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MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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1. JUSTIFICATIVA
O Brasil vive um momento único em sua história, pois, pela primeira vez, povo e
nação tendem a se encontrar como bases de refundação de um projeto de país.
Lula é a expressão de mudanças políticas recentes no interior da sociedade brasi-
leira. Mesmo que essas mudanças sejam parciais, elas apontam para um processo
de inclusão na cidadania de camadas populares, transformando-as em sujeitos
históricos ativos na transformação de uma lógica e de uma estrutura produtoras
de exclusão e desigualdades de todo tipo. É a democratização que explica a vitó-
ria de Lula, e, ele próprio, como presidente do Brasil, pode sinalizar para uma
radicalização da democracia. Esse é um dado novo para o Brasil e toda a América
Latina. No contexto de crise da globalização neoliberal e de ascensão de um mo-
vimento de cidadania de dimensões planetárias, é natural que muita atenção se
volte ao Brasil, buscando saber o que será o governo de Lula. Será ele capaz de
mudanças? Como se definirão as políticas? Quão democráticas e democratizadoras
serão elas? São indagações como essas que uma entidade como o Ibase e todo o
setor de entidades da sociedade civil, engajados na radicalização da democracia,
não podem deixar de fazer neste momento.
Com Lula, venceu eleitoralmente a esperança. Lula despertou uma enorme
energia, e sua mensagem de mudança funcionou como um cimento aglutinador
de vontades, levando-o à Presidência. O mais importante de tudo é que o bloco
de forças existente em torno ao Partido dos Trabalhadores (PT) apostou na de-
mocracia para chegar lá. Sua legítima conquista da hegemonia do poder político
já é, por si só, uma radicalização da democracia. Lula vem, literalmente, “de
baixo”. O PT, como partido, é uma reinvenção democrática do modo de transfor-
mar grupos das camadas trabalhadoras e populares em sujeitos políticos ativos.
Como Lula e todo o seu ministério, lideranças políticas, funcionários(as) em po-
sições de liderança, enfim, como a administração política petista canalizará tal
feito para um novo estilo de poder e realizar as mudanças que esse movimento
“de baixo para cima” demanda?
Nestes primeiros meses de governo, Lula enfrentou uma economia caminhando
para a falência, à Argentina, e restabeleceu o que se pode chamar de “ordem do
mercado”. Isso é pouco – e ruim – para um governo que se anunciava como de
profundas mudanças no rumo do país. Mas é apenas um começo de governo, em
meio a um evidente processo de crise e de perda total de capacidade de gestão
pública das políticas macroeconômicas legadas pelo governo derrotado nas urnas.
A ordem mercantil parece temporariamente estabelecida. Sobem, porém, as tensões
não só dentro do bloco de forças que apostou nas mudanças, revelando impaciên-
cia com o ritmo e a forma de governo até aqui, mas também em relação à tensão
com o que de mais atrasado existe no Brasil: a elite acostumada a confundir privi-
légios com direitos. Assim, as contradições parecem soltas. Saberá a democracia
brasileira traduzir isso em mais democracia? Claro que isso depende muito do modo
petista de governar, de fazer política, coisa ainda em gestação no governo federal.
A novidade está no que Lula e o PT trazem como bagagem para o campo
democrático. O apelo ao populismo, como forma de enfrentar as contradições
atiçadas pela possibilidade de mudanças, não parece uma possibilidade. Apesar
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2. OBJETIVOS
Geral
Este projeto, tendo como referência prática e histórica o governo Lula (de 1 de
janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2006), visa, por meio do monitoramento
sistemático, da avaliação crítica e do debate público, contribuir para resgatar ana-
liticamente as condições do modo participativo de fazer política e potencializar o
seu impacto na democratização efetiva de uma sociedade como a brasileira. Tra-
ta-se de analisar e debater as relações e tensões entre democracia representativa e
democracia participativa e as mudanças que operam no desenvolvimento do Bra-
sil, em particular, e o enfrentamento das desigualdades e das exclusões existentes.
Específicos
:.: Identificar e selecionar os novos espaços de participação da sociedade civil pro-
movidos pelo governo federal e monitorar seu formato, seu mandato e sua
prática, bem como sua relação com os espaços já constituídos anteriormente.
:.: Registrar as visões, análises, expectativas e propostas de políticas e de formas de
intervenção no debate público de diferentes atores sociais em relação ao modo
participativo de governo.
:.: Pesquisar e analisar as possíveis mudanças políticas tanto na agenda, no dese-
nho, na gestão e no resultado das políticas públicas como na institucionalidade
da democracia, a partir do processo participativo instaurado.
:.: Avaliar o modo de fazer política do governo Lula e incidir sobre ele no sentido
de tornar a democracia mais sustentável e substantiva e mudar a própria cultu-
ra política, tornando-a mais democrática pelo reconhecimento da maior
centralidade dos direitos de todos(as) os(as) brasileiros(as) e da cidadania ati-
va como sua condição.
3. ESTRUTURA PROPOSTA
Para dar conta dos objetivos específicos, num sistema de monitoramento e avali-
ação ativa sobre o modo de fazer política do governo Lula, propõe-se que sejam
contemplados quatro grandes blocos interligados de questões a serem analisadas e
de atividades a serem desenvolvidas.
Monitoramento
Será dada atenção prioritária a três iniciativas já em curso: Conselho Econômico
e Social, Consea e consultas à sociedade civil feitas em relação ao PPA. Mas o
projeto estará atento a outras iniciativas já lançadas – como as conferências naci-
onais – ou que possam surgir, podendo priorizá-las nas revisões semestrais se de-
monstrarem ser de grande relevância. No monitoramento, trata-se de:
:.: identificar, mapear e monitorar as principais iniciativas de participação
implementadas pelo governo federal, nos diferentes estados e municípios;
:.: caracterizar mandatos e instrumentos das iniciativas;
:.: analisar a composição social e política das iniciativas;
:.: recuperar os registros oficiais e da imprensa, fazendo a memória dos processos
em curso;
:.: resgatar os debates e as propostas surgidas nos espaços de participação, bem
como seus portadores;
:.: identificar os compromissos alcançados.
Avaliação
O projeto só cumprirá inteiramente a sua função política de vigilância cidadã,
tornando-se ele mesmo uma forma de participação ativa no novo modo de fazer
política do governo Lula, quando gerar avaliações críticas. Por isso, será funda-
mental completar o processo com as ações previstas neste bloco:
:.: analisar os conflitos gerados e pactos obtidos;
:.: identificar como são vividas as questões da legitimidade e da legalidade;
:.: mapear os campos alheios à participação e as suas causas;
:.: qualificar as tensões entre representação constituída pelo voto e outras formas
de participação direta;
:.: examinar como se manifestou o confronto entre diferentes culturas políticas:
clientelismo e patrimonialismo versus direitos e obrigações;
:.: investigar as mudanças nas relações entre espaço público e espaço estatal;
:.: identificar de que modo a máquina administrativa do governo federal reage às
demandas da cidadania vindas pelos canais participativos;
:.: destacar as reações do Judiciário;
:.: avaliar quão inclusivas são as iniciativas, já que a inclusão de todas e todos nos
direitos humanos, enfrentando as desigualdades, é uma questão fundamental
na definição da qualidade da democracia participativa;
:.: avaliar o impacto sobre a sociedade.
Debate público
A lógica do projeto de monitoramento exige que o processo de acompanhamento
das ações de participação social se dê de forma transparente e responsável. Isso
significa necessariamente o incentivo ao debate público, a troca de impressões e
posições, o estudo e o exame de situações diversas, com o intuito de entender
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melhor a realidade, agindo sobre ela para que possamos melhorá-la e também
para que tenhamos condições de estabelecer marcos teóricos e políticos que se
expressem na realidade dos movimentos e dos governos, impulsionando-os a al-
ternativas cada vez mais democráticas e participativas, de modo sustentável.
Por isso, o estímulo e a indução e a organização do debate público são elemen-
tos fundamentais, no recorte temático e no quadro dos temas que dizem respeito
diretamente à participação social na formulação, na definição e na gestão de po-
líticas públicas e da agenda política brasileira. Esse debate deve ser facilitado com
a exposição, difusão e publicização de informações, documentos, estudos, relató-
rios e resultados de debates especializados.
Mais do que um processo institucional de comunicação social, o debate que
este projeto quer promover tem relação direta com procedimentos de mobilização
social por meio do uso de instrumentos coordenados de comunicação cidadã.
Assim, mais que ser promotor e dono de meios de comunicação, o projeto deve ser
estimulador de debates que se expressem por meios de comunicação variados, já
existentes em movimentos sociais, organizações não-governamentais (ONGs),
movimentos populares e também por meio da grande imprensa. Para tanto:v
serão realizados seminários com estudiosos(as), lideranças sociais e formadores(as)
de opinião, devidamente organizados e fundamentados em dados, informações e
levantamentos e estudos, que deverão ser previamente socializados;
:.: análises e documentos de acompanhamento de conjuntura serão encaminha-
dos a organizações e movimentos sociais para que possam reproduzir e estimu-
lar o debate em seus quadros;
:.: articulistas e analistas serão estimulados(as) a analisar e promover o debate a
partir da difusão de matérias na grande imprensa e na imprensa alternativa;
:.: serão estimulados debates em meios alternativos de comunicação (rádios, tele-
visões comunitárias etc.);
:.: será promovido e atualizado constantemente um portal na Internet, com docu-
mentos, mecanismos de debate e interatividade, artigos e materiais que possam
ser reproduzidos em outros meios,
:.: Jornal da Cidadania terá uma seção específica de responsabilidade do Mapas
(com incentivo à reprodução por outros meios e veículos);
:.: a revista Democracia Viva terá uma seção específica e permanente de reprodu-
ção de documentos e de seminários.
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4. ASPECTOS METODOLÓGICOS
Uma condição indispensável para o projeto é garantir que ele mesmo seja ator no
processo avaliado, permitindo que a memória produzida, os registros feitos, as
mudanças qualificadas, as avaliações realizadas, enfim, tudo contribua para faci-
litar e radicalizar a própria participação. Por isso, ele deve ser desenhado de forma
a permitir ampla participação da diversidade de atores e amplo debate entre eles e
o conjunto da sociedade civil brasileira sobre as questões que trata. Ou seja, o
sistema de monitoramento e avaliação ativa não é apenas um recolhimento siste-
mático de informações para formar um banco de dados e depoimentos sobre o
governo Lula enquanto este se realiza. Mais do que isso, o projeto quer ser uma
referência ativa para devolver análises e se tornar um vigilante ativo das instâncias
de participação política da sociedade civil no governo Lula, numa perspectiva de
contribuir para a mais profunda e sustentável democratização de nosso país.
Seminário de etapas
As diferentes atividades do projeto obedecerão a ciclos de seis meses. Isso significa
que os quatro blocos interligados de questões incluídas na proposta serão condu-
zidos de forma a produzir resultados provisórios no fim de cada seis meses. Por
meio das análises feitas, será possível fazer um seminário de etapa, com atenção a
toda metodologia e à qualidade dos produtos gerados, revisando-o e aperfeiçoan-
do-o, se for o caso, para a etapa seguinte. Ao mesmo tempo, durante o seminário
de cada etapa, serão realizadas mesas de diálogo com representantes dos atores
envolvidos, para com eles avaliar os produtos gerados, as questões suscitadas, as
propostas da equipe para melhorar o próprio modo de fazer política. Nos seminá-
rios de etapa, será possível definir o período seguinte do projeto, podendo até dar
atenção a novas iniciativas participativas a serem monitoradas.
Trabalho em rede
Em virtude da complexidade do sistema a ser montado e para que ele seja amplo,
aberto e legítimo em termos de um coletivo que assume o papel de vigilância sobre
o governo Lula, a alternativa é constituir um grupo de trabalho de representantes
de ONGs associadas à Associação Brasileira de ONGs (Abong) com diferentes per-
fis e que atuam em diferentes partes do Brasil. Com uma coordenação política e
técnica definida ao redor do Ibase, o grupo funcionará como conselho político e
técnico do projeto de monitoramento e avaliação, ao mesmo tempo em que cada
participante assume atividades práticas, com instrumentos e procedimentos concer-
tados. Esse grupo se reunirá regularmente a cada seis meses para o seminário de
etapa. De forma permanente, o grupo funcionará conectado em rede pela Internet
e animado pela coordenação técnica do Ibase, seguindo um cronograma estabeleci-
do de registro de informações. Um boletim interno, em via eletrônica, permitirá
socializar informações estratégicas e estimular debates entre os participantes, nos
períodos entre os seminários de etapa. A rede será constituída a partir de todas as
relações, parcerias e alianças do Ibase na sociedade brasileira.
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Debate público
O sistema de monitoramento e avaliação aqui proposto se completa com uma
estratégica de divulgar elementos e alimentar o debate público sobre o processo de
constituição e evolução do governo Lula. Isso pode ser facilitado com o fato de
que a própria imprensa é ator relevante na participação, sendo ela mesma inte-
grante da proposta. Formadores(as) de opinião da grande mídia darão seus depo-
imentos sobre o processo, além do registro que será feito pela rede do que a mídia
divulga. Nesse sentido, a ponte entre o projeto e a mídia existirá desde o início. É
necessário garantir que uma estratégia específica de divulgação, sobretudo das
conclusões provisórias ao fim dos seminários de etapa, seja assegurada. A consti-
tuição de um site específico do projeto deve ser prevista, a fim de tornar o projeto
uma referência para a própria mídia.
5. PRODUTOS ESPERADOS
6. EQUIPE RESPONSÁVEL
COORDENAÇÃO GERAL
COORDENAÇÃO EXECUTIVA
* Os estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo serão cobertos pela equipe permanente do Ibase.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005
1. INTRODUÇÃO
1
O Projeto é executado pelo Ibase com o apoio da Fundação Ford e da ActionAid Brasil. Note-se que um primeiro esboço
da proposta do Mapas já estava pronto em abril de 2003, cerca de três meses após o início do novo governo.
2
Ibase, Projeto do Mapas, 2003, p. 2.
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3
Projeto do Mapas, 2003, p. 6. Nessa mesma página, o objetivo geral do Projeto é enunciado como segue: “Este projeto,
tendo como referência prática e histórica o governo Lula (de 1 de janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2006), visa, por
meio do monitoramento sistemático, da avaliação crítica e do debate público, contribuir para resgatar analiticamente as
condições do modo participativo de fazer política e potencializar o seu impacto na democratização efetiva de uma
sociedade como a brasileira. Trata-se de analisar e debater as relações e tensões entre democracia representativa e
democracia participativa e as mudanças que operam no desenvolvimento do Brasil, em particular, e o enfrentamento das
desigualdades e das exclusões existentes”.
4
Na expressão de Cândido Grzybowski, coordenador geral do Mapas, na abertura do “Debate I: a participação no
governo Lula – visões da sociedade civil” no Seminário “Os sentidos da democracia e da participação”, realizado no
Instituto Pólis, em São Paulo, de 1 a 3 de julho de 2004. Ver Teixeira (2005), p. 61.
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Note-se que duas organizações participaram do início das atividades do Projeto, mas afastaram-se posteriormente: o
Cenap (Centro Nordestino de Animação Popular), de Pernambuco, e a CNBB (Conferência Nacional do Bispos do Brasil),
do Distrito Federal.
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Existe uma extensa e bem conhecida literatura sobre espaços públicos de participação. No contexto do Mapas, Delgado
& Limoncic (2004) e Dagnino (2002) podem ser consultados.
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Alimentar e Nutricional.
Para viabilizar esse objetivo, a equipe do Ibase construiu o que se chamou de
instrumentos para coleta de informações do processo de consulta do PPA nos
estados, das Conferências, e dos Conseas. Em relação ao PPA, as informações a
serem coletadas deveriam privilegiar: (I) o registro das várias etapas do processo e
a caracterização e análise dos instrumentos da iniciativa; (II) o mapeamento dos
atores sociais envolvidos e não envolvidos no processo; e (III) o registro do modo
de participação dos atores e sua avaliação do processo.
No caso das Conferências, as informações a serem obtidas deveriam concen-
trar-se: (I) na formatação do processo da conferência, (II) em sua dinâmica de
implementação, e (III) nas visões dos atores sociais sobre o processo. E para os
Conseas, as coletas deveriam buscar identificar: (I) o monitoramento dos conse-
lhos (sua estrutura formal, dinâmica de composição e funcionamento, e identifi-
cação dos resultados alcançados), e (II) as visões dos atores sociais (participantes
ou não) sobre o conselho.
Dadas as características do Projeto – que não pretendia promover um estudo
acadêmico e exaustivo do tema, mas ser um ator qualificado e autônomo do
processo de participação social em curso no país – pretendia-se que a coleta de
informações fosse suficiente para, basicamente, registrar os atores sociais incluí-
dos e “deixados de fora” nos processos, seu modo de participação e sua avaliação
do mesmo, além da identificação dos temas tratados, das propostas e sugestões
feitas e do tipo de resultados obtidos até então.
A equipe do Ibase preparou, ademais, um “Glossário de termos do Projeto
Mapas” com o objetivo de homogeneizar o emprego de conceitos relevantes para
a dinâmica do Projeto e facilitar a comunicação entre os membros da rede. A
proposta inicial era disponibilizar o glossário de termos no site do Mapas, de
modo que pudesse vir a ser continuamente atualizado pelo aprimoramento do
diálogo a ser estabelecido na rede.
Por outro lado, a equipe do Ibase já intuía, desde outubro de 2003, que pode-
ria ser limitante e enganoso concentrar todos os esforços do Projeto no acompa-
nhamento desses espaços institucionalizados de participação para dar conta de
um processo que começava a dar sinais de indeterminação, pois o governo Lula já
revelava importantes contradições e ambigüidades de propósitos e de ação políti-
cos, em função, principalmente, de sua opção básica pela manutenção, e mesmo
pelo aprofundamento, da política macroeconômica neoliberal do governo FHC7.
Nesse sentido, embora mantendo-os como prioridade de acompanhamento,
não bastava ao Projeto restringir-se inteiramente aos espaços institucionalizados,
sem observar a dinâmica de atuação das organizações da sociedade civil fora dos
7
Em outubro de 2003, essa opção já estava suficientemente caracterizada e publicizada, especialmente depois do
lançamento pelo Ministério da Fazenda, em abril, do documento “Políticas Econômicas e Reformas Estruturais”, que
buscava justificar essa opção política. Não obstante à política externa mais independente e voltada para o Sul –
consagrada internacionalmente com a criação do G-20 e sua atuação na Ministerial de Cancún da OMC, em setembro de
2003 foi liberado o plantio de soja transgênica, contrariando as expectativas e demandas dos movimentos sociais rurais
e das ONGs; em dezembro foi aprovada a reforma da Previdência Social e o PT expulsou parlamentares que votaram
contra a reforma; e em fevereiro de 2004 foi divulgado na imprensa o primeiro caso de corrupção no governo (o caso
Waldomiro), atingindo o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, principal articulador da campanha de Lula à Presidência
da República e componente central do chamado “núcleo duro” do governo.
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marcos propostos pelas iniciativas do governo federal, o que, mais tarde, no semi-
nário da rede do Mapas, em julho de 2004, iria ser chamado de “participação na
rua”. Assim sendo, considerou-se importante coletar informações adicionais que
permitissem alguma avaliação política da sociedade civil nesse período.
Para tanto, a equipe do Ibase definiu instrumentos adicionais de coleta visan-
do a construção de mapeamentos preliminares, em todas as regiões do país consi-
deradas, dos atores mais relevantes da sociedade civil e dos principais – na pers-
pectiva de sua capacidade de influenciar a agenda pública – conflitos e tensões
sociais existentes e/ou latentes. Com esses mapeamentos, poder-se-ia tentar obser-
var (I) o tipo de resposta política do governo e (II) sua relação com e sua influên-
cia sobre a dinâmica dos processos monitorados nos espaços institucionalizados –
além de que seriam um produto adicional do Projeto, com relevância própria e
passível de ser constantemente atualizado.
É importante reter que o reconhecimento gradual e as tentativas sugeridas para
enfrentar a tensão entre o acompanhamento dos processos de participação nos “espa-
ços institucionalizados” e “na rua” foram centrais para a execução do Projeto e res-
ponsáveis por muitas das dificuldades enfrentadas pela rede do Mapas para implementá-
lo. Elas se agudizaram à medida em que a prática política do governo Lula foi se
afastando aceleradamente do suposto na hipótese central e foi “encurralando” o
Projeto, ao mesmo tempo em que ia “encurralando” a própria sociedade civil8.
O primeiro seminário da rede do Mapas ocorreu nos dias 25 e 26 de novembro
de 2003. Além do exercício de interação entre pessoas que não se conheciam previ-
amente e de busca de uma linguagem e de uma semântica a serem compartilhadas,
os pontos mais relevantes tratados no seminário foram, talvez, os seguintes:
:.: O esforço de tentar esclarecer na equipe a idéia, não trivial, de que o Projeto
pretendia atuar, na forma de rede, como um ator político no processo a ser
monitorado, buscando intervir, de forma qualificada, no debate sobre a parti-
cipação social e a democracia participativa no governo Lula. Por essa razão,
como vimos, a rede do Mapas incluía membros de ONGs e de redes com atu-
ação destacada no debate público em seus estados e regiões de origem. Obser-
ve-se que o significado que esse caráter inovador pretendido pelo Projeto assu-
misse para a rede do Mapas influenciaria decisivamente sua percepção acerca
do tipo de coleta de informações que deveria ser realizado. É preciso reconhe-
cer que o ineditismo da proposta, as complexidades de concepção e de
operacionalização envolvidas, os rumos seguidos pelo governo Lula, que puse-
ram em questão a hipótese central do Projeto, e a heterogeneidade da equipe
criaram inúmeras dificuldades para essa compreensão e para a condução e
implementação dos trabalhos da rede que nunca conseguiram ser completa-
mente resolvidas.
8
Menção ao artigo de Grzybowski (2004), divulgado no seminário de julho do Mapas e na imprensa nacional, e que vai
ter influência significativa para as decisões que começarão a ser tomadas a respeito dos caminhos do Projeto a partir do
seminário no Instituto Pólis, em julho de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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:.: Concebido o Projeto como uma rede de intervenção para estimular o debate
público sobre a radicalização da democracia no governo Lula, discutiram-se os
mecanismos necessários para viabilizar a rede e para visibilizá-la diante dos(as)
formadores(as) de opinião pública, em geral, e dos movimentos sociais e de
outras redes parceiras, em particular. A discussão em torno desse tema incluiu a
necessidade de definir com clareza o que se esperava da rede, a construção de
um site e de outros mecanismos de divulgação, devolução e interação (seminá-
rios, workshops, oficinas, etc.), e a utilização de formas adequadas de anima-
ção da mesma. As dificuldades do Projeto para enfrentar apropriadamente
essas questões frustraram em boa medida as potencialidades do Mapas para
viabilizar-se como uma rede de intervenção com as características previstas ori-
ginalmente.
:.: Apresentação, discussão e adaptações da proposta de trabalho, dos instrumen-
tos para a coleta de informações, do glossário de termos do Mapas e do
cronograma de trabalho.
:.: Discussão de temas da conjuntura política do governo Lula pelos membros da
rede do Mapas, em que cabe registrar dois aspectos. Primeiro, apesar do reco-
nhecimento da complexidade da conjuntura, percebia-se uma preocupação
generalizada na equipe com os rumos assumidos pelo governo federal, em es-
pecial no campo das iniciativas de participação social. Essa preocupação des-
dobrava-se, inclusive, na interrogação acerca de como o governo Lula conce-
bia e tratava, em sua prática política, a questão da participação e na constatação
das ambigüidades do governo em suas negociações políticas com os(as) repre-
sentantes da sociedade civil. Segundo, testemunhava-se também, com igual ou
maior preocupação, a relativa fragilidade da sociedade civil, destacando-se uma
possível intensificação de sua fragmentação como conseqüência da própria
prática política governamental.
9
Os anais desse seminário foram publicados em Teixeira (2005).
10
O consenso em torno dessas constatações já começava a ampliar-se consideravelmente, nesse período, entre as redes
e ONGs que participavam de espaços públicos de participação no governo Lula, como pode ser visto em vários depoimen-
tos registrados em Teixeira (2005), especialmente pp. 61-89.
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Fazia parte do processo de alimentação do debate público em torno da participação social – um dos objetivos do Mapas
desde o seu início – que os(as) parceiros(as) da rede do Projeto promovessem, periodicamente, atividades de devolução
aos atores locais dos resultados obtidos.
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Note-se que, desde o início, os(as) participantes da equipe dividiam seu tempo de dedicação ao Projeto com inúmeras
outras atividades desenvolvidas em suas organizações.
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Grzybowski (2004), p. 9.
14
Como complementou Grzybowski (2004) na p. 14: “Se não estamos diante de um modo participativo radicalmente novo
de fazer política, estamos diante de um governo diferente que, no fim, tem na participação das ruas o seu flanco aberto
e sensível. Talvez aí esteja a oportunidade de fazer avançar o governo Lula...”.
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O que demandaria, aparentemente, um aumento do poder dentro do governo do bloco de forças políticas que
Grzybowski (2004) chamou de “ativistas populares” ou “participacionistas”, que não é hegemônico no governo Lula. Por
outro lado, mesmo a visão sobre participação desse grupo no poder não parece ser muito animadora, na perspectiva da
radicalização da democracia. Segundo o depoimento de José Antonio Moroni, do Inesc e da rede do Mapas e conselheiro
do CDES, “(m)esmo em relação a esses grupos dentro do governo que estariam mais abertos à participação, acho que a
gente não está falando do mesmo conceito de participação. Esses grupos que estão abertos a isso enxergam na
sociedade muito mais o mecanismo de legitimação de suas decisões, suporte e apoio político para se manter onde estão,
do que propriamente uma participação.... Mesmo em relação a esses grupos que se propõem estarem abertos à
participação, não é participação. Posso citar ‘n’ exemplos.” (Teixeira, 2005, p. 74).
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No caso do CDES, o Projeto decidiu reconsiderar essa decisão a pedido de técnicos(as) da equipe do Conselho que
argumentaram que seria politicamente negativo que o Mapas abandonasse o monitoramento no momento em que a
presidência do CDES passava de Tarso Genro para Jacques Wagner.
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A. Ponto de partida
Nosso ponto de partida é de dupla ordem. Em primeiro lugar, nosso esforço de
formulação, pesquisa e debate político continua tendo como referência o mo-
mento político atual e o governo Lula.
Em segundo lugar, partimos da observação de que as duas grandes questões
políticas que devem ser enfrentadas pelo governo e pela sociedade civil organiza-
da e que devem estar contempladas em um projeto político governamental não
estão sendo enfrentadas na prática ou estão sendo tratadas de forma dissociada e
isolada. São elas as questões (I) da democracia e dos direitos, e (II) do modelo de
desenvolvimento a ser implementado.
Nessa perspectiva, tratar a questão da democracia e dos direitos sem levar em
conta a disputa social em torno do modelo de desenvolvimento é concebê-la em
seu aspecto meramente formal, destituído de conteúdo, esvaziando o significado
do que possa ser a radicalização da democracia e podendo recair em saídas
assistencialistas, meramente compensatórias; ou, inversamente, correr o risco de
defender/promover um processo de desenvolvimento que poderá violar direitos
fundamentais de amplos segmentos da sociedade e, assim, colocar em cheque a
própria democracia.
Do mesmo modo, considerar a questão do modelo de desenvolvimento sem
associá-la à problemática da radicalização da democracia, ou sem aprofundar a
noção de que o desenvolvimento deve ser propriamente concebido como um di-
reito, é reduzir desenvolvimento a crescimento econômico e tratar como legítimas
e relevantes apenas as considerações relativas às frentes de expansão econômica,
dissociadas das demais questões que fazem hoje parte de uma agenda democrática
a respeito. Corremos, assim, o risco de reinventar as concepções militares autori-
tárias da década de 1970, de crescimento econômico a qualquer custo social,
ambiental, político, cultural, etc., e as justificativas ideológicas do tipo “é preciso
crescer para depois distribuir” ou “para depois democratizar”.
A proposta de desdobramento do Projeto, portanto, é a de identificar e anali-
sar conflitos e disputas sociais envolvidas na consideração simultânea e indissociável
das questões relativas à democracia, aos direitos e ao modelo de desenvolvimento,
tanto nas lutas, reivindicações e propostas da sociedade civil como nas iniciativas
e/ou reações do governo federal. De forma mais sintética: abordar questões, con-
flitos, disputas sociais, impasses, propostas que estão emergindo, ou não, na soci-
edade brasileira quando se pretende “aprofundar a democracia e ampliar os direi-
tos, fazendo o desenvolvimento do país”.
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O que será feito no Seminário “Caminhos e Descaminhos da Democracia Brasileira Hoje”, a ser realizado em 12 de
dezembro, no Rio de Janeiro.
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Mapa x MDA Disputa por recursos Plano agrícola e Agricultores(as) Terra, crédito, apoio do
públicos entre o pecuário, Programa de familiares, governo, infra-estrutura.
agronegó-cio e aquisição de alimentos, agronegócio, MST,
agricultura familiar. Pró-Orgânico, PNATER, Mapa e MDA.
PNRA.
Construção da BR 163 Disputa por recursos Plano BR 163 Pecuaristas, Terra e recursos naturais.
naturais ao redor da Sustentável. agricultores(as)
rodovia, que será familiares, indígenas,
pavimentada. garimpeiros(as),
madeireiros(as),
agronegócio, gov.
federal (GT
Interministerial), gov.
estaduais.
Transposição do Uso do rio para Projeto de Integração Agricultores(as) Uso da água, meio
São Francisco irrigação. do Rio São Francisco às familiares, agronegócio, ambiente.
bacias hidrográficas do ambientalistas,
Nordeste Setentrional. indígenas, quilombolas,
MST, cientistas, gov.
estaduais, gov. federal
(MMA e M. Integração
Regional).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23
Reforma Universitária Regulação do ensino Lei 5540/68, LDB, MEC, Ifes, empresas Acesso à educação e
superior, modelo de Decretos 2306/97 e privadas de educação qualidade do ensino.
universidade. 3860/01, PGE, Pró Uni. superior.
Reserva Raposa Serra Demarcação de terras Portaria 820/98 e 534/ Índios, Ibama, Terra, modo de vida
do Sol indígenas em área rica 05 do MJ. ambientalistas, Min. tradicional, recursos
em diamantes. Justiça, STF, M. Público, naturais.
Funai, pecuaristas
rizicultores(as),
garimpeiros(as).
Cidade SP Disputa pelo direito à Plano Diretor da cidade Sehab, Emurb (pref.), Moradia, investimentos
moradia no centro de de SP. CEF, Min. Cidades, gov. públicos na melhoria do
SP. estadual, ass. centro de SP, regulação
moradores, ONGs da área.
(Fórum Centro Vivo),
entidades empresariais
(Ass. Viva o Centro).
Cidade POA Lutas urbanas em Porto Estatuto das cidades, Conselhos, prefeitura, Recursos públicos,
Alegre. planos diretores. participantes do OP, regulação do espaço
partidos, ONGs, Min. urbano.
Cidades.
Segurança pública – RJ Política de combate ao Planos Nacionais de Governos estaduais do Direitos humanos,
crime. Segurança Pública. RJ, gov. federais FHC e sobretudo proteção ao
Lula, polícias, imprensa. abuso de autoridade do
Estado.
Expansão da fronteira Expansão da soja, Plano de preservação e Pecuaristas, Terra e recursos naturais.
agrícola no Mato desmatamento. controle de agricultores(as)
Grosso desmatamento da familiares, indígenas,
Amazônia. agronegócio, gov.
federal, gov. estadual.
Contudo, os limites e contradições que daí decorrem parecem se tornar mais cla-
ros e, por conseguinte, mais passíveis de serem enfrentados em favor de um desen-
volvimento que realmente efetive direitos.
As questões que se seguem buscam identificar a partir dos conflitos estudados
esses limites e contradições quanto à relação entre democracia e desenvolvimento
no atual contexto brasileiro. Daí a importância de centrar a análise no comporta-
mento dos atores implicados nos conflitos, avaliando se e como incidem sobre a
produção de direitos e organização socioprodutiva.
1
Muito embora o não cultivo da soja transgênica não implique necessariamente na adoção de um modelo de desenvolvi-
mento mais inclusivo, até porque há um crescente interesse do mercado externo em produtos que não sejam geneticamen-
te modificados.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25
manutenção do projeto, que, ao que tudo indica, carece de uma concepção geral
clara e solidamente embasada.
O que emerge é uma visão de que, para o governo Lula, tal obra possui um
caráter simbólico de grande importância, e é esse simbolismo que o faz mover-se.
Um simbolismo que, sem dúvida, traz consigo a dimensão político-eleitoral. E o
governo se move celeremente em favor da obra da transposição, mesmo tendo
todo o Comitê de Bacia do São Francisco, que congrega atores sociais importan-
tes da região, contrário à obra.
que se deseja para o país. A força política dos exportadores de soja, madeira e
produtos agropecuários pode ser medida por terem atravessado incólumes con-
junturas difíceis que envolveram a queda no preço da soja, desmatamento recorde
na Amazônia e no Centro-Oeste (com ampla repercussão internacional).
A insuficiência da participação incidindo sobre estratégias de desenvolvimento
mais inclusivas fica também evidenciada no caso do fim da gestão participativa
da prefeitura de Porto Alegre, após 15 anos de administração da Frente Popular.
A ativa participação via plenárias e conselho do orçamento participativo, embora
tenha contribuído enormemente no acesso a serviços públicos, pouco impacto
gerou na economia da cidade. O mesmo se pode dizer da relação Estado e socie-
dade que, apesar da maior capilaridade e permeabilidade à participação, não che-
gou a configurar um outro modelo de gestão, predominando o parâmetro técnico
da burocracia estatal.
Um exemplo que também merece destaque aí se refere ao caso da prefeitura de
São Paulo, que, na gestão de Marta Suplicy, abriu-se ao diálogo com as organiza-
ções que lutam pelo direito à moradia no centro de São Paulo. A questão aqui
parece se tratar de como a reivindicações setoriais ficam à mercê da boa vontade do
poder público em abrir espaços de concertação e implementação de ações públicas.
A prefeitura, no caso, comprometeu-se claramente com programas habitacionais
para o centro da cidade, mas acabou ficando aquém em termos de ações concretas
quanto ao reivindicado pelo movimento de moradia. Contudo, a população mais
diretamente atingida pelo problema habitacional tende a reconhecer avanços, como
no caso do Programa de Habitação de Interesse Social. Avanços que se tornariam
mais sensíveis quando a nova gestão da prefeitura, com José Serra, simplesmente
abandona os programas habitacionais no centro e criminaliza a população de rua.
Em outras situações, como no caso dos transgênicos, as entidades da sociedade
civil surgem nos dois lados do conflito: algumas defendem a liberação do uso dos
transgênicos, principalmente as que congregam agricultores(as) – e não apenas
os(as) grandes –, ao passo que outras, fundamentalmente as que congregam
ambientalistas, são contrárias à liberação dos transgênicos. No caso da BR 163,
estão presentes setores da sociedade civil que acreditam ser possível combinar a
exploração do agronegócio com alternativas locais de geração de trabalho e renda
ou de acesso a serviços e outros setores que não reconhecem tal possibilidade.
Um dos riscos presentes aí é se recair, como no caso da segurança pública no
Rio de Janeiro, em uma visão reduzida da cidadania, que perde de vista o proble-
ma da desigualdade e justiça social, concentrando-se em agendas imediatistas e,
novamente, corporativas ou privatistas. No limite, isso conduziria a uma impos-
sibilidade de se produzir desde a sociedade uma agenda pública de direitos conectada
a estratégias de desenvolvimento que sejam inclusivas. Sem dúvida, isso também
se justifica pelo imediatismo imposto pelas graves necessidades de expressivas par-
celas da população, como no exemplo da população que em muito depende dos
postos de trabalho gerados pelo setor madeireiro no Pará.
Em casos como esses, o papel da sociedade civil se complexifica. Há como que
uma erosão da visão de que a sociedade civil está sempre, pelo menos potencial-
mente, do lado do público. Se isso é verdade ocorre também uma menor capaci-
dade de congregação de forças, o que acaba implicando em uma correlação de
forças potencialmente mais desvantajosa para um dos lados em questão.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
29
:.: O modo de fazer política predominante no governo Lula e as alianças daí emer-
gentes – juntamente com a política macroeconômica que é, ao mesmo tempo,
sua conseqüência e sua expressão – constituem-se no principal limite ao espraia-
mento e à consolidação das iniciativas de participação social do governo federal.
Havia, no início do governo, uma forte expectativa de que a participação da
sociedade civil organizada poderia favorecer a construção de uma nova hegemonia
política em que a correlação de forças pressionaria pela formulação de um novo
modelo de desenvolvimento, que incorporasse as maiorias sociais. Nessa pers-
pectiva, a participação ativa da sociedade era central para um projeto de gover-
no que deveria reorientar prioridades e começar a construir alternativas para a
mudança do modelo de desenvolvimento nacional. A partir do momento em
que o governo Lula optou por alianças com os setores políticos e econômicos
dominantes, revertendo prioridades historicamente assumidas pelo PT, a pro-
posta de um modo participativo de fazer política que fortalecesse os espaços
públicos de participação teve que ser abandonada. O governo continuou a falar
com verbosidade sobre participação social, mas o conceito foi restringido a uma
espécie de disponibilidade de interlocução com os atores não governamentais.
Nessa perspectiva, participação passou a significar “ouvir os(as) parceiros(as)” e
não “tomar decisões com os(as) parceiros(as)”.
:.: O modo Lula de governar vai até a abertura de espaços para a realização do
diálogo e da disputa entre forças antagônicas – vide os espaços de participação e
a divisão nos ministérios. Porém, se o governo abre caminho para que se explicite
a disputa e a contradição, isso não tem significado o exercício do poder para a
alteração da correlação de forças em benefício de quem historicamente não tem
poder nesse país e de um desenvolvimento que realmente efetive direitos.
:.: Aquilo que inicialmente aparentava uma opção tática para responder a cons-
trangimentos financeiros quando do período da transição para o novo gover-
no, afirmou-se como estratégia, expressa no domínio pelo setor financeiro e
do agronegócio das políticas governamentais. Daí decorrem os constrangimentos
financeiros e institucionais impostos à participação, evidenciando que a pro-
dução e efetivação de direitos dependem do avanço da democracia sobre as
relações econômicas, ou melhor, sobre as estratégias de desenvolvimento em
curso. Isso significa dizer, quanto à relação Estado e sociedade, que não cabe
mais imaginar uma participação que se dedique exclusivamente a buscar uma
regulação pública que compense a incapacidade do mercado em alocar os re-
cursos de modo coletivamente benéfico. Trata-se, pois, da participação incidir
sobre a própria organização social da produção e distribuição dos recursos, de
modo a redefini-la em favor da efetivação de direitos. Para tanto, não se pode
prescindir do Estado, mas certamente de um outro Estado, de uma outra rela-
ção com os atores sociais, algo cujos contornos só poderão emergir dos confli-
tos e disputas sociais.
19
A esse respeito, chama também atenção, guardadas as devidas proporções, o fato de que, mesmo no caso paradigmático
da gestão participativa de Porto Alegre, os avanços, embora significativos do ponto de vista social, não chegaram a
interferir mais diretamente na economia local, nem tampouco na estrutura do Estado em nível municipal.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
34
:.: O lobby do agronegócio pode levar o país a concessões adversas nas áreas da
indústria, serviços e compras governamentais em troca de ganhos para os ex-
portadores agrícolas em negociações como as da OMC, Alca e Mercosul-União
Européia, aumentando a vulnerabilidade externa. Disputas internas no governo
brasileiro, como a recente controvérsia entre o Ministério da Fazenda e o
Itamaraty a respeito da redução unilateral de tarifas antes da Conferência de
Hong Kong contribuem para enfraquecer a posição dos(as) negociadores(as)
brasileiros(as). Além da própria dificuldade do Ministério do Desenvolvimen-
to Agrário em conseguir incluir salvaguardas para determinados produtos nas
negociações, dominadas pela agenda da liberalização comercial.
Este quadro sinaliza que o acesso e controle sobre os bens coletivos deve estar
no centro da agenda da participação. Quando menos pelos efeitos socioambientais
produzidos pelo modelo de desenvolvimento em curso. Mas está claro que não
cabe à participação apenas corrigir estes e outros efeitos do atual modelo, mas,
antes, redefinir as bases do desenvolvimento e de sua gestão em favor de um mo-
delo sustentável e promotor da distribuição da riqueza social.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
36
8. REFERÊNCIAS MENCIONADAS
Cronologia
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
CRONOLOGIA
Janeiro de 2003 Início do governo. Fórum Social Mundial Fórum Social Mundial
Recriação do Consea, em Porto Alegre. em Porto Alegre.
criação do CDES e de
novos ministérios e Fórum Econômico Entra em vigor o novo
espaços de participação. Mundial em Davos. Código Civil Brasileiro.
O ex-braço direito de
Fujimori, Vladimiro
Montesinos, é
condenado a cinco
anos de prisão.
O embaixador Sérgio
Vieira de Mello é
indicado para
representar a ONU no
Iraque.
Os dois filhos de
Saddam Hussein, Uday
e Qusay, são mortos em
um tiroteio em Mossul
com soldados dos
Estados Unidos.
Liberação do plantio de
soja transgênica,
atráves da Medida
Provisória 131.
Outubro de 2003 Lula e Kirchner assinam Revolta popular na I Conferência Nacional Lançamento do projeto
o Consenso de Bolívia, presidente das Cidades.
Buenos Aires. Sánchez de Lozada,
renuncia.
Putin é reeleito na
Rússia.
Presos da penitenciária
Urso Branco, em Porto
Velho (RO), iniciaram
uma rebelião que só
terminou seis dias
depois com mais de
dez mortos, alguns
deles decapitados.
O presidente do Banco
Central, Henrique
Meirelles, e o
responsável pela política
monetária da instituição,
Luiz Augusto Candiota,
são investigados por
suspeita de sonegação,
omissão fiscal e evasão
de divisas.
Agosto de 2004 Jacques Wagner, novo Hugo Chávez vence Inter-Redes se afasta do Edição sobre participa-
ministro do CDES, referendo na Venezuela acompanhamento do ção da revista Democra-
pede que Mapas PPA. cia Viva.
continue a acompa- Argentina suspende
nhar o Conselhão negociações com o
FMI.
O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva
enviou ao Congresso o
texto do projeto de lei
que cria o Conselho
Federal e os Conselhos
Regionais de
Jornalismo.
Setembro de 2004 Lula reúne 107 líderes Atentado contra a Reunião com a equipe
de todo o mundo para escola de Beslan, na que acompanha os
aprovar a criação de Rússia. Mais de 400 Conseas.
um fundo internacional mortos.
contra a fome.
O parlamento de Israel
aprova a retirada de
assentamentos judaicos
da Faixa de Gaza.
O parlamento israelense
aprovou o polêmico
plano do primeiro-
ministro Ariel Sharon
de retirada da Faixa
de Gaza.
Novembro de 2004 Carlos Lessa deixa a Morre Yasser Arafat. Seminário da Inter-
Presidência do BNDES. Redes sobre “O
Reeleição de Bush nos Desenvolvimento que
EUA. Condoleezza Rice temos e o desenvolvi-
anunciada como a mento que queremos”.
nova secretária de
Estado. Chacina de sem-terras
em Felisburgo (MG).
Vitória da Frente Ampla
e do plebiscito contra
privatização da água no
Uruguai.
Confrontos na Costa
do Marfim.
Janeiro de 2005 Lula visita o FSM e é Fórum Social Mundial Fórum Social Mundial
vaiado e aplaudido. Vai em Porto Alegre. em Porto Alegre.
para Davos e é
aplaudido.
Coréia do Norte
anuncia oficialmente
que possui armas
nucleares.
Paul Wolfowitz
apontado novo
presidente do Banco
Mundial.
Abril de 2005 Morte de João Paulo II. MST realiza marcha Reunião de toda a
Bento XVI eleito como nacional pela reforma equipe para definir os
novo papa. agrária. rumos do projeto.
Queda do presidente
Lucio Gutierrez, no
Equador.
A Assembléia Nacional
Iraquiana elege Jalal
Talabani o novo
presidente do Iraque.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7
O presidente da Bolívia,
Carlos Mesa, renuncia.
Instrumento de pesquisa
Iniciativas governamentais
de participação
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2
ESTADO
DATA DE PREENCHIMENTO
1. IDENTIFICAÇÃO
A. Denominação da iniciativa
D. Instância responsável
PESSOA DE CONTATO
TELEFONE FAX
ENDEREÇO ELETRÔNICO
PÁGINA NA INTERNET
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3
A. Tipo de atividade
C. Caráter (deliberativo/consultivo)
A. Sociedade civil
B. Agencias governamentais
B1. Federal
B2. Estadual
B3. Municipal
B4. Multilateral(cooperação técnica e/ou financeira)
B5. Cooperação bilateral (técnica e/ou financeira)
C. Parlamento
C1. Federal
C2. Estadual
C3. Municipal
D. Judiciário
D1. Fóruns
D2. Tribunal de Justiça
E. Ministério Público
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005
Instrumento de pesquisa
Levantamento de atores e conflitos
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2
ESTADO
DATA DE PREENCHIMENTO
A. Categoria/Nome
C. Temática de atuação
A. Conflitos sociais com atores identificados e com capacidade de pautar a agenda pública
A1. QUAIS OS PRINCIPAIS TIPOS DE CONFLITOS?
B. Conflitos sociais com atores identificados e sem capacidade de pautar a agenda pública
B1. QUAIS OS PRINCIPAIS TIPOS DE CONFLITOS?
C4. FAÇA UMA BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS GRUPOS SOCIAIS E DOS ATORES (QUANDO FOR O CASO) ENVOLVIDOS.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005
Instrumento de pesquisa
Conferências
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
1. MONITORAMENTO
2. VISÕES DOS ATORES SOCIAIS SOBRE O PROCESSO DA CONFERÊNCIA NACIONAL, A SER REALIZADO
PELA COORDENAÇÃO, ATRAVÉS DE CONSULTORES CONTRATADOS. OS DADOS RELATIVOS ÀS CON-
FERÊNCIAS ESTADUAIS SERÃO LEVANTADOS PELAS EQUIPES ESTADUAIS
Instrumento de pesquisa
Consea e Conseas estaduais
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
1. MONITORAMENTO
Estrutura formal
1. Estrutura administrativa, procedimentos e mandatos (regimento)
2. Quem preside o Conselho (representante de governo ou da sociedade civil)?
3. Conselheiros/as (DO). Qual a proporção de representantes da sociedade civil
no Conselho (dois terços ou maioria simples)?
4. Composição social e política do Conselho (usando como referência os tipos de
atores apresentados na ficha de Mapeamento das iniciativas governamentais
de participação)
A seguir, são sugeridas as questões que devem orientar as entrevistas com os atores
selecionados, participantes e não-participantes do processo. O resultado de cada
entrevista deverá ser registrado em uma ficha específica.
No caso de conselheiros/as
1. Por que comparece ou não às reuniões do Consea?
2. Que ator social não está representado no Consea e deveria estar? Por quê?
Instrumento de pesquisa
PPA nos estados
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
1. MONITORAMENTO
A seguir, são sugeridas as questões que devem orientar entrevistas com os atores
selecionados, participantes e não participantes do processo. O resultado de cada
entrevista deverá ser registrado em uma ficha específica.
Instrumento de pesquisa
Glossário
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
Verbetes
Agenda Pública. Conjunto de problemas, reivindicações e propostas vocalizadas
por diferentes Atores Sociais, ou por representantes destes, que se transformam
em pauta dos diferentes meios de comunicação ou em Políticas Públicas.
Atores Sociais. Em uma definição ampla, Atores Sociais são aqueles que, em rede
ou não, têm capacidade de intervir, através de sua ação política e/ou pública, na
construção das correlações de forças que negam ou afirmam, em situações
conjunturais específicas, estruturas sociais, políticas, econômicas ou culturais de
longo prazo. Tal capacidade pode advir dos recursos políticos por eles acumula-
dos, de sua capacidade diruptiva sobre a ordem constituída, de sua capacidade de
associação e formação de redes, de sua articulação com o Estado etc. Neste senti-
do, os Atores Sociais estão sempre envolvidos em algum tipo de Conflito Social e
podem assumir 3 características: 1. podem ser identificados e ter capacidade de
pautar a Agenda Pública; 2. podem ser identificados mas não ter capacidade de
pautar a Agenda Pública ou, finalmente, 3. podem ser capazes de pautar a Agen-
da Pública, mas não serem claramente identificados. É importante ressaltar a na-
tureza dinâmica dos Atores Sociais, o que implica em afirmar que um ator de tipo
3, na dinâmica mesma de sua atuação, pode constituir-se em ator de tipo 1.
implica que tal comunidade tenha construído parâmetros compartilhados que forne-
çam sentido e coerência ao processo político. No entanto, muito embora uma cultura
política implique em parâmetros hegemônicos, tais parâmetros são objeto de perma-
nente disputa, o que implica em dizer que a cultura política é campo da luta política
Florestania.
ser também a extensão, pela ação direta do Estado, dos direitos da cidadania
aos povos da floresta adaptada às condições naturais nas áreas de educação e
saúde. Exemplificando, a educação formal passa a se dar também em línguas
indígenas e o sistema de saúde incorpora o tratablho das parteiras da floresta.
Outros estados amazônicos, como o Amapá, também incorporaram a florestania
a suas políticas públicas. O desenvolvimento do conceito de florestania se insere
na tendência recente da adaptação do conceito de cidadania a regiões e culturas
específicas de determinados territórios, como se verifica no desenvolvimento do
conceito de favelania.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005
Cidadania encurralada 03
Cândido Grzybowski
CIDADANIA ENCURRALADA
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase,
coordenador-geral do Projeto
Monitoramento Ativo da Participação
da Sociedade (Mapas)
Quanta expectativa está indo por água abaixo! Ou, talvez, com a sensação de
encurralamento, sentida por muitos e muitas de nós, nem conseguimos ver direito
o que se passa com o governo Lula. Estamos rodando desordenadamente, sem
aceitar a armadilha da macroorientação política. A vontade é investir contra,
bater para romper. Não é possível que tenhamos lutado contra todo um arcabouço
de políticas econômicas que nos levaram à “prática do liberalismo submisso” –
ou seja, as políticas de Fernando Henrique Cardoso (FHC) em contraposição à
sua própria teoria da dependência – em vão. Será que, como diz Francisco de
Oliveira, chegamos tarde, conquistando o poder político quando a própria polí-
tica já havia sido seqüestrada por forças e interesses que estão em outro lugar?
Uma coisa é certa: tudo é contingenciado pelo orçamento, pelos tais “recursos
disponíveis”. Mas nisso não entram as decisões do Banco Central, tanto na defi-
nição do superávit primário como em suas decisões de política monetária (juros,
por exemplo), sem dizer de onde virão os recursos para pagar banqueiros e
especuladores. Por que o essencial não é decidido no Congresso e só ficamos com
as conseqüências? Quem controla o Banco Central? Por que ele só presta contas e
faz acertos em esferas internacionais – no tal Fundo Monetário Internacional (FMI)
e na casa de seu irmão xifópago, o Banco Mundial? Até mesmo simplesmente se
nomeia quem representa o Brasil nessas instituições, sem passar pela sabatina do
Senado como qualquer embaixador. A autonomia do Banco Central é uma reali-
dade, minha gente! Só falta escancarar.
O jeito é pensar pontos de ruptura que apontem para frente e nos façam avançar.
Eles sempre existem. Senão, só nos restaria a rendição à tese de que a história aca-
bou. Nada como voltar ao ponto de partida. Precisamos ser coerentes, retomando
nossas análises sobre governos como expressão de correlação de forças, pacto de
forças diferentes e contraditórias em ação. Quando o governo Lula se formou e
tomou posse, em janeiro de 2003, sem dúvida uma nova correlação de forças se
constituiu na sociedade brasileira. Um novo tipo de luta política chegou ao centro
do poder político e se irradia sobre o conjunto. Não é o que esperávamos, mas é o
que temos. O problema é que nossas expectativas não nos permitiram ver o que
realmente estava acontecendo e, conseqüentemente, não analisamos bem o que fa-
zer e como agir para radicalizar a democracia no novo quadro. Definitivamente,
não estamos diante de um novo modo de fazer política, com um governo petista
trazendo ao centro do poder sua experiência participativa e renovadora da política.
Mas estamos diante de um novo governo, ao seu modo, diferente.
Já perdemos muito tempo esperando que o “nós lá” – na expressão do povão
que festejou a posse de Lula – fosse uma substancial mudança de políticas e,
sobretudo, do modo de formulá-las, dando lugar central à participação. Essa foi
uma das grandes desilusões; pior, encurralou nossos sonhos e a própria ação. Isso
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4
Desenvolvimentistas
São setores que defendem um papel ativo e indutor do Estado sobre a economia
no sentido de seu crescimento. Sua base histórica tem sido as grandes corporações
profissionais – engenheiros(as), administradores(as), economistas, militares – e as
empresas estatais, com seus corpos funcionais bem mais qualificados e organiza-
dos que a média das empresas brasileiras. Apesar das privatizações ocorridas e do
desmantelamento provocado, ainda persistem empresas estatais importantes, e as
corporações têm influência, especialmente pelos fundos de pensão, hoje grandes
investidores institucionais. No interior desses estamentos, prepondera hoje uma
perspectiva democrática institucional diferente do autoritarismo do período da
ditadura. A grande novidade nesse bloco é a influência crescente do novo grupo
sindical, dominantemente cutista e petista, retratando as mudanças ocorridas na
sociedade e no próprio movimento sindical. Os sindicatos nasceram em oposição
à estrutura e à prática empresarial surgida da grande expansão capitalista do cha-
mado período desenvolvimentista, predominantemente autoritário. Deram ori-
gem a um tardio, mas pujante, movimento sindical, força essencial na
redemocratização do Brasil desde o fim da década de 1970. No processo de sua
constituição, com a formação da CUT e das outras centrais, os sindicatos acaba-
ram moldando novas práticas empresariais e uma nova cultura de trabalho. O PT
deve ao movimento sindical as suas principais lideranças, com destaque para o
próprio Lula, hoje presidente do Brasil. Entre desenvolvimentistas, sempre houve
setores empresariais privados, muito dependentes do bom desempenho da econo-
mia nacional e sem grandes vôos próprios.
Globalistas
Chamo assim os setores que consideram as forças de mercado o motor da econo-
mia, cabendo ao Estado – e, portanto, ao poder político – criar o ambiente favo-
rável às empresas, ao capital financeiro e ao mercado. Nesse bloco, incluem-se
grandes empresas de capital estrangeiro, empresas nacionais com estratégia global
(dado o seu porte) – com destaque para grandes empresários beneficiados com as
privatizações nas últimas décadas –, exportadores e agronegócio, banqueiros e
investidores em papéis da dívida pública. Os globalistas são os grandes propulso-
res do neoliberalismo como visão e da globalização econômico-financeira domi-
nante como modelo a ser seguido. Cabe destacar o segmento empresarial mais
diretamente engajado na produção industrial. É um grupo moderno e
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6
Ativistas populares
Esse é o bloco que sofreu mais transformações com a emergência na política dos
segmentos populares, urbanos e rurais. Sua origem, porém, é remota. O populismo
trabalhista foi a sua maior expressão no passado. Durante a ditadura militar e na
luta pela redemocratização, foram se constituindo novos sujeitos populares por
meio de movimentos e organizações. Esse é um dos pilares da democratização do
Brasil. Sua irrupção na política, mesmo parcialmente (muitos grupos continuam
politicamente ausentes e, portanto, invisíveis), a partir da luta por direitos e con-
tra a exclusão, faz a diferença. Por meio de seus movimentos e organizações, vêm
criando uma cultura democrática nova, verdadeiras trincheiras de defesa social e
uma grande capacidade de incidência nos processos políticos. Um número grande
de ativistas aderiu ativamente ao PT. A presença no partido forjou uma funda-
mental aliança com novos setores sindicais mais radicais, cuja liderança e legitimi-
dade passaram a depender desse alargamento de bases sociais e espaços de atuação
política. Por isso, faz parte do bloco de ativistas populares todo um segmento
sindical identificado com a luta dos setores populares, urbanos e rurais, que
irrompem na política nos últimos 20 a 30 anos.
Em termos políticos, o impacto do bloco de ativistas populares se fez sentir na
criação de uma lógica em que o voto e a representação se submetem e/ou
complementam por formas mais diretas de participação e pela criação de novos
canais permanente de negociação e concertação. Centrando sua força na questão da
exclusão/inclusão e no tema da desigualdade de recursos e poder, bem como da
destruição ambiental, esse bloco tem levantado a bandeira da democracia radical
na luta política brasileira das últimas décadas. Deve-se a esse bloco o fato de que
questões como desigualdade de gênero, desigualdade étnico-racial, direito à diversi-
dade, direito à cidade, justiça ambiental, participação na formulação e gestão de
políticas públicas e tantas outras mais façam parte, hoje, de nossa agenda política.
Conservadores
É um bloco que foi dominante na história política brasileira. O clientelismo, o
favor e a privatização da coisa pública são marcas maiores desse bloco impressas
em nossa vida política, ainda fortes hoje. Com uma atitude dominantemente
autoritária, esse bloco tem sabido se manter na política, mesmo de forma subal-
terna, mas influindo de modo qualitativo na composição de outros blocos de
forças políticas na democracia brasileira. A clara origem latifundiária e oligárquica
dos segmentos integrantes marca profundamente sua atuação. Mas ele tem pene-
tração em tradicionais setores urbanos mais afeitos a privilégios do que direitos.
Sua penetração nos segmentos intermediários mais baixos é maior do que se ima-
gina, influindo decididamente nos processos eleitorais, mesmo das grandes metró-
poles. Destaca-se a sua capacidade de representação política e controle do aparato
estatal, no Parlamento, no Executivo e no Judiciário. Quanto mais distante esti-
ver do poder federal, maior é essa representação. Mas mesmo no plano central, em
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7
Brasília, nenhuma pessoa que governe pode desprezar o poder de fogo do grupo
ruralista, uma das expressões mais eficazes desse bloco, passando por cima da
própria estrutura partidária.
A esses quatro blocos de forças políticas principais é necessário agregar outros.
Não são exatamente blocos, mas têm atuação autônoma, até por vezes imprevisível,
mesmo sem poder de disputa de hegemonia. São, por isso, grupos subalternos dispu-
tados pelos outros e suas alianças. O problema é que, dependendo das situações, seu
papel acaba sendo muito importante. Chamo a atenção, em particular, para o grupo
corporativista. Seus interesses mais específicos estão em primeiro plano, acima dos
interesses da coletividade, independentemente das conjunturas. No período recente,
cabe destacar o modo como se comportou o Supremo Tribunal Federal e o Judiciário
em geral – e também o importante segmento composto por funcionários(as)
públicos(as). Não é um grupo necessariamente conservador e nem democrata pro-
gressista. Militares, evangélicos(as) e outros segmentos incluem-se nesse grupo, alguns
formados em caráter circunstancial, em torno de disputas e questões ad hoc. O gran-
de número de oportunistas da política brasileira deve ser incluído nesse grupo. Sua
constante mutação partidária e de posições é reveladora de suas motivações maiores.
O que importa nessa análise do poder sendo forjado por blocos de forças é que
eles mesmos são composições complexas e variáveis no tempo. Os partidos
hegemônicos, como blocos políticos, são composições derivadas, onde se combi-
nam forças originárias de diferentes blocos e que exercem poder de atração sobre
o conjunto de forças de cada bloco. Dissidências existem, maiores ou menores,
dependendo da conjuntura de luta política. Cada partido tem sempre suas dissi-
dências. Algumas prosperam e podem virar novos partidos no futuro. Isso não
impede que, em dado momento, sejam simplesmente dissidências, pouco ou nada
contando na disputa de hegemonia.
Agora, é possível voltar à questão da disputa entre petistas e tucanos como o nó
atual da política brasileira. Para isso, precisamos analisar as composições de blocos
(ou de parte deles) e a formação do bloco hegemônico, da direção e da legitimidade
política que constrói. Precisamos distinguir as forças de base de cada partido
hegemônico e o modo como constitui sua hegemonia, atraindo e dando direção a
outras forças, suas aliadas. Vejamos mais de perto o caso de tucanos e petistas.
Tucanato
Os tucanos são uma combinação de setores democrático-liberais do bloco
desenvolvimentista, especialmente profissionais e intelectuais, com setores globalistas
de vários tipos. O interessante é que no processo de lutas políticas, quando tucanos
acabaram criando condições de se apresentarem como força hegemônica, globalistas
cresceram em importância e acabaram dando o rumo. Esse fato explica por que, no
Brasil, com os tucanos do PSDB, forja-se uma força impulsora das políticas de
globalização neoliberal, como no resto da América Latina, mas com feições mais
democráticas, dada essa curiosa combinação. Um outro fundamental aspecto a des-
tacar é que a conquista de hegemonia tucana no Brasil – os oito anos de FHC – se
faz em aliança com o bloco conservador e, por meio dele, arrastou oportunistas de
todos os tipos. Isso não foi gratuito. O namoro com Collor, desfeito em tempo por
Covas, jogou os tucanos em direção ao PFL e ao PMDB e, com eles, a oito anos de
domínio, nos limites impostos por tal aliança.
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Petismo
O PT se constitui tendo no centro a aliança entre setores desenvolvimentistas
democráticos, especialmente o novo segmento sindical-desenvolvimentista, e seus
fundos de pensão, com os de ativistas populares. A hegemonia no interior do PT
ficou com sindicalistas, mas a ampla base de movimentos sociais e populares ade-
riu em peso e imprimiu um claro caráter popular e democrático ao partido. Para
a conquista do poder hegemônico na sociedade brasileira, o PT se aliou a setores
empresariais globalistas e arrastou parte significativa dos outros segmentos
desenvolvimentistas, até aí reticentes diante do petismo. Novamente, tal aliança
não foi gratuita. Diferentemente de tucanos, que têm globalistas como parte de
seu DNA, petistas fazem uma espécie de engenharia genética para se aliar a essas
forças. É a tal Carta ao Povo Brasileiro. Para a nossa infelicidade, parece que o
transgênico político vingou e vem transformando o petismo. Mas há diferenças
na hegemonia de petistas e de tucanos, tanto pela origem como, sobretudo, pelo
lugar do bloco conservador. O certo é que o petismo no poder não é a hegemonia
do bloco de ativistas populares. Mas estão lá, e isso é intrigante. Como é intrigan-
te também o poder de barganha do enorme grupo de corporativistas sobre o go-
verno Lula, especialmente no Congresso.
Tendo tal hipótese um mínimo de veracidade, o passo seguinte para entender
os impasses da cidadania – a cidadania encurralada, da qual parto – é analisar os
momentos em que a hegemonia petista sobre o poder político se desdobra. Claro
que a história fica com mais sabor pondo nome e sobrenome aos principais atores
desse enredo. Afinal, globalistas no governo Lula são Meireles, Furlan e Rodrigues,
todos até ontem aderentes do tucanato. Palocci, entre eles, se presta como garan-
tia petista da aliança feita. Desenvolvimentistas de primeira linha são Dirceu,
Mercadante, Lessa, Mantega, Dilma, Dutra (Petrobras), Luís Paulo e professor
Luisinho (no Congresso) e tantas outras pessoas em postos-chave do aparato esta-
tal. Na linha de frente de ativistas populares, temos Dulci, Olívio Dutra, Marina,
Rossetto, a envergonhada esquerda petista no Congresso. Uma importante figura
na construção da hegemonia petista é Tarso Genro, pelo seu papel de teórico
político da própria aliança, em particular de desenvolvimentistas com ativistas
populares, o núcleo duro do PT. De toda forma, é visível a simplificação contida
nesse esforço, ao modo de meu guru Gramsci, de dar nome aos personagens de
nosso enredo político atual. A realidade é muito mais complexa, sem dúvida. No
entanto, ela pode ser entendida a partir de construções que resgatam o sabor
radicalmente humano envolvido nessa trama, nossa sina como seres humanos
vivendo em sociedades diversas e contraditórias. O incrível de tudo isso é a possi-
bilidade de ver os blocos do centro do poder se irradiando sobre a sociedade
brasileira, e para ver isso basta ler os jornais. Se juntarmos o bloco de oposição e
as pessoas patéticas que o comandam, temos a trama política delimitada.
Os momentos aqui definidos devem considerar a fundo – e à maneira de uma
sintonia fina – a evolução das contradições e lutas da trama montada. Num pri-
meiro esboço, podemos identificar o momento da “celebração do poder”, quan-
do ainda parecia que existia união entre nós e várias iniciativas de participação
foram apontadas, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), as conferên-
cias. Logo veio o “rolo compressor” da votação das emendas e da manutenção do
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9
O mais intrigante é o lugar de ativistas populares, que não têm chance, mas
não podem deixar o barco, pois, assim, desmorona o próprio PT, base da aliança
para conquista de hegemonia. O bloco de ativistas populares depende muito da
própria sociedade, já que é por intermédio dele que os ecos da participação e da
pressão das ruas podem influir nos rumos do governo. Se não estamos diante de
um modo participativo radicalmente novo de fazer política, estamos diante de
um governo diferente que, no fim, tem na participação das ruas o seu flanco
aberto e sensível. Talvez aí esteja a oportunidade de fazer avançar o governo Lula
em resposta ao clamor de amplos setores da sociedade brasileira, que até lhe deu a
vitória eleitoral e ainda o apóia, por mudança.
De uma perspectiva de democracia radical, que ponha a cidadania no centro,
todos os direitos humanos para todas e todos no país, buscando, de fato, a inclu-
são e a igualdade, a coisa está difícil. Impossível? Nem tanto. Mas o que temos
não é o que almejamos. Pior, a participação cidadã não é o motor deste governo.
Espaços de participação existem e se multiplicaram muito. A qualidade dela, de
seu impacto, é que não mudou tanto. O governo Lula ouve, mas parece não
escutar. Muitos movimentos, grupos e organizações da sociedade civil acredita-
ram nas possibilidades abertas por antigos e novos canais de participação,
institucionais ou não. Mas pouco ou nada temos conseguido até aqui. Daí a
sensação do encurralamento, de termos caído numa armadilha que nos tirou po-
der de iniciativa cidadã. Para sair do curral, o negócio é se organizar e voltar às
ruas. Armadilha, não!
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Flávio Limoncic
Pesquisador do Projeto Mapas e
consultor do Ibase, professor do Instituto
de Humanidades da Universidade
Candido Mendes (Ucam)
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva representou um dos momentos mais impor-
tantes da vida republicana brasileira. Pela primeira vez, forças políticas originári-
as do sindicalismo e dos movimentos sociais surgidos nas décadas de 1970 e 1980,
ainda que em aliança com setores empresariais, chegaram ao governo federal.
Nesse sentido, essa chegada não só coroou um longo processo de incorporação de
sujeitos políticos historicamente marginalizados das arenas decisórias, como tam-
bém sinalizou um aprofundamento desse processo, potencialmente radicalizando
a democracia brasileira.
Ao chegar ao governo federal, o Partido dos Trabalhadores (PT) reafirmou o
compromisso, assumido em suas muitas administrações municipais e estaduais,
de enfatizar a participação da sociedade civil na construção das políticas públicas,
recolocando o desafio de tornar produtivas as tensões entre as instituições da
democracia representativa e da democracia participativa. A Constituição de 1988
já havia criado uma série de instituições que estimulavam a participação da soci-
edade na formulação e na gestão das políticas públicas, ainda que nem todas
tenham sido plenamente desenvolvidas.
O governo Lula propôs-se a radicalizar tal participação. Para isso, criou o
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, trouxe de volta o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), estabeleceu as consul-
tas à sociedade civil no debate do Plano Plurianual (PPA) e propôs a realização de
conferências nacionais, como as relativas às cidades, ao meio ambiente e aos direi-
tos humanos. Ao que parece, fez isso tudo com a visão de que os novos espaços de
participação contribuem para o esforço coletivo de tornar mais democrático o
padrão das políticas públicas no Brasil – confrontando as concepções elitistas de
democracia, desafiando as concepções autoritárias do primado dos “técnicos” e
da “técnica” no processo decisório estatal, questionando o monopólio do Estado
sobre a definição do que é público e do que deve constituir a agenda pública e
contribuindo para a redução do clientelismo e para uma maior transparência nas
ações governamentais (ver Dagnino, 2002, p. 162). O governo Lula sugeria per-
ceber que esses espaços eram instituições adequadas à construção de novos con-
sensos sociais capazes de alavancar uma nova hegemonia na sociedade brasileira,
básica para a reversão do quadro de distribuição iníqua da renda, da riqueza e do
poder que marca a história do Brasil.
Com o objetivo de acompanhar os espaços de participação da sociedade civil
na construção de políticas públicas do governo Lula, o Ibase propôs a criação de
uma rede de entidades da sociedade civil, de diferentes unidades da Federação, em
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Alimentar a participação
O Consea estadual é um espaço público de participação de representantes do
estado e da sociedade civil na formulação e no controle social da implementação
da política pública estadual de segurança alimentar e nutricional. A partir das
informações coletadas pelo Projeto Mapas, seguem algumas observações que po-
dem contribuir para a discussão a respeito das potencialidades e problemas en-
frentados pelo conselho.2
A iniciativa do governo Lula de recriar o Consea nacional e incentivar a cria-
ção de Conseas estaduais – ou o fortalecimento dos que já existiam – foi impor-
tante pelo alargamento do espaço público, tanto local como nacional, da emer-
gência de novos sujeitos políticos e, portanto, da construção de uma cultura polí-
tica democrática no país. O fato de a iniciativa de criação do Consea ter partido
do governo federal foi um fator considerável para a sua viabilização, já que, num
país como o Brasil, o governo federal continua relativamente muito forte em
relação aos governos estaduais.
Ademais, a vitória de Lula para a Presidência alimentou o entusiasmo das
organizações da sociedade civil quanto à importância dos espaços públicos de
participação, levando-as não só a pressionar o governo para criação desses espa-
ços, mas também a projetar expectativas de operacionalização e de funcionamen-
to deles como campos para a radicalização da democracia. Assim, é possível suge-
rir que a iniciativa de criação do Consea, no início do governo Lula, e o apoio e a
mobilização local das organizações da sociedade civil foram, de modo geral, fun-
damentais para a viabilização dos Conseas. Em estados onde o governo foi ou é,
de alguma forma, hostil à sua criação/implementação e onde não há mobilização
importante da sociedade civil em torno dela, o Consea estadual ainda não foi
formado – por exemplo, em Goiás.
Os Conseas analisados pelo Projeto Mapas evidenciam – reafirmando resulta-
dos obtidos em outras investigações – que são polarizados entre representantes do
estado e de organizações da sociedade civil. Assim, tais iniciativas, que apostam na
1 As entidades que formam a rede do Projeto Mapas são: Cidades, Pólis/Fórum Nacional de Participação Popular,
Cedefes, Ifas, Fase-MT, Fase-PA, Cese, Cenap, Cepac, IPDA/GTA.
2 Informações coletadas nos estados de Minas Gerais, Bahia, Tocantins e Mato Grosso do Sul, no primeiro semestre de 2004.
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3 Isso não deve impedir que se considerem os atores estatais como um conjunto bastante heterogêneo, especialmente em
sua posição diante da questão dos espaços públicos de participação e de controle social das políticas públicas. Como
conseqüência, a luta pela radicalização da democracia deve estar atenta aos conflitos existentes, real ou potencialmente,
na burocracia estatal e na possibilidade de realização de alianças políticas com segmentos específicos dessa burocracia.
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14
financiadas pelo programa nos estados têm de ser aprovadas pelo Consea. Ao
mesmo tempo, no entanto, a forma como o Fome Zero foi implementado
parece ter criado também bastante confusão na relação entre o próprio gover-
no federal, o governo estadual e o Consea. No Mato Grosso do Sul, a entrevis-
ta com o presidente do Consea revela que “há pouca relação entre as ações do
Fome Zero nacional e o programa do governo estadual. Não há ações integra-
das”. Além disso, o conselho estadual “não intermediou a criação dos Conseas
municipais, que foi feita por decreto nacional. O Consea ficou alheio ao pro-
cesso, não foi consultado nem participou”. Em Tocantins, entrevistas com
lideranças da sociedade civil sugerem que, não obstante existam mais possibi-
lidades para a organização popular e mais recursos para a mobilização social,
“há uma manipulação do conselho pelo governo do estado, tentando condu-
zi-lo para ações emergenciais (arrecadação de alimentos, cartão alimentação).
A mídia reduz o combate à fome ao cartão alimentação e à cesta básica”. E
também acrescentaram: “Se o conselho debatesse as causas da fome, iria apare-
cer uma sementinha para a discussão sobre reforma agrária, reforma urbana”.
4 Os resultados da pesquisa estão publicados em Dagnino (2002 a). Para um texto sintético sobre a pesquisa, ver Dagnino
(2002).
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Pensar à frente
O plano Brasil de Todos – Participação e Inclusão, base para a discussão pública
do PPA 2004–2007, objetivava traçar uma estratégia de desenvolvimento voltada
à inclusão social e à participação da sociedade no processo de planejamento, en-
cerrando a meta de reorientar o histórico padrão de comportamento da economia
brasileira de concentrar renda e riqueza tanto em seus momentos de crescimento
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5 Dados dos seguintes estados: Alagoas, Amapá, Bahia, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do
Norte, São Paulo e Tocantins.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Referências bibliográficas
DAGNINO, Evelina. Democracia, teoria e prática: a participação
da sociedade civil. In: PERISSINOTTO, Renato; FUKS, Mário. (Orgs.).
Democracia: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
______. (Org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2002 a.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Fátima Nascimento
Consultora nos estados da Bahia, Alagoas e Sergipe
Damien Hazard
Diretor regional da Abong NE2
Lucineide Barros
Consultora nos estados do Ceará e Piauí
A relação entre governo e atores sociais tem avançado a passos lentos, segundo
avaliação do Coletivo de Entidades Parceiras em Políticas Públicas do Piauí
(CEPPP), que reúne cerca de 15 entidades. Não é possível identificar a participa-
ção popular como uma marca de governo nem mesmo como meta ou intenção.
As entidades reclamam da falta de reconhecimento governamental do seu papel
estratégico, principalmente ao considerar que a história de vários agentes do atual
governo se confunde com a história dos movimentos sociais. Chegam a afirmar que
em governos anteriores, de tradição conservadora, apesar da falta de respeito, havia
algum reconhecimento do seu potencial – embora tal reconhecimento resultasse no
uso de mecanismos de distanciamento, imobilização e cooptação.
Além das tensões ocasionadas pela própria composição da equipe de governo,
outros fatos têm sido decisivos no acúmulo de tensões entre governo e movimen-
tos sociais. Entre eles, a demissão de 10 mil servidores(as) prestadores de serviço,
sob o argumento do cumprimento da lei, o que ocasionou a primeira greve de
servidores(as), mobilizando a opinião pública para o que foi considerada uma
decisão arbitrária e injusta. O ato traumático somou-se a outros, como o despejo
de famílias sem teto de um terreno de propriedade do estado, com intensa violên-
cia policial, e a garantia, por via judicial, da manutenção da cobrança de taxas a
estudantes da universidade estadual.
Com exceção dos seminários regionais, promovidos pela Secretaria de Planeja-
mento com o objetivo de colher subsídios para a elaboração do PPA estadual e da
elaboração do Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS), as demais experiências
que promoveram a escuta do movimento social se deram por iniciativa do governo
federal, repercutindo no estado. Registra-se ainda que o processo do PPA estadual
em nada se comunicou com o PPA nacional e que o PCCS significou muito mais
uma iniciativa isolada de uma secretaria, longe de ser uma marca de governo.
Na relação com o governo estadual e federal no Piauí, percebe-se que predomi-
nam sujeitos de dois tipos: um grupo historicamente comprometido com as lutas
de enfrentamento às injustiças sociais e com a conquista e ampliação de direitos;
e outro com instituições que nunca pleitearam espaços de participação nos pro-
cessos decisórios, como as Associações da Indústria, do Comércio, Sebrae, entre
outras. Além dessas, começam a surgir no cenário novas instituições, principal-
mente fundações, que trabalham com prestação de serviço, geralmente terceirização
de serviços públicos, na parceria em projetos governamentais.
As concepções de participação se apresentam diferenciadas: o governo compre-
ende participação como presença, faz convites pontuais às entidades para toma-
rem parte em eventos, programas e projetos prontos a serem executados; geral-
mente se coloca como o dono da agenda e com direito de pautar os temas de
acordo com suas necessidades imediatas. Não explicita claramente os objetivos
para a participação. Passa a impressão de que o fato de ter entre seus quadros
pessoas oriundas de movimentos sociais basta, não havendo necessidade de ouvir as
organizações representativas. Já os movimentos sociais entendem a participação
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24
Sérgio Baierle
Consultor nos estados de Santa Catarina,
Paraná e Rio Grande do Sul
Nos últimos 20 anos, as classes populares deste país romperam o cordão de isolamen-
to que as separava da participação política autônoma. Encerramos mais de duas
décadas de ditadura militar. Direitos básicos de cidadania foram estendidos ao con-
junto da população, não obstante sua precária qualidade. Com a abertura do voto às
pessoas analfabetas, a partir de 1988, e a retomada plena das liberdades políticas,
estabelecemos efetivamente o sufrágio universal. Essa afluência popular, sobretudo
nos meios urbanos, traduziu-se também no econômico, mesmo que por vias transver-
sas, em gradativa conquista de melhorias nas infra-estruturas urbanas, da vagarosíssima,
porém constante, regularização fundiária de áreas de ocupação, no acesso à educação
e no desenvolvimento de imensas redes de produção e comércio informal.
Já a cidadania propriamente política das classes populares vem passando por
um processo que vai além do ato de votar e ser votado. Estima-se que existam
hoje no Brasil algo ao redor de 30 mil conselhos setoriais nas esferas federal,
estadual e municipal. Grande parte das políticas sociais em vigor é acompanhada
por conselhos locais que fiscalizam a aplicação dos recursos e seus resultados.
Participam desses conselhos representantes comunitários das próprias populações
beneficiadas, prestadores(as) de serviços, ONGs, governos, universidades e seto-
res privados. Trata-se de uma fantástica aposta nas instituições democráticas.
Atualmente, em mais de 140 cidades brasileiras, desenvolvem-se experiências
de orçamento participativo, em que pessoas comuns podem participar diretamen-
te em assembléias para decidir o destino de parte dos recursos públicos ou, pelo
menos, podem influir na gestão dos serviços. Na área do desenvolvimento urba-
no, em 2003, contando apenas a região Sul (PR, RS e SC), realizaram-se 196
conferências municipais das cidades, 54 conferências regionais e, claro, três esta-
duais. Na área de segurança alimentar, os números são ainda mais impressionan-
tes. Praticamente todos os médios e grandes municípios passaram a desenvolver
políticas minimamente participativas para dar conta do combate à fome, nem
que seja para se credenciarem como beneficiários de recursos federais. Apenas no
Rio Grande do Sul foram realizadas 240 conferências municipais de segurança
alimentar. Menos impressionantes, mas não menos significativos, têm sido os even-
tos nas áreas de meio ambiente, educação e saúde.
Se algo falta, não é certamente a vontade cívica de construir um país melhor.
Aparentemente, tampouco falta vontade política, já que a maioria dos governos
mantém respeitáveis propósitos sociais e agendas participativas, conferindo maior
ou menor poder deliberativo à população, apesar das profundas diferenças de
sentido e de qualidade desses processos. Estamos maduros para avançar na agen-
da republicana, mesmo quando os resultados tornam-se cada vez menos expressi-
vos. É o caso da conjuntura atual, com honrosas exceções, como o orçamento
participativo de Porto Alegre, agora também com uma face voltada para o funci-
onalismo municipal. Isso, no entanto, não diminui a febre instituinte que atra-
vessa as dezenas e dezenas de conferências que vêm se realizando de norte a sul do
país, em todas as áreas possíveis e imagináveis.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Existe, portanto, uma imensa demanda de nação que não encontra espaço
nas possibilidades atuais da política. Certos(as) comentaristas econômicos, cini-
camente, dizem que chegou o momento de cairmos na real, de abandonarmos
os sonhos de mudanças mágicas nas condições sociais existentes. Temos, então,
o salário mínimo possível, as políticas sociais possíveis, o Estado possível. Te-
mos a faca, mas não podemos dividir os recursos, que já têm dono. Para
redistribuir o pouco que resta, é preciso reduzir os salários do funcionalismo
público e alterar suas regras previdenciárias, utilizar expedientes os mais diver-
sos para suprir as necessidades de caixa, atrasar pagamentos em geral e jogar a
culpa nas outras esferas governamentais. Ninguém mais fala em planejamento,
os governos parecem prisioneiros do cotidiano, as batalhas são travadas a cada
dia, e o futuro é uma zona que não existe.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Mônica Schiavinatto
Consultora nos estados de Goiás,
Mato Grosso do Sul e Tocantins
Leda M. B. Castro
Consultora no estado de Minas Gerais
Carlos Tautz
Consultor nos estados do
Rio de Janeiro e Espírito Santo
Crônicas
2003
SUMÁRIO
Fome de cidadania 07
Cândido Grzybowski
Trabalho e cidadania 13
Cândido Grzybowski
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
:.: todo mundo comer segundo a sua fome, de preferência realizar o sonho de “um
bife a cavalo com batatas fritas” ao menos uma vez por semana;
:.: todas as famílias de trabalhadores(as) rurais que desejam um pedaço de chão
estarem assentadas, colhendo e vivendo de sua colheita, e não mais obrigadas
a acampar sob lonas de plástico;
:.: toda brasileira e todo brasileiro adulto(a) que deseja trabalhar e viver do seu
trabalho, com renda monetária condizente, dignidade humana e proteção so-
cial, na forma que achar mais adequada, tenha realizado esse direito;
:.: nenhuma criança sendo obrigada a trabalhar e nem a se prostituir, tendo o
direito de viver o seu tempo de sonho que são a infância e adolescência;
:.: todas as nossas crianças na escola, sonhando e aprendendo, lendo e escrevendo,
dançando, representando e fazendo esporte, como é próprio de crianças;
:.: todos e todas os(as) jovens, que assim aspiram, tenham realizando o seu sonho
de um curso universitário;
:.: todas as nossas avós e nossos avôs sendo respeitados(as) em sua idade e sabedo-
ria, merecedores(as) de carinho e atenção, além de oportunidades para uma
vida ativa e feliz;
:.: todos e todas tendo acesso ao atendimento de saúde, sem distinção de classe,
renda ou qualquer outro critério, que não o do direito igual à saúde e à vida
longa com alegria;
:.: a segurança pública sendo afirmada como um direito de liberdade, de ir e vir, de
viver em paz e dignidade, sem privilégios ou cidades partidas, sem violência e
balas perdidas;
:.: o Brasil, todas e todos nós, seus(suas) habitantes, reconhecendo que o racismo
está incrustado em nossa alma e que, por mais difícil que seja, o reencontro
consigo mesmo(a) só será possível na igualdade com diversidade de cor de pele,
de etnias, de culturas, de tradições, de fés, celebrando a nossa capacidade e
fortaleza como povo de múltipla formação;
:.: cada um e cada uma feliz em sua casa, por mais modesta que seja, mas sua, com
cama, mesa, cadeira, acesso à água, luz, esgoto e transporte decente próximo;
:.: os(as) empresários(as) finalmente sendo responsáveis socialmente, não tratan-
do mais o Brasil e seu povo como um território e uma população a espoliar,
mas como sendo os(as) empreendedores(as) de um desenvolvimento democrá-
tico e sustentável para todas e todos os(as) brasileiros(as), investindo no país
para além de seus negócios;
:.: o mercado não mais sendo a referência suprema e nem os índices financeiros e
econômicos, como termômetros técnicos, serem mais do que coisa de especia-
listas, sem maior interesse para a cidadania feliz do Brasil;
:.: o direito de todas e todos serem simplesmente felizes.
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
com um ótica que não foi da inclusão cidadã. Agora precisamos reavaliar o que e
como estudamos a nós mesmos(as). As nossas universidades e nossos centros inte-
lectuais e científicos precisam também ter o Brasil que busca o encontro consigo
mesmo como sua referência e agenda. Nossa mídia precisa informar e debater o
Brasil das possibilidades contidas no seu lado oculto, excluído. Enfim, é um mutirão
político-cultural que somos chamados(as) a fazer nesta hora.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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FOME DE CIDADANIA
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro
de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Nunca é demais salientar que o Programa Fome Zero do Governo Lula tem o
grande mérito de reconhecer e pôr no centro de nosso debate político a fome
como uma emergência eticamente inadiável. Com razão, está sendo apresentado
como uma marca de mudança nas prioridades do governo que se inicia e de busca
de novos rumos para o desenvolvimento do Brasil. A fome é a chaga mais visível
da exclusão social e da negação de liberdade e dignidade humanas a milhões de
brasileiros e brasileiras. Afinal, nossos(as) famintos(as) são produto da injustiça
social, de relações, estruturas e processos que inventamos, e não da escassez.
Refundar o Brasil, fazendo o encontro entre povo e nação, entre sociedade e eco-
nomia, tem como pressuposto básico começar garantindo que os recursos que
temos sirvam antes de mais nada para a segurança alimentar de todos(as) os cida-
dãos e as cidadãs. É o país indo de encontro a si mesmo, como bem disse o presi-
dente Lula em sua posse.
A vontade política é clara e poderá gestar um verdadeiro mutirão pela cidadania
no qual todos(as), os vários níveis e instâncias do governo, os poderes legislativo e
judiciário, as entidades e movimentos da sociedade civil e as empresas, se engajem.
Mas será capaz de mudar a lógica férrea da desigualdade e exclusão social entre nós?
Em termos simples, como saciar a fome garantindo a inclusão na cidadania econô-
mica, social e cultural? Afinal, é isso que pode tornar um programa emergencial
base de uma estratégia de desenvolvimento democrático e sustentável.
Precisamos urgentemente tornar o Fome Zero um desafio para a grande política,
impedindo que essa oportunidade trazida por Lula para o Brasil se perca nos mean-
dros da gestão do poder e da administração pública. A viagem de Lula e seus(suas)
ministros(as) aos “fundões” do Brasil dos(as) famintos(as), pelo seu simbolismo,
apontou para a grande política. Mas os cartões-alimentação e os comitês gestores
para verificar comprovantes de compras de alimentos assustam pela sua pequenez.
Corremos o risco de ver abortado um grande programa e cairmos na vala comum
do assistencialismo paternalista. Faltam recursos? Sem dúvida, mas essa escassez foi
produzida num quadro em que as prioridades sempre foram exatamente as que
geram a situação de fome e exclusão social. Para “libertar” recursos já existentes e
dar-lhes nova função vamos precisar de tempo e, sobretudo, temos que avançar no
debate da estratégia que dá rumo e legitima as opções de política. Trata-se de ousar,
pensar grande para fazer grande, como ensinava Betinho.
Neste sentido, surpreende que o Fome Zero não seja a implantação imediata e
urgente de uma política universal de renda mínima entre nós, velha bandeira do
PT. Pior, parece que se caminha para reeditar formas de distribuição de recursos
que até podem saciar imediatamente a fome de quem precisa, mas em pouco ou
nada contribuem para o resgate da cidadania dos(as) famintos(as). A forma que
está sendo pensada para a distribuição e controle do uso dos cartões-alimentação
atrela e limita o(a) receptor(a) do benefício: renda mínima – por mínima que seja
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
violência. Aliás, a própria violência não vem das favelas, apenas a população
favelada tem menos condições de se defender da violência que a cidade e os(as)
criminosos(as) lhe impõem. Ela se gesta em relações, estruturas, processos e polí-
ticas de uma sociedade e uma cultura excludentes. Nós, os(as) da “periferia” da
orla, não admitimos, mas temos sido coniventes, beneficiários(as) e até
financiadores(as) da violência, que se abate tão duramente na outra “periferia”.
Importa reconhecer que a insegurança é o outro lado da corrupção que coroe
nossas instituições e que acaba exacerbada no caso do aparato público encarrega-
do da segurança. Não pode existir segurança quando a cultura do favor se sobre-
põe à cultura de direitos. Segurança, como direito, a gente conquista agindo,
reagindo, dizendo “não”, fazendo mudar as políticas. Há uma mudança que pre-
cisamos fazer dentro de nós mesmos(as). O cotidiano da violência e da falta de
segurança acabem penetrando em nossos corações, nos nossos sentimentos e códi-
gos de conduta, afetando a nossa cultura. Vivemos uma cultura de insegurança,
de medo, que acaba dando razão aos(às) que optam pela violência, sejam
criminosos(as) ou sejam policiais. Precisamos mudar de mentalidade. Precisamos
tornar-nos ativistas da segurança. O maior tecido protetor é a nossa própria cida-
dania organizada. Organizemo-nos para participar sem medo. Sejamos intoleran-
tes com qualquer tipo de truculência, em qualquer prática, em qualquer situação.
Isso vai fazer mover governantes e o aparato de segurança que precisamos.
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Cândido Grzybowski
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Com o governo Lula, o Brasil tem uma oportunidade ímpar para definições estra-
tégicas de longo alcance na sua relação com os países vizinhos da América do Sul. E
isso diz respeito não só ao nosso futuro como brasileiros e brasileiras, mas, ao mes-
mo tempo, é da maior importância para os diferentes povos sul-americanos. Nesse
sentido, é de festejar o fato que Lula, desde a sua vitória eleitoral e agora como
governo constituído, esteja dando sinais de construção de uma política totalmente
nova nesse campo de nossas relações internacionais. Lembro, em particular, a clara
opção por um Mercosul fortalecido, indo até à proposta mais ousada de um parla-
mento do bloco de países que o constituem, e a iniciativa Amigos da Venezuela,
como apoio a uma solução democrática constitucional no conturbado país.
Estamos, porém, mergulhados(as) numa nebulosa conjuntura e diante de uma
pesada agenda de negociações. Por exemplo, até é difícil imaginar o tamanho do
estrago que um ataque dos Estados Unidos ao Iraque pode fazer, não só ao povo
iraquiano e a todo o mundo árabe, mas a nós mesmos(as). O encontro do povo
brasileiro consigo mesmo através de Lula presidente pode acabar em desencanta-
mento, em oportunidade perdida, dado o tamanho das restrições e limitações
externas à uma vontade interna de mudanças que a situação de guerra e crise gera.
Ao mesmo tempo, a proposta da Alca (Área do Livre Comércio das Américas),
entrando em uma fase decisiva de negociações, pode solapar qualquer projeto que
não corresponda à subjugação total do destino de nossos países à hegemonia
econômica, tecnológica e comercial, cultural, política e militar norte-americana.
Além da Alca, temos as negociações da OMC (Organização Mundial do Comér-
cio), o possível acordo com a União Européia, as possibilidades comerciais com a
China e a Índia. Como, com que estratégia enfrentar isso tudo que está diante de
nós – e que não depende somente de nós – para avançar ou não?
A inclusão de qualquer país no mundo, hoje submetido à lógica da globalização
– isto é, de estratégias globais para se viabilizar localmente –, passa necessaria-
mente por relações comerciais. Elas são indispensáveis como condição para o de-
senvolvimento de uns e outros. Mas estão longe de serem suficientes. Pensar que a
forma de inclusão de um país, um povo, depende única e exclusivamente de suas
relações econômico-financeiras e comerciais para prosperar é aceitar a lógica do-
minante que cria exatamente as situações de exclusão e pobreza. Negociar sem
condicionalidades todas as propostas comerciais, procurando simplesmente tirar
“vantagens” e escolher as mais proveitosas, pode até ser uma boa estratégia co-
mercial, mas não cria desenvolvimento humano sustentável e democracia
participativa. Além do fato que as chamadas “vantagens comparativas” serem
criações humanas concretas, as vantagens não dão sustentabilidade democrática.
Portanto, não podemos entrar em todas as frentes de negociação de forma
igual, buscando tirar partido das concessões comerciais que, eventualmente, obti-
vermos. Precisamos de uma estratégica política, que aponte prioridades para o
Brasil. O objetivo a perseguir não são meros ganhos comerciais, mas antes de mais
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TRABALHO E CIDADANIA
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
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Cândido Grzybowski
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Poderia ter sido num grotão perdido deste nosso Brasil. Aliás, são muitos(as)
os(as) que pensam que algo parecido a gente só vê num lugar esquecido, longe de
tudo. Mas não, foi logo ali, há algumas centenas de metros do Carrefour da
Tijuca, no Morro do Borel, Rio de Janeiro. Por mais que façamos vistas grossas, o
Brasil profundo, da miséria extrema, está aqui ao nosso lado. Ele é feito de restos
e fragmentos que deixamos aos(às) excluídos(as), condenados(as) a viver na mais
absoluta falta de segurança.
Maria Dolores Gomes Carvalho vive ali teimosamente, resistindo. É emocio-
nante vê-la, desde o primeiro momento, com sua postura altiva em meio à misé-
ria, aos 56 anos. O seu pedaço de casa me lembrou os casebres improvisados das
pescarias à beira-rio com meus irmãos. Só que nós não moramos em casebres, lá
passamos poucos dias de aventura e, além do mais, cercados de abundância de
comida, bebida, roupas e facilidades da vida moderna, como costumam ser as
pescarias. A casa de Maria Dolores é um conjunto ordenado feito de fragmentos,
onde ela vive depois de 29 anos. Espremida entre outras casas de favela, no meio
do Morro do Borel, a casa tem um cômodo dividido em dois por armários velhos.
Na frente à cozinha, no fundo a cama onde ela dorme com a filha adotiva de seis
anos. O teto só protege mesmo a cama, pois, em dia de chuva, entra água por
todos os lados. Uma das paredes é um tapume, com um buraco que serve como
janela e dá de cara a um depósito de lixo. A outra parede é de alvenaria. Aí ficam
mais dois cômodos, onde vive o filho mais novo, ainda estudando, e a filha com
dois netos de Maria Dolores. Tudo feito com paciência e solidariedade, do padre,
das igrejas, dos(as) vizinhos(as), de filhos(as) e amigos(as).
O desejo de Maria Dolores é ver a sua casa sem as goteiras da chuva, que
alagam o chão de sua casa, e ter um banheiro. Por enquanto, uma torneira garan-
te o acesso à água potável. É incrível como nosso lixo de velhos equipamentos e
objetos pode virar utilidade nas mãos de excluídos. A velha geladeira com porta
amarrada, o fogão, a pequena TV em preto e branco, os restos de fios emendados
que formam a instalação elétrica, tudo em sua precariedade continua servindo.
Estive na casa de Maria Dolores com os responsáveis pela revista Democracia
Viva, editada pelo Ibase. Fomos entrevistá-la para o número temático sobre segu-
rança alimentar. Queríamos saber como pessoas como ela fazem para se alimentar,
as estratégias que adotam, a fome que passam. Ao longo da entrevista, fomos sendo
introduzidos(as) numa história de vida toda ela de luta contra a insegurança. Maria
Dolores estudou até o quarto ano. Aos dez anos, começou a trabalhar como domés-
tica. Teve cinco filhos, o primeiro aos 16 anos. O marido faleceu e ela virou o esteio
da família. Depois de 20 anos como doméstica de uma mesma casa, perdeu o em-
prego e tudo. Aliás, nunca recebeu um direito trabalhista. Carteira assinada, só dois
meses numa pequena confecção, lá nos idos do tempo do Cruzado, em 1988.
A sua vida foi sendo construída com pertinência, com bicos daqui e dali e
muita solidariedade. Apesar de nunca ter sido beneficiária de cestas básicas, cupões
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Os dias vão passando e logo entraremos no sexto mês do governo Lula. Daqui,
dali e de quase todo lugar, num crescendo, estão surgindo vozes críticas ou sinais
de insatisfação. Também sinto que a minha paciência está diminuindo a cada dia,
pois pensei que as mudanças seriam mais rápidas, ou ao menos mais claras, tipo
canteiro de obras de metrô no centro da cidade, com demolições e estacas sendo
fincadas a olhos vistos, dia e noite. Mas, parece que não é assim. Qual será a dose
de paciência não sei. Afinal, já está bem próxima a celebração de 20 anos das
Diretas Já e passa dia, passa mês, passa ano e... Parece campeonato sem vencedor.
O motivo principal das críticas é a política macroeconômica, com um foco no
Banco Central e nas taxas de juros. O próprio debate sobre as reformas da Previ-
dência e Tributária tende a ser marcado pelos parâmetros com que é vista a polí-
tica macroeconômica até aqui seguida. É como se o governo se resumisse a isso.
Pior, é como se a transição para o após, a mudança que o Brasil precisa e que viu
em Lula Presidente um condutor, se resumisse a inverter sinais, com as mesmas
políticas e mesmas prioridades. Sei que é difícil, mas me recuso a pensar assim.
Aliás, apesar de uma militância constante contra o neoliberalismo, em sua ascen-
são nos 80, auge nos 90 e crise neste começo do século 21, me surpreendo também
olhando índices de bolsas e riscos, juros e taxas de câmbio, desempenho das ex-
portações e níveis de superávit fiscal, como indicadores supremos da bonança ou
do possível desastre. Pois, pois, pois, diriam os(as) patrícios(as), não é contra a
centralidade dos tais mercados que estamos lutando? Se a mídia adota e defende
um tal ponto de vista, o problema é, em primeiro lugar, dela. Mas se nós caímos
nesta, aí estaremos perdidos(as). Ainda mais num momento em que a transição
para um outro modo de ver e fazer é possível.
Então, o que tem que mudar e aquilo que temos que cobrar de Lula e seu gover-
no é uma nova agenda, livre dos grilhões que aprisionam o projeto de um Brasil
democrático e sustentável para os(as) brasileiros(as), tanto daqueles(as) ideológicos(as)
do neoliberalismo que tudo resumem ao centralismo do mercado, como os(as)
políticos(as) que defendem apenas o crescimento econômico mesmo selvagem e
concentrador como conhecemos no passado. Quando consigo pensar assim – insis-
to, é difícil e muitas coisas do governo não ajudam – até renovo a esperança.
A agenda deve ser, em termos curtos e grossos, a radicalização da democracia.
Superar o neoliberalismo é por democracia substantiva em seu lugar, ponto! Tra-
ta-se de democracia como modelo de desenvolvimento. Aliás, diga-se de passa-
gem, algo esquecido. Precisamos voltar a pensar, debater, propor, criar condições
de desenvolvimento econômico democrático e sustentável, como alternativa à única
opção pelo mercado a qualquer custo da visão e prática do neoliberalismo Aceito
o princípio, trata-se de trabalhar numa agenda prática de três eixos principais:
1. A participação como fundamento e modo de fazer o desenvolvimento. O de-
senvolvimento não depende só do mercado, da lei do(a) mais forte, mais efici-
ente, mais produtivo(a) em termos econômicos. O desenvolvimento é, antes de
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Evidentemente, são apenas três eixos de uma agenda por construir. Identificá-
los, livre das viseiras do neoliberalismo e do Consenso de Washington, já é um
importante passo para avançar. Preocupo-me, sobretudo, em evitar a onda de
pessimismo que teima em tomar conta do país. Basta de derrotas! Vamos à luta!
O caminho da participação, mais fundamental, é também o mais aberto.
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desenvolvimento que o Brasil precisa, que o Brasil quer. Isso se expressa mais clara-
mente, ao longo dos documentos do PPA postos em debate, na idéia da retomada do
planejamento participativo como ferramenta fundamental do desenvolvimento.
Ainda a respeito dos parâmetros para pensar o desenvolvimento, merece des-
taque a busca de um modelo de crescimento pelo consumo de massa. Para isso,
reconhece-se que vai ser fundamental definir políticas ativas de emprego, de
inclusão social e de redistribuição de renda. Está aí o embrião para que sejam
resgatadas as políticas sociais, de políticas voltadas para atender carências para
políticas estratégicas capazes de qualificar e mudar o próprio desenvolvimento.
Só faltou reconhecer que não pode haver verdadeiro desenvolvimento do Brasil
sem a garantia de todos os direitos humanos e de cidadania a todas e todos
os(as) brasileiros(as). Afinal, a cidadania não é uma decorrência da economia,
mas sua verdadeira e única constituinte numa sociedade democrática.
Há, sem dúvida, um progresso no PPA, uma quase revolução no modo de pensar.
O “social” – um dos mega-objetivos da estratégia – é definido como “eixo do projeto
de desenvolvimento”. Não é ainda um imperativo ético do que pode e não pode ser
feito, mas já é um grande avanço. A maior crítica que se pode fazer é o limitado do
próprio “social” na visão que transparece. Tudo parece ser visto à luz das relações
sociais de produção, como se o “social” do Brasil não estivesse profundamente mar-
cado pela cor e etnia, pelas relações de gênero, pela idade e tantas outras relações e
situações. Para a cidadania brasileira, o problema não é de uma desigualdade mera-
mente econômica, mas de múltiplas e diversas desigualdades entrelaçadas.
Mais importante é o novo modo de ver a dimensão regional – outro mega-objeti-
vo do PPA. Faz-se uma reviravolta quando a questão regional deixa de ser o drama
das regiões em si e passa a ser vista como questão a ser enfrentada politicamente para
promover a coesão territorial e econômica, com eqüidade social. Também, pela pri-
meira vez, a dimensão ambiental recebe um novo olhar, como possibilidade que te-
mos e como direito a um ambiente saudável de todas e todos, da nossa geração e das
gerações futuras. Estava na hora de deixar de pensar a questão ambiental como pro-
blema ou condição limitante do desenvolvimento. Finalmente, o PPA sinaliza para a
radicalização da democracia como questão chave no desenvolvimento que buscamos.
Nesse ponto, quero insistir, está a segunda e, no meu modo de ver, a mais
importante novidade do PPA. Digo isto porque estamos saindo de um conjunto
de definições e parâmetros e estamos entrando no campo das possibilidades de
desenvolvimento. A estratégia de desenvolvimento ainda precisa amadurecer,
explicitar-se, revelar a sua consistência e, depois, concretizar-se em programas nos
diferentes ministérios. Porém, a proposta do PPA não pede que esperemos pelas
definições. Pelo contrário, convida-nos a participar, dada a opção radicalmente
democrática do governo Lula no modo de fazer política. Pela primeira vez na
História do Brasil, montou-se um amplo processo de consulta pública sobre a
obrigação constitucional do governo de apresentar para a nação uma proposta de
PPA. Sinceramente, não é pouco, ao menos para quem acredita que o processo
como se define é mais importante e qualificador dos resultados do que o resultado
em si. Poderemos não avançar muito na definição do Brasil que queremos, mas ao
menos não são iluminados(as) ou usurpadores(as) do poder que nos dizem o que
é bom e desejável em termos de desenvolvimento. Nós mesmos(as) somos
chamados(as) a participar das definições. Vamos à luta; ela vale a pena nem que
seja como primeiro passo. Como diz o poeta, caminhos se fazem ao andar.
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partes que nos levem para um mundo mais justo e participativo. Ou alguém acre-
dita que haverá alguma mudança sem pressão política? São séculos de espera.
Temos terra, muita terra. E temos sem-terra, muitos(as) sem-terra. Algo tem que
ser feito.
Lula, ponha o boné do Sem-Terra, sem medo, como é de seu estilo. E inicie de
uma vez por todas um irreversível processo de reforma agrária, que traga liberda-
de e dignidade humanas, condições de desenvolvimento democrático e sustentá-
vel, enfim, a cidadania a quem quer simplesmente um pedaço de chão para se
sentir parte deste Brasil. Não se deixe ofuscar pelos(as) fantasmas do passado que
rondam o Palácio do Planalto e agridem a cidadania através das falácias veicula-
das pela imprensa.
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apesar de nossa vergonhosa desigualdade social – com a agravante racial que car-
rega –, estamos melhorando a qualidade de vida. Ouso dizer que melhoramos à
medida que melhora nossa cidadania coletiva, na proporção em que mais brasilei-
ros e brasileiras são incluídos(as) nos direitos de cidadania, começando pelos di-
reitos políticos e avançando pelos direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais. O jeito é acelerar o passo da democratização, tendo-a como referên-
cia para o desenvolvimento. Isso é opção de política, não é obra de mercados.
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vai ser isso mesmo: um radical compromisso com a democracia, que significa um
viver sob tensão entre a concertação e a ruptura como condição de construção de
propostas e de um novo rumo para o Brasil, onde povo e nação se encontrem,
com desenvolvimento humano sustentável.
Aqui é bom que se ponha o dedo na ferida certa, bem ao gosto de Betinho.
Afinal, sejamos razoáveis, quem provoca a tensão? Os(as) sem-terra e os(as) sem-
teto? Por que somos tão incapazes de ver nos(as) agentes de mercado e na ditadu-
ra que impõe à economia, ao governo e à sociedade como um todo, a causa das
tensões? Para quem a tão explícita ameaça permanente dos tais mercados é sinô-
nimo de estabilidade? Por acaso, não é a total falta de regulação do chamado
mercado financeiro – matriz do modelo que o governo Lula herdou e que não vai
se livrar tão facilmente, pelo visto – que não só impede mas até acentua a exclu-
são social, com falta de geração de empregos, com maior concentração de renda,
etc., etc.? Ou ainda, olhando pela outra ponta, a tensão são os(as) sem-terra que
provocam ou as milícias de jagunços(as) dos(as) latifundiários(as) e a falta de
recursos públicos – dado o atrelamento da política à produção de superávit fiscal
– para a efetivação da tão almejada reforma agrária?
As falsas ou meias verdades, tão naturalmente apregoadas nos jornais e até
subscritas por grandes formadores(as) de opinião, precisam ser desmascaradas neste
momento. Vemos todos os dias que o mercado, com sua lógica, exclui e até mata.
Parece um gatilho apontado para as nossas cabeças. Pior, nos tira a capacidade de
pensar diferente. Afinal, o afloramento das tensões sociais é causa da instabilida-
de ou apenas revelador do quanto submeter-se aos mercados nos gera uma situa-
ção de grandes conflitos e inseguranças? Debater nossas contradições, aceitar o
desafio do governo Lula de se expor, de confrontar-se com os outros e as outras,
de fazer valer nossa cidadania na diversidade do como somos, é uma condição
indispensável para que ganha a democracia e, ao mesmo tempo, reencontremos o
rumo possível do Brasil de liberdade e dignidade humana que sonhamos para
todas e todos os brasileiros. Tenho certeza que Betinho concordaria com esta mi-
nha análise.
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Introdução
1. Após um ciclo de ditaduras e de guerras revolucionárias, a América Latina
trilha agora os difíceis caminhos da construção democrática. Sem dúvida, isto
deve ser visto como apenas uma tendência. Numa tão vasta e complexa região,
atrás da latinidade se esconde ampla diversidade de situações. Aqui convivem
diferentes tempos, incompletos mas organicamente articulados, como expres-
são da mesma história contemporânea. Enquanto a Colômbia vive uma guer-
ra cujas motivações perdidas se situam nos conturbados anos de 1950 e 1960,
onde a Cuba revolucionária desponta como paradigma, o México finalmente
dá a chance à alternância no poder após sete décadas de domínio do PRI e o
Paraguai ainda parece ensaiar os primeiros passos pós-ditadura. Numa ponta,
a democracia atropelada e esgarçada, como nos casos da Argentina e do Peru.
Na outra, busca e esperança, como no Brasil de Lula. Temos uma nova versão
de populismo de “descamisados(as)”, como na Venezuela, e a volta ao velho
populismo autoritário e sanguinário, como no Haiti. Temos, também, o bom
discípulo da globalização neoliberal dominante, como o Chile. E temos muita
crise, muita violência, muita desilusão. Estamos numa espécie de impasse no
enfrentamento da miséria, pobreza e desigualdade social. Nossa identidade
está em crise. Afinal, quem somos e qual nosso lugar neste planeta Terra?
3. Uma questão que começa a emergir com força tem a ver com os desencontros e
brechas na relação entre a sociedade civil e a institucionalidade política. Com
a democratização, apesar da diferença de formas e de intensidade de um país a
outro, cresce em importância a sociedade civil organizada, com novos atores
sociais, novas demandas e novas mediações. No processo, se produz um alar-
gamento do espaço público e acentua-se a desestatização da política. Muda a
cultura política e as formas de organização e participação cidadã. Esse fato
gera tensões no seio das próprias sociedades civis, na relação entre movimentos
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5. Uma democracia se mede pelo caráter de suas instituições, pelas relações e pelos
processos que permite moldar em todas as esferas da vida de um país. Substantiva e
radicalmente, um povo vive a democracia se os valores democráticos e a participa-
ção são a base de tudo, tanto das relações de poder estatal, como do acesso aos
recursos que são de todos. As relações entre grupos e classes sociais, entre homens e
mulheres, com idosos(as) e crianças, o território e suas riquezas, a produção e a
distribuição de bens e serviços, a vida em coletividade, a criação científica e cultural,
tudo, enfim, que implica em diferença e potencial de disputa constitui, ao mesmo
tempo, o terreno em que opera a democracia. No centro, o confronto de projetos,
de modos de ver, organizar e fazer, tendo como limite os direitos da cidadania.
Numa democracia, as lutas são normais e necessárias. A grandiosidade da aventura
democrática é acreditar no potencial criador do conflito quando portador de direi-
tos. Ao invés de buscar se eliminar mutuamente, na democracia os diferentes sujeitos
se engajam num processo de tirar soluções, mesmo temporárias, dos conflitos que os
diferenciam, os opõem ou os aliam, segundo regras e princípios comuns. Tendo tal
referência para pensar a democracia, importa situá-la no contexto da América Lati-
na de hoje, fazendo uma radiografia do estado da questão democrática em nossos
países globalizados pelas políticas de ajuste e abertura econômica.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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10. Aprofundemos esta questão, começando pelos novos sujeitos sociais e seus
atores concretos. Uma primeira e fundamental novidade é a irrupção das mu-
lheres, através da multiplicidade de organizações e movimentos. Hoje, em to-
dos os países da região, mais num e menos noutro, a democracia e o processo
de democratização têm nas mulheres uma referência, seja como uma das di-
mensões da desigualdade social a enfrentar, seja como sujeitos sociais cuja par-
ticipação acaba sendo decisiva. A importância desse fato ainda não se expressa
da mesma forma na institucionalidade política – da representação e dos parti-
dos – e nem nas estruturas de poder, muito menos em igualdade de oportuni-
dades no âmbito de trabalho e renda. Atravessando as classes sociais e as
redefinindo historicamente, a questão da desigualdade de relações de gênero,
trazida pelas mulheres para o debate público, exprime a força de sua presença
na constituição das sociedades civis da América Latina. Um aspecto a salientar
ainda é que as mulheres se organizam em redes e movimentos que extrapolam
os países da própria região, sendo mais internacionalistas do que outros sujei-
tos e atores. Cabe, também, lembrar que as mulheres produziram ONGs que se
encontram entre as mais importantes de cada país, mas sua bandeira está hoje
no centro de organizações tradicionalmente arredias à questão, como o movi-
mento sindical e camponês, ao menos no Brasil da CUT, do MST e da Contag.
11. A desigualdade étnico-racial, pela importância que vem adquirindo nos últi-
mos anos, vai ser base da constituição de novos e aguerridos sujeitos sociais,
cujo perfil ainda é cedo para definir. Aliás, em torno a esse problema se forjou
o nó mais duro da questão democrática em nossas sociedades colonizadas e
escravizadas. Tendo na contribuição dos negros(as) e indígenas parte funda-
mental de sua história, cultura e identidade, a América Latina não tem conse-
guido se reconhecer como é. A questão étnico-racial, por mais que as estatísti-
cas mostrem, é camuflada, negada, não só pelo poder estatal, mas no seio da
própria sociedade civil. Aqui estamos diante de um impasse ainda não resolvi-
do. O racismo e discriminação estão no coração mesmo das sociedades civis e
limitam o seu desenvolvimento democrático, com reconhecimento da diversi-
dade étnico-racial que nos constitui. A fragilidade de movimentos e organiza-
ções em torno a tal questão são a maior prova do quanto ainda temos que
andar nesse campo.
14. Este ponto nos remete aos(às) invisíveis nas sociedades latino-americanas.
Aqui falo dos(as) que não fazem parte das sociedades civis, simplesmente por-
que não têm identidade, projeto, organização social e forma de luta para se
afirmar, se defender, para conquistar direitos e reconhecimento público. São os
politicamente destituídos(as) de qualquer poder real. A bem da verdade, é ne-
cessário reconhecer o avanço da cidadania formal, aquela do direito de votar,
particularmente no período de recente democratização. Mas ter direito políti-
co de votar não é a mesma coisa que ser cidadão(ã), exatamente pelo que
lembrei acima, no sentido de inclusão e garantia prática de direitos fundamen-
tais, não só os civis e políticos, mas direito de trabalho e renda, comida, casa,
saúde, educação e por aí vai. Entre 30 e 60% da população de nossos países
sofre de alguma forma de exclusão social, negadora de sua cidadania. Estes,
quando não conseguem se organizar e lutar, para politicamente voltar a se in-
cluir e ter alguma perspectiva de mudança na situação geradora de desigualdade,
pobreza e exclusão social constituem o enorme contingente de invisíveis das
nossas sociedades. Perdem as sociedades civis e perde a democracia. Mas se por
alguma razão grupos de invisíveis se organizam, ganha a sociedade civil e ganha
a democracia, pois sua presença como atores concretos é a condição indispensá-
vel de sua inclusão sustentável na cidadania. Isso ocorreu, por exemplo, com o
engajamento das Igrejas cristãs inspiradas na teologia da libertação com as co-
munidades eclesiais de base e a proliferação de movimentos e organizações po-
pulares de resistência e afirmação de novas identidades, valores, com mudança
qualitativa na participação social local e redesenho de políticas públicas referi-
das a tais grupos. Muitas das ONGs da América Latina, trabalhando com pers-
pectivas de educação popular e para a cidadania, também têm como alvo exata-
mente os grupos e comunidades de invisíveis. São incontáveis, em todos os paí-
ses, exemplos de relativo sucesso das iniciativas em termos de organização e
participação de tais segmentos da população, baseadas em grande parte na cum-
plicidade política dos militantes das ONGs com as suas demandas.
15. Extrapola o objetivo destas notas a análise em si dos níveis e formas de exclu-
são social nas sociedades latino-americanas. Pobreza e miséria produzimos de
modo persistente ao longo de nossa História, com muita violência, se necessá-
rio. Elas somadas às múltiplas formas de desigualdade social – étnico-racial, de
gênero, entre regiões e setores, onde a pura análise em termos de relações de
classes sociais é simplesmente insuficiente e até simplificadora – constituem o
centro da questão democrática entre nós. Democracia vista substantivamente,
de direitos fundamentais iguais para todas e todos em combinação com a sua
diversidade. Este é um divisor entre serem ou não serem sociedades democráti-
cas, ou melhor, estarem ou não estarem se democratizando de fato, dado que a
democracia como ideal sempre será um projeto incompleto, passível de novos
avanços. A exclusão social atravessa o conjunto das lutas democráticas em
nossos países, condicionando alianças e propostas dos diferentes sujeitos soci-
ais, o desenvolvimento da sociedade civil, a institucionalidade política, o con-
trole do Estado e o modo de gerir a economia. A exclusão social catalisa os
processos de exploração, dominação e desigualdade, rompendo laços sociais
básicos e alimentando o apartheid social. A luta por novas formas de inclusão
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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17. Isso nos remete aos outros sujeitos constitutivos das sociedades civis. Aí se
destacam as organizações e o movimento sindical. Estamos diante de uma rica
e complexa história, mas muito diferenciada de país a país. Os sindicatos ocu-
pam posições centrais nos processos de democratização, além de terem sido as
maiores vítimas da onda de ditaduras anteriores. São, mais do que outras for-
mas de organização e movimentos da sociedade civil, verdadeiros celeiros de
partidos políticos e, por isso mesmo, muito mais intrinsecamente ligados à
institucionalidade do poder nas diferentes sociedades. Mas suas estratégias
podem variar muito, tanto pelo tamanho e lugar nos respectivos países, como
pelos momentos de seu desenvolvimento e até pelas concepções e visões que
adotam. Aqui estou pensando na CUT petista, no Brasil, e na CGT peronista,
na Argentina, para ficar em dois notórios e quase opostos exemplos. O que
importa para a análise que aqui estou fazendo é reconhecer o lugar do movi-
mento sindical nas sociedades civis e na questão democrática. O fato de, muito
antes de outros sujeitos, ter adquirido identidade social e até legal própria –
quase séculos antes do próprio conceito de sociedade civil, ao menos de seu uso
político mais amplo – torna o movimento sindical, por assim dizer, o berço da
sociedade civil. O movimento sindical se confunde com o que define uma
sociedade civil: organização social autônoma dos sujeitos, fortalecimento do
tecido social, trincheira de resistência, espaço de construção de identidade e
desenvolvimento de capacidade de incidência política, enfim, de construção
originária do sujeito coletivo em nossas sociedades capitalistas. A força e a
própria debilidade do sujeito histórico do movimento sindical está no
corporativismo. Para ser o que é precisa defender os interesses de seus membros
constitutivos, diferenciando-se de outros e tendo clara oposição aos interesses
contra quem se constitui. O movimento sindical luta, a seu modo, pela inclu-
são social e nisso é democratizador. Mas sua luta se baseia naqueles e naquelas
que, de algum modo, fazem parte dos incluídos(as), mesmo que explorados(as)
e dominados(as). Na América Latina, onde mais de 50% estão na informalidade
- são invisíveis, na linguagem aqui usada –, o movimento sindical diz respeito
à parte visível dos(as) que trabalham e vivem do seu trabalho. É importante
afirmar que, ao contrário do que pensa toda uma tradição de esquerda, o
movimento sindical não tem assegurado um protagonismo político-cultural
por ter raízes no operariado das empresas. O protagonismo, quando o exerce,
é por força de sua própria capacidade, das lutas que desenvolve, do modo
como articula suas lutas às lutas dos outros. O protagonismo é um atributo
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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20. Seria importante não perder de vista todos os outros sujeitos que constituem
as sociedades civis e, a seu modo, têm impacto na democratização da América
Latina. Um estudo mais aprofundando necessariamente deve considerar as Igre-
jas, as academias e seus(suas) intelectuais, as grandes corporações profissio-
nais. Aqui me limito a chamar a atenção da comunicação de massa. A propri-
edade dos meios – quase exclusivamente privada em nossos países, ao menos
do que realmente conta como comunicação de massa – não nos deve impedir
de ver a função pública e política da comunicação. Hoje os meios de comuni-
cação de massa são espaços de construção do imaginário coletivo, de modos de
ver e conceber, de movimentos de opinião, alimentando os processos em curso
nas sociedades civis em termos de identidade e participação. São espaços de
disputa democrática atravessados por enormes contradições em que a proprie-
dade significa enorme poder. Mas é fundamental ver como certas questões são
tratadas e conquistam lugar nos meios de comunicação. Do mesmo modo, é
indispensável analisar a ressonância social do que veiculam os meios, o modo
como é captado pelos diferentes sujeitos e suas estratégias. Hoje, os meios de
comunicação de massa são a instância primordial de construção da agenda
pública, de suas prioridades. Não são instância mediadoras e nem resolvem as
questões, mas criam o ambiente favorável ou desfavorável para seu
enfrentamento. Num aspecto que considero chave a comunicação de massa
pode contribuir para que o invisível se torne visível, ou melhor, legitimado na
opinião pública, fortalecendo as suas demandas. O inverso também pode ocor-
rer, com criminalização de certos atores sociais e suas demandas. Certas campa-
nhas, como a da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, no
Brasil, entre 1993-96, ao transformar a questão da fome em tema da agenda
política – hoje programa do governo Lula – teve na conquista de espaço na
mídia um elemento chave. Estamos diante de dado político fundamental para
a democracia. A luta pelo direito à informação e à liberdade, entre os mais
elementares da democracia, tem nesta questão da comunicação de massa um
elemento estratégico. Novamente, poucos estudos estão sendo feitos na Amé-
rica Latina a respeito. Esta é uma frente de lutas democráticas que precisa de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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22. Um ponto chave nessa questão é a natureza da cultura democrática que pode
emergir do desenvolvimento da sociedade civil, em que reconhecer ou não for-
mas de institucionalidade e representação política não é uma questão menor.
Para todos(as) aparece imediatamente o drama argentino recente, em que as
formas de mediação entraram em crise por estarem deslegitimadas ética e mo-
ralmente, após o monumental fracasso da empreitada neoliberal patrocinada
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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23. Estas notas deram prioridade, até aqui, às dinâmicas que animam as socieda-
des civis na América Latina. No entanto, não pode existir democracia como
forma de organização e vida em sociedade sem uma institucionalidade política
e um poder constituído na forma de Estado. Institucionalidade e poder são a
expressão da correlação de forças entre os diferentes sujeitos sociais na disputa
democrática de visões e projetos, de recursos coletivos e de formas de regulação
de relações e processos sociais para a garantia dos direitos de cidadania. Nas
últimas duas décadas, a América Latina foi marcada por um amplo processo
constituinte de nova institucionalidade. De fato, não foram exatamente rup-
turas institucionais bruscas e radicais que estão na origem de tal
institucionalidade democrática. Dado o esgotamento dos regimes anteriores –
caso das ditaduras militares – ou o impasse nas guerras revolucionárias – como
na América Central – , a transição para a democracia e a nova institucionalidade
guardam resquícios do passado que não podem ser desprezados na análise do
estado da questão democrática entre nós. O exemplo do Chile é emblemático
a respeito. Apesar da vitória do “NO”, a nova institucionalidade reservou
poder para o antigo ditador e o Exército. A institucionalidade estabelecida
não foi capaz de barrar a volta de antigo ditador por via eleitoral, como na
Bolívia. Os acordos, base da nova institucionalidade, rapidamente são rompi-
dos, como na Guatemala. Ou a institucionalidade não resiste ao oportunismo
político dos(as) que conquistam hegemonia pelo voto e procuram se reprodu-
zir de todas formas no poder. Esse é um mal que parece atingir uma amplo
espectro político, pois o que, além de mudarem constituições de seus países e
garantirem condições para se reeleger, têm em comum figuras tão diferentes
como Ménem, na Argentina, Fujimori, no Peru, Chavez, na Venezuela, e Car-
doso, no Brasil? Enfim, mal implantada, a institucionalidade democrática da
América Latina revela os seus limites e, o que é pior, pode ser uma fonte de
enormes crises políticas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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24. Por trás destas notas e razão principal delas está exatamente a questão da crise
política. A nossa frágil e ainda tenra democracia está ou não está em crise? Ou
ainda, está caminhando para uma crise? Ou, colocando a pergunta de um
outro ângulo, a crise é da democracia ou antes crise de um certo modo de fazer
política nas nossas democracias? A chamada “crise política” precisa ser quali-
ficada, identificando seus lugares e extensão, suas causas, os pontos de maior
tensão, os limites e as possibilidades que contém em relação à própria questão
da democratização da América Latina. O certo é que vem se operando um
estranhamento, um distanciamento perigoso, com rupturas até, entre o dina-
mismo das sociedades civis e o mundo das instituições políticas e de poder. Isso
como tendência, com manifestações aqui e lá, com situações muito diversas em
cada país. Em si mesmo, inspirando-se na História, a gente poderia dizer que é
por aí que se pode dar um salto de qualidade as nossas vacilantes democracias,
mais formais do que substantivas. Afinal, crises obrigam os diferentes sujeitos
sociais a, em algum momento, repactuar e, nesse sentido, superar a crise. Mas a
possibilidade de implosão, de destruição, com uma crise ainda maior, a História
também mostra que acontece muitas vezes quando menos se espera.
26. Nunca é demais reafirmar que, na América Latina de hoje, o grande agravan-
te para o rápido distanciamento e estranhamento entre institucionalidade e
poder, de um lado, e as sociedades civis, de outro, são as políticas de ajuste e
reestruturação adotadas, em momentos variados, mas em todos os países, para
se adequar à globalização econômico-financeira do livre mercado. O fato de a
globalização entre nós ter sido tão depredadora revela a própria fragilidade da
institucionalidade e poder estatal democrático conquistado. Aliás, mais que
nas dinâmicas das sociedades civis internas, é na globalização, no modo como
vêm se dando, que a democracia na América Latina sofre limites e ameaças. É
da agenda da globalização neoliberal que emanam políticas de desmonte do
Estado, de flexibilização de direitos trabalhistas, de autonomização de instân-
cias decisórias fundamentais como os Bancos Centrais, de prioridade do direi-
to financeiro e comercial aos direitos humanos e de cidadania. A globalização
operou uma verdadeira transferência de poder de decisão sobre os rumos do
desenvolvimento político e econômico dos países para instâncias multilaterais
alheias, distantes e nada democráticas, como o FMI, BM e OMC, quando não
diretamente aos(às) que dão as cartas ao nível de mercados, os grandes conglo-
merados econômico-financeiros. A seu modo, a globalização esvaziou a políti-
ca estatal de sua essência: o poder de decidir, na correlação de forças que o
legitimam, para onde vai o país, o tipo de desenvolvimento que lhe é mais
adequado. A política baseada em valores e princípios éticos reduz-se à boa
gestão, a uma administração com responsabilidade... sobretudo fiscal, segun-
do os desejos dos mercados.
27. Sem dúvida, essa é a fonte principal da crise política nas nossas democracias.
Crise que revela a incompatibilidade entre democracia e o tipo de globalização
dominante. Assim sendo, a questão que cabe fazer é por que, em plena
redemocratização, a América Latina inteira acabou presa da globalização? Por
que, com a democracia, não fomos capazes de definir estratégias diferentes de
desenvolvimento? A dependência econômica e as enormes dívidas externas são
um legado deixado pelos regimes anteriores para as democracias. Delas, po-
rém, não se pode extrair a globalização como uma opção, mesmo que nosso
dirigentes digam que este era o único caminho possível. Incluir-se na
globalização econômico-financeira foi uma opção de governos constituídos
em plena redemocratização, que significou na prática derrota política aos seto-
res democráticos de ponta nos diferentes países. Houve momentos de “empa-
te”, por assim dizer, em que nem se definiam políticas mais democratizadoras,
com uma reinserção mais soberana na ordem mundial, nem a inclusão a qual-
quer preço se viabilizava. Exemplo mais claro é o do Brasil, um tardio aderente
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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das teses do neoliberalismo, só no começo dos anos 90. O mais incrível nisso
tudo é que a dependência, expressa no descontrole da dívida, foi fator extre-
mamente importante na corrosão dos velhos regimes. Uns países de forma até
rápida, outros mais lentamente, todos acabaram adotando as políticas
neoliberais, base da inclusão na tal globalização econômico-financeira. O pro-
cesso que levou a isso é revelador da questão da crise. No geral, os governos se
elegeram com uma agenda contra a dependência e o tipo de desenvolvimento
selvagem e excludente que a gerou. Uma vez no poder, operou-se uma espécie
de conversão, tornando-se eles adeptos das políticas propostas. Por quê?
28. Um ponto central nesta análise é o próprio sistema político, com os partidos,
as eleições, os(as) representantes eleitos(as) e a composição dos Parlamentos,
base da governabilidade. É como se a América Latina desenvolvesse novas
lutas e elas tivessem que se exprimir numa institucionalidade ainda velha, de-
fasada. Em todas as partes é visível a crise do sistema partidário, mesmo do
Brasil do novo PT e do governo Lula. O PT, como partido, é uma grande
inovação e, sem dúvida, um grande produto da democracia no Brasil e ele
mesmo um fundamental artífice dos avanços que, apesar de tudo, vêm se dan-
do em termos de democratização. Mas quase todos os outros partidos, sem exce-
ção, se definem e redefinem mais pela lógica da sua manutenção no poder do
que em função do dinamismo da sociedade civil. De todos modos, o desloca-
mento da polarização política, no Brasil, dos velhos partidos para uma disputa
de hegemonia entre o PT e o PSDB, é o que de mais novo e alvissareiro produziu
para a democracia a recente eleição, com impacto em toda a região da América
do Sul. Chegamos, num certo sentido, à modernidade política. A questão que
fica é como mudar os outros partidos dado o seu poder de veto real no Congres-
so Nacional, onde o PT se obriga, até ele (!), a recorrer aos velhos expedientes
clientelistas para costurar alianças e obter maiorias, alimentando um troca-troca
parlamentar como outros governos democráticos fizeram. No Brasil, também,
as fissuras do sistema político e partidário estão à mostra.
29. Isso fica mais patente diante da vitalidade das organizações e movimentos da
sociedade civil e da diversidade de sujeitos. A pluralidade social, com suas
demandas, não consegue se exprimir nos partidos existentes. Dinamizam-se as
sociedades, radicalizam-se, mas, na mesma proporção, parece decrescer a capa-
cidade de representação e a própria confiança nos partidos e nos(as) políticos(as)
profissionais. Tal “vazio” foi se ampliando ao invés de diminuir. No contexto
da democratização, as instituições e o poder estatal tiveram que se abrir de
algum modo, ser mais transparentes. Isso, contraditoriamente, contribuiu para
revelar o quanto a representação é vilipendiada no exercício dos mandatos
obtidos por eleição, podendo até o interesse particular se sobrepor ao público.
As novas institucionalidades, definidas por Parlamentos viciados de origem,
não enfrentaram o problema do sistema político-eleitoral, mesmo tendo dado
muito mais poder aos próprios Parlamentos, como, aliás, convém que assim
seja nas democracias. Grosso modo, pode-se dizer que nossos Parlamentos são
ainda confederação de interesses e não representação política da pluralidade
social das nações latino-americanas. De todos modos, é fundamental ressaltar
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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que os partidos políticos nas democracias, por definição, são aparatos de ex-
pressão e direção política geral de forças e coalizões de forças sociais e, ao
mesmo tempo, aparatos de conquista e exercício de poder. Sem partidos con-
sistentes como organizações e capazes de representação e governo não é possível
construir democracias sustentáveis. Vendo a realidade da América Latina, im-
põe-se uma urgente reforma político-eleitoral, capaz de por as instituições polí-
ticas em sintonia com os grandes movimentos e processos da sociedade civil.
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Parece que o Governo Lula será de sobressaltos. Quando se esperava uma política
econômica interna ousada – no ataque, fazendo gols contra o desemprego –, veio
uma retranca que nos desorientou. Continuam ganhando os(as) de sempre sobre
a piora geral em termos de inclusão social e distribuição de renda. Ao mesmo
tempo, esboçou-se uma política externa melhor do que era de se esperar nesse
contexto. O que o Brasil protagonizou em Cancún, na Rodada de Negociações
da OMC (Organização Mundial do Comércio) foi de lavar a alma. E agora, com
o Consenso de Buenos Aires, sinaliza-se para um desenvolvimento que não é aquele
da submissão e dependência, implícito na proposta da Alça (Acordo de Livre
Comércio entre as Américas). Mas enquanto Lula discursava na ONU (Organiza-
ção das Nações Unidas) como verdadeiro estadista e líder do lado pobre do mun-
do, tivemos que engolir, por medida provisória, a liberalização dos transgênicos.
Como rolo compressor, empurra-se a Reforma da Previdência no Congresso, mas
inova-se com a Consulta do PPA (Plano Plurianual de Investimentos), abrindo-se
a um inovador diálogo com a sociedade civil na definição de prioridades para o
país. É muita contradição em um mesmo governo, contradições que por enquan-
to estão paralisando mais do que sinalizando caminhos para todas e todos que
apostaram na esperança votando em Lula. Para completar o quadro, alguns into-
leráveis desvios éticos.
Entre os muitos desafios que se colocam para o governo Lula, a questão das
políticas sociais é uma espécie de calcanhar de Aquiles. Nesse campo, estamos
diante de urgências que não podem esperar. Desde a redemocratização, estamos
avançando em termos de saúde e educação. A evolução do IDH (Índice de Desen-
volvimento Humano) atesta isso. Mas há muito por fazer ainda. Esperava-se mais
ousadia e inovação de um governo petista. Como a fome não pode esperar, o
anúncio do Fome Zero, ainda antes da posse de Lula, parecia uma mudança
estratégica de curso na mais elementar das políticas de inclusão social: garantir a
todas e todos o direito de comer. Estamos diante de um problema econômico e
político e de clara dimensão ética: somos uma potência agrícola e um dos maiores
exportadores agroalimentares do mundo, mas condenamos milhões a passar fome.
Pois bem, a fome até agora está longe de ser zerada e o programa do governo
levou tempo para deslanchar.
Ainda assim, é de saudar a inovação contida na unificação de vários progra-
mas socais, finalmente anunciada pelo presidente Lula. Um dos problemas histó-
ricos fundamentais das políticas sociais no Brasil, mais do que a falta de recursos,
é o seu lado de políticas atreladas a um perverso clientelismo, que transforma a
população vivendo em situação de pobreza e necessidade extrema em mero objeto
de barganha de favores dos(as) detentores(as) do poder político. A multiplicação
de programas nos anos recentes, sempre olhando carências específicas e não os
direitos de cidadania em geral não foi capaz de romper a lógica clientelista. Na
verdade, tais programas, ao invés de superar, fizeram crescer a exclusão social.
Nunca é demais lembrar que atender carências – próprio de políticas focais – não
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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é a mesma coisa que universalizar direitos. A melhor política social até hoje criada
no Brasil é a aposentadoria de um salário mínimo garantido indistintamente a
todas e todos os(as) idosos(as) da área rural – como seu direito.
Na verdade, a unificação de programas sociais contém enormes potencialidades
pela mudança estratégica de concepção da questão social que traz embutida. Par-
te-se de um universo – hoje,11 milhões de famílias brasileiras vivendo abaixo da
linha da pobreza – e procura-se uma política unificada de transferência de renda
mínima. Mesmo que a renda transferida seja pouca – em média R$ 90,00, depen-
dendo da renda per capita e do número de filhos(as) –, o princípio é o direito de
todas e de todos e, por isso, pode funcionar como verdadeira política de inclusão
na cidadania. Além do mais, o direito não é desvinculado de obrigações de cida-
dania: manter os filhos e filhas na escola, caderneta de vacinação em dia, compa-
recimento ao posto de saúde pelas gestantes, alfabetização de analfabetos(as)
adultos(as) etc.
Ainda resta muito a ser feito para uma universalização das políticas sociais em
consonância com o princípio do direito à renda mínima, velha bandeira do Partido
dos Trabalhadores. O Bolsa-Família – que unifica os programas de Bolsa-Alimenta-
ção (do Fome Zero), o Vale-Alimentação (do Ministério da Saúde), a Bolsa-Escola
(do Ministério de Educação) e o Vale-Gás (do Ministério de Minas e Energia) – é
um começo animador. Mas para fortalecê-lo é preciso incluir ainda outros progra-
mas de transferência focalizada de renda. Além do mais, 2006 parece longe no
tempo para atingir a meta da universalização. Precisamos exercer uma ativa pressão
para que rapidamente o Bolsa-Família chegue a todas as 11 milhões de famílias que
dele necessitam urgentemente. Faltam recursos? Depende da conta a ser feita. A
simples queda de um a dois pontos na taxa de juros pode gerar os sete a oito bilhões
de reais adicionais de que precisa o programa. Com isso, garantimos uma renda
mínima média, por mês, de R$ 100,00. É pedir muito? O sonho é bem maior. Ao
menos o Bolsa-Família mostra que ainda é possível continuar sonhando.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005
Crônicas
2004
SUMÁRIO
Esperança e ação 03
Cândido Grzybowski
Parceria governo-sociedade 09
Cândido Grzybowski
Obrigado, MST 13
Cândido Grzybowski
ESPERANÇA E AÇÃO
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Neste período do ano, somos levados(as) a avaliar onde estamos, desde a vida pessoal
na família e no trabalho, até o meio social em que vivemos, a cidade que comparti-
mos, a sociedade de que fazemos parte, o mundo que é o nosso mundo. No fundo,
um tal momento acaba sendo uma grande invenção humana, pois transformamos o
giro da Terra sobre si mesma e em redor do sol em algo cheio de simbolismo e signifi-
cado histórico. Só que, para além da nossa convenção sobre o tempo histórico, muito
pouca coisa acaba ou começa com a passagem de ano. A importância do momento é
a avaliação que nos permite fazer, juntando passado e futuro.
Em 1º de janeiro de 2003, começou o governo Lula. Por decisão de nossos(as)
constituintes de 1988, fizemos coincidir a passagem de ano, a cada quatro anos,
com a passagem de governo. A decisão vale também para todos os governos esta-
duais e do Distrito Federal. Aliás, tal coincidência pode ser reversível desde que as
manifestas intenções dos(as) próprios(as) governantes e do Congresso Nacional se
transformem em iniciativa de mudança constitucional. De toda forma, por en-
quanto temos uma Presidência da República e todos governos da Federação fa-
zendo aniversário na virada do ano. Um grande e importante assunto de avalia-
ção, sem dúvida.
Um aspecto intrigante a respeito da vida política brasileira, em particular do
governo Lula, é o que se passa com a esperança coletiva despertada, tão evidente
e contagiante. Nós, brasileiros e brasileiras, espalhados(as) por este imenso terri-
tório, de tanto em tanto temos irrupções de esperança que nos unem como povo
e parecem determinar um novo rumo para o país. São memoráveis as mobiliza-
ções cidadãs associadas à democratização, processo que gestou novos atores soci-
ais com novas lideranças – Lula é uma delas – e uma nova cultura política. Mas,
como as ondas do mar e as sucessões de marés, após esperançosas mobilizações,
entramos em momentos de refluxo e tudo parece voltar ao mesmo lugar. Só pare-
ce, na verdade. O problema que o parecer é suficientemente forte para criar uma
sensação de frustração, vazio e até desesperança. Parece que é assim que viramos o
primeiro ano do governo Lula.
Sou levado, como analista e por militância cidadã, percorrendo o mundo por
causa do Fórum Social Mundial, a considerar que a vida, o processo social e
histórico, está exatamente nesse vai-e-vem, de fluxo e refluxo. Não há a possibi-
lidade de esperança sem desesperança, como não há futuro sem passado, como
cada novo dia é radicalmente diferente em sua semelhança com o anterior. Quero
dizer com isso, que estamos vivendo mais uma experiência política no Brasil, com
fluxo e refluxo, onde a esperança ou desesperança não dependem do(a) governante
de plantão única ou essencialmente, mas de nossa força coletiva de empuxe. So-
mos nós, coletivamente, como cidadania militante, que podemos dar sentido,
intensidade e força ao processo histórico. Claro que nossas ações passadas, como
mobilizações e eleições, definem condições e limites para o resultado de nossa
ação presente e futura. Mas a esperança se faz pela ação e não pela mera expecta-
tiva. Como diz o poeta e cantor, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
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Sou levado a avaliar, fazendo o elo entre o primeiro ano e o novo ano do
governo Lula, que ficamos muito na expectativa e fizemos pouco. Para fazer avançar
as coisas no sentido da radicalização da democracia, de maior desenvolvimento
humano, com maior igualdade, liberdade e dignidade humanas a todas e todos
os(as) brasileiros(as) (as), sem distinção, precisamos exercer a força da cidadania
militante. A democracia se renova e avança numa dialética entre representação
institucional e ação direta, participativa, sendo esta que qualifica aquela. Se que-
remos ver o governo Lula realizar a esperança coletiva que manifestamos com a
sua eleição e posse, precisamos agir mais, pressionar mais, fazer o governo mover-
se mais. Afinal, um governo é expressão de correlação de forças na sociedade. Não
deixemos que o governo que constituímos seja prisioneiro de forças que o desviem
da rota do desenvolvimento democrático e sustentável.
Pode ser que os excessos das festas de passagem de ano não permitam ver
completamente o quadro político que temos pela frente. Mas, devo reconhecer, é
bom para mim, o Ibase e muitos de nossos parceiros e parceiras na sociedade civil
ver que sim, um outro Brasil é possível, assim como “um outro mundo é possí-
vel”. Mas para fazê-lo realidade, é preciso saber mover-se nos fluxos e refluxos da
vida política.
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Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
que a razão de ser não foi o direito ao trabalho. Aliás, temos a pior herança em
termos de trabalho escravo, negador da própria idéia de direito fundado no tra-
balho. O estigma da escravidão está aí na vergonhosa desigualdade social a que
condenamos todas e todos que, por sua pele, lembram os(as) antigos(as)
escravos(as). Mas fomos mudando, mesmo devagar. A democracia que estamos
pondo de pé já fez coisas memoráveis. A última foi eleger um operário, gerado nas
contradições da migração e da industrialização excludente da ditadura militar,
como presidente da República. Mas isso não basta.
Estamos diante da possibilidade de romper com a lógica econômica e de poder
que, ao incluir uns e umas, exclui outros e outras. Esse é o verdadeiro desafio
político. Não se invertem tendências de uma hora a outra, é certo. Mas precisa-
mos de sinais, de luzes sinalizadoras, de direção e do timoneiro Lula conduzindo
o barco Brasil. Tudo o que o governo decide e faz deve passar pelo crivo do quan-
to contribui para garantir o direito ao trabalho. Nada na vida humana tem um só
lado, uma só opção. Tudo pode tender mais para cá do que para lá, mais para
direitos de gente do que para direitos dos(as) detentores(as) de dinheiro, mais
para humanidade do que para mercado. É, sim, não nos iludamos, uma questão
de opção, difícil, condicionada, limitada, mas escolha de rumo. Precisamos que o
pleno emprego seja a nossa meta neste momento da democracia brasileira.
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Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Você sabia que, do ponto de vista econômico, a destruição a cada ano de mais de
20 mil km² de nossas matas é racional? Desmatar a área, plantar pasto e criar
gado na Amazônia pode dar um lucro que chega ao dobro do ganho por hectare
em tradicionais áreas pecuárias de São Paulo. A informação é apontada pelo eco-
nomista Sergio Margulis, do Banco Mundial, no estudo Causas do desmatamento
na Amazônia brasileira. Flávia Oliveira, na coluna Panorama Econômico – jornal
O Globo, 13 de fevereiro –, sob o título Verde de vergonha, apresenta os princi-
pais dados e conclusões da pesquisa.
Estudos assim, levantando dados e mostrando como funciona a lógica econô-
mica da busca do lucro a qualquer custo, são importantes. O diabo é que pode-
mos facilmente chegar a conclusões aterradoras, sem conseguir sair de sua própria
lógica. É muito fácil, por exemplo, mostrar que o garimpo predatório, jogando
mercúrio nos nossos rios, também é racional, pois o lucro é fantástico. Na mesma
linha de análise, é possível demonstrar quão racional é o trabalho escravo para
os(as) donos(as) de terra – e de gente.
Aliás, foi muito racional a destruição da Mata Atlântica para produzir café e
está sendo racional a destruição do Cerrado para produzir soja. Podemos dese-
nhar o mapa do Brasil mostrando onde a racionalidade econômica funcionaria,
tirando conclusões sobre a “irracionalidade” dos territórios indígenas e das reser-
vas extrativistas; da pesca ribeirinha na Amazônia, quando comparada com os
grandes barcos industriais; e da agricultura familiar, que teima em produzir segun-
do as necessidades de alimento e renda familiar. Mais ainda, podemos fazer como
Bush, que se recusa a assinar o Protocolo de Kyoto – sobre o controle das emissões
de gases destruidores da camada de ozônio – porque afeta a racionalidade dos
negócios... Aonde isso nos levará? À destruição completa de nosso patrimônio
natural, à concentração de riquezas e a maior exclusão social.
Qualquer pessoa que estuda o meio ambiente ou defende os direitos humanos
sabe muito bem que o cerne da questão é a lógica que move a economia, do lucro
como primeiro e fundamental parâmetro. Princípios e valores éticos, que colocam
a sustentabilidade e o desenvolvimento humano democrático como referências,
não entram no cálculo privado de um empreendimento que visa ao lucro. No
máximo, são custos a serem considerados que limitam lucros, se imposições legais
existirem e tribunais funcionarem. Estamos diante de flagrante divórcio entre eco-
nomia e sociedade, com dominância absoluta da economia. Estamos diante da
racionalidade que nos conduz ao desastre.
Essa é a economia que temos. Pior, é o modelo econômico hoje vigente no
mundo sob a batuta da globalização neoliberal. Talvez, se não olharmos para a
tal racionalidade econômica capitalista e voltarmos os olhos para o poder políti-
co que a sustenta, poderemos ver o que é possível fazer aqui e agora. Nós, aqui no
Brasil, temos um prato cheio de desafios e possibilidades que dependem, acima de
tudo, da luta política. Poderíamos tomar a questão da Lei de Biossegurança, aquela
que trata dos transgênicos, ainda em discussão no Congresso Nacional. Quem
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PARCERIA GOVERNO-SOCIEDADE
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Está ficando assustador voltar para casa, nesta maravilhosa Rio de Janeiro, onde
a violência vem minando os princípios éticos fundamentais de convívio humano.
Cheguei de viagem, neste início de abril, em plena Semana Santa, e ainda no táxi
do Galeão até o Flamengo tive que deixar rapidamente de me encantar com o
radiante sol da manhã e cair na real. “São 17 mortes em mais uma noite de
violência no Rio” é o eco, transmitido pelo rádio, de uma cidade mergulhada na
luta fratricida e na dor. O que parecia muito foi pouco. A notícia dominante no
Rio é a luta armada na Favela da Rocinha, com mortes, muitas mortes. Chega-
mos naquele ponto em que matar tornou-se banal. Já nem mais se sabe em nome
do que se mata. Mata-se quem estiver na frente. É uma luta em que quase todos(as)
os(as) que morrem são inocentes, que estão aí porque moram aí, em meio a raja-
das de metralhadoras e balas perdidas. Luta sem heróis, só vítimas. E uma grande
vítima: a cidadania.
Talvez eu esteja também me acostumando com tudo isso, com esta violência
oficial. Isso mesmo, violência oficial, pois tem no Estado e nas suas políticas a
principal causa. A criminalização das drogas – de algumas, deixando de fora o
tabaco e álcool, por exemplo – como política está nos levando a um beco sem
saída. Por trás, um Estado incapaz, mesmo assentado em uma institucionalidade
democrática, de assegurar políticas eficientes e eficazes de combate às desigualda-
des sociais e às múltiplas formas de discriminação que nos caracterizam como
sociedade. No âmago de tudo, uma estrutura de relações sociais e processos que
negam cidadania sem distinções, e que fazem do Estado um refém de privilégios
das minorias dominantes. Por isso tudo, confundimos direito à segurança com
repressão violenta e não como garantia de participação livre e democrática, bus-
cando justiça social e igualdade possível em nossa diversidade.
Bastou-me ficar uma semana fora e ver algo diferente para voltar e tremer dos
pés aos cabelos. Estive em reuniões de trabalho relacionadas ao Fórum Social Mun-
dial em Paris, Helsinque e na região italiana de Perugia. Não são lugares inteira-
mente livres da violência. A diferença é que são cidades em que, ao longo de anos e
décadas, vem se afirmando o primado da cidadania, da liberdade e da dignidade
humanas, como regras de convívio social na diferença. Bem diferente desta nossa
cidade do Rio, onde a “sociabilidade violenta”, na expressão do professor Luiz
Antonio Machado da Silva, do Iuperj, vem se impondo. Impressionou-me, em par-
ticular, Helsinque. Para mim, a Finlândia é o exemplo de que, com muita determi-
nação e políticas universalizantes eficazes, é possível, sim, obter níveis de garantia
de todos os direitos para todas e todos, gerando grande igualdade, como base da
vida social. A expressão mais acabada de tais conquistas é a igualdade despida em
que todos(as) se encontram em uma sauna, sem discriminação.
O cotidiano de permanente violência, em que sinceramente a gente tem medo
de polícia, acaba virando normalidade. Parece normal ter cercas de ferro, vigias
armados para todos os lados, câmeras invasivas, polícia invadindo qualquer casa
de favela na suposição que aí vive um(a) traficante ou seu(sua) protetor(a), tiros
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OBRIGADO, MST
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Sei que estou indo contra a corrente dominante na opinião pública. Aliás, opi-
nião única, pois nenhuma dúvida existe na condenação praticamente unânime do
MST na imprensa, nenhum contraponto, nada ou quase nada do ponto de vista
dos(as) próprios(as) integrantes do movimento ou, ainda, dos(as) que, de uma
perspectiva democrática, buscam saídas para a desigualdade e a exclusão que
marcam nossa estrutura social.
Que jornalismo é esse? Lamentável! Podemos discordar do movimento, de
seus ideais, de seus métodos, mas tentar entender a questão em jogo é o mínimo
que se espera no debate público.
Provavelmente, não existe tabu maior no Brasil do que a questão agrária –
questão velha de séculos. Mas nada mais atual, pois não se limita ao campo em si,
à sua população. Racismo, machismo, desigualdades de todos os tipos e tantas
outras das nossas mazelas têm, lá bem escondidas, as suas raízes na estrutura agrá-
ria. E, o que de longe é mais grave, o nosso futuro se decide no modo como hoje
definirmos a nossa relação com o enorme patrimônio comum que temos: o terri-
tório e seus recursos.
Questão complexa, sem dúvida. Mas onde está o debate? Será que o sacros-
santo privilégio de uns(umas) poucos(as) em colocar cerca em volta de parcelas do
território – muitas vezes baseadas no roubo legalizado por meios escusos – está
acima do bem comum?
O centro de debate
A modernidade do MST está em nos interpelar sobre isso, sobre o passado de
nossa matriz agrária e sobre o futuro no uso dos nossos recursos naturais, tendo a
terra no centro. A sua luta social não pode ser vista fora de tal quadro. Mesmo
enfrentando diretamente os(as) donos(as) de terras, gado e gente – pois esta é
ainda uma lamentável característica dos(as) proprietários(as) no campo – os(as)
sem-terra, ao fazer ocupações de fazendas, trazem à tona um aspecto fundamen-
tal sobre a possibilidade de um desenvolvimento democrático sustentável no Bra-
sil. Somos, dos grandes países do mundo, o de menor densidade demográfica, o
mais privilegiado em termos de recursos naturais – terra, água, biodiversidade – e,
ao mesmo tempo, o mais desigual e, tragicamente, o mais predador. Até quando,
em nome de uma visão ainda estreita, poderemos sustentar o direito de agir nesta
parte do planeta Terra de forma tão irresponsável social e ecologicamente?
O futuro, o nosso futuro e não só o dos(as) sem-terra, depende de uma mu-
dança fundamental na relação com o patrimônio natural que temos. sem-terra,
seringueiros(as), quebradeiros(as) de coco, os próprios povos indígenas, heranças
de um passado selvagem e excludente, com suas lutas de resistência estão chaman-
do atenção para a forma devastadora e insustentável de nossa estrutura e do pro-
cesso de desenvolvimento no campo.
O sucesso de nossa agropecuária atual, apregoada como expressão de nosso
domínio de tecnologias de produção e de nossa competitividade – no chamado
modelo agroindustrial exportador – esconde uma verdadeira tragédia. Juntando
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com a extração e exportação de minerais, com o deserto verde das florestas homo-
gêneas de eucalipto para celulose, que nos tornam imbatíveis no mercado mundi-
al, a nossa agricultura exporta para o mundo a seiva viva da nação, tanto da vida
natural como da sociedade, em troca de um duvidoso superávit nas transações
comerciais. Estamos comprometendo o presente de muita gente excluída do pro-
cesso e, o que é pior, o futuro de nossos(as) filhos(as) e netos(as), o futuro de
muitos(as) para além das fronteiras nacionais.
O centro de debate sobre o impacto da ação do MST deveria ser o caráter
antidemocrático e insustentável, do um ponto de vista ambiental, da atual forma
de apropriação da terra e de seus recursos. Na luta dos(as) sem-terra está a questão
da degradação dos rios, da destruição das florestas, da agressão à biodiversidade e
à sua privatização, dos duvidosos benefícios dos transgênicos, tudo muito além
do monopólio da propriedade da terra, em si algo intrinsecamente absurdo na
perspectiva dos direitos humanos, minha referência. Está em questão o modo
como nos relacionamos com a terra e o que ela contém.
Berço de um novo Brasil
Talvez o mais triste na conjuntura atual, de novo recrudescimento das ocupa-
ções do MST, seja tentar tapar o Sol com a peneira. Limitar o debate a uma
discutível agressão à propriedade da terra ou, mais genericamente, às leis e insti-
tuições, é recusar-se a ver de frente uma lei férrea constitutiva da sociedade brasi-
leira: os privilégios adquiridos de proprietários(as) privados(as) do patrimônio
coletivo contra direitos de cidadania e contra a reversão de um modelo predador
e excludente. Leis são feitas para serem respeitadas, sem dúvida. Mas leis expri-
mem relações. Na história humana não faltam exemplos de mudanças e avanços
que precisam ser feitos para que leis dêem conta da nova realidade. E os movi-
mentos sociais, como o MST, em sua truculência, acabam funcionando como o
anúncio da mais radical modernidade que clama por emergir.
Não tenho dúvidas em afirmar que, na luta dos(as) sem-terra, é, acima de
tudo, o nosso futuro que está em questão. E não o passado. Afirmo isso mesmo
reconhecendo que a forma da luta tem muito de primitivo e condenável. Sou um
radical pacifista, praticante incondicional da não-violência. Mas fico em dúvida
se a possível violência dos(as) sem-terra é da natureza de sua luta por um novo
modo de relação com a terra ou tem mais a ver com as formas como os(as)
proprietários(as) de séculos reagem na defesa de seus inegáveis privilégios.
Obrigado ao MST por nos fazer pensar no futuro e na possibilidade que ainda
temos de rever isso. Coragem, Lula: o momento é de inverter uma lógica e demo-
cratizar o campo, tornando-o o berço de um novo Brasil democrático e sustentá-
vel. Aliás, a pressão do MST é bem-vinda. Quem sabe o governo e nós todos
acordemos para o fato de que não dá mais para adiar medidas no sentido de
mudar o rumo de uma estrutura agrária que nos está levando ao desastre.
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Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
Todo ano é a mesma coisa, uma decepção. Acabamos onde estávamos, na impos-
sibilidade – que nós mesmos(as) criamos, diga-se de passagem – de tocar no salá-
rio mínimo. São 20 anos de redemocratização e o único feito até aqui foi estabi-
lizar o salário no patamar vergonhoso em que se encontra. Se não é o pior da
América Latina, é um dos piores. O salário mínimo é, do meu ponto de vista, um
dos melhores indicadores do motivo pelo qual somos campeões(ãs) em desigual-
dade social no mundo.
Longe de mim dizer que o problema é de simples solução. Não se resolve por
voluntarismo de um presidente, mesmo sendo de origem operária, como Lula. Há
uma lógica férrea na estrutura brasileira, traduzida em políticas públicas, que só
faz crescer a desigualdade em múltiplas formas, desigualdade de renda, desigual-
dade étnico-racial, desigualdade de gênero, desigualdade regional. O salário míni-
mo é emblemático no caldeirão produtor de desigualdades: ele é, simples e radi-
calmente, um direito. Poder-se-ia dizer, e é tragicamente isto: um direito desrespei-
tado, vilipendiado, reduzido e até ignorado.
Dado a minha idade, sou um dos(as) que ainda se orgulham por ter começado
a receber a minha primeira renda na forma de um salário mínimo. Foi em meados
dos anos 1960. Como estudante universitário, dava para me manter decentemen-
te. Era apenas o começo da queda no fosso de onde temos dificuldade de sair
agora. A ditadura militar, com o seu ajuste político, social e econômico, fez uma
reengenharia para concentrar renda e criar mercado para a indústria de bens durá-
veis, que viria a se tornar o motor do “milagre econômico brasileiro”, como
muitos(as) chamaram as altas taxas de crescimento do nosso PIB. A outra face do
milagre foi a monumental deterioração do salário mínimo e a concentração de
renda. Hoje, 40 anos após, devo reconhecer que estou no grupo das pessoas privi-
legiadas. Mas o salário mínimo permanece como referência, como o mínimo divisor
comum de nossas desigualdades.
A importância do salário mínimo reside no fato de que 1/3 da população
brasileira o recebe (ou menos) e que outro 1/3 ganha até dois salários mínimos.
Falar de salário mínimo é falar da questão política essencial, de como são reparti-
das as riquezas que geramos como coletividade. Mas considerando que a nossa
própria cidadania foi associada historicamente a ter uma carteira assinada com
direito ao salário mínimo ou um múltiplo dele, temos embutida aí toda uma
situação complexa de nossa história política, com uma inevitável questão demo-
crática. É preciso que entendamos que, no debate sobre o mínimo, tem lugar
central a questão da qualidade de nossa democracia, quão inclusiva ela é.
O salário mínimo em nossa cultura política é mais do que salário monetário.
Tornou-se referência de identidade social fundada em direitos de quem trabalha,
parâmetro fundamental de medida do ganho, bem como, pelo inverso, da explora-
ção e da concentração de renda, e, finalmente, funciona como base da socialização
e da luta por direitos. Não importa que hoje a maioria seja constituída pelas pessoas
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que estão fora, não têm a formalidade do contrato de trabalho e, portanto, dos
direitos trabalhistas. O mínimo, assim mesmo, é referência provavelmente do ta-
manho da tragédia social.
Chegou o momento da mudança, de ruptura com uma lógica que tenta
minimizar, em todos os sentidos, o salário mínimo. Joga-se aí uma questão chave
para que possamos construir uma sociedade democrática, de dignidade e liberda-
de para todos e todas. Precisamos construir um pacto virtuoso, que permita um
crescimento substancial do salário mínimo, resgatando o seu caráter de direito
construtor de identidades, de política de distribuição de rendas e de política de
inclusão cidadã. Para isto, não podemos esperar o próximo abril chegar. Agora,
devemos decidir sobre os critérios que permitam vislumbrar um melhor salário
mínimo para 2005 e adiante. Trata-se de construir as bases de uma política de
rendas, reconhecendo que o salário mínimo é a principal referência na estrutura
econômico-social e na cultura brasileira.
Temos um momento político especial que permite definir um consenso entre as
diferentes correntes políticas sobre a importância de resgatar o salário mínimo, o
que torna o pacto virtuoso possível. Não vejo outra saída que não definir um
compromisso de corrigir anualmente o salário pela inflação passada acrescido de
um plus. Minha proposta é que seja no mínimo – para ficar no espírito da coisa –
a correção pela inflação passada mais o crescimento do PIB, assegurado um gan-
ho mínimo real anual de 2%. Isso vale para quem ganha o salário mínimo na vida
real e para todos os ganhos indexados no mínimo, como os da Previdência Social.
É difícil? É, mas possível. Leva tempo, mas os resultados serão visíveis ao cabo de
poucos anos, invertendo a perversa lógica da concentração. Trata-se de eleger a
distribuição de renda como prioridade para a definição de um modelo democrá-
tico includente e sustentável para o Brasil de nossos(as) filhos(as) e netos(as).
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Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
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Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
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A viagem de Lula à China está confirmando o que até então era só uma suspeita:
o pragmatismo na conquista de mercados internacionais está acima da questão
dos direitos humanos. O fato é que as recentes incursões do Brasil no plano inter-
nacional podem se transformar numa armadilha para o amadurecimento de uma
emergente cidadania planetária.
Uma breve análise sobre as últimas viagens internacionais do nosso presidente
mostra riscos evidentes. Abster-se, como no caso das condenações de dissidentes
políticos em Cuba, ou ignorar as violações de direitos humanos, como na Líbia de
Kadafi, é ir contra aspirações da cidadania mundial. Passar por cima da legítima
luta do povo tibetano pela sua autodeterminação em troca de ganhos comerciais
imediatos nas transações com a China beira a afronta. Mas não é só: o acordo
com a Índia teve como parceiro um governo fundamentalista assassino.
Até a sempre esquecida África virou uma prioridade internacional para o Bra-
sil. Infelizmente, o continente este sendo visto apenas como mercado para o Brasil
e não como terra de povos irmãos, fundamentais na própria formação da nação
brasileira. No centro dessa aproximação não está uma agenda comum de desen-
volvimento e de enfrentamento das dominantes relações econômico-financeiras
que subjugam os países mais pobres.
Vale lembrar que um elemento chave nos diferentes movimentos que se insur-
gem contra a globalização neoliberal, tendo no centro a OMC (Organização
Mundial do Comércio), o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internaci-
onal), é que o direito do capital e dos mercados não pode, em hipótese alguma,
estar acima dos direitos humanos. Elegemos Lula para uma mudança de
paradigma. Sem dúvida, a entronização do mercado – com liberalização,
desregulação e perda da capacidade do Estado em formular políticas
macroeconômicas diante do poder de conglomerados econômico-financeiros e
um punhado de especuladores(as) – é algo que foi implantado ao longo da déca-
da de 1990. Mas nada disso pode impedir que sinais claros sejam dados, apontan-
do para um desenvolvimento democrático e sustentável e buscando criar condi-
ções para que os direitos humanos sejam a referência mínima. No entanto, os
sinais até agora emitidos apontam para um pragmatismo que pode reinstaurar o
desenvolvimento selvagem.
A questão dos direitos humanos é central para a emergente cidadania planetá-
ria e não pode ser relegada justamente por um governo que traz consigo a esperan-
ça de inclusão e resgate de direitos para milhares de pessoas. A Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos, de 1948, as Convenções de Direitos Civis e Políticos, e
a de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, a Declaração e Programa
de Ação de Viena, de 1993, as várias resoluções do Alto Comissariado para os
Direitos Humanos, da ONU, são a base de uma espécie de constituição universal
fundamental da sociedade civil mundial. Todas as entidades, movimentos sociais,
redes, coalizões e campanhas que, em sua diversidade geográfica, social e cultural,
se unem, por exemplo, no Fórum Social Mundial têm como referência comum
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Cândido Grzybowski
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É claro, as movimentações globais de Lula têm suas contradições. Até que ponto
a agenda comercial, do acesso a mercados para os(as) nossos(as) capitalistas
tupiniquins, não está perturbando o que pode vir a ser uma agenda de desenvol-
vimento e de multilateralismo baseado na justiça global e na solidariedade, ainda
não está evidente. Mas o fato é que saímos da situação que nos empurraram os
governos anteriores (particularmente durante os mandatos tucanos), de seguir di-
reitinho a cartilha do neoliberalismo para ser aceito no reservado clube do G-8.
Não estará o presidente Lula preparando um ambiente externo, econômico e po-
lítico, mais propício para nosso desenvolvimento e o de outros povos?
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Cândido Grzybowski
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O Fome Zero como programa começou muito mal, somando-se a muitos ou-
tros programas parciais de distribuição de renda, facetando de diferentes maneiras
uma população excluída que, no entanto, é uma só. Justamente a unificação dos
programas no Bolsa-Família foi o passo fundamental na direção da cidadania e
de implantação da renda básica como direito. Juntou-se em um só programa e em
um só cartão iniciativas como Bolsa-Alimentação, Bolsa-Escola, Vale-Gás, entre
outros benefícios.
Vigilância e pressão
O que as milhões de famílias de indigentes mais precisam é ver reconhecida a sua
humanidade e cidadania. Homens, mulheres e crianças em situação de indigência
têm fome, muita fome, de comida, água, roupa, escola, cidadania enfim. Com o
Bolsa-Família, caminhamos decididamente para atender a essas necessidades. É
claro que mudanças numa cultura política que ainda trata miseráveis como massa
de manobra não se fazem do dia para a noite. Desvios no Bolsa-Família, como
mostram a reportagem da Globo e outras tantas, existem. Mas o que realmente
precisamos é entrar no mérito do programa para avaliá-lo e aperfeiçoá-lo.
Por favor, Rede Globo, mostre o milagre que os recursos do Bolsa-Família
estão gerando – algo em torno de menos de 90 reais por mês, por família, em
média – para que possamos corrigir e melhorar a iniciativa! Não posso crer que
ainda o cinismo tacanho impere entre nós, influenciando-nos a pensar que o di-
nheiro do Bolsa-Família teria utilização melhor em investimentos de infra-estru-
tura ou, pior, no aumento do superávit primário para pagar os(as) gananciosos(as)
vampiros(as) que se alimentam da dívida pública. E isso? Não é um desafio etica-
mente inaceitável?
Sem dúvida, as denúncias precisam ser apuradas e os desvios devem ser puni-
dos. Mas, para o bem da democracia, precisamos saber a verdade do potencial
que significa o Bolsa-Família. À cidadania militante deste país cabe exercer vigi-
lância e pressão para que as políticas públicas voltadas para as pessoas mais exclu-
ídas sejam verdadeiras alavancas de democratização e combate às desigualdades.
Mas para isso, é fundamental termos uma cidadania bem-informada. Esta ainda
nos falta – e muito.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005
Crônicas
2005
SUMÁRIO
Acorda Brasil 05
Cândido Grzybowski
Caminhos da governança 13
Cândido Grzybowski
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
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Este é o nosso lugar, o nosso espaço, o nosso território. Nosso como seres huma-
nos, em nossa universalidade de humanidade, em nossa responsabilidade de pre-
servar um bem comum que é de todo ser humano.
Um povo se faz com generosidade, e não com a visão curta de interesses
imediatos. Pior: interesses da parte da sociedade que domina. Um povo é povo
quando valoriza e preserva o comum na parte do território planetário que a
História acabou por lhe reservar. Mas a história não acabou. O hoje não será o
amanhã – lembremo-nos sempre dessa verdade elementar da história humana e
de seu habitat natural.
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ACORDA, BRASIL
Cândido Grzybowski
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Cândido Grzybowski
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A Chacina da Baixada revela todas as nossas mazelas. Temos uma polícia para
nos proteger das “classes perigosas”, matando se preciso. Mesmo quando tal po-
lícia extrapola, revelamos tolerância. Ainda não estamos no ponto de ver que se
há solução - e há -, ela depende de nós, cidadãs e cidadãos mobilizados(as), em-
purrando governos no caminho dos direitos.
Até onde? Até quando? Até onde e quando nós não agirmos. Roupas brancas
não são suficientes. Nossa indignação cidadã deve ser capaz de produzir uma
onda de pressão que transforme governantes e polícia e faça valer a república
democrática para todos(as). Que a solidariedade às vítimas e à população da
Baixada nos dê forças para finalmente inverter este estado de coisas.
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Cândido Grzybowski
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Considero que uma das melhores definições para a democracia é ela ser “um
pacto de incertezas”. Ela qualifica as situações políticas e o próprio desenvolvi-
mento histórico de uma sociedade exatamente por primar no modo de fazer para
que as mudanças sejam includentes, participativas, igualizadoras e duradouras.
Ou seja, para a democracia os fins não justificam os meios. Ela é uma concepção
do meio, do modo de fazer. Cabe à ela reequilibrar o poder que as estruturas e
processos econômicos, sociais e culturais criam nas sociedades.
No centro da democracia estão os conflitos e as disputas entre diferentes,
opostos(as) e, acima de tudo, desiguais. A democracia equaliza pelo reconheci-
mento da comum cidadania. Portanto, nada de mal nos conflitos e disputas,
motores vitais para a democracia, desde que se desenvolvam em um quadro de
princípios e regras que levem à negociação do possível, permitam alianças e pac-
tos. Assim agindo, a democracia é estável em sua instabilidade intrínseca. Até
rupturas podem ser pactuadas, isto é, fixadas em parâmetros constitucionais legí-
timos e legais.
Posto isso em termos um tanto abstratos, vale a pena confrontar com a reali-
dade. O inimigo das mudanças fundamentais de que precisamos não é a democra-
cia. De minha perspectiva, é fundamental preservar a vitalidade da democracia
como sonho e projeto real. Caso contrário, é a volta da barbárie. Precisamos, sim,
empurrar sempre os(as) governantes e toda a estrutura de representação política
para que se pautem pela cidadania. A economia não pode vir antes da cidadania
nas democracias. Governantes e os tais mercados precisam entender esta verdade
fundamental.
Exerçamos o nosso poder! A rua, como último recurso, nada mais é do que
exercício de democracia direta. O radicalismo democrático é a condição para o
avanço da democracia neste conturbado momento histórico. Quem sabe, agindo
assim, o sonho não acabe e uma outra América Latina seja possível.
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Está claro que o país vive um momento revelador das enormes contradições
constitutivas de nossos limites e possibilidades – ou das possibilidades contidas
nos limites, definição mais adequada. Os desafios estruturais e conjunturais que
temos pela frente dependem, e muito, de nós, mas não podemos ignorar o contex-
to mundial no qual estamos inseridos(as).
Por sinal, o debate sobre desenvolvimento começa a tomar certa centralidade,
em grande parte pelo que ocorre e não ocorre no governo Lula. Mesmo que pare-
ça uma retomada do velho desenvolvimentismo, é preciso reconhecer que temos
diante de nós um quadro diferente.
Hoje, temos a democracia no centro. Além disso, após longo período de luta
contra a inflação e o escancaramento da economia brasileira à globalização neoliberal
na década de 1990, o que temos para mudar para podermos nos desenvolver é um
outro país, uma outra sociedade, uma outra economia, um outro poder estatal.
Embate de forças
O mundo é, de um lado, uma síntese complexa do domínio de mercados e da
tecnologia pela lógica da acumulação global das grandes corporações econômico-
financeiras – alimentando uma vergonhosa desigualdade e exclusão social e acele-
rando a destruição ambiental do produtivismo. Há a exacerbação das tensões
sociais, culturais e políticas, tendo a xenofobia, o fundamentalismo, a violência e
o terrorismo como combustíveis, síntese atravessada pelo unilateralismo e prática
imperial da potência militar e econômica, os EUA.
De outro, o mundo tem diante de si o aparecimento e crescimento de forças
cidadãs de transformação, que contestam a globalização vigente e desencadeiam
processos ainda embrionários de construção de outros mundos possíveis. Aqui
cabe destacar, entre outros, o movimento socioambiental; os movimentos por
justiça global com afirmação da diversidade sociocultural que nos caracteriza,
tendo os direitos humanos como referência; os movimentos pela paz e contra a
guerra; o feminismo, questionando as estruturas seculares do patriarcalismo e o
cotidiano de desigualdades e violências; as várias expressões dos movimentos ope-
rário e camponês, construindo novas alianças e coalizões.
Mas o mais importante de tudo é a novidade do encontro e da articulação de
todos esses sujeitos – tão diversos em termos sociais e culturais, com diferentes
histórias políticas, e espalhados pelo mundo – por meio de novos espaços, como o
Fórum Social Mundial, e novas formas de ação direta, como as manifestações
mundiais coordenadas para o mesmo dia.
Não há relação simétrica entre as forças de conservação da (des)ordem capita-
lista mundial e de mudança, mas são partes do mesmo mundo e definem o que ele
será amanhã. O que importa é pensarmos o Brasil a partir daí. Podemos ter, e de
fato temos, visões e avaliações diferentes do que o mundo globalizado e os movi-
mentos que o contestam nos permite. Isto é parte da realidade. O que precisamos
é aceitar o debate, participar consciente e ativamente das escolhas.
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CAMINHOS DA GOVERNANÇA
Cândido Grzybowski
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Ao menos no fronte externo, muito do que a gente esperava do governo Lula está
acontecendo. A recém encerrada Cúpula América do Sul-Países Árabes é mais
uma iniciativa que merece ser saudada. Foi uma iniciativa ousada? Sem dúvida!
Mexeu em leis férreas do status quo e despertou contradições e tensões, tocando
em pontos sensíveis de uma governança mundial em crise. Por que, então, saudar
algo tão arriscado em termos estratégicos - e cujos desdobramentos imediatos
ainda não podem ser avaliados com clareza?
A Cúpula teve seus acertos e erros, mas que rompeu com um quadro mais de
impasses do que de soluções, isso ninguém pode negar. O Brasil dá o seu empurrão
para que surjam novas relações no plano internacional, capazes de contribuir para
a reconstrução de um saudável e sustentável multilateralismo, soterrado pelo des-
mesurado poder e visão estreita dos Estados Unidos. Além do mais, é bom que a
Cúpula América do Sul-Países Árabes tenha acontecido quatro meses antes da
Cúpula da ONU, prevista para 14 a 16 de setembro próximo, em Nova York.
Afinal, são dois blocos de países importantes, por sua população, possibilidades e
problemas desafiantes, em qualquer arquitetura da governança mundial neste iní-
cio de século 21.
O governo Lula - e aqui arriscamos uma hipótese -, com suas várias iniciativas,
busca criar um ambiente internacional mais favorável. Esse parece ser o sentido
da Cúpula recém realizada, bem como o da Comunidade de Nações da América
do Sul, o do Acordo Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), o do G-20, o da firmeza
nas negociações da Alca, do Fundo Contra a Pobreza, da pretensão de um assento
permanente no Conselho de Segurança da ONU, entre tantas outras ofensivas no
plano internacional.
Nos inúmeros fóruns e redes mundiais de que participo como diretor do Ibase,
não tenho escondido, porém, minhas fundadas dúvidas sobre o potencial
democratizador de tais iniciativas - que muitas vezes incluem vistas grossas e até
acordos com regimes autoritários que desrespeitam direitos humanos fundamen-
tais. Até que ponto o Brasil não está simplesmente se pautando pela agenda domi-
nante, usando seu poder emergente para expandir seus mercados, deixando para
segundo plano a democracia e o desenvolvimento includente para nós e nossos
parceiros(as)? É mais do que revelador, por exemplo, que a Carta de Brasília, da
Cúpula América do Sul-Países Árabes, nem menção faça à fundamental questão da
democracia. Atropelar princípios e valores básicos, pelos quais lutamos e sofremos
muito no Brasil e na América Latina, é daqueles pragmatismos que, mais cedo do
que se pensa, limitam e podem até anular ganhos políticos duros de conquistar.
Mas seria burrice não reconhecer que, no mínimo, o quadro é novo e desafiante.
O momento é de agir e também de ser inovador(a). As organizações e movimen-
tos da sociedade civil brasileira precisam mudar chaves de leitura e se abrir para as
novas realidades que tais iniciativas governamentais apontam. Existem enormes
potencialidades em todo esse contexto externo que as ações do governo Lula
introduzem na agenda. No mínimo, saímos daquela postura neoliberal submissa
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que nos era oferecida como única alternativa possível pelo governo anterior. Ali-
ás, num contexto mundial de crise de governança, o governo Lula, ao menos
junto aos movimentos de nascente cidadania mundial, desperta a esperança de
que algo possa mudar. O poder constituído não é afetado, mas ele mesmo desco-
bre, surpreso, que algo se move. Outra governança mundial será possível? Aí a
tarefa é também nossa. Não se trata simplesmente de fazer o poder constituído
admitir a presença de mais e novos sócios, no Conselho de Segurança, por exem-
plo. Precisamos trabalhar para refundar democraticamente o poder mundial.
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Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
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Cândido Grzybowski
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Temos, sem dúvida, uma energia nova no ar que, ao menos por enquanto,
prefiro chamar de nascente cidadania planetária. Fundada na afirmação da diver-
sidade social, cultural, política e geográfica, reivindica os princípios éticos
universalizantes, referência para uma constituição mundial que tenha todos os
direitos humanos para todos os seres humanos como escopo. Alimentada por
uma radical consciência de humanidade na diversidade e consciência dos bens
comuns a preservar, renovar e fortalecer, como condição de vida e justiça social, a
cidadania planetária, como uma onda, move o coração de uma nova sociedade
civil militante mundo afora. Desigual, confusa, de ação direta mais do que
institucional, a nova cidadania avança e pressiona. Mas, por enquanto, só está
crescendo o buraco entre reivindicações da cidadania e as instituições de governança
mundial, seja a fragilizada Organização das Nações Unidas (ONU), seja a arro-
gante e poderosa OMC ou os seus velhos escudeiros de mais de 60 anos, o BM e o
FMI, ou os experimentos a caminho do fracasso, como a União Européia.
Os(as) donos(as) do mundo, as grandes corporações e os Estados – ainda vive-
mos num bizarro mundo de poder global e Estados Nacionais, que, em nome da
soberania, se impõem a seus próprios povos – estão ignorando o clamor que emer-
ge das ruas das cidades do mundo. Aliás, o grito surdo de povos ignorados nos
fundões, montanhas e praias do mundo, expresso pelos nascentes movimentos da
cidadania planetária, é como se não existissem. Basta ver as agendas do poder
global daqui até o fim do ano: G-8, Cúpula da ONU, OMC. Espanta a pequenez
das propostas diante da crise anunciada numa globalização perversa. Nenhum
desses grandes encontros do poder global quer fazer face à globalização enquanto
tal, que mina qualquer possibilidade de um novo pacto de humanidade e vida.
Discutem-se reformas como se as instituições pudessem ser reformadas por elas
mesmas, de dentro para fora. Falta aceitar o que se anuncia inevitável: uma
refundação democrática, capaz de permitir que a Humanidade se encontre consi-
go mesma, de modo que todas e todos tenhamos lugar. O jeito é continuar gritan-
do na rua, nossa força mais poderosa. Até quando? Espero que antes do desastre
que aparece no ar.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19
Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
O grave momento político que atravessamos como povo brasileiro não deve nos
paralisar. A falta de ética na política é uma clara agressão às instituições republi-
canas e uma negação dos princípios fundantes da democracia. Mas, antes e acima
de tudo, tais atos atingem a nós mesmos - cidadãs e cidadãos -, pois conspurcam
a delegação que, pelo voto, demos a nossos(as) representantes. Parlamentares não
são donos(as) de mandatos e cargos a que foram eleitos(as). Nós os(as) constitu-
ímos no afã de construir a República e a democracia. Somos nós a fonte originária
do poder que exercem e cabe a nós desconstituí-lo ou reconstituí-lo.
A hora é de reafirmar e fortalecer o princípio constituinte da cidadania ativa
para que a solução da crise política não vire mera acomodação pelo alto, nos
bastidores. Com ousadia, responsabilidade, determinação e coragem podemos
transformar a crise ética e política em uma democracia ainda mais profunda. O
berço das Repúblicas e democracias é a ação cidadã. O desafio do momento bra-
sileiro é fazer avançar a democracia, completando a tarefa constituinte que nos
trouxe até aqui.
Respeitando o mandato que lhes conferimos, não deixemos tal tarefa como
única e exclusiva daqueles que, no Congresso e no governo, queremos ver muda-
dos. Precisamos nos por em ação já! Só um grande movimento de pressão da
cidadania, com espírito público e republicano, pautado pelos princípios e valores
éticos da democracia, poderá desencadear interesses e vontades amplos em busca
de um pacto democrático que extirpe o câncer corrosivo em instituições e políti-
cas e nos dê uma nova base de prática da liberdade e participação cidadã. No
contexto da crise, e empurrando-a para um salto de qualidade, construamos uma
agenda cidadã de mudanças democráticas e democratizadoras de nossas institui-
ções republicanas.
O Brasil precisa de mais e não de menos democracia. Mais democracia signifi-
ca mais decisões diretas pela própria cidadania, em que o voto é um elemento
imprescindível. A própria renovação democrática regular que o voto propicia é
um tonificante de instituições e estimulante dos conflitos e disputas democráti-
cas. É isso que lhe dá vida e condiciona a cadeia democrática toda: democracia
direta, democracia participativa, democracia representativa. A questão do plebis-
cito e do referendo, como prática direta de cidadania, é parte indispensável da
reforma político-eleitoral, ao repor as coisas no devido lugar, delimitando o poder
de partidos e representantes eleitos(as).
E para que a democracia opere e produza sociedades cada vez mais democráti-
cas, o respeito à diversidade e à pluralidade, na igualdade da condição cidadã, é
algo fundamental. Isso se traduz em tolerância política mútua entre forças sociais
diferentes e opositoras e na aceitação da incerteza quanto aos resultados possíveis
dos conflitos e disputas democráticas. Até a tensão entre legitimidade de deman-
das e lutas por direitos e sua legalidade – existindo ou não o marco legal regulatório
de tais direitos – é fecunda nas democracias, desde que pautada por princípios e
valores éticos constitucionais.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20
Outros textos
SUMÁRIO
Resquícios da ditadura 03
Maurício Santoro
Participamos, e daí? 05
José Antônio Moroni
Conferência Cidades 66
RESQUÍCIOS DA DITADURA
Maurício Santoro
Jornalista, pesquisador do Ibase
PARTICIPAMOS, E DAÍ?
1
Apesar de existirem vários e diversos movimentos sociais, será usada a expressão no singular, pois não se fala de um
movimento especifico, mas, sim, de um conjunto de ações da sociedade civil que se materializou na organização de um
movimento social amplo, com características, filosofias e concepções comuns, denominado campo democrático e popular,
com uma agenda política de construção do Estado de direito e democrático.
2
Neste texto, utiliza-se como conceituação de Estado de Bem-estar a definição apresentada por Falcão (1991). Segundo
a autora, o Estado de Bem-estar é o Estado constituído nos países de capitalismo avançado e possui como características:
a) os direitos sociais como paradigma; b) origem num pacto social e político entre capital/Estado/trabalho; c) configura-
se como agente central na reprodução social; d) é gestor poderoso das políticas sociais, que é a expressão essencial do
Estado.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6
Com essa estratégia, dá-se uma das possibilidades de resposta à carência de me-
canismos de participação nos processos decisórios das políticas que, a partir daquele
momento, deixam de ser apenas políticas governamentais para se tornarem políti-
cas públicas, elaboradas conjuntamente pelo governo e pela sociedade civil.
A representação tem sido tradicionalmente uma das formas mais estimuladas
de participação. De uma base social determinada, destacam-se representantes que,
em nome dessa base, debaterão assuntos por ela propostos. A criação de novos
canais de participação, que permitem a população estar representada quando são
tomadas decisões que afetam diretamente seu dia-a-dia, é fundamental, uma vez
que, na complexidade da sociedade moderna, a representação política partidária
não consegue mais representar todos os segmentos, e cada vez mais amplos setores
da população não se vêem representados nos partidos políticos.
A criação do sistema descentralizado e participativo foi – e acreditamos que
ainda é – uma das fórmulas encontradas para que haja um efetivo controle popu-
lar do poder, tendo como pressuposto a democracia participativa. Isso significa
que os conselhos são uma das formas de exercício do direito de participação polí-
tica que têm como pressuposto a existência de outras modalidades desse mesmo
direito, como o direito de votar e ser votado(a).
Em suma, é uma forma de adensamento da relação Estado–sociedade civil, que
vem colaborar com o processo de alargamento da democracia nas sociedades con-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
9
A democracia não pode ser algo abstrato na vida das pessoas ou, caso seja
concreto, se apresentar apenas nas eleições. Deve proporcionar aos cidadãos e
cidadãs a participação plena nas questões que lhe dizem respeito, além de favore-
cer sua autodeterminação, soberania e autonomia.
A sociedade democrática tem de ser ao mesmo tempo personalista, comunitá-
ria e pluralista. Deve ser personalista porque precisa criar as condições para que o
ser humano possa realizar-se plenamente. Precisa ser comunitária porque precisa
promover a inclusão de todos os atores sociais e a realização do bem comum, sem
qualquer tipo de discriminação ou preconceito. E necessita ser pluralista para
reconhecer e respeitar as diversidades entre as pessoas e os grupos sociais, acolhen-
do-os e até mesmo os incentivando, não os reduzindo a uma homogeneidade
forçada ou aparente.
A construção da democracia nos impõe uma vigilância permanente e constan-
te no sentido de criar mecanismos institucionais de participação, com regras defi-
nidas e claras, que equacionem as pressões das maiorias sobre as minorias, ou das
minorias ativistas contra as maiorias passivas. Desse modo, esses espaços devem
ter estratégias claras e eficazes com vistas a incorporar indivíduos ou grupos soci-
ais alheios à participação.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11
vê-las. Olhar e enxergar esses novos atores – e também conseguir juntar esses
processos, que são diferentes – é um grande desafio para nós.
Outro desafio é recolocar a questão, o papel e a reforma do Estado e como
exercer o controle público do Estado. Um dos primeiros erros deste governo, de-
monstrado já na campanha eleitoral, foi não ter incluído a reforma do Estado na
pauta. E essa é uma questão central, que devemos debater profundamente. Não
poderemos pensar nenhum tipo de controle social e de controle público do Esta-
do, se ele não for público. Isso envolve a partilha do poder e a forma de apropri-
ação do poder, ainda realizada de maneira privada, sem a lógica do público. En-
tão, ao retomar a discussão do papel do Estado, temos de dizer que Estado que-
remos, o que envolve algo maior: um projeto de sociedade.
Outro fator que está associado ao controle social e ao controle público do
Estado (e, portanto, à participação), é o acesso às informações. Não é possível
continuar ouvindo do governo que ele não abre os sistemas de informação na área
orçamentária – o Sigplan e o Siafi – porque a sociedade não vai entender seus
dados e números. As informações têm de ser públicas, não só na área do orçamen-
to, mas em todas as áreas que não sejam protegidas por lei. Nós temos que assu-
mir a luta pelo direito à informação pública. E essa informação pública não é a
informação que passa pelo olhar do marqueteiro da comunicação. A sociedade
deve ter a mesma informação que o(a) gestor(a), o(a) profissional, o(a)
funcionário(a) e o(a) servidor(a) público(a) têm. Como vamos pensar no contro-
le social, na participação, se não tivermos acesso às informações? A sonegação de
informações é também uma forma de desqualificar nossa ação política.
Creio que tivemos algumas surpresas positivas no governo Lula. Apesar de
todas as críticas que podemos ter, quando avaliamos os processos de participação,
sobretudo os conselhos e as conferências, vemos que há uma mudança de postura
do atual governo em relação aos governos anteriores, no sentido de reconheci-
mento desses espaços de participação. Nas conferências realizadas em governos
anteriores, quem organizava e comandava tudo era a sociedade civil. O governo
aparecia como um espectador e ia embora. Agora, esses espaços têm registrado
uma qualidade e uma participação governamental bem diferente do que estáva-
mos acostumados. O positivo disso é que as conferências viraram espaços de dis-
putas políticas.
Conclusão
O sistema descentralizado e participativo configura-se como instituto político
não-tradicional de gestão de políticas públicas, voltado para a democratização do
aparelho de Estado e da sociedade civil, podendo impulsionar uma mudança qua-
litativa na forma de organização social e política, levando-nos a uma ordem mais
próxima da utópica radicalidade democrática.
Não consideramos os conselhos como espaços únicos, muito menos exclusi-
vos, porém importantes e estratégicos para serem ocupados pela sociedade civil
organizada e comprometida efetivamente com a alteração do perfil estatal brasi-
leiro. Além disso, a estrutura organizativa e a prática de funcionamento dos con-
selhos podem fortalecer o estabelecimento da cultura democrática que propiciou
sua criação. Em outras palavras, a base cultural que possibilitou a criação dos
conselhos não está consolidada em nosso país, porém seu funcionamento poderá
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16
servir como estrutura de reforço para a efetiva solidificação de uma cultura demo-
crática participativa.
Os conselhos são mecanismos limitados para a transformação social. Porém, para
a realidade brasileira, são mecanismos que podem provocar mudanças substantivas
na relação Estado–sociedade. Da mesma forma, esses mecanismos podem contribuir
com a construção/consolidação de uma cultura política contra-hegemônica, por meio
da prática da socialização da política e da distribuição do poder.
Não se deve desistir do processo de implementação desses mecanismos de par-
ticipação democrática, apesar do pouco avanço no sentido de transformar em
poder de fato o poder legal que esses conselhos possuem.
O que podemos dizer do governo Lula em relação ao fortalecimento do siste-
ma descentralizado e participativo e ao próprio processo de participação? Pouca
coisa, a não ser: participamos, e daí?
CIDADES/2003
A 1ª Conferência Nacional das Cidades ocorreu de 23 a 26 de outubro de 2003,
em Brasília. O evento, que reuniu 2,5 mil delegados(as) dos 27 estados, debateu
temas e propôs diretrizes para nortear as políticas setorial e nacional de desenvol-
vimento urbano.
Os trabalhos foram desenvolvidos a partir do lema “Cidade para Todos” e do
tema “Construindo uma política democrática e integrada para as cidades”. Dos
5.560 municípios existentes no Brasil, 3.457 participaram de conferências prepa-
ratórias à Nacional, sendo que 1.430 realizaram conferências municipais, e 2.027
municípios participaram por meio de 150 encontros regionais, além das 26 confe-
rências estaduais e uma do Distrito Federal.
Essa mobilização deflagrou um processo de discussões e articulações, acordos,
exposição de propostas, reuniões de pequenos e de grandes grupos e votações
protagonizadas por 999 administradores(as) públicos(as) e legisladores(as), 626
militantes de movimentos sociais e populares, 251 representantes de entidades
sindicais de trabalhadores, 248 representantes de operadores e concessionários de
serviços públicos, 193 delegados(as) de ONGs e entidades profissionais, acadêmi-
cas e de pesquisa, e 193 representantes de empresários(as) relacionados(as) à pro-
dução e ao financiamento do desenvolvimento urbano.
As 3.850 emendas originárias das conferências municipais e estaduais estiveram
sob exames e votações. Novas propostas para o desenvolvimento urbano foram
3
Este quadro reflete um pouco a importância que o Estado dá às conferências. Não há órgão que reúna as informações
sobre as conferências. Só é possível encontrar informações – mesmo assim, incompletas e desatualizadas – nos sites de
cada órgão responsável.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17
MEIO AMBIENTE/2003
Ocorrida em Brasília, de 28 a 30 de novembro de 2003. A 1a Conferência Nacio-
nal do Meio Ambiente teve com tema “Vamos Cuidar do Brasil”. Seis temas
estratégicos orientaram os debates: água; biodiversidade e espaços territoriais pro-
tegidos; agricultura, pecuária, pesca e floresta; infra-estrutura: transporte e ener-
gia; meio ambiente urbano; e mudanças climáticas.
A conferência nacional foi precedida de conferências realizadas em todos os esta-
dos e no Distrito Federal. O documento final aprovado em Brasília foi encami-
nhado ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18
PESCA/2003
Realizada em novembro de 2003. O processo iniciou-se com a realização de 27
conferências em todos os estados e no Distrito Federal e teve como ápice a 1ª
Conferência Nacional de Aqüicultura e Pesca, na qual 953 delegados e delegadas,
de um universo de 1.056 eleitos, discutiram e aprovaram os subsídios para a cons-
trução de uma política de desenvolvimento sustentável da aqüicultura e pesca.
SAÚDE/2003
12a Conferência Nacional de Saúde, de 7 a 11 de dezembro de 2003.
ASSISTÊNCIA SOCIAL/2003
4a Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em Brasília, no mês de
dezembro de 2003.
SEGURANÇA ALIMENTAR/2004
A 2a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ocorreu de 17
a 20 de março de 2004. A conferência é considerada o evento anual de maior
expressão nacional no que diz respeito à segurança alimentar.
A conferência nacional foi a etapa final de um processo iniciado pelos municípios
e estados, com a criação dos conselhos e a realização das conferências locais. A
conferência tem como objetivo propor ao presidente da República novas diretri-
zes para o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, para o anos de
2004 a 2007.
A 2a Conferência Nacional foi organizada pelo Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (Consea).
DIRETOS HUMANOS/2004
A 9a Conferência Nacional dos Direitos Humanos, ocorrida nos dias de 29 de
junho a 2 de julho, com o tema “Construindo o Sistema Nacional de Direitos
Humanos – SNDH”, apresentou um diferencial em relação às anteriores. Pela
primeira vez, foi convocada pelo Poder Executivo.
O objetivo geral foi discutir com os participantes do evento, delegados(as),
convidados(as) e observadores(as), propostas para o Sistema Nacional de Prote-
ção dos Direitos Humanos (SNDH): os desafios à implementação do SNDH, a
renovação de parcerias com setores da sociedade na construção do sistema, a aná-
lise de toda a situação e a construção de um espaço de denúncia de violação aos
direitos humanos.
ESPORTE
Ocorrida em Brasília, de 17 a 20 de junho de 2004.
conta do início das conferências estaduais. Nessa fase, governos estaduais e socie-
dade civil discutem políticas e ações locais e nacionais para a promoção da igual-
dade racial.
O processo preparatório também foi composto por audiência cigana e consultas
quilombola e indígena, que buscam o diálogo com representantes da sociedade
civil organizada sobre questões específicas de segmentos mais discriminados entre
os grupos étnico-raciais participantes.
A conferência teve por objetivo construir o Plano Nacional de Políticas de Pro-
moção da Igualdade Racial.
Referências bibliográficas
Leda M. B. Castro
Cedefes/Projeto Mapas, março/abril, 2005.
e secretário da Prefeitura de BH. Foi membro de vários partidos políticos: PTB, MDB,
PMDB, PDT, e atualmente o PV, em cuja sede municipal foi feita a entrevista.
Esteve presente, conforme os registros do Consea, nas 3ª e 4ª plenárias de 2003
e nas 1ª e 2ª plenárias de 2004.
do governador]. Ela é que foi visitar o Dom Mauro... Até o meu nome para ser
secretário geral do Consea foi indicado por ela.
[O senhor reportava a alguém do governo sobre suas observações e experiências
no Consea?] Fui várias vezes à Andréia Neves, ao Anastasia, ao Danilo de Castro.
Nunca conversei sobre o Consea com o governador. Mas falei a esses secretários
todos. Tive um contato muito estreito, de muitas reuniões junto com o pessoal do
Consea, com a Emater para o Minas Sem Fome, o Programa do Leite, etc.
Sobre Dom Mauro Morelli. É a grande figura do Consea. Tanto que, hoje, ele
também representa o Consea de São Paulo. É uma coisa incrível, não? [É o segun-
do governo estadual do PSDB que chama Dom Mauro]. É, hoje ele é presidente
de dois Conseas. Ele queria ser presidente do Consea nacional e boa parte da
gente espalhada pelo Brasil afora queria que ele fosse. E por quê? Porque Dom
Mauro é um visionário! Quando falo visionário, falo no sentido melhor do ter-
mo: um homem que tem visões, não é um alucinado. Dom Mauro não é um
lunático, é um visionário. Ele virou uma figura que tem um carisma próprio. Mas
como ele é mortal, se tivesse morrido naquele acidente de carro, o Conselho de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24
Segurança Alimentar teria sido varrido do mapa na mídia. Porque as coisas que
Dom Mauro faz são muito “midiáticas”, não são efetivas, nem aqui, nem em São
Paulo, nem nacionalmente. É tudo muito marketing. [Se ele não tivesse voltado ao
Consea de Minas] o Conselho provavelmente já teria sido fechado. Seria mais ou
menos como a Câmara de Belo Horizonte: se fechar, você não sente falta nenhuma.
Mudanças sugeridas para o Consea. Por exemplo, não gastar dinheiro público
com atividades-meio, não fazer da verba do Conselho um meio para um pequeno
grupo se satisfazer, até intelectualmente. Isso não vingou. E aí, acaba tudo... [O
predomínio das] atividades-meio [encontros e reuniões] significam que você tem
muitos planejadores e nenhum executor. Você faz um monte de planejamento e
não tem quem implemente todos os planejamentos. Corremos o risco de ter mui-
to plano e nenhuma execução...
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
27
[Não seria mais lógico que um conselho “aparelhado” pelo PT, em que os parti-
cipantes da sociedade civil fossem do mesmo partido, tivesse mais apoio de uma
administração petista?] Seria mais lógico, mas não é assim que funciona. Quando
um Conselho não tem a presença de membros governamentais com poder de deci-
são na administração, ele só tem que cumprir ordens da administração. Como a
administração é do mesmo partido, ele é só uma correia de transmissão para dar
aval a decisões que vêm de cima e fazer propaganda de que há democracia e parti-
cipação. Mas se ele parar de funcionar, a sociedade não vai sentir nenhuma falta,
porque ele não tem mais nenhuma função. É como acontece também com o Orça-
mento Participativo. [Essas iniciativas] acabam servindo muito mais ao marketing
do poder do que a execução de um programa realmente democrático.
O programa Minas Sem Fome e o Prosan dentro dele, como eixo dos conflitos Estado -
Sociedade Civil nas questões de Sans
O programa Minas sem Fome é um dos programas “estruturantes” do Plano de
Ação Governamental – PPAG – para o período 2004–2007 e, nesse sentido, é um
dos programas prioritários do governo estadual. Mas isso não significa que vai
haver recursos para a sua execução: pode e deve haver a rubrica no orçamento
estadual, mas transformá-la em recursos financeiros reais é outra conversa. O Prosan
– Programa Mutirão de Segurança Alimentar e Nutricional - é um dos eixos do
Minas Sem Fome. Garantir isso e uma parcela dos recursos obtidos pelo Estado
junto ao MDS – Ministério do Desenvolvimento Social – consumiu enorme quan-
tidade de tempo e energia dos conselheiros e equipe do Consea entre o fim de
2003 e primeiro semestre de 2004, como está narrado no texto Participação Soci-
al e a Segurança Alimentar em Minas Gerais, escrito em agosto de 2004 para o
Projeto Mapas.
O Prosan tem sido uma prioridade de ação do Consea, considerando o contro-
le direto que o Conselho tem sobre ele e também pelo seu papel de ajudar o
“empoderamento” de entidades de base em muitos municípios de Minas, por
meio de projetos comunitários participativos de Sans.
O Prosan 2003, com uma verba de um milhão e setecentos mil reais, aprovou
203 projetos comunitários de Sans, e o Prosan 2004, com uma verba de quatro
milhões de reais, aprovou 479 projetos (dados de fevereiro de 2005). Já foram
aprovados quase quatro milhões de reais e repassados para as entidades locais, cerca
de três milhões. No Prosan 2003, 87% da verba foi usada para as atividades-fim: os
financiamentos dos projetos. Essa proporção subiu para 90% em 2004-05 (dados
de início de março). Os repasses da verba aprovada têm sido prejudicados por várias
situações locais, como entidades não conseguirem abrir contas bancárias, divergên-
cias entre membros das entidades proponentes após a aprovação do projeto, por
falta de documentação solicitada pelo comitê estadual, pela demora em enviar o
projeto e sua posterior aprovação, passando o tempo para o plantio, etc.
No seminário de monitoramento dos projetos de Prosan, acontecido no se-
gundo semestre de 2003, ficaram aprovadas visitas a 30% dos projetos, no míni-
mo, pelos comitês regionais do Prosan. Os projetos seriam sorteados e as visitas
teriam por base um roteiro de monitoramento de aspectos a serem observados e se
faria também um encontro regional com os representantes dos projetos. Na ver-
dade, essa proposta não está sendo cumprida: as comissões regionais e seus comi-
tês não dão conta de fazer isso. Faltam recursos e falta, sobretudo, tempo, porque
as pessoas atuam nas comissões e comitês de forma voluntária, tendo muitas ou-
tras atividades profissionais e sociais. Então, a equipe do Consea precisaria dar
um suporte para os comitês do Prosan. Foi então contratada uma pessoa, por
tempo determinado de quatro meses, para servir de assessor aos comitês do Prosan
nas tarefas de monitoramento e avaliação dos projetos em curso. O principal
interesse é fazer uma comparação entre o que foi planejado e o que está sendo
realizado, em cada um dos projetos da amostra de 30%: identificar os fatores
facilitadores e inibidores do processo.
Preocupações das equipes do Consea e da Cáritas (gestora do programa) para o
Prosan 2004: fazer monitoramento e avaliação dos projetos e do programa; cuida-
do especial com a prestação de contas. Preocupação com o papel do Tribunal de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31
Daniel Bin
Mestre em administração pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR) e professor do curso de administração
da Universidade de Brasília (UnB).
dnlbin@yahoo.com
Fábio Vizeu
Mestre em administração pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR) e professor do curso de administração
do Centro Universitário Positivo (Unicenp) Curitiba.
vizeu@unicenp.br
1. INTRODUÇÃO
Mesmo constituída em uma época remota, a democracia é considerada como um
modo deliberativo e político que caracteriza fortemente o nosso tempo. Erigida
como a conseqüência dos valores libertários da cultura liberal moderna, a demo-
cracia se estabeleceu em nossa era com a promessa de justiça e bem-estar social
para todos (Rémond, 1997).
Entretanto, o atual panorama político, social e econômico dificulta sobrema-
neira o estabelecimento da democracia de forma idêntica a que foi concebida em
sua idéia original, conforme o pensamento grego, de um governo do povo, orien-
tado por valores como “autogoverno, igualdade política, liberdade, justiça, parti-
cipação do cidadão comum no governo da cidade independentemente de sua ren-
da ou posição social” (Costa, 2002, p. 90). A dificuldade estrutural, causada pela
complexidade das sociedades governadas pelo estado burocrático, leva a uma cres-
cente desnaturação do núcleo original do conceito, especialmente quanto à viabi-
lidade da participação direta.
Como alternativa à complexidade operacional subjacente a democracia direta
– principalmente nas sociedades de massa – e aos limites que o modo representa-
tivo impõe ao exercício efetivo da democracia, aumenta o número de iniciativas
de participação do cidadão nas coisas do estado. Por vezes, isso ocorre por inicia-
tiva da própria sociedade, em outras, por disposições institucionais desenvolvidas
no âmbito do estado. Gostaríamos de nos deter no segundo caso, ou seja, dos
espaços criados e institucionalizados sob a chancela governamental. Mais especi-
ficamente, vamos restringir esta análise ao caso do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social (CDES) da Presidência da República, constituído no início
do governo Lula.
O presente trabalho tem como objetivo descrever e analisar o CDES desde a
sua constituição até os dias atuais, considerando seus aspectos formais e seu modo
de funcionamento, principalmente no que se refere à temática da participação da
sociedade civil em decisões do estado.
1
Trabalho elaborado para o projeto Monitoramento Ativo da Participação da Sociedade (Mapas), a pedido do Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
35
Para isso, este texto segue um plano expositivo subdividido em cinco partes
fundamentais: primeiramente, além do objetivo do trabalho, são descritos, rapi-
damente, os procedimentos metodológicos adotados; em seguida, o texto trata
do histórico e da caracterização formal do CDES; o terceiro tópico visa analisar o
modo de funcionamento do Conselho e a repercussão de suas ações no governo e
na sociedade; na seqüência, procura-se analisar o CDES como espaço público de
participação da sociedade civil; finalmente, concluímos o texto sintetizando as
principais evidências obtidas.
2
Concertação significa acordo entre duas ou mais pessoas ou entidades para conseguir determinado objetivo; pacto;
convenção; união (Dicionário da Língua Portuguesa On-line. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/
definir_resultados.aspx>. Acesso em: 9 out. 2004. Segundo Sofia e Silveira (2003), o termo foi inspirado no processo
de negociação entre o governo português e a sociedade civil após a revolução dos Cravos (1974), quando o país
retomou a democracia.
3
Os endereço dos sites são <https://www.cdes.gov.br/> (CDES) e <http://www.planalto.gov.br/cdes/> (Sedes).
4
A Sedes, que funciona junto à Presidência da República, tem dentre suas atribuições coordenar e secretariar o
funcionamento do CDES.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
36
Como se vê, o CDES tem função consultiva, e não deliberativa. Logo seus
encaminhamentos não necessariamente se transformam em ações do governo, ca-
bendo a este a faculdade de acatar ou não tais proposições. Porém, cabe destacar
que costuma haver espaço para que o Conselho se manifeste com posição própria
sobre qualquer assunto que lhe seja submetido ou que ele próprio venha a optar
por discutir. Nesse sentido, percebe-se uma preocupação na estruturação da dinâ-
mica de funcionamento do CDES em não deixar nenhum assunto levantado por
qualquer conselheiro(a) sem algum tipo de tratamento.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
38
Capital 45 50%
Personalidades 14 16%
Social 18 20%
Trabalho 13 14%
Total 90 100%
5
O secretário da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social tem status de ministro. Cabe a
ele a função de secretário executivo do CDES.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
40
6
Carta de concertação é o documento emitido após cada uma das reuniões do Pleno do CDES em que se evidencia a
posição do Conselho sobre os temas em questão. É encaminhada ao presidente da República e o seu conteúdo é público.
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7
Até o momento da conclusão deste texto, aconteceram dez reuniões do Pleno do CDES, porém, estão disponíveis no site
da Sedes as atas das oito primeiras.
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43
8
Na primeira reforma ministerial do governo Lula, no fim de janeiro de 2004, passou a ocupar a Secretaria Especial do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República o até então ministro do Trabalho Jaques
Wagner, que substituiu Tarso Genro, este designado para o Ministério da Educação.
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45
9
Para saber mais sobre esses conselhos, consulte os sites <http://www.conseil-economique-et-social.fr/> (França);
<http://www.cnel.it/> (Itália); <http://www.nedlac.org.za/> (África do Sul); <http://www.ces.es/> (Espanha); <http://
www.ser.nl/> (Holanda); <http://www.ces.pt/> (Portugal); <http://www.sozialpartner.at/> (Áustria).
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47
Parágrafo único. No caso das deliberações sob a forma não consensual, é fa-
cultado ao Conselheiro interessado apresentar justificativa da sua posição diver-
gente, em separado e por escrito. (Brasil, 2003 a)
Aspecto interessante do modo de deliberação é, segundo um dos entrevistados
e servidor da Sedes, o voto não ser considerado como um meio adequado para se
chegar à decisão. A idéia é sempre atuar para buscar o consenso, tanto que, até
hoje, nenhum encaminhamento foi definido por meio de votação.
10
Essa entrevista foi realizada em maio de 2004, ou seja, depois de mais de um ano de existência do CDES.
11
Aqui nos referimos ao ministro Tarso Genro, que foi o secretário da Sedes até a primeira reforma ministerial do governo Lula.
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49
Marinho, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que dizia: “Os sindicatos
querem manter direitos trabalhistas”; ao passo que Abílio Diniz, do Grupo Pão
de Açúcar, dizia: “os empresários [...] defendem a flexibilização das leis do traba-
lho” (Vieira, 2003).
A questão trabalhista levou a um episódio que bem ilustra até onde o conflito
chegou. Em julho de 2004, a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) deci-
diu retirar-se do Conselho por não concordar com os projetos de reforma sindical
que o governo pretendia encaminhar ao Congresso (Diário de S. Paulo, 2004).
Em cartas encaminhas ao presidente da República e ao secretário da Sedes, o
presidente da CGT, Antonio Carlos dos Reis (Salim), justificou a decisão da se-
guinte forma: “não podemos concordar com a política governamental, cujos re-
sultados não satisfazem de nenhum modo os interesses da maioria dos trabalha-
dores brasileiros, principalmente no que diz respeito à geração de emprego e ao
bem-estar social” (Confederação Geral dos Trabalhadores, 2004).
Sobre o relacionamento interno entre os(as) conselheiros(as) representantes do
governo e os(as) da sociedade civil, chama a atenção o fato do CDES não funcio-
nar em torno de uma hierarquia de cargos, típica do modelo burocrático weberiano
(Weber, 1982), característico das estruturas dos estados modernos. Mesmo a par-
ticipação dos membros do governo – presidente da República e ministros – não é
marcada pela autoridade do cargo. Todos os entrevistados declararam que esses
integrantes do CDES não costumam ter ascendência sobre os(as) demais
conselheiros(as), e que seus comportamentos têm sido preponderantemente de
ouvir as manifestações dos(as) representantes da sociedade. Um dos entrevistados,
funcionário da Sedes, informou que, mesmo com a presença do presidente da
República nas reuniões do Pleno do CDES, os(as) demais conselheiros(as) não se
sentem constrangidos(as) em fazer uso da palavra.
Com efeito, os exemplos dos debates – críticas e reivindicações – sobre a polí-
tica econômica do governo, e a falta de ascendência das autoridades do governo
sobre seus pares no Conselho podem ser vistos como indicativos da inexistência
de constrangimento hierárquico, que caso existisse seria contrário ao caráter de-
mocrático e participativo que o CDES parece ter.
Já dissemos que um ponto polêmico em discussões do CDES é a questão dos juros
básicos da economia. Segundo Ruediger e Riccio (2004), esse tem sido um dos prin-
cipais objetos de divergências entre conselheiros(as). Episódio marcante é a manifes-
tação explícita do Conselho ocorrida na terceira reunião do Pleno, em junho de 2003.
Naquela ocasião, por meio da terceira carta de concertação, explicitou-se posição
clara sobre a necessidade de redução dos juros. O conflito fica mais claro na seguinte
descrição: alguns conselheiros, dentre eles o empresário Antoninho Trevisan (CDES,
2003 e), apresentaram proposta de uma nota a ser divulgada em defesa da redução da
taxa de juros básicos da economia, além do já expresso na carta de concertação (Sofia
e Silveira, 2003). Conforme nos relatou um dos conselheiros presentes àquela reu-
nião, o conteúdo da carta foi motivo de forte oposição por parte de conselheiros que
entendiam o gesto como prejudicial à credibilidade do país. Segundo esse entrevista-
do, o conselheiro “Roberto Setúbal, do Itaú, disse que uma nota dessas seria muito
prejudicial ao país por que poderia prejudicar a [sua] credibilidade”. Consta na ata
daquela reunião que a tal nota teria seu conteúdo comunicado ao presidente da Re-
pública pelo então secretário da Sedes (CDES, 2003 e).
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50
5. CONCLUSÃO
Dado o caráter exploratório da parte empírica do presente trabalho, existem duas
importantes conclusões a que se pode chegar a partir dos dados levantados e ana-
lisados. A primeira diz respeito à constituição do CDES e a forma como foi idea-
lizado. Essa constituição buscou dar ao Conselho um formato de incentivo à
participação e um espaço com características democráticas.
Quando direcionamos nossa análise ao modo de funcionamento do CDES,
no que se refere à participação dos(as) conselheiros(as) nas discussões, continua
a percepção de que há uma lógica com contornos democráticos em sua forma.
12
Ver nota 2.
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57
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGÊNCIA EFE. Mercosul estuda criação de espaço de diálogo
social na região. UOL Últimas Notícias. São Paulo, 21 out. 2004. Disponí-
vel em: <http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2004/10/21/
ult1767u25843.jhtm>. Acesso em: 9 nov. 2004.
______. Ata da quarta reunião ordinária do CDES. 2003 b. Brasília, DF, 4 set.
2003. Disponível em: <https://www.cdes.gov.br/>. Acesso em: 27 jun. 2004.
______. Ata da oitava reunião ordinária do CDES. 2004 a. Brasília, DF, 4 ago.
2004. Disponível em: <https://www.cdes.gov.br/>. Acesso em: 13 nov. 2004.
______. Ata da sexta reunião ordinária do CDES. 2004 c. Brasília, DF, 11 mar.
2004. Disponível em: <https://www.cdes.gov.br/>. Acesso em: 30 jun. 2004.
RÉMOND, R. O século XIX: 1815–1914. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
SOFIA, J. CDES deixa temas polêmicos para Lula. Folha Online, São Paulo,
10 abr. 2003. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/
ult96u47897.shtml>. Acesso em: 1 nov. 2004.
Atribuições e Promover crescimen- Emitir opiniões Redigir recomenda- Aconselhar o Pronunciar-se sobre
objetivos to econômico, sobre projetos de lei ções às autoridades governo sobre projetos das
participação nas e decretos nas áreas francesas, e fornecer temas de natureza grandes opções e
decisões econômicas socioeconômica e informações ao econômica e social, políticas de
e eqüidade social; trabalhista, assim legislativo quando de acordo com os reestruturação de
produzir acordos como outros da elaboração de objetivos de desenvolvimento
acerca de políticas assuntos que o leis; promover crescimento socioeconômico;
econômicas e sociais; governo julgue aproximação e econômico sobre a utilização de
considerar os relevantes. Pode diálogo entre os balanceado de fundos comunitári-
projetos de também elaborar diferentes grupos desenvolvimento os, estruturais e
legislação trabalhista relatórios, a convite nele representados; sustentável, de específicos; sobre as
e mudanças do governo ou por emitir opinião sobre maior participação propostas de planos
significativas nas iniciativa própria, o orçamento possível para os setoriais e espaciais
políticas econômicas sobre temas de sua público e sobre trabalhadores, e de de âmbito nacional;
e sociais antes da atribuição. projetos econômi- distribuição justa de apreciar as posições
submissão ao cos e sociais de renda. do país na União
parlamento; interesse do país. Supervisionar os Européia no âmbito
promover a trabalhos de nacional das
formulação de câmaras setoriais e políticas econômica
políticas coordena- participar da e social e a evolução
das em assuntos implementação de da situação de
econômicos e sociais; certas leis. desenvolvimento
e conduzir atividades regional; e promover
de solução de o diálogo e a
controvérsias entre concertação entre os
empregadores e atores sociais.
trabalhadores.
Principais Finanças públicas e Economia e finanças Trabalho; desenvol- Política econômica e Política econômica e
temas política monetária; públicas; relações vimento regional; social de médio social; desenvolvi-
tratados comércio e trabalhistas, empre- planejamento rural prazo; regulamenta- mento regional e
indústria; mercado go e segurança e urbano; assuntos ção da seguridade ordenamento do
de trabalho; social; assuntos sociais, ambientais, social; legislação território; questões
desenvolvimento; sociais; agricultura e financeiros, trabalhista e trabalhistas.
crescimento e pesca; educação e econômicos, industrial; participa-
eqüidade. cultura; saúde e internacionais; ção dos trabalhado-
consumo; meio tecnologia e res; mercado de
ambiente; transporte pesquisa; alimento trabalho e
e comunicações; e agricultura; e educação; política
indústria e energia; orçamento anual. européia; planeja-
habitação; desenvolvi- mento ambiental e
mento regional; tráfego; desenvolvi-
mercado europeu e mento sustentável;
cooperação para o assuntos de
desenvolvimento. consumidores.
ESFERA*
CONSELHEIROS(AS)
CAPITAL ORIGEM
Amarílio Proença de Macêdo Empresário Ramo Alimentação Nordeste - J. Macêdo Alim. S/A
Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro – Firjan
Horácio Lafer Piva Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp
Ivo Rosset Empresário do Setor Têxtil - Valisère, Cia Maritima, Agua Doce
Joseph Couri Assoc. Nac. dos Sindicatos das Micro e Peq. Indústrias - Assimpi
Luiz Carlos Delben Leite Presidente da Assoc. Bras. Ind. de Máquinas e Equip. -Abimaq
Paulo Roberto de Godoy Pereira Assoc. Brasileira da Infra-estrutura e Indústrias de Base - Abdib
ESFERA*
CONSELHEIROS(AS)
CAPITAL ORIGEM
PERSONALIDADES
SOCIAL
Glaci Therezinha Zancan Representante da Soc. Bras. para o Progresso da Ciência - SBPC
ESFERA*
CONSELHEIROS(AS)
CAPITAL ORIGEM
TRABALHO
Altemir Antônio Tortelli Fed. dos Trab. da Agric. Familiar da Região Sul - Fetraf-Sul
Antônio Fernandes dos Santos Neto Central Geral dos Trabalhadores do Brasil - CGTB
Juçara Maria Dutra Vieira Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE
Manoel José dos Santos Conf. Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag
CONFERÊNCIA CIDADES*
(*) Texto produzido a partir de entrevista concedida por Orlando Jr., diretor da Fase, para Moema Miranda
e Flávio Limoncic, em 07/05/2004.
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68
Carlos Tautz
Jornalista, pesquisador do Ibase
Cada Estado tinha autonomia para decidir a sua forma de organização, desde
que elaborasse propostas para cada item proposto na tese-guia. A coordenação,
portanto, variou de Estado para Estado, tendo a Conferência Nacional uma co-
ordenação definida pelo Ministério – com cerca de dez membros atuantes
escolhidos(as) a critério do MMA, porém de origens variadas, de empresários(as)
a indígenas – que terminou por conduzir também o evento final da Conferência.
Os(as) delegados(as) foram eleitos(as) em conferências/assembléias regionais,
das quais participavam qualquer cidadão(ã) eleito(a) em conferências regionais.
A escolha de delegados(as) à Conferência Nacional obedeceu a um regime de
proporcionalidade definido pelo MMA, dos quais se destacaram dois grupos: os
Estados que atingiram o limite superior para a delegação, 50 delegados(as) (Ama-
zonas, Pará, Bahia, Ceará, Mato Grosso, São Paulo e Rio Grande do Sul), e os
Estados que elegeram mais de 40 delegados(as) (Maranhão, Rio Grande do Nor-
te, Mato Grosso do Sul).
Do total de delegados(as), 33% eram representantes das esferas de governo
municipal, estadual, distrital e federal [foram 305 delegados(as), dos(as) quais
35% municipais, 38% estaduais e 27% federais], 41% de movimentos sociais,
populações tradicionais [indígenas, quilombolas e ribeirinhos(as)] e ONGs
ambientalistas, 19% de universidades, centros de pesquisa e conselhos profissio-
nais e 7% do setor produtivo, aí colocados(as) tanto trabalhadores(as) quanto
entidades de produtores(as). O próprio MMA surpreendeu-se com a eleição de 68
delegados(as) que representavam o setor “juventude”.
Por essa estratificação, fica claro que a Conferência conseguiu abarcar a totali-
dade de um público muito heterogêneo em sua composição, origem e proposta de
atuação social e ambiental. A cota mínima de participação de mulheres – 30% –
pré-estabelecida pelo MMA, foi plenamente alcançada. Segundo o MMA, dos(as)
delegados(as) eleitos(as), 576 eram homens e 336 mulheres.
Essa heterogeneidade reflete a chamada transversalidade que o tema
socioambiental incorpora. A propósito, essa transversalidade – a qualidade que o
tema socioambiental tem de perpassar diversas áreas, da política à economia, da
ciência ao movimento social, da legislação até questões de fundo religioso – é um
dos eixos em torno dos quais a ministra Marina definiu a prioridade da ação
governamental na área de meio ambiente, sem que os demais setores do governo
Lula tenham também incorporado essa preocupação. A própria exclusão da mi-
nistra Marina do núcleo decisório do governo explicita que a preocupação com a
transversalidade – ao contrário do que fazia crer a suposta prioridade dada ao
MMA quando do anúncio do nome de Marina para ocupar a pasta – é apenas
mais uma figura de retórica do discurso da política oficial.
Apostando nessa perspectiva, aqueles atores que compõem o chamado movi-
mento ambientalista – integrado pelos mesmos atores que acorreram à Conferên-
cia – aderiu integralmente ao chamamento da conferência. Principalmente por-
que o convocador era ninguém menos do que Marina Silva.
Isso, entretanto, não impediu a ocorrência de vários tipos de tensão entre as
organizações da sociedade e, principalmente, os(as) representantes dos governos
estaduais ocupados por forças políticas menos próximas do PT – que, é necessário
recordar, convidou para a redação do programa de governo de Lula boa parte
daquelas entidades que puxaram o processo de organização da conferência.
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73
2. Documentos oficiais
2.1. Documento base
2.1.1. Descreva o processo de elaboração e aprovação do documento (quem elaborou a pro-
posta inicial; quem participou das discussões; quais foram as instâncias institucionais de deba-
te e aprovação do documento; principais pontos de debate e tensão; responsáveis pela reda-
ção final).
2.1.2. Breve resumo do conteúdo da versão final do documento.
2.2. Documento de regras sobre a participação dos diferentes atores sociais no processo da
Conferência
2.2.1. Descreva o processo de elaboração e aprovação do documento (quem elaborou a proposta
inicial, quem participou das discussões; quais foram as instâncias institucionais de debate e
aprovação do documento; principais pontos de debate e tensão; responsável pela redação final).
2.2.2. Descrição das principais regras de participação no processo da conferência.
vez em menos de um ano por um governo que, em sua proposta, em pelo menos
seis oportunidades, prometia precaução no estudo desse problema.
Pelo menos 25 das 27 conferências estaduais aprovaram moções que preconi-
zavam restrições, em graus variados, à utilização dos organismos geneticamente
modificados (OGMs) e, em especial, críticas às seguidas liberações, por parte do
Executivo federal, da safra gaúcha contaminada por soja transgênica. Uma mo-
ção-síntese de condenação aos transgênicos foi apresentada e aprovada na Confe-
rência Nacional, em contraponto incisivo à política oficial que, às exceções das
posições da ministra Marina e do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel
Rosseto, demonstra clara simpatia pela adoção desses organismos.
Outra questão que mobilizou porções importantes de delegados(as) de pelo
menos cinco dos mais populosos Estados brasileiros de três regiões, que recolheu
amplo apoio de diversos movimentos socioambientalistas, e que causou forte cons-
trangimento ao governo, foi o caso do estímulo governamental às monoculturas
do pinus e do eucalipto para produção de celulose.
A pergunta intrínseca que os movimentos sociais fizeram na conferência, sob
a forma de propostas e de moções, foi: “qual é o modelo de desenvolvimento
que se propõe para o Brasil?”. Afinal, argumentaram os movimentos, a opção
estratégica do governo pelo negócio agrícola de exportação significa colocar em
segundo plano as reivindicações dos movimentos sociais e incentivar
monoculturas em larga escala com venda prioritária aos mercados internacio-
nais, por ora em cotação alta.
As monoculturas incluem a criação em larguíssima escala do gado de corte e a
plantação de soja (ambos avançam na direção da floresta amazônica), a cana de
açúcar e a do pinus e do eucalipto. Plantada em larga escala no Rio Grande do
Sul, norte do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, sul da Bahia e em Minas Gerais
(Estados de onde vieram as mais veementes propostas contrárias à sua adoção), a
monocultura industrial do pinus e do eucalipto, conectada à produção internaci-
onal de papel, é acusada por organizações não-governamentais, sindicatos de
trabalhadores(as) rurais, comunidades remanescentes de quilombos e muitas ou-
tras entidades populares de estar associada a desrespeito da legislação ambiental e
dos direitos humanos.
Em fevereiro de 2004, o governo anunciou um Plano Nacional de Florestas
[os(as) ambientalistas reclamam que monocultura de pinus e de eucalipto não é
floresta], que estava em fase final de gestação à altura da conferência. O Plano
prevê transformar a monocultura em iniciativa de governo, envolvendo os Minis-
térios da Agricultura, da Indústria e do Desenvolvimento e do Meio Ambiente.
Temas como esses lideraram as atenções dos vários movimentos, em quase to-
dos os Estados, mas não conseguiram romper com uma espécie de isolamento
temático que caracterizou as participações dos diversos atores. Cada um deles
dedicou-se prioritariamente a interferir no debate em sua área específica de com-
petência: quem era originário(a) de questões urbanas, por exemplo, dedicou-se a
elas em todo o processo. O mesmo se repetiu com os demais temas, exceto o das
mudanças climáticas, que pela sua própria natureza, exigiu uma intervenção
sistêmica, holística, que incorpore as diversas interfaces desse assunto.
Mesmo a “bancada” do setor produtivo, os(as) representantes das empresas,
que em todas as conferências regionais, assim como na nacional, atuou de forma
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1. Contexto situacional
1.1. Apresentação
A pesquisa da situação de implementação dos Conselhos da Cidade no município de
Belém e sua construção pela sua representação nos demais municípios do Estado do
Pará se constituiu como um desafio ao objetivo da pesquisa, considerando as dificul-
dades encontradas para a obtenção de informações pela via das entrevistas com os
sujeitos envolvidos, em função da dinâmica de suas responsabilidades cotidianas e de
imprevistos que impossibilitaram agilizar o acesso às informações em menor tempo,
durante o desenvolvimento do trabalho. No entanto, as inúmeras tentativas permiti-
ram que fosse garantido o sucesso do trabalho, possibilitando a avaliação da situação
dessas instâncias de co-gestão urbano-rural no Estado do Pará.
Para uma abrangência de informações que pudessem responder as questões-
chave que balizariam a pesquisa, foi feita a delimitação de seis entrevistas com as
pessoas1 envolvidas no processo e com domínio sobre o assunto, que pudessem
contribuir com relatos significativos para a análise da situação dos conselhos em
cada esfera de governo.
Desse modo, as informações contidas neste relatório estão repletas de informa-
ções que justificam a situação dos conselhos nas duas esferas e registram com
clareza as concepções ideo-políticas de cada ente, demonstrando de que maneira
os espaços urbano e rural são pensados no campo do planejamento e da organiza-
ção, denotando a quais interesses esses projetos estão vinculados, considerando as
diferenças que cada gestão implementa como política de governo, o que determi-
na, em cada esfera, os resultados das políticas de desenvolvimento socioespacial
em processo na região.
É importante destacar que a dinâmica de condução da organização dos conse-
lhos da cidade em cada esfera de governo obedece a uma dinâmica própria. O
governo do Estado desenvolve suas ações a partir do seu plano de governo, esta-
belecendo interlocuções com os sujeitos que compõem as associações dos municí-
pios e aliados políticos em vários municípios do Estado.
Ressalta-se a constatação do conflito político-partidário entre o governo esta-
dual (PSDB e aliados) e o governo municipal de Belém (PT e aliados) que, durante
suas gestões, vem se processando enquanto luta pela hegemonia política no muni-
cípio de Belém e Estado do Pará e que também se desenvolveu no embate político
1
Os sujeitos entrevistados foram escolhidos respeitando a paridade representativa, para garantir a imparcialidade nas
análises das informações. Desse modo, foram entrevistados: os representantes eleitos nas conferências estadual e
municipal (um em cada esfera); um representante dos movimentos sociais ligado ao Movimento Nacional de Luta Pela
Moradia (MNLM); um representante do governo municipal de Belém e um estudioso sobre desenvolvimento urbano e rural.
É importante registrar que inúmeras tentativas foram feitas para garantir a entrevista com o Secretário de Desenvolvimen-
to Urbano do Governo do Estado, mas todas as tentativas foram sem sucesso devido às várias justificativas dadas pela
chefia de gabinete.
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78
1.2. A análise das entrevistas: situação dos conselhos a partir da fala dos sujeitos
1.2.1. ENTREVISTA COM A REPRESENTANTE DO CONSELHO DA CIDADE PELO MUNICÍPIO DE BELÉM,
LAÉLIA BRITO
A organização do Conselho da Cidade em Belém
A entrevista com a Sr.ª Laélia Brito, membro da comissão executiva do Conse-
lho da Cidade, representante do Conselho Distrital do Distrito Administrativo do
Entroncamento e uma das representantes de Belém no Conselho das Cidades, foi
uma das entrevistadas que mais esclareceu a real situação do Conselho da Cidade
em Belém, devido a clareza das afirmações e opiniões prestadas, que evidenciaram
a forma como foi desenvolvida desde 1997 até ano de 2003, evidenciando a
experiência da gestão democrática da cidade pela via da participação popular.
Em um dos primeiros depoimentos da entrevistada, contatou-se como ocorre a
organização do Conselho da Cidade no município de Belém, que já existia, com
dinâmica própria, muito antes das determinações de formação dos Conselhos nas três
esferas de governo pelo Ministério das Cidades, não fugindo ao cumprimento da
prerrogativa legal do Estatuto da Cidade. Também esclareceu que não existe represen-
tante oficial do Conselho da Cidade de Belém junto ao Ministério das Cidades, afir-
mando que todos os conselheiros executivos têm igual poder de representação. Isso
demonstra o compartilhamento de responsabilidades pelas ações políticas na gestão
da cidade, não sendo centralizada na figura de um representante. Por outro lado,
impõem um exercício da democracia representativa dentro do próprio Conselho.
A Sr.ª Laélia explicou que o processo de eleição dos conselheiros da cidade em
Belém ocorreu através de eleições por bairro, onde os sujeito que alcançaram um
percentual de votos além do estabelecido pelo membros da comissão eleitoral
foram eleitos como conselheiros da cidade. “O Conselho da Cidade é representa-
ção dos conselheiros distritais, de conselheiros setoriais, de conselheiros temáticos
e também de entidades como Abong, CBB, CUT; então o Conselho da Cidade se
mantém dessa forma nessa composição”.
tendem até se acomodar e se deixar um pouco tutelar pelo governo municipal”. Por
outro lado, reconheceu “ (...) a nossa instância é respeitada, tudo o que diz respeito
ao planejamento do governo municipal da cidade, é passado pelo Conselho da
Cidade, o Conselho referenda, a L.D.O., é o Conselho da Cidade que aprova e
acompanha na Câmara, todo em qualquer planejamento e orçamento público, e
nesse ponto nós somos respeitados. Se porventura chegue a ter um determinado
conflito, do que a gente não concorde, o prefeito acata a decisão do Conselho da
Cidade, para ele e para o governo é a instância máxima de decisão”.
Com relação ao espaço de atividade do Conselho da Cidade, a entrevistada
falou que, no ano de 2003, a prefeitura cedeu um espaço para o desenvolvimento
das ações do Conselho, chamado Casa do Congresso da Cidade, que é adminis-
trada pelo Conselho da Cidade, que até então desempenhava suas funções em
uma sala da Secretaria Municipal de Coordenação Geral do Planejamento e Ges-
tão – Segep, caracterizada por ela como: “espaço da participação popular onde
nós vamos estar agregando toda a população de Belém, todos os conselhos de
direitos, enfim, todo aquele cidadão que queira esta contribuindo, reivindicando,
então nós vamos ser esse centro (...) então o Prefeito nos repassou essa Casa no
Congresso da Cidade, mas não só a sede do Conselho da Cidade, mas como as
salas para as Administrações Regionais foi uma demanda do 3º Congresso Geral
da Cidade, foi implementada agora, recente”.
todo mundo junto, e a gente se detém nos nossos eixos temáticos: gestão demo-
crática, inclusão social, direitos humanos. A partir daí, os conselheiros ligados ou
não a determinado eixo já dão prosseguimento ao que nós aprovamos, ao que
população está demandando. Agora com o Belém 400 Anos ficou mais fácil ain-
da, porque a gente já tem um plano para os 400 anos. Nós vamos nos debruçar
em cima desse plano e estar apenas junto à comunidade trabalhando esse plano”.
Solicitada a avaliar a experiência da gestão da cidade através do exercício da
participação popular, a entrevistada mostrou-se satisfeita com a forma de gover-
no petista, reconhecendo-se enquanto sociedade civil nessa proposta construída
na parceria Estado/sociedade civil. Nesse sentido, apontou os ganhos que houve
no âmbito da gestão da cidade durante os oito anos de governo democrático e
popular, declarando os fatores que contribuíram para o fortalecimento do Con-
selho da Cidade. “Os avanços foram inúmeros. Poder chamar o cidadão para
construir a cidade, construindo o planejamento da cidade, o futuro da cidade.
Hoje, por mais que queriam dizer que isso não vai acontecer mais, é impossível,
porque o hoje o cidadão participa, ele reivindica e, independente do governo ser
democrático e que deu o pontapé inicial para essa participação popular o cida-
dão também reivindica. Então a partir do momento que esse governo não res-
ponde à determinada ação, o cidadão também reivindica desse governo, reivin-
dica do estadual e também do federal. Nós vamos continuar com essa postura
de sociedade civil que aprendeu a reconhecer e a saber de seus direitos, e conti-
nuar reivindicando”.
“Eu acho que, no início, criou-se uma expectativa muito grande, ou pelo menos
se tinha a expectativa de que as coisas iam caminhar melhor. Eu não posso falar das
ações específicas que eles tomaram, mas, a princípio, foi muito importante, só pelo
fato de terem criado o Ministério das Cidades para conduzir as políticas para as
cidades. Mas eu particularmente esperava um pouquinho mais, e é só o que eu
tenho visto. De repente, eu não esteja acompanhando muito bem (...) Foram
implementadas algumas ações no sentido de conhecer, mapear as necessidades das
cidades. Aqui no Pará, o que eu tomei conhecimento foi a elaboração do PPA e de
alguns conselhos (...) Falando com algumas pessoas que participaram daquele mo-
mento, as pessoas me disseram que tiveram retorno (...) A gente só pode falar que
uma política está funcionando bem a partir do momento em que ela é colocada em
execução. Eu acho que só o fato de você fazer uma pesquisa de necessidade não é o
suficiente para a gente avaliar essas políticas. Portanto, eu acho que ainda não
existem mudanças concretas”.
Orçamento Participativo
“ (...) No processo do O.P. aqui em Belém, houve uma mobilização tão grande
(...) que isso causou um certo espanto, porque a população foi mesmo, ela foi
chamada e ela foi participar. Está certo que não foi aquela população mais
politizada, mas foi aquela população dos bairros que participa em função das
necessidades. Mas não dá para negar essa participação, não vou dizer que não foi
participação. É participação porque, através desse movimento, pode-se elaborar
formas de capacitação, de formação de lideranças, enfim, uma série de coisas que
se pode fazer no âmbito dessas assembléias, inclusive de politização das massas,
então isso me parece que não foi feito (...) Houve, sim, naquele primeiro momen-
to, muitas demandas, foi tanta demanda, que o pessoal da prefeitura ficou espan-
tado, não sabiam o quê fazer com tudo aquilo. Eu entrevistei uma pessoa lá de
dentro da CRC e ela me falou que foram mais de 60 mil demandas no primeiro
ano. Como atender tudo isso? Então eu acho que tem outras questões que preci-
sam balizar nessa análise: uma coisa é você falar de participação em Porto Alegre
e outra coisa é você falar de participação aqui em Belém. Porque lá em Porto
alegre tem uma cultura de participação bem mais sólida do que aqui. E antes do
PT assumir o governo lá”.
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84
Congresso da Cidade
“Olha, eu acho que a experiência do Congresso da Cidade é muito boa em
termos de democratização, mas democratização, quando se fala em espaço urbano,
é muito ampla. Porque tem uma série de elementos (...) Acho que essa experiência
iniciou um processo de democratização no sentido de ampliar essa participação
para vários setores, isso já entra na questão da participação popular, no planeja-
mento urbano. Só que eu acho muito frágil, é um caminho de longo prazo, não dá
para a gente falar que, só com o fato de termos implementado o Congresso da
Cidade, nós já avançamos muito (...) Existe, como eu costumo dizer, uma mão via
dupla: não adianta um governo propor ou ampliar essa participação se os movi-
mentos e a população não têm condições de ampliar essa participação. Essa amplia-
ção da participação não é na presença física das pessoas que chegam para partici-
par do Congresso. Eu acho que esta faltando uma preparação maior, uma forma-
ção maior, para que se discuta questões do urbano, não só para discutir, mas para
fazer que elas sejam validadas. Pois uma coisa é encher uma plenária com 700,
800 pessoas e depois, mesmo depois de aprovado o plano de investimentos no
contexto das prioridades, se desviava os recursos, então não vamos fazer porque
não tem recursos. Enfim, o que foi definido naquelas plenárias tem que ser sagra-
do para ser legítimo”.
Então elas acabam ficando lá no seu espaço territorial, elas fazem na medida da
necessidade daquele espaço, discutem as questões que estão relacionadas àque-
las necessidades. Agora essa tríade, como você coloca, ONGs/Estado/movimen-
tos, eu acho que a tendência é se ampliar esse debate entre os três. As ONGs
estão com um poder de discussão mais à frente que o Estado. No Estado do
Pará, é difícil falar nesse novo contexto (...) Sou um pouco cética com relação a
tudo o que está ai”.
“ (...) Como eu te disse, é um via de mão dupla, não dá para esperar só pelo
governo, pelo poder instituído. Eu acho que os movimentos têm um papel funda-
mental nessa questão dos Conselhos. Se o movimento não está ali para tocar isso
adiante, para chamar, para organizar, para mobilizar, se ele não se interessa, não
adianta esperar que o poder público vá fazer isso. O movimento tem papel funda-
mental: dos setores, é único que não pode cochilar, sempre digo isso. Porque o
governo atende a todos (...) ele tem que atender à toda a sociedade e a pressão
vem de todos os lados. Eu acredito que esse papel é do movimento, de pressionar
mesmo quando tem um novo espaço. Porque o Conselho é um novo espaço de
debate, de discussão, e é claro que não interessa a muita gente que a sociedade
civil amplie esse espaço. Ela vai colocar explicitamente o debate sobre uma discus-
são muito séria, que é o orçamento público”.
pelo contrário, vai recuperar essa casa de forma a não disponibilizar para o Con-
selho da Cidade, porque ela foi desapropriada para esse fim, e não sei se há uma
disposição de apoio governamental. Por outro lado, eu creio que vai haver uma
certa mobilização e resistência para que esses espaços políticos de organização
sejam assegurados. Há um plano de investimentos que foi aprovado pelo povo,
um plano que está em curso de obras que estão sendo realizadas e outras conquis-
tas no campo da liberdade, da quebra de preconceitos de vários setores como de
homossexuais, negros, índios e muitos outros. São conquistas muito difíceis de
serem retiradas, mas eu acredito que não vai ser fácil. Por outro lado, os meios de
repressão, de coerção, são muito fortes também, daqueles que não acreditam na
democracia. Eu acho que não vai ser uma relação tão respeitosa, tão ativa, como
se tinha. Mas eu acho que a gente tem que acreditar que um salto organizativo
importante para que esses processos todos não sejam aniquilados e voltemos aos
patamares de décadas atrás”.
com a dinâmica da cidade, para que a gente não construa guetos. Portanto, não são
demandas específicas, isoladas. Tudo isso é um processo de resgatar uma estratégia de
planejamento para Belém que não existia (...) Esse planejamento era relegado a uma
instância técnico-burocrática, muitas vezes distante do povo, das necessidades coleti-
vas. Um dos grandes desafios, naturalmente que as ilhas, as áreas insulares são uma
das prioridades agora na revisão do Plano Diretor, absolutamente prioritárias (...)
Todas essas áreas já ocupadas, organizadas, como também criar condições de preser-
vação, numa relação que não exclua a vida humana de outras áreas ainda não
ocupadas. Como Belém era muito carente, os investimentos em projetos sociais
importantes para criar condições dignas de vida para a maioria dos moradores das
ilhas, são 14 anexos, Família Saudável para Mosqueiro, esgotamento sanitário,
transporte escolar para crianças das ilhas, projetos agropecuários, apoio a áreas
ocupadas em Mosqueiro de famílias de assentamentos... Havia uma demanda re-
primida por políticas sociais que precisavam ser supridas. O desafio que nós estáva-
mos enfrentando era combinar todas as conquistas sociais com estratégias de preser-
vação da vida humana e preservação da natureza nessas áreas. Implantar um proje-
to de dez milhões em Mosqueiro para garantir saúde, é importante para garantir
qualidade de vida”.
Ver-o-Peso, forma 1.100 participantes das plenárias do distrito do Dabel que deci-
diram em 98 que o Ver-o-Peso deveria ser executado pelo governo. Mas nós estimu-
lamos que o Ver-o-Peso fosse um projeto aprovado, assim como a Augusto
Montenegro foi uma iniciativa do governo, não apareceu como demanda popular,
mas não precisava porque era algo auto-evidente (...) de que você não poderia
ter o centro isolado de uma parte de seu município. Então a participação popu-
lar aqui em Belém se realizou concretamente”.
Secretaria de Saneamento e outros que não têm, então é por isso eu é interessante
trabalhar por região (...) Você consegue congregar todas as áreas de interesse, vai
ser blocada a idéia, blocar nesse sentido é criar esses grupos por área técnica (...)
As associações é que vão indicar, unir e se alinhar com as nossas discussões no
âmbito do governo do Estado. Então você vai ter dois cenários, um municipal,
onde você tem os técnicos por área de interesse, e o outro estadual, onde vão
perpassar os interesses de cada Executivo, tanto municipal quanto estadual”.
ser essa, sim. Isso é uma realidade dos nossos prefeitos, infelizmente (...) Eles que-
rem um retorno efetivo, o que eu preciso trazer de orçamento, de investimento
para o meu município. O saneamento e o Projeto Alvorada, por que estão estag-
nados pelo governo federal? O Projeto Alvorada era política de desenvolvimento
urbano mais concreta que nós tivemos, porque ele ia lá no município e arrumava
a rede de esgoto, mandava fazer casa, mandava fazer as latrinas, sanitários, enfim.
Então é isso é que esta faltando”.
para o Congresso da Cidade dez mil pessoas, aí você vai para a televisão e diz
assim: ‘No Congresso da Cidade desse ano participaram 50 mil pessoas, 200 mil
pessoas’. Mas efetivamente, o que se traçou lá de estratégias para a cidade? O que
foi que o munícipe disse que era importante para a cidade? Muito pouca coisa. O
que saiu de lá foi um monte de obra que deveria ser feita. Acabou que a popula-
ção deliberou um monte de obra e a prefeitura não fez porque o orçamento dela
não comportava. Ao invés de você fazer uma participação popular qualificada, a
partir da qualificação eu não quero discutir obra, eu não quero discutir orçamen-
to. Eu quero é discutir o que a cidade precisa, como é que cidade tem que desen-
volver, no vários temas e, na transversalidade dos temas, desde a urbanização,
desde a nova visão do Plano Diretor, da geração de emprego e renda, da política
do desenvolvimento sustentável e tal (...) O Congresso da Cidade serviu para
haver um choque, um conflito de interesses da população pobre, que é um briga
de trabalhador contra trabalhador”.
sobre o social, aqui no Brasil tem muito, é o prefeito que quer intervir na entidade,
é o governador intervém na entidade, é o presidente da República que intervém na
entidade, são os conselhos de amigos, são as entidades que fazem parte do meu
campo político, então coloca essas entidades dentro dos conselhos porque elas
vão servir de correia de transmissão, então isso é um controle sobre o social. O
controle social que a gente quer é um controle tenha num conselho municipal
dotação orçamentária para fazer o que ele quer, que ele tenha infra-estrutura,
que ele tenha livre arbítrio para fiscalizar o gestor, que o gestor não esteja inter-
vindo no trabalho do conselho. Essa é um pouco da gestão democrática que a
gente quer”.
A relação dos movimentos sociais com a prefeitura de Belém nos oito anos de
governo
“ (...) Uma coisa que eu acho extremamente errada é que a gente capacita muito
para participar de controle social os movimentos sociais, como se a participação
popular não fosse uma bandeira dos movimentos sociais, a gente se esquece e deixa
de capacitar o gestor para ele aprender que a participação social é fundamental, não
só a gestão. Enquanto a gente tiver uma matiz política, gestores que acham que
participação popular tem que ser uma marca, tem que ser um direito do cidadão,
porque o dinheiro que ele está administrando não é dele, é do munícipe, e do munícipe
pobre que é quem paga imposto. Enquanto a gente não tiver gestores que tenham
essa clareza e essa concepção, nós não vamos ter participação popular, nós vamos
ter arremedos, nós vamos ter discussão de orçamento de participativo. Nós, do
movimento social, trabalhamos muito mais com a lógica da política urbana (...)
Nós só temos um viés, principal mote da política urbana é a terra, a terra está na
mão da burguesia há anos, e vai continuar assim se não houver um tratamento de
choque no debate da política fundiária no Brasil. Tanto faz da questão urbana,
quanto da questão rural. O que nós fizemos para mostrar que a maneira como a
prefeitura está levando foi a ocupação de terra, inclusive em terras municipais em
Belém. E aí mostra que os gestores não estão preparados em estabelecer o debate
com os movimentos sociais. Uma prefeitura que se arvora em se dizer democrática e
popular, você teve o enfrentamento com a policia, você tem uma área da prefeitura
de Belém que não está regularizada, então isso mostra que a democracia não é tão
democrática, que a participação popular não é tão popular, porque quando você
ocupa uma área que é da prefeitura, ao invés de o tratamento ser outro (...) Olha, os
governos de direita trataram o movimento na base do chicote, na base do cacete, na
base da polícia. A questão do desenvolvimento urbano no Brasil é uma questão
social, ela não é uma questão de polícia. Então, um governo democrático-popular
no mínimo deveria ter esse pensamento. Não foi esse o pensamento da prefeitura de
Belém. O tratamento foi o mesmo do embate, do choque, da tentativa de cooptação
de lideranças para derrubar as lideranças que estavam dirigindo a ocupação. A gen-
te percebeu que discussão da democracia vai até onde não me atinja. Nos oito anos
de Orçamento Participativo e Congresso da Cidade, efetivamente tem duas corren-
tes no O.P. e no Congresso da Cidade (...) Tem aquele pessoal que defende essa
maneira de que Orçamento Participativo é de quem leva mais, de que o governo
tem que interferir por dentro como interferiu, como sempre as obras que passaram
foram as obras que o governo quis. Tem uma outra corrente que diz que não, que o
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
99
debate é para pensar a cidade, que é para construir a cidade, que é para educar o que
é participação popular que efetivamente não houve. Portanto, o Orçamento
Participativo tem que ser uma organização da sociedade para o governo, e não do
governo para a sociedade “.
O posicionamento do movimento diante a implementação do Conselho da
Cidade em Belém
“Eu acho que tem duas coisas que Belém está à frente no Brasil. O Plano
Diretor é um dos mais avançados do Brasil. Tudo o que esta no Estatuto da
Cidade, pouca coisa não esta no Plano Diretor de Belém. O Plano Diretor de
Belém criava o Conduma, a prefeitura de Belém, desde a gestão do Hélio Gueiros
até a gestão do Edmilson, não criou o Comduma, que é o Conselho Municipal de
Desenvolvimento Urbano, que seria similar ao Conselho Nacional das Cidades.
Onde hoje você tem um conselho que discuta desenvolvimento urbano no muni-
cípio de Belém, o conselho do orçamento participativo não substituiu o Conselho
Municipal das cidades. O Plano Diretor de Belém não foi implementado, o Plano
Diretor de Belém não foi revisado e o Plano Diretor de Belém fez dez anos em
fevereiro. O Plano Diretor de Belém foi sancionado em 93. A sociedade civil não
foi chamada para discutir como esse Plano Diretor seria revisado (...) Nem para a
gente fazer um debate de como seria a participação popular por dentro do Plano
Diretor. Porque o Plano Diretor de Belém é um dos melhores do Brasil no que
tange ao desenvolvimento urbano, a questões urbanísticas, mas ele é falho no que
tange a outras coisas. O Plano Diretor de Belém não avançou no que tange a
política de saúde, a questão da geração de emprego e renda, a questão da partici-
pação popular, ele não avançou nisso. Você não tem um diagnóstico de Belém
dentro do quadro do perfil epidemiológico, você não tem geração de turismo
para as nossas 39 ilhas, você tem um quadro urbanístico, mas quando você vai
pensar a cidade para médio e longo prazo, ele não serve, ele serve para o pensa-
mento da cidade urbana, não a partir da transversalidade, a partir de todas as
questões sociais que a cidade precisaria enfrentar. Então esse foi um dos erros
dessa gestão, de não ter participação popular. Para nós, Orçamento Participativo
e Congresso da Cidade não efetivamente dizem que têm participação popular”.
pede, eu tenho que fazer, mas quando chega na hora de discutir a fiscalização, a
participação social, como isso não está amarrado em lei, aí os governantes não
querem. A minha visão é a seguinte, fazer o Conselho das Cidades nos municípi-
os, nos Estados e vai melhorar o da União, porque nós estamos participando. Mas
nós temos críticas e diferenças com eles, se o P.L. 2.710 for aprovado no Senado,
for aprovado na Câmara e no Senado (...) e se o P.L. disser que tem que haver
fundo e Conselho no âmbito, municipal, estadual e nacional. Você só vai poder
pegar recurso para moradia popular se você tiver o Conselho, então é uma moeda
de troca, é uma obrigatoriedade. Só que o problema, particularmente para nós do
Movimento Nacional de Luta pela Moradia, é a institucionalização da
obrigatoriedade (...) Então institucionalizar a participação popular pode ser um
princípio ruim (...) Só vai ter Conselho da Cidade se tiver uma lei na qual o
governador, para ter verba, vai ter que criar o Conselho. Isso é ruim porque não
educa. Isso não educa os movimentos sociais e nem educa os governantes, que
ainda tratam o recurso público como se fosse recurso próprio. Os governantes só
vão fazer governo se tiver dinheiro, é igual ao da saúde. Se não fosse obrigatório
ter Conselho Municipal da saúde, existiriam bem poucos ou quase nenhum no
Brasil todo. Então com o Conselho da Cidade, a lógica vai ser a mesma. O pro-
blema é que isso mostra efetivamente a falta de compromisso dos governantes em
exercerem e colocarem como principalidade a participação social. A participação
social nesse país é feita pela obrigatoriedade. Na hora que acabar a obrigatoriedade,
na hora que desinstitucionalizar a participação social, a participação social no
Brasil acaba. O Brasil vive uma democracia de aparência, porque o filho de pobre
não está na universidade pública, porque o Ensino Médio e Básico são de péssima
qualidade, e a Educação Infantil não existe”.
essa leitura muito bem feita, os movimentos estão começando fazer, fazem essa
disputa por dentro dos espaços que eles acham que devem ser feitos. Para mim, o
governo Lula, em um pequeno espaço de tempo, se ele não muda a política eco-
nômica, ele está mostrando que ele veio para a classe média, e aí ele não consegue
incluir os excluídos, porque, para mim, está tratando hoje igual os desiguais e o
que a gente sempre defendeu, no movimento social como um todo, tanto faz o
movimento sindical como o popular, é tratar os desiguais, desiguais. (...) Não
acaba o déficit habitacional, dizendo que tem um déficit de 17 milhões de unida-
des, quer seja para a melhoria, quer seja para construir novos, mas ai diz e não
tem que estar no SPC, para tu pegares o financiamento, tu precisas estar emprega-
do e o teu município precisa estar fora do contingenciamento que o FMI mandou.
Se continua com essa lógica, que o FMI implementou no governo Fernando
Henrique Cardoso e está tentando manter no governo Lula, efetivamente essa
lógica vai dizer o seguinte: ‘trata os teus desiguais, iguais’. Aí você não vai ter
dinheiro para habitação, para a população de baixa renda, mas você tem para a
alta, porque o FAT, Fundo de Amparo ao Trabalhador, financia para quem ganha
acima de dez salários mínimos, mas ele não financia para quem ganha de zero a
cinco, ele não financia para quem ganha de zero a três. O FGTS financia, o Pro-
grama de Arrendamento Residencial é para quem ganha de três a seis, mas 78%
da população brasileira ganha de zero a três, então você está deixando 78% da
população excluída e aí está trabalhando mesma lógica de mercado neoliberal
que o Fernando Henrique Cardoso vinha trabalhando. A lógica do desenvolvi-
mento urbano tem que mudar e ela só muda se mudar a lógica da política econô-
mica. A política econômica tem que dizer que saneamento é investimento, e não
deve estar submetida a lógica do FMI, que diz não empresta recurso se o municí-
pio passar de 40% do seu endividamento. Porque saneamento não é saúde, então
você está fazendo uma saúde preventiva, então você não tem que deixar de em-
prestar porque o FMI não quer que empreste”.
participação social nenhuma, um projeto feito do dia para noite por um bando de
tecnocratas, colocado na Assembléia Legislativa para ser votado. Um índice de 30%
de desempregados e o trabalho informal altíssimo. Então essa é política que nós
estamos vivendo no Estado do Pará e se a gente não tiver uma saída que seja a partir
de envolver os movimentos sociais, o Estado do Pará está fadado a um colapso
fiscal e financeiro. O governo do Estado do Pará continua aplicando a redução do
Estado, continua aplicando lógica neoliberal”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
103
Sérgio Baierle
Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos
www.ongcidade.org
Flávio José Helmann da Silva Titular Frente Nacional de Prefeitos - Poder Público Porto Alegre
Metropolitanos Municipal
Paulo César Marques da Silva Suplente Associação Nacional de Entidades Profissio- Porto Alegre
Pesquisa e Ensino em nais, Acadêmicas e de
Transporte Pesquisa
Carlos Atílio Todeschini Suplente Associação Nacional dos Poder Público Porto Alegre
Serviços Municipais de Municipal
Saneamento
João Alberto Farias Fontoura Suplente Central de Movimentos Movimento Popular Porto Alegre
Populares
Wilson Valério da R. Lopes Titular Confederação Nacional de Movimento Popular Eldorado do Sul
Associações de Moradores
Carlos Augusto Belolli de Almeida Suplente Federação Nacional dos Trabalhadores Porto Alegre
Metroviários
Alceu Moreira da Silva Titular Governo do Estado do Rio Poder Público Estadual Porto Alegre
Grande do Sul
Marcelo Fornauski Soares Suplente Movimento Nacional de Luta Movimento Popular Santa Maria
pela Moradia
Rafael José Altenhofen Suplente Rede de ONGs Mata Atlântica Organizações Não- São Leopoldo
Governamentais
Raul Carrion Suplente União dos Vereadores do Poder Público Porto Alegre
Brasil Municipal
Não houve nenhum impedimento por parte do governo federal para que informa-
ções mais organizadas sobre o Conselho das Cidades fossem fornecidas. Afinal, cente-
nas e centenas de pessoas participaram das reuniões e conferências preparatórias. Na
minha opinião, isso não ocorre por acaso, mas faz parte de uma tendência quando a
representação é construída a partir de organizações. O retorno tende a ocorrer para a
organização, e não para o conjunto da sociedade. Mesmo no caso de representantes
governamentais, a devolução se traduz no uso de informações sobre programas e
linhas de financiamento para as políticas do governo. Ou seja, os próprios governos
se comportam de forma corporativa. No caso de representantes parlamentares, aí o
uso se dá pelos mandatos e não pelo parlamento, mas isso é devido à própria natureza
da disputa parlamentar. O corporativismo da classe política não se manifesta en-
quanto comunhão de idéias, mas através do consenso quanto aos procedimentos.
Voltemos, portanto, às disputas em torno das questões urbanas na cidade de
Porto Alegre. Diferentemente do que ocorre em nível nacional, em Porto Alegre
houve uma profunda aposta nos processos participativos e na mobilização popu-
lar. Muito antes da aprovação do Estatuto da Cidade, Porto Alegre já tinha em lei
municipal a maioria dos instrumentos urbanísticos ali previstos. O Plano Diretor
de Desenvolvimento Urbano e Ambiental porto-alegrense não é uma peça de fic-
ção, é desde 2000 uma ferramenta participativa de gestão em funcionamento1.
1
O PDDUA de Porto Alegre foi sancionado pelo prefeito em 01.12.99, após vários anos de discussão entre governo,
sociedade e parlamento. O primeiro plano diretor de Porto Alegre data de 1979, mas antes dele já havia uma tradição de
planejamento que vinha desde os planos viários de 1914 e 1939 (que instalou um Conselho) até o Plano de 1959, que
estabelecia rígidas exigências urbanísticas para cidade.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
105
a) Positivismo autoritário
A tradição mais antiga é a do positivismo autoritário, que chegou ao poder no
final do século XIX com Júlio de Castilhos e, posteriormente, se consolidou com
Borges de Medeiros. Essa perspectiva afirma o papel iluminista a ser desempenha-
do pelo Estado como instrumento de modernização social. Quando em 1939, a
partir dos estudos técnicos do urbanista Arnaldo Gladosch, foi instalado um con-
selho de planejamento, não era para que a sociedade participasse, mas para que
um colegiado técnico pudesse chegar às melhores conclusões para o desenvolvi-
mento capitalista da cidade. Na época, através da abertura de grandes avenidas,
como foi o caso da Avenida Farrapos. Entretanto, para esse Estado modernizador
havia um lugar para as classes populares na construção do progresso material.
Não é por acaso, por exemplo, que ligados à Escola de Engenharia seriam criados
vários institutos de ensino técnico e profissionalizante e que se daria progressiva-
mente ênfase ao investimento na educação das classes trabalhadoras.
b) Populismo modernizador
Essa vocação modernizadora do positivismo não é tão afastada quanto pode pa-
recer da vertente populista que se consolida nos anos 50, nos governos de Leonel
Brizola, não por acaso, engenheiro. O sindicalismo de Estado3 criado pelo projeto
populista no Brasil era um modelo não apenas para o sindicalismo, mas para o
conjunto das classes populares. Em 1959, foi criada em Porto Alegre a Fracab
(Federação Rio-grandense das Associações Comunitárias e de Amigos de Bairro),
com a mesma pretensão ao monopólio da representação e ao aparelhismo políti-
co-partidário da estrutura sindical oficial. As primeiras favelas em Porto Alegre da-
tam do início dos anos 50. Mal emergiam os primeiros movimentos comunitários e já
2
Vide BAIERLE, Sérgio. Um novo princípio ético-político, in www.democraciaparticipativa.org.
3
Vide BOITO JR., Armando. O sindicalismo de estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical, São Paulo,
Campinas: Hucitec/Unicamp, 1991.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
106
havia uma estrutura pára-estatal preparada para dirigi-los. Assim como os sindi-
catos eram dependentes do governo via mecanismos regulatórios da justiça do
trabalho e repasses do imposto sindical, a Fracab dependia de repasses do governo
para o seu funcionamento. Tanto assim que, após o golpe de 1964, a entidade
simplesmente passou a adotar uma linha de adesismo ao regime, que durou até
meados dos anos 70.
Também é de 1959 um novo Plano Urbano para Porto Alegre, não apenas
viário, mas também voltado para o zoneamento. Em plena era de migração cam-
po-cidade, esse plano projetava um modelo europeu/norte-americano para Porto
Alegre. Nele imaginava-se uma cidade igual para todos através do estabelecimen-
to de rígidos padrões urbanísticos, que acabariam fazendo crescer as cidades da
periferia, onde as exigências eram menores. Um cordão de vazios urbanos separa-
va Porto Alegre das cidades vizinhas. O resultado mais ou menos óbvio foi o
aumento progressivo dos loteamentos irregulares e clandestinos até atingir 24%
da população em 1990 (IBGE, 1990). Estudos mais recentes apontam uma redu-
ção para 20% (DEMHAB, 20014) após uma década de Orçamento Participativo
e políticas de urbanização de favelas e de regularização fundiária5. Mas mesmo os
governos da frente popular (1989-2004) não foram suficientes para conter as
ocupações de terrenos (média de mais de 20 tentativas de ocupação por ano).
c) Populismo clientelista
Diferentemente do populismo sindical, a matriz populista comunitária na verda-
de não teve tempo para se desenvolver até o seu limite e foi abortada precocemen-
te pelo golpe de 1964. Em Porto Alegre, ela é retomada pelos próprios interventores
da ditadura após 1975, quando o BNH começa a abrir espaço para políticas de
recuperação urbana. Entretanto, depurada de seu componente de mobilização
política e restrita a uma lógica pragmática de troca de obras por votos, a partir do
final dos anos 70, ela revelou-se insuficiente para conter o ascenso dos movimen-
tos comunitários, então aliados aos movimentos sindicais, numa conjuntura de
progressiva mobilização contra a ditadura militar. Atualmente, no governo Fogaça
(2005-2008) parece retornar ao poder essa matriz autoritária-clientelista, doura-
da por teorias de integração social copiadas dos manuais do Banco Mundial (através
do conceito de governança solidária local6).
Quando os trabalhistas voltam ao poder em Porto Alegre (Governo Collares,
1986-1988), o “povo” já não era mais o mesmo, já havia sido educado por uma
outra lógica na luta contra a ditadura, assim como já não havia mais o mesmo
consenso entre as esquerdas como no pré-64. Collares acenou com a idéia de
criação dos Conselhos Populares, que seriam conselhos a serem criados para cada
secretaria. As comunidades dos diversos bairros poderiam participar dos diversos
4
DEMHAB, Prefeitura Municipal de Porto Alegre - Diagnóstico da Situação Habitacional de Porto Alegre, Porto Alegre,
2001.
5
Para uma visão mais abrangente da evolução das políticas de planejamento urbano em Porto Alegre, vide: ALFONSIN,
Betânia e outros, Políticas habitacionais na região metropolitana de Porto Alegre, Rio, Observatório IPPUR/UFRJ-Fase,
http://www.ippur.ufrj.br/observatorio/redehabitat/rmpo.htm.
6
Vide Boletim Cidade n. 14, de maio/2005: http://www.ongcidade.org/site/arquivos/boletim/14425eb1c905068.pdf.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
107
d) Participacionismo movimentalista
A redução da transição do regime militar a um movimento limitado ao campo da
política institucional, cuja expressão mais significativa foi o movimento das Dire-
tas Já, que culminou numa eleição indireta e numa progressiva desmobilização
social (das centrais sindicais aos próprios “fiscais do Sarney”), acabou forçando
os movimentos sociais a um movimento de luta pela ampliação da arena política.
Criar conselhos locais, estaduais e federais; lutar para que esses conselhos possam
controlar fundos próprios, com destinação exclusiva; garantir uma maioria de
representantes da sociedade civil nesses conselhos; conferir-lhes poder legal: para o
assim chamado campo movimentalista (dos lutas sociais), esse movimento tor-
nou-se bandeira de luta em todas as áreas sociais.
O grande modelo inspirador do participacionismo foram os conselhos de saú-
de da zona leste de São Paulo. Esse modelo se consolidou institucionalmente com
o SUS. O modelo combina a idéia de participação direta dos usuários de determi-
nados serviços nas suas próprias regiões, dos profissionais que diretamente pres-
tam os serviços, dos governos e dos prestadores privados. E também no aspecto
do financiamento, o SUS é modelar. Hoje os recursos do SUS transitam de forma
separada pela contabilidade dos governos locais, sendo sua utilização submetida
à deliberação do conselho de saúde. Se é certo que a participação permitiu um
maior controle dos gastos públicos em saúde, também é certo que tanto os
prestadores privados, quanto o governo federal preservaram suas esferas de auto-
nomia relativa no manejo destes recursos.
Criança e Adolescente, Assistência Social, Conselhos Tutelares e, no caso de
Porto Alegre, Plano Diretor e Habitação são conselhos que seguem o modelo do
SUS. O próprio Orçamento Participativo (OP), articulando regiões e temáticas,
embora sem o mesmo arcabouço legal-institucional, também incorpora elemen-
tos básicos do SUS, tais como a discussão direta dos problemas vividos pelas co-
munidades populares e o funcionamento via comissões ou fóruns, a partir dos
quais se constrói a representação ao nível da cidade como um todo. A diferença é
que o OP constitui-se como uma esfera pública essencialmente plebéia. Não há
cadeira cativa para nenhum setor ou corporação. Cada cidadão vale um cidadão,
um voto na assembléia. No modelo do SUS são atribuídos pesos iguais a forças
essencialmente diferentes, o que tende a empurrar o jogo deliberativo para o em-
pate permanente. Se o peso decisório dos atores já é garantido de antemão, qual-
quer decisão que implique perdas relevantes para um deles dificilmente será apro-
vada. Em Porto Alegre, por exemplo, após quase duas décadas de gestão
7
Para uma análise detalhada deste processo, vide MOURA, Maria Suzana de Souza. Limites à participação popular na
gestão da cidade, Porto Alegre, PROPUR/UFRGS (tese de mestrado), 1989.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
108
participativa, sequer foi possível fazer com que a classe médica cumpra a carga
horária estipulada no contrato de trabalho. Mas foi possível ampliar o número de
postos de atendimento, o horário de funcionamento, a qualidade dos serviços, os
critérios de ingresso, etc. Esse modelo não pode ser dissociado da luta dos partidos
políticos de oposição que se formam a partir do final dos anos 70. Num contexto
em que a arena política formal estava fechada para os partidos de esquerda, lutar
para ampliar os espaços de participação era uma forma de ir conquistando espaços
aos poucos e de politizar o que era possível politizar - as questões quotidianas da
população. À medida em que esses partidos chegam ao poder, nem sempre se man-
tém a mesma aposta na participação, já que, na oposição, ela é uma estratégia e, na
situação, pode ser um risco. Da mesma forma, nos anos 90, com o refluxo corporativo
dos movimentos sindicais, sobretudo na área do funcionalismo público, grande
parte das ações sindicais junto aos usuários dos serviços por eles prestados acabaram
sendo reduzidas a um denuncismo mais corporativo do que conscientizador.
Nossa hipótese aqui é de que os processos participativos só funcionam efetiva-
mente quando amparados em amplas mobilizações sociais capazes de tensionar os
governos e gerar uma opinião pública a favor de determinadas causas. Isso significa
que a partilha efetiva de poder em espaços participativos não tem como ser resulta-
do apenas de um discurso de campanha, mas depende da articulação de forças
sociais que a sustentem. No caso do OP de Porto Alegre, a partilha de poder era
uma condição para o apoio efetivo dos setores populares, numa conjuntura em que
o governo não tinha minoria na Câmara de Vereadores e precisava fazer uma refor-
ma fiscal para poder afirmar seu projeto de governo. Ou o governo se subordinava
ao jogo parlamentar tradicional e abria mão de um projeto real de inversão de
prioridades, como fez Lula, ou utilizava a mobilização social como forma de pres-
são. Optou por esta segunda fórmula, utilizando-se também a participação direta
ao invés da representação por entidades, o que permitiu colocar em questão a repre-
sentação de muitos dirigentes presos a esquemas clientelistas tradicionais.
Como tem sido possível sustentar este esvaziamento ao longo de vários anos?
A resposta é relativamente simples. Primeiro, despendendo anos apenas para
organizar o regimento interno e garantir pelo menos uma rotina de reuniões,
embora não de procedimentos. Segundo, priorizando a discussão de situações
imediatas e emergenciais ou simplesmente pontuais, ligadas aos interesses deste
ou daquele conselheiro. Como um terço dos conselheiros vêm das regiões do OP
(agrupadas duas a duas), é natural que tragam um conjunto de demandas de
serviços para as reuniões, mas não é aceitável que elas acabem substituindo a
ausência de decisões sobre a política habitacional propriamente dita. Terceiro,
postergando sistematicamente o fornecimento de informações relevantes. Exis-
tem os dados gerais dos gastos do Departamento, mas praticamente não se tem
dados sobre a execução dos projetos específicos. Como conseqüência, a função
educativa que poderia ter o funcionamento do Comathab para os participantes
e para aqueles que eles representam acaba meio que se perdendo, e se reforçam
os aspectos mais imediatistas da participação. Talvez isso ajude a explicar tam-
bém o escasso retorno do resultado das reuniões para o conjunto da sociedade e
mesmo para as pessoas que escolheram os conselheiros em suas regiões. Da mes-
ma forma se explica também o pequeno interesse dos setores empresarias da
construção civil em participar desse conselho, o mesmo podendo ser dito dos
representantes do próprio governo, sendo necessário muitas vezes adiar delibe-
rações em função de problemas de quorum.
Como tem sido possível, então, combinar esse esvaziamento com a efetividade
dos investimentos em habitação no município (R$ 321.000.000,00 em 16 anos,
beneficiando mais de 50.000 famílias). A resposta a esta pergunta é um pouco
mais complexa, já que na verdade o Demhab divide com outros setores do gover-
no as decisões estratégicas sobre a política habitacional. Assim, existia todo um
amplo espaço de bastidores onde se articulavam líderes comunitários e governo,
sobretudo no âmbito do OP. Na verdade, só muito recentemente é que o Demhab
vem se aparelhando para o desempenho de um papel mais estratégico. Durante a
maior parte de sua existência o órgão funcionava mais como uma imobiliária
popular, repassando financiamentos da CEF e administrando uma carteira sem-
pre com alto índice de inadimplência (estimada pelo novo secretário Tessaro em
80% atualmente). Além disso, como havia uma relativa coincidência de propósi-
tos entre governo e líderes comunitários, não havia muita preocupação com as
formalidades de funcionamento do conselho, desde que, na prática, os investi-
mentos ocorressem.
8
Pólis, Perfil da Habitação de Interesse Social em Porto Alegre, Porto Alegre, novembro de 2004. Disponível em: http:/
/lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/demhab/usu_doc/texto_final_completo_volume_1_corrigido.doc.
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111
9
Concessão do Direito Real de Uso - Previsto no Artigo 203 da Lei Orgânica Porto Alegre - instrumento utilizado
basicamente nas áreas públicas de uso comum, ou no reassentamento de comunidades que residem em áreas impróprias
ao uso habitacional - áreas de risco. Tal concessão é dada para famílias de baixa renda (0 a 5 s.m.) e que não sejam
proprietárias de outro imóvel. No caso de morte do concessionário, nos termos do artigo 7º da Lei Complementar Municipal
242/91, alterado pela Lei Complementar Municipal 455/2000, “será prevista a ordem de vocação hereditária nos termos
do artigo 1603 do Código Civil Brasileiro”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
112
Poderia ter sido diferente. É interessante notar que os mesmos partidos que
ontem defendiam os concessionários do DRU em nome da igualdade de oportu-
nidades (todos têm o direito de ser proprietários), são os mesmos que hoje, no
governo Fogaça, promovem uma razzia sobre os imóveis financiados via Demhab,
obrigando à revisão dos contratos em alguns casos e à negociação dos atrasados
em geral (mutuários de maior poder aquisitivo são acusados de privilegiados,
moradores de áreas de ocupação são convidados a pagarem pelos terrenos que
ocupam). Tudo isso numa conjuntura de desemprego, em que muitos sequer con-
seguem pagar a conta de luz. Numa área do loteamento Timbaúva, em 2005, os
moradores se recusaram a assinar contratos para a instalação regular de energia
elétrica porque não teriam como pagar a conta, preferindo continuar com o siste-
ma de gatos. O DRU implica um “aluguel” mensal de pouco mais de dez reais,
um financiamento que, mesmo subsidiado, não fica por menos de meio salário
mínimo. Com a recente instituição do programa Dono da Casa pelo Demhab10, o
DRU pode ser convertido em financiamento habitacional em até 240 meses. No
fundo, o que se busca é ampliar a receita do órgão.
Não era tão difícil assim derrubar o argumento de que todos seremos iguais,
todos teremos a propriedade capitalista plena. Mas isso implicaria um outro
projeto, menos pragmático e mais político. Nesse sentido, ao simplesmente aceitar
as demandas do senso comum, assegurou-se o direito à moradia, mas limitou-se
o espaço de autoria popular no uso desse direito. Optou-se pela provisão de
lotes e unidades via empreiteiras de obras (com o argumento de que este era um
limitador imposto pela CEF) e relegaram-se as iniciativas populares como as
cooperativas autogestionárias a um espaço secundário. Apenas para registrar
um exemplo disso, em 2004, em pleno ano eleitoral, o movimento de luta pela
moradia conseguiu inserir na agenda municipal um projeto-piloto com recursos
a fundo perdido da CEF para moradia a moradores de baixa renda. Tratava-se
de uma experiência inédita ainda em Porto Alegre, onde o movimento organi-
zaria sistema de mutirão remunerado para a construção das unidades, a partir
de uma unidade própria de produção de tijolos de fibrocimento e via a consti-
tuição de uma cooperativa de moradores para a gestão do loteamento, incluin-
do propostas para geração de renda, creche, sede social, etc. A CEF repassou os
recursos ao município, as obras iniciaram, futuros moradores começaram a tra-
balhar no mutirão, só que os repasses para a remuneração dos trabalhadores
não ocorreram, também eles entraram no sistema de contingenciamento das
despesas do governo. Sem comentários.
10
Cf. http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?p_secao=22 – “O programa trata da opção de compra de
unidades habitacionais de interesse social. A nova modalidade de contrato torna o morador proprietário do imóvel, como
refere o nome. Assim, casa e todas suas benfeitorias podem ser transferidas, desde que atendidos alguns requisitos
legais. Além disso, o programa atende antigas reivindicações dos moradores: a garantia da escritura de sua casa e o
pagamento das prestações por tempo determinado. O Demhab parcela o valor da casa em até 240 meses. O contrato de
superfície garante que a área seja utilizada exclusivamente com o fim de habitação de interesse social, protegendo as
terras públicas de especuladores imobiliários. As casas e apartamentos construídos pelo Demhab eram entregues
mediante um contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Agora há uma nova opção de contrato: o Contrato
de Direito de Superfície.”
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
113
11
O regimento interno do CMDUA, assim como o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre,
encontram-se disponíveis em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/.
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114
12
Vide http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/lei_do_urbanizador_social_ok.pdf.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
115
Conclusões
Sem ter a pretensão de chegar a conclusões exaustivas, mesmo porque aqui apenas
se relataram algumas situações exemplares, seria possível sugerir x níveis de conse-
qüências políticas sobre o funcionamento dos conselhos setoriais em Porto Ale-
gre. Ressalvando que não estou incluindo entre estes o Conselho do OP, que tem
um caráter diferente e mereceria toda uma outra discussão em separado.
A. A simples existência de espaços abertos para a participação popular, aqui en-
tendida como a participação direta ou via entidades ligadas aos movimentos
sociais de base, não significa, nem garante necessariamente um maior controle
popular sobre as políticas públicas. No caso de Porto Alegre, essas políticas
continuaram a ser definidas basicamente no âmbito interno das secretarias de
governo. O apelo à participação popular se traduziu mais como um apelo ao
endosso a essas políticas do que propriamente uma abertura para um processo
de autoria popular. Os setores comunitários organizados não apresentaram
condições de atuação estratégica que os qualificassem para uma intervenção
mais autônoma nesses espaços. Quando não atuando em parceria com o go-
verno, dependeram de movimentos de outros partidos políticos para incidir
sobre questões de seu interesse mais pragmático.
B. Em todas as situações analisadas, é quase sempre relativamente fácil ao governo
concentrar e filtrar as informações estratégicas relevantes, dosar a sua publicidade
e pautar a dinâmica de funcionamento dos conselhos. Isso só não ocorre quando
há a interferência de ONGs e de outros partidos políticos. Os setores comunitários
não conseguiram até aqui construir uma estrutura mais autônoma de intervenção,
o que os leva a depender de recursos de poder externos nos momentos de disputa.
C. Mesmo em governos em tese comprometidos com as bandeiras dos movimen-
tos sociais, há sempre uma pesagem de custos e benefícios políticos no
enfrentamento de determinadas questões. Ou seja, quanto mais os conselhei-
ros passam a utilizar o espaço de deliberação para a sua própria organização
em parceria com o governo, menos recursos de poder passam a ter.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Estudo de caso
Conflitos em torno do direito à moradia
na região central de São Paulo
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
Renato Cymbalista
Doutorando em Arquitetura e Urbanismo,
coordenador do Núcleo de Urbanismo
do Instituto Pólis
Weber Sutti
Arquiteto, pesquisador do Instituto Polis.
<weber@polis.org.br
Por mais de três séculos após sua fundação em 1554, a cidade de São Paulo
correspondeu ao território situado entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí, na
chamada colina histórica da cidade. A partir de meados do século XIX, com o
aumento do papel estratégico da cidade e da importância das conexões com o
Porto de Santos e com o vasto interior paulista, São Paulo passou por um gigan-
tesco crescimento em área e população. A região que por séculos abrigou o con-
junto da cidade foi assumindo cada vez mais a identidade de centro histórico.
Com o crescimento, a região central apresentou funções específicas no contex-
to da cidade: acolheu o glamour dos cafés, teatros e cinemas; os bairros nobres das
elites em Campos Elísios e Higienópolis, inaugurando o crescimento da parte rica
da cidade no cone sudoeste; os equipamentos terciários como as sedes de bancos,
a Bolsa de Valores, as funções governamentais da cidade e do estado, e também,
em algumas partes, as faces – por vezes explícitas, outras invisíveis – da pobreza e
da moradia superdensa do operariado nas vilas e nos cortiços. Foi também na
área central que se instalou grande parte da população de rua da cidade.
O Centro da cidade não se constituiu como território homogêneo e foi histo-
ricamente dividido em sub-regiões. A partir da década de 1940, o chamado “tri-
ângulo histórico” da cidade, região circunscrita pelas ruas Direita, XV de Novem-
bro e São Bento, perdia as funções residenciais e assumia cada vez mais as funções
terciárias, sediando os setores financeiro e administrativo da cidade. Parte do co-
mércio elegante, assim como a ocupação vertical da elite e da classe média, se
redirecionou para a região do outro lado do Vale do Anhangabaú, constituindo o
chamado “Centro Novo”, na região da Praça Ramos de Azevedo, Praça da Repú-
blica, Rua Barão de Itapetininga e Avenida São Luiz.
Embora fosse um espaço hierarquizado em alguns subterritórios, o Centro de
São Paulo foi durante grande parte do século XX um espaço de convivência entre
todas as classes sociais da cidade, coexistindo (não sem conflitos) sedes de grandes
empresas, vendedores ambulantes, luxuosos edifícios residenciais, a vida religiosa,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3
1
Para tentar adaptar-se a esse modelo, o Centro de São Paulo teve, via de regra, o comprometimento de espaços públicos
e equipamentos sociais para a expansão viária. Como exemplos, temos a Praça da República, o Parque Dom Pedro II,
dentre outros.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4
2
Apenas no fim da década de 1960 o centro deixa de ser o metro quadrado mais caro da cidade, posto assumido pela
Avenida Paulista. Hoje em dia a Paulista divide este status mercadológico com a região da Faria Lima e Berrini e outras
áreas do quadrante sudoeste. No entanto, o centro nunca teve uma baixa no seu valor do solo, que apenas se manteve
estável gerando outro paradoxo que é “quem pode pagar não quer morar e quem quer morar, não pode pagar”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5
dos grandes proprietários, ganha força a idéia de que o Centro precisava de uma
“revitalização”, significando uma iniciativa de retorno de uma sociabilidade de
classe média e de elite às áreas centrais.
No ano de 1991 é fundada a Associação Viva o Centro, a partir da explicitação
dos interesses de proprietários, comerciantes, empresários, mas sobretudo do setor
bancário e financeiro, com claros interesses em materializar a valorização, a
reelitização, por meio de uma agenda em torno da recuperação do Centro para as
atividades da classe média e da elite da cidade. A Associação Viva o Centro tem
como maior patrocinador o Bank Boston, em cujas dependências está localizada
a sua sede desde a fundação.3
A Associação Viva o Centro (AVC) tem historicamente se posicionado a favor
do aumento de acessibilidade de automóveis nos calçadões do Centro histórico,
seletivos aos empresários e executivos; pelo embelezamento superficial e generali-
zado de praças e monumentos; pela priorização do uso do Centro para o turismo
e para os turistas e pelo aumento do policiamento ostensivo.
Do ponto de vista dos setores populares, além de tradicional local de trabalho
e de circulação, partes das regiões centrais da cidade historicamente constituíram-
se como local de moradia, principalmente nos cortiços. Esses se disseminaram
como tipologia padrão de moradia das classes operárias, trabalhadoras e dos po-
bres, nos locais menos valorizados e desinteressantes para as atividades comerciais
ou degradados pela saída das classes mais altas. As lutas sociais na região central
de São Paulo têm origens bastante antigas, remontando às reações às políticas
higienistas do início do século XX. A agenda dos direitos humanos, no entanto,
chega aos setores populares de forma mais sistemática com a organização de mo-
vimentos de luta por moradia e movimentos de moradores de cortiços, a partir
dos anos 1980. A Associação dos Trabalhadores e dos Quintais e Cortiços da
Região da Mooca são exemplos da resistência e luta por melhores condições de
vida nos distritos centrais desde os anos 1970. Além dos moradores de rua, há
outros usos populares da região como o comércio ambulante popular, grupos de
cultura popular, feiras de artesanato e regionais, movimentos de moradia, coope-
rativas de reciclagem (os carroceiros), entre outros.4
Os grupos localizados de moradores que lutam contra despejos e por outros
direitos foram agregando-se em articulações mais amplas. Uma das primeiras
foi a Unificação das Lutas de Cortiços (ULC) que nasceu em 1988. Em 1997, a
partir de uma dissidência da ULC, foi fundado outro movimento, o Fórum dos
Cortiços. No ano seguinte, outra dissidência da ULC e é criado o Movimento de
Moradia do Centro (MMC). No ano 2000, a partir do Fórum dos Cortiços,
nasce o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). Desde então surgiram
outros movimentos menores que também lutam pelo direito à moradia digna
no Centro de São Paulo.
3
Ver anexo 2, das associadas à Associação Viva o Centro.
4
Não se trata aqui de defender que o Centro deva pertencer somente às camadas populares, muito menos aceitar as
condições totalmente impróprias com as quais são forçados a conviver, por exemplo, os moradores de rua, dos cortiços,
os ambulantes que se sujeitam a precaríssimas condições como forma de sobrevivência.
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6
res cidades do país, inclusive cidades médias, têm suas áreas centrais despovoadas,
principalmente por causa dos altos preços da terra, do empobrecimento da popu-
lação, da dinâmica do mercado imobiliário e da ausência de atuação do estado
por meio de políticas urbanas e fundiárias. Da mesma forma, é muito presente o
projeto de recuperação de centros históricos para atividades culturais e usos de
elites. O encaminhamento do conflito em São Paulo e a acomodação das forças
em disputa reforçarão um dos dois projetos para os centros históricos no país.
É importante ressaltar a existência de vários outros conflitos presentes na área
central, que fazem parte da disputa mais ampla a respeito de quem, e com qual
respaldo do poder público, deve ocupar essa parte da cidade – por exemplo, con-
flitos envolvendo os vendedores ambulantes, os catadores de materiais recicláveis,
os grupos de teatro popular e de teatro de rua.
Governo federal
Não se pode afirmar que o Centro de São Paulo foi objeto de atenção especí-
fica por parte do governo federal de forma prioritária, nem em relação à alocação
de investimentos. Se compararmos com a grande quantidade de equipamentos
federais existente no Rio de Janeiro, por exemplo, ou mesmo levando em conta a
forte presença das universidades federais nas áreas centrais das diversas capitais
brasileiras, a presença de equipamentos públicos federais no Centro de São Paulo
é reduzida. Ainda assim, é no Centro que se encontra a maior densidade de órgãos
públicos federais.
No entanto, nos últimos anos, verifica-se certa priorização na região central
para a instalação de equipamentos do governo federal. A Caixa Econômica Fede-
ral tem o projeto de centralizar suas atividades na região da Sé, saindo da Avenida
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8
5
Todavia não se compara aos equipamentos existentes no Rio de Janeiro, que possui uma densidade muito maior de
equipamentos federais, que pese o fato do Rio de Janeiro já ter sido a capital federal.
6
O site do programa é <www.monumenta.gov.br>.
7
Segundo a coordenadora do programa, Margareth Uemura, em 25 de julho de 2005.
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9
Governo do Estado
Diferentemente da estratégia do governo federal, as intervenções do governo
do estado para o Centro de São Paulo revelam que a região tem se tornado uma
prioridade crescente de intervenção pública.
Enquanto nas esferas municipal e federal a regra dos últimos anos foi a troca
de partidos e de projetos políticos no poder, o governo do estado de São Paulo é
ocupado desde o início da década de 1990 pelo mesmo partido (Partido da Social
Democracia Brasileira – PSDB). O fato atribui mais clareza ao sentido das inter-
venções, que poderíamos classificar como uma estratégia elitista para o Centro.
Dividimos essas intervenções em três vertentes principais:
1. O governo do estado elegeu o Centro da cidade como um de seus principais
focos de investimento em equipamentos culturais, em muitos momentos mai-
ores que os investimentos em habitação e de atendimentos básicos. São exem-
plos desses investimentos nos últimos dez anos: a construção da Sala São Pau-
lo; a restauração do Teatro São Pedro; a reforma da Pinacoteca do estado e do
Museu de Arte Sacra; a reforma do antigo edifício do Departamento de Or-
dem Política e Social (DOPS), cedido às atividades da Pinacoteca do estado; o
antigo Hotel Piratininga, transformado no centro de estudos musicais Tom
Jobim. A reforma da Pinacoteca do estado foi acompanhada pela renovação
do Jardim da Luz, que tem tido seu acesso mais selecionado e vigiado. Além da
reforma, a Estação da Luz ganhará um centro cultural da língua portuguesa
financiado em parceria com a iniciativa privada.
A instalação dos equipamentos culturais revela também uma hierarquização
interna aos territórios do Centro pelo governo do estado. Enquanto o Centro
velho e a região da Luz vêm acolhendo quase todos os equipamentos culturais
mencionados acima, outras regiões, que talvez possam ser chamadas de “peri-
ferias do Centro” ( os distritos do Brás, Liberdade, Campos Elíseos e Liberda-
de), recebem investimentos destinados às camadas populares, como os restau-
rantes populares (Urbs, 2002 a, p. 11).
Vale ressaltar que a maior parte desses equipamentos culturais é totalmente
impermeável ao público popular residente no Centro e não há nenhuma cam-
panha ou ação do governo do estado para que se interfira nessa relação. É
comum que as pessoas cheguem à Sala São Paulo em seu automóvel, assistam
ao espetáculo e vão embora sem o menor contato com o bairro, o que contri-
bui para maior segregação e uma espécie de museificação, com o objetivo ape-
nas de valorização imobiliária, e não humana, das regiões em questão.
2. Outro grande aporte na região é a construção da linha quatro do metrô que
conectará o Centro à rica região sudoeste da cidade. A nova linha vai transfor-
mar a estação da Luz no maior ponto de transbordo de transporte de massa da
cidade, com conexões para as linhas de trem urbano. A malha já existente de
trem urbano, reformada pelo governo do estado, busca qualidade e facilita sua
integração com o metrô nas estações Brás, Barra Funda e Luz.
3. Quanto aos órgãos administrativos, o governo do estado seguiu a tendência e,
em 2003, comprou oito prédios na área central, nas ruas Boa Vista e XV de
Novembro, destinados a acolher as secretarias de Habitação, Transportes Metro-
politanos e Emprego e Relações do Trabalho, além de cinco empresas estaduais:
Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU), Metrô,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10
Governo municipal
É na esfera municipal que se revelam com mais clareza os distintos projetos
políticos para o Centro de São Paulo: tanto o lugar que a cidade, direta ou indi-
retamente, proposital ou inadvertidamente, reservou para o seu centro nas últi-
mas décadas, quanto, mais recentemente, as divergências e contradições referentes
à disputa em relação ao projeto da prefeitura para o Centro. Essas disputas refle-
tem compromissos dos projetos também divergentes que distintos atores da soci-
edade civil e dos setores privados explicitaram para o Centro nos últimos anos.
INVESTIMENTOS E PROJETOS
Mesmo levando em conta o deslocamento das elites rumo ao sudoeste, o Cen-
tro da cidade jamais deixou de representar região prioritária para os investimen-
tos da prefeitura em qualificação dos espaços públicos da cidade, nem sempre
bem sucedidos em relação aos resultados esperados.
A gestão de Luíza Erundina (Partido dos Trabalhadores – PT - 1989-1992)
marcou o amadurecimento de um discurso que pregava a volta dos equipamentos
do governo municipal para o Centro. Em 1991, o gabinete da prefeita, antes no
parque do Ibirapuera, foi transferido para o Palácio das Indústrias. A ação pre-
tendia simbolizar a volta do poder público para o Centro da cidade.
Na década seguinte, diversas secretarias municipais voltaram ao Centro. A
prefeita Marta Suplicy prosseguiu o movimento, com a mudança das secretarias
de Saúde, Assistência Social, Cultura, entre outras. A Orquestra Sinfônica Muni-
cipal, a Orquestra Municipal de Repertório, o Balé da Cidade, as escolas de Mú-
sica e de Bailado e a administração do Teatro Municipal também se mudaram
para o Largo do Paissandu, em um edifício inteiramente reconvertido para ativi-
dades culturais.
8
Decreto 43.132 de junho de 1998 do governo do Estado
9
Segundo informação do portal do governo do estado de São Paulo: <http://www.saopaulo.sp.gov.br/acoes/cdhu.htm>
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11
10
Segundo informação do portal Vermelho <www.vermelho.org.br>, acessado em 27 de julho de 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
12
11
Segundo informação do portal Vermelho <www.vermelho.org.br>, acessado em 27 de julho de 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13
12
Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo – Lei 13.430, de 13 de setembro de 2002, art. 155.
13
Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo – Lei 13.430, de 13 de setembro de 2002, art. 171.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14
14
Paulo Teixeira na introdução do Programa Morar no Centro, março de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16
A AVC defende publicamente (por meio da Revista Urbs que edita, do seu site
na Internet, de boletins, seminários, conselhos em que participa e outros espaços
da esfera pública instituída) interesses que aparecem como bandeiras históricas,
tais como: melhoria do serviço de limpeza pública (intensificação da zeladoria
urbana), iluminação pública de melhor qualidade, maior acessibilidade dos auto-
móveis à região central (especialmente uso seletivo de automóveis nos calçadões
do centro histórico para executivos de empresas e bancos), retirada e destinação
de outros espaços da cidade para os vendedores ambulantes da economia infor-
mal (denominam de disciplinamento do uso do espaço público) e incentivo aos
investimentos públicos e privados em grandes equipamentos de uso cultural.
Recentemente, a AVC defendeu a requalificação do Pólo Luz – Santa Ifigênia
(região popularmente conhecida por Cracolândia, onde a prefeitura realizou, no
primeiro semestre de 2005, ações muito controversas de limpeza física – segundo
muitos atores, limpeza social – sendo acusada por entidades diversas de violação
dos direitos humanos dos que freqüentam, vivem e trabalham na região, expul-
sando e agredindo a população excluída, com uso de força policial, sem oferecer
alternativas concretas de inclusão social por meio de políticas públicas).
A Associação propõe também uma readequação do sistema viário no Vale do
Anhangabaú (com maior liberdade para circulação de veículos, a exemplo do
defendido para alguns calçadões do centro histórico); construção de garagens sub-
terrâneas (que estimulariam e facilitariam o uso do transporte individual no Cen-
tro); implantação de um sistema territorializado de zeladoria urbana, segurança e
fiscalização, entre outros.
Os atores que integram a AVC representam empresas, bancos, federações, sin-
dicatos patronais, associações comerciais e empresariais. A AVC possui ainda um
Programa de Ações Locais que, segundo a própria Associação, possui milhares de
representantes de empresas e organizações, além de moradores do Centro.
Levantamento realizado em julho de 2005 no seu site na Internet, revela que a
AVC possui 124 associados, entre os quais, instituições de caráter e área de atuação
financeira: sete bancos nacionais privados; estatais e multinacionais; três associa-
ções de bancos; a Bolsa de Valores de São Paulo e a Bolsa de Mercadorias & Futuros
– nada menos que o coração do mercado financeiro e de investimentos do Brasil.
Entre outros associados, ligados ao setor patronal e empresarial podemos citar
instituições de peso considerável na economia da cidade, do estado e do nosso país,
tais como: Federação Brasileira das Associações de Bancos (Febraban), Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Federação de Hotéis, Restaurantes,
Bares e Similares do Estado de São Paulo, Federação do Comércio do Estado de São
Paulo (Fecomércio), Federação Interestadual das Instituições de Crédito, Financia-
mento e Investimento (Fenacrefi). Participam também a Associação Nacional das
Corretoras de Valores, Câmbio e Mercadorias (Ancor) e a Associação Nacional das
Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi).
Chama a atenção o número de órgãos do governo do estado de São Paulo
associados à AVC: Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo; Empresa Metro-
politana de Planejamento da Grande São Paulo (Emplasa), Empresa Metropoli-
tana de Transportes Urbanos de São Paulo (EMTU), Escola Estadual de São Pau-
lo, Polícia Civil do Estado de São Paulo (Delegacia de Turismo – Deatur); Polícia
Militar do Estado de São Paulo (7o BPM-M); Secretaria de Estado da Educação;
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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15
Para conhecer a lista completa das entidades participantes do Fórum Centro Vivo, ver o Anexo I.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18
É importante frisar que, certamente, além desses, existem outros atores que
possuem e defendem interesses para o centro da cidade (de proprietários e investi-
dores a militantes populares). Entretanto, identificamos essas duas articulações
de importância central e que foram instituídas com o claro propósito de propor
transformações, disputar e influir nas políticas públicas e nos investimentos da
região: a Associação Viva o Centro e o Fórum Centro Vivo.
Em uma análise mais qualitativa desses atores, podem-se notar diferenças muito
importantes, muitas vezes antagônicas e contrárias. Se essas diferenças são visíveis
nos textos e documentos produzidos, elas ganham cores mais forte nos discursos e
nas práticas e formas de atuação, de advocacia e articulação.
Para contextualizar e exemplificar, o Centro de São Paulo passa, em 2005, por
um intenso processo dirigido de elitização, glamorização e limpeza patrocinado
pelos poderes públicos municipal, com apoio do poder público estadual e de de-
cisões importantes do poder judiciário.
Tanto o discurso como as ações oficiais têm objetivos de limpeza física, acom-
panhado de limpeza social, da população mais vulnerável. Assistimos atualmente
ao gradeamento (fechamento) de parte de praças públicas (Praça da República e
Praça da Sé), bem como ação bastante repressiva das Polícias Militar e Civil e da
Guarda Civil Metropolitana junto aos vendedores ambulantes e trabalhadores da
economia informal. Entidades dos Direitos Humanos e a imprensa mostraram e
denunciaram recentemente que as crianças e adolescentes de rua foram, em diver-
sas situações, retiradas das ruas com uso de força policial (o que é proibido pela
lei federal do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA).
O poder judiciário, em poucos meses, decretou diversos mandados de reinte-
gração de posse e despejo dos moradores dos cortiços onde moram os mais pobres
e ocupações dos movimentos organizados de moradia. A prefeitura, por meio da
Secretaria da Habitação, interrompeu diversos programas habitacionais impor-
tantes que estavam em andamento no ano de 2004, como Bolsa-Aluguel e o
Programa de Locação Social, voltados ao atendimento das famílias com renda
inferior a três salários mínimos. O Programa Perímetros de Reabilitação Integra-
da do Habitat (PRIHs) também foi interrompido, o que é preocupante pela inter-
venção estratégica em territórios com alta densidade de população excluída, de-
gradados e com potencial para reabilitação em áreas de Zeis.
O Programa Ação Centro, que conta com financiamento de aproximadamen-
te US$100 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), possui o
Conselho Ação Centro, paritário (no qual o FCV e a AVC têm assento), que
deveria realizar reuniões bimensais, mas que, neste ano de 2005, ainda não con-
vocou nenhuma. Diversas ações do governo atual mostram tendência à terceirização
e à privatização, interrupção do processo de descentralização administrativa nas
áreas da saúde e educação, bem como interrupção, fechamento ou pouca atenção
e valorização das instâncias e mecanismos de participação e controle social insti-
tuídos e vigentes (conselhos, comissões e comitês municipais).
Nota-se que a AVC não se posicionou diante das graves e visíveis violações que
acontecem no Centro, apesar de citar no seu sítio na Internet a preocupação com
a cidadania, a democracia, com o desenvolvimento econômico e social e com o
atendimento da população em situação de rua. Ao contrário, mostra-se satisfeita,
desde que no conjunto das ações suas prioridades e sua pauta sejam incluídas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19
Mas a satisfação não é plena – o Centro, apesar de tudo, ainda contém certo grau de
popularização, como a presença dos vendedores ambulantes nas praças e calçadas.
Por essa conjuntura, os integrantes do FCV têm se reunido e discutido for-
mas efetivas e articuladas de resistência, organização e denúncia local, regional
e internacional das violações dos direitos humanos patrocinadas pelo estado,
pela prefeitura e pelos proprietários. Isso acontece especialmente nas reintegra-
ções de posses e despejos forçados de ocupações dos movimentos de moradia
(ocupados por milhares de sem-teto pobres, cuja maioria é de mulheres, crianças
e idosos), quando a polícia age com muita violência, promovendo agressões
físicas e prisões.
O quadro das articulações e da organização dos atores sociais e econômicos da
região central nos permite concluir, ao menos por enquanto, que se a disputa e a
luta pelo Centro sempre existiu na história da cidade, atualmente os atores estão
mais organizados e pró-ativos, de ambos os lados. Entretanto, há um gigantesco
desequilíbrio de poder econômico e político entre as partes – fato que, aliás, tam-
bém foi regra no passado.
Dessa forma, o programa Ação Centro foi estruturado nos primeiros anos da
gestão Marta Suplicy, negociado com o BID durante longo tempo e assinado
somente em junho de 2004. Durante esse período ocorreram diversas mudanças
administrativas para a realização do programa. A transferência do órgão gestor
do programa (o Procentro) da Secretaria Municipal de Habitação (SeHab) para a
Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), que depois resultou na substituição
da Coordenadoria Procentro pelo Fórum de Desenvolvimento Social e Econômi-
co do Centro de São Paulo, é um bom exemplo.
Essas mudanças demonstram a prioridade com que foi tratado o assunto pela
gestão municipal, e o esforço de viabilizar recursos para investimento em São
Paulo, financeiramente sufocado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Concepção do programa
O projeto é, ao mesmo tempo, espelho e alvo de muitas disputas que ocorrem
no Centro de São Paulo. O papel do poder público local – fundamental para a
viabilização do programa e para a definição, no decorrer do longo processo de
negociação com o BID, de seus rumos - é intenso em disputas e revelador de
grandes contradições.
Em uma primeira proposta de intervenção no Centro a referência foi o docu-
mento “Reconstruir o Centro”, elaborado ainda na campanha eleitoral:
[...] as ações propostas se espraiavam por uma área bastante vasta,
coincidindo com a própria área da então Administração Regional
da Sé [além da atual subprefeitura da Sé os distritos do Pari e
Brás]. À medida que a negociação com a instituição financeira foi
evoluindo e por orientação dela própria, houve uma focalização
das ações de forma a obter efeitos de sinergia. As ações vastamente
pulverizadas corriam o risco de não se potencializarem umas às
outras e o programa diluir-se por uma área por demais vasta.
(Silva, 2004, p. 28)
Essa visão é questionável, uma vez que as ações pulverizadas podem trabalhar
no intuito de diminuir as segregações intra-urbanas. Porém, as ações geram menos
impacto nas áreas escolhidas e dão sentido à posição descrita abaixo:
Através da visão dos gestores do banco, que “sempre querem que
haja recuperação dos custos”; [...] o indicador de sucesso é a
valorização imobiliária; defendem sistemas não subsidiados;
querem que o projeto se pague, caso contrário o banco não finan-
cia [...]. A imposição da racionalidade da recuperação de custos nos
projetos começa na etapa preliminar de sua formulação e na
escolha de indicadores que serão utilizados para avaliar a taxa de
retorno de cada intervenção. Uma das gestoras descreve como a
lógica financeira do banco é transportada para a dos projetos: “Os
cálculos são de economistas, baseados nos interesses dos bancos.
Na realidade, não fazem uma análise sociológica das intervenções,
mas uma análise bancária. [...] Sempre afirmamos que os indicado-
res de ganhos econômicos eram contrários aos indicadores sociais.
Enquanto o banco quer reduzir a população pobre no centro,
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21
16
Silvia Schor no Café com Centro – debate com o Fórum Centro Vivo em julho de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22
Desenhos de Gestão
De acordo com exigência contratual do BID, era necessária a existência de um
conselho com participação da sociedade civil para monitoramento dos investi-
mentos a serem executados através do empréstimo. Nesse sentido, a Emurb, por
meio de reestruturação institucional, criou a Agência de Desenvolvimento do Cen-
tro, o Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro de São Paulo e
a Coordenação Executiva Ação Centro. A missão da primeira é a de constituir-se
num agente facilitador e de fomento tanto das atividades econômicas já existen-
tes no Centro quanto de novas atividades que venham dinamizar a economia
local, o segundo tem mais um caráter representativo e deliberativo e o terceiro
possui um perfil mais operativo (Silva, 2004, p. 31).
O Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro de São Paulo é
composto pelos órgãos públicos e entidades da sociedade civil já representados na
Comissão Procentro; pelos membros da Comissão Executiva da Operação Urba-
na Centro; pelos membros do Conselho do Programa de Incentivos Seletivos; e
por todos os conselheiros que compõem o Conselho do Orçamento Participativo
da Subprefeitura Sé, do Conselho Municipal da Habitação e do Conselho Muni-
cipal de Política Urbana. Através do fórum foram realizadas duas séries de reuni-
ões temáticas, mas as deliberações e as definições nunca ocorreram através dele.
Já a Coordenação Executiva só se reuniu entre junho e dezembro de 2004 em
reuniões quinzenais, sempre com uma composição provisória que não conseguiu
encaminhar e efetivar a eleição, ou mesmo os critérios, de uma Coordenação efe-
tiva. Boa parte do trabalho da comissão era de deliberações sobre programas de
incentivo para a região central, o que por vezes desfocava o objetivo maior da
Coordenação que seria o acompanhamento operativo do programa.
Uma questão discutida no Fórum Centro Vivo é a criação pela Emurb de outro
conselho para o monitoramento e acompanhamento do programa Ação Centro
em vez de reforçar a estrutura participativa já existente na gestão municipal (Con-
selho Municipal de Habitação, Conselho Municipal de Política Urbana etc.). Um
dos argumentos utilizados foi que o recorte territorial do programa (apenas distri-
tos Sé e República) era único. Porém, a interpretação foi a de que a Emurb (e a
Associação Viva o Centro) queria maior controle sobre os recursos, saída possibi-
litada pela indicação de uma coordenação provisória.
Projetos
O programa estava estruturado em cinco eixos: 1. Reversão da desvalorização
imobiliária e recuperação da função residencial; 2. Transformação do perfil eco-
nômico e social; 3. Recuperação do ambiente urbano; 4. Transporte e circulação;
5. Fortalecimento institucional do município.
Segundo Arantes (2004, p. 150), entretanto, “o embate entre técnicos da pre-
feitura de São Paulo e do banco teve como principal ponto de discórdia a questão
habitacional e, especificamente, o programa de “locação social” destinado à po-
pulação de baixa renda (com menos de 3 salários mínimos). A prefeitura preten-
dia criar um importante estoque público de habitações na área central, para aten-
der as famílias excluídas de outros programas (inclusive do PAC-BID) por insufi-
ciência de renda. O banco teria se oposto “do início ao fim”, afirmando que não
aceitaria um grande volume de subsídios e que as experiências de parques estatais
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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RUA DO OUVIDOR, 63
Histórico
O prédio da Rua do Ouvidor, 63 foi construído por particulares na década de
1940, e em 24 de janeiro de 1950 foi desapropriado pelo governo do estado de
São Paulo. Desde então foi ocupado por diversos órgãos estaduais, sendo a Secre-
taria de Estado de Cultura a última a fazê-lo. Na década de 1990 o estado optou
por desocupar o prédio, que permaneceu fechado e sem uso até 1997.17 Em de-
zembro deste ano, o prédio foi ocupado pelo Movimento de Moradia do Centro
para pressionar o governo na implementação de uma política habitacional no
Centro da cidade. O governo do estado, através da Procuradoria Geral do Estado,
entrou com pedido-liminar de reintegração de posse no mesmo mês, alegando que
o edifício não oferecia segurança para seus ocupantes e a ele faltava infra-estrutu-
ra mínima (água e luz). Essa liminar foi concedida no próprio mês de dezembro
de 1997, mas nunca foi cumprida.
Em 1999 foi realizado, no prédio da Rua do Ouvidor, um laboratório de
projeto integrado e participativo para requalificação de cortiço,18 promovido pelo
Escritório Piloto da Escola Politécnica da USP e a Escola Politécnica de Torino.
17
A exceção de um zelador e sua família que durante todo esse período moraram no prédio.
18
Essa experiência foi publicada em 2002 pela FAUUSP e hoje encontra-se em segunda edição pela editora AnnaBlume
(ver Santos et al., 2002).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24
Nesse laboratório, que contou com a participação de mais de 130 pessoas entre
estudantes, professores universitários, pesquisadores e moradores, foi elaborada
uma proposta física para a reconversão do edifício em moradia popular demons-
trando a viabilidade técnica e financeira da proposta.19
A partir de 2003, a Assessoria Técnica Integra e alguns participantes do Labo-
ratório começaram a acompanhar o aprofundamento da proposta técnica e as
negociações para a viabilização do projeto, que, à época, havia alcançado certa
repercussão.
Na gestão Marta Suplicy o projeto não conseguiu ser viabilizado por progra-
mas municipais. As negociações com Secretaria de Estado de Cultura para a venda
do imóvel não progrediram e os encaminhamentos com a Caixa Econômica Fede-
ral, para viabilizar o projeto do Programa de Arrendamento Residencial, não fo-
ram priorizados para o edifício. Único, porém importante, ganho institucional
nesse período é a demarcação do prédio da Rua do Ouvidor como Zona de Inte-
resse Social no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo de 2001.
Em 2005, quando José Serra (PSDB) assume a gestão da cidade de São Paulo,
todas as ocupações dos movimentos de moradia organizados do Centro de São
Paulo ficam ameaçadas por liminares de reintegração de posse.20 Os procedimen-
tos para as suas efetivações são rapidamente encaminhados, em ação casada, a um
projeto de limpeza social no Centro da cidade ao arrepio do Plano Diretor Muni-
cipal que determina que a maioria dessas áreas sujeitas à reintegração se destinem
à habitação de interesse social.
Conflito
O conflito principal envolve os movimentos organizados de luta por moradia
e o poder público, que não assume o projeto anterior de fixar a população de
baixa renda nas áreas centrais. A postura atual da prefeitura é a de enfrentamento
com os movimentos e de utilização de canais jurídicos para desalojar ocupações já
existentes, além da paralisação de novos projetos e da regulamentação que pode-
ria garantir a oferta de novas unidades habitacionais para a baixa renda. Em um
movimento que parece articulado, o governo do estado promoveu ações de despe-
jo de seus imóveis e, em paralelo, a Justiça emitiu um mandado de prisão para
uma das principais lideranças de moradia da área central, dias antes da notifica-
ção de reintegração de posse.
Explicita-se nesse momento um embate entre a função social da propriedade,
o direito à moradia e à cidade e o projeto de valorização do Centro, o
patrimonialismo, e a responsabilidade do estado em garantir a segurança das pes-
soas que ocupam um imóvel de sua propriedade (razão alegada na liminar de
reintegração de posse).
19
Ressalvamos aqui todas as precariedades dos programas governamentais para áreas centrais de grandes cidades já
mencionadas na primeira parte deste trabalho.
20
Via de regra, esses processos são despertados pelo Ministério Público que aciona o estado, com imposição de multa
caso não atenda à sua responsabilidade de zelar por seu patrimônio. O que leva o estado a retomar processos de
reintegração já existentes.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25
A questão dos direitos é bastante relevante, pois toda a construção que funda-
menta o zoneamento de interesse social e a função social da propriedade relacio-
na-se ao conceito do direito à cidade, luta do campo democrático, que envolve a
resistência aos despejos forçados e a democratização da regulação urbanística. O
Brasil vem, inclusive, protagonizando internacionalmente, a partir de atores dos
movimentos de moradia nas áreas centrais, a carta mundial pelo direito à cidade
e a Relatoria Nacional pelo Direito à Moradia da ONU, que dedicou algumas de
suas atividades às visitas e interlocuções com os movimentos de moradia nas áreas
centrais em 2004.
O processo de negociação
Com o processo de reintegração de posse em andamento a partir de abril de
2005 foi acionada uma ampla rede, chamada de Grupo de Emergência, de atores
sociais que atuam pela reforma urbana e pelo direito à moradia para garantir os
direitos das 90 famílias moradoras do edifício da Rua do Ouvidor, um dos grandes
símbolos da luta por moradia popular no Centro de São Paulo. Esses atores perten-
cem aos Movimentos Sociais (MMC, UMM e CMP), às Assessorias (Casa Assessoria
Técnica e Integra Cooperativa), às ONGs (Centro Gaspar Garcia de Direitos Hu-
manos, Instituto Pólis, Cohre Américas). Além deles, há parlamentares (vereadores
Paulo Teixeira e Soninha – PT, deputados estaduais Mário Reali, Maria Lúcia Prandi
e Ítalo Cardoso – PT, e o senador Eduardo Suplicy – PT) e outras organizações. O
intuito dessa articulação é o de buscar canais de negociação com as três esferas de
governo, com o ministério público estadual e o judiciário.
Nesse processo, que durou menos de um mês (de 15 de abril a 13 de maio de
2005), foram realizadas mais de 30 reuniões com os órgãos envolvidos em busca
de uma solução para a situação, além do acompanhamento jurídico.
A proposta inicial era de saída imediata das famílias que receberiam uma aju-
da de custo de R$ 2.500,00 através do programa PAC-BID da CDHU. As famíli-
as, após o recebimento dessa quantia, seriam consideradas atendidas em sua de-
manda habitacional.
Por uma questão metodológica tentaremos descrever, mesmo que superficial-
mente, o papel e a postura de cada agente público envolvido nesse processo frente
às demandas e pressões do Grupo de Emergência:
Ministério Público Estadual: Começou o processo ao acionar o estado de São
Paulo a retomar a posse do imóvel, sob pena de multa diária de R$ 10 mil. Nota-
se que na sentença não havia nenhuma obrigatoriedade do estado atender a de-
manda habitacional dessa população. Quando acessado no final do processo de
negociação (vale ressaltar a dificuldade de acesso a esse agente, bem como a falta
de informação sobre como o processo havia sido encaminhado internamente)
mostrou-se irredutível da retomada do imóvel pelo estado devido “sua total falta
de segurança”, porém sensível ao processo em curso flexibilizando a multa e per-
mitindo margem maior para a negociação.
Secretaria de Habitação do Município de São Paulo: Procurada na tentativa
de garantir o direito à moradia das famílias com atendimento em programas
habitacionais como o Bolsa- Aluguel e Locação Social. Nunca estabeleceu um
diálogo sobre o caso, sempre alegando falta de verba e se eximindo da responsabi-
lidade de poder público municipal. Ficou evidente, pela negativa do diálogo, a
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
26
Conclusão
Este texto teve por objetivo analisar os conflitos na região central da cidade de
São Paulo, com foco na temática habitacional. Apontamos as atuações e os pro-
jetos dos governos federal, estadual e municipal, bem como o papel de distintas
formas de organização da sociedade civil. Para aprofundar esta análise, escolhe-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
28
21
Veja o site do Fórum Nacional de Reforma Urbana (www.forumreformaurbana.org.br).
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29
Referências bibliográficas
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São Paulo, ano VI, n. 26, maio/jun. 2002.
ARANTES, Pedro Fiori. O ajuste urbano: as políticas do Banco
Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. 2004. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), Universidade
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MOURAD, Laila Nazem. Democratização do acesso à terra em
Diadema. 2000. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Ur-
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NAKANO, Kazuo; CAMPOS NETO, Cândido Malta; ROLNIK,
Raquel. Dinâmicas dos subespaços da área central de São Paulo. In: COMIN,
Álvaro Augusto; SOMEKH, Nadia (Coords.). Caminhos para o centro:
estratégias de desenvolvimento para a região central de São Paulo. São Pau-
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URBS. Revalorizar São Paulo para os próximos 450 anos. Urbs,
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______. Poder público no centro. Urbs, São Paulo, ano VII, n.
32, out./nov. 2003.
______. Calçadão urgente. Urbs, São Paulo, ano VI, n. 27, jul./
ago. 2002 b.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
30
22
Fonte: <www.vivaocentro.org.br>.
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33
Estudo de caso
Reforma universitária no Brasil:
1994–2005
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
Valdemar Sguissardi
Doutor em Ciências da Educação, professor
titular do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep)
vs@merconet.com.br
Introdução
Art. 1o – Esta Lei estabelece normas gerais da educação superior,
regula a educação superior no sistema federal de ensino e dá outras
providências. (Anteprojeto de lei da reforma da educação superior)
Para demonstrar essa hipótese, será examinada, no item 1 deste texto, a ques-
tão universitária ou da educação superior no Brasil no período de 1994 a 2002.
Nesse item, serão destacadas algumas características do sistema de educação
superior do país, entre elas: as restritas dimensões do campo, a diferenciação
institucional, a expansão do setor privado e a restrição gradativa do setor públi-
co, a desigual distribuição regional, a (má) distribuição por área de conheci-
mento, a concentração da pós-graduação no setor público e na região Sudeste
(em especial em São Paulo), a questão da avaliação (Provão), o modelo univer-
sitário predominante (e em franca expansão), isto é, da universidade de ensino
(em detrimento da universidade de pesquisa). Destacar-se-á, também, o esforço
de produção de um acervo legislativo ou de marcos regulatórios, durante esse
período, que, em grande medida, traduziram (ou coincidiram com) orientações
fundadas em algumas teses disseminadas em âmbito global por instituições e
organismos mundiais (Consenso de Washington, Banco Mundial, BID e OMC)
e por órgãos e institutos universitários no país (Núcleo de Pesquisas sobre Ensi-
no Superior/Nupes da Universidade de São Paulo/USP, entre outros). Esses mar-
cos, presentes na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e em outras leis, decretos e
portarias, balizaram a expansão restrita do setor público e a desenfreada expan-
são do setor privado no nível de graduação. Isso se efetiva de várias formas, por
medidas tais como de restrição do financiamento e da autonomia do setor pú-
blico federal e de liberação, com mínimos controles, da criação e do
credenciamento de instituições de ensino superior (IES) privadas, principalmen-
te isoladas ou no máximo constituídas como centros universitários (estes têm
autonomia para criarem cursos, mas sem a obrigação da produção de conheci-
mentos via pesquisa). Um lugar especial será reservado ao Plano Nacional de
Educação (PNE) para registro de sua importância política e de como, em razão
dos vetos presidenciais, quando de sua sanção em janeiro de 2001, tornou-se
uma simples “carta de intenções”, e não mais um plano orientador de políticas
de Estado.
No item 2, far-se-á breve apresentação das principais teses que têm orientado
as “reformas pontuais” da educação superior no Brasil e que, fundadas em espe-
cial no diagnóstico neo ou ultraliberal da economia e do Estado, assim como nos
documentos do Banco Mundial, do BID e da OMC, estão conduzindo a universi-
dade brasileira a transitar das adaptações dos modelos clássicos de universidade
(napoleônico ou humboldtiano) para os “modelos de ocasião”, fundados nessas
teses, que podem ser denominados de modelo da “universidade mundial do Ban-
co Mundial” ou de “modelo anglo-saxão”, para não se falar do modelo que está
sendo gerado na Comunidade Econômica Européia (CEE), a partir, especialmen-
te, da Declaração de Bolonha (1999). Esse “modelo de ocasião” pode ser também
caracterizado pelos qualificativos neoprofissional, heterônomo e competitivo ou,
ainda, como diz Chaui (1999), funcional e operacional.
No item 3, apresentar-se-á, em breves traços, o cenário da educação superior
durante os dois anos e meio do governo Lula. Cabe fazer rápida menção ao plano
de governo para a educação superior (diagnóstico e propostas que retomam parci-
almente o PNE), à legislação produzida (leis das PPPs, da Inovação Tecnológica,
do ProUni e do Sinaes, entre outras), que condiciona o alcance do novo antepro-
jeto de lei da reforma da educação superior.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4
1
Para esses dados contextuais, retomamos no essencial o que consta em Sguissardi (2002 a, p. 25 e 26).
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5
100%
80%
60%
40%
20%
0%
1992 1994 1996 1998 2000 2002
PÚBLICA PRIVADA
2
Segundo dados do Banco Mundial, já em 1994 o Brasil situava-se entre os países do mundo com maior taxa de
privatização da educação superior, no extremo oposto de países como França, Alemanha, Estados Unidos, Tailândia,
México, Venezuela, Argentina, Honduras, Bolívia, Itália, Espanha, Quênia, Panamá, Áustria, Suécia, Paquistão, cujo
montante de matrículas garantidas pelo fundo público, em cada um destes países, é superior a 75% (World Bank, 1994).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7
Tabela 1 – Evolução do número de matrículas por tipo de IES e sua natureza pública ou
privada – Brasil: 1994–2002
ANO BRASIL
TOTAL PÚBLICO PRIVADO
% 109 52 150
Fonte: 1. MEC; INEP. Evolução das estatísticas sobre educação superior no Brasil – 1980–1998. Brasília:
MEC, 1999; 2. MEC; INEP. Sinopse estatística da educação superior 2000. Brasília: MEC, 2003.
Tabela 1 – Distribuição das IES e das vagas segundo a natureza pública ou privada das
IES e região (números aproximados) – Brasil: 2000
Norte 5% IES 11 6 35 3 46 4
Vagas 26.301 11 23.353 2 49.654 4
Fonte: 1. IBGE; PNAD. População Residente. Brasília: IBGE, 1999. 2. MEC; INEP. Sinopse estatística da
educação superior 2000. Brasília: MEC, 2001.
Total D/N 2.694.245 100 482.750 100 332.104 100 72.172 100 1.807.219 100
Fonte: MEC/Inep. Sinopse estatística da educação superior 2000. Brasília: MEC/Inep, 2001.
3
O caso do Distrito Federal deve ser registrado. Em 2000, contava com cerca de 40 IES, mas com uma única pública (a UnB)
e 39 privadas, das quais 37 particulares ou privadas stricto sensu. Nesse ano, as vagas oferecidas foram 32.251, das
quais apenas 3.904 (12%) públicas e 28.347 (88%) privadas: 3.910 (14%) de IES comunitárias e/ou confessionais e
24.437 (86%) de IES particulares ou privadas stricto sensu.
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9
Fonte: MEC; INEP. Resultados e tendências da educação superior – Brasil. Brasília, ago. 2000.
Fonte: PIB: Banco Central do Brasil e Ipea (http://www.ipeadata.gov.br); impostos: Arrecadação da Receita
Administrada pela SRF (http://www.receita.fazenda.gov.br); recursos das Ifes: 1990–1994, MF/STN/CGC, 1995–
2001: Execução Orçamentária da União (http://www.camara.gov.br); desp. correntes do FPF: Execução Orçamen-
tária do Governo Federal e Balanço Geral da União. (Amaral, 2003, p. 188 – Extrato da tabela 5.46).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10
4
Para mais informações sobre a redução do financiamento das Ifes, ver Sguissardi (2005 b) e, em especial, Amaral (2003).
5
No ano de 2001, as FAIs eram 96 nas Ifes, com um crescimento de 129% em relação ao ano de 1995. (Amaral, 2003,
p. 183). Para mais informações sobre as FAIs, ver Sguissardi (2002 b).
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11
6
Para maior aprofundamento dessa questão, ver Sguissardi (2004).
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12
7
O artigo 7o do Decreto 2.306/97 reconhecia as IES privadas stricto sensu e assim as definia: “As instituições privadas de
ensino, classificadas como particulares em sentido estrito, com finalidade lucrativa, ainda que de natureza civil, quando
mantidas e administradas por pessoa física, ficam submetidas ao regime da legislação mercantil, quanto aos encargos
fiscais, parafiscais e trabalhistas, como se comerciais fossem, equiparados seus mantenedores e administradores ao
comerciante em nome individual”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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8
Os objetivos da utilidade, da eficiência e da eficácia do empreendimento educativo, retomados à outrance hoje pelos
ultraliberais, já estavam presentes na obra clássica de Adam Smith, Riqueza das nações (1983).
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14
9
A autoria é atribuída a Georg Psacharopoulos, Jee-Peng Tan e Emmanuel Jimenez, com colaboradores.
10
Para uma mais aprofundada análise dessa e demais teses, e suas conseqüências, que serão apresentadas neste texto,
ver Sguissardi (2005 b).
11
O Chile é elogiado, entre outras razões, por ter reduzido os gastos estatais com a educação superior. “No mesmo
período, a parte do gasto público destinada à educação superior, como porcentagem do PIB, diminuiu de 1,65 a 0,45%”
(World Bank, 1994, p. 33). A retomada dessa tese explicita-se em afirmações como: “No entanto, no setor de educação
há provas de que as inversões no nível terciário têm taxas de rentabilidade social mais baixas que as inversões no ensino
primário e secundário [...].” (World Bank, 1994, p. 14).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15
12
Como se viu em páginas anteriores, a partir de 1994, no caso do Brasil, recrudesce o processo de redução de gastos
públicos federais para as Ifes e de expansão da privatização desse nível de ensino.
13
O documento é atribuído ao consultor D. Bruce Johnstone (da Universidade de Buffalo, Estados Unidos), com a
colaboração de Alka Arora e William Experton.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16
14
Para uma melhor explicitação desse “novo” modelo de universidade, ver Sguissardi (2004).
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17
15
Na Carta, alguns compromissos se destacam: plano de governo que se sustente na redução da vulnerabilidade externa,
em reformas estruturais (tributária, agrária, previdenciária e trabalhista), no combate à fome, à insegurança pública e ao
déficit habitacional; 2. governabilidade via coalizão nacional, que implica processo exaustivo de negociação, alianças,
pacto social e crescimento com estabilidade; respeito aos contratos e obrigações do país, e não ao calote na dívida
externa e política austera de controle do endividamento público; segurança dos investidores não-especulativos; controle
inflacionário; equilíbrio fiscal; superávit primário, visando à capacidade de honrar compromissos (ver Sguissardi, 2005 a).
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18
16
“’Art. 2º, § 2º - Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a
usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.’
Em tese, e a princípio, a definição acima permite conceder/delegar ao setor privado a produção e o fornecimento
de bens e serviços públicos de uso gratuito, o que significa uma área de abrangência bastante ampla: manutenção do
patrimônio histórico e cultural, serviços de educação e de saúde em estabelecimentos públicos, preservação do meio
ambiente, saneamento básico, funções de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico em laboratórios públicos, por
exemplo, entre outras atividades. Serviços dos quais o Estado é o usuário direto, como os serviços de informática, também
poderão ser objeto de concessão administrativa sempre que abrangerem mais do que o simples fornecimento de mão-de-
obra, tiverem valor superior a R$ 20 milhões e prazo contratual superior a 5 anos (exigências gerais de todo projeto de
concessão em parceria)” (Juruá, 2005, grifos nossos).
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20
17
Para mais informações e análises sobre o significado do ProUni no âmbito das finanças públicas e da renúncia fiscal, ver
Carvalho e Lopreato (2005).
18
Dados fornecidos por Vera Flores, coordenadora da assessoria de comunicação do Ministério da Educação, em carta ao
Painel dos Leitores do jornal Folha de S.Paulo, em 25 de agosto de 2005.
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21
O risco de ações que lesem o patrimônio público das Ifes existe e talvez não
compensem no longo prazo as eventuais vantagens da existência dessas funda-
ções. A autonomia universitária a ser garantida por essa lei deveria poder compor-
tar e garantir as ações, atualmente necessárias, dessas fundações, quando as Ifes
ainda se encontram privadas do efetivo usufruto do estatuto da autonomia. Se,
com o implemento da autonomia por essa futura lei, ainda persistirem obstáculos
à plena participação das Ifes autônomas em operações administrativo-financei-
ras, que hoje somente as fundações têm condições de executar e que sejam impres-
cindíveis à manutenção e funcionamento das Ifes, talvez seja muito mais reco-
mendável a abolição desses entraves via lei específica do que a convivência com os
riscos anteriormente mencionados.
Outro capítulo importante do anteprojeto diz respeito à regulação da educa-
ção superior no sistema federal de ensino.
São nove artigos (33 a 41) dedicados à definição da função regulatória da
União e dos mecanismos a serem utilizados para tanto, entre os quais os que
articulam as ações de avaliação do Sinaes e as medidas de pré-credenciamento,
credenciamento e recredenciamento das IES, e de autorização de cursos.
Resta saber se o Sinaes (e a Conaes) terá sucesso na sua delicada fase de implan-
tação gradativa do sistema de avaliação e se haverá de se impor como critério e
âncora dessa imprescindível função regulatória de um sistema que, em especial em
sua face privada e comercial, até o momento viu-se muito pouco cerceado por
critérios de qualidade em sua rápida e incontrolada expansão.
O anteprojeto demonstra a preocupação dos proponentes com a democrati-
zação interna da gestão – autonomia na indicação dos dirigentes – e também com
a democratização do acesso, incluindo, pela primeira vez, numa lei de reforma da
educação superior, questões polêmicas como a das denominadas ações afirmativas
ou de inclusão social. O acesso e a permanência, no sistema, de alunos egressos do
ensino médio público, de afrodescendentes e indígenas, com ações de “nivelamento
educacional”, fazem parte desse cuidado com a democratização do sistema.
Mas, exatamente por tratar-se de questão polêmica, as determinações legais
restringem-se ao âmbito das Ifes. O mesmo vale para a assistência estudantil, a
que essas instituições oficiais serão obrigadas a destinar no mínimo 9% de sua
verba de custeio (artigo 54).
Dada a questão polêmica, neste estudo já referida, da proposta incluída na
agenda do Acordo Geral de Comércio e Serviços (AGCS), da OMC, de regula-
mentação dos serviços educacionais, em relação ao que o Brasil ter-se-ia manifes-
tado contrário, porque a educação é um bem público de interesse nacional, causa
estranheza que, no parágrafo 4º do artigo 13, das Disposições Gerais, se reconhe-
ça e permita a participação do capital estrangeiro nas entidades mantenedoras de
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24
Cada tipo de IES deverá, para fazer jus a sua denominação – universidade,
centro universitário e faculdade –, obedecer a alguns requisitos mínimos, em grau
de exigência decrescente.
Da universidade exige-se, entre outros:
I – estrutura pluridisciplinar, com oferta regular, em diferentes
campos do saber, de pelo menos dezesseis cursos de graduação ou
de pós-graduação stricto sensu, todos reconhecidos e com avaliação
positiva pelas instâncias competentes, sendo, pelo menos, oito
cursos de graduação, três cursos de mestrado e um curso de douto-
rado; [...]
III – um terço do corpo docente em regime de tempo integral ou
dedicação exclusiva, majoritariamente com titulação acadêmica de
mestrado ou doutorado;
IV – metade do corpo docente com titulação acadêmica de
mestrado ou doutorado, sendo pelo menos metade destes doutores;
e
V – indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. (artigo 18;
grifos nossos).
Considerações finais
Se o país não estivesse vivendo a crise política – do governo e do seu principal
partido – que fragiliza inegavelmente sua base de apoio no Congresso Nacional e
não fossem tão fortes os interesses do setor privado comercial da educação superi-
or representados nesse espaço político, talvez fosse correto prever a aprovação de
uma lei que, com todas as suas eventuais limitações, pudesse significar uma rup-
tura bastante significativa com o processo de reforma da educação superior em
curso nesta última década.
Entretanto, a crise existe e são muito profundas as marcas de um sistema uni-
versitário, no Brasil, caracterizadamente neoprofissional, em que mais de 90%
das instituições se identificam como instituições ou universidades apenas de ensi-
no. É forte a tendência de, mesmo as universidades que desenvolvem traços níti-
dos do modelo humboldtiano ou de pesquisa, tendo em vista a penúria de verbas
e os baixos salários, estarem se tornando universidades heterônomas, isto é, cuja
agenda de pesquisa e de criação de novas carreiras está obedecendo cada vez mais
a interesses externos vinculados a prioridades do mercado ou de agências que
valorizam certo tipo de pesquisa operacional muito mais do que a pesquisa básica
ou de áreas não valoradas do ponto de vista mercantil. São cada vez mais eviden-
tes as marcas da competição no campo científico-acadêmico, seja em razão da
gratificação de estímulo à docência (GED), seja pelo produtivismo acadêmico
engendrado em especial pelo modelo de avaliação da Capes, seja pela disputa
acirrada entre docentes pesquisadores pelos sempre insuficientes recursos destina-
dos à ciência e tecnologia. Finalmente, é grande o peso das estruturas vigentes na
educação superior no país, fortalecidas por “reformas pontuais” via legislação
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Referências bibliográficas
ANEXO I
Propostas
1. Ampliar, em quatro anos, as vagas no ensino superior, em taxas compatíveis
com o estabelecido no PNE (prover, até o final da década, a oferta da educa-
ção superior para, pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos).
2. Ampliar a oferta de ensino público universitário, de modo a projetar, no médio
prazo, uma proporção de no mínimo 40% do total de vagas, prevendo inclu-
sive a parceria da União com os Estados na criação de novos estabelecimentos
de educação superior (meta referenciada em dispositivo do PNE aprovado pelo
Congresso Nacional e vetado pelo presidente da República).
3. Promover o aumento anual do número de mestres e de doutores formados no
sistema nacional de pós-graduação em pelo menos 5%, em conformidade com
meta estabelecida pelo PNE.
4. Promover a autonomia universitária nos termos constitucionais, vinculando-a
à democracia interna, baseada na tomada de decisões por órgãos colegiados
representativos e no controle social mediante mecanismos abertos de prestação
de contas e de avaliação institucional.
5. Revisar a legislação de escolha de dirigentes nas Ifes compatibilizando-a com o
princípio constitucional da autonomia universitária.
6. Estabelecer e implantar medidas que visem diminuir a desigualdade de oferta
de cursos e vagas de graduação e pós-graduação em termos regionais e de
interiorização.
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30
Estudo de caso
O Companheiro liberou:
o caso dos transgênicos no governo Lula
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2
Os compromissos de campanha
Durante a corrida presidencial de 2002, a Campanha Por um Brasil Livre de
Transgênicos1 enviou enquete a cinco candidatos questionando-os sobre as políti-
cas que adotariam em relação aos transgênicos, caso fossem eleitos. Lula foi um
dos três que responderam às perguntas e, na ocasião, formalizou o compromisso
de apoiar uma moratória à liberação do cultivo comercial e da comercialização de
transgênicos no Brasil por tempo indeterminado e de manter uma política de
controle rigoroso de atividades com produtos transgênicos.
Seu compromisso com a moratória aos produtos transgênicos até que todas as
dúvidas relativas à sua segurança para a saúde e o meio ambiente, assim como às
questões relativas ao mercado, estivessem resolvidas foi firmado também em dife-
rentes momentos do programa de governo do PT (no Programa Meio Ambiente e
Qualidade de Vida,2,3 no Programa Vida Digna no Campo4 e duas vezes no Pro-
grama Fome Zero5).
Antes disso, ainda em 2001, em visita à comunidade de agricultores familiares
de São Mateus do Sul, no Paraná, durante a Caravana da Agricultura Familiar,
Lula disse que seria “no mínimo burrice” liberar os transgênicos no Brasil. E
continuou afirmando que “eu sou radicalmente contra [a liberação dos
transgênicos] e acho um retrocesso o governo fazer isso. Isso, na verdade, está
acontecendo porque, mais uma vez, a elite política deste país se rende ao fascínio
de uma multinacional”.6 Assim, fica a pergunta: o candidato mentiu a seus eleito-
res ou mudou de posição após assumir o comando do Planalto? Se o fez, ainda
não comunicou os motivos que o levaram a rever sua posição.
1
Ver anexo.
2
Um breve diagnóstico da situação do marco regulatório existente no país foi feito na página 12, assim como uma crítica
à legitimidade da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio): “De acordo com o princípio da precaução,
consagrado na Agenda 21, quanto ao potencial impacto dos transgênicos à saúde e ao meio ambiente, o Brasil ainda não
pode comercializar os organismos geneticamente modificados (OGMs). Mas o atual governo vem pressionando o Congres-
so a votar projeto de lei que facilita a liberação dos transgênicos, sem a necessidade de realizar estudos toxicológicos ou
ambientais preliminares. Recentemente, o Executivo baixou uma Medida Provisória (2.137/2000), conferindo amplos
poderes decisórios para a CTNBio, que já se mostrou abertamente favorável aos OGMs e tem tido, por isso mesmo, sua
representatividade diretamente questionada”.
3
Consta entre as suas propostas: [...] “Estabelecer ações integradas de controle, fiscalização e repressão a plantios
clandestinos e ilegais no país“ (p. 28, grifo nosso).
4
Lê-se na página 22 do Programa Vida Digna no Campo: “Manter a moratória provisória na produção, comercialização e
consumo dos produtos transgênicos, sem desprezar os investimentos públicos na pesquisa, até a definição do perfil do
mercado desses produtos, e o conhecimento científico sobre os seus reais impactos na saúde humana e no meio ambiente”.
5
A relação com a segurança alimentar é feita na página 50 do Programa Fome Zero: “A produção de sementes
transgênicas e sua disseminação entre os agricultores é também um problema de segurança alimentar”.
E na página 87 consta a seguinte análise política sobre fome, oferta e acesso a alimentos e o papel dos transgênicos:
“Coerentemente com o diagnóstico realizado de que o problema da fome do Brasil, hoje, não é a falta de disponibilidade
de alimentos, mas o acesso a eles, não concordamos com a justificativa de que a produção de alimentos transgênicos
ajude a combater a fome no país. Pelo contrário, a liberação da produção de transgênicos promoverá uma maior
dependência dos produtores dessa tecnologia que, além de mais cara, é monopólio de empresas multinacionais (cerca de
90% das variedades em teste no Brasil são patenteadas por apenas seis empresas multinacionais, que estão entre as
maiores do mundo). Além disso, agravaria a atual dependência por outras tecnologias associadas, como uso de herbicidas
e outros insumos, para os quais essas plantas são resistentes. O cultivo de produtos transgênicos poderá prejudicar o
acesso aos mercados externos importantes para o Brasil, que exigem áreas livres de transgênicos e pode promover uma
poluição genética com resultados imprevisíveis. Dessa forma, o Projeto Fome Zero apóia as propostas da Campanha
Nacional Por um Brasil Livre de Transgênicos, que envolve diversas entidades e ONGs ligadas aos movimentos sociais e
ambientais” (grifo nosso).
6
Depoimento gravado em vídeo (arquivo AS-PTA).
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4
7
Órgão vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia encarregado de emitir pareceres técnicos sobre a biossegurança
de organismos transgênicos. À época constituído por 18 titulares, seus suplentes e uma secretaria executiva também
vincula ao Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT). A CTNBio era composta por representantes de seis ministérios
(Ciência e Tecnologia, Saúde, Meio Ambiente, Educação, Relações Exteriores e Agricultura), dois representantes da
sociedade civil (defesa do consumidor e proteção à saúde do trabalhador), um das indústrias do setor de biotecnologia
e por oito pesquisadores.
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5
Apesar da ausência de dados oficiais, sabia-se à época que o plantio com se-
mentes contrabandeadas da Argentina estava concentrado no estado do Rio Gran-
de do Sul. Mais tarde, em 2004, o Ministério da Agricultura informou sobre a
safra de soja 2002–2003: dos cerca de 4 milhões de toneladas de soja transgênica,
no máximo, em um total de mais de 50 milhões de toneladas, 93% se concentra-
vam no Rio Grande do Sul8 (65% da área total com soja no estado).
Os primeiros movimentos
A forma de o governo resolver a situação foi editar uma medida provisória (a MP
113) para legalizar a comercialização da soja produzida clandestinamente, permi-
tindo que ela fosse vendida tanto no mercado interno como no externo.
Com outro tipo de atitude nessa ocasião, a situação de descontrole sobre os
plantios clandestinos vivenciadas nas safras seguintes poderia ter sido completa-
mente diferente. Para que isso acontecesse, o governo deveria ter agido no sentido
de reprimir a contravenção, baixando medidas para evitar a multiplicação de
plantios ilegais e que visassem à recomposição de estoques de sementes convenci-
onais e à reconversão das áreas. Mas o governo fez o contrário: cedeu à pressão
dos ruralistas e do governador do Rio Grande do Sul e, apesar de criticar a situa-
ção recebida pelo governo anterior, abençoou-a.
8
Dados do Ministério da Agricultura fornecidos ao deputado Edson Duarte (PV/BA) em resposta a requerimento de pedido
de informação (nº 2.081, de 2004).
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7
O trenzinho da Monsanto
Ainda durante o governo FHC, a Monsanto convidou um grupo de parlamentares
para ir aos Estados Unidos visitar sua sede. As organizações da campanha souberam
da iniciativa e articularam uma ação de denúncia, que acabou por abortar a viagem.
Em junho de 2003, já sob Lula, a proposta foi retomada, mas com nova cara: o
convite foi feito pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, e as passagens seriam
pagas pela Associação Brasileira de Sementes (Abrasem), que tem a Monsanto como
afiliada – com desembolso estimado em R$ 231.288,00.9 Dessa vez, a viagem saiu, e
a maior parte da comitiva recebeu as passagens e uma ajuda de custo de US$ 600 em
espécie das mãos da embaixadora dos Estados Unidos em Brasília, Donna Hrinak.
Embarcaram no “trenzinho da Monsanto” os deputados federais Josias Gomes
(PT/BA), Nilson Mourão (PT/AC), Paulo Pimenta (PT/RS), Zé Geraldo (PT/PA),
Fernando Ferro, Givaldo Carimbão (PSB/AL) e Luiz Carlos Heinze (PP/RS). Além
de ir à sede da Monsanto em Saint Louis e a órgãos do governo norte-americano, a
comitiva foi à África do Sul, onde a multinacional produz sementes de espécies
transgênicas e mantém campos experimentais. A passagem pela África não poderia
deixar de incluir uma visita a um famoso parque nacional para um safári.
Pelo governo, também viajaram o assessor do ministro-chefe da Casa Civil,
Érico Feltrin, que acompanhou, pela Casa Civil, o processo de elaboração do
projeto de lei, e Marcos Afonso, diretor administrativo do Ministério das Rela-
ções Exteriores.
Indagado sobre os aspectos éticos da viagem, Feltrin respondeu: “Eu não tinha
analisado o assunto sob esse aspecto. Nossa intenção é ter acesso a todo tipo de
informação sobre o assunto”.10 No governo FHC, Érico Feltrin ocupara cargo de
9
Informação do jornal Folha de S.Paulo, de 18 de junho de 2003.
10
Idem.
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8
11
Requerimento de Informação nº 2.081, de 2004.
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9
12
Informação do jornal Folha de S.Paulo, de 23 de agosto de 2003.
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10
13
Informação do jornal Folha de S.Paulo, de 3 de outubro de 2003.
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12
A MP marotamente modificada
Mesmo no calor da renúncia do senador João Capiberibe (PSB/AP) à vice-lide-
rança do governo no Senado e da saída do deputado Fernando Gabeira do PT
(RJ), ambos em protesto contra a edição da MP 131, o governo deu de ombros
às demonstrações de insatisfação de seus aliados e indicou o deputado Paulo
Pimenta, do PT gaúcho, para relator da medida provisória. Pimenta vinha se
destacando no partido como grande propagandista dos transgênicos, apoiando
todas as ações de pressão em favor da liberação na tentativa de ganhar prestígio
entre os grupos de agricultores gaúchos. A nomeação foi lamentada pelo depu-
tado Orlando Desconsi, também do PT gaúcho, e por outros petistas, que ma-
nifestaram seu descontentamento à imprensa. Em reação à crise, o presidente do
PT, José Genoíno, chegou a propor que o PT retomasse seu programa de gover-
no, sobretudo na área ambiental. Mas esses desgastes com a bancada do parti-
do, com o Judiciário e com a sociedade civil organizada pareceram não incomo-
dar o governo.
Repetindo a lógica da soja transgênica, introduzida ilegalmente, Lula
contrabandeou em uma MP sobre habitação popular um artigo que estendeu em
40 dias o prazo para que os agricultores que fossem plantar soja transgênica em
2003 assinassem o Termo de Compromisso, Responsabilidade e Ajustamento de
Conduta. A assinatura do termo, exigido pela MP 131, que liberou o plantio da
soja transgênica na safra 2003–2004, era necessária para que os agricultores con-
seguissem financiamento oficial. Ponto para o ministro Roberto Rodrigues, que
se acertou com o chefe da Casa Civil14 para passar o artigo por debaixo dos panos.
A rasteira, que também feriu as normas para edição de medidas provisórias, foi
levada a cabo com o presidente em viagem à Espanha, de forma a isolá-lo das
críticas. Repetiu-se a fórmula usada para a ocasião da assinatura da MP 131, que
ficou para o vice José Alencar.
14
Conforme declaração de Rodrigues à Agência Estado em 24 de outubro de 2003.
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14
15
Informação do jornal O Estado de S. Paulo, em 5 de novembro de 2003.
16
Informação da Folha Online, de 4 de novembro de 2003.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16
17
Declarações do ministro Aldo Rebelo à Agencia Estado, em 19 de maio de 2004.
18
Idem.
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17
Mas falar nesses termos não soaria bem. Logo, o movimento pró-transgênicos
no Senado manteve o discurso usado na Câmara, de defesa da ciência e do avanço
da pesquisa, mas destacando todas as promessas no campo da medicina que po-
dem advir da manipulação de células-tronco embrionárias. Essa foi a desculpa
usada para se defender a modificação do projeto, já que a Câmara já havia facili-
tado bastante o uso experimental de organismos transgênicos, até mesmo
flexibilizando sua introdução no meio ambiente.
Figuras conhecidas do lobby pró-transgênico começaram a circular pelo Con-
gresso em companhia das lideranças do movimento pela liberação da pesquisa
com células-tronco, que, repetidas vezes, levaram deficientes físicos para acompa-
nhar sessões do Senado em que havia chance de o projeto ser votado. Essas cenas
tomaram conta do noticiário e, com grande investida do Jornal Nacional (da
Rede Globo), a aprovação da lei de biossegurança passou a ser objeto quase que
de comoção nacional – de fato, a liberação dos transgênicos sequer era citada em
muitas das reportagens sobre o projeto de lei de biossegurança.
Nesse período, a campanha produziu documentos e uma série de cartas abertas
alertando os senadores para a falsidade e real objetivo desses argumentos. Tam-
bém se alertou sobre os aspectos inconstitucionais da proposta. O projeto aprova-
do na Câmara tornou a CTNBio a única e definitiva instância a avaliar e decidir
sobre liberações de pesquisas com transgênicos, não havendo, portanto, riscos de
uma suposta paralisação da atividade. Esse ponto havia sido objeto de negociação
e teve de ser cedido na Câmara para que se chegasse a um acordo para votação.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), órgão do Ministério do Meio Ambiente responsável pelo licenciamento
ambiental, foi crucificado no Senado, mas ninguém quis ouvir que a realização
dos estudos de impacto ambiental é atribuição do requerente, e não do Ibama.
Ou seja, uma empresa que leve, por exemplo, um, dois ou mais anos para realizar
os estudos depois de receber as orientações do Ibama, não pode atribuir ao órgão
a responsabilidade pelo prazo total do processo. Ruralistas e também membros
do governo, como o petista Aloísio Mercadante (SP), líder do governo no Senado,
miraram o licenciamento ambiental como sendo um tipo de burocracia que só
atrasa os empreendimentos e retarda investimentos e pesquisas.
Osmar Dias chegou a aprovar um projeto substitutivo ao da Câmara na Co-
missão de Educação, que ele presidia. O senador, além de querer agradar as em-
presas de biotecnologia, visava também contrariar as posições antitransgênicos de
seu rival político Roberto Requião (PMDB), governador do Paraná. Um outro
substitutivo, relatado pelo vice-líder do governo, senador Ney Suassuna (PMDB/
PB), foi aprovado em audiência conjunta de outras três comissões da Casa,19 pro-
pondo também a liberação rápida e facilitada dos transgênicos.
Em alguns pontos, o projeto de lei de Suassuna piorou o de Osmar Dias. Pro-
punha, por exemplo, a liberação definitiva do plantio da soja transgênica, sem a
necessidade de qualquer avaliação de riscos à saúde e ao meio ambiente.
19
Comissão de Assuntos Sociais, Comissão de Assuntos Econômicos e Comissão de Constituição e Justiça.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18
20
Voto do relator lido em 10 de novembro de 2004 na comissão especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei
2.401-B, de 2003.
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20
Repúdio
No período entre a aprovação da lei no Congresso e a sanção do presidente,
várias organizações se mobilizaram para cobrar de Lula que ele vetasse os arti-
gos da lei que davam poderem totais à CTNBio. Lula acabou por vetar alguns
artigos, mas não os que foram pedidos pelas entidades e movimentos. Após a
sanção da lei, a Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica, a AS-PTA,
o Centro Ecológico Ipê, a Fase, o Fórum Estadual da Segurança Alimentar e
Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul, o Fórum Nacional das Entida-
des Civis de Defesa do Consumidor, o Greenpeace, o Inesc, o MAB, o MST e a
Terra de Direitos divulgaram uma carta criticando a medida do governo, com
o seguinte conteúdo:
21
Informação do jornal O Estado de S. Paulo, de 11 de novembro de 2004.
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21
O olho do furacão
Os poderes e as atribuições da CTNBio são objeto de conflito desde sua criação,
em 1996. Seus integrantes deveriam ser especialistas em biossegurança, ou seja,
em avaliação de risco dos organismos transgênicos. Mas, na prática, isso nunca se
verificou. Sempre houve membros da Comissão que desenvolviam transgênicos e
eram, portanto, diretamente interessados na liberação desses produtos. Ao con-
trário do que ocorria, representantes de indústrias jamais poderiam ter assento na
Comissão, já que seus votos serão sempre balizados por interesses comerciais.
Ademais, representantes de determinados ministérios, como o de Relações Exteri-
ores e de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, dificilmente serão es-
pecialistas em biossegurança, tendendo a votar a partir de orientações políticas.
Todos esses fatores foram tirando o caráter técnico da Comissão, prejudicado
novamente pelo fato de suas decisões terem sempre sido tomadas por maioria
simples, evidenciando, com freqüência, falta de consenso entre cientistas para um
tema de natureza interdisciplinar.
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança teve seu jogo armado para ser
uma esteira rápida de liberação comercial de transgênicos, sempre em conformi-
dade com os interesses dos proponentes da biotecnologia, passando longe da
biossegurança.
A Comissão não é um órgão governamental e seus membros se reuniam uma
vez por mês em Brasília para deliberar sobre uma pilha de pedidos de pesquisa,
certificados de qualidade em biossegurança e uso comercial de transgênicos. Dos
oito pesquisadores titulares que compuseram a última Comissão, quatro eram
especialistas em biotecnologia, pesquisadores que desenvolvem organismos
transgênicos, o que está bastante longe da especialidade em biossegurança. Desses
quatro pesquisadores, dois eram conselheiros do Conselho de Informações sobre
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23
o casal fez questão de comprar sementes certificadas para garantir que elas não seriam
transgênicas, nem estariam contaminadas. Mas, ao fazer o pedido na cooperativa onde
costumava comprar seus insumos, o casal ouviu do vendedor que ali só se vendiam semen-
tes transgênicas (prática ilegal à época). O casal buscou, então, uma cooperativa de outro
município, onde conseguiu comprar as sementes não-transgênicas certificadas.
Mas os cuidados dos agricultores não acabaram por aí. Eles também foram os primeiros
do assentamento a fazer a colheita. Como a máquina é de uso coletivo, colhendo a soja
antes dos outros, ela viria sem contaminação de outras lavouras.
Ao entregar sua produção na cooperativa, os agricultores foram questionados sobre a
natureza da soja. Disseram que a produção era não-transgênica. Foi feita, então, uma
análise rápida, cujo resultado fica pronto na hora. Para espanto do casal, o resultado foi
positivo. Mesmo após todo cuidado que tiveram, a soja que eles estavam entregando,
segundo o teste, era transgênica. Além da decepção vivida, o casal ainda teve que
pagar o custo do teste de transgenia e uma taxa de R$ 1,50/saca (em vez de R$ 0,60),
por ter usado ilegalmente a tecnologia da Monsanto.
Para garantir que a taxa de uso da semente RR seria realmente cobrada, a Monsanto
contratou uma das maiores empresas de auditoria do mundo (a Price Waterhouse) e
espalhou auditores nos pontos de recebimento de soja no Rio Grande do Sul.
A história do casal militante antitransgênicos se espalhou na região. A partir daí, todos
passaram a declarar sua produção como transgênica, mesmo aqueles que sabiam que
tinham lavouras convencionais. O receio de todos era ter de pagar R$ 1,50 por saca em
vez de R$ 0,60.
Inconformado com a situação, o casal voltou à cooperativa acompanhado de um agrônomo
amigo da família e pediu uma nova análise da soja que havia entregue. Foi aí que a
situação foi esclarecida. Os resultados das análises estavam sendo interpretados de forma
incorreta, levando o técnico da cooperativa a classificar a soja convencional como transgênica.
Os kits de análise de transgenia, bem como as instruções de uso, foram fornecidos pela
Monsanto. É provável que os responsáveis pelo recebimento de soja nas cooperativas e os
cerealistas tenham sido mal informados, levando a esse tipo de erro. Enquanto os testes
prosseguem sendo feitos de forma equivocada, a Monsanto vai recolhendo taxas dos agri-
cultores de forma indevida. Com isso, as estimativas de produção de soja transgênica tam-
bém foram bem maiores que a realidade, reforçando a política do “fato consumado”.
COEXISTÊNCIA – A contaminação de lavouras de soja orgânica por grãos transgênicos
levou o empresário Paulo Moraes, proprietário da empresa Eco Brazil Organics Ltda., a
paralisar suas atividades e ter um prejuízo de US$ 3 milhões, em 2004. Além disso, 17
funcionários foram demitidos, e o nome da sua empresa no exterior foi comprometido.
“Nunca mais vou trabalhar com soja orgânica porque o Brasil corre o risco de estar
100% contaminado pela transgenia em quatro ou cinco anos, se nada for feito pelo
governo federal”, lamentou o empresário.
Atendendo a solicitações de seus clientes, o empresário começou a trabalhar com farelo
de soja orgânica em 2001. Para isso, investiu pesado em incentivos para agricultores do
Rio Grande do Sul, sobretudo das cidades de Passo Fundo e Treze de Maio. “Buscáva-
mos a soja orgânica do Rio Grande do Sul e levávamos para uma empresa em Santa
Catarina, que processava a soja e nos entregava o farelo”, contou.
“Em 2001, exportamos 3,5 mil toneladas de farelo orgânico, e os números só aumenta-
ram ano após ano. A nossa previsão para 2004 era de vender 10 mil toneladas de
farelo”, relatou. No entanto, casos de contaminação começaram a surgir em 2002. No
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25
22
Adaptado do texto “Death of the Central Dogma”, publicado no site do Institute of Science in Society (Isis). Disponível
em: <http://www.i-sis.org.uk/DCD.php >. Acesso em: 27 nov. 2005.
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26
ainda mais complexos. No caso dos transgênicos, isso evidencia quão difícil pode
ser a tarefa de se determinar uma única função de um único gene sem que isso
acarrete efeitos indesejados ou inesperados.
Estudos já mostraram, por exemplo, que tanto a dieta como o ritmo de vida
de uma mãe podem afetar os padrões de expressão dos genes no embrião e no
feto. Por sua vez, esses padrões determinarão a saúde do organismo no futuro.
Existem genes em filhotes de ratos que são resultado direto da forma como suas
mães os trataram na primeira semana de vida. Isso mostra que o ambiente envia
instruções à expressão dos genes.
Tais evidências também questionam a teoria clássica da seleção natural, segundo a
qual, por meio de mutações genéticas aleatórias, os mais adaptados, ou seja, os que
têm bons genes, sobrevivem e deixam um maior número de descendentes. As relações
entre ambiente e genoma têm se mostrado muito mais dinâmicas e recíprocas.
Já se sabe que muitas seqüências de genes que não codificam proteínas, tidas como
DNA lixo, participam da regulação do desenvolvimento e da expressão de genes.
Essas revelações recentes estão associadas a descobertas que indicam que o RNA, e
não só as proteínas, tem papel decisivo na transcrição da informação genética.
Tudo isso contradiz o Dogma Central, que postula um controle linear e
mecanicista da informação genética. E foi a partir dele que se cunharam as expres-
sões que nos acostumamos a ouvir com o avanço da biotecnologia, que conotam
grande precisão, como engenharia genética, recortar e colar, ou ligar e desligar
genes. Esses termos não só revelam sob qual paradigma científico eles se origina-
ram, mas também tentam transmitir à sociedade a noção de que a ciência tem
forte domínio da técnica e dos segredos da vida. Estamos, na verdade, longe disso.
Riscos associados
Estamos assistindo a uma aposta em uma tecnologia que envolve grandes incertezas e
riscos em sua maioria ainda desconhecidos e imprevisíveis, tanto que empresas como a
Monsanto não encontram seguradoras dispostas a assumir os riscos de suas atividades.
Além dos tão falados riscos à saúde e ao meio ambiente, há também aspectos
socioeconômicos e de autonomia que devem ser levados em consideração. Atual-
mente, apenas cinco empresas controlam dois terços do mercado de sementes no
mundo.23 Esse controle, quase monopólico dos recursos genéticos destinados à
produção de alimentos e fibras, é reforçado sobremaneira com o reconhecimento
de patentes sobre sementes. Isso ocorre, no plano nacional, por meio das leis de
propriedade industrial; no plano internacional, na Organização Mundial do Co-
mércio (OMC), por meio do acordo conhecido como Trips (do nome em inglês
Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights). Um país não pode ser
membro da OMC sem reconhecer os termos do Trips.
Disso resulta que agricultores que cultivam sementes transgênicas não podem
separar sementes para sua próxima lavoura, sob pena de serem acusados de viola-
ção de patentes. Só nos Estados Unidos, a Monsanto já processou mais de cem
23
MOONEY, P. R. El Siglo ETC: erosión, transformación tecnológica y concentración corporativa en el siglo 21. Montevidéu:
Grupo ETC, 2002.
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27
agricultores por suposto uso indevido de sua tecnologia. Para defender os direitos
que as patentes lhe conferem, a multinacional mantém um time de 75 pessoas
com um orçamento de US$ 10 milhões destinado a investigar e perseguir agricul-
tores que não seguirem à risca os termos do acordo que assinaram com a empresa
para usar suas sementes.24
O caso mais conhecido de disputa judicial entre a Monsanto e um agricultor
foi o do canadense Percy Schmeiser.25 Mesmo sem nunca ter usados as sementes
transgênicas da Monsanto, seus campos de canola foram contaminados por plan-
tações vizinhas. Isso foi suficiente para ele e sua família serem processados por
violação de patentes. Após vários anos de contencioso na Justiça e de recursos em
todas as instâncias, a Corte suprema do Canadá reconheceu que, independente-
mente de os “genes da Monsanto” aparecerem na propriedade da família contra a
vontade dela, prevaleceriam no caso os direitos da empresa. Percy perdeu a causa,
que pela repercussão ganha, serviu de recado a outros países mostrando que a
força da propriedade intelectual falará mais alto.
Há também questões mercadológicas a serem consideradas. Ao expandir a pro-
dução de soja transgênica, o Brasil, como segundo maior produtor e exportador
mundial do grão, abrirá mão de sua posição de único país capaz de abastecer o
mercado internacional com o produto não-modificado e de desfrutar economica-
mente dessa posição. Essa possível escassez vem preocupando consumidores, so-
bretudo na Europa. Em agosto de 2005, o Consórcio Varejista Britânico encami-
nhou uma carta ao presidente Lula manifestando sua preocupação com o fato de
as lavouras transgênicas estarem se espalhando pelo país. Na carta, também são
apresentados dados da rejeição da população inglesa aos alimentos transgênicos,
revelando que 79% não comprariam produtos transgênicos, e, mesmo que a segu-
rança desses produtos fosse comprava, 61% não os consumiria.
A União Européia vem adotando novas diretrizes para a rotulagem de alimen-
tos transgênicos e também para rastrear os produtos desde sua origem. Entrando
em vigor, passarão a ser rotulados também os alimentos derivados de animais
alimentados com transgênicos. Como a soja brasileira é exportada principalmen-
te para ração, ainda não se sabe ao certo o impacto que essas normativas trarão.
Mas nem por isso esse aspecto deixa de ser relevante.
24
THE CENTER FOR FOOD SAFETY. Monsanto vs. US farmers, 2005. Disponível em: <http://www.centerforfoodsafety.org/
Monsantovsusfarmersreport.cfm>. Acesso em: 27 nov. 2005.
25
Sobre o caso, ver o site <http://www.percyschmeiser.com/>.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
28
país. Feito isso, elas permitem, num primeiro momento, que o mercado ilegal de
sementes se expanda e, num segundo momento, pressionam, junto com produto-
res, para que os governos reconheçam e legitimem o fato consumado. Além do
caso brasileiro, isso ocorreu em vários outros países, como na Índia, na Romênia,
no Paraguai, na Argentina, na África do Sul e em países da África Ocidental.
Os ruralistas e as indústrias não estiveram sozinhos na empreitada de
desregulamentar o uso de transgênicos. Eles contaram com toda a dedicação do
líder do governo no Senado, o senador Aloísio Mercadante. Seus discursos repeti-
am todas as promessas das empresas de biotecnologia, que, até agora, não foram
comprovadas. Dizia o senador que os transgênicos conservam mais o solo, redu-
zem o consumo de agrotóxicos e até evitam o desmatamento, já que são mais
produtivos. Elencados os potenciais dos transgênicos, o senador concluía em seus
discursos que “os ambientalistas deveriam ser os primeiros a defender o uso da
biotecnologia na agricultura”.
Ao baixar três MPs para a soja transgênica, o governo firmou um estado de
anomia, no qual a estratégia da contaminação e da introdução ilegal de sementes
transgênicas passou a ser uma opção para as indústrias de biotecnologia, que até
agora não fizeram valer suas promessas.
Futuros conflitos
Com a liberação para plantio comercial da soja e do algodão transgênicos e das
demais culturas que podem vir, a Justiça passará a ser um ator cada vez mais
requisitado. Isso por três principais motivos: pela não-aplicação da lei de rotulagem
para alimentos que contenham transgênicos ou sejam derivados deles; por proces-
sos movidos por agricultores que cultivam orgânicos ou convencionais e tenham
suas lavouras contaminadas por vizinhos que plantam transgênicos; e pela
Monsanto ou por outras empresas alegando uso indevido de sua tecnologia e
violação de patentes.
Para quem dizia que queria, com a aprovação de uma nova lei, acabar com as
disputas judiciais acerca do tema, pode-se dizer que o tiro passou bem longe do alvo.
onde a empresa que desenvolveu o produto deve assumir seu risco, a Bayer teve,
em 2004, uma de suas variedades de milho transgênico aprovada para
comercialização, mas preferiu não a lançar no mercado até que as normas de
responsabilização estivessem clarificadas.
ANEXO
A Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos é uma rede que abriga ONGs,
associações, movimentos populares e grupos diversos. As entidades que integram
a campanha se comprometem com os princípios que a norteiam, entre eles: lutar
pela instituição do debate amplo e democrático sobre os transgênicos com a soci-
edade, pela aplicação do princípio da precaução, pela realização de estudos
criteriosos sobre a biossegurança dos transgênicos e pela avaliação dos impactos
da agricultura transgênica sobre a produção de base familiar. As entidades da
campanha defendem a agroecologia como modelo de produção para o campo e a
rotulagem plena de alimentos que contenham transgênicos. Todas suas manifes-
tações são pacíficas.
A seguir, listam-se cem organizações e redes que, em diferentes momentos, se
envolveram e realizaram ações de campanha contra os transgênicos:
Articulação Nacional pela Agroecologia (ANA); Confederação Nacional dos
Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação, Cooperativas de Cereais e Assalari-
ados Rurais (Contac)/CUT; Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agri-
cultura (Contag); Central Única dos Trabalhadores (CUT) Nacional; Federação
dos Trabalhadores na Agricultura Familiar na Região Sul (Fetraf)/CUT; Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Núcleo Agrário do Partido
dos Trabalhadores – Câmara Federal; Instituto Brasileiro de Defesa do Consumi-
dor (Idec); Centro de Tecnologias Alternativas e Populares da Zona da Mata (CTA-
ZM) – MG; Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimen-
to Agrário (Sinpaf) – Diretoria Nacional; Assessoar; Federação de Maricultores de
Santa Catarina (Famasc); Secretaria Nacional de Formação (SNF)/CUT; Assesso-
ria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA); Associação de Agri-
cultura Orgânico (AAO); Centro Ecológico de Ipê (CE-Ipê) – RS; CTA/Formad-
MT; Animação Pastoral e Social do Meio Rural (APR); Federação dos Trabalha-
dores na Agricultura do Estado de Tocantins; Terra e Direitos; Rede Nacional de
Advogados Populares (Renap); Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria; Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos; Fundação Rureco; Associação Gaúcha de
Proteção ao Ambiente Natural (Agapan); Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA); Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Espírito Santo; Rede
Ecovida de Agroecologia; Sinpaf – Seção Sindical do CNPA; Grupo de Trabalho
Amazônico (GTA); Instituto Terra Azul; Fetagro – Rondônia; Associação dos
Agricultores Biológicos do Rio de Janeiro (Abio); Rede de Mulheres Rurais da
América Latina e Caribe; Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR); Mo-
vimento dos Atingidos por Barragens (MAB)/Crabi; Associação Profissional dos
Engenheiros Florestais – RJ; Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e
Agronomia (Crea) – RJ; Sociedade Brasileira de Engenharia Florestal (Sbef); Mo-
vimento de Cidadania pelas Águas; Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do
Sul; Fundação Cebrac; Associação Ambientalista Pangea; Coalizão Rios Vivos;
Cetap; Comissão Pastoral da Terra (CPT); Cooperativa de Crédito Solidário
(Cresol); Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) – Chapecó/SC; STR –
Espumoso/RS; STR – Constantina/RS; Centro de Estudos e Formação Chico
Mendes – Toledo/PR; Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá; Instituto
Sociedade, População e Natureza (ISPN); Sindicato dos Sociólogos de São Paulo;
Centro Vianei de Educação Popular; Fase – Solidariedade e Educação; STR –
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
33
Estudo de caso
A rodovia BR-163
e o desafio da sustentabilidade
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
Ane A. C. Alencar
Geógrafa, pesquisadora na área
de planejamento regional do Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam)
ane@ipam.org.br
800 quilômetros, e em até sete dias a distância marítima, o que tem criado expec-
tativa nos investidores que já mostram interesse em plantar soja cada vez mais ao
norte, incorporando novas áreas da região amazônica no processo produtivo, por
causa dos menores preços e das menores distâncias do porto de exportação e do
mercado internacional.
O completo asfaltamento da Cuiabá–Santarém recebe apoio político e empre-
sarial muito forte, principalmente no norte de Mato Grosso, o que facilita a en-
trada da agricultura mecanizada em larga escala na região. É preciso desenvolver
mecanismos para maximizar os benefícios que a expansão dessa cultura pode
trazer para a região e minimizar seus impactos negativos sobre a cobertura vegetal
e as populações locais. Nesse sentido, o engajamento do setor agroindustrial com-
prometido com o desenvolvimento local, estendendo seus investimentos para ou-
tros setores que dinamizem a economia e gerem maior renda e igualdade social,
será determinante. Num cenário tradicional, o asfaltamento da Cuiabá–Santarém
deverá induzir a expansão da soja para o extremo norte do corredor, pois grande
parte do sudoeste paraense tem terreno de topografia acidentada e repleta de
afloramentos rochosos, inapropriado à mecanização. Logo, os platôs localizados
ao sul da cidade de Santarém representariam essas áreas prioritárias para a expan-
são do cultivo no oeste paraense. Além disso, as áreas planas da região estão a
poucos quilômetros do porto de Santarém, tendo por isso um dos menores custos
de transporte do país.
A soja pode constituir-se na base da economia do extremo norte e do sul do
corredor, ativando indiretamente outras atividades econômicas como avicultura,
suinocultura, pecuária, turismo e outros serviços que gerarem emprego e renda para
a população local. Não obstante, os ganhos estarão concentrados em pequenos
setores da sociedade que possuem a capacidade de efetuar altos investimentos, sem
alcançar a grande maioria da população do corredor, que simplesmente observará o
desenvolvimento passar e se localizar em alguns pólos. Embora existam empregos
secundários gerados pelas indústrias de fertilizantes, sementes, agrotóxicos, máqui-
nas, pelos restaurantes e pelas lojas especializadas para o setor do agronegócio, o
desafio será o de mudar o cenário de concentração de riqueza, fazendo com que a
indústria da soja possa, de fato, contribuir para o desenvolvimento da região por
meio da maximização dos benefícios da agroindústria e a minimização de seus
impactos sobre o meio ambiente e a população que habita o corredor.
O setor familiar rural, que engloba aqueles atores cuja mão-de-obra produtiva
é familiar, como a dos colonos e assentados, representa atualmente um dos grupos
mais ameaçados pela pavimentação da estrada. Entretanto, dependendo de como
o processo de planejamento que acompanha a pavimentação for conduzido, ele
terá o potencial de ser um dos mais beneficiados. Assim, esse grupo de atores é a
chave para o êxito social e econômico da obra, pois representa a maioria da popu-
lação rural do corredor com potencial produtivo que, se não for aproveitado,
pode gerar bolsões de pobreza nas cidades da região. Entre as ameaças ao grupo
de atores estão os problemas fundiários, a falta de infra-estrutura para a produ-
ção e a comercialização nos assentamentos e comunidades, a falta de organização
social e a inexistência de alternativas economicamente viáveis para o sistema de
produção agrícola atual. A maior parte desses produtores está concentrada ao
longo de travessões abertos na época da implantação dos projetos de colonização
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14
local contra a ação das instituições da sociedade civil na região, o que dificulta o
trabalho de disseminação, discussão e construção de uma proposta de desenvolvi-
mento local. As recentes ações dos órgãos do governo federal (Incra e Ibama) na
região, com a Portaria 10 e a medida provisória que interditou administrativa-
mente aproximadamente 8 milhões de hectares na região, têm acirrado o conflito
entre setor privado/governo local e as organizações sociais locais. O clima na re-
gião é de medo e de violência.
Apesar das diferenças regionais em termos de organização, e mesmo aquelas
divergências internas entre os grupos, os posicionamentos e as estratégias seguem
um padrão geral entre as regiões. Esses posicionamentos se fazem presentes na
dicotomia dos discursos utilizados tanto pelos movimentos sociais quanto pelo
setor privado empresarial. No discurso geral, os movimentos sociais acusam o setor
privado de pensar em beneficio próprio a qualquer preço, enquanto que o setor
empresarial acusa o movimento social de atrapalhar o desenvolvimento. Para que
cheguem a um consenso, é preciso desmistificar o que há por trás do discurso de
cada um e achar o ponto comum. Nesse caso, todos querem o desenvolvimento e a
pavimentação, entretanto é preciso que o setor empresarial e a população entendam
que a proposta de desenvolvimento dos movimentos sociais não é excludente. Ela
enfoca direitos e deveres de cidadãos que não são contra o desenvolvimento, pelo
contrário, querem aproveitar do mesmo em toda a sua magnitude e, para isso,
precisam de uma ajuda, que vai além da melhoria da infra-estrutura viária, para
incrementarem a produção e permaneceram com suas identidades.
Preocupados com as conseqüências da pavimentação da Cuiabá–Santarém – a
ocupação desordenada e a rápida apropriação dos recursos naturais da região –,
os movimentos sociais se organizaram de norte a sul da rodovia nos estados do
Pará e do Mato Grosso para discutir e debater, de forma participativa, os cami-
nhos do desenvolvimento para a região. O movimento começou modesto no Pará
em 2001 e foi ganhando força até que, em 2003, recebeu adesões de instituições
do movimento social do Mato Grosso. O grande objetivo era a construção e
implementação de uma proposta unificada de desenvolvimento regional para a
área de influência da Cuiabá–Santarém. A plataforma de discussão montada in-
cluiu dezenas de reuniões preparatórias em quatro sub-regiões na área de influên-
cia da rodovia denominadas de pólos. Os pólos encampavam as seguintes regiões:
Baixo Amazonas, BR-163 no Pará (sudoeste paraense), Transamazônica e centro-
norte do Mato Grosso. As reuniões preparatórias subsidiaram a realização de quatro
encontros regionais, que ocorreram de outubro a dezembro de 2003 nas cidades
de Altamira (Pará), Sinop (Mato Grosso), Santarém (Pará) e Itaituba (Pará) res-
pectivamente. Essa mobilização envolveu mais de 2 mil participantes, centenas de
lideranças locais e representantes de organizações do movimento social,
ambientalista e indígena do Pará e do Mato Grosso. Em março de 2004 foi rea-
lizado em Santarém um encontro de consolidação das propostas regionais apresen-
tando ações e proposições em cinco eixos temáticos: infra-estrutura e serviços bási-
cos rurais e urbanos; ordenamento fundiário e combate à violência no campo; es-
tratégias produtivas e manejo dos recursos naturais; fortalecimento social e cultural
das populações locais; e gestão ambiental, monitoramento e áreas protegidas. O
resultado do encontro foi publicado como a Carta de Santarém, lida e entregue
pessoalmente para os ministros do Meio Ambiente e da Integração Nacional, que
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19
Estudo de caso
Matar, morrer, “civilizar”:
o “problema da segurança pública”
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
A perspectiva adotada
O “problema da segurança pública”, alimentado cotidianamente pelos altíssimos
índices da criminalidade violenta que não cedem nem sofrem reversão significati-
va, revela feições que podem ser associadas à natureza de relações mais gerais que
presidem o funcionamento da sociedade brasileira. Mas, sob a expressão “funcio-
namento da sociedade brasileira”, algo pode ser capturado e muito pode ser dei-
xado de fora do campo de visão. A presente reflexão se dirige exatamente ao que
tem sido mencionado com pouca freqüência, ao que, de certa maneira, permanece
oculto no campo de discussão sobre a segurança pública. Evidentemente não se
tem a pretensão de estabelecer um novo paradigma ou trombetear uma originali-
dade que não faz parte dos objetivos do texto. A intenção é apenas salientar
certos aspectos de uma migração na maneira socialmente difundida de conceber e
tematizar relações de força implicadas na questão da segurança pública tal como
ela se configura na atualidade.
Historicamente, o “problema da segurança pública” no país esteve subordina-
do às disputas de riqueza e de poder, ou seja, aos conflitos de classe que implica-
vam – de acordo com os recursos politicamente amealhados – o maior ou menor
assédio ao estado como regulador dos processos ligados à desigualdade social.
Hoje, porém, o tema da segurança pública autonomizou-se, expressando uma
profunda mudança na percepção coletiva da vida social e, conseqüentemente, na
forma pela qual esse embate se delineia. Rebaixados das disputas pelo controle do
poder estatal e pela distribuição de direitos, certas dinâmicas relevantes dos con-
flitos de classe nas grandes cidades brasileiras restringem-se a aspectos da vida
cotidiana, expressando-se como confrontos entre categorias sociais difusamente
representadas no quadro de sentimentos de medo e de insegurança.
Certa vez, em uma conferência na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio) na década de 1970, Darcy Ribeiro afirmou que chegaria o dia
em que os ricos morariam em fortalezas cercadas de pobres por todos os lados. A
profecia se cumpriu. Arrebatado defensor da intervenção estatal, dotado de inte-
ligência invulgar, que certamente lhe permitiria acompanhar a dinâmica dos fatos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3
se fosse vivo, Darcy não poderia prever que a disputa entre ricos e pobres (ou a
questão da justiça social) sofreria tantos transtornos e distorções. Em vez de propor-
cionar um questionamento profundo das causas e dos modos de provisão de con-
trole social pelo Estado, permite o robustecimento da mentalidade da “segurança
apesar dos outros, no lugar da “segurança com os outros” (Bauman, 2001). Na
percepção social atual, todos os segmentos sociais, atingidos e assustados com a
violência cotidiana, culpam-se uns aos outros, desencontradamente, pela dissolu-
ção de um mítico ordenamento das relações sociais, calmo e previsível, que prova-
velmente nunca existiu. O conflito de classes, agravado e intocado, paira ao fundo.
Essa demanda monocórdica de grande parte da população pela recomposição da
ordem pode ser traduzida como uma tentativa de preservação das rotinas que garante
a previsibilidade da vida cotidiana. Sua contraface é a neutralização do assombro e
do medo, pois, na percepção social dominante, os episódios de violência estão em
todo lugar. Os estratos superiores consideram que os culpados por essa situação são os
moradores das favelas, reformulando o mito das classes perigosas, agora baseado em
uma visão fortemente polarizada dos espaços urbanos. Uma associação direta e per-
versa os rotula de bandidos ou quase bandidos por ocuparem todos os mesmos terri-
tórios da pobreza e da vulnerabilidade social. Inversamente, para grandes contingen-
tes das camadas populares, suas dificuldades devem-se ao que denominam com fre-
qüência como covardia, seja dos ricos e dos aparelhos do estado (que, apesar de todo
o poder que detêm, não lhes disponibilizam sequer os serviços mais essenciais, subme-
tendo-os, ademais, ao arbítrio e à violência de seus agentes), seja da que resulta da
tirania dos bandos armados ligados à economia das drogas.
Nessa perspectiva, o atual “problema da segurança pública” denota o desloca-
mento dos conflitos de classe articulados na linguagem da oposição entre cidada-
nia e desigualdade para disputas de outra natureza. O debate sobre a cidadania se
estreitou, reduzindo-se ao núcleo duro dos direitos civis que postula as garantias
à pessoa e à propriedade. As disputas agora se concentram na provisão de controle
social pelo estado, isto é, focalizam a quantidade, legitimidade e adequação dos
meios repressivos – a força comedida (e seu extravasamento) da polícia versus a
força ilegal, de fato, da criminalidade violenta. Os protagonistas desses conflitos
tornam-se assim categorias sociais estereotipadas e difusamente representadas que,
por conseqüência, não definem fronteiras identitárias claras. A ação coletiva, quando
existe, encontra-se despojada de organicidade. Nessa arena pública erodida e
desertificada, a tradicional linguagem dos direitos torna-se anacrônica e frágil,
pois vem regar a terra nua das rotinas da vida privada.
Adiante se verá como a evolução do conflito social reduziu a questão mais
geral da cidadania ao tema dos direitos civis e como esse se limita cada vez mais a
demandas por repressão, a todo custo, da criminalidade violenta. Aqui cumpre
mencionar que essa questão, articulada a partir das percepções de desproteção
pessoal como o “problema da segurança pública”, significou um passo além nessa
espiral reducionista: limitou-se a focalizar o resguardo das rotinas que organizam
a vida privada. Com isso, o “problema da segurança pública”, tal como está
posto no momento, impede a tematização da justiça social e da desigualdade, ou
mesmo, em níveis mais imediatos, do acesso das camadas populares – em especial,
de seu arquétipo atual, os favelados – à justiça efetivamente disponível. E ainda
faz com que o debate público seja travado de maneira cada vez mais inorgânica.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4
O recorte do objeto
A partir dessa perspectiva, o recorte do objeto analisado nas páginas seguintes
assentou-se em duas ordens de consideração.
A primeira delas é que, jurídica e politicamente, a segurança pública – pelo
menos enquanto compreendida como a ação policial de repressão ao crime co-
mum, suas modalidades e conseqüências sociais – não é uma questão nacional.
Não há sombra de dúvida que o crime e sua repressão galvanizam a atenção geral
do país, desde os mais altos burocratas do estado até as mais simples conversas de
esquina, passando pelos políticos, pelos formadores de opinião e pela mídia. De
fato, é possível dizer que esse é o grande problema urbano das últimas décadas,
mas, por outro lado, também é necessário reconhecer que ele tem especificidades
locais sempre muito relevantes para serem desconsideradas.
Sem pretender esgotar o assunto, vale ressaltar que a atuação policial é, consti-
tucionalmente, da esfera de competência dos estados, mas a expansão do crime
comum violento é um problema urbano, afetando, portanto, os poderes munici-
pais. E, como atinge todo o tecido urbano nacional (embora se concentre com
mais intensidade nas grandes cidades), não poderia deixar de preocupar as instân-
cias federais do governo. Esse emaranhado de competências legais e questões prá-
ticas tem provocado, como não poderia deixar de ser, choques de interesses políti-
co-partidários cujas clivagens mais relevantes, do ponto de vista das ações concre-
tas de repressão ao crime, ocorrem localmente. Isso produz um quadro extrema-
mente variado no tempo e no espaço que impede abordagens generalizadoras,
pois lhes retira a necessária concretude.
Por outro lado, em parte em virtude desses mesmos problemas, em parte em
virtude dos altos níveis de expansão da criminalidade – além de sua importância
histórica no cenário nacional –, o Rio de Janeiro tem sido considerado um caso
exemplar, quase um tipo ideal, de metrópole afetada pela questão da (in)segurança
pública. Para os efeitos deste trabalho, não vem ao caso discutir se essa percepção
se confirma ou não pelos índices disponíveis sobre o crime violento e sobre a
atividade policial. Basta admitir que, infelizmente, a cidade apresenta, em alta
dose, todos os ingredientes anteriormente apontados, o que a torna, para usar a
consagrada expressão de Geertz, um caso “bom para pensar” essas questões.
A segunda ordem de considerações aparece com as profundas transformações
nos conflitos sociais ocorridas nas últimas décadas. Eles incorporam, cada vez
mais obsessivamente, os temas relacionados à crescente imprevisibilidade das roti-
nas cotidianas. E não podem ser compreendidos sem referência ao medo que essa
insegurança provoca, atribuído à criminalidade violenta. Dessa maneira, muda
não apenas o objeto das disputas, mas também o enquadramento delas – a per-
cepção coletivamente construída dos problemas públicos altera-se dramaticamente.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5
Por esse motivo, e considerado que esse tópico tem sido pouco trabalhado pela
literatura, este texto enfatiza a dimensão cognitiva dos conflitos, procurando
mapear a constituição, o desenvolvimento e algumas implicações do “problema
da segurança pública”.
1
Essa parece continuar a ser a tendência amplamente dominante, apesar dos esforços de setores da esquerda (certos
segmentos dos partidos organizados, alguns formadores de opinião com presença na mídia, pequenos bolsões de
pesquisadores na academia etc.) de reintroduzir uma crítica mais direta das políticas econômicas, voltando a discutir a
expansão do emprego, a proteção do trabalho etc., como formas de superação da crescente tendência ao desemprego
e seus perversos efeitos sociais. Até o momento, porém, essas tentativas não têm obtido êxito a não ser marginalmente.
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6
2
Como se sabe, a institucionalização dos direitos de cidadania no Brasil não seguiu o postulado da universalidade que
define a própria noção de cidadão e que foi aplicado em grande parte da Europa, sendo sintetizado por Marshall (1967)
como uma medida de igualdade que correlaciona, a partir de um elenco de direitos, indivíduos pertencentes a um estado
nacional. Comparando os dois processos, Lautier (1987) destaca na experiência européia a assimilação da “cidadania
plena” à “cidadania salarial”, que se caracteriza pela garantia dos direitos sociais correlata ao exercício do trabalho
assalariado, e também a inadequação do modelo marshalliano para o caso brasileiro, caracterizado por uma cidadania
fragmentada, “de geometria variável”. Com isso, remete à incapacidade de o estado “definir estatutos sociais, ajustá-
los e unificá-los em um sistema único de direitos-deveres” (Lautier, 1987, p. 89). Evidência disso seria o fato da “imensa
maioria dos atores da economia informal não [estar] inscrita no sistema de direitos-deveres sociais ligado ao emprego
assalariado: se uma pequena parte deles tem acesso ao sistema de saúde, quase todos estão excluídos da aposentado-
ria, da garantia jurídica do emprego etc.” (Lautier, 1997, p. 86).
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7
humanos.3 E que, uma vez eleito, tenha entronizado, como uma das principais
políticas de seu governo, a defesa dos direitos dos presos. Vale lembrar que as
péssimas condições carcerárias tradicionais na sociedade brasileira tornaram-se
públicas ainda na ditadura, quando se discutia o tratamento que o estado dava
aos presos políticos. Entretanto, só em um momento posterior, e com fortes vari-
ações locais quanto à relevância da questão, elas se tornaram objeto de uma polí-
tica de governo. Isso ocorreu em particular com Leonel Brizola, no Rio de Janeiro,
e com Franco Montoro, em São Paulo.4
Em São Paulo, a defesa dos direitos dos presos foi liderada pela Igreja Católi-
ca, tendo à frente o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, ativista dos direitos humanos
dos presos políticos durante a ditadura militar. O cardeal também apoiou o “novo
sindicalismo”, que então surgia no ABC paulista. A absorção dessa política pelo
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – que reunia grande par-
te da oposição à ditadura e governava o estado e a cidade de São Paulo – possivel-
mente foi um dos fatores do insucesso desse partido nas disputas eleitorais seguin-
tes para a prefeitura da cidade, apesar de vitorioso nas disputas eleitorais para o
estado (Leite, 2000). Na interpretação de Pierucci (1987) e Zaluar (1995), a capi-
tal, mais sensível à temática da ordem e da segurança, elegia – com exceção de
Luíza Erundina, cuja eleição esteve relacionada a circunstâncias muito específicas
– políticos de direita fortemente comprometidos com a manutenção da ordem e
com o endurecimento em relação a presos, criminosos e suspeitos das camadas
populares. Processo similar ocorreu com a liderança política do governador Brizola
no Rio de Janeiro e com seu partido, que, pelas razões que se verá, progressiva-
mente foram perdendo votos e legitimidade no município do Rio de Janeiro. As
eleições de 1988 foram as últimas em que o Partido Democrático Trabalhista
(PDT) conseguiu eleger o prefeito da cidade.
No caso do Rio de Janeiro, a política do governo Brizola envolvia, além da
defesa dos direitos dos presos, o respeito aos direitos humanos como premissa da
execução das políticas de segurança pública nas favelas, bairros populares e perife-
rias. Tudo indica que essa diretriz expressava um duplo movimento.5 Por um lado,
explorava as possibilidades abertas pela conjuntura, que estimulava propostas de
mudança social restritas aos direitos civis. Por outro, (re)construía politicamente
sua base eleitoral com uma bandeira de luta alternativa, mas não incompatível,
3
Ao contrário do desenvolvimento posterior desse mesmo tópico, que estende a compreensão dos direitos humanos e a
busca a mudança de percepção do núcleo dos direitos civis e políticos para os direitos sociais, culturais e, mais
recentemente, ambientais, gerando mesmo uma nova terminologia – os Desca (direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais) – e novas formas de luta. Contudo, este desdobramento, mesmo agora, encontra-se ainda restrito aos
segmentos mais politizados da população. Note-se, de passagem, que a discussão em torno dos Desca tem desconsiderado
ou posto em segundo plano o tratamento da segurança pública. Isso pode ser visto na quase completa ausência do tema
nos debates e realizações da Frente Nacional de Reforma Urbana e do Ministério das Cidades, já no governo Lula. E,
reciprocamente, no silêncio em torno da temática dos Desca na quase totalidade das reflexões e propostas em torno do
“problema da segurança pública”.
4
Para além das condições específicas a esses estados, deve-se notar que poucos governadores tinham uma trajetória e
uma percepção da política que lhes possibilitassem transitar de temas regionais para questões nacionais, como o fazia
Brizola (cf. Sarmento, 2004).
5
Sobre as diretrizes do governo Brizola na área de segurança pública, ver o ponto de vista de um de seus principais atores:
Nazareth Cerqueira (1998).
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8
6
Para a análise desse momento e de seus desdobramentos na trajetória de Brizola, consultar Motta (2004) e Sento-Sé
(1999).
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9
7
Pinheiro (1982, p. 18) destaca que o termo se refere à atuação policial além da lei e sem controle do Judiciário, que faz
uso da tortura e desrespeita as garantias democráticas dos cidadãos – “preceitos rigorosos [...] para a detenção, guarda
de suspeitos, direito a defesa de advogado, tomada de depoimento [...]” – por considerá-las um luxo inaplicável no
combate aos inimigos da sociedade. Categoria que, naquela conjuntura, abrangia os criminosos comuns, mas que havia
sido incorporada a ditadura militar, quando a mesma lógica era aplicada a sindicalistas e a militantes de esquerda.
8
Em conhecido artigo, Bourdieu (1983) afirma, já no título, que “a opinião pública não existe”. Mas cumpre lembrar que
o que esse autor pretende com a afirmativa é indicar a manipulação simbólica das pesquisas de opinião, que lidam com
uma “opinião média”, que efetivamente não existe. Aqui, porém, “opinião pública” diz respeito às tomadas de posição
que ocorrem em ambientes coletivos institucionalizados, fora dos espaços privados (domésticos, de vizinhança etc.), e que
respondem a questões que deixaram de ser vistas como meros eventos individuais, isolados. Sem dúvida, essas questões,
como enfatiza Bourdieu no artigo citado, expressam relações de poder. Por outro lado, exatamente por isso, somente são
questões porque contêm uma divergência coletivamente compartilhada que extravasa as contendas particulares. O
conceito de “opinião pública”, portanto, tal como é operacionalizado neste texto, expressa ao mesmo tempo componen-
tes de consenso ou similaridade e de conflito ou debate coletivo sem que seja possível associá-los a grupos e/ou
organizações portadores de uma identidade e de um projeto comum.
9
Para uma instigante compreensão das relações entre a vida institucional e o mundo do crime, muito diferente da criticada
por Rodrigues, mas usando a mesma metáfora das “ligações perigosas”, cf. Misse (1997).
10
A literatura em torno dessa questão é ampla. Como exemplos de um enfoque a partir da tópica dos direitos, cf. Leite
(1995) e Sento-Sé (1998). Para uma discussão equivalente, mas em torno dos dilemas e tendências do uso da força pela
polícia, ver Paixão (1995), Moraes (1999), Muniz (1999), Muniz et al. (1999) e Brodeur (2004).
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10
11
O termo é usado no sentido do estruturalismo francês: “No es la matéria de la reflexión lo que caracteriza y califica la
reflexión, sino la modalidade de la reflexión; la relación efectiva que la reflexión mantiene con sus objetos, es decir la
problemática fundamental a partir de la cual son pensados los objetos de este pensamiento” (Althusser, 1973, p. 54, grifos
do autor). Ver também Foucault (2002, prefácio), para quem uma “problemática” é o campo (e o horizonte) de uma estrutura
cognitiva determinada, que define os aspectos visíveis ou invisíveis, interiores ou exteriores, dos problemas enunciados.
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nio com o governo federal para realizar a Operação Rio (alocação das forças
armadas no combate direto a criminalidade no Rio de Janeiro), entre o primeiro e
o segundo turno das eleições estaduais. A forte pressão e a premência da qual se
revestiu a medida possivelmente respondem, em parte, pela vitória do candidato
do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Marcello Alencar. Uma vez
que aludiam à necessidade e urgência de equacionar com presteza a questão da
criminalidade, afirmando que isso seria possível desde que houvesse vontade polí-
tica, insunuava-se que com o PDT vitorioso isso não ocorreria (Leite, 1995; Cal-
deira, 1996). Vale acrescentar que “vontade política” para combater com “dure-
za” o crime e licença para exceder a “força comedida” que corresponde ao poder
de polícia legítimo, são idéias que se desdobram naturalmente.
Assim, face aos processos locais de exacerbação do crime violento, do medo e
da insegurança, o Rio de Janeiro consolidava-se no imaginário nacional como
caso exemplar de violência urbana: antecipava a experiência das situações de
disrupção que espreitariam nossas grandes cidades e, ao mesmo tempo, constituía
um possível laboratório de propostas para seu equacionamento sob a forma de
políticas públicas visando garantir a segurança da população. Não por acaso, o
então presidente Fernando Henrique Cardoso, discutindo o tema da violência,
reiteradamente referia-se à cidade como o “farol da nação”.12
Lugar importante nesse debate, e em seus giros de sentido, foi o do governador
Marcello Alencar (1995–1998). Antigo quadro brizolista e respeitado advogado
de presos políticos perseguidos pela ditadura que, naquele contexto, se distancia-
ra do ex-governador e ingressara no PSDB. Na campanha pelo governo do esta-
do, no segundo semestre de 1994, quando o tema da violência dominava os deba-
tes, Marcello Alencar argumentava:
O medo, o instinto de preservação e a ausência da ação do Estado
nas comunidades reforçam o compromisso delas [das favelas] com
os bandidos. Agravando esse quadro [...] a brutalidade das ações
policiais, colocando na linha de tiro pessoas humildes e muitas
vezes inocentes. (Jornal do Brasil, 8 de agosto de 1994)
12
Cf. o noticiário do Jornal do Brasil e de O Globo sobre o movimento Reage Rio, em novembro de 1995. Ver também Leite (2000).
13
Para a centralidade do tema da violência na campanha de 1994 pelo governo do estado do Rio de Janeiro, como também
para a análise que se segue sobre o governo Marcello Alencar, cf. Leite (1995) e Caldeira (1996; 1998).
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pelo controle do Morro dos Prazeres. A longa duração do conflito, sua intensidade
e, sobretudo, o fato de se espraiar pelas ruas do bairro (casas usadas como esconde-
rijo/posição de tiro, carros e seus donos utilizados para fugas espetaculares) foram
representadas como uma expressão da guerra que ameaçaria o Rio: o morro descia
e assaltava o asfalto. Pressionado pela mídia e por políticos adversários para adotar
uma “ação enérgica”, Marcello Alencar ainda resistiu, sustentando:
Aceitamos até o confronto com os marginais, mas não
alucinadamente, entrando nos morros e metralhando tudo, como
se fez em outros tempos, sem nenhum resultado para as populações
carentes. (Jornal do Brasil, 5 de maio de 1995)
14
Há inúmeras declarações do general Nilton Cerqueira nesse sentido, como por exemplo: “Ao criticarem a ação da
polícia, esses sociólogos não contribuem para a repressão ao crime. Muito pelo contrário, acabam dificultando o trabalho
da PM nos morros e favelas. Essa atitude está virando uma espécie de proteção aos traficantes” (Jornal do Brasil, 20 de
maio de 1996). A referência ao grupo do Iser, o qual freqüentemente também menosprezava como “policiólogos”,
evidenciava a arrogância corporativa de quem não admitia críticas dos “de fora” da polícia. Sobre as diretrizes do governo
Marcello Alencar na área de segurança pública, cf. o ponto de vista de um de seus principais atores em Cerqueira (1998).
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15
Para o relato desse experimento, ver Soares (2000). Ver também a entrevista realizada com Luiz Eduardo Soares por
Sérgio Adorno disponível em: <http://www.luizeduardosoares.com.br/docs/sergio_adorno_entrevista - les.doc>.
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polícia,16 bem como a redução do número de policiais mortos, além de uma apre-
ensão recorde de armas em poder dos criminosos: 9 mil” (Justiça Global, 2004,
p.15). Podem também ser lembrados esforços correlatos e de igual importância
desenvolvidos como parte dessa experiência especialmente as iniciativas de “civi-
lização” dos pobres e favelados. Formuladas como alternativas para a incorpora-
ção dos jovens à cidadania, compreendiam desde projetos de geração de trabalho
e renda até ações no campo da auto-estima e do reconhecimento, obtendo grande
ressonância na cidade (cf. os inúmeros relatos do autor em Soares, 2000).
Contudo, a “terceira via” fracassou, sendo encerrada como experimento com
a saída de Luiz Eduardo Soares e seu grupo do governo. Além das disputas de
poder no interior do governo, o fracasso ocorreu, em grande parte, em virtude da
resistência da corporação policial ao núcleo de suas propostas incorporadas à
plataforma do governador Garotinho: o projeto de “civilizar” a polícia – sinteti-
zado nos temas de sua reforma (moral), de seu reaparelhamento (técnico) e de sua
modernização (associação de técnicas investigativas e de pesquisas científicas,
monitoramento e prevenção). As sucessivas crises que motivaram a demissão do
subsecretário, enfrentadas por ele como se fossem apenas uma reação da “banda
podre” da polícia (Soares, 2000), revelaram a impossibilidade de realização desse
projeto, mantendo inalteradas as relações de força que eram parte do “problema
da segurança pública”. Iniciativa isolada e boicotada nos aparelhos de poder, sem
contar com apoio efetivo de outras e significativas forças políticas, a inflexão
civilizatória voltada para a polícia terminou derrotada pela exterioridade da pro-
posta em relação ao projeto dos governantes que, face à intensa e continuada
resistência da corporação, dela não hesitaram em abrir mão.
O movimento pendular seguia seu curso habitual. A Secretaria de Segurança
Pública retomava o endurecimento contra o crime. Basta um dado para demons-
trar com exatidão a mudança que se processara. Nos dois anos subseqüentes do
governo Garotinho, o resultado da política de segurança pública, agora sob o
comando exclusivo do coronel Josias Quintal, se expressava em quase o dobro do
número de “mortos civis” (não envolvidos nos conflitos armados) em interven-
ções policiais, aumentando de 289, em 1999, para 592, em 2001 (Justiça Global,
2002; 2004).
A saída de Garotinho do governo estadual para disputar as eleições presidenci-
ais, em 2002, e sua substituição pela vice-governadora, Benedita da Silva, criou
uma situação que foi interpretada por ela e por seu partido, o PT, como a oportu-
nidade de “fazer diferença no Rio de Janeiro” – o que certamente só produziria
impacto desde que focada na atuação policial. Luiz Eduardo Soares retornou ao
governo do estado, dessa vez com mais liberdade para implementar as propostas
relativas à “terceira via” no campo da segurança pública. Entre várias iniciativas,
pode-se salientar o monitoramento da violência por meio de um dirigível e de
16
Dimensão particularmente expressiva quando se sabe que as execuções sumárias no Rio de Janeiro, como em outros
estados, são encobertas nas estatísticas sob a categoria de “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”,
figuras jurídicas relativas a mortes cometidas por policiais em legítima defesa. Para essa questão, ver Cano (2003).
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17
A vitima é colocada dentro de vários pneus de caminhão e banhada viva com gasolina. Em seguida, se lhe ateia fogo.
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18
“O deslocamento da competência processual para a Justiça Federal nas hipóteses de graves crimes contra os direitos
humanos é medida reivindicada há muito pela sociedade civil organizada e também já estava prevista como ação
governamental de curto prazo desde o Programa [Nacional de Direitos Humanos] de 1996” (Justiça Global, 2002, p.169).
19
Os recentes julgamentos ou encaminhamentos judiciários no caso dos envolvidos nas chacinas do Morro do Borel (Farias,
2005) e de Eldorado dos Carajás (O Globo, 25 de setembro de 2005, 3. ed., p. 15), além da recusa do Superior Tribunal
Federal em federalizar o caso do assassinato da freira Dorothy Stang por pistoleiros, no Pará (O Globo, 25 de setembro
de 2005, 3. ed., p. 15), indicam as dificuldades apontadas.
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20
O Plano Nacional de Prevenção à Violência previa iniciativas nas áreas de saúde, educação, esportes, lazer e prevenção
do uso de drogas, que seriam implementadas pela da cooperação entre os governos federal, estadual e municipal, os
poderes legislativo e judiciário e o Ministério Público.
21
Ver, por exemplo, os projetos do Centro Nacional de Formação Comunitária (Cenafoco).
22
O que possivelmente se relaciona à participação de Luiz Eduardo Soares, e de seu grupo, no 2o escalão do governo,
novamente animados pela esperança de produzir uma inflexão civilizatória, dessa vez no plano federal. Não cabe nos
limites deste texto a discussão de sua derrota, mas nela certamente influíram os conflitos associados aos limites das
intervenções dos governos federais sobre o “problema da segurança pública”.
23
Cf. os índices de letalidade policial nas grandes cidades brasileiras em Cano (2003), em muito superiores aos de outros
países.
24
A reportagem de Jailton de Carvalho, no jornal O Globo (4 de maio de 2003, p. 18), pode ilustrar o ponto destacado:
levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Procuradores de Justiça revela que, de 1998 a 2002, dos 524 casos de
tortura denunciados pelos Ministérios Públicos estaduais à justiça, apenas 4,3% (15 casos) foram julgados e só 1,7%
(nove casos) acarretou condenações, embora em instâncias ainda não definitivas.
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25
Marina Magessi tornou-se conhecida ao comandar as operações policiais que resultaram na prisão dos traficantes
Marcinho VP, Elias Maluco e Fernandinho Beira Mar. Teve também papel importante nas investigações sobre o conflito
entre grupos de traficantes pelo controle da favela da Rocinha, em 2004. Sua atuação tem sido divulgada pela própria
inspetora e recebido destaque na mídia (cf. “Polinter lotada: a mulher que comandou as principais investigações
realizadas no Rio de Janeiro. O destino incerto da inspetora Marina Magessi”, O Globo, 6 de setembro de 2005, p. 13).
Afastada da Polinter diante da notícia de que presos eram obrigados a assumir por escrito a responsabilidade por sua
integridade física, declarou: “Nosso orgulho é que é a terceira vez que nossa equipe é afastada, mas sem denúncias de
corrupção, tortura e sem sangue de ninguém” (O Globo, 7 de setembro de 2005, p. 13).
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generalidade do tratamento igualitário no plano dos direitos civis que, como par-
te da política de direitos humanos do governo Brizola, destacava a necessidade de
uma incursão “civilizatória” sobre – de fora e contra, vale acrescentar – a própria
instituição policial que, obviamente, viria a enfrentar grande resistência da
corporação.
Buscava-se transformar o aparato policial em algo mais do que uma versão
atual dos capitães do mato do período escravocrata: uma instituição submetida à
lei e ao controle público de sua conduta. Com essa angulação e ambição iniciou-
se uma disputa, que permanece até hoje, em torno dos temas da reforma e moder-
nização da polícia. Como se viu aqui, a tentativa de implementação desses propó-
sitos no governo Garotinho/Benedita enfrentou a resistência e o boicote do apara-
to policial, além da incapacidade e/ou descompromisso dos próprios governantes
em realizá-la. O resultado final ficou reduzido, no governo Benedita da Silva, ao
que se pode compreender como projetos demonstração de uma possibilidade al-
ternativa de gestão da segurança pública.
Nas palavras de Marina Magessi, ao contrário, a relação entre aggiornato e
civilizatório não é necessária – como queria Luiz Eduardo Soares –, mas contin-
gente. Ela incorpora algumas críticas feitas à polícia, sugerindo que de fato as
coisas não podem continuar como estão, para se apresentar como possível medi-
adora entre a instituição e o conjunto da sociedade. No caso da intervenção poli-
cial nas favelas, desqualifica seus moradores como atores decisivos no debate. De
fato, a inspetora Magessi acaba por promover unilateralmente o papel da polícia,
tornando-se porta-voz dessa instituição. Sua argumentação pública contribui para
ocultar ou desvanecer a política tácita do estado para as favelas baseada no des-
respeito aos direitos humanos, violência, brutalidade e homicídios de jovens por
policiais. Esses desmandos estão registrados em sólidos dados estatísticos e em
relatos densos e absolutamente verossímeis dos familiares das muitas vítimas da
violência policial no Rio de Janeiro (Justiça Global, 2004; Birman e Leite, 2004;
Farias, 2004). A ação policial tem resultados idênticos à conduta da criminalidade
violenta corporificada pelos “donos do morro”.
O arbítrio e a corrupção estão enraizados na corporação como a tônica da
intervenção nas favelas e vêm sendo denunciados, sem sucesso, há pelo menos
uma década. O medo, que alimenta as flutuações da opinião pública frente ao
“problema da segurança pública”, favorece a anuência à orientação governamen-
tal quanto a procedimentos, prioridades e (negação de) direitos em relação à po-
pulação favelada. Magessi prefere reduzir este padrão institucionalizado de con-
duta a excessos ou desvios de comportamentos individuais dos “maus policiais”
(que replicariam em suas organizações os maus políticos, maus pesquisadores,
maus médicos, más mães etc.). Esse artifício retórico lhe possibilita estabelecer a
mediação que dilui responsabilidades e joga as instituições e suas práticas regula-
res numa zona de sombra da qual só podem emergir indivíduos, igualados nas
suas misérias e em seus vícios, irmanados em suas perdas.
Marina Magessi busca, assim, construir-se como voz civilizada da polícia, que
pode falar para a sociedade e com os segmentos favelados. Mas fala, sobretudo,
pelos interesses corporativos. Ao fazê-lo, justifica a práxis policial e, como barrei-
ra contra qualquer interferência sobre sua autonomia, constrói – como talvez não
se tenha feito antes – um nexo entre essa e os desejos e as necessidades dos favelados:
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26
Intervenção de Marina Magessi no debate público sobre Associações de Moradores, promovido pela vereadora Andréa
Gouvêa Vieira, em 22 de março de 2005, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e registrada em seu Diário Oficial, de 28
de março de 2005, p.13.
27
Idem, ibidem.
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A metáfora da guerra, na medida em que define o oponente como inimigo e remete a contextos que demandam o uso
máximo da força, acaba por gerar medo também entre os próprios policiais em suas atividades de repressão ao crime, que
reagem aprofundando os métodos violentos, reproduzindo e generalizando uma cadeia exponencial que parece não ter fim.
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pelas forças mais retrógradas da sociedade. E mais: com efetiva aceitação por
grandes setores da população. Atualmente esse investimento regressivo conta com
a ajuda e a propagação de idéias que são aggiornadas por quadros orgânicos da
polícia, aqui exemplificados na pessoa da inspetora Magessi. Vale lembrar de uma
das máximas que circulam pela cidade, que ilustram e consolidam aquele isola-
mento: “direitos humanos para quem é direito”.29 Essa maneira de localizar e
resolver problemas coloca em campos opostos quem não deveria ser atravessado
por essa cisão. Se a solidariedade já é um produto escasso nas condições contem-
porâneas da hiperindividualização, mesmo nas sociedades capitalistas avançadas,
o conjunto de práticas e mentalidades interpretadas como a segurança apesar dos
outros (em vez da segurança com os outros) em países como o Brasil, atormenta-
do pela criminalidade violenta, torna-se com facilidade uma defesa do arbítrio e
da brutalidade. A justificativa construída pela inspetora é uma forma de preserva-
ção dessas características das práticas policiais tacitamente institucionalizadas.
Dentre as demais iniciativas de aggiornamento, há que considerar também o
papel do secretário de Segurança do estado, o delegado da Polícia Federal Marcelo
Itagiba. Em contraste com a imagem pública do general Nilton Cerqueira, que
exerceu o mesmo posto no governo de Marcello Alencar e que se vangloriava de ter
perseguido e liquidado Carlos Lamarca, Itagiba não se apresenta como “caçador de
cabeças”. A contribuição “civilizatória” do general Cerqueira foi a já mencionada
“gratificação faroeste” e a desqualificação como “policiólogos” dos cientistas soci-
ais que, como parte das análises sobre vitimização – as quais, evidentemente, preci-
savam considerar tanto a atividade policial quanto a dos criminosos – discutiam a
letalidade da conduta dos primeiros. A presença do general Cerqueira à frente da
Secretaria de Segurança significava o casamento da vida democrática e civil,
institucionalmente frágil para lidar com o crescimento acentuado da violência na
cidade, com a “eficácia” repressiva dos métodos da ditadura.
Já Marcelo Itagiba produz uma prática discursiva nova, marcada pelo efeito
político do deslocamento. Ela opera uma espantosa inversão, que também pode
ter eficácia persuasiva, definida pelo lugar que atribui aos aparatos de segurança
pública, a partir do qual sustenta uma cobrança da polícia com relação à socieda-
de. Em vez de reconhecer o poder da sociedade de fiscalizar as instituições públi-
cas e estatais, transfere a responsabilidade pela “eficácia” do combate ao crime
para os cidadãos comuns, atribuindo-lhes também, no mesmo movimento, par-
cela da culpa por seus insucessos. Num primeiro momento, no contexto da co-
nhecida “crise da Rocinha”, que levou à prisão de William (já mencionada em
citação anterior), conclamou os favelados a uma “insurreição pela cidadania”
traduzida em práticas de denúncia dos componentes e nichos do narcotráfico em
seus locais de moradia:
29
A pesquisa “Lei, Justiça e Cidadania” (Centro de Pesquisa e Documentação/CPDOC da Fundação Getúlio Vargas/FGV
e Iser, 1997) demonstrou, para a população residente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a prevalência de uma
parca idéia de direito civil, referida apenas ao controle da criminalidade: 63,4% concordam totalmente que os bandidos
não devem ter direitos respeitados, 51,8% toleram linchamentos e 40,4% justificam o uso de métodos violentos para
confissão de suspeitos. É a “cidadania de geometria variável” de Lautier (1997) articulando a percepção social da
segurança pública.
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26
30
Marcelo Itagiba, “Insurreição pela cidadania”, jornal O Globo, 19 de março de 2005, p. 7. Também publicado na página
de abertura do site da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (http://www.ssp.rj.gov.br, acesso em:
17 de julho de 2005).
31
Cf., por exemplo, “Cidade de Deus na mira dos milicianos. Área onde vivem mais de 38 mil pessoas ainda tem tráfico
e grupos de PMs querem expulsar os bandidos” (O Globo, 20 de março de 2005, p.19) e a série do mesmo jornal “Vida
Severina”, especialmente a reportagem “De olhos bem fechados para a violência” (O Globo, 21 de maio de 2005, p. 16).
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27
Conclusão
Neste texto, enfatizou-se a influência das diferentes conjunturas para um proces-
so coletivamente construído de afunilamento da percepção social das relações de
classe, que acabou desembocando na autonomização do “problema da segurança
pública”. Procurou-se demonstrar que:
1. tal como a opinião pública o compreende, o debate político em torno de como
enfrentá-lo está dramaticamente reduzido e não abre espaço para uma interven-
ção sistemática e relevante que, formulada na linguagem universalista dos direi-
tos, discuta as relações entre cidadania e desenvolvimento. Aos poucos, limitan-
do-o à expansão do crime violento direta ou indiretamente ligado ao consumo
da economia das drogas, fechou-se um círculo de ferro que polariza as disputas
em dois campos opostos, mas convergentes em suas visões reducionistas. De um
lado, a defesa de uma atuação “dura”, “enérgica” (ou seja, além da “força
comedida” que caracteriza o poder repressivo em sua institucionalidade legal)
da polícia contra a ameaça à ordem representada pelos criminosos. De outro, a
denúncia do excesso de força empregado pelos policiais, esta com um poder de
penetração na opinião pública muito mais débil;
2. esse foco limitado constitui-se como contrapartida de um crescente sentimento
de insegurança e medo do crime violento. Na medida em que esse está, de fato,
em inequívoca expansão, não se pode atribuir o medo generalizado apenas ou
sobretudo a uma produção imaginária ou da mídia como sugerem, por exem-
plo, Chesnais (1981) e Soares (1996) respectivamente. Porém, mesmo tratan-
do-se de um sentimento diretamente embasado na realidade concreta, o medo
32
Reportagem de Alessandro Soler (O Globo, 24 de setembro de 2005, p. 23) chama atenção para o enorme desequilíbrio
dos quantitativos de mortes de policiais e outros membros da população urbana a partir dos autos de resistência: “De
acordo com dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública, foram mortos 398 civis e 99 policiais em confrontos
em 1998. Cinco anos depois, morreram ‘em resistência’ 1195, contra 45 policiais. Em 2004 houve uma diminuição no
número de civis mortos, mas ainda assim a estatística ficou em um patamar elevado: 983". Ver também Cano (1997; 2003)
e Justiça Global (2002; 2003; 2004) que destacam, além desse desequilíbrio, outros indicadores de execuções sumárias:
disparos na cabeça, pelas costas, à queima-roupa e/ou vários “impactos de bala”, por exemplo.
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28
33
Essa última frase, que se refere a um caso relatado por Bauman (2000) como exemplo dos fenômenos perversos de
deslocamento, quando parcelas da população investem sua fúria contra “inimigos próximos”, aplica-se com propriedade
à situação em análise.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31
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MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
32
Estudo de caso
Terra Indígena Raposa Serra do Sol
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
Paulo Santilli
Antropólogo, professor da Universidade
Estadual Paulista (Unesp)
santilli@fclar.unesp.br
O último cerco
Diferentes da maior parte de outras terras na Amazônia, os campos e serras do
nordeste do atual estado de Roraima foram, em período colonial, considerados
propriedade da Coroa portuguesa. Na condição de “próprios nacionais”, atra-
vessaram o Império e chegaram à primeira República. Eram, no fim do século
XIX, três fazendas – São Bento, São Marcos e São José –, cuja definição de
propriedade estatal recobria os territórios indígenas. Data dessa época sua grilagem
por particulares.
A ocupação fundiária no Vale do Rio Branco remonta à chegada de migrantes
nordestinos que vieram estabelecer posses particulares para a criação de gado em
meio a aldeias indígenas a partir da década de 70 do século XIX. Para a instala-
ção de criatórios de gado em meio às aldeias, os posseiros, via de regra, buscaram
o consentimento e a colaboração da população indígena a partir de expedientes
clientelistas, como a oferta de bens manufaturados – em geral tecidos, sal, açúcar,
ferramentas, utensílios de pesca, aguardente –, além de carne e leite. A adoção de
crianças indígenas e o parentesco ritual também foram expedientes amplamente
utilizados pelos posseiros, que serviram para reforçar os laços clientelistas com os
habitantes das aldeias adjacentes.
A disputa pela terra, naquele período, esteve centrada em embates políticos
nos âmbitos administrativo e jurídico, regional e nacional. Por um lado, as pre-
tensões locais de posseiros ganharam respaldo do governo estadual do Amazonas
que, aventando uma interpretação espúria do artigo 64 da Constituição de 1891
– que delegava aos estados legislação supletiva sobre as terras devolutas da União
–, tomou como devolutas terras indígenas e expediu a concessão de centenas de
títulos de propriedade de terras a particulares durante as primeiras décadas do
século XX. Esses títulos incidiram em áreas de incontestável ocupação Makuxi e
Wapixana. Por outro lado, diante das reiteradas denúncias de invasão das fazen-
das nacionais por particulares, o governo federal instalou, em 1915, uma sede
regional do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) na Fazenda Nacional São Mar-
cos, com jurisdição sobre todo o Vale do Rio Branco.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3
1
Diário da Inspeção de Fronteiras Realizada pelo General Cândido Mariano da Silva Rondon, p. 69, 1927 - 1a Comissão
Demarcadora de Limites, Belém, PA.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4
indígenas. O impasse criado com essa disposição inexeqüível, que, mais uma vez,
tentando conciliar interesses antagônicos, intensificou o acirramento da disputa
pela terra e as pressões sobre o governo federal, só foi solucionado em 1998, com
sua revogação e substituição pela Portaria 820, assinada pelo então ministro Renan
Calheiros, que declarou a terra indígena Raposa Serra do Sol de posse permanente
dos povos Makuxi, Wapixana, Taurepan, Ingarikó e Patamona.
Contrariando o argumento utilizado pelo ministro da Justiça por ocasião da
assinatura do Decreto 1.775/96 – no qual justificava a criação de uma instância
para a contestação administrativa no processo de reconhecimento dos direitos
territoriais indígenas com o objetivo de evitar posteriores contestações judiciais –
, o governo do estado de Roraima, logo no ano seguinte à demarcação da terra
indígena Raposa Serra do Sol, impetrou um mandado de segurança no Superior
Tribunal de Justiça (STJ), com pedido de anulação da Portaria 820/98. O pedido
de mandado acabou negado pelo STJ em 2002, mas durante os anos de sua
tramitação serviu de amparo formal ao governo do estado para afrontar os proce-
dimentos da regularização fundiária em curso e promover uma nova ocupação
das terras indígenas, subsidiando a instalação de arrozeiros nas planícies às mar-
gens do rio Tacutu.
Ainda outra medida liminar, expedida em março de 2004 pelo juiz da primeira
instância da Justiça Federal em Roraima, suspendeu parcialmente a Portaria 820/
98. Em setembro do mesmo ano, o STF manteve a interdição à continuidade do
processo administrativo. Até que, no mês de dezembro, o próprio STF suspendeu
as medidas contrárias à homologação da demarcação. Nesse meio tempo, três
novas aldeias formadas pelos índios foram incendiadas pelos arrozeiros, habitan-
tes da aldeia Maturuca foram assassinados por posseiros, inúmeras outras amea-
ças e violências foram cometidas contra os habitantes da Raposa Serra do Sol.
Cabe ressaltar que tamanha protelação ainda custou ao país denúncias de vio-
lação dos direitos humanos na Comissão de Direitos Humanos da Organização
dos Estados Americanos, que culminaram com uma medida cautelar condenando
o governo brasileiro a garantir a segurança na área, especialmente na porção ao
sul, onde as aldeias próximas aos arrozais estavam sendo incendiadas.
índios que habitam a região. Como a terra indígena abriga etnias distintas e o
histórico das relações entre os órgãos ambientais e indigenista na área é
marcadamente conflituoso, a portaria não resolve a questão, mas remete uma
possível solução para o futuro.
O processo de regularização fundiária da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
ainda está por ser concluído com o registro da área no Cartório de Registro de
Imóveis e no Serviço do Patrimônio da União. Contraditoriamente, a Sodiur –
entidade beneficiada com as medidas compensatórias –, à frente de duas outras
entidades indígenas, também criadas recentemente, aliadas a 12 rizicultores e a
uma empresa agropecuária, impetrou mandado de segurança (MS 25483) no STF
contra o decreto presidencial de homologação da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol. Às vésperas das comemorações pela homologação da terra indígena, dezenas
de homens encapuzados atearam fogo na antiga missão do Surumu, onde se rea-
lizavam as Assembléias de Tuxauas. Enquanto a grande maioria dos índios habi-
tantes da Raposa Serra do Sol se reúne para festejar a homologação, a ponte sobre
o rio Urucuri, que dá acesso às aldeias onde acontecem as comemorações, foi
incendiada. Mesmo com o decreto presidencial de homologação, o simples cum-
primento da legislação federal ainda é contestado ostensivamente pelos interessa-
dos em se apropriar dos recursos naturais existentes nas terras indígenas em Roraima.
Em termos gerais, as perspectivas delineadas para a gestão do território em
questão apontam, por um lado, um colossal passivo ambiental e social e, por
outro, uma parcela significativa de recursos públicos canalizados para os que se
opuseram à sua homologação. Os conflitos que permeiam as relações entre a soci-
edade regional e os povos indígenas habitantes na Raposa Serra do Sol opõem
concepções distintas de desenvolvimento, voltadas à expansão da pecuária exten-
siva, à monocultura e à exploração predatória dos recursos minerais, onde os
índios se inserem como força de trabalho, em contraste com as atividades de cul-
tivo, criação de animais e utilização da flora e fauna nativas a partir das formas
próprias de organização social, concebidas e implementadas coletivamente.
Essas questões, consideradas em conjunto, revelam uma grande margem de
arbítrio político no desfecho de um processo administrativo e podem constituir
precedentes importantes para a política indigenista e ambiental no país.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005
Estudo de caso
Um mar de eucaliptos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
UM MAR DE EUCALIPTOS
Carlos Tautz
Jornalista, pesquisador do Ibase
desconheciam direitos e valores dos habitantes tradicionais das áreas nas quais os
chamados pólos de desenvolvimento eram implantados. Pequenos agricultores e
agricultores sem terra, remanescentes de quilombos e outros tipos de proprietários
rurais de base familiar, que exploram a terra para subsistência exatamente como
seus ancestrais, também são protagonistas, hoje, na batalha pela propriedade e
pelo uso do solo, que tem, no Espírito Santo, uma espécie de paradigma.
Paradoxalmente, se o Espírito Santo é o estado brasileiro (e, talvez, a região
do planeta) onde a base produtora da indústria celulósica está mais direta e
intimamente conectada ao sistema de mercados produtores e consumidores in-
ternacionais, também é unidade da federação nacional em que os setores nega-
tivamente impactados mais se organizam para disputar a propriedade da terra e
reimplantar modos de uso que reivindicam como tradicionais e que os
ambientalistas vêem como o principal fator de manutenção das diversidades
agrícola, social, cultural e biológica da região.
Com sua resistência, esses setores negativamente impactados também expres-
sam valores de vida e de relação com a terra – meio de subsistência física e
cultural – e uma visão radicalmente distinta do modelo de extração em massa
de recursos hídricos e de nutrientes do solo para a monocultura do eucalipto.
Esse sistema é totalmente voltado para exportação e exige intensidade e
extensividade da produção ao menor custo, em flagrante contradição com a
baixa exigência de recursos dos modos de uso tradicionais, dedicados quase
sempre à subsistência familiar ou, no máximo, ao atendimento a mercados con-
sumidores locais e diminutos.
O complexo industrial da celulose envolve a monocultura do eucalipto, passa
por pelo menos três grandes fábricas de produção instaladas em regiões próximas
e termina no porto exclusivo da Aracruz, o Portocel, igualmente localizado no
território do Espírito Santo. Por ele é escoada toda a produção da empresa no
sudeste e nordeste do país, inclusive a da Veracel, complexo industrial localizado
no extremo sul da Bahia, a cerca de 200 quilômetros do epicentro da monocultura
no solo capixaba – 98% da produção da Veracel destina-se ao mercado externo.
A Aracruz tem 50% do capital desse complexo.
Vários são os fatores que alimentam a disputa entre os operadores globalizados
das monoculturas para produção de celulose e os habitantes tradicionais das áreas
usadas para a plantação de árvores. Porém, uma razão importante e pouquíssimo
explorada, que está na raiz do problema, parece ser a principal explicação.
Hoje, como contraponto do projeto celulósico, uma das demandas mais im-
portantes da Rede e de outros opositores da monocultura é a elaboração do
zoneamento econômico e ecológico do Espírito Santo, sugerindo a divisão legal
do estado de acordo com as vocações ecológicas e históricas após o levantamento
técnico dessas vocações.
Essa proposta busca um contraponto teórico direto com a indústria, ao pro-
por um plano de utilização do solo em tudo diferente e antagônico àquele repre-
sentado pela Aracruz: debatido publicamente, para ser diversificado e democráti-
co, garantindo protagonismo aos que, até aqui, olharam o crescimento da produ-
ção exclusivamente pelo ângulo dos impactos negativos socioambientais e cultu-
rais que lhes coube com exclusividade.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13
Quem é a Aracruz
Os trechos a seguir foram todos extraídos do relatório Desc, já citado, e são auto-
explicativos:
Atualmente, segundo dados da própria empresa disponíveis na
Internet, as operações florestais da Aracruz alcançam os estados do
Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. São
aproximadamente 242 mil hectares de plantios próprios de
eucalipto. Somente no ES são três unidades produtivas com capaci-
dade total de 2 milhões de toneladas anuais de celulose. Com a
inauguração da Fábrica C em agosto de 2002 e a aquisição da
Riocell (atual Guaíba) em julho de 2003, a capacidade de produção
da empresa alcançará a inacreditável marca.
Mesmo que essa análise não abranja o período atual do governo Lula, espera-
se que essa tendência apontada pelo MPA tenha, ainda que com restrições quanto
à quantia exata, se aprofundado. Desde 2003, o BNDES continuou a liberar
recursos para a ampliação da capacidade produtiva da empresa, sem que
contrapartida equivalente tenha sido observada no setor antagônico, o de agricul-
tores de base familiar. Ratificação dessa suposição é a presença do presidente Lula
na inauguração de mais uma fase da Veracel, programada para o final de setem-
bro de 2005.
Essas constatações evidenciam, mais uma vez, que o estado brasileiro, ao lon-
go da história do país, pelo menos em relação à indústria da monocultura do
eucalipto, vem tendo um projeto preponderante. Ele se alia ou se deixa cooptar
pelos interesses maiores de grandes grupos econômicos, em especial os de controle
privado.
Efetiva ou não, feita de caso pensado ou não, essa estratégia se choca frontal-
mente com direitos e interesses da maioria da população, que não recebe fatia
equivalente do bolo de recursos oficiais e, ao mesmo tempo, evidencia uma estra-
tégia histórica que, mesmo sem ser assumida, mostra uma escolha permanente,
automática até, por aqueles que já concentram a maior parte da renda nacional.
O “projeto”, por assim dizer, do Estado brasileiro não pára no tempo. Ao
contrário, moderniza vivamente as opções de instrumento de gerenciamento eco-
nômico. É o caso da indução do crescimento de alguns grupos, por meio do apoio
em forma de programas oficiais de incentivo às atividades do grande negócio
agrícola, que consegue articular em torno de si até ministérios cujos titulares, em
tese, ocupariam posições diametralmente opostas no espectro político.
Esse antagonismo pode ser exemplificado com a posição do ministro da Agri-
cultura, decididamente muito mais próximo dos grandes grupos econômicos atu-
antes no meio rural, e com a da ministra do Meio Ambiente, historicamente sen-
sível às demandas dos grupos sociais negativamente impactados pelas monoculturas
do eucalipto.
Não é à toa que o estudo dos prováveis impactos socioambientais do Progra-
ma Nacional de Florestas surge no Ministério do Meio Ambiente, comandado
por Marina Silva, atendendo às queixas dos grupos sociais que a ele têm acesso, e
não no Ministério da Agricultura, chefiado por Roberto Rodrigues, que possui
vínculos profissionais e negociais, de décadas, com os maiores grupos empresari-
ais do chamado negócio agrícola no Brasil e no exterior.
O “projeto” estatal igualmente se verifica na participação acionária expressiva
do estado em grupos econômicos privados, sem que qualquer justificativa de inte-
resse nacional, muito menos local ou regional, explique essa sociedade.
Afinal, em nenhum momento sócios como a Aracruz pertenceram a setores
estratégicos para a economia nacional, como poderia ser argumentado no caso,
por exemplo, da Companhia Vale do Rio Doce, vendida em situação amplamente
desvantajosa paro o setor público, em pleno vigor da ideologia da privatização. A
Aracruz não pertenceu ao escopo dos estratégicos, nem durante a era da estatização
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17
total – mas que eventualmente foi necessária para criação de vetores mínimos de
desenvolvimento nacional –, nem depois da entronização do mercado e da
privatização ampla, geral e irrestrita, quando o espaço privado foi alçado à qua-
lidade de dogma.
Outra dimensão do processo de modernização para poucos do estado pode ser
configurado no ganho extraordinário de produtividade que os grupos da produ-
ção celulósica almejam quando miram o comércio dos créditos de carbono – e é
importante chamar a atenção para o que dizem cientistas, financistas, economis-
tas e ambientalistas: esse instrumento financeiro tem um potencial reduzidíssimo
para interferir positivamente nas mudanças crescentes que o clima do planeta vem
enfrentando, pelo menos na escala de tempo de que o globo terrestre e a humani-
dade necessitam para reverter os novos padrões de severidade que os fenômenos
climáticos apresentam.
Esses críticos alertam que, pelo menos nas primeiras etapas da implantação
dos mecanismos financeiros antipoluição, apenas obterão vantagem os
intermediadores, os brokers, que assumirem a tarefa de negociá-los nos mercados
mundo afora.
A situação de conflito com os defensores de outros tipos de utilização do solo
e dos recursos naturais tem tudo para continuar, uma vez que continua a indefinição
quanto à propriedade da terra, que levou os Tupiniquim e os Guarani a promove-
rem a retomada dos milhares de hectares que julgam seus. E ainda há a preferência
que o estado manifesta pelos grandes grupos, ao dedicar recursos para o financia-
mento de grandes plantas industriais, em que ele próprio toma parte, e, ao mesmo
tempo, ao deixar de realizar políticas públicas amplas, como a reforma agrária.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005
Estudo de caso
Avanço da fronteira agrícola e
agronegócio em Mato Grosso
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
Elton Rivas
Jornalista e coordenador do Fórum Mato-grossense
de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad)
Marla Bittencourt
Estudante de jornalismo
1
Disponível no site da Secretaria de Comunicação Social do governo de Mato Grosso: <http://www.secom.mt.gov.br>.
Acesso em: 24 abr. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7
Mecanismos de depredação
Potencialmente, três agentes promovem uma escala de devastação de áreas que é
responsável pela agonia da floresta e do cerrado. O movimento de expansão de
fronteira agrícola obedece a uma ordem de derrubada das matas pelos madeirei-
ros, com posterior ocupação das áreas desmatadas com pasto para a criação de
gado, preparando o solo para a etapa que fecha o ciclo, o plantio de soja.
De acordo com dados do governo federal em 2003, houve redução do
desmatamento de 28% para 2%, o que, em Mato Grosso, não ocorreu. Nem
mesmo o Plano de Preservação e Controle do Desmatamento da Amazônia, cria-
do em 2004 e contando com a participação de 13 ministérios, não produziu
efeitos positivos no estado.
A ausência de uma política pública ambiental em Mato Grosso reflete-se nos
números levantados, nos quais quase a metade (48,1%) do total desmatado na
Amazônia Legal ocorreu no estado. Dos 12.576 quilômetros quadrados
desmatados em Mato Grosso, apenas 4.176 quilômetros quadrados tiveram
desmatamento realizado de forma legal.
O avanço da devastação foi tão intenso que mais de 70% da destruição flores-
tal ocorreu entre maio e julho de 2004, na atual gestão do governador Blairo
Maggi. A cidade de Aripuanã (MT), foi a campeã de devastação: 346,51 hectares.
Em seguida, Novo Progresso (PA), com 311,42 hectares de floresta destruída, e
Altamira (PA), com a perda de 290,6 hectares.
Os índices atuais são superiores à média anual ocorrida durante a ditadura militar,
ficando abaixo apenas do pico ocorrido durante o primeiro ano do Plano Real, no
governo Fernando Henrique Cardoso, com 29 mil quilômetros quadrados desmatados.
A exemplo do que aconteceu no período militar, novamente os holofotes do
mundo se voltam para o Brasil, especialmente para Mato Grosso. O diário britâ-
nico The Independent publicou reportagem de capa intitulada: “O estupro da
floresta...e o homem por trás disso”.
Segundo o jornal, Maggi, é “um fazendeiro milionário e um político sem com-
promissos que preside o boom da produção de soja brasileira”. O governador rece-
beu outro título: Rei do Desflorestamento. O jornal afirma que a explosão da soja,
alimentando um mercado mundial aparentemente insaciável por grãos usados na
ração para gado, é o principal motor da destruição da floresta.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8
isso, o boi precisa ganhar incentivo para ser abatido fora do estado. Os donos de
frigoríficos de Mato Grosso estão revoltados com a medida. Porém, o que mais
chama a atenção, pelo ponto de vista deste texto, é o argumento do governador.
Baseado em números levantados pelo Instituto de Defesa Agropecuária do Esta-
do de Mato Grosso (Indea), que indicam um crescimento da pecuária superior a
10% ao ano, o aumento do desmatamento para abrigar novas pastagens ultrapas-
sará, nos próximos três anos, áreas superiores a 1,1 milhão de hectares ao ano,
atingindo, no período, um índice de 3,4 milhões de hectares. Para o governador,
esse aumento no desmatamento se mostra totalmente inviável para o estado, fazen-
do crer que a decisão de baixar a alíquota não é fruto de pressão do mercado, nem
que visa aumentar o número de cabeças abatidas (mesmo que fora do estado) e,
conseqüentemente, a arrecadação, e sim que é para preservar o meio ambiente.
Mas será que, quando os empresários resolverem investir em novos frigoríficos
para abater o gado dentro do estado – e, como em razão da redução da alíquota,
já de início a capacidade de abate fora do estado vai aumentar –, não se pode
deduzir que a produção de 26 milhões de cabeças tenderá a aumentar em poucos
anos? A medida provisória que estabelece a diminuição da alíquota ainda não foi
votada na Assembléia Legislativa do estado.
Perspectivas
Como resultado imediato da Operação Curupira, quando a máfia da madeira foi
pretensamente desarticulada, o governador Blairo Maggi determinou a extinção da
Fema e criou, em seu lugar, a Sema, na qual se deposita a expectativa da criação de
uma política ambiental de fato, o que até hoje não se viu no estado. Para assumir a
nova secretaria, foi remanejado o secretário de Saúde, Marcos Machado.
Machado é promotor de Justiça e teve passagens por duas secretarias do estado,
uma delas na gestão Dante de Oliveira (PSDB), tendo permanecido após a eleição
do novo governo, de oposição. Considerado um “coringa”, tem boa reputação
entre a opinião pública por ter identificado e combatido a corrupção dentro das
instituições em que atuou. Acredita-se, agora, que o conflito de interpretação entre
legislação federal e legislação estadual, no que diz respeito ao índice de desmatamento
numa suposta zona de transição entre floresta e cerrado, tenha seu fim.
O “conflito” de leis, na verdade, ao longo do tempo não passa de um conflito
de interesses, em que oportunamente são buscadas as lacunas da lei para alicerçar
os desmatamentos na legislação estadual. Essa estratégia abriu precedente para
que situações problematizadas gerassem desmatamentos autorizados – e, quando
não são autorizados, os agentes da devastação acabam recorrendo a meios ilegais.
Estudo de caso
Lutas em Porto Alegre:
entre a revolução política e o transformismo
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
Sérgio Baierle
Cientista político, integrante da coordenação
do Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos
2006 2005 2004 2003 2002 2001 2000 1999 1998 1997 1996 1995 1994 1993 1992
Saneamento 3 1 3 3 2 3 3 1 1
Habitação 1 1 1 1 1 2 1 3 2 1 3 2 1 3
Pavimentação 3 3 3 1 2 2 1 2 1 1 2 2 3
Educação 2 2 3 2 2 2
Saúde 3 3
Assistencia Social 2
Para responder a essa questão, acreditamos que Porto Alegre, hoje, se configu-
ra como um caso duplamente exemplar. Primeiro, porque é possivelmente a cida-
de brasileira que mais avançou no estabelecimento de um marco regulatório den-
tro dos parâmetros que se consolidaram no Estatuto da Cidade, tendo avançado
também na estruturação de uma base tecnológica sofisticada em termos de recur-
sos técnicos (mapeamento aerofotogramétrico digitalizado e pesquisas atualizadas
sobre as condições de ocupação na cidade, por exemplo). Segundo, porque, após
16 anos de construção de parâmetros públicos progressistas para a gestão estraté-
gica da cidade, Porto Alegre é administrada, hoje, por um governo de setores que,
durante anos, se opuseram a essa construção coletiva.
Assim, Porto Alegre permite, no presente, verificar até que ponto é possível
articular uma sinergia progressista a partir de uma base técnico-regulatória pro-
gressista, ao amparo de incentivos federais no mesmo sentido, mas no âmbito de
um governo local ambivalente, que precisa dos recursos federais para levar adian-
te suas promessas sociais (“regularização fundiária para todos!”), mas que tem
compromissos “genéticos” com as grandes incorporadoras e empreiteiras da cida-
de. Serão os movimentos sociais locais e a institucionalidade construída capazes
de fazer frente contra o retorno desses interesses tradicionais ao governo da cida-
de? Constituem os instrumentos legais previstos no Estatuto da Cidade ferramen-
tas inequívocas de transformação social no âmbito do urbano? Qual a qualidade
do diálogo que se estabelece entre os distintos atores nas arenas de discussão exis-
tentes na cidade (Conselho do Orçamento Participativo, Conselho Municipal de
Acesso à Terra e Habitação e Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e
Ambiental)? E, para além dessas arenas, como fica o diálogo entre os diferentes
níveis de governo, municipal, estadual e federal a partir das propostas que vêm do
governo federal?
O mito da ordem
Para visitantes desavisados, parece que o império da ordem se impõe universal-
mente em Porto Alegre. Um eficiente serviço de limpeza urbana, muitas árvores,
ruas pavimentadas, bom transporte coletivo, semelhante a uma cidade européia.
Aliás, de Júlio de Castilhos a Vargas, de Geisel a Tarso Genro, os gaúchos vendem
ao Brasil a utopia de um capitalismo regulado pelo Estado, em versão oligárquica,
populista, militar ou “não-estatal”.
Muitos pesquisadores e pesquisadoras que vêm à cidade conhecer a experiência
de orçamento participativo perguntam: onde estão os pobres? Cadê as favelas? A
maioria aqui é mesmo de brancos? De fato, para os padrões brasileiros, o número
de pobres é relativamente pequeno em Porto Alegre, cerca de 30% da população,
espremidos em menos de 10% do território (onde dorme a cidadania informal).
Mesmo assim, são poucos os guetos de extrema pobreza. A maioria das situações
de pobreza se mistura e se confunde com o tecido urbano formal. Mas os pobres,
entretanto, continuam pobres. Os negros continuam sendo três quintos dos revis-
tados em batidas policiais (embora representem menos de um quinto da popula-
ção da cidade), o desemprego entre as mulheres na Região Metropolitana de Por-
to Alegre é 1,5 maior que o dos homens (18,6% contra 12%) e entre jovens de 16
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5
e 24 anos chega a 30%.1 Eles estão lá, mas numa condição inédita de igualdade
em termos de acesso às infra-estruturas urbanas. Não há como comparar, por
exemplo, as ocupações urbanas na África do Sul, onde o acesso às redes de água e
eletricidade é inexistente, com as ocupações recentes em Porto Alegre, onde proli-
feram os “gatos” (ligações clandestinas) e a integração aos demais serviços urba-
nos (coleta de lixo, transporte público, escolas, projetos comunitários etc.).
Os setores comunitários desta cidade promoveram, de certa forma, uma revo-
lução política nas últimas duas décadas (por revolução política entende-se, neste
texto, uma radical mudança no lugar das classes populares na gestão pública da
cidade). Isso se percebe tanto na interação sociopolítica participativa como no
próprio âmbito físico-territorial. Das 284.922 pessoas vivendo em áreas infor-
mais (22,1% da população da cidade em 1996), metade foi coberta pelo Progra-
ma de Regularização Fundiária (PRF) da Prefeitura,2 que atingiu 36.650 famílias
em 2004. O fato de tais famílias estarem incluídas no PRF não quer dizer que
todas essas áreas já tenham sido regularizadas e urbanizadas, mas significa uma
garantia de permanência e de acesso a serviços básicos. Igualmente, o fato de
metade dos assentamentos irregulares não estar no programa não significa exclu-
são de serviços, mas uma situação de maior risco legal de remoção forçada.
1
Conforme dados da Fundação de Economia e Estatística (FEE), cujo site é <www.fee.tche.br>.
2
Dados fornecidos pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab) da Prefeitura de Porto Alegre.
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6
que vieram a ser inscritas no Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001), devemos
admitir que os mesmos resultados podem ser obtidos por diferentes meios e que
não necessariamente foram os novos instrumentos urbanísticos que produziram
aqueles resultados. Por exemplo, nos últimos anos, enquanto Porto Alegre produ-
zia uma média de mil unidades/ano (entre lotes urbanizados e casas/apartamen-
tos), Curitiba produzia cerca de 2 mil unidades/ano.
Fontes: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal para o ano 2000, utilizado como indexador da
tabela (Pnud/Ipea/FJP, Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2003), e
http://www.ippur.ufrj.br/observatorio/mapastematicos.htm
Obs.: Os indicadores do Ippur têm por base os dados do Censo IBGE 2000. Os percentuais de adensamento,
infra-estrutura e déficit têm por referência o total de unidades existentes em cada cidade. Para caracterizar as
habitações com adensamento excessivo, foi considerada a densidade de moradores por domicílio urbano. Tomou-
se como suportável o limite de até três moradores por dormitório, nas casas e apartamentos urbanos. Os problemas
de acesso à infra-estrutura, por sua vez, podem ser de carência de alguma de suas modalidades (iluminação,
abastecimento de água, instalação sanitária ou destino do lixo), ou relacionado a algum tipo de deficiência no
acesso, ou seja, aquelas que têm infra-estrutura mínima, porém de forma deficiente. Já o ICH é um índice que tenta
dar alguma noção sobre a oferta de serviços elementares de saneamento básico. As variáveis que tratam da oferta
dos serviços de infra-estrutura básica oferecidos nos domicílios se resumem a: tipo de abastecimento de água nos
domicílios particulares permanentes, presença de banheiro ou sanitário nos domicílios particulares permanentes e o
tipo de escoadouro disponível e, por fim, o destino do lixo dos domicílios particulares permanentes. Quanto mais
próximo de 1 estiver o índice, menor será a carência habitacional e vice-versa.
3
Idem.
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7
4
Vide Baierle (1992). Um novo princípio ético-político: prática social e sujeito nos movimentos populares urbanos em Porto
Alegre nos anos 80, Campinas, Tese de Mestrado em Ciência Política – UNICAMP <http://www.democraciaparticipativa.org/
Arquivos/SergioBaierle.pdf>.
5
Com a República, foi criada a função de intendente, cargo que, no início, era de nomeação pelo presidente do Estado
e depois por votação “popular” (poucos eram os eleitores aptos a votar, o voto era a descoberto, não havia justiça
eleitoral, as fraudes eram freqüentes, o que só começou a mudar de fato após o fim do Estado Novo, em 1945). O primeiro
intendente eleito de Porto Alegre foi José Montaury, em 1897. Galeria de prefeitos de Porto Alegre: Alfredo Azevedo,
nomeado (1892k–1896); Luís Farias dos Santos, nomeado (1896 –1896); Cherubin Febeliano da Costa, nomeado (1896–
1897); José Montaury – PRR, eleito (1897–1924); Otávio Rocha – PRR, eleito (1824–1828); Alberto Bins – PRR, eleito
e depois nomeado (1928–1937); Loureiro da Silva, nomeado (1937–1943); Brochado da Rocha – PTB, nomeado (1943–
1945); Clóvis Pestana, nomeado (1945); Ivo Wolf, nomeado (1945–1946); Egídio Costa, nomeado (1946); Conrado Riegel
Ferrari, nomeado (1946–1947); Gabriel Pedro Moacir, nomeado (1947–1948); Ildo Meneghetti – PSD, nomeado (1948–
1951); Elyseu Paglioli, nomeado (1951); José Antônio Aranha, presidente da Câmara (1951–1952); Ildo Meneghetti –
PSD, eleito em 1951, nas primeiras eleições para prefeito após o fim do Estado Novo (1952–1954); Ludolpho Boehl,
presidente da Câmara (1954–1954); Manoel Osório da Rosa, presidente da Câmara (1954–1955); Manoel Vargas, vice
(1955–1955); Marin Aranha, presidente da Câmara (1955–1956); Leonel Brizola – PTB, eleito (1956–1958); Tristão
Sucupira Viana (1958–1960), vice; Loureiro da Silva – PDC (1960–1963); Sereno Chaise – PTB, eleito (1964–1964),
cassado quatro meses após assumir; Célio Marques Fernandes – Arena, presidente da Câmara (1964–1969), com
pequeno intervalo em 1965, quando exerceu, como presidente da Câmara, Renato Souza; Thompson Flores – Arena,
nomeado (1969–1975), autor da frase: “Se querem mais verde, vamos pintar os viadutos de verde”; Guilherme Sócias
Villela – Arena, nomeado (1975–1983); João Antônio Dib – PDS, nomeado (1983–1986); Alceu Collares – PDT, eleito
(1986–1988), primeiro prefeito eleito após o fim da ditadura militar; Olívio Dutra – PT, eleito (1989–1992); Tarso Genro
– PT, eleito (1993–1996); Raul Pont – PT, eleito (1997–2000); Tarso Genro – PT, eleito (2001–2002); João Verle – PT
(2002–2004), vice; José Fogaça – PPS, eleito (2005, mandato até 2008).
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8
1914 Plano Geral de Plano basicamente viário exigindo a abertura de vias de acesso para desafogar o trânsito
Melhoramentos (avenidas Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos), de inspiração hausmanniana (trânsito,
beleza e higiene). No ano anterior, fora aprovado o Regulamento Geral de Construções
(proibia prédios de madeira na área central, concedendo isenção de imposto predial para
quem passasse a construir em alvenaria), incentivando a verticalização e atendendo aos
“superiores interesses da higiene e saúde pública” (orientação para obras de saneamento
básico combinadas com demolição de cortiços, porões e becos na área central, cujos
moradores eram acossados pela “Comissão Sanitária”).
1927 Decreto nº 180 Estabelece o imposto predial diferenciado sobre imóveis conforme localização (centro,
periferia), densidade (número de pavimentos) e tipologia (cortiços/porões, madeira, mistos),
incidindo também sobre os vazios urbanos (com altas taxas na área central, com o objetivo
expresso de combater a especulação imobiliária). Na prática, o decreto integrava o esforço do
intendente Otávio Rocha para ampliar a arrecadação local (incluindo sobretaxa de 20% nos
tributos locais) para enfrentar o crescente endividamento da cidade.
1937 Linhas Gerais do Plano basicamente viário com o desenho de um corredor de acesso à cidade (Avenida
Plano Diretor Farrapos) e a previsão de um túnel sob a Avenida Independência (Viaduto da Conceição,
construído 40 anos depois). O plano coincide com o fechamento da Câmara de Vereadores
em 1937 e sua substituição por um Conselho Técnico de Administração. Com o fechamento
da Câmara e o clima ditatorial, as desapropriações para fins urbanos ficavam facilitadas, o que
permitiu concluir as obras da Borges de Medeiros e Salgado Filho.
1938 Plano Gladosch Plano ainda basicamente viário, mas que já incorporava uma visão da cidade como um todo, de
inspiração funcionalista (cidade como rede de homens, máquinas, mercadorias e serviços que precisa
ser regulada), tendo como exemplo o trabalho de Agache no Rio de Janeiro (escola francesa),
apontava para a necessidade de zoneamento (áreas verdes, industriais etc.) e também incentivava a
verticalização, atendendo ao desejo de modernização das elites, que implicava apagar o passado
colonial e construir uma nova identidade. Em 1939, foi criado o Conselho do Plano Diretor.
1959 Plano Diretor de Entrou em vigor em 1961. Plano geral de desenvolvimento urbano, de caráter modernista, regula-
Porto Alegre mentava a superfície mais habitada da cidade a partir de quatro funções: habitação, trabalho, lazer
e circulação. Estabelecia padrões uniformes para os loteamentos (igualdade = padronização).
1979 I Plano Diretor Este plano consolidava todo um conjunto de normas já existentes e atingia toda a área do
de Desenvolvi- município (divisão urbano/rural), estabelecendo áreas de ocupação intensiva e extensiva, bem
mento Urbano como de preservação ambiental. O regime urbanístico e o controle de edificações passavam a
(PDDU) se basear nas definições do Plano para cada Unidade Territorial de Planejamento. Outra
novidade foi a abertura para uma limitada representação comunitária no conselho do Plano.
Continua na página seguinte
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
9
1990 Nova Lei Reconhece os conselhos populares, permite a iniciativa popular em projetos de lei e estabelece
Orgânica a participação popular no orçamento e no planejamento municipal, a criação de um fundo
Municipal (LOM) municipal de desenvolvimento e todo um conjunto de instrumentos de reforma urbana
(direito real de uso, solo criado, banco de terras, função social da propriedade com previsão
de IPTU progressivo e parcelamento ou edificação compulsórios, desapropriação por interesse
social ou utilidade pública, usucapião, regularização fundiária e outros).
1999 Plano Diretor de Adoção do planejamento estratégico, concepção de zoneamento flexível com previsão de
zonas mistas e corredores de desenvolvimento (cidade xadrez), com a incorporação dos vários
instrumentos de reforma urbana regulamentados durante a década de 1990 a partir da Lei
Orgânica Municipal. Ampliação da participação comunitária por meio da criação de oito
regiões de gestão do planejamento, todas com assento no conselho do Plano.
Fontes: Secretaria de Planejamento Municipal (SPM/PMPA); Lei Orgânica Municipal; Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA); Panizzi e Rovatti (1993); Strohaecker (2005).
B) POPULISMO MODERNIZADOR
Essa vocação modernizadora do positivismo não é tão afastada quanto pode
parecer da vertente populista que se consolida na década de 1950, nos governos
de Leonel Brizola,7 que, não por acaso, é um engenheiro. O sindicalismo de Esta-
do criado pelo projeto populista no Brasil era um modelo não apenas para o
sindicalismo, mas também para o conjunto das classes populares (ver Boito Jr.,
1991). Em 1959, foi criada em Porto Alegre a Federação Rio-grandense das Asso-
ciações Comunitárias e de Amigos de Bairro (Fracab), com a mesma pretensão ao
monopólio da representação e ao aparelhismo político-partidário da estrutura
sindical oficial. As primeiras favelas em Porto Alegre datam da década de 1940,
mas é na década seguinte que elas passam a se configurar como uma alternativa
mais efetiva para a moradia popular nas periferias da cidade, a partir da consoli-
dação do padrão rodoviário em substituição ao ferroviário.
Mal emergiam os primeiros movimentos comunitários e já havia uma estrutu-
ra paraestatal preparada para dirigi-los. Assim como os sindicatos eram depen-
dentes do governo via mecanismos regulatórios da Justiça do Trabalho e de repas-
ses do imposto sindical, a Fracab dependia de repasses/apoios da Assembléia
Legislativa e de governos para o seu funcionamento. Após o golpe de 1964, a
entidade simplesmente passou a adotar uma linha de adesismo ao regime, que
durou até meados da década de 1970. O organicismo brizolista consistia basica-
mente num esforço estatal de articulação e mobilização política para a radicalização
do bloco nacional-desenvolvimentista. Ao mesmo tempo que bloqueava a inde-
pendência de classe dos setores populares, o Estado aparecia como protagonista
potencial de uma transformação social, como instrumento de luta contra o “im-
perialismo” ou como braço “protetor” dos “trabalhadores do Brasil”. A distri-
buição clientelista de chaves em conjuntos habitacionais, como foi o caso da Vila
dos Industriários (IAPI) em Porto Alegre, era acompanhada da organização de
entidades de moradores, cujo papel principal era o de serem elos com o governo.
7
Leonel Brizola foi prefeito de Porto Alegre de 1955 a 1958 e governador do Rio Grande do Sul de 1959 a 1962.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10
1872 43.398 -
1890 52.421 -
1900 73.474 -
1920 179.263 -
Também é de 1959 um novo plano urbano para Porto Alegre, não apenas
viário, mas também voltado para o zoneamento. Em plena era de migração cam-
po–cidade, esse plano projetava um modelo europeu/norte-americano para Porto
Alegre. Nele, imaginava-se uma cidade igual para todos por meio do estabeleci-
mento de rígidos padrões urbanísticos, que acabariam fazendo crescer as cidades
8
Por meio desse projeto, foi criado um bairro novo na cidade, a Restinga, na zona extremo sul, muito longe do centro do
que era a cidade então, que serviu para reassentar as pessoas removidas à força do centro da cidade. As pessoas foram
simplesmente jogadas em terrenos sem a mínima infra-estrutura. Havia uma linha de ônibus que buscava as pessoas para
o trabalho de manhã cedo e as trazia de volta no fim do dia. O projeto serviu para que vários proprietários dos terrenos
intermediários entre o centro urbano e a Restinga se beneficiassem da progressiva extensão de infra-estrutura até lá.
Como nas townships sul-africanas, as pessoas eram confinadas num gueto do qual só podiam sair para trabalhar.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11
C) AUTORITARISMO POPULISTA-CLIENTELISTA
Diferentemente do populismo sindical, a matriz populista modernizadora não
teve tempo, na verdade, para se desenvolver até o seu limite. Foi abortada preco-
cemente pelo golpe de 1964. Em Porto Alegre, ela seria retomada em duas ocasi-
ões. Primeiro, dez anos mais tarde, pelos próprios interventores da ditadura após
1975, em função da necessidade de competir eleitoralmente no quadro da abertu-
ra “lenta e gradual”. Quando o Banco Nacional da Habitação (BNH) começa a
abrir espaço para políticas de recuperação urbana, emerge um novo populismo,
clientelista, autoritário, restrito à lógica pragmática de troca de obras por votos.10
Não se tratava mais da integração política das classes subalternas, mas de sua
9
Para uma visão mais abrangente da evolução das políticas de planejamento urbano em Porto Alegre, vide Alfonsin et al.
(2004).
10
Atualmente, no governo Fogaça (2005–2008), parece retornar ao poder essa matriz autoritário-clientelista, dourada por
teorias de integração social copiadas dos manuais do Banco Mundial, por meio do conceito de governança solidária local
(ver Cidade, 2005).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
12
integração enquanto massa consumidora. Foi criada, então, uma série de progra-
mas sociais e habitacionais de gabinete, que buscavam despolitizar as associações
de moradores (AMs) em processo de crescente mobilização na virada para a déca-
da de 1980. Em Porto Alegre, via entrega da direção do Demhab a políticos
profissionais, e não mais a tecnocratas, a tática básica utilizada era a decretação
de utilidade pública para as áreas ocupadas irregularmente. Como essas áreas, em
geral, ficavam em locais impróprios para moradia (beiras de arroio, encostas de
morro, áreas de preservação ambiental), portanto, sem grande valor de mercado
para os seus proprietários originais, em virtude das proibições inscritas na legisla-
ção urbanística do município, a sua compra posteriormente pelo poder público
representou uma ocasião para grandes negócios. Ao mesmo tempo, a população
moradora nessas áreas passava a ter na Prefeitura o seu grande aliado, ou inimigo,
diante das ações de despejo, dependendo de seu “bom comportamento” eleitoral.
Com um grande número de AMs gravitando ao redor dos partidos de oposição ao
regime militar, os interventores municipais (prefeitos de capitais voltaram a ser
eleitos somente a partir de 1985) buscavam criar um campo de forças a seu favor,
operando de modo até um pouco semelhante aos trabalhistas da década de 1950,
distribuindo lotes de terra e aceitando dialogar somente com as AMs por eles
criadas ou a eles vinculadas. Os tempos, porém, eram outros.
Logo em seguida, no fim da década de 1970, esta matriz autoritário-clientelista
se revelaria insuficiente para conter o ascenso dos movimentos comunitários, então
aliados aos movimentos sindicais, numa conjuntura de progressiva mobilização
contra a ditadura militar. Essas ações traduziam, principalmente, a afirmação de
uma cultura de direitos, a consciência de que o atendimento das reivindicações não
é um favor do Estado, mas um dever e um direito básico de cidadania. Há uma
mudança fundamental na postura de relacionamento com o poder público. Em
lugar do pedinte submisso, aparecia um novo personagem, desafiador da ordem,
capaz de ocupações coletivas de terrenos, barricadas nas ruas, enfrentamento físico
com a polícia, concentrações na frente dos órgãos públicos e tendo, naquela época
(entre os anos 1975 e 1985), imediata repercussão nos meios de comunicação, inte-
grados pelo campo oposicionista como atos de protesto contra o regime militar.
D) O MOVIMENTO
Não tendo ocorrido um questionamento mais transformador dos formatos
organizativos e institucionais, garantiu-se uma sobrevida para o padrão delegatório
que presidira historicamente a criação de associações de moradores (AMs) em
Porto Alegre. Mesmo assim, desenvolveu-se um processo intenso de mobilização
popular, questionando sistematicamente o padrão autoritário de relacionamento
do poder público com as organizações populares, o qual denominamos neste do-
cumento como a “prática do enfrentamento”. Foi um período rico de experiênci-
as de articulação entre organizações de trabalhadores e de moradores. A greve dos
trabalhadores da construção civil, em Porto Alegre, em 1979, por exemplo, trou-
xe para as ruas do centro da cidade famílias inteiras atuando na coleta do fundo
de greve, mostrando para a “opinião pública” situações de pobreza geralmente
escondidas. O multipartidarismo, de volta à legalidade, permitia a construção e a
retomada de vínculos populares, unificando-se as lutas no combate ao regime
militar, com manifestações maciças de protesto. Havia a sensação de que grandes
transformações sociais estavam ao alcance da mão. Como lembra Vinícius Fagundes
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13
Almeida, da AM da Estrada dos Alpes, em Porto Alegre: “As reuniões eram feitas
na Igreja Católica, na capela, mas a gente convidava o pessoal evangélico, todos,
de todas as religiões, para que participassem. Foi um dos momentos mais bonitos
da nossa luta comunitária, porque a gente sabia que estava lutando, tinha um
inimigo comum e visualizava ele. Então, a gente combatia ele: era a ditadura”.
A empolgação nos meios de esquerda com a possibilidade de uma crescente
mobilização contra o regime militar levava um grande número de militantes a um
esforço para construir “O Movimento”: a subordinação de toda a heterogeneidade
de ações geralmente pragmáticas das comunidades populares ao projeto de cria-
ção de um sujeito coletivo unitário, dirigido pelo sindicalismo “combativo” e
dotado de hierarquia vertical de comando. Da crítica ao “peleguismo” das AMs,
passou-se rápido demais à disputa pelo comando dessas entidades, prática que
viria a ser criticada mais tarde como o “fetiche dos aparelhos”11 – mutatis
mutandis, apenas se repetia o que já ocorria no meio sindical “combativo” com a
reprodução do chamado “sindicalismo de Estado” (Boito Jr., 1996). De um lado
a idéia de duplo poder (via “comissões de fábrica” e “conselhos populares”), de
outro a vida real nas periferias urbanas, massificação cultural e pragmatismo nas
negociações (via aceitação da tutela estatal no reconhecimento das organizações
sindicais e populares). A fundação da União das Associações de Moradores de
Porto Alegre (Uampa) em 1983 pode ser considerada ao mesmo tempo como
expressão de culminância e de crise desse esforço. Como combinar o monopólio
de representação por local de moradia reivindicado pelas AMs com o pluralismo
das temáticas de mobilização emergentes e que envolviam também profissionais
de saúde, de educação e de assistência social? Cooperativas, grupos de mulheres,
comunidades eclesiais de base, movimentos estudantis, tudo deveria se subordinar
às AMs, e estas, à Uampa? E como conciliar, na Uampa, as disputas entre os
diferentes partidos em construção/reconstrução? A sonhada unidade popular não
tinha como realizar-se de forma meramente instrumental. Em nome dos princípi-
os de não-partidarização e da autonomia em relação aos governos, a Uampa foi se
tornando progressivamente o contrário, sobretudo após 1987, com o fim da as-
sessoria prestada pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
(Fase) em Porto Alegre: uma entidade atrelada e instrumentalizada pelas forças
partidárias que a presidiam. Em vez da politização das lutas comunitárias, o re-
sultado foi o reforço do que pode ser chamado como a ideologia do comunitarismo,
que concebe as comunidades populares como totalidades homogêneas cujo hori-
zonte máximo é o acesso à cidade (enquanto infra-estrutura, equipamentos e ser-
viços). Pavimentação é asfalto, escola é prédio, saúde é posto de saúde, tratamen-
to é remédio, transporte é ônibus, cultura é show, “comida é pasto, bebida é
água”. Criada em parte como alternativa à ditadura do PMDB desde o fim da
década de 1970 na Fracab, a Uampa foi progressivamente perdendo sua legitimi-
dade entre os ativistas comunitários. Certamente, manteve sua relevância em de-
fesa do direito à moradia e no bloqueio de ações de despejo, mas não conseguiu
mais recuperar o nível de enraizamento social que lhe deu origem.
11
Segundo Haroldo de Abreu: “[...] petrificação de lideranças sem massas, transformadas em cadeias de transmissão de
visões particulares e ‘salvadoras’ do mundo. Mas cadeia de transmissão sem movimento não passa de máquina parada,
que reproduz apenas a fetichização dos aparelhos e a reificação dos militantes” (1991, p. 7).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14
O quadro a seguir mostra a evolução das opções eleitorais em Porto Alegre, após
a ditadura militar. Observa-se uma progressiva perda de expressão de PDT e PMDB
em favor do PT até 1996 e uma tendência inversa a partir de 2000, culminando
com a eleição de Fogaça (PPS, ex-senador pelo PMDB) em 2004. Em 1985, o PDT
com Collares obteve 43% dos votos e era o partido preferido pelos eleitores em
Porto Alegre, seguido do PMDB, que obteve 29% e do PT, então com apenas 11%.
Apenas 11 anos depois, em 1996, a situação era totalmente inversa: o PT atingia
52% da preferência dos eleitores, e o PDT e o PMDB reduziam sua participação a
5% cada um. Em 1998, nas eleições para o governo do estado, o PT com Olívio
Dutra atingiria 54% no primeiro turno em Porto Alegre, sua pontuação máxima
na cidade. A partir daí, inicia-se um progressivo declínio. Em 2000, o PT ainda
faria 49% dos votos para prefeito no primeiro turno, caindo, em 2004, para 38%.
O PPS, que em 2000 obtivera menos de 1%, em 2004, com Fogaça (ex-PMDB),
conseguiu 28% no primeiro turno e venceu com 53% no segundo.
PFL 53.769
(G. Bonow)
PPS 229.113
(José Fogaça)
431.820
(2o turno)
PSB 24.588
(Beto
Albuquerque)
Fonte: Arquivos da antiga Fase Regional Porto Alegre, com dados trabalhados
pelo autor e montados por Maya Fruet (2002).
(*) Associações existentes naquela zona da cidade quando da criação da articulação.
12
Entende-se por ações hegemônicas a busca de um consentimento ativo por parte de determinados grupos ou blocos
sociais a partir da proposição de princípios ético-políticos com a pretensão de validade universal. Durante a década de
1980, os movimentos sindicais das áreas sociais (saúde, educação e assistência social) apresentavam forte tendência a
defender políticas públicas progressistas e a buscar a adesão a essas propostas dos públicos com os quais trabalhavam.
A crise da década de 1990 acabaria levando esses movimentos a um refluxo corporativo.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16
contrário, havia sido educado por uma outra lógica na luta contra a ditadura,
assim como já não havia mais o mesmo consenso entre as esquerdas como no pré-
1964. Collares acenou com a idéia organicista de criação dos “conselhos popula-
res”, que, na verdade, seriam conselhos setoriais a serem criados para cada secreta-
ria. As comunidades dos diversos bairros poderiam participar dos diversos conse-
lhos setoriais propostos por meio dos presidentes de associações de moradores,
mas os secretários de cada pasta seriam a autoridade em última instância para a
tomada de decisões. Esse seria o modelo para completar a obra populista no terre-
no comunitário, mas o projeto não chegou a ser implantado, porque o governo
ficou com medo de não conseguir controlar os setores comunitários organizados
simpatizantes de outras forças políticas (PT e PMDB, sobretudo).13
A redução da transição do regime militar a um movimento limitado ao campo
da política institucional – cuja expressão mais significativa foi o movimento Dire-
tas Já, que culminou numa eleição indireta e numa progressiva desmobilização
social (das centrais sindicais aos próprios “fiscais do Sarney”) – acabou forçando
os movimentos sociais a um movimento de luta pela ampliação da arena política.
Criar conselhos locais, estaduais e federais; lutar para que esses conselhos possam
controlar fundos próprios, com destinação exclusiva; garantir uma maioria de
representantes da sociedade civil nesses conselhos; conferir-lhes poder legal – para
o assim chamado campo gestionário (das lutas sociais), esse movimento tornou-se
bandeira de luta em todas as áreas sociais.
O grande modelo inspirador da gestão popular-participativa foram os con-
selhos de saúde da Zona Leste de São Paulo. Esse modelo se consolidou
institucionalmente com o Sistema Único de Saúde (SUS) e combina a idéia de
participação direta dos usuários de determinados serviços nas suas próprias regi-
ões, dos profissionais que diretamente prestam os serviços, dos governos e dos
prestadores privados. Também no aspecto do financiamento, o SUS é modelar.
Hoje, os recursos do SUS transitam de forma separada pela contabilidade dos
governos locais, sendo sua utilização submetida à deliberação do conselho de
saúde. Se é certo que a participação permitiu um maior controle dos gastos públi-
cos em saúde, também é certo que tanto os prestadores privados como o governo
federal preservaram suas esferas de autonomia relativa no manejo desses recursos.
Segundo levantamento realizado pela ONG Cidade, existiam em Porto Ale-
gre, no fim da década de 1990, mais de 30 conselhos, dos quais aproximadamen-
te 20 estão em efetivo funcionamento. Conforme pesquisa mais recente, elabora-
da por Betânia Alfonsin para o 4º Congresso da Cidade, em 2003, mesmo entre
os 20 principais conselhos havia problemas de quorum e funcionamento, como se
observa no quadro seguinte, que também permite identificar as áreas de conflito
não só entre os conselhos, mas entre estes e o orçamento participativo.
13
Para uma análise detalhada desse processo, vide Moura (1989).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17
COMAM (Meio NR NR NR NR NR
Ambiente)
CONCONT SIM
(Contribuintes)
CONCOM NÃO
(Comunicação)
CONEN NR
(Entorpecentes)
INFRA-ESTRUTURA
INEXISTÊNCIA DE PODER
COMUNICAÇÃO DEFICIENTE
1
Embora discordando da análise de Ricci sobre as experiências de OP, que nos parecem superficiais, feitas, sobretudo,
a partir da experiência de Belém, em que o OP seria “superado” pelos Congressos da Cidade, que incorporariam a
dimensão do planejamento (vide Ricci, 2002), consideramos a análise que faz sobre os limites de atuação dos conselhos
gestores e sobre o governo Lula bastante precisas. Os Congressos da Cidade são pontuais, ou seja, suas conseqüências
têm de ser monitoradas por outras instâncias, quebram com a participação cidadã ao incorporarem os próprios quadros
do governo no processo de disputa em assembléia, além de lidarem com uma infinidade de temas durante pouquíssimo
tempo, o que transforma as deliberações em simples recomendações a serem seguidas ou não pelos governos, não
havendo, portanto, pelo menos nesses congressos, quase nada que possa efetivamente ser chamado de planejamento,
muito menos de reforma do Estado.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20
OP, que tem garantido em lei apenas o “quê”, os conselhos setoriais vêm encon-
trando mais dificuldades para sobreviver numa conjuntura política adversa do
que o OP. Sem desprezar a importância da inscrição de direitos em lei, verificamos
que o enraizamento social tem se mostrado uma garantia mais forte do que a
jurídica, não apenas porque a produção de justiça é ineficiente no Brasil, mas
também porque a própria objetividade da justiça não é gerada em abstrato.
NR – 1,0 0,4 – – –
NR – – 0,1 – – –
NR – 0,9 – – – –
15
Vide as pesquisas (“Quem é o público do OP?”) realizadas pelo Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos e
outros parceiros em 1995, 1998, 2000 e 2002. Dados gerais disponíveis em artigos no site do Cidade (www.ongcidade.org).
Segundo dados do IBGE, de 2004, os autodeclarados negros e pardos em Porto Alegre, por exemplo, representariam
11,9% da população em idade ativa. Nas plenárias do OP, eles representaram 28,1% do público em 2002, chegando a
24% dos delegados e a 23% dos conselheiros.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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NR – – 0,4 0,8 – –
Glossário
• População: Dados do Censo IBGE 2000 para Porto Alegre.
• Plenário: participantes entrevistados na primeira rodada do OP no ano de 2002.
• Dir. AMs: participantes entrevistados na primeira rodada do OP no ano de 2002 que são dirigentes de
associações de moradores.
• Delegados: participantes entrevistados na primeira rodada do OP no ano de 2002 que são ou foram,
em algum momento, delegados do OP.
• Conselheiros: participantes entrevistados na primeira rodada do OP no ano de 2002 que são ou
foram, em algum momento, conselheiros do OP.
• NR: pessoas que não responderam.
O PT vinha dos movimentos sociais, mas o seu forte em Porto Alegre eram,
sobretudo, os sindicatos dos setores médios (arquitetos, jornalistas, bancários, pro-
fessores, telefônicos etc.). Nos setores comunitários, a inserção do PT se dava, em
especial, por meio das comunidades de base da Igreja, dos programas de extensão
universitária em algumas regiões – sobretudo a Lomba do Pinheiro, onde se locali-
zava o campus da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e para onde
haviam sido transferidas as áreas de Letras, História e Ciências Sociais – e da atua-
ção de profissionais de educação, saúde e assistência social em algumas comunida-
des. Essas inserções não se davam de forma exatamente articulada, já que eram
atravessadas pelas tendências internas ao PT, assim como ocorria na área sindical.
Fonte: Cidade-2002
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24
Enquanto foi possível avançar na recuperação das receitas próprias via política
fiscal, esse projeto parecia até mesmo gerar um ciclo proativo na economia, ao
estimular, via financiamento público, um conjunto de obras executadas por
empreiteiras com base nas decisões de investimento do OP. Não é de graça que a
Região Metropolitana de Porto Alegre ainda hoje detém a menor taxa de desem-
prego entre as capitais pesquisadas pela rede Dieese/Seade.
REGIÕES 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 JUN 2005
METROPLITANAS
Belo Horizonte 15,9 17,9 17,8 18,3 18,1 20,0 19,3 17,7
Distrito Federal 19,7 22,1 20,2 20,5 20,7 22,9 20,9 19,5
Porto Alegre 15,9 19,0 16,6 14,9 15,3 16,7 15,9 15,0
São Paulo 18,2 19,3 17,6 17,6 19,0 19,9 18,7 17,5
1. RECEITAS CORRENTES 1.523 1.748 1.832 3. DESPESAS CORRENTES 1.450 1.675 1.786
1.1 Receitas próprias 826 1.043 1.079 3.1 Despesas com pessoal 770 985 1.052
Outras receitas próprias 541 664 699 Outras despesas com pessoal 96 61 5
1.2 Transferências 697 705 753 3.2 Outras despesas correntes 680 691 734
Outras transferências 653 659 704 Demais despesas correntes 657 651 689
Total receitas (1+2) 1.586 1.799 1.913 Total despesas (3+4) 1.621 1.828 1.988
Déficit 34 29 75 Sperávit 0 0 0
Claro que essa situação precisa ser relacionada com a opção municipal pela
ampliação da margem de endividamento,16 sobretudo via financiamento obtido
no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de US$ 58 milhões, para a
realização da III Perimetral (12 quilômetros de avenida cruzando a cidade de
norte a sul que elevaram o nível de endividamento e o comprometimento anual
com amortizações e juros), assim como tem a ver com a perda relativa de peso
econômico da cidade no conjunto do Rio Grande do Sul, o que tem impacto nas
transferências constitucionais feitas pelo Estado, conforme quadro a seguir. A re-
dução do índice de retorno do ICMS, vide quadro abaixo, para 10,513 em 2006
significará uma perda orçamentária de aproximadamente R$ 38 milhões (ou seja,
o equivalente a um quarto dos investimentos executados em 2004).
Índice de retorno do ICMS (Porto Alegre – 2000–2006)
16
14
12
10
8
6
4
2
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
16
A dívida consolidada de Porto Alegre, que representava menos de 10% da Receita Corrente Líquida (RCL) após reforma
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Junte-se a isso também a crise fiscal do Rio Grande do Sul (por conta de isen-
ções fiscais e do peso da dívida pública após sua “federalização” em 1998), o
aumento dos gastos com pessoal (sobretudo quando aumentam as demandas nas
áreas de saúde, educação e assistência social17) e mais os constrangimentos criados
pela Lei de Responsabilidade Fiscal (necessidade de superávit primário como con-
dição para novos financiamentos), bem como a dificuldade da Frente Popular em
enfrentar uma reforma administrativa sem ter de necessariamente cair nas receitas
tradicionais de ajuste. A elevação da carga tributária federal e a reconcentração de
recursos naquele âmbito durante o governo FHC, somadas à política monetária
extremamente restritiva, contribuíram também para limitar o uso de políticas
anticíclicas por parte dos governos municipais em geral.18 Entre 1999 e 2002,
segundo o IBGE, a participação de Porto Alegre no PIB brasileiro caiu de 1,13%
para 0,97%.
250
200
150
100
50
0
1989 1993 1997 2001 2002
fiscal local no início da década de 1990, passou para 25% da RCL em 2000 e chegou a 32% no primeiro quadrimestre de
2005 (R$ 569 milhões). Observa-se, nesse período, também uma progressiva redução do ativo disponível, pois a dívida
consolidada líquida (= dívida - disponibilidades) variou muito mais, de 12,5% da RCL, em 2000, para 24,5% da RCL, no
primeiro quadrimestre de 2005. Ainda assim, Porto Alegre ainda está longe do teto de endividamento admitido pela Lei
de Responsabilidade Fiscal, que permite uma dívida líquida de até 120% da RCL.
17
Porto Alegre compromete, hoje, 49,82% da RCL com pessoal (dados do primeiro quadrimestre de 2005, conforme
disponível no site Secretaria da Receita Federal (http://www.tesouro.fazenda.gov.br).
18
Conforme dados da Secretaria da Receita Federal, entre 1998 e 2004, a carga fiscal no Brasil elevou-se de 29,7% do
PIB para 35,9%. Ao mesmo tempo, a participação do governo federal no bolo tributário nacional se eleva de 56,1%, em
1996, para 60,1%, em 2002, enquanto decresce a participação dos estados (de 27,6% para 24,6%) e dos municípios (de
16,2% para 15,3%) no mesmo período.
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29
Fonte: DEMHAB, Habitação é prioridade em Porto Alegre, Porto Alegre, PMPA, 2004.
tratar, neste texto, é precisamente dos pontos não consensuais, dos pontos em
que há disputa ou onde os arranjos implicam problemas para a qualidade de
vida na cidade.
Como tem sido possível sustentar esse esvaziamento ao longo de vários anos?
A resposta é relativamente simples. Primeiro, despendendo anos apenas para or-
ganizar o regimento interno e garantir pelo menos uma rotina de reuniões, embo-
ra não de procedimentos. Segundo, priorizando a discussão de situações imedia-
tas e emergenciais ou simplesmente pontuais, ligadas aos interesses desse ou da-
quele conselheiro. Como um terço dos conselheiros vem das regiões do OP (agru-
padas duas a duas), é natural que tragam um conjunto de demandas de serviços
para as reuniões, mas não é aceitável que elas acabem substituindo a ausência de
decisões sobre a política habitacional propriamente dita. Terceiro, postergando
sistematicamente o fornecimento de informações relevantes. Existem os dados
gerais dos gastos do Departamento, mas praticamente não há dados sobre a exe-
cução dos projetos específicos. Como conseqüência, a função educativa que po-
deria ter o funcionamento do Comathab para os participantes e para aqueles que
representam acaba meio perdida e se reforçam os aspectos mais imediatistas da
participação. Talvez isso também ajude a explicar o escasso retorno do resultado
das reuniões para o conjunto da sociedade e mesmo para as pessoas que escolhe-
ram os conselheiros em suas regiões. Da mesma forma, explica-se também o pe-
queno interesse dos setores empresarias da construção civil em participar desse
conselho, e o mesmo pode ser dito dos representantes do próprio governo, sendo
necessário muitas vezes adiar deliberações em função de problemas de quorum.
Como, então, pode combinar-se esse esvaziamento com a efetividade dos in-
vestimentos em habitação no município (R$ 321 milhões em 16 anos, benefici-
ando um número aproximado de 53 mil famílias)? A resposta a essa pergunta é
um pouco mais complexa, já que, na verdade, o Demhab divide com outros seto-
res do governo as decisões estratégicas sobre a política habitacional. Assim, existia
todo um amplo espaço de bastidores em que se articulavam líderes comunitários
e governo, sobretudo no âmbito do OP. Na verdade, só muito recentemente, o
Demhab vem se aparelhando para o desempenho de um papel mais estratégico.
Durante a maior parte de sua existência, o órgão funcionava mais como uma
imobiliária popular, repassando financiamentos da CEF e administrando uma
carteira sempre com alto índice de inadimplência (estimada atualmente em 80%,
segundo o novo diretor geral do departamento, Nelcir Tessaro). Além disso, como
havia uma relativa coincidência de propósitos entre governo e líderes comunitári-
os, não havia muita preocupação com as formalidades de funcionamento do con-
selho, desde que, na prática, os investimentos ocorressem.
A conseqüência, mais uma vez, foi a despolitização da questão habitacional. A
melhor expressão disso foi o recuo do governo na questão da Concessão do Direi-
to de Uso. Um dos debates mais relevantes tratados no âmbito do Comathab teve
a ver com o repasse de chaves em áreas de concessão de uso. Segundo a Lei Orgâ-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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nica do Município (artigo 203), para os terrenos públicos ocupados até 1989
seria possível aplicar a Concessão do Direito Real de Uso (CDRU), ou seja, o
direito dos ocupantes permanecerem no local mediante o pagamento de um pe-
queno “aluguel” ao município.19 Posteriormente, estendeu-se o direito de uso tam-
bém para outras situações. A concessão poderia ser transferida aos herdeiros, e a
única condição era de que o imóvel não poderia ser repassado a terceiros, a não
ser pela sua devolução ao Demhab, que, então, selecionaria outra família em
situação de carência. Na prática, não havia um trabalho pedagógico a respeito de
suas vantagens sobre a propriedade privada (que implicaria ao morador um custo
de mercado a ser pago, e não um simples aluguel, além do custo social para o
conjunto da sociedade, já que, pelo instrumento da livre venda, seriam retirados
imóveis de uso social para serem repassados ao mercado privado).
Somando-se a isso, a pressão de setores de oposição que procuravam mostrar a
concessão do direito de uso como uma forma de discriminação social e mais o
incentivo velado dado ao comércio ilegal de chaves, gerou-se o caldo de cultura
necessário para pressionar a Prefeitura a rever as regras do jogo, o que ocorreu du-
rante a 1ª Conferência Municipal de Habitação em Porto Alegre, em 1997, quando
foi tirada a recomendação de realização de um seminário específico para tal fim.
Desse seminário surgiu um projeto de alteração na legislação, tornado lei em 2000
(Lei Complementar 445), que permite a venda dos imóveis por parte de detentores
do direito de uso, mas sob determinadas condições (via Demhab, garantia de que o
comprador também apresenta as mesmas condições de carência). Essa alteração
abriu espaço para novas propostas na Câmara de Vereadores, como a possibilidade
de conversão em financiamento habitacional após dez anos, entre outras.
No governo Fogaça, com a recente instituição do programa Dono da Casa
pelo Demhab,20 a concessão do direito de uso pode ser convertida em financia-
mento habitacional em até 240 meses. Não se trata apenas de uma questão de
razoabilidade, como pode parecer à primeira vista, mas da contradição entre inte-
resse social e apropriação individual. A disputa política em torno da questão con-
cessão versus propriedade tornou-se emblemática do modelo de gestão autoritária
adotado pelo Demhab. Esse órgão, mesmo após 16 anos de administração popu-
lar, não conseguiu alterar certo ranço policialesco-clientelista na gestão dos seus
loteamentos. Embora existam alguns casos exemplares, de um modo geral não foi
possível desenvolver um trabalho mais efetivo de educação popular, voltado para
19
A CDRU é um instrumento utilizado basicamente nas áreas públicas de uso comum ou no reassentamento de
comunidades que residem em áreas impróprias ao uso habitacional, ou seja, as áreas de risco. Tal concessão é dada para
famílias de baixa renda (até cinco salários mínimos) e que não sejam proprietárias de outro imóvel. No caso de morte do
concessionário, nos termos do artigo 7º da Lei Complementar Municipal 242/91, alterado pela Lei Complementar
Municipal 455/2000, “será prevista a ordem de vocação hereditária nos termos do artigo 1.603 do Código Civil Brasileiro”.
20
No site do Demhab, lê-se a respeito do programa Dono da Casa: “O programa trata da opção de compra de unidades
habitacionais de interesse social. A nova modalidade de contrato torna o morador proprietário do imóvel, como refere o
nome. Assim, casa e todas suas benfeitorias podem ser transferidas, desde que atendidos alguns requisitos legais. Além
disso, o programa atende antigas reivindicações dos moradores: a garantia da escritura de sua casa e o pagamento das
prestações por tempo determinado. O Demhab parcela o valor da casa em até 240 meses. O contrato de superfície garante
que a área seja utilizada exclusivamente com o fim de habitação de interesse social, protegendo as terras públicas de
especuladores imobiliários. As casas e apartamentos construídos pelo Demhab eram entregues mediante um contrato de
Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Agora, há uma nova opção de contrato: o Contrato de Direito de Superfície”.
Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?p_secao=22>. Acesso em: 27 nov. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
34
21
Porto Alegre tem 778 CCs, dos quais 40 são conselheiros tutelares eleitos pela população. O custo mensal da folha dos
CCs gira ao redor de R$ 2,5 milhões. O número total de servidores públicos municipais ativos é de aproximadamente 12,5
mil, dos quais 2,5 mil ocupam funções gratificadas (FGs).
22
Tratava-se de um condomínio destinado aos setores médios. Acabou sendo ocupado em 1987, quando da falência do
BNH. Para viabilizar a permanência das famílias no local, nas negociações com a incorporadora responsável pela obra,
manteve-se um valor baixo para as prestações, estimando que não haveria inadimplência. Como o município ficou como
garantidor dos financiamentos, cabe a ele arcar integralmente com os custos de inadimplência. A situação é complexa,
porque, mesmo assim, o valor das prestações, corrigido pela variação do CUB, em alguns casos ficou muito alto (alguns
moradores têm prestações ao redor de R$ 600). Além disso, muitos ocupantes originais acabaram vendendo as chaves,
os novos ocupantes não se sentem seguros em pagar, e o Demhab, até a chegada do governo Fogaça, nunca quis encarar
o custo político de provocar o despejo de 80% das 1.092 famílias que lá residem. Estima-se que 10% dos 22,5 mil imóveis
do Departamento tenham sido transferidos irregularmente.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
35
23
Por pressão das comunidades populares, articuladas no Fórum Municipal de Reforma Urbana, foi possível fazer com que
os governos da Frente Popular incorporassem a partir de 1992 políticas ativas de regularização fundiária, bem como de
reassentamento de famílias em áreas de risco/preservação (via os seguintes programas: Programa de Regularização
Fundiária; Programa de Reassentamento; Programa de Cooperativismo Habitacional Autogestionário, que pouco avançou;
Programa de Ajuda Mútua/Mutirão, que gerou apenas 173 unidades, infelizmente; Programa de Regularização de
Loteamentos Clandestinos e Irregulares; bem como compra de áreas para projetos de moradia, por meio do OP).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
37
perceber que essa mesma rigidez fiscal atual não se reproduz no relacionamento
com as classes empresariais, ao contrário. O governo Fogaça vem reunindo os
setores empresariais da cidade, por segmento, para propor a redução do Imposto
sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN). Embora variando de setor para
setor, a redução tende a ficar em torno de 40% (redução da incidência do tributo
de 5% para 3%). Argumenta-se que a redução permitiria trazer todo um conjun-
to de empresários para o campo da legalidade e, conseqüentemente, compensar a
redução com diminuição da evasão fiscal. Por enquanto, o que é certo é a atração
política desse conjunto para o campo ideológico do novo governo.
24
O regimento interno do CMDUA, assim como o PDDUA de Porto Alegre, encontra-se disponível no site da Secretaria de
Planejamento Municipal da Prefeitura de Porto Alegre (http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/).
25
Vide o documento “Construindo a Lomba do futuro”, disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/
spm/usu_doc/publi_lomba_ordenado.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
38
26
O texto da Lei 9.162 está disponível em : <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/
lei_do_urbanizador_social_ok.pdf>. Acesso em : 27 nov. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
39
projeto cheio de boas intenções – uma vez que fica reduzido a uma “bolsa” e não
dá conta das condições em que se reproduz a exclusão urbana, nem implica, de
fato, uma alternativa de autoria popular para a questão das moradias, o que
envolveria uma outra lógica de financiamento –, torna-se apenas mais um projeto
de solução pontual, quando não de franco subsídio ao lucro privado.
Um outro exemplo recente e que permite visualizar a dinâmica de poder que
atravessa o CMDUA é o que se refere às Estações de Rádiobase (ERBs). As ERBs
são as famosas antenas instaladas em várias regiões da cidade para viabilizar o
funcionamento de aparelhos celulares. De acordo com a legislação, a instalação
dessas estações deveria observar regras ambientais mínimas27 e precisaria ser apro-
vada pelo CMDUA. Porém, uma vez que era necessário ouvir também os fóruns
regionais de planejamento, acabou sendo gerado um impasse existente desde o
governo Verle, pois muitas comunidades criticavam as áreas escolhidas e a
inobservância dos termos da legislação. O governo Verle, embora em princípio
favorável à aprovação, aceitou os argumentos comunitários e vinha adiando uma
definição sobre a questão. Quando o governo Fogaça assumiu, em janeiro de 2005,
fez aprovar todos os processos de forma conjunta, aproveitando a situação de rela-
tiva desmobilização em período de férias escolares e de transição de governo. Foram
estabelecidos termos de ajustamento de conduta dali para frente, prorrogando, na
prática, o prazo que já havia sido dado para adequação legal das instalações, tal
como era reivindicado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do
Sul (Fiergs). Os setores empresariais, que haviam sido derrotados na justiça quando
questionaram a legitimidade de uma lei municipal regular a matéria, compensaram
a perda jurídica com uma vitória na prática. Além disso, ainda obtiveram do gover-
no Fogaça a edição do Decreto-lei 14.826/05, que restringe o prazo para a Comis-
são de Análise Urbanística e Gerenciamento avaliar o impacto urbano de empreen-
dimentos. O decreto passou a toque de caixa pelo CMDUA, sem que os conselhei-
ros comunitários sequer percebessem, em meados de fevereiro de 2005, quando o
quorum é mais baixo. Em seguida, foi apresentado, com toda a pompa e circuns-
tância, em uma reunião almoço do Sinduscon. De lá para cá, vários outros projetos
de interesse dos grandes incorporadores imobiliários têm sido aprovados de forma
atropelada pela Secretaria do Planejamento Municipal, como se esses setores mal
pudessem esperar a chegada do novo governo ao poder. Projetos controvertidos,
como o Parque Germânia (megaempreendimento imobiliário dos grupos Goldsztein
e Condor numa área de 40 hectares na Zona Leste),28 a reurbanização do cais do
porto (ao estilo shopping, como o que foi feito ao lado do Mercado Ver-o-Peso em
Belém do Pará e que descaracterizou a área portuária da cidade) e outros, correm,
agora, em grande velocidade, sem nem ao menos passar por discussões ampliadas
no conselho do OP.
27
De acordo com a Lei Municipal 8.896/02, as antenas devem observar distância mínima de 450 metros entre uma torre
e outra e distância mínima de três metros entre a base da torre e os terrenos lindeiros.
28
A Condor é a maior proprietária de vazios urbanos de Porto Alegre, e a Goldztein é a maior incorporadora imobiliária.
A polêmica envolvendo o loteamento diz respeito à possível privatização branca de áreas que deveriam ser destinadas ao
uso público, pois essas áreas (que constituirão um parque) serão separadas do resto da cidade (sobretudo vilas populares
do entorno) por um cinturão de edificações destinadas ao mercado de alta classe média.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
40
Enquanto isso, projetos de interesse público mais amplo, como o caso das
Áreas Especiais de Interesse Cultural (AEICs), são engavetados e retirados da pau-
ta. Conforme estabelece o Plano Diretor, as AEICs “são áreas que apresentam
ocorrência de Patrimônio Cultural que deve ser preservado a fim de evitar a perda
ou o desaparecimento das características que lhes conferem peculiaridade”. No
PDDUA, 45 áreas haviam sido identificadas e mais 35 tinham sido propostas em
estudo encomendado à Faculdade de Arquitetura da Universidade Ritter dos Reis.
Como a maior parte das áreas encontra-se em regiões “nobres” (Moinhos de Ven-
to, Petrópolis e Rio Branco), os setores empresariais questionavam a quantidade e
a qualidade dos estudos, ignorando os movimentos de moradores e ambientalistas
contra o incremento da verticalização (movimento pelo direito ao sol). Também
acabou sendo engavetado pelo novo governo o projeto de lei que regulamentava
a ação e o poder de deliberação dos Fóruns Regionais de Planejamento.
O próximo passo do novo governo será a revisão do Plano Diretor e da pró-
pria composição do conselho, sendo muito provável a exclusão ou subalternização
completa dos fóruns regionais. O que isso significa? Significa, na prática, a ampli-
ação de uma dominação que os setores empresariais já detinham no CMDUA,
que já havia sido expressa na votação dos valores para o solo criado e em outras
situações (como, por exemplo, na autorização concedida ainda no governo Verle,
para que os interessados pudessem conversar dentro da SPM diretamente com os
técnicos que analisavam projetos de seu interesse com vistas a dar mais celeridade
aos trâmites burocráticos). Mais do que isso, por que um governo que vinha do
campo popular não conseguiu abrir espaço para o fortalecimento dos movimen-
tos populares na área do planejamento urbano? Por que os setores populares con-
tinuaram presos às suas demandas pragmáticas ou mesmo se deixaram cooptar
em algumas situações? Certamente, muitas respostas poderiam ser tentadas ou até
ser devolvida a pergunta: qual seria a alternativa?
A atuação dos setores comunitários não pode se resumir a simplesmente tentar
barrar empreendimentos empresariais de qualidade social, cultural, ambiental ou
econômica duvidosa. É certo que não existe “a alternativa”, mas, se os setores
populares que se fortaleceram nos espaços participativos gerados na cidade pre-
tendem disputar algum sentido e ter um efetivo papel protagonista na definição
do futuro da cidade, precisam construir-se coletivamente para essa luta.
Ainda é cedo para se ter uma idéia do ocorrerá com o OP em Porto Alegre,
mas, com certeza, ele não será mais o mesmo. Apesar de o prefeito Fogaça e seu
homem forte, César Busatto, repetirem ad nauseam que o OP será mantido, a
coalizão de forças que os sustenta, o seu passado político e o que parecem enten-
der por OP sugerem um outro sentido para essas declarações. Antes das eleições, o
ex-senador Fogaça vinha trabalhando como consultor para a Fiergs e, antes disso,
trabalhou para o Grupo RBS. César Busatto foi o secretário da Fazenda do gover-
nador Antônio Britto (1995–1998). Nele estava centralizada a política de demis-
sões voluntárias (PDVs), incentivos fiscais e privatizações. Não por acaso, ele é,
agora, o responsável pelo OP.
O projeto de governo de Fogaça é articulado pelo conceito de Governança
Solidária Local. Segundo afirmado nas plenárias do OP pelo secretário de Coor-
denação Política e Governança Local, César Busatto, “a Governança Local é um
fórum executivo, não-deliberativo; é uma articulação em rede que busca criar
pactos de co-responsabilidade. Nesse espaço, não tem disputa, não tem votação,
não tem delegado”. Buscando o envolvimento das comunidades locais com metas
e indicadores de resultados a serem alcançados, “o princípio norteador desse mo-
delo é a co-responsabilidade em favor da inclusão social. A idéia central é instau-
rar, em Porto Alegre, uma parceria permanente entre o Poder público, a iniciativa
privada e o terceiro setor que busque resolver os problemas da cidade” (Busatto e
Vargas, 2004, p. 26). Acima do OP e de todo o conjunto de instâncias participativas
existentes na cidade, será criada uma nova esfera pública, o Fórum da Governança
Solidária Local.29 Os Centros Administrativos Regionais serão convertidos em cen-
tros de governança solidária regional, articulando o conjunto das instituições com
presença na região (escolas, centros de saúde, postos policiais, fundações empresa-
riais, ONGs, organizações assistências, clubes etc.).
Mais do que um simples conceito, essa nova esfera incluiria os supostamente
“excluídos” do OP (universidade, fundações privadas, sindicatos empresariais,
organismos profissionais e outros). Essa esfera não substituiria o OP, segundo o
governo, mas contribuiria para a sua governabilidade ao atrair outros setores para
o processamento das demandas do OP, sobretudo no que se refere ao seu financi-
amento. A idéia de governança solidária local vem das leituras que o atual gover-
no vem fazendo das propostas do Banco Mundial para o desenvolvimento local.
29
O organograma apresentado pelo novo governo está disponível em: <http://www.ongcidade.org/site/arquivos/boletim/
14425eb1c905068.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Uma pista concreta para o futuro da governança havia sido deixada já no ano
passado, pela divulgação pública do documento “A crise do Estado: reformas
para racionalizar a máquina pública”,30 entregue em dezembro de 2004 pelas
federações empresariais ao governo do estado. Nesse documento, com inspiração
em Bresser Pereira, é apresentada ao governo uma proposta de “publicização” da
máquina pública. Por “publicização”, entende-se a “produção não-lucrativa de
bens e serviços públicos não-exclusivos de Estado, pela sociedade, que assume
parte da operação na administração estatal indireta, visando permitir a
maximização dos resultados de ação social”. Que serviços seriam esses, concreta-
mente? Segundo o documento, seriam os serviços de saúde, educação, segurança e
qualificação para o trabalho. Além disso, é sugerida a privatização das áreas de
água e saneamento, bem como de energia, sem falar, é claro, do Banrisul. Os
setores empresariais se propõem a mexer profundamente na burocracia e na
contratualidade estatal, não para publicizá-las, como afirmam, mas para subordiná-
las integralmente aos seus interesses, retirando todo o seu verniz republicano em
nome de uma objetividade técnico-econômica. Não mais se trata das “razões de
Estado” do Estado patrimonial-burocrático, mas da ditadura dos imperativos do
mercado travestidos de exigência da “sociedade civil liberal”. Na verdade, borra-
se a distinção entre mercado e sociedade civil característica desse último conceito,
já que, uma vez capturado o Estado pela tutela financeira dos mercados, é a
própria sociedade civil que passa a operar com critérios mercantis.
É por essa visão, de que só o que é privado é “público”, que esses mesmos
empresários encaram o OP, como uma ferramenta de normalização social e o
embrião de novas oportunidades de privatização. Não havendo muito mais o que
privatizar no Estado, busca-se, agora, privatizar o que ainda há de público na
própria sociedade. Ao que tudo indica, é para isso que os atores “excluídos” pelo
OP em Porto Alegre estariam sendo convidados. Por meio de ferramentas gerenciais,
como a criação de agências executivas ou organizações sociais financiadas pelo
poder público (via contratos de gestão e o concurso de projetos com base em
indicadores de desempenho), os movimentos comunitários seriam progressiva-
mente induzidos a se ajustarem a requisitos técnico-administrativos empresariais.
Não se trataria, pois, de uma ação clientelista tradicional, mas de uma hegemonia
capitalista pós-moderna, que se daria pela transformação da gestão das desigual-
dades sociais em oportunidades de mercado. Tal como o trabalhador, quando
encontra emprego, é forçado a aceitar as condições impostas pelo empregador,
também as organizações comunitárias só seriam “empregadas” dentro das condi-
ções impostas pelos seus financiadores, e não criadas por elas mesmas por meio da
luta política.
Outra pista na mesma direção foi dada pela aceitação tanto pelo governo do
Estado do Rio Grande do Sul como pelo governo de Porto Alegre de uma
consultoria oferecida pelo Programa Gaúcho da Qualidade e Produtividade
(PGQP)31 para estudar as possibilidades de racionalização nos gastos públicos
30
O artigo de Merlin (2005) oferece uma síntese do documento.
31
Para mais informações, vide: <http://www.portalqualidade.com/programas/pgqp/o_pgqp/oque.asp>. Acesso em: 27 nov. 2005.
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7. Conclusões
Houve um tempo em que se dizia que o problema do Brasil era o povo. Havia até
piada sobre isso. Deus teria feito um país maravilhoso, mas com um povinho
muito do ordinário. Nesse preconceito contra o povo, incluía-se tudo: das origens
escravistas às instituições políticas. Na sociologia, isso aparecia nas críticas à pre-
cariedade de nossa sociedade civil, sempre atrelada ao Estado e limitada às franjas
mais ilustradas dos setores médios, incapaz de articular o conjunto da população.
Concluía-se pela existência de um déficit de povo, não de poder.
Nos últimos 20 anos, as classes populares deste país romperam o cordão de
isolamento que as separava da participação política autônoma. Encerramos, ain-
da que lenta e gradualmente, mais de duas décadas de ditadura militar. Direitos
básicos de cidadania foram estendidos ao conjunto da população, não obstante
sua precária qualidade. Já se foi o tempo em que apenas quem tinha carteira de
trabalho assinada tinha direito aos serviços de saúde pública, por exemplo. Com
a abertura do voto aos analfabetos a partir de 1988 e a retomada plena das liber-
dades políticas, estabelecemos efetivamente o sufrágio universal. Por intermédio
dos meios de comunicação de massa, o conjunto da população é bem ou mal
32
O site do INDG é <http://www.indg.com.br/>.
33
Para conhecer o que dizem os atuais conselheiros do OP a respeito, vide <http://www.ongcidade.org/site/arquivos/
jornal/final42137ff7a9adb.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2005.
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46
informado do que acontece no país. Essa afluência popular, sobretudo nos meios
urbanos, traduz-se também no econômico, mesmo que por vias transversas, por meio
da gradativa conquista de melhorias nas infra-estruturas urbanas, da vagarosíssima,
porém constante, regularização fundiária de áreas de ocupação, no acesso à educação
e no desenvolvimento de imensas redes de produção e comércio informal.
Já a cidadania propriamente política das classes populares vinha passando por
um processo que ia mais além dos simples atos de votar e ser votado. Grande parte
das políticas sociais em vigor passou a ser acompanhada por conselhos locais que
fiscalizam a aplicação dos recursos e os seus resultados. Tratou-se de uma fantás-
tica aposta nas instituições democráticas. Na área do desenvolvimento urbano,
em 2003, contando apenas os estados da região Sul (Paraná, Rio Grande do Sul e
Santa Catarina), realizaram-se 196 conferências municipais das cidades, 54 con-
ferências regionais e, claro, três estaduais. Na área da segurança alimentar, os nú-
meros são ainda mais impressionantes. Praticamente todos os médios e grandes
municípios passaram a desenvolver políticas minimamente participativas para dar
conta do combate à fome, nem que seja para se credenciarem como beneficiários
de recursos federais. Apenas no Rio Grande do Sul, foram realizadas 240 confe-
rências municipais de segurança alimentar. Menos impressionantes, mas não me-
nos significativos, foram os eventos nas áreas de meio ambiente, educação e saú-
de. Os fatos, porém, são cabeças-duras, como dizia o estrategista Lenin. Após três
anos de governo Lula, mesmo o mais motivado militante da participação popular
percebe que não há entusiasmo que resista ao simulacro.
Se algo faltou, não foi certamente a vontade cívica de construir um país
melhor. Existe, portanto, uma imensa demanda de nação que não encontra es-
paço nas possibilidades atuais da política. Alguns espaços para conversar até
existem, o que não existe é conseqüência, o que reduz a participação a um ritual
impotente na construção de soluções capazes de vertebrar grandes mobilizações
sociais. Alguns comentaristas econômicos, cinicamente, dizem que chegou o
momento de cairmos todos na real, de abandonarmos os sonhos de mudanças
mágicas nas condições sociais existentes. Temos, então, o salário mínimo possí-
vel, as políticas sociais possíveis, o Estado possível. Temos a faca, mas não po-
demos dividir os recursos, pois eles já têm dono. Ninguém mais fala em planeja-
mento, os governos parecem prisioneiros do quotidiano, as batalhas são trava-
das a cada dia e o futuro é uma zona que não existe. Não falta o povo, mas não
temos mais o país.
As oportunidades participativas abertas pelo governo Lula não somente foram
limitadas e inconsistentes em sua maioria, mas também coincidiram, no caso de
Porto Alegre, com um estresse de gestão da Frente Popular que administrava a
cidade até 2004. O último Congresso da Cidade, realizado em 2003, já mostrava
certo esvaziamento participativo, uma vez que se percebia que parte substantiva
do público era composta pelos próprios quadros do governo, num contexto de
acirramento das disputas entre as tendências internas. Com certeza, as oportuni-
dades trazidas pela preparação de conferências nacionais para as mais diversas
áreas (meio ambiente, cidades, segurança alimentar etc.) serviram para dar certo
gás aos movimentos sociais, mas a sua descontinuidade e a ausência de perspecti-
vas mais concretas de participação popular na gestão das políticas públicas acaba-
ram gerando um processo de banalização da participação.
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47
34
Vide o excelente trabalho de Ana Paula Paes de Paula (2005).
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49
35
Enquanto o PT “majoritariamente” se integra às classes políticas conservadoras, o setor mais moderno dessas classes
redescobre a necessidade de atuar como “burguesia”, pela reconversão gerencial da crise das ações hegemônicas do
adversário. Ainda que se possa dizer que, no governo Lula, existe uma ênfase diferenciada no papel do Estado como
agente de regulação (o Estado busca recuperar o papel econômico e geopolítico estratégico que vinha perdendo desde
o fim do regime militar), essa ênfase é moderada pela ausência de um projeto de reforma administrativa, bem como pela
crescente adesão às propostas de cunho privatista, como é o caso das parcerias público-privadas, do incentivo aos fundos
previdenciários privados, da compra de vagas nas universidades privadas via renúncia fiscal, da destinação privatista dos
fundos públicos gerados sobre os salários (como é o caso do FAT) e da submissão à expansão do agronegócio em áreas
de reservas (Amazônia, Raposa do Sol), para não mencionar a contínua “privatização” do próprio orçamento público pelo
capital financeiro por meio da política monetária. No plano da interação sociopolítica, o governo Lula rechaçou de pronto
a idéia de um orçamento participativo nacional, bem como adotou a mesma bandeira da governança pela criação do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o “Conselhão”, sonhando com a produção de um pacto produtivista
capital-trabalho ao estilo das mesas de concertación que encantam o Banco Mundial e que proliferam sem sucesso pela
América Latina (vide Peru, Bolívia, Equador, Nicarágua e outros).
36
Para um estudo social da filosofia grega, vide Farrington (1984).
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50
Referências bibliográficas
CIDADE. Boletim Cidade, ano V, n. 14, abr./maio 2005. Disponível em: <http:/
/www.ongcidade.org/site/arquivos/boletim/14425eb1c905068.pdf>. Acesso em:
27 nov. 2005.
MARENCO, André. Quem não sabe por que perde não saberá como ganhar
novamente. 2004. Disponível em: <http://www.ongcidade.org/site/arquivos/arti-
gos/andre_marenco4202693e53167.doc>. Acesso em: 27 nov. 2005
PANIZZI, Wrana M.; ROVATTI, João F. (Orgs.). Estudos urbanos: Porto Ale-
gre e seu planejamento. Porto Alegre: UFRGS, 1993.
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53
RICCI, Rudá. Réquiem para um governo sem rosto. Revista Espaço Acadêmi-
co, n. 51, ago. 2005. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/051/
51ricci.htm>. Acesso em: 27 nov. 2005.
Estudo de caso
Rio São Francisco:
transposição, integração e revitalização
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2
Tereza Rozowykwiat
Jornalista com especialização em sociologia, colunista
do JC OnLine e integrante da assessoria de imprensa do
Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco
tecarozowyk@gmail.com
1
Algumas fontes apresentam 3.163 quilômetros de extensão, a exemplo do texto “Rio São Francisco”, disponível no site
da Fundação Joaquim Nabuco (http://www.fundaj.gov.br/docs/pe/pe0048.html). Outras, como o texto da Administração
da Hidrovia do São Francisco (http://www.ahsfra.gov.br/rio2.htm), indicam 2.800 quilômetros e, ainda, 2.700 quilômetros,
como se encontra no site do Projeto São Francisco do Ministério da Integração Nacional (http://www.mi.gov.br/saofrancisco).
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4
São Francisco, que vai até a confluência com o rio Jequitaí, em Minas Gerais; o
médio São Francisco, início do trecho navegável do rio, que segue até a barragem de
Sobradinho, na Bahia; e o submédio e o baixo, entre Sobradinho e a foz.
Quanto à geração de energia elétrica, o rio São Francisco é, ainda hoje, o
principal recurso natural que impulsiona o desenvolvimento regional, fornecendo
energia para abastecimento de todo o Nordeste e parte do estado de Minas Ge-
rais, por meio das hidrelétricas de Paulo Afonso, Itaparica, Três Marias e Xingó.
Esta (a segunda maior do país, com capacidade para produzir 3 mil megawatts)
teve suas obras concluídas na década de 1990.
A extensão da hidrovia do São Francisco equivale à distância entre Brasília
(DF) e Salvador (BA). Sem dúvida, é a mais econômica forma de ligação entre o
centro-sul do país e a região Nordeste. Com o seu extremo sul localizado na
cidade de Pirapora (MG), a hidrovia é interligada por ferrovias e estradas aos
mais importantes centros econômicos do Sudeste, além de fazer parte do corredor
de exportação Centro–Leste. Ao norte, nas cidades vizinhas a Juazeiro (BA) e
Petrolina (PE), a hidrovia está ligada às principais capitais do Nordeste, dada à
posição geográfica dessas duas cidades. Diferentes tipos de carga são transporta-
dos, destacando-se produtos como gipsita, soja, milho, algodão, polpa de toma-
te, gesso agrícola e fertilizantes. Atualmente, a hidrovia do São Francisco passa
por uma etapa de grandes intervenções físicas.
No que se refere à navegação, durante todo o ano o rio São Francisco oferece
condições naturais em parte do seu curso, e sua profundidade (calado) varia de
acordo com o regime de chuvas. O São Francisco apresenta condições naturais de
navegação entre Pirapora (MG) e Petrolina (PE)/Juazeiro (BA). Seu porto mais
importante é o de Pirapora (MG), interligado aos portos fluviais de Petrolina
(PE) e Juazeiro (BA), e aos marítimos de Vitória (ES), Rio de Janeiro (RJ), Santos
(SP), Salvador (BA), Recife (PE) e Suape (PE), por rodovias e ferrovias.
Em relação à agricultura, no vale do São Francisco, as áreas mais propícias ao
aproveitamento agrícola situam-se às margens do rio. Por isso, a maior parcela da
população se encontra estabelecida nas proximidades do rio.
Inúmeros problemas de natureza social e econômica vêm, ao longo dos anos,
afetando o percurso natural do rio, como o assoreamento, o desmatamento de
suas várzeas, a poluição, a pesca predatória, as queimadas, o uso inadequado de
adubos químicos, o garimpo e a irrigação.
2 Ver comentário no item 5.1: Posição do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco.
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7
Por outro lado, a história dos projetos de irrigação São Gonçalo e Várzeas de
Sousa, ambos no município de Sousa, na Paraíba, revela como, em nome da po-
pulação assolada pela seca, centenas de milhões de reais são investidos em obras
conflitantes e ineficazes, muitas vezes contaminadas por disputas políticas locais.
Conforme reportagem do Estado de Minas, sob o título “Interesse político no
combate à seca”, assinada pelo jornalista Bernardino Furtado, publicada em 26
de novembro de 2004, São Gonçalo, projetado para ter 3 mil hectares de lavou-
ras, só irriga 1.500 hectares, ainda assim nos anos em que há reserva suficiente de
água nos açudes associados. Várzeas de Sousa, informa Furtado, inaugurado em
2002, não tem um único hectare irrigado. “Custou R$ 105 milhões, metade apli-
cada no Canal da Redenção, de 37 quilômetros, que está completamente seco.”
A reportagem do Estado de Minas aponta que, em 1998, o governo da Paraíba,
com a ajuda de recursos do orçamento federal, começou a construção do Canal
da Redenção, a partir da barragem Coremas-Mãe d’Água:
Esse complexo de dois grandes açudes interligados foi inaugurado no
governo Juscelino Kubitschek, na segunda metade da década de
1950. Com 1,4 bilhão de metros cúbicos, é formado pelas águas do
rio Piancó, um afluente que deságua no Piranhas próximo à cidade
de Pombal, 60 quilômetros abaixo de Sousa. No projeto original do
Canal da Redenção, previa-se um reforço do abastecimento de água
do perímetro de irrigação São Gonçalo, para torná-lo perene. O
segundo governo José Maranhão decidiu, no entanto, dirigir a
totalidade da água para um projeto de irrigação novo, o Várzea de
Sousa, de 5 mil hectares. Foram investidos, também com participa-
ção do governo federal, R$ 55 milhões em barragens auxiliares,
bombas e tubos. O perímetro Várzeas do Sousa tornou-se a menina-
dos-olhos da administração José Maranhão, que entregou a obra no
fim do mandato em 2002, com infra-estrutura montada para irrigar
a primeira etapa, com 1.320 hectares. Seu candidato à sucessão,
Roberto Paulino (PMDB), no entanto, foi derrotado por Cássio
Cunha Lima (PSDB). Passados dois anos, o governo estadual ainda
não realizou a licitação dos lotes da primeira etapa do Várzeas de
Sousa. O Canal da Redenção sofreu avarias e a rede de cabos de alta
tensão do perímetro de irrigação foi roubada.
3
Informações sobre o projeto encontram-se disponíveis em: <www.mi.gov.br/saofrancisco>.
4
Ver <www.mi.gov.br/saofrancisco>.
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12
apresentem quedas d’água. A captação de água seguiria por dois eixos. Para o
Eixo Norte, a transposição está prevista a partir do município de Cabrobó (PE),
sendo projetados: quatro estações de bombeamento, 22 aquedutos, seis túneis, 26
reservatórios de pequeno porte e duas pequenas centrais hidrelétricas, junto aos
reservatórios de Jati e Atalho (CE). Quanto ao Eixo Leste, no reservatório de
Itaparica, na divisa da Bahia com Pernambuco, será composto de cinco estações
de bombeamento, cinco aquedutos, dois túneis e 9 reservatórios de pequeno por-
te. O custo inicial da obra se encontra orçado em R$ 4,5 bilhões. Os dois eixos
levarão as águas do São Francisco da represa de Sobradinho (PE) para as bacias
dos rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN), Piranhas-Açu (PB/RN), Paraíba (PB), Moxotó
(PE) e Brígida (PE) (ver Figura 1).
Em abril de 2005, o Instituto Brasileiro do meio Ambiente e de Recursos Na-
turais Renováveis (Ibama) concedeu licença para a construção de dois canais de
622 quilômetros, a fim de levar água aos estados da Paraíba, Ceará, Rio Grande
do Norte e parte de Pernambuco. Os estados doadores de água seriam o próprio
Pernambuco, além de Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas. Os que podem se
transformar em doadores, isto é, os que são banhados pelo São Francisco, se
posicionaram contra o projeto, ao contrário dos receptores. Entretanto, de acor-
do com reportagem publicada no Jornal do Commercio, de autoria de Jamildo
Melo, na edição de 29 de julho de 2005, o ministro Ciro Gomes decidiu ampliar
o projeto de transposição com o objetivo de atender a algumas reivindicações do
estado de Pernambuco. Anunciou que será criado mais um eixo, o Oeste, que
passará pelo traçado originalmente previsto para a construção do Canal do Ser-
tão. A obra deverá captar água de Sobradinho para fortalecer o pólo irrigado de
Petrolina, chegando até Araripina. O Eixo Oeste atravessará cerca de 400 quilô-
metros, beneficiando uma área com grande potencial econômico, ampliando os
projetos de fruticultura do estado (ver Figura 2).
O governo federal garante que não haverá prejuízos econômicos ou ambientais
para os estados banhados pelo rio São Francisco, ressalvando uma pequena redução
da geração de energia nas usinas da Chesf, o que, segundo a administração federal,
não causará o menor problema, uma vez que o Nordeste está interligado ao sistema
nacional de distribuição de energia. No caso de Minas Gerais, por exemplo, a cap-
tação de água ocorrerá centenas de quilômetros depois de o rio ter deixado o terri-
tório mineiro. Informa que a primeira captação será feita após a barragem de
Sobradinho, na divisa entre a Bahia e Pernambuco, num trecho cuja vazão já está
regularizada por essa represa. A segunda captação será realizada no lago de Itaparica,
também na divisa entre a Bahia e Pernambuco, não causando qualquer impacto
econômico ou ambiental, segundo o governo federal. Alagoas e Sergipe também
não serão afetados porque a vazão do rio nesses estados é plenamente regulada
pelas represas da Chesf, que alterou as condições originais do rio próximo da foz.5
No que se refere à questão, a ANA garante que existe água suficiente para ser
desviada sem atrapalhar a produção de energia. Entretanto, como um dos canais
partirá de um ponto abaixo de Sobradinho e acima das maiores geradoras de
5
Idem.
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13
Quando indagado se não existe uma outra solução técnica mais econômica que
a transposição, o governo federal responde que a água dos rios intermitentes do
semi-árido setentrional já é armazenada em grandes açudes e investe-se muito nessas
obras para disponibilizar relativamente pouca água. Para cada metro cúbico de
água disponibilizado perdem-se três metros cúbicos por evaporação e sangramento
dos açudes. Assim, é preciso represar quatro metros cúbicos para usar apenas um. O
que poderá ocorrer, em muitas bacias, alerta o governo, é que a construção de novos
açudes necessários para distribuir água no território acabará causando mais perdas
de água por evaporação, reduzindo a água disponível no conjunto da bacia.
Quanto aos poços, o governo afirma que a opção pela captação de água em
lençóis subterrâneos por meio de poços é viável, mas limitada ao volume renovável,
e só pode ser feita, basicamente, nos terrenos sedimentares permeáveis, que ocor-
6
Idem.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14
7
O Rima está disponível no site do Ministério da Integração Nacional.
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15
Como solução para as regiões mais distantes das suas margens, Barreto
Campello sugere a construção de açudes e a irrigação dessas margens.
Para o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna, a solução
para a seca no Nordeste está no desenvolvimento de novas formas de gerir a
água que já existe na região: seus 70 mil açudes acumulam um potencial de 37
bilhões de m³/s, o maior volume represado em regiões semi-áridas do mundo.
Segundo o pesquisador, os pontos mais relevantes do problema dizem respeito
às limitações das vazões no rio, o que tem gerado freqüentes conflitos entre a
geração de energia (o racionamento ocorrido em 2001 foi uma prova disso) e a
irrigação praticada no vale, dificultando, sobremaneira, a ampliação da área
irrigada na sua bacia hidrográfica.
Há ainda técnicos que defendem uma transposição do rio Tocantins para o São
Francisco, antes de transferir as águas dessa bacia para outros rios e açudes. Sem essa
realização, a transposição do São Francisco será ineficaz ao longo prazo, apresen-
tando mais problema do que solução, dizem uns. Para outros, defensores do mesmo
argumento, o Tocantins está mais próximo e a 140 metros de altura. Bastaria abrir
um canal de 200 quilômetros até o rio Preto, na Bahia, que deságua no São Francis-
co. Nunca mais haveria problema de abastecimento no Nordeste, asseguram.
O documento resultante do Encontro Internacional sobre Transferência de Águas
entre Grandes Bacias Hidrográficas, promovido pela Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), em outubro de 2004, repudiou veementemente o
projeto de transposição do governo federal. A entidade manifestou preocupação
com o fato de que o São Francisco já não dispõe de vazão suficiente para atender
às demandas contidas no projeto do governo. Caso sejam viabilizadas as constru-
ções dos dois eixos, Norte e Leste, será necessária uma vazão de até 127 m³/s. A
SBPC lembra que o rio dispõe de uma vazão alocável de aproximadamente 360
m³/s, sendo que 335 m³/s já foram utilizados em diversos empreendimentos, exis-
tindo um direito adquirido de uso dessas águas. O que resta, portanto, para ser
alocado são apenas 25 m³/s. O documento da SBPC afirma que o governo federal
tem conhecimento dessa situação de penúria hídrica e, por isso, buscou alternati-
va para retirar água do rio sem comprometer o setor elétrico e o agrícola.
Nesse sentido, o governo passou a propor a revisão das outorgas já concedidas
e pensa em usar as águas da represa de Sobradinho quando ela estiver com 94%
de sua capacidade de armazenamento preenchidas. O relatório adverte que a situ-
ação de plenitude da capacidade de Sobradinho, historicamente, só ocorre de sete
em sete anos. Sobradinho sangrou em 1997, e o fenômeno só voltou a ser obser-
vado em abril de 2004. Nesse período, ocorreram severas secas na região, e, em
2001, o país teve de enfrentar a sua mais séria crise energética.
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8
O documento de criação do movimento foi transcrito no site do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e
Agronomia da Bahia (Crea-BA) <www.creaba.org.br> e assinado por entidades da sociedade civil, instituições, Ministérios
Públicos estaduais, representantes de governos municipais e estaduais e parlamentares.
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19
de boa qualidade, não produzem nada ou quase nada devido à falta de água”,
declara. Ele acredita que o projeto governamental é de interesse do agronegócio e
das empreiteiras, enquanto o pequeno produtor, “se um dia for beneficiado pelo
projeto de transposição, nunca terá dinheiro para arcar com os custos da irriga-
ção. Terá de ser subsidiado”, afirma.9
Também em 19 de julho de 2005, por ocasião da presença do ministro Ciro
Gomes na 57ª Reunião da SBPC, ocorrida em Fortaleza, o público presente mani-
festou grande insatisfação com o projeto de integração do rio São Francisco. O
ministro voltou a afirmar estar seguro de que “o projeto chegou num ponto em
que é possível dizer que 12 milhões de pessoas serão beneficiadas no Nordeste sem
que nenhum brasileiro sequer seja prejudicado”. Ciro Gomes comunicou que,
para alcançar essa meta, o projeto original foi modificado. O objetivo foi reduzir
a vazão do rio a ser utilizada no plano (de 360 m³/s para algo em torno de 26 m³/
s, na versão atual).
Conforme notícia divulgada pela Agência Brasil, no Portal da Cidadania, assi-
nada por Olga Bardawil, o ministro da Integração Nacional reconheceu que o
primeiro patamar era inviável, mas acredita que o atual representará a cessão de
apenas 1,4% do total da água do rio (Bardawil, 2005).
Ainda na 57ª Reunião da SBPC, conforme artigo de Verônica Falcão, enviada
especial do Jornal do Commercio, a professora da Universidade Federal da Bahia
e coordenadora do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, pesquisadora Yvonilde
Medeiros, disse que os estados doadores da água – Pernambuco, Bahia, Sergipe e
Alagoas – deveriam receber pelo recurso. Segundo a professora, “em todos os
projetos de transposição do mundo a bacia hidrográfica que doa é compensada
pelos danos”, justifica.
Para o hidrólogo Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo (USP), citado
no mesmo artigo do Jornal do Commercio, “ainda não está claro a quem o pro-
jeto irá atender e quantas pessoas beneficiará”. O professor Rebouças lembrou
que o Banco Mundial emitiu um parecer contrário à transposição por duvidar do
alcance social da obra. “Ricos têm dinheiro para ganhar, não para gastar”, adver-
tiu o professor, que, no entanto, anunciou não ser contra o projeto. Sugeriu que
alguns aspectos, a exemplo do alcance social, sejam mais bem discutidos.
9
Manifesto divulgado pelo site <www.manuelzao.ufmg.br>.
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20
Senhor Presidente:
Mesmo assim, visando não deixar dúvida quanto a nossa irrecusável solidariedade aos
irmãos nordestinos, apoiamos integralmente a decisão do Comitê de permitir a transpo-
sição de água para abastecimento humano e dessedentação animal nos casos de com-
provada escassez de recursos hídricos, quando não houver alternativa de suprimento
local nas regiões receptoras, concomitantemente com a implantação do Plano de Recur-
sos Hídricos da Bacia Hidrográfica.
Como rio da unidade nacional, o São Francisco constitui-se no elo físico, orgânico,
cultural e socioeconômico da integração do País, representando o corredor natural de
interligação do Nordeste com o Sudeste brasileiros, do litoral com o Sertão e eixo de
conectividade dos biomas da caatinga e do cerrado. As suas águas, mesmo que degra-
dadas, ainda banham e levam vida a sete unidades da Federação. Mas correm o risco
de não fazê-lo mais num futuro ecologicamente previsível, porque o rio vem perdendo,
progressivamente, em lenta agonia, sua vocação natural de ser fonte de vida e riqueza
para os brasileiros, especialmente para os nossos compatriotas do Nordeste.
Vem do rio, e não de nós, os dados da realidade que, desde d. Pedro II, a indústria da
seca insiste em negar, embaçando a visão dos nossos governantes ao longo da história.
Pertencem a esta realidade a poluição das águas, a devastação das matas ciliares e das
áreas de recarga dos lençóis freáticos, a prática das queimadas, o garimpo predatório,
a erosão e o assoreamento, a cunha salina da foz, entre outros fatores que ameaçam a
vida do rio. Do pescado que, mesmo raro, por causa da poluição e do assoreamento,
resistiu até início dos anos 90, hoje só se pesca 20%. E os nossos irmãos barranqueiros
ainda dão graças a Deus.
Não é essa realidade que, acreditamos, um presidente do Brasil com a sua biografia e a
sua ecologia social quer transpor para o Nordeste Setentrional. Mas um São Francisco
revitalizado. Um rio ambientalmente recuperado, economicamente viável e socialmen-
te mais justo, sobretudo para a população pobre que, mesmo vivendo à beira do rio,
permanece atrelada ao ciclo histórico de pobreza que a disponibilidade de água, por si
mesma, não é suficiente para romper e superar.
nos municípios de Ibimirim e Inajá (PE), ocupando uma área de 31.495 hectares.
De acordo com informações da Funasa, a tribo é composta por mais de 2.500
pessoas. A tribo Pipipã está localizada no município de Floresta (PE) e ainda não
foi demarcada. Sua população é de aproximadamente mil pessoas. Entretanto, a
área reivindicada pelos Pipipã, ou seja, a aldeia denominada de Caraíba, fica
situada perto do Eixo Leste do projeto.
“O objetivo do programa é apoiar, com recursos técnicos e financeiros, as comu-
nidades indígenas potencialmente impactadas, após um processo de negociação junto
a seus representantes e lideranças, de modo a compensar os possíveis danos resultan-
tes da futura implantação do empreendimento”, afirmam os técnicos responsáveis
pela elaboração do Rima. Segundo o documento, é intenção do governo criar alter-
nativas de produção para essas populações, reforçar atividades artesanais e melho-
rar os serviços de saúde e saneamento, especialmente no que se refere à coleta do
lixo e ao oferecimento de água de boa qualidade para o consumo.
Comunidades quilombolas
Uma das áreas onde ainda hoje vivem descendentes de escravos que tentam preser-
var sua cultura e suas tradições e que vai ser atingida pela transposição das águas
do São Francisco é a Comunidade Negra Rural Rio das Rãs, que, na realidade,
engloba nove núcleos: Brasileira, Enxu, Bom Retiro, Barreiro do Jacaré, Central,
Aribá, Mucambo, Vila Mariana e Rio das Rãs. Lá, residem quase 600 famílias,
em 39 mil hectares de terras, no município de Bom Jesus da Lapa, localizado na
região econômica do médio São Francisco, na Bahia. Essas comunidades foram
formadas no período escravocrata por negros que fugiam dos maus-tratos impos-
tos pelos senhores. Para lá afluíram também índios que buscavam proteção con-
tra os novos donos das terras.
Rio das Rãs passou a sofrer um processo de valorização na década de 1970,
mediante o financiamento, pela Sudene, de planos de irrigação. Na década de
1990, os grandes projetos de irrigação da Companhia de Desenvolvimento dos
Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) ganharam maior impulso, favo-
recendo, também, Bom Jesus da Lapa, localidade em que muitos foram implanta-
dos. A concentração de terras no município e a conseqüente concentração de ren-
da aumentaram os conflitos entre fazendeiros e comunidades carentes, entre elas
as dos quilombolas, conforme relato publicado no site da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro.10
Tais disputas vão lentamente sendo contornadas, no caso de Rio das Rãs. Ações
para garantir o abastecimento de água às famílias são implantadas pela Funasa,
Codevasf, Ministério das Cidades, Ministério da Saúde e Fundação Palmares. A
população conta hoje com poços artesianos, os quais têm se mostrado insuficien-
tes para atender às necessidades. O governo afirma que o projeto do São Francisco
inclui a construção de um reservatório para irrigar as plantações.
Quanto ao quilombo Conceição de Criolas, para citar apenas um como exem-
plo de discordância da implantação do projeto de transposição do rio São Francis-
co, a sua representante Maria Aparecida Mendes da Silva, membro da Articulação
10
Ver http://geografia.igeo.uerj.br/
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27
11
O processo de regularização de terras de quilombo sofreu um retrocesso a partir de 2001, quando o então presidente
Fernando Henrique Cardoso assinou o Decreto 3.912/2001. As regras estipuladas por esse decreto restringiram os direitos
consagrados aos quilombolas pela Constituição de 1988 e inviabilizaram novas titulações. Assim, como consta no site da
Comissão Pró-Índio de São Paulo (www.cpisp.org.br/comunidades/html/terras/home_terras.html), nenhuma terra de
quilombo foi titulada pelo governo FHC a partir de setembro de 2000. O governo Lula revogou tal decreto em novembro
de 2003, instituindo novas normas por meio do Decreto 4.887/2003. No entanto, o ritmo das titulações continua lento. Até
dezembro de 2004, o governo Lula titulou apenas duas terras de quilombo, beneficiando três comunidades do Pará.
12
Ver <www.contag.org.br>.
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28
com grande potencial para agricultura irrigada, próprias para o cultivo de aba-
caxi, melão, uva, goiaba, acerola e melancia.
Em documento denominado “Perguntas e respostas sobre a integração do rio
São Francisco com as bacias hidrográficas do Nordeste setentrional”, o próprio
Ministério da Integração Nacional reconhece que o rio tem sido muito massacrado
pela ação do homem por meio da poluição por esgotos, construção de barragens
para a geração de energia elétrica, assoreamento provocado pelo desmatamento dos
cerrados para beneficiar a agropecuária e agressão às suas matas ciliares. Admite que
a derrubada das matas que cobriam margens e encostas causou o assoreamento e a
formação de bancos de areia que dificultam a navegação e a reprodução dos peixes.
Estudos realizados pela Fundação Joaquim Nabuco estimam que a bacia do São
Francisco já perdeu 75% da sua vegetação e 95% das matas ciliares.
O Rima também reconhece o prejuízo que vem sofrendo a fauna que habita o
São Francisco ou suas margens. No que se refere às aves, são mais de 400 espécies
características da caatinga ou que passam pela região migrando do hemisfério
norte. Elas são alvos freqüentes de caçadores que, apesar da proibição legal, as
comercializam em feiras. Da mesma forma, os mamíferos também são vítimas dos
caçadores, utilizados para a alimentação ou para a venda de peles. A caça e o
desmatamento são apontados como responsáveis pela extinção de animais como
a lontra, a onça-pintada, a suçuarana, o tatu-bola, o porco-do-mato, o gato-
maracajá e o tatu-prego, entre outros. Mas os peixes são mesmo os mais agredidos
pelas ações do homem, em virtude da redução das matas que margeiam o rio e
seus afluentes e da construção de açudes.
Outro aspecto negativo da transposição, reconhecido pelo próprio Rima, é o
fato de que “escavações para a abertura de canais, túneis, estradas de acesso, ex-
tração de terra e pedra para utilização na obra poderão interferir nos processos de
erosão nos solos da região”. Diz ainda o relatório que, em conseqüência das obras,
os solos ficarão mais vulneráveis à ação das chuvas, podendo ocorrer desabamen-
tos nas margens não só de rios como de reservatórios. Segundo o Rima, até mes-
mo a expansão da agricultura irrigada pode contribuir para o aumento da erosão.
O Ministério da Integração Regional enfatiza, em seu documento “Conheça os
benefícios que esse projeto vai trazer para o país”, que o Rima “é um documento
tão criterioso que até a emissão de poeira pelas máquinas durante as obras de execu-
ção dos canais para levar água do rio São Francisco ao semi-árido nordestino é
apontada como impacto ambiental negativo”. O próprio Ministério comunica que
se trata, porém, de um impacto localizado apenas no eixo das obras e de duração
limitada, de pouca relevância. Esclarece que, para controlar a poeira, as construto-
ras terão de executar o Plano Ambiental de Construção e realizar atividades de
transporte e escavação em horários predeterminados, dando prioridade aos perío-
dos em que o número de pessoas prejudicadas seja menor. Garante que, em alguns
casos, será feito o revestimento das vias que tiverem maior fluxo de tráfego.
Diante das atuais condições do São Francisco, o projeto apresentado continua
sendo muito questionado pelos ambientalistas. Como resposta, o governo plane-
jou a revitalização do rio mediante a implementação de ações voltadas para o
reflorestamento, construção de barragens em rios afluentes, melhoria da calha
navegável, tratamento de esgotos nas cidades e vilas situadas às margens do São
Francisco, controle da irrigação e educação ambiental.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31
13
Ver site <www.ambientebrasil.com.br>.
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33
14
Informações disponíveis no site do projeto de interligação (www.mi.gov.br/saofrancisco).
15
A carta está disponível no Portal de Informações Ambientais – Coalizão Rios Vivos (www.riosvivos.org.br/
canal.php?canal=50&mat_id=4239).
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35
Considerações finais
Sabe-se que, desde 1852, os engenheiros do imperador d. Pedro II já se preocupa-
vam com o semi-árido nordestino, pois desejavam vê-lo irrigado com a água do
São Francisco. De lá para cá, a idéia surgiu nos planos governamentais e deles
desapareceu incontáveis vezes, enquanto a região padecia, e sofre até hoje, as con-
seqüências da seca.
Muitos sabem, no entanto, que o fator limitante da região semi-árida do Nor-
deste não é só a água. No caso da agricultura, por exemplo, a falta de agregação
de valor aos produtos e o custo de escoamento da produção são igualmente sérios,
visto que muitas vezes os perímetros irrigados espalhados pela região têm as suas
safras prejudicadas e mesmo inviabilizadas pelo custo de transporte. Assim, a fer-
rovia Transnordestina, as hidrovias onde possam ser feitas e a interligação das
diferentes formas de transporte agregada à questão hídrica passam a ser ponto de
interseção das reivindicações de amplos setores da região.
O jornalista Mauro Santayana, em seu artigo “Águas desunidas”, divulgado
pela Agência Carta Maior, reforça em certa medida esse argumento quando declara:
“[...] o que o governo pensa gastar, somente este ano, com o início da implantação
do projeto, dá e sobra para tornar menos assassinas as rodovias brasileiras, que se
encontram intransitáveis. Torná-las menos letais e reduzir o custo do preço dos
transportes, onerado pela insegurança e pela pesada manutenção dos veículos”.
A SBPC recomendou em seu documento, já citado anteriormente, que é essen-
cial que sejam avaliadas com rigor as disponibilidades hídricas locais, antes de
qualquer definição sobre transposição de água a grandes distâncias. Praticamente
todas as bacias hidrográficas do Nordeste dispõem de estudos em diferentes graus
de profundidade, traduzidos em planos estaduais e planos de bacia. A mobilização
natural que surge com a possibilidade de serem aumentadas as ofertas hídricas
locais com as águas do São Francisco deve ser confrontada com as necessidades
reais da população. Caso contrário, corre-se o risco de levar água para onde já
existe, reforçando o ditado popular bastante conhecido entre os nordestinos: o
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
37
rio só corre para o mar, ou, ainda, obrigar um paciente terminal a doar sangue
para quem se mostra com saúde regular. E se algum dia o pequeno agricultor for
beneficiado pelo projeto, será difícil imaginar que tenha recursos para arcar com
os custos de irrigação.
Diante dos textos colecionados ao longo deste trabalho, percebemos que os
conflitos de interesse entre grupos, representações, entidades e instituições federais
em torno do projeto de transposição vêm se agudizando. A posição do CBHSF –
instância que congrega representações de diversas latitudes: governo federal, go-
vernos estaduais e municipais, empresas consumidoras de água, universidades,
associações profissionais, ONGs, comunidades quilombolas e populações indíge-
nas – opõe-se sistematicamente ao projeto de transposição. O comitê afirma que
não há déficit de água para abastecimento humano nem no Ceará nem no Rio
Grande do Norte. Alega que a transposição comprometerá em média 24% da
vazão máxima que pode ser retirada do rio. Manifesta preocupação com o meio
ambiente e com as populações tradicionais que do rio tiram o seu sustento. Do
lado da oposição também se encontram os representantes dos estados doadores
da água (Pernambuco, Bahia, Sergipe e Alagoas), que querem receber benefícios,
até mesmo fiscais, pela doação, além de sugerir a implantação de mais um canal,
como no caso de Pernambuco, mais precisamente para atender ao pólo irrigado
de Petrolina.
Por outro lado, observamos a determinação do governo federal em implantar
o projeto de transposição – herdado em quase toda sua concepção do governo
anterior e não levado a cabo por impedimentos judiciais, técnicos, políticos e
econômicos – antes de, no entanto, poder apresentar à população os frutos madu-
ros de um processo de ampla negociação entre as partes envolvidas na questão. O
receio das representações populares é a sanha do poder econômico sobre as deci-
sões de governo, a pressionar por acréscimos de rotas que, pelo visto, favorecem
sobretudo a ampliação dos pólos existentes e o aumento da produção da grande
empresa.
O ministro Ciro Gomes clama aos estados doadores por solidariedade.
Santayana, no mesmo artigo citado acima, responde contundentemente:
[...] se não houver, em cada um dos Estados envolvidos, referendo
popular que autorize o desvio das águas do São Francisco, a transpo-
sição será mais um dos insultos do poder central contra a autonomia
dos Estados. Argumenta-se com a necessidade de que os Estados
banhados pelo rio sejam solidários com os Estados nordestinos.
Solidariedade, ao que se saiba, é um sentimento voluntário. Não
pode haver solidariedade compulsória. Além disso, é preciso verificar
bem se as obras irão beneficiar os sertanejos pobres do Agreste, ou se
irão beneficiar os grandes plantadores de frutas para a exportação e
abastecer as piscinas dos arrogantes milionários da região.
Mapas
Figura 1
Projeto de transposição das águas do rio São Francisco para o Nordeste setentrional
Figura 2
Figura 3
Potenciais conflitos e desafios para gerenciar a bacia do São Francisco
Referências bibliográficas
Estudo de caso
Disputas entre MDA e Mapa
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2
Nilsa Luzzi
Engenheira agrônoma, doutoranda do Curso de
Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ)
nilsaluzzi@terra.com.br
1. INTRODUÇÃO
O Brasil possui hoje uma complexa realidade no meio rural que se traduz na
existência de dicotomias acentuadas que demonstram, de um lado, um projeto
agrícola em nível de desenvolvimento dos países desenvolvidos e, de outro, a
agricultura desenvolvida pelo setor familiar com todas as suas especificidades,
demandando um projeto próprio. Em razão mesmo dessas diferenças, as políti-
cas públicas exercidas pelo governo brasileiro se expressam na existência de dois
ministérios distintos: o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(Mapa), identificado com os interesses do agronegócio, e o Ministério do De-
senvolvimento Agrário (MDA), que trabalha com a diversidade dos agricultores
familiares e com os demais segmentos que necessitam de uma política pública
específica para esse setor.
O objetivo deste ensaio é investigar as divergências e disputas existentes entre
diferentes modelos de desenvolvimento, na perspectiva da democracia e dos direi-
tos sociais, que podem, explícita ou implicitamente, orientar – ou ser o resultado
de – atividades e políticas concebidas e/ou implementadas pelo Mapa e pelo MDA.
Para isso, foram realizadas algumas entrevistas com a finalidade de compreender
os elementos convergentes e divergentes na condução das políticas exercidas nessa
área, e que puderam ser percebidos nos diferentes depoimentos. Vale lembrar que
as diferentes posições manifestas não traduzem apenas um embate entre as políti-
cas exercidas pelos dois ministérios, mas também, por vezes, demonstraram as
ambigüidades do discurso adotado em um único ministério.
Os entrevistados foram questionados sobre as divergências e as disputas exis-
tentes entre os dois ministérios a partir das ações realizadas com base nos modelos
de desenvolvimento, que podem orientar essas ações ou serem resultantes de sua
implementação. Que modelo de desenvolvimento está, implícita ou explicita-
mente, incorporado nas propostas e nas ações apoiadas por cada ministério? Que
sujeitos sociais estão incluídos no discurso? Quais são as posições defendidas pe-
los atores e/ou sujeitos sociais? Como podem ser caracterizadas as disputas nos
diversos campos a serem considerados? Quais as possíveis arenas ou espaços pú-
blicos onde essas disputas se manifestam? Quais as ações/políticas implementadas
que poderiam revelar a existência de modelos alternativos de desenvolvimento?
Este texto foi construído tendo por base as entrevistas realizadas em Brasília
com atores selecionados, entre os dias 25 e 29 de julho de 2005, e o acesso a
documentos, programas e projetos do Mapa e do MDA.1 Foram entrevistados 11
1
Veja a estrutura organizacional do Mapa e do MDA no anexo.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3
2
Secretaria de Política Agrícola (SPA)/Mapa, Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo (SDC)/Mapa,
Secretaria de Agricultura Familiar (SAF)/MDA, Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT)/MDA, Departamento de
Assistência Técnica e Extensão Rural (Dater)/MDA e Departamento de Planejamento e Economia Agrícola (Deagri)/Mapa.
3
Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)/Mapa, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead)/
MDA e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)/MDA.
4
Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade (CPDA)/UFRRJ, Instituto de Pesquisa em Economia Aplicada (Ipea), Confederação Nacional da
Agricultura (CNA) e Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4
As principais ações e políticas realizadas pelo Mapa são destinadas aos agricul-
tores empresariais, embora muitas ações beneficiem os agricultores de forma ge-
ral. Destacam-se como prioridades estratégicas do ministério para o período de
2005/2006: o controle sanitário de pragas e doenças; o processo de geração e
transferência de tecnologia para o agronegócio, a agroenergia, que consiste na
produção e no uso de energia renovável através da biomassa; a qualidade dos
produtos e agregação de valor; as negociações internacionais e a defesa comercial;
a interlocução com a sociedade através das câmaras setoriais e temáticas; a políti-
ca agrícola (novos instrumentos e seguro rural); o desenvolvimento sustentável a
partir do uso equilibrado dos recursos naturais; o cooperativismo e o associativismo
como instrumento de inclusão social e a excelência administrativa do ministério.
O Mapa possui nove programas de investimento financiados principalmente
com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
que têm por objetivo modernizar o setor, melhorar a infra-estrutura, promover o
desenvolvimento das cooperativas, recuperar solos e pastagens e diversas iniciati-
vas de agregação de valor:
:.: Programa de Desenvolvimento da Fruticultura (Prodefruta) – investimentos fixos e
semifixos relacionados com implantação ou melhoramento de espécies frutíferas;
:.: Programa de Modernização da Agricultura e Conservação de recursos Naturais
(Moderagro) – correção do solo, adubação verde, conservação do solo, recupe-
ração de pastagens e sistematização de várzeas;
:.: Programa de Desenvolvimento do Agronegócio (Prodeagro) – investimentos
fixos e semifixos relacionados com floricultura, ovinocapricultura, aqüicultura,
apicultura, suinocultura, avicultura e sericicultura e pecuária de leite;
:.: Programa de Incentivo à Irrigação e à Armazenagem (Moderinfra) – investi-
mentos fixos e semifixos direcionados à agricultura irrigada e à instalação e
modernização de armazéns nas propriedades rurais;
:.: Programa de Desenvolvimento Cooperativo para Agregação de Valor à Produ-
ção Agropecuária (Prodecoop) – investimentos fixos e semifixos para as estru-
turas cooperativas visando agregar valor à produção agropecuária;
:.: Programa de Plantio Comercial e Recuperação de Florestas (Propflora) – inves-
timentos fixos e semifixos para plantio, produção comercial de florestas e re-
composição de reserva legal;
:.: Programa de Modernização da Frota de Máquinas e Equipamentos Agrícolas
(Moderfrota) – aquisição de tratores agrícolas, implementos associados,
colheitadeiras e equipamentos para beneficiamento de café;
:.: Programa de Geração de Emprego e Renda (Proger) Investimento Rural – in-
vestimentos fixos e semifixos para pequenos produtores;
:.: linha de crédito do BNDES de Financiamento para Aquisição de Máquinas e
Equipamentos (Finame) Agrícola Especial – compra de máquinas e equipa-
mentos, inclusive para beneficiamento de algodão, frutas, sementes, pescados,
entre outros, exceto os itens financiáveis do Moderfrota.
Moderfrota 1. Renda < R$ 150 mil – 1. Renda < R$ 150 mil – 9,75 5
100% do valor do bem 100% do valor do bem 12,75 6
2. Renda > R$ 150 mil – 2. Renda > R$ 150 mi –
80% do valor do bem 90% do valor do bem
*Os encargos de 8,75% ao ano (a.a.) são para contratações de até R$ 400 mil. Contratações entre R$
400 mil e R$ 600 mil têm encargos de 10,75% a.a. onde o asterisco entra na tabela?
Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2005/06.
5
O Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) é um título de crédito de livre negociação emitido por pessoas jurídicas
do agronegócio (cooperativas, indústrias de insumos, indústrias de processamento, armazenadores, exportadores etc.),
instituições financeiras e empresas de securitização de direitos creditórios. Esses títulos permitem a criação dos fundos de
investimento do agronegócio.
6
A Letra de Comércio Agrícola (LCA) é um instrumento para ser colocado no exterior com o objetivo de captar poupança de
investidores estrangeiros por meio de commercial paper ou equivalentes emitidos exclusivamente por instituições financeiras.
7
O Certificado de Depósito Agropecuário (CDA), regulamentado pela Lei de Armazenagem, é um instrumento pelo qual
o agricultor poderá depositar o seu produto no armazém e o armazenador poderá emitir um título que será registrado
eletronicamente e negociado junto aos investidores.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6
Fonte: Conab.
9
O MDS administra dois programas: o Compra Direta Local (suplementação alimentar para os programas sociais) e o
Programa do Leite (destinado a crianças, idosos e gestantes).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10
Para articular os diferentes setores do Mapa estão sendo criados Núcleos de Agri-
cultura Orgânica, na sede e em todas as superintendências do ministério, com o obje-
tivo de mobilizar os técnicos do Mapa nas diferentes áreas. Atualmente, o núcleo da
sede tem 65 técnicos, cada um trabalha em sua área, mas todos participam dos cursos
de capacitação e dos seminários sobre agricultura orgânica. Também foram criadas as
Comissões da Produção Orgânica nacional e estaduais (os antigos colegiados), que
têm por objetivo o assessoramento técnico ao Pró-Orgânico. Essas comissões já fo-
ram criadas em 19 estados. São oficializadas com um seminário que repassa informa-
ções e promove discussões sobre o programa. Em cada estado, foram realizados semi-
nários: um com a comissão e outro com o Núcleo de Agricultura Orgânica.
As Comissões da Produção Orgânica são constituídas de forma paritária (50%
de órgãos públicos e 50% de organizações não-governamentais) e têm entre oito
e 20 membros. As instituições participantes das comissões devem ser representati-
vas de segmentos do setor orgânico, tais como: produção, processamento,
certificação, comercialização, pesquisa e assistência técnica. A escolha das entida-
des não-governamentais ocorre via assembléia, com a participação de entidades
previamente cadastradas. A Comissão Nacional da Produção Orgânica foi criada
em 2004, mas seus membros ainda não foram definidos. Ela terá dez membros,
cinco de órgãos públicos e cinco de organizações não-governamentais, com um
representante de cada região a ser eleito pelas comissões estaduais. A previsão é
que isso aconteça até outubro de 2005. São essas Comissões que definirão quais
os projetos que serão apoiados pelo Mapa.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11
10
A SAF é a secretaria mais antiga do MDA e que dispõe da maior fatia dos recursos. Ela trabalha principalmente com a
agricultura familiar e com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura (Pronaf). A SAF sofre forte influência da Fetraf
e tem um perfil mais sulista refletido na composição da secretaria. A SDT e SRA foram constituídas em 2003 sendo, portanto,
estruturas bastante jovens. Ambas são legitimadas e sofrem influências da Contag. A SRA tem um perfil mais sulista e a SDT,
mais nordestina. A SRA trás a tradição do Banco da Terra, que agora mudou para crédito fundiário, mas a lógica permaneceu
a mesma. A SDT discute a questão da territorialidade do desenvolvimento e administra o Pronaf infra-estrutura.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13
suas idéias. E isso sustenta a posição política daquela pessoa dentro do ministé-
rio.” Essa desarticulação provoca sobreposições de ações e de políticas que refle-
tem negativamente no plano local. Se fossem planejadas, as políticas poderiam ter
maior abrangência e eficácia.
A seguir, faz-se breve comentário sobre algumas mudanças importantes ocorri-
das no governo Lula, tais como a criação de uma nova política de Assistência
Técnica e Extensão Rural (Ater), a criação da Secretaria de Desenvolvimento
Territorial (SDT) e o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNDR). São políti-
cas importantes que refletem uma mudança do olhar sobre o rural e apontam
para mudança de modelo de desenvolvimento. As transformações buscam a
integração das políticas e uma atuação mais democrática e participativa na reso-
lução dos problemas que envolvem a agricultura familiar e a questão agrária.
11
As questões que envolvem o Pronaf serão abordadas no item 3.2 sobre crédito rural.
12
Para o MDA o conceito de agricultura familiar compreende as seguintes categorias: agricultores familiares, assentados
da reforma agrária, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, aqüicultores, extrativistas e os agriculto-
res que desenvolvem atividades não-agrícolas nas unidades familiares.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14
A SDT faz oficinas de capacitação, nas quais são reunidos os atores envolvidos
em cada território para se construir essa nova institucionalidade que são os conse-
lhos territoriais. No trabalho de capacitação, a SDT busca discutir a importância
do processo participativo e de criação (ou fortalecimento dos já existentes) de um
espaço onde a sociedade civil tenha voz e voto e consiga expor suas demandas. A
proposta é para os próprios habitantes do território definirem e gerirem a execu-
ção dos projetos de desenvolvimento.
Os conselhos são paritários e, para que tenham legitimidade, devem ser repre-
sentativos da diversidade existente no local. A abordagem territorial pressupõe a
ampliação da capacidade de mobilização e organização dos movimentos sociais e
da sociedade civil para que, reunidos com representantes do estado, entendam,
planejem e promovam o desenvolvimento rural sustentável.
De acordo com a SDT, em alguns territórios os conselhos avançaram muito e
criou-se um espaço de discussão que não existia antes; em outros, foram criados
apenas para atender a uma demanda legal. Por outro lado, há locais, principal-
mente no sul do país, que rejeitam essa proposta de território. A idéia é que a SDT
consiga articular as políticas e ações num enfoque territorial através de ação inte-
grada que envolva um conjunto de atores públicos e privados. Contudo, essa é
uma proposta ainda muito nova que precisa se fortalecer e ganhar legitimidade.
Também é uma abordagem que não abrange todo o território nacional.
A SDT também coordena o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural
Sustentável (Condraf). Esse conselho, segundo dados oficiais, representa a conso-
lidação de uma relação forte com a sociedade civil, a favor do fortalecimento e da
integração de todos os programas de inclusão social, de combate à pobreza, de
reforma agrária e da agricultura familiar. O Condraf é um instrumento de propo-
sição de diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas,
constituindo-se em espaço de concentração e articulação entre os diferentes níveis
de governo e as organizações da sociedade civil. O conselho é paritário e possui 38
membros, 50% indicados por entidades ligadas ao governo e 50% nomeados por
movimentos sociais e pela sociedade civil organizada.
13
As questões que envolvem a reforma agrária serão discutidas no item 3.1.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18
no antigo Projeto Lumiar que funcionou entre 1997 e 1999 como um serviço
terceirizado de assistência técnica e extensão rural. Para operacionalizar o serviço
de Ates, o Incra está firmando convênios ou contratando empresas prestadoras de
serviços de extensão rural em todo o Brasil. Há também previsão de contratar
1.500 técnicos para atuar no assessoramento técnico dos assentamentos.
Segundo o Manual Operacional de 2004, os serviços de Ates são compreendi-
dos como:
[...] o conjunto de técnicas e métodos, constitutivos de um processo
educativo, de natureza solidária, permanente, pública e gratuita,
voltado para a construção do conhecimento e das ações
direcionadas à melhoria da qualidade de vida das famílias assenta-
das nos projetos de reforma agrária, tomando por base a qualifica-
ção das pessoas, das comunidades e de suas organizações, visando a
sua promoção em termos ambientais, econômicos, sociais e cultu-
rais, no âmbito local, territorial e regional, dentro do que enseja o
conceito de desenvolvimento rural sustentável.
De acordo com o ministro Roberto Rodrigues, nos dois últimos anos a área
plantada cresceu cerca de 3 milhões de hectares por ano:
Estudos recentes trazidos inclusive à Presidência da República
mostram que nos próximos 10 anos nós teremos que produzir 60
milhões de toneladas de grãos a mais para atender à demanda
mundial. Isso significa um crescimento mínimo de 2 milhões de
hectares por ano. Outros estudos mostram que aos atuais 62
milhões de hectares cultivados no Brasil – demoramos 500 anos
para chegar a esse número – se somarão outros 30 milhões de
hectares nos próximos 15 anos, cedidos por áreas de pastagens
graças ao espetacular desenvolvimento tecnológico da pecuária de
corte e da pecuária de leite no Brasil. Então, há um horizonte
impressionante de crescimento do agronegócio.6
14
Discurso de Roberto Rodrigues no lançamento do PAP 2004–2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21
momento apenas a cesta de alimento que antes não tinham acesso, já é um grande
avanço. Entretanto, parece que isso não tem muita relevância.
O MDA é criticado por não ter uma política agrícola articulada para a agricul-
tura familiar. Sua política é baseada somente no crédito e, além do mais, visa
integrar a agricultura familiar ao agronegócio. “Acho que a ideologia da burocra-
cia do MDA é a de reproduzir o small farmer americano sem a política agrícola
americana; ou ainda, reproduzir o camponês europeu, sem a política agrícola
européia.” Os Estados Unidos possuem política agrícola com garantia de
comercialização da produção, sistema de support price e garantia na lei agrícola.
O Brasil tem o discurso de agricultura familiar baseado somente no fomento ao
crédito. “A Secretaria da Agricultura Familiar tem uma concepção muito
agronegócio de agricultura familiar. Eles acreditam que desenvolver a agricultura
familiar é torná-la parecida com o agronegócio.” Ao fazer isso, apenas 2% dos
estabelecimentos da agricultura familiar são viabilizados. A grande maioria dos 4
milhões de estabelecimento agrícolas familiares continua excluído do processo.
O discurso do MDA e do Mapa são bastante diferentes, mas, na prática, os
dois são bastante parecidos. Por esse motivo, o Mapa (e também a Confederação
Nacional da Agricultura – CNA) quer incorporar o setor familiar, unificar o Pla-
no Safra da agricultura num único ministério e trazer a agricultura familiar para a
sua dependência. Argumenta que a agricultura é uma só e que é o ministério mais
competente para tratar da questão. A CNA quer, inclusive, assumir a responsabi-
lidade sobre a previdência rural e retirá-la da Contag.
Nos últimos anos, a agricultura patronal recuperou a legitimidade perante a
sociedade. Houve reconhecimento pela sua contribuição na balança comercial e
pelo impacto econômico positivo provocado em algumas regiões. Contudo, o
reconhecimento veio acompanhado do crescimento de importância da agricultu-
ra familiar. Dessa forma, essa positividade associada ao tema da agricultura fami-
liar está sendo hoje disputada também pela agricultura patronal.
A agricultura familiar tornou-se base política importante para vários segmen-
tos do meio rural. Sua representação passou a ser disputada pela Organização das
Cooperativas Brasileiras (OCB), pela própria Confederação Nacional da Agricul-
tura (CNA) e pelos parlamentares mais vinculados à agricultura patronal. Sendo
assim, os ruralistas procuram evitar, a qualquer custo, que se consolide qualquer
idéia de contradição e de conflito entre a agricultura familiar e a agricultura pa-
tronal. O objetivo não é criar uma oposição, mas aproximar os dois públicos
num único ministério. Isso corresponde também à visão de organismos internaci-
onais que acham que as duas atividades têm suas vantagens comparativas e que o
grande desafio seria integrá-los num único modelo agrícola.
Atualmente, os padrões de representação da agricultura familiar não são mais
tão claros como no passado. Essa categoria era representada principalmente pelo
sindicalismo e pela Igreja e os campos de força eram bem definidos: trabalhadores
rurais, sindicatos, cooperativas, agroindústrias e latifundiários. Hoje, essa com-
posição de forças tornou-se muito mais complexa e se expressa em contornos
menos nítidos na hora de identificar as formas de representação. Existe uma dis-
puta evidente pela representação da agricultura familiar, e a representação desse
setor familiar não está garantida nem para o sindicalismo rural, nem para os
movimentos sociais.
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Reforma agrária
O presidente Lula assumiu o governo tendo a reforma agrária como um dos
compromissos de campanha. Eram duas promessas: massificar o assentamento
de famílias e levar qualidade aos assentamentos já existentes por meio da melhoria
das condições de infra-estrutura e da assistência técnica, recuperando a capaci-
dade produtiva e a viabilidade econômica. O Programa Vida Digna no Campo
destaca a atualidade e a importância da reforma agrária para o desenvolvimen-
to rural sustentável:
A reforma agrária é reconhecida como condição para a retomada
do crescimento econômico com distribuição de renda e para a
construção de uma nação moderna e soberana. Ela promove a
geração de emprego e renda, a ocupação soberana e equilibrada do
território, garante a segurança alimentar, promove e preserva
tradições culturais e o meio ambiente, impulsiona a economia local
e o desenvolvimento regional (Brasil, 2003, p.7).
O Mapa critica o MDA que, segundo ele, quer resolver o problema do desem-
prego nas cidades com reforma agrária, sugerindo que as pessoas que demandam
terra não possuem aptidão para a agricultura. Hoje a agricultura é feita com
investimento e alta tecnologia.
Nós não estamos falando de reforma agrária para agricultores, mas
para quem não tem trabalho. E o outro lado dessa questão é que
no começo do século a agricultura era feita com terra, hoje você
precisa de água. Você produz hoje sem terra... É claro que estou
exagerando. Mas Agricultura hoje é tecnologia. Agricultura hoje é
investimento. Agricultura hoje é business.
Para o Mapa, em vez de dar terra, é mais barato para a nação resolver o
problema da reforma agrária por outros caminhos. Cita como exemplo a cria-
ção de agroindústrias em pequenas e médias cidades e a criação de empregos no
setor de serviço (mecânicos, manicure e vendedores). Em algumas cidades do
Mato Grosso, onde o agronegócio tem grande importância, não existe mais
desemprego, pois o setor estimulou a criação de empregos em outros setores,
dinamizando a região.
Gente ganhando dinheiro e que está feliz da vida. Ninguém desem-
pregado e não são agricultores, quer dizer, não tem terra. Eu só
acho que a reforma agrária não é a solução para os problemas
como estão dizendo que é. Eu acho que o Brasil devia atacar este
problema de outro jeito.
O Mapa afirma ser mais barato criar emprego em cidades pequenas e médias
do que no campo, pois na cidade já existe infra-estrutura e o campo precisa ainda
de muito investimento.
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15
Em 2004 foi criado o Proagro Mais, uma antiga reivindicação dos movimentos sociais. Esse seguro é voltado para os
agricultores que realizaram financiamento de custeio agrícola no Pronaf e prevê a cobertura de 100% do valor financiado
e de 65% da renda líquida estimada do empreendimento. Caso a perda seja inferior a 30%, não haverá ressarcimento.
O seguro prevê contribuição obrigatória de 2% sobre o valor coberto e a adesão é obrigatória para as culturas zoneadas
(algodão, arroz, feijão, milho, soja, sorgo, trigo e maçã) e para banana, caju, mandioca, mamona e uva. Assim, mais de
95% dos financiamentos de custeio agrícola realizados pelo Pronaf serão cobertos pelo seguro.
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Crédito Rural
Segundo o Plano Agrícola e Pecuário 2005/2006, o governo federal irá destinar
R$ 53,35 bilhões para a agricultura na próxima safra. Do total, R$ 44,35 bilhões
serão aplicados na agricultura empresarial. Nas últimas três safras a oferta de
crédito rural cresceu 61% e as taxas de juros anuais permanecem praticamente
inalteradas, conforme pode ser observado na Tabela 3. Nos programas de investi-
mento a oferta de crédito, passou de R$ 5,75 bilhões para R$ 11, 15 bilhões, um
aumento de mais de 90%. Destaca-se que o Moderfrota recebe praticamente a
metade dos recursos destinados para investimento: R$ 5,5 bilhões.
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Tabela3: Crédito rural, recursos e fontes de financiamentos das safras 2003/2004, 2004/
2005 e 2005/2006 (R$ milhões)
1.1.2. Poupança Rural – MCR 6-4 3,900 5,537 4,500 15,4 4,000 (11)
(8,75% a.a.)
1.1.3. Proger Rural (8,0% a.a.) 700 405 700 0,0 400 (43)
1.1.4. Fundo da Defesa da Economia 800 250 1,000 25,0 1,000 0,0
Cafeeira (Funcafé) (9,5% a.a.)
1.2.1. Poupança Rural - MCR 6-4 3,000 3,952 5,750 91,7 5,000 (13)
1.2.2. Recursos Livres (demais 1,000 2,038 2,300 130,0 2,300 0,0
bancos)
1.2.3. Banco do Brasil (BB) - Aval de 1,000 1,313 2,000 100,0 5,000 150
Cédula do Produto Rural (CPR)
2.2. Finame Agrícola Especial 500 1,778 500 0,0 500 0,0
2.3. Proger Rural (8,0% a.a.) 250 249 100 (60,0) 100 0,0
A Tabela 3 nos mostra, também, que a maioria dos recursos do Mapa é desti-
nado ao custeio – na safra 2005/2006 serão destinados R$ 33,2 bilhões. Outro
destaque é para os recursos de custeio com juros controlados, que representam o
maior volume de recursos, R$ 20,9 bilhões. Comparativamente à safra 2003/
2004, aumentou cerca de 28%. Os juros livres de mercado aumentaram 132%
nesse mesmo período, de R$ 5 bilhões para R$ 12,3 bilhões. Vale ressaltar que o
orçamento executado do Mapa é maior que o programado em praticamente to-
das as destinações orçamentárias. O mesmo não se verifica com os créditos desti-
nados à agricultura familiar que, devido a uma série de problemas não consegue
executar todos os recursos programados.
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Além das seis modalidades de Pronaf relacionadas, existem as seguintes linhas de crédito: Pronaf Agroindústria, Pronaf
Florestal, Pronaf Alimentos, Pronaf Semi-Árido, Pronaf Agroecologia, Pronaf Mulher, Pronaf Jovem, Pronaf Pesca, Pronaf
Agregar, Pronaf Pecuária Familiar, Pronaf Turismo Rural e Pronaf Máquinas e Equipamentos.
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Fonte: www.pronaf.gov.br.
A Tabela 4 nos mostra, ainda, que em 2004 houve redução dos contratos e dos
recursos determinados para os assentados da reforma agrária – apenas cerca de R$
500 milhões, o que representa 9% do total do crédito aplicado no período, que
foi de R$ 5,6 bilhões. Os demais grupos (B, C, D, E) tiveram um aumento de
recursos nesse período. Os Grupos C e D possuem a maior destinação de recursos,
somando, em 2004, 64% do total. Também, é o público que tem o maior núme-
ro de beneficiários, representando, em 2004, 62% dos contratos. O Grupo B foi
o que mais apresentou crescimento, tanto no montante de recursos como no nú-
mero de contratos – mais do que o dobro de 2003 para 2004. No entanto, o
volume de recursos em 2004 foi menor que o reservado para o Grupo E, o público
mais capitalizado do Pronaf.
O Mapa possui uma dotação orçamentária bem maior que o MDA, conforme
já demonstrado anteriormente. Todavia, o MDA argumenta que eles têm uma
capacidade maior de fazer política. “Nós operamos muito mais créditos que
impactam: assistência técnica, crédito, apoio a projetos de comercialização, de
capacitação. Nós temos uma capacidade, um montante de recursos, muito maior
do que o Mapa para operar isso. Isto não aparece.” A justificativa é que o Mapa
tem uma estrutura ministerial maior, que consome grande volume de recursos
para o custeio. Se forem comparados os recursos discricionários, usados na
operacionalização de políticas, o MDA tem mais recursos.
Há, entretanto, uma diferença relevante no que se refere à taxa de juros. Em-
bora o MDA receba um montante menor de recursos, a maioria deles tem juros
subsidiados, o que significa um aporte maior do tesouro para essas linhas de cré-
dito. No Mapa, as taxas médias de juros são de 8,75% e a maioria dos recursos
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tem taxas livres de mercado, disponível no mercado financeiro. Não se pode fazer
uma comparação apenas do montante destinado para um ou outro ministério,
deve-se observar também quanto o tesouro disponibiliza de crédito para essas
diferentes linhas de crédito. Assim, existe maior investimento por parte do gover-
no em créditos destinados para a agricultura familiar.
Outro ponto que merece destaque é a inadimplência. Segundo o MDA, se
forem comparados os dados de inadimplência, a agricultura patronal apresenta
uma taxa de inadimplência maior do que a agricultura familiar. As dívidas da
agricultura empresarial foram renegociadas nos últimos anos (Pesa, Pesinha) e
esse subsídio custa R$ 3 bilhões por ano para o tesouro. A agricultura patronal
não tem subsídios na taxa de juros, mas, por outro lado, tem um subsídio consi-
derável nos juros das dívidas. Esse é um dado relevante e mostra que a agricultura
patronal, além da fragilidade social e ambiental, apresenta pouca sustentabilidade
econômica em momentos adversos. “Quando tem crise eles querem o apoio pú-
blico, quando eles estão bem, fazem apologia das regras do mercado.”
Os créditos destinados ao Mapa e ao MDA são oriundos praticamente das
mesmas fontes financiadoras, que vem se diversificando cada vez mais (FAT, Fun-
dos Constitucionais, Orçamento Geral da União, Exigibilidades Bancárias,
Funcafé). Existe grande disputa entre os ministérios na hora da alocação dos re-
cursos. “Por que a CNA e o Mapa divulgaram estudos mostrando que o crédito
aplicado na agricultura patronal era mais eficiente do que na agricultura familiar?
Porque está em jogo uma disputa por recursos.” Por sua vez, o MDA divulgou os
dados do PIB da agricultura familiar e o ministro Roberto Rodrigues desqualificou
a pesquisa, conforme visto anteriormente. Fica explícita a disputa e a defesa de
interesse de ambos os setores.
O Pronaf, como programa de crédito, teve uma avaliação bastante positiva,
pois ampliou os recursos e o número de contratos, com mais agricultores atendi-
dos, conforme dados já apresentados. Há preocupação por parte do MDA de
fazer chegar os recursos às regiões mais carentes e às pessoas menos favorecidas.
Foram feitos esforços para simplificar os procedimentos bancários e melhorar as
condições de acesso às linhas de crédito.
Contudo, muitas dificuldades ainda persistem. Os problemas burocráticos e as
dificuldades operacionais dos bancos ainda funcionam como barreiras. O Pronaf
é regido pelo Banco Central e vinculado à legislação que rege o crédito comum, o
que aumenta a burocracia e não leva em conta as especificidades do agricultor
familiar. Muitos agricultores não possuem os documentos básicos exigidos, pro-
vocando atraso ou impedindo o acesso ao crédito. As garantias exigidas pelos
bancos estão sendo equacionadas com a criação de fundos rotativos, mas ainda
representam um problema para os pequenos agricultores. A agência bancária tem
um poder muito grande para avaliar os projetos e estabelecer os riscos, o que faz
com que projetos alternativos (tais como o Pronaf Agroecologia, Pronaf Jovem,
Pronaf Mulher) sejam considerados de alto risco e encontrem muita dificuldade
para serem implementados.
Além das dificuldades na execução dos créditos do Pronaf, o sistema adotado
se estrutura numa lógica por produto, reproduzindo a lógica tradicional da polí-
tica de crédito. O crédito liberado é para financiar o plantio de uma cultura espe-
cífica e o agricultor tem pouca autonomia na escolha da cultura e no uso do
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Negociações Internacionais
As negociações agrícolas ganham relevância na agenda da política externa brasi-
leira. O Brasil participa atualmente de diversos fóruns de negociação. As negocia-
ções agrícolas se tornaram o foco prioritário do debate e a liberalização do comér-
cio agrícola, o tema no qual as discussões são mais intensas e as posições mais
divergentes. O Brasil possui interesses claramente ofensivos a área de negociações
agrícolas, defendendo maior liberalização da agricultura.
As negociações agrícolas ocorrem em três fóruns: Organização Mundial do
Comércio (OMC), Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e União Européia
– Mercado Comum do Cone Sul (UE-Mercosul). Na Alca as negociações agrícolas
estão paradas. Já no Acordo UE-Mercosul as tentativas de negociação existentes
não são suficientes para fazer avançar os acordos. Na OMC, o acordo agrícola
está estruturado em cima de três pilares: liberalização do mercado, apoio interno
e subsídios às exportações. Essas negociações envolvem debates delicados, refle-
tem posições divergentes dos diversos países no âmbito internacional e tornam-se,
freqüentemente, antagônicas e conflituosas. Nas últimas rodadas de negociações
da OMC não se tem conseguido avançar e chegar a um acordo.
O Brasil tinha tradicionalmente nas negociações agrícolas posição hegemônica
de liberalização de mercado. Com a participação do MDA na agenda de negocia-
ções, outros temas passam a ser incluídos . Novos temas como a segurança ali-
mentar e os mecanismos de proteção para a agricultura familiar mostram a diver-
sidade da agricultura brasileira, mas também trazem consigo a existência de posi-
ções divergentes. As contradições percebidas em outras áreas de disputa nos minis-
térios podem conviver, mas no tema das relações internacionais o mesmo não
acontece. Nas negociações internacionais é preciso a tomada de posição única,
defendida nos fóruns adequados. Essa característica peculiar das negociações in-
ternacionais torna mais conflituosa a defesa da posição a ser adotada, fazendo
refletir de forma mais acirrada, nos fóruns de discussão e nos documentos produ-
zidos, os antagonismos existentes entre os ministérios.
As posições divergentes se expressam muito fortemente em vários aspectos.
O Mapa tem um entendimento diferenciado do MDA em relação ao papel que
o mercado internacional pode cumprir para a agricultura, mais explicitamen-
te, para a segurança alimentar. Para o Mapa, o mercado internacional provê a
segurança alimentar. O ministério defende a redução de tarifas e a abertura de
mercado, baseado na teoria das vantagens comparativas, o que melhoraria o
bem-estar do consumidor urbano porque permitiria uma redução de preços. O
MDA defende justamente o contrário, isto é, que a defesa do mercado interno
é uma pré-condição para a segurança alimentar. Segundo a lógica do Mapa, se
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Na rodada em Cancún, por uma séria de razões, criou-se o G-20, grupo de países que têm interesses diversos. O G-20
congrega interesses em alguns casos contraditórios sobre a própria liberalização agrícola, principalmente na área de
acesso a mercados. O G-20 é um Brasil ampliado, porque tem desde países extremamente ofensivos, como a Argentina,
que querem abrir mercado, até países como a Índia e a China, que querem proteger o seu mercado na agricultura. O G-
20 é reconhecido como um grupo que consegue conciliar as duas linhas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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direito à proteção. Mesmo nos produtos em que não se tenha problema iminente,
mesmo que sejamos competitivos, como no caso do leite, que passou a ser expor-
tado, devemos ter o direito à proteção”, argumenta o MDA.
As contradições e as particularidades da realidade rural brasileira tornam mais
difíceis a compreensão sobre o posicionamento defensivo adotado pelo Brasil nes-
ses fóruns internacionais. Em parte, isso ocorre pela coexistência de uma agricul-
tura pujante, através da força do agronegócio, e das diversas necessidades e pro-
blemas enfrentados pelos outros setores, dentre eles, a agricultura familiar. Não
por acaso, os americanos tencionaram muito na Conferência da OMC de Cancún
(2003) alegando que o Brasil deveria perder a condição de tratamento especial
diferenciado na agricultura. Eles argumentaram que o Brasil é uma grande força
na agricultura mundial e não deveria requerer tratamento especial. Os europeus
têm o mesmo posicionamento no Acordo UE-Mercosul.
O outro mecanismo de proteção defendido pelo MDA é o estabelecimento de
salvaguardas especiais. Segundo o entendimento do MDA, o Brasil até pode acei-
tar a redução de tarifa em alguns produtos, mas precisa ter a salvaguarda para
voltar à tarifa original no momento que achar conveniente. Atualmente, para que
se comprove que a entrada de determinado produto prejudica algum setor especí-
fico é necessário mover um processo interno e convencer o conselho da OMC
através da abertura de um painel que possibilite comprovar o prejuízo. É um
processo demorado e caro. O painel do algodão, por exemplo, custa para o setor
privado US$ 2 milhões. Nas disputas junto à OMC o Brasil já ganhou várias vezes
e em várias instâncias, inclusive na disputa do algodão. Mesmo assim, os Estados
Unidos dizem que não vão mudar sua política para o algodão. Nesse caso especí-
fico, a OMC admite que o Brasil pode retaliar os Estados Unidos em outro setor,
mas não se pode negar a dificuldade de se retaliar um país com a força dos Esta-
dos Unidos. Por essa razão, o MDA defende um processo anterior que previna o
dano através do estabelecimento de salvaguardas.
Na OMC, as negociações de direito à proteção não são feitas para um país
individualmente, mas para a categoria dos países. A proposta elaborada pelo Consea
sobre tratamento especial diferenciado, discutida internamente e em busca de apoio
de outros países em desenvolvimento, caso seja aprovada na OMC servirá para
todos os países em desenvolvimento. Assim, atingirá o nosso mercado também,
especialmente o do agronegócio. Se a medida passar a valer, alguns países como a
China e a Índia, compradores da soja brasileira, ou os países africanos que com-
pram frango do Brasil, poderão aplicar salvaguardas sobre esses produtos da expor-
tação brasileira. Nesse sentido, a proposta, ao buscar estabelecer alguns mecanis-
mos de defesa para a política agrícola brasileira, favorecendo a agricultura familiar,
encontra no próprio Brasil um outro setor que é prejudicado – o do agronegócio.
Essa é uma discussão muito complexa que expressa as contradições brasileiras.
O MDA justifica o posicionamento destoante em relação ao Mapa com dois
argumentos principais. Primeiro, alega que internacionalmente nunca foi mostra-
do o rural que de fato existe no Brasil. O que aparece é apenas uma versão, a do
agronegócio. Depois, argumenta que o Mapa sempre fez a política internacional
e, por sua vez, sempre mostrou as partes e defendeu as posições que lhe interessa-
va. Apenas mais recentemente o MDA passou a ter incidência na política interna-
cional, defendendo os interesses dos agricultores familiares.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Segundo visão crítica do MDA, as posições defendidas pelo Mapa nas relações
internacionais não representam a realidade da agricultura brasileira. Representam
a realidade de um setor e, muitas vezes, a visão de alguns segmentos que têm mais
influência nesse setor. O Mapa teria uma visão muito objetiva, mas também mui-
to estreita, pretendendo apenas aumentar o acesso ao mercado internacional, re-
duzindo barreiras e acabando com subsídios à exportação. Seguindo a crítica do
MDA: “eles [Mapa] entendem, e nesse caso com razão, que se você tiver um dis-
curso único de acesso ao mercado, de liberalização, e de nenhuma proteção, é um
discurso mais coerente e dá mais potência a essa demanda deles”. O Mapa é con-
tra qualquer posição que defenda algum tipo de proteção, alegando que
despotencializa a postura brasileira de discurso único e prejudica as concessões
que eventualmente os outros países fariam ao Brasil.
O MDA é contrário à postura radical do Mapa na defesa de um determinado
setor, pois não dialoga com a realidade interna em sua diversidade.
Eles não aceitam nada e ficam dizendo que isso tem um custo
elevado e querem jogar esse custo no nosso colo. Dizem que se nem
a gente quer abrir o nosso mercado como posso exigir isso dos
europeus? Pela lógica, eles têm razão. Mas qual é o objetivo? É
somente abrir o mercado ou também abrir o mercado e garantir
outras coisas?
O MDA também defende que o Brasil não deveria se furtar ao debate ambiental,
pelo contrário, deveria enfrentá-lo frontalmente. O Brasil tem capacidade e recur-
sos físicos para solicitar um mercado ambientalmente justo e propor o debate de
mercado com enfoque ambiental. Para o MDA, quem deve fazer isso é um país
que tem grande diversidade natural e é o que ocorre com o Brasil. Encabeçando o
debate, o Brasil poderia introduzir a questão da sustentabilidade (econômica,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As entrevistas demonstraram que não existe hoje no Brasil um posicionamento ho-
mogêneo no que se refere às propostas gerais de desenvolvimento rural. Foram
identificadas duas realidades distintas, a dos agricultores empresariais e do agronegócio,
e a dos agricultores familiares, que se materializam na existência de dois ministérios e
poderiam representar dois modelos de desenvolvimento diferenciados.
O Mapa é identificado, de modo geral, com os interesses do agronegócio e tem
como público prioritário os agricultores empresariais. O setor possui sistema pro-
dutivo mais intensivo no uso de recurso, com utilização de alta tecnologia e pro-
dução de commodities para exportação. O MDA tem por função a realização da
reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura familiar, um segmento bas-
tante heterogêneo. Esse setor possui um sistema produtivo diversificado, mais
voltado para o mercado interno e preocupado com a inclusão social e a preserva-
ção do meio ambiente. O MDA busca a criação de um modelo alternativo de
desenvolvimento, embora com diferenças internas, que fortaleça a agricultura fa-
miliar e tenha por base os princípios da agroecologia.
No governo federal, os processos tornaram-se mais participativos. Foram cria-
dos ou reativados diversos conselhos e fóruns de discussão com representantes de
vários segmentos da sociedade em ambos os ministérios. Os representantes dos
movimentos sociais fazem parte da composição do governo, trazem suas experi-
ências e buscam desenvolver propostas mais voltadas à realidade da agricultura
familiar. Outro avanço do governo foi o reconhecimento da relevância da discus-
são sobre a relação entre gênero, raça e etnia e que esta deve acontecer em todas as
instâncias. O objetivo dessa discussão é dar visibilidade a esse público e criar ações
de inclusão social, embora a dificuldade esteja justamente em transformar o dis-
curso em ações práticas.
Este ensaio mostra que existem diversos elementos inovadores que apontam
para um novo modelo de desenvolvimento. Destacam-se a criação de uma nova
política de assistência técnica e extensão rural exclusiva para os agricultores fami-
liares que têm a agroecologia como eixo orientador das ações; a realização da
reforma agrária com a criação de novos assentamentos e o objetivo de recupera-
ção dos atuais; o aumento do volume de crédito e do número de contratos através
do Pronaf; a criação de seguro agrícola para a agricultura familiar; a criação de
um programa de comercialização da produção para a agricultura familiar; ensino
e pesquisa voltados à realidade da agricultura familiar. Por certo, ainda são ações
pontuais, que precisam ser unificadas num programa nacional para que realmente
possam se transformar em um outro modelo de desenvolvimento.
Atualmente, está cada vez mais na ordem do dia a necessidade de se repensar o
modelo de desenvolvimento rural adotado no Brasil. O modelo dominante já
vem sendo criticado ao longo de várias décadas por ser excludente e provocar
danos ambientais graves. Além disso, ele se baseia em relações trabalhistas precá-
rias. Entretanto, a necessidade de mudança de modelo não está na pauta no go-
verno, que vê os dois setores como complementares e de convivência possível. A
agricultura familiar possui funções diferenciadas e, segundo o governo, um setor
complementar ao agronegócio. Quando existem disputas e se faz necessário uma
tomada de posição – como no caso da Lei de Biossegurança, na transposição do
rio São Francisco, no tema das relações internacionais ou na regulamentação da
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
42
legislação que trata da desapropriação de terras – a opção pela defesa dos interes-
ses do agronegócio é explícita.
Nos últimos anos houve o fortalecimento de ambos os setores. O agronegócio
recuperou sua legitimidade perante a sociedade e apresentou um crescimento bas-
tante elevado no governo Lula. A agricultura familiar, por sua vez, ganhou desta-
que e se tornou base política importante para vários segmentos do meio rural. A
positividade da agricultura familiar fez com que se voltassem os olhares para a
sua diversidade e se criassem políticas específicas mais adaptadas à sua realidade.
Entretanto, o crescimento da agricultura familiar explicitou as contradições do
modelo de desenvolvimento vigente.
No discurso, o Mapa procura evitar que se acirrem as disputas e os conflitos
entre a agricultura patronal e a agricultura familiar e afirma que também é a favor
da agricultura familiar. O Mapa objetiva, inclusive, trazer a agricultura familiar
para sua responsabilidade, unificando a agricultura num único ministério. O mi-
nistério afirma, a todo o momento, que eficiente é o setor patronal e que grande
parte da agricultura familiar deveria ser objeto de políticas sociais. Para o Mapa,
agricultura é investimento, é business e, portanto, não cabe a realização de uma
reforma agrária ampla e maciça: “não é uma panacéia para todos”. Na defesa dos
seus interesses, como no caso das negociações internacionais, o ministério não acei-
ta qualquer concessão e busca sempre fazer com que sua posição prevaleça.
Atualmente, o Mapa tem um discurso de sustentabilidade, de apoio à agricultura
familiar e de defesa ao meio ambiente, procurando com isso reverter a imagem nega-
tiva associada ao agronegócio. As entrevistas revelaram que existem dentro do Mapa
setores que poderiam ser considerados quase antagônicos, que se aproximam mais
das linhas gerais defendidas pelo MDA do que as do próprio Mapa. Um exemplo é o
Projeto de Aquisição de Alimentos da Conab, programa que tem repercussão bastan-
te positiva entre os agricultores familiares e os movimentos sociais. Esse programa é
considerado inovador e de grande eficácia. Outro exemplo é o Pró-Orgânico que,
mesmo sendo entendido como um nicho de mercado, gera certa contradição porque
sugere mudança no modelo tecnológico. Logo, as disputas e contradições não se
expressam apenas entre os dois ministérios, mas também dentro do próprio Mapa.
As contradições aparecem também dentro do MDA. Ficou explícita a falta de
diálogo entre as secretarias e a desarticulação das políticas desenvolvidas pelo
ministério. Existe forte influência dos movimentos sociais dentro das secretarias,
o que acaba inevitavelmente privilegiando o atendimento das necessidades desses
movimentos e demonstra a existência de correlação de forças e disputas pelo po-
der. As secretarias têm capacidade técnica e operacional diferenciadas e a execução
dos programas dependem também da força política das pessoas das secretarias.
Há disputa por espaço e por poder visível dentro do MDA e a articulação política
é praticamente inexistente. A SDT tem por objetivo articular as políticas públicas
no território rural, mas ainda é uma proposta inicial que precisa ser incorporada
pelos outros setores do ministério. Além disso, por causa da deficiência de recur-
sos e da dificuldade maior em trabalhar as especificidades da agricultura familiar,
há dificuldade para fazer avançar as políticas desenvolvidas pelo MDA.
As entrevistas demonstraram que podem ser identificados dois modelos dife-
renciados, ainda que não estejam completamente explicitados, que orientam um
e outro ministério. No Mapa predominam os interesses do agronegócio, embora
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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http://www.nead.org.br
http://www.pronaf.gov.br
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Anexo