aparecia nas noites de
lua, o gemido varando as caatingas, chegando aos ouvidos dos arrieiros que
passavam na estrada. Pedia socorro aos vivos, a corda lhe tirava o fôlego.
A chuva começava a cantar feia, metralhando cerrada, compacta, caindo
do céu sem luar e sem estrelas.
Zé de Qóis desceu a picareta de com força bem por debaixo da raiz.
Depois se escorou no cabo, limpou o suor dos peitos com a fralda da camisa.
Mundoca bebia água no gargalo da cabaça, ali perto. Solzão brabo. O juazeiro
estendido no chão, galhos murchos, decepados. Só faltava arrancarem o
tronco, as raízes duras agarradas no chão esturricado.
O vento agora passava livre, sem zunir nos galhos da árvore. Marchava
solto na direção do casarão do "Cerrado", lá no alto, trancado, abandonado na
sua solidão.
Alpendre vazio, sem a rede armada, sem o vulto de velho Aristides
batendo nos tijolos o seu cajado. Só o catavento ao lado do poço, por detrás da
casa, dava sinal de vida, virando o leme para lá e para cá, de cá para lá. Sem
velha Teresa, seu vulto miúdo junto à janela, às tardinhas, às vezes sentada ali
perto de seu velho.
Sem criada Raimunda, mudo o seu pilão. O gado com seu Sabino. O
"Cerrado" dos Cunhas nas mãos de doutor Tancredo.
Velha Teresa não ouviu os conselhos, aceitou as propostas do vizinho.
Mas seu coração se partiu de arrependimento no dia em que fechou a casa-
grande e deitou um derradeiro olhar em volta. Seu mundo sempre fora aquele,
desde menina-moça, quando veio da serra, pela mão do pai, juntar seu destino
ao de Aristides. Vira farturas, secas e brigas por questões de terra, discussões
dentro da noite pela posse da manga. Sempre sonhara com um filho para
encher o seu mundo. Aristides metido com os vaqueiros e ela a se balançar na
rede, no quarto, às tardinhas debruçando-se à janela do alpendre, esperando o
cair da noite. Habituara-se à solidão, poucas vezes indo à vila. Envelhecera
assim. Não suportou, porém, a morte do marido. Sua presença continuou viva
por toda a casa. Ha sala de jantar cofiando o bigode. No corredor, apoiando as
passadas com o cacete. Na sala de fora, recebendo as visitas importantes. No
alpendre, os armadores tangendo sua rede. No quarto, remexendo em papéis
antigos, falando em contas que ela não entendia.
Preferiu o fim de seus dias ao lado da sobrinha, no Trapiá. Cedera aos
argumentos de doutor Tancredo.
Foi para a vila mais Raimunda, uma saudade infinita abrindo-lhe o
coração. Viu que sua decisão apressara-lhe os dias, o "Cerrado" era um pedaço
de sua alma.
O juazeiro da extrema, orgulho de velho Aristides, morada de negro
Valdomiro, dormia no chão, galhos murchos, cansados das ventanias, cedendo
o seu lugar para a invasão das águas da manga.
Zé de Qóis voltou ao trabalho, a picareta cantou feio. Mundoca esgrimia
a foice, mutilando a árvore.
— Se velho Aristides visse, nem, Góis?...
— Era.
A picareta cavou outra vez por debaixo da raiz e o aço tiniu como sino.
— Bateu em pedra, Mundoca.
O outro veio de lá. Espiou, vergando a espinha.
— Parece um prego. Vigia aí por debaixo da raiz.
Zé de Qóis se abaixou, cabeça enviesada, quartos para cima:É mesmo.
Ajuda, Mundoca.
A picareta escorou por baixo, a foice trabalhou por cima. A raiz foi
cedendo, vindo à superfície, o chão rachando.
— Pra que diabo meteram a porqueira desse prego aí, Mundoca?
— Sei lá...
A foice partiu a raiz em duas e o prego apareceu todo, grande,
enferrujado, ponta arrebitada. Zé de Qóis meteu a picareta na terra, calçando
por debaixo do prego, escorando todo o corpo no cabo, careta espalhada na
cara.
— Tem um troço duro aí... Continuaram no serviço.
— Tou na intenção que é de ferro...
— Capaz de ser pedra. É duro como diacho.
— Escora por debaixo, Góis.
A picareta bateu forte na terra e Zé de Qóis veio trazendo-a devagarinho,
forçando como alavanca.
— É uma mala, Qóis. -Eéde ferro.
Agora trabalhavam de joelhos, com as mãos, vexados. O vento zunia
livre, levantando redemoinhos, chorando no caatingal marchando para o
casarão solitário.
— Traz ela devagar, Qóis. Assim...
Zé de Qóis gemia com o esforço. Veio trazendo com jeito, resfolegando
forte.
— Pronto.
A caixa enferrujada tremia nos seus joelhos, o coração no baticum surdo,
olhos vigiando os lados. Mundoca paralisado, sem fala, também se virando.
— Vambora abrir, Góis? Só soube responder:
— Hem?...
Um cambiteiro passava na estrada, soltando de lá o seu cumprimento.
Mundoca respondeu sem jeito e cochichou rápido, mal abrindo a boca:
— Esconde ela, Qóis...
Zé de Qóis despistava, virado de costas, se escondendo. O cambiteiro se
foi tangendo sua carga, estalando alto o relho.
— Vambora abrir ela, Qóis?...
Zé de Qóis, nervoso, limpava a tampa da caixa com a aba da camisa, suor
frio descendo pela ponta do queixo.
— É pesada, Mundoca. Tem um nome em riba. Vigia aí...
O outro se aproximou, espremeu os olhos, custou a soletrar:
— A... Aris... Aristides...
Parou. Zé de Qóis arregalou os olhos, perdeu a fala, entalado. Só a custo
soltou:
— Tu acha?...
A caixa agora no chão entre os dois, tranqüila, os quatro olhos em cima.
— Abre tu, Mundoca.
— Abre tu...
O grito veio de longe. Viraram-se. Era Mestre Guilherme, encarregado do
serviço da manga, que vinha chegando.
— Enterra de novo, Qóis. Depressa.
Zé de Qóis trabalhou ligeiro, colocando a caixa no seu lugar de debaixo
do chão, cobrindo-a de terra, nervoso, suor pingando.
— Depois a gente vem buscar ela...
— É...
— Depois nós...
— Te cala.
Mestre Guilherme aproximava-se assoviando. Zé de Góis ainda segredou:
— Que é que tem dentro?
— Psit! Fecha a tramela. Vigia aí seu Guilherme.
O assovio de Mestre Guilherme cantava perto. Zé de Góis procurava
esconder os sinais, acariciando a terra com a mão nervosa, de leve, de leve.

Fim

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

Vous aimerez peut-être aussi