Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Eugênio Gomes
ÍNDICE
John Donne e o Eldorado
"Nigra sum, Sed Formosa"
O teatro de Shakespeare
A questão Bacon-Shakespeare
Ainda Bacon e Shakespeare
Heterodoxos de Shakespeare
O ciúme de Otelo
Versão popular de Romeu e Julieta
A lição de Timon
Alvíssaras
As mulheres de Shakespeare
A última peça de Shakespeare
Swift e o Brasil
Byron e o vampirismo
Dickens e o bom selvagem
A personagem brasileira de Shaw
John Masefield e o Brasil
Yeats e a velhice
James & Wells
Joyce e as epifanias
Ainda G. B. Shaw
Evelyn Waugh e o Brasil
O fenômeno Dylan Thomas
John Betjeman, poeta da TV
Day Lewis e a política
SWIFT E O BRASIL
A aproximação que se pode estabelecer entre o severo Deão
de St. Patrick e o nosso país, embora ligeiríssima, prende-se
às duas faces de sua personalidade que se chocavam
violentamente entre si: a do homem público e a do homem
íntimo.
Swift, que saiu abruptamente da obscuridade, a que a
carreira eclesiástica parecia condená-lo desde o começo,
graças às terríveis impulsões do panfletário, teve, entre 1710
e 1713, a primeira fase culminante de sua extraordinária vida
pública. Foi quando residiu temporariamente em Londres,
onde, já tendo mudado de partido, deixando os Whigs pelos
Tories, exercia grande ascendência pessoal sobre os
estadistas mais influentes que gravitavam em derredor da
Rainha Ana. Tornou-se excepcionalmente temido e
respeitado por sua formidável combatividade jornalística e,
dadas as suas ligações, era mesmo o que se pode chamar um
homem do poder. O panfleto The Conduct of the Allies,
com seis edições consecutivas em dois meses, e que habil-
mente havia preparado o espírito do povo para as negocia-
ções preliminares do Tratado de Utrecht, é ainda lembrado
como o maior êxito que o jornalismo político jamais lograra
na Inglaterra até então. Por esse modo, Swift concorreu
enfim, peremptoriamente, para que o partido Tory, atraindo
as simpatias populares, pudesse conduzir a nação inglesa à
paz estabelecida pelo famoso e discutidíssimo tratado.
Produto até certo ponto da visão genial de Swift, esse
tratado, que os Whigs atacaram desabridamente, foi por
assim dizer a senha com que a Inglaterra adquiriu decisiva
preponderância no continente europeu, passando mais tarde
a dominar os mares em todas as direções. Desde então, os
navios ingleses tiveram livre de quaisquer perturbações o
acesso à América do Sul, onde desembarcavam escravos,
retornando carregados de produtos deste continente. Por
sua vez, um tratado de amizade com Portugal regulava
pacificamente o intercâmbio comercial entre as duas nações.
E os ingleses, já absorvidos no hábito do vinho do Porto e
também do tabaco do Brasil, não descuravam do aliado
ibérico, que lhes proporcionava tais delícias. Portugal e suas
colônias estavam nessa altura dentro da órbita do interesse
político britânico e, por isso, qualquer golpe que
eventualmente recebessem de uma potência estrangeira
havia de produzir imediata repercussão nos domínios de
John Buli. Foi o que se deu quando as forças de Duguay-
Trouin conquistaram a cidade do Rio de Janeiro, em se-
tembro de 1711. A França era ainda uma nação inimiga e
esse fato causou, não apenas estranheza, mas verdadeira
estupefação na Grã-Bretanha. Um testemunho muito
significativo disto é o assentamento de Swift no "Diário a
Estela", quatro meses após, que foi certamente quando a
notícia chegou a Londres: "Estamos cruelmente
mortificados por saber que os franceses tomaram aos
portugueses uma cidade do Brasil".
É claro que não havia nada de sentimental nesse desabafo,
mas a inesperada arremetida dos franceses constituía de
qualquer modo um perigo para as ligações da Inglaterra com
a América portuguesa, e isso deixava em sobressalto a
política expansionista de que Swift era o principal ins-
pirador.
Além desse círculo em que é que o Brasil se tornaria
lembrado a Jonathan Swift? O excêntrico espírito que
concebeu as Viagens de Gulliver não havia de mostrar-se
indiferente à terra do novo mundo em que os exploradores
do ocidente encontravam tanta coisa exótica ou
simplesmente fora do comum. Papagaios? Bugios?
Indígenas? Minas de ouro? Tudo isso figurava entre as nossas
curiosidades que exerciam maior atração sobre o homem
civilizado, mas era unicamente pelo tabaco do Brasil que
Swift demonstrava interesse mais vivo naqueles dias de
intensa maquinação política. No "Diário a Estela", que reflete
nitidamente as suas mais íntimas preocupações de cada
instante, tornaram-se freqüentes as referências a esse
produto, que o grande homem costumava adquirir em
Londres, tanto para si como para as duas amigas ausentes,
Estela e sua companheira. "Tenho o mais belo pedaço que
jamais se viu de fumo do Brasil para Dingley", diz ele numa
carta e, noutra, que havia encomendado o mesmo e precioso
fumo a um conhecido que se achava em Portugal. A
Inglaterra nessa época era um dos maiores consumidores do
fumo de corda fabricado na Bahia, então considerado o mais
perfeito e melhor do mundo. Seu uso em pó ou em rapé
estava em grande voga na sociedade inglesa, encontrando-se
alguns motejos na obra do Deão, neste sentido, relacionados
com o "high-life", especialmente no movimentadíssimo
círculo dos "coffee-house", que era para onde convergiam os
intelectuais, os políticos em evidência e a gente de bom-
tom. Nestes lugares predominava geralmente o fumo do
Brasil. E, em conseqüência, pode imaginar-se Steele ou
Addison compondo os seus admiráveis ensaios ou
discorrendo sobre os acontecimentos do dia com o
levíssimo pó brasileiro à mão para levá-lo às narinas de vez
em quando...
Na sua obra Cultura e Opulência no Brasil, que saiu
justamente na época em que Swift redigia o "Diário a Estela",
narra Antonil que, após as primeiras arrobas que, um século
antes, "a Bahia enviou a Lisboa, como uma sementeira de
desejos", o nosso fumo de mimo passou a um alto nível de
mercancia, acrescentando: "Hoje apenas os tantos milhares
de rolos, que levam as frotas, são bastante para satisfazer ao
apetite de todas as nações, não só da Europa, mas também
das outras partes do mundo, donde encarecidamente se
procuram". A verdade é que os ingleses se deleitavam com o
tabaco do Brasil, em cujo preparo entravam essências
aromáticas da natureza tropical, o que era um modo de levar
o calor de nossa terra à frígida pátria do "fog".
O vício do fumo em escala maior veio depois e quando
começou a suplantar aquele outro, foram tantas as
precauções, na Inglaterra, para isolar os fumantes,
mantendo-os em compartimentos reservados, que isso deu
matéria a Dickens para um dos capítulos mais divertidos do
romance de aventuras do conspícuo Pickwick. Swift
preferiu o fumo apenas para aspirar e com ele regalava mais
ou menos regiamente as duas mulheres, que o
acompanhavam em espírito da erma e remota Irlanda,
enviando-o periodicamente com o relato entre sisudo e
humorístico de suas peripécias políticas e sociais na corte da
rainha Ana. Está visto que, entre as suas esperanças e
desesperanças amorosas, Estela podia consolar-se com a
excitante pitada de um bom fumo, que tinha sido
requeimado pelo ardente sol das nossas plagas. Swift não lhe
poupava absolutamente esse prazer. E, conforme diz a
personagem machadiana do entreato Bote de Rapé:
Até o amor aumenta Com a porção de pó que recebe uma
venta...
(1960)
BYRON E O VAMPIRISMO
O romantismo teve os seus fantasmas e um deles era o
Vampiro. Acreditava-se que as mulheres libertinas ou fatais,
depois de mortas, reapareciam, sob a proteção do demônio,
para sugar o sangue às criaturas de suas preferências. Se bem
que essa lenda seja bastante antiga, deve recordar-se que,
propriamente como tema literário, o Vampirismo surgiu no
começo do século XIX. Em sua obra sobre a decadência do
romantismo, o crítico Mário Praz atribui a Byron a
responsabilidade dessa moda, que invadiu rapidamente todas
as literaturas. Baseia-se em que a primeira menção de
vampiro, por efeito daquela superstição disseminada pelo
folclore asiático, encontra-se no poema dramático The
Giaour, de Byron, publicado em 1813, nesta passagem da
tradução do Barão de Paranapiacaba:
O teu corpo, do túmulo surgindo
Há de à terra voltar e, transformado
Num vampiro de força poderosa,
Fará morada (pavoroso espectro!)
Nessas paragens, onde houveste berço,
Indo a todos os teus sugar as veias.
Tu, repugnando o detestável cibo,
De que te nutrirás vivo cadáver
Irás, à meia-noite, haurir o sangue
Da própria irmã, da filha, da consorte,
Hão de, expirando, conhecer as vítimas,
Qual monstro infernal, que as sanifica.
Serás deles maldito... hás de lançar-lhes,
Por tua voz, o derradeiro anátema.
Trinta anos após, na cidade de Gênova, em companhia de
Shelley, do Dr. Polidori e outros, Byron leu algumas
histórias de fantasmas, incitando os presentes a se exerci-
tarem nesse gênero. Sob tal influxo, Mary Shelley escreveu
o Frankenstein, e o próprio Byron compôs a sua história de
terror, publicada em 1819, com o título A Fragment. Por
sua vez, o Dr. Polidori um médico e escritor italiano de
quem Byron costumava troçar produziu a narrativa
macabra A Vampire, na qual aproveitara algo de um ro-
mance autobiográfico de Carolina Lamb, que foi uma das
amantes mais desventuradas do bardo. Até aí muito bem,
mas, quando esse trabalho foi noticiado, numa publicação
inglesa, que se editava em Paris, com a menção do nome de
Byron como sendo o de seu autor, o poeta, que estava em
Veneza, deu-se pressa em desfazer esse equívoco, que tudo
indica ter sido proposital, para atrair maior número de
leitores.
Por um feliz acaso, a carta que, indignado com o fato, Byron
dirigiu ao proprietário do "Massenger", protestando
vivamente contra aquela atribuição, pertence à Secção de
Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Parece que essa carta não foi amplamente divulgada, pois
Goethe, que tinha pelo bardo tamanha admiração, estava
convencido de que A Vampire era a melhor obra que Byron
tinha escrito! Por onde se vê que um nome famoso pode
operar milagres, transformando reles metal em ouro, até
para as vistas de um grande conhecedor...
Em duas cartas de sua correspondência compilada,
encontram-se referências a esse episódio; uma delas dirigida
a Douglas Kinnaird, em que o poeta, sem disfarçar a sua
contrariedade, protesta de maneira peremptória: "Para o
diabo O Vampiro! Que é que sei eu de vampiros? Isso deve
ser alguma exploração importuna. Desminta-o de modo
cabal".
A carta existente em nossa Biblioteca Nacional foi escrita
três dias depois, a 27 de abril de 1819, e não é menos
enérgica nessa repulsa: "Tenho aversão pessoal a vampiros e
o pequeno conhecimento que possuo deles não me induziria
a divulgar os seus segredos". O resto da carta não vem ao
caso, deriva para outro assunto.
O tópico transcrito, em nossa tradução, é tão surpreendente
que chega a tornar-se incompreensível. Se a obra fora escrita
pelo Dr. Polidori e este era íntimo de Byron, com ele tendo
convivido em sua permanência na Itália, custa admitir que
não estivesse a par do romance o mesmo bardo que, naquele
cavaco literário em Gênova, já sendo aliás um vampirista,
tinha procurado inocular o germe do tema de terror em seus
amigos, Polidori inclusive.
Eis uma questão realmente complicada e impossível de
resolver.
Embora de passagem, frise-se que o Brasil teria concorrido,
talvez, para reavivar a lenda em torno do vampiro, desde
que alguns exploradores estrangeiros, entre o século XVIII e
princípios do século XIX, assinalaram a presença desse
hematófago em nossas florestas. O inglês Charles Waterton,
em sua obra Wandering in South America, relativa às suas
excursões em 1812, 1816, 1820 e 1824, dedica interessantes
páginas às espécies de vampiros que viu em nosso
"hinterland". Um de seus companheiros de expedição sofreu
forte sangria de um deles, enquanto estava a dormir, e
Waterton lastima que não houvesse tido a mesma sorte, para
o que procurara habilitar-se por todos os meios, inclusive
deixando os pés descobertos durante a noite...
A simples narrativa desses fatos numa época em que o
romantismo começava a empolgar a imaginação do homem
ocidental, era suficiente para criar ou desenvolver as fan-
tasias mais estranhas ou extravagantes sobre os vampiros.
O nosso José de Alencar valeu-se, aliás, desses sugadores,
não para histórias de terror, mas para uma sortida curiosa,
daquelas em que é tão fértil a sua ficção, no episódio do
Guarani, onde leva Peri a usar deste estratagema: "Os
morcegos que esvoaçavam espantados pelo teto do alpendre
lembravam-lhe um excelente expediente; agarrou o pri-
meiro que lhe passou ao alcance do braço, e abrindo-lhe
uma cesura com a faca, soltou-o. Ele sabia que o vampiro
procuraria a luz, e iria esvoaçar em torno dos dois aventu-
reiros; contava que as gotas de sangue que caíam de sua
ferida os enganariam; a realidade correspondeu às suas
previsões."
Pai contrariado desse ismo, a que Charles Nodier deu
frenético desenvolvimento, propagando-o em seguida a tan-
tos outros românticos, Byron não previu decerto esse em-
prego do vampiro como arma estratégica...
(1953)
DICKENS E O BOM SELVAGEM
O criador de Micawber que imprimiu tão frenética
plasticidade à exploração do pitoresco e do absurdo, no
romance, era um adversário irredutível da teoria do Bom
Selvagem. Teoria que, seja lembrado de passagem, permitiu a
Afonso Arinos de Mello Franco produzir interessante estudo
de literatura comparada O índio Brasileiro e a Revolução
Francesa publicado em 1937.
Com a sua ótica original e excêntrica, o romancista inglês
freqüentemente submeteu a personalidade humana a
reduções de aspecto selvagem e áspero. Esse vêzo defor-
mador não era, porém, instigado apenas por espírito puni-
tivo. Dickens não pintava os seus heróis mais grosseiros
como bugres só por não gostar dessa espécie de gente. Dada
sua tendência maniqueísta a encarnar o Bem e o Mal
separadamente, sem transições quase, os seus malfeitores se
achavam tão próximos da natureza primitiva quanto os
silvícolas deste lado do Atlântico. O mesmo poderia ser dito
com referência a alguns de seus personagens,
inapelavelmente predestinados a praticar o Bem e que se
tornavam objeto do riso ou comiseração, pela rudeza física,
por excesso de ignorância ou por simples estupidez mental.
Em suma, a imaturidade cerebral do próprio romancista,
indicada por seus críticos, se o impeliu a assimilar
efusivamente a bizarra animalidade de Sam Weller, o pai ou
o filho, também devia tê-lo induzido a manter atitude
menos hostil para com o selvagem.
Apesar da tradição de sentimentalismo e generosidade, que
lhe valeu enorme prestígio popular, Dickens era uma
organização complexa que os seus biógrafos mais recentes
procuraram fixar com algum rigor. Presentemente,
conhece-se melhor a seu respeito o que em sua época não
podia ser divulgado, sem despertar violentas reações entre os
seus fanáticos leitores. O romancista imolava-se demais à
preocupação do ganho, o que até contribuiu para lhe
diminuir os dias. Mas não é só isso que revela o lado
puramente convencional de sentimentalismo que impregna
os seus romances, destinado a ter a mais extensa e profunda
repercussão em todo o mundo. A verdade mais terrível é
que Dickens, celebrizado pelo nobre afã de preservar a
tradição da família e despertar interesse, não já nacional, mas
também universal, pelas crianças desvalidas, tendo-se
separado da esposa, que lhe deu alguns filhos, não se revelou
depois disso um pai à altura da severa moral do romancista.
As contradições de sua natureza ou os seus deslizes de ética
conjugal não fizeram dele absolutamente um monstro, mas
evidenciam que teve seus erros, apesar de sua aparente
respeitabilidade, e isso não pode ser esquecido quando se
trata de examinar as suas objeções e idiossincrasias.
O que Dickens pensava sobre "o bom selvagem" ("The
Noble Savage"), encontra-se resumido num artigo de jornal
publicado no meado do século XIX e incluído no volume
Reprinted Pieces, etc.".
Nessa época, o indianismo brasileiro estava em franco
desenvolvimento, mas é claro que não ia além de nossas
fronteiras. Ou das fronteiras de nossa língua, quando muito.
Todavia, a idéia da Bondade Natural, ligada ao índio de
nossas selvas, desde Montaigne, transferindo-se a Rousseau e
Goethe, provocara controvérsias que nunca se extinguiram
inteiramente.
Sustenta-se que Shakespeare, criando Caliban, quis replicar o
ensaísta francês, mostrando que o selvagem era
impermeável à educação e, conseqüentemente, incivilizável.
Como quer que seja, Dickens insurgiu-se contra a crença já
então generalizada de que o selvagem era um exemplo de
Bondade Natural.
Na ocasião, achavam-se expostos numa galeria de Londres
alguns indígenas africanos, que só lhe despertaram asco e
horror. Indignado com esse espetáculo, o romancista
tornara-se radical quanto à inutilidade do selvagem, e con-
clui os seus comentários, no referido artigo, declarando de
maneira imperativa: "A minha opinião é que se há algo a
aprender do Bom Selvagem é que devemos evitá-lo. Suas
virtudes são uma fábula; sua felicidade uma ilusão e sua
nobreza, tolice".
Era uma atitude semelhante à de Shakespeare, quando leva
Próspero a confessar, desenganado, que não conseguiu
transformar Caliban para melhor. A verdade é que o con-
tacto do filho de Sycorax com o homem civilizado,
revelando-lhe o álcool e a embriaguez, fizera-o até pior...
Desafiando os seus adversários, Rousseau assumiu a defesa
do selvagem contra a civilização, que o contaminara de seus
vícios e de seus males. Não era esta, porém, a derradeira
conclusão de Dickens. Seus preconceitos de escritor
vitoriano impediram de ver no silvícola qualquer traço
aproveitável de humanidade. Não estava longe por isso de
prescrever a sua eliminação da face da terra; o selvagem era,
para o romancista, uma excrescência repulsiva, e nada mais.
A PERSONAGEM BRASILEIRA DE SHAW
A idéia que do Brasil teria Bernard Shaw era, parece, tão
extravagante como a existencia do homem a quem talvez
ouviu falar, diretamente, pela primeira vez de nosso país:
Cunninghame Graham.
Foi com as coisas que éste narrava da América do Sul e de
outras paragens pitorescas do mundo que o comediógrafo
concebeu o argumento de sua farsa: Captain Brass-bound's
Conversión ou A aventura do Pirata, na excelente tradução
do Sr. Vivaldo Coaracy.
Quem conhecer a versão inglesa da historia da guerra de
Canudos pelo quixotesco irlandês, poderá avaliar até onde
sua imaginação era levada a alterar a realidade dos fatos.
Mas, para um racionalista anti-romântico e obstinado como
Bernard Shaw, a presença desse outro "saco de espantos",
que passeou sua insaciável curiosidade por todos os
continentes, era um convite irresistível a transigir com a
fantasia em suas mais sedutoras representações.
Nessa farsa, que, segundo sua declaração numa nota final,
jamais teria concebido ou escrito sem a influência direta de
Cunninghame Graham, ó episódio verdadeiramente
sensacional prende-se a uma personagem póstuma, de
origem brasileira, viúva do inglês Miles Howard, que com
ela se casara aqui no Brasil. Miles arribou algum tempo
depois para as Antilhas e lá adquiriu uma fazenda, de que seu
irmão, o juiz Sir Howard Hallam, veio a apropriar-se
clandestinamente, após sua morte, deixando ao desamparo a
cunhada brasileira. Filho único do casal, o capitão pirata, o
bravo e áspero Brassbound, casualmente, acaba colhendo em
suas malhas o mau tio, de quem andava à cata, havia muito,
com a idéia premeditada de vingança.
Da pTocedência brasileira, conservava o Capitão Brass-
bound dois indícios: a tez morena e o apelido de Periquito
Negro que a mãe lhe dava em pequeno. Esse apelido punha-
o às vezes em cólera, mas estava preso a ele como um sinal
de nascença. O nome de sua mãe nem sequer é men-
cionado, mas percebe-se que a hereditariedade brasileira in-
fluiu menos no caráter que no pigmento de Brass-bound.
Poder-se-á ter uma idéia de quem era essa nossa imaginária
patrícia e qual foi o seu fim, pelo diálogo a seguir, "data
vénia", na tradução do Sr. Coaracy:
"Sir Howard A sua herança, senhor Capitão, eu lhe
entregaria no momento em que o senhor se apresentasse
para reclamá-la. Há três minutos passados, eu não sabia da
sua existência. Isto, posso afirmar com toda a solenidade.
Nunca soube, nunca imaginei, que meu irmão Miles tivesse
deixado um filho. Com respeito a sua mãe, era um caso
difícil. Talvez o mais difícil que já encontrei em minha
carreira. Ainda na tarde em que nos encontramos, eu aca-
bava de mencioná-la, como tal, ao missionário, o senhor
Rankin. Quanto à morte dela, o senhor sabe, deve saber, que
ela morreu na sua terra natal, muitos anos depois de se ter
encontrado comigo. Talvez então o senhor fosse muito
criança para saber que sua mãe não poderia viver muito.
Brassbound O senhor quer dizer que ela bebia.
Sir Howard Não sou eu quem o está dizendo. Penso que
nem sempre era responsável pelo que fazia.
Brassbound Sim, sei. Era louca também. Se foi a bebida
que a levou à loucura, ou se foi a demência que a levou a
beber, pouco importa. O que importa é quem a impeliu, pelo
desespero, a uma e outra coisa.
Sir Howard Imagino que o responsável tenha sido o
administrador desonesto que se apossou da fazenda. Como
disse, era um caso muito difícil. Foi uma terrível injustiça.
Mas nada se podia fazer.
Brassbound Foi o que o senhor lhe disse. E quando ela
não quis aceitar a sua explicação, o senhor mandou enxotá-la
do seu escritório. E quando ela o interpelou na rua,
acusando-o e ameaçando de agredi-lo, o senhor mandou
prendê-la e exigiu que ela escrevesse uma carta pedindo
desculpas, para conseguir a liberdade de deixar a Inglaterra e
escapar de ser internada num manicômio. E quando ela saiu
do caminho, e morreu, e foi esquecida, o senhor achou
então os meios, que para ela não tinha encontrado, de reaver
a propriedade. Então o senhor conseguiu tomar a fazenda,
para si, como um ladrão que é...
Vê-se, pelo diálogo, que, de acordo com um conhecido
estratagema, a mãe de Brassbound esteve a pique de ser
internada como louca na Inglaterra, para que Howard pu-
desse locupletar-se na sua herança, desembaraçadamente.
No começo do primeiro ato, assegura a personagem
Drinkwater que o capitão Brassbound era um cavaleiro
inglês puro-sangue, mas acrescentando em tom de menos-
prezo: "Com um bocadinho de mistura, talvez, pelo lado da
mãe, a tal brasileira."
Se bem que não se deva atribuir inteiramente a um autor
dramático as idéias e pontos de vista de suas personagens,
seria lícito supor que, na época em que escreveu essa farsa
(1899), Shaw ainda não estava libertado de preconceito
racial. Quando o estaria completamente um homem
nórdico? Por isso mesmo, convém recordar sua linha de
evolução neste sentido, acentuada particularmente desde as
peças cíclicas Back to Methuselah, numa das quais leva os
ingleses, por volta do ano 2170, convencidos de que eram
"congenitamente incapazes de governar", a importarem uma
negra instruída e um chinês, para dirigir o país...
Conceda-se que a ironia seja o único móvel dessa profecia
satírica, mas a verdade é que a negra trazida da África, para
exercer as funções de Ministro da Saúde na Grã-Bretanha,
não se faz impor apenas pelo saber, mas também pela
sedução de suas formas, quando estas se deixam entrever,
inesperadamente, por uma perturbadora semi-nudez. O
terrível comediógrafo era um puritano inconquistável, como
tiveram de reconhecer Isadora Duncan e outras mulheres
que procuraram seduzi-lo; porém, a nudez da africana era
algo mais que um simples efeito cênico...
Na história The adventures of the black in her search for
God, Shaw também revela um interesse fora do comum pela
nudez da mulher negra e não é sem algum ardor que, pela
mão de um velho teólogo, obriga um irlandês a aceitar como
esposa a provocante pretinha de sua narrativa.
O homem branco, que reluta no primeiro instante em ceder
a essa imposição, mostra-se por fim encantado com os
filhos, alguns cor de café com leite, que se sucedem no
correr dos anos.
Aliás, essa transigência racial corresponde a um ponto de
vista expendido naquele mesmo escrito, onde uma dama
assegura ao etnólogo da expedição: "... the next great
civilization will be, a black civilization" e, em defesa deste
vaticinio, procura evidenciar o esgotamento e decadência da
raça branca.
Objetar-se-á que aí fala a personagem, e não o autor, mas
quem consultar o testamento filosófico de Shaw:
Everybody's Politicai What's What? (1945), lá encontrará
idêntico pensamento desenvolvido de modo incisivo, sobre-
tudo a propósito da reação dominante na Nova Zelandia
contra a mescla racial, mostrando que, contrariamente, o
remédio mais indicado era a miscigenação. E, em defesa
dessa opinião, acrescenta: "Na Jamaica, isso tem sido pra-
ticado tão livremente que, quando lá estive em 1911, alguns
dos homens mais claros e civilizados que encontrei descen-
diam de gente de cor e, no Hawai, onde preferi ouvir
música genuína e nativa em vez das melodias populares
inglesas ou norte-americanas, com as quais os nossos turistas
são embaídos, vi que os descendentes mais puros da antiga
raça daquele arquipélago eram já simples curiosidades
humanas."
Consolemo-nos, pois a alusão desprimorosa à nossa raça em
Captain Brassbound's Conversión tem a neutralizá-la
completamente o ponto de vista sustentado mais tarde pelo
comediógrafo e pensador, em favor da miscigenação, o que
significa dizer que, quando nada, nisto, vamos indo pelo
melhor caminho...
(1955)
JOHN MASEFIELD E O BRASIL
Uma das tradições que a Grã-Bretanha insiste em conservar
é a do Poeta Laureado, com o atributo específico de celebrar
as glórias da casa real e da nação. Desse título, que vem de
muito longe, tornando-se por fim obsoleto, Asquit propôs a
extinção, quando parlamentar. Vinte anos depois, ao vagar-
se o laureato com a morte de Alfred Austin, encontrara
aquele estadista, já Primeiro Ministro, a oportunidade de
cortar pela raiz essa rama um tanto fenecida da tradição do
reino. E que fez ele? Nomeou outro, o Dr. Robert Bridge. E,
no entanto, apesar do respeito com que lá são mantidos os
remanescentes de antigos costumes remontando à época
medieval, o título de Poeta Laureado não escapa a uma que
outra observação irônica e Chesterton pilheriou mais de uma
vez às suas custas.
A escolha de John Masefield teve, porém, uma significação
democrática que a revestiu de uma nova dignidade, menos
decorativa do que humana. O substituto do esteta do
Testamento de Beleza era um autodidata que vinha quase
diretamente do seio da plebe. E, coerentemente com o seu
passado de antigo marinheiro e de empregado de hotel,
escrevera um poema que, sob o título intencional de "A
Consecration", celebra e exalta justamente os humildes e
deserdados da sorte, em ostensivo revide às consagrações
convencionais do poder e da fortuna.
Escolheu-o o Primeiro Ministro trabalhista MacDonald (que
morreu às vésperas de visitar o Brasil), também
coerentemente com a linha do partido que iniciou a
revolução branca, por efeito da qual a fisionomia social e
política da Inglaterra está se transformando cada vez mais.
O Poeta Laureado recebe do erário público, pequena quantia
em libras, a título de emolumentos, e é conviva nato de
recepções e solenidades do reino. Por ocasião de sua
nomeação, João Ribeiro escreveu interessante artigo
mostrando, em meio a outros comentários, o acerto da sua
tradução de um soneto do clássico português Antônio
Ferreira, o dos Poemas Lusitanos. E concluía: "Nas suas
correrias de cinco anos pelo mar, John Masefield, que viu o
cabo de S. Vicente e o cabo Horn, provavelmente conheceu
o Brasil. Parecem indicá-lo versos como estes "Ali in the
feathered palm-tree tops the bright green parrots screech..."
Mas não encontramos nos seus poemas vestígios mais
significativos e nenhum mais explícito". Como era natural, o
mestre do Fabordão esperava encontrar entre os versos de
Masefield algo de especial sobre a natureza brasileira. Custa a
compreender, na verdade, que um poeta inglês navegasse
indiferentemente, através dos nossos mares, naqueles
tempos em que a fascinação do exótico predominava de
maneira ainda avassaladora sobre a imaginação do homem
nórdico.
Kipling, que veio até cá muitos anos depois, esteve de
binóculo assestado para as colinas da Bahia a ver se descobria
selvagens ou algum animal de nossa flora que mais o tentava;
por exemplo: o tatu.
Embora tão entranhadamente interessado pelo mundo físico
e pela rudeza humana, como o era o autor de Kim, John
Masefield não partilhava do mesmo entusiasmo pela
natureza, no que esta possui de ornamental. Sua preo-
cupação absorvente é o "ordeal" do indivíduo, o homem em
luta com as suas paixões e com os elementos que lhe
desafiam a capacidade de resistência física e moral: o mar, a
guerra, a caça, as ocupações mas ríspidas da vida cotidiana e
as doenças.
Tem-se, por isso mesmo, como um dos mais característicos
de seus versos o poema "Sea Fever" em que o antigo marujo
do navio escola "Convay" externa a sua ansiedade por voltar
à áspera lida de seus primeiros tempos: "Eu devo baixar, de
novo, ao mar, para cruzar, numa vida errante de cigano, os
caminhos da gaivota e os caminhos da baleia, onde o vento é
como a lâmina de uma faca."
Esse poema é do livro Salt-Water Ballads, publicado pela
primeira vez em 1902, e do qual possuo um exemplar mais
raro do que se tivesse sido autografado pelo autor, pois
pertenceu a um marinheiro inglês, que nele deixou alguns
traços muito curiosos, com fotografias coladas às páginas e
anotações sobre a vida de bordo. Foi-lhe dado como
presente de Natal por sua mãe.
Uma das peripécias celebradas nessas baladas é a da
passagem do cabo Horn. E não era a "sea-fever" que dava
terrível excitação àquelas peripécias senão também as febres
malignas que são ali evocadas em dois pequenos poemas:
"Fever Ship" e "Fever-Chillis", ambos sobre os horrores
desses males na América Tropical.
O primeiro refere-se à febre amarela e contém evidente
alusão a um dos nossos portos, onde tantos embarcadiços
eram dizimados por esse mal:
It's a cruel port is Santos, and a hungry land,
With rows o'graves a ready dug in yonder strip of sand,
N'Dick is hollerin'up the hatch, 's says 'e's goin'blue,
His pore teeth are chattering, 'n' what's a man to do?
It's cruel when a fo'c's'le gets the fever!
Positivamente, não é nada lisonjeiro para nós que a única
referência direta à nossa terra, nessa obra de John Masefield,
seja a que ocorre naquele rude poema.
Em sua autobiografia, recentemente publicada, So Long to
Learn (1952), encontra-se longa passagem sobre o pavor que
a epidemia de febre amarela criara na sua imaginação e na de
todos os homens do mar que demandavam os chamados
portos sujos da índia Ocidental e da América do Sul.
Masefield teve a primeira percepção da temeridade de rumar
para tais lugares quando morreu em poucos dias, vitimado
pela febre amarela, num porto brasileiro, o vencedor de um
prêmio de viagem para estudos meteorológicos, ao qual ele
também havia concorrido com a maior esperança de obtê-
lo.
Calara em seu espírito de modo assustador a impressão de
que o morto seria ele próprio se houvesse obtido o cobiçado
prêmio.
O que levava enfim o pavor da febre amarela à situação de
pânico generalizado era o mistério sobre as suas causas.
Comenta Masefield as conjeturas que se faziam a esse
respeito. Tripulações havia que se abstinham de beber água
proveniente do porto condenado ou só a tomavam fervida, e
nem por isso a epidemia deixava de fazer vítimas entre os
seus homens. Mais de uma vez os navios ficavam sem
pessoal suficiente para os seus serviços e tinham que
aguardar reforços do país de origem para prosseguir viagem.
Entre as hipóteses mais estapafúrdias atribuía-se o mal à
acidez do abacaxi e os embarcadiços faziam penoso esforço
para se absterem de sua fruta preferida neste lado do
Atlântico. Outra fantasia absurda que Masefield ouviu a um
marujo era a de que a febre podia ser apanhada por quem
dormisse ao Telento em noites de luar...
Enquanto os cientistas ainda discutiam sobre o agente
responsável pela epidemia, era natural que os leigos
colaborassem à vontade com os seus palpites mais
extravagantes.
Sem mencionar o porto brasileiro em que morreu o
meteorologista, esclarece Masefield que era o pior de todos
os portos então infestados pela febre amarela. E, acrescenta:
"tão mau, que antes da estação da epidemia, filas de covas
eram abertas próximo ao porto para os marinheiros que
certamente morreriam lá antes do término da estação." A
passagem já citada do poema "Fever Ship" mostra claramente
que se tratava de Santos: "Cruel porto é Santos, terra
famélica, com filas de covas numa distante quadra de terra
arenosa." O fato de figurar "yonder" (longe) no poema e
"near" (próximo) no livro autobiográfico, não altera a
macabra realidade daquela necrópole de emergência.
Na História de Santos diz Francisco Martins dos Santos que,
em 1892, fora inaugurada naquela cidade o Cemitério da
Filosofia, destinado "à inumação da gente pobre, a mesma,
que durante a última epidemia de febre amarela fora atirada
em massa às valas comuns, abertas ao comprido, por falta de
tempo para a abertura de sepulturas isoladas".
Conclui-se desse final que as covas eram abertas pre-
viamente no antigo cemitério devido à profusão de vítimas
da epidemia. Medida que, decerto, não se tomava apenas em
Santos, mas também em outras cidades, naquelas pavorosas
emergências de calamidade pública.
Masefield encerra melancolicamente a sua passagem sobre o
mal que assolava de maneira tão cruel os países tropicais,
mostrando que ninguém sabia como e por que a febre
amarela se instalava "em alguns dos mais belos lugares do
mundo".
Em sua imaginação de poeta tornara-se inquietante a
antítese de um mundo tão sedutor, pela imponência de suas
florestas e por sua prodigiosa fertilidade, com a epidemia que
matava misteriosa e rapidamente o homem branco, sem
haver como lutar de maneira eficaz contra suas insídias.
Evidentemente, por serem mais numerosos e assíduos em
nossos portos, os ingleses pagaram-lhe sempre o mais pesado
tributo. Desde a sua irrupção na Bahia, em 1850, a raça
inglesa tornara-se a favorita daquele mal. Cabe, porém,
lembrar que, embora tivesse grassado em nosso país
anteriormente, a febre era então considerada como "um
presente do estrangeiro" por ter sido trazida para aquele
porto pelo brigue norte-americano "Brasil".
O espírito motejador do povo dava-lhe o pitoresco apelido
de Polca, dança em voga, e também de Califórnia, devido à
febre de emigração para esse Eldorado da época.
Masefield colheu do nosso país e, ao que tudo indica, por
simples indução, um aspecto pavoroso, mais tarde superado
gloriosamente pela ciência brasileira.
O cientista britânico Sir Ronald Ross, que também era poeta,
escreveu alguns poemas sobre a malária, enaltecendo o
grande feito da descoberta de suas causas, em que ele teve
também notabilíssimo papel. John Masefield podia ter tido
igual gesto celebrando a obra saneadora de Oswaldo Cruz, a
propósito da qual já se disse que foi a mais bela história do
mundo, em réplica à que Rudyard Kipling escreveu. Seria
um modo de neutralizar a impressão de horror que se recebe
de suas baladas da água salgada, com referência a um porto
brasileiro outrora condenado universalmente.
(1953)
YEATS E A VELHICE
O famoso poeta irlandês viveu setenta e quatro anos,
conservando sempre o aspecto de um homem vigoroso e de
bela aparência, conforme é evidenciado até por seus últimos
retratos. Esse admirável exemplar da humanidade, que não
dormia nem cochilava sequer sobre os louros, desafiou
galhardamente as injúrias do tempo como a torre legendária,
que escolheu para símbolo e refúgio de sua magnífica
ancianidade.
No decorrer de uma entrevista, em 1930, a escritora Louise
Morgan ouviu mesmo de seus lábios a declaração de que o
envelhecer predispõe o homem a se tornar cada vez mais
feliz ou, com suas próprias palavras: "as one grows older one
gets happier".
Quem acompanha o pensamento de W. B. Yeats através de
sua poesia, não chega, porém, a essa conclusão, que seria
naturalmente consoladora; e, até pelo contrário, observará
que a simples idéia da velhice já era, para o romântico de
"The Rose", algo terrível e indesejável, desde os belos
tempos de sua mocidade.
Seria precipitado e talvez mesmo temerário condicionar essa
contradição exclusivamente à sua biografia. Desde cedo, a
poesia de Yeats abriu perspectivas vagas e imprecisas através
de um simbolismo quase inacessível, formado pelo
subconsciente da raça e acrescido depois de alguns
ingredientes esotéricos, entre os quais predomina o ocul-
tismo, obrigando a sondagens cautelosas. O próprio Yeats
advertiu os perscrutadores de suas intenções com um epi-
grama, que devia estar na mente de todos os que se acercam
de sua complexíssima obra: "Eu faço do meu canto um
vestuário coberto de bordados de velhas mitologias, dos
calcanhares ao pescoço, mas os néscios o apanham, exibem-
no aos olhos do mundo, como se acaso eles o houvessem
feito. Canto, deixai-os levar, pois, há mais vantagem em
caminhar desnudo."
Graças a essa vestimenta mágica a sua poesia recriou os
mitos da tradição nacional, celebrando as façanhas de seus
guerreiros e outros aspectos do maravilhoso celta,
simultaneamente com as lendas cristãs, como a princesa que
se viu docemente conduzida a um país: "onde ninguém se
torna mais velho, piedoso e grave; onde ninguém se torna
velho e astuto e sábio; onde ninguém se torna velho e azedo
de linguagem". Nesse mundo fabuloso, "a beleza não decai, a
alegria é sabedoria e o Tempo, um canto infindável".
Yeats não tinha ainda completado trinta anos de idade,
quando escreveu esse poema, no qual o mito da juventude
perene entrava em tão vivo contraste com o mundo real.
Adiante, o poeta, sem deixar de todo o manto de bordados
mitológicos, quis suavizar a precariedade e as intempéries da
existência, com um retiro sugestivo e agradável, que lhe
restituísse a fé ingênua de seus ancestrais, permitindo-lhe
cabal comunhão com a natureza. Acudiu-lhe então a idéia
de exilar-se numa ilha, de onde o poema "The Lake of
Innisfree", que é apenas um incidente em suas divagações
poéticas em torno de um derivativo às naturais e inevitáveis
contingências da vida citadina.
A ilha de Innisfree significava outra tentativa de evasão,
mas, uma vez lá, que é que podia deter a marcha do tempo?
O desengano proveniente dessa preocupação sempre
constituiu a maior tortura de quantos desejariam imitar a
aventura de Fausto... E a verdade é que o tema da velhice
passou a ter em Yeats o módulo de um melancólico
ritornelo, exprimindo inconformidade, revolta e mesmo
asco. A palavra "old" tornou-se freqüente em sua obra e os
anciãos que nela se projetam os velhos pescadores e
tantos outros deixaram-na profundamente impregnada do
travo de suas reflexões e imprecações em face do destino e
da fuga do Tempo.
Por esse lado, a ressonância mais pungente é a que advém de
certos contrastes entre a mocidade e a senectude, mostrando
que, perante um moço, a língua do ancião c sempre
qualquer coisa de bárbaro e, portanto, incompreensível. ("...
I am old and you are young / And I speak a barbarous
tongue"...)
Entre os dois, cava-se enorme abismo, porque, enquanto o
moço se volta instintivamente para as fontes da vida, o
velho só tem a preocupá-lo o conhecimento, que vai buscar
nos livros. Certo de que a beleza viva é para os mais jovens
("The living beauty is for younger men"), o poeta enca-
necido parece encontrar uma compensação em si mesmo,
na fortaleza de sua compleição, observando: "Envelheço
entre sonhos, como um tritão de mármore, gasto pelo
tempo, entre o fluxo das águas." ("I grew old among dreams,
/ A weather-worn, marble triton / Among the streams.")
Mas seria isso deveras uma compensação? E Yeats começa a
erguer os pilares de sua torre orgulhosa e solitária, sob cujo
amparo o espírito forrado de saber tentará sobrepor os
poderes da criação viva com a arte, encorajado pela so-
brevivência dos artifícios de matéria inerte, o mármore, o
bronze, o ouro, que deram inconfundível estilo à civilização
do império bizantino. Bizâncio representa o símbolo do
poder do homem sobre a transitoriedade da existência, e o
poeta o surpreende até numa simples peça de mosaico, onde
a mão de um artífice anônimo deixou algo que resistiu obs-
tinadamente à passagem dos séculos.
Yeats amava o movimento, a vida, a deliciosa frescura do
sorriso juvenil, mas, já não podendo ser dançarino, tornou-
se um artífice... E como o artista bizantino, que trabalhava
com auxílio do buril ou do fogo a pedra ou o metal,
imprimindo-lhe representações de beleza imperecível, o
poeta pretendeu escrever um poema "tão frio e apaixonado
como a aurora" (..."as cold and passionate as the dawn"). Era
um modo de conciliar a natureza e a arte, a vida e a morte,
visando à eternidade.
Entrara, enfim, no período de consciente e sistemática
elaboração artística, construindo os seus poemas sem ne-
nhum arrebatamento romântico, mas devagar e a frio como
um ourives trabalha as suas peças. E, paradoxalmente, à
medida que o poeta envelhecia mais renovada estava sua
arte, contribuindo, assim, na primeira linha, para a evolução
da poesia, neste século.
Com os anos, porém, cresceu a sua revolta contra a velhice,
tornando-se particularmente exacerbada à abertura do livro
The Tower, com o importantíssimo poema "Sailing to
Byzantium".
Já então Yeats estava dominado pelo trágico sentimento de
que, no mundo moderno, não há lugar para os velhos. .. ("...
is no country for old man"). E era o primeiro a salientar o
trabalho deprimente do tempo sobre o homem, com um
flagrante risível: "An aged man is but a paltry thing, / A
tattered coat upon a stick". Um espantalho, em suma. Em
poesia de sua mocidade, já um ancião procurava traduzir a
sua revolta contra o tempo, que o tinha reduzido a uma
figura grotesca, cuspindo-lhe na face: "I spit into the face of
Time / That has transfigured me".
As reações de Yeats perante o espetáculo da decrepitude
humana adquiriram progressivamente um tom sarcástico,
que recorda o de Swift sobre o mesmo tema, culminando na
estarrecedora criação da megera Crazy Jane, em cujas
vociferações não seria difícil identificar algumas de suas
próprias idéias.
Por fim, Yeats insurgiu-se contra o conhecimento, a
sabedoria, nesta encontrando algo que parecia aderir à
ancilose natural da idade, o que o levaria à amargurada
síntese de "After long silence": "Bodily decrepitude is
wisdom; young / We loved each other and were ignorant".
A verdade é que, de desencantamento em
desencantamento, o grande poeta ia se avizinhando daquele
extremo de renúncia desarvorada, que foi a tragédia de Rei
Lear, e quem sabe? em troca de um novo hausto de
mocidade, teria abdicado do reino de saber que lhe tirava o
melhor da vida...
(1957)