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RELATÓRIO DO PROJETO

> DEZEMBRO DE 2005

Projeto original
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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1. JUSTIFICATIVA

O Brasil vive um momento único em sua história, pois, pela primeira vez, povo e
nação tendem a se encontrar como bases de refundação de um projeto de país.
Lula é a expressão de mudanças políticas recentes no interior da sociedade brasi-
leira. Mesmo que essas mudanças sejam parciais, elas apontam para um processo
de inclusão na cidadania de camadas populares, transformando-as em sujeitos
históricos ativos na transformação de uma lógica e de uma estrutura produtoras
de exclusão e desigualdades de todo tipo. É a democratização que explica a vitó-
ria de Lula, e, ele próprio, como presidente do Brasil, pode sinalizar para uma
radicalização da democracia. Esse é um dado novo para o Brasil e toda a América
Latina. No contexto de crise da globalização neoliberal e de ascensão de um mo-
vimento de cidadania de dimensões planetárias, é natural que muita atenção se
volte ao Brasil, buscando saber o que será o governo de Lula. Será ele capaz de
mudanças? Como se definirão as políticas? Quão democráticas e democratizadoras
serão elas? São indagações como essas que uma entidade como o Ibase e todo o
setor de entidades da sociedade civil, engajados na radicalização da democracia,
não podem deixar de fazer neste momento.
Com Lula, venceu eleitoralmente a esperança. Lula despertou uma enorme
energia, e sua mensagem de mudança funcionou como um cimento aglutinador
de vontades, levando-o à Presidência. O mais importante de tudo é que o bloco
de forças existente em torno ao Partido dos Trabalhadores (PT) apostou na de-
mocracia para chegar lá. Sua legítima conquista da hegemonia do poder político
já é, por si só, uma radicalização da democracia. Lula vem, literalmente, “de
baixo”. O PT, como partido, é uma reinvenção democrática do modo de transfor-
mar grupos das camadas trabalhadoras e populares em sujeitos políticos ativos.
Como Lula e todo o seu ministério, lideranças políticas, funcionários(as) em po-
sições de liderança, enfim, como a administração política petista canalizará tal
feito para um novo estilo de poder e realizar as mudanças que esse movimento
“de baixo para cima” demanda?
Nestes primeiros meses de governo, Lula enfrentou uma economia caminhando
para a falência, à Argentina, e restabeleceu o que se pode chamar de “ordem do
mercado”. Isso é pouco – e ruim – para um governo que se anunciava como de
profundas mudanças no rumo do país. Mas é apenas um começo de governo, em
meio a um evidente processo de crise e de perda total de capacidade de gestão
pública das políticas macroeconômicas legadas pelo governo derrotado nas urnas.
A ordem mercantil parece temporariamente estabelecida. Sobem, porém, as tensões
não só dentro do bloco de forças que apostou nas mudanças, revelando impaciên-
cia com o ritmo e a forma de governo até aqui, mas também em relação à tensão
com o que de mais atrasado existe no Brasil: a elite acostumada a confundir privi-
légios com direitos. Assim, as contradições parecem soltas. Saberá a democracia
brasileira traduzir isso em mais democracia? Claro que isso depende muito do modo
petista de governar, de fazer política, coisa ainda em gestação no governo federal.
A novidade está no que Lula e o PT trazem como bagagem para o campo
democrático. O apelo ao populismo, como forma de enfrentar as contradições
atiçadas pela possibilidade de mudanças, não parece uma possibilidade. Apesar
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da relação e da capacidade de interlocução direta com a população brasileira, o


populismo não é o estilo de Lula. Aliás, o sucesso do PT na esquerda democrática
se deve, em grande parte, à sua crítica às concepções e práticas do populismo
– como exemplos do populismo no Rio de Janeiro, podem ser citados o estilo
do casal Garotinho na atualidade e de Brizola no passado recente –, que impede a
plena emergência política dos grupos populares. Também como dirigente sindi-
cal, negociador e líder político, Lula passou por uma escola democrática onde se
aprende que o exercício do poder como força nunca pode ser um rolo compressor
sobre adversários políticos e forças opostas, impondo-lhes derrotas sem saída. A
novidade do governo Lula reside exatamente na legitimidade do poder que preci-
sa se renovar a cada instante pela direção, pela capacidade de argumentação e
convencimento, pela busca de adesão ativa, mais do que usar a força do poder.
Esse é o tal governo participativo, com tão ricas experiências em nível municipal
e estadual produzidas pelo PT.
Assim, estamos diante de uma questão-chave: é da natureza do poder que se
propõe a radicalizar a democracia apostar no processo em que se gestam as mu-
danças mais do que obter mudanças a qualquer custo. Trata-se de construir mu-
danças com sustentabilidade e legitimidade. Busca-se tornar os antagonismos e as
diferenças, a correlação de forças políticas, enfim, os conflitos sociais e políticos
em alavancas de construção das próprias mudanças. À luz disso, o que se espera de
Lula no exercício do poder político é exatamente radicalizar a participação como
condição de gerar processos políticos portadores de mudanças substantivas nas
relações sociais e até no modo de desenvolvimento do Brasil. O segredo do gover-
no Lula será usar a sua legitimidade e a capacidade de dar direção a um projeto de
país para convencer e obter adesão ativa do mais amplo espectro de sujeitos soci-
ais e seus atores concretos, nas instituições representativas e fora delas, demons-
trando capacidade política em conduzir os conflitos assim gerados, para promo-
ver um processo de mudanças sustentáveis nas relações e estruturas.
O problema, como já começa a ficar evidente, é a diversidade de sujeitos soci-
ais e de interesses existentes. Além disso, há o verdadeiro desmonte da capacidade
estatal de regular a economia e tomar iniciativas em termos de desenvolvimento
que foi gerado em uma década de políticas neoliberais, atendendo aos ditames da
globalização segundo o Consenso de Washington. Não se trata de fazer milagres
com orçamento apertado e em face das fragilidades de uma economia que virou
presa fácil do “cassino global”. Trata-se, nas condições dadas, de costurar um
novo pacto de nação, que inclua as grandes maiorias deixadas de fora até aqui.
Pode-se ter muitas dúvidas e críticas ao Lula presidente, mas não se pode deixar
de reconhecer que esse parece ser o sentido da sua disposição em negociar regular-
mente, viajar, ver e ouvir, sentir o país real e fazê-lo acreditar em si mesmo, na sua
capacidade de gerar soluções. Na sua atuação, o governo Lula realmente vem
mudando no modo de fazer política, com abertura bastante ampla para a partici-
pação direta.
Será que estamos diante de uma inovação em termos de potencializar a demo-
cracia, tensionando as estruturas representativas por meio de formas diretas de
democracia participativa? A Constituição brasileira de 1988 foi no caminho da
mais ampla participação, instituindo formas participativas para além da represen-
tação em inúmeros campos até então de exclusiva atuação estatal. Os conselhos
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paritários, de gestão e co-gestão de políticas públicas foram uma conquista im-


portante, mas, na prática, pouco efetiva, por falta de vontade do poder constitu-
ído em construir hegemonias ativas. Foi com certas administrações locais e regio-
nais, fazendo apelo à participação – como os orçamentos participativos das admi-
nistrações petistas –, que essa inovação democrática adquiriu corpo entre nós.
Agora, no governo federal, é possível que assistamos a uma nova onda participativa.
Esse parece ser o sentido de inovações como o Conselho Econômico e Social,
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), as consultas
à sociedade civil no debate da proposta do Plano Plurianual (PPA) de investimen-
to e das grandes conferências que estão sendo convocadas.
O governo Lula está apenas no começo. O momento é de apostar na participa-
ção, sem dúvida, para buscar o tal desempate no jogo político brasileiro e efetiva-
mente realizar o mandato de todos os direitos humanos para todos(as) os(as)
brasileiros(as) que está na Carta Constitucional de 1988. A participação ativa
para além das eleições e da representação é uma aposta fundamental em termos de
radicalização da democracia. Se o governo, para se viabilizar, aposta na democra-
cia participativa, o fundamental é potencializar tal processo, extraindo dele o
máximo em termos de solução das contradições históricas limitadoras de uma
democracia substantiva no Brasil.
Para uma instituição como o Ibase, é fundamental mergulhar no processo
usando a sua capacidade de vigilância cidadã e de pressão para que a possibili-
dade vire uma realidade, superando os limites da própria luta social e política.
Os objetivos deste projeto de monitoramento e avaliação do processo do gover-
no Lula são montar, com autonomia, um sistema de acompanhamento do pro-
cesso e apontar os seus entraves, seus erros estratégicos, suas inconsistências,
tornando-se, a seu modo, ator do processo e apontando as alternativas para que
atinja aquilo a que se propõe.
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2. OBJETIVOS

Geral
Este projeto, tendo como referência prática e histórica o governo Lula (de 1 de
janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2006), visa, por meio do monitoramento
sistemático, da avaliação crítica e do debate público, contribuir para resgatar ana-
liticamente as condições do modo participativo de fazer política e potencializar o
seu impacto na democratização efetiva de uma sociedade como a brasileira. Tra-
ta-se de analisar e debater as relações e tensões entre democracia representativa e
democracia participativa e as mudanças que operam no desenvolvimento do Bra-
sil, em particular, e o enfrentamento das desigualdades e das exclusões existentes.

Específicos
:.: Identificar e selecionar os novos espaços de participação da sociedade civil pro-
movidos pelo governo federal e monitorar seu formato, seu mandato e sua
prática, bem como sua relação com os espaços já constituídos anteriormente.
:.: Registrar as visões, análises, expectativas e propostas de políticas e de formas de
intervenção no debate público de diferentes atores sociais em relação ao modo
participativo de governo.
:.: Pesquisar e analisar as possíveis mudanças políticas tanto na agenda, no dese-
nho, na gestão e no resultado das políticas públicas como na institucionalidade
da democracia, a partir do processo participativo instaurado.
:.: Avaliar o modo de fazer política do governo Lula e incidir sobre ele no sentido
de tornar a democracia mais sustentável e substantiva e mudar a própria cultu-
ra política, tornando-a mais democrática pelo reconhecimento da maior
centralidade dos direitos de todos(as) os(as) brasileiros(as) e da cidadania ati-
va como sua condição.

Promover o debate público sobre os limites e as possibilidades do modo


participativo de fazer política, a partir das experiências concretas incentivadas
pelo governo federal, por meio da criação de redes de discussão, da realização de
seminários e da divulgação de informações e estudos via Internet, publicações e
acesso à grande mídia.
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3. ESTRUTURA PROPOSTA

Para dar conta dos objetivos específicos, num sistema de monitoramento e avali-
ação ativa sobre o modo de fazer política do governo Lula, propõe-se que sejam
contemplados quatro grandes blocos interligados de questões a serem analisadas e
de atividades a serem desenvolvidas.

Monitoramento
Será dada atenção prioritária a três iniciativas já em curso: Conselho Econômico
e Social, Consea e consultas à sociedade civil feitas em relação ao PPA. Mas o
projeto estará atento a outras iniciativas já lançadas – como as conferências naci-
onais – ou que possam surgir, podendo priorizá-las nas revisões semestrais se de-
monstrarem ser de grande relevância. No monitoramento, trata-se de:
:.: identificar, mapear e monitorar as principais iniciativas de participação
implementadas pelo governo federal, nos diferentes estados e municípios;
:.: caracterizar mandatos e instrumentos das iniciativas;
:.: analisar a composição social e política das iniciativas;
:.: recuperar os registros oficiais e da imprensa, fazendo a memória dos processos
em curso;
:.: resgatar os debates e as propostas surgidas nos espaços de participação, bem
como seus portadores;
:.: identificar os compromissos alcançados.

Registro dos atores


Aqui é fundamental considerar separadamente os diferentes atores sociais: (1) os
diretamente engajados em processos de participação e concertação animados pelo
governo Lula; (2) aqueles da sociedade civil que, por alguma razão, não partici-
param de tais processos; (3) os que se consideram legítimos representantes e deten-
tores de mandato para concertar políticas – parlamentares de todos os níveis,
governadores(as) e prefeitos(as); (4) os “invisíveis”, assim chamados por não te-
rem identidade política reconhecida e poder para participar dos processos em ques-
tão; (5) os que exercem funções de Estado e detêm poder real na sua operação
(Judiciário, funcionalismo e Forças Armadas); e (6) “formadores de opinião” da
grande mídia. Para tanto, é necessário:
:.: mapear e qualificar os atores sociais, segundo as especificações listadas anteriormente;
:.: registrar o seu modo de intervenção na política institucional e nos espaços de
participação;
:.: recolher sistematicamente as suas visões e expectativas, suas críticas e deman-
das, nos diferentes momentos;
:.: caracterizar sua atitude quanto ao modo de fazer política do governo Lula;
:.: caracterizar sua atitude diante dos temas e das políticas em debate nos espaços
de concertação;
:.: qualificar a sua disposição em participar nos espaços de concertação;
:.: dar particular atenção ao modo como os atores se posicionam diante de novas
dimensões da cidadania – gênero, etnia e diversidade cultural, diversidade de
opções, necessidades especiais etc. – para além das relações de classe em termos
de capital e trabalho;
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:.: organizar um quadro da sociedade civil regional, identificando os atores mais


significativos e os principais conflitos existentes, bem como os conflitos e as
tensões emergentes.

Pesquisa das mudanças


Neste bloco, será dada atenção ao desenho e à implementação das políticas públi-
cas como resultado da participação, distinguindo os âmbitos discursivo, substan-
tivo e operacional. Para tanto, é necessário:
:.: identificar questões substantivas incluídas na agenda política e o modo de abordá-las;
:.: colher subsídios sobre as mudanças legais e constitucionais operadas pelo pro-
cesso participativo;
:.: pesquisar e qualificar as mudanças nos regulamentos de órgãos e instituições;
:.: caracterizar os órgãos criados ou modificados e seu campo de abrangência;
:.: qualificar a distribuição de recursos públicos que são objeto de decisão
participativa;
:.: fazer alguns estudos de casos exemplares das mudanças e tensões entre proces-
sos no nível do governo federal e de outras instâncias federativas, particular-
mente na autonomia e gestão local;
:.: criar um sistema de indicadores de resultado para acompanhar as políticas
participativas.

Avaliação
O projeto só cumprirá inteiramente a sua função política de vigilância cidadã,
tornando-se ele mesmo uma forma de participação ativa no novo modo de fazer
política do governo Lula, quando gerar avaliações críticas. Por isso, será funda-
mental completar o processo com as ações previstas neste bloco:
:.: analisar os conflitos gerados e pactos obtidos;
:.: identificar como são vividas as questões da legitimidade e da legalidade;
:.: mapear os campos alheios à participação e as suas causas;
:.: qualificar as tensões entre representação constituída pelo voto e outras formas
de participação direta;
:.: examinar como se manifestou o confronto entre diferentes culturas políticas:
clientelismo e patrimonialismo versus direitos e obrigações;
:.: investigar as mudanças nas relações entre espaço público e espaço estatal;
:.: identificar de que modo a máquina administrativa do governo federal reage às
demandas da cidadania vindas pelos canais participativos;
:.: destacar as reações do Judiciário;
:.: avaliar quão inclusivas são as iniciativas, já que a inclusão de todas e todos nos
direitos humanos, enfrentando as desigualdades, é uma questão fundamental
na definição da qualidade da democracia participativa;
:.: avaliar o impacto sobre a sociedade.

Debate público
A lógica do projeto de monitoramento exige que o processo de acompanhamento
das ações de participação social se dê de forma transparente e responsável. Isso
significa necessariamente o incentivo ao debate público, a troca de impressões e
posições, o estudo e o exame de situações diversas, com o intuito de entender
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melhor a realidade, agindo sobre ela para que possamos melhorá-la e também
para que tenhamos condições de estabelecer marcos teóricos e políticos que se
expressem na realidade dos movimentos e dos governos, impulsionando-os a al-
ternativas cada vez mais democráticas e participativas, de modo sustentável.
Por isso, o estímulo e a indução e a organização do debate público são elemen-
tos fundamentais, no recorte temático e no quadro dos temas que dizem respeito
diretamente à participação social na formulação, na definição e na gestão de po-
líticas públicas e da agenda política brasileira. Esse debate deve ser facilitado com
a exposição, difusão e publicização de informações, documentos, estudos, relató-
rios e resultados de debates especializados.
Mais do que um processo institucional de comunicação social, o debate que
este projeto quer promover tem relação direta com procedimentos de mobilização
social por meio do uso de instrumentos coordenados de comunicação cidadã.
Assim, mais que ser promotor e dono de meios de comunicação, o projeto deve ser
estimulador de debates que se expressem por meios de comunicação variados, já
existentes em movimentos sociais, organizações não-governamentais (ONGs),
movimentos populares e também por meio da grande imprensa. Para tanto:v
serão realizados seminários com estudiosos(as), lideranças sociais e formadores(as)
de opinião, devidamente organizados e fundamentados em dados, informações e
levantamentos e estudos, que deverão ser previamente socializados;
:.: análises e documentos de acompanhamento de conjuntura serão encaminha-
dos a organizações e movimentos sociais para que possam reproduzir e estimu-
lar o debate em seus quadros;
:.: articulistas e analistas serão estimulados(as) a analisar e promover o debate a
partir da difusão de matérias na grande imprensa e na imprensa alternativa;
:.: serão estimulados debates em meios alternativos de comunicação (rádios, tele-
visões comunitárias etc.);
:.: será promovido e atualizado constantemente um portal na Internet, com docu-
mentos, mecanismos de debate e interatividade, artigos e materiais que possam
ser reproduzidos em outros meios,
:.: Jornal da Cidadania terá uma seção específica de responsabilidade do Mapas
(com incentivo à reprodução por outros meios e veículos);
:.: a revista Democracia Viva terá uma seção específica e permanente de reprodu-
ção de documentos e de seminários.
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4. ASPECTOS METODOLÓGICOS

Uma condição indispensável para o projeto é garantir que ele mesmo seja ator no
processo avaliado, permitindo que a memória produzida, os registros feitos, as
mudanças qualificadas, as avaliações realizadas, enfim, tudo contribua para faci-
litar e radicalizar a própria participação. Por isso, ele deve ser desenhado de forma
a permitir ampla participação da diversidade de atores e amplo debate entre eles e
o conjunto da sociedade civil brasileira sobre as questões que trata. Ou seja, o
sistema de monitoramento e avaliação ativa não é apenas um recolhimento siste-
mático de informações para formar um banco de dados e depoimentos sobre o
governo Lula enquanto este se realiza. Mais do que isso, o projeto quer ser uma
referência ativa para devolver análises e se tornar um vigilante ativo das instâncias
de participação política da sociedade civil no governo Lula, numa perspectiva de
contribuir para a mais profunda e sustentável democratização de nosso país.

Seminário de etapas
As diferentes atividades do projeto obedecerão a ciclos de seis meses. Isso significa
que os quatro blocos interligados de questões incluídas na proposta serão condu-
zidos de forma a produzir resultados provisórios no fim de cada seis meses. Por
meio das análises feitas, será possível fazer um seminário de etapa, com atenção a
toda metodologia e à qualidade dos produtos gerados, revisando-o e aperfeiçoan-
do-o, se for o caso, para a etapa seguinte. Ao mesmo tempo, durante o seminário
de cada etapa, serão realizadas mesas de diálogo com representantes dos atores
envolvidos, para com eles avaliar os produtos gerados, as questões suscitadas, as
propostas da equipe para melhorar o próprio modo de fazer política. Nos seminá-
rios de etapa, será possível definir o período seguinte do projeto, podendo até dar
atenção a novas iniciativas participativas a serem monitoradas.

Trabalho em rede
Em virtude da complexidade do sistema a ser montado e para que ele seja amplo,
aberto e legítimo em termos de um coletivo que assume o papel de vigilância sobre
o governo Lula, a alternativa é constituir um grupo de trabalho de representantes
de ONGs associadas à Associação Brasileira de ONGs (Abong) com diferentes per-
fis e que atuam em diferentes partes do Brasil. Com uma coordenação política e
técnica definida ao redor do Ibase, o grupo funcionará como conselho político e
técnico do projeto de monitoramento e avaliação, ao mesmo tempo em que cada
participante assume atividades práticas, com instrumentos e procedimentos concer-
tados. Esse grupo se reunirá regularmente a cada seis meses para o seminário de
etapa. De forma permanente, o grupo funcionará conectado em rede pela Internet
e animado pela coordenação técnica do Ibase, seguindo um cronograma estabeleci-
do de registro de informações. Um boletim interno, em via eletrônica, permitirá
socializar informações estratégicas e estimular debates entre os participantes, nos
períodos entre os seminários de etapa. A rede será constituída a partir de todas as
relações, parcerias e alianças do Ibase na sociedade brasileira.
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Seminário inicial de mobilização


Todo o processo de monitoramento e avaliação começará efetivamente a partir de
um seminário com toda a rede de trabalho. Na ocasião, a proposta será estudada
e detalhada, e os conjuntos de questões serão aprofundados, definindo-se os ins-
trumentos comuns, as atribuições de cada um, os modos de operar e o cronograma
a ser seguido até o primeiro seminário de etapa. Cada seminário de etapa, no fim
do sexto mês, funcionará como definidor dos ajustes metodológicos para a etapa
seguinte. No seminário inicial, atenção particular será dada à definição de um
padrão homogêneo comum do projeto, garantindo as suas bases científicas e téc-
nicas paralelamente às políticas.

Debate público
O sistema de monitoramento e avaliação aqui proposto se completa com uma
estratégica de divulgar elementos e alimentar o debate público sobre o processo de
constituição e evolução do governo Lula. Isso pode ser facilitado com o fato de
que a própria imprensa é ator relevante na participação, sendo ela mesma inte-
grante da proposta. Formadores(as) de opinião da grande mídia darão seus depo-
imentos sobre o processo, além do registro que será feito pela rede do que a mídia
divulga. Nesse sentido, a ponte entre o projeto e a mídia existirá desde o início. É
necessário garantir que uma estratégia específica de divulgação, sobretudo das
conclusões provisórias ao fim dos seminários de etapa, seja assegurada. A consti-
tuição de um site específico do projeto deve ser prevista, a fim de tornar o projeto
uma referência para a própria mídia.

Relação com o governo


Evidentemente, um projeto como este é facilitado se não encontrar resistências
nas lideranças governamentais a cargo das iniciativas monitoradas e avaliadas.
Nas negociações preliminares com os ministros titulares da Secretaria Geral da
Presidência e do Conselho Econômico e Social, ficou claro o seu interesse no pro-
jeto. No caso do Consea, o acesso fica facilitado pela presença de Francisco Menezes,
diretor de Programas do Ibase, já que ele é um de seus membros do daquele con-
selho. Assim, estão assegurados o acesso a documentos e memórias das reuniões, a
colaboração nos registros e a sua participação nos momentos decisivos do proje-
to, como os seminários de etapa.
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5. PRODUTOS ESPERADOS

Além do boletim de informação e debate no interior da rede, podendo envolver


certos setores dos próprios atores monitorados, e do site de referência do projeto,
é possível visualizar os seguintes produtos:
:.: mapas dos espaços de participação institucionais atualmente existentes no ní-
vel do governo federal e os criados pelo governo Lula na perspectiva de um
novo modo de fazer política;
:.: banco sistemático de informações das iniciativas participativas do governo Lula;
:.: banco de depoimentos dos diferentes atores;
:.: artigos analíticos de etapa, que podem ser publicados em revistas especializadas;
:.: artigos de opinião assinados, publicados na grande mídia, ao longo do processo;
:.: publicação em formato de livro ao fim do quarto ano do governo Lula;
:.: Rede de Parceria e Trabalho.
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6. EQUIPE RESPONSÁVEL

COORDENAÇÃO GERAL

Cândido Grzybowski – Ibase

COORDENAÇÃO EXECUTIVA

Institucional: Moema Miranda – Ibase


Técnica e metodológica: Nelson Delgado – Cpda/UFRJ

EQUIPE TÉCNICA E DE APOIO

No Ibase: Fernanda Felisberto, Flávio Limoncic e Iracema Dantas


Em Brasília: Ivônio Barros

REDE DE TRABALHO NACIONAL

(pessoas contratadas de outras entidades*)


Brasília: Padre Ernanne Pinheiro – CNBB
Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná: Sérgio Gregório Baierle – Cidades
São Paulo: Ana Claudia Teixeira – Pólis/Fórum Nacional de Participação Popular
Minas Gerais: Sara Deolinda Cardoso Pimenta – Cedefes
Goiás, Mato Grosso do Sul e Tocantins: Mônica Schiavinatto – Ifas
Mato Grosso, Roraima e Acre: Elton Domingues Rivas – Fase/MT
Bahia, Sergipe e Alagoas: Maria de Fátima Pereira do Nascimento – Cese
Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba: Mônica Oliveira – Cenap
Ceará e Piauí: Lucineide Barros Medeiros – Cepac
Pará, Amapá e Maranhão: Vânia Regina Vieira de Carvalho – Fase/PA
Amazonas e Roraima: José Adilson Vieira de Jesus – IPDA/GTA

CONSULTORES(AS) NACIONAIS E INTERNACIONAIS

a definir segundo as necessidades de participação nos seminários de etapa.

* Os estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo serão cobertos pela equipe permanente do Ibase.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

A experiência do Projeto Mapas


de monitoramento político de
iniciativas de participação
do governo Lula
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1. INTRODUÇÃO

A ascensão do Partido dos Trabalhadores à presidência da República despertou


expectativas de renovação política e de abertura à participação em movimentos
sociais e organizações da sociedade civil. Essas forças tomaram parte, junto com
os fundadores do PT e outros atores políticos, das lutas que culminaram na queda
da ditadura militar e na redemocratização do Brasil. A percepção predominante
era a de que a eleição de Lula representava o triunfo dessas mobilizações e levaria
à consolidação de um novo modo de fazer política no país.
O Projeto Mapas surgiu nesse contexto, como uma iniciativa que visava o
monitoramento dos espaços de participação no governo Lula. A trajetória desse
acompanhamento é a história das frustrações das organizações da sociedade civil
com a pouca importância política atribuída a esses mecanismos e com decisões
como a manutenção da política econômica conservadora e de um modelo de
alianças que privilegia partidos conservadores, o mercado financeiro e o
agronegócio.
O percurso narrado e analisado neste texto trata de uma fase inicial (2003/
2004), na qual torna-se crescente a percepção da “cidadania encurralada” pelas
opções conservadoras do governo Lula. A expectativa de fortalecimento e de gene-
ralização da participação social não se cumpriu. Embora tenham ocorrido avanços,
o modelo dos conselhos, por exemplo, esbarrou em dificuldades, como a exclusão
dos setores chaves das políticas públicas (as decisões sobre taxas de juros, metas de
inflação, superávit primário, etc.) e a sub-representação de ativistas de movimentos
sociais, em favor dos(as) empresários(as), banqueiros(as) e sindicalistas.
Dada a constatação do impasse na participação, o Mapas entrou numa fase de
reavaliação de seus métodos e da busca de uma estratégia para monitorar o governo
Lula (2004/2005). Foi então que se optou por acompanhar os conflitos e disputas
sociais, entendidos como tentativas de participação dos grupos excluídos dos pro-
cessos e instituições formais e como lutas pela preservação de direitos sociais amea-
çados por ações das políticas estatais e/ou por omissões do governo federal.
O presente trabalho apresenta uma síntese desta trajetória do Projeto Mapas,
que além de monitorar iniciativas de participação social do governo Lula pretendeu
também, dentro dos limites da iniciativa, ser ator político deste processo. Daí o(a)
leitor(a) encontrar, nas seções que se seguem, reflexões e análises não apenas sobre o
contexto de incidência do Projeto, mas também sobre o próprio percurso e os per-
calços do trabalho realizado em meio a uma conjuntura bastante dinâmica.
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2. A PROPOSTA DO PROJETO MAPAS

O Projeto Mapas (Monitoramento Ativo da Participação da Sociedade) iniciou


suas atividades em outubro de 2003, no final, portanto, do primeiro ano do
governo Lula1.
A justificativa da proposta do Mapas inicia com a afirmação de que, com o
governo Lula, o Brasil vive “um momento único em sua História, pois, pela pri-
meira vez, povo e nação tendem a se encontrar como bases de refundação de um
projeto de país”2. “É a democratização que explica a vitória de Lula”, segue a
proposta, “e, ele próprio, como presidente do Brasil, pode sinalizar para uma
radicalização da democracia. Esse é um dado novo para o Brasil e toda a América
Latina” (p. 2). Diante dessa novidade política, sem precedentes na História naci-
onal, uma preocupação fundamental das forças progressistas é saber como será o
governo Lula: “(s)erá ele capaz de mudanças? Como se definirão as políticas?
Quão democráticas e democratizadoras serão elas?”. Segundo a proposta, “(s)ão
indagações como essas que uma entidade como o Ibase e todo o setor de entidades
da sociedade civil, engajados na radicalização da democracia, não podem deixar
de fazer neste momento” (p. 2).
De acordo com a proposta, a história política de Lula e as experiências de gover-
nos do PT nos níveis municipal e estadual justificavam, naquele momento, a aposta
em que a novidade do novo governo estaria assentada em seu caráter de governo
participativo. “(E)stamos diante de uma questão chave: é da natureza do poder que
se propõe a radicalizar a democracia apostar no processo em que se gestam as mu-
danças mais do que obter mudanças a qualquer custo. Trata-se de construir mudan-
ças com sustentabilidade e legitimidade. Busca-se tornar os antagonismos e as dife-
renças, a correlação de forças políticas, enfim, os conflitos sociais e políticos em
alavancas de construção das próprias mudanças. À luz disso, o que se espera de Lula
no exercício do poder político é exatamente radicalizar a participação como condi-
ção de gerar processos políticos portadores de mudanças substantivas nas relações
sociais e até no modo de desenvolvimento do Brasil” (p. 3).
Reconhecendo as enormes dificuldades a serem enfrentadas nessa perspectiva,
o Projeto se perguntava: “(s)erá que estamos diante de uma inovação em termos
de potencializar a democracia, tensionando as estruturas representativas por meio
de formas diretas de democracia participativa?” (p. 4). Sua resposta era bastante
clara: “(o) momento é de apostar na participação ... (a) participação ativa para
além das eleições e da representação é uma aposta fundamental em termos de
radicalização da democracia”.
No início do governo Lula, essa aposta do Projeto parecia corroborada por
uma “nova onda participativa” no governo federal, exemplificada pelas expecta-
tivas geradas em relação aos recém criados (em janeiro de 2003) Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (Consea), além das consultas à sociedade civil no debate

1
O Projeto é executado pelo Ibase com o apoio da Fundação Ford e da ActionAid Brasil. Note-se que um primeiro esboço
da proposta do Mapas já estava pronto em abril de 2003, cerca de três meses após o início do novo governo.
2
Ibase, Projeto do Mapas, 2003, p. 2.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

da proposta do Plano Plurienal de Investimentos (PPA) e para a realização de


grandes Conferências em torno de temas centrais para a transformação da política
pública e do modelo de desenvolvimento prevalecente (Meio Ambiente, Cidades,
Segurança Alimentar), e que congregavam segmentos importantes da sociedade
civil organizada, inclusive portadores de propostas para o novo governo.
Nesse sentido, a hipótese central e norteadora do Projeto era que “o modo petista
de governar, de fazer política” teria como uma de suas características distintivas o
estímulo às iniciativas de participação da população organizada na formulação e
na implementação das política públicas. A partir dessa hipótese, o Mapas propu-
nha-se a identificar, monitorar e avaliar as experiências concretas de participação
incentivadas pelo governo federal com o objetivo de “(p)romover o debate público
sobre os limites e as possibilidades do modo participativo de fazer política”3.
E, enquanto tal, o propósito explícito do Projeto era tomar parte nesse proces-
so político, agindo como um ator do mesmo, para “acompanhar o acontecer
deste governo”4. Nos termos da proposta (p. 5): “Para uma instituição como o
Ibase, é fundamental mergulhar no processo usando a sua capacidade de vigilân-
cia cidadã e de pressão para que a possibilidade vire uma realidade, superando os
limites da própria luta social e política. Os objetivos deste projeto de
monitoramento e avaliação do processo do governo Lula são montar, com auto-
nomia, um sistema de acompanhamento do processo e apontar os seus entraves,
seus erros estratégicos, suas inconsistências, tornando-se, a seu modo, ator do
processo e apontando as alternativas para que atinja aquilo a que se propõe.”

3
Projeto do Mapas, 2003, p. 6. Nessa mesma página, o objetivo geral do Projeto é enunciado como segue: “Este projeto,
tendo como referência prática e histórica o governo Lula (de 1 de janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2006), visa, por
meio do monitoramento sistemático, da avaliação crítica e do debate público, contribuir para resgatar analiticamente as
condições do modo participativo de fazer política e potencializar o seu impacto na democratização efetiva de uma
sociedade como a brasileira. Trata-se de analisar e debater as relações e tensões entre democracia representativa e
democracia participativa e as mudanças que operam no desenvolvimento do Brasil, em particular, e o enfrentamento das
desigualdades e das exclusões existentes”.
4
Na expressão de Cândido Grzybowski, coordenador geral do Mapas, na abertura do “Debate I: a participação no
governo Lula – visões da sociedade civil” no Seminário “Os sentidos da democracia e da participação”, realizado no
Instituto Pólis, em São Paulo, de 1 a 3 de julho de 2004. Ver Teixeira (2005), p. 61.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

3. DE OUTUBRO DE 2003 A JUNHO DE 2004

As atividades iniciaram em outubro de 2003 com a discussão na equipe do Ibase


dos quadros conceitual, metodológico e empírico do Projeto, com a formação da
rede nacional de ONGs concebida para implementá-lo, e com a preparação do
primeiro seminário da “rede do Mapas”, a ser realizado no final de novembro.
A partir da concepção de que o Projeto Mapas pretendia realizar um
monitoramento político – e não acadêmico – das iniciativas de participação do
governo federal e, desse modo, tencionava participar como um ator político desse
processo social, o caráter a ser assumido pela “rede do Mapas” e a escolha de seus
participantes representavam uma verdadeira questão metodológica a ser enfrentada
pelo Projeto, pois era indispensável que a montagem da rede estivesse adequada ao
cumprimento dos objetivos assinalados. Nesse sentido, a coordenação do Mapas
decidiu: (I) formar uma rede com ONGs comprometidas com o acompanhamento
das lutas sociais e dos processos de participação existentes ou reivindicados em suas
áreas e regiões de atuação. Com isso, buscava criar condições para que o caráter
político e não acadêmico do monitoramento a ser realizado pelo Mapas pudesse ser
garantido; e (II) que a rede deveria ter uma abrangência nacional, pois muitas das
iniciativas que seriam acompanhadas tinham ou pretendiam ter essa incidência.
Com essa perspectiva, a rede do Mapas foi composta pelas seguintes organiza-
ções não-governamentais, além do Ibase: Centrac (Centro de Ação Cultural), da
Paraíba; Cidade (Centro de Assessoria e Estudos Urbanos), do Rio Grande do Sul;
Cedefes (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva), de Minas Gerais; Cepac
(Centro Piauiense de Ação Cultural), do Piauí; Cese (Coordenadoria Ecumênica
de Serviço), da Bahia; Fase (Federação de Órgão para Assistência Social e Educa-
cional), do Mato Grosso e do Pará; GTA (Grupo de Trabalho Amazônico), do
Amazonas; Ifas (Instituto de Formação e Assessoria Sindical Rural Sebastião Rosa
da Paz), de Goiás; Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), do Distrito Fe-
deral; e Pólis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais),
de São Paulo5.
Desde o início, o Projeto como que carregava uma tensão particular e própria.
Por um lado, tendo como ponto de partida sua hipótese básica já mencionada,
foram escolhidos como loci fundamentais de acompanhamento do Projeto os
novos espaços públicos de participação criados pelo governo Lula, entendidos
como espaços públicos institucionalizados nos quais representantes do Estado e
da sociedade civil participam conjuntamente na formulação e no controle social
da implementação de políticas públicas específicas6. Assim sendo, foram escolhidos
como objetos de acompanhamento pela equipe do Ibase: o processo de consulta do
PPA (fóruns estaduais de 2003), o CDES, os Conseas nacional e/ou estaduais, e as
Conferências nacional e/ou estaduais de Cidades, Meio Ambiente, e Segurança

5
Note-se que duas organizações participaram do início das atividades do Projeto, mas afastaram-se posteriormente: o
Cenap (Centro Nordestino de Animação Popular), de Pernambuco, e a CNBB (Conferência Nacional do Bispos do Brasil),
do Distrito Federal.
6
Existe uma extensa e bem conhecida literatura sobre espaços públicos de participação. No contexto do Mapas, Delgado
& Limoncic (2004) e Dagnino (2002) podem ser consultados.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6

Alimentar e Nutricional.
Para viabilizar esse objetivo, a equipe do Ibase construiu o que se chamou de
instrumentos para coleta de informações do processo de consulta do PPA nos
estados, das Conferências, e dos Conseas. Em relação ao PPA, as informações a
serem coletadas deveriam privilegiar: (I) o registro das várias etapas do processo e
a caracterização e análise dos instrumentos da iniciativa; (II) o mapeamento dos
atores sociais envolvidos e não envolvidos no processo; e (III) o registro do modo
de participação dos atores e sua avaliação do processo.
No caso das Conferências, as informações a serem obtidas deveriam concen-
trar-se: (I) na formatação do processo da conferência, (II) em sua dinâmica de
implementação, e (III) nas visões dos atores sociais sobre o processo. E para os
Conseas, as coletas deveriam buscar identificar: (I) o monitoramento dos conse-
lhos (sua estrutura formal, dinâmica de composição e funcionamento, e identifi-
cação dos resultados alcançados), e (II) as visões dos atores sociais (participantes
ou não) sobre o conselho.
Dadas as características do Projeto – que não pretendia promover um estudo
acadêmico e exaustivo do tema, mas ser um ator qualificado e autônomo do
processo de participação social em curso no país – pretendia-se que a coleta de
informações fosse suficiente para, basicamente, registrar os atores sociais incluí-
dos e “deixados de fora” nos processos, seu modo de participação e sua avaliação
do mesmo, além da identificação dos temas tratados, das propostas e sugestões
feitas e do tipo de resultados obtidos até então.
A equipe do Ibase preparou, ademais, um “Glossário de termos do Projeto
Mapas” com o objetivo de homogeneizar o emprego de conceitos relevantes para
a dinâmica do Projeto e facilitar a comunicação entre os membros da rede. A
proposta inicial era disponibilizar o glossário de termos no site do Mapas, de
modo que pudesse vir a ser continuamente atualizado pelo aprimoramento do
diálogo a ser estabelecido na rede.
Por outro lado, a equipe do Ibase já intuía, desde outubro de 2003, que pode-
ria ser limitante e enganoso concentrar todos os esforços do Projeto no acompa-
nhamento desses espaços institucionalizados de participação para dar conta de
um processo que começava a dar sinais de indeterminação, pois o governo Lula já
revelava importantes contradições e ambigüidades de propósitos e de ação políti-
cos, em função, principalmente, de sua opção básica pela manutenção, e mesmo
pelo aprofundamento, da política macroeconômica neoliberal do governo FHC7.
Nesse sentido, embora mantendo-os como prioridade de acompanhamento,
não bastava ao Projeto restringir-se inteiramente aos espaços institucionalizados,
sem observar a dinâmica de atuação das organizações da sociedade civil fora dos

7
Em outubro de 2003, essa opção já estava suficientemente caracterizada e publicizada, especialmente depois do
lançamento pelo Ministério da Fazenda, em abril, do documento “Políticas Econômicas e Reformas Estruturais”, que
buscava justificar essa opção política. Não obstante à política externa mais independente e voltada para o Sul –
consagrada internacionalmente com a criação do G-20 e sua atuação na Ministerial de Cancún da OMC, em setembro de
2003 foi liberado o plantio de soja transgênica, contrariando as expectativas e demandas dos movimentos sociais rurais
e das ONGs; em dezembro foi aprovada a reforma da Previdência Social e o PT expulsou parlamentares que votaram
contra a reforma; e em fevereiro de 2004 foi divulgado na imprensa o primeiro caso de corrupção no governo (o caso
Waldomiro), atingindo o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, principal articulador da campanha de Lula à Presidência
da República e componente central do chamado “núcleo duro” do governo.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

marcos propostos pelas iniciativas do governo federal, o que, mais tarde, no semi-
nário da rede do Mapas, em julho de 2004, iria ser chamado de “participação na
rua”. Assim sendo, considerou-se importante coletar informações adicionais que
permitissem alguma avaliação política da sociedade civil nesse período.
Para tanto, a equipe do Ibase definiu instrumentos adicionais de coleta visan-
do a construção de mapeamentos preliminares, em todas as regiões do país consi-
deradas, dos atores mais relevantes da sociedade civil e dos principais – na pers-
pectiva de sua capacidade de influenciar a agenda pública – conflitos e tensões
sociais existentes e/ou latentes. Com esses mapeamentos, poder-se-ia tentar obser-
var (I) o tipo de resposta política do governo e (II) sua relação com e sua influên-
cia sobre a dinâmica dos processos monitorados nos espaços institucionalizados –
além de que seriam um produto adicional do Projeto, com relevância própria e
passível de ser constantemente atualizado.
É importante reter que o reconhecimento gradual e as tentativas sugeridas para
enfrentar a tensão entre o acompanhamento dos processos de participação nos “espa-
ços institucionalizados” e “na rua” foram centrais para a execução do Projeto e res-
ponsáveis por muitas das dificuldades enfrentadas pela rede do Mapas para implementá-
lo. Elas se agudizaram à medida em que a prática política do governo Lula foi se
afastando aceleradamente do suposto na hipótese central e foi “encurralando” o
Projeto, ao mesmo tempo em que ia “encurralando” a própria sociedade civil8.
O primeiro seminário da rede do Mapas ocorreu nos dias 25 e 26 de novembro
de 2003. Além do exercício de interação entre pessoas que não se conheciam previ-
amente e de busca de uma linguagem e de uma semântica a serem compartilhadas,
os pontos mais relevantes tratados no seminário foram, talvez, os seguintes:
:.: O esforço de tentar esclarecer na equipe a idéia, não trivial, de que o Projeto
pretendia atuar, na forma de rede, como um ator político no processo a ser
monitorado, buscando intervir, de forma qualificada, no debate sobre a parti-
cipação social e a democracia participativa no governo Lula. Por essa razão,
como vimos, a rede do Mapas incluía membros de ONGs e de redes com atu-
ação destacada no debate público em seus estados e regiões de origem. Obser-
ve-se que o significado que esse caráter inovador pretendido pelo Projeto assu-
misse para a rede do Mapas influenciaria decisivamente sua percepção acerca
do tipo de coleta de informações que deveria ser realizado. É preciso reconhe-
cer que o ineditismo da proposta, as complexidades de concepção e de
operacionalização envolvidas, os rumos seguidos pelo governo Lula, que puse-
ram em questão a hipótese central do Projeto, e a heterogeneidade da equipe
criaram inúmeras dificuldades para essa compreensão e para a condução e
implementação dos trabalhos da rede que nunca conseguiram ser completa-
mente resolvidas.

8
Menção ao artigo de Grzybowski (2004), divulgado no seminário de julho do Mapas e na imprensa nacional, e que vai
ter influência significativa para as decisões que começarão a ser tomadas a respeito dos caminhos do Projeto a partir do
seminário no Instituto Pólis, em julho de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8

:.: Concebido o Projeto como uma rede de intervenção para estimular o debate
público sobre a radicalização da democracia no governo Lula, discutiram-se os
mecanismos necessários para viabilizar a rede e para visibilizá-la diante dos(as)
formadores(as) de opinião pública, em geral, e dos movimentos sociais e de
outras redes parceiras, em particular. A discussão em torno desse tema incluiu a
necessidade de definir com clareza o que se esperava da rede, a construção de
um site e de outros mecanismos de divulgação, devolução e interação (seminá-
rios, workshops, oficinas, etc.), e a utilização de formas adequadas de anima-
ção da mesma. As dificuldades do Projeto para enfrentar apropriadamente
essas questões frustraram em boa medida as potencialidades do Mapas para
viabilizar-se como uma rede de intervenção com as características previstas ori-
ginalmente.
:.: Apresentação, discussão e adaptações da proposta de trabalho, dos instrumen-
tos para a coleta de informações, do glossário de termos do Mapas e do
cronograma de trabalho.
:.: Discussão de temas da conjuntura política do governo Lula pelos membros da
rede do Mapas, em que cabe registrar dois aspectos. Primeiro, apesar do reco-
nhecimento da complexidade da conjuntura, percebia-se uma preocupação
generalizada na equipe com os rumos assumidos pelo governo federal, em es-
pecial no campo das iniciativas de participação social. Essa preocupação des-
dobrava-se, inclusive, na interrogação acerca de como o governo Lula conce-
bia e tratava, em sua prática política, a questão da participação e na constatação
das ambigüidades do governo em suas negociações políticas com os(as) repre-
sentantes da sociedade civil. Segundo, testemunhava-se também, com igual ou
maior preocupação, a relativa fragilidade da sociedade civil, destacando-se uma
possível intensificação de sua fragmentação como conseqüência da própria
prática política governamental.

As seguintes atividades foram acordadas no seminário de novembro de 2003


para serem realizadas no primeiro semestre de 2004:
1. Mapeamento, em todos os estados, dos principais atores da sociedade civil e
dos principais conflitos e tensões sociais.
2. Caracterização, em todos os estados, do processo de consulta do PPA – fóruns
estaduais 2003.
3. Caracterização do processo de participação no CDES.
4. Caracterização do processo de participação no Consea nos estados: Minas Ge-
rais; Bahia/Alagoas/Sergipe; Piauí/Ceará; Pernambuco; Goiás/Tocantins/Mato
Grosso do Sul.
5. Caracterização do processo de participação na Conferência das Cidades nos
estados: São Paulo; Rio Grande do Sul/Santa Catarina/Paraná; Pernambuco/
Rio Grande do Norte/Paraíba; Pará/Maranhão/Amapá.
6. Caracterização do processo de participação na Conferência do Meio Ambiente
nos estados: Mato Grosso/Rondônia/Acre; Amazonas/Roraima; Pará/
Maranhão/Amapá; Rio de Janeiro/Espírito Santo.
7. Elaboração e implementação do Plano de Comunicações do Mapas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
9

4. DE JULHO A DEZEMBRO DE 2004

Em julho de 2004, em São Paulo, ocorreu o primeiro seminário da rede do Ma-


pas, seguido de um seminário de devolução à sociedade de alguns resultados obti-
dos e reflexões realizadas até então. Para esse seminário de devolução, o Mapas
associou-se a outras redes e ONGs envolvidas com a mesma temática, dando
origem a um grande seminário organizado pelo Instituto Pólis, em 1, 2 e 3 de
julho, denominado “Os Sentidos da Democracia e da Participação”9. A divulga-
ção do Mapas através desse seminário foi complementada pela cobertura da gran-
de imprensa jornalística e pela edição, em agosto/setembro de 2004, de um núme-
ro especial da revista do Ibase, Democracia Viva, incluindo textos elaborados
pela equipe do Projeto, com base no material previamente produzido.
Esses eventos representaram o lançamento do Mapas como um ator político
no monitoramento de experiências de participação no governo Lula, dando-lhe
visibilidade pública, inclusive para o governo federal. Ao mesmo tempo, os semi-
nários de São Paulo e as reflexões aí veiculadas contribuíram para evidenciar as
dificuldades e os impasses que a compreensão –evidentemente controversa – das
conseqüências da progressiva não verificação de sua hipótese central trazia para
os rumos do Projeto, tanto do ponto de vista das iniciativas e/ou dos processos
sobre os quais a coleta de informações deveria concentrar-se (“espaços
institucionalizados”/”participação na rua”), como do caráter e da perspectiva de
sua intervenção como ator político em um processo de participação que se revela-
va bastante marginal como “modo de fazer política” do novo governo.
Das discussões feitas nos dois seminários de julho – o da equipe e o de devolu-
ção –, podemos retirar algumas observações que ajudam a perceber as singulari-
dades do tipo de acompanhamento que o Mapas pretendia realizar, as conseqüên-
cias que a evolução do governo Lula trouxe para ele, e os impasses e as tentativas
de busca de novos caminhos para o Projeto.
1. Mesmo enfrentando dificuldades de compreensão e de operacionalização, e
alcançando, muitas vezes, resultados relativamente precários, o monitoramento
das experiências de participação feito pelo Mapas nessa fase – ainda mais quando
relacionado com outras manifestações da forma e do conteúdo reais da políti-
ca do governo federal – corroborava a percepção que se ia generalizando de
que: (I) o governo Lula encarava esses espaços públicos não como lugares pri-
vilegiados de controle social do Estado, mas, no máximo, como espaços para
a sua interlocução com os atores não estatais e, com isso, promovia retrocessos
importantes na sua concepção e na sua implementação; (II) a prática
participativa, mesmo nessa perspectiva emasculada, não atingia os núcleos eco-
nômicos e políticos do poder; e (III) a radicalização da democracia não era um
objetivo do novo governo10. Ou seja, o Mapas começava a ter de defrontar-se

9
Os anais desse seminário foram publicados em Teixeira (2005).
10
O consenso em torno dessas constatações já começava a ampliar-se consideravelmente, nesse período, entre as redes
e ONGs que participavam de espaços públicos de participação no governo Lula, como pode ser visto em vários depoimen-
tos registrados em Teixeira (2005), especialmente pp. 61-89.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

com a evidência de que sua hipótese central estava se tornando progressiva-


mente equivocada e de que as expectativas iniciais da sociedade civil organiza-
da, que pretendia expressar, estavam indo por água abaixo.
2. Essa situação teve inúmeros efeitos importantes sobre a condução do Projeto.
Em primeiro lugar, não apenas colocava em questão a conveniência de conti-
nuar monitorando os espaços públicos de participação escolhidos anterior-
mente – e que se encontravam diante dos impasses mencionados acima – mas
questionava também os instrumentos para coleta de informações preparados
pela equipe do Ibase e seu nível de detalhamento das informações a serem
coletadas. Não contribuía para resolver, mas, ao contrário, aguçava ainda mais
uma tensão que estava presente no Projeto desde o início: sua pretensão de
construir-se como pesquisa para a ação política. Não é trivial, como o Mapas
pôde vivenciar, tentar articular “pesquisa” – entendida em nosso caso específi-
co como a construção de argumentos de qualidade – com intervenção no de-
bate público. No caso do Mapas, essa articulação foi muito bem sucedida em
três momentos: (I) no seminário do Pólis e na divulgação que o sucedeu; (II)
no seminário do PNUD, realizado posteriormente em Brasília, em dezembro
de 2004, que contou com a presença de membros do governo, inclusive
ministros(as) de Estado, e que voltará a ser mencionado mais adiante; e (III)
nos seminários de devolução que foram feitos em alguns estados para os atores
sociais locais participantes de espaços institucionais monitorados pelo Projeto
(o Consea estadual em Minas Gerais, por exemplo)11. Nesses casos, foram mui-
to claras e ressonantes as “intervenções públicas” do Projeto. Essa experiência
da rede do Mapas permite chamar atenção que um projeto com essas caracte-
rísticas tem de enfrentar o tratamento de duas questões metodológicas impor-
tantes, e constantemente repostas, referentes ao monitoramento político que
se propõe: a) em que consiste exatamente a “intervenção do projeto no debate
público” e quais os componentes essenciais, indispensáveis à sua
operacionalização? e b) qual deve ser o papel da “comunicação” para essa
operacionalização e que instrumentos devem ser construídos para viabilizá-la?
3. Em segundo lugar, os rumos progressivamente assumidos pelo governo Lula
foram inviabilizando a possibilidade de que a rede do Mapas pudesse operar
como um ator coletivo em torno do tema da participação social, capaz inclusive
de articular alternativas politicamente adequadas para o redirecionamento do
Projeto frente aos impasses provocados por essa situação imprevista. Os confli-
tos locais – em grande parte provocados ou estimulados por políticas
implementadas pelo governo federal ou por sua omissão em intervir – cresceram
sensivelmente, em especial na Região Norte, obrigando muitas ONGs e redes
participantes a intensificarem seu envolvimento nas lutas locais, o que forçou
muitas substituições na equipe original, acentuando sua heterogeneidade12. Isso

11
Fazia parte do processo de alimentação do debate público em torno da participação social – um dos objetivos do Mapas
desde o seu início – que os(as) parceiros(as) da rede do Projeto promovessem, periodicamente, atividades de devolução
aos atores locais dos resultados obtidos.
12
Note-se que, desde o início, os(as) participantes da equipe dividiam seu tempo de dedicação ao Projeto com inúmeras
outras atividades desenvolvidas em suas organizações.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11

provocou uma considerável descontinuidade na programação estabelecida pelo


Projeto, atrasando consideravelmente a compreensão e o cumprimento das tare-
fas acordadas. Foram poucos os estados para os quais todas as tarefas foram
satisfatoriamente realizadas, o que, evidentemente, dificultou a possibilidade da
rede do Mapas como um todo engajar-se plenamente na busca de alternativas,
pois sempre restavam algumas tarefas (não poucas) para serem completadas, o
que inviabilizava o envolvimento de toda a equipe em novas atividades. A rede
do Mapas foi montada para acompanhar as iniciativas de participação social do
governo Lula e para intervir publicamente como um ator político coletivo no
monitoramento de um processo que se esperava seria de radicalização da demo-
cracia. Na realidade, muitas das ONGs participantes foram atropeladas em sua
prática cotidiana por disputas ou conflitos sociais que não resultavam da
radicalização da democracia, mas sim, de políticas ou de omissões do governo
federal que favoreciam os interesses das oligarquias locais e/ou das empresas
transnacionais. As conseqüências políticas e operacionais dessa situação inespe-
rada afetaram de forma considerável as possibilidades da rede do Mapas atuar
efetivamente como uma rede capaz tanto de articular internamente a interação
das instituições parceiras como de agir externamente como um ator coletivo.
4.Em terceiro lugar, a equipe do Ibase percebeu desde cedo os descaminhos do
governo Lula, mas foi incapaz de encontrar, pelo menos até março de 2005,
um rumo para o Projeto que possibilitasse sua reorganização superando intei-
ramente as limitações impostas pela hipótese central. Nesse sentido, o Projeto
ficou tão “encurralado” quanto a sociedade civil frente à realidade do governo
Lula. O que Cândido Grzybowski disse da sociedade civil aplica-se igualmente
à rede do Mapas: “O problema é que nossas expectativas não nos permitiram
ver o que realmente estava acontecendo e, conseqüentemente, não analisamos
bem o que fazer e como agir para radicalizar a democracia no novo quadro.
Definitivamente, não estamos diante de um novo modo de fazer política, com
um governo petista trazendo ao centro do poder sua experiência participativa
e renovadora da política. Mas estamos diante de um novo governo, ao seu
modo, diferente”13. Embora concluindo que o governo Lula não assumia um
novo modo de fazer política, o fato dele representar um governo diferente, do
ponto de vista de sua composição política, fazia-nos continuar supondo que se
tratava de um governo novo14. Da perspectiva de radicalização da democracia
em que se colocava o Mapas, entretanto, a novidade que interessava era a
mudança no modo de fazer política e se isso não estava acontecendo de forma
consistente, não estávamos, da perspectiva do Projeto, diante de um governo
novo e diferente. A impossibilidade conjuntural de levar essa percepção até
suas últimas conseqüências talvez tenha nos impedido de abandonar inteira-
mente a hipótese central do Mapas, mesmo quando buscamos tirar o foco do
Projeto do governo e colocá-lo na sociedade civil.

13
Grzybowski (2004), p. 9.
14
Como complementou Grzybowski (2004) na p. 14: “Se não estamos diante de um modo participativo radicalmente novo
de fazer política, estamos diante de um governo diferente que, no fim, tem na participação das ruas o seu flanco aberto
e sensível. Talvez aí esteja a oportunidade de fazer avançar o governo Lula...”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
12

5. A equipe do Ibase sempre reconheceu o caráter extremamente desafiante e


inovador de um projeto como o Mapas, cuja dinâmica depende de forma ínti-
ma de sua capacidade de percepção e de avaliação da conjuntura política e de
adaptação às mudanças em curso. Como essa “capacidade” é essencialmente
subjetiva e controversa, o desenrolar do Projeto é, todo o tempo, sempre tenso,
constantemente submetido à crítica dos que têm percepção e avaliação diver-
sas da conjuntura política e da atuação governamental – como aconteceu den-
tro do próprio Ibase – o que, com freqüência, torna os objetivos do Projeto
nebulosos para seus(suas) participantes, obscurecendo o entendimento sobre
quais são as questões em jogo e quais são as melhores soluções para os proble-
mas e os desafios que surgem. A equipe do Ibase iniciou o Projeto propondo,
como vimos, que a rede do Mapas concentrasse seus esforços no monitoramento
dos espaços públicos de participação, mas, ao mesmo tempo, buscasse mapear
atores e conflitos ou disputas sociais relevantes para a construção da agenda
pública nos estados considerados. No seminário de julho, ficou evidente que a
rede do Mapas encontrou enormes dificuldades para realizar de forma
satisfatória esse mapeamento, pois (I) a equipe sofreu descontinuidades impor-
tantes em sua composição, pelas razões já apontadas; (II) a coleta de informa-
ções dos espaços institucionais absorveu grande parte do tempo das pessoas;
(III) os objetivos do mapeamento de atores e conflitos sociais não ficaram
claros para todo o grupo; e (IV) houve carência de um instrumental conceitual
que fosse utilizado para uma construção dos mapeamentos adaptada aos obje-
tivos do Projeto. Como conseqüência das reflexões e dos debates realizados
nos dois seminários de São Paulo, a equipe do Ibase formulou duas sugestões
com o objetivo de avançar numa proposta de redirecionamento do Mapas,
para fazer frente ao enfraquecimento óbvio de sua hipótese central e norteadora.
A primeira foi a de que o Projeto deveria encaminhar seus esforços no sentido
de tentar fortalecer os atores sociais, mais do que os espaços públicos
institucionalizados. A nova hipótese aqui expressa era que só a pressão da
“rua”, dos movimentos sociais sobre o governo Lula seria, talvez, capaz de
obrigá-lo a assumir a participação social como um ingrediente central de seu
modo de fazer política, renovando as expectativas de radicalização da demo-
cracia15. Ela reforçava a ênfase do Projeto nos atores e nos conflitos sociais, em
detrimento dos espaços institucionalizados de participação. A segunda suges-
tão era que o governo Lula não poderia mais ser tratado pelo Projeto como se
fosse um bloco de forças políticas homogêneo. Como hipótese para avançar
nessa direção, Grzybowski (2004) propunha “uma radiografia da sociedade

15
O que demandaria, aparentemente, um aumento do poder dentro do governo do bloco de forças políticas que
Grzybowski (2004) chamou de “ativistas populares” ou “participacionistas”, que não é hegemônico no governo Lula. Por
outro lado, mesmo a visão sobre participação desse grupo no poder não parece ser muito animadora, na perspectiva da
radicalização da democracia. Segundo o depoimento de José Antonio Moroni, do Inesc e da rede do Mapas e conselheiro
do CDES, “(m)esmo em relação a esses grupos dentro do governo que estariam mais abertos à participação, acho que a
gente não está falando do mesmo conceito de participação. Esses grupos que estão abertos a isso enxergam na
sociedade muito mais o mecanismo de legitimação de suas decisões, suporte e apoio político para se manter onde estão,
do que propriamente uma participação.... Mesmo em relação a esses grupos que se propõem estarem abertos à
participação, não é participação. Posso citar ‘n’ exemplos.” (Teixeira, 2005, p. 74).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13

brasileira a partir do poder, configurando os grandes blocos, com suas próprias


segmentações, do jeito que se apresentam na atualidade” (p. 10). E destacava
a existência de quatro blocos fundamentais: os(as) desenvolvimentistas, os(as)
globalistas, os(as) ativistas populares, e os(as) conservadores(as) tradicionais,
sendo que a aliança dos dois primeiros seria hegemônica no governo. Essa
segunda sugestão, na verdade, complementava a primeira, pois ambas propu-
nham que as questões do poder, da correlação de forças políticas, e da dinâmi-
ca de atuação dos atores e dos conflitos sociais passasse a ser uma preocupação
central do Projeto. A proposta de colocar os conflitos sociais, sua potencialidade
criadora de direitos sociais e de radicalização da democracia, no centro do
Projeto estimulou o início de reflexões e de discussões na equipe do Ibase e na
rede do Mapas sobre a temática do modelo de desenvolvimento – como uma
questão subjacente atualmente à grande maioria das disputas e dos conflitos
sociais na sociedade brasileira – que seriam transformadas posteriormente em
uma proposta de redefinição dos rumos do Projeto.
6. Ainda assim, as decisões da rede do Mapas em relação à continuidade do Pro-
jeto ficaram no meio do caminho em relação às implicações das duas sugestões
mencionadas, mesmo porque não se tinha, nesse momento, condições de po-
der formular uma alternativa mais conseqüente. Ademais, muitos(as)
parceiros(as) da rede do Mapas queriam ter a oportunidade de avançar no
monitoramento dos espaços de participação que vinham acompanhando, in-
clusive para oferecer aos atores estaduais envolvidos com esses espaços uma
devolução mais qualificada do andamento do Projeto. Três grupos de decisões
foram, então, tomadas. Primeiro, decidiu-se encerrar o monitoramento do PPA,
do CDES e da Conferência do Meio Ambiente por razões que tinham a ver,
entre outras, com o deficit de participação social verificado nessas experiênci-
as, pelo não cumprimento dos acordos feitos pelo governo com as organiza-
ções da sociedade civil envolvidas, e pela não continuidade de muitas das ati-
vidades programadas16. Segundo, reafirmou-se a necessidade de manter a ela-
boração dos mapeamentos estaduais de atores e de conflitos sociais, com o
compromisso de que a equipe do Ibase tentaria apresentar soluções para os prin-
cipais obstáculos encontrados na primeira fase. E, terceiro, resolveu-se continuar
o monitoramento dos Conseas estaduais de Amazonas, Bahia, Minas Gerais e
Piauí, e acompanhar os desdobramentos da Conferência das Cidades no Rio
Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pará, Pernambuco e São Paulo. Para os Conseas
estaduais, o olhar das pessoas deveria estar particularmente atento às caracterís-
ticas da sociedade civil envolvida – caráter da participação, relação entre partici-
pação e representação, tipo de articulação entre as organizações da sociedade
civil e eficácia dessa articulação, capacidade de formulação de propostas – às
relações entre governo e sociedade civil, e à estrutura e dinâmica institucionais.
O grupo de Cidades deveria estar atento, em especial, às iniciativas do governo

16
No caso do CDES, o Projeto decidiu reconsiderar essa decisão a pedido de técnicos(as) da equipe do Conselho que
argumentaram que seria politicamente negativo que o Mapas abandonasse o monitoramento no momento em que a
presidência do CDES passava de Tarso Genro para Jacques Wagner.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

federal (por exemplo, o Crédito Solidário) nos estados, ao monitoramento da


atuação dos conselheiros nacionais, e à criação ou não dos Conselhos Estadu-
ais e ao papel da articulação dos atores nesse processo. Um relevo particular
deveria ser dado ao Ministério das Cidades, suas propostas, ações e tipos de
obstáculos e impasses encontrados. Foi estabelecido, ademais, que o grupo dos
Conseas e o grupo de Cidades reunir-se-iam posteriormente com a equipe do
Ibase para detalhar as propostas de trabalho de cada grupo.

Realizadas essas reuniões em agosto e em setembro, a equipe do Mapas realizou


seu último encontro do ano em dezembro de 2004, por ocasião da Conferência
Internacional Democracia: Participação Cidadã e Federalismo, organizada pela Pre-
sidência da República e pelo PNUD, e para a qual a rede do Mapas foi convidada.
Nessa Conferência Internacional, realizada nos dias 2 e 3 de dezembro e que contou
com a presença de um grupo qualificado de componentes do governo Lula, inclusi-
ve dos ministros de Estado Luiz Dulci, Aldo Rebelo, Tarso Genro e Patrus Ananias,
houve uma nova intervenção do Projeto no debate público – como havia ocorrido
em São Paulo, no primeiro semestre do ano – através da participação de seu coorde-
nador, Cândido Grzybowski, no Painel: Democracia e Participação.
O fato mais importante ocorrido na reunião da rede do Mapas em Brasília foi
a decisão unânime da equipe de abandonar inteiramente o monitoramento dos
espaços públicos institucionais de participação – uma vez concluídos os trabalhos
pendentes – culminando um processo que vinha amadurecendo durante mais de
meio ano. A equipe do Ibase ficou responsável por elaborar uma proposta de
redirecionamento e de continuidade do Projeto que deveria estar ancorada na
tentativa de articulação de questões que apareceram, nos debates e nos levanta-
mentos realizados pelo Mapas, como bastante relevantes para orientar o
monitoramento dos processos e das possibilidades de radicalização da democracia
durante o governo Lula. A idéia metodológica central era partir de atores, dispu-
tas e conflitos sociais concretos – em várias áreas e com ressonância política naci-
onal – e tratar de considerá-los como possíveis portadores de disputas e/ou de
conflitos em torno de modelos de desenvolvimento contrapostos, que pudessem
implicar na criação, consolidação ou destruição de direitos sociais dos grupos e
atores envolvidos, tentando sinalizar sua potencialidade ou não para a radicalização
da democracia no país. Ficou estabelecido que a próxima reunião da rede seria
realizada no Rio de Janeiro, em abril de 2005, para discutir a nova proposta.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

5. A NOVA PROPOSTA DE CONTINUIDADE DO PROJETO (JANEIRO A ABRIL DE 2005)

A equipe do Ibase trabalhou durante o mês de março e o início de abril de 2005


na elaboração da nova proposta, que foi finalizada na metade de abril. Apresen-
tamos a seguir o texto da proposta, tal como apresentado à rede do Mapas na
reunião de 19 e 20 de abril.

5.1. O texto da nova proposta do Mapas: democracia, direitos, desenvolvimento

A. Ponto de partida
Nosso ponto de partida é de dupla ordem. Em primeiro lugar, nosso esforço de
formulação, pesquisa e debate político continua tendo como referência o mo-
mento político atual e o governo Lula.
Em segundo lugar, partimos da observação de que as duas grandes questões
políticas que devem ser enfrentadas pelo governo e pela sociedade civil organiza-
da e que devem estar contempladas em um projeto político governamental não
estão sendo enfrentadas na prática ou estão sendo tratadas de forma dissociada e
isolada. São elas as questões (I) da democracia e dos direitos, e (II) do modelo de
desenvolvimento a ser implementado.
Nessa perspectiva, tratar a questão da democracia e dos direitos sem levar em
conta a disputa social em torno do modelo de desenvolvimento é concebê-la em
seu aspecto meramente formal, destituído de conteúdo, esvaziando o significado
do que possa ser a radicalização da democracia e podendo recair em saídas
assistencialistas, meramente compensatórias; ou, inversamente, correr o risco de
defender/promover um processo de desenvolvimento que poderá violar direitos
fundamentais de amplos segmentos da sociedade e, assim, colocar em cheque a
própria democracia.
Do mesmo modo, considerar a questão do modelo de desenvolvimento sem
associá-la à problemática da radicalização da democracia, ou sem aprofundar a
noção de que o desenvolvimento deve ser propriamente concebido como um di-
reito, é reduzir desenvolvimento a crescimento econômico e tratar como legítimas
e relevantes apenas as considerações relativas às frentes de expansão econômica,
dissociadas das demais questões que fazem hoje parte de uma agenda democrática
a respeito. Corremos, assim, o risco de reinventar as concepções militares autori-
tárias da década de 1970, de crescimento econômico a qualquer custo social,
ambiental, político, cultural, etc., e as justificativas ideológicas do tipo “é preciso
crescer para depois distribuir” ou “para depois democratizar”.
A proposta de desdobramento do Projeto, portanto, é a de identificar e anali-
sar conflitos e disputas sociais envolvidas na consideração simultânea e indissociável
das questões relativas à democracia, aos direitos e ao modelo de desenvolvimento,
tanto nas lutas, reivindicações e propostas da sociedade civil como nas iniciativas
e/ou reações do governo federal. De forma mais sintética: abordar questões, con-
flitos, disputas sociais, impasses, propostas que estão emergindo, ou não, na soci-
edade brasileira quando se pretende “aprofundar a democracia e ampliar os direi-
tos, fazendo o desenvolvimento do país”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

B. Primeira elaboração da proposta


B.1. CAMPOS TEMÁTICOS
Para operacionalizar a análise do que é constituinte do processo social de dis-
puta ou de conflito em torno das questões da democracia, dos direitos e do mode-
lo de desenvolvimento foram selecionados, inicialmente, dez campos temáticos
considerados fundamentais para nos aproximarmos à compreensão desse proces-
so social abrangente e complexo.
I. Energia, água, agricultura, terra – Conflitos em relação ao acesso, à gestão e
ao uso de recursos naturais. Direitos sociais instituídos, demandados e questiona-
dos neste campo. O caráter universal dos direitos. Conflitos relativos ao modelo
de desenvolvimento: matriz energética; “fronteira agrícola” e exportações; povos
indígenas; agricultura familiar, reforma agrária e multifuncionalidade; bens pú-
blicos vs. privatização da natureza.
II. Trabalho, economia informal, renda – As mudanças atuais no mundo do
trabalho têm implicado na desregulamentação do contrato de trabalho, no
subemprego, bem como no desenvolvimento de uma miríade de formas de traba-
lho não-assalariadas como resposta à tendência de retração dos postos formais.
As disputas e conflitos nesse campo se fazem hoje no país em torno da flexibilização
ou manutenção de direitos trabalhistas; da valorização ou não do papel regulador
e distributivo do salário mínimo; da disseminação da terceirização como forma
de gerir a mão-de-obra, seja no setor privado ou no público; da persistência do
trabalho escravo; da luta por reconhecimento social e pelo direito ao trabalho e à
seguridade social pelas outras formas de trabalho (não-assalariadas).
III. Dívida, financiamento, tributação – O governo Lula optou por implementar
uma política macroeconômica baseada no ajuste fiscal e na manutenção de altos
índices de juros. Tal política tem sido alvo de um intenso debate público, e mesmo
dentro do governo, dado que tem resultado em transferências de renda para o
setor financeiro e na contenção de gastos públicos para as áreas de saúde, infra-
estrutura, educação, saneamento, programas sociais etc. Construir formas de fi-
nanciar o Estado brasileiro que sejam progressivas, tornando o Estado um agente
de redistribuição da renda, e não de concentração, como tem ocorrido, constitui
um dos elementos centrais do debate público.
IV. Ciência, tecnologia, educação – O debate sobre ciência, tecnologia e educa-
ção desdobra-se em várias dimensões que, por sua vez, desdobram-se em diferentes
conflitos e disputas: para quem servem, quem os produz, quem deve financiá-los e
quais seus objetivos últimos. Colocados de forma bastante reducionista, tais confli-
tos e disputas opõem aqueles(as) que possuem uma visão mercantil da produção do
conhecimento, e portanto da sua aplicação, àqueles(as) que concebem o conheci-
mento como um patrimônio público a ser democrática e republicanamente gerido.
V. Cultura, informação, comunicação – Os domínios da comunicação (inclu-
ída, neste âmbito, a questão do acesso à informação) e da cultura (entendido de
forma ampla, de expressão material de um “espírito” coletivo às questões
concernentes a modos de vida em geral) possuem diferenciações claras e distintas,
mas também interfaces importantes. Eles consubstanciam uma série de conflitos e
disputas que não se reduzem apenas ao problema de determinar “para quem se
fala” (relação de exclusão), ou mesmo “quem paga” (dimensão mercadológica),
mas igualmente “quem fala” (polifonia de vozes X totalitarismo) e “o que fala”
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

(as idéias que animam as intervenções e o modo de intervir). Nesses parâmetros,


disputas tão conflituosas como a legislação e o modus operandi sobre a concessão
de rádio e TV, a polêmica sobre a criação da Agência Nacional do Cinema e do
Audiovisual (Ancinav), os mecanismos de financiamento que tendem a delimitar
a atividade artística às leis de mercado, a discussão sobre a programação das tele-
visões etc., constituem verdadeiros campos de batalha para grupos antagônicos.
VI. Cidade, habitação, segurança – As cidades constituem espaços privilegia-
dos de conflitos sociais e de luta pela construção de direitos cidadãos. A privatização
dos espaços públicos, a apropriação desordenada – por vezes ilegal – do solo urba-
no, a ausência de políticas habitacionais e a inconsistência das políticas de segu-
rança pública expressam a não garantia de direitos cidadãos ao lazer, a um plano
diretor que pense democrática e coletivamente a expansão urbana, à habitação e
à segurança de todos. Conseqüentemente, tais são campos de conflito pela cons-
trução de direitos, envolvendo atores sociais os mais diversos, muitos deles em
conflito uns com os outros, assim como atores estatais nos diferentes níveis da
Federação e em todos os ramos do poder.
VII. Transporte, saneamento, infra-estrutura – Nas grandes cidades brasileiras,
as áreas mais carentes de equipamentos urbanos são, não por acaso, as que abri-
gam as populações de mais baixa renda e menores recursos políticos. A alocação
de recursos para a instalação de tais equipamentos constitui um dos principais
pontos da agenda de diversos movimentos sociais que, desde os anos 1980, orga-
nizaram-se em torno da luta pela democratização do solo urbano e pela
redistribuição da riqueza através da aplicação de recursos públicos em regiões
socioeconômicas tradicionalmente desfavorecidas. O conflito pela alocação de
tais recursos acentuou-se com a política macroeconômica do governo que, ao
buscar produzir superavits primários, tornou-os mais escassos para investimentos
de mais alto retorno social e mais baixo retorno econômico e, ao optar por um
modelo agroexportador, direcionou-os preferencialmente para a infra-estrutura
de suporte à exportação.
VIII. Saúde, alimento, seguridade social – Conflitos em relação ao acesso à
saúde, à soberania e à segurança alimentar, e à proteção social. Direitos sociais
instituídos, demandados e questionados neste campo: direito à saúde, à proteção
social, à alimentação saudável, à segurança humana. O caráter universal dos di-
reitos. Conflitos relativos ao modelo de desenvolvimento: universalização de di-
reitos vs. focalização das políticas; transgênicos; soberania vs. segurança alimen-
tar; inclusão social vs. privilégios de seguridade social.
IX. Integração, regionalismo, comércio internacional – O Brasil negocia uma
série de acordos de liberalização comercial com países em desenvolvimento, no
âmbito do Mercosul, da Comunidade Andina e do Fórum Índia-Brasil-África do
Sul. Esses tratados têm se pautado pelo enfoque nas questões econômicas, com
pouca abertura aos temas sociais, o que nos coloca diversas perguntas. Estamos
diante de uma integração dos mercados ou dos povos? Qual o modelo de desen-
volvimento promovido pelos processos de regionalismo e abertura comercial no
qual o Brasil está envolvido? Qual seu impacto na expansão da democracia e dos
direitos sociais? Como os atores mais bem sucedidos da estratégia de integração
(p. ex., grandes empresas como Vale do Rio Doce e Sadia) agem nas disputas sociais
dentro do país? Qual o efeito do regionalismo em questões como as tensões da
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

migração na América do Sul [bolivianos(as) em São Paulo, brasileiros(as) no


Paraguai]? Como a integração pode nos ajudar a ver com outros olhos temas à
primeira vista não relacionados com ela, como as disputas pela terra?
X. Poder, Estado, partidos – Democratizar o Estado e construir mecanismos de
controle social sobre o poder, tornando Estado e governo institucionalmente mais
abertos ao controle social de suas rotinas e à participação social em seu processo
decisório tem sido um desafio presente desde o fim do regime militar. Isto gera,
evidentemente, resistências daqueles(as) que, alojados(as) em agências estatais, trans-
formam-nas em fontes de recursos políticos e econômicos. Por outro lado, uma
reforma política que implique maior representatividade dos partidos e iniba a sua
transformação em máquinas políticas de acesso a bens e recursos públicos também
gera, evidentemente, resistências daqueles(as) que se beneficiam dos partidos como
instrumentos de acesso a tais recursos. Por fim, democratizar o poder e o Estado no
Brasil significa a introdução de mecanismos de democracia direta ou participativa
na tomada de decisões e na gestão da coisa pública, o que gera resistência dos
partidos políticos, que buscam o monopólio da mediação dos interesses.
O Projeto pretendeu abordar esses campos temáticos como campos de disputa
entre os diferentes atores sociais envolvidos em cada um deles. Além disso, será
um procedimento metodológico a ser seguido pelo Projeto a observação atenta e
privilegiada das especificidades com que diferentes dimensões da desigualdade se
expressam em cada campo temático em relação às questões de etnia (povos indí-
genas e afrodescendentes), gênero, geração e desigualdades regionais.
B.2. DIMENSÕES RELEVANTES NOS CAMPOS TEMÁTICOS
Na investigação dos campos temáticos, o Projeto tratará de identificar as dis-
putas em relação (I) às diferentes concepções/visões dos atores sociais; (II) à sua
incidência sobre as visões de democracia, direitos e desenvolvimento que esses
atores portam; e (III) os elementos de convergência, de divergência e de oposição
entre essas concepções/visões em disputa. Essa investigação vai concentrar-se em
cinco dimensões fundamentais:
1. As principais questões presentes em cada campo.
2. O marco regulatório existente. A institucionalidade atual e em disputa.
3. A forma de organização social e o tipo de relações sociais existentes e em disputa.
4. A tecnologia e a base técnica predominantes e em disputa.
5. A questão da inclusão social. Beneficiários(as) e excluídos(as). Formas de in-
clusão social existentes e em disputa.
B.3. ATORES SOCIAIS EM DISPUTA NOS CAMPOS TEMÁTICOS
Em relação aos atores sociais em cada campo temático, o Projeto deverá obser-
var os seguintes aspectos:
1. Que tipo de atores sociais estão presentes em cada campo? Qual é a sua identi-
dade? A sua visibilidade? A questão dos direitos é um componente importante
de sua identidade?
2. Qual é o tecido organizativo dos diferentes atores nos diversos campos? Qual é
a sua força política? O seu poder de barganha?
3. Qual é a capacidade de formulação de análises e de propostas, de luta e de
incidência dos diferentes atores? Qual é sua capacidade de construir alianças?
4. Agenda e espaço públicos que os atores em cada campo têm (ou não) capacida-
de de participar/criar.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

B.4. ESTUDOS DE CASO


Para efetuar a análise dos campos temáticos, segundo as dimensões e aspectos acima
assinalados, o Projeto, nessa nova etapa, foi encaminhado por estudos de casos, repre-
sentativos e significativos quanto às questões da democracia, direito e desenvolvimento.
Foram contratados(as) pesquisadores(as) para a realização dos estudos de casos,
os quais deveriam seguir um roteiro previamente acertado com cada pesquisador(a).
O roteiro proposto consistiu em uma grade comum de leitura, a fim de permitir
uma análise comparativa dos casos a ser realizada posteriormente pela equipe Ibase,
identificando eventuais tendências presentes nesses conflitos ou disputas.
É certo que ocorra, a depender da natureza do conflito/disputa tratado, ênfases
diferenciadas quanto aos pontos aqui elencados e, mesmo, a necessidade de se abor-
dar outros aspectos. O presente roteiro foi apresentado mais como um ponto de
partida, sendo ajustado à luz de cada um dos casos a serem estudados. Nesse sentido,
a proposta de cada estudo de caso foi construída pelo(a) pesquisador(a) responsável
em diálogo com a equipe Ibase, tendo como ponto de partida o roteiro apresentado.
No roteiro está sugerida uma apresentação do produto do trabalho em dois
recortes principais, a saber: uma contextualização geral do conflito/disputa e uma
qualificação dos principais atores envolvidos no conflito/disputa, destacando a atu-
ação do governo Lula em relação ao conflito/disputa. Como produto dos estudos
de caso, prevê-se um texto assinado, de no mínimo quinze páginas (com espaçamento
de linhas simples), passível de publicação. Segue abaixo a proposição de roteiro.
1. Contextualização geral do conflito/disputa quanto às questões do direito e
desenvolvimento.
a) Fato(s) gerador(es)
[como os conflitos possuem um caráter dinâmico e, muitas vezes, com origens
distantes no tempo, interessa aqui saber qual ou quais fato(s) gerador(es) do
estágio atual do conflito]
b) Marcos cronológicos/antecedentes
[importante informar os principais marcos, para além do(s) fato(s) gerador(es),
que dão o atual contorno ao conflito]
c) Abrangência
[importa saber com qual abrangência o conflito em questão envolve atores e
dinâmicas sociais e espaciais]
d) Principais questões do conflito/disputa e atores envolvidos
[embora a motivação do conflito esteja normalmente referida a uma questão
principal ou central, deve-se contemplar os seus diferentes aspectos ou as dife-
rentes ordens de questão aí implicadas. Ao mesmo tempo, importa saber quais
os principais atores envolvidos, de que modo atuam em relação ao conflito,
quais seus interesses, como se relacionam – alianças, divergências, conflitos etc.
– e como estão organizados]
e) Marco regulatório existente e em disputa
[interessa avaliar sob que marco regulatório o conflito se processa, identificando
direitos que se busca consolidar e/ou ampliar. Deve-se levar em conta marcos
regulatórios que não se restrinjam a aspectos legais, mas que incorporem regras in-
formais, dadas pela tradição, costume, cultural local etc. Além do que, deve-se estar
também atento(a) para o caráter eventualmente instituinte do conflito, a fim de
avaliar em que medida novas regulações estariam emergindo no contexto estudado]
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20

f) Organização social e relações sociais existentes e em disputa


[importa levantar elementos do ambiente social em que se desenrola o confli-
to, bem como os diferentes segmentos sociais envolvidos. Avaliar em que me-
dida e como o conflito repercute nesse ambiente e na atuação desses segmen-
tos. Quanto ao ambiente social, vale destacar aspectos socioeconômicos,
territoriais e culturais específicos]
g) Tecnologia e base técnica existente e em disputa
[importa considerar a base técnica que referencia e dá suporte ao desempenho
dos atores em conflito, identificando as disputas eventualmente existentes re-
lativas à base técnica, bem como a incidência de novas tecnologias]
2. Principais atores envolvidos no conflito/disputa.
a) Quais os principais atores envolvidos no conflito? Qual é a sua identidade?
Qual a sua visibilidade? Como o governo Lula atua em relação ao conflito?
Qual a forma de atuação das outras esferas governamentais? A questão dos
direitos é uma componente importante da identidade desses atores?
b) Qual é a estrutura e o tecido organizativos dos diferentes atores nos diversos
campos? Quais as agências ou organismos governamentais com atuação no
conflito? Qual é a força política desses atores? Qual o seu poder de barganha?
c) Qual é a capacidade de formulação de análises e de propostas, de luta e de
incidência dos diferentes atores? Qual é sua capacidade de construir alianças? Qual(is)
o(s) objetivo(s) e a(s) estratégia(s) do governo Lula e de outras esferas de governo?
Elas levam em conta direitos e participação das comunidades atingidas?
d) Quais agendas e espaços públicos que os atores em cada campo têm (ou
não) capacidade de participar/criar? Como o governo Lula e as outras esferas
de governo se relacionam com esses espaços?
(ao responder a questões sobre a atuação do governo Lula, deve-se levar em
conta, tanto quanto possível, as contradições internas ao governo, bem como
questões ligadas às competências e ao relacionamento entre as diferentes esfe-
ras de governo)

5.2. A reunião da equipe do Mapas em abril de 2005


Nos dias 19 e 20 de abril de 2005, a equipe do Projeto se reuniu com a Coordena-
ção em um seminário interno, no Rio de Janeiro, que confirmou inequivocamente
a inflexão que se esboçava. O encontro foi decisivo para a constituição da nova
fase do projeto. Na ocasião, foi lida para os(as) participantes da rede a proposta
de continuidade do Mapas, elaborada pela equipe do Ibase do Projeto. Chegou-se
à conclusão, pelas características intrínsecas ao trabalho que estava sendo propos-
to, de que era preciso reavaliar as próprias parcerias, reordenando o arco de alian-
ças composto. A nova proposta indicava, portanto, que não se fazia mais necessá-
ria a manutenção da rede do Mapas nos moldes como havia sido constituída
originalmente, pois o Projeto deixava de ser uma tentativa de monitorar espaços
públicos institucionalizados de participação no governo Lula.
A avaliação coletiva foi que o grupo encontrou enormes dificuldades para se
constituir como rede, ou seja, para atuar em conjunto na elaboração de elementos
que permitissem uma intervenção política qualificada no acompanhamento dos
espaços públicos institucionais de participação. Boa parte do seminário foi utiliza-
da para discutir francamente as razões dessa situação, o que gerou alguma tensão
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21

entre os(as) participantes. Deliberou-se, ademais, que a Coordenação se compro-


meteria a fazer a sistematização do material produzido pelo Projeto e a formular
a estratégia de devolução do mesmo à sociedade17, cabendo à equipe, por sua vez,
enviar o material ainda em débito.
A opinião da equipe como um todo foi que a proposta apresentada pela Coor-
denação era bastante instigante. No entanto, pela complexidade insinuada na
própria proposta, a mesma esbarraria em limitações estruturantes dos(as)
parceiros(as). Muitos(as) pesquisadores levaram a proposta de continuidade para
suas instituições, para rediscutir a pertinência ou não de cada instituição perma-
necer no projeto. Ao final, três organizações decidiram permanecer na nova fase
do Projeto: Cidade (RS), Fase (MT) e Pólis (SP).
Consolidou-se, nessa reunião, a percepção de que o modo participativo de
governar, característico de outras experiências do Partido dos Trabalhadores em
Executivos municipais e estaduais, não fazia parte da “linguagem” do governo
Lula, que tem contribuído para a consolidação de uma “democracia de baixo
impacto” no Brasil. Ou seja, instituições e mecanismos democráticos formalmen-
te constituídos – notadamente, os espaços públicos de participação política da
sociedade civil e de instâncias do governo – não conseguiram ser canais efetivos de
mudanças sociais profundas e necessárias e de aprofundamento da democracia
participativa.
Confirmou-se, também, a decisão tomada na reunião de Brasília de não mais
acompanhar os novos espaços públicos institucionalizados de participação, pois
estava suficientemente consolidado na equipe do Mapas o consenso de que os
mesmos não se caracterizavam como lugares onde os conflitos e as disputas capa-
zes de moldar a agenda pública tinham sua origem, nem onde encontrariam seus
fóruns de resolução. Partiu-se então para a consideração de conflitos e de disputas
em diversos campos que fossem capazes de reintroduzir as questões dos direitos
sociais e da democracia e que pudessem, ao mesmo tempo, recolocar na agenda
pública a necessidade urgente de voltar a discutir o “modelo” de desenvolvimento
brasileiro. A idéia central é que reintroduzir o debate sobre o modelo de desenvol-
vimento, entendido na perspectiva dos direitos sociais e da democracia, poderá
ser um ponto de partida para que as organizações e os movimentos da sociedade
civil possam sair do “encurralamento” político mencionado anteriormente e reto-
mar a iniciativa da luta política pela radicalização da democracia, com este gover-
no e com esta conjuntura.

17
O que será feito no Seminário “Caminhos e Descaminhos da Democracia Brasileira Hoje”, a ser realizado em 12 de
dezembro, no Rio de Janeiro.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

6. A CONTINUIDADE DO PROJETO MAPAS: DEMOCRACIA, DIREITOS E DESENVOLVIMENTO


(MAIO A SETEMBRO DE 2005)

A inflexão do Projeto Mapas, a mudança de foco dos espaços institucionais de


participação para os conflitos sociais, representou mais do que um ajuste
metodológico. A não verificação da hipótese quanto à implementação pelo go-
verno Lula de uma gestão participativa implicou, na verdade, uma mudança na
abordagem.
Aquilo que inicialmente aparentava uma opção tática para responder a cons-
trangimentos financeiros quando do período da transição para o novo governo,
afirmou-se como estratégia, expressa no domínio pelo setor financeiro e do
agronegócio das políticas governamentais. Daí decorrem os constrangimentos fi-
nanceiros e institucionais impostos à participação, evidenciando que a produção e
efetivação de direitos em muito dependem do avanço da democracia sobre as rela-
ções econômicas, ou melhor, sobre as estratégias de desenvolvimento em curso.
Isso significa dizer, quanto à relação Estado e sociedade, que não cabe mais
imaginar uma participação que se dedique exclusivamente a buscar uma regulação
pública que compense a incapacidade do mercado em alocar os recursos de modo
coletivamente benéfico. Trata-se, pois, de incidir a participação sobre a própria
organização social da produção e distribuição dos recursos, de modo a redefini-la
em favor da efetivação de direitos. Para tanto, não se pode prescindir do Estado,
mas certamente de um outro Estado, de uma outra relação com os atores sociais,
algo cujos contornos só poderão emergir dos conflitos e disputas sociais.
Nesta segunda etapa do Projeto elegemos onze conflitos sociais presentes na
conjuntura brasileira e que, em nosso entendimento, são exemplares de disputas
em torno a direitos e desenvolvimento. No quadro abaixo, apresentamos um
síntese geral dos conflitos estudados.

CASO CONFLITO MARCO ATORES DIREITOS


REGULATÓRIO

Mapa x MDA Disputa por recursos Plano agrícola e Agricultores(as) Terra, crédito, apoio do
públicos entre o pecuário, Programa de familiares, governo, infra-estrutura.
agronegó-cio e aquisição de alimentos, agronegócio, MST,
agricultura familiar. Pró-Orgânico, PNATER, Mapa e MDA.
PNRA.

Construção da BR 163 Disputa por recursos Plano BR 163 Pecuaristas, Terra e recursos naturais.
naturais ao redor da Sustentável. agricultores(as)
rodovia, que será familiares, indígenas,
pavimentada. garimpeiros(as),
madeireiros(as),
agronegócio, gov.
federal (GT
Interministerial), gov.
estaduais.

Transposição do Uso do rio para Projeto de Integração Agricultores(as) Uso da água, meio
São Francisco irrigação. do Rio São Francisco às familiares, agronegócio, ambiente.
bacias hidrográficas do ambientalistas,
Nordeste Setentrional. indígenas, quilombolas,
MST, cientistas, gov.
estaduais, gov. federal
(MMA e M. Integração
Regional).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23

CASO CONFLITO MARCO ATORES DIREITOS


REGULATÓRIO

Reforma Universitária Regulação do ensino Lei 5540/68, LDB, MEC, Ifes, empresas Acesso à educação e
superior, modelo de Decretos 2306/97 e privadas de educação qualidade do ensino.
universidade. 3860/01, PGE, Pró Uni. superior.

Reserva Raposa Serra Demarcação de terras Portaria 820/98 e 534/ Índios, Ibama, Terra, modo de vida
do Sol indígenas em área rica 05 do MJ. ambientalistas, Min. tradicional, recursos
em diamantes. Justiça, STF, M. Público, naturais.
Funai, pecuaristas
rizicultores(as),
garimpeiros(as).

Cidade SP Disputa pelo direito à Plano Diretor da cidade Sehab, Emurb (pref.), Moradia, investimentos
moradia no centro de de SP. CEF, Min. Cidades, gov. públicos na melhoria do
SP. estadual, ass. centro de SP, regulação
moradores, ONGs da área.
(Fórum Centro Vivo),
entidades empresariais
(Ass. Viva o Centro).

Cidade POA Lutas urbanas em Porto Estatuto das cidades, Conselhos, prefeitura, Recursos públicos,
Alegre. planos diretores. participantes do OP, regulação do espaço
partidos, ONGs, Min. urbano.
Cidades.

Transgênicos Liberalização de plantio MP 113, MP 131, MP Congresso, Meio ambiente,


de transgênicos. 223, Lei de ambientalistas, grandes alimentação saudável.
Biossegurança. empresas, governo
federal (Casa Civil,
MMA, Mapa), CTNBio.

Segurança pública – RJ Política de combate ao Planos Nacionais de Governos estaduais do Direitos humanos,
crime. Segurança Pública. RJ, gov. federais FHC e sobretudo proteção ao
Lula, polícias, imprensa. abuso de autoridade do
Estado.

Monocultura do Formação do “deserto Decreto 3420 Empresas produtoras Meio Ambiente –


eucalipto verde” no ES para (Programa Nacional de de papel, BNDES, preservação e
produção de eucalipto. Florestas). MMA, Mapa, biodiversidade.
índios(as),
socioambietalistas.

Expansão da fronteira Expansão da soja, Plano de preservação e Pecuaristas, Terra e recursos naturais.
agrícola no Mato desmatamento. controle de agricultores(as)
Grosso desmatamento da familiares, indígenas,
Amazônia. agronegócio, gov.
federal, gov. estadual.

Embora muitos outros poderiam ser selecionados, chama atenção a


exemplaridade dos conflitos estudados no que se refere ao tratamento da relação
entre democracia e desenvolvimento, haja visto o predomínio aí das disputas em
torno a recursos e bens coletivos, com destaque para a questão da terra. Conflitos
que trazem reações, mais ou menos estruturadas e organizadas, à crescente
mercantilização de bens comuns. Pretendeu-se, como já assinalado, avaliar tais
conflitos à luz da necessária articulação entre democracia, direitos e desenvolvi-
mento, incluindo aí a avaliação do comportamento do governo Lula em relação
aos conflitos estudados.
Não se trata aqui de analisar cada um dos conflitos, mas destacar algumas
questões suscitadas pelos referidos estudos quanto à relação entre democracia e de-
senvolvimento. É certo que os constrangimentos vividos pela participação nos es-
paços institucionais continuam incidindo sobre a dinâmica dos conflitos sociais.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24

Contudo, os limites e contradições que daí decorrem parecem se tornar mais cla-
ros e, por conseguinte, mais passíveis de serem enfrentados em favor de um desen-
volvimento que realmente efetive direitos.
As questões que se seguem buscam identificar a partir dos conflitos estudados
esses limites e contradições quanto à relação entre democracia e desenvolvimento
no atual contexto brasileiro. Daí a importância de centrar a análise no comporta-
mento dos atores implicados nos conflitos, avaliando se e como incidem sobre a
produção de direitos e organização socioprodutiva.

6.1. Governo Lula e o desperdício da experiência


A primeira fase do Projeto sugeria que o governo Lula não era monolítico, expres-
sando projetos políticos distintos e em disputa. A segunda fase confirma tal qua-
dro, como explicitam, por exemplo, as disputas entre o Ministério do Desenvolvi-
mento Agrário e o Ministério da Agricultura em torno das culturas de exportação
e da agricultura familiar, e entre o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da
Agricultura e a Casa Civil da Presidência da República, durante a gestão de José
Dirceu, em torno da questão da soja transgênica.
Conflitos que a princípio representariam disputas em torno de alternativas
distintas de desenvolvimento para o país. Uma que combinaria redução da
vulnerabilidade externa com ativação do mercado interno, implicando políticas
sociais efetivas e descentralização do capital (propriedade, crédito, técnica), e ou-
tra centrada na contenção fiscal quanto aos gastos sociais e na centralidade do
mercado externo, na ênfase exportadora.
O caso da disputa entre o Ministério da Agricultura e Ministério do Desenvol-
vimento Agrário talvez seja emblemático de um dos principais conflitos presentes
na sociedade e que, embora transposto para dentro do governo, tende a ser aí
desequilibrado claramente em favor do agronegócio. Em que pese o incremento
significativo do crédito para a agricultura familiar, os incentivos ao agronegócio
se mostram prioritários nas ações de governo. Além do fato de que, na ausência de
uma estratégia clara de inserção socioprodutiva sustentável para a agricultura fa-
miliar, esta tende a buscar sua consolidação no circuito do agronegócio. Ao mes-
mo tempo, as restrições fiscais e a pressão contrária do Ministério da Agricultura,
que reforçam o sentido de opção do governo Lula em favor da estratégia exporta-
dora, têm retardado fortemente o avanço da reforma agrária.
No que se refere ao caso das disputas entre, de um lado, o Ministério da Agricul-
tura e a Casa Civil e, de outro, o Ministério do Meio Ambiente no caso da soja
transgênica, verificou-se que os dois primeiros estavam muito mais fortemente articu-
lados à estratégia macroeconômica do governo. Isso porque estavam comprometidos
com o esforço de produção de superavits comerciais, ao passo que o Ministério do
Meio Ambiente apresentava restrições ao plantio da soja transgênica que iam de en-
contro à lógica dos interesses agroexportadores18. Diante do impasse criado, tanto em
nível intragovernamental quanto na base parlamentar, o governo optou por viabilizar

1
Muito embora o não cultivo da soja transgênica não implique necessariamente na adoção de um modelo de desenvolvi-
mento mais inclusivo, até porque há um crescente interesse do mercado externo em produtos que não sejam geneticamen-
te modificados.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25

o plantio de soja transgênica através de Medidas Provisórias. Além de ter negociado


com o PMDB a aprovação de uma Lei de Biossegurança desfigurada quanto às salva-
guardas em relação à liberação de produtos geneticamente modificados.
O caso da soja transgênica não foi o único em que o Ministério do Meio
Ambiente não foi capaz de fazer frente a interesses agroexportadores. Também no
caso da Aracruz Celulose, o governo acabou por fazer uma opção claramente
favorável aos interesses da monocultura exportadora, inclusive através da partici-
pação acionária do BNDES na composição do capital da empresa, combinada
com um forte financiamento do setor pelo mesmo banco. Ao passo que as entida-
des da sociedade civil e as populações afetadas pela expansão da monocultura de
eucalipto e pinheiros não conseguiram vocalizar suas insatisfações e propostas
alternativas, chama atenção aqui também a derrota do Ministério do Meio Am-
biente para o Ministério da Agricultura no que diz respeito ao Programa Nacio-
nal de Florestas que, através dos chamados “programas empresariais sustentá-
veis”, representa um incentivo do Estado ao plantio da monocultura do eucalipto.
Os embates entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambien-
te revelam ainda um outro aspecto importante do governo Lula. O primeiro pos-
sui forte capacidade de articulação parlamentar, ao passo que o Ministério do
Meio Ambiente revelou-se com capacidade de articulação parlamentar muito mais
frágil. O ponto a se sublinhar é que, muito embora com uma densidade
participativa teoricamente maior, dadas suas articulações com diversos movimen-
tos sociais e ambientais, o Ministério do Meio Ambiente não foi capaz de traduzir
tal densidade em recursos políticos. Isso em razão da clara opção do governo Lula
pela montagem de uma extensa coalizão de sustentação parlamentar, envolvendo
amplamente setores conservadores da política brasileira.
Como o governo é formado por forças políticas díspares, ainda que todas
submetidas aos ditames da política macroeconômica e ao sistema de alianças,
parecia não existir uma diretriz governamental que orientasse a ação de seus dife-
rentes órgãos no que se refere a padrões de relacionamento com a sociedade civil e
às demandas por esta produzidas. Cada órgão realizava sua própria política, mui-
tas vezes em conflito com outras instâncias de governo. Assim, por exemplo, as
demandas pela não aprovação da soja transgênica encontraram caminho de ex-
pressão no Ministério do Meio Ambiente, mas nenhuma ressonância no Ministé-
rio da Agricultura e na Casa Civil da Presidência da República e, por meio de
Medidas Provisórias, a soja transgênica acabou por ser aprovada.
O caráter de coalizão do governo Lula produziu alguns resultados aparente-
mente contraditórios, em que políticas que podem ser consideradas socialmente
inclusivas conviveram com outras, de caráter excludente, e processos decisórios
participativos com outros de baixa densidade participativa. A esse respeito, os
estudos revelam que, em vários casos, o governo Lula foi capaz de formular mar-
cos regulatórios inclusivos e participativos – Plano Sustentável da BR 163, De-
marcação da Reserva Raposa Serra do Sol, Fundo de Habitação Popular, Revisão
dos Planos Diretores, Reforma Universitária, Lei da Rotulagem dos Transgênicos
–, mas tais marcos esbarraram em uma correlação de forças desfavorável, resul-
tando em repetidas concessões que assumiram formas várias. Medidas provisóri-
as, que descaracterizaram os projetos originais, negociações no Congresso, em que
lobbies conservadores atuaram de forma intensa. E, ainda, na impossibilidade de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
26

implementação de medidas aprovadas, em razão da falta de recursos, normal-


mente afetados por contingenciamentos, da insuficiência de meios institucionais e
dos próprios compromissos políticos locais e regionais.
Além da Lei de Biossegurança, um outro exemplo claro de recuo do governo
em função de negociações parlamentares diz respeito à demarcação da Reserva
Raposa Serra do Sol. Chama atenção aí a compensação oferecida pelo governo
aos(às) arrozeiros(as), invasores(as) da reserva, que serão assentados(as) em novas
áreas e ainda receberão indenizações por suas “benfeitorias construídas de boa fé”.
A fragilidade do Ministério do Meio Ambiente talvez seja a melhor expressão
da “opção parlamentar” do governo. Foi um dos ministérios mais comprometi-
dos com processos de participação popular e, no entanto, acabou por se revelar de
menor relevância, ou de relevância bastante limitada, na construção de políticas
públicas de sua área de atuação. Assim, por exemplo, o Ministério das Cidades,
outro comprometido com processos participativos e políticas urbanas socialmen-
te includentes, na gestão Olívio Dutra, não teve seus novos marcos regulatórios
efetivados e acabou por ser negociado com o Partido Progressista com vistas a
fortalecer a base parlamentar do governo.
Por outro lado, estudos de caso da segunda etapa do Projeto Mapas revelaram
também que o governo Lula não recuperou a capacidade de fiscalização do Esta-
do, e mesmo seu papel de polícia. Em que pesem alguns ensaios de aperfeiçoa-
mentos nas estruturas do Incra e Ibama, a deficiência da estrutura administrativa
é um dos responsáveis pelo recrudescimento da situação de violência, perda de
direitos e destruição do meio ambiente que emoldura vários dos conflitos estuda-
dos na segunda fase do Projeto. Destacam-se aí os conflitos relativos à Raposa
Serra do Sol, envolvendo indígenas e arrozeiros(as); ao da pavimentação da BR
163, entre plantadores(as) de soja, pecuaristas e madeireiros(as) em oposição aos(às)
pequenos(as) produtores(as), posseiros(as), assentados(as); à expansão da soja no
norte do Mato Grosso em direção à região amazônica causando uma devastação
de áreas de floresta; e à segurança no Rio de Janeiro, em que o governo federal
não conseguiu colocar em prática um plano nacional de combate ao crime.
A questão do combate à criminalidade no Rio de Janeiro, aliás, enseja uma
outra discussão, referente ao pacto federativo brasileiro. Como evidenciado em outras
questões, como a reforma tributária, o governo Lula, que em seu início ensaiou
uma nova “política dos(as) governadores(as)”, não avançou na discussão sobre
uma nova pactuação federativa. Essa discussão encontra-se também nos conflitos
em torno da moradia no centro de São Paulo, em que o governo não apresenta uma
proposta definida de desenvolvimento urbano, adotando uma posição de
distanciamento do conflito quanto a questões afetas ao Ministério das Cidades.
Mas parece não ser apenas a questão da política macroeconômica que limita o
alcance da participação e da produção de direitos cidadãos. Em pelo menos um
caso, um grande projeto ao estilo dos anos 1970, foi detectada a possibilidade de
que sua força motriz não fosse uma concepção clara ou estratégia definida de
desenvolvimento regional, mas o que poderia ser chamado de “obra de regime”: a
transposição das águas do rio São Francisco. De fato, tantas são as divergências
técnicas, os conflitos federativos e oposição de entidades da sociedade civil e de
populações diretamente afetadas pelo projeto, que o benefício de empreiteiras, do
agronegócio e da criação de camarões não parecem suficientes para explicar a
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
27

manutenção do projeto, que, ao que tudo indica, carece de uma concepção geral
clara e solidamente embasada.
O que emerge é uma visão de que, para o governo Lula, tal obra possui um
caráter simbólico de grande importância, e é esse simbolismo que o faz mover-se.
Um simbolismo que, sem dúvida, traz consigo a dimensão político-eleitoral. E o
governo se move celeremente em favor da obra da transposição, mesmo tendo
todo o Comitê de Bacia do São Francisco, que congrega atores sociais importan-
tes da região, contrário à obra.

6.2. O limite da sociedade: ausência de um projeto de desenvolvimento alternativo


Diante deste quadro, a sociedade brasileira, ela própria de tradição estatista, viu-
se frente a um desafio muito maior do que o vislumbrado há pouco mais de três
anos, quando da vitória eleitoral do PT. Na ocasião, tratava-se de participar na
construção de um novo modelo de desenvolvimento tendo o governo federal como
parceiro estratégico. Hoje, na ausência dessa parceria estratégica, a sociedade civil,
a quem falta um “projeto alternativo à ausência de projeto alternativo” por parte
do governo, viu-se presa a algumas limitações.
A primeira limitação importante diz respeito à capacidade de transformar rei-
vindicações, ainda que legítimas, em direitos reconhecidos enquanto tais. Se não
há uma concepção mais ampla de desenvolvimento, socialmente includente e
ambientalmente sustentável, direitos diferenciados, construídos de acordo com as
especificidades de cada local e realidade, acabam por ser tomados como privilégi-
os e, portanto, como corporativistas e antidemocráticos.
A percepção negativa dessas reivindicações acaba por ser reforçada pela própria
concepção de desenvolvimento vocalizada pelo governo e por diferentes setores
empresariais e sindicais, que identifica desenvolvimento a crescimento econômico.
Como muitas dessas reivindicações estão baseadas em atividades econômicas fora
do circuito mercantil e menos intensivas em recursos naturais, elas são freqüentemente
percebidas como débeis ou como obstáculos ao desenvolvimento. Dado que não
conseguem contrapor-se a tal argumento de forma consistente, apresentando uma
outra formulação de desenvolvimento, acabam por se tornar reféns dessa fragilida-
de. Tal situação revela-se de forma bastante clara em algumas situações, como no
caso da BR 163 e da transposição do Rio São Francisco, e mesmo da Aracruz Celu-
lose, quando entidades da sociedade civil surgem com fraca capacidade de apresen-
tar, de forma articulada, um modelo de desenvolvimento regional/nacional.
No campo da agricultura familiar, no qual a possibilidade de experimentação de
novas estratégias esteve claramente polarizada com o agronegócio, e que chegou a
obter um aumento significativo de acesso a crédito, verificou-se também ambigüi-
dades e contradições. Tal situação revelou, na verdade, a ausência de estratégias
claras quanto à implementação de outras formas de inserção socioprodutiva da
agricultura familiar. Mas também vale lembrar da atuação do Movimento dos(as)
Trabalhadores(as) Sem-Terra, que ao ocuparem terras produtivas, como no caso de
áreas plantadas por eucaliptos, levantam a bandeira de “ninguém come eucalipto”,
em um claro contraponto ao modelo monocultor exportador.
De outra parte, o setor do agronegócio, além do favorecimento econômico, se
renova e fortalece como ator político, cujos interesses tenderiam a ser hoje reconheci-
dos por expressivas parcelas da população como coincidindo com o desenvolvimento
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
28

que se deseja para o país. A força política dos exportadores de soja, madeira e
produtos agropecuários pode ser medida por terem atravessado incólumes con-
junturas difíceis que envolveram a queda no preço da soja, desmatamento recorde
na Amazônia e no Centro-Oeste (com ampla repercussão internacional).
A insuficiência da participação incidindo sobre estratégias de desenvolvimento
mais inclusivas fica também evidenciada no caso do fim da gestão participativa
da prefeitura de Porto Alegre, após 15 anos de administração da Frente Popular.
A ativa participação via plenárias e conselho do orçamento participativo, embora
tenha contribuído enormemente no acesso a serviços públicos, pouco impacto
gerou na economia da cidade. O mesmo se pode dizer da relação Estado e socie-
dade que, apesar da maior capilaridade e permeabilidade à participação, não che-
gou a configurar um outro modelo de gestão, predominando o parâmetro técnico
da burocracia estatal.
Um exemplo que também merece destaque aí se refere ao caso da prefeitura de
São Paulo, que, na gestão de Marta Suplicy, abriu-se ao diálogo com as organiza-
ções que lutam pelo direito à moradia no centro de São Paulo. A questão aqui
parece se tratar de como a reivindicações setoriais ficam à mercê da boa vontade do
poder público em abrir espaços de concertação e implementação de ações públicas.
A prefeitura, no caso, comprometeu-se claramente com programas habitacionais
para o centro da cidade, mas acabou ficando aquém em termos de ações concretas
quanto ao reivindicado pelo movimento de moradia. Contudo, a população mais
diretamente atingida pelo problema habitacional tende a reconhecer avanços, como
no caso do Programa de Habitação de Interesse Social. Avanços que se tornariam
mais sensíveis quando a nova gestão da prefeitura, com José Serra, simplesmente
abandona os programas habitacionais no centro e criminaliza a população de rua.
Em outras situações, como no caso dos transgênicos, as entidades da sociedade
civil surgem nos dois lados do conflito: algumas defendem a liberação do uso dos
transgênicos, principalmente as que congregam agricultores(as) – e não apenas
os(as) grandes –, ao passo que outras, fundamentalmente as que congregam
ambientalistas, são contrárias à liberação dos transgênicos. No caso da BR 163,
estão presentes setores da sociedade civil que acreditam ser possível combinar a
exploração do agronegócio com alternativas locais de geração de trabalho e renda
ou de acesso a serviços e outros setores que não reconhecem tal possibilidade.
Um dos riscos presentes aí é se recair, como no caso da segurança pública no
Rio de Janeiro, em uma visão reduzida da cidadania, que perde de vista o proble-
ma da desigualdade e justiça social, concentrando-se em agendas imediatistas e,
novamente, corporativas ou privatistas. No limite, isso conduziria a uma impos-
sibilidade de se produzir desde a sociedade uma agenda pública de direitos conectada
a estratégias de desenvolvimento que sejam inclusivas. Sem dúvida, isso também
se justifica pelo imediatismo imposto pelas graves necessidades de expressivas par-
celas da população, como no exemplo da população que em muito depende dos
postos de trabalho gerados pelo setor madeireiro no Pará.
Em casos como esses, o papel da sociedade civil se complexifica. Há como que
uma erosão da visão de que a sociedade civil está sempre, pelo menos potencial-
mente, do lado do público. Se isso é verdade ocorre também uma menor capaci-
dade de congregação de forças, o que acaba implicando em uma correlação de
forças potencialmente mais desvantajosa para um dos lados em questão.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
29

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A TÍTULO DE PROVOCAÇÃO PARA A AÇÃO POLÍTICA

No começo do governo Lula, as experiências anteriores acumuladas pelas admi-


nistrações petistas em governos estaduais e municipais e as próprias iniciativas do
governo federal pareciam sugerir que o novo governo atribuiria um lugar privile-
giado, em seu modo de governar, aos espaços públicos institucionais de participa-
ção. Foram inclusive criados novos espaços públicos – como o processo de consul-
tas do PPA, o CDES, os Conseas nacionais e estaduais – e revitalizados alguns já
existentes, como as Conferências nacionais e estaduais, criando expectativas que
levaram à mobilização de um número bastante significativo de organizações da
sociedade civil em torno desses espaços públicos.
Além dessas organizações e movimentos sociais terem maior facilidade de aces-
so aos canais institucionais existentes no governo federal, o governo Lula parecia
empenhado – não obstante a manutenção da política macroeconômica neoliberal
– na implementação de um modo de governar participativo e com maior influên-
cia popular em algumas áreas consideradas importantes por essas organizações e
movimentos sociais, tais como a definição das prioridades do orçamento gover-
namental e as políticas governamentais para o meio ambiente, cidades, e seguran-
ça alimentar e nutricional. Esperava-se ademais que, com o peso político que o
governo federal tem no Brasil, essas iniciativas poderiam energizar significativa-
mente os anseios de radicalização da democracia em todo o país.
Progressivamente, no entanto, ao longo de 2004 e 2005, esses espaços públi-
cos institucionais de participação foram enfrentando grandes dificuldades para
sua consolidação, além de que tenderam, de modo geral, a frustrar as expectativas
geradas, por ocasião de sua criação, nas organizações da sociedade civil e nos
movimento sociais.

7.1. Os espaços institucionais de participação


:.: O processo de consultas do PPA resultou largamente decepcionante, pois, além
de problemas de desorganização, logística, continuidade e legitimação, entre
outros, o Plano Plurianual foi, no Congresso Nacional, submetido pelo gover-
no federal à lógica do superavit primário e acabou não contribuindo para a
construção anunciada de um projeto de desenvolvimento nacional – funda-
mentado em um novo pacto social includente – cuja prioridade foi esmaecendo
com o passar do tempo.
:.: As Conferências setoriais (cidade, meio ambiente e segurança alimentar) tam-
bém redundaram em resultados pouco efetivos. É verdade que as Conferências
tiveram um papel mobilizador e, sem dúvida, contribuíram no sentido da cons-
trução de políticas públicas e novas regulações que, como já assinalado, tive-
ram seu alcance bastante limitado pelas opções conservadoras do governo Lula.
:.: O CDES foi concebido, na verdade, não como um espaço público de participa-
ção, mas como um lugar onde a Presidência da República poderia estabelecer
uma interlocução privilegiada com representantes do capital e do trabalho,
por ela escolhidos. Ademais da reduzidíssima presença de representações de
outras organizações da sociedade civil, que não fossem empresários ou sindica-
listas, o CDES caracterizou-se também por uma desigualdade de representação
a favor dos(as) empresários(as) e de membros oriundos da região sul do país.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
30

Ficou praticamente isolado de outros setores do governo federal e da sociedade


brasileira em geral e, apesar de algumas tentativas, não teve qualquer influência
na política governamental no sentido de construir alternativas à política
macroeconômica ou de liderar um amplo debate em torno do modelo de desen-
volvimento do país, o que poderia ter sido sua contribuição à política nacional.
:.: A recriação do Consea nacional representou o atendimento de uma forte de-
manda de amplos segmentos da sociedade civil brasileira. A criação e a conso-
lidação dos Conseas estaduais têm enfrentado inúmeros obstáculos relaciona-
dos, por exemplo, com a fraqueza da sociedade civil local, com a falta de
interesse de muitos governos estaduais, e com as confusas, difíceis e paralisantes
relações entre governo federal, governo estadual e Consea. Não obstante a
criação do Programa Fome Zero e os esforços empreendidos pelo Consea naci-
onal, a prática política do governo federal – expressa na manutenção da polí-
tica macroeconômica neoliberal e no modelo de desenvolvimento socialmente
excludente e calcado nas exportações do agronegócio – em grande medida
transformou em retórica a possibilidade efetiva de tornar a segurança alimen-
tar e nutricional uma prioridade na agenda governamental.

7.2. O modo do PT governar


:.: A evolução da situação política nacional permitiu constatar que, ao contrário do
esperado no início do governo, o modo de fazer política predominante no gover-
no Lula foi contradizendo progressivamente as expectativas de um compromisso
forte com o alargamento e o fortalecimento de iniciativas concretas de participa-
ção social que ampliassem e aprofundassem os espaços públicos institucionalizados
de formulação, de implementação, e de monitoramento das políticas públicas.
Pelo contrário, o que acabou prevalecendo no governo federal foi o modo de fazer
política tradicional no país, de aliança política com as elites e os setores dominan-
tes, domésticos e externos. Isso explica, em grande medida, a manutenção até hoje
da política macroeconômica estritamente neoliberal, a crescente influência do
agronegócio na política e na economia do país, e o compromisso do governo
federal com a preservação de um modelo de desenvolvimento excludente social-
mente, solidário com os grandes interesses dos exportadores e da finança nacional
e internacional, e muito pouco comprometido com a proteção do meio ambiente.
Talvez se possa dizer provocativamente que a “herança maldita” que o governo
Lula herdou e aceitou foi a velha prática política de alianças com os setores
hegemônicos tendo em vista a manutenção do poder.
:.: Embora o significado histórico da eleição do Presidente Lula anunciasse a possi-
bilidade de algo muito diverso, é possível sugerir que nunca aconteceu, de fato,
uma convergência de projetos entre os interesses políticos hegemônicos no gover-
no Lula e as representações da sociedade civil organizada, no sentido de garantir
que os instrumentos de democracia participativa ganhariam centralidade no pro-
cesso das principais políticas públicas do governo federal. Muito embora avan-
ços setoriais tenham sido observados, suas condições de aprofundamento e de
generalização foram sistematicamente enfraquecidas ou barradas em razão das
alianças políticas e econômicas construídas pelo governo Lula e materializadas
de forma muito concreta através dos efeitos na economia e na sociedade de sua
política macroeconômica e de sua forma de atuação no Congresso Nacional.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31

:.: O modo de fazer política predominante no governo Lula e as alianças daí emer-
gentes – juntamente com a política macroeconômica que é, ao mesmo tempo,
sua conseqüência e sua expressão – constituem-se no principal limite ao espraia-
mento e à consolidação das iniciativas de participação social do governo federal.
Havia, no início do governo, uma forte expectativa de que a participação da
sociedade civil organizada poderia favorecer a construção de uma nova hegemonia
política em que a correlação de forças pressionaria pela formulação de um novo
modelo de desenvolvimento, que incorporasse as maiorias sociais. Nessa pers-
pectiva, a participação ativa da sociedade era central para um projeto de gover-
no que deveria reorientar prioridades e começar a construir alternativas para a
mudança do modelo de desenvolvimento nacional. A partir do momento em
que o governo Lula optou por alianças com os setores políticos e econômicos
dominantes, revertendo prioridades historicamente assumidas pelo PT, a pro-
posta de um modo participativo de fazer política que fortalecesse os espaços
públicos de participação teve que ser abandonada. O governo continuou a falar
com verbosidade sobre participação social, mas o conceito foi restringido a uma
espécie de disponibilidade de interlocução com os atores não governamentais.
Nessa perspectiva, participação passou a significar “ouvir os(as) parceiros(as)” e
não “tomar decisões com os(as) parceiros(as)”.
:.: O modo Lula de governar vai até a abertura de espaços para a realização do
diálogo e da disputa entre forças antagônicas – vide os espaços de participação e
a divisão nos ministérios. Porém, se o governo abre caminho para que se explicite
a disputa e a contradição, isso não tem significado o exercício do poder para a
alteração da correlação de forças em benefício de quem historicamente não tem
poder nesse país e de um desenvolvimento que realmente efetive direitos.
:.: Aquilo que inicialmente aparentava uma opção tática para responder a cons-
trangimentos financeiros quando do período da transição para o novo gover-
no, afirmou-se como estratégia, expressa no domínio pelo setor financeiro e
do agronegócio das políticas governamentais. Daí decorrem os constrangimentos
financeiros e institucionais impostos à participação, evidenciando que a pro-
dução e efetivação de direitos dependem do avanço da democracia sobre as
relações econômicas, ou melhor, sobre as estratégias de desenvolvimento em
curso. Isso significa dizer, quanto à relação Estado e sociedade, que não cabe
mais imaginar uma participação que se dedique exclusivamente a buscar uma
regulação pública que compense a incapacidade do mercado em alocar os re-
cursos de modo coletivamente benéfico. Trata-se, pois, da participação incidir
sobre a própria organização social da produção e distribuição dos recursos, de
modo a redefini-la em favor da efetivação de direitos. Para tanto, não se pode
prescindir do Estado, mas certamente de um outro Estado, de uma outra rela-
ção com os atores sociais, algo cujos contornos só poderão emergir dos confli-
tos e disputas sociais.

7.3. As fragilidades e contradições da sociedade civil


:.: Ao mesmo tempo em que se observa que o governo Lula optou por fazer um
governo em que a ênfase na participação social tornou-se predominantemente
retórica, deve-se reconhecer, também, que as experiências de participação
implementadas revelaram as não desprezíveis fragilidades da sociedade civil.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
32

Em particular, a debilidade no que se refere à discussão de temas essenciais para


o debate sobre a radicalização da democracia no país, tais como a construção
de um novo modelo de desenvolvimento nacional.
:.: Reivindicações fragmentadas e corporativas foram diversas vezes apresentadas,
patenteando as dificuldades em transformar demandas legítimas em direitos
cidadãos por parte da própria sociedade civil. Mas, por outro lado, um gover-
no comprometido com a participação, ao invés de perder muito tempo
enfatizando tais fragilidades, deveria contribuir para sua superação, num exer-
cício permanente e paciente de negociação e de construção de pontes entre as
diversas reivindicações da sociedade.
:.: Se houvesse convergência entre os projetos da sociedade e do governo no que se
refere à participação social, tal afinidade teria provavelmente contribuído para o
fortalecimento da sociedade, potencializando-a como interlocutor legítimo e
com maiores recursos para contribuir nas discussões a respeito de alternativas ao
modelo de desenvolvimento e de processos de radicalização da democracia. A
não experimentação, pelo governo, de ações efetivas em favor de um desenvolvi-
mento inclusivo, bem como a não priorização de uma gestão participativa, cer-
tamente atuou no sentido de gerar uma ainda maior fragmentação dos interesses
na sociedade. Além do que, como o governo Lula optou por caminho diferente,
e a crise do próprio PT fragilizou seu papel como canalizador e institucionalizador
de diferentes movimentos sociais, o resultado pode vir a ser muito diverso, cola-
borando para uma dispersão ainda mais acentuada das lutas sociais no país.
:.: Essa situação política levou ao que o Projeto Mapas chamou, na metade de
2004, de “encurralamento da cidadania”, ou seja, a uma perda de poder de
iniciativa cidadã e a um relativo imobilismo político das organizações da socie-
dade civil e dos movimentos sociais frente à conjuntura de um governo com
forte base popular que, eleito para ousar reinventar a política (“a esperança que
vai vencer o medo”), mostrou-se submisso aos interesses econômicos e políticos
hegemônicos e nunca assumiu efetivamente a participação cidadã como o mo-
tor estratégico da ação governamental em suas áreas mais relevantes.
:.: O “encurralamento” manifestou-se num enorme gasto de energia social e polí-
tica em torno dos espaços públicos institucionais de participação, sem que os
resultados alcançados configurassem um salto de qualidade democrática e de
efetividade dos processos da política pública. De modo geral, essa situação
deixou patente as limitações desses espaços institucionais como instrumentos
privilegiados para o avanço da democracia participativa no Brasil.
:.: Da mesma forma que a cidadania foi encurralada, também o Projeto Mapas
acabou encurralado pelos rumos trilhados pelo governo Lula, que colocaram
em cheque a hipótese central inaugural do Projeto de que o novo governo
estaria firmemente empenhado em implementar um modo participativo de
governar. A partir dessa hipótese, o monitoramento político – e não acadêmico
– das iniciativas institucionais de participação foi estruturado, tendo como
base uma rede de atores não governamentais com forte inserção nas lutas soci-
ais na grande maioria dos estados da Federação.
:.: Na medida em que o governo Lula foi consolidando a opção alternativa, de
aliança política e econômica com os setores hegemônicos, os conflitos e as
disputas sociais foram se acentuando (soja, Amazônia, questão indígena,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
33

transgênicos, lutas urbanas, transposição do Rio São Francisco, etc.) e as orga-


nizações participantes da rede do Mapas foram atropeladas por um enorme
aumento de demandas que nada tinham a ver com o monitoramento que se
pretendia realizar originalmente (dos espaços públicos institucionalizados de
participação), o que obstaculizou significativamente as possibilidades de fun-
cionamento da rede e dificultou a construção de caminhos alternativos.
:.: Deve-se chamar ainda a atenção para o efeito imobilizador que a frustração e a
perplexidade geradas por essa ruptura nas expectativas em relação ao governo
Lula provocaram no próprio Projeto, o que, de alguma maneira, é também
reflexo das fragilidades da sociedade civil mencionadas anteriormente. Ade-
mais, os sinais, muitas vezes contraditórios, dessa ruptura não surgiram de
uma única vez, mas foram aparecendo – e sendo percebidos – ao longo do
tempo, gerando muita controvérsia acerca de seu real significado político.
:.: Assim, não é difícil perceber o encurralamento metodológico e político do
Projeto Mapas e as complexidades envolvidas em sua resolução, que o condu-
ziram finalmente a abandonar o monitoramento político dos espaços públicos
institucionalizados de participação e a privilegiar a consideração de experiên-
cias de conflitos e de disputas sociais em curso no país, observados da perspec-
tiva de sua incidência sobre as questões referentes ao desenvolvimento, aos
direitos sociais e à democracia.

7.4. As tensões entre democracia e desenvolvimento


:.: Os limites e as contradições da participação no governo Lula apontam para a
necessidade de se avançar para além de uma democracia que cuide dos efeitos em
vez das causas da desigualdade. Tal democracia se mostra funcional para o isola-
mento da economia em relação à política e, portanto, compatível com um mo-
delo de desenvolvimento não inclusivo e depredador dos bens coletivos.
:.: Não se está aqui fazendo referência apenas aos limites da democracia represen-
tativa, que já são conhecidos e cada vez mais evidentes, mas também de expe-
riências participativas. Em que pesem alguns poucos avanços setoriais alcança-
dos, os frágeis momentos de participação que foram implementados no gover-
no Lula revelam, como já foi dito, as debilidades da sociedade civil no que se
refere à construção de um novo modelo de desenvolvimento para o país19.
:.: A própria setorialização da participação via espaços institucionais (conselhos,
conferências etc.), embora favoreça, em alguns casos, a correção de situações
de desigualdade, parece não favorecer a incidência da participação sobre os
mecanismos responsáveis pela reprodução da desigualdade. A mesma coisa pode-
se dizer quanto ao modelo de gestão, pois se os espaços institucionais de parti-
cipação contribuem para uma maior transparência e controle social, pouco
têm avançado na indução de uma outra forma de atuação do Estado, que
signifique uma gestão pública sobre os mecanismos de produção e distribuição
dos recursos na sociedade.

19
A esse respeito, chama também atenção, guardadas as devidas proporções, o fato de que, mesmo no caso paradigmático
da gestão participativa de Porto Alegre, os avanços, embora significativos do ponto de vista social, não chegaram a
interferir mais diretamente na economia local, nem tampouco na estrutura do Estado em nível municipal.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
34

:.: Vale destacar que a opção pela manutenção da política macroeconômica


neoliberal, e da restrição orçamentária que a acompanha, não é a única barrei-
ra para a construção de um modelo de desenvolvimento democrático. Apesar
de ser indispensável a mudança dessa política – uma vez que alimenta a con-
centração de renda em favor dos(as) rentistas, drenando um volume enorme de
recursos para o setor financeiro privado – sua transformação não é suficiente
para consolidar uma outra estratégia de desenvolvimento.
:.: Em outras palavras, para além da polaridade “monetaristas versus
desenvolvimentistas”, que ocupa a cena do debate econômico desde o governo
Fernando Henrique Cardoso, outras questões estão em jogo na construção de
um projeto de desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente responsá-
vel. Ainda que a política macroeconômica seja incompatível com a retomada
do crescimento econômico sustentado, alguns setores parecem estar imunes às
restrições orçamentárias e não vêm encontrando dificuldades em receber recur-
sos públicos para a expansão de suas atividades, gerando lucro, emprego a
elevado custo e, também, degradação ambiental, perda de direitos, violência e
ainda mais desigualdade.
:.: Nesse sentido, a política de ajuste fiscal e de elevadas taxas de juros não pode
ser percebida como o único obstáculo para a inviabilização de estratégias de
desenvolvimento que procuram o alargamento dos direitos e da inclusão soci-
al. Se a inflexão da política macroeconômica é ponto de partida, com certeza
não é ponto de chegada.

7.5. Os conflitos e as disputas sociais se aguçam


:.: Os conflitos e as disputas estudados demonstram o quanto a questão do acesso
e controle sobre os bens coletivos – em especial a terra e o meio ambiente –
continuam como traço marcante da sociedade brasileira. Conflitos que expres-
sam não apenas a persistência da profunda desigualdade social no país, mas
também as opções de desenvolvimento, associada exclusivamente a crescimen-
to, adotadas pelo governo brasileiro. Expressam também a insuficiência dos
canais de participação em permitir a vocalização e a promoção de interesses de
grupos sociais carentes de direitos.
:.: Muitos conflitos e disputas se gestam devido à enorme pressão sobre os recursos
naturais que a retomada de um desenvolvimento selvagem provoca: o desmatamento
de grandes áreas do Cerrado, da Amazônia e do que resta da Mata Atlântica para
a plantação de soja, extração de madeira e minério, criação pecuária e a formação
dos “desertos verdes” do eucalipto exemplificam o risco de degradação ambiental
profunda a troco de ganhos de curto prazo na balança comercial.
:.: O modelo voltado para o mercado internacional não favorece o aumento da
renda e melhoria das condições de vida dos(as) trabalhadores(as), além de se
manter financeiramente vulnerável. Adhemar Mineiro chama a atenção para
que isso pode levar a uma situação de “pressão por uma ‘espiral’ de redução
dos custos da mão-de-obra, que pode ser a remuneração ou outras conquistas
e/ou direitos legais da classe trabalhadora, vistos apenas como custos.” (Obser-
vatório Social, p. 47). Problemas desse tipo apareceram nos conflitos em torno
da BR 163, expansão da soja no MT, da reserva Raposa Serra do Sol e da
monocultura do eucalipto.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
35

:.: O lobby do agronegócio pode levar o país a concessões adversas nas áreas da
indústria, serviços e compras governamentais em troca de ganhos para os ex-
portadores agrícolas em negociações como as da OMC, Alca e Mercosul-União
Européia, aumentando a vulnerabilidade externa. Disputas internas no governo
brasileiro, como a recente controvérsia entre o Ministério da Fazenda e o
Itamaraty a respeito da redução unilateral de tarifas antes da Conferência de
Hong Kong contribuem para enfraquecer a posição dos(as) negociadores(as)
brasileiros(as). Além da própria dificuldade do Ministério do Desenvolvimen-
to Agrário em conseguir incluir salvaguardas para determinados produtos nas
negociações, dominadas pela agenda da liberalização comercial.

Este quadro sinaliza que o acesso e controle sobre os bens coletivos deve estar
no centro da agenda da participação. Quando menos pelos efeitos socioambientais
produzidos pelo modelo de desenvolvimento em curso. Mas está claro que não
cabe à participação apenas corrigir estes e outros efeitos do atual modelo, mas,
antes, redefinir as bases do desenvolvimento e de sua gestão em favor de um mo-
delo sustentável e promotor da distribuição da riqueza social.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
36

8. REFERÊNCIAS MENCIONADAS

Dagnino, Evelina (2002). “Sociedade civil, espaços públicos e a


construção democrática no Brasil: limites e possibilidades” in Evelina
Dagnino, org. Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo/
Campinas: Paz e Terra/Unicamp, pp. 279-301.

Delgado, Nelson Giordano & Limoncic, Flávio (2004). “Refle-


xões preliminares sobre espaços públicos de participação no Governo Lula”,
Democracia Viva, no. 23, agosto/setembro, pp. 62-69.

Grzybowski, Cândido (2004). “Cidadania encurralada”, Demo-


cracia Viva, no. 23, agosto/setembro, pp. 8-14.

Mineiro, Adhemar (2005). “Desenvolvimento subordinado ao mo-


delo exportador” in Observatório da Cidadania. Rugidos e Sussurros, Rio
de Janeiro, Ibase, pp. 42-48.

Teixeira, Ana Claudia Chaves, orga. (2005). Os Sentidos da De-


mocracia e da Participação. São Paulo: Instituto Pólis, 2005, 128 p.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Cronologia
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

CRONOLOGIA

DATA FATOS DO FATOS FATOS FATOS DO


GOVERNO LULA INTERNACIONAIS E NACIONAIS E PROJETO MAPAS
DA SOCIEDADE CIVIL DA SOCIEDADE
CIVIL BRASILEIRA

Janeiro de 2003 Início do governo. Fórum Social Mundial Fórum Social Mundial
Recriação do Consea, em Porto Alegre. em Porto Alegre.
criação do CDES e de
novos ministérios e Fórum Econômico Entra em vigor o novo
espaços de participação. Mundial em Davos. Código Civil Brasileiro.

Fevereiro de 2003 Manifestações contra a


Guerra no Iraque no
mundo todo.

Março de 2003 Brasil se posiciona EUA invadem o Iraque.


contra a guerra do Combates contra o
Iraque. exército de Saddam
seguem até maio.

O ex-braço direito de
Fujimori, Vladimiro
Montesinos, é
condenado a cinco
anos de prisão.

Abril de 2003 Ministério da Fazenda Queda da ditadura de Primeiro esboço do


publica documento Saddam no Iraque. projeto.
“Política Econômica e
Reformas Estruturais”,
definindo a agenda
ortodoxa do governo
nesse setor.

Maio de 2003 Consultas estaduais ao Néstor Kirchner toma


PPA (até agosto de posse como presidente
2003). da Argentina.

O embaixador Sérgio
Vieira de Mello é
indicado para
representar a ONU no
Iraque.

Junho de 2003 Criação do Fórum Cúpula do G8 em


Índia, Brasil e África do Evian-les-Bains, França.
Sul.

O chefe de governo I Conferência Nacional


Julho de 2003 italiano, Silvio de Políticas para
Berlusconi, assume a Mulheres
Presidência da União
Européia sob fortes
críticas por ser suspeito
de corrupção.

Os dois filhos de
Saddam Hussein, Uday
e Qusay, são mortos em
um tiroteio em Mossul
com soldados dos
Estados Unidos.

Vaticano lança uma


campanha mundial
contra os casamentos
de homossexuais.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

DATA FATOS DO FATOS FATOS FATOS DO


GOVERNO LULA INTERNACIONAIS E NACIONAIS E PROJETO MAPAS
DA SOCIEDADE CIVIL DA SOCIEDADE
CIVIL BRASILEIRA

Agosto de 2003 Peru assina acordo de


livre comércio com o
Mercosul.

Sérgio Vieira de Mello,


representante da ONU
no Iraque, é assassina-
do num atentado
terrorista

Setembro de 2003 Formação do G-20 na Reunião Ministerial da


OMC, liderado por OMC em Cancún.
Brasil e Índia.

Liberação do plantio de
soja transgênica,
atráves da Medida
Provisória 131.

Lula propõe na ONU


combate à fome através
de um comitê
internacional

Outubro de 2003 Lula e Kirchner assinam Revolta popular na I Conferência Nacional Lançamento do projeto
o Consenso de Bolívia, presidente das Cidades.
Buenos Aires. Sánchez de Lozada,
renuncia.

Novembro de 2003 Aprovação da reforma Kirchner enfrenta Fórum Social Brasileiro,


da previdência. primeiro grande em Belo Horizonte.
protesto popular dos
“piqueteros” contra I Conferência Nacional
sua política econômica. do Meio Ambiente.

Dezembro de 2003 PT expulsa parlamenta- Saddam Hussein é


res dissidentes, preso no Iraque.
liderados pela
senadora Heloísa Em Genebra, Suíça,
Helena. palestinos e israelenses
lançaram um plano de
paz alternativo para o
Oriente Médio. Mesmo
rejeitada pelo governo
israelense, a Iniciativa
de Genebra reavivou as
esperanças na região.

Janeiro de 2004 O Ministro da Fórum Social Mundial O Brasil passou a fichar


Educação, Cristovam em Mumbai, Índia. visitantes provenientes
Buarque, é demitido dos Estados Unidos
por telefone. baseado no princípio
da reciprocidade.

Fevereiro de 2004 Waldomiro Diniz, Jean-Bertrand Aristide,


assessor de Dirceu, é presidente do Haiti,
acusado de corrupção. renuncia ao cargo após
três semanas de
O governo federal conflitos.
editou medida
provisória proibindo o
funcionamento de
casas de bingo e caça-
níqueis em todo o
país. O Senado
derrubou a MP no dia
5 de maio, por 32
votos a 31.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

DATA FATOS DO FATOS FATOS FATOS DO


GOVERNO LULA INTERNACIONAIS E NACIONAIS E PROJETO MAPAS
DA SOCIEDADE CIVIL DA SOCIEDADE
CIVIL BRASILEIRA

Março de 2004 Atentados contra II Conferência Nacional


Madri. Socialistas de Segurança
vencem as eleições na Alimentar.
Espanha.

Putin é reeleito na
Rússia.

Abril de 2004 Denúncias de torturas O Movimento dos Sem


cometidas por soldados Terra (MST) dá início a
dos EUA na prisão de uma onda de
Abu Grahib. ocupações em todo o
país em abril,
Bush declara apoio à conhecida como "abril
Israel para a construção vermelho".
de um muro que
separe o país dos Chacina de garimpeiros
palestinos. por índios cintas-largas
na reserva indígena
Roosevelt, em
Rondônia, pela
extração clandestina de
diamantes no local.

Presos da penitenciária
Urso Branco, em Porto
Velho (RO), iniciaram
uma rebelião que só
terminou seis dias
depois com mais de
dez mortos, alguns
deles decapitados.

Maio de 2004 Expansão da UE – Os I Encontro Nacional do


15 países da União Partido Socialismo e
Européia receberam 10 Liberdade (PSOL).
novos Estados
membros, na maior Os detentos da Casa
ampliação de sua de Custódia de
história, crescendo em Benfica, no Rio de
direção ao leste. Janeiro, começam uma
rebelião que dura cinco
dias e termina com 30
mortos, entre presos e
reféns.

Junho de 2004 Tropas do Brasil Queda do presidente Morre Leonel Brizola.


assumem comando da Sanchez de Lozada, na
missão da ONU no Haiti. Bolívia.

O governo federal inica Morte Ronald Reagan.


em todo o país a
campanha do
desarmamento da
população.

O presidente do Banco
Central, Henrique
Meirelles, e o
responsável pela política
monetária da instituição,
Luiz Augusto Candiota,
são investigados por
suspeita de sonegação,
omissão fiscal e evasão
de divisas.

Julho de 2004 Fórum Social das Seminário Sentidos da Artigo Cidadania


Américas em Quito, Participação e da Encurralada.
Equador. Democracia, em São
Paulo.
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5

DATA FATOS DO FATOS FATOS FATOS DO


GOVERNO LULA INTERNACIONAIS E NACIONAIS E PROJETO MAPAS
DA SOCIEDADE CIVIL DA SOCIEDADE
CIVIL BRASILEIRA

Agosto de 2004 Jacques Wagner, novo Hugo Chávez vence Inter-Redes se afasta do Edição sobre participa-
ministro do CDES, referendo na Venezuela acompanhamento do ção da revista Democra-
pede que Mapas PPA. cia Viva.
continue a acompa- Argentina suspende
nhar o Conselhão negociações com o
FMI.
O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva
enviou ao Congresso o
texto do projeto de lei
que cria o Conselho
Federal e os Conselhos
Regionais de
Jornalismo.

Setembro de 2004 Lula reúne 107 líderes Atentado contra a Reunião com a equipe
de todo o mundo para escola de Beslan, na que acompanha os
aprovar a criação de Rússia. Mais de 400 Conseas.
um fundo internacional mortos.
contra a fome.

Outubro de 2004 Tabaré Vázques é Eleições Municipais: PT Reunião com a equipe


eleito. primeiro perde capitais que acompanha as
presidente de esquerda importantes, como São Conferência das
do Uruguai. Paulo e Porto Alegre. Cidades.

O parlamento de Israel
aprova a retirada de
assentamentos judaicos
da Faixa de Gaza.

O parlamento israelense
aprovou o polêmico
plano do primeiro-
ministro Ariel Sharon
de retirada da Faixa
de Gaza.

Novembro de 2004 Carlos Lessa deixa a Morre Yasser Arafat. Seminário da Inter-
Presidência do BNDES. Redes sobre “O
Reeleição de Bush nos Desenvolvimento que
EUA. Condoleezza Rice temos e o desenvolvi-
anunciada como a mento que queremos”.
nova secretária de
Estado. Chacina de sem-terras
em Felisburgo (MG).
Vitória da Frente Ampla
e do plebiscito contra
privatização da água no
Uruguai.

Confrontos na Costa
do Marfim.

Dezembro de 2004 Criação da Comunida- Tsunami na Ásia. Seminário em Brasília,


de Sul-Americana de Intensa campanha de decisão de focar nos
Nações. solidariedade mundial. conflitos sociais como
forma de participação.
Denúncias de
corrupção na ONU, no
programa petróleo por
comida.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6

DATA FATOS DO FATOS FATOS FATOS DO


GOVERNO LULA INTERNACIONAIS E NACIONAIS E PROJETO MAPAS
DA SOCIEDADE CIVIL DA SOCIEDADE
CIVIL BRASILEIRA

Janeiro de 2005 Lula visita o FSM e é Fórum Social Mundial Fórum Social Mundial
vaiado e aplaudido. Vai em Porto Alegre. em Porto Alegre.
para Davos e é
aplaudido.

Fevereiro de 2005 PT se desentende e Protocolo de Quioto Assassinato da irmã


lança dois candidatos à entra em vigor. Dorothy chama a
presidência da Câmara atenção para os
dos Deputados. Com o Socialistas vencem as conflitos no campo.
conflito, vence Severino eleições legislativas Tensões também em
Cavalcanti, do PP. antecipadas de Roraima, na reserva
Portugal. Raposa Serra do Sol.

Coréia do Norte
anuncia oficialmente
que possui armas
nucleares.

Março de 2005 Renegociação da dívida


externa argentina.

Paul Wolfowitz
apontado novo
presidente do Banco
Mundial.

Koff Annan anuncia


que entregará na
Assembléia Geral da
ONU um pedido para
ampliar de 15 para 24
os membros do
Conselho de Segurança.

Tabaré Vázquez toma


posse no Uruguai.

Abril de 2005 Morte de João Paulo II. MST realiza marcha Reunião de toda a
Bento XVI eleito como nacional pela reforma equipe para definir os
novo papa. agrária. rumos do projeto.

Queda do presidente
Lucio Gutierrez, no
Equador.

Síria retira suas tropas


do Líbano.

Chávez e Fidel Castro


lançam a Alba
(Alternativa Bolivariana
para as Américas), em
contraposição à Alca.

A Assembléia Nacional
Iraquiana elege Jalal
Talabani o novo
presidente do Iraque.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

DATA FATOS DO FATOS FATOS FATOS DO


GOVERNO LULA INTERNACIONAIS E NACIONAIS E PROJETO MAPAS
DA SOCIEDADE CIVIL DA SOCIEDADE
CIVIL BRASILEIRA

Maio de 2005 Cúpula Países Árabes e Tony Blair é reeleito no


Sul-Americanos em Reino Unido.
Brasília.
França rejeita Tratado
Brasil, Alemanha, Índia Constitucional
e Japão apresentam Europeu.
proposta conjunta para
ampliar Conselho de
Segurança da ONU.

Junho de 2005 Roberto Jefferson Holanda rejeita Tratado I Conferência Nacional


denuncia esquemas de Consituticional de Políticas de
corrupção no governo. Europeu. Promoção da Igualdade
Abertura das CPIs. Racial.
O ultraconservador
Dirceu renuncia ao Mahmoud
cargo de ministro. Ahmadinejad é eleito o
presidente do Irã.
Genoíno renuncia à
presidência do PT e se Senado dos EUA
aposenta como ratifica o Cafta.
deputado.
G8 perdoa parte da
dívida dos 18 países
mais pobres do
mundo.

O presidente da Bolívia,
Carlos Mesa, renuncia.

Julho de 2005 Reforma ministerial tira Atentados contra


pastas do PT e cede Londres.
para PMDB e PP.
Telesul entra no ar.

Agosto de 2005 Tarso Genro renuncia à Israel se retira da Faixa


presidência interina do de Gaza.
PT. Berzoini se torna o
candidato do Campo Furacão Katrina devasta
Majoritário para Nova Orleans.
presidir o partido.
Preço do petróleo
atinge alta recorde
desde 1983.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Instrumento de pesquisa
Iniciativas governamentais
de participação
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

ESTADO

RESPONSÁVEL PELA INFORMAÇÃO

DATA DE PREENCHIMENTO

1. IDENTIFICAÇÃO

A. Denominação da iniciativa

B. Área geográfica de abrangência

C. Data de início/ realização

D. Instância responsável
PESSOA DE CONTATO

TELEFONE FAX

ENDEREÇO POSTAL (INCLUINDO CEP)

ENDEREÇO ELETRÔNICO

PÁGINA NA INTERNET
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3

2. BREVE DESCRIÇÃO DA INICIATIVA

A. Tipo de atividade

B. Política objeto de participação

C. Caráter (deliberativo/consultivo)

D. Principais resultados e impactos reais e/ou esperados


MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

3. ATORES SOCIAIS PARTICIPANTES

A. Sociedade civil

A1. Movimentos sociais e organizações populares


A2. Sindicatos
A3. Associação profissionais
A4. Cooperativas e associações de pequenos produtores
A5. Cooperativas associações empresariais
A6. ONGs
A7. Centros científicos e culturais
A8. Igrejas e movimentos religiosos
A9. Organizações de mídia
A10. Redes, campanhas,coalizões, fóruns
A11. Instituições internacionais

B. Agencias governamentais

B1. Federal
B2. Estadual
B3. Municipal
B4. Multilateral(cooperação técnica e/ou financeira)
B5. Cooperação bilateral (técnica e/ou financeira)

C. Parlamento

C1. Federal
C2. Estadual
C3. Municipal

D. Judiciário

D1. Fóruns
D2. Tribunal de Justiça

E. Ministério Público
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Instrumento de pesquisa
Levantamento de atores e conflitos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

ESTADO

RESPONSÁVEL PELA INFORMAÇÃO

DATA DE PREENCHIMENTO

1. MAPEAMENTO DOS PRINCIPAIS ATORES DA SOCIEDADE CIVIL

A. Categoria/Nome

A1. Movimentos sociais e organizações populares


A2. Sindicatos
A3. Associação profissionais
A4. Cooperativas e associações de pequenos produtores
A5. Cooperativas associações empresariais
A6. ONGs
A7. Centros científicos e culturais
A8. Igrejas e movimentos religiosos
A9. Organizações de mídia
A10. Redes, campanhas,coalizões, fóruns
A11. Instituições internacionais

B. Área geográfica de atuação

C. Temática de atuação

D. Por que é um ator relevante? (capacidade de influenciar a agenda pública,atuação e


fortalecimento de redes e coalizões; visibilidade; etc)
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

2. MAPEAMENTO DOS PRINCIPAIS CONFLITOS E TENSÕES

A. Conflitos sociais com atores identificados e com capacidade de pautar a agenda pública
A1. QUAIS OS PRINCIPAIS TIPOS DE CONFLITOS?

A2. FAÇA UMA BREVE DESCRIÇÃO.

A3. TIPO DE RESPOSTA POR PARTE DO GOVERNO.

A4. FAÇA UMA BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS ENVOLVIDOS.

B. Conflitos sociais com atores identificados e sem capacidade de pautar a agenda pública
B1. QUAIS OS PRINCIPAIS TIPOS DE CONFLITOS?

B2. FAÇA UMA BREVE DESCRIÇÃO.

B3. TIPO DE RESPOSTA POR PARTE DO GOVERNO.

B4. FAÇA UMA BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS ENVOLVIDOS.

C. Conflitos latentes e/ou inorgânicos com capacidade de pautar a agenda pública


C1. QUAIS OS PRINCIPAIS TIPOS DE CONFLITOS?

C2. FAÇA UMA BREVE DESCRIÇÃO.

C3. TIPO DE RESPOSTA POR PARTE DO GOVERNO.

C4. FAÇA UMA BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS GRUPOS SOCIAIS E DOS ATORES (QUANDO FOR O CASO) ENVOLVIDOS.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Instrumento de pesquisa
Conferências
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

1. MONITORAMENTO

A. FORMATAÇÃO DO PROCESSO DA CONFERÊNCIA NO NÍVEL FEDERAL A SER REALIZA-


DO PELOS CONSULTORES CONTRATADOS

A1. Etapas do processo


1. Registrar as várias etapas do processo de organização da Conferência
2. Identificar os atores responsáveis pelas iniciativas
3. Identificar os atores participantes neste processo
4. Identificar e descrever a institucionalidade constituída para implementar o pro-
cesso (denominação; mandato; recursos disponíveis; procedimentos; membros)

A2. Instrumentos da Iniciativa


1. COMITÊ DE ACOMPANHAMENTO (OU A INSTÂNCIA CORRESPONDENTE)
1.1 Composição
1.2 Coordenação
1.3 Descreva a forma de funcionamento do Comitê (ou da instância corres-
pondente), ressaltando suas atribuições, número de reuniões, assiduidade
dos membros, existência de atas.
1.4 Descreva o processo de formação do Comitê, ressaltando as tensões, con-
flitos, alianças e acordos mais relevantes
2. DOCUMENTOS OFICIAIS
2.1 Documento base
2.1_1 Descreva o processo de elaboração e aprovação do documento
(quem elaborou a proposta inicial; quem participou das discussões; quais
foram as instâncias institucionais de debate e aprovação do documento;
principais pontos de debate e tensão; responsáveis pela redação final)
2.1_2 Breve resumo do conteúdo da versão final do documento
2.2 Documento de regras sobre a participação dos diferentes atores sociais
no processo da Conferência
2.2_1 Descreva o processo de elaboração e aprovação do documento
(quem elaborou a proposta inicial, quem participou das discussões; quais
foram as instâncias institucionais de debate e aprovação do documento;
principais pontos de debate e tensão; responsável pela redação final)
2.2_2 Descrição das principais regras de participação no processo da
Conferência

B. DINÂMICA DE IMPLEMENTAÇÃO DO PROCESSO DA CONFERÊNCIA NO NÍVEL ESTADU-


AL A SER REALIZADA PELAS EQUIPES DOS ESTADOS SELECIONADOS

B1. Etapas do processo


1. REGISTRAR AS VÁRIAS ETAPAS DO PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO DA CONFERÊNCIA NO ESTADO
2. IDENTIFICAR OS ATORES RESPONSÁVEIS PELAS INICIATIVAS
3. IDENTIFICAR OS ATORES PARTICIPANTES NESTE PROCESSO
4. IDENTIFICAR E DESCREVER A INSTITUCIONALIDADE CONSTITUÍDA PARA IMPLEMENTAR O
PROCESSO (DENOMINAÇÃO; MANDATO; RECURSOS DISPONÍVEIS; PROCEDIMENTOS; MEMBROS)
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

B2. Instrumentos da iniciativa


1. COMITÊ DE ACOMPANHAMENTO (OU A INSTÂNCIA CORRESPONDENTE)
1.1 Composição
1.2 Coordenação
1.3 Descreva a forma de funcionamento do Comitê (ou da instância corres-
pondente), ressaltando suas atribuições, número de reuniões, assiduidade dos
membros, existência de atas.
1.4 Descreva o processo de composição do Comitê, ressaltando as tensões,
conflitos, alianças e acordos mais relevantes

2. DOCUMENTOS OFICIAIS (CASO TENHAM SIDO ELABORADOS DOCUMENTOS ESTADUAIS)


2.1. Documento base
2.1_1 Descreva o processo de elaboração e aprovação do documento
(quem elaborou a proposta inicial: quem participou das discussões; quais
foram as instâncias institucionais de debate e aprovação do documento;
principais pontos de debate e tensão; responsáveis pela redação final)
2.1_2 Breve resumo do conteúdo da versão final do documento
2.2. Registre, quando existentes, diferenças nas regras de participação em rela-
ção à proposta federal.

B3. O processo da Conferência no estado


1. REGISTRO DO MODO DE PARTICIPAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS
1.1. Os diretamente envolvidos: utilizar como referência para os tipos de ato-
res a serem considerados o quadro base apresentado na ficha de mapeamento
das iniciativas governamentais de participação.
1.2. Os não envolvidos:
1.2_1 do ponto de vista do(a) pesquisador(a), que atores sociais rele-
vantes estiveram ausentes do processo da conferência e por quê: Consi-
dere também em sua caracterização os recortes de gênero, etnia, geração,
religião, renda, orientação sexual e portadores de necessidades especiais.
1.2_2 do ponto de vista do(a) pesquisador(a) que grupos sociais envolvi-
dos em conflitos latentes e-ou inorgânicos estiveram ausentes do processo
(os invisíveis)
2. TEMAS TRATADOS (ENTREVISTAS E ATAS)
2.1. Identificação dos temas tratados.
2.2. Mapeamento dos debates a respeito dos temas.
2.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos a respeito dos temas.
2.3_1 Para os atores de governo incluir as articulações e tensões inter e
intra-governamentais
2.3_2 Para os atores da sociedade civil, registrar as articulações (prévias
ou não) de grupos e/ou redes
3. PROPOSTAS E SUGESTÕES DA CONFERÊNCIA ESTADUAL (ENTREVISTAS, ATAS E DOCUMENTOS
PRODUZIDOS)
3.1. Identificação das propostas e sugestões.
3.2. Mapeamento dos debates na construção das propostas e sugestões.
3.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos na construção das
propostas e sugestões.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

3.3_1 Para os atores de governo incluir as articulações e tensões inter e


intra-governamentais
3.3_2 Para os atores da sociedade civil, registrar as articulações (prévias
ou não) de grupos e/ou redes

C. DINÂMICA DA CONFERÊNCIA NACIONAL, A SER REALIZADA PELOS CONSULTORES


CONTRATADOS
1. REGISTRO DO MODO DE PARTICIPAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS
1.1. Os diretamente envolvidos: utilizar como referência para os tipos de ato-
res a serem considerados o quadro base apresentado na ficha de mapeamento
das iniciativas governamentais de participação.
1.2. Os não envolvidos:
1.2_1 do ponto de vista do(a) pesquisador(a), que atores sociais rele-
vantes estiveram ausentes do processo da conferência e por quê: Consi-
dere também em sua caracterização os recortes de gênero, etnia, geração,
religião, renda, orientação sexual e portadores de necessidades especiais.
1.2_2 do ponto de vista do(a) pesquisador(a) que grupos sociais envolvi-
dos em conflitos latentes e-ou inorgânicos estiveram ausentes do processo
(os invisíveis)
2. TEMAS TRATADOS (ENTREVISTAS E ATAS)
2.1. Identificação dos temas tratados.
2.2. Mapeamento dos debates a respeito dos temas.
2.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos a respeito dos temas.
2.3_1 Para os atores de governo incluir as articulações e tensões inter e
intra-governamentais
2.3_2 Para os atores da sociedade civil, registrar as articulações (prévias
ou não) de grupos e/ou redes
3. PROPOSTAS E SUGESTÕES DA CONFERÊNCIA (ENTREVISTAS, ATAS E DOCUMENTOS PRODUZIDOS)
3.1. Identificação das propostas e sugestões.
3.2. Mapeamento dos debates na construção das propostas e sugestões.
3.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos na construção das
propostas e sugestões.
3.3_1 Para os atores de governo incluir as articulações e tensões inter e
intra-governamentais
3.3_2 Para os atores da sociedade civil, registrar as articulações (prévias
ou não) de grupos e/ou redes
4. IDENTIFICAÇÃO DOS RESULTADOS ALCANÇADOS
4.1. Natureza das deliberações da Conferência (consultivas, normativas, deliberativas)
4.2. Quais são os canais institucionais através dos quais as decisões, sugestões
ou recomendações apresentadas pela Conferência são repassadas para as agên-
cias governamentais?
4.3. Propostas e sugestões incorporadas pelo governo (federal ou estadual).
4.3_1 Razões para incorporação: força da articulação interna à Confe-
rência, interesse do governo em incorporar, etc (entrevistas).
4.4. Propostas e sugestões que não foram incorporadas pelo governo (federal
ou estadual)
4.4_1 Razões para a não incorporação: fragilidade da articulação interna
à Conferência, desinteresse do governo em incorporar, etc (entrevistas).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

2. VISÕES DOS ATORES SOCIAIS SOBRE O PROCESSO DA CONFERÊNCIA NACIONAL, A SER REALIZADO
PELA COORDENAÇÃO, ATRAVÉS DE CONSULTORES CONTRATADOS. OS DADOS RELATIVOS ÀS CON-
FERÊNCIAS ESTADUAIS SERÃO LEVANTADOS PELAS EQUIPES ESTADUAIS

Sugerimos a seguir as questões que devem orientar entrevistas a serem realizadas


com os atores selecionados, participantes e não participantes do processo. O
resultado de cada entrevista deverá ser registrado em uma ficha específica.
1. Por que participou (ou não) do processo da Conferência?
2. Na sua opinião, que atores sociais estiveram ausentes e deveriam ter participa-
do? Por quê?
3. Participou com demandas específicas? Quais ? Como foram elaboradas?
Foram ou não incorporadas? Como ?
4. Que avaliação faz do processo em relação:
4.a. ao modo de fazer política do governo federal subjacente a esta iniciativa (é
importante que o(a) entrevistador (a) tenha atenção especial para como o en-
trevistado vê as questões relativas à participação).
4.b. à agenda proposta pelo governo federal, tendo como referência o docu-
mento base.
4.c. aos conflitos e aos compromissos gerados no processo de consulta da
Conferência relativos:
4.c_1 à condução do processo
4.c_2 aos interesses defendidos pelos diferentes atores da sociedade civil
4.c_3 aos interesses defendidos por representantes de diferentes agências
governamentais
4.c_4 à relação governo - sociedade civil
4.c_5 às propostas apresentadas pelos diferentes atores ou articulações e redes.
4.d. à capacidade de participação ativa da sociedade civil (em suas diferentes
redes e articulações) frente aos desafios colocados pelo processo da Conferên-
cia (pode influenciar no processo? Conseguiu formular propostas consensuais
e coletivas? Definiu estratégias articuladas de participação e diálogo?)
4.e. aos resultados alcançados, levando-se em conta as diversas dimensões da
cidadania (gênero, etnia, geração, religião, renda, orientação sexual e portado-
res de necessidades especiais, etc.).
4.f. aos aspectos positivos e negativos que destacaria neste processo, tendo
como referência a consolidação de novos espaços de participação e a
radicalização da democracia.
4.g. às expectativas de participação na Conferência dos representantes da soci-
edade civil (mobilização social/campanhas, formulação de políticas públicas,
etc.) e do governo (legitimação, relevância da Conferência, valorização da
intersetorialidade etc).
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Instrumento de pesquisa
Consea e Conseas estaduais
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

1. MONITORAMENTO

As informações relativas ao Conselho Nacional serão coletadas pela coordenação


através de consultores contratados. Os Conseas estaduais serão pesquisados pelas
equipes dos estados selecionados.

Estrutura formal
1. Estrutura administrativa, procedimentos e mandatos (regimento)
2. Quem preside o Conselho (representante de governo ou da sociedade civil)?
3. Conselheiros/as (DO). Qual a proporção de representantes da sociedade civil
no Conselho (dois terços ou maioria simples)?
4. Composição social e política do Conselho (usando como referência os tipos de
atores apresentados na ficha de Mapeamento das iniciativas governamentais
de participação)

Dinâmica de composição e funcionamento


1. Escolha de conselheiros/as:
1.1. Identificação do processo de indicação de conselheiros/as, procurando ca-
racterizar, também, os segmentos e interesses sociais, políticos e econômicos
representados:
1.2. Existe no estado um Fórum de Segurança Alimentar? Que influência exer-
ceu na qualidade e na representatividade de conselheiros/as da sociedade civil?
1.3. Na opinião do/a pesquisador/a, que atores sociais relevantes estão ausen-
tes do Consea? Por quê? Considere também em sua caracterização os recortes
de gênero, etnia, geração, religião, renda, orientação sexual e portadores/as de
necessidades especiais, assim como a região de origem.
2. Assiduidade de conselheiros/as nas reuniões (atas de reunião)
3. Construção da agenda (entrevistas e atas):
3.1. Como é construída e apresentada a agenda (pauta) de debates das reuniões?
3.2. Quem tem capacidade de iniciativa para propor a agenda?
3.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos na construção da agenda:
4. Temas tratados (entrevistas e atas):
4.1. Identificação dos temas tratados:
4.2. Mapeamento dos debates a respeito dos temas:
4.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos a respeito dos temas:
5. Propostas e sugestões do Consea (entrevistas, atas e documentos produzidos
pelo Conselho):
5.1. Identificação das propostas e sugestões que resultaram das reuniões do
Consea:
5.2. Mapeamento dos debates na construção das propostas e sugestões:
5.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos na construção das
propostas e sugestões:

Identificação dos resultados alcançados


1. Natureza das deliberações do Consea (consultivas, normativas, deliberativas):
2. Quais são os canais institucionais através dos quais as decisões, sugestões ou
recomendações pelo Consea são repassadas para as agências governamentais?
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

3. Propostas e sugestões incorporadas pelo governo (federal ou estadual):


3.1. Razões para incorporação: força da articulação interna ao Consea, inte-
resse do governo em incorporar etc (entrevistas):
4. Propostas e sugestões que não foram incorporadas pelo governo (federal ou
estadual):
4.1. Razões para a não incorporação: fragilidade da articulação interna ao
Consea, desinteresse do governo em incorporar etc (entrevistas):
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

2. VISÕES DOS ATORES SOBRE O CONSEA

A seguir, são sugeridas as questões que devem orientar as entrevistas com os atores
selecionados, participantes e não-participantes do processo. O resultado de cada
entrevista deverá ser registrado em uma ficha específica.

No caso de conselheiros/as
1. Por que comparece ou não às reuniões do Consea?
2. Que ator social não está representado no Consea e deveria estar? Por quê?

Que avaliação faz do processo em relação:


1. ao modo de fazer política do governo federal subjacente a esta iniciativa (é
importante que o/a entrevistador/a dê atenção especial à percepção do/a entre-
vistado/a quanto às questões relativas à participação):
2. aos conflitos e compromissos gerados no processo do Consea, referentes:
2.1. à condução do processo;
2.2. aos interesses defendidos por diferentes conselheiros/as;
2.3. aos interesses defendidos por representantes de diferentes agências gover-
namentais;
2.4. à relação governo-sociedade civil;
2.5. às propostas apresentadas por diferentes conselheiros/as ou articulações de
conselheiros/as;
2.6. aos resultados alcançados, levando-se em conta as diversas dimensões da
cidadania (gênero, etnia, geração, religião, renda, orientação sexual e portado-
res/as de necessidades especiais etc.);
2.7. aos aspectos positivos e negativos que destacaria neste processo, tendo
como referência a consolidação de novos espaços de participação e a
radicalização da democracia.
3. às expectativas de participação no Consea de representantes da sociedade civil
(mobilização social/campanhas, formulação de políticas públicas etc.) e do
governo (legitimação, relevância do Consea, valorização da intersetorialidade etc.):

NA SUA OPINIÃO, AS QUESTÕES ESTRATÉGICAS DA SEGURANÇA ALIMENTAR E


NUTRICIONAL ESTÃO NA AGENDA DO CONSEA? POR QUÊ?
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Instrumento de pesquisa
PPA nos estados
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

1. MONITORAMENTO

As informações referentes à conferência nacional serão levantadas pela coordenação


através de consultores contratados registrar as várias etapas do processo de consulta
ppa nos estados.
1. Identificar as etapas do processo
2. Identificar os atores responsáveis pelas iniciativas

Caracterizar e analisar os instrumentos da iniciativa


1. Documento-base: Orientação Estratégica do Governo: Crescimento sustentável,
emprego e inclusão social (esta parte da analise será feita pela coordenação)
2. Documento-síntese de cada estado (relatório estadual)
2.1. Quais foram as propostas apresentadas para a elaboração do documento?
2.2. Que atores apresentaram essas propostas?
2.3. Que propostas foram incorporadas ao relatório estadual?
3. Documento-final: identificar os compromissos alcançados (esta parte da análi-
se também será feita da coordenação)
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

2. REGISTRO DOS ATORES

Mapeamento e qualificações dos atores sociais


1. Diretamente envolvidos
Utilizar como referência para os tipos de atores a serem considerados o qua-
dro-base apresentado na ficha de mapeamento das iniciativas governamentais
de pa ticipação. Esse quadro deverá ser preenchido a partir das informações
disponibilizadas no site do PPA, no CD-ROM do PPA e/ou fornecidas pela
secretaria da Inter-redes, que coordenou o processo de consulta.
2. Não envolvidos
2.1. Do ponto de vista do/a pesquisador/a, que atores sociais relevantes
estiveram ausentes do processo PPA? Por quê?
Considere também em sua caracterização os recortes de gênero, etnia, geração,
religião, renda, orientação sexual e portadores/as de necessidades especiais.
2.2. Do ponto de vista do/a pesquisador/a, que grupos sociais envolvidos
em conflitos latentes e/ou inorgânicos (os invisíveis) estiveram ausentes
do processo?

Registro do modo de participação dos atores sociais


1. Identificar e analisar:
1.1. articulações prévias de grupos de atores e/ou redes (para os atores do go-
verno incluir articulações inter e intra governamentais);
1.2. as sugestões, propostas e/ou emendas apresentadas pelos atores participantes;
1.3. os atores responsáveis e/ou colaboradores na preparação e na coordenação
dos encontros;
1.4. os atores responsáveis pela identificação de convidados;
1.5. os atores responsáveis pela formulação do documento-síntese de cada Estado.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

3 VISÕES DOS ATORES SOCIAIS SOBRE O PROCESSO PPA

A seguir, são sugeridas as questões que devem orientar entrevistas com os atores
selecionados, participantes e não participantes do processo. O resultado de cada
entrevista deverá ser registrado em uma ficha específica.

Por que participou (ou não) do processo ppa?


Na sua opinião, que atores sociais estiveram ausentes e deveriam ter
Participado? Por quê?

Participou com demandas específicas? Quais? Como foram elaboradas?

Foram ou não incorporadas? Como?

Que avaliação faz do processo em relação:


1. ao modo de fazer política do governo federal subjacente a essa iniciativa (é
importante que o/a entrevistador/a tenha atenção especial para como o/a entr
vistado/a vê as questões relativas à participação);
2. à agenda proposta pelo governo federal, tendo como referência o documento-base;
3. aos conflitos e aos compromissos gerados no processo de consulta do PPA
relativos
3.1. à condução do processo;
3.2. aos interesses defendidos pelos diferentes atores da sociedade civil;
3.3. aos interesses defendidos pelas diversas agências de governo, nas diferentes
esferas governamentais;
3.4. à relação das agências governamentais (nas diversas esferas de governo)
com os atores envolvidos no processo da sociedade civil;
3.5. às propostas apresentadas pelos diferentes atores.
4. aos resultados alcançados, levando-se em conta as diversas dimensões da cida-
dania (gênero, etnia, geração, religião, renda, orientação sexual e portadores/
as de necessidades especiais etc.);
5. aos aspectos positivos e negativos que destacaria nesse processo, tendo como
referência a consolidação de novos espaços de participação e a radicalização
da democracia.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Instrumento de pesquisa
Glossário
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

Esse glossário serve de orientação para os(as) pesquisadores(as) do projeto


MAPAS - Monitoramento Ativo da Participação da Sociedade. Dinâmico, ele está
publicado no saite do projeto (www.mapas.org.br) e será atualizado à medida em
que o projeto avançar e, eventualmente, novos conceitos surgirem dessa pesquisa
participativa. O glossário possibilita a aproximação de conceitos com os quais os
vários pesquisadores, coordenadores e entrevistados do MAPAS trabalham.

O Glossário está dividido em 2 tipos de verbetes:


1. verbetes que encerram uma definição direta do tema. Por exemplo, o verbete
Agenda Pública. Quando, dentro desse tipo de verbete, é feita referência a um
outro verbete, esse segundo verbete aparece sempre em negrito e sublinhado.
Assim, por exemplo, dentro do verbete Agenda Pública é feita uma referência
ao verbete Atores Sociais, que então aparece Atores Sociais.
2. verbetes que reúnem diversos verbetes em um só. O verbete Democracia reúne
os verbetes Democracia Direta, Democracia Representativa, Radicalização da
Democracia etc. Isto quer dizer que esses verbetes não têm definição exclusiva,
estando inseridos na discussão maior do verbete Democracia, e aparecem no
texto sempre em negrito e sublinhados. Por ordem alfabética, aparecerá a refe-
rência a cada um deles, com remissão para o verbete Democracia.

Verbetes
Agenda Pública. Conjunto de problemas, reivindicações e propostas vocalizadas
por diferentes Atores Sociais, ou por representantes destes, que se transformam
em pauta dos diferentes meios de comunicação ou em Políticas Públicas.

Atores Sociais. Em uma definição ampla, Atores Sociais são aqueles que, em rede
ou não, têm capacidade de intervir, através de sua ação política e/ou pública, na
construção das correlações de forças que negam ou afirmam, em situações
conjunturais específicas, estruturas sociais, políticas, econômicas ou culturais de
longo prazo. Tal capacidade pode advir dos recursos políticos por eles acumula-
dos, de sua capacidade diruptiva sobre a ordem constituída, de sua capacidade de
associação e formação de redes, de sua articulação com o Estado etc. Neste senti-
do, os Atores Sociais estão sempre envolvidos em algum tipo de Conflito Social e
podem assumir 3 características: 1. podem ser identificados e ter capacidade de
pautar a Agenda Pública; 2. podem ser identificados mas não ter capacidade de
pautar a Agenda Pública ou, finalmente, 3. podem ser capazes de pautar a Agen-
da Pública, mas não serem claramente identificados. É importante ressaltar a na-
tureza dinâmica dos Atores Sociais, o que implica em afirmar que um ator de tipo
3, na dinâmica mesma de sua atuação, pode constituir-se em ator de tipo 1.

Cidadania. Usualmente, a Cidadania é pensada como um conjunto de direitos


associados às dimensões civil (direito à vida, à liberdade, igualdade jurídica, direi-
to à propriedade), política (votar e ser votado, de se organizar em partidos políti-
cos e disputar o poder) e social (direito de participar da riqueza coletivamente
produzida). Historicamente, a luta pela Cidadania se deu dentro dos marcos
regulatórios dos Estados-Nação, o que implica em dizer que foi circunscrita a
territórios e formações políticas previamente definidos. Nos termos do presente
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

projeto, importa ressaltar que a Cidadania é resultado de um processo de constru-


ção e, por conseguinte, de invenção democrática. Aos tradicionais direitos da ci-
dadania, o conjunto dos cidadãos de uma Democracia Participativa podem, e
devem, permanentemente, construir novos direitos, como os relativos a questões
de gênero, etnia, orientação sexual etc. Resulta daí que o conceito de Cidadania
comporta uma dupla dimensão: de um lado, pressupõe um conjunto de cidadãos
engajados, agência histórica, e, de outro, encerra a idéia de que tais cidadãos têm
o direito a ter novos direitos, desde que democraticamente construídos. A articu-
lação entre Cidadania e Democracia rejeita, portanto, a idéia de que direitos cida-
dãos possam ser resultado da ação demiúrgica do Estado. Pelo contrário, em sen-
do a Cidadania um atributo coletivo, que só pode ser vivenciado em sua plenitu-
de, por cada cidadão, se o conjunto de cidadãos de uma mesma comunidade
política também a vivenciarem em plenitude, a Cidadania no Brasil está explicita-
mente ligada à Radicalização da Democracia. Por fim, cabe frisar que, nos qua-
dros do processo de globalização, em que o papel regulatório dos Estados-Nação
tem sido redefinido, é importante que se pense também em como a Cidadania
pode se adequar a esta nova realidade, e nos instrumentos para construir direitos
que se sobreponham a um tal marco regulatório. Dito de outra maneira, o desafio
de Radicalização da Democracia ora vivido diz respeito também à construção de
direitos que se sobreponham às fronteiras nacionais e contribuam para a constru-
ção de uma cidadania global.

Conflito Social. Quando interesses organizados ou não em movimentos, grupos,


articulações ou outros tipos quaisquer de instituições, formais ou informais, iden-
tificam-se como contrários a outros interesses e buscam afirmar-se sobre eles, mes-
mo que com vistas a uma possível conciliação futura, têm-se um Conflito Social.
De certa forma, o Conflito Social é mesmo o combustível da Radicalização da
Democracia, pois é a ampliação da capacidade processual da Institucionalidade
Democrática que pode torná-lo produtivo, ou seja, instrumento de transforma-
ções e de ampliação de direitos. O Conflito Social pode ter protagonistas em 4
situações distintas:
1. Atores Sociais identificados e com capacidade de pautar a Agenda Pública;
2. Atores Sociais identificados mas sem capacidade de pautar a Agenda Públicas;
3. pode manifestar-se como latente e inorgânico, por ter capacidade de pautar a
Agenda Pública mas não ter como agentes Atores Sociais identificados, ou
4. pode constituir-se de uma combinação de Atores Sociais identificados e não-
identificados. É importante salientar a natureza dinâmica dos conflitos. As-
sim, um ator envolvido em um conflito de natureza 1 pode perder capacidade
de pautar a Agenda Pública ou, de modo reverso, um ator envolvido em um
conflito de natureza 3 pode ganhar visibilidade, organização e voz claramente
identificável. Neste sentido, o Conflito Social é momento estratégico para a
própria construção dos Atores Sociais, que nele podem se afirmar, construir
identidade, ou perdê-la.

Cultura Política. Conjunto de visões, ideais, sentimentos e valores de uma sociedade a


respeito da vida pública. Ainda que uma dada comunidade política possa expressar-
se de forma plural, através de vozes por vezes dissonantes, a idéia de cultura política
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

implica que tal comunidade tenha construído parâmetros compartilhados que forne-
çam sentido e coerência ao processo político. No entanto, muito embora uma cultura
política implique em parâmetros hegemônicos, tais parâmetros são objeto de perma-
nente disputa, o que implica em dizer que a cultura política é campo da luta política

Democracia Direta. Cf. Democracia.

Democracia Participativa. Cf. Democracia.

Democracia Representativa. Cf. Democracia.

Democracia. O conceito de democracia é extremamente polissêmico, mas pode ser


definido, amplamente, como o governo de todos os cidadãos. A Democracia surge
assim como uma forma de governo em que os cidadãos exercem a soberania e
participam da construção da vontade coletiva, seja através de representantes eleitos
(Democracia Representativa), seja através de mecanismos de Democracia Direta.
Ao longo dos séculos XIX e XX, as instituições da Democracia Representativa,
como o Parlamento e o voto universal, tornaram-se correntes em grande parte da
Europa e da Américas como resultado de processos nacionais de luta pela conquis-
ta, expansão e manutenção de direitos políticos e sociais. No entanto, a Democra-
cia Representativa foi também historicamente criticada por uma série de correntes
políticas que apontavam seus limites: caráter delegativo, esvaziamento da vida pú-
blica, representações distorcidas, natureza classista etc. Freqüentemente, a Demo-
cracia Direta foi apresentada como forma de superar tais limites, ainda que, dela
própria, a idéia de representação não esteja ausente. De fato, freqüentemente, os
participantes de iniciativas de Democracia Direta, como os envolvidos em experiên-
cias de orçamento participativo, reclamam a representação de grupos de interesses
vários, ainda que muitas vezes não tenham recebido mandatos claramente defini-
dos para tal. Por outro lado, na Democracia Direta, cidadãos com maiores recursos
políticos, freqüentemente em associação com outros cidadãos com os quais divi-
dem interesses, têm maior capacidade de construir, diretamente, uma interlocução
com o Estado do que cidadãos com menos recursos políticos.
Uma Democracia Participativa, que efetivamente engaje o conjunto da cida-
dania no processo de construção da vontade coletiva, é aquela capaz de combinar
as virtudes da Democracia Representativa com as virtudes da Democracia Direta.
Nesta perspectiva, a grande virtude da Democracia Representativa surge de sua
capacidade de proporcionar a todos os cidadãos, através do voto e de forma inde-
pendente de seus recursos políticos individuais, o poder de participar da constru-
ção da vontade coletiva. No que se refere à Democracia Direta, a construção da
vontade coletiva em experiências como a de orçamento participativo possui a
virtude de submeter o Estado a um mais profundo controle da sociedade e, neste
sentido, democratizá-lo, além de ensejar a construção de cidadãos mais engajados
e ativos. Por outro lado, institutos como plebiscitos e referendos também contri-
buem para um maior controle social sobre o Estado.
A combinação de elementos de Democracia Representativa com elementos de
Democracia Direta, que inclua também a construção de novos Espaços de Partici-
pação, constitui o que se pode chamar de Institucionalidade Democrática, capaz
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

de potencializar a capacidade dos cidadãos, seja através do voto, seja através da


participação direta, na construção da vontade coletiva.
A construção de tal Institucionalidade Democrática não é tarefa simples. Por um
lado, ela deve lidar com, e tornar produtivas, as tensões inerentes à convivência de
mecanismos de Democracia Representativa e de Democracia Direta e, de outro, ser
capaz de, ao reconhecer que os cidadãos possuem recursos políticos desiguais, con-
tribuir para o fortalecimento político dos cidadãos com menos recursos. Portanto,
a Institucionalidade Democrática está intimamente articulada à Radicalização da
Democracia, entendida como a capacidade crescente dos cidadãos, através de múl-
tiplos mecanismos, de participar da construção da vontade coletiva.

Desigualdade/Pobreza/Exclusão. A Pobreza pode ser definida como a incapaci-


dade de um indivíduo ou de uma unidade familiar em manter um padrão de vida
condizente com o que uma sociedade estabelece, em um determinado momento e
contexto histórico, como minimamente digno. Portanto, a definição de alguém
como pobre e a própria mensuração da Pobreza são operações extremamente pro-
blemáticas. A utilização de níveis de renda e de linhas de Pobreza baseadas em
renda são alternativas bastante utilizadas mas reconhecidamente parciais, posto
que não levam em conta elementos importantes como o acesso a serviços públi-
cos. Já a Desigualdade se refere à maneira iníqua como a riqueza socialmente
produzida em uma determinada formação social é distribuída entre os membros
desta. Existe Desigualdade, portanto, quando uma parcela expressiva da riqueza
social é apropriada por parcelas relativamente reduzidas de tal sociedade, seja
através de renda, seja através de serviços públicos, cabendo às maiorias acesso a
parcelas reduzidas da riqueza social. Por fim, a Exclusão se refere à incapacidade
de indivíduos e/ou famílias de, por razões várias, exercer seus direitos de Cidada-
nia. Ainda que não de direito, mas de fato, o Brasil vive uma ordem social e
jurídica plural, com a conseqüência de que parcelas expressivas dos brasileiros
acabam por permanecer à margem do país legal, com seus direitos e obrigações
formalmente definidos. Tem-se, assim, uma sociedade partida entre cidadãos que
compartilham de tais direitos e obrigações e aqueles que deles não compartilham
e que sequer têm direito a ter direitos. O conceito de Exclusão, pois, não deve ser
confundido com o de Pobreza e o de Desigualdade, ainda que os excluídos sejam,
em sua maior parte, pobres.
No que se refere aos desafios colocados para a sociedade brasileira na perspec-
tiva do projeto MAPAS, a Radicalização da Democracia e a superação do quadro
de Desigualdade/Pobreza/Exclusão estão intimamente articulados. O quadro de
Desigualdade/Pobreza/Exclusão não é uma “lei da história do Brasil”, o que sig-
nifica dizer que ele foi construído ao longo da história brasileira por Atores Soci-
ais claramente identificáveis em suas diferentes conjunturas, e Radicalização da
Democracia no Brasil significa também, e talvez sobretudo, criar as condições
institucionais para que novos Atores Sociais se incorporem ao jogo político para,
dentro da Institucionalidade Democrática, contrapor-se e superar os Atores Soci-
ais cujos interesses estão justamente articulados à manutenção do quadro de De-
sigualdade/Pobreza/Exclusão. Nessa perspectiva, a Democracia só se completa se
for capaz de, simultaneamente, englobar crescentemente o conjunto da cidadania em
múltiplas dimensões do processo decisório e, ao fazê-lo, ensejar novas correlações de
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forças na sociedade brasileira, capazes de inverter o quadro de Desigualdade/Po-


breza/Exclusão vivido por grande parte dos brasileiros.

Esfera Privada. Cf. Esfera Pública.

Esfera Pública. Conjunto de instituições, estatais ou não, como a imprensa, através


das quais os diversos interesses e pontos de vista presentes na sociedade se fazem
ouvir. Nascida no momento mesmo da afirmação da hegemonia burguesa, a distin-
ção entre Esfera Privada e Esfera Pública remete, em sua origem, à separação entre
aquilo que diz respeito ao indivíduo e sua família, como a confissão religiosa, e o
que diz respeito ao Estado. Contemporaneamente, as instituições da Esfera Pública,
para além de demarcar a separação entre público e privado, fazem a ponte entre
ambos. Dito de outra forma, ao ensejar um espaço legítimo para a vocalização dos
interesses privados, colocando-os transparentemente uns diante dos outros, a Esfera
Pública contribui para que estes se tornem tema da Agenda Pública. No entanto, é
importante que se atente para o fato de que, em um país com tradição patrimonialista
como o Brasil, em que o público e o privado foram freqüentemente vistos como
indistintos, a ampliação da Esfera Pública requer mesmo que se evidenciem as dis-
tinções entre o reino dos interesses privados e o reino dos interesses tornados públi-
cos, justamente por terem assim sido construídos pela Esfera Pública. Neste sentido,
a ampliação da Esfera Pública guarda íntima relação com a Radicalização da De-
mocracia, pois permite a vocalização de um número sempre crescente de Atores
Sociais que até então não encontravam espaços para se fazer ouvir.

Espaços de Participação. Uma Democracia Participativa deve sempre estar atenta


à institucionalização de novos Espaços de Participação que aumentem a capaci-
dade de intervenção do conjunto da cidadania na construção da vontade coletiva.
Tais Espaços de Participação, que a rigor constituem uma ampliação da Esfera
Pública, podem englobar diferentes tipos de instituições, desde aquelas em que a
participação é voluntária, e portanto os participantes competem ou cooperam
para a consecução de seus fins a partir de suas próprias agendas, até aquelas em
que os participantes são escolhidos por um detentor de cargo eletivo, caso em que
o conjunto dos participantes e a própria agenda do espaço derivam de um man-
dato legitimamente conquistado no voto.

Estado. As teorias do Estado dividem-se em duas grandes correntes: as que o


percebem como expressão do bem comum, visão em que o Estado surge como
neutro, pairando sobre e administrando os conflitos do mundo privado, e as que
o percebem como agente de dominação de uma classe social sobre as demais.
Entre esses dois pólos, uma ampla gama de correntes busca matizar e complexificar
as relações entre o Estado e sociedade, evitando tanto a visão liberal da neutrali-
dade quanto a visão instrumentalista, da velha tradição marxista, da pura domi-
nação classista. O Estado surge assim, ele próprio, como arena de conflito
institucionalizado e é justamente por tal razão que a Radicalização da Democra-
cia, a criação de novos Espaços de Participação e a permanente criação de novos
direitos de Cidadania se justificam como estratégicos para a construção de uma
nova correlação de forças na sociedade brasileira.
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Florestania.

Institucionalidade Democrática. Cf. Democracia.

Movimentos Sociais. Movimentos coletivos que, inseridos em algum tipo de Con-


flito Social, constroem uma agenda de reivindicações e, a partir dela, buscam pau-
tar a Agenda Pública e participar da construção de Políticas Públicas. Os chamados
“novos” Movimentos Sociais surgiram no Brasil a partir do processo de
redemocratização dos anos 1970 e 1980 e caracterizam-se pelo fato de que constru-
íram suas agendas para além dos cortes tradicionais identificados às classes sociais.
De certa forma, ao apontarem para questões de gênero, etnicidade, moradia, orien-
tação sexual, meio ambiente, ou reivindicarem problemas específicos, como os
movimentos por atingidos por barragens, os Movimentos Sociais evidenciam que a
sociedade é muito mais complexa do que o corte clássico que a dividia entre traba-
lhadores e patrões. Conseqüentemente, tais Movimentos colocam na Agenda Pú-
blica uma série de questões relativamente novas, muitas vezes de difícil apreensão
por Atores Sociais identificados ao corte tradicional, como o movimento sindical.
Ainda assim, eles possuem um alto grau de potencialidade no que se refere à
Radicalização da Democracia, por freqüentemente lutarem pela construção de no-
vos direitos que, necessariamente, ampliam a própria definição de Cidadania.

Políticas Públicas. Conjunto de políticas sancionadas pelo Estado, voltadas para


a consecução de objetivos determinados. As Políticas Públicas podem ser tanto
resultado de iniciativas de agências estatais como de articulações entre estas e
setores da Sociedade Civil, resultado de consensos construídos na Esfera Pública,
e podem ser executadas tanto por instituições da Sociedade Civil em parceria com
agências estatais como exclusivamente por estas. Portanto, ainda que abertas à
participação da Sociedade Civil, sendo assim campo propício para a criação de
novos Espaços de Participação e da própria Radicalização da Democracia, as Po-
líticas Públicas possuem como característica fundamental a dimensão estatal.

Radicalização da Democracia. Cf. Democracia

Sociedade Civil. Conjunto de organismos – ONGs, Igrejas, Movimentos Sociais,


imprensa etc. – que têm por objetivo a construção e a transmissão de valores e
projetos de sociedade que, através da luta ideológica, buscam constituir-se como
hegemônicos em uma dada sociedade.

Florestania – O conceito de Florestania surge no Acre em início dos anos 1980,


a partir de lutas populares locais em defesa da exploração sem derrubada da
floresta pelo conjunto dos seus habitantes, indígenas, seringueiros, agricultores
e caboclos, que começam a praticar um modelo de desenvolvimento econômico
pautado pela preservação dos recursos naturais e pela associação do conheci-
mento tradicional das populações locais com a moderna tecnologia. Estas lutas
enxergam na floresta o espaço não só de sobrevivência econômica mas também
do exercício coletivo dos direitos sociais, políticos e ambientais. Com a chegada
ao governo estadual em 1998 de representantes dessas lutas, florestania passa a
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ser também a extensão, pela ação direta do Estado, dos direitos da cidadania
aos povos da floresta adaptada às condições naturais nas áreas de educação e
saúde. Exemplificando, a educação formal passa a se dar também em línguas
indígenas e o sistema de saúde incorpora o tratablho das parteiras da floresta.
Outros estados amazônicos, como o Amapá, também incorporaram a florestania
a suas políticas públicas. O desenvolvimento do conceito de florestania se insere
na tendência recente da adaptação do conceito de cidadania a regiões e culturas
específicas de determinados territórios, como se verifica no desenvolvimento do
conceito de favelania.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Artigos publicados na revista


Democracia Viva nº 23
Agosto de 2004
SUMÁRIO

Cidadania encurralada 03
Cândido Grzybowski

Reflexões preliminares sobre espaços públicos de


participação no governo Lula 11
Nelson Giordano Delgado
Flávio Limoncic

Mobilização versus autoritarismo na Bahia 21


Fátima Nascimento
Damien Hazard

Tensão entre governo e movimentos 23


Lucineide Barros

Vontade popular, miséria e política 25


Sérgio Baierle

Prós e contras dos conselhos 27


Mônica Schiavinatto

Participação que não chega às bases 29


Leda M. B. Castro

Acolhimento seletivo de propostas 31


Carlos Tautz
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CIDADANIA ENCURRALADA

Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase,
coordenador-geral do Projeto
Monitoramento Ativo da Participação
da Sociedade (Mapas)

Quanta expectativa está indo por água abaixo! Ou, talvez, com a sensação de
encurralamento, sentida por muitos e muitas de nós, nem conseguimos ver direito
o que se passa com o governo Lula. Estamos rodando desordenadamente, sem
aceitar a armadilha da macroorientação política. A vontade é investir contra,
bater para romper. Não é possível que tenhamos lutado contra todo um arcabouço
de políticas econômicas que nos levaram à “prática do liberalismo submisso” –
ou seja, as políticas de Fernando Henrique Cardoso (FHC) em contraposição à
sua própria teoria da dependência – em vão. Será que, como diz Francisco de
Oliveira, chegamos tarde, conquistando o poder político quando a própria polí-
tica já havia sido seqüestrada por forças e interesses que estão em outro lugar?
Uma coisa é certa: tudo é contingenciado pelo orçamento, pelos tais “recursos
disponíveis”. Mas nisso não entram as decisões do Banco Central, tanto na defi-
nição do superávit primário como em suas decisões de política monetária (juros,
por exemplo), sem dizer de onde virão os recursos para pagar banqueiros e
especuladores. Por que o essencial não é decidido no Congresso e só ficamos com
as conseqüências? Quem controla o Banco Central? Por que ele só presta contas e
faz acertos em esferas internacionais – no tal Fundo Monetário Internacional (FMI)
e na casa de seu irmão xifópago, o Banco Mundial? Até mesmo simplesmente se
nomeia quem representa o Brasil nessas instituições, sem passar pela sabatina do
Senado como qualquer embaixador. A autonomia do Banco Central é uma reali-
dade, minha gente! Só falta escancarar.
O jeito é pensar pontos de ruptura que apontem para frente e nos façam avançar.
Eles sempre existem. Senão, só nos restaria a rendição à tese de que a história aca-
bou. Nada como voltar ao ponto de partida. Precisamos ser coerentes, retomando
nossas análises sobre governos como expressão de correlação de forças, pacto de
forças diferentes e contraditórias em ação. Quando o governo Lula se formou e
tomou posse, em janeiro de 2003, sem dúvida uma nova correlação de forças se
constituiu na sociedade brasileira. Um novo tipo de luta política chegou ao centro
do poder político e se irradia sobre o conjunto. Não é o que esperávamos, mas é o
que temos. O problema é que nossas expectativas não nos permitiram ver o que
realmente estava acontecendo e, conseqüentemente, não analisamos bem o que fa-
zer e como agir para radicalizar a democracia no novo quadro. Definitivamente,
não estamos diante de um novo modo de fazer política, com um governo petista
trazendo ao centro do poder sua experiência participativa e renovadora da política.
Mas estamos diante de um novo governo, ao seu modo, diferente.
Já perdemos muito tempo esperando que o “nós lá” – na expressão do povão
que festejou a posse de Lula – fosse uma substancial mudança de políticas e,
sobretudo, do modo de formulá-las, dando lugar central à participação. Essa foi
uma das grandes desilusões; pior, encurralou nossos sonhos e a própria ação. Isso
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em relação a nós, naquele um terço que sempre votou em Lula. Menosprezamos


as outras pessoas que, somadas, foram fundamentais para a esmagadora vitória.
O lugar delas no poder desequilibrou as forças e, o que ainda torna tudo mais
difícil, abriu o flanco para “aderentes” de sempre. À medida que o bonde de
forças assim constituído começou a operar e mostrar as políticas práticas, o
assanhamento dos interesses e forças de sempre sobre o governo Lula deixou de
ter escrúpulos e passou a festejá-lo. Quando parecíamos avançar, superando o
retrocesso que domina a política brasileira desde sempre, acabamos nós mesmos
encurralados. Que sina!
Mantendo a perspectiva de radicalizar a democracia, precisamos analisar me-
lhor o quadro de forças, suas alianças e coalizões, para saber onde incidir a ação e
“resgatar” o governo Lula – ao menos fazê-lo mais amigável à participação da
cidadania e, assim, torná-lo timoneiro de um novo rumo para o Brasil. Continuar
dessa forma não dá. Também não se trata apenas de tomar a envergonhada atitu-
de de sindicalistas da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que batem pedin-
do desculpas. Aliás, este governo promoveu uma enorme transferência de quadros
sindicais, seus aliados, para os postos da estrutura do poder. Além do que isso
representa em termos de privação do movimento sindical de lideranças constituí-
das ao longo do tempo, acrescente-se o fato da reestruturação nas empresas e o
desemprego para se entender a relativa paralisia das centrais sindicais. Enfim, uma
força central da sociedade civil no sentido da radicalização da democracia não
vive no governo Lula, em sua expressão, o momento mais favorável.
Vejamos mais de perto o conjunto, a tal correlação de forças no governo Lula.
O que precisamos é tentar ver os grupos em disputa no centro do poder e sua
irradiação para as outras esferas políticas e a própria sociedade.
Não são as tendências internas do PT e suas disputas que explicam a comple-
xidade do bloco hegemônico petista. Digamos que o “interno” do PT dá vida e
colorido à correlação de forças, é uma parte constitutiva necessária, mas insufici-
ente. Temos que partir do poder, e não do partido. Temos que ver o poder como
Executivo, Legislativo e Judiciário, apesar de suas enormes diferenças em termos
legais e funcionais, bem como no modo como se constituem e operam.
Como hipótese de reflexão, avanço na idéia de que, hoje, a disputa de hegemonia
política no Brasil está entre petistas e tucanos, cada qual com seus aliados e aliadas,
que podem variar, mover-se ora para cá, ora para lá. Mas quem dá a direção são
petistas e tucanos. E tal disputa de hegemonia vem de longe. Antes foi disputa no
interior das forças de oposição que se forjaram contra a ditadura militar e, depois,
pela Constituição Cidadã. No processo que se seguiu, na década de 1990, do
neoliberalismo escancarado entre nós, os tucanos acabaram impondo a sua hegemonia.
Foi em oposição à hegemonia tucana que venceu Lula e o petismo. Ao menos, esse foi
o quadro que emergiu das eleições majoritárias e proporcionais de 2002.
Importa ter em mente que os blocos de forças políticas não são conjuntos
homogêneos. Pelo contrário, sua unidade é construída a partir de enormes contra-
dições internas e está em permanente movimento. Por isso, esses blocos não po-
dem ser separados uns dos outros, pois é no confronto histórico de interesses,
projetos e idéias, até de favores e agrados, que se constituem e reproduzem. Em
última análise, é do movimento mais profundo da própria sociedade que vão
emergindo e criando-se politicamente as forças. Os projetos hegemônicos e as
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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hegemonias são construções políticas que se fazem na luta democrática, buscando


ser expressão de anseios, desejos e projetos que nós, cidadãs e cidadãos, carrega-
mos. Fomos nós que trouxemos petistas e tucanos ao centro da disputa hegemônica.
Há bem pouco tempo, não era assim, e tudo indica que novos blocos hegemônicos
se formarão no futuro.
O que exatamente separa e diferencia os blocos de forças políticas comanda-
dos por petistas e por tucanos? Para analisar isso, proponho uma radiografia da
sociedade brasileira a partir do poder, configurando os grandes blocos, com as
suas próprias segmentações, do jeito que se apresentam na atualidade. É uma
espécie de matriz de leitura, sabendo que muitíssimas nuanças do jogo político
ficam de fora. Considero quatro blocos fundamentais, explicitados a seguir.

Desenvolvimentistas
São setores que defendem um papel ativo e indutor do Estado sobre a economia
no sentido de seu crescimento. Sua base histórica tem sido as grandes corporações
profissionais – engenheiros(as), administradores(as), economistas, militares – e as
empresas estatais, com seus corpos funcionais bem mais qualificados e organiza-
dos que a média das empresas brasileiras. Apesar das privatizações ocorridas e do
desmantelamento provocado, ainda persistem empresas estatais importantes, e as
corporações têm influência, especialmente pelos fundos de pensão, hoje grandes
investidores institucionais. No interior desses estamentos, prepondera hoje uma
perspectiva democrática institucional diferente do autoritarismo do período da
ditadura. A grande novidade nesse bloco é a influência crescente do novo grupo
sindical, dominantemente cutista e petista, retratando as mudanças ocorridas na
sociedade e no próprio movimento sindical. Os sindicatos nasceram em oposição
à estrutura e à prática empresarial surgida da grande expansão capitalista do cha-
mado período desenvolvimentista, predominantemente autoritário. Deram ori-
gem a um tardio, mas pujante, movimento sindical, força essencial na
redemocratização do Brasil desde o fim da década de 1970. No processo de sua
constituição, com a formação da CUT e das outras centrais, os sindicatos acaba-
ram moldando novas práticas empresariais e uma nova cultura de trabalho. O PT
deve ao movimento sindical as suas principais lideranças, com destaque para o
próprio Lula, hoje presidente do Brasil. Entre desenvolvimentistas, sempre houve
setores empresariais privados, muito dependentes do bom desempenho da econo-
mia nacional e sem grandes vôos próprios.

Globalistas
Chamo assim os setores que consideram as forças de mercado o motor da econo-
mia, cabendo ao Estado – e, portanto, ao poder político – criar o ambiente favo-
rável às empresas, ao capital financeiro e ao mercado. Nesse bloco, incluem-se
grandes empresas de capital estrangeiro, empresas nacionais com estratégia global
(dado o seu porte) – com destaque para grandes empresários beneficiados com as
privatizações nas últimas décadas –, exportadores e agronegócio, banqueiros e
investidores em papéis da dívida pública. Os globalistas são os grandes propulso-
res do neoliberalismo como visão e da globalização econômico-financeira domi-
nante como modelo a ser seguido. Cabe destacar o segmento empresarial mais
diretamente engajado na produção industrial. É um grupo moderno e
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modernizador, que vê no desenvolvimento do Brasil a sua própria consolidação


como grupo de elite. Por isso, ao seu modo – com visão essencialmente capitalista
e globalista –, são desenvolvimentistas, base de sua oposição e, ao mesmo tempo,
intrínseca aliança com o novo pólo sindical desenvolvimentista.

Ativistas populares
Esse é o bloco que sofreu mais transformações com a emergência na política dos
segmentos populares, urbanos e rurais. Sua origem, porém, é remota. O populismo
trabalhista foi a sua maior expressão no passado. Durante a ditadura militar e na
luta pela redemocratização, foram se constituindo novos sujeitos populares por
meio de movimentos e organizações. Esse é um dos pilares da democratização do
Brasil. Sua irrupção na política, mesmo parcialmente (muitos grupos continuam
politicamente ausentes e, portanto, invisíveis), a partir da luta por direitos e con-
tra a exclusão, faz a diferença. Por meio de seus movimentos e organizações, vêm
criando uma cultura democrática nova, verdadeiras trincheiras de defesa social e
uma grande capacidade de incidência nos processos políticos. Um número grande
de ativistas aderiu ativamente ao PT. A presença no partido forjou uma funda-
mental aliança com novos setores sindicais mais radicais, cuja liderança e legitimi-
dade passaram a depender desse alargamento de bases sociais e espaços de atuação
política. Por isso, faz parte do bloco de ativistas populares todo um segmento
sindical identificado com a luta dos setores populares, urbanos e rurais, que
irrompem na política nos últimos 20 a 30 anos.
Em termos políticos, o impacto do bloco de ativistas populares se fez sentir na
criação de uma lógica em que o voto e a representação se submetem e/ou
complementam por formas mais diretas de participação e pela criação de novos
canais permanente de negociação e concertação. Centrando sua força na questão da
exclusão/inclusão e no tema da desigualdade de recursos e poder, bem como da
destruição ambiental, esse bloco tem levantado a bandeira da democracia radical
na luta política brasileira das últimas décadas. Deve-se a esse bloco o fato de que
questões como desigualdade de gênero, desigualdade étnico-racial, direito à diversi-
dade, direito à cidade, justiça ambiental, participação na formulação e gestão de
políticas públicas e tantas outras mais façam parte, hoje, de nossa agenda política.

Conservadores
É um bloco que foi dominante na história política brasileira. O clientelismo, o
favor e a privatização da coisa pública são marcas maiores desse bloco impressas
em nossa vida política, ainda fortes hoje. Com uma atitude dominantemente
autoritária, esse bloco tem sabido se manter na política, mesmo de forma subal-
terna, mas influindo de modo qualitativo na composição de outros blocos de
forças políticas na democracia brasileira. A clara origem latifundiária e oligárquica
dos segmentos integrantes marca profundamente sua atuação. Mas ele tem pene-
tração em tradicionais setores urbanos mais afeitos a privilégios do que direitos.
Sua penetração nos segmentos intermediários mais baixos é maior do que se ima-
gina, influindo decididamente nos processos eleitorais, mesmo das grandes metró-
poles. Destaca-se a sua capacidade de representação política e controle do aparato
estatal, no Parlamento, no Executivo e no Judiciário. Quanto mais distante esti-
ver do poder federal, maior é essa representação. Mas mesmo no plano central, em
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Brasília, nenhuma pessoa que governe pode desprezar o poder de fogo do grupo
ruralista, uma das expressões mais eficazes desse bloco, passando por cima da
própria estrutura partidária.
A esses quatro blocos de forças políticas principais é necessário agregar outros.
Não são exatamente blocos, mas têm atuação autônoma, até por vezes imprevisível,
mesmo sem poder de disputa de hegemonia. São, por isso, grupos subalternos dispu-
tados pelos outros e suas alianças. O problema é que, dependendo das situações, seu
papel acaba sendo muito importante. Chamo a atenção, em particular, para o grupo
corporativista. Seus interesses mais específicos estão em primeiro plano, acima dos
interesses da coletividade, independentemente das conjunturas. No período recente,
cabe destacar o modo como se comportou o Supremo Tribunal Federal e o Judiciário
em geral – e também o importante segmento composto por funcionários(as)
públicos(as). Não é um grupo necessariamente conservador e nem democrata pro-
gressista. Militares, evangélicos(as) e outros segmentos incluem-se nesse grupo, alguns
formados em caráter circunstancial, em torno de disputas e questões ad hoc. O gran-
de número de oportunistas da política brasileira deve ser incluído nesse grupo. Sua
constante mutação partidária e de posições é reveladora de suas motivações maiores.
O que importa nessa análise do poder sendo forjado por blocos de forças é que
eles mesmos são composições complexas e variáveis no tempo. Os partidos
hegemônicos, como blocos políticos, são composições derivadas, onde se combi-
nam forças originárias de diferentes blocos e que exercem poder de atração sobre
o conjunto de forças de cada bloco. Dissidências existem, maiores ou menores,
dependendo da conjuntura de luta política. Cada partido tem sempre suas dissi-
dências. Algumas prosperam e podem virar novos partidos no futuro. Isso não
impede que, em dado momento, sejam simplesmente dissidências, pouco ou nada
contando na disputa de hegemonia.
Agora, é possível voltar à questão da disputa entre petistas e tucanos como o nó
atual da política brasileira. Para isso, precisamos analisar as composições de blocos
(ou de parte deles) e a formação do bloco hegemônico, da direção e da legitimidade
política que constrói. Precisamos distinguir as forças de base de cada partido
hegemônico e o modo como constitui sua hegemonia, atraindo e dando direção a
outras forças, suas aliadas. Vejamos mais de perto o caso de tucanos e petistas.

Tucanato
Os tucanos são uma combinação de setores democrático-liberais do bloco
desenvolvimentista, especialmente profissionais e intelectuais, com setores globalistas
de vários tipos. O interessante é que no processo de lutas políticas, quando tucanos
acabaram criando condições de se apresentarem como força hegemônica, globalistas
cresceram em importância e acabaram dando o rumo. Esse fato explica por que, no
Brasil, com os tucanos do PSDB, forja-se uma força impulsora das políticas de
globalização neoliberal, como no resto da América Latina, mas com feições mais
democráticas, dada essa curiosa combinação. Um outro fundamental aspecto a des-
tacar é que a conquista de hegemonia tucana no Brasil – os oito anos de FHC – se
faz em aliança com o bloco conservador e, por meio dele, arrastou oportunistas de
todos os tipos. Isso não foi gratuito. O namoro com Collor, desfeito em tempo por
Covas, jogou os tucanos em direção ao PFL e ao PMDB e, com eles, a oito anos de
domínio, nos limites impostos por tal aliança.
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Petismo
O PT se constitui tendo no centro a aliança entre setores desenvolvimentistas
democráticos, especialmente o novo segmento sindical-desenvolvimentista, e seus
fundos de pensão, com os de ativistas populares. A hegemonia no interior do PT
ficou com sindicalistas, mas a ampla base de movimentos sociais e populares ade-
riu em peso e imprimiu um claro caráter popular e democrático ao partido. Para
a conquista do poder hegemônico na sociedade brasileira, o PT se aliou a setores
empresariais globalistas e arrastou parte significativa dos outros segmentos
desenvolvimentistas, até aí reticentes diante do petismo. Novamente, tal aliança
não foi gratuita. Diferentemente de tucanos, que têm globalistas como parte de
seu DNA, petistas fazem uma espécie de engenharia genética para se aliar a essas
forças. É a tal Carta ao Povo Brasileiro. Para a nossa infelicidade, parece que o
transgênico político vingou e vem transformando o petismo. Mas há diferenças
na hegemonia de petistas e de tucanos, tanto pela origem como, sobretudo, pelo
lugar do bloco conservador. O certo é que o petismo no poder não é a hegemonia
do bloco de ativistas populares. Mas estão lá, e isso é intrigante. Como é intrigan-
te também o poder de barganha do enorme grupo de corporativistas sobre o go-
verno Lula, especialmente no Congresso.
Tendo tal hipótese um mínimo de veracidade, o passo seguinte para entender
os impasses da cidadania – a cidadania encurralada, da qual parto – é analisar os
momentos em que a hegemonia petista sobre o poder político se desdobra. Claro
que a história fica com mais sabor pondo nome e sobrenome aos principais atores
desse enredo. Afinal, globalistas no governo Lula são Meireles, Furlan e Rodrigues,
todos até ontem aderentes do tucanato. Palocci, entre eles, se presta como garan-
tia petista da aliança feita. Desenvolvimentistas de primeira linha são Dirceu,
Mercadante, Lessa, Mantega, Dilma, Dutra (Petrobras), Luís Paulo e professor
Luisinho (no Congresso) e tantas outras pessoas em postos-chave do aparato esta-
tal. Na linha de frente de ativistas populares, temos Dulci, Olívio Dutra, Marina,
Rossetto, a envergonhada esquerda petista no Congresso. Uma importante figura
na construção da hegemonia petista é Tarso Genro, pelo seu papel de teórico
político da própria aliança, em particular de desenvolvimentistas com ativistas
populares, o núcleo duro do PT. De toda forma, é visível a simplificação contida
nesse esforço, ao modo de meu guru Gramsci, de dar nome aos personagens de
nosso enredo político atual. A realidade é muito mais complexa, sem dúvida. No
entanto, ela pode ser entendida a partir de construções que resgatam o sabor
radicalmente humano envolvido nessa trama, nossa sina como seres humanos
vivendo em sociedades diversas e contraditórias. O incrível de tudo isso é a possi-
bilidade de ver os blocos do centro do poder se irradiando sobre a sociedade
brasileira, e para ver isso basta ler os jornais. Se juntarmos o bloco de oposição e
as pessoas patéticas que o comandam, temos a trama política delimitada.
Os momentos aqui definidos devem considerar a fundo – e à maneira de uma
sintonia fina – a evolução das contradições e lutas da trama montada. Num pri-
meiro esboço, podemos identificar o momento da “celebração do poder”, quan-
do ainda parecia que existia união entre nós e várias iniciativas de participação
foram apontadas, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), as conferên-
cias. Logo veio o “rolo compressor” da votação das emendas e da manutenção do
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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arrocho fiscal, com juros estratosféricos. O sopro da participação pareceu adqui-


rir nova vida no momento da “consulta forte” do Plano Plurianual (PPA). Mas
teve sabor de frustração, no fim das contas. E assim fomos levando o ano. E a
cidadania militante esperando, esperando, e as dissidências se avolumando. O
continuísmo da política macroeconômica funcionou como fator paralisante no
primeiro ano deste governo. O resultado econômico foi pífio, mas o governo
conseguiu retomar o controle de uma economia que parecia desgovernada, como
a da Argentina na recente crise.
Para compensar um bocado, o governo Lula tomou novas iniciativas no front
internacional. Nesse ponto, o petismo melhor se diferencia do tucanato, apesar de
ambos buscarem o mesmo resultado: uma maior presença do Brasil nas transações
econômico-financeiras e comerciais mundiais e um maior reconhecimento políti-
co, sem mudar muito as coisas. Os tucanos o fizeram buscando mostrar serviço
segundo a cartilha do Consenso de Washington e, assim, estabelecer uma parceria
com o G-8. Os petistas apostam na liderança dos países que estão de fora. Ao
menos é esse o sentido da celebrada vitória petista em Cancún, em setembro de
2003, liderando o G-20. A formação do Ibsa – formado pela Índia, Brasil e África
do Sul – vai na mesma direção. Devemos destacar a nova e mais arrojada política
de reconstrução do Mercosul e de sua ampliação para o conjunto da América do
Sul, em contraposição à Área de Livre Comércio das Américas (Alca). É uma
agenda renovada e renovadora, mesmo se duplamente perigosa, pois tem como
retaguarda interna um modelo de desenvolvimento marcadamente exportador e,
também, nos leva a uma difícil negociação entre mercados e direitos humanos nas
relações internacionais.
O ano de 2004 começou com a reforma ministerial, nada mais do que uma
mexidinha para deixar tudo no mesmo lugar, acomodando, porém, aliados(as)
novos(as) e oportunistas. Aí veio o momento Waldomiro Diniz, de perplexidade,
paralisando o governo Lula e reduzindo a sua capacidade de iniciativa. Entramos,
felizmente, no “abril vermelho”, protagonizado pelo Movimento dos Trabalha-
dores Rurais Sem Terra (MST), que ao menos nos acordou e nos apontou o cami-
nho. Desgastes de cá e de lá, uma base parlamentar meio vaporosa, uma agenda
nada dignificante de votações, como a história dos bingos e, sobretudo, o simbo-
lismo envolvido na manutenção de um salário mínimo lá embaixo, o pior parece
ter passado para o governo Lula. Entramos no período eleitoral, quando nada
ainda está definido e tudo é possível.
Cabe um pequeno comentário sobre a tal disputa entre desenvolvimentistas e
globalistas no governo Lula. Sem dúvida, esses blocos não são iguais, as disputas
são reais. O problema é que, dada a forma como foi conquistada a hegemonia,
um bloco precisa do outro, ou melhor, um bloco não pode estar no poder sem o
outro. Podem inverter-se posições, mas não se pode mudar a essência da hegemonia,
da aliança original na conquista do poder, sem a qual o risco é acabar o próprio
governo. Por isso, a questão não é saber se o bloco desenvolvimentista pode ga-
nhar a parada ou se o globalista manterá seu papel neste governo. A questão é o
que pode resultar dessa aliança em termos de remodelagem do desenvolvimento
brasileiro. Bastou a economia voltar a apresentar sinais mais positivos para que
grande parte das diferenças acabe encoberta e o governo retome a capacidade de
iniciativa, como estamos assistindo hoje.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

O mais intrigante é o lugar de ativistas populares, que não têm chance, mas
não podem deixar o barco, pois, assim, desmorona o próprio PT, base da aliança
para conquista de hegemonia. O bloco de ativistas populares depende muito da
própria sociedade, já que é por intermédio dele que os ecos da participação e da
pressão das ruas podem influir nos rumos do governo. Se não estamos diante de
um modo participativo radicalmente novo de fazer política, estamos diante de
um governo diferente que, no fim, tem na participação das ruas o seu flanco
aberto e sensível. Talvez aí esteja a oportunidade de fazer avançar o governo Lula
em resposta ao clamor de amplos setores da sociedade brasileira, que até lhe deu a
vitória eleitoral e ainda o apóia, por mudança.
De uma perspectiva de democracia radical, que ponha a cidadania no centro,
todos os direitos humanos para todas e todos no país, buscando, de fato, a inclu-
são e a igualdade, a coisa está difícil. Impossível? Nem tanto. Mas o que temos
não é o que almejamos. Pior, a participação cidadã não é o motor deste governo.
Espaços de participação existem e se multiplicaram muito. A qualidade dela, de
seu impacto, é que não mudou tanto. O governo Lula ouve, mas parece não
escutar. Muitos movimentos, grupos e organizações da sociedade civil acredita-
ram nas possibilidades abertas por antigos e novos canais de participação,
institucionais ou não. Mas pouco ou nada temos conseguido até aqui. Daí a
sensação do encurralamento, de termos caído numa armadilha que nos tirou po-
der de iniciativa cidadã. Para sair do curral, o negócio é se organizar e voltar às
ruas. Armadilha, não!
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REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE ESPAÇOS PÚBLICOS DE PARTICIPAÇÃO NO GOVERNO LULA

Nelson Giordano Delgado


Coordenador técnico do Projeto Mapas
e consultor do Ibase, professor do Programa
de Pós-graduação em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ)

Flávio Limoncic
Pesquisador do Projeto Mapas e
consultor do Ibase, professor do Instituto
de Humanidades da Universidade
Candido Mendes (Ucam)

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva representou um dos momentos mais impor-
tantes da vida republicana brasileira. Pela primeira vez, forças políticas originári-
as do sindicalismo e dos movimentos sociais surgidos nas décadas de 1970 e 1980,
ainda que em aliança com setores empresariais, chegaram ao governo federal.
Nesse sentido, essa chegada não só coroou um longo processo de incorporação de
sujeitos políticos historicamente marginalizados das arenas decisórias, como tam-
bém sinalizou um aprofundamento desse processo, potencialmente radicalizando
a democracia brasileira.
Ao chegar ao governo federal, o Partido dos Trabalhadores (PT) reafirmou o
compromisso, assumido em suas muitas administrações municipais e estaduais,
de enfatizar a participação da sociedade civil na construção das políticas públicas,
recolocando o desafio de tornar produtivas as tensões entre as instituições da
democracia representativa e da democracia participativa. A Constituição de 1988
já havia criado uma série de instituições que estimulavam a participação da soci-
edade na formulação e na gestão das políticas públicas, ainda que nem todas
tenham sido plenamente desenvolvidas.
O governo Lula propôs-se a radicalizar tal participação. Para isso, criou o
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, trouxe de volta o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), estabeleceu as consul-
tas à sociedade civil no debate do Plano Plurianual (PPA) e propôs a realização de
conferências nacionais, como as relativas às cidades, ao meio ambiente e aos direi-
tos humanos. Ao que parece, fez isso tudo com a visão de que os novos espaços de
participação contribuem para o esforço coletivo de tornar mais democrático o
padrão das políticas públicas no Brasil – confrontando as concepções elitistas de
democracia, desafiando as concepções autoritárias do primado dos “técnicos” e
da “técnica” no processo decisório estatal, questionando o monopólio do Estado
sobre a definição do que é público e do que deve constituir a agenda pública e
contribuindo para a redução do clientelismo e para uma maior transparência nas
ações governamentais (ver Dagnino, 2002, p. 162). O governo Lula sugeria per-
ceber que esses espaços eram instituições adequadas à construção de novos con-
sensos sociais capazes de alavancar uma nova hegemonia na sociedade brasileira,
básica para a reversão do quadro de distribuição iníqua da renda, da riqueza e do
poder que marca a história do Brasil.
Com o objetivo de acompanhar os espaços de participação da sociedade civil
na construção de políticas públicas do governo Lula, o Ibase propôs a criação de
uma rede de entidades da sociedade civil, de diferentes unidades da Federação, em
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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torno do projeto Mapeamento Ativo da Participação da Sociedade (Projeto Ma-


pas).1 Com esse projeto, pretende-se monitorar e avaliar tais espaços de participa-
ção, apontar seus entraves, erros estratégicos e inconsistências, assim como suas
virtudes, acertos e potencialidades. Conseqüentemente, o Projeto Mapas pretende
constituir-se em ator político, cujo objetivo é contribuir para a radicalização da
democracia brasileira, a ampliação da esfera pública e a democratização do Esta-
do e, também, para a construção de uma nova hegemonia política no país, base-
ada em valores democráticos e socialmente includentes.
Faremos uma primeira análise, a partir de informações colhidas pela equipe do
Projeto Mapas, de duas experiências participativas criadas ou estimuladas pelo
governo Lula: os Conselhos de Segurança Alimentar (Conseas) estaduais e o pro-
cesso de participação da sociedade civil na discussão do PPA 2004–2007.

Alimentar a participação
O Consea estadual é um espaço público de participação de representantes do
estado e da sociedade civil na formulação e no controle social da implementação
da política pública estadual de segurança alimentar e nutricional. A partir das
informações coletadas pelo Projeto Mapas, seguem algumas observações que po-
dem contribuir para a discussão a respeito das potencialidades e problemas en-
frentados pelo conselho.2
A iniciativa do governo Lula de recriar o Consea nacional e incentivar a cria-
ção de Conseas estaduais – ou o fortalecimento dos que já existiam – foi impor-
tante pelo alargamento do espaço público, tanto local como nacional, da emer-
gência de novos sujeitos políticos e, portanto, da construção de uma cultura polí-
tica democrática no país. O fato de a iniciativa de criação do Consea ter partido
do governo federal foi um fator considerável para a sua viabilização, já que, num
país como o Brasil, o governo federal continua relativamente muito forte em
relação aos governos estaduais.
Ademais, a vitória de Lula para a Presidência alimentou o entusiasmo das
organizações da sociedade civil quanto à importância dos espaços públicos de
participação, levando-as não só a pressionar o governo para criação desses espa-
ços, mas também a projetar expectativas de operacionalização e de funcionamen-
to deles como campos para a radicalização da democracia. Assim, é possível suge-
rir que a iniciativa de criação do Consea, no início do governo Lula, e o apoio e a
mobilização local das organizações da sociedade civil foram, de modo geral, fun-
damentais para a viabilização dos Conseas. Em estados onde o governo foi ou é,
de alguma forma, hostil à sua criação/implementação e onde não há mobilização
importante da sociedade civil em torno dela, o Consea estadual ainda não foi
formado – por exemplo, em Goiás.
Os Conseas analisados pelo Projeto Mapas evidenciam – reafirmando resulta-
dos obtidos em outras investigações – que são polarizados entre representantes do
estado e de organizações da sociedade civil. Assim, tais iniciativas, que apostam na

1 As entidades que formam a rede do Projeto Mapas são: Cidades, Pólis/Fórum Nacional de Participação Popular,
Cedefes, Ifas, Fase-MT, Fase-PA, Cese, Cenap, Cepac, IPDA/GTA.
2 Informações coletadas nos estados de Minas Gerais, Bahia, Tocantins e Mato Grosso do Sul, no primeiro semestre de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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possibilidade de atuação conjunta de atores dessas duas esferas da sociedade, pro-


duzem relações tensas e atravessadas pelo conflito. Em outras palavras, todos os
espaços públicos de participação são lugares de explicitação de conflitos, que va-
riam de natureza e intensidade. Para que esses espaços não fiquem imobilizados
ou sejam destruídos, a resolução dos conflitos deve estar baseada na “argumenta-
ção, a negociação, as alianças e a produção de consensos possíveis como seus
procedimentos fundamentais” (Dagnino, 2002, p. 144 e 150).
Como hipótese, pode-se sugerir que os conflitos entre representantes do estado
e de organizações da sociedade civil expressam duas concepções distintas, embora
não incompatíveis, acerca da participação. Uma concepção (implícita em gestores
governamentais) entende a participação como um modelo de gestão da política
pública, e a outra (implícita em representantes da sociedade civil) compreende-a
como processo de democratização da política pública. Isso não significa que gestores
não se interessem pela democratização dos processos, nem que representantes de
organizações da sociedade civil considerem irrelevante a gestão da política. Signi-
fica, sim, que as nuanças possíveis – quaisquer que sejam – não podem obscurecer
o fato de que as posições ocupadas nos espaços públicos pelos dois tipos de atores
tendem a localizá-los prioritariamente no lado da gestão ou no lado da democra-
tização das políticas. Como sabemos por experiência, representantes de organiza-
ções da sociedade civil, quando ocupam a posição de gestores governamentais,
tendem, de modo geral, a deslocar a sua ênfase da democratização para a gestão.
Essa é uma das razões pela qual a questão da “técnica” e de “técnicos” é um
componente tão importante nos conflitos que se manifestam nos espaços de for-
mulação e de controle social sobre a política pública. Além disso, essa questão
está ligada precisamente à luta pela repartição do poder, entre atores da sociedade
civil. Por um lado, o reconhecimento da legitimidade da politização da “técnica”
é uma forma pela qual os atores da sociedade civil reivindicam a partilha desse
poder. Por outro, a constante reafirmação da indispensabilidade da “técnica” e de
“técnicos” é um argumento poderoso da burocracia estatal para reter a maior
parcela possível desse poder. Essa é uma questão central da relação Estado/socie-
dade civil, continuamente reposta nos espaços públicos de participação. O lado
para o qual balança o pêndulo depende da força política dos diferentes atores, em
conjunturas diversas, e o resultado é quase sempre provisório. Isso não deixa de
ser uma conclusão talvez demasiado otimista, pois em países de cultura política
autoritária, como o Brasil, é provavelmente mais realista supor que o pêndulo
tenha uma atração fatal pelo lado dos atores estatais.3
As tensões existentes entre esses dois tipos fundamentais de atores sociais ma-
nifestam-se de diversas formas nos Conseas estaduais:

3 Isso não deve impedir que se considerem os atores estatais como um conjunto bastante heterogêneo, especialmente em
sua posição diante da questão dos espaços públicos de participação e de controle social das políticas públicas. Como
conseqüência, a luta pela radicalização da democracia deve estar atenta aos conflitos existentes, real ou potencialmente,
na burocracia estatal e na possibilidade de realização de alianças políticas com segmentos específicos dessa burocracia.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

:.: na distribuição do número de membros entre representantes do estado e de


organizações da sociedade civil – em Mato Grosso do Sul, o Consea era cons-
tituído, em 1999, por dois terços de membros da sociedade civil e um terço do
governo estadual. Em 2002, a representação tornou-se paritária, e o número
total de conselheiros(as) caiu de 27 para 14, de modo que a representação da
sociedade civil foi diminuída em torno de 60%, e a do governo, em cerca de
20%. Em Tocantins, o Consea possui 13 membros, 62% dos quais são repre-
sentantes do estado, e 38%, de organizações da sociedade civil. Na Bahia e em
Minas Gerais, o Consea tem, respectivamente, 21 e 41 membros, dos quais
dois terços são de representantes da sociedade civil e um terço do governo. Em
todos esses estados, houve ou há uma disputa permanente, entre os dois seg-
mentos, no que se refere à composição do Consea. Na Bahia e em Minas Ge-
rais, a grande representatividade obtida pelas organizações da sociedade civil
deve-se basicamente à sua mobilização e pressão, assim como ao papel de lide-
ranças importantes, como dom Mauro Morelli, em Minas;
:.: na falta de interesse ou esvaziamento da representação estatal nos Conseas
estaduais – de modo geral, os governos estaduais não manifestam interesse real
no funcionamento autônomo do Consea. Embora seja considerado positivo
que o governo tenha aberto canais de participação, a forma como isso tem
sido feito é avaliada por lideranças de organizações da sociedade civil como
bastante conservadora: visa basicamente à legitimação de políticas ou de ações
do próprio governo. “Não se discute conteúdo, nem forma de fazer política.
Não existe um processo novo de discussão para a elaboração de políticas. Ela
vem do governo e deve ser implementada com o aval do Consea estadual”, disse,
em entrevista, o presidente do Consea da Bahia. Em muitos casos, há manipula-
ção do Consea pelos governos estaduais: “Acaba sendo um conselho para ratifi-
car decisões que já foram tomadas”, esclarece o presidente do Consea de Mato
Grosso do Sul. “Tudo é feito em cima da hora, a sociedade não tem voz nem vez
no Consea”. Já um conselheiro da sociedade civil em Tocantins, quando foi
entrevistado, declarou: “O dinheiro será investido quando, onde e na hora que
o governo quiser”; “Há um processo muito forte de cooptação das lideranças, o
que desestrutura as organizações da sociedade civil representadas”.
Mesmo no caso de Minas Gerais – que é o exemplo de Consea estadual mais
bem estruturado do país e no qual a força da representação da sociedade civil
é bastante reconhecida – houve um esvaziamento da representação governa-
mental com a Lei Delegada 95 de 2003, a qual estabelece que representantes
do governo não seriam mais secretários(as) de Estado, mas técnicos(as) de se-
gundo ou terceiro escalões indicados(as) pelas secretarias. Com isso, a visibili-
dade política do Consea, especialmente na mídia, foi reduzida, bem como a da
agenda temática da segurança alimentar e nutricional no estado. Ademais, essa
situação “acabou dando ao Consea MG mais o caráter de uma articulação da
sociedade civil do que propriamente um órgão autônomo de parceria governo/
sociedade”, conforme observa o relatório do Consea mineiro;
:.: na relação entre governo federal, governo estadual e Consea, o lançamento e a
implementação do Programa Fome Zero pelo governo federal representaram
um estímulo – tanto da perspectiva dos governos como das organizações da
sociedade civil – para a criação dos Conseas estaduais, pois muitas das atividades
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

financiadas pelo programa nos estados têm de ser aprovadas pelo Consea. Ao
mesmo tempo, no entanto, a forma como o Fome Zero foi implementado
parece ter criado também bastante confusão na relação entre o próprio gover-
no federal, o governo estadual e o Consea. No Mato Grosso do Sul, a entrevis-
ta com o presidente do Consea revela que “há pouca relação entre as ações do
Fome Zero nacional e o programa do governo estadual. Não há ações integra-
das”. Além disso, o conselho estadual “não intermediou a criação dos Conseas
municipais, que foi feita por decreto nacional. O Consea ficou alheio ao pro-
cesso, não foi consultado nem participou”. Em Tocantins, entrevistas com
lideranças da sociedade civil sugerem que, não obstante existam mais possibi-
lidades para a organização popular e mais recursos para a mobilização social,
“há uma manipulação do conselho pelo governo do estado, tentando condu-
zi-lo para ações emergenciais (arrecadação de alimentos, cartão alimentação).
A mídia reduz o combate à fome ao cartão alimentação e à cesta básica”. E
também acrescentaram: “Se o conselho debatesse as causas da fome, iria apare-
cer uma sementinha para a discussão sobre reforma agrária, reforma urbana”.

Na Bahia, não obstante a participação ativa da articulação Comer (Comissão


de Mobilização do Fome Zero) na arregimentação de organizações da sociedade
civil para a criação do Consea, a agenda das reuniões do conselho foi pautada, em
2003, basicamente pelo governo federal, com exceção da preparação da conferên-
cia estadual de segurança alimentar e nutricional. O governo federal interage com
o governo estadual e, por meio da Secretaria Estadual de Combate à Miséria e à
Pobreza (Secomp), solicita a aprovação do Consea para programas estaduais liga-
dos ao Fome Zero. O governo estadual, para receber os recursos federais, pressio-
na o Consea para que discuta e elabore os pareceres rapidamente. Esse parecer é
encaminhado, então, à Secomp, que o dirige ao órgão federal correspondente. Se
o Consea não aprova o projeto, cria-se um impasse, e o programa não sai. Se o
Consea aprova os projetos, é o governo estadual que decide quais programas se-
rão implementados. É interessante notar que não existe diálogo direto entre o
governo federal e o Consea.
“O governo federal dialoga com o governo estadual e argumenta que quem
deve dialogar com o Consea estadual é o Consea nacional”. Por fim, em Minas
Gerais, a prioridade definida pelo Consea, em 2003, de construir, de forma
participativa, o Segundo Plano de Segurança Alimentar do estado (Dignidade e
Vida II) foi atropelada, no início do segundo semestre, pelo decreto do governo
estadual estabelecendo 29 programas estruturantes do governo, entre os quais o
Minas Sem Fome, dependente de recursos federais do Fome Zero, gerenciado pela
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais
(Emater) e elaborado sem qualquer consulta ao Consea.
Essa disputa política e de concepção de segurança alimentar entre o plano do
Consea e a proposta do Minas Sem Fome só foi solucionada com a intervenção
direta de dom Mauro Morelli, depois de sua recuperação do acidente que sofreu.
O Consea conseguiu, então, incluir, como eixos de estruturação do Minas Sem
Fome, os dois principais programas de iniciativa e de acompanhamento do Consea:
o Programa Mutirão pela Segurança Alimentar e Nutricional (Prosan) em Mi-
nas Gerais, que é considerado a menina-dos-olhos de militantes mineiros(as) do
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

movimento pela Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), e o Programa de Se-


gurança Alimentar nos Assentamentos (PSA), mantendo-se a forma descentraliza-
da de gerenciamento desses programas, executados pelas Cáritas regionais, e não
pela Emater, que é a executora e gerenciadora do Minas Sem Fome.
Na pesquisa que coordenou em 1999 e 2000 sobre os espaços públicos de
participação no Brasil,4 Dagnino afirma que o conflito entre representantes do
Estado e da sociedade civil nos espaços públicos de políticas participativas sugere
“uma hipótese explicativa que vincula essa tensão à maior ou menor aproxima-
ção, similaridade, coincidência, entre os diferentes projetos políticos que subjazem
às relações entre Estado e sociedade civil. Em outras palavras, o conflito e a ten-
são serão maiores ou menores dependendo do quanto compartilham – e com que
centralidade o fazem – as partes envolvidas” (Dagnino, 2002, p. 144).
Segundo tal hipótese, quanto maior a convergência dos projetos políticos de
representantes do Estado e de representantes de organizações da sociedade civil,
menores os conflitos entre eles ou, pelo menos, maior será a disposição e a possi-
bilidade de os atores envolvidos encontrarem mecanismos ou formas de resolvê-
los, pela argumentação, construção de alianças e negociação. Por outro lado, quanto
menor for essa convergência, maiores serão as possibilidades de acirramento dos
conflitos e tensões entre os dois tipos de atores, e maior será a probabilidade de
que o espaço público seja inviabilizado como um locus institucional participativo
para formulação, implementação e controle social das políticas públicas, que bus-
cam atender aos requisitos mínimos necessários tanto à gestão como à democrati-
zação dessas políticas.
Que observações podem ser sugeridas quando tentamos aplicar tal hipótese do
compartilhamento ou não de projetos políticos aos casos dos Conseas estaduais?
Em primeiro lugar, algo semelhante a esse compartilhamento de projetos polí-
ticos parece ter ocorrido entre o governo Lula e as organizações da sociedade civil
no início do mandato do novo governo, quando foi recriado o Consea nacional e
foram instalados ou implementados os Conseas estaduais. Essa convergência esti-
mulou a articulação das organizações e fortaleceu sua capacidade de mobilização
e de pressão em favor da implantação dos Conseas estaduais e da conquista de
expressiva representação por parte da sociedade civil nesses espaços de participa-
ção. À medida que o governo Lula se afasta progressivamente de um projeto de
radicalização da democracia, a convergência de projetos políticos debilita-se e,
com isso, é provável que as articulações e a capacidade de mobilização dessas
organizações enfraqueçam, especialmente diante de governos estaduais que sejam
particularmente hostis à consolidação de espaços públicos de participação.
Mantida essa tendência do governo federal, aumentam as expectativas de in-
cremento dos conflitos e tensões entre Estado e sociedade civil e de agravamento
de um foco potencial de enfraquecimento dos Conseas estaduais. Uma possibili-
dade de reação a essa tendência é por meio do estreitamento dos vínculos e

4 Os resultados da pesquisa estão publicados em Dagnino (2002 a). Para um texto sintético sobre a pesquisa, ver Dagnino
(2002).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

interações entre os Conseas estaduais e o Consea nacional, o qual é pressionado


para liderar a retomada, na área de segurança alimentar e nutricional, do projeto
de radicalização da democracia que inspirou a sua criação.
Em segundo lugar, os Conseas estaduais considerados parecem sugerir a
inexistência de compartilhamento de projetos políticos entre representantes do
governo estadual e das organizações da sociedade civil local. Em alguns casos, a
posição do governo estadual é claramente hostil à criação do Consea ou é favorá-
vel a seu pleno controle pela representação estatal. Goiás e Tocantins parecem
exemplificar a situação. No caso de Minas Gerais, em que a sociedade civil tem peso
considerável no Consea, as possibilidades de articulação ou de compatibilização
das iniciativas do governo estadual com as prioridades e a concepção de segurança
alimentar e nutricional do conselho têm dependido do fato de que o Consea é
presidido por dom Mauro Morelli, que, ao mesmo tempo que é portador da legiti-
midade conferida pelas organizações da sociedade civil, tem uma entrada política
considerável nos escalões superiores tanto do governo federal como do estadual. Na
Bahia, por fim, as possibilidades de compartilhamento de projetos políticos co-
muns são inviabilizadas pelas complicações que se estabeleceram nas relações entre
governo federal (Programa Fome Zero), governo estadual e Consea, nas quais o
conselho figura como um intermediário de reduzida autonomia.
Quais são, então, os desafios que se colocam para as organizações e movimentos
da sociedade civil nessa perspectiva? Aparentemente, é preciso rediscutir e colocar
em questão as expectativas quanto aos objetivos de espaços públicos de participa-
ção como os Conseas estaduais. Que espaços públicos queremos que sejam? O que
significa radicalizar a democracia nesses espaços? Trata-se de enfatizar a “politização”
da política pública em contraposição à tendência de representantes do governo de
ressaltarem a sua gestão? Trata-se mais de construir um espaço público de articula-
ção da sociedade civil para pressionar e fiscalizar os governos nas questões de segu-
rança alimentar e nutricional do que constituir uma instituição autônoma de parti-
cipação Estado/sociedade civil? É possível compatibilizar gestão e democratização
em espaços públicos, como os Conseas estaduais, em que não se constata conver-
gência entre os projetos políticos dos seus dois principais tipos de atores? É possível
evitar que os Conseas sejam esvaziados ainda mais pelo desinteresse dos governos
estaduais em consolidá-los? Quais são os atores da sociedade civil que têm mostra-
do interesse político por esses espaços e que os consideram como espaços efetivos de
intervenção/participação nas políticas públicas? Que atores relevantes na cena polí-
tica brasileira – ainda que tenham o tema da segurança alimentar e nutricional em
sua agenda política – tratam de forma secundária a atuação nesses espaços públicos
e por quê? Como é possível acumular forças e conhecimentos de modo a robustecer
o movimento em prol da segurança alimentar e nutricional, tornando suas questões
cada vez mais visíveis e presentes na agenda pública dos estados?

Pensar à frente
O plano Brasil de Todos – Participação e Inclusão, base para a discussão pública
do PPA 2004–2007, objetivava traçar uma estratégia de desenvolvimento voltada
à inclusão social e à participação da sociedade no processo de planejamento, en-
cerrando a meta de reorientar o histórico padrão de comportamento da economia
brasileira de concentrar renda e riqueza tanto em seus momentos de crescimento
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

como de recessão. Baseando-se no pressuposto de que é necessária uma retomada


dos princípios do planejamento econômico e uma maior interlocução entre o
governo e a sociedade, o plano buscava dar respostas aos seguintes desafios:
desconcentrar renda e riqueza; elevar a capacidade de geração de empregos da
economia e traduzir ganhos de produtividade do trabalho em aumentos reais dos
rendimentos de trabalhadores(as), gerando crescimento sustentado; e elevar a massa
salarial e constituir um mercado interno de massas.
Tais respostas, no entanto, deveriam ser dadas no contexto da necessidade de
manutenção do equilíbrio das contas públicas e de uma evolução favorável da rela-
ção dívida/PIB (Produto Interno Bruto), ou seja, em uma situação de baixa capaci-
dade de investimento do Estado. Para discutir o plano, foram realizadas audiências
públicas em todas as unidades da Federação, reunindo representantes do governo
federal, governos estaduais e sociedade civil. O que segue é uma avaliação desse
processo, realizada a partir da coleta de informações do Projeto Mapas.5
As avaliações a respeito do processo de participação do PPA convergem para
um primeiro diagnóstico comum: a iniciativa governamental de lançar esse pro-
cesso de discussão é vista, por diversos atores participantes, como muito positiva.
Pela primeira vez, um governo federal teria se colocado aberto à sociedade civil
para discutir estratégias de desenvolvimento. Por seu lado, a sociedade civil teria
se visto pela primeira vez diante do desafio de pensar o país como um todo,
superando localismos e corporativismos, na expectativa de contribuir no debate
sobre um outro modelo de desenvolvimento para o país. Tal consenso se desdo-
bra, no entanto, em algumas críticas comuns ao processo:
:.: desorganização – em Goiás, São Paulo, Tocantins e Mato Grosso do Sul, a
indefinição de responsabilidades, atrasos no repasse de informações e, no dia
da realização dos fóruns, longas falas de autoridades não permitiram que as
entidades da sociedade civil tivessem oportunidade de serem ouvidas. Em Mato
Grosso do Sul, a realização do fórum chegou a ser adiada por problemas
operacionais;
:.: logística – dificuldades variadas impediram a presença, em diferentes fóruns
estaduais, de diversas entidades do interior. No geral, ONGs de desenvolvi-
mento rural, o movimento sindical rural, associações e/ou cooperativas de agri-
cultores e agricultoras familiares e movimentos de quilombolas e indígenas
não estiveram presentes em diversos estados. Em algumas ocasiões, os gover-
nos estaduais não ofereceram qualquer auxílio, e o apoio prestado por insti-
tuições federais, como a Polícia Rodoviária Federal e a Caixa Econômica Fe-
deral, não foi suficiente;
:.: proposta fechada – os fóruns estaduais serviram muito mais para que represen-
tantes do governo apresentassem o PPA à sociedade do que para que ela efeti-
vamente discutisse que tipo de modelo de desenvolvimento o país deveria tri-
lhar. Houve um sentimento, por muitas pessoas partilhado, de que a participa-
ção só serviu para referendar um projeto de antemão decidido;

5 Dados dos seguintes estados: Alagoas, Amapá, Bahia, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do
Norte, São Paulo e Tocantins.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

:.: problemas de continuidade – não houve um acompanhamento sistemático dos


encaminhamentos posteriores aos fóruns. Não houve, sequer, clareza do que
foi efetivamente incorporado ao PPA a partir da realização dos diversos fóruns
estaduais. A seguinte constatação, da equipe de Minas Gerais, é bastante inci-
siva: “Foi muito decepcionante observar que quase ninguém entre as pessoas
entrevistadas em Minas, que participou com maior ou menor grau de
envolvimento na mobilização e organização da consulta para o PPA, tinha um
mínimo de informações sobre o uso de propostas originárias da sociedade civil
no documento final do Plano enviado pelo governo federal ao Congresso e dos
encaminhamentos que estão ocorrendo no Congresso Nacional”.

O processo de consulta do PPA resultou largamente frustrante para muitas pes-


soas que dele participaram, até porque, no Congresso Nacional, o Plano foi subme-
tido pelo governo federal à lógica do superávit primário, apresentada como uma
questão eminentemente técnica, e não política. Nesse sentido, é problemático falar
em projeto de desenvolvimento, novo pacto social includente e fortalecimento do
mercado interno (como sugere o plano Brasil de Todos – Participação e Inclusão), se
a política macroeconômica gira fundamentalmente em torno de superávits fiscais.
Não obstante, é importante frisar que, para algumas pessoas que participaram, o
processo PPA teve um importante efeito pedagógico, talvez não previsto: consoli-
dou-se, ou criou-se, para vários atores da sociedade civil, a convicção da importân-
cia do orçamento para a construção de um novo projeto de país.
Elisabeth Araújo, da Central dos Movimentos Populares de Alagoas, afirma
textualmente: “A capacitação que a gente teve antes do processo PPA – e a pró-
pria discussão do PPA – nos mostrou que os espaços estão abertos e que a gente
deve ocupá-los o mais rápido possível. O principal dessa discussão foi compreen-
der que a gente tem que ocupar esse espaço”. Desse modo, o processo de consulta
do PPA teria desencadeado uma tomada de consciência e um movimento no sen-
tido de se evidenciar a centralidade da questão orçamentária, cujos resultados
dificilmente podem ser mensuráveis no momento. Portanto, tal experiência mere-
ce algumas reflexões adicionais que parecem importantes para as organizações e
os movimentos da sociedade civil engajados na luta pela radicalização da demo-
cracia e pela efetiva redistribuição da renda, da riqueza e do poder no Brasil:
:.: os aparelhos de Estado possuem regras, normas e um cronograma que devem
ser respeitados e, quando necessário, modificados, mas que, ainda assim, nem
sempre coincidirão com regras, normas e cronogramas da sociedade civil. Por-
tanto, uma melhor compreensão de tais possíveis problemas deve estar na base
de uma melhor articulação entre ambos. Por outro lado, se, para vários(as)
participantes do processo de consulta, o governo buscou cooptar a sociedade
civil, instrumentalizar sua participação no processo de discussão do PPA, para
outros(as) o governo vive uma tensão entre uma proposta inovadora de parti-
cipação da sociedade civil e um aparelho de Estado historicamente construído
de forma autoritária e refratário à participação da sociedade. Portanto, demo-
cratizar o Estado constitui desafio muito mais complexo do que apenas abrir
espaços de interlocução (e não necessariamente de participação nas decisões),
implicando a efetiva articulação entre os espaços públicos de participação e
as diversas instâncias de planificação e de tomada de decisões. Por fim, se a
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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estrutura do Estado brasileiro deve ser democratizada, não raro as entidades


da sociedade civil encontram-se pouco preparadas para enfrentar o desafio de
participar de iniciativas de longo escopo, como é o caso do PPA, e devem
buscar qualificar-se politicamente para tal;
:.: o governo não é monolítico, e um processo como o PPA, que envolve diversas
agências governamentais, explicita isso de forma bastante clara. Algumas agên-
cias, como os Ministérios do Meio Ambiente e das Cidades, são mais abertas à
participação, outras menos, como os Ministérios da Fazenda e do Planejamen-
to. As entidades da sociedade civil devem estar atentas a tal diversidade; devem
não só trabalhar em suas contradições, mas também buscar incidir sobre elas,
de modo a contribuir para a democratização das agências menos abertas à
participação;
:.: o processo orçamentário, em sua dimensão legal, envolve não só o Executivo, mas
também o Legislativo, e a sociedade civil deve trabalhar em toda a sua extensão.
De nada adianta democratizar o processo de participação na elaboração do PPA
apenas no momento de sua elaboração pelo Executivo, pois sua votação e modi-
ficação pelo Legislativo constituem momentos igualmente estratégicos. Para o
Legislativo, a participação popular é freqüentemente percebida como uma interfe-
rência indevida em suas prerrogativas, e isso constitui novo desafio: trabalhar as
tensões entre os elementos de democracia direta e de democracia participativa,
tornando-os produtivos para a radicalização da democracia;
:.: se a experiência do PPA não se revelou particularmente promissora, ela eviden-
ciou que a discussão sobre modelos de desenvolvimento é estratégica para a
sociedade brasileira. Se o plano Brasil de Todos – Participação e Inclusão eviden-
cia a necessidade da construção de uma nova correlação de forças na sociedade
brasileira, capaz de proporcionar os recursos políticos necessários para o comba-
te às desigualdades sociais e regionais e para a inclusão social, tal mudança na
correlação de forças pode advir, com outras iniciativas, da participação popular
em espaços como o do PPA. E não só: se os gestores da política macroeconômica
brasileira estão convencidos de que a substituição da política de austeridade
fiscal representa um alto risco, o processo PPA, como processo de pactuação da
estratégia de desenvolvimento do país, constitui exatamente um espaço em que
a sociedade pode discutir tal risco e decidir, democraticamente, se está ou não
disposta a enfrentá-lo. Nesse sentido, se o processo PPA resultou frustrante, a
centralidade da sua questão, o modelo de desenvolvimento, permanece urgente,
tanto para a sociedade civil como para os gestores da política econômica.

Referências bibliográficas
DAGNINO, Evelina. Democracia, teoria e prática: a participação
da sociedade civil. In: PERISSINOTTO, Renato; FUKS, Mário. (Orgs.).
Democracia: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
______. (Org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2002 a.
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MOBILIZAÇÃO VERSUS AUTORITARISMO NA BAHIA

Fátima Nascimento
Consultora nos estados da Bahia, Alagoas e Sergipe

Damien Hazard
Diretor regional da Abong NE2

O ano de 2003 será para sempre um marco na história da democracia no Brasil.


Com o acesso de Lula à Presidência da República, começava a tão esperada
alternância política e a abertura ao diálogo com os movimentos sociais. O caso da
Bahia é significativo nesse sentido. O governo estadual não possui tradição de diá-
logo com o conjunto da sociedade civil baiana e vê nas ONGs apenas atores capazes
de desenvolver políticas compensatórias, principalmente de natureza assistencialista.
Mas nega praticamente sempre o papel político da sociedade civil organizada, a não
ser por pressão, chegando freqüentemente a criminalizar movimentos sociais.
Seria prematuro dizer que a tendência de abertura ao diálogo melhorou, mas
sua natureza tem se modificado. A regional Abong NE2 – que reúne 22 organiza-
ções na Bahia e três em Sergipe – se fortaleceu como ator político. Assumiu um
papel fundamental em 2003 na mobilização da sociedade civil baiana e sergipana
e na ocupação do espaço público. Foi a principal responsável pela articulação que
culminou com a criação do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea/BA), processo que envolveu atores sociais, instituições, mo-
vimentos sociais e grupos populares organizados de todo o estado. Configurou-se
um movimento de construção pública de um conselho de política que, para o
governo, se não desnecessário, era dispensável diante da existência da Secretaria
Estadual de Combate à Fome e à Pobreza (Secomp), órgão criado no segundo
mandato do governo César Borges (1998–2002).
A Abong NE2 coordenou o processo de mobilização da sociedade para a orga-
nização das audiências públicas estaduais do PPA. Participou da comissão
organizadora da Conferência Estadual do Trabalho, cujo objetivo era discutir a
reforma trabalhista. Passou ainda a integrar o Conselho Estadual de Desenvolvi-
mento Rural Sustentável (CEDRS), onde tem colaborado com os diversos seg-
mentos sociais organizados na discussão sobre territorialidade.
A interlocução com o governo da Bahia não tem sido fácil. Movimento social
e governo têm visões diferenciadas de participação, ocasionando embates cons-
tantes na dinâmica dos conselhos ou mesmo no desenvolvimento de iniciativas
em que a participação popular é condição para sua realização, em geral por de-
manda dos financiadores. Neste contexto, algumas questões fazem-se necessárias:
em que medida o movimento social vai conseguir influenciar e mudar a perspecti-
va de participação no governo estadual?Em que medida a participação nos conse-
lhos, em especial no Consea, vai conseguir se firmar como uma experiência de
exercício de poder compartilhado entre sociedade e estado, em que cada um de-
senvolve uma função específica? Terá o movimento social força e coesão para se
impor diante de um governo autoritário e prepotente?
Na prática, foram acentuadas as diferenças internas no próprio movimento
social. Percebe-se também diferenças de âmbito operacional. Enquanto alguns
grupos defendem interesses imediatistas e corporativistas, outros defendem uma
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

visão mais estratégica e global, dificultando a atuação e definição de prioridades.


As organizações da Abong NE2 enfrentam ainda o dilema de serem poucas para
responder à demanda crescente de participação, colocando o desafio não só de
fortalecimento interno dessas entidades, assim como de ampliação do
associativismo na sociedade baiana e sergipana. Isso sem contar que alguns seg-
mentos sociais organizados, mesmo com a tentativa de inserção promovida pela
associação, ficaram ausentes desse processo de concertação.
Mesmo com as limitações assinaladas, a sociedade civil tem conseguido avan-
ços significativos na busca de uma ruptura com o autoritarismo do governo esta-
dual. A título de conquistas, vale ressaltar o caráter deliberativo do Consea/BA,
sua composição majoritariamente da sociedade civil e o processo de debate públi-
co sobre política de segurança alimentar, por meio de conferências regionais e
estadual – cujo resultado apresenta indicativos para a elaboração de um plano
estratégico para a área.
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TENSÃO ENTRE GOVERNO E MOVIMENTOS

Lucineide Barros
Consultora nos estados do Ceará e Piauí

A relação entre governo e atores sociais tem avançado a passos lentos, segundo
avaliação do Coletivo de Entidades Parceiras em Políticas Públicas do Piauí
(CEPPP), que reúne cerca de 15 entidades. Não é possível identificar a participa-
ção popular como uma marca de governo nem mesmo como meta ou intenção.
As entidades reclamam da falta de reconhecimento governamental do seu papel
estratégico, principalmente ao considerar que a história de vários agentes do atual
governo se confunde com a história dos movimentos sociais. Chegam a afirmar que
em governos anteriores, de tradição conservadora, apesar da falta de respeito, havia
algum reconhecimento do seu potencial – embora tal reconhecimento resultasse no
uso de mecanismos de distanciamento, imobilização e cooptação.
Além das tensões ocasionadas pela própria composição da equipe de governo,
outros fatos têm sido decisivos no acúmulo de tensões entre governo e movimen-
tos sociais. Entre eles, a demissão de 10 mil servidores(as) prestadores de serviço,
sob o argumento do cumprimento da lei, o que ocasionou a primeira greve de
servidores(as), mobilizando a opinião pública para o que foi considerada uma
decisão arbitrária e injusta. O ato traumático somou-se a outros, como o despejo
de famílias sem teto de um terreno de propriedade do estado, com intensa violên-
cia policial, e a garantia, por via judicial, da manutenção da cobrança de taxas a
estudantes da universidade estadual.
Com exceção dos seminários regionais, promovidos pela Secretaria de Planeja-
mento com o objetivo de colher subsídios para a elaboração do PPA estadual e da
elaboração do Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS), as demais experiências
que promoveram a escuta do movimento social se deram por iniciativa do governo
federal, repercutindo no estado. Registra-se ainda que o processo do PPA estadual
em nada se comunicou com o PPA nacional e que o PCCS significou muito mais
uma iniciativa isolada de uma secretaria, longe de ser uma marca de governo.
Na relação com o governo estadual e federal no Piauí, percebe-se que predomi-
nam sujeitos de dois tipos: um grupo historicamente comprometido com as lutas
de enfrentamento às injustiças sociais e com a conquista e ampliação de direitos;
e outro com instituições que nunca pleitearam espaços de participação nos pro-
cessos decisórios, como as Associações da Indústria, do Comércio, Sebrae, entre
outras. Além dessas, começam a surgir no cenário novas instituições, principal-
mente fundações, que trabalham com prestação de serviço, geralmente terceirização
de serviços públicos, na parceria em projetos governamentais.
As concepções de participação se apresentam diferenciadas: o governo compre-
ende participação como presença, faz convites pontuais às entidades para toma-
rem parte em eventos, programas e projetos prontos a serem executados; geral-
mente se coloca como o dono da agenda e com direito de pautar os temas de
acordo com suas necessidades imediatas. Não explicita claramente os objetivos
para a participação. Passa a impressão de que o fato de ter entre seus quadros
pessoas oriundas de movimentos sociais basta, não havendo necessidade de ouvir as
organizações representativas. Já os movimentos sociais entendem a participação
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24

para além da presença e reivindicam a oportunidade de propor, tomar parte na


construção e na implementação. Exigem que o governo exercite a dimensão am-
pla da participação, integrando as ações dos conselhos de políticas setoriais às
políticas macrossociais, de modo que repercutam nas ações dos diversos órgãos
estatais. Esperam do governo a capacidade de levar o diálogo à exaustão na busca
da solução de conflitos e procuram manter sua autonomia. Também reconhecem
como urgente a articulação das suas organizações, o fortalecimento dos fóruns da
sociedade civil que discutem as políticas setoriais, a qualificação de integrantes
dos conselhos e a firmeza na orientação política.
Neste cenário, as conferências, consultas, criação de novos conselhos, embora
chamem a atenção e mobilizem numericamente, não têm conseguido avançar em
qualidade e em empoderamento dos setores historicamente excluídos no Piauí.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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VONTADE POPULAR, MISÉRIA E POLÍTICA

Sérgio Baierle
Consultor nos estados de Santa Catarina,
Paraná e Rio Grande do Sul

Nos últimos 20 anos, as classes populares deste país romperam o cordão de isolamen-
to que as separava da participação política autônoma. Encerramos mais de duas
décadas de ditadura militar. Direitos básicos de cidadania foram estendidos ao con-
junto da população, não obstante sua precária qualidade. Com a abertura do voto às
pessoas analfabetas, a partir de 1988, e a retomada plena das liberdades políticas,
estabelecemos efetivamente o sufrágio universal. Essa afluência popular, sobretudo
nos meios urbanos, traduziu-se também no econômico, mesmo que por vias transver-
sas, em gradativa conquista de melhorias nas infra-estruturas urbanas, da vagarosíssima,
porém constante, regularização fundiária de áreas de ocupação, no acesso à educação
e no desenvolvimento de imensas redes de produção e comércio informal.
Já a cidadania propriamente política das classes populares vem passando por
um processo que vai além do ato de votar e ser votado. Estima-se que existam
hoje no Brasil algo ao redor de 30 mil conselhos setoriais nas esferas federal,
estadual e municipal. Grande parte das políticas sociais em vigor é acompanhada
por conselhos locais que fiscalizam a aplicação dos recursos e seus resultados.
Participam desses conselhos representantes comunitários das próprias populações
beneficiadas, prestadores(as) de serviços, ONGs, governos, universidades e seto-
res privados. Trata-se de uma fantástica aposta nas instituições democráticas.
Atualmente, em mais de 140 cidades brasileiras, desenvolvem-se experiências
de orçamento participativo, em que pessoas comuns podem participar diretamen-
te em assembléias para decidir o destino de parte dos recursos públicos ou, pelo
menos, podem influir na gestão dos serviços. Na área do desenvolvimento urba-
no, em 2003, contando apenas a região Sul (PR, RS e SC), realizaram-se 196
conferências municipais das cidades, 54 conferências regionais e, claro, três esta-
duais. Na área de segurança alimentar, os números são ainda mais impressionan-
tes. Praticamente todos os médios e grandes municípios passaram a desenvolver
políticas minimamente participativas para dar conta do combate à fome, nem
que seja para se credenciarem como beneficiários de recursos federais. Apenas no
Rio Grande do Sul foram realizadas 240 conferências municipais de segurança
alimentar. Menos impressionantes, mas não menos significativos, têm sido os even-
tos nas áreas de meio ambiente, educação e saúde.
Se algo falta, não é certamente a vontade cívica de construir um país melhor.
Aparentemente, tampouco falta vontade política, já que a maioria dos governos
mantém respeitáveis propósitos sociais e agendas participativas, conferindo maior
ou menor poder deliberativo à população, apesar das profundas diferenças de
sentido e de qualidade desses processos. Estamos maduros para avançar na agen-
da republicana, mesmo quando os resultados tornam-se cada vez menos expressi-
vos. É o caso da conjuntura atual, com honrosas exceções, como o orçamento
participativo de Porto Alegre, agora também com uma face voltada para o funci-
onalismo municipal. Isso, no entanto, não diminui a febre instituinte que atra-
vessa as dezenas e dezenas de conferências que vêm se realizando de norte a sul do
país, em todas as áreas possíveis e imagináveis.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
26

Existe, portanto, uma imensa demanda de nação que não encontra espaço
nas possibilidades atuais da política. Certos(as) comentaristas econômicos, cini-
camente, dizem que chegou o momento de cairmos na real, de abandonarmos
os sonhos de mudanças mágicas nas condições sociais existentes. Temos, então,
o salário mínimo possível, as políticas sociais possíveis, o Estado possível. Te-
mos a faca, mas não podemos dividir os recursos, que já têm dono. Para
redistribuir o pouco que resta, é preciso reduzir os salários do funcionalismo
público e alterar suas regras previdenciárias, utilizar expedientes os mais diver-
sos para suprir as necessidades de caixa, atrasar pagamentos em geral e jogar a
culpa nas outras esferas governamentais. Ninguém mais fala em planejamento,
os governos parecem prisioneiros do cotidiano, as batalhas são travadas a cada
dia, e o futuro é uma zona que não existe.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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PRÓS E CONTRAS DOS CONSELHOS

Mônica Schiavinatto
Consultora nos estados de Goiás,
Mato Grosso do Sul e Tocantins

Na busca das informações sobre os espaços de participação popular entre as orga-


nizações sociais nesses estados, pudemos perceber questões importantes para refle-
xão. Um aspecto dessa temática é a visão geral de que os conselhos e demais
espaços são fundamentais para a consolidação da democracia do país. Esses espa-
ços são vistos como estratégicos à participação social e à definição de políticas
públicas. Tal visão parece ser compartilhada por atores sociais de diversos campos
de atuação, como movimento sindical – patronato e trabalhadores(as), movi-
mento popular, ONGs, governos.
Apesar dessa compreensão, há uma visão negativa da eficácia desses espaços
como de formulação de políticas públicas. De acordo com boa parte das pessoas
entrevistadas, o formato dos conselhos não possibilita uma real participação nas
definições políticas, mesmo se tratando de conselhos deliberativos. O que pude-
mos perceber é que há vários fatores que colaboram para essa visão. Vamos nos
ater neste texto apenas a três.
Existe uma infinidade de conselhos municipais, estaduais e federais. Todos
organizados por temáticas e políticas setoriais. Isso compartimentaliza as políti-
cas, fazendo com que haja sobreposição de definições e contradições nas pro-
postas dos conselhos. Acontece também de as mesmas pessoas terem que parti-
cipar de diversos conselhos, impossibilitando uma participação qualificada. Boa
parte de conselheiros e conselheiras não consegue se qualificar nem estudar a
temática da qual o conselho trata, pois a demanda é muito intensa. Isso
desqualifica a participação, tornando essas pessoas meras observadoras, e não
definidoras de políticas.
Um segundo fator é que muitos conselhos ainda estão concentrados nas mãos
dos governos. São os que realmente definem agenda, pauta, propostas e encami-
nhamentos. O motivo merece uma reflexão mais complexa. Por isso, levanta-
mos apenas algumas hipóteses. Uma primeira explicação é a fragilidade dos
movimentos sociais, que, apesar de historicamente terem como bandeira de luta
a constituição de espaços de participação social para definição de políticas pú-
blicas, não têm conseguido atuar com qualidade nesse campo. Uma segunda
questão é que em alguns estados, principalmente nas regiões Centro-Oeste,
Norte e Nordeste, ainda verificamos uma política municipal e estadual
clientelista e baseada no “coronelismo”. Essa forma de política, na qual a
força, a corrupção, a manipulação e a ameaça ainda persistem, fragiliza os
movimentos, tornando-os vulneráveis. É importante enfatizar que essa não é
uma análise conceitual, são apenas pontos para reflexão. Seria preciso ir mui-
to além para constatar tais fatores.
Outra questão levantada por muitos atores sociais é a possibilidade de reso-
lução desses problemas por meio da efetivação de um número menor de conse-
lhos que integrassem diversas temáticas afins. Esses “conselhos de desenvolvi-
mento” seriam compostos por grupos de trabalho temáticos (saúde, educação,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
28

assistência social, segurança alimentar, agricultura) e seriam levados para o


conselho principal a fim de serem discutidos conjunta e integralmente. Assim,
diminuiria as sobreposições e as políticas públicas poderiam ser integradas e não
compartimentalizadas.
Esses três pontos nos parecem ser os mais importantes para uma reflexão sobre
os espaços de participação social, sua relevância, qualidade e possibilidade de se
tornarem referência para uma democracia real.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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PARTICIPAÇÃO QUE NÃO CHEGA ÀS BASES

Leda M. B. Castro
Consultora no estado de Minas Gerais

Um importante aspecto da vida social de Minas e dos processos de participação


levantados pelo projeto Mapas foi a questão regional. Percebe-se um sentimento
de que “Minas são muitas e o que é feito em Belo Horizonte não costuma ser
muito estadual, acaba sendo mais focado na capital”. A incorporação ou não da
dimensão regional constitui um marco de distinção entre iniciativas de participa-
ção social com maior ou menor impacto ou densidade social.
A ausência de número mais significativo de entidades regionais ou do interior
foi uma das lacunas apontadas por várias pessoas com relação ao processo da
consulta popular para o PPA em Minas. Já a política de descentralização e
regionalização da representação da sociedade civil no Conselho de Segurança Ali-
mentar e Nutricional do estado (Consea/MG), implantada a partir de 2001, deu
novo fôlego a uma experiência de participação social em torno da questão, que
vinha se desenvolvendo desde 1999.
As entrevistas apontam como iniciativa mais relevante do Consea/MG a criação
do Programa Mutirão pela Segurança Alimentar e Nutricional (Prosan). Gerenciado
pela Cáritas regional, representou uma experiência concreta de descentralização da
alocação de recursos públicos e de empoderamento da sociedade civil. A avaliação
final do programa mostrou a importância de uma boa organização local/regional
para o desenvolvimento de projetos realmente participativos.
No estado, não existem grandes organizações, como acontece no eixo Rio–São
Paulo. O poder de influência das ONGs mineiras se dá mais pelo peso numérico,
atuando em temas específicos, dispersas em vários municípios, do que pelo papel
político de algumas poucas entidades de caráter mais geral.
Por todo o estado, há centenas de pequenas organizações sem identidade
institucional clara ou visibilidade na mídia, que estão lutando de modo firme e
inovador em torno de questões específicas: meio ambiente, reflorestamento, aces-
so à terra, apoio à pequena produção rural etc. A relevância desses movimentos e
organizações locais pouco estruturados é exatamente a de exemplificar o exercício
autônomo da cidadania por grupos populares, por pessoas comuns, mantendo
viva a possibilidade democrática no país.
As principais linhas de tensão social em Minas hoje são balizadas pela situação
nacional, refletindo problemas estruturais de nossa sociedade, de natureza
socioeconômica e política. No campo socioeconômico, os pontos mais centrais
derivam da política de estabilidade macroeconômica. São questões que aparecem
como prioridade para setores exportadores em detrimento de atividades voltadas
para o mercado interno e de questões como exacerbação de conflitos ambientais e
pela terra, explosão da problemática urbana, maior ainda do que a problemática
rural, e outras mais visíveis como pobreza, desemprego e violência crescentes.
No campo político democrático, o grande desafio da sociedade brasileira é
superar a enorme carência de garantias cotidianas dos direitos individuais e cole-
tivos definidos pela Constituição. O Estado que existe no Brasil não foi construído
ao longo da nossa história para beneficiar 100% da população, mas só 20%,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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25% de pessoas privilegiadas. A burocracia é uma barreira que filtra e bloqueia o


funcionamento da máquina pública em benefício das camadas pobres. Com as
“reformas” da última década, o Estado, em todos as suas esferas, vem minguando
ainda mais, terceirizando serviços e ações públicas. Da pesquisa feita em Minas,
emergiu um paradoxo: a expansão da sociedade civil, com uma multiplicidade de
organizações, associações, conselhos, fóruns, articulações – abrangendo um leque
de temas, de interesses e lutas por direitos –, tem tido impacto pequeno na agenda
efetiva dos poderes públicos. Parece acontecer algo como muita “organização”,
baixa “mobilização”, muitas “entidades” com pouca “densidade” ou
“capilaridade” social.
As entidades têm quase sempre as mesmas lideranças. É como se essa ‘organiza-
ção’ se mantivesse na superfície do tecido social, não chegando às bases, não im-
pregnando os indivíduos, seus valores, sua conduta. E não levando a um novo
modo de fazer política e de regular a ação do Estado.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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ACOLHIMENTO SELETIVO DE PROPOSTAS

Carlos Tautz
Consultor nos estados do
Rio de Janeiro e Espírito Santo

A proposta de realização da Conferência Nacional de Meio Ambiente que orien-


tasse o poder público federal na execução de políticas públicas tem suas origens
nas discussões há anos realizadas pela Secretaria Nacional de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável (Semads) do Partido dos Trabalhadores (PT). Tam-
bém consta do programa de governo de Lula para a área do meio ambiente,
redigida e subscrita por ambientalistas do partido em ampla cooperação com
dezenas de representantes de movimentos sociais e organizações não-governamen-
tais brasileiras. A conferência foi realizada de 28 a 30 de novembro de 2003, na
Universidade de Brasília (UnB), objetivando a coleta de informações para subsidi-
ar a elaboração de políticas públicas.
Diferentemente da conferência de segurança alimentar e nutricional, a do meio
ambiente não necessariamente desaguaria em espaço institucional definidor de políti-
cas. No fundo, constituiu-se em instrumento de auscultação da sociedade, de levanta-
mentos de dados que o aparato estatal não conseguiria produzir, em uma ágora de
proposições de saídas para as várias crises socioambientais por que passa o Brasil.
A construção desse processo teve como grande fiador a figura da ministra Marina
Silva. Representante histórica do movimento socioambientalistabrasileiro, herdeira
simbólica do legado de Chico Mendes, sua figura foi a garantia que boa parte das
organizações participantes tiveram de que o processo se constituía em novo modo
de elaboração de políticas públicas e de que seriam consideradas todas as posições
que compõem a miríade conhecida por movimento ambientalista brasileiro.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA) colocou toda sua parca infra-estru-
tura administrativa nesse processo ao longo de quase seis meses. Coube ao Institu-
to Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a
tarefa de convidar lideranças socioambientais locais e governos estaduais para
organizar os encontros regionalmente. As conferências regionais/estaduais produ-
ziam, cada uma, um documento enviado à instância nacional. O papel coordena-
dor da conferência nacional adquiriu, na maior parte do tempo, um caráter mais
administrativo, organizativo, foi propositivo apenas no início do processo, quan-
do elaborou os temas para debate e a tese-guia.
Do total de delegados e delegadas eleitos para o encontro nacional, 33% eram
representantes das esferas governamentais municipal, estadual, distrital e federal;
41% de movimentos sociais, populações tradicionais (indígenas, quilombolas e
ribeirinhos) e ONGs ambientalistas; 19% de universidades, centros de pesquisa e
conselhos profissionais; e 7% do setor produtivo. O próprio MMA surpreendeu-
se com a eleição de 68 delegados e delegadas do setor da juventude.
Essa estratificação deixa claro que a conferência conseguiu abarcar público mui-
to heterogêneo em sua composição, origem e proposta de atuação socioambiental.
A cota mínima de participação de mulheres (30%) foi plenamente alcançada. Se-
gundo o MMA, do conjunto eleito, 576 eram homens e 336 mulheres.
No entanto, o momento político em que a conferência se realizou era outro.
As divergências impostas pela necessidade pragmática de um governo central que
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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se dedica à estabilização financeira – tarefa para a qual depende do apoio dos


governos estaduais que controlam suas bancadas no Congresso Nacional – leva-
ram o governo federal a contemporizar com várias posições defendidas por
governadores(as) que entraram em choque direto com a ação da maior parte das
organizações envolvidas no processo.
Fruto da aproximação histórica de Marina Silva e de movimentos e redes em
educação ambiental, também foi convocada a I Conferência Nacional Infanto-
Juvenil pelo Meio Ambiente, que reuniu mais de 5,2 milhões de pessoas, entre
estudantes, professores e professoras e a comunidade, em cerca de 15 mil confe-
rências nas escolas de ensino fundamental de todo o país – uma média de público
de 360 pessoas por escola. Foram 380 delegados e delegadas entre 11 e 15 anos de
idade, sendo 14 jovens por estado – à exceção de Pernambuco, com oito delega-
dos e delegadas. A distribuição foi a seguinte: 4% de professores(as); 15% de
estudantes de ensino médio; 15% de estudantes de 1ª a 4ª série; 15% de integran-
tes da comunidade; e 51% de estudantes de 5ª a 8ª série.
A tese-guia foi proposta pelo corpo técnico do MMA e consultorias contrata-
das em torno de seis megatemas que, teoricamente, abarcariam a totalidade das
questões que precisariam ser enfrentadas na busca de um desenvolvimento nacio-
nal assentado sobre bases sustentáveis social e ambientalmente. Os temas foram:
recursos hídricos; biodiversidade e espaços territoriais especialmente protegidos
(unidades de conservação, áreas de proteção ambiental, reservas e parques); infra-
estrutura: energia e transportes; agricultura, pecuária, recursos pesqueiros e flores-
tais; mudanças climáticas; e meio ambiente urbano.
Pelo menos 25 das 27 conferências estaduais aprovaram moções que preconi-
zavam restrições à utilização dos organismos geneticamente modificados (OGMs)
e, em especial, críticas às seguidas liberações, por parte do Executivo federal, da
safra gaúcha contaminada por soja transgênica. Uma moção-síntese de condena-
ção aos transgênicos foi apresentada e aprovada na conferência nacional em
contraponto incisivo à política oficial.
Outra questão que gerou mobilizações de pelo menos cinco dos mais populo-
sos estados brasileiros de três regiões, que recolheu amplo apoio de diversos movi-
mentos socioambientalistas, como foi o caso do estímulo governamental às
monoculturas do pínus e do eucalipto para produção de celulose.
A pergunta intrínseca que os movimentos sociais fizeram na conferência, sob a
forma de propostas e de moções foi: “qual é o modelo de desenvolvimento que se
propõe para o Brasil?”. Afinal, indagaram os(as) representantes dos movimentos,
a opção estratégica do governo pelo negócio agrícola de exportação significa co-
locar em segundo plano as reivindicações dos movimentos sociais e incentivar
monoculturas em larga escala com venda prioritária aos mercados internacionais,
por ora em cotação alta?
Em fevereiro de 2004, o governo anunciou um Plano Nacional de Florestas, mas
os setores ambientalistas defendem que monocultura de pínus e de eucalipto não é
floresta. O plano estava em fase final de gestação no período de realização do encon-
tro e previa transformar a monocultura em iniciativa de governo, envolvendo os
ministérios da Agricultura, da Indústria e do Desenvolvimento e do Meio Ambiente.
Temas como esses lideraram as atenções dos movimentos em quase todos os
estados, mas não conseguiram romper com o isolamento temático que caracterizou
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
33

as participações dos diversos atores. Cada um deles dedicou-se prioritariamente a


interferir no debate em sua área específica de competência: quem era originário de
questões urbanas, por exemplo, dedicou-se a elas em todo o processo. O mesmo
se repetiu com os demais temas, exceto o das mudanças climáticas, que, pela sua
própria natureza, exigiu uma intervenção sistêmica que incorporasse as diversas
interfaces do assunto.
Até abril de 2004, as entidades que participaram da conferência nacional ain-
da não haviam recebido informações a respeito de processos de acompanhamento
da implantação das propostas formuladas no encontro e entregues ao poder pú-
blico. Estava prevista apenas a divulgação de um CD com as deliberações do
evento. Há, entretanto, um claro sentimento entre as entidades que tomaram
parte do processo de que houve um acolhimento seletivo das propostas formula-
das. Todas as que convergiam com a proposta clássica de desenvolvimento da
política econômica em vigor, ao que parece, seriam acolhidas. Mas aquelas que se
chocavam com as diretrizes gerais da política econômica – como o estímulo às
monoculturas da soja, das espécies celulósicas e da criação de gado – continuari-
am a ser estimuladas pelo governo, a despeito dos impactos sociais e ambientais
que viessem a causar.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Crônicas
2003
SUMÁRIO

Sonhar, mas um sonho possível 03


Cândido Grzybowski

O encontro do Brasil consigo mesmo 05


Cândido Grzybowski

Fome de cidadania 07
Cândido Grzybowski

Segurança: um direito a ser conquistado 09


Cândido Grzybowski

O Brasil que a América do Sul precisa 11


Cândido Grzybowski

Trabalho e cidadania 13
Cândido Grzybowski

Uma vida entre sobras e migalhas 15


Cândido Grzybowski

Uma agenda pós-neoliberalismo 17


Cândido Grzybowski

O PPA e a retomada do crescimento 20


Cândido Grzybowski

Quando privilégios se confundem com direitos 22


Cândido Grzybowski

A participação pode fazer enorme diferença 24


Cândido Grzybowski

O IDH e o novo mapa do mundo 26


Cândido Grzybowski

O que diria o Betinho do momento? 28


Cândido Grzybowski

Democracia, sociedade civil e política na América Latina – notas para um debate 30


Cândido Grzybowski

O calcanhar de Aquiles do governo Lula 50


Cândido Grzybowski
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3

SONHAR, MAS UM SONHO POSSÍVEL

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Depois de sonhar o impossível, de lutar sem ceder, de vencer o inimigo invencível


e negar ao invés de ceder – desculpem-me a liberdade poética na versão particu-
lar da bela canção –, chegou a hora de viver e cantar o Brasil possível. Começar
o ano assim, tendo aquela alegria e sentindo o nó na garganta como milhões ao
ver Lula tomar posse na presidência. É como celebrar o começo de uma nova
era. E ela será, sem dúvida, porque o clima de esperança, que está no ar neste
“reencontro do Brasil consigo mesmo” (Lula, no discurso de posse), nos permi-
tirá superar o secular divórcio entre economia e sociedade, entre o desenvolvi-
mento do país e seu próprio povo.
As adversidades são muitas, mas assim mesmo existem condições para a alme-
jada mudança. Criar a vontade política para promover as mudanças nas condi-
ções históricas do Brasil de hoje já é um feito fundamental. Vontade que se expri-
me em apostar na radicalidade do processo democrático, e não das rupturas pela
força. O pacto social, talvez a palavra mais ouvida desde a vitória eleitoral e
nestes dias de ritual de transmissão de cargos políticos, foi a condição indispensá-
vel para Lula chegar lá. No entanto, pacto social nas democracias é pacto de
incerteza, algo que só existe se renovado no dia-a-dia, na negociação política em
torno a objetivos estratégicos comuns.
O Governo Lula exprime uma vontade política de “esquerda-centro”. Parece
estranho, mas é isso mesmo, e não centro-esquerda. Precisamos ir inventando
uma nova linguagem política, conceitos, para dar conta dos novos tempos. Trata-
se de agenda de esquerda com visão democrática radical: solidariedade, justiça
social, participação libertária, sustentabilidade no uso dos recursos e bens co-
muns. É a agenda de esquerda num quadro possível de aliança com o centro para
imprimir um novo rumo ao desenvolvimento do Brasil. Isto é o novo. Ou alguém
duvida? No complexo quadro de classes, forças e interesses sociais no Brasil de
hoje é um grande feito, uma enorme novidade, trazer o centro para uma outra
aliança política que não o toma-lá-dá-cá das oligarquias. Que vai ser difícil a
gestão do pacto entre esquerda e centro ninguém duvida, inclusive porque todos e
todas precisamos aprender a fazer isso.
Essa base política, prenhe de contradições, não me espanta. Espero que atra-
vessemos o mar revolto no horizonte de 2003 mais fortalecidos(as), com o Conse-
lho Econômico e Social funcionando e a cidadania alerta, além de um Congresso
à altura da oportunidade histórica de ser grande e generoso. A equipe que o Lula
montou parece adequada para dirigir o barco no rumo que a vontade popular
traçou. O resto é conosco.
Por isto, volto ao sonho possível. Betinho, como um verdadeiro visionário
político, dizia que a gente precisa sonhar grande para fazer grandes coisas. Grande
para ele era o limite do possível; para muitos(as), já o impossível. O possível
grande no Brasil Lula da Silva é:
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4

:.: todo mundo comer segundo a sua fome, de preferência realizar o sonho de “um
bife a cavalo com batatas fritas” ao menos uma vez por semana;
:.: todas as famílias de trabalhadores(as) rurais que desejam um pedaço de chão
estarem assentadas, colhendo e vivendo de sua colheita, e não mais obrigadas
a acampar sob lonas de plástico;
:.: toda brasileira e todo brasileiro adulto(a) que deseja trabalhar e viver do seu
trabalho, com renda monetária condizente, dignidade humana e proteção so-
cial, na forma que achar mais adequada, tenha realizado esse direito;
:.: nenhuma criança sendo obrigada a trabalhar e nem a se prostituir, tendo o
direito de viver o seu tempo de sonho que são a infância e adolescência;
:.: todas as nossas crianças na escola, sonhando e aprendendo, lendo e escrevendo,
dançando, representando e fazendo esporte, como é próprio de crianças;
:.: todos e todas os(as) jovens, que assim aspiram, tenham realizando o seu sonho
de um curso universitário;
:.: todas as nossas avós e nossos avôs sendo respeitados(as) em sua idade e sabedo-
ria, merecedores(as) de carinho e atenção, além de oportunidades para uma
vida ativa e feliz;
:.: todos e todas tendo acesso ao atendimento de saúde, sem distinção de classe,
renda ou qualquer outro critério, que não o do direito igual à saúde e à vida
longa com alegria;
:.: a segurança pública sendo afirmada como um direito de liberdade, de ir e vir, de
viver em paz e dignidade, sem privilégios ou cidades partidas, sem violência e
balas perdidas;
:.: o Brasil, todas e todos nós, seus(suas) habitantes, reconhecendo que o racismo
está incrustado em nossa alma e que, por mais difícil que seja, o reencontro
consigo mesmo(a) só será possível na igualdade com diversidade de cor de pele,
de etnias, de culturas, de tradições, de fés, celebrando a nossa capacidade e
fortaleza como povo de múltipla formação;
:.: cada um e cada uma feliz em sua casa, por mais modesta que seja, mas sua, com
cama, mesa, cadeira, acesso à água, luz, esgoto e transporte decente próximo;
:.: os(as) empresários(as) finalmente sendo responsáveis socialmente, não tratan-
do mais o Brasil e seu povo como um território e uma população a espoliar,
mas como sendo os(as) empreendedores(as) de um desenvolvimento democrá-
tico e sustentável para todas e todos os(as) brasileiros(as), investindo no país
para além de seus negócios;
:.: o mercado não mais sendo a referência suprema e nem os índices financeiros e
econômicos, como termômetros técnicos, serem mais do que coisa de especia-
listas, sem maior interesse para a cidadania feliz do Brasil;
:.: o direito de todas e todos serem simplesmente felizes.

E muito mais. O possível é feito dessas coisas simples e fundamentais ao mesmo


tempo. A revolução está em tudo acontecer simultaneamente, em sua normalidade de
padrão igual de cidadania, para todo o povo brasileiro. Isso será o começo, insisto, o
começo radical de uma nova era. Agora, ela acontecerá se fizermos nossa parte a dermos
uma mãozinha ao Lula. Afinal, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
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5

O ENCONTRO DO BRASIL CONSIGO MESMO

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Em sua segunda semana de governo, lá foi Lula arrastando os(as) seus(suas)


ministros(as) simplesmente para ver brasileiras e brasileiros que convivem conosco,
mas lhe negamos o direito de fazer parte. É gente que está aí, mas como se estives-
se na sombra. São milhões, e formam a base da sociedade brasileira, mas os(as)
consideramos periferia, na cidade e no campo. O país que ajudam a construir
os(as) exclui. Por isso, o gesto do Presidente Lula é um marco político e histórico.
Ao menos, demonstra a vontade de pôr o governo a funcionar para que o Brasil
possa encontrar-se consigo mesmo.
A viagem foi um ato simbólico. Mas que simbolismo! Lula representa a possi-
bilidade histórica de romper uma lógica de desencontro entre povo e nação, entre
nós, entre sociedade e poder, entre o bem-estar da gente e o desenvolvimento do
Brasil. Afirmar isso com gestos no início do governo é como reafirmar uma prio-
ridade política. Trata-se de sinalizar rumos. E nada como tentar reencontrar o
perdido, o que foi sempre adiado, deixado para depois e nunca aconteceu. Na
verdade, a decisão de Lula de lambuzar – literalmente é isso mesmo – seus(suas)
ministros(as) com a realidade viva e vibrante dos(as) que almejam simplesmente
os direitos fundamentais de cidadania em nosso país cria um outro clima político.
É fundamentalmente um convite para redescobrir e repensar o Brasil.
Aliás, nós todos e todas devemos fazer a nossa viagem aos fundões sociais do
Brasil. Chega de isolar-nos, proteger-nos, fechar portas e condomínios, contratar
polícias privadas. Precisamos inverter o caminho que nos levou a construir cida-
des partidas e territórios segregados, zonas de ricos e pobres, de luxo e de favela,
de casa grande e de senzala, dos(as) que têm quase tudo e dos(as) que nada têm.
Isso expressamos ao dar a vitória eleitoral ao Lula. Mas governo é apenas uma
frente a gigantesca engenharia social a realizar para que o Brasil seja de todos(as)
os(as) brasileiros(as). A parte fundamental nesta tarefa de reencontro do Brasil
consigo mesmo cabe a cada um e cada uma, em sua qualidade de cidadão e cida-
dã, em igualdade de direitos e responsabilidades. E muito, muitíssimo deve ser
feito por todos(as) quantos(as) organizam a produção e as relações econômicas
em nossa sociedade, para que se instaure uma lógica de desenvolvimento radical-
mente democrático e sustentável, de liberdade e participação ativa, de inclusão
social, solidariedade e de justiça distribuitiva.
No simbolismo de um governo ao encontro de seu povo, para ver a cara, a cor
e tamanho da fome e da pobreza, está sinalizado o novo descobrimento que te-
mos que fazer. Precisamos despir-nos de preconceitos e viseiras. Precisamos olhar a
realidade e ver o que, se o vimos, não foi com olhos que buscam enxergar a nós
mesmos(as), o que fizemos conosco mesmo e das possibilidades de nos refazer
como povo. O caminho passa por um grande mutirão que deve começar pela
descoberta de nossos valores culturais, da multiplicidade de nossas diversidades.
Passa também por um novo pensamento sobre o Brasil. Muito pesquisamos, mas
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6

com um ótica que não foi da inclusão cidadã. Agora precisamos reavaliar o que e
como estudamos a nós mesmos(as). As nossas universidades e nossos centros inte-
lectuais e científicos precisam também ter o Brasil que busca o encontro consigo
mesmo como sua referência e agenda. Nossa mídia precisa informar e debater o
Brasil das possibilidades contidas no seu lado oculto, excluído. Enfim, é um mutirão
político-cultural que somos chamados(as) a fazer nesta hora.
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7

FOME DE CIDADANIA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro
de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Nunca é demais salientar que o Programa Fome Zero do Governo Lula tem o
grande mérito de reconhecer e pôr no centro de nosso debate político a fome
como uma emergência eticamente inadiável. Com razão, está sendo apresentado
como uma marca de mudança nas prioridades do governo que se inicia e de busca
de novos rumos para o desenvolvimento do Brasil. A fome é a chaga mais visível
da exclusão social e da negação de liberdade e dignidade humanas a milhões de
brasileiros e brasileiras. Afinal, nossos(as) famintos(as) são produto da injustiça
social, de relações, estruturas e processos que inventamos, e não da escassez.
Refundar o Brasil, fazendo o encontro entre povo e nação, entre sociedade e eco-
nomia, tem como pressuposto básico começar garantindo que os recursos que
temos sirvam antes de mais nada para a segurança alimentar de todos(as) os cida-
dãos e as cidadãs. É o país indo de encontro a si mesmo, como bem disse o presi-
dente Lula em sua posse.
A vontade política é clara e poderá gestar um verdadeiro mutirão pela cidadania
no qual todos(as), os vários níveis e instâncias do governo, os poderes legislativo e
judiciário, as entidades e movimentos da sociedade civil e as empresas, se engajem.
Mas será capaz de mudar a lógica férrea da desigualdade e exclusão social entre nós?
Em termos simples, como saciar a fome garantindo a inclusão na cidadania econô-
mica, social e cultural? Afinal, é isso que pode tornar um programa emergencial
base de uma estratégia de desenvolvimento democrático e sustentável.
Precisamos urgentemente tornar o Fome Zero um desafio para a grande política,
impedindo que essa oportunidade trazida por Lula para o Brasil se perca nos mean-
dros da gestão do poder e da administração pública. A viagem de Lula e seus(suas)
ministros(as) aos “fundões” do Brasil dos(as) famintos(as), pelo seu simbolismo,
apontou para a grande política. Mas os cartões-alimentação e os comitês gestores
para verificar comprovantes de compras de alimentos assustam pela sua pequenez.
Corremos o risco de ver abortado um grande programa e cairmos na vala comum
do assistencialismo paternalista. Faltam recursos? Sem dúvida, mas essa escassez foi
produzida num quadro em que as prioridades sempre foram exatamente as que
geram a situação de fome e exclusão social. Para “libertar” recursos já existentes e
dar-lhes nova função vamos precisar de tempo e, sobretudo, temos que avançar no
debate da estratégia que dá rumo e legitima as opções de política. Trata-se de ousar,
pensar grande para fazer grande, como ensinava Betinho.
Neste sentido, surpreende que o Fome Zero não seja a implantação imediata e
urgente de uma política universal de renda mínima entre nós, velha bandeira do
PT. Pior, parece que se caminha para reeditar formas de distribuição de recursos
que até podem saciar imediatamente a fome de quem precisa, mas em pouco ou
nada contribuem para o resgate da cidadania dos(as) famintos(as). A forma que
está sendo pensada para a distribuição e controle do uso dos cartões-alimentação
atrela e limita o(a) receptor(a) do benefício: renda mínima – por mínima que seja
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8

– é a garantia de um direito de cidadania. O que os(as) formuladores(as) do pro-


grama precisam entender é que comer, além de um fato biológico medido pela
quantidade e qualidade de alimentos ingeridos, é um fato social, de exercício de
dignidade humana, de identidade cultural e de participação na sociedade. Na
verdade, num país em que a fome é conseqüência da forma de gestão da relativa
abundância, tem-se fome de dignidade e de cidadania, mais além do prato de
comida que sacia o estômago. Isso se obtém reconhecendo direitos por trás de
cada faminto(a). Poder comprar uma camiseta ou um chinelo de dedo para ser
respeitado(a) pode ser tão importante como um prato de feijão com farinha, para
colocar as coisas de forma direta e simples.
Renda mínima, além de inclusão social, pode ser uma fantástica forma de
retomada e redirecionamento do desenvolvimento do Brasil. Produzir alimentos
para o mercado local é uma especificidade da agricultura familiar. Incluir
famintos(as) no mercado acaba estimulando exatamente o mercado local de ali-
mentos. E fortalecer a agricultura familiar é, ao mesmo tempo, viabilizar um
verdadeiro programa de reforma agrária, democratizando o Brasil rural. Renda
mínima é também criar mercado para produtos populares, estimulando a sua
produção. Gera-se emprego e se distribui renda, num processo virtuoso de estímu-
lo à economia com democratização de oportunidades e distribuição da renda.
Precisamos garantir que o Fome Zero seja de fato um marco de virada de rumo
do Brasil. Mas, para isso, não podemos encará-lo como apenas um dever da soci-
edade para com os(as) excluídos(as). O que precisamos é pensar grande para tor-
nar o Fome Zero uma forma de inclusão na cidadania, pois afinal todos e todas
ganharemos com a participação de mais de 40 milhões de brasileiros(as) na cons-
trução de um Brasil verdadeiro democrático, de bem consigo mesmo.
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SEGURANÇA: UM DIREITO A SER CONQUISTADO

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

No Rio, mais uma vez, estamos diante de um impasse na questão da segurança


pública. Não preciso me deter sobre o verdadeiro estado de calamidade em que nos
encontramos nesta matéria há já muito tempo. Mas estamos cedendo, cedendo, ao
ponto da insegurança ser mais do que um problema de violência pura e simples e
virar um clima cultural dominante, algo do cotidiano e que perigosamente toma
conta do nosso modo de ser e viver em coletividade. Pensamos e agimos admitindo
a insegurança como algo praticamente inevitável. Por isso, vira e mexe, voltamos a
pensar, como agora, que a intervenção das Forças Armadas pode ser a solução, de
preferência com armamento pesado, dando tiro, matando e tudo mais.
Felizmente, parece que até as nossas Forças Armadas estão vacinadas contra tal
deturpação de sua função constitucional e treinamento prático. Segurança inter-
na e Forças Armadas lembram um muito triste período da nossa História. Não é
agora, quando buscamos consolidar a democracia e radicalizá-la, para que todos
os direitos humanos sejam assegurados a todas e todos os(as) brasileiros(as), que
vamos cair na armadilha de resolver o direito à segurança pública com Forças
Armadas. Não estamos e não queremos estar em “estado de sítio”. Tampouco
queremos ficar sob o toque de recolher imposto por criminosos(as). Mas também
é inaceitável a truculência assassina de nossos(as) policiais. Ou por acaso alguém
no Rio se sente seguro(a) com policiais de metralhadora por perto? Enfim, assim
como não dá para esperar que a lógica do terror e da guerra dos fundamentalistas
de todo tipo vá construir a paz no mundo, do mesmo modo não dá para esperar
da lógica de violência de policiais e narcotraficantes algo mais do que violência e
morte, perpetuando o estado de insegurança pública em que vivemos.
O nosso Rio, também nesse quesito da segurança, pode ser tomado como a
vitrine do Brasil. Estamos caminhando perigosamente para um impasse da pró-
pria cidadania e da democracia entre nós. A inexistência de condições de seguran-
ça, como um direito republicano básico, põe em xeque a possibilidade de avan-
çarmos na democratização da nossa sociedade, com mais justiça social, liberdade
e dignidade humanas para todas e todos. Existem, sem dúvida, as questões estru-
turais que geram desigualdades e exclusões sociais de todo tipo. Mas como en-
frentar as questões estruturais se um direito elementar da cidadania inclusiva é
negado de forma tão ampla para grandes contigentes da população? Afinal, como
participar sem segurança para ir e vir, sem poder falar, protestar, exigir, sem ser
ameaçado(a) pela violência? Existe maior violência e insegurança do que o confis-
co da própria voz, da lei do silêncio que é imposta e acaba internalizada? Esta já
é a situação a que muitos(as) estão condenados(as) em nossos cidades, particular-
mente nas áreas de favelas.
A imprensa em geral e nossas elites governantes, em especial aqui no Rio, ten-
dem a nos fazer crer que o problema da insegurança pode ser resolvido com a
ocupação policial e militar das favelas, “guetizando-a”, por assim dizer. As fave-
las já são guetos sem cidadania, mas quem as gera é a própria cidade e não a
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

violência. Aliás, a própria violência não vem das favelas, apenas a população
favelada tem menos condições de se defender da violência que a cidade e os(as)
criminosos(as) lhe impõem. Ela se gesta em relações, estruturas, processos e polí-
ticas de uma sociedade e uma cultura excludentes. Nós, os(as) da “periferia” da
orla, não admitimos, mas temos sido coniventes, beneficiários(as) e até
financiadores(as) da violência, que se abate tão duramente na outra “periferia”.
Importa reconhecer que a insegurança é o outro lado da corrupção que coroe
nossas instituições e que acaba exacerbada no caso do aparato público encarrega-
do da segurança. Não pode existir segurança quando a cultura do favor se sobre-
põe à cultura de direitos. Segurança, como direito, a gente conquista agindo,
reagindo, dizendo “não”, fazendo mudar as políticas. Há uma mudança que pre-
cisamos fazer dentro de nós mesmos(as). O cotidiano da violência e da falta de
segurança acabem penetrando em nossos corações, nos nossos sentimentos e códi-
gos de conduta, afetando a nossa cultura. Vivemos uma cultura de insegurança,
de medo, que acaba dando razão aos(às) que optam pela violência, sejam
criminosos(as) ou sejam policiais. Precisamos mudar de mentalidade. Precisamos
tornar-nos ativistas da segurança. O maior tecido protetor é a nossa própria cida-
dania organizada. Organizemo-nos para participar sem medo. Sejamos intoleran-
tes com qualquer tipo de truculência, em qualquer prática, em qualquer situação.
Isso vai fazer mover governantes e o aparato de segurança que precisamos.
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11

O BRASIL QUE A AMÉRICA DO SUL PRECISA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Com o governo Lula, o Brasil tem uma oportunidade ímpar para definições estra-
tégicas de longo alcance na sua relação com os países vizinhos da América do Sul. E
isso diz respeito não só ao nosso futuro como brasileiros e brasileiras, mas, ao mes-
mo tempo, é da maior importância para os diferentes povos sul-americanos. Nesse
sentido, é de festejar o fato que Lula, desde a sua vitória eleitoral e agora como
governo constituído, esteja dando sinais de construção de uma política totalmente
nova nesse campo de nossas relações internacionais. Lembro, em particular, a clara
opção por um Mercosul fortalecido, indo até à proposta mais ousada de um parla-
mento do bloco de países que o constituem, e a iniciativa Amigos da Venezuela,
como apoio a uma solução democrática constitucional no conturbado país.
Estamos, porém, mergulhados(as) numa nebulosa conjuntura e diante de uma
pesada agenda de negociações. Por exemplo, até é difícil imaginar o tamanho do
estrago que um ataque dos Estados Unidos ao Iraque pode fazer, não só ao povo
iraquiano e a todo o mundo árabe, mas a nós mesmos(as). O encontro do povo
brasileiro consigo mesmo através de Lula presidente pode acabar em desencanta-
mento, em oportunidade perdida, dado o tamanho das restrições e limitações
externas à uma vontade interna de mudanças que a situação de guerra e crise gera.
Ao mesmo tempo, a proposta da Alca (Área do Livre Comércio das Américas),
entrando em uma fase decisiva de negociações, pode solapar qualquer projeto que
não corresponda à subjugação total do destino de nossos países à hegemonia
econômica, tecnológica e comercial, cultural, política e militar norte-americana.
Além da Alca, temos as negociações da OMC (Organização Mundial do Comér-
cio), o possível acordo com a União Européia, as possibilidades comerciais com a
China e a Índia. Como, com que estratégia enfrentar isso tudo que está diante de
nós – e que não depende somente de nós – para avançar ou não?
A inclusão de qualquer país no mundo, hoje submetido à lógica da globalização
– isto é, de estratégias globais para se viabilizar localmente –, passa necessaria-
mente por relações comerciais. Elas são indispensáveis como condição para o de-
senvolvimento de uns e outros. Mas estão longe de serem suficientes. Pensar que a
forma de inclusão de um país, um povo, depende única e exclusivamente de suas
relações econômico-financeiras e comerciais para prosperar é aceitar a lógica do-
minante que cria exatamente as situações de exclusão e pobreza. Negociar sem
condicionalidades todas as propostas comerciais, procurando simplesmente tirar
“vantagens” e escolher as mais proveitosas, pode até ser uma boa estratégia co-
mercial, mas não cria desenvolvimento humano sustentável e democracia
participativa. Além do fato que as chamadas “vantagens comparativas” serem
criações humanas concretas, as vantagens não dão sustentabilidade democrática.
Portanto, não podemos entrar em todas as frentes de negociação de forma
igual, buscando tirar partido das concessões comerciais que, eventualmente, obti-
vermos. Precisamos de uma estratégica política, que aponte prioridades para o
Brasil. O objetivo a perseguir não são meros ganhos comerciais, mas antes de mais
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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nada, o que a negociações podem representar como apoio a nós e nossos(as)


parceiros(as) latino-americanos(as) a um desenvolvimento sustentável e democrá-
tico. É aí que entra a prioridade política sobre a comercial. E de um ponto de
vista político, temos muitas “vantagens comparativas” a criar com nossos vizi-
nhos da América do Sul, países com que compartimos bens naturais, uma unida-
de cultural e uma História.
Portanto, é chegada a hora de nos pensarmos como membros da coletividade
latino-americana e, mais particularmente, sul-americana. Claro, com os seus limi-
tes e as suas possibilidades. Isso nos dá uma prioridade nas negociações. Não se
trata de negar pura simplesmente a Alca, a OMC ou a União Européia. Trata-se
de subordinar tais negociações a uma prioridade que começa no Mercosul e com
uma perspectiva que seja de integração – não de submissão dos países aos interes-
ses econômicos e políticos dominantes no mundo e nem de dominação do Brasil
sobre seus vizinhos. Trata-se de reconhecer e implementar estratégias que apon-
tam para um mundo multipolar, de interdependências solidárias. Diante do desa-
fio de definir e implementar uma agenda de transição pós-neoliberal, o governo
Lula pode começar a se perguntar que Brasil a América do Sul precisa. Por aí
vamos encontrar respostas que apontam para um Brasil e um América do Sul em
processo de refundação democrática, buscando a promoção da maior liberdade e
maior dignidade humanas possíveis para seus povos.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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TRABALHO E CIDADANIA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

No Dia do Trabalho, neste primeiro ano do governo Lula, é necessário reto-


mar uma velha discussão sobre a íntima relação entre condições de trabalho e
cidadania. Na verdade, em última análise, é da democracia substantiva que se
trata, daquela que diz respeito à qualidade das relações sociais que delimitam
efetivamente os modos de inclusão ou, dada a nossa situação de pobreza e desi-
gualdade, de enfrentamento da exclusão social a que estão condenados amplos
contingentes de nossa população. Aliás, a esperança de mudanças em que se gestou
o governo Lula pode se frustrar totalmente se o centro da agenda, tanto no debate
público como das reformas constitucionais, das prioridades orçamentárias e das
políticas governamentais, não for esta questão. O novo contrato social, republi-
cano e democrático, apontando para o desenvolvimento econômico participativo
e sustentável, só vai emergir se nos livrarmos do legado da “ditadura do merca-
do”, que aprisiona as concepções e opções de política e nossas próprias mentes.
Falar em cidadania é referir-se a direitos iguais na diversidade de mulheres e
homens, negros(as), pardos(as) e brancos(as), adultos(as), velhos(as) e jovens. Ver
o trabalho que cada uma ou cada um exerce à luz dos direitos de cidadania é
avaliar até que ponto, por causa do tipo de trabalho ou por mesmo por falta de
trabalho, a própria condição de igualdade de cidadania não é negada. Trazer a
questão da cidadania ligada ao trabalho ao centro da agenda é a forma de romper
com a lógica que divorcia economia e sociedade, produção e gente, crescimento
econômico e igualdade social e cultural, política econômica e política social, po-
der e ética, cujo resultado já conhecemos e sentimos na própria pele. Ao mesmo
tempo, a conquista da cidadania no trabalho e pelo trabalho delimita prioridades
da própria refundação de um projeto de Brasil, agora que povo e nação se reen-
contram com Lula presidente.
Assim, no Dia do Trabalho não é demais lembrar que o direito ao trabalho
está longe de ser assegurado a todas e todos os(as) brasileiros(as). Basta lembrar
os(as) milhões de condenados e condenadas ao desemprego e ao subemprego. Isso
sem contar que, ao mesmo tempo, temos ainda trabalho escravo e trabalho infan-
til. Gerar empregos abundantes e de qualidade é uma prioridade absoluta. Parece
óbvio, mas quais são os sinais que caminhamos para isso? Radicalizar as políticas
de combate ao trabalho escravo e de erradicação do trabalho infantil é indispen-
sável e sente-se disposição para isso. E o que dizer de todos aqueles e aquelas que
estão excluídos(as), têm a sua própria dignidade humana e auto estima afetadas
por não conseguirem acesso a um emprego ou a recursos produtivos? Não há
cidadania possível para aquelas e aqueles que, em idade produtiva, sobraram, são
demais. Mesmo a cidadania dos(as) que trabalham deixa de ser cidadania, pois
soa como privilégio em meio à exclusão. Não será o programa de Fome Zero,
urgente e indispensável também, que irá inverter isso. Como imperativo ético e
político, toda a política do governo deve visar a criação imediata de um processo
virtuoso de geração de emprego e renda. Está difícil por causa a “fragilidade”
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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macroeconômica herdada? Sem dúvida! Então, iniciemos logo e seriamente, sem


escamotear e sem delongas, um verdadeiro mutirão de debate e concertação sobre
o que e como fazer para termos um Brasil de liberdade e dignidade humana para
todos(as). Afinal, podemos até superar a crise, mas e daí? Passamos décadas espe-
rando dias melhores. Estes se fazem no aqui e agora, transformando sonhos em
propostas possíveis. Já sabemos como fazer reforma agrária, como se gera empre-
go apoiando pequenas iniciativas, como condicionar financiamentos para que
grandes empreendimentos sejam socialmente responsáveis. O que falta?
Nosso debate está tomado no momento pela reforma da Previdência. O pro-
blema é seu déficit estrutural e as enormes desigualdades que contém, devido a
privilégios, vistos por muitos(as) como direitos adquiridos. A reforma é uma ne-
cessidade. Mas é algo insuficiente para dar o tom e rumo do novo governo. Por
melhor que finalmente seja, ela não vai gerar o novo. Vai impedir que se avolume
um problema que poderá afetar os direitos futuros ligados ao trabalho – a apo-
sentadoria não é outra coisa – mas não necessariamente vai garantir direitos dos(as)
que não os têm no presente. A bem da verdade, um aspecto importante da refor-
ma tem a ver com a criação de facilidades de inclusão no sistema de previdência
social do enorme contingente dos(as) que se engajam como autônomos(as) ou na
informalidade. Algo muito importante. Mas ainda não estamos falando da cida-
dania substantiva dos que não conseguem acesso a condições de trabalho que
assegurem direitos básicos hoje. Aí, as reformas que precisamos dizem respeito a
todo um arcabouço de políticas sociais e econômicas capazes de gerar desenvolvi-
mento econômico que tenha como premissa o desenvolvimento humano, demo-
crático e sustentável.
Enfim, transformemos o Dia de Trabalho deste ano em um marco do novo
Brasil, com vontade de estar de bem com o seu povo. Não tenhamos medo de
discutir até exaustão as possibilidades e apostemos nelas. Afinal, se o poder dos
mercados é real e temível, nada como a determinação de uma esmagadora maio-
ria que deu uma folgada maioria para Lula tomar a direção da cidadania. Ou
seja, com Lula, queremos um Brasil que se funda no resgate da dignidade de
trabalhar e ter trabalho, de fazer parte, ser incluído(a) e sentir-se construindo a
própria vida e, com ela, a sociedade de que fazemos parte. Exerçamos nosso poder
de cidadania para se contrapor aos mercados e garantir isso.
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UMA VIDA ENTRE SOBRAS E MIGALHAS

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Poderia ter sido num grotão perdido deste nosso Brasil. Aliás, são muitos(as)
os(as) que pensam que algo parecido a gente só vê num lugar esquecido, longe de
tudo. Mas não, foi logo ali, há algumas centenas de metros do Carrefour da
Tijuca, no Morro do Borel, Rio de Janeiro. Por mais que façamos vistas grossas, o
Brasil profundo, da miséria extrema, está aqui ao nosso lado. Ele é feito de restos
e fragmentos que deixamos aos(às) excluídos(as), condenados(as) a viver na mais
absoluta falta de segurança.
Maria Dolores Gomes Carvalho vive ali teimosamente, resistindo. É emocio-
nante vê-la, desde o primeiro momento, com sua postura altiva em meio à misé-
ria, aos 56 anos. O seu pedaço de casa me lembrou os casebres improvisados das
pescarias à beira-rio com meus irmãos. Só que nós não moramos em casebres, lá
passamos poucos dias de aventura e, além do mais, cercados de abundância de
comida, bebida, roupas e facilidades da vida moderna, como costumam ser as
pescarias. A casa de Maria Dolores é um conjunto ordenado feito de fragmentos,
onde ela vive depois de 29 anos. Espremida entre outras casas de favela, no meio
do Morro do Borel, a casa tem um cômodo dividido em dois por armários velhos.
Na frente à cozinha, no fundo a cama onde ela dorme com a filha adotiva de seis
anos. O teto só protege mesmo a cama, pois, em dia de chuva, entra água por
todos os lados. Uma das paredes é um tapume, com um buraco que serve como
janela e dá de cara a um depósito de lixo. A outra parede é de alvenaria. Aí ficam
mais dois cômodos, onde vive o filho mais novo, ainda estudando, e a filha com
dois netos de Maria Dolores. Tudo feito com paciência e solidariedade, do padre,
das igrejas, dos(as) vizinhos(as), de filhos(as) e amigos(as).
O desejo de Maria Dolores é ver a sua casa sem as goteiras da chuva, que
alagam o chão de sua casa, e ter um banheiro. Por enquanto, uma torneira garan-
te o acesso à água potável. É incrível como nosso lixo de velhos equipamentos e
objetos pode virar utilidade nas mãos de excluídos. A velha geladeira com porta
amarrada, o fogão, a pequena TV em preto e branco, os restos de fios emendados
que formam a instalação elétrica, tudo em sua precariedade continua servindo.
Estive na casa de Maria Dolores com os responsáveis pela revista Democracia
Viva, editada pelo Ibase. Fomos entrevistá-la para o número temático sobre segu-
rança alimentar. Queríamos saber como pessoas como ela fazem para se alimentar,
as estratégias que adotam, a fome que passam. Ao longo da entrevista, fomos sendo
introduzidos(as) numa história de vida toda ela de luta contra a insegurança. Maria
Dolores estudou até o quarto ano. Aos dez anos, começou a trabalhar como domés-
tica. Teve cinco filhos, o primeiro aos 16 anos. O marido faleceu e ela virou o esteio
da família. Depois de 20 anos como doméstica de uma mesma casa, perdeu o em-
prego e tudo. Aliás, nunca recebeu um direito trabalhista. Carteira assinada, só dois
meses numa pequena confecção, lá nos idos do tempo do Cruzado, em 1988.
A sua vida foi sendo construída com pertinência, com bicos daqui e dali e
muita solidariedade. Apesar de nunca ter sido beneficiária de cestas básicas, cupões
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ou cartões, esquecida como muitos(as) pelas tais políticas assistenciais focaliza-


das, Maria Dolores afirma que sempre teve o que comer. Pode faltar de manhã,
mas algo chega para comer à tarde, pela mão de alguém. Há um tecido protetor
nas áreas pobres, feito por eles(as) mesmos, tecido que explica a generosidade
como a dela que, na mais absoluta carência, adotou a pequena Ianca, sem mãe,
aos dois meses de idade.
A questão central para ela, a base de sua inclusão social e de sua visão da
dignidade humana, se resume no emprego. Ter emprego, “até de R$ 100,00”, é o
que dá segurança para Maria Dolores. Ela não quer cesta básica ou coisa que o
valha. Quer emprego e respeito que a renda assim recebida dá. Isso num contexto
de absoluta insegurança no hoje, no amanhã, no depois. Nunca é demais lembrar
que, além da falta de tudo na vida cotidiana de Maria Dolores, faltam direitos
republicanos básicos no Morro do Borel. Ainda na semana passada, numa supos-
ta ação contra os(as) traficantes, a polícia baleou cinco jovens, com quatro
mortos(as), um deles afilhado de Maria Dolores. A manifestação de protesto da
comunidade ao menos levou à troca do comandante do batalhão da PM.
É, sem dúvida, impactante o papo com Maria Dolores, falando com emoção e
dignidade de sua vida de lutas contra as inseguranças. Ela, como tantos e tantos
outros e outras, tem hoje uma esperança firme na mudança. Ainda ecoa forte para
ela a mensagem de Lula e sua confiança é total. Saberemos mudar o quadro de
injustiças que aí está?
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UMA AGENDA PÓS-NEOLIBERALISMO

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Os dias vão passando e logo entraremos no sexto mês do governo Lula. Daqui,
dali e de quase todo lugar, num crescendo, estão surgindo vozes críticas ou sinais
de insatisfação. Também sinto que a minha paciência está diminuindo a cada dia,
pois pensei que as mudanças seriam mais rápidas, ou ao menos mais claras, tipo
canteiro de obras de metrô no centro da cidade, com demolições e estacas sendo
fincadas a olhos vistos, dia e noite. Mas, parece que não é assim. Qual será a dose
de paciência não sei. Afinal, já está bem próxima a celebração de 20 anos das
Diretas Já e passa dia, passa mês, passa ano e... Parece campeonato sem vencedor.
O motivo principal das críticas é a política macroeconômica, com um foco no
Banco Central e nas taxas de juros. O próprio debate sobre as reformas da Previ-
dência e Tributária tende a ser marcado pelos parâmetros com que é vista a polí-
tica macroeconômica até aqui seguida. É como se o governo se resumisse a isso.
Pior, é como se a transição para o após, a mudança que o Brasil precisa e que viu
em Lula Presidente um condutor, se resumisse a inverter sinais, com as mesmas
políticas e mesmas prioridades. Sei que é difícil, mas me recuso a pensar assim.
Aliás, apesar de uma militância constante contra o neoliberalismo, em sua ascen-
são nos 80, auge nos 90 e crise neste começo do século 21, me surpreendo também
olhando índices de bolsas e riscos, juros e taxas de câmbio, desempenho das ex-
portações e níveis de superávit fiscal, como indicadores supremos da bonança ou
do possível desastre. Pois, pois, pois, diriam os(as) patrícios(as), não é contra a
centralidade dos tais mercados que estamos lutando? Se a mídia adota e defende
um tal ponto de vista, o problema é, em primeiro lugar, dela. Mas se nós caímos
nesta, aí estaremos perdidos(as). Ainda mais num momento em que a transição
para um outro modo de ver e fazer é possível.
Então, o que tem que mudar e aquilo que temos que cobrar de Lula e seu gover-
no é uma nova agenda, livre dos grilhões que aprisionam o projeto de um Brasil
democrático e sustentável para os(as) brasileiros(as), tanto daqueles(as) ideológicos(as)
do neoliberalismo que tudo resumem ao centralismo do mercado, como os(as)
políticos(as) que defendem apenas o crescimento econômico mesmo selvagem e
concentrador como conhecemos no passado. Quando consigo pensar assim – insis-
to, é difícil e muitas coisas do governo não ajudam – até renovo a esperança.
A agenda deve ser, em termos curtos e grossos, a radicalização da democracia.
Superar o neoliberalismo é por democracia substantiva em seu lugar, ponto! Tra-
ta-se de democracia como modelo de desenvolvimento. Aliás, diga-se de passa-
gem, algo esquecido. Precisamos voltar a pensar, debater, propor, criar condições
de desenvolvimento econômico democrático e sustentável, como alternativa à única
opção pelo mercado a qualquer custo da visão e prática do neoliberalismo Aceito
o princípio, trata-se de trabalhar numa agenda prática de três eixos principais:
1. A participação como fundamento e modo de fazer o desenvolvimento. O de-
senvolvimento não depende só do mercado, da lei do(a) mais forte, mais efici-
ente, mais produtivo(a) em termos econômicos. O desenvolvimento é, antes de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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tudo, um projeto. Trata-se de definir o que queremos para nós e nossos(as)


filhos(as), pactuar entre nós mesmos(as), concertar o tipo de sociedade, econo-
mia e Estado que queremos. Certo, não estamos partindo do nada. Mas estamos
de acordo que isso vem antes, que se trata de incluir todas e todos, dar voz e
vez a cada uma e cada um, contar com a sua plena participação? Parece sim-
ples. Na diversidade do que somos, estamos conseguindo exprimir o que ne-
cessitamos e o Brasil que queremos? O modo de fazer é mais que um enfeite.
Estamos diante de uma verdadeira revolução de prioridades no fazer ao aceitar
que o fundamento do desenvolvimento só pode ser a cidadania. Devo reco-
nhecer que até aqui Lula me vem surpreendendo neste aspecto. Estamos, sem
nenhuma dúvida, diante de um governo que leva a participação a sério. Sabe-
remos traduzir isto em um agenda coletiva de desenvolvimento? Isso, devemos
reconhecer, que agora depende mais de nós do que do governo. Portanto, até
aqui, a primeira condição para a transição está satisfeita.
2. Um modo de produção com acesso democrático aos recursos e riquezas produ-
zidas. Não se trata de negar que baixar juros e a mudança na parafernália de
medidas econômico-financeiras ao alcance do Ministério da Fazenda e Banco
Central são condições necessárias para uma economia saudável. Mas não são
suficientes para democratizar tal economia, o que almejamos. Precisamos de
uma definição de prioridades de investimento, de democratização no acesso a
recursos produtivos, de desenvolvimento e difusão tecnológica, de políticas
distributivas, que funcionem como verdadeiros indutores do desenvolvimento
virtuoso com inclusão e distribuição de renda. O Brasil não pode mais crescer
contra a sua população e saqueando os seus próprios recursos naturais. Trata-
se de negar as prioridades econômicas definidas em si mesmas, incorporando
parâmetros éticos e de solidariedade ao lado da eficiência e produtividade como
bases de uma economia saudável. Novamente, a participação política, contan-
do com o empoderamento dos(as) até aqui excluídos(as), é condição para pen-
sar um novo modo de produção e distribuição das riquezas, como elemento
fundamental de um agenda pós neoliberal para o Brasil. Neste aspecto, o go-
verno Lula ainda não vem emitindo sinais claros dos rumos a seguir.
3. Uma inserção soberana nas relações internacionais. Outro vetor da agenda de
transição com radicalização da democracia é redefinir o modo de nossa inclu-
são no mundo. Não podemos esquecer de nossa responsabilidade, em particu-
lar na América Latina e África. Não se trata de hegemonia, mas de relações
históricas, possibilidades e expectativas, especialmente em relação ao ascen-
dente movimento da cidadania planetária. O Brasil é visto como ponta de
lança de um outro mundo por fazer, multipolar e diverso. Isso implica em
pensar interdependências, em afirmação de soberania com condicionalidades
concertadas, em um sistema multilateral democrático e forte. Mais além do
acesso a mercado, trata-se de priorizar a garantia de um sistema mundial em
que todos os direitos humanos alcancem todos os seres humanos. A agenda
humana, acima da agenda econômica e dos mercados. Neste particular, Lula
vem imprimindo uma nova marca. É claro que o Brasil não busca ser simples-
mente sócio do pólo dominante do mundo, mas antes expressão legítima dos
deixados de fora. É no plano concreto das negociações com América Latina,
EUA e Europa que uma agenda nova deve ser construída.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

Evidentemente, são apenas três eixos de uma agenda por construir. Identificá-
los, livre das viseiras do neoliberalismo e do Consenso de Washington, já é um
importante passo para avançar. Preocupo-me, sobretudo, em evitar a onda de
pessimismo que teima em tomar conta do país. Basta de derrotas! Vamos à luta!
O caminho da participação, mais fundamental, é também o mais aberto.
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O PPA E A RETOMADA DO CRESCIMENTO

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Está em discussão o PPA – Plano Plurianual 2004-2007. Orientação Estratégica


de Governo. Um Brasil Para Todos: Crescimento Sustentável, Emprego e Inclusão
Social. Trata-se das linhas mestras do que o governo Lula pretende fazer nos pró-
ximos anos, para além da tal estabilidade econômica. Estamos diante de uma
dupla novidade. Primeiro, são diretrizes que tentam dar corpo à proposta vitori-
osa nas eleições presidenciais de 2002. Em segundo lugar, nunca na História do
Brasil o governo federal realizou consulta pública dessa envergadura sobre orien-
tação que é de sua competência legítima definir. Vale a pena refletir a respeito de
tais iniciativas, indiscutivelmente democráticas e democratizadoras.
O PPA sinaliza para a retomada do desenvolvimento do Brasil. Mesmo como
intenção, veio em boa hora. O país precisa urgentemente reverter o quadro de
deterioração a que as políticas neoliberais o levaram. Para isso Lula foi eleito.
Gerar emprego e renda, com justiça social e ambiental, é um imperativo ético e
político a que não podemos fugir. O encontro entre povo e nação, que Lula sim-
boliza, pode ser resumido na criação de condições de desenvolvimento econômico
democrático e sustentável.
Como analista, devo reconhecer que ainda estamos muito longe da definição
de uma verdadeira estratégia de desenvolvimento. Em síntese, o PPA aponta o
desejável em termos de desenvolvimento, mas pouco, muito pouco, como fazê-lo.
Isso, no entanto, não deixa de ser bastante diante do vazio intelectual e político
sobre o desenvolvimento que o pensamento e a prática do neoliberalismo legaram
ao Brasil e à América Latina. Parece que está soando o momento de retomada de
um vigoroso modo de pensar o desenvolvimento, que teve exatamente na Améri-
ca Latina a sua expressão máxima e como um de seus expoentes o grande mestre
e pensador Celso Furtado. O PPA e o que ele aponta é um estímulo e espero que
inspire nossos(as) intelectuais para ir à luta e nos fazer pensar em como extrair de
nossas potencialidades e problemas um modelo virtuoso de desenvolvimento
participativo, humanamente justo, ambientalmente sustentável.
Como cidadão militante, dirigente de uma ONG como o Ibase, não posso
deixar de assinalar as balizas que o PPA finca e os parâmetros que define para o
desenvolvimento do Brasil. Em primeiro lugar, reconhece a centralidade do Esta-
do como condutor e indutor do desenvolvimento. Trata-se de um papel ativo em
termos macroeconômicos para além de seu atual papel de gestor de taxas de juros
e de superávit fiscal ao gosto do mercado. Não é pouco, pois se está negando à
mão invisível do mercado e seus(suas) agentes a capacidade de, por si sós, gerarem
o desenvolvimento. Aponta-se para a política como condição de construção da
sociedade, da sua economia. É o que se espera do governo Lula. Como? Não está
claro, mas se aposta no possível que o pacto entre os sujeitos da coletividade –
expresso na participação e na correlação de forças políticas no âmbito do Estado
– pode gerar como condição de desenvolvimento. Enfim, todas e todos, e não só
os(as) mais fortes na esfera do mercado, podemos nos considerar artífices do
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21

desenvolvimento que o Brasil precisa, que o Brasil quer. Isso se expressa mais clara-
mente, ao longo dos documentos do PPA postos em debate, na idéia da retomada do
planejamento participativo como ferramenta fundamental do desenvolvimento.
Ainda a respeito dos parâmetros para pensar o desenvolvimento, merece des-
taque a busca de um modelo de crescimento pelo consumo de massa. Para isso,
reconhece-se que vai ser fundamental definir políticas ativas de emprego, de
inclusão social e de redistribuição de renda. Está aí o embrião para que sejam
resgatadas as políticas sociais, de políticas voltadas para atender carências para
políticas estratégicas capazes de qualificar e mudar o próprio desenvolvimento.
Só faltou reconhecer que não pode haver verdadeiro desenvolvimento do Brasil
sem a garantia de todos os direitos humanos e de cidadania a todas e todos
os(as) brasileiros(as). Afinal, a cidadania não é uma decorrência da economia,
mas sua verdadeira e única constituinte numa sociedade democrática.
Há, sem dúvida, um progresso no PPA, uma quase revolução no modo de pensar.
O “social” – um dos mega-objetivos da estratégia – é definido como “eixo do projeto
de desenvolvimento”. Não é ainda um imperativo ético do que pode e não pode ser
feito, mas já é um grande avanço. A maior crítica que se pode fazer é o limitado do
próprio “social” na visão que transparece. Tudo parece ser visto à luz das relações
sociais de produção, como se o “social” do Brasil não estivesse profundamente mar-
cado pela cor e etnia, pelas relações de gênero, pela idade e tantas outras relações e
situações. Para a cidadania brasileira, o problema não é de uma desigualdade mera-
mente econômica, mas de múltiplas e diversas desigualdades entrelaçadas.
Mais importante é o novo modo de ver a dimensão regional – outro mega-objeti-
vo do PPA. Faz-se uma reviravolta quando a questão regional deixa de ser o drama
das regiões em si e passa a ser vista como questão a ser enfrentada politicamente para
promover a coesão territorial e econômica, com eqüidade social. Também, pela pri-
meira vez, a dimensão ambiental recebe um novo olhar, como possibilidade que te-
mos e como direito a um ambiente saudável de todas e todos, da nossa geração e das
gerações futuras. Estava na hora de deixar de pensar a questão ambiental como pro-
blema ou condição limitante do desenvolvimento. Finalmente, o PPA sinaliza para a
radicalização da democracia como questão chave no desenvolvimento que buscamos.
Nesse ponto, quero insistir, está a segunda e, no meu modo de ver, a mais
importante novidade do PPA. Digo isto porque estamos saindo de um conjunto
de definições e parâmetros e estamos entrando no campo das possibilidades de
desenvolvimento. A estratégia de desenvolvimento ainda precisa amadurecer,
explicitar-se, revelar a sua consistência e, depois, concretizar-se em programas nos
diferentes ministérios. Porém, a proposta do PPA não pede que esperemos pelas
definições. Pelo contrário, convida-nos a participar, dada a opção radicalmente
democrática do governo Lula no modo de fazer política. Pela primeira vez na
História do Brasil, montou-se um amplo processo de consulta pública sobre a
obrigação constitucional do governo de apresentar para a nação uma proposta de
PPA. Sinceramente, não é pouco, ao menos para quem acredita que o processo
como se define é mais importante e qualificador dos resultados do que o resultado
em si. Poderemos não avançar muito na definição do Brasil que queremos, mas ao
menos não são iluminados(as) ou usurpadores(as) do poder que nos dizem o que
é bom e desejável em termos de desenvolvimento. Nós mesmos(as) somos
chamados(as) a participar das definições. Vamos à luta; ela vale a pena nem que
seja como primeiro passo. Como diz o poeta, caminhos se fazem ao andar.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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QUANDO PRIVILÉGIOS SE CONFUNDEM COM DIREITOS

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

As notícias veiculadas recentemente sobre o MST (Movimento de Trabalhadores


Rurais Sem-Terra) dão a clara impressão de que são eles(as) os(as) culpados(as)
pela violência no campo. Parece que querem nos fazer esquecer os séculos de lati-
fúndio e do domínio dos(as) donos(as) de gado e gente. É bom lembrar que tam-
bém o presidente Lula – quando líder sindical – foi considerado perigoso crimino-
so simplesmente por defender os direitos de trabalhadores e trabalhadoras.
Na verdade, movimentos sociais com suas ações participativas diretas – sejam
greves nas fábricas ou ocupações de fazendas –, nada mais fazem que forçar o
ritmo da democracia. Ou será crime reivindicar o direito a um pedaço de terra? É
crime defender a partilha da terra, através de um programa de justiça e solidarie-
dade, como o de reforma agrária? É crime fazer acampamento ao longo da estra-
da para se fazer notar pelas autoridades? É crime demonstrar com palavras e atos
que alguém existe e que para continuar existindo precisa de comida e de terra
para trabalhar? Lamentavelmente, estamos em um país onde privilégios se con-
fundem com direitos, onde o poder está acima do direito, onde as elites hereditá-
rias não admitem ser questionadas. Só que esse tempo está chegando ao fim.
É triste ver quanto ainda está no coração da sociedade brasileira uma cultura
pouco democrática. Falta-nos a consciência da radicalidade dos direitos iguais na
diversidade. E aí nossa ainda frágil democracia patina. Diante da menor ameaça
aos privilégios estabelecidos, monta-se uma reação orquestrada de defesa da or-
dem estabelecida, do estado de direito, das leis e até de uma tal “liturgia do poder
presidencial”. Que falsidade ver rebaixamento na dignidade de um presidente ao
receber amigavelmente lideranças dos(as) sem-terra, mas elogiar bonés, gestos e
sorrisos em festa típica de latifundiários(as) e endinheirados(as) do tal agrobusiness.
Quer-se dureza do presidente Lula no trato com os(as) herdeiros(as) de séculos de
escravidão e miséria, ao mesmo tempo em que se elogia sua capacidade em sorrir
para aqueles(as) que se sentem no direito de manter milícias privadas para defen-
der o sacrossanto direito à propriedade privada.
É claro que não podemos ignorar a irresponsabilidade que muitas das ações
dos(as) sem-terra têm demonstrado. E não devemos jamais aceitar a violência. Ela
agride a institucionalidade existente e, pior, leva à destruição e não à construção
de justiça social. Mas é óbvio que violência não existe no vácuo. É expressão de
relações vigentes, onde a força é a regra. Ou a violência das milícias privadas
dos(as) proprietários é vista como legítima? E que dizer das polícias que sempre
tendem a estar do lado dos(as) poderosos(as)? E as decisões do Judiciário, que
sempre favorecem quem tem poder e não quem tem direitos? Sem dúvida, precisa-
mos desarmar o campo. Mas quem mesmo tem armas? Por que as mortes se
contabilizam quase só de um lado? Não sejamos hipócritas.
Não se trata de fazer apologia dos(as) sem-terra. Trata-se de pensar na oportu-
nidade que temos de construir um país democrático. Pressões e contrapressões são
fundamentos da democracia. Cabe extrair daí compromissos históricos entre as
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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partes que nos levem para um mundo mais justo e participativo. Ou alguém acre-
dita que haverá alguma mudança sem pressão política? São séculos de espera.
Temos terra, muita terra. E temos sem-terra, muitos(as) sem-terra. Algo tem que
ser feito.
Lula, ponha o boné do Sem-Terra, sem medo, como é de seu estilo. E inicie de
uma vez por todas um irreversível processo de reforma agrária, que traga liberda-
de e dignidade humanas, condições de desenvolvimento democrático e sustentá-
vel, enfim, a cidadania a quem quer simplesmente um pedaço de chão para se
sentir parte deste Brasil. Não se deixe ofuscar pelos(as) fantasmas do passado que
rondam o Palácio do Planalto e agridem a cidadania através das falácias veicula-
das pela imprensa.
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A PARTICIPAÇÃO PODE FAZER ENORME DIFERENÇA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Uma característica marcante da história do Ibase é manter sintonia fina com a


conjuntura, avaliando as possibilidades dos limites para a ação da cidadania. Sem-
pre existem limites, ou seja, os processos sociais na História humana são o resultado
de muitas condições e relações, que limitam as opções, a prática da liberdade. Mas
sempre existem possibilidades em que a intervenção pode contribuir para que mu-
dem ou melhorem as coisas. Para uma entidade como o Ibase, cuja razão de ser é a
radicalização da democracia, avaliar as circunstâncias dadas para saber como e onde
canalizar a sua atenção é algo vital, condição sine qua non de sua existência.
Estamos entrando num processo interno de avaliação de tudo o que fazemos.
Uma comissão externa de avaliadores(as) está pondo toda a sua capacidade a
serviço da tarefa e seu olhar vai nos ajudar muitíssimo nesta revisão que precisa-
mos fazer. O processo tem um momento alto na realização da IV Plataforma
Ibase, de 7 a 9 de agosto, quando todos(as) – a comissão avaliadora, associados(as)
e conselheiros(as), colaboradores(as), aliados(as) e parceiros(as), nacionais e inter-
nacionais, junto com as equipes internas e a direção – estaremos debatendo o
quanto sintonizados estamos com o contexto nacional e internacional. Nada mais
oportuno que tal avaliação no momento.
Vou limitar-me aqui a destacar alguns elementos essenciais da conjuntura nacio-
nal que precisamos considerar enquanto Ibase. Sempre defendemos a participação
da cidadania como o elemento chave determinante da democracia. Em síntese, afir-
mamos que democracia se expressa, de um lado, no tipo de Estado e no modo de
atuação dos governos e, de outro, no modo como se organizam e funcionam eco-
nomias, vive-se em sociedade, produz-se a cultura. Afirmamos, também, que o que
qualifica, em última análise, uma democracia na História são os seus sujeitos, as
cidadãs e os cidadãos que a constituem. Por isso, de forma sintética e simples, é o
modo de participar, a extensão e intensidade da participação cidadã que acabam
conformando a democracia real, para além do Estado e da economia.
Tendo tal referência, pensemos o momento brasileiro com o governo Lula. Cla-
ro que ele não existiria não fosse uma determinada evolução da cidadania em nosso
país. Não cabe aqui fazer a história a respeito. Cabe, sim, avaliar o momento e ver
o que falta, por assim dizer. Temos o governo Lula real, com seus(suas) ministros(as)
e políticas, com acertos e trapalhadas, e temos o governo Lula possível. O real é
uma conquista, fruto de uma eleição, das alianças para a governabilidade, das pes-
soas que assumiram postos, da correlação de forças no Parlamento, etc., etc. O
possível é o governo Lula que a cidadania em ação pode fazer, pela participação.
Um detalhe fundamental: o governo Lula é o primeiro governo, na História do
Brasil, que se abre à participação como modo de fazer políticas governamentais. A
tal possibilidade está ao alcance das mãos, o que muda em muito a equação.
Vejamos de perto a questão. Nunca estivemos diante de um governo que, ao
invés de anunciar uma política definida que vai seguir, convida representantes de
diferentes setores para sentar a uma mesa e definir juntos(as) o quê e como. Bem,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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sempre é possível dizer que o convite a participar é sobre a perfumaria e não o


essencial. Afinal, o Banco Central e a política macroeconômica escapam às cha-
madas mesas de concertação. É verdade e indicador dos limites do novo modo de
fazer políticas, como o chamo. Mas será que não é importante participar do pro-
cesso do PPA – Plano Plurianual de Investimentos, que pode definir o quanto o
desenvolvimento do Brasil será democrático e sustentável? Isso para tomar um
exemplo de agora, quando se realizam as consultas à sociedade civil. Mas o que
dizer do Conselho Econômico e Social, do Consea – Conselho Nacional de Segu-
rança Alimentar, das Conferências Nacionais em preparação, enfim, da vontade
de consultar, ouvir, concertar deste governo? Estamos, indiscutivelmente, diante
de novas possibilidades para radicalizar a democracia.
O Ibase precisa reconhecer isso e, em sua autonomia, atuar a partir disso, bus-
cando um plus em termos de democratização. Precisamos nos engajar a fundo nos
processos participativos que se abrem. Mas precisamos ir mais além. A conjuntura
está carregada. A abertura do governo à participação ampla suscita reações dos(as)
que sempre estiveram em conluio com o poder no Brasil. Velhos(as) fantasmas
começam a aparecer. Grupos com interesses e privilégios ameaçados começam a se
organizar, mesmo entre as forças que apostaram em Lula. As coisas se anunciam
mais difíceis para que o Brasil faça a unidade entre povo e nação, mesmo com um
líder popular como Lula.
É aí que fortalecer a participação cidadã pode fazer enorme diferença. O Ibase
tem muito a dar neste campo. Se governos agem segundo as pressões políticas das
diferentes conjunturas, o momento é de pressionar pelo lado dos direitos huma-
nos para todas e todos os(as) brasileiros(as). Pressão conseqüente, que aponta
alternativas estratégicas. Pressão para mais e não para menos. Não podemos dei-
xar que a corda estique para o lado dos(as) que sempre tomaram o governo como
seu síndico, administrador dos bens públicos a seu favor. Precisamos manter a
possibilidade do governo Lula se mover pelo meio, porque uma cidadania ativa,
de movimentos e organizações sociais, exige mais pelo outro lado. O papel do
Ibase é alimentar a esperança que a ação cidadã pode representar quando irredutível
em seus propósitos.
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O IDH E O NOVO MAPA DO MUNDO

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

A divulgação do Relatório 2003 de Desenvolvimento Humano pelo PNUD (Pro-


grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento) permite olhar o mundo de
uma perspectiva bastante diferente daquela dos arautos da globalização. Trata-se
de um mapa do mundo com uma preocupação nas condições que desfrutam os
seres humanos, com base em indicadores de qualidade de vida. O IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano) é calculado pela ONU desde 1975 e seu grande méri-
to está justamente em colocar pessoas antes das economias. Medem-se os ganhos
em qualidade de vida que as economias estão gerando. Depreende-se claramente
dos relatórios que a saúde das economias dos países não necessariamente – e até
pelo contrário – significa bem-estar para suas populações. Também fica claro que
ganhos em desenvolvimento humano dependem muito de decisões políticas.
O desenvolvimento econômico é indispensável, mas insuficiente. Prova disso é
que os grandes do mundo, aqueles do G-8 – Estados Unidos (7º lugar), Japão
(9º), Alemanha (18º), Reino Unido (13º), França (17º), Itália (21º), Canadá (8º)
e Rússia (63º) –, não são exatamente os melhores em desenvolvimento humano.
Apesar do crescimento capitalista espetacular da China por mais de uma década,
entre os 175 países avaliados ela ocupa apenas o 104º lugar.
Mas o que de mais revelador contém o Relatório 2003 de Desenvolvimento
Humano é um cabal desmentido das benesses da globalização. Segundo o PNUD,
21 países diminuíram o seu índice de desenvolvimento humano na década dos 90,
exatamente no auge da expansão das políticas neoliberais. A piora em termos de
qualidade de vida foi particularmente concentrada na África. A conclusão é que
a globalização contribui, sim; mas para aumentar a desigualdade no mundo e no
interior dos países.
Outro dado a nos fazer pensar bastante é que ganhos em termos de qualidade
de vida são mais persistentes do que meros ganhos econômicos. Longevidade,
redução da mortalidade infantil e do analfabetismo, maior escolaridade, são to-
dos componentes do que o PNUD considera indicadores de qualidade de vida,
que entram no cálculo do IDH. Tais indicadores dependem de mudanças estrutu-
rais sustentáveis nas sociedades, por força de políticas públicas, criando condições
coletivas para um desenvolvimento mais eqüitativo para todas e todos os seus
membros. São ganhos que se identificam com as próprias pessoas, são suas quali-
dades. Ninguém tira a escolaridade de alguém depois de adquirida, mesmo que
essa pessoa perca o emprego ou a renda, por exemplo. Bens coletivos, como sane-
amento e saúde pública, têm efeitos mais duradouros sobre a qualidade da vida
dos(as) habitantes de um país do que o acelerado crescimento do PIB e das expor-
tações. Não fosse assim, não seria compreensível o índice da rica e atualmente
devastada Argentina (34º) e da pobre Cuba (52º).
O Brasil também merece destaque, apesar do fraco crescimento econômico.
Estamos melhorando nosso IDH de forma persistente. Não seria isso revelador de
que a democracia nos fez encontrar o rumo do desenvolvimento humano? Afinal,
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27

apesar de nossa vergonhosa desigualdade social – com a agravante racial que car-
rega –, estamos melhorando a qualidade de vida. Ouso dizer que melhoramos à
medida que melhora nossa cidadania coletiva, na proporção em que mais brasilei-
ros e brasileiras são incluídos(as) nos direitos de cidadania, começando pelos di-
reitos políticos e avançando pelos direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais. O jeito é acelerar o passo da democratização, tendo-a como referên-
cia para o desenvolvimento. Isso é opção de política, não é obra de mercados.
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O QUE DIRIA O BETINHO DO MOMENTO?

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

No dia 9 de agosto de 1997 morria o Herbert de Souza, o nosso Betinho. Lá se


vão seis anos sem a presença física de uma figura pública ímpar na defesa de
causas da cidadania e na promoção dos direitos humanos e da democracia no
Brasil. Betinho buscou mas não conseguiu viver até a festa cívica da eleição e
posse de Lula Presidente do Brasil. Uma pena.
Lembrando os finais de dia, no Ibase, com longos mas estimulantes debates de
conjuntura entre amigos(as)-cúmplices, na intuição de longo alcance, na simplici-
dade com que apresentava as suas ousadas idéias sobre as questões mais quentes,
fico matutando o que diria o Betinho do momento brasileiro. Aliás, momento
que merece ser dissecado pelo que revela de mais profundo do que somos e para
onde vamos como povo ainda em busca do encontro consigo mesmo. Assentada
a poeira das celebrações, o governo Lula em ação reanima o velho debate sobre as
possibilidades de nossos limites como projeto de país de uma maneira bem acirra-
da, para ninguém ficar de fora. Precisamos encarar o desafio de pensar longe, sem
medo de escancarar tanto nossas mazelas como o curto caminho que nos separa
do acerto de rumo.
Penso que Betinho concordaria comigo em definir o momento como uma es-
pécie de destampe das contradições. Está ficando claro que o governo Lula não
tem as soluções prontas, as grandes propostas que resgatam a chamada dívida
social de uma vez por todas, o milagre da definição de um modelo de desenvolvi-
mento autônomo e sustentado do Brasil. Mas está claro, também, que Lula apos-
ta no “pacto de incertezas” que significa a prática da democracia na busca de
soluções, na construção de propostas, na definição da estratégia de desenvolvi-
mento desejável e possível do Brasil. Até aqui, esta talvez seja a sua maior novida-
de: um novo modo de definir as políticas, mais do que elas mesmas. Isso provoca
uma revelação e até um “desnudamento” público, por assim dizer, das identida-
des e interesses dos diferentes sujeitos sociais e seus(suas) representantes, um
reposicionamento estratégico e tático em termos políticos, com ações, reações e
entrincheiramentos surpreendentes, com uma intensificação do debate público e
radicalização de propostas.
São as nossas contradições mais profundas que começam a emergir à luz do
dia. Simplificando, entre as ameaças dos(as) especuladores no nível do mercado,
com seus tentáculos globalizados, e as pressões dos movimentos sociais, teremos
muitos momentos de suspense e angústia até que se dê um passo no rumo de
enfrentamento da exclusão e das desigualdades sociais que o Brasil precisa dar. Há
que se reconhecer que não é a consciência das contradições que acaba por destruir
as sociedades, mas a incapacidade política de extrair delas a força de superação,
através de concertações e pactos entre os diferentes sujeitos em luta. E democracia
é exatamente este modo de politicamente construir a partir das contradições e
tensões, superando-as. Democracia vista como opção estratégica e não como uti-
lidade política de ocasião. Posto isto, penso que o modo de ser do governo Lula
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vai ser isso mesmo: um radical compromisso com a democracia, que significa um
viver sob tensão entre a concertação e a ruptura como condição de construção de
propostas e de um novo rumo para o Brasil, onde povo e nação se encontrem,
com desenvolvimento humano sustentável.
Aqui é bom que se ponha o dedo na ferida certa, bem ao gosto de Betinho.
Afinal, sejamos razoáveis, quem provoca a tensão? Os(as) sem-terra e os(as) sem-
teto? Por que somos tão incapazes de ver nos(as) agentes de mercado e na ditadu-
ra que impõe à economia, ao governo e à sociedade como um todo, a causa das
tensões? Para quem a tão explícita ameaça permanente dos tais mercados é sinô-
nimo de estabilidade? Por acaso, não é a total falta de regulação do chamado
mercado financeiro – matriz do modelo que o governo Lula herdou e que não vai
se livrar tão facilmente, pelo visto – que não só impede mas até acentua a exclu-
são social, com falta de geração de empregos, com maior concentração de renda,
etc., etc.? Ou ainda, olhando pela outra ponta, a tensão são os(as) sem-terra que
provocam ou as milícias de jagunços(as) dos(as) latifundiários(as) e a falta de
recursos públicos – dado o atrelamento da política à produção de superávit fiscal
– para a efetivação da tão almejada reforma agrária?
As falsas ou meias verdades, tão naturalmente apregoadas nos jornais e até
subscritas por grandes formadores(as) de opinião, precisam ser desmascaradas neste
momento. Vemos todos os dias que o mercado, com sua lógica, exclui e até mata.
Parece um gatilho apontado para as nossas cabeças. Pior, nos tira a capacidade de
pensar diferente. Afinal, o afloramento das tensões sociais é causa da instabilida-
de ou apenas revelador do quanto submeter-se aos mercados nos gera uma situa-
ção de grandes conflitos e inseguranças? Debater nossas contradições, aceitar o
desafio do governo Lula de se expor, de confrontar-se com os outros e as outras,
de fazer valer nossa cidadania na diversidade do como somos, é uma condição
indispensável para que ganha a democracia e, ao mesmo tempo, reencontremos o
rumo possível do Brasil de liberdade e dignidade humana que sonhamos para
todas e todos os brasileiros. Tenho certeza que Betinho concordaria com esta mi-
nha análise.
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DEMOCRACIA, SOCIEDADE CIVIL E POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA – NOTAS PARA UM DEBATE

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Introdução
1. Após um ciclo de ditaduras e de guerras revolucionárias, a América Latina
trilha agora os difíceis caminhos da construção democrática. Sem dúvida, isto
deve ser visto como apenas uma tendência. Numa tão vasta e complexa região,
atrás da latinidade se esconde ampla diversidade de situações. Aqui convivem
diferentes tempos, incompletos mas organicamente articulados, como expres-
são da mesma história contemporânea. Enquanto a Colômbia vive uma guer-
ra cujas motivações perdidas se situam nos conturbados anos de 1950 e 1960,
onde a Cuba revolucionária desponta como paradigma, o México finalmente
dá a chance à alternância no poder após sete décadas de domínio do PRI e o
Paraguai ainda parece ensaiar os primeiros passos pós-ditadura. Numa ponta,
a democracia atropelada e esgarçada, como nos casos da Argentina e do Peru.
Na outra, busca e esperança, como no Brasil de Lula. Temos uma nova versão
de populismo de “descamisados(as)”, como na Venezuela, e a volta ao velho
populismo autoritário e sanguinário, como no Haiti. Temos, também, o bom
discípulo da globalização neoliberal dominante, como o Chile. E temos muita
crise, muita violência, muita desilusão. Estamos numa espécie de impasse no
enfrentamento da miséria, pobreza e desigualdade social. Nossa identidade
está em crise. Afinal, quem somos e qual nosso lugar neste planeta Terra?

2. A nova e ainda frágil democracia na América Latina está diante de grandes


desafios. Os avanços em termos de institucionalidade democrática foram se
dando ao mesmo tempo em que se adotaram as políticas emanadas do “Con-
senso de Washington”, abrindo inteiramente os países da região à globalização
econômico-financeira sob a égide do livre mercado. Ocorreram mudanças pro-
fundas e fragilizou-se a capacidade dos países da região em definirem os seus
próprios rumos. Esta globalização ameaça a democracia por gerar novas con-
tradições e rupturas entre economia (mercado) e política (Estado), entre eco-
nomia e sociedade (cidadania). Quais as alternativas diante da globalização
para que a democracia crie entre nós as bases de um desenvolvimento humano
sustentável, com todos os direitos humanos para todas e todos os(as) latino-
americanos(as)?

3. Uma questão que começa a emergir com força tem a ver com os desencontros e
brechas na relação entre a sociedade civil e a institucionalidade política. Com
a democratização, apesar da diferença de formas e de intensidade de um país a
outro, cresce em importância a sociedade civil organizada, com novos atores
sociais, novas demandas e novas mediações. No processo, se produz um alar-
gamento do espaço público e acentua-se a desestatização da política. Muda a
cultura política e as formas de organização e participação cidadã. Esse fato
gera tensões no seio das próprias sociedades civis, na relação entre movimentos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31

sociais e organizações como as ONGs ou entre antigos e novos movimentos. A


vitalidade das sociedades civis contrasta com a endêmica crise do sistema polí-
tico e partidário e com o crescente descrédito nos políticos profissionais e nas
formas de representação. Talvez a situação com o PT seja uma grande exceção,
mas será necessário acompanhar o recém iniciado governo Lula para ver. O
que isso revela? Que riscos contém? Além do mais, fruto das políticas de des-
monte e reajuste para estar em sintonia com a globalização econômico-financei-
ra, o próprio Estado se burocratizou e distanciou, contribuindo para ampliar o
fosso entre sociedade civil e as instituições políticas. Um resultado assustador de
tal situação é o fato que, em vários países, a própria institucionalidade e a demo-
cracia como ideal começam a ser questionadas. Como inverter essa onda, cana-
lizando a vitalidade das sociedades civis para a renovação democrática?

4. É forçoso reconhecer que estamos diante de um enorme déficit de análise histó-


rica, de teorização e de reflexão política estratégica a respeito dos caminhos da
democracia, suas conquistas e fracassos, suas debilidades e suas potencialidades.
A democracia contém nela mesma uma grande dose de incerteza. A renovação
e até a refundação permanente são praticamente uma necessidade da democra-
cia como projeto. O objetivo central destas notas é contribuir para analisar a
questão, tendo como eixo as relações entre sociedade civil e política. Trata-se
de construir tal questão numa perspectiva de investigação que permita melhor
avaliar as possibilidades e os limites de agir sobre o processo, visando radicalizar
a própria democracia entre nós. Para além da necessidade de decompor um
problema histórico concreto e recompô-lo como um todo pensado pela apre-
ensão teórica de suas determinações e condições, trata-se, ao mesmo tempo, de
uma pesquisa que busca imediatamente potencializar a prática transformadora.
As notas constituem uma primeira aproximação, intencionalmente esquemática,
para provocar o debate e iniciar o processo.

5. Uma democracia se mede pelo caráter de suas instituições, pelas relações e pelos
processos que permite moldar em todas as esferas da vida de um país. Substantiva e
radicalmente, um povo vive a democracia se os valores democráticos e a participa-
ção são a base de tudo, tanto das relações de poder estatal, como do acesso aos
recursos que são de todos. As relações entre grupos e classes sociais, entre homens e
mulheres, com idosos(as) e crianças, o território e suas riquezas, a produção e a
distribuição de bens e serviços, a vida em coletividade, a criação científica e cultural,
tudo, enfim, que implica em diferença e potencial de disputa constitui, ao mesmo
tempo, o terreno em que opera a democracia. No centro, o confronto de projetos,
de modos de ver, organizar e fazer, tendo como limite os direitos da cidadania.
Numa democracia, as lutas são normais e necessárias. A grandiosidade da aventura
democrática é acreditar no potencial criador do conflito quando portador de direi-
tos. Ao invés de buscar se eliminar mutuamente, na democracia os diferentes sujeitos
se engajam num processo de tirar soluções, mesmo temporárias, dos conflitos que os
diferenciam, os opõem ou os aliam, segundo regras e princípios comuns. Tendo tal
referência para pensar a democracia, importa situá-la no contexto da América Lati-
na de hoje, fazendo uma radiografia do estado da questão democrática em nossos
países globalizados pelas políticas de ajuste e abertura econômica.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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6. Um ponto crucial na análise do processo de democratização na América Latina


diz respeito às mudanças nas sociedades civis. Não se trata aqui de pensar a
realidade com as categorias formais da democracia liberal, que limita a ques-
tão democrática às formas de constituição e funcionamento dos governos. Trata-
se, isso sim, de pensar os complexos processos que movem por dentro as soci-
edades latino-americanas e que permitem qualificá-las como sociedades em
situação de construção da democracia como modo de ser e se desenvolver. Um
primeiro aspecto a salientar neste sentido é que democracias não são produzi-
das por economias e nem por Estados, apesar destes serem uma condição ne-
cessária das possibilidades históricas de democracia numa sociedade dada.
Democracias para existir precisam, antes de mais nada, de sujeitos sociais seus
portadores e construtores efetivos. Para tanto, é necessário que se criem sujei-
tos históricos que imaginem e desejem a democracia, que se organizem e lutem
por ela, que a constituam, enfim, nas condições econômicas, culturais e políti-
cas existentes. Sem dúvida, a conquista da democracia e o processo de demo-
cratização que daí decorre implica em mudanças no desenvolvimento da eco-
nomia e no poder de Estado, maior ou menor, dependendo da diversidade de
sujeitos e extensão da luta e da correlação de forças políticas assim obtida. A
economia e, particularmente, o Estado são estratégicos como espaços de avan-
ço e promoção da democracia. Mas quem os empurra e constitui, em última
análise, são os sujeitos sociais. Estes são, na expressão de Gramsci, blocos his-
tóricos que combinam os modos de sua inserção na estrutura social e na diver-
sidade de relações de que fazem parte mais a própria consciência e vontade.
Por isso, o espaço de constituição dos sujeitos sociais – a sociedade civil – é por
excelência o locus da democracia.

7. O conceito de sociedade civil é, ele mesmo, fonte de dubiedades e confusões,


denunciando tanto o déficit de análise e reflexão teórica, como a própria fra-
gilidade das democracias na América Latina, nesse contexto de avassaladora
globalização neoliberal. Por sociedade civil deve-se tomar o conjunto de práti-
cas sociais – com suas relações, processos, normas, valores, percepções e atitu-
des, instituições, organizações, formas e movimentos – que não se enquadram
como econômicas ou político-estatais. Trata-se de um recorte analítico na com-
plexa realidade social, ela vista como uma unidade “síntese de múltiplas deter-
minações”, conforme a genial expressão de K. Marx. Entre a economia/merca-
dos e o Estado/poder, existe a cunha da sociedade civil, mais ou menos desen-
volvida. As sociedades civis, assim como as economias e os Estados, não são
um valor em si, expressão de uma positividade em abstrato. São, isso sim,
históricas e mais ou menos desenvolvidas, dependendo da diversidade e com-
plexidade dos sujeitos sociais que a constituem, moldam, dão vida, expressam
o que são e desejam as sociedades reais. O tipo e grau de seu desenvolvimento
é uma condição indispensável do modo como se desenvolvem as democracias.

8. Não é possível usar o conceito de sociedade civil como categoria analítica


simples. É preciso antes a construir pela análise histórica e teórica de cada
situação, de cada formação social. Sociedades civis se fazem no processo em
que os próprios sujeitos históricos se fazem, em sua diversidade de identidades,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
33

interesses, propostas e autonomias, nas oposições e diferenças, através de mo-


vimentos, lutas e organizações. Constituem as sociedades civis, dependendo
das situações, tanto os já tradicionais movimentos e organizações sociais –
movimento sindical e camponês, por exemplo – como grandes instituições, do
tipo religiosas, científicas (universidades e institutos), de comunicação, as gran-
des corporações profissionais – advogados(as), jornalistas, economistas,
engenheiros(as), médicos(as), militares, etc. – e as poderosas organizações e asso-
ciações pelas quais se expressam os interesses de proprietários(as) e capitalistas de
todo tipo – latifundiários(as), agronegócio, industriais, banqueiros(as), comer-
ciantes. No processo mais recente de desenvolvimento das sociedades civis da
América Latina, como uma grande novidade, cabe destacar os movimentos po-
pulares, especialmente das periferias urbanas e favelas, com suas associações de
moradores, centros de defesa, clubes de mães, casas da cultura, etc. Novidade
ainda são as organizações de direitos humanos e, sobretudo, de mulheres, de
grupos étnico-raciais e do movimento ambientalista. As campanhas públicas,
alianças e coalizões, as redes temáticas, todas são formas bastante recentes de
desenvolvimento social em que se tece a relação e a interface entre antigos e
novos sujeitos e se complexificam as sociedades civis. As ONGs, tão famosas e
atuantes, apesar de minúsculas, são parte sim das sociedades civis, mas apenas
uma forma em que o tecido social organizativo vai se constituindo nas situações
dadas, em que os sujeitos sociais se expressam como atores concretos. Há, sem
dúvida, um modismo e um certo oficialismo, emanado primeiro da ONU e
depois adotado pelas organizações multilaterias e governos, que limita e confun-
de as sociedades civis com as ONGs. Estas não passam de associações de cidadãs
e cidadãos que se atribuem uma causa pública como missão e para isto captam
recursos e desenvolvem ações, com destaque para um papel de educação e
empoderamento dos grupos excluídos de alguma forma, além da vigilância,
monitoramento e pressão política sobre os outros atores, em particular, o setor
público estatal local, nacional e cada vez mais internacional, também.

9. Assim concebida a questão, é possível destacar algumas dimensões e processos


das sociedades civis na América Latina. Aliás, se faz urgente uma ampla radio-
grafia do recente desenvolvimento das sociedades civis e sua relação com a
democracia entre nós. Por exemplo, é evidente que as ditaduras dos 60 até
meados dos 80 nos diferentes países não foram iguais porque tinham diante de
si diferentes tipos e modos de constituição das respectivas sociedades civis.
Tome-se o caso da Argentina e Chile, de ditaduras particularmente sanguinári-
as, onde qualquer um reconhece o tecido social organizativo mais abrangente
e forte do que em países como o Brasil e Peru, onde as ditaduras foram de tipo
diverso, para ficar em casos clássicos da História recente. Além do mais, no
Brasil, o novo e até surpreendente desenvolvimento da sociedade civil se fez
primeiro em direta oposição à ditadura militar e explica muito do processo
que vem percorrendo a democratização a partir de então. Como, em outro
caso, o da Argentina, a destruição social feita pela ditadura abalou profunda-
mente o desenvolvimento posterior dos diferentes sujeitos constitutivos de sua
exuberante sociedade civil, não criando as mesmas possibilidades que no Brasil
no período recente. No Brasil, diante da fragilidade de sua sociedade civil, o
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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processo autoritário gerou uma economia e um Estado forte – de Mal Estar, na


expressão de Francisco de Oliveira, mas forte e competente. Na Argentina,
com uma sociedade civil mais organizada, além dos 30 mil mortos(as) e
desaparecidos(as), a ditadura destruiu a capacidade do Estado e fez a sua eco-
nomia patinar. Aqui fica clara a idéia, acima esboçada, das sociedades civis
como cunhas entre economia e poder, mas cunhas que podem se desenvolver
ou ser destruídas, determinando o processo democrático daí resultante.

10. Aprofundemos esta questão, começando pelos novos sujeitos sociais e seus
atores concretos. Uma primeira e fundamental novidade é a irrupção das mu-
lheres, através da multiplicidade de organizações e movimentos. Hoje, em to-
dos os países da região, mais num e menos noutro, a democracia e o processo
de democratização têm nas mulheres uma referência, seja como uma das di-
mensões da desigualdade social a enfrentar, seja como sujeitos sociais cuja par-
ticipação acaba sendo decisiva. A importância desse fato ainda não se expressa
da mesma forma na institucionalidade política – da representação e dos parti-
dos – e nem nas estruturas de poder, muito menos em igualdade de oportuni-
dades no âmbito de trabalho e renda. Atravessando as classes sociais e as
redefinindo historicamente, a questão da desigualdade de relações de gênero,
trazida pelas mulheres para o debate público, exprime a força de sua presença
na constituição das sociedades civis da América Latina. Um aspecto a salientar
ainda é que as mulheres se organizam em redes e movimentos que extrapolam
os países da própria região, sendo mais internacionalistas do que outros sujei-
tos e atores. Cabe, também, lembrar que as mulheres produziram ONGs que se
encontram entre as mais importantes de cada país, mas sua bandeira está hoje
no centro de organizações tradicionalmente arredias à questão, como o movi-
mento sindical e camponês, ao menos no Brasil da CUT, do MST e da Contag.

11. A desigualdade étnico-racial, pela importância que vem adquirindo nos últi-
mos anos, vai ser base da constituição de novos e aguerridos sujeitos sociais,
cujo perfil ainda é cedo para definir. Aliás, em torno a esse problema se forjou
o nó mais duro da questão democrática em nossas sociedades colonizadas e
escravizadas. Tendo na contribuição dos negros(as) e indígenas parte funda-
mental de sua história, cultura e identidade, a América Latina não tem conse-
guido se reconhecer como é. A questão étnico-racial, por mais que as estatísti-
cas mostrem, é camuflada, negada, não só pelo poder estatal, mas no seio da
própria sociedade civil. Aqui estamos diante de um impasse ainda não resolvi-
do. O racismo e discriminação estão no coração mesmo das sociedades civis e
limitam o seu desenvolvimento democrático, com reconhecimento da diversi-
dade étnico-racial que nos constitui. A fragilidade de movimentos e organiza-
ções em torno a tal questão são a maior prova do quanto ainda temos que
andar nesse campo.

12. O movimento ambientalista, de promoção da sustentabilidade e de justiça


ambiental, não tem o mesmo desenvolvimento e a mesma presença que os
movimentos de mulheres. Mas há que se registrar a sua vitória em termos éti-
cos, transformando a preocupação com o bem comum representado pelo
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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patrimônio natural em um valor a perseguir, que atravessa as diferentes classes


e grupos da população. Isso se fez sobretudo pelo debate público, tendo a
Conferência da Eco 92, no Rio de Janeiro, dado um grande impulso. Além do
mais, muitos movimentos de excluídos(as) e marginalizados(as) se constituí-
ram e conseguiram presença pública através da bandeira ambientalista – como
as comunidades de indígenas e seringueiros(as) atingidos por grandes
desmatamentos ou camponeses(as) expulsos(as) por barragens para
hidroelétricas, no Brasil, ou a privatização de águas em Cochabamba, na Bolí-
via. Na mesma linha, vão trabalhos de ONGs que promovem a agroecologia e
são contra a produção de alimentos transgênicos. Os exemplos são muitos e
neste campo é de se esperar um grande desenvolvimento de movimentos e or-
ganizações da sociedade civil na América Latina. A agenda do desenvolvimen-
to sustentável não pode mais ser contornada, mesmo se não são tão visíveis
seus sujeitos e atores. O fato é que todos os governos se obrigam a implementar
políticas a respeito e as empresas se sentem acuadas nesse campo, mesmo que
seja até visível o predomínio de modelos insustentáveis, em termos ambientais
e democráticos, no acesso e uso dos recursos naturais. Para lembrar Galeano,
na América Latina, as veias continuam abertas...

13. Permeando todos os novos movimentos e organizações, do mesmo modo que


cada vez mais também nos mais tradicionais, muitas vezes não se diferencian-
do deles, mas ao seu modo contribuindo para o desenvolvimento das socieda-
des civis na América Latina, importa reconhecer as iniciativas em torno aos
direitos humanos. Os direitos humanos aqui são vistos de forma extensiva,
aqueles da Declaração Universal e toda a nova geração de Direitos Econômi-
cos, Sociais e Culturais (alguns incluem ainda os Direitos Ambientais). Em
termos mais simples, muitas das organizações e movimentos, que têm os direi-
tos humanos como sua referência, se autodefinem como promotores da cida-
dania. Aqui entramos num campo mais difuso e complexo do próprio desen-
volvimento recente das sociedades civis. Afinal, o conceito e a prática da cida-
dania são intrínsecos da democracia, como concepção e como processo histó-
rico. Não há, pior, é impossível conceber democracia sem cidadania, sem cida-
dãs e cidadãos no exercício de seus direitos e responsabilidades. Mas um fato
político fundamental da História recente, e que contem uma radicalidade de-
mocrática até aqui pouco analisada, é a redefinição prática da noção de cida-
dania a partir do desenvolvimento das próprias sociedades civis. Isso acontece
em vários países da América Latina, mas em particular naqueles, como o Bra-
sil, em que se renovam velhas lutas e movimentos ou literalmente se criam
novos sujeitos a partir exatamente de sua situação de exclusão ou subordina-
ção econômica, cultural e política. Como categoria política, a partir de Rousseau
e da Revolução Francesa, a cidadania tem como referência um Estado e o
território nacional que ele controla. São cidadãs e cidadãos apenas aquelas e
aqueles que o Estado reconhece como tendo os direitos civis e políticos iguais
em seu território. A apropriação da noção de cidadania por aquelas e aqueles
que tomam os direitos humanos universais como referência e lutam por eles, se
contrapondo aos próprios Estados, alarga e redefine a cidadania como catego-
ria política e analítica.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
36

14. Este ponto nos remete aos(às) invisíveis nas sociedades latino-americanas.
Aqui falo dos(as) que não fazem parte das sociedades civis, simplesmente por-
que não têm identidade, projeto, organização social e forma de luta para se
afirmar, se defender, para conquistar direitos e reconhecimento público. São os
politicamente destituídos(as) de qualquer poder real. A bem da verdade, é ne-
cessário reconhecer o avanço da cidadania formal, aquela do direito de votar,
particularmente no período de recente democratização. Mas ter direito políti-
co de votar não é a mesma coisa que ser cidadão(ã), exatamente pelo que
lembrei acima, no sentido de inclusão e garantia prática de direitos fundamen-
tais, não só os civis e políticos, mas direito de trabalho e renda, comida, casa,
saúde, educação e por aí vai. Entre 30 e 60% da população de nossos países
sofre de alguma forma de exclusão social, negadora de sua cidadania. Estes,
quando não conseguem se organizar e lutar, para politicamente voltar a se in-
cluir e ter alguma perspectiva de mudança na situação geradora de desigualdade,
pobreza e exclusão social constituem o enorme contingente de invisíveis das
nossas sociedades. Perdem as sociedades civis e perde a democracia. Mas se por
alguma razão grupos de invisíveis se organizam, ganha a sociedade civil e ganha
a democracia, pois sua presença como atores concretos é a condição indispensá-
vel de sua inclusão sustentável na cidadania. Isso ocorreu, por exemplo, com o
engajamento das Igrejas cristãs inspiradas na teologia da libertação com as co-
munidades eclesiais de base e a proliferação de movimentos e organizações po-
pulares de resistência e afirmação de novas identidades, valores, com mudança
qualitativa na participação social local e redesenho de políticas públicas referi-
das a tais grupos. Muitas das ONGs da América Latina, trabalhando com pers-
pectivas de educação popular e para a cidadania, também têm como alvo exata-
mente os grupos e comunidades de invisíveis. São incontáveis, em todos os paí-
ses, exemplos de relativo sucesso das iniciativas em termos de organização e
participação de tais segmentos da população, baseadas em grande parte na cum-
plicidade política dos militantes das ONGs com as suas demandas.

15. Extrapola o objetivo destas notas a análise em si dos níveis e formas de exclu-
são social nas sociedades latino-americanas. Pobreza e miséria produzimos de
modo persistente ao longo de nossa História, com muita violência, se necessá-
rio. Elas somadas às múltiplas formas de desigualdade social – étnico-racial, de
gênero, entre regiões e setores, onde a pura análise em termos de relações de
classes sociais é simplesmente insuficiente e até simplificadora – constituem o
centro da questão democrática entre nós. Democracia vista substantivamente,
de direitos fundamentais iguais para todas e todos em combinação com a sua
diversidade. Este é um divisor entre serem ou não serem sociedades democráti-
cas, ou melhor, estarem ou não estarem se democratizando de fato, dado que a
democracia como ideal sempre será um projeto incompleto, passível de novos
avanços. A exclusão social atravessa o conjunto das lutas democráticas em
nossos países, condicionando alianças e propostas dos diferentes sujeitos soci-
ais, o desenvolvimento da sociedade civil, a institucionalidade política, o con-
trole do Estado e o modo de gerir a economia. A exclusão social catalisa os
processos de exploração, dominação e desigualdade, rompendo laços sociais
básicos e alimentando o apartheid social. A luta por novas formas de inclusão
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
37

que se dá nas diferentes relações, processos e estruturas, tanto na economia,


como na vida social, cultural e política, é a expressão mesma das possibilida-
des e limites da democratização na nossa realidade. Trata-se de romper com a
lógica essencialmente antidemocrática que, ao incluir parte da sociedade, con-
dena a outra a alguma forma de exclusão e desigualdade social. Olhando desta
perspectiva, as mudanças provocadas pela globalização neoliberal em nosso
meio levam a democracia ao impasse ao acentuar a exclusão social. Estamos
vivendo uma contradição entre a demanda crescente de inclusão nos direitos
fundamentais e os processos reais de expulsão e migração, inclusive para fora
dos países e da região, favelização, informalização do trabalho (isto é, sem
direitos trabalhistas), desemprego. A contradição cria situações dramáticas como
as crises vividas no Equador, Argentina e Bolívia, ou inviabiliza qualquer pro-
jeto de nação, como parece ser o caso do Haiti de hoje, primeiro país a acabar
com a escravidão entre nós, há quase duzentos anos. Mas, em todos os países,
em graus diversos, piora a situação dos(as) que já vivem em situação de pobre-
za e miséria, com novos segmentos se juntando aos(às) pobres de ontem, en-
quanto aumenta a concentração de renda e se acentua a desigualdade. Pode-
mos sair deste impasse? Ou, de um modo mais direto, como poderá a demo-
cratização romper com essa lógica, para não revertermos a uma situação auto-
ritária ou deixarmos de sermos sociedades minimamente viáveis?

16. Na perspectiva em que faço estas notas, radicalizar a democracia – afinal, é


disto que se trata em última análise – passa necessária e indispensavelmente
pela sociedade civil, sobretudo pelas possibilidades de tornar visíveis os(as)
invisíveis. Isso simplesmente porque não podem existir direitos de cidadania se
não são para todas e todos. Direitos para alguns(mas), por mais numerosos(as)
que sejam, não são direitos, são privilégios. Cidadania é expressão de uma
relação social, que tem como pressuposto todos(as), sem exceção. Como in-
cluir-se na relação de cidadania? Tomando a nossa realidade de milhões e mi-
lhões ainda deixados(as) fora, sem terem reconhecida a sua cidadania, trata-se
de ver como e em que condições eles podem se transformar em sujeitos históri-
cos da sua própria inclusão, iniciando um processo virtuoso de rupturas e de
refundação social, econômica, política e cultural, de modo democrático e sus-
tentável. Nunca é demais lembrar que grupos populares em situação de pobre-
za e desigualdade, breve de exclusão social, não são ontológica ou necessaria-
mente democráticos. Precisam, como aliás todos os sujeitos sociais, fazer-se
democráticos pelo processo mesmo em que se fazem sujeitos. A questão crucial
é o tecido social organizativo, com base no qual um grupo – favelado ou de
camponeses(as) sem terra, por exemplo – desenvolvem a sua identidade, cons-
troem a sua visão do mundo, conscientizam-se dos direitos e da importância
de sua participação, formulam propostas e estratégias. No processo, literal-
mente, eles adquirem poder de cidadania, mesmo se estão longe ainda de mu-
dar efetivamente o conjunto de relações que os excluem. Entendendo o
empowering como conquista de poder cidadão – de visibilidade dos(as) até
então invisíveis nas relações constitutivas do poder -, estamos falando do que
ganha o grupo, a sociedade civil e a democracia. O processo de empoderamento
traz consigo novas organizações, uma cultura democrática de direitos e uma
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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real capacidade de incidência na luta política. O que se constata na América


Latina é que o atropelamento da democratização pela globalização neoliberal
estancou e até fez retroceder processos consistentes de emergência de novos
sujeitos. A luta contra tal globalização, pelo contrário, está destampando as
contradições que permitem novamente a emergência destes setores. Porém, o
quadro é novo e depende como a maior segmentação produzida entre
incluídos(as) e excluídos(as) é vista e vivida nas diferentes sociedades. As gran-
des cidades da América Latina não são só partidas, como o Rio de Janeiro do
asfalto e das favelas. Uma parte pode estar de costas para outra, desconhecen-
do-a, desprezando-a.

17. Isso nos remete aos outros sujeitos constitutivos das sociedades civis. Aí se
destacam as organizações e o movimento sindical. Estamos diante de uma rica
e complexa história, mas muito diferenciada de país a país. Os sindicatos ocu-
pam posições centrais nos processos de democratização, além de terem sido as
maiores vítimas da onda de ditaduras anteriores. São, mais do que outras for-
mas de organização e movimentos da sociedade civil, verdadeiros celeiros de
partidos políticos e, por isso mesmo, muito mais intrinsecamente ligados à
institucionalidade do poder nas diferentes sociedades. Mas suas estratégias
podem variar muito, tanto pelo tamanho e lugar nos respectivos países, como
pelos momentos de seu desenvolvimento e até pelas concepções e visões que
adotam. Aqui estou pensando na CUT petista, no Brasil, e na CGT peronista,
na Argentina, para ficar em dois notórios e quase opostos exemplos. O que
importa para a análise que aqui estou fazendo é reconhecer o lugar do movi-
mento sindical nas sociedades civis e na questão democrática. O fato de, muito
antes de outros sujeitos, ter adquirido identidade social e até legal própria –
quase séculos antes do próprio conceito de sociedade civil, ao menos de seu uso
político mais amplo – torna o movimento sindical, por assim dizer, o berço da
sociedade civil. O movimento sindical se confunde com o que define uma
sociedade civil: organização social autônoma dos sujeitos, fortalecimento do
tecido social, trincheira de resistência, espaço de construção de identidade e
desenvolvimento de capacidade de incidência política, enfim, de construção
originária do sujeito coletivo em nossas sociedades capitalistas. A força e a
própria debilidade do sujeito histórico do movimento sindical está no
corporativismo. Para ser o que é precisa defender os interesses de seus membros
constitutivos, diferenciando-se de outros e tendo clara oposição aos interesses
contra quem se constitui. O movimento sindical luta, a seu modo, pela inclu-
são social e nisso é democratizador. Mas sua luta se baseia naqueles e naquelas
que, de algum modo, fazem parte dos incluídos(as), mesmo que explorados(as)
e dominados(as). Na América Latina, onde mais de 50% estão na informalidade
- são invisíveis, na linguagem aqui usada –, o movimento sindical diz respeito
à parte visível dos(as) que trabalham e vivem do seu trabalho. É importante
afirmar que, ao contrário do que pensa toda uma tradição de esquerda, o
movimento sindical não tem assegurado um protagonismo político-cultural
por ter raízes no operariado das empresas. O protagonismo, quando o exerce,
é por força de sua própria capacidade, das lutas que desenvolve, do modo
como articula suas lutas às lutas dos outros. O protagonismo é um atributo
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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político que se desenvolve, e não algo decorrente da posição na estrutura de


relações de produção. Claro que a estrutura cria possibilidades e limites. Com
todas as mazelas da globalização neoliberal – reestruturação econômica,
privatizações e desnacionalizações, abertura comercial, flexibilização de direitos
trabalhistas – o movimento sindical foi diretamente afetado. Em certos países, a
sua própria base social diminuiu em tamanho relativo. Nem todos estão saben-
do se refazer e não são raros os exemplos de sindicatos tornando-se forças de
conservação e não mais de mudança. Ou seja, tendencialmente antidemocráticas.

18. As organizações de proprietários(as) e capitalistas de todos os tipos constitu-


em o sujeito social no pólo oposto do movimento sindical. Também faz parte
do núcleo duro das sociedades civis, mesmo que, na maior parte das vezes, ele
não se reconheça como tal. Aqui não me refiro às estratégias privadas de orga-
nização de empreendimentos produtivos de bens e serviços, comerciais, finan-
ceiros e das relações ao nível do mercado. Estou tendo em mente as suas orga-
nizações classistas, de defesa coletiva de interesses, de formulação de visões e de
propostas, de incidência política direta. Aliás, é preciso que se diga em alto e
bom tom que este sujeito social, como coletivo, em todos os países latino-
americano, sem nenhuma exceção, forjou-se como um ser antidemocrático. A
sua conversão, ainda parcial, está se dando por força das lutas que todos os
outros sujeitos sociais lhe fazem. A sua matriz política não é a sociedade civil,
nem o Estado. Nossos(as) proprietários(as) e capitalistas descendem de uma
identidade conquistadora e colonizadora de “donos(as) de gado e gente”. No
geral, foram politicamente pequenos(as), o que explica o apelo a uma elite
pensante extremamente autoritária, como os(as) militares, ou líderes
carismáticos(as), na hora do aperto. No passado recente, tendo inviabilizado
os seus(suas) próprios(as) líderes e seus projetos de país, nossos(as)
proprietários(as) e capitalistas deixaram aos(às) militares a grandiosa tarefa de
pensar o desenvolvimento e a nação. Só com a democratização é que assisti-
mos a uma oportuna mudança de importantes setores. Uma nova geração de
proprietários(as) e capitalistas, por força da democratização e dos impasses da
própria globalização neoliberal, que lhes tira riquezas e poder, está sendo cons-
tituída na América Latina. De todas formas, não dá para esperar desta burgue-
sia, que finalmente não esconde as próprias fragilidades, ruptura na lógica de
exclusão social. Isso é uma tarefa que a democratização, como expressão das
lutas na sociedade civil, deve impor a ela, civilizando-a. O fato é que sua reno-
vação como sujeito social contribui para o desenvolvimento da sociedade civil
e o avanço democrático, visto como um contraditório processo de incertezas
pactuadas entre os diversos.

19. Uma breve nota, de destaque, ao movimento camponês. Na verdade, sua


história tem origens remotas, é rica e complexa, ocupando um lugar central na
própria história da América Latina. Na democratização recente, o movimento
e as organizações camponesas reafirmaram a sua vitalidade e modernidade,
adquirindo um lugar insubstituível. Para isso, são exemplares os casos do MST
– Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra, no Brasil, e o fenômeno
indígena-camponês dos Zapatistas, no México. Apesar de inscritos em toda
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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uma tradição de lutas, são movimentos essencialmente novos em sua identida-


de, bandeiras e formas organizativas. São movimentos que contribuem enor-
memente para a construção democrática nos próprios países, espargindo-se
por toda a região. Sua força decorre da inversão de processos a que a estrutura
e o modelo de desenvolvimento os condenam. Caminhando para a exclusão
ou já excluídos, os sem terra, no Brasil, e os indígenas de Chiapas, no México,
transformam uma adversidade em afirmação de identidade e se credenciam – se
empoderam – para participar como sujeitos de sua reinclusão. Este é um proces-
so político, que se dá ao nível da sociedade civil. O caso dos(as) seringueiros(as)
do Acre, no Brasil, é semelhante. Gostemos ou não, os(as) “cocaleros(as)” da
Bolívia são mais um exemplo. Esses casos todos mostram, novamente, que o
protagonismo político não é um atributo decorrente da estrutura, mas uma op-
ção, por assim dizer. Além do mais, estamos diante dos melhores exemplos de
movimentos e organizações que transformam invisíveis em sujeitos sociais. A
democracia na América Latina está dando saltos de qualidade com isso.

20. Seria importante não perder de vista todos os outros sujeitos que constituem
as sociedades civis e, a seu modo, têm impacto na democratização da América
Latina. Um estudo mais aprofundando necessariamente deve considerar as Igre-
jas, as academias e seus(suas) intelectuais, as grandes corporações profissio-
nais. Aqui me limito a chamar a atenção da comunicação de massa. A propri-
edade dos meios – quase exclusivamente privada em nossos países, ao menos
do que realmente conta como comunicação de massa – não nos deve impedir
de ver a função pública e política da comunicação. Hoje os meios de comuni-
cação de massa são espaços de construção do imaginário coletivo, de modos de
ver e conceber, de movimentos de opinião, alimentando os processos em curso
nas sociedades civis em termos de identidade e participação. São espaços de
disputa democrática atravessados por enormes contradições em que a proprie-
dade significa enorme poder. Mas é fundamental ver como certas questões são
tratadas e conquistam lugar nos meios de comunicação. Do mesmo modo, é
indispensável analisar a ressonância social do que veiculam os meios, o modo
como é captado pelos diferentes sujeitos e suas estratégias. Hoje, os meios de
comunicação de massa são a instância primordial de construção da agenda
pública, de suas prioridades. Não são instância mediadoras e nem resolvem as
questões, mas criam o ambiente favorável ou desfavorável para seu
enfrentamento. Num aspecto que considero chave a comunicação de massa
pode contribuir para que o invisível se torne visível, ou melhor, legitimado na
opinião pública, fortalecendo as suas demandas. O inverso também pode ocor-
rer, com criminalização de certos atores sociais e suas demandas. Certas campa-
nhas, como a da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, no
Brasil, entre 1993-96, ao transformar a questão da fome em tema da agenda
política – hoje programa do governo Lula – teve na conquista de espaço na
mídia um elemento chave. Estamos diante de dado político fundamental para
a democracia. A luta pelo direito à informação e à liberdade, entre os mais
elementares da democracia, tem nesta questão da comunicação de massa um
elemento estratégico. Novamente, poucos estudos estão sendo feitos na Amé-
rica Latina a respeito. Esta é uma frente de lutas democráticas que precisa de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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maior destaque, subordinando a liberdade mercantil dos(as) proprietários(as)


dos meios ao interesse público. Como a democracia pode tratar um bem públi-
co privado e monopolizado como a Rede Globo, hoje presente em toda a
América Latina?

21. Apesar da complexidade e importância com que está emergindo a questão


das sociedades civis, não se pode concluir que elas são essencialmente democrá-
ticas ou democratizadoras. De sua extensão, diversidade e dinamismo, dá para
extrair somente as condições para maiores ou menores avanços democráticos.
O que de mais essencial produzem as sociedades civis é a ampliação do espaço
público, do espaço dos direitos e da consciência social sobre eles. Num certo
sentido, o desenvolvimento das sociedades civis opera uma dupla reengenharia
social. Primeiro, desprivatiza relações e torna mais públicos certos espaços da
vida. Como exemplo clássico, temos as relações de trabalho, subordinadas à
lógica mercantil da compra e venda de força de trabalho e de seu uso privado
pelos(as) proprietários(as) dos meios de produção que, através da luta sindical,
se tornam objeto de acordo coletivo e regulação política. Como exemplo bem
recente temos a desprivatização das relações de gênero, aliás única forma de
emergência do próprio debate sobre a natureza desigual de tais relações e o
caráter essencialmente dominador do homem sobre a mulher, começando pelo
mundo privado familiar. Mas sempre que se constitui um sujeito social, em
que se organiza um grupo, dá-se um salto de qualidade do privado, familiar,
invisível, desorganizado, de fora, seja lá o que for, para uma identidade públi-
ca e uma politização de mais um grupo ou de uma relação social. A outra di-
mensão de reengenharia social operada pelo desenvolvimento das sociedades
civis tem a ver com esta politização de grupos sociais, questões e relações. O
importante aqui é o que chamo de desestatização da própria política. A política
deixa de ser monopólio de partidos e das grandes instituições políticas estatais –
Parlamentos, órgãos do Executivo e do Judiciário –, através de representantes
eleitos(as) e de profissionais que se credenciaram por concurso ou contratação
pública. Desta perspectiva, o alargamento do espaço público é uma radical am-
pliação do espaço da política e de sua aproximação ao cotidiano e ao lugar em
que vivem as pessoas. Um grande exemplo é o da comunicação de massa, um
espaço público e político não estatal. Mas isso vale até para uma associação de
moradores(as) de uma favela, que criam um espaço de participação política au-
tônoma e tornam pública a vida na favela, por assim dizer. Esse é o foco das
principais tensões e contradições entre sociedade civil e política. Mas é funda-
mental reconhecer que não necessariamente tais tensões e contradições são posi-
tivas, construtoras em termos democráticos. Podem levar, e de fato levam, tam-
bém a retrocessos, com destruição e perda de direitos de cidadania.

22. Um ponto chave nessa questão é a natureza da cultura democrática que pode
emergir do desenvolvimento da sociedade civil, em que reconhecer ou não for-
mas de institucionalidade e representação política não é uma questão menor.
Para todos(as) aparece imediatamente o drama argentino recente, em que as
formas de mediação entraram em crise por estarem deslegitimadas ética e mo-
ralmente, após o monumental fracasso da empreitada neoliberal patrocinada
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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pelo oficialismo dominante. O problema é como se articulam e formam coali-


zões políticas de sujeitos sociais, de atores fragmentados, de diversas e múlti-
plas identidades e interesses, numa sociedade dada que, por mais simples que
pareça, é complexa. Não fosse assim, a endêmica crise dos pequenos países da
América Central e Caribe se resolveria com formas de democracia direta, sem o
recurso da violência, como tem sido a sua História. Vendo em conjunto, é
forçoso reconhecer que não são necessariamente democráticas a identidade e as
formas de atuação dos diferentes sujeitos decantados pelas sociedades civis.
Aliás, o autoritarismo e a violência, antes de ser política de Estado, devem ser
radiografados no coração mesmo de nossas sociedades civis. O favor, o privilé-
gio, a lei do(a) mais forte, a privatização do já público, estão presentes no
cotidiano de nossas vidas, no campo e nas cidades. A cultura de direitos, que
obriga a reconhecer nos outros direitos iguais na diversidade, avança, mas es-
barra numa ainda forte cultura tradicional essencialmente antidemocrática.
Isso se expressa nas próprias organizações, movimentos sociais e nas entidades,
muitas vezes hierarquizadas e controladas internamente por grupos privilegia-
dos e reproduzindo, quando não ampliando, desigualdades de gênero, étnico-
raciais e estruturas resistentes à mudança.

23. Estas notas deram prioridade, até aqui, às dinâmicas que animam as socieda-
des civis na América Latina. No entanto, não pode existir democracia como
forma de organização e vida em sociedade sem uma institucionalidade política
e um poder constituído na forma de Estado. Institucionalidade e poder são a
expressão da correlação de forças entre os diferentes sujeitos sociais na disputa
democrática de visões e projetos, de recursos coletivos e de formas de regulação
de relações e processos sociais para a garantia dos direitos de cidadania. Nas
últimas duas décadas, a América Latina foi marcada por um amplo processo
constituinte de nova institucionalidade. De fato, não foram exatamente rup-
turas institucionais bruscas e radicais que estão na origem de tal
institucionalidade democrática. Dado o esgotamento dos regimes anteriores –
caso das ditaduras militares – ou o impasse nas guerras revolucionárias – como
na América Central – , a transição para a democracia e a nova institucionalidade
guardam resquícios do passado que não podem ser desprezados na análise do
estado da questão democrática entre nós. O exemplo do Chile é emblemático
a respeito. Apesar da vitória do “NO”, a nova institucionalidade reservou
poder para o antigo ditador e o Exército. A institucionalidade estabelecida
não foi capaz de barrar a volta de antigo ditador por via eleitoral, como na
Bolívia. Os acordos, base da nova institucionalidade, rapidamente são rompi-
dos, como na Guatemala. Ou a institucionalidade não resiste ao oportunismo
político dos(as) que conquistam hegemonia pelo voto e procuram se reprodu-
zir de todas formas no poder. Esse é um mal que parece atingir uma amplo
espectro político, pois o que, além de mudarem constituições de seus países e
garantirem condições para se reeleger, têm em comum figuras tão diferentes
como Ménem, na Argentina, Fujimori, no Peru, Chavez, na Venezuela, e Car-
doso, no Brasil? Enfim, mal implantada, a institucionalidade democrática da
América Latina revela os seus limites e, o que é pior, pode ser uma fonte de
enormes crises políticas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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24. Por trás destas notas e razão principal delas está exatamente a questão da crise
política. A nossa frágil e ainda tenra democracia está ou não está em crise? Ou
ainda, está caminhando para uma crise? Ou, colocando a pergunta de um
outro ângulo, a crise é da democracia ou antes crise de um certo modo de fazer
política nas nossas democracias? A chamada “crise política” precisa ser quali-
ficada, identificando seus lugares e extensão, suas causas, os pontos de maior
tensão, os limites e as possibilidades que contém em relação à própria questão
da democratização da América Latina. O certo é que vem se operando um
estranhamento, um distanciamento perigoso, com rupturas até, entre o dina-
mismo das sociedades civis e o mundo das instituições políticas e de poder. Isso
como tendência, com manifestações aqui e lá, com situações muito diversas em
cada país. Em si mesmo, inspirando-se na História, a gente poderia dizer que é
por aí que se pode dar um salto de qualidade as nossas vacilantes democracias,
mais formais do que substantivas. Afinal, crises obrigam os diferentes sujeitos
sociais a, em algum momento, repactuar e, nesse sentido, superar a crise. Mas a
possibilidade de implosão, de destruição, com uma crise ainda maior, a História
também mostra que acontece muitas vezes quando menos se espera.

25. Reafirmo o que já assinalei muitas vezes: uma precária institucionalidade


política democrática é melhor do que nenhuma. A questão é como a partir de
tal institucionalidade fazer avançar a democracia, criando até nova
institucionalidade e um poder estatal mais adequados. O processo é
determinante, as instituições uma condição dele, condição que pode se trans-
formar no próprio desenvolvimento. Esta é, aliás, a natureza da democracia,
em que apenas as condições de partida são definidas, mas os resultados são
incertos para todas e todos que participam de sua aventura. Vendo de uma
perspectiva histórica, a brecha entre sociedade civil e política institucional, que
hoje aparece como problemática, foi fundamental para a levar ao esgotamen-
to os regimes militares no passado recente. Sem o desenvolvimento concreto
dos sujeitos sociais ao nível das sociedades civis, opondo-se e enfrentando nas
ruas o regime, seria impossível superar as ditaduras no terreno político estatal.
Hoje, em que novamente Parlamentos e governos parecem divorciados de de-
mandas das sociedades civis, volta a aparecer a tal brecha. Traz enormes riscos?
Sem dúvida, mas enormes possibilidades também! A “cunha” da sociedade
civil, a que me referi em nota acima, deve ser vista como indispensável, mesmo
quando chega ao limite da ruptura. De um modo simples, se pode dizer que
Parlamentos e governos, em última análise, são constituídos fora deles, na
esfera da sociedade civil, e só funcionam de fato empurrados por forças ativas
que dela emanam e que os tencionam permanentemente. Ao menos nas demo-
cracias não ritualizadas e formalizadas é assim que acontece. O problema é que
democracias, em termos institucionais e de poder, se transformam em ritos e se
formalizam facilmente, autonomizando-se das sociedades que as produzem e
até se impondo a elas. Todo poder estatal se vê e, sobretudo, age como se ele
próprio fosse constituinte e não um poder constituído pela cidadania. O poder
e as instituições políticas nas democracias são derivados, com mandato delega-
do. Essa é a sua essência como regime político. Simplificando, não é a socieda-
de civil que se distancia, pelo contrário, é o poder estatal que tende sempre a se
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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distanciar de sua base real na sociedade. Muitas vezes é questão de ritmos e


tempos diferentes. Outras, é um profundo divórcio entre o sistema político e a
própria sociedade, engessando-a pela força até o ponto de ruptura, como se
viu recentemente na Argentina. Em última análise, democracias operam quan-
do promovem mudanças, seja no poder, seja na economia, ou melhor, antes no
poder para então mudar a economia. As nossas democracias parece que perde-
ram fôlego e chegaram à beira de sucumbirem diante da globalização.

26. Nunca é demais reafirmar que, na América Latina de hoje, o grande agravan-
te para o rápido distanciamento e estranhamento entre institucionalidade e
poder, de um lado, e as sociedades civis, de outro, são as políticas de ajuste e
reestruturação adotadas, em momentos variados, mas em todos os países, para
se adequar à globalização econômico-financeira do livre mercado. O fato de a
globalização entre nós ter sido tão depredadora revela a própria fragilidade da
institucionalidade e poder estatal democrático conquistado. Aliás, mais que
nas dinâmicas das sociedades civis internas, é na globalização, no modo como
vêm se dando, que a democracia na América Latina sofre limites e ameaças. É
da agenda da globalização neoliberal que emanam políticas de desmonte do
Estado, de flexibilização de direitos trabalhistas, de autonomização de instân-
cias decisórias fundamentais como os Bancos Centrais, de prioridade do direi-
to financeiro e comercial aos direitos humanos e de cidadania. A globalização
operou uma verdadeira transferência de poder de decisão sobre os rumos do
desenvolvimento político e econômico dos países para instâncias multilaterais
alheias, distantes e nada democráticas, como o FMI, BM e OMC, quando não
diretamente aos(às) que dão as cartas ao nível de mercados, os grandes conglo-
merados econômico-financeiros. A seu modo, a globalização esvaziou a políti-
ca estatal de sua essência: o poder de decidir, na correlação de forças que o
legitimam, para onde vai o país, o tipo de desenvolvimento que lhe é mais
adequado. A política baseada em valores e princípios éticos reduz-se à boa
gestão, a uma administração com responsabilidade... sobretudo fiscal, segun-
do os desejos dos mercados.

27. Sem dúvida, essa é a fonte principal da crise política nas nossas democracias.
Crise que revela a incompatibilidade entre democracia e o tipo de globalização
dominante. Assim sendo, a questão que cabe fazer é por que, em plena
redemocratização, a América Latina inteira acabou presa da globalização? Por
que, com a democracia, não fomos capazes de definir estratégias diferentes de
desenvolvimento? A dependência econômica e as enormes dívidas externas são
um legado deixado pelos regimes anteriores para as democracias. Delas, po-
rém, não se pode extrair a globalização como uma opção, mesmo que nosso
dirigentes digam que este era o único caminho possível. Incluir-se na
globalização econômico-financeira foi uma opção de governos constituídos
em plena redemocratização, que significou na prática derrota política aos seto-
res democráticos de ponta nos diferentes países. Houve momentos de “empa-
te”, por assim dizer, em que nem se definiam políticas mais democratizadoras,
com uma reinserção mais soberana na ordem mundial, nem a inclusão a qual-
quer preço se viabilizava. Exemplo mais claro é o do Brasil, um tardio aderente
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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das teses do neoliberalismo, só no começo dos anos 90. O mais incrível nisso
tudo é que a dependência, expressa no descontrole da dívida, foi fator extre-
mamente importante na corrosão dos velhos regimes. Uns países de forma até
rápida, outros mais lentamente, todos acabaram adotando as políticas
neoliberais, base da inclusão na tal globalização econômico-financeira. O pro-
cesso que levou a isso é revelador da questão da crise. No geral, os governos se
elegeram com uma agenda contra a dependência e o tipo de desenvolvimento
selvagem e excludente que a gerou. Uma vez no poder, operou-se uma espécie
de conversão, tornando-se eles adeptos das políticas propostas. Por quê?

28. Um ponto central nesta análise é o próprio sistema político, com os partidos,
as eleições, os(as) representantes eleitos(as) e a composição dos Parlamentos,
base da governabilidade. É como se a América Latina desenvolvesse novas
lutas e elas tivessem que se exprimir numa institucionalidade ainda velha, de-
fasada. Em todas as partes é visível a crise do sistema partidário, mesmo do
Brasil do novo PT e do governo Lula. O PT, como partido, é uma grande
inovação e, sem dúvida, um grande produto da democracia no Brasil e ele
mesmo um fundamental artífice dos avanços que, apesar de tudo, vêm se dan-
do em termos de democratização. Mas quase todos os outros partidos, sem exce-
ção, se definem e redefinem mais pela lógica da sua manutenção no poder do
que em função do dinamismo da sociedade civil. De todos modos, o desloca-
mento da polarização política, no Brasil, dos velhos partidos para uma disputa
de hegemonia entre o PT e o PSDB, é o que de mais novo e alvissareiro produziu
para a democracia a recente eleição, com impacto em toda a região da América
do Sul. Chegamos, num certo sentido, à modernidade política. A questão que
fica é como mudar os outros partidos dado o seu poder de veto real no Congres-
so Nacional, onde o PT se obriga, até ele (!), a recorrer aos velhos expedientes
clientelistas para costurar alianças e obter maiorias, alimentando um troca-troca
parlamentar como outros governos democráticos fizeram. No Brasil, também,
as fissuras do sistema político e partidário estão à mostra.

29. Isso fica mais patente diante da vitalidade das organizações e movimentos da
sociedade civil e da diversidade de sujeitos. A pluralidade social, com suas
demandas, não consegue se exprimir nos partidos existentes. Dinamizam-se as
sociedades, radicalizam-se, mas, na mesma proporção, parece decrescer a capa-
cidade de representação e a própria confiança nos partidos e nos(as) políticos(as)
profissionais. Tal “vazio” foi se ampliando ao invés de diminuir. No contexto
da democratização, as instituições e o poder estatal tiveram que se abrir de
algum modo, ser mais transparentes. Isso, contraditoriamente, contribuiu para
revelar o quanto a representação é vilipendiada no exercício dos mandatos
obtidos por eleição, podendo até o interesse particular se sobrepor ao público.
As novas institucionalidades, definidas por Parlamentos viciados de origem,
não enfrentaram o problema do sistema político-eleitoral, mesmo tendo dado
muito mais poder aos próprios Parlamentos, como, aliás, convém que assim
seja nas democracias. Grosso modo, pode-se dizer que nossos Parlamentos são
ainda confederação de interesses e não representação política da pluralidade
social das nações latino-americanas. De todos modos, é fundamental ressaltar
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
46

que os partidos políticos nas democracias, por definição, são aparatos de ex-
pressão e direção política geral de forças e coalizões de forças sociais e, ao
mesmo tempo, aparatos de conquista e exercício de poder. Sem partidos con-
sistentes como organizações e capazes de representação e governo não é possível
construir democracias sustentáveis. Vendo a realidade da América Latina, im-
põe-se uma urgente reforma político-eleitoral, capaz de por as instituições polí-
ticas em sintonia com os grandes movimentos e processos da sociedade civil.

30. A década dos 90 foi, em toda região, da vitória do neoliberalismo. Vitória


ideológica inclusive, legitimada pelo controle do selvagem mecanismo de trans-
ferência de rendas dos(as) mais pobres para os(as) mais ricos(as), que é a infla-
ção. As esquerdas ficaram acuadas, o idealismo saiu da agenda, a ética sucum-
biu. Tudo isso contribuiu para criar um sentimento de “despolitização”, coisa,
aliás, buscada pela globalização neoliberal, como ideologia, proposta e prática
política. É verdade que as esquerdas também, no geral, não se renovaram na
América Latina. O PT continua sendo uma grande exceção nesse quadro. As
novas agendas do feminismo, do ambientalismo, da diversidade étnico-racial,
das minorias, enfim, novas demandas não se traduziram em agendas de parti-
dos consistentes. Os(as) que aqui foram chamados de “invisíveis” simples-
mente parecem não existir como questão para a política e os(as) políticos(as).
Mas, nada como um dia após o outro, segundo a sabedoria popular. A falta de
sustentabilidade do neoliberalismo como modelo econômico e sua intrínseca
incompatibilidade com a democracia mais além do que a formal revelaram-se
na prática, na forma de crise, aqui entre nós e no mundo todo. Esse fato abriu
espaço para mudanças nas correlações de forças políticas, nos diferentes países.
Mudanças vêm acontecendo como uma nova onda. Mas ainda não têm se
traduzido em políticas sinalizadores de novos rumos. O caso De La Rúa, na
Argentina, é exemplar. Novas propostas ganham as eleições, mas... acabam
dando continuidade às mesmas políticas. Toledo, no Peru, é outro exemplo. A
questão da “perda” do poder cidadão pelo voto e do porquê votar tem sentido
nessas situações. Será que os(as) brasileiros(as) com Lula estão condenados(as)
ao mesmo? Creio que não. Em todo caso, vendo o conjunto da região, a crise
política que aqui estamos tratando está se revelando mais profunda e assusta-
dora do que os sintomas apontavam. E agora?

31. É aí que o debate sobre como resgatar o caminho da democratização deve


começar. Nem tudo está perdido e nem estamos diante de uma total falta de
alternativas. Nas duas décadas de democracia na América Latina, com os limi-
tes já apontados, foram desenvolvidas experiências de governos e de dinamização
da democracia que é fundamental resgatar. Não existe ainda uma mapa com-
pleto de tais experiências, aliás outro déficit em termos analíticos e teóricos.
Mas elas são mais extensas e impactantes do que se imagina, gerando dinâmi-
cas que apontam para novas possibilidades. Trata-se do que vem se chamando
de governos participativos, nos quais as questões da institucionalidade e do
poder estatal começam a ser redefinidas e novas pontes – superando “brechas”
– são construídas entre o dinamismo das sociedades civis e a política
institucional. A importância disso explica o avanço do PT como partido e
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47

como proposta na sociedade brasileira. Mas vem ocorrendo no Peru, na Co-


lômbia, na Bolívia, no Equador e agora, por força da própria crise, na Argen-
tina. São situações em que o avanço democrático se faz de baixo para cima, do
local ao nacional. Cidadãos e cidadãs vivem de fato num local, na sua cidade,
na sua comunidade, no seu bairro. Democracia que tem sentido é a que de
algum modo se implanta aí e daí se estende para o conjunto.

32. Aqui precisamos colocar as coisas no devido lugar. A essência da democracia


tem a ver com o modo como se tomam decisões com respeito aos bens públicos
coletivos, em sua acepção mais ampla possível. Em tese, trata-se de decidir em
assembléia de cidadãs e cidadãos, sem intermediários(as), o que, como, quan-
do fazer para garantir o bem estar coletivo. Em nossas sociedades grandes e
complexas, isso parece impossível. Daí a invenção da institucionalidade políti-
ca com eleições livres periódicas, em todos os níveis, para constituir assembléi-
as menores e funcionais de representantes políticos(as) eleitos(as). Condição
para tal arquitetura funcionar é a igualdade do voto. É nisso que reside a força
da cidadania, com seu poder constituinte. Mas daí derivam enormes questões
que permanentemente pressionam as democracias. Primeiro, dada a enorme
desigualdade real, como garantir igualdade de voto? Segundo, como garantir
que não se crie o fosso entre o(a) eleitor ou eleitora e o(a) eleito ou eleita,
enfim, entre os(as) cidadãos e cidadãs e seus(suas) representantes? Limito-me a
estas duas porque elas condensam em si o centro do problema. Por isso, as
próprias democracias concretas, sob o impulso do maior ou menor dinamismo
de suas sociedades civis, inventam e reinventam formas de exercício direto da
democracia. Reafirmo em alto e bom tom, a democracia direta, participativa,
é a mãe da democracia representativa, e não o inverso. Como articulá-las na
prática histórica da luta e da radicalização da democracia? A representação
política eleita, os governos constituídos enfim, sem a possibilidade da perma-
nente pressão das ruas, da cidadania ativa, podem ser formas de simplesmente
formalizar e ritualizar a democracia, tirando-lhe a sua essência: a força cons-
trutora da luta democrática.

33. Com esses olhos, importa analisar as experiências participativas de todos os


tipos, como o orçamento participativo de muitas prefeituras, a co-gestão de
políticas, as consultas, mas também as manifestações de rua, as campanhas
públicas, a pressão política da ação direta cidadã. Um debate que não se pode
evitar é o da legitimidade disso tudo. Aí entra inclusive a questão das novas
mediações que o exercício mais direto da democracia acaba criando. No de-
senvolvimento dos processos, se reinventam representações para negociar pac-
tos, acordos e monitorar as políticas públicas que daí resultam. Nota-se aí a
maior capacidade e presença de uns atores – como as ONGs – do que outros. É
legítimo? Mais, não acaba ritualizando a tal participação direta, em que
uns(umas) se especializam e, porque não, se distanciam das lutas, valorizando
mais os espaços de concertação que sua base, por assim dizer? Aliás, qual é a
base no caso da maioria das ONGs, dos(as) representantes que votam priori-
dades orçamentárias, dos(as) agentes que sentam nas mesas de formulação e
gestão de políticas? Na verdade, a tensão democrática se reproduz mesmo ao
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48

nível de tais experiências. Mas elas contêm um elemento chave vitalizador ao


permitir uma combinação entre democracia participativa e representativa. O
governo Lula, no Brasil, está inovando exatamente aí: um novo modo de fazer
a política, que pode mudar toda uma cultura institucionalizada. E já está ge-
rando tensões, muitas tensões. É o caso do Conselho Econômico e Social, do
Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar, das consultas à socieda-
de civil para a proposta de PPA – Plano Plurianual de Investimentos. A enorme
expectativa, que cerca o Brasil hoje, tem muito a ver com essa possibilidade de
renovação democrática. Mas se era para desanuviar e resolver tensões, estamos
longe disso. Tensões são, na verdade, a vida das democracias.

34. As experiências participativas podem “desempatar” o impasse institucional e


político das democracias na América Latina. Mas sob uma fundamental con-
dição: elas têm que ser capazes de promover uma nova institucionalidade, uma
espécie de refundação de baixo para cima, levando os Parlamentos e governos
a produzirem as mudanças necessárias. Para avançar na democratização, para
radicalizar a democracia, precisamos chegar ao Estado, invertendo o desman-
che promovido recentemente e criando condições para a gestão e regulação
democráticas da economia, da política, do projeto de desenvolvimento. Para
isso, é fundamental uma institucionalidade e um poder estatal baseados nos
princípios e valores éticos da cidadania. Mas é fundamental também que não
se adie mais a inclusão de todos e todas, fazendo o encontro entre povo e
nação. Não é mais possível esperar para crescer e então distribuir, incluir, de-
mocratizar. O desempate pode ser feito de antemão, empoderando os(as)
excluídos(as) e, junto com eles(as), formando um bloco de forças democráti-
cas e democratizadoras como base de um novo desenvolvimento para a região.
Grande desafio. Devemos começar por imaginar, sonhar, criar utopias, para
estimular a vontade. Afinal, democracias começam por sonhos e têm demons-
trado que podem produzir felicidade humana, mais do que outros modos de
organização econômica e política na História.

35. Aqui só estou pontuando aspectos da questão, sem me preocupar em ser


exaustivo ou completo. Outros podem ser levantados e, até, serem mais rele-
vantes que estes que assinalo. A preocupação é estimular o debate e ir mapeando
suas formas, sua extensão, sua complexidade numa perspectiva de radicalizar
a democracia na América Latina. Um último aspecto que gostaria de salientar
diz respeito ao encontro da diversidade de sujeitos, do local ao nacional, ao
regional e ao mundial. As sociedades civis vêm se internacionalizando em opo-
sição às economias globalizadas e aos governos que as promovem. Essa é uma
questão nova e desafiante para a democracia, pois extrapola Estados nacio-
nais. Ela gera a necessidade de novas concepções e teorias políticas, para que
vejamos as nossas realidades locais e nacionais com olhos de futuro. Isso exige
um novo pensamento de democracia no campo da esquerda, em particular. O
que vem ocorrendo até aqui é um complexo processo de resistência global com
uma tentativa de construir uma agenda alternativa de dimensões globais, vi-
sando um desenvolvimento democrático e sustentável, de todos os direitos
humanos para todos os seres humanos do planeta. Praticamente, o processo
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
49

tem permitido o reconhecimento mútuo na diversidade e na pluralidade de


visões que carregamos, como partes de uma emergente cidadania planetária.
Tal processo estimula originais e complexas articulações, com construção de
redes, de campanhas, aumentando a capacidade de incidência, como ficou
demonstrado em 15 de fevereiro deste ano de 2003, nas grandes mobilizações
pela paz. Está sendo criada uma grande onda de solidariedade e de esperança,
de afirmação do primado da ética, estimulando a utopia e a participação. O
exemplo recente do Fórum Social Mundial merece ser destacado aqui. Primei-
ro, o seu surgimento no Brasil e na América Latina não pode ser politicamente
desvinculado da temática aqui tratada, ou seja, do processo mesmo de demo-
cratização em curso, de suas possibilidades e limites. Talvez mais do que, em
outras regiões do planeta, um evento de tal magnitude encontrou terreno fértil
entre nós devido ao desenvolvimento de nossas sociedades civis. Ele é, por
excelência, afirmação de um estado de cidadania que estamos conquistando.
Desencadeou um processo de dimensões regionais e mundiais, que pode ter
impacto nas democracias e ajudar a enfrentar as tensões e contradições entre
sociedade civil e política. A força do Fórum Social Mundial reside no que é o seu
desafio maior: o encontro da diversidade e o aprendizado coletivo de um novo
modo de fazer política, onde todas e todos os(as) que lutam por direitos são
necessários(as). Como a democratização vai avançar em nossos países com este
despertar de uma cidadania planetária é uma questão totalmente em aberto.
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O CALCANHAR DE AQUILES DO GOVERNO LULA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Parece que o Governo Lula será de sobressaltos. Quando se esperava uma política
econômica interna ousada – no ataque, fazendo gols contra o desemprego –, veio
uma retranca que nos desorientou. Continuam ganhando os(as) de sempre sobre
a piora geral em termos de inclusão social e distribuição de renda. Ao mesmo
tempo, esboçou-se uma política externa melhor do que era de se esperar nesse
contexto. O que o Brasil protagonizou em Cancún, na Rodada de Negociações
da OMC (Organização Mundial do Comércio) foi de lavar a alma. E agora, com
o Consenso de Buenos Aires, sinaliza-se para um desenvolvimento que não é aquele
da submissão e dependência, implícito na proposta da Alça (Acordo de Livre
Comércio entre as Américas). Mas enquanto Lula discursava na ONU (Organiza-
ção das Nações Unidas) como verdadeiro estadista e líder do lado pobre do mun-
do, tivemos que engolir, por medida provisória, a liberalização dos transgênicos.
Como rolo compressor, empurra-se a Reforma da Previdência no Congresso, mas
inova-se com a Consulta do PPA (Plano Plurianual de Investimentos), abrindo-se
a um inovador diálogo com a sociedade civil na definição de prioridades para o
país. É muita contradição em um mesmo governo, contradições que por enquan-
to estão paralisando mais do que sinalizando caminhos para todas e todos que
apostaram na esperança votando em Lula. Para completar o quadro, alguns into-
leráveis desvios éticos.
Entre os muitos desafios que se colocam para o governo Lula, a questão das
políticas sociais é uma espécie de calcanhar de Aquiles. Nesse campo, estamos
diante de urgências que não podem esperar. Desde a redemocratização, estamos
avançando em termos de saúde e educação. A evolução do IDH (Índice de Desen-
volvimento Humano) atesta isso. Mas há muito por fazer ainda. Esperava-se mais
ousadia e inovação de um governo petista. Como a fome não pode esperar, o
anúncio do Fome Zero, ainda antes da posse de Lula, parecia uma mudança
estratégica de curso na mais elementar das políticas de inclusão social: garantir a
todas e todos o direito de comer. Estamos diante de um problema econômico e
político e de clara dimensão ética: somos uma potência agrícola e um dos maiores
exportadores agroalimentares do mundo, mas condenamos milhões a passar fome.
Pois bem, a fome até agora está longe de ser zerada e o programa do governo
levou tempo para deslanchar.
Ainda assim, é de saudar a inovação contida na unificação de vários progra-
mas socais, finalmente anunciada pelo presidente Lula. Um dos problemas histó-
ricos fundamentais das políticas sociais no Brasil, mais do que a falta de recursos,
é o seu lado de políticas atreladas a um perverso clientelismo, que transforma a
população vivendo em situação de pobreza e necessidade extrema em mero objeto
de barganha de favores dos(as) detentores(as) do poder político. A multiplicação
de programas nos anos recentes, sempre olhando carências específicas e não os
direitos de cidadania em geral não foi capaz de romper a lógica clientelista. Na
verdade, tais programas, ao invés de superar, fizeram crescer a exclusão social.
Nunca é demais lembrar que atender carências – próprio de políticas focais – não
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
51

é a mesma coisa que universalizar direitos. A melhor política social até hoje criada
no Brasil é a aposentadoria de um salário mínimo garantido indistintamente a
todas e todos os(as) idosos(as) da área rural – como seu direito.
Na verdade, a unificação de programas sociais contém enormes potencialidades
pela mudança estratégica de concepção da questão social que traz embutida. Par-
te-se de um universo – hoje,11 milhões de famílias brasileiras vivendo abaixo da
linha da pobreza – e procura-se uma política unificada de transferência de renda
mínima. Mesmo que a renda transferida seja pouca – em média R$ 90,00, depen-
dendo da renda per capita e do número de filhos(as) –, o princípio é o direito de
todas e de todos e, por isso, pode funcionar como verdadeira política de inclusão
na cidadania. Além do mais, o direito não é desvinculado de obrigações de cida-
dania: manter os filhos e filhas na escola, caderneta de vacinação em dia, compa-
recimento ao posto de saúde pelas gestantes, alfabetização de analfabetos(as)
adultos(as) etc.
Ainda resta muito a ser feito para uma universalização das políticas sociais em
consonância com o princípio do direito à renda mínima, velha bandeira do Partido
dos Trabalhadores. O Bolsa-Família – que unifica os programas de Bolsa-Alimenta-
ção (do Fome Zero), o Vale-Alimentação (do Ministério da Saúde), a Bolsa-Escola
(do Ministério de Educação) e o Vale-Gás (do Ministério de Minas e Energia) – é
um começo animador. Mas para fortalecê-lo é preciso incluir ainda outros progra-
mas de transferência focalizada de renda. Além do mais, 2006 parece longe no
tempo para atingir a meta da universalização. Precisamos exercer uma ativa pressão
para que rapidamente o Bolsa-Família chegue a todas as 11 milhões de famílias que
dele necessitam urgentemente. Faltam recursos? Depende da conta a ser feita. A
simples queda de um a dois pontos na taxa de juros pode gerar os sete a oito bilhões
de reais adicionais de que precisa o programa. Com isso, garantimos uma renda
mínima média, por mês, de R$ 100,00. É pedir muito? O sonho é bem maior. Ao
menos o Bolsa-Família mostra que ainda é possível continuar sonhando.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Crônicas
2004
SUMÁRIO

Esperança e ação 03
Cândido Grzybowski

O timoneiro Lula e o barco Brasil 05


Cândido Grzybowski

A predatória racionalidade econômica 07


Cândido Grzybowski

Parceria governo-sociedade 09
Cândido Grzybowski

A grande vítima é a cidadania 11


Cândido Grzybowski

Obrigado, MST 13
Cândido Grzybowski

O resgate do salário mínimo 15


Cândido Grzybowski

Engajamento ativo, com autonomia e crítica 17


Cândido Grzybowski

Riscos de uma agenda presidencial 19


Cândido Grzybowski

Lula: um novo líder global 21


Cândido Grzybowski

Programa sob fogo de barragem 23


Cândido Grzybowski
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

ESPERANÇA E AÇÃO

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Neste período do ano, somos levados(as) a avaliar onde estamos, desde a vida pessoal
na família e no trabalho, até o meio social em que vivemos, a cidade que comparti-
mos, a sociedade de que fazemos parte, o mundo que é o nosso mundo. No fundo,
um tal momento acaba sendo uma grande invenção humana, pois transformamos o
giro da Terra sobre si mesma e em redor do sol em algo cheio de simbolismo e signifi-
cado histórico. Só que, para além da nossa convenção sobre o tempo histórico, muito
pouca coisa acaba ou começa com a passagem de ano. A importância do momento é
a avaliação que nos permite fazer, juntando passado e futuro.
Em 1º de janeiro de 2003, começou o governo Lula. Por decisão de nossos(as)
constituintes de 1988, fizemos coincidir a passagem de ano, a cada quatro anos,
com a passagem de governo. A decisão vale também para todos os governos esta-
duais e do Distrito Federal. Aliás, tal coincidência pode ser reversível desde que as
manifestas intenções dos(as) próprios(as) governantes e do Congresso Nacional se
transformem em iniciativa de mudança constitucional. De toda forma, por en-
quanto temos uma Presidência da República e todos governos da Federação fa-
zendo aniversário na virada do ano. Um grande e importante assunto de avalia-
ção, sem dúvida.
Um aspecto intrigante a respeito da vida política brasileira, em particular do
governo Lula, é o que se passa com a esperança coletiva despertada, tão evidente
e contagiante. Nós, brasileiros e brasileiras, espalhados(as) por este imenso terri-
tório, de tanto em tanto temos irrupções de esperança que nos unem como povo
e parecem determinar um novo rumo para o país. São memoráveis as mobiliza-
ções cidadãs associadas à democratização, processo que gestou novos atores soci-
ais com novas lideranças – Lula é uma delas – e uma nova cultura política. Mas,
como as ondas do mar e as sucessões de marés, após esperançosas mobilizações,
entramos em momentos de refluxo e tudo parece voltar ao mesmo lugar. Só pare-
ce, na verdade. O problema que o parecer é suficientemente forte para criar uma
sensação de frustração, vazio e até desesperança. Parece que é assim que viramos o
primeiro ano do governo Lula.
Sou levado, como analista e por militância cidadã, percorrendo o mundo por
causa do Fórum Social Mundial, a considerar que a vida, o processo social e
histórico, está exatamente nesse vai-e-vem, de fluxo e refluxo. Não há a possibi-
lidade de esperança sem desesperança, como não há futuro sem passado, como
cada novo dia é radicalmente diferente em sua semelhança com o anterior. Quero
dizer com isso, que estamos vivendo mais uma experiência política no Brasil, com
fluxo e refluxo, onde a esperança ou desesperança não dependem do(a) governante
de plantão única ou essencialmente, mas de nossa força coletiva de empuxe. So-
mos nós, coletivamente, como cidadania militante, que podemos dar sentido,
intensidade e força ao processo histórico. Claro que nossas ações passadas, como
mobilizações e eleições, definem condições e limites para o resultado de nossa
ação presente e futura. Mas a esperança se faz pela ação e não pela mera expecta-
tiva. Como diz o poeta e cantor, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

Sou levado a avaliar, fazendo o elo entre o primeiro ano e o novo ano do
governo Lula, que ficamos muito na expectativa e fizemos pouco. Para fazer avançar
as coisas no sentido da radicalização da democracia, de maior desenvolvimento
humano, com maior igualdade, liberdade e dignidade humanas a todas e todos
os(as) brasileiros(as) (as), sem distinção, precisamos exercer a força da cidadania
militante. A democracia se renova e avança numa dialética entre representação
institucional e ação direta, participativa, sendo esta que qualifica aquela. Se que-
remos ver o governo Lula realizar a esperança coletiva que manifestamos com a
sua eleição e posse, precisamos agir mais, pressionar mais, fazer o governo mover-
se mais. Afinal, um governo é expressão de correlação de forças na sociedade. Não
deixemos que o governo que constituímos seja prisioneiro de forças que o desviem
da rota do desenvolvimento democrático e sustentável.
Pode ser que os excessos das festas de passagem de ano não permitam ver
completamente o quadro político que temos pela frente. Mas, devo reconhecer, é
bom para mim, o Ibase e muitos de nossos parceiros e parceiras na sociedade civil
ver que sim, um outro Brasil é possível, assim como “um outro mundo é possí-
vel”. Mas para fazê-lo realidade, é preciso saber mover-se nos fluxos e refluxos da
vida política.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

O TIMONEIRO LULA E O BARCO BRASIL

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

O segundo ano do Governo Lula começa a esquentar. Reforma ministerial, tama-


nho e profundidade da reforma, quem entra e quem sai, enfim, as especulações e
o debate político esquentam sobretudo os gabinetes do poder lá no Planalto. Na
planície, uma grande preocupação de fundo com o rumo do país. Nos jornais, na
rua, no bar e, se o tempo abrir, na praia, o debate verdadeiramente quente é esse.
O olhar sobre Brasília e o governo Lula é menos sobre o seu ministério e mais
sobre o mistério, aquela chave que pode fazer a política, toda ela, ir ao encontro
das aspirações mais legítimas e profundas da cidadania em nosso país. Quando é
que, afinal, empregos aos borbotões serão gerados e inverteremos um quadro que,
vai ano e passa ano, continua a condenar à exclusão ou à precariedade milhões e
milhões, meio sem distinção, mulheres e homens, jovens e velhos(as), com diplo-
ma ou analfabetos(as)?
Não adianta, não tem mais reforma capaz de adiar uma resposta concreta,
consistente, que aponte o rumo da inclusão pelo trabalho de todas e todos que
desejam e precisam trabalhar. De que valem os indicadores de Risco Brasil, C-
Bond, Índice Bovespa, excedente comercial, juros em queda, inflação em baixa
etc., com que nos azucrinam diariamente, se o desemprego está nas alturas, a
miséria e a luta pela sobrevivência tomam conta das ruas de nossas cidades, a
renda encurta enquanto as contas sobem? Até quando suportaremos isso? Será
que a economia é mais importante que gente?
Não vou analisar dados – se é tanto ou tanto de empregos que precisamos, se
o crescimento deve ser de tal ou tal ordem. Pergunto-me simplesmente se é possí-
vel e por quanto tempo que uma economia funcione contra o trabalho, em últi-
ma análise, seu verdadeiro e único motor. Mais: se é possível o próprio convívio
social e a coexistência fundada no reconhecimento mútuo de direitos cidadãos –
regulados por princípios éticos de liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade
e participação, estruturantes últimos da democracia como ideal humano – se a
inclusão de uns e umas supõe e determina a exclusão de outros e outras. Nesse
debate sobre emprego, não é a saúde da economia que está em questão, é a nossa
saúde como sociedade humana. O fundamental e incontornável direito ao traba-
lho é ou não a razão de ser da invenção da economia e do mercado, da política e
do poder, da organização social e da participação cidadã?
Não sou cego e nem maluco. Sei reconhecer o meio em que vivemos, a comple-
xa e contraditória realidade que temos como locus do existir e ponto de partida
para a construção de uma sociedade futura de liberdade e dignidade humanas. E
nem é algo que possa ser restrito ao Brasil, por mais possibilidades – e responsabi-
lidades – que tenhamos, dados os enormes recursos naturais que herdamos e as
capacidades de um país-baleia, grande como poucos no mundo. A tal globalização
econômico-financeira se caracteriza pelas restrições que se originam da ordem
mundial e que se impõem aos diferentes países, dominando-os. Mas aí não aca-
bam as opções e nem a origem dos problemas. Temos uma história de séculos em
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6

que a razão de ser não foi o direito ao trabalho. Aliás, temos a pior herança em
termos de trabalho escravo, negador da própria idéia de direito fundado no tra-
balho. O estigma da escravidão está aí na vergonhosa desigualdade social a que
condenamos todas e todos que, por sua pele, lembram os(as) antigos(as)
escravos(as). Mas fomos mudando, mesmo devagar. A democracia que estamos
pondo de pé já fez coisas memoráveis. A última foi eleger um operário, gerado nas
contradições da migração e da industrialização excludente da ditadura militar,
como presidente da República. Mas isso não basta.
Estamos diante da possibilidade de romper com a lógica econômica e de poder
que, ao incluir uns e umas, exclui outros e outras. Esse é o verdadeiro desafio
político. Não se invertem tendências de uma hora a outra, é certo. Mas precisa-
mos de sinais, de luzes sinalizadoras, de direção e do timoneiro Lula conduzindo
o barco Brasil. Tudo o que o governo decide e faz deve passar pelo crivo do quan-
to contribui para garantir o direito ao trabalho. Nada na vida humana tem um só
lado, uma só opção. Tudo pode tender mais para cá do que para lá, mais para
direitos de gente do que para direitos dos(as) detentores(as) de dinheiro, mais
para humanidade do que para mercado. É, sim, não nos iludamos, uma questão
de opção, difícil, condicionada, limitada, mas escolha de rumo. Precisamos que o
pleno emprego seja a nossa meta neste momento da democracia brasileira.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

A PREDATÓRIA RACIONALIDADE ECONÔMICA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Você sabia que, do ponto de vista econômico, a destruição a cada ano de mais de
20 mil km² de nossas matas é racional? Desmatar a área, plantar pasto e criar
gado na Amazônia pode dar um lucro que chega ao dobro do ganho por hectare
em tradicionais áreas pecuárias de São Paulo. A informação é apontada pelo eco-
nomista Sergio Margulis, do Banco Mundial, no estudo Causas do desmatamento
na Amazônia brasileira. Flávia Oliveira, na coluna Panorama Econômico – jornal
O Globo, 13 de fevereiro –, sob o título Verde de vergonha, apresenta os princi-
pais dados e conclusões da pesquisa.
Estudos assim, levantando dados e mostrando como funciona a lógica econô-
mica da busca do lucro a qualquer custo, são importantes. O diabo é que pode-
mos facilmente chegar a conclusões aterradoras, sem conseguir sair de sua própria
lógica. É muito fácil, por exemplo, mostrar que o garimpo predatório, jogando
mercúrio nos nossos rios, também é racional, pois o lucro é fantástico. Na mesma
linha de análise, é possível demonstrar quão racional é o trabalho escravo para
os(as) donos(as) de terra – e de gente.
Aliás, foi muito racional a destruição da Mata Atlântica para produzir café e
está sendo racional a destruição do Cerrado para produzir soja. Podemos dese-
nhar o mapa do Brasil mostrando onde a racionalidade econômica funcionaria,
tirando conclusões sobre a “irracionalidade” dos territórios indígenas e das reser-
vas extrativistas; da pesca ribeirinha na Amazônia, quando comparada com os
grandes barcos industriais; e da agricultura familiar, que teima em produzir segun-
do as necessidades de alimento e renda familiar. Mais ainda, podemos fazer como
Bush, que se recusa a assinar o Protocolo de Kyoto – sobre o controle das emissões
de gases destruidores da camada de ozônio – porque afeta a racionalidade dos
negócios... Aonde isso nos levará? À destruição completa de nosso patrimônio
natural, à concentração de riquezas e a maior exclusão social.
Qualquer pessoa que estuda o meio ambiente ou defende os direitos humanos
sabe muito bem que o cerne da questão é a lógica que move a economia, do lucro
como primeiro e fundamental parâmetro. Princípios e valores éticos, que colocam
a sustentabilidade e o desenvolvimento humano democrático como referências,
não entram no cálculo privado de um empreendimento que visa ao lucro. No
máximo, são custos a serem considerados que limitam lucros, se imposições legais
existirem e tribunais funcionarem. Estamos diante de flagrante divórcio entre eco-
nomia e sociedade, com dominância absoluta da economia. Estamos diante da
racionalidade que nos conduz ao desastre.
Essa é a economia que temos. Pior, é o modelo econômico hoje vigente no
mundo sob a batuta da globalização neoliberal. Talvez, se não olharmos para a
tal racionalidade econômica capitalista e voltarmos os olhos para o poder políti-
co que a sustenta, poderemos ver o que é possível fazer aqui e agora. Nós, aqui no
Brasil, temos um prato cheio de desafios e possibilidades que dependem, acima de
tudo, da luta política. Poderíamos tomar a questão da Lei de Biossegurança, aquela
que trata dos transgênicos, ainda em discussão no Congresso Nacional. Quem
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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põe no centro o princípio da precaução é taxado(a) de irracional, retrógrado(a),


contra o progresso da ciência etc. Quem postula a liberalização dos transgênicos o
faz em nome da racionalidade econômica. Afinal, o Brasil tem tudo para ser o
país hegemônico no agronegócio exportador, desde que nada impeça a
racionalidade destruidora. Temos outro problema, difícil de resolver com esse es-
treito modo de pensar. Racional não é plantar e exportar, investir. É apostar nos
juros altos da nossa política macroeconômica. Manter tal política talvez ajude a
não destruir a Amazônia. Absurdo, não?
Trata-se de poder e também de política. A racionalidade econômica será outra
se a participação política dos(as) hoje “irracionais” for capaz de mudá-la. Aliás,
essa foi a motivação que elegeu Lula presidente. Não se trata de inventar a roda
ou de desmontar tudo para fazer de novo. O modo democrático de construir
economias com justiça social e sustentabilidade é pela publicização e politização
– no mais humano dos sentidos – de todas as relações econômicas. É fazer o
interesse público prevalecer sobre o privado, num processo em que o ganho eco-
nômico respeite princípios e valores de cidadania e de preservação dos bens co-
muns, a começar pelo nosso fantástico patrimônio natural ameaçado. É o cami-
nho para transformar a esperança que elegeu Lula em políticas que apontem para
outra direção, para outro modelo de desenvolvimento, racional porque humano,
e não simplesmente por ser lucrativo.
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PARCERIA GOVERNO-SOCIEDADE

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Na atual conjuntura nacional, avaliar como anda a participação da sociedade


civil no governo Lula é um modo de ver as possíveis saídas para a sua crise e, ao
mesmo tempo, trabalhar para que realmente aconteçam. Afinal, parte da crise
reside em nós mesmos(as), em nosso comportamento paralisado diante do gover-
no que elegemos. Até agora, estamos esperando. Não demos conta ainda de que
somos nós mesmos(as) que podemos fazer a diferença. A insatisfação se alastra e
ganha as ruas. Ou apostamos em participação e mudamos o rumo desta nau
Brasil, ou essa mesma insatisfação, transformada em desesperança, nos joga em
mais um longo período de “salve-se quem puder”. E desse jeito o país até pode
crescer, mas será contra o seu próprio povo.
Algumas reflexões são necessárias: por que a agenda dominante está tomada
por temas e questões longe das demandas da cidadania e da democracia, da liber-
dade e dignidade humanas, para todas e todos os(as) brasileiros(as)? Por que so-
mos bombardeados(as) por questões de juros, Risco Brasil, índice Bovespa, taxa
de câmbio, acesso a mercados externos, excedente comercial, se cresce ou não
cresce a economia? Quem disse ou quem pode provar que isso melhora a qualida-
de da democracia e da vida humana? Esta é a agenda do neoliberalismo que
derrotamos nas urnas, mas está aí viva, atordoante, insuportável. É a agenda do
ministro Palocci ou dos tais agentes do mercado que, via a grande mídia, querem
que seja a agenda nacional prioritária? Ela não acrescenta um pingo de segurança
cidadã, não reduz um milímetro a violência policial, por exemplo.
Diante desse quadro, a pior coisa é ficar inerte. Só pode acontecer o que os(as)
outros(as) – os(as) de sempre – querem que aconteça. A facilidade com que velhas
figuras, com folha corrida bem pior do que o tal Waldomiro Diniz, viraram base
do governo no Congresso é de nos deixar de cabelo em pé. Estão tomando conta
do seu, do meu, do nosso governo. Governo que queremos cidadão, aberto à
participação, permeado pelas demandas e contradições que vêm do povo. Se não
liberto totalmente dos(as) donos(as) do poder histórico no Brasil – isso talvez seja
impossível em democracias –, ao menos um governo empurrado a abrir o espaço
público, as brechas da participação aos(às) que sempre estiveram de fora e, assim,
empurrado a criar condições de maior eqüidade social. Ou será que não temos
nada de novo onde o poder estatal pode ser reconstruído?
Há sim espaços que podem e devem servir a esse propósito. Exemplo disso foi
a II Conferência de Segurança Alimentar, que acabou de acontecer em Recife. Para
além do que se discutiu e adotou como recomendações para uma política de segu-
rança alimentar e nutricional para o Brasil, uma discussão fundamental a travar é
ver o que a conferência significa como método de produção de políticas públicas.
Afinal, a conferência não é um fato isolado – é o resultado de todo um processo
de conferências estaduais e muitas conferências locais, nas principais cidades do
país. Como proposta, soma-se à das Cidades e à do Meio Ambiente. Como polí-
tica que sinaliza um novo modo de relação com a sociedade civil, junto com as
conferências é preciso ver o processo de Consulta do PPA (Plano Plurianual de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Investimentos), realizado em todos os Estados e no Distrito Federal, o Fórum do


Trabalho e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Claro que o
processo não é, em si mesmo, uma agenda positiva; trata-se de um espaço de
participação bastante diferenciado e ainda bastante indefinido. Mas o pior é o
fato de não se traduzir de fato em políticas. E por quê?
A resposta é simples, apesar de não ser óbvia. Como parte da tal agenda do
crescimento, muitos(as) insistem em ver nas PPP – parcerias público-privadas – a
saída para todo tipo de mazela nacional. Enquanto isso, deixam de ver de mais de
perto as PGS – parcerias governo-sociedade civil, estas sim, capazes de dar
sustentabilidade democrática, universalidade e justiça social na atuação governa-
mental. Até agora, o governo Lula não mostrou ou não empenhou toda a sua
força na busca de parcerias capazes de reequilibrar a relação de poder que o cons-
titui. Revela-se, a cada dia mais, um governo empresarial-sindical – mais empresa-
rial do que sindical, mais paulista e pouco brasileiro. Parece que o Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social é o máximo da participação capaz de ser
aceita pelo governo; e nele boa parte da sociedade está ausente ou é pouco ouvida.
Mas será que não está aí – na construção conjunta de uma agenda entre poder
público e cidadania – a possibilidade real de mudança no governo Lula? Afinal,
participação tem sido a marca registrada do estilo petista de governar.
A questão da participação passa, em primeiro lugar, por acreditarmos que é
possível materializá-la nas mudanças que buscamos. Ao invés de objetivos fixos e
metas determinadas em gabinetes, com a participação da sociedade civil podemos
priorizar o modo de realizá-los ou mesmo redefini-los. Ainda temos a chance
histórica de mudar nosso destino; não podemos deixá-la passar.
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A GRANDE VÍTIMA É A CIDADANIA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Está ficando assustador voltar para casa, nesta maravilhosa Rio de Janeiro, onde
a violência vem minando os princípios éticos fundamentais de convívio humano.
Cheguei de viagem, neste início de abril, em plena Semana Santa, e ainda no táxi
do Galeão até o Flamengo tive que deixar rapidamente de me encantar com o
radiante sol da manhã e cair na real. “São 17 mortes em mais uma noite de
violência no Rio” é o eco, transmitido pelo rádio, de uma cidade mergulhada na
luta fratricida e na dor. O que parecia muito foi pouco. A notícia dominante no
Rio é a luta armada na Favela da Rocinha, com mortes, muitas mortes. Chega-
mos naquele ponto em que matar tornou-se banal. Já nem mais se sabe em nome
do que se mata. Mata-se quem estiver na frente. É uma luta em que quase todos(as)
os(as) que morrem são inocentes, que estão aí porque moram aí, em meio a raja-
das de metralhadoras e balas perdidas. Luta sem heróis, só vítimas. E uma grande
vítima: a cidadania.
Talvez eu esteja também me acostumando com tudo isso, com esta violência
oficial. Isso mesmo, violência oficial, pois tem no Estado e nas suas políticas a
principal causa. A criminalização das drogas – de algumas, deixando de fora o
tabaco e álcool, por exemplo – como política está nos levando a um beco sem
saída. Por trás, um Estado incapaz, mesmo assentado em uma institucionalidade
democrática, de assegurar políticas eficientes e eficazes de combate às desigualda-
des sociais e às múltiplas formas de discriminação que nos caracterizam como
sociedade. No âmago de tudo, uma estrutura de relações sociais e processos que
negam cidadania sem distinções, e que fazem do Estado um refém de privilégios
das minorias dominantes. Por isso tudo, confundimos direito à segurança com
repressão violenta e não como garantia de participação livre e democrática, bus-
cando justiça social e igualdade possível em nossa diversidade.
Bastou-me ficar uma semana fora e ver algo diferente para voltar e tremer dos
pés aos cabelos. Estive em reuniões de trabalho relacionadas ao Fórum Social Mun-
dial em Paris, Helsinque e na região italiana de Perugia. Não são lugares inteira-
mente livres da violência. A diferença é que são cidades em que, ao longo de anos e
décadas, vem se afirmando o primado da cidadania, da liberdade e da dignidade
humanas, como regras de convívio social na diferença. Bem diferente desta nossa
cidade do Rio, onde a “sociabilidade violenta”, na expressão do professor Luiz
Antonio Machado da Silva, do Iuperj, vem se impondo. Impressionou-me, em par-
ticular, Helsinque. Para mim, a Finlândia é o exemplo de que, com muita determi-
nação e políticas universalizantes eficazes, é possível, sim, obter níveis de garantia
de todos os direitos para todas e todos, gerando grande igualdade, como base da
vida social. A expressão mais acabada de tais conquistas é a igualdade despida em
que todos(as) se encontram em uma sauna, sem discriminação.
O cotidiano de permanente violência, em que sinceramente a gente tem medo
de polícia, acaba virando normalidade. Parece normal ter cercas de ferro, vigias
armados para todos os lados, câmeras invasivas, polícia invadindo qualquer casa
de favela na suposição que aí vive um(a) traficante ou seu(sua) protetor(a), tiros
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sendo dados a esmo. Estamos nos auto-aprisionando, negando a nós mesmos


direitos fundamentais de cidadania, tudo em nome da segurança. Na prática,
insegurança, pois cada vez mais está ficando restrito o espaço público da liberda-
de, da cidadania, do ir e vir livremente, sem ser molestado(a)... ou morto(a) por
alguma bala, na pior - mas possível - hipótese. A verdade é que vem aumentando
o número de mortes violentas de civis, de policiais, de traficantes. E a gente espe-
rando, esperando.
Não dá para imaginar quantas mortes de inocentes ainda serão necessárias
para parar a escalada da violência. Fico até pensando na hipótese de acabarmos
antes de acabar a lógica da violência. Estamos diante de uma espécie de cegueira
oficial diante da tragédia que isso está significando para a cidade, para o país,
para a cidadania. É uma falsidade a política oficial de segurança. Mas, em face
dela, não dá para partir para o “salve-se quem puder”.
Precisamos de vigilância cívica e cidadã e não de vigias armados(as). Precisa-
mos libertar as populações que estão sob o jugo dos(as) traficantes. Precisamos de
políticas que não tornem as drogas a base de um rendoso negócio, mesmo alta-
mente arriscado e violento. Precisamos imaginar e desenhar políticas capazes de
resgatar a cidadania de todas e todos que sentem seus direitos negados. Precisa-
mos de mais cidadania e menos violência. Enfim, precisamos nos sentir
orgulhosos(as) de nossa cidade, sem medo de externar nossa felicidade.
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OBRIGADO, MST

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Sei que estou indo contra a corrente dominante na opinião pública. Aliás, opi-
nião única, pois nenhuma dúvida existe na condenação praticamente unânime do
MST na imprensa, nenhum contraponto, nada ou quase nada do ponto de vista
dos(as) próprios(as) integrantes do movimento ou, ainda, dos(as) que, de uma
perspectiva democrática, buscam saídas para a desigualdade e a exclusão que
marcam nossa estrutura social.
Que jornalismo é esse? Lamentável! Podemos discordar do movimento, de
seus ideais, de seus métodos, mas tentar entender a questão em jogo é o mínimo
que se espera no debate público.
Provavelmente, não existe tabu maior no Brasil do que a questão agrária –
questão velha de séculos. Mas nada mais atual, pois não se limita ao campo em si,
à sua população. Racismo, machismo, desigualdades de todos os tipos e tantas
outras das nossas mazelas têm, lá bem escondidas, as suas raízes na estrutura agrá-
ria. E, o que de longe é mais grave, o nosso futuro se decide no modo como hoje
definirmos a nossa relação com o enorme patrimônio comum que temos: o terri-
tório e seus recursos.
Questão complexa, sem dúvida. Mas onde está o debate? Será que o sacros-
santo privilégio de uns(umas) poucos(as) em colocar cerca em volta de parcelas do
território – muitas vezes baseadas no roubo legalizado por meios escusos – está
acima do bem comum?
O centro de debate
A modernidade do MST está em nos interpelar sobre isso, sobre o passado de
nossa matriz agrária e sobre o futuro no uso dos nossos recursos naturais, tendo a
terra no centro. A sua luta social não pode ser vista fora de tal quadro. Mesmo
enfrentando diretamente os(as) donos(as) de terras, gado e gente – pois esta é
ainda uma lamentável característica dos(as) proprietários(as) no campo – os(as)
sem-terra, ao fazer ocupações de fazendas, trazem à tona um aspecto fundamen-
tal sobre a possibilidade de um desenvolvimento democrático sustentável no Bra-
sil. Somos, dos grandes países do mundo, o de menor densidade demográfica, o
mais privilegiado em termos de recursos naturais – terra, água, biodiversidade – e,
ao mesmo tempo, o mais desigual e, tragicamente, o mais predador. Até quando,
em nome de uma visão ainda estreita, poderemos sustentar o direito de agir nesta
parte do planeta Terra de forma tão irresponsável social e ecologicamente?
O futuro, o nosso futuro e não só o dos(as) sem-terra, depende de uma mu-
dança fundamental na relação com o patrimônio natural que temos. sem-terra,
seringueiros(as), quebradeiros(as) de coco, os próprios povos indígenas, heranças
de um passado selvagem e excludente, com suas lutas de resistência estão chaman-
do atenção para a forma devastadora e insustentável de nossa estrutura e do pro-
cesso de desenvolvimento no campo.
O sucesso de nossa agropecuária atual, apregoada como expressão de nosso
domínio de tecnologias de produção e de nossa competitividade – no chamado
modelo agroindustrial exportador – esconde uma verdadeira tragédia. Juntando
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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com a extração e exportação de minerais, com o deserto verde das florestas homo-
gêneas de eucalipto para celulose, que nos tornam imbatíveis no mercado mundi-
al, a nossa agricultura exporta para o mundo a seiva viva da nação, tanto da vida
natural como da sociedade, em troca de um duvidoso superávit nas transações
comerciais. Estamos comprometendo o presente de muita gente excluída do pro-
cesso e, o que é pior, o futuro de nossos(as) filhos(as) e netos(as), o futuro de
muitos(as) para além das fronteiras nacionais.
O centro de debate sobre o impacto da ação do MST deveria ser o caráter
antidemocrático e insustentável, do um ponto de vista ambiental, da atual forma
de apropriação da terra e de seus recursos. Na luta dos(as) sem-terra está a questão
da degradação dos rios, da destruição das florestas, da agressão à biodiversidade e
à sua privatização, dos duvidosos benefícios dos transgênicos, tudo muito além
do monopólio da propriedade da terra, em si algo intrinsecamente absurdo na
perspectiva dos direitos humanos, minha referência. Está em questão o modo
como nos relacionamos com a terra e o que ela contém.
Berço de um novo Brasil
Talvez o mais triste na conjuntura atual, de novo recrudescimento das ocupa-
ções do MST, seja tentar tapar o Sol com a peneira. Limitar o debate a uma
discutível agressão à propriedade da terra ou, mais genericamente, às leis e insti-
tuições, é recusar-se a ver de frente uma lei férrea constitutiva da sociedade brasi-
leira: os privilégios adquiridos de proprietários(as) privados(as) do patrimônio
coletivo contra direitos de cidadania e contra a reversão de um modelo predador
e excludente. Leis são feitas para serem respeitadas, sem dúvida. Mas leis expri-
mem relações. Na história humana não faltam exemplos de mudanças e avanços
que precisam ser feitos para que leis dêem conta da nova realidade. E os movi-
mentos sociais, como o MST, em sua truculência, acabam funcionando como o
anúncio da mais radical modernidade que clama por emergir.
Não tenho dúvidas em afirmar que, na luta dos(as) sem-terra, é, acima de
tudo, o nosso futuro que está em questão. E não o passado. Afirmo isso mesmo
reconhecendo que a forma da luta tem muito de primitivo e condenável. Sou um
radical pacifista, praticante incondicional da não-violência. Mas fico em dúvida
se a possível violência dos(as) sem-terra é da natureza de sua luta por um novo
modo de relação com a terra ou tem mais a ver com as formas como os(as)
proprietários(as) de séculos reagem na defesa de seus inegáveis privilégios.
Obrigado ao MST por nos fazer pensar no futuro e na possibilidade que ainda
temos de rever isso. Coragem, Lula: o momento é de inverter uma lógica e demo-
cratizar o campo, tornando-o o berço de um novo Brasil democrático e sustentá-
vel. Aliás, a pressão do MST é bem-vinda. Quem sabe o governo e nós todos
acordemos para o fato de que não dá mais para adiar medidas no sentido de
mudar o rumo de uma estrutura agrária que nos está levando ao desastre.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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O RESGATE DO SALÁRIO MÍNIMO

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Todo ano é a mesma coisa, uma decepção. Acabamos onde estávamos, na impos-
sibilidade – que nós mesmos(as) criamos, diga-se de passagem – de tocar no salá-
rio mínimo. São 20 anos de redemocratização e o único feito até aqui foi estabi-
lizar o salário no patamar vergonhoso em que se encontra. Se não é o pior da
América Latina, é um dos piores. O salário mínimo é, do meu ponto de vista, um
dos melhores indicadores do motivo pelo qual somos campeões(ãs) em desigual-
dade social no mundo.
Longe de mim dizer que o problema é de simples solução. Não se resolve por
voluntarismo de um presidente, mesmo sendo de origem operária, como Lula. Há
uma lógica férrea na estrutura brasileira, traduzida em políticas públicas, que só
faz crescer a desigualdade em múltiplas formas, desigualdade de renda, desigual-
dade étnico-racial, desigualdade de gênero, desigualdade regional. O salário míni-
mo é emblemático no caldeirão produtor de desigualdades: ele é, simples e radi-
calmente, um direito. Poder-se-ia dizer, e é tragicamente isto: um direito desrespei-
tado, vilipendiado, reduzido e até ignorado.
Dado a minha idade, sou um dos(as) que ainda se orgulham por ter começado
a receber a minha primeira renda na forma de um salário mínimo. Foi em meados
dos anos 1960. Como estudante universitário, dava para me manter decentemen-
te. Era apenas o começo da queda no fosso de onde temos dificuldade de sair
agora. A ditadura militar, com o seu ajuste político, social e econômico, fez uma
reengenharia para concentrar renda e criar mercado para a indústria de bens durá-
veis, que viria a se tornar o motor do “milagre econômico brasileiro”, como
muitos(as) chamaram as altas taxas de crescimento do nosso PIB. A outra face do
milagre foi a monumental deterioração do salário mínimo e a concentração de
renda. Hoje, 40 anos após, devo reconhecer que estou no grupo das pessoas privi-
legiadas. Mas o salário mínimo permanece como referência, como o mínimo divisor
comum de nossas desigualdades.
A importância do salário mínimo reside no fato de que 1/3 da população
brasileira o recebe (ou menos) e que outro 1/3 ganha até dois salários mínimos.
Falar de salário mínimo é falar da questão política essencial, de como são reparti-
das as riquezas que geramos como coletividade. Mas considerando que a nossa
própria cidadania foi associada historicamente a ter uma carteira assinada com
direito ao salário mínimo ou um múltiplo dele, temos embutida aí toda uma
situação complexa de nossa história política, com uma inevitável questão demo-
crática. É preciso que entendamos que, no debate sobre o mínimo, tem lugar
central a questão da qualidade de nossa democracia, quão inclusiva ela é.
O salário mínimo em nossa cultura política é mais do que salário monetário.
Tornou-se referência de identidade social fundada em direitos de quem trabalha,
parâmetro fundamental de medida do ganho, bem como, pelo inverso, da explora-
ção e da concentração de renda, e, finalmente, funciona como base da socialização
e da luta por direitos. Não importa que hoje a maioria seja constituída pelas pessoas
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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que estão fora, não têm a formalidade do contrato de trabalho e, portanto, dos
direitos trabalhistas. O mínimo, assim mesmo, é referência provavelmente do ta-
manho da tragédia social.
Chegou o momento da mudança, de ruptura com uma lógica que tenta
minimizar, em todos os sentidos, o salário mínimo. Joga-se aí uma questão chave
para que possamos construir uma sociedade democrática, de dignidade e liberda-
de para todos e todas. Precisamos construir um pacto virtuoso, que permita um
crescimento substancial do salário mínimo, resgatando o seu caráter de direito
construtor de identidades, de política de distribuição de rendas e de política de
inclusão cidadã. Para isto, não podemos esperar o próximo abril chegar. Agora,
devemos decidir sobre os critérios que permitam vislumbrar um melhor salário
mínimo para 2005 e adiante. Trata-se de construir as bases de uma política de
rendas, reconhecendo que o salário mínimo é a principal referência na estrutura
econômico-social e na cultura brasileira.
Temos um momento político especial que permite definir um consenso entre as
diferentes correntes políticas sobre a importância de resgatar o salário mínimo, o
que torna o pacto virtuoso possível. Não vejo outra saída que não definir um
compromisso de corrigir anualmente o salário pela inflação passada acrescido de
um plus. Minha proposta é que seja no mínimo – para ficar no espírito da coisa –
a correção pela inflação passada mais o crescimento do PIB, assegurado um gan-
ho mínimo real anual de 2%. Isso vale para quem ganha o salário mínimo na vida
real e para todos os ganhos indexados no mínimo, como os da Previdência Social.
É difícil? É, mas possível. Leva tempo, mas os resultados serão visíveis ao cabo de
poucos anos, invertendo a perversa lógica da concentração. Trata-se de eleger a
distribuição de renda como prioridade para a definição de um modelo democrá-
tico includente e sustentável para o Brasil de nossos(as) filhos(as) e netos(as).
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ENGAJAMENTO ATIVO, COM AUTONOMIA E CRÍTICA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

O Ibase, como organização de cidadania ativa – pública, mas não estatal;


política, mas não partidária –, desde o seu surgimento, nos idos de 1981, tem
enfrentado monumentais desafios para cumprir sua missão. Diga-se de passagem,
missão de pulga em elefante. Morde e incomoda com sua pequenez, fazendo o
bicho se mexer, apesar do avanço depender pouco de sua ação direta.
Na atual conjuntura, um grande desafio é o governo Lula. Trata-se de um
governo que reconhece e respeita o trabalho de organizações da sociedade civil
como o Ibase, além de ser permeável ao diálogo por sua origem e vocação. O
acesso é fácil e muitas são as possibilidades. Mas será que influímos? A nossa
mordida de pulgas faz o bicho andar no sentido da garantia de direitos humanos
para todos e todas, da radicalização da democracia no Brasil?
Com satisfação, o Ibase vê um de seus(suas) diretores(as), Francisco Menezes,
ser nomeado presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (Consea). A nomeação expressa o reconhecimento ao trabalho pro-
fissional e político de Francisco – o nosso Chico –, destacado ativista do Fórum
Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional, além de ter desempenhado papel
fundamental no processo que culminou com a II Conferência Nacional de Segu-
rança Alimentar e Nutricional, realizada em março, em Recife.
Mas a nomeação de Chico – que continuará no Ibase como coordenador do progra-
ma de segurança alimentar da instituição, tendo se licenciado apenas do cargo de dire-
ção – é também uma forma de reconhecimento ao trabalho que o Ibase vem desenvol-
vendo ao longo dos anos sobre o tema, com destaque para a Ação da Cidadania contra
a Fome, a Miséria e pela Vida, animada pelo Betinho, nos anos de 1993 a 1995.
O desafio é grande, sem dúvida. A aceitação ou não de um convite governamen-
tal como esse depende pouco da vontade institucional do Ibase. Como instituição
da sociedade civil, se vê exercendo um papel autônomo e de vigilância crítica de
governos, sejam quais forem. Não se recusa a participar, a estabelecer parcerias, mas
sem adesão ao governo ou como trampolim para cargos em seu interior. Seus mem-
bros, sócios(as) e funcionários(as) podem fazer parte de governos, mas isso não é
uma estratégia institucional. Por princípio democrático e democratizador do Esta-
do, da economia e da própria sociedade, defendemos, isso sim, modos de articula-
ção e ação com governos que propiciem a participação ativa e direta de movimen-
tos e organizações da sociedade civil nas políticas públicas.
É bom que se esclareça que o Consea é, por natureza, um espaço de parceria
ativa entre governo e sociedade civil para concertação de políticas em torno da
soberania e segurança alimentar e nutricional. O Chico não está virando um fun-
cionário de confiança do governo Lula, mas um colaborador civil, expressão da
parceria na constituição do Conselho, em que a presidência é exercida por repre-
sentante da sociedade civil.
O desafio reside no fato de se engajar ativamente neste momento do governo.
As dificuldades que atravessa, com a quebra da esperança que lhe deu origem, são
evidentes. A aposta de mudança, que ainda permanece aberta, a meu ver, reside na
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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radicalização da participação. Para fazer o governo mover-se e contrabalançar o


peso da aliança com setores empresariais e partidos no Parlamento, precisamos
de mais participação política da cidadania. Tanto por ações diretas, como os(as)
sem-terra e os(as) sem-teto vêm fazendo, como pela pressão das greves e mani-
festações de rua. Para fazer as necessárias pontes e avançar, a participação no
Consea parece estratégica, desde que não se perca o senso de autonomia e o
espírito crítico e vigilante.
Em termos estratégicos, o Ibase aposta na possibilidade da radical participa-
ção – e não no superávit fiscal – vir a se constituir a grande estratégia de Lula para
impulsionar o desenvolvimento humano, democrático e sustentável do Brasil. O
Chico tem uma tarefa difícil. O Ibase lhe dará o apoio possível, sempre mantendo
sua autonomia e crítica. Pensamos que esta é a forma mais adequada de radicalizar
um modo de fazer política que seja participativo e inclusivo, além dos espaços de
representação formalmente constituídos pelo voto. Quanto mais participação,
melhor. É com esta perspectiva que o Ibase encara o fato de um de seus(suas)
diretores(as) virar membro do Consea.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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RISCOS DE UMA AGENDA PRESIDENCIAL

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

A viagem de Lula à China está confirmando o que até então era só uma suspeita:
o pragmatismo na conquista de mercados internacionais está acima da questão
dos direitos humanos. O fato é que as recentes incursões do Brasil no plano inter-
nacional podem se transformar numa armadilha para o amadurecimento de uma
emergente cidadania planetária.
Uma breve análise sobre as últimas viagens internacionais do nosso presidente
mostra riscos evidentes. Abster-se, como no caso das condenações de dissidentes
políticos em Cuba, ou ignorar as violações de direitos humanos, como na Líbia de
Kadafi, é ir contra aspirações da cidadania mundial. Passar por cima da legítima
luta do povo tibetano pela sua autodeterminação em troca de ganhos comerciais
imediatos nas transações com a China beira a afronta. Mas não é só: o acordo
com a Índia teve como parceiro um governo fundamentalista assassino.
Até a sempre esquecida África virou uma prioridade internacional para o Bra-
sil. Infelizmente, o continente este sendo visto apenas como mercado para o Brasil
e não como terra de povos irmãos, fundamentais na própria formação da nação
brasileira. No centro dessa aproximação não está uma agenda comum de desen-
volvimento e de enfrentamento das dominantes relações econômico-financeiras
que subjugam os países mais pobres.
Vale lembrar que um elemento chave nos diferentes movimentos que se insur-
gem contra a globalização neoliberal, tendo no centro a OMC (Organização
Mundial do Comércio), o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internaci-
onal), é que o direito do capital e dos mercados não pode, em hipótese alguma,
estar acima dos direitos humanos. Elegemos Lula para uma mudança de
paradigma. Sem dúvida, a entronização do mercado – com liberalização,
desregulação e perda da capacidade do Estado em formular políticas
macroeconômicas diante do poder de conglomerados econômico-financeiros e
um punhado de especuladores(as) – é algo que foi implantado ao longo da déca-
da de 1990. Mas nada disso pode impedir que sinais claros sejam dados, apontan-
do para um desenvolvimento democrático e sustentável e buscando criar condi-
ções para que os direitos humanos sejam a referência mínima. No entanto, os
sinais até agora emitidos apontam para um pragmatismo que pode reinstaurar o
desenvolvimento selvagem.
A questão dos direitos humanos é central para a emergente cidadania planetá-
ria e não pode ser relegada justamente por um governo que traz consigo a esperan-
ça de inclusão e resgate de direitos para milhares de pessoas. A Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos, de 1948, as Convenções de Direitos Civis e Políticos, e
a de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, a Declaração e Programa
de Ação de Viena, de 1993, as várias resoluções do Alto Comissariado para os
Direitos Humanos, da ONU, são a base de uma espécie de constituição universal
fundamental da sociedade civil mundial. Todas as entidades, movimentos sociais,
redes, coalizões e campanhas que, em sua diversidade geográfica, social e cultural,
se unem, por exemplo, no Fórum Social Mundial têm como referência comum
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ética e de valores os direitos humanos. Aliás, a única intransigência e inflexibili-


dade que pode ser atribuída a esta emergente cidadania sem fronteiras, constituí-
da de mulheres e homens, homossexuais e transexuais, jovens e velhos(as),
negros(as), amarelos(as) e brancos(as), crentes e não-crentes, é quanto à profunda
motivação que a faz reagir com tanta força diante do estado atual de coisas:
todos os direitos humanos para todos os seres humanos.
Que me desculpem, companheiros e companheiras no governo, mas não dá
para calar: os contornos dessa agenda internacional começam a ficar perigosos
demais. Para junho, está prevista a ida de Lula a Nova Iorque para a reunião do
Global Compact. Pelo que se sabe até o momento, nosso presidente será o único
governante a dar brilho a essa nefasta iniciativa do secretário geral da ONU, Kofi
Annan. Na visão dos movimentos de cidadania mundial, o Global Compact é
um perigoso passo no sentido de comprometer as Nações Unidas com a agenda
dos maiores conglomerados econômico-financeiros, cuja folha corrida na viola-
ção de direitos humanos pelo mundo não cessa de crescer. Não faça isso, presiden-
te Lula! Ainda há tempo de mudar.
Não ignore também o impacto dessa agenda internacional na definição das pró-
prias prioridades domésticas. Em nome da necessidade e oportunidade de cresci-
mento das exportações, tudo parece ser feito para favorecer um modelo exportador.
Sinais evidentes de ameaças às nossas riquezas naturais vêm crescendo, seja pelo
avanço dos cultivos de exportação – soja, algodão, eucalipto etc. –, seja pelos inves-
timentos em infra-estrutura de transporte e energia. A deterioração que se verifica
na frente indígena, tanto de violências como na mudança da política de demarca-
ção de terras, é assustadora. Até onde? Até quando? À sociedade civil organizada
cabe reagir e libertar o governo Lula de parte da aliança que o elegeu. Afinal, Lula
é presidente de toda uma nação e não só dos(as) mercadores(as) de sempre.
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21

LULA: UM NOVO LÍDER GLOBAL

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

A hegemonia do truculento imperialismo americano de George W. Bush na po-


lítica global é tal que, muitas vezes, deixamos de perceber mudanças importan-
tes no cenário das relações entre nações. Sem dúvida, a eleição nos Estados Uni-
dos assume uma dimensão inédita, dada a própria centralidade do país, atuan-
do acima e à revelia das convenções, acordos e instituições multilaterais. Como
correlato, o terrorismo que os EUA de Bush definiram como a grande questão
da agenda global, terrorismo para o qual a sua lógica de guerra total funciona
como fermento. No Brasil, apesar da violência que ronda o cotidiano de nossas
cidades, estamos bem longe do clima de paralisia que se criou nos EUA e nos
países que apoiaram a guerra no Iraque. Quando se viaja à Europa, é possível
observar a angústia estampada nos rostos das pessoas. A coisa é bem mais do
que uma guerra psicológica, pois o terrorismo já deu provas, como o próprio
Bush, de sua determinação no ataque contra o que, na sua visão fundamentalista,
constitui o(a) inimigo(a).
Felizmente, porém, a vida em nosso planeta não se restringe a isso. O futuro
tenta emergir em meio ao caos provocado por um capitalismo exacerbado pela
ganância das corporações em tudo controlar e pela legitimação de uma
globalização neoliberal produtora de desigualdade e exclusão. São pequenos
sinais, mas significativos. Contra toda lógica, está surgindo no mundo uma voz
forte dos que se sentem de fora. É como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
está sendo visto: uma liderança forte do sul, com uma agenda que recoloca no
debate as questões da parte mais fraca do mundo - no entanto, em torno de
80% da população mundial. E, o que é mais notável, é uma voz que está sendo
ouvida e começa a ser respeitada.
A adesão de centenas de países - e de mandatários(as) como Zapatero (Espanha),
Lagos (Chile) e Chirac (França) - à proposta brasileira de um Fundo Mundial de
Combate à Pobreza, anunciada recentemente em Nova York durante encontro de
líderes mundiais na ONU, é simbólica desse status de Lula. Poderia parecer um
repeteco de tantas boas intenções. Mas não, à margem e por dentro, ao mesmo
tempo, da ordem dominante, emerge um clamor por recolocar no centro a ques-
tão da justiça global. Mais, transformam-se em propostas as idéias que há muito
tempo alimentam movimentos da nascente cidadania planetária, como a taxação
do dinheiro especulativo e dos paraísos fiscais. Em um momento em que tudo
parece convergir para o terrorismo na agenda dos governantes mais poderosos,
Lula tocou no câncer do próprio sistema global.
Seria muito ver no ato de Nova York, em si mesmo, algo mais do que foi: um
anúncio político cercado de muitos refletores da capital do mundo. Mas a movi-
mentação de Lula no cenário global não se limita a isso. Talvez mais importante
tenha sido a formação do bloco IBSA - Índia, Brasil e África do Sul, em Brasília,
no ano passado. Um novo bloco Sul-Sul com impacto global? A ver o que vai
acontecer no futuro próximo.
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22

É claro, as movimentações globais de Lula têm suas contradições. Até que ponto
a agenda comercial, do acesso a mercados para os(as) nossos(as) capitalistas
tupiniquins, não está perturbando o que pode vir a ser uma agenda de desenvol-
vimento e de multilateralismo baseado na justiça global e na solidariedade, ainda
não está evidente. Mas o fato é que saímos da situação que nos empurraram os
governos anteriores (particularmente durante os mandatos tucanos), de seguir di-
reitinho a cartilha do neoliberalismo para ser aceito no reservado clube do G-8.
Não estará o presidente Lula preparando um ambiente externo, econômico e po-
lítico, mais propício para nosso desenvolvimento e o de outros povos?
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23

PROGRAMA SOB FOGO DE BARRAGEM

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

O noticiário do Jornal Nacional, da TV Globo, do dia 18 de outubro, reprisou


reportagem feita para o Fantástico, da mesma emissora. No centro, pessoas bene-
ficiadas com os recursos do programa Bolsa-Família. Além de casos constatados
em três municípios – Piraquara, no Paraná; Pedreiras, no Maranhão; e Cáceres, no
Mato Grosso –, o Jornal Nacional completou a notícia com casos das regiões
metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo, agregando opiniões de especia-
listas e a própria repercussão que a reportagem inicial gerou.
O foco da matéria foi o desvio e a apropriação dos recursos por parte de quem
não deveria estar no programa governamental, enquanto pessoas verdadeiramen-
te necessitadas não são alcançadas. Não foi reportado nenhum caso – nenhum
mesmo – do benefício que o programa está fazendo a quem de direito, os(as)
milhões de brasileiros e brasileiras que não têm renda para garantir minimamente
suas necessidades mais básicas.
Ou seja, passa-se a notícia de total distorção do Bolsa-Família e são ignoradas
as mais de quatro milhões de famílias que já recebem o benefício. Espalhadas pelo
Brasil afora, são parte da meta de 11 milhões que o governo pretende chegar até o
fim de 2006.
O maior programa social já desenvolvido pelo país, e totalmente desqualificado
pela reportagem, terá em 2005 em torno de 6,7 bilhões de reais, chegando perto
do orçamento do Ministério da Educação, 7 bilhões de reais. Sua incidência e seu
volume de recursos empregados devem mesmo ser alvo da constante vigilância da
sociedade – inclusive e especialmente da mídia.
Ainda assim, e sem duvidar dos fatos registrados pelos(as) profissionais da
Rede Globo, é impossível não destacar o viés dado à reportagem. Ou será que está
tudo tão errado assim? Por que não mostrar o quanto de dignidade muitas famí-
lias recuperam com o pouco de renda que lhes garante o Bolsa-Família? Será que
ouvir também famílias beneficiadas pelo programa não seria a melhor forma de
avaliá-lo? A falta do outro lado da história reduz em muito o mérito do que a
matéria mostra. Na reportagem da TV Globo, tudo aponta para o desvio, para a
apropriação indevida. Impossível engolir isso como bom jornalismo e como servi-
ço a uma boa causa.
Sob o manto de uma constatação objetiva – as imagens e os depoimentos
são, sem dúvida, eloqüentes – passa-se a idéia do desperdício de recursos públi-
cos no que, talvez, seja a maior inovação no governo Lula. Ao alcançar a popu-
lação mais miserável e resgatar a sua dignidade, o Bolsa-Família se inscreve no
que se tornou uma marca do governo atual, o Fome Zero. Com seu faro de
homem do povo, tendo sofrido ele mesmo a fome na sua infância, Lula perce-
beu o quanto de novo pode representar o seu governo se conseguir erradicar a
fome no país. Afinal, trata-se da fome em meio à relativa abundância. Ou seja,
nossa fome não é de escassez de alimentos – o Brasil é uma das maiores potênci-
as produtoras e exportadoras de alimentos do planeta –, mas de acesso e distri-
buição, de justiça social enfim.
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O Fome Zero como programa começou muito mal, somando-se a muitos ou-
tros programas parciais de distribuição de renda, facetando de diferentes maneiras
uma população excluída que, no entanto, é uma só. Justamente a unificação dos
programas no Bolsa-Família foi o passo fundamental na direção da cidadania e
de implantação da renda básica como direito. Juntou-se em um só programa e em
um só cartão iniciativas como Bolsa-Alimentação, Bolsa-Escola, Vale-Gás, entre
outros benefícios.

Vigilância e pressão
O que as milhões de famílias de indigentes mais precisam é ver reconhecida a sua
humanidade e cidadania. Homens, mulheres e crianças em situação de indigência
têm fome, muita fome, de comida, água, roupa, escola, cidadania enfim. Com o
Bolsa-Família, caminhamos decididamente para atender a essas necessidades. É
claro que mudanças numa cultura política que ainda trata miseráveis como massa
de manobra não se fazem do dia para a noite. Desvios no Bolsa-Família, como
mostram a reportagem da Globo e outras tantas, existem. Mas o que realmente
precisamos é entrar no mérito do programa para avaliá-lo e aperfeiçoá-lo.
Por favor, Rede Globo, mostre o milagre que os recursos do Bolsa-Família
estão gerando – algo em torno de menos de 90 reais por mês, por família, em
média – para que possamos corrigir e melhorar a iniciativa! Não posso crer que
ainda o cinismo tacanho impere entre nós, influenciando-nos a pensar que o di-
nheiro do Bolsa-Família teria utilização melhor em investimentos de infra-estru-
tura ou, pior, no aumento do superávit primário para pagar os(as) gananciosos(as)
vampiros(as) que se alimentam da dívida pública. E isso? Não é um desafio etica-
mente inaceitável?
Sem dúvida, as denúncias precisam ser apuradas e os desvios devem ser puni-
dos. Mas, para o bem da democracia, precisamos saber a verdade do potencial
que significa o Bolsa-Família. À cidadania militante deste país cabe exercer vigi-
lância e pressão para que as políticas públicas voltadas para as pessoas mais exclu-
ídas sejam verdadeiras alavancas de democratização e combate às desigualdades.
Mas para isso, é fundamental termos uma cidadania bem-informada. Esta ainda
nos falta – e muito.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Crônicas
2005
SUMÁRIO

As veias abertas da Amazônia 03


Cândido Grzybowski

Acorda Brasil 05
Cândido Grzybowski

A barbárie está em nós 07


Cândido Grzybowski

O sonho não pode acabar 09


Cândido Grzybowski

Que desenvolvimento queremos para o Brasil? 11


Cândido Grzybowski

Caminhos da governança 13
Cândido Grzybowski

Exigimos ética na política 15


Cândido Grzybowski

O caminho mais curto para o desastre 17


Cândido Grzybowski

Meias respostas insuficientes 19


Cândido Grzybowski
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3

AS VEIAS ABERTAS DA AMAZÔNIA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

O livro de Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina, é uma obra


marcante para nos entendermos como latino-americanos(as). Trata-se da apreen-
são da História da América Latina pelo lado da espoliação, violência e destrui-
ção. Algo semelhante precisa ser escrito sobre a nossa Amazônia. Espoliação, vio-
lência e destruição sintetizam uma história trágica nesta parte do planeta, um
bem comum natural que coube ao Brasil fazer uso.
Vivemos o lado trágico do que se passa na Amazônia. Lá, as veias estão abertas
faz tempo e nada é feito para estancar o sangue que jorra em quantidades crescen-
tes. As intervenções de emergência, como no caso do assassinato da freira Dorothy
Stang, sempre ocorrem depois da tragédia. Por um momento, não mais do que
isto, as veias deixam de jorrar perdidamente a vida. Porém, logo, logo, tudo volta
ao normal, ou seja, voltam a espoliação, violência e destruição. Até quando?
Quantas pessoas ainda precisam morrer? Quantas matas precisam ser destruídas?
Estamos matando muita gente na Amazônia, em uma guerra de séculos. Guer-
ra entre indígenas e não-indígenas. Entre posseiros(as) e grileiros(as). Entre o co-
mum e o privado. Entre viver e ganhar. Entre vida e morte. O natural é o ser
marcado para morrer e não o nascer para viver em meio à frágil exuberância que
a Floresta Amazônica, com seus rios e sua vida animal, propicia. A ganância su-
bordina e acaba com a vida.
A exploração da madeira, a mineração, o garimpo predatório, a fazenda lati-
fundiária para boi e o grão alienígena priorizam a acumulação de capital em
detrimento dos direitos humanos, da justiça social e ambiental. Não há lugar
para povos indígenas e seus seculares territórios. Falta terra e mata para reservas
extrativistas para caboclos(as) e populações ribeirinhas. O boi tem prioridade
ao(à) sem-terra.
Estamos destruindo a Amazônia como habitat natural. Isto em um ritmo que
se acelera. Destruímos quase 25 mil km2 de mata por ano, o eqüivalente a 2,5
milhões de hectares. Um Rio Grande do Sul a cada 10 anos! E por causa das
queimadas, já contribuímos com aproximadamente 4% da emissão mundial de
gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global, catastrófico segundo
estudos científicos. Chamamos isso de desenvolvimento? Ou desenvolvimento seria
pensar formas de tirar partido do imenso potencial de biodiversidade, água e
recursos renováveis existentes na Amazônia?
Está na hora de olharmos no espelho e vermos o que se reflete. Estamos impe-
dindo a vida de dar os frutos de que é capaz. Não adianta atribuir nossas mazelas
a velhas relações coloniais de cinco séculos, a um capitalismo predatório e
concentrador, a uma globalização pautada pela lei selvagem do mais forte no
âmbito do mercado.
Cabe a nós decidir se a lógica de espoliação, violência e destruição na Amazô-
nia deve continuar. Por mais difícil e doloroso que seja, precisamos encarar nossa
responsabilidade planetária com relação à Amazônia de forma soberana e ousa-
da. Somos nós, ninguém mais, que podemos acabar com a sangria da Amazônia.
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4

Este é o nosso lugar, o nosso espaço, o nosso território. Nosso como seres huma-
nos, em nossa universalidade de humanidade, em nossa responsabilidade de pre-
servar um bem comum que é de todo ser humano.
Um povo se faz com generosidade, e não com a visão curta de interesses
imediatos. Pior: interesses da parte da sociedade que domina. Um povo é povo
quando valoriza e preserva o comum na parte do território planetário que a
História acabou por lhe reservar. Mas a história não acabou. O hoje não será o
amanhã – lembremo-nos sempre dessa verdade elementar da história humana e
de seu habitat natural.
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5

ACORDA, BRASIL

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Estranha a conjuntura política brasileira. Ou melhor, desesperante. Vivemos a sen-


sação do imprevisível. Um maremoto político parece estar sendo armado no Planal-
to Central. Nada que não possa ser mudado pela força da jovem, mas experiente
democracia brasileira. É pensar como e ir à luta, companheiros e companheiras.
Na democracia, a incerteza é, de certa forma, expressão de vitalidade. Sabemos
quais os seus princípios constituintes e regras políticas, mas não sabemos de ante-
mão – ou temos muita dúvida – quais os possíveis resultados da disputa política.
Tudo é permitido, respeitados os princípios e as regras – faz parte do jogo.
Na democracia, o processo do fazer prevalece sobre o feito; o modo de chegar
prevalece sobre a conquista; a participação política prevalece sobre o realizado.
Enfim: as condições qualificam os resultados e os fins a alcançar não justificam
os meios empregados.
A democracia é um processo permanentemente renovado de busca, um modo
de fazer contraditório e conflituoso, de fundar e refundar, de construir e recons-
truir. A luta social entre sujeitos titulares de mesmos direitos de cidadania é a
força motriz da democracia. A disputa de visões e concepções é o que dá forma e
conteúdo ao processo de luta democrática.
Brigamos, e muito, para ter a democracia – com seus ganhos e limitações – no
lugar da ditadura militar. Nem faz muito tempo que conquistamos tal feito: exa-
tos 20 anos. Sofridos, sem dúvida. Mas quantas jornadas memoráveis, não fosse a
democracia, não teriam acontecido. Cada um(a) deve ter as suas lembranças e, se
não tem, deve tratar de registrá-las logo.
Presenciamos a reforma agrária virar política de Estado; sentimos a vibração cida-
dã da Assembléia Constituinte; das eleições presidenciais de 1989; do Movimento
pela Ética na Política; do impeachment de Collor; da Ação da Cidadania contra a
Miséria e pela Vida; das experiências de governos participativos; da inflação domada.
Mais recentemente, fizemos o Fórum Social Mundial e elegemos um metalúrgico
para a Presidência do Brasil. Uma trajetória de celebração cívica, em meio ao
aprendizado coletivo de responsabilidades e direitos de cidadania.
Tivemos também as ondas baixas, de desespero até: a frustração com o Cruza-
do; o confisco de Collor; a dilapidação do patrimônio público com as privatizações;
o amargo receituário do FMI; o desemprego montante; a queda da renda média.
Mas estávamos lutando, apesar de tudo.
Quando botamos o Lula lá – e achamos que tínhamos chegado a mares menos
revoltos –, o maior desafio da democracia brasileira ainda estava por vir. Desde
meados de 2004, tenho afirmado que a cidadania está encurralada. A alternativa
para que o governo que elegemos não se perca de vez é voltarmos às ruas.
Devemos romper as amarras para que, de fato, a esperança supere o medo e a
radicalização da democracia seja possível. Mais ainda: não podemos perder as refe-
rências da democracia. Não podemos permitir que as incertezas fiquem sem princí-
pios e regras. A eleição de Severino Cavalcanti para a Presidência da Câmara é um
fato emblemático do perigo que corremos. Vamos aceitar o “salve-se quem puder”?
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6

Vivemos um daqueles momentos de absoluta incerteza no pacto democrático


fundante. O fisiologismo e o patrimonialismo, nossas mazelas políticas maiores,
não só mostraram a sua cara, como estão dando as cartas. Aprisionaram o gover-
no Lula ou, talvez, ele tenha feito por merecer a prisão. Mas a democracia brasi-
leira – definida na simples radicalidade de garantir todos os direitos a todos(as)
os(as) brasileiros(as) – não pode ser tão seriamente ameaçada. Não podemos acei-
tar que o nosso Congresso atue como federação de interesses particulares, em vez
de expressão da cidadania brasileira.
O governo Lula seria o responsável pela total incerteza que está no ar, amea-
çando a possibilidade de avanços democráticos? Não de todo, mas, em grande
parte, sim. Lamentável ter que reconhecer isso, mas, ao mesmo tempo, funda-
mental para apontar onde e por onde devemos começar algo que recupere o sen-
tido de um pacto democrático e republicano para o Brasil.
Incertezas sim, mas desde que saibamos como enfrentá-las. A democracia é o
valor maior a preservar. Não será com privilégios, concessões em nome da
governabilidade e arranjos de poder que chegaremos às mudanças que o país tan-
to requer.
Antes que seja tarde – e a democracia seja questionada – lutemos para que o
governo Lula passe a ser aquilo que esperamos dele. Em outras palavras: é preciso
que, literalmente, caia a ficha. E logo.

.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

A BARBÁRIE ESTÁ EM NÓS

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

A Chacina da Baixada, em si mesma absurda e abominável, está caminhando


para ser simplesmente mais uma chacina. Ou alguém acredita que desta vez vai
haver mudanças? Ser pobre, negro(a) e favelado(a) já é ser um candidato(a) po-
tencial a uma chacina - parece que o mais apropriado seria dizer alvo certo. Só
não se sabe quando, mas que ela virá, disso ninguém duvida. Parece que a melhor
solução é deixar de acreditar de vez nas instituições e poderes que nos governam e
tratar de mudar-se para lugar mais seguro, o mais depressa possível.
Mas o que mais me choca é ver que nos recusamos a ir ao fundo da questão.
Já temos dados e análises suficientes, ao menos aqui no Rio de Janeiro, para
saber que a violência é seletiva. Trata-se de uma violência tendenciosa geogra-
ficamente, considerando a região metropolitana do Rio. Dados publicados no
ano passado pelo Observatório da Cidadania - Relatório 2004, com base nos
estudos de Sílvia Ramos e Julita Lemgruber, revelam que a probabilidade de
ser assassinado(a) é de seis a 20 vezes maior se alguém vive nas áreas mais
pobres, ao invés de desfrutar da proteção da Zona Sul do Rio. E se você é
jovem (de 15 a 24 anos) e negro(a), vivendo nessas áreas onde os índices de
violência até superam zonas de guerra aberta, a sua chance de ser assassinado(a)
aumenta em 400%.
Que Rio é este? Que Brasil é este? É forçoso reconhecer que tem sido assim
desde muito tempo. A exclusão social com requintes de violência é nosso estigma
maior, herança colonial renovada, atual, cotidiana. Tratamos a exclusão como
exclusão, sem meias palavras. Temos polícia para isso. Temos Judiciário para isso.
Fazemos e renovamos leis para isso. Dói constatar verdade tão elementar? Isso
porque nem eu, nem você, vivemos nas condições socais, no meio, enfim, onde
essa é a regra. Regra assassina? Claro! Por que a dúvida? Ou os(as) excluídos(as)
se enquadram ou bala neles(as). A violência é tolerada, a promoção dos direitos
de cidadania, não.
É claro que a Chacina da Baixada choca. Mas foi “lá longe”, na Baixada.
Você já esteve lá? Moraria lá? Sinceramente, quando pobres são assassinados(as),
é como se fosse “lá longe”; não é próximo de nós. Tiro esta conclusão por estas
semanas pós-chacina e como parte desta comunidade fraturada estruturalmente,
como somos no Rio. É mais fácil chorar pelo Papa morto que pelos mortos(as) da
Baixada. Sinto até vergonha em constatar isso.
A barbárie está em nós, em nosso modo de viver, de produzir poder público, de
reagir frente às nossas mazelas. Fechamo-nos, fugimos de nós mesmos(as), em vez
de encararmos os problemas que negam humanidade e cidadania a uma grande
parcela do que somos como cidade. Os ideais republicanos ainda não nos movem.
Somos movidos(as) em busca de privilégios, de benefícios, de vantagens. Os direi-
tos iguais parecem nos incomodar, mais do que nos fazer agir. No fundo, não
queremos um Estado para todos(as), que garanta direitos básicos para cada ser
humano, cada cidadão(ã) vivendo aqui.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8

A Chacina da Baixada revela todas as nossas mazelas. Temos uma polícia para
nos proteger das “classes perigosas”, matando se preciso. Mesmo quando tal po-
lícia extrapola, revelamos tolerância. Ainda não estamos no ponto de ver que se
há solução - e há -, ela depende de nós, cidadãs e cidadãos mobilizados(as), em-
purrando governos no caminho dos direitos.
Até onde? Até quando? Até onde e quando nós não agirmos. Roupas brancas
não são suficientes. Nossa indignação cidadã deve ser capaz de produzir uma
onda de pressão que transforme governantes e polícia e faça valer a república
democrática para todos(as). Que a solidariedade às vítimas e à população da
Baixada nos dê forças para finalmente inverter este estado de coisas.

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9

O SONHO NÃO PODE ACABAR

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Neste momento, quando lembramos as jornadas de 20 anos atrás, com a instau-


ração da Nova República e o fim da ditadura militar, vendo imagens das Diretas
Já com Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Leonel Brizola, Franco Montoro, Mario
Covas, Darcy Ribeiro – para ficar em alguns líderes políticos destacados da re-
construção democrática que partiram –, forçosamente somos levados(as) a fazer
uma relação entre o ontem e o hoje.
O sonho de construir um país fundado nos princípios e valores da democracia
despertou uma enorme energia coletiva, cuja força nos trouxe até o presente. Te-
mos muito a comemorar, sem dúvida nenhuma. Mas não estamos em um mar de
rosas. O maior temor, que creio ser de muita gente pelo Brasil afora, é o descrédito
na democracia acabar tomando o lugar do sonho.
As sucessivas crises em diferentes países da América do Sul mostram como a
espera por mudanças fundamentais tem limites. E a falta delas fica, no senso
comum, por conta de nossas ainda frágeis democracias. O que está acontecendo
no Equador agora é revelador. Ontem foi na Bolívia. Antes no Peru. Mas será
que o ocorrido na Argentina é diferente? Será que estamos caminhando para um
novo quadro de instabilidade política na região? Um alerta para o Brasil e o
governo Lula?
O certo é que as frustrações com o estado de coisas estão aumentando. Mais,
governo vai, governo vem, pouco muda em termos de busca de novos rumos. A
desigualdade e a exclusão social não entram no centro da agenda de governantes,
mais preocupados em serem bem avaliados pela banca, pelo FMI e Banco Mundial.
O incrível é que nunca a cidadania deu tanta demonstração de ativismo e
participação como no processo de redemocratização e agora mesmo na crise. Isso
põe sob tensão a institucionalidade conquistada, mas é o recurso que sobra para
ser ouvido(a) ou simplesmente respeitado(a). Cresce o buraco entre cidadania
militante e as instituições, os partidos, a representação eleita. Sobra a rua, e ela
tem sido crescentemente utilizada.
É forçoso reconhecer que entramos em um período perigoso de “democracias de
baixa intensidade” em termos político-institucionais. Melhor dito, o impulso
democratizador foi capturado pelas políticas de ajuste e abertura econômica, que
dividiu de forma bastante clara a política de nossos países: democratizou-se o poder
e as políticas no social, se possível com boa dose participativa, e se concentrou e
fechou o poder nas questões macroeconômicas, mantidas como verdadeiros segre-
dos de Estado, ao menos para os(as) que não fazem “negócios” importantes segun-
do critérios do mercado. Na verdade, está literalmente blindado o que não pode ser
mudado para os interesses e forças dominantes em nossas economias.
O resultado é claro em termos de manutenção da “ordem econômica” e agra-
vamento dos problemas sentidos pela população. Em praticamente todos os paí-
ses, quem disputa cargos majoritários ganha com propostas de mudança, mas
chegando lá, faz outra coisa. Mas será que isso é um mal da democracia ou uma
possibilidade – bem real, como se vê na prática – disso acontecer?
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10

Considero que uma das melhores definições para a democracia é ela ser “um
pacto de incertezas”. Ela qualifica as situações políticas e o próprio desenvolvi-
mento histórico de uma sociedade exatamente por primar no modo de fazer para
que as mudanças sejam includentes, participativas, igualizadoras e duradouras.
Ou seja, para a democracia os fins não justificam os meios. Ela é uma concepção
do meio, do modo de fazer. Cabe à ela reequilibrar o poder que as estruturas e
processos econômicos, sociais e culturais criam nas sociedades.
No centro da democracia estão os conflitos e as disputas entre diferentes,
opostos(as) e, acima de tudo, desiguais. A democracia equaliza pelo reconheci-
mento da comum cidadania. Portanto, nada de mal nos conflitos e disputas,
motores vitais para a democracia, desde que se desenvolvam em um quadro de
princípios e regras que levem à negociação do possível, permitam alianças e pac-
tos. Assim agindo, a democracia é estável em sua instabilidade intrínseca. Até
rupturas podem ser pactuadas, isto é, fixadas em parâmetros constitucionais legí-
timos e legais.
Posto isso em termos um tanto abstratos, vale a pena confrontar com a reali-
dade. O inimigo das mudanças fundamentais de que precisamos não é a democra-
cia. De minha perspectiva, é fundamental preservar a vitalidade da democracia
como sonho e projeto real. Caso contrário, é a volta da barbárie. Precisamos, sim,
empurrar sempre os(as) governantes e toda a estrutura de representação política
para que se pautem pela cidadania. A economia não pode vir antes da cidadania
nas democracias. Governantes e os tais mercados precisam entender esta verdade
fundamental.
Exerçamos o nosso poder! A rua, como último recurso, nada mais é do que
exercício de democracia direta. O radicalismo democrático é a condição para o
avanço da democracia neste conturbado momento histórico. Quem sabe, agindo
assim, o sonho não acabe e uma outra América Latina seja possível.
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11

QUE DESENVOLVIMENTO QUEREMOS PARA O BRASIL?

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Está claro que o país vive um momento revelador das enormes contradições
constitutivas de nossos limites e possibilidades – ou das possibilidades contidas
nos limites, definição mais adequada. Os desafios estruturais e conjunturais que
temos pela frente dependem, e muito, de nós, mas não podemos ignorar o contex-
to mundial no qual estamos inseridos(as).
Por sinal, o debate sobre desenvolvimento começa a tomar certa centralidade,
em grande parte pelo que ocorre e não ocorre no governo Lula. Mesmo que pare-
ça uma retomada do velho desenvolvimentismo, é preciso reconhecer que temos
diante de nós um quadro diferente.
Hoje, temos a democracia no centro. Além disso, após longo período de luta
contra a inflação e o escancaramento da economia brasileira à globalização neoliberal
na década de 1990, o que temos para mudar para podermos nos desenvolver é um
outro país, uma outra sociedade, uma outra economia, um outro poder estatal.

Embate de forças
O mundo é, de um lado, uma síntese complexa do domínio de mercados e da
tecnologia pela lógica da acumulação global das grandes corporações econômico-
financeiras – alimentando uma vergonhosa desigualdade e exclusão social e acele-
rando a destruição ambiental do produtivismo. Há a exacerbação das tensões
sociais, culturais e políticas, tendo a xenofobia, o fundamentalismo, a violência e
o terrorismo como combustíveis, síntese atravessada pelo unilateralismo e prática
imperial da potência militar e econômica, os EUA.
De outro, o mundo tem diante de si o aparecimento e crescimento de forças
cidadãs de transformação, que contestam a globalização vigente e desencadeiam
processos ainda embrionários de construção de outros mundos possíveis. Aqui
cabe destacar, entre outros, o movimento socioambiental; os movimentos por
justiça global com afirmação da diversidade sociocultural que nos caracteriza,
tendo os direitos humanos como referência; os movimentos pela paz e contra a
guerra; o feminismo, questionando as estruturas seculares do patriarcalismo e o
cotidiano de desigualdades e violências; as várias expressões dos movimentos ope-
rário e camponês, construindo novas alianças e coalizões.
Mas o mais importante de tudo é a novidade do encontro e da articulação de
todos esses sujeitos – tão diversos em termos sociais e culturais, com diferentes
histórias políticas, e espalhados pelo mundo – por meio de novos espaços, como o
Fórum Social Mundial, e novas formas de ação direta, como as manifestações
mundiais coordenadas para o mesmo dia.
Não há relação simétrica entre as forças de conservação da (des)ordem capita-
lista mundial e de mudança, mas são partes do mesmo mundo e definem o que ele
será amanhã. O que importa é pensarmos o Brasil a partir daí. Podemos ter, e de
fato temos, visões e avaliações diferentes do que o mundo globalizado e os movi-
mentos que o contestam nos permite. Isto é parte da realidade. O que precisamos
é aceitar o debate, participar consciente e ativamente das escolhas.
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12

Infelizmente, o que nos é oferecido de forma avassaladora é uma versão das


possibilidades contidas nos limites do que somos como sociedade nacional. O
debate sobre o desenvolvimento é como um caminho de via única: ou tomamos
ou ficamos para trás. Parece um escândalo questionar o agronegócio e a destrui-
ção ambiental. Beira a sandice afirmar que nossas exportações, tão celebradas,
são exportações de nossa natureza, comprometedoras da atual e das futuras gera-
ções. Parece uma agressão à soberania nacional assinalar que a conquista de mer-
cados mundiais pelas nossas “competitivas” exportações não deve ser feita em
troca de vistas grossas em termos de direitos humanos. Parece idealismo lembrar
que integração não é a mesma coisa que zona para a livre atuação das multinacionais
brasileiras – elas existem! – e que deve haver uma integração solidária para favo-
recer o desenvolvimento democrático sustentável. Ser contra Angra III é ser contra
o desenvolvimento científico e tecnológico (e militar?) do Brasil? Afinal, por que
não olhamos de perto as questões críticas sobre as escolhas nacionais? Por que o
outro lado do debate está tão marginalizado?
Penso que temos pela frente a possibilidade de colocar no centro do debate do
desenvolvimento as questões dos direitos humanos e da democracia, não como
condições institucionais apenas, mas como qualificadoras do próprio modelo de
desenvolvimento que queremos para o Brasil. Direitos humanos e democracia – ou
seja, a inclusão social, a justiça social, a participação, na diversidade que somos
como nação – é a chave para pensar o desenvolvimento democrático sustentável.
Por favor, não se trata de crescer para, depois, lamentar a destruição e exclusão
provocadas. Olhemos melhor para o mundo. A via dominante da globalização
não é sustentável. Construamos, com ousadia e coragem, outros caminhos. Nisso
o Brasil tem mais chance do que muitos países. Basta desencurralar a cidadania e
dar vazão à sua energia transformadora. Tal participação é, de longe, mais impor-
tante do que os aportes externos em termos de capital e tecnologia.
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13

CAMINHOS DA GOVERNANÇA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Ao menos no fronte externo, muito do que a gente esperava do governo Lula está
acontecendo. A recém encerrada Cúpula América do Sul-Países Árabes é mais
uma iniciativa que merece ser saudada. Foi uma iniciativa ousada? Sem dúvida!
Mexeu em leis férreas do status quo e despertou contradições e tensões, tocando
em pontos sensíveis de uma governança mundial em crise. Por que, então, saudar
algo tão arriscado em termos estratégicos - e cujos desdobramentos imediatos
ainda não podem ser avaliados com clareza?
A Cúpula teve seus acertos e erros, mas que rompeu com um quadro mais de
impasses do que de soluções, isso ninguém pode negar. O Brasil dá o seu empurrão
para que surjam novas relações no plano internacional, capazes de contribuir para
a reconstrução de um saudável e sustentável multilateralismo, soterrado pelo des-
mesurado poder e visão estreita dos Estados Unidos. Além do mais, é bom que a
Cúpula América do Sul-Países Árabes tenha acontecido quatro meses antes da
Cúpula da ONU, prevista para 14 a 16 de setembro próximo, em Nova York.
Afinal, são dois blocos de países importantes, por sua população, possibilidades e
problemas desafiantes, em qualquer arquitetura da governança mundial neste iní-
cio de século 21.
O governo Lula - e aqui arriscamos uma hipótese -, com suas várias iniciativas,
busca criar um ambiente internacional mais favorável. Esse parece ser o sentido
da Cúpula recém realizada, bem como o da Comunidade de Nações da América
do Sul, o do Acordo Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), o do G-20, o da firmeza
nas negociações da Alca, do Fundo Contra a Pobreza, da pretensão de um assento
permanente no Conselho de Segurança da ONU, entre tantas outras ofensivas no
plano internacional.
Nos inúmeros fóruns e redes mundiais de que participo como diretor do Ibase,
não tenho escondido, porém, minhas fundadas dúvidas sobre o potencial
democratizador de tais iniciativas - que muitas vezes incluem vistas grossas e até
acordos com regimes autoritários que desrespeitam direitos humanos fundamen-
tais. Até que ponto o Brasil não está simplesmente se pautando pela agenda domi-
nante, usando seu poder emergente para expandir seus mercados, deixando para
segundo plano a democracia e o desenvolvimento includente para nós e nossos
parceiros(as)? É mais do que revelador, por exemplo, que a Carta de Brasília, da
Cúpula América do Sul-Países Árabes, nem menção faça à fundamental questão da
democracia. Atropelar princípios e valores básicos, pelos quais lutamos e sofremos
muito no Brasil e na América Latina, é daqueles pragmatismos que, mais cedo do
que se pensa, limitam e podem até anular ganhos políticos duros de conquistar.
Mas seria burrice não reconhecer que, no mínimo, o quadro é novo e desafiante.
O momento é de agir e também de ser inovador(a). As organizações e movimen-
tos da sociedade civil brasileira precisam mudar chaves de leitura e se abrir para as
novas realidades que tais iniciativas governamentais apontam. Existem enormes
potencialidades em todo esse contexto externo que as ações do governo Lula
introduzem na agenda. No mínimo, saímos daquela postura neoliberal submissa
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14

que nos era oferecida como única alternativa possível pelo governo anterior. Ali-
ás, num contexto mundial de crise de governança, o governo Lula, ao menos
junto aos movimentos de nascente cidadania mundial, desperta a esperança de
que algo possa mudar. O poder constituído não é afetado, mas ele mesmo desco-
bre, surpreso, que algo se move. Outra governança mundial será possível? Aí a
tarefa é também nossa. Não se trata simplesmente de fazer o poder constituído
admitir a presença de mais e novos sócios, no Conselho de Segurança, por exem-
plo. Precisamos trabalhar para refundar democraticamente o poder mundial.
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15

EXIGIMOS ÉTICA NA POLÍTICA

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

O respeito à diversidade e à pluralidade são fundamentais para que a democracia


opere e produza sociedades cada vez mais democráticas. Isso se traduz em tolerân-
cia política com forças sociais diferentes e opositoras e em prática da incerteza
quanto aos resultados possíveis dos conflitos e disputas democráticas. Até a ten-
são entre legitimidade de demandas e lutas por direitos e sua legalidade – pela
existência ou não de marco legal regulatório de tais direitos – é aceitável nas
democracias, desde que pautada por princípios e valores éticos constitucionais. A
tolerância acaba ou deve acabar quanto se atravessa tal fronteira.
A privatização, isto é, a busca de vantagens pessoais ou de privilégios para o
grupo político em detrimento do bem público, pela corrupção, clientelismo e até
pelo velho coronelismo, é uma das formas mais radicais de ruptura com a ética na
política e, portanto, ameaça à democracia. Por isso mesmo não há condescendên-
cia possível com tais práticas. Ou nos insurgimos e dizemos não!, em alto e bom
tom, ou, como um câncer maligno, a privatização do público corrói e mata a
cidadania. Meias respostas são insuficientes.
Somos como que acordados(as), de tanto em tanto, com notícias de corrupção
e clientelismo, envolvendo as mais diferentes esferas políticas e representantes
do variado espectro de forças políticas constituídas no Brasil, da situação e da
oposição. No mínimo, é bastante alarmante o nepotismo e a quase descarada
prática do favor que Severino Cavalcanti parece defender como norma para a
Câmara Federal, desde que eleito presidente com o apoio de esmagadora maio-
ria de parlamentares.
Temos também as suspeitas que pesam contra os ministros Henrique Meireles,
presidente do Banco Central, e Romero Jucá, da Previdência Social, ainda sob
investigação. Propinas são cobradas nos Correios por agentes políticos.
Deputados(as) estaduais negociam pagamento com o governador de Rondônia
para votar a seu favor, conforme gravação do próprio, exibida em rede nacional
de televisão. Isso para nos atermos aos casos mais presentes no debate público.
Sem dúvida, a transparência maior, a vigilância da cidadania e da mídia, a
falta de tolerância com deslizes éticos, a presteza da atuação do Ministério Públi-
co e a firmeza da Procuradoria Geral estão ajudando muito. Aliás, o próprio
Judiciário acaba de demonstrar firmeza na condenação do casal Garotinho e do
prefeito de Campos pela prática de corrupção nas últimas eleições municipais.
Mas como explicar a persistência da privatização do bem público e da usurpação
da cidadania, cujos casos aqui lembrados são apenas uma ponta?
Podemos gostar ou não dos partidos e dos representantes que a nossa cida-
dania conseguiu produzir neste curto espaço de 20 anos de verdadeiro exercí-
cio democrático. O fato é que, aos trancos e barrancos, próprio das democra-
cias com vitalidade, estamos avançando bastante. As eleições periódicas são
uma demonstração de muita ânsia por criar um novo Brasil, de liberdade e de
direitos iguais para todos(as) os(as) brasileiros(as), mesmo quando os resulta-
dos surpreendem.
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16

Mas não participamos só pelo voto. Temos demonstrado muita vitalidade em


ações diretas, seja por meio de movimentos sociais – reveladores dos muitos sujeitos
sociais deste nosso Brasil gigante –, seja por meio de megamobilizações de rua,
como Diretas Já; Constituinte; Ética na Política e impeachment do Collor; Ação da
Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida. No entanto, ainda não vencemos
o persistente cancro da corrupção, clientelismo e coronelismo. Este é um Brasil que
teima em não desaparecer para dar lugar à construção de um Brasil includente,
solidário, participativo, com desenvolvimento humano democrático e sustentável.
Sem dúvida, estamos diante da necessidade de renovar a luta por ética na po-
lítica. Isso passa por substancial reforma política. Não é possível continuar ele-
gendo representantes que, uma vez eleitos(as), fazem o que querem com a repre-
sentação que lhes delegamos. O troca-troca partidário fragiliza os partidos e esti-
mula a tendência à privatização de tudo o que é público. Fortalecer partidos é,
neste sentido, indispensável para que o processo democratizador avance. Mas não
é suficiente.
Somos nós, cidadãs e cidadãos de todos os quadrantes do Brasil, que precisa-
mos nos insurgir. Não podemos aceitar ser transformados(as) em objetos de
corrupção, compra de votos, clientes de favores. Somos depositários(as) de direi-
tos de cidadania, constituintes da política, dos partidos, do Estado e da democra-
cia. A ética é a nossa única base e referência comum para fazer andar as instâncias
de poder e de política que derivam de nossa soberana vontade. Exijamos, aqui,
agora e sempre, ética na política, de forma intransigente. Essa é a condição para
que os direitos e a democracia tornem o nosso desenvolvimento produtor de igual-
dade e justiça social na diversidade e vitalidade do que somos como povo.
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17

O CAMINHO MAIS CURTO PARA O DESASTRE

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

O que a gente menos sabe e discute é o caráter extremamente autoritário da


globalização econômico-financeira que nos domina. Apesar do discurso neoliberal
do livre mercado, tudo se faz de forma planejada e secreta, a serviço de um pu-
nhado de grandes corporações capitalistas, com negócios maiores do que o PIB de
mais de uma centena de países. Estamos diante de um poder global sem regulação,
um pacto mafioso total que tudo apropria, controla, concentra, tendo como úni-
co critério o ganho a todo custo. As suas operações podem ser espetaculares nos
pregões da bolsa e nas fusões de bilhões de dólares ou camufladas e criminosas na
falsificação de balanços e em operações de lavagem sistemática de dinheiro em
paraísos fiscais. Aliás, caro(a) leitor e leitora, você já notou que todos, absoluta-
mente todos os paraísos fiscais são estranhos pontos geográficos – com exceção da
aparente ascética Suíça – próximos aos sete centros financeiros do Norte desen-
volvido, que movimentam sozinhos 80% da especulação financeira mundial de
mais de dois trilhões de dólares diários?
O cinismo tomou conta do mundo, especialmente com a queda do Muro de
Berlim e o fim da Guerra Fria, a ponto de se criar um imaginário dominante que diz
“não existem alternativas”. Mas não podia ser diferente com menos de dez grupos
empresariais controlando a mídia no mundo, ou seja, nosso direito à informação e
comunicação. Claro, já há muito tempo, os experimentos do socialismo real demons-
travam o seu fracasso e muita gente pelo mundo vinha buscando outras saídas. Ainda
busca, felizmente, e com mais afinco, como demonstram o processo iniciado pelo
Fórum Social Mundial; as grandes mobilizações contra a Organização Mundial do
Comércio (OMC), o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI);
o movimento pela paz; as surpresas que a cidadania prega com o seu voto, como no
que se passou agora na França e Holanda, com a vitória do “não” no referendum do
Tratado da Constituição Européia. Mas devemos reconhecer, estamos longe de ter
chegado ao fundo do poço. É ainda possível evitar o desastre?
Nunca a Humanidade enfrentou uma situação assim. As lembranças sobre o
primeiro surto liberal, que nos levou ao fascismo como opção e a duas guerras
mundiais de verdadeira carnificina na primeira metade do século 20, não podem ser
esquecidas. Elas, porém, não nos dão o tamanho do desastre que pode nos atingir
agora, nesta proclamada era do neoliberalismo. Temos uma economia global com
enorme capacidade de produção para lucro contra a maioria da Humanidade. Nunca
se produziu tanto, mas nunca se morreu tanto em meio a uma abundância de bens
e riquezas que não são para atender às necessidades e aos direitos humanos: são para
ganhar, ganhar, competindo e destruindo. Concentra-se riqueza de forma espetacu-
lar, exclui-se gente e destroem-se os bens comuns, especialmente a natureza e a lógi-
ca da própria vida. Como os problemas e crises se avolumam, voltamos ao pior do
unilateralismo, de lógica do terror e da guerra, com militarização, para que a mais
completa mercantilização e controle da vida pelo poder se imponham, tendo na
administração Bush, nos EUA, e em sua guerra preventiva expressões de força de
uma hegemonia que não consegue mais dar conta do mundo.
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18

Temos, sem dúvida, uma energia nova no ar que, ao menos por enquanto,
prefiro chamar de nascente cidadania planetária. Fundada na afirmação da diver-
sidade social, cultural, política e geográfica, reivindica os princípios éticos
universalizantes, referência para uma constituição mundial que tenha todos os
direitos humanos para todos os seres humanos como escopo. Alimentada por
uma radical consciência de humanidade na diversidade e consciência dos bens
comuns a preservar, renovar e fortalecer, como condição de vida e justiça social, a
cidadania planetária, como uma onda, move o coração de uma nova sociedade
civil militante mundo afora. Desigual, confusa, de ação direta mais do que
institucional, a nova cidadania avança e pressiona. Mas, por enquanto, só está
crescendo o buraco entre reivindicações da cidadania e as instituições de governança
mundial, seja a fragilizada Organização das Nações Unidas (ONU), seja a arro-
gante e poderosa OMC ou os seus velhos escudeiros de mais de 60 anos, o BM e o
FMI, ou os experimentos a caminho do fracasso, como a União Européia.
Os(as) donos(as) do mundo, as grandes corporações e os Estados – ainda vive-
mos num bizarro mundo de poder global e Estados Nacionais, que, em nome da
soberania, se impõem a seus próprios povos – estão ignorando o clamor que emer-
ge das ruas das cidades do mundo. Aliás, o grito surdo de povos ignorados nos
fundões, montanhas e praias do mundo, expresso pelos nascentes movimentos da
cidadania planetária, é como se não existissem. Basta ver as agendas do poder
global daqui até o fim do ano: G-8, Cúpula da ONU, OMC. Espanta a pequenez
das propostas diante da crise anunciada numa globalização perversa. Nenhum
desses grandes encontros do poder global quer fazer face à globalização enquanto
tal, que mina qualquer possibilidade de um novo pacto de humanidade e vida.
Discutem-se reformas como se as instituições pudessem ser reformadas por elas
mesmas, de dentro para fora. Falta aceitar o que se anuncia inevitável: uma
refundação democrática, capaz de permitir que a Humanidade se encontre consi-
go mesma, de modo que todas e todos tenhamos lugar. O jeito é continuar gritan-
do na rua, nossa força mais poderosa. Até quando? Espero que antes do desastre
que aparece no ar.
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19

MEIAS RESPOSTAS INSUFICIENTES

Cândido Grzybowski
Sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

O grave momento político que atravessamos como povo brasileiro não deve nos
paralisar. A falta de ética na política é uma clara agressão às instituições republi-
canas e uma negação dos princípios fundantes da democracia. Mas, antes e acima
de tudo, tais atos atingem a nós mesmos - cidadãs e cidadãos -, pois conspurcam
a delegação que, pelo voto, demos a nossos(as) representantes. Parlamentares não
são donos(as) de mandatos e cargos a que foram eleitos(as). Nós os(as) constitu-
ímos no afã de construir a República e a democracia. Somos nós a fonte originária
do poder que exercem e cabe a nós desconstituí-lo ou reconstituí-lo.
A hora é de reafirmar e fortalecer o princípio constituinte da cidadania ativa
para que a solução da crise política não vire mera acomodação pelo alto, nos
bastidores. Com ousadia, responsabilidade, determinação e coragem podemos
transformar a crise ética e política em uma democracia ainda mais profunda. O
berço das Repúblicas e democracias é a ação cidadã. O desafio do momento bra-
sileiro é fazer avançar a democracia, completando a tarefa constituinte que nos
trouxe até aqui.
Respeitando o mandato que lhes conferimos, não deixemos tal tarefa como
única e exclusiva daqueles que, no Congresso e no governo, queremos ver muda-
dos. Precisamos nos por em ação já! Só um grande movimento de pressão da
cidadania, com espírito público e republicano, pautado pelos princípios e valores
éticos da democracia, poderá desencadear interesses e vontades amplos em busca
de um pacto democrático que extirpe o câncer corrosivo em instituições e políti-
cas e nos dê uma nova base de prática da liberdade e participação cidadã. No
contexto da crise, e empurrando-a para um salto de qualidade, construamos uma
agenda cidadã de mudanças democráticas e democratizadoras de nossas institui-
ções republicanas.
O Brasil precisa de mais e não de menos democracia. Mais democracia signifi-
ca mais decisões diretas pela própria cidadania, em que o voto é um elemento
imprescindível. A própria renovação democrática regular que o voto propicia é
um tonificante de instituições e estimulante dos conflitos e disputas democráti-
cas. É isso que lhe dá vida e condiciona a cadeia democrática toda: democracia
direta, democracia participativa, democracia representativa. A questão do plebis-
cito e do referendo, como prática direta de cidadania, é parte indispensável da
reforma político-eleitoral, ao repor as coisas no devido lugar, delimitando o poder
de partidos e representantes eleitos(as).
E para que a democracia opere e produza sociedades cada vez mais democráti-
cas, o respeito à diversidade e à pluralidade, na igualdade da condição cidadã, é
algo fundamental. Isso se traduz em tolerância política mútua entre forças sociais
diferentes e opositoras e na aceitação da incerteza quanto aos resultados possíveis
dos conflitos e disputas democráticas. Até a tensão entre legitimidade de deman-
das e lutas por direitos e sua legalidade – existindo ou não o marco legal regulatório
de tais direitos – é fecunda nas democracias, desde que pautada por princípios e
valores éticos constitucionais.
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20

A tolerância acaba ou deve acabar quando se atravessa tal fronteira. A


privatização, isto é, a busca de vantagens pessoais ou de privilégios para o grupo
político em detrimento do bem público, pela corrupção, clientelismo e até o velho
coronelismo, é uma das formas mais radicais de ruptura com a ética na política,
ruptura com a cidadania constituinte e, portanto, ameaça à democracia. Por isto
mesmo, não há condescendência possível com tais práticas. Ou nos insurgimos e
dizemos ‘’não!’’, em alto e bom tom, ou, como um câncer maligno, a privatização
do público e o desrespeito ao mandato obtido pelo voto corroem e matam a
cidadania. Meias respostas não são suficientes.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Outros textos
SUMÁRIO

Resquícios da ditadura 03
Maurício Santoro

Participamos, e daí? 05
José Antônio Moroni

Consea/MG e representação do poder público 20


Leda M. B. Castro

Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES): aspectos


de um espaço público de participação da sociedade em decisões do estado 34
Daniel Bin e Fábio Vizeu

Conferência Cidades 66

O processo da Conferência do Meio Ambiente em nível federal 68


Carlos Tautz

Monitoramento da Conferência das Cidades 77


Edson Gonçalves Silva

Lutas pelo acesso à cidade em Porto Alegre: os limites da


institucionalização da participação 103
Sérgio Baierle
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

RESQUÍCIOS DA DITADURA

Maurício Santoro
Jornalista, pesquisador do Ibase

A integração da América do Sul é anunciada como prioridade da política externa


do governo brasileiro, um pré-requisito para o fortalecimento internacional do
país e para a retomada do desenvolvimento. Contudo, a exploração dos recursos
naturais do continente, financiada com dinheiro público do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Petrobras, choca pela lógica
predatória, muito semelhante àquela da ditadura militar. Esse padrão já provoca
protestos na Bolívia e no Equador e é incompatível com a estabilidade política da
região, sendo um dos estopins da crise que quase derrubou o presidente boliviano
Carlos Mesa.
O gás natural é a principal riqueza da Bolívia, a possibilidade de desenvolvi-
mento para o país. A população boliviana precisa da tecnologia da Petrobras para
extraí-lo e necessita do mercado consumidor brasileiro para tornar o empreendi-
mento viável. Mas para boa parte dos(as) habitantes da Bolívia, os acordos de
exploração desse recurso natural – assinados com a Petrobras e com outras empre-
sas estrangeiras, como Repsol e BP – beneficiam apenas a elite política e empresa-
rial. Essa desconfiança é acentuada pelas relações estreitas existentes entre a buro-
cracia boliviana e as corporações. Por exemplo, Arturo Castaños, que presidia a
estatal boliviana do gás YPFB durante as negociações com o Brasil, agora é um
alto executivo da Petrobras Bolívia.
A empresa tem sido alvo de protestos constantes por parte de sindicatos,
indígenas e partidos políticos, que destacam os danos ambientais causados pela
construção do gasoduto Brasil-Bolívia e pelas operações em áreas de preserva-
ção ambiental, como a região do Pantanal, a reserva Pilón Lajas e a área entre
Yacuiba e Rio Grande. As reclamações englobam poluição, compra de madeira
extraída ilegalmente, erosão e até má conduta de trabalhadores(as). Foram tan-
tas as queixas contra a Petrobras que foi preciso criar uma ouvidoria para cui-
dar do processo.
Os movimentos sociais bolivianos chegaram a defender a nacionalização das
atividades da extração do gás natural. Mesmo vozes mais moderadas defendem a
aprovação de uma nova lei dos hidrocarbonetos, aumentando os royalties cobra-
dos das empresas estrangeiras e regulando suas atividades com mais rigor. Os con-
flitos em torno da aprovação dessa legislação levaram o presidente Mesa a apre-
sentar sua renúncia, que terminou recusada pelo Congresso.
Além da extração do gás, o governo brasileiro financia um grande projeto de
infra-estrutura na Bolívia na região dos rios Madera e Bení. Com o apoio do
BNDES, de Furnas, da Odebrecht e do grupo Maggi, está em construção uma
represa na área, para estabelecer um complexo hidroviário voltado à exploração
da soja na Amazônia.
Ambientalistas da Bolívia chamam a atenção para os danos ao meio ambiente
que esse projeto causará, incluindo riscos à principal área de turismo ecológico do
país. O impacto sobre a saúde da população local também é preocupante. Estudos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

do Foro Boliviano sobre Desarollo e Medio Ambiente apontam a possibilidade de


que a represa crie uma zona endêmica de malária na bacia do Rio Bení, onde há
parques florestais e reservas indígenas.
Embora a ação do governo brasileiro seja mais forte na Bolívia, seu impacto
também atinge outros países, como o Equador. O projeto da Petrobras de explo-
rar petróleo no Parque Nacional Yasuní, região considerada pela Unesco como
uma das mais ricas do mundo em biodiversidade, provocou tantos protestos por
parte dos movimentos indígenas e ambientalistas que a estatal teve que abrir ne-
gociações com a sociedade.
A integração da América do Sul é um passo importante na retomada do desen-
volvimento econômico no continente. Mas o governo Lula não deveria repetir os
erros do passado, reeditando práticas da ditadura militar que trouxeram apenas
devastação e miséria. É necessário um modelo de desenvolvimento em sintonia
com o século XXI, que priorize as pessoas e o meio ambiente e dê voz aos novos
atores políticos da democracia, como os movimentos sociais.

Publicado no jornal O Globo, em 7 de abril de 2005.


MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

PARTICIPAMOS, E DAÍ?

José Antônio Moroni


Membro do Colegiado de Gestão do Instituto Nacional
de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

No fim da década de 1970 e no início da década seguinte, o movimento social1


retomou, mais enfaticamente, a questão da democratização do Estado, com a
seguinte questão: que mecanismos são necessários criar para democratizar o Esta-
do e torná-lo realmente público? Nessa indagação já estava embutida a avaliação
de que a democracia representativa, via partidos e processo eleitoral (única forma
de participação mais ampla da democracia representativa), não é suficiente para
complexidade da sociedade moderna. Assim, era necessário criar outros mecanis-
mos de participação. Surgem, nesse período, várias tentativas de criação de “con-
selhos populares”, alguns “dentro e outros fora do Estado”.
No processo constituinte, essa questão é aprofundada. O movimento social
traz para o processo, além da democratização e publicização do Estado, a necessi-
dade do controle social, em cinco dimensões: formulação, deliberação,
monitoramento, avaliação e financiamento das políticas públicas (orçamento
público). A Constituição de 1988 transformou essas questões em diretrizes de
diversas políticas, especialmente as chamadas políticas sociais. Na regulamenta-
ção dessas diretrizes, incorporam-se os conselhos e as conferências como mecanis-
mos de democratização e de controle social, no que chamamos de sistema descen-
tralizado e participativo. Vale ressaltar que, na política econômica, não se criou
nenhum mecanismo institucionalizado e público de participação, bem como nas
políticas que definem o “modelo de desenvolvimento”.
Podemos citar, como exemplo, o inciso II do artigo 204, que trata da políti-
ca pública de assistência social: “participação da população, por meio de organi-
zações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em
todos os níveis”.
A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos direitos
sociais, apontando, claramente, para a construção de um Estado de Bem-estar
provedor da universalização dos direitos sociais.2 Além disso, introduziu instru-
mentos de democracia direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular), que, até
hoje, não foram regulamentados pelo Congresso Nacional, e abriu a possibilida-
de de criação de mecanismos de democracia participativa, como, por exemplo, os
conselhos. Entretanto, no que se refere à ordem econômica e ao sistema político

1
Apesar de existirem vários e diversos movimentos sociais, será usada a expressão no singular, pois não se fala de um
movimento especifico, mas, sim, de um conjunto de ações da sociedade civil que se materializou na organização de um
movimento social amplo, com características, filosofias e concepções comuns, denominado campo democrático e popular,
com uma agenda política de construção do Estado de direito e democrático.
2
Neste texto, utiliza-se como conceituação de Estado de Bem-estar a definição apresentada por Falcão (1991). Segundo
a autora, o Estado de Bem-estar é o Estado constituído nos países de capitalismo avançado e possui como características:
a) os direitos sociais como paradigma; b) origem num pacto social e político entre capital/Estado/trabalho; c) configura-
se como agente central na reprodução social; d) é gestor poderoso das políticas sociais, que é a expressão essencial do
Estado.
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6

(como, por exemplo, financiamento público exclusivo de campanhas, democrati-


zação dos partidos, processos eleitorais transparentes, mecanismos que viabilizem
a participação da mulher na política, possibilidade de cassação de mandato pela
população etc.), dimensões fundamentais para a construção de um Estado real-
mente público, a Constituição Federal de 1988 foi extremamente conservadora.
O período pós-constituinte foi marcado por modificações profundas no cam-
po social e da cidadania. Conhecida como Constituição Cidadã, a Constituição
Federal de 1988 inova em aspectos essenciais, especialmente no que se refere à
gestão das políticas públicas, por meio do princípio da descentralização político-
administrativa, alterando normas e regras centralizadoras e distribuindo melhor
as competências entre o poder central (União), poderes regionais (estados e Distri-
to Federal) e locais (municípios). Com a descentralização, também aumenta o
estímulo à maior participação das coletividades locais – sociedade civil organiza-
da –, criando mecanismos de controle social. Existe uma contradição entre esse pro-
cesso e o momento histórico vivido internacionalmente, que era da ampliação e forta-
lecimento das políticas neoliberais. Ao mesmo tempo que construímos uma Consti-
tuição que aponta para a construção do Estado de Bem-estar, estávamos entrando na
era neoliberal, com a eleição para presidente de Fernando Collor de Mello.
As principais forças sociais/políticas que atuaram na construção desse “mo-
delo” de participação encontravam-se no campo democrático e popular, que ti-
nha como principal canal partidário para desaguar suas propostas o Partido dos
Trabalhadores (PT). Com a eleição do Luiz Inácio Lula da Silva para presidente
da República em 2002, criou-se a expectativa de que o sistema descentralizado e
participativo fosse realmente levado a sério e que novos canais de participação
seriam criados.
Este artigo procura analisar como o governo Lula tratou a questão da parti-
cipação, tendo como olhar especial o sistema descentralizado e participativo (con-
selhos e conferências) e o processo de construção do Plano Plurianual (PPA).
O ponto de partida é a concepção de que o sistema descentralizado e
participativo (conselhos e conferências com caráter deliberativo) escapa aos tradi-
cionais mecanismos políticos de legitimidade (democracia representativa ou dire-
ta). Trata-se de órgãos instituídos por representação de entidades governamentais
e não-governamentais, responsáveis por elaborar, deliberar e fiscalizar a
implementação de políticas, estando presente nos níveis municipal, estadual e
nacional. Dessa forma, inauguram uma nova concepção de espaço público ou
mesmo de democracia. Reconhecemos, apesar das críticas e do quadro atual do
sistema, o não-esgotamento dessa estratégia construída pela sociedade civil do
campo democrático e popular.
A legitimidade do sistema sustenta-se na legitimidade da democracia
participativa como arranjo institucional que amplia a democracia política. Por
sua vez, a legitimidade da democracia participativa fundamenta-se no reconheci-
mento de que esse novo arranjo possibilita a construção de espaço público de
conflito/negociação, ampliando, por isso, os processos democráticos, e não como
substituição ou oposição à democracia representativa.
Apesar de ser uma análise do governo Lula, este texto procura refletir sobre
esse processo de forma mais ampla, trazendo algumas questões para os movimen-
tos sociais e organizações que se propõem a interferir de forma propositiva na
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

deliberação das políticas públicas. Procura, também, discutir essas questões, do


ponto de vista teórico, trazendo alguns pontos que possibilitem a formulação de
novas estratégias de intervenção nesses espaços.

Aspectos teóricos da participação


Podemos afirmar que a concepção do sistema descentralizado e participativo (con-
selhos e conferências) criado na constituição de 1988 está relacionado com a questão
da democratização e publicização do Estado. Em outras palavras, é uma das pos-
sibilidades criadas para enfrentar a ausência de mecanismos eficazes de controle
da população sobre os atos do Estado.
As modalidades tradicionais do direito de participação política, como o direi-
to de votar e ser votado, filiação partidária, entre outros, não são suficientes para
a cidadania de hoje. Surge a necessidade de se criarem novas modalidades de par-
ticipação política, isto é, novas formas pelas quais se exerce o direito fundamental
da pessoa humana de “tomar parte no governo de seu país diretamente ou por
intermédio de representantes livremente escolhidos” (artigo XXI, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos).
A concepção de cidadania não é única. Muito pelo contrário, trata-se de um
conceito polêmico e construído histórica e socialmente. A história da construção
da cidadania é a história da ampliação de direitos, e isso deve ter implicações no
arranjo institucional do Estado e da sociedade.
Na tradição ocidental, são conhecidas as origens da democracia, da cidadania
e do direito, que têm como referência a pólis grega e as cidades-Estado romanas
(os romanos traduziram pólis por civitas, palavra da qual surgem cidade, cidada-
nia e cidadãos). Em virtude da idéia elitista de democracia presente nessas cultu-
ras, apenas os homens livres participavam da vida pública e eram, conseqüente-
mente, considerados cidadãos. Além de ser machista e elitista, isto é, ser uma
“democracia” apenas para alguns homens, trata-se de uma concepção exclusiva-
mente política da democracia, negligenciando a liberdade individual na vida pri-
vada e a questão social e econômica. Eram excluídos da cidadania as mulheres, os
estrangeiros e os escravos. Também eram excluídos os comerciantes e os artesãos,
porque supostamente não teriam tempo para participar da vida pública, pois
precisavam trabalhar para seu sustento. A participação estava condicionada ao
tempo disponível, e isso era para os homens de posses.
Na Idade Moderna, podemos entender a cidadania como a reação da individu-
alidade na construção de um novo paradigma da democracia e da cidadania. As
conquistas da Revolução Americana e da Revolução Francesa mudaram o mundo
ocidental, apresentando uma nova visão dos direitos do indivíduo e do cidadão. O
Estado passa a ter um papel fundamental na construção e na garantia de direitos.
Na terceira fase, a que vivemos hoje, podemos definir o reconhecimento da
nova cidadania como um conjunto de direitos, individuais e coletivos, sociais,
econômicos, políticos, culturais e ambientais, pressupondo a vigência de um Esta-
do Democrático de Direito. Essa nova cidadania implica a efetiva participação da
população e dos indivíduos na vida pública.
Mas, se a necessidade de aproximar a res publica (coisa pública) da população
está ligada à idéia de cidadania, e os conselhos podem ser instrumento dessa apro-
ximação, devemos notar que isso é parte de um movimento maior, que tem como
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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objetivo a construção de uma cidadania ativa e propositiva. Uma cidadania que


não fica apenas no campo da reivindicação de direitos, mas atua na implementação,
garantia e construção de novos direitos.
Portanto, a cidadania é fruto de aspirações, desejos e vontades dos diferentes
segmentos da população e está associada ao modo como esses “grupos” se perce-
berem como cidadãos. Não existe uma cidadania única, metafísica, pois isso seria
uniformizar o que não é igual, desconhecendo, por exemplo, os elementos fundantes
e estruturantes da nossa cultura, que são o racismo e o sexismo. Existem grupos
sociais com construções próprias – entre os quais podem ser citados exemplo:
crianças e adolescentes, mulheres, indígenas, negros(as), homossexuais masculi-
nos e femininos, pessoas portadoras de deficiência –, que, ao longo da história,
vêm se constituindo como sujeitos políticos. Esses “novos atores e novas atrizes”,
além dos movimentos e organizações tradicionais no processo constituinte de 1988,
intervieram no processo de democratização do Estado.
Esse amplo movimento social e popular elaborou a estratégia da criação do
sistema descentralizado e participativo (conselhos e conferências) como instru-
mentos de democratização e publicização do Estado. Também os concebeu com
as seguintes características:
a. órgão público e estatal;
b. com participação popular, por meio de representação institucional;
c. com composição paritária, entre governo e sociedade;
d. criados por lei ou outro instrumento jurídico, ou seja, um espaço institucional;
e. com atribuições deliberativas e de controle social;
f. espaço privilegiado da relação e da interlocução entre Estado e sociedade;
g. mecanismo de controle da Sociedade sobre o Estado;
h. que discute a questão da aplicação dos recursos, isto é, do orçamento público.

Com essa estratégia, dá-se uma das possibilidades de resposta à carência de me-
canismos de participação nos processos decisórios das políticas que, a partir daquele
momento, deixam de ser apenas políticas governamentais para se tornarem políti-
cas públicas, elaboradas conjuntamente pelo governo e pela sociedade civil.
A representação tem sido tradicionalmente uma das formas mais estimuladas
de participação. De uma base social determinada, destacam-se representantes que,
em nome dessa base, debaterão assuntos por ela propostos. A criação de novos
canais de participação, que permitem a população estar representada quando são
tomadas decisões que afetam diretamente seu dia-a-dia, é fundamental, uma vez
que, na complexidade da sociedade moderna, a representação política partidária
não consegue mais representar todos os segmentos, e cada vez mais amplos setores
da população não se vêem representados nos partidos políticos.
A criação do sistema descentralizado e participativo foi – e acreditamos que
ainda é – uma das fórmulas encontradas para que haja um efetivo controle popu-
lar do poder, tendo como pressuposto a democracia participativa. Isso significa
que os conselhos são uma das formas de exercício do direito de participação polí-
tica que têm como pressuposto a existência de outras modalidades desse mesmo
direito, como o direito de votar e ser votado(a).
Em suma, é uma forma de adensamento da relação Estado–sociedade civil, que
vem colaborar com o processo de alargamento da democracia nas sociedades con-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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temporâneas. Com a consagração do sufrágio universal, o cientista político Norberto


Bobbio (1986) ensina que, para se saber sobre o desenvolvimento da democracia
em um determinado país, não se deve mais perguntar quem vota, mas onde se vota.
As normas constitucionais que inspiraram a criação dos conselhos se referem
não somente ao controle na execução das políticas, mas, antes disso, ao processo
de tomada de decisão que se dá por meio da participação. A existência dos conse-
lhos permite a transparência dos reais motivos que levaram à execução de deter-
minada política, e não de outra, já que a democracia moderna requer não apenas
o seu controle por parte da sociedade, mas também o direito de participação na
formulação da política pública.
Com isso, fica claro que o exercício desse direito dá-se no processo decisório da
ação governamental, daí a importância do caráter deliberativo desses conselhos.
Uma outra imposição da Carta de 1988 sobre o assunto consiste em que seu
exercício não está restrito no nível federal, e sim expandido a todos os níveis da
Federação. Dessa forma, União, estados, Distrito Federal e municípios estão obri-
gados a respeitar o direito de participação na elaboração e definição das políticas,
respeitando uma outra diretriz constitucional que trata sobre a repartição de com-
petência: a descentralização político-administrativa.
A participação da sociedade civil nas instâncias de tomada de decisões governa-
mentais é, na maioria das vezes, cercada de certos mitos que o próprio Estado criou.
Vamos citar apenas três deles, que são elementos que dificultam essa participação:
1. a sociedade não está preparada para participar, como protagonista, das políti-
cas públicas. Esse mito é baseado no preconceito do saber, em que a burocracia
e/ou o(a) político(a) detêm o saber e a delegação para a decisão. Esse mito
justifica a tutela do Estado sobre a sociedade civil, o que leva, por exemplo, o
Estado a indicar, escolher e determinar quem são os(as) representantes da soci-
edade nesses conselhos;
2. a sociedade não pode compartilhar da governabilidade, isto é, da construção
das condições políticas para tomar e implementar decisões, porque o momen-
to de participação da sociedade e de cidadãos e cidadãs é o momento do voto.
Essa concepção é privatizante do Estado, as pessoas tornam o Estado privado,
por meio do partido que ganha a eleição. No período do mandato, o partido
decide o que fazer, segundo seus interesses particulares;
3. a sociedade é vista como um elemento que dificulta as tomadas de decisões,
seja pela questão tempo (demora para tomar decisão, ter de convocar reuniões
etc.), seja pela questão de posicionamento crítico diante das propostas ou au-
sência delas por parte do Estado.

Baseada nessa fundamentação, podemos definir conselho como um órgão


colegiado, autônomo, integrante do poder público, de caráter deliberativo, com-
posto por integrantes do governo e da sociedade civil, com as finalidades de ela-
boração, deliberação e controle na execução das políticas públicas.
Nesse aspecto, controle social é o instituto ético-político, realizador de uma
modalidade do direito de participação política que exerce efetivo controle sobre
os atos governamentais na órbita da coisa pública.
Numa leitura simplificada, podemos dizer que os conselhos deslocam o espaço
da decisão do estatal-privado para o estatal-público, possibilitando a transfor-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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mação dos sujeitos sociais em sujeitos políticos. Nessa transformação, a


governabilidade é democrática e compartilhada por todos e todas. Assim, o prin-
cipal objetivo estratégico desses conselhos é a universalização da cidadania e, por-
tanto, a construção de uma democracia real.
A universalização da cidadania, do ponto de vista ético-político, é o combate
a todas as formas de discriminação, a promoção da igualdade de condições e de
oportunidades entre os indivíduos diferentes que foram tornados desiguais.
Universalizar significa estender a todas as pessoas a cobertura dos mesmos direitos
e, também, responsabilizar todos e todas pela efetivação desses direitos.
Quando falamos em democracia, precisamos dar um conteúdo mais preciso ao
termo, em função do uso cínico e irônico que se faz da palavra democracia na
vida política do nosso país.
Do ponto de vista filosófico, democracia é um processo histórico e social, indi-
vidual e coletivo, da conquista incessante da razão e da liberdade sobre a violên-
cia. Do ponto de vista da ciência política, democracia é o regime político fundado
na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos. Essas duas bre-
ves definições têm a vantagem de agregar democracia política e democracia social,
ou seja, os direitos individuais e os direitos políticos.
A democracia possui valores éticos que estão na sua origem e constituem sua
base, pois sua natureza é, no fundo, uma opção ética. Os seus frutos, no corpo
político, social e individual, também são comportamentos e valores éticos.
Podemos dizer que a questão democrática se apresenta em três sentidos distin-
tos e complementares:
a. a democracia é uma exigência ética, isto é, os valores éticos exigem que a soci-
edade seja organizada numa ordem democrática;
b. a ética impõe exigências ao regime democrático, a fim de que funcione dentro
de certos parâmetros e produza determinados resultados;
c. o regime democrático exige um comportamento ético de cidadãos e cidadãs.

A democracia não pode ser algo abstrato na vida das pessoas ou, caso seja
concreto, se apresentar apenas nas eleições. Deve proporcionar aos cidadãos e
cidadãs a participação plena nas questões que lhe dizem respeito, além de favore-
cer sua autodeterminação, soberania e autonomia.
A sociedade democrática tem de ser ao mesmo tempo personalista, comunitá-
ria e pluralista. Deve ser personalista porque precisa criar as condições para que o
ser humano possa realizar-se plenamente. Precisa ser comunitária porque precisa
promover a inclusão de todos os atores sociais e a realização do bem comum, sem
qualquer tipo de discriminação ou preconceito. E necessita ser pluralista para
reconhecer e respeitar as diversidades entre as pessoas e os grupos sociais, acolhen-
do-os e até mesmo os incentivando, não os reduzindo a uma homogeneidade
forçada ou aparente.
A construção da democracia nos impõe uma vigilância permanente e constan-
te no sentido de criar mecanismos institucionais de participação, com regras defi-
nidas e claras, que equacionem as pressões das maiorias sobre as minorias, ou das
minorias ativistas contra as maiorias passivas. Desse modo, esses espaços devem
ter estratégias claras e eficazes com vistas a incorporar indivíduos ou grupos soci-
ais alheios à participação.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Assim, como uma sociedade democrática força o Estado a se democratizar e


vice-versa, a democracia exige uma postura democrática dos cidadãos e cidadãs,
nos espaços públicos ou privados.

O lugar da participação no governo Lula


A eleição de um líder operário para presidente da República, oriundo de uma cate-
goria social originariamente excluída de qualquer conceito de cidadania, tendo
migrado de uma região “miserável” para São Paulo, a capital econômica do país,
é um marco histórico em nosso país e repercute internacionalmente. O marco não
está somente no fato de ter sido operário, mas também, e principalmente, de ser
oriundo do lumpemproletariado. Isso, por si só, explica as expectativas que se cria-
ram, tanto pelas forças políticas que apostaram no seu sucesso como nas que arris-
caram no seu fracasso, por razões políticas, ideológicas ou de preconceito.
Analisar um governo com esse perfil, em qualquer aspecto, não é tarefa fácil,
pois o governo Lula trouxe para o interior do Estado todas as contradições pre-
sentes na sociedade brasileira. No seu desenho político/institucional, por exem-
plo, convivem um ministério que cuida dos interesses do agronegócio e outro
dedicado à reforma agrária e à agricultura familiar; no Ministério da Fazenda,
observa-se uma política antidesenvolvimento e, ao mesmo tempo, existe o Minis-
tério do Desenvolvimento, ligado à produção. A contradição se dá principalmen-
te no que diz respeito à cultura política da não-participação. O governo Lula
trouxe para o seu interior setores que nunca tiveram qualquer compromisso com
a participação ou que a tinham unicamente como instrumento de chegada ao
poder, e não como uma força política capaz de provocar transformações sociais e
políticas. Talvez o que melhor caracterize o governo Lula sejam as suas contradi-
ções. Essa palavra – contradições – é aqui usada no sentido da falta de definição,
falta de um projeto de nação, e não no sentido marxista do termo. Parece que este
governo não entendeu que governar é contrariar interesses.
Como opera politicamente um governo (aqui entendido como o conjunto
de forças políticas que o apóia e/ou constitui) que não tem um projeto de nação,
que não quer contrariar interesses e privilégios, que acha que é possível a diminui-
ção das desigualdades sociais somente distribuindo o fruto do desenvolvimento
(reedição do crescer para depois distribuir) e que não se propõe a redistribuir as
riquezas já produzidas? Pelos meios tradicionais de se fazer política no Brasil, ou
seja, o paternalismo, fisiologismo e a apropriação privada da coisa pública, isto é,
a negação mais completa de qualquer processo participativo.
Infelizmente, temos de reconhecer que, no Brasil, por tradição, a corrupção é
uma forma de se fazer política. Em outras palavras, a corrupção é a forma como o
Estado brasileiro opera. Ela serve para que as elites se apropriem dos recursos públi-
cos e do poder para interesses privados. Nesse sentido, a corrupção não é apenas
monetária/financeira, mas está principalmente relacionada ao uso do poder políti-
co para interesses privados e particulares (aqui incluído desejo de ficar décadas no
poder). O roubo maior da corrupção é o roubo do poder de decisão do povo.
O governo Lula foi eleito num movimento construído há décadas para mu-
dar a forma de se fazer política no Brasil. Um dos elementos essenciais dessa mu-
dança seria a participação popular, isto é, a participação como elemento funda-
mental nas transformações sociais, culturais, econômicas e políticas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Analisar o governo Lula, como mencionamos, é uma tarefa complexa, ainda


mais quando se pensa essa avaliação na perspectiva da participação. Quando nos
dispomos à avaliação/análise de um governo, independentemente de ser o gover-
no Lula ou qualquer outro, coloca-se diante de nós uma questão preliminar: para
realizar qualquer processo de avaliação, é necessário ter uma referência. E qual é a
nossa referência se este governo foi eleito para provocar grandes transformações?
Portanto, a nossa referência não é o passado, e sim o futuro. Por isso, a nossa
referência para a avaliação deve ser o que chamamos, de forma genérica, de proje-
to de sociedade. Apesar de ser um projeto em construção, ele nos dá elementos
para essa avaliação. Não se trata de uma avaliação abstrata. Estamos avaliando o
governo Lula em relação a um determinado projeto que temos de sociedade, em
relação às nossas utopias.
No caso especifico do governo Lula, não se pode desconsiderar outro elemen-
to: a expectativa, ou melhor, aquilo que cada um e cada uma de nós desejou que
o governo Lula fosse. É o elemento subjetivo da análise. Quando falo da expecta-
tiva, não falo da expectativa ingênua, daquela coisa da esperança que venceu o
medo. Estou falando da expectativa gerada pelo processo de construção das for-
ças que constituíram a “vitória”. Os longos anos de construção desse processo
geraram na sociedade o sentimento da possibilidade de que “as coisas” poderiam
ser diferentes.
Pelo discurso e pelas experiências de algumas administrações populares, tinha-
se a “certeza” de que o PT (como força hegemônica na aliança) “usaria”, no
mínimo, a participação como elemento de pressão para as transformações. Algu-
mas administrações municipais tiveram a participação como ponto central na sua
estratégia política, priorizando a participação de setores populares na definição
das políticas e dos orçamentos públicos.
Uma das primeiras questões colocadas pelo governo Lula foi o desenho
institucional ou a arquitetura da participação. Se pegarmos o desenho inicial,
podemos concluir duas coisas: a participação era vista como estratégia de
governabilidade e os sujeitos políticos da participação eram reconhecidos com
pesos diferentes.
O governo e, principalmente, a esquerda (e aí não se trata só do PT, mas tam-
bém dos outros partidos) ainda olham para a sociedade só do ponto de vista da
relação capital–trabalho. Até agora, não houve um rompimento radical com essa
visão bipolar. Ao se enxergar a sociedade apenas do ponto de vista da relação
capital–trabalho, reconhecem-se como atores políticos somente empresários(as) e
trabalhadores(as), pois somente eles(as) atuam sobre essa relação. Aqui vale res-
saltar que são os(as) trabalhadores(as) sindicalizados(as), pois esse olhar sobre a
sociedade não “enxerga” a imensa massa de homens e mulheres que estão na
economia informal. Segundo essa concepção, as organizações e os movimentos
sociais não são reconhecidos como sujeitos políticos, mas como atores sociais ou
sujeitos sociais. Portanto, são bons para a mobilização, com muita capilaridade,
mas não são parceiros para as discussões políticas. Historicamente, quem trouxe
para o debate político a questão da participação foi justamente esse campo de
organizações e movimentos sociais. O movimento sindical nunca teve a participa-
ção como estratégia política, que dirá como elemento central na construção dos
processos democráticos.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Outro complicador que essa concepção traz é acreditar que as organizações e


os movimentos sociais possuam a mesma estrutura do movimento sindical. O
movimento sindical, no Brasil, é centralizado e hierarquizado, com uma estrutu-
ra rígida. As organizações e os movimentos, pela sua própria natureza, não têm
essa hierarquia e, muito menos, tal centralização. Organizam-se de forma mais
descentralizada e mais horizontal. Procuram se constituir mais como sujeitos po-
líticos coletivos e menos como estrutura. Portanto, não têm uma única voz que
fala pelo conjunto, e sim várias vozes de lugares diferentes.
Acostumado a lidar com o movimento sindical e ainda com uma concepção de
que a sociedade se organiza apenas em torno dos interesses da relação capital–
trabalho, o governo Lula não conseguia – e não consegue – dialogar com esse
conjunto de organizações e movimentos, pois acha que “isso tudo é muito difuso”,
pois não possui uma “central” e muito menos um “presidente”.
Tal concepção bipolar está presente no desenho institucional do governo, no
qual a Secretaria Geral da Presidência tem, entre outras, a atribuição de interlocução
com os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil. Já a secretaria do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), cujo secretário tem
status de Ministro de Estado, dialogar com o mundo empresarial e com os sindi-
catos. Por isso, o CDES é formado, na grande maioria, por empresários(as) e
sindicalistas, alguns(mas) intelectuais, que são chamados(as) de personalidades, e
representantes de ONGs. Na concepção do governo, o CDES é o espaço de diálo-
go e de atuação essencialmente política (“colegiado de assessoramento direto e
imediato do presidente da República”), no qual se discutem as questões da
macroeconomia e da agenda de desenvolvimento. Nesse espaço estratégico, na
definição do governo, não há equilíbrio mínimo entre os diferentes sujeitos polí-
ticos, pois esses mesmos sujeitos não são reconhecidos como tal.
É importante ressaltar que estou usando o termo interlocução, pois é dessa
forma que tais espaços são vistos pelo governo Lula. Não são espaços de delibera-
ção e controle social, e sim de interlocução do governo com representantes da
sociedade e que, na maioria das vezes, é pessoal e não-institucional.
Há, no governo Lula, um desrespeito total à autonomia da sociedade civil,
pois, em todos espaços criados, quem determina a representação da sociedade é o
Estado. A única exceção é o Conselho das Cidades, em virtude da força do movi-
mento urbano e da direção do Ministério das Cidades.
Na verdade, o que houve no governo Lula foi uma multiplicação dos espaços
de interlocução, sem que houvesse (e haja) política de governo, sem falar de Esta-
do, de fortalecimento do sistema descentralizado e participativo, muito menos de
ampliação dos processos democráticos. A participação ficou reduzida à estratégia
de governabilidade e a um faz-de-conta, ela não é um elemento essencial nas
transformações sociais, políticas, culturais e econômicas. Mas também quem diz
que o governo quer mudar algo?
Sobre o processo do PPA, quando foram realizadas audiências publicas em
todos os estados e no Distrito Federal, a análise pode ser destacada em dois mo-
mentos: um é o próprio processo; o outro, o momento dos compromissos/acordos
que esse processo gerou.
Num primeiro momento, a Associação Brasileira de Organizações Não-Gover-
namentais (Abong) e a Inter-Redes – com a participação dos comitês estaduais –
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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aceitaram participar do processo, e sabía-se de seus limites. Principalmente, os


limites do tempo exíguo em que estavam ocorrendo as audiências, o tempo que os
ministérios tinham para entregar as propostas e para o governo encaminhar ao
Congresso (esse prazo é determinado pela legislação). Outro limite era a natureza
do objeto de análise nas audiências, que se restringiam à análise dos objetivos, e
não o detalhamento dos programas. Aceitamos participar, apesar desses limites,
porque a o pacto feito com a Secretaria Geral e o Ministério do Planejamento
estava garantindo a continuidade do processo.
O segundo momento de avaliação do processo PPA refere-se ao período após o
dia 14 de agosto de 2003, quando da entrega do relatório final do próprio plano,
com as sugestões oriundas das audiências ao presidente da República. A partir
desse momento, houve um descompromisso do governo em relação ao processo.
Nenhum dos acordos gerados pelo processo foi cumprido até o momento. Os
acordos eram: criação de espaço institucional para a continuidade do processo
(fórum permanente de acompanhamento do processo orçamentário), criação de
indicadores desagregados por região, gênero, etnia (grupo de trabalho no Minis-
tério do Planejamento) e acesso universal aos sistemas de informações do orça-
mento (como o Sistema Integrado de Administração Financeira/Siafi, o Sistema
de Informações Gerenciais e de Planejamento/Sigplan etc.).
Num estudo realizado pela Inter-Redes, ficou claro que questões periféricas e
que ajudavam a melhorar o desenho (ou enunciado) dos megaobjetivos foram
incorporadas, como fruto da participação, ao PPA, mas nada que tenha mudado
a lógica das políticas e que era a demanda mais presente nas audiências.
A sociedade civil precisa repensar essa arquitetura da participação. Isso, no
entanto, não significa repensar apenas o sistema descentralizado e participativo
(os conselhos e as conferências. Precisamos repensar os processos democráticos,
o desenho da democracia, como conjugar a democracia representativa, a demo-
cracia participativa e a democracia direta. Os conselhos, ainda são mecanismos,
não os únicos, de participação. Porém, não como se apresentam hoje, sem espa-
ço para o debate político, a deliberação e o controle social, ou seja, espaços
formais ou de faz de conta de participação. Isso também reflete a maneira como
são escolhidas as pessoas para a representação da sociedade civil, que não se
vêem como representação da sociedade civil, mas muito mais como representa-
ção de interesses da sua organização. Tal processo foi agravado – e muito – nos
novos espaços criados no governo Lula, pois não há eleição, e sim indicação do
próprio governo de quem representará a sociedade (excetuando o Conselho das
Cidades).
Também é necessário pensar como fazer a comunicação entre esses diferentes
espaços – conselhos e conferências –, que, até agora, têm permanecido estan-
ques, verticais e sem conexão. Como a Conferência das Cidades, por exemplo,
se comunica com a questão da criança, da segurança e do meio ambiente? Outra
questão diz respeito a como, nesses processos, agregar outros sujeitos. Há algum
tempo, as ONGs eram chamadas de novos atores. Hoje, não somos mais. Mas
há um conjunto de novos sujeitos políticos como os que apareceram no proces-
so do PPA, que apresenta uma outra forma de organização e com os quais não
sabemos dialogar. Pensamos que são organizados apenas aqueles que apresen-
tam o nosso formato de organização. Há outras formas, mas não conseguimos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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vê-las. Olhar e enxergar esses novos atores – e também conseguir juntar esses
processos, que são diferentes – é um grande desafio para nós.
Outro desafio é recolocar a questão, o papel e a reforma do Estado e como
exercer o controle público do Estado. Um dos primeiros erros deste governo, de-
monstrado já na campanha eleitoral, foi não ter incluído a reforma do Estado na
pauta. E essa é uma questão central, que devemos debater profundamente. Não
poderemos pensar nenhum tipo de controle social e de controle público do Esta-
do, se ele não for público. Isso envolve a partilha do poder e a forma de apropri-
ação do poder, ainda realizada de maneira privada, sem a lógica do público. En-
tão, ao retomar a discussão do papel do Estado, temos de dizer que Estado que-
remos, o que envolve algo maior: um projeto de sociedade.
Outro fator que está associado ao controle social e ao controle público do
Estado (e, portanto, à participação), é o acesso às informações. Não é possível
continuar ouvindo do governo que ele não abre os sistemas de informação na área
orçamentária – o Sigplan e o Siafi – porque a sociedade não vai entender seus
dados e números. As informações têm de ser públicas, não só na área do orçamen-
to, mas em todas as áreas que não sejam protegidas por lei. Nós temos que assu-
mir a luta pelo direito à informação pública. E essa informação pública não é a
informação que passa pelo olhar do marqueteiro da comunicação. A sociedade
deve ter a mesma informação que o(a) gestor(a), o(a) profissional, o(a)
funcionário(a) e o(a) servidor(a) público(a) têm. Como vamos pensar no contro-
le social, na participação, se não tivermos acesso às informações? A sonegação de
informações é também uma forma de desqualificar nossa ação política.
Creio que tivemos algumas surpresas positivas no governo Lula. Apesar de
todas as críticas que podemos ter, quando avaliamos os processos de participação,
sobretudo os conselhos e as conferências, vemos que há uma mudança de postura
do atual governo em relação aos governos anteriores, no sentido de reconheci-
mento desses espaços de participação. Nas conferências realizadas em governos
anteriores, quem organizava e comandava tudo era a sociedade civil. O governo
aparecia como um espectador e ia embora. Agora, esses espaços têm registrado
uma qualidade e uma participação governamental bem diferente do que estáva-
mos acostumados. O positivo disso é que as conferências viraram espaços de dis-
putas políticas.

Conclusão
O sistema descentralizado e participativo configura-se como instituto político
não-tradicional de gestão de políticas públicas, voltado para a democratização do
aparelho de Estado e da sociedade civil, podendo impulsionar uma mudança qua-
litativa na forma de organização social e política, levando-nos a uma ordem mais
próxima da utópica radicalidade democrática.
Não consideramos os conselhos como espaços únicos, muito menos exclusi-
vos, porém importantes e estratégicos para serem ocupados pela sociedade civil
organizada e comprometida efetivamente com a alteração do perfil estatal brasi-
leiro. Além disso, a estrutura organizativa e a prática de funcionamento dos con-
selhos podem fortalecer o estabelecimento da cultura democrática que propiciou
sua criação. Em outras palavras, a base cultural que possibilitou a criação dos
conselhos não está consolidada em nosso país, porém seu funcionamento poderá
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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servir como estrutura de reforço para a efetiva solidificação de uma cultura demo-
crática participativa.
Os conselhos são mecanismos limitados para a transformação social. Porém, para
a realidade brasileira, são mecanismos que podem provocar mudanças substantivas
na relação Estado–sociedade. Da mesma forma, esses mecanismos podem contribuir
com a construção/consolidação de uma cultura política contra-hegemônica, por meio
da prática da socialização da política e da distribuição do poder.
Não se deve desistir do processo de implementação desses mecanismos de par-
ticipação democrática, apesar do pouco avanço no sentido de transformar em
poder de fato o poder legal que esses conselhos possuem.
O que podemos dizer do governo Lula em relação ao fortalecimento do siste-
ma descentralizado e participativo e ao próprio processo de participação? Pouca
coisa, a não ser: participamos, e daí?

Conferências realizadas pelo governo Lula até julho de 20053


CRIANÇA E DO ADOLESCENTE/2003
5a Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, em Brasília,
no período de 24 a 28 de novembro de 2003. O evento teve como tema geral:
Pacto pela paz – Uma construção possível.
Obs.: a sexta conferência está marcada para os dias de 12 a 15 de dezembro de
2005 em Brasília

CIDADES/2003
A 1ª Conferência Nacional das Cidades ocorreu de 23 a 26 de outubro de 2003,
em Brasília. O evento, que reuniu 2,5 mil delegados(as) dos 27 estados, debateu
temas e propôs diretrizes para nortear as políticas setorial e nacional de desenvol-
vimento urbano.
Os trabalhos foram desenvolvidos a partir do lema “Cidade para Todos” e do
tema “Construindo uma política democrática e integrada para as cidades”. Dos
5.560 municípios existentes no Brasil, 3.457 participaram de conferências prepa-
ratórias à Nacional, sendo que 1.430 realizaram conferências municipais, e 2.027
municípios participaram por meio de 150 encontros regionais, além das 26 confe-
rências estaduais e uma do Distrito Federal.
Essa mobilização deflagrou um processo de discussões e articulações, acordos,
exposição de propostas, reuniões de pequenos e de grandes grupos e votações
protagonizadas por 999 administradores(as) públicos(as) e legisladores(as), 626
militantes de movimentos sociais e populares, 251 representantes de entidades
sindicais de trabalhadores, 248 representantes de operadores e concessionários de
serviços públicos, 193 delegados(as) de ONGs e entidades profissionais, acadêmi-
cas e de pesquisa, e 193 representantes de empresários(as) relacionados(as) à pro-
dução e ao financiamento do desenvolvimento urbano.
As 3.850 emendas originárias das conferências municipais e estaduais estiveram
sob exames e votações. Novas propostas para o desenvolvimento urbano foram

3
Este quadro reflete um pouco a importância que o Estado dá às conferências. Não há órgão que reúna as informações
sobre as conferências. Só é possível encontrar informações – mesmo assim, incompletas e desatualizadas – nos sites de
cada órgão responsável.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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produzidas. E a conferência aprovou atribuições, estabeleceu a composição e a


eleição do Conselho das Cidades (ConCidades).
Obs.: A 2ª Conferência Nacional das Cidades será realizada em Brasília, de 30 de
novembro a 3 de dezembro de 2005, e elegerá os novos integrantes do Conselho
das Cidades. A partir de março de 2005, municípios e estados iniciaram suas
conferências, elegendo delegados(as) para a conferência nacional. A segunda edi-
ção da conferência enfrentará novos desafios, tendo como temática principal a
Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU).

MEDICAMENTOS E ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA/2003


A 1ª Conferência Nacional de Medicamentos e Assistência Farmacêutica tem como
objetivos propor diretrizes e estratégias para a formulação e efetivação de ações
que garantam o acesso, a qualidade e a humanização dos serviços em saúde, sem-
pre com controle social. Tratava-se de uma antiga reivindicação dos segmentos
que compõem os conselhos de saúde. A conferência teve caráter nacional, no en-
tanto a escolha dos(as) delegados(as) se deu nos encontros de âmbitos municipais
e estaduais. A etapa nacional aconteceu nos dias 15 a 18 de setembro de 2003, em
Brasília (DF). O tema principal foi “Efetivando o Acesso, a Qualidade e a
Humanização na Assistência Farmacêutica com Controle Social”. A partir dele,
foram estabelecidos os eixos temáticos dos debates:
a) Acesso à Assistência Farmacêutica: a relação dos setores público e privado de
atenção à saúde; b) Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico para a Produção
Nacional de Medicamentos; c) Qualidade na Assistência Farmacêutica: formação
e capacitação de recursos humanos

POLÍTICAS PARA AS MULHERES/2003


De 15 a 17 de julho, estiveram presentes em Brasília mais de 2 mil mulheres na 1ª
Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (CNPM), que reuniu represen-
tantes do governo e da sociedade civil na proposição de diretrizes para o Plano
Nacional de Políticas para Mulheres, a ser elaborado e implementado pela Secre-
taria Especial de Políticas para Mulheres.
Estiveram presentes mulheres de todos os estados brasileiros. Entre elas, militantes
do movimento de mulheres e feminista – negras, brancas, rurais, urbanas, indíge-
nas, lésbicas, deficientes, idosas, jovens – que atuaram de forma articulada para
garantir propostas que promovam os direitos das mulheres e assegurem sua autono-
mia. Uma mostra dessa articulação foi a aliança entre mulheres negras e indígenas
na perspectiva de atuarem coletivamente nas questões de gênero, raça e etnia.

MEIO AMBIENTE/2003
Ocorrida em Brasília, de 28 a 30 de novembro de 2003. A 1a Conferência Nacio-
nal do Meio Ambiente teve com tema “Vamos Cuidar do Brasil”. Seis temas
estratégicos orientaram os debates: água; biodiversidade e espaços territoriais pro-
tegidos; agricultura, pecuária, pesca e floresta; infra-estrutura: transporte e ener-
gia; meio ambiente urbano; e mudanças climáticas.
A conferência nacional foi precedida de conferências realizadas em todos os esta-
dos e no Distrito Federal. O documento final aprovado em Brasília foi encami-
nhado ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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PESCA/2003
Realizada em novembro de 2003. O processo iniciou-se com a realização de 27
conferências em todos os estados e no Distrito Federal e teve como ápice a 1ª
Conferência Nacional de Aqüicultura e Pesca, na qual 953 delegados e delegadas,
de um universo de 1.056 eleitos, discutiram e aprovaram os subsídios para a cons-
trução de uma política de desenvolvimento sustentável da aqüicultura e pesca.

SAÚDE/2003
12a Conferência Nacional de Saúde, de 7 a 11 de dezembro de 2003.

ASSISTÊNCIA SOCIAL/2003
4a Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em Brasília, no mês de
dezembro de 2003.

SEGURANÇA ALIMENTAR/2004
A 2a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ocorreu de 17
a 20 de março de 2004. A conferência é considerada o evento anual de maior
expressão nacional no que diz respeito à segurança alimentar.
A conferência nacional foi a etapa final de um processo iniciado pelos municípios
e estados, com a criação dos conselhos e a realização das conferências locais. A
conferência tem como objetivo propor ao presidente da República novas diretri-
zes para o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, para o anos de
2004 a 2007.
A 2a Conferência Nacional foi organizada pelo Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (Consea).

DIRETOS HUMANOS/2004
A 9a Conferência Nacional dos Direitos Humanos, ocorrida nos dias de 29 de
junho a 2 de julho, com o tema “Construindo o Sistema Nacional de Direitos
Humanos – SNDH”, apresentou um diferencial em relação às anteriores. Pela
primeira vez, foi convocada pelo Poder Executivo.
O objetivo geral foi discutir com os participantes do evento, delegados(as),
convidados(as) e observadores(as), propostas para o Sistema Nacional de Prote-
ção dos Direitos Humanos (SNDH): os desafios à implementação do SNDH, a
renovação de parcerias com setores da sociedade na construção do sistema, a aná-
lise de toda a situação e a construção de um espaço de denúncia de violação aos
direitos humanos.

ESPORTE
Ocorrida em Brasília, de 17 a 20 de junho de 2004.

PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL/2005


A 1ª Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial ocorreu
entre os dias 30 de junho e 2 de julho. Seu tema central foi: “Estado e Sociedade
Promovendo a Igualdade Racial”.
O encontro reuniu mais de mil delegados(as) – eleitos(as) em todos os estados e
nas consultas – e iniciou o processo preparatório em novembro de 2004, por
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

conta do início das conferências estaduais. Nessa fase, governos estaduais e socie-
dade civil discutem políticas e ações locais e nacionais para a promoção da igual-
dade racial.
O processo preparatório também foi composto por audiência cigana e consultas
quilombola e indígena, que buscam o diálogo com representantes da sociedade
civil organizada sobre questões específicas de segmentos mais discriminados entre
os grupos étnico-raciais participantes.
A conferência teve por objetivo construir o Plano Nacional de Políticas de Pro-
moção da Igualdade Racial.

Referências bibliográficas

BOBBIO, N. O futuro da democracia. Rio e Janeiro: Paz e Terra, 1986.


______. Crise e redefinição do Estado brasileiro. In: LESBAUPIN,
I; PEPPE, A. (Orgs.). Revisão constitucional e Estado democrático. Rio de
Janeiro: Centro João XXIII, 1993.

FALCÃO, M. C. A seguridade na travessia do Estado Assistencial


Brasileiro. In: SPOSATI, A. et al. Os direitos (dos desassistidos) sociais. São
Paulo: Cortez, 1991.

RAICHELIS, Raquel. A construção da esfera pública no âmbito


da política de assistência social. 1997. Tese (Doutorado em Serviço Social).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

SOUZA FILHO, R. Rumo à democracia participativa. 1996. Dis-


sertação (Mestrado em Serviço Social), Escola de Serviço Social, Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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CONSEA/MG E REPRESENTAÇÃO DO PODER PÚBLICO

Leda M. B. Castro
Cedefes/Projeto Mapas, março/abril, 2005.

Participação nas reuniões plenárias


Quando se observam as folhas de presença dos conselheiros governamentais nas
plenárias do Consea em 2003/2004, duas características ficam mais salientes: I) o
baixo nível de presença – quase sempre abaixo de 50%; II) a grande rotatividade
do pessoal presente, muitas vezes “representantes” dos representantes.
Em 2003, ocorreram cinco plenárias. Destas, em duas o número de assinaturas
dos representantes governamentais superou a metade: nove presenças na terceira e
oito presenças nas 3ª e 4ª plenárias, respectivamente, de um total de 14 Secretarias de
Estado. Em 2004, ocorreram quatro plenárias: em nenhuma delas as assinaturas de
representantes do Estado foi maior que seis, para o mesmo total de 14 Secretarias.
O mesmo representante da Secretaria de Desenvolvimento Social e Esportes
esteve presente em todas as plenárias de 2003. Em 2004, esse representante, mem-
bro do gabinete do antigo secretário, foi exonerado com a saída do secretário
João Leite, que se candidatou a prefeito de BH. Sua substituta oficial só esteve
presente em uma plenária, em 2004. Caso semelhante ocorreu com o representan-
te da Secretaria da Saúde: a mesma pessoa esteve presente em três das cinco plená-
rias de 2003, mas só assinou a folha de uma das quatro plenárias de 2004. A
Secretaria de Cultura não mandou um único representante a qualquer das nove
plenárias do Consea nos dois anos analisados.
Os representantes governamentais, ao que parece, vão às reuniões só para “ba-
ter o ponto”, não fazendo de fato, parte da proposta do Consea. Este ponto de
vista foi consensual entre todos os entrevistados sobre o Consea/MG em 2004.

A participação de técnicos e funcionários em comitês e comissões


A Emater tem sido a principal participante dos órgãos governamentais na maioria
das Comissões Regionais de Sans - as CRSANS, embora se conte também com
representantes de prefeituras, especialmente da área de assistência social. Mas são
os técnicos da Emater que estão mais vinculados ao sindicato da empresa, aqueles
que fazem mais esforço de aproximação com os movimentos porque têm com-
promisso com a agricultura familiar e reforma agrária e uma visão crítica da assis-
tência técnica tradicional da empresa. Uma visão das tensões entre Emater e Consea,
no nível estadual, é apresentada na seção deste texto dedicada ao Prosan.
Uma das pessoas entrevistas nesta fase, que mantém contatos com as comissões
regionais, observou que há visões distintas sobre o Consea: as lideranças identifi-
cam o conselho com a sociedade civil, mas as bases comunitárias mais distantes da
mobilização de Sans, mais desorganizadas, identificam o Consea com o governo,
ainda mais após o Prosan: a base está mais próxima da tradição política brasilei-
ra: quem tem o dinheiro é o governo ou os ricos.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21

Uma visão crítica do Consea/MG e da participação social na temática de Sans – fala um


ex-secretário do Conselho
Vários esforços para entrevistar representantes do governo no Consea, no segun-
do semestre de 2004, foram frustrados pela não disponibilidade das pessoas
contatadas. Para citar alguns exemplos: o presidente da Emater, principal órgão
governamental em embates e disputas com o Consea, por causa do programa Mi-
nas Sem Fome, depois de várias tentativas e recorrentes adiamentos, fez-me ser rece-
bida, em dia e hora marcada, pelo gerente do Programa, que se limitou a apresen-
tar-me um vídeo de propaganda do mesmo e a responder de modo puramente for-
mal às questões a ele propostas; o representante da Secretaria da Saúde, um dos
mais presentes nas plenárias de 2003, só pode ser contatado por meio de sua secre-
tária e fez-me esperar quase dois meses por uma possível entrevista, que acabou não
acontecendo. Sempre estava viajando, em reuniões, nunca tinha tempo disponível.
E assim foi passando o tempo para a pesquisa. Esta recusa, em si só, é um indicador
do pouco interesse que os representantes governamentais têm no Consea, refletindo
com certeza a visão política predominante no governo do Estado.
Uma pessoa indicada por vários conselheiros e membros da equipe do Consea
para ser entrevistada foi o secretário do Conselho, Antonio de Faria Lopes, indi-
cado ao cargo pelo governador Aécio Neves, conforme prerrogativa da Lei Dele-
gada de janeiro de 2003. As sugestões se basearam não só no fato de, por quase
dois anos, ter sido o principal representante governamental no Consea, como
também por sua visão crítica do mesmo. Contrariamente a outros representantes
do setor público, o senhor Faria Lopes atendeu prontamente ao pedido de entre-
vista, realizada em outubro de 2004, e nela, foi bastante aberto e veemente em
suas opiniões e críticas, num comportamento pouco usual entre os políticos e
funcionários. Naquele momento, já se considerava demissionário do cargo no
Consea, o que de fato aconteceu ao fim do ano. Seu substituto é o senhor Manoel
Costa, que foi secretário de Estado no governo Itamar Franco e também o primei-
ro secretário do Consea, e que retornou ao governo de Minas este ano como
secretário de Desenvolvimento Regional e Políticas Urbanas. As articulações para
a substituição de Antonio Faria Lopes estavam em curso quando Manoel Costa
voltou e se interessou pela posição de secretário geral do Consea. Dom Mauro
gosta muito dele que é bem conhecido também dos conselheiros mais antigos.
Costa tomou posse em fins de março. Sendo uma figura política muito mais sim-
pática ao Conselho, sua indicação sugere uma ação do governador já visando a
construção de ampla base de apoio para o processo eleitoral de 2006.
As opiniões de Antonio de Faria Lopes estão descritas abaixo porque parecem
ilustrar e explicitar as posições contraditórias dos políticos profissionais tradicio-
nais, mesmo os de origem de esquerda e com viés mais popular (ou populista)
com relação aos processos de participação social em organismos de gestão pública
como o Consea. Sua opiniões deixam bem evidentes os enormes desafios que a
sociedade civil organizada continua tendo pela frente, no seu intento de influen-
ciar mais efetivamente a construção e gestão das políticas públicas.

Biografia: Antonio de Faria Lopes foi militante da Juventude Operária Cató-


lica, presidente do Sindicato dos Bancários de Belo Horizonte, foi condenado
pela justiça militar durante a ditadura e depois anistiado. Foi deputado estadual
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

e secretário da Prefeitura de BH. Foi membro de vários partidos políticos: PTB, MDB,
PMDB, PDT, e atualmente o PV, em cuja sede municipal foi feita a entrevista.
Esteve presente, conforme os registros do Consea, nas 3ª e 4ª plenárias de 2003
e nas 1ª e 2ª plenárias de 2004.

[Nos próximos parágrafos, transcrevem-se suas idéias e opiniões, organizadas


por temas, e não na ordem seqüencial da entrevista, para facilitar a leitura. As
intervenções da entrevistadora na conversa e/ou esclarecimentos no texto, estão
entre colchetes].

Como chegou ao Consea. Não estou no Consea a rigor, como representante


governamental, porque não sou funcionário público. Fui convidado pela Andréa
Neves e porque a representação não-governamental é uma indicação do Fórum
Mineiro de Segurança Alimentar – FMSANS, apesar de não existir mesmo, sendo
pura ficção.
Eu fui convidado pela Andréa para ver se o governo se interessava por ele.
Hoje, sou muito crítico à experiência do Consea. Já fiz esta crítica internamente,
já fiz para o governo, então posso faze-la publicamente.

Sobre a representação governamental e o papel do Estado no Consea. [O Con-


selho] tem 2/3 de representação da sociedade civil e 1/3 do governo. Isso do ponto
de vista legal, porque do ponto de vista operacional não tem nada do governo. Os
representantes governamentais não freqüentam, não sabem o que é o Consea, não
vão lá.
A representação governamental não se interessa pelo Consea porque ela é le-
galmente minoritária – 1/3 do Conselho. Esta representação não tem orientação
do governo sobre como agir lá. O governo atual, como já foi também no tempo
do Itamar, tem para com o Consea uma visão muito mais política, de evitar dis-
cussões e críticas. Então, concorda simplesmente, com as decisões tomadas lá.
Mas paralelamente ao Consea ou realizando as funções que o Consea se deu, o
governo tem uma série de instituições, como a Emater, por exemplo, a Secretaria
de Saúde, o Instituto de Águas, etc. O Estado tem seus órgãos, então os represen-
tantes governamentais preferem o trabalho junto com os órgãos públicos do que
de um conselho como Consea.

Quem [no governo] tem a melhor compreensão do Consea é o secretário do


Planejamento, Antonio Augusto Anastasia [que, há pouco mais de uma semana,
no início de abril de 2005, foi transferido pelo governador para o cargo de secre-
tário da Defesa Social – para “dar um choque de gestão” nos problemas da Segu-
rança Pública em Minas]. Eu até sei o que ele pensa [sobre o Consea]. Mas sei
também que ele não vai dizer a você o que ele pensa, como eu, que falo o que
penso. [E o faço] porque eu não sou nada, não sou do governo. Mas ele é quem,
dentro do governo, tem a visão mais completa, totalizadora do que é o Consea.
[O senhor acha que a visão dele é crítica?] É. Todo o pessoal do governo acha isso.
Converse com o José Silva, presidente da Emater. É uma pessoa jovem, muito
interessado, que conheci aí nessas lides e é um técnico. A grande cabeça disso
tudo, embora não [tenha cargo formal no governo] é dona Andréia Neves [irmã
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23

do governador]. Ela é que foi visitar o Dom Mauro... Até o meu nome para ser
secretário geral do Consea foi indicado por ela.
[O senhor reportava a alguém do governo sobre suas observações e experiências
no Consea?] Fui várias vezes à Andréia Neves, ao Anastasia, ao Danilo de Castro.
Nunca conversei sobre o Consea com o governador. Mas falei a esses secretários
todos. Tive um contato muito estreito, de muitas reuniões junto com o pessoal do
Consea, com a Emater para o Minas Sem Fome, o Programa do Leite, etc.

Sobre a representação da sociedade civil e o Fórum Mineiro de Segurança Ali-


mentar – FMSANS. [O Fórum] é um grupo de pessoas, eu até diria, é um grupo de
amigos, de pessoas que estão identificadas, e que fazem a representação não-go-
vernamental no Consea.
A representação da sociedade civil eu não diria que é democrática, porque
atribui-se ao Fórum das entidades, que nem sequer é legalizado, que não tem
mecanismos de prática da democracia, que é apenas uma reunião de pessoas num
determinado momento, [a responsabilidade de] indicar as representações da soci-
edade civil. Como o governo não freqüenta, o que fica é a discussão em torno de
alguma verba pública que vai para o Consea.
Quando você fala “um grupo de entidades [da sociedade civil]”, o que você
quer dizer? O que é uma entidade? Hoje é tão fácil ser uma entidade! Você vai ao
cartório e registra, então é uma entidade. Essas entidades, mesmo quando nasce-
ram com o melhor propósito de participação, de democracia, etc., com o correr
do tempo acabam não funcionando porque as pessoas não têm a cultura da par-
ticipação popular. Nosso povo não tem consciência política para participar... Isso
é em todas as entidades; a diretoria resolve, todo o poder está com a diretoria.
Esta, por sua vez, não freqüenta a entidade. Então, dois ou três ou até uma só
pessoa vira a entidade. É assim nas igrejas, é assim em todas as coisas coletivas.
Nós exacerbamos o que eu chamo de representação. Vou lhe dar um exemplo
sobre um querido amigo meu, por quem tenho muita admiração, um velho de
mais de 80 anos, o Evaristo, que todos conhecem: foi preso em 64, membro do
Partido Comunista, etc. O Evaristo é hoje um profissional da participação em
conselhos: já foi membro do Consea, é membro de tal e tal conselho, de muitos!
O Evaristo não representa mais nada, nem ninguém. Mas se ocupa dia e noite
com reuniões absolutamente inúteis de dezenas de conselhos que ele participa...
Isso faz bem a ele. Que bom! Mas não é isso o que estamos querendo com os
conselhos nem a sociedade que queremos é essa. Queremos conselhos que resol-
vam os problemas...

Sobre Dom Mauro Morelli. É a grande figura do Consea. Tanto que, hoje, ele
também representa o Consea de São Paulo. É uma coisa incrível, não? [É o segun-
do governo estadual do PSDB que chama Dom Mauro]. É, hoje ele é presidente
de dois Conseas. Ele queria ser presidente do Consea nacional e boa parte da
gente espalhada pelo Brasil afora queria que ele fosse. E por quê? Porque Dom
Mauro é um visionário! Quando falo visionário, falo no sentido melhor do ter-
mo: um homem que tem visões, não é um alucinado. Dom Mauro não é um
lunático, é um visionário. Ele virou uma figura que tem um carisma próprio. Mas
como ele é mortal, se tivesse morrido naquele acidente de carro, o Conselho de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24

Segurança Alimentar teria sido varrido do mapa na mídia. Porque as coisas que
Dom Mauro faz são muito “midiáticas”, não são efetivas, nem aqui, nem em São
Paulo, nem nacionalmente. É tudo muito marketing. [Se ele não tivesse voltado ao
Consea de Minas] o Conselho provavelmente já teria sido fechado. Seria mais ou
menos como a Câmara de Belo Horizonte: se fechar, você não sente falta nenhuma.

Sobre o funcionamento do Consea. O governo estadual paga os técnicos, os


funcionários do Consea, o aluguel da sua sede de funcionamento, as passagens do
Dom Mauro, enfim, tem toda a despesa, traz ainda algum dinheiro público para
projetos e não tem nenhuma influência sobre esse dinheiro. No uso desse dinheiro
há um enorme gasto com atividade-meio. Neste último plano, cerca de 40% do
dinheiro que chega não vai para atividades-fim, vai para atividades-meio. O que
é isso? São reuniões dos membros do Fórum, viagens e seminários. Acaba sendo
muito dinheiro que, ao invés de produzir as finalidades do Consea, fica girando
em torno de um pequeno grupo, que gasta o dinheiro. Entrega-se a administração
desse dinheiro, para evitar a burocracia do Estado e talvez até o rigor na prestação
de contas, a uma entidade não-governamental, sem licitação – a Cáritas. Não há
controle. Hoje, sou muito crítico ao Consea, a esse tipo de funcionamento.
[Sobre o papel planejador e/ou executor do Consea, o entrevistado salienta
que] o Consea não funciona como um formulador, orientador de políticas públi-
cas [para serem executadas pela máquina do Estado], ele próprio executa. Essa é
a grande contradição. E executa não por si mesmo, mas entrega para a Cáritas e
gasta [com isso] 40% de tudo o que arrecada. Não concordo de jeito nenhum
com essa função executora do Consea.
O Consea de Minas Gerais funciona como um Estado à parte, não tem nada a
ver com o governo. Ele pega as verbas do governo, faz seus planos e os entrega a
uma entidade que eles escolheram para executar. Ponto final. É uma miniatura de
Estado. Aí criam os Conselhos Regionais, mas é tudo na mesma linha do Fórum,
acaba sendo tudo um grupo de pessoas vinculadas por idéias em comum e por
vínculos partidários também comuns.
[Seriam núcleos fechados à maior participação da sociedade civil?] Rigorosa-
mente fechados! Se aparece alguém que se declara de outro partido, esse é absoluta-
mente marginalizado, nem é mais convidado para o Fórum. Eu não sou membro
do Fórum. Sou sindicalizado, tenho direitos e deveres para com meu sindicato. No
Fórum, ninguém tem esse direito. O Fórum é um grupo de pessoas simpáticas.
[Na estrutura atual do Consea, a indicação dos conselheiros é feita pelas co-
missões regionais, e não pelo Fórum.] Não é assim. Está na lei que é o Fórum que
indica. E as comissões... Você pode criar a estrutura que quiser [mas o Fórum é
que articula]. O Fórum, que não é burro, faz uma concessão aqui, outra acolá,
para dar a impressão de que não é um grupo monolítico. [Diz o art. 7º da Lei
Delegada 95 de 20/01/2003: “Os representantes da sociedade civil do Consea/
MG serão indicados pelas Comissões Regionais de Segurança Alimentar Nutricional
Sustentável, sendo articulados pelo Fórum Mineiro de Segurança Alimentar”].

[Sobre o programa Minas Sem Fome como a principal polêmica envolvendo o


Consea e o governo do Estado, entre 2003 e 2004.] Eu fiquei entre os dois lados. Eu
fiquei entre o mar e o rochedo, eu era o marisco nessa história. Porque teoricamente
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eu era o representante da Secretaria de Planejamento, mas não tinha e não tenho


nenhum compromisso formal com este governo, nem votei nele. [Fui participar]
querendo que a coisa funcionasse. Então, eu conversava com o governo e conver-
sava com o outro lado. E nenhum dos dois queria conversa! Tanto que, como lhe
disse, estou demissionário. Na semana que vem vou lá dar “tchau”, não vou ficar
de marisco nessa história. Porque não funciona: a cultura que o Consea de Minas
tem, e muito em virtude da personalidade do Dom Mauro, é de uma coisa rigoro-
samente independente. Ele quer tudo do Estado, mas, para executar da forma que
ele quer. O Estado, o governo, o governador concorda com isso porque não quer
criar uma briga política, e o pessoal do lado de cá também não rompe, porque se
romper, matou a galinha dos ovos de ouro, não tem mais um centavo, não tem
mais um técnico, não tem mais nada!
Os técnicos do Consea são ótimas pessoas, são todos funcionários do Estado,
são pagos pelo Estado, mas [atuam] rigorosamente contra o Estado. Se o governa-
dor demitir esse pessoal e disser: “não pago mais”, aí morre o Consea. Mas ele não
faz isso porque acha que o peso político de uma decisão dessas é muito grande.
O governo do Estado usa da política do “deixa como está para ver como é que
fica”. Mas até que deu certa prioridade ao Consea: no governo Itamar, o conselho
conseguiu só um milhão e meio de reais para suas ações. No governo Aécio, já
teve no primeiro ano, quatro milhões. É muito mais! Então, ele deu até mais. Mas
eu acho que os dois lados supervalorizam o peso político do Consea. O pessoal do
Consea acha que tem peso político muito maior do que de fato tem, e que pode
fazer uma pressão muito grande. E são competentes na pressão, porque têm o
Dom Mauro na frente. Dom Mauro é o instrumento da pressão. E o governo, por
sua vez, acha que o pessoal tem força, ou não sabe se tem, mas não quer pagar pra
ver! Então, fica essa coisa, e eu apanhando dos dois lados...
O programa Minas Sem Fome não tinha que passar pelo Consea [como recla-
maram os conselheiros]. Ele nasceu muito motivado pelo programa federal Fome
Zero e o maior crítico do Fome Zero é o Dom Mauro, não sou eu! O Minas Sem
Fome é [resultado de] uma articulação política da bancada federal de Minas Ge-
rais, que conseguiu uma verba do orçamento federal para a Emater fazer ações
com a camada mais pobre da população, sobretudo no meio rural. [Esta] foi uma
divergência minha, porque o problema da segurança alimentar e da fome é muito
mais grave nos grandes centros urbanos, na periferia de Belo Horizonte, do que
nas áreas rurais, como a minha terra, que é Florestal. Eu trabalho numa creche,
colaborando, e vejo a importância da orientação alimentar para as mães que tra-
balham nas cozinhas dessas creches, por exemplo. Isso não é uma prioridade do
Minas Sem Fome, e muito menos do Consea. A meu ver, já tem um erro de enfoque.
Como o dinheiro não é muito, quatro milhões ficaram para o Consea e três mi-
lhões para o Iter, eram quase 24 milhões em números redondos, e a Emater ficou
com 17 milhões. Isso, para a realidade de pobreza, de miséria, de deseducação
para a segurança alimentar da nossa população, é nada, é muito pouco dinheiro!
Então qualquer planejamento que viesse seria insuficiente para resolver tanto pro-
blema! O Consea, que a rigor é um conselho consultivo, se auto-intitula um con-
selho deliberativo, e não é. A lei não fala isso, mas o Dom Mauro fala que é, e o
pessoal todo acredita. Aqui começa o problema, na concepção dos conselheiros
não-governamentais que acreditam que o Conselho é deliberativo. Portanto, todo
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o programa público de Segurança Alimentar deveria passar pelo Consea. E eles


levam isso ao extremo: programas de saúde, também tendo a ver com segurança
alimentar, etc. Numa espécie de megalomania, o Consea devia ser consultado em
tudo, porque ao fim e ao cabo, Segurança Alimentar é vida e o governo é Brasil. E
o governo não deixa isso claro, [não coloca sua posição claramente] e fica procu-
rando cooptar.
Por exemplo, há [uma ação federal chamada] Programa do Leite. Como o
pessoal do Consea aqui é do PT e o governo federal agora é do PT, o governo do
Estado fica achando que para programas com verba federal, se o Consea falar
mal, o dinheiro não vem. Isso pode acontecer. Então é um jogo de mentiras de
todos os lados, não é uma coisa para funcionar. No caso do Programa do Leite, eu
tive que intervir pessoalmente, porque como não sou rigorosamente representante
governamental e admiro, gosto muito do pessoal do Consea, tenho bons amigos
lá... Eu falo do PT, mas tenho mais amigos lá do que fora. Então eu pude encami-
nhar essa coisa do programa Minas Sem Fome e do Programa do Leite, partici-
pando de inúmeras reuniões como voluntário, e, de certa forma, a coisa funcio-
nou. Minha avaliação aí é até generosa, acho que funcionou um pouco. Mas é
tudo meio de mentirinha, o Consea não é deliberativo, o pessoal do Consea fala
mal do programa Minas Sem Fome, diz que o foco está errado...

Questões estratégicas do campo da Segurança Alimentar e a agenda do Consea.


A questão fundamental da falta de segurança alimentar nas periferias das grandes
cidades não está a agenda do Consea de Minas. E aí envolve outras coisas que não
a alimentação. É uma visão muito pessoal minha. As favelas das cidades grandes
e médias são hoje locais de entrada e comércio de drogas. Então, todas as ações
que pudermos fazer para a promoção humana das pessoas da periferia são impor-
tantes, além da questão alimentar: a sobrevivência, a saúde. O Consea devia se
preocupar mais com o trabalho de promoção, que também não é distribuir cartão
[como faz o governo federal], que é uma bobagem.

Aspectos positivos na experiência do Consea. Há muitos, muitos. Se você, por


exemplo, fizer uma abstração do aparelhamento e da partidarização, a consciên-
cia de segurança alimentar que o Consea pode levar - e poderia até levar com mais
ênfase - é um dado extremamente positivo. É não permitir que nós criemos alguns
Evaristos dentro do Consea, mas já temos, viu? Já temos alguns, o próprio Evaristo
já foi um deles. O projeto que o Consea está levando, sobre as comunidades
quilombolas, é extremamente importante, porque chegar nas camadas mais
empobrecidas da população e fazer com que esse camarada crie galinha ou plante
uma horta é uma coisa muito importante, são valores muito importantes.

Mudanças sugeridas para o Consea. Por exemplo, não gastar dinheiro público
com atividades-meio, não fazer da verba do Conselho um meio para um pequeno
grupo se satisfazer, até intelectualmente. Isso não vingou. E aí, acaba tudo... [O
predomínio das] atividades-meio [encontros e reuniões] significam que você tem
muitos planejadores e nenhum executor. Você faz um monte de planejamento e
não tem quem implemente todos os planejamentos. Corremos o risco de ter mui-
to plano e nenhuma execução...
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Avaliação sobre os conselhos de gestão e dos mecanismos de participação po-


pular. Depois da Constituição de 1988, que possibilitou a participação popular
por meio da experiência dos conselhos, todos nós precisamos de uma chance para
fazer a revisão do que vem acontecendo. Eu, por exemplo, trabalhei na Prefeitura
de Belo Horizonte como secretário de governo e vi que as dezenas de conselhos
paritários que existem não funcionam. Raros são os que funcionam. Os represen-
tantes da sociedade civil são retirados do seu meio, começam a participar dos
conselhos, começam a falar a língua do governo e perdem contato com a repre-
sentação que supostamente teriam. Então, com exceção de alguns que funcio-
nam razoavelmente, como o Conselho da Criança e do Adolescente, o da Saúde,
que funciona às vezes, a maioria nem existe na prática.
O Conselho é uma espécie de biombo político para dizer que há participação
popular, quando, na verdade, não há nenhuma. Tem um amigo meu que diz que
é uma espécie de democracia confinada. As pessoas iniciadas fazem discussões
que, na maioria dos casos, não tem nenhuma conseqüência, porque a maioria dos
conselhos é meramente consultiva. Então acaba sendo uma enorme perda de tem-
po, tanto para a sociedade civil como para os representantes governamentais.
Dizendo isso fica parecendo que eu sou contra os conselhos, mas de jeito nenhum,
quero é que eles funcionem.
Hoje, o maior desafio para as pessoas comprometidas com alguma forma de
transformação do país está aí, na participação popular. No tempo da ditadura
militar, a gente tinha um inimigo, tinha um objetivo: conquistar a liberdade.
Conquistada a liberdade, não sabemos o que fazer com ela.

Os conselhos, a participação popular e os partidos.


Há um outro fator, que é o aparelhamento dos conselhos e da atividade
popular pelos partidos políticos, principalmente o PT. Os partidos e o PT apa-
relharam essas entidades da sociedade civil, essas associações de tal forma que
não se sabe mais o que é partido, o que é entidade. No caso do Fórum [FMSANS],
por exemplo, que indica os membros para o Consea, eu nunca pedi carteirinha,
mas você ouve o pessoal conversando. 90% deles têm compromisso partidário.
Eu fui a uma reunião estadual do Consea em que o núcleo do PT fez uma
reunião antes, pela manhã, para definir a posição que iam tomar na plenária, e
essa reunião prévia era maior que a outra a plenária [Refere-se ao encontro dos
conselheiros da sociedade civil e outros participantes, organizados pelo Fórum,
que acontece antes das plenárias do Consea]. Isso é um exemplo de
partidarização, de aparelhamento eleitoreiro, que está fazendo muito mal à re-
presentação popular, no Consea aqui e outros. E as entidades que administram
esse dinheiro também fazem isso.
No final, estamos criando um monstro! Quero dizer, essas entidades também são
partidarizadas. Eu tenho dezenas de exemplos de militantes que constituem uma
entidade, ONG ou entidade de consultoria e que vai, sobretudo nas administrações
petistas, pleitear verbas sem licitação. Em Belo Horizonte, isso é um escândalo!
No final, nós estamos privatizando o que é público, e que deveria ser um
espaço de discussão democrática. Eu estou assustado porque, no governo Lula,
houve um retrocesso democrático. Um retrocesso que, ao fim e ao cabo, acaba
sendo contra a liberdade. Você vai me dizer: “você é um anti–petista”. De jeito
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nenhum! Eu sou a favor da discussão. Mas esse uso do poder, contrário ao


pluralismo, é tudo o que a gente lutou contra a vida inteira!
Todas as pessoas como eu, que têm uma história de lutas e estão vendo isso,
não estão satisfeitas. Até mesmo alguns que são rigorosamente partidários não
estão satisfeitos, nem com a atuação dos conselhos, nem com a influência que o
partido passou a exercer.
Participei de todas as reuniões de criação do PT aqui em Minas e não entrei.
Sou amigo do Patrus Ananias, de quem sou padrinho do primeiro casamento e
amigo fraternal, mas ele acha que tudo o que o PT fala está certo, tudo o que o PT
faz está certo. O PT decidiu, está decidido.
[Fui] convidado para atuar no Consea como um convite pessoal, não partidá-
rio. Ela, eles estavam assumindo o governo e queriam compreender [o Consea],
achavam que era um pouco nessa linha que eu estava descrevendo. Aí eu fui para lá
e verifiquei que era isso mesmo, que ela [Andréa Neves] tinha toda razão, o que ela
achava era real. Eu achava que tinha que mudar. Mas aí eles resolveram não mudar.
[Os conselhos] quando são aparelhados [pelo PT] e quando ele não é o partido
que está no poder, viram órgãos quase de oposição, e não mais de consulta. Quando
é o partido [PT] que está no poder, os conselhos desaparecem, não funcionam mais.
Vou dar um exemplo: o Conselho da Criança e do Adolescente de Belo Hori-
zonte. Eu já fui presidente desse Conselho, como membro governamental. E mi-
nha mulher é representante nesse Conselho, da sociedade civil. Os membros go-
vernamentais não vão mais às reuniões, mandam funcionários do 5º, 6º escalões,
sem nenhum poder de decisão. Nenhum secretário municipal, que é membro titu-
lar desse Conselho, vai mais, nenhuma decisão ali é implementada. O Conselho é
um órgão de fachada, só serve para a propaganda da administração.

[Não seria mais lógico que um conselho “aparelhado” pelo PT, em que os parti-
cipantes da sociedade civil fossem do mesmo partido, tivesse mais apoio de uma
administração petista?] Seria mais lógico, mas não é assim que funciona. Quando
um Conselho não tem a presença de membros governamentais com poder de deci-
são na administração, ele só tem que cumprir ordens da administração. Como a
administração é do mesmo partido, ele é só uma correia de transmissão para dar
aval a decisões que vêm de cima e fazer propaganda de que há democracia e parti-
cipação. Mas se ele parar de funcionar, a sociedade não vai sentir nenhuma falta,
porque ele não tem mais nenhuma função. É como acontece também com o Orça-
mento Participativo. [Essas iniciativas] acabam servindo muito mais ao marketing
do poder do que a execução de um programa realmente democrático.

[Mudanças políticas significativas seriam necessárias para uma real participa-


ção popular no poder.] A coisa é muito profunda e complicada. Os conselhos
nasceram de um anseio popular, mas foram, de certo modo, aparelhados, e o
Estado ou os domina ou não e, com isso, eles têm pouco efeito. A razão disso é
que temos uma concepção de política, de poder, que está errada porque ela é
essencialmente autocrática. O PT, hoje, “aparelha” os conselhos, as ONGs e as
consultorias. A prática que o PT tem demonstrado não é diferente daquelas do
poder do PFL, do PMDB, ou mesmo do PV – que é o meu partido. Amanhã, eles
voltando ao poder, vão usar dessa prática porque a essência do poder é essa – uma
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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dominação em que o interesse coletivo e a liberdade são absolutamente secundá-


rios. É o poder pelo poder. Então teríamos que mudar muito... E, ao contrário do
que dizia o PT quando nasceu, não de baixo pra cima, mas de cima pra baixo.
Você pode até pensar em mudanças em virtude de pressão popular, o que eu
acho inviável... O sistema presidencialista não serve: o presidente da República é
quase um rei; o governador, um reizinho; e o prefeito também. O Poder Legislativo
nosso não existe, vive em função do Executivo. O Poder Judiciário também vive
em função do Executivo. Então temos um sistema político muito autocrático. Eu
sou defensor do parlamentarismo – que também não sei se daria certo –, mas é
uma forma de governo que talvez possibilitasse alguma forma de influência no
poder que não seja um poder autocrático, e sim mais compartilhado, entre parti-
dos diferentes, com idéias diferentes. No fundo, no fundo, isso seria a idéia dos
conselhos – convocar a sociedade civil para discutir –, o que, na prática, não
funciona, porque a ordem vem de cima.

[Valeria a pena continuar investindo em espaços institucionalizados de partici-


pação da sociedade civil como o Consea e outros conselhos?] O Consea de Minas
é o que nós já vimos, um fórum das entidades de segurança alimentar em Minas,
com uma figura carismática como Dom Mauro na liderança e numa disputa per-
manente com o governo, querendo o próprio Consea ser governo, mas fazendo
oposição e buscando formas de sobreviver. Isso é o Consea. Tem conselhos que
funcionam. Eu participo de mais conselhos. Participo, por exemplo, do Pró-Vida
- Proteção de Vítimas e Testemunhas. Aí o conselho não é paritário nem nada. Eu
sou a única pessoa que não é do governo nesse conselho. Represento a Pastoral
dos Direitos Humanos no Pró-Vida. Funciona esplendidamente bem! Há repre-
sentantes da Polícia Civil, da Militar, do Tribunal de Justiça, do Conselho de
Direitos Humanos, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Pastoral dos
Direitos Humanos, da Secretaria de Segurança Pública. Acho que falei todos os
conselheiros. Funciona, por uma razão muito simples: as pessoas que estão no
Pró-Vida, nesses três anos de funcionamento, são as mesmas desde o início. São
pessoas que se dedicam, e acham que o Conselho tem que funcionar. São todas
muito ocupadas, mas o Conselho jamais teve uma reunião sem quorum, e há duas
ou três reuniões por mês!
O conselho paritário, quando não tem poder deliberativo, quer buscar esse
poder – como é o caso do Consea. Se ele se ajustasse a ser um órgão consultivo, e
o poder público o aceitasse como consultivo e desse valor às suas sugestões, embo-
ra nem sempre concordando com elas, pode ser que funcionasse mais ou menos.
Hoje, ou é disputa pelo poder, ou é marketing. Os membros dos conselhos são
voluntários então, não tem “jeton”. Quando tem, é pior ainda, porque então,
vira emprego.
Os conselhos nacionais que o governo Lula está criando repetem essa experiên-
cia de Minas. Todos os conselhos nacionais, no fundo, têm ainda um outro com-
ponente que é a vaidade das pessoas. Os conselhos são instrumentos de marketing
[pessoal e governamental].
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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O programa Minas Sem Fome e o Prosan dentro dele, como eixo dos conflitos Estado -
Sociedade Civil nas questões de Sans
O programa Minas sem Fome é um dos programas “estruturantes” do Plano de
Ação Governamental – PPAG – para o período 2004–2007 e, nesse sentido, é um
dos programas prioritários do governo estadual. Mas isso não significa que vai
haver recursos para a sua execução: pode e deve haver a rubrica no orçamento
estadual, mas transformá-la em recursos financeiros reais é outra conversa. O Prosan
– Programa Mutirão de Segurança Alimentar e Nutricional - é um dos eixos do
Minas Sem Fome. Garantir isso e uma parcela dos recursos obtidos pelo Estado
junto ao MDS – Ministério do Desenvolvimento Social – consumiu enorme quan-
tidade de tempo e energia dos conselheiros e equipe do Consea entre o fim de
2003 e primeiro semestre de 2004, como está narrado no texto Participação Soci-
al e a Segurança Alimentar em Minas Gerais, escrito em agosto de 2004 para o
Projeto Mapas.
O Prosan tem sido uma prioridade de ação do Consea, considerando o contro-
le direto que o Conselho tem sobre ele e também pelo seu papel de ajudar o
“empoderamento” de entidades de base em muitos municípios de Minas, por
meio de projetos comunitários participativos de Sans.
O Prosan 2003, com uma verba de um milhão e setecentos mil reais, aprovou
203 projetos comunitários de Sans, e o Prosan 2004, com uma verba de quatro
milhões de reais, aprovou 479 projetos (dados de fevereiro de 2005). Já foram
aprovados quase quatro milhões de reais e repassados para as entidades locais, cerca
de três milhões. No Prosan 2003, 87% da verba foi usada para as atividades-fim: os
financiamentos dos projetos. Essa proporção subiu para 90% em 2004-05 (dados
de início de março). Os repasses da verba aprovada têm sido prejudicados por várias
situações locais, como entidades não conseguirem abrir contas bancárias, divergên-
cias entre membros das entidades proponentes após a aprovação do projeto, por
falta de documentação solicitada pelo comitê estadual, pela demora em enviar o
projeto e sua posterior aprovação, passando o tempo para o plantio, etc.
No seminário de monitoramento dos projetos de Prosan, acontecido no se-
gundo semestre de 2003, ficaram aprovadas visitas a 30% dos projetos, no míni-
mo, pelos comitês regionais do Prosan. Os projetos seriam sorteados e as visitas
teriam por base um roteiro de monitoramento de aspectos a serem observados e se
faria também um encontro regional com os representantes dos projetos. Na ver-
dade, essa proposta não está sendo cumprida: as comissões regionais e seus comi-
tês não dão conta de fazer isso. Faltam recursos e falta, sobretudo, tempo, porque
as pessoas atuam nas comissões e comitês de forma voluntária, tendo muitas ou-
tras atividades profissionais e sociais. Então, a equipe do Consea precisaria dar
um suporte para os comitês do Prosan. Foi então contratada uma pessoa, por
tempo determinado de quatro meses, para servir de assessor aos comitês do Prosan
nas tarefas de monitoramento e avaliação dos projetos em curso. O principal
interesse é fazer uma comparação entre o que foi planejado e o que está sendo
realizado, em cada um dos projetos da amostra de 30%: identificar os fatores
facilitadores e inibidores do processo.
Preocupações das equipes do Consea e da Cáritas (gestora do programa) para o
Prosan 2004: fazer monitoramento e avaliação dos projetos e do programa; cuida-
do especial com a prestação de contas. Preocupação com o papel do Tribunal de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Contas: capacitação dos comitês regionais e dos representantes do projeto pela


Cáritas. A prestação de contas só começa a partir de abril.
Neste segundo ano de implementação do Prosan, a equipe do Consea está
buscando uma avaliação do programa: o Prosan teve um sentido mais mobilizador
e pedagógico num dado momento ou terá um caráter mais permanente? Qual a
relação do programa com uma política estadual de Sans? Pelo acúmulo das dis-
cussões até agora, sem que nada tenha ainda sido definido ou formalmente enca-
minhado pelo Conselho, há a posição de não querer que o Prosan seja única e
exclusivamente um fundo de apoio a projetos comunitários. Na medida em que o
Prosan vai ficando mais conhecido nos municípios e comunidades, e como há
enorme carência por programas públicos de apoio às comunidades, como proje-
tos de desenvolvimento local, por exemplo, o Prosan vem atraindo vários seg-
mentos sociais para os quais não foi idealizado. Um exemplo é o dos acampamen-
tos e assentamentos de reforma agrária – um número enorme de associações de
assentamentos enviou projetos, quando este segmento tem um eixo específico
dentro do programa Minas Sem Fome, o PSA - Programa de Segurança Alimentar
nos Assentamentos, além dos programas existentes “no papel”, de apoio à refor-
ma agrária. Este afluxo pode ter várias causas: ou os programas federais ou esta-
duais não existem na prática, ou são muito burocráticos e difíceis, ou não são a
fundo perdido, como é o caso do Prosan. Outros segmentos sociais que manda-
ram projetos para o Prosan foram o das universidades e o das instituições filan-
trópicas das mais diversas – aquele setor que recebia convênios da área pública de
Assistência Social. Esses são segmentos que estão fora do foco do Prosan, que põe
ênfase nas entidades e associações de base comunitária.
O Prosan corre o risco de se tornar mais um fundo social para ser captado por
entidades mais ágeis, visando realizar de seus objetivos institucionais, sem nenhu-
ma preocupação com as premissas sociais e políticas do programa, tais como o seu
caráter de mobilização, de discussão e desenvolvimento participativo dos proje-
tos, com uma função político-pedagógica de capacitação para influir na constru-
ção de políticas públicas de Sans. A reação desses segmentos, e até mesmo de
membros dos comitês de algumas regiões, à não aprovação de projetos desses
segmentos foi muito forte, ameaçando entrar na Justiça contra a Cáritas.
Tendo em vista tais desenvolvimentos, o pessoal do Consea está pensando que
não dá para cortar esse fundo, sendo necessário manter o apoio às iniciativas
comunitárias locais de Sans. Devem se aperfeiçoar os métodos e os processos. Mas
se abriria outra frente, dentro do Prosan mesmo, num outro eixo, que começa a
ser desenhado e que Dom Mauro chama de projetos exemplares – projetos com
montante de recursos maior, por um período maior do que um ano, numa base
territorial maior (uma microbacia, por exemplo), com uma temática específica e
com uma metodologia de trabalho que fosse replicável para outras áreas e situa-
ções. Estão pensando em projetos que trabalhassem com os grandes temas ou
questões da segurança alimentar, por exemplo: educação alimentar e nutricional,
envolvendo múltiplas instituições e atores.
O convênio assinado entre os governos estadual e federal para o repasse entre da
verba federal para o programa Minas Sem Fome, do qual o Prosan faz parte, termina-
ria em maio de 2005, mas aditivo para a ampliação do prazo para novembro de 2005
foi assinando no dia 02 de abril passado, gerando momentos de grande tensão entre
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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membros das comissões regionais e dirigentes da Emater durante o Encontro Estadu-


al das CRSANS, que aconteceu em Belo Horizonte, entre 1º e 3 de abril de 2005.
Em março do 2005, tanto o Prosan como o PSA, dois dos três eixos do progra-
ma Minas Sem Fome, já haviam praticamente alocado toda a verba que lhes foi
disponibilizada, enquanto que a Emater só gastou seis dos 16 milhões que lhe
foram alocados, fora a aplicação financeira.
A Emater solicitou a prorrogação do prazo para novembro de 2005. A prorro-
gação do prazo dá um tempo para a Emater gastar o dinheiro que falta, mas
como Prosan e PSA já alocaram suas partes da verba, esses dois eixos de natureza
mais participativa e no caso do Prosan, sob controle do Consea, ficam sem di-
nheiro e sem ações. O Consea esperava que o MDS pedisse um parecer do Consea.
Então, o Consea pediria uma parte desses recursos para os dois eixos. Na primeira
plenária do ano, em fevereiro de 2005, os conselheiros votaram pela realocação
ou “descentralização” de dois milhões de reais da verba ainda não gasta do con-
vênio para o Prosan. O presidente da Emater não concordou, e o aditivo foi
assinado sem essa cláusula. Mas Dom Mauro e a equipe do Consea teriam conse-
guido com o Secretário de Segurança Alimentar do MDS, José Giácomo Baccarin,
os dois milhões solicitados pelo Conselho.
Assim, o Consea reverteu a situação, da pior para a melhor alternativa que
estava sendo discutida para o Prosan em 2005. Novo convênio só será assinado
após a conclusão deste, com término em novembro próximo. Isso dá fôlego ao
conselho para preparar e negociar nova proposta, visando 2006 e anos seguintes.
Seminário final de avaliação do Prosan: seria em fim de abril, mas pode ser
adiado em função do adiamento do programa para novembro.
Mas as tensões com a Emater não terminam por aí. O pessoal do Consea
questiona a não transparência da gestão do eixo I do Prosan, que não é sequer
discutido com uma comissão estadual do programa Minas Sem Fome que só exis-
te no papel: os três componentes funcionam como programas separados. Não há
monitoramento geral do programa como um todo e, com relação ao componente
I, não há controle social. Cada deputado federal indicou cinco municípios para
serem beneficiados pelo componente I.
Consultoria realizada por técnicos contratados pelo Banco Mundial, para avali-
ação dos programas “estruturantes” do governo de Minas, constataram a seme-
lhança e/ou semelhança de objetivos e ações entre os componentes I – executado
pela Emater - e II – Prosan, executado pelo Consea, em parceria com a Cáritas.
Ambos os eixos financiam pequenos projetos de hortas e lavouras comunitárias,
agricultura, etc. O que difere é a concepção e a metodologia. Mas do ponto de vista
do planejamento do Estado, os dois programas estão financiando ações semelhan-
tes. Há um certo questionamento, uma certa pressão, para a fusão dos dois compo-
nentes do Programa Minas Sem Fome. Isso vai ter que ser resolvido para a frente e
poderá exacerbar de novo as tensões entre Consea e governo do Estado – Emater.

A proposta de Lei Orgânica Estadual de Sans


Foi uma das resoluções aprovadas na II Conferência Estadual de Sans, realizada
em dezembro de 2003. Em 2004, foi formada uma comissão do Consea para
começar a preparar a minuta da lei. A proposta foi apresentada em agosto, no
encontro de Conseas estaduais ocorrido em agosto do ano passado, quando recebeu
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
33

sugestões e questionamentos, ajudando muito a preparação do projeto. O Consea


nacional, a partir de proposta da Conferência Nacional de Sans ocorrida em feve-
reiro de 2004, está também trabalhando um projeto de lei orgânica de Sans para
todo o país, com mais dificuldade. Minas decidiu puxar a proposta da lei estadu-
al independente das dificuldades no âmbito federal.
Algumas inovações da lei: formula um conceito geral de Sans (art. 2º); o Esta-
do passa a reconhecer formalmente a segurança alimentar como um direito prote-
gido pelo Poder Público (art. 3º); estabelece que a política estadual de Sans deve
ser formulada por meio de Plano Estadual de Sans no âmbito do PPAG – o Plano
Plurianual de Ação Governamental (art. 7º), que contempla eixos específicos (como
o apoio à reforma agrária, a ações voltadas para o abastecimento urbano, etc.),
deve ser participativo, integrando as contribuições da sociedade civil; estabelece
que o Plano deve ser executado por meio de um sistema estadual de Sans compos-
to de pessoas naturais, pessoas jurídicas – públicas e privadas – e notadamente do
Consea/MG, da Coordenadoria Geral da Política Estadual de Segurança Alimen-
tar e Nutricional Sustentável e dos Conselhos Municipais de Segurança Alimentar
e Nutricional Sustentável. As Comissões Regionais de Sans fazem parte do Consea.
Na lei, o Consea mantém seu papel de formulador e controlador das políticas de
Sans, e deixa de ter a função de coordenação executiva de um programa como
acontece com o Prosan, que acontece como parte do processo de construção do
processo social em torno de Sans em Minas Gerais.
A lei prevê uma coordenadoria geral de Sans vinculada à Secretaria de Gover-
no, coordenadora do plano estadual e articuladora dos vários programas e ações
estaduais de Sans desenvolvidas pelo governo do Estado. O projeto de lei criou
um órgão sem criar os cargos para o pessoal do Estado lotado ali. Novos cargos
públicos só podem ser criados por lei. Então o governo mandará uma emenda
criando cargos para esse novo órgão.
A política estadual de Sans deve ser financiada com recursos orçamentários,
não meros fundos de apoio e ser submetida ao controle social.
A proposta foi formalizada e o governo estadual, tendo como interlocutor o
antigo secretário de Planejamento, Antonio Junho Anastasia, que atuou como
secretário da comissão para a formulação do projeto e não impôs qualquer difi-
culdade para seu envio para a Assembléia Legislativa, em dezembro de 2004. O
procurador-geral de Justiça do Estado foi o presidente dessa comissão. Nesse sen-
tido, o Consea de Minas conseguiu o aval do governo Aécio Neves para uma
política permanente do Estado para a questão da segurança alimentar. A primeira
audiência pública na Assembléia Estadual de Minas está prevista para o dia 28 de
abril. A expectativa é que a lei seja aprovada até meados de junho. A lei pode até
ser aprovada, mas conseguir que ela seja efetiva, é outro processo social de luta.
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34

CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL (CDES): ASPECTOS DE UM ESPAÇO


PÚBLICO DE PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE EM DECISÕES DO ESTADO1

Daniel Bin
Mestre em administração pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR) e professor do curso de administração
da Universidade de Brasília (UnB).
dnlbin@yahoo.com

Fábio Vizeu
Mestre em administração pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR) e professor do curso de administração
do Centro Universitário Positivo (Unicenp) Curitiba.
vizeu@unicenp.br

1. INTRODUÇÃO
Mesmo constituída em uma época remota, a democracia é considerada como um
modo deliberativo e político que caracteriza fortemente o nosso tempo. Erigida
como a conseqüência dos valores libertários da cultura liberal moderna, a demo-
cracia se estabeleceu em nossa era com a promessa de justiça e bem-estar social
para todos (Rémond, 1997).
Entretanto, o atual panorama político, social e econômico dificulta sobrema-
neira o estabelecimento da democracia de forma idêntica a que foi concebida em
sua idéia original, conforme o pensamento grego, de um governo do povo, orien-
tado por valores como “autogoverno, igualdade política, liberdade, justiça, parti-
cipação do cidadão comum no governo da cidade independentemente de sua ren-
da ou posição social” (Costa, 2002, p. 90). A dificuldade estrutural, causada pela
complexidade das sociedades governadas pelo estado burocrático, leva a uma cres-
cente desnaturação do núcleo original do conceito, especialmente quanto à viabi-
lidade da participação direta.
Como alternativa à complexidade operacional subjacente a democracia direta
– principalmente nas sociedades de massa – e aos limites que o modo representa-
tivo impõe ao exercício efetivo da democracia, aumenta o número de iniciativas
de participação do cidadão nas coisas do estado. Por vezes, isso ocorre por inicia-
tiva da própria sociedade, em outras, por disposições institucionais desenvolvidas
no âmbito do estado. Gostaríamos de nos deter no segundo caso, ou seja, dos
espaços criados e institucionalizados sob a chancela governamental. Mais especi-
ficamente, vamos restringir esta análise ao caso do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social (CDES) da Presidência da República, constituído no início
do governo Lula.
O presente trabalho tem como objetivo descrever e analisar o CDES desde a
sua constituição até os dias atuais, considerando seus aspectos formais e seu modo
de funcionamento, principalmente no que se refere à temática da participação da
sociedade civil em decisões do estado.

1
Trabalho elaborado para o projeto Monitoramento Ativo da Participação da Sociedade (Mapas), a pedido do Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
35

Para isso, este texto segue um plano expositivo subdividido em cinco partes
fundamentais: primeiramente, além do objetivo do trabalho, são descritos, rapi-
damente, os procedimentos metodológicos adotados; em seguida, o texto trata
do histórico e da caracterização formal do CDES; o terceiro tópico visa analisar o
modo de funcionamento do Conselho e a repercussão de suas ações no governo e
na sociedade; na seqüência, procura-se analisar o CDES como espaço público de
participação da sociedade civil; finalmente, concluímos o texto sintetizando as
principais evidências obtidas.

1.1 Procedimentos metodológicos


Os procedimentos empregados na elaboração deste trabalho foram de natureza
descritivo-qualitativa. Em relação ao formato operacional da coleta dos dados
empíricos, utilizamos dois tipos de fontes: documentos e entrevistas semi-estruturadas.
Os documentos consultados envolveram, basicamente, legislação sobre o CDES,
atas de reuniões, cartas de concertação,2 matérias jornalísticas, programa de go-
verno, entre outros dados disponíveis nos sites3 do Conselho e da Secretaria Espe-
cial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (Sedes) da Presidência
da República.4
As entrevistas foram realizadas com membros – conselheiros e suplentes – do CDES
e com um funcionário da Sedes, selecionados de modo intencional. Para essa seleção,
foram consideradas as oportunidades de acesso, a disponibilidade para prestar infor-
mações e a receptividade ao trabalho por parte dos potenciais entrevistados. À exce-
ção da entrevista com o servidor da Sedes, todas as demais tiveram seu conteúdo
gravado sob autorização dos entrevistados. Adicionalmente, o primeiro autor, Daniel
Bin, teve a oportunidade de participar, na condição de pesquisador, de uma das reuni-
ões do Grupo de Acompanhamento de Políticas Sociais, na qual foi possível obter
informações de um dos conselheiros presentes e observar a dinâmica do grupo.
A análise dos dados levantados foi orientada para cobrir roteiro previamente
definido pelo demandante do trabalho, procurando-se, com isso, descrever o CDES
desde o seu início até a atualidade. Salientamos que toda descrição e análise fun-
damentam-se em dados concretos a que se teve acesso. Durante o trabalho de
análise, tomou-se o cuidado de confrontar informações passíveis de verificação.

2. HISTÓRICO E CARACTERIZAÇÃO DO CDES


Nesta seção são abordados aspectos da origem e constituição do CDES, bem como
algumas de suas principais características, com foco nos aspectos formais. Para
tanto, são descritos a origem da proposta do CDES e como o mesmo foi idealiza-
do; a composição e as representações ali presentes; algumas características estrutu-
rais e de funcionamento; principais temas tratados; evolução desde a sua criação
e, finalmente, alguns exemplos de conselhos estrangeiros.

2
Concertação significa acordo entre duas ou mais pessoas ou entidades para conseguir determinado objetivo; pacto;
convenção; união (Dicionário da Língua Portuguesa On-line. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/
definir_resultados.aspx>. Acesso em: 9 out. 2004. Segundo Sofia e Silveira (2003), o termo foi inspirado no processo
de negociação entre o governo português e a sociedade civil após a revolução dos Cravos (1974), quando o país
retomou a democracia.
3
Os endereço dos sites são <https://www.cdes.gov.br/> (CDES) e <http://www.planalto.gov.br/cdes/> (Sedes).
4
A Sedes, que funciona junto à Presidência da República, tem dentre suas atribuições coordenar e secretariar o
funcionamento do CDES.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
36

2.1 Origem da proposta


A origem do CDES remonta à campanha da eleição presidencial de 2002, quando
o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT),
lança a proposta de criação de um conselho com vistas a construir um novo con-
trato social a partir do diálogo entre diversos segmentos da sociedade brasileira.
De acordo com Ruediger e Riccio (2004), a criação de mecanismos políticos de
participação da sociedade civil era um dos principais pontos da plataforma do
candidato. No seu programa de governo constava:
O Conselho de Desenvolvimento Social [...] terá como atribuição
coordenar, definir metas e desenhar instrumentos de incentivos para
a estratégia do governo federal de inclusão social. A partir do
estabelecimento de metas sociais, o Conselho atuará na
implementação articulada e integrada dos programas nacionais de
enfrentamento da pobreza, do desemprego, da desigualdade de
renda e das carências educacionais (Partido dos Trabalhadores,
2002, p. 41).

Segundo Vieira (2003), a idéia de um conselho para discutir os grandes temas


do país passou a fazer parte das propostas do PT em meados de 2002 por sugestão
do assessor internacional do partido, Luis Favre. A idéia, prossegue a jornalista,
ganhou força e encontrou ressonância especialmente entre empresários queixosos
da pouca receptividade por parte do então presidente Fernando Henrique Cardo-
so às suas reclamações.
Como fonte de inspiração, além de exemplos internacionais, de algum modo a
origem do CDES também estaria ligada à figura do orçamento participativo, um
dos mecanismos de gestão pública fortemente associados à imagem do PT. O
programa de governo do partido na campanha presidencial de 2002 mencionava
o orçamento participativo, sugerindo que ele deveria ser estendido à esfera fede-
ral. Lançou-se aí o compromisso de estabelecer um meio de interlocução –
logicamente distinto do orçamento participativo – entre governo e sociedade ci-
vil, que se materializou na figura do CDES.
Em seu programa, o partido se comprometia, num eventual governo, a “es-
timular a ampliação do espaço público” (Partido dos Trabalhadores, 2002, p.
3). Demonstrava-se, à época, uma crença de que somente o envolvimento e a
participação da sociedade a partir de um “novo contrato social” poderiam tra-
zer mais justiça econômica e social para o Brasil. O já citado programa de gover-
no do PT sustentava:
Só um novo contrato social que favoreça o nascimento de uma
cultura política de defesa das liberdades civis, dos direitos humanos
e da construção de um País mais justo econômica e socialmente
permitirá aprofundar a democratização da sociedade, combatendo
o autoritarismo, a desigualdade e o clientelismo. Na busca de um
novo contrato, a mobilização cívica e os grandes acordos nacionais
devem incluir e beneficiar os setores historicamente marginalizados
e sem voz na sociedade brasileira. Só assim será possível garantir, de
fato, a extensão da cidadania a todos os brasileiros (Partido dos
Trabalhadores, 2002, p. 2).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
37

As propostas de formatos diferentes para o conselho que à época se delineava,


e que acabou sendo criado no início do governo Lula, não existiram. Fato confir-
mado por um servidor da Sedes que lá trabalha desde a criação da Secretaria e do
próprio CDES.

2.2 Idealização e constituição


Inicialmente, cabe sublinhar que o emprego do termo idealização refere-se à ma-
neira como foi concebido e estruturado o CDES e ao seu modo de funcionamen-
to, principalmente em termos formais. Logo, não se está dizendo exatamente
como funciona o Conselho (ver item 3.1). Não obstante, os aspectos formais em
qualquer organização tendem a ser orientadores das dinâmicas empreendidas nas
situações reais.
Constituído no início do governo Lula – criado em janeiro e instalado em feve-
reiro de 2003 –, o CDES é um espaço público não-estatal que atua como órgão
consultivo e de assessoramento do presidente da República. Para um dos conselhei-
ros entrevistados, o CDES “foi pensado pelo [presidente] Lula como realmente um
fórum, um momento de interlocução entre os diferentes setores na sociedade”. Se-
gundo outro entrevistado, servidor da Sedes, o CDES visa que as decisões do presi-
dente da República sejam baseadas num caráter amplo e plural, obtido por meio da
participação da sociedade. É, no entendimento do mesmo informante, uma manei-
ra de diminuir um dos problemas típicos da democracia representativa, que seria o
fato de, após a eleição, o governante tender a decidir de forma distanciada da popu-
lação. O Conselho possibilitaria resgatar a democracia, naturalmente limitada pelo
sistema representativo, porque procura “ouvir a sociedade” – que teria a oportuni-
dade de participar de decisões do governo – e permite ao governo ficar atento sobre
o que pensam e desejam diversos segmentos da sociedade civil. Nas palavras de
Fleury (2003 b), o CDES pode ser visto como um meio de comunicação tanto no
sentido horizontal quanto no vertical, sendo este entre governo e sociedade civil, e
aquele entre atores sociais que ali se encontram.
Em termos normativos – legislação –, ao CDES compete:
I. assessorar o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes
específicas, voltadas ao desenvolvimento econômico e social, produzindo indi-
cações normativas, propostas políticas e acordos de procedimento;
II. apreciar propostas de políticas públicas e de reformas estruturais e de desen-
volvimento econômico e social que lhe sejam submetidas pelo Presidente da
República, com vistas à articulação das relações de governo com representan-
tes da sociedade civil organizada e a concertação entre os diversos setores da
sociedade nele representados. (Brasil, 2003 a, grifo nosso)

Como se vê, o CDES tem função consultiva, e não deliberativa. Logo seus
encaminhamentos não necessariamente se transformam em ações do governo, ca-
bendo a este a faculdade de acatar ou não tais proposições. Porém, cabe destacar
que costuma haver espaço para que o Conselho se manifeste com posição própria
sobre qualquer assunto que lhe seja submetido ou que ele próprio venha a optar
por discutir. Nesse sentido, percebe-se uma preocupação na estruturação da dinâ-
mica de funcionamento do CDES em não deixar nenhum assunto levantado por
qualquer conselheiro(a) sem algum tipo de tratamento.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
38

2.3 Composição e representatividade


O CDES é uma esfera pública formada majoritariamente por membros da soci-
edade civil, cuja composição lhe confere um perfil “policlassista”, pois reúne
empresários(as), trabalhadores(as), intelectuais, e representantes dos movimen-
tos sociais e do terceiro setor (Sedes, 2003 d). Tem por objetivo articular diver-
sas representações da sociedade civil por meio de conselheiros(as) que represen-
tam diversos segmentos socioeconômicos (Sedes, 2003 b). É composto por 90
membros de diversos setores da sociedade civil, 12 ministros e presidido pelo
presidente da República (Brasil, 2003 a).
A constituição do CDES parece ter sido revestida de algumas preocupações
que o aproximam de uma lógica participativa. Aspectos desse tipo de democra-
cia aparecem com certa clareza, a pluralidade de representação é uma das carac-
terísticas marcantes, apesar da distribuição dos membros do Conselho conside-
rar a esfera de atuação (ver tabela 1). No Termo de Referência do CDES, consta
ser ele “um órgão majoritariamente da sociedade civil, [...] que relaciona o [Po-
der] Executivo com distintas representações do empresariado, do terceiro setor,
dos movimentos sociais e do mundo do trabalho” (Brasil, 2003 b).
Segundo o governo, na lógica empregada para a composição do CDES:
[...] buscou-se a nomeação de Conselheiros que contemplam as
entidades empresariais, de trabalhadores, do terceiro setor e dos
movimentos sociais, de base territorial nacional, bem como
personalidades expressivas do meio intelectual, respeitadas nacio-
nalmente, com prévia consulta sobre o seu compromisso de
efetivamente participar das reuniões do Conselho em tela
(Sedes, 2003 d).

Sobre a questão da representatividade, a presença majoritária de membros de


fora do governo pode ser vista como uma tentativa de dar ao Conselho um
caráter pluralista e de participação da sociedade civil. Por outro lado, há alguns
aspectos que parecem contrariar essa idéia: dentre os 90 conselheiros(as) titula-
res, metade é ligada à esfera do capital, ou seja, ao segmento empresarial; e em
termos geográficos, proporção similar é a de representantes oriundos de uma
única Unidade da Federação, o estado de São Paulo, que é a mais rica do país.
Sobre o primeiro aspecto, um dos conselheiros, se reportando à criação do CDES,
disse imaginar que “num momento difícil em que Lula já tenha o apoio dos
movimentos sociais, vamos dizer, da esquerda que o elegeu, o Conselho seria o
lugar para ele obter o apoio do empresariado”.
Na seqüência, a tabela 1, na qual apresentamos a distribuição dos(as)
conselheiros(as) de acordo com a sua esfera de atuação.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
39

Distribuição, por esfera de atuação, dos(as) conselheiros(as) do CDES representantes da


sociedade civil (2004)

ESFERA* QUANTIDADE PARTICIPAÇÃO


S/ O TOTAL

Capital 45 50%

Personalidades 14 16%

Social 18 20%

Trabalho 13 14%

Total 90 100%

Fonte: Presidência da República/Sedes. Conselheiros. Disponível em: <https://www.planato.gov.br/cdes/>.


Acesso em: 30 out. 2004.
(*) Capital: envolve, basicamente, representantes de empresas e de associções empresariais.
Social: representantes de entida des religiosas, culturais, profissionais e de movimentos sociais.
Personalidades: são, majoritariamente, professores universitários.
Trabalho: envolve, basicamente, representantes sindicatos e associações de sindicatos.

Quanto à forma de seleção dos(as) conselheiros(as), a escolha dos nomes cou-


be ao presidente da República a partir da análise de aproximadamente 400 nomes
sugeridos por diversos segmentos sociais (Sedes, 2003 b, 2003 d). Entretanto, essa
forma de escolha está em discussão. Segundo o secretário5 da Sedes, ministro Jaques
Wagner, está em debate “se seria melhor ter os integrantes indicados por seus
segmentos sociais, como é na Europa, ou pelo presidente [da República], como é
no Brasil” (Tribuna da Imprensa, 2004, grifo nosso). O ministro acredita que o
sistema europeu “tende a ter um reconhecimento mais rápido da sociedade” (Tri-
buna da Imprensa, 2004).

2.4 Aspectos formais da estrutura e do modo de funcionamento


Os fóruns de discussão do Conselho são: o Pleno, que reúne todos os seus mem-
bros e é a composição responsável por definir os posicionamentos do Conselho
sobre os temas em discussão; os grupos temáticos, cada um deles com prazo deter-
minado de existência, que visam propor pareceres ou elaborar propostas sobre
assuntos em tramitação no CDES; e os grupos de acompanhamento, sem prazo
determinado de existência, que têm a atribuição de acompanhar temas específi-
cos. Além disso, são realizados, quando necessários, diálogos regionais e colóqui-
os para se discutir temas específicos ou que não sejam considerados como perti-
nentes para discussão nos demais fóruns.
Os encaminhamentos definidos pelo CDES, todos destinados ao presidente da
República, são formalizados e têm cada um deles um dos seguintes indicadores de
posicionamento: consenso; recomendação, quando for um entendimento da mai-
oria dos(as) conselheiros(as); ou sugestão, quando for um entendimento de
alguns(mas) dos(as) conselheiros(as). A atribuição desse indicador não se dá por
votação, e sim por meio da interpretação do secretário executivo do CDES, papel
desempenhado pelo secretário da Sedes.

5
O secretário da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social tem status de ministro. Cabe a
ele a função de secretário executivo do CDES.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
40

As reuniões do Pleno do CDES são abertas pelo secretário da Sedes, com a


presença do presidente da República. Este, porém, não costuma participar de
toda a reunião, o que, segundo nosso informante da Sedes, já foi objeto de
reclamações por parte de alguns membros do CDES. Como reflexo, informou o
mesmo entrevistado, na sétima reunião, realizada em maio de 2004, o presiden-
te Lula permaneceu por mais tempo do que em outras ocasiões e ouviu as falas
dos três conselheiros escalados para se pronunciarem nesse dia.
A pauta de discussões do Conselho pode ser sugerida pelo presidente da Repú-
blica ou pelos(as) próprios(as) conselheiros(as), que podem fazê-lo de forma indi-
vidual ou em grupo. Assim, não se discute somente assuntos definidos pelo presi-
dente ou pelo governo. Entretanto, o decreto que regulamenta a composição e o
funcionamento do CDES dá algumas orientações sobre o que será tratado em
cada reunião:
Da pauta das reuniões ordinárias do CDES constarão, necessaria-
mente, referências sobre os seguintes assuntos:
Iº - apreciação e decisão sobre a ata da reunião anterior;
IIº - tema político-administrativo relevante a ser exposto por
Ministro de Estado, em até trinta minutos;
IIIº - tema para debate e discussão, a ser apresentado por Ministro de
Estado ou autoridade delegada, com votação da agenda proposta;
IVº - comunicações por integrantes do Conselho, que serão encami-
nhadas ao Presidente do CDES quando apresentadas formalmente.
(Brasil, 2003 a)

Antes de se abrirem as discussões no Pleno, um tema específico da pauta é


tratado. Esse tema é apresentado pelo ministro responsável pelo assunto dentro
do governo. Na seqüência, três conselheiros(as) têm a oportunidade de se mani-
festar sobre o mesmo tema. Após essas três intervenções, o ministro temático reto-
ma a palavra para concluir o assunto procurando responder aos(às)
conselheiros(as). Os(as) três conselheiros(as) são indicados(as) em forma de rodí-
zio em cada uma das reuniões. Assim, todos(as) terão a oportunidade de se mani-
festar em alguma reunião.
Finalmente (não mais ao ministro temático, mas ao Pleno do CDES), os(as)
demais conselheiros(as) podem se manifestar sem que haja qualquer limitação de
quantidade de pronunciamentos. Para um funcionário da Sedes, esse é um dos
aspectos que requer a habilidade do coordenador da reunião – secretário da Sedes
– na organização do debate, afinal “se todos os 90 resolverem falar fica inviável”.
Dentro do Conselho não há qualquer tipo de hierarquização, de tal forma que
as autoridades do governo, como ministros e o próprio presidente da República,
têm uma postura de ouvir o que os demais têm a dizer. Disse um entrevistado: “Às
vezes eu até acho que se discute demais; eu penso que em algumas situações deve-
ria decidir de uma vez”.
Além do Pleno, há a figura do grupo temático, que, na medida das necessida-
des, o CDES pode instituir com o objetivo de propor pareceres ou elaborar pro-
postas sobre assuntos em tramitação no Conselho (Sedes, 2003 d). Em seguida,
tais pareceres ou propostas são discutidos pelo CDES para então, preferencial-
mente, encontrarem consenso acerca dos pontos polêmicos (Sedes, 2003 b).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
41

Cada um dos grupos temáticos, composto por dez conselheiros(as), é coorde-


nado por um(a) integrante da Administração Pública Federal, designado(a) pelo
secretário executivo do CDES – secretário da Sedes –, e tem como relator(a) uma
pessoa indicada pelo ministro da área pertinente ao tema em discussão (Brasil,
2003 a). Segundo um informante da Sedes, esse mesmo ministro instala o grupo,
porém, não participa das suas reuniões, mediadas por um(a) funcionário(a) da
Sedes. Apesar da ligação com a administração pública, esse(a) mediador(a) não
tem, segundo o entrevistado, a função de representar o governo. Ele concorda que
é uma tarefa difícil e, por isso, requer um esforço considerável de distanciamento
e isenção. Ele nos relatou que funcionários(as) da Sedes realizaram cursos de
capacitação para a atividade de mediação.
O grupo temático é uma figura da estrutura do CDES que merece destaque por ser
um espaço de discussão onde, efetivamente, as análises são aprofundadas para poste-
rior apreciação por parte do Pleno. Aspecto importante do formato pretendido é que,
apesar de existir uma coordenação formal por parte de membro do governo com uma
série de atribuições de ordem burocrática, a idealização dessa coordenação traz aspec-
tos indicativos de valorização da lógica participativa de funcionamento.
As normas de funcionamento desses grupos estabelecem que ao(à) mediador(a),
que é também membro do governo, cabe: “dirigir os trabalhos do Grupo Temático
durante as suas reuniões, ficando-lhe vedadas manifestações pessoais sobre temas
em debate; organizar a ordem do dia com a colaboração do Relator, ouvido [sic] os
membros do Grupo Temático; zelar pelo prestígio de todas as intervenções, encami-
nhando as sugestões e propostas apresentadas nos debates, de forma consensual ou
não, à deliberação do Pleno do CDES” (Sedes, 2003 c, grifos nossos). Em termos da
orientação burocrática de funcionamento do grupo, esse(a) mediador(a) tem atri-
buições como: “conceder ou negar a palavra aos Conselheiros e Convidados, fazen-
do observar a ordem interna do Grupo Temático; avisar, com antecedência, o térmi-
no da intervenção do orador, quando seu tempo estipulado estiver para se esgotar
ou quando tiver sido esgotado” (Sedes, 2003 c, grifos nossos).

2.5 Principais temas tratados


Seguramente, os temas abordados pelo CDES que tiveram maior expressão na socie-
dade e na imprensa, seja pela complexidade, pelas polêmicas suscitadas ou mesmo
pela relevância para o país, foram as reformas da previdência e a tributária. Essas
foram analisadas pelo Conselho já nos primeiros meses de sua existência. Em abril de
2003, o Pleno do CDES aprovou relatórios com os consensos, as recomendações ou
sugestões acerca dessas reformas, que, então, foram submetidas ao Congresso Nacio-
nal. Em junho de 2003 foram aprovados os relatórios sobre a reforma sindical e
trabalhista e sobre o Plano Plurianual 2004-2007. Além desses assuntos, ao longo de
quase dois anos de existência o CDES discutiu temas relacionados às medidas para a
retomada do crescimento, ao projeto de parcerias público-privadas, bem como às
políticas econômica, industrial, ambiental e habitacional do governo federal.
Analisando documentos do CDES, em especial as cartas de concertação6, po-
demos citar os seguintes temas, assim distribuídos cronologicamente:

6
Carta de concertação é o documento emitido após cada uma das reuniões do Pleno do CDES em que se evidencia a
posição do Conselho sobre os temas em questão. É encaminhada ao presidente da República e o seu conteúdo é público.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
42

Na primeira reunião, em fevereiro de 2003, discutiu-se o papel do CDES como


um espaço de construção de um novo entendimento nacional, que teria como
ponto de partida a recuperação do estado, que se iniciaria pelas reformas traba-
lhista, previdenciária e tributária (CDES, 2003 a, 2003 f, 2003 g).
Na segunda reunião, em março do mesmo ano, foi aprovado o relatório do
CDES sobre a reforma da previdência. Além disso, o Pleno discutiu a necessidade
de o país optar pelo crescimento como condição para enfrentar a exclusão social
(CDES, 2003 d, 2003 i).
A terceira reunião, em junho de 2003, teve como pauta o processo de discus-
são do Plano Plurianual 2004-2007 e a definição de fundamentos econômicos
para a construção de um novo contrato social baseado no crescimento sustenta-
do, na geração de empregos e na distribuição de renda (CDES, 2003 e, 2003 j).
Foi uma reunião com grande repercussão em função de acaloradas discussões so-
bre a política econômica do governo.
A quarta reunião, em setembro de 2003, marcou certa mudança de postura do
CDES. Diferentemente das três primeiras – voltadas a diagnósticos para a forma-
ção de conhecimento e diálogo –, se propôs a apontar caminhos possíveis para o
enfrentamento da crise pela qual passava o país. O CDES sugeriu que se adotas-
sem medidas de avanço na transição para um novo eixo de política econômica,
principalmente reivindicando investimentos públicos que possibilitassem o desen-
volvimento. Também foram formulados questionamentos ao ministro da Fazen-
da sobre a política econômica, o contingenciamento de recursos por parte do
governo, as percepções sobre o Brasil no cenário econômico mundial e a reforma
tributária (CDES, 2003 b, 2003 g).
A quinta e última reunião de 2003, ocorrida em dezembro, tratou das alterna-
tivas para um novo contrato social, baseado no debate e na negociação democrá-
ticos, visando o crescimento com desenvolvimento, a geração de emprego e a
inclusão da maioria excluída. Houve apresentação, por parte do governo, sobre
política industrial tecnológica e de comércio exterior, dos balanços da política
monetária e da política econômica do ano de 2003 (CDES, 2003 c, 2003 h).
A sexta reunião, em março de 2004, discutiu assuntos como o projeto Brasil
em Três Tempos: Visões do País em 2007, 2015 e 2022, que tem por objetivo
construir um planejamento estratégico governamental. Também se falou sobre
política industrial, tecnológica e de comércio exterior, com destaque para as áreas
da indústria que o governo considerou estrategicamente prioritárias na elabora-
ção dessa política (CDES, 2004 c, 2004 d).
A sétima reunião, em maio de 2004, contou com a presença do ministro da
Fazenda para o debate sobre a questão do desenvolvimento econômico. Também
foram discutidos assuntos como dívida pública e tributação (CDES, 2004 b).
A oitava reunião,7 em agosto, foi quase toda destinada à apresentação, por
parte do governo, e a questionamentos, por parte de conselheiros(as) sobre o novo
modelo de regulamentação do setor elétrico brasileiro (CDES, 2004 a).

7
Até o momento da conclusão deste texto, aconteceram dez reuniões do Pleno do CDES, porém, estão disponíveis no site
da Sedes as atas das oito primeiras.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
43

Percebe-se que há grande diversidade de assuntos abordados pelo CDES, o que


não poderia ser diferente em se tratando de um fórum cuja pauta gira em torno
do tema “desenvolvimento econômico e social”. Mas uma questão parece mere-
cer atenção especial em diversas reuniões do CDES e de alguns de seus outros
fóruns de discussão: a política econômica do governo federal, com destaque para
a taxa de juros básicos da economia. Sobre isso, o CDES tem sido, de algum
modo, mais um espaço de pressão para a queda dos juros domésticos. Destacamos
a terceira reunião do Pleno do CDES, que, por meio da terceira carta de concertação
externou a preocupação do Conselho com a questão ao dizer que a “gradativa
redução nas taxas de juros [...] deve iniciar o quanto antes” (CDES, 2003 j).

2.6 Evolução e alterações ocorridas


Em termos de composição, o CDES se manteve relativamente estável desde a
sua criação. Inicialmente, em 12 de fevereiro de 2003, foram designados(as) 82
conselheiros(as) representantes da sociedade civil para compor o Conselho. Em
11 de junho de 2003, mais oito se juntaram ao CDES, perfazendo o total de 90
representantes da sociedade, quantitativo atual (Brasil, 2003 b, 2003 c). Nesses
quase dois anos de existência do CDES, 79 dos(as) integrantes do conselho, ou
seja, aproximadamente 90% dos(as) conselheiros(as) designados(as) naquelas duas
ocasiões, permanecem até os dias de hoje.
Cabe destacar que as mudanças na composição do CDES ocorreram de modo
que as proporções calculadas pelo critério de esfera de atuação – capital, social,
trabalho, personalidades (ver tabela 1) – se mantiveram praticamente estáveis
durante todo o período, com a preponderância de representantes ligados às em-
presas e associações empresariais.
Com relação aos objetivos do CDES, parece não ter havido grandes mudan-
ças. Entretanto, se compararmos a idéia original explicitada no programa de
governo do atual presidente da República, ver-se-á que, diferente daquela con-
cepção, o Conselho foi constituído a partir de uma idéia mais ampla. O progra-
ma de governo do então candidato Lula declarava a necessidade de um conselho
que pudesse pensar em políticas voltadas para questões específicas como “inclu-
são social”, “metas sociais”, “enfrentamento da pobreza”, “desemprego”, “de-
sigualdade de renda” e “carências educacionais” (Partido dos Trabalhadores,
2002, p. 41). Essas questões estão presentes nas discussões do CDES, porém a
explicitação da prioridade pelas classes mais pobres que constava na idéia origi-
nal agora dá lugar a um objetivo formal do CDES de promover a concertação
nacional para a realização de um novo contrato social entre os diversos segmen-
tos e as diversas classes sociais capaz de promover o desenvolvimento econômico
e social.
Ainda sobre a questão dos objetivos, chama atenção a opinião de dois conse-
lheiros, não em relação à mudança, mas ao seu cumprimento. A ata da sexta
reunião ordinária do Conselho registra a afirmativa do conselheiro Antoninho
Trevisan, vinculado à esfera do capital, de que “no primeiro ano o CDES não
conseguiu cumprir sua missão, pois o Brasil não cresceu e o desemprego aumen-
tou”, entendimento corroborado por um de seus pares, o conselheiro José Moroni,
que ainda destacou “o pequeno retorno dos acordos feitos neste espaço” (CDES,
2004 c).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
44

A respeito do modo de funcionamento, de acordo com um entrevistado inte-


grante da Sedes, o início do CDES foi um tanto difícil em função da pouca experi-
ência brasileira nesse tipo de atividade, muito embora o partido do presidente da
República (PT) tivesse certa tradição em utilizar o formato colegiado de decisão.
Um dos fatos relevantes na evolução do Conselho certamente foi, após aproxi-
madamente um ano de sua existência, a troca do secretário da Sedes,8 o que trou-
xe algumas modificações na forma de condução do CDES. Segundo diversos en-
trevistados, o secretário anterior tinha postura mais rígida, por exemplo, na con-
dução das reuniões, principalmente no que se referia ao tempo de fala. O atual
secretário parece ser um pouco menos controlador em tal aspecto.
Sobre a influência do CDES nas decisões de governo, não se observou mudan-
ça substancial. Segundo um entrevistado, servidor da Sedes, essa influência foi
relevante já desde o começo do Conselho. É uma questão um tanto controversa,
uma vez que entre os conselheiros que tivemos a oportunidade de ouvir paira o
sentimento de que as deliberações do CDES não encontram eco suficiente no
governo a ponto de se transformarem em ações (ver item 3.3). Entretanto, um
fato deve ser visto com atenção: atualmente, diferentemente do primeiro ano de
existência do CDES, o secretário da Sedes faz parte do núcleo estratégico do go-
verno, o chamado “núcleo duro”, formado pelo presidente da República, pelos
ministros da Fazenda, chefe da Casa Civil, chefe da Secretaria Geral da Presidên-
cia da República, chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estra-
tégica da Presidência da República, chefe da Secretaria de Coordenação Política e
Assuntos Institucionais e, agora, pelo secretário da Secretaria Especial do Conse-
lho de Desenvolvimento Econômico e Social.
Outro ponto a destacar acerca da evolução do CDES foi o temor, durante as
discussões sobre sua criação, de que ele pudesse atuar como um “substituto” ou
mesmo uma “sombra” do Poder Legislativo, possibilidade sempre descartada pelo
governo. Passado o período inicial, não mais se fala sobre o assunto, e os papéis
de cada um – CDES e Legislativo – parecem suficientemente cristalizados.

2.7 Exemplos internacionais de conselhos


Segundo Fleury (2003 b), diferentemente de seus congêneres típicos da
socialdemocracia européia, criados com o objetivo de organizar o capitalismo
compatibilizando interesses do capital e do trabalho para o crescimento e distri-
buição do excedente, o CDES surgiu como alternativa ao esgotamento do pacto
corporativo que dominou o estado moderno brasileiro, no qual o poder sempre
fora exercido de forma concentrada e excludente.
Mesmo assim, de acordo com Vieira (2004), o modelo adotado pelo CDES
tem suas origens no modelo francês. O Conseíl Économique et Social (CES), cri-
ado em 1958, é considerado a terceira mais importante assembléia francesa e tem
por finalidade a aproximação e o diálogo entre os diferentes grupos nele represen-
tados (Sedes, 2003 a). O conselho francês se reúne duas vezes por mês e elabora

8
Na primeira reforma ministerial do governo Lula, no fim de janeiro de 2004, passou a ocupar a Secretaria Especial do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República o até então ministro do Trabalho Jaques
Wagner, que substituiu Tarso Genro, este designado para o Ministério da Educação.
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45

cerca de 20 relatórios – os textos são públicos – com recomendações ao governo,


obrigado a prestar informações sobre o tratamento dado aos assuntos (Vieira,
2003). Além da atribuição de fazer recomendações às autoridades francesas, ao
referido Conselho cabe fornecer informações à assembléia quando da elaboração
legislativa, podendo também opinar sobre projeto econômico e social do interesse
daquele país (Sedes, 2003 a).
Pouco antes do conselho francês, em 1957, na Itália, foi criado o Consiglio
Nazionale dell’Economia e del Lavoro (CNEL), com a atribuição constitucional
de servir como órgão consultivo do parlamento e do governo, podendo ainda
tomar iniciativa de proposições legislativas e contribuir na elaboração de leis rela-
tivas a questões econômicas e sociais. Segundo Bobbio (2000), esse conselho sur-
giu em resposta a um problema antigo na Itália, que era o da representação orgâ-
nica em oposição à representação partidária. Entretanto, o mesmo autor se refere
ao CNEL como uma “espécie de limbo constitucional, [...] ao qual foi atribuído
um encargo meramente consultivo que de fato jamais foi executado” (Bobbio,
2000, p. 63).
Na seqüência, citamos alguns outros exemplos de conselhos similares ao CDES,
cujos dados descritivos obtivemos com a própria Sedes (2003 a), que cita também
o francês, sobre o qual já falamos.
O National Economic Development and Labour Council (Nedlac), da África
do Sul, foi criado em 1995 em substituição ao National Economic Forum, de
1992. Tem como objetivos promover o crescimento econômico, a participação
nas decisões econômicas e a eqüidade social; produzir consenso e concluir acordos
relativos a políticas econômicas e sociais; considerar todos os projetos de legisla-
ção trabalhista antes da sua introdução no parlamento; considerar todas as mu-
danças significativas nas políticas econômicas e sociais antes que essas sejam leva-
das ao parlamento; encorajar e promover a formulação de políticas coordenadas
em assuntos econômicos e sociais.
De acordo com os princípios de participação e cidadania da Constituição es-
panhola, surgiu, em 1991, o Consejo Econômico y Social (CES). É um órgão de
direito público subordinado ao Ministério do Trabalho, cuja função principal é
emitir opiniões sobre projetos de lei e decretos nas áreas socioeconômica e traba-
lhista, assim como outros assuntos que o governo julgue relevantes. Pode também
elaborar relatórios, a convite do governo ou por iniciativa própria.
Na Holanda, o Sociaal-Economische Raad (SER), criado em 1950, tem como
principal tarefa aconselhar o governo sobre temas de natureza econômica e social,
de acordo com os objetivos de crescimento econômico balanceado e de desenvol-
vimento sustentável, da maior participação possível para os trabalhadores e da
distribuição justa de renda.
Em Portugal, o Conselho Económico e Social (CES), criado em 1991, tem as
atribuições de pronunciar-se previamente sobre os anteprojetos das grandes op-
ções e dos planos de desenvolvimento econômico e social; pronunciar-se sobre as
políticas econômica e social, e sobre a sua execução; apreciar as posições do país
nas instâncias da União Européia no âmbito nacional das políticas econômica e
social; pronunciar-se sobre a utilização nacional dos fundos comunitários, estru-
turais e específicos, sobre as propostas de planos setoriais e espaciais de âmbito
nacional e, em geral, sobre as políticas de reestruturação e de desenvolvimento
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
46

socioeconômico; apreciar a evolução da situação econômica de desenvolvimento


regional; promover o diálogo e a concertação entre os parceiros sociais.
Na Áustria, o Beirat für Wirtschafts-und Sozialfragen (Conselho para Ques-
tões Econômicas e Sociais), criado em 1963, com base em um acordo informal
entre as quatro maiores organizações sindicais e patronais do país, tem as funções
de examinar questões econômicas e sociais, assim como seu impacto na economia
nacional; emitir recomendações no sentido de garantir estabilidade do poder de
compra, crescimento estável e pleno emprego; elaborar propostas para melhorar a
coordenação de políticas econômicas e sociais; compilar dados econômicos que
servirão de base para as discussões políticas e para recomendações conjuntas para
o governo federal.
Como iniciativa das mais recentes, pode-se citar o caso da Argentina, que dis-
cute a criação de um conselho dessa natureza. O ministro Jaques Wagner, da Se-
des, chegou a participar, em outubro último, de um seminário naquele país no
qual se debateu o projeto de lei de criação do Conselho (Agência EFE, 2004). Na
ocasião, o ministro brasileiro revelou que também o Mercosul planeja criar um
espaço de diálogo regional (Agência EFE, 2004).
Ao final deste trabalho (anexo 1), há um quadro no qual os exemplos aqui cita-
dos estão mais detalhadamente apresentados e dispostos de modo comparativo.9

3. MODO DE FUNCIONAMENTO E REPERCUSSÃO DAS AÇÕES DO CDES


Diferentemente da seção anterior, em que se buscou uma descrição mais próxi-
ma dos aspectos formais do CDES, neste tópico procederemos a um esforço de
análise do efetivo modo de atuação do Conselho. Para tanto, desenvolveremos
nossa argumentação a partir dos seguintes aspectos relacionados ao CDES: a sua
dinâmica de funcionamento, deslocando nossa interpretação dos aspectos for-
mais e idealizados para aspectos mais concretos; as relações internas e a questão
de interesses em disputa dentro do Conselho; o papel político do CDES e a reper-
cussão de suas atividades nas decisões do governo; a repercussão do CDES na
sociedade civil e na mídia brasileiras.

3.1 Dinâmica de funcionamento


No que se refere à forma de diálogo interno, o CDES parece ser um ambiente
altamente complexo, marcado por conflitos e divergências de idéias, naturalmen-
te presentes num grupo tão heterogêneo. De certo modo, pudemos adiantar (ver
item 2.3) essa característica ao tratar da diversidade de representações que ali se
encontram e que historicamente tendem ao antagonismo, como seria a clássica
relação de disputa entre capital e trabalho. Acontece que na formação do CDES,
ao menos numericamente, prepondera a esfera do capital (ver tabela 1).
Ainda sobre a questão do diálogo interno, são marcantes os episódios em que
posições políticas e ideológicas, seja do governo, seja de conselheiros(as), são defendi-
das e criticadas de forma consideravelmente transparente. Na análise das atas das

9
Para saber mais sobre esses conselhos, consulte os sites <http://www.conseil-economique-et-social.fr/> (França);
<http://www.cnel.it/> (Itália); <http://www.nedlac.org.za/> (África do Sul); <http://www.ces.es/> (Espanha); <http://
www.ser.nl/> (Holanda); <http://www.ces.pt/> (Portugal); <http://www.sozialpartner.at/> (Áustria).
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47

reuniões do Pleno do CDES, percebe-se que os debates e questionamentos parecem ser


francos e abertos, nos quais conselheiros(as) não deixam de questionar, de criticar e de
reivindicar sobre os temas em pauta. Um exemplo é a política econômica, mais espe-
cificamente a questão dos juros básicos da economia, que parece ser assunto recorren-
te nas discussões e objeto de críticas, às vezes severas, por parte daqueles(as) que a
vêem como restritiva ao desenvolvimento do país (CDES, 2003 b, 2003 c, 2004 c).
Na sétima reunião do Pleno do CDES, ao iniciar sua exposição sobre a política
econômica do governo, mais especificamente sobre uma proposta de agenda para
o crescimento do país elaborada pelo governo, o ministro da Fazenda, Antônio
Palocci, declarou:
Sobre esse último tema, eu gostaria muito de receber de vocês
críticas, sugestões, proposições, porque é a consolidação da nossa
agenda na área do desenvolvimento econômico. A propósito, nós
gostaríamos de ter com este conselho um diálogo bastante franco,
bastante consolidado, para que essa agenda possa avançar de
maneira efetiva. (CDES, 2004 b)

Na mesma reunião, alguns conselheiros(as) se manifestaram ao ministro da


Fazenda sobre a reivindicação pela renegociação da dívida pública brasileira, as-
sunto bastante delicado. Na ocasião, o conselheiro Amarílio Macedo, ligado à
esfera do capital, defendeu o seguinte: “proponho que o Sr. Presidente [...] inten-
sifique seus esforços pelo diálogo em prol da renegociação das dívidas dos países
emergentes com os credores sediados nos países desenvolvidos.” Essa questão de-
monstra o sentimento de liberdade de expressão que parece haver no CDES, pois
o tema costuma ser tratado com extremo cuidado por parte dos integrantes do
governo, que, desde a última campanha presidencial, se esforçam em convencer
seus credores de que não existe risco de calote da dívida. Prova dessa postura de
governo é a própria resposta dada pelo ministro à questão: “sobre a renegociação
da dívida pública, avaliamos que o melhor diálogo, nesse sentido, é o diálogo do
ajuste bem feito das contas; nenhum país do mundo conseguiu resultados positi-
vos renegociando dívidas” (CDES, 2004 b).
Outro conselheiro, Pedro Oliveira, ligado à esfera social, também abordou a
questão, porém de maneira mais incisiva, dizendo que o país “tem que reduzir
drasticamente seus gastos com o serviço da dívida. Há que se renegociar, há que se
cancelar pelo menos uma parte desta dívida”. Novamente o ministro rechaçou di-
zendo que “a iniciativa de cancelar uma parcela da dívida do Brasil levaria a um
aumento de risco para o nosso país e das taxas de juros de mercado que [faria] com
que nós pagássemos três vezes mais em custos da nossa dívida” (CDES, 2004 b).
Quanto ao tratamento dado às divergências, cabe esclarecer o modo como isso
se dá nas situações em que o CDES deve se pronunciar ou se posicionar sobre os
temas discutidos. No decreto presidencial que instituiu o regimento interno do
Conselho lê-se:
Art. 11. O CDES procurará formalizar suas deliberações por
consenso, denominadas acordos, que serão submetidas ao Presiden-
te da República e publicadas no Diário Oficial da União.
Art. 12. As deliberações do CDES ocorridas sob a forma não
consensual, denominadas recomendações, e as posições divergentes
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
48

dos Conselheiros serão submetidas ao Presidente da República e


publicadas no Diário Oficial da União.

Parágrafo único. No caso das deliberações sob a forma não consensual, é fa-
cultado ao Conselheiro interessado apresentar justificativa da sua posição diver-
gente, em separado e por escrito. (Brasil, 2003 a)
Aspecto interessante do modo de deliberação é, segundo um dos entrevistados
e servidor da Sedes, o voto não ser considerado como um meio adequado para se
chegar à decisão. A idéia é sempre atuar para buscar o consenso, tanto que, até
hoje, nenhum encaminhamento foi definido por meio de votação.

3.2 Relações internas e grupos de interesses


A formação de grupos internos entre pessoas parece ser uma prática não muito
comum entre membros do CDES, se considerarmos o que nos disse um servidor
da Sedes. Ele esclareceu que, apesar de nada impedir que grupos se formem fora
do âmbito do CDES, até o momento,10 não foi possível perceber situações em que
membros tivessem chegado ao Conselho com posições previamente acordadas com
o intuito de ganhar força nas negociações.
Se o parágrafo acima parece sugerir a inexistência de subgrupos dentro do
CDES, definitivamente isso não corresponderia à realidade. Durante as discussões
da reforma da previdência, algumas pessoas, identificadas por um de nossos en-
trevistados como da “esquerda do Conselho”, começaram a se aproximar em
função de afinidades ideológicas. Segundo ele, que também fazia parte desse gru-
po, formou-se um fórum informal de discussões que recebeu o apelido de
“Conselhinho”. Trata-se de um grupo de aproximadamente 15 conselheiros(as)
que antes de cada reunião de Grupo Temático ou do Pleno se reúne em âmbito
distinto do CDES. Segundo o entrevistado, “com isso foi se criando [...] um fórum
de discussão, de conversa, de troca de idéias, onde ninguém é obrigado a concor-
dar com ninguém”. Por mais que o “Conselhinho” seja um grupo informal, e que
a sua existência não seja de conhecimento público, de acordo com o nosso entre-
vistado ele era de conhecimento do CDES e do secretário da Sedes.11
A respeito de interesses de caráter mais particularista, podemos citar um fato
relatado por um membro da Sedes entrevistado. Três conselheiros, todos empresá-
rios, solicitaram que o CDES analisasse o tema licenciamento ambiental, um as-
sunto que geralmente põe em lados opostos ambientalistas a empresários. A Sedes
entendeu que isso não era um assunto de interesse nacional prioritário ou que
devesse ser tratado pelo CDES naquele momento. Entretanto, o assunto não dei-
xou de ser considerado pela Sedes, que organizou um colóquio sobre o tema.
Como dificilmente poderia deixar de ser, por conta dos diversos interesses ali
representados, logo no início do Conselho já se viam indícios de potenciais confli-
tos. Na ocasião, a revista Época relatou expectativas como a do conselheiro Luiz

10
Essa entrevista foi realizada em maio de 2004, ou seja, depois de mais de um ano de existência do CDES.
11
Aqui nos referimos ao ministro Tarso Genro, que foi o secretário da Sedes até a primeira reforma ministerial do governo Lula.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
49

Marinho, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que dizia: “Os sindicatos
querem manter direitos trabalhistas”; ao passo que Abílio Diniz, do Grupo Pão
de Açúcar, dizia: “os empresários [...] defendem a flexibilização das leis do traba-
lho” (Vieira, 2003).
A questão trabalhista levou a um episódio que bem ilustra até onde o conflito
chegou. Em julho de 2004, a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) deci-
diu retirar-se do Conselho por não concordar com os projetos de reforma sindical
que o governo pretendia encaminhar ao Congresso (Diário de S. Paulo, 2004).
Em cartas encaminhas ao presidente da República e ao secretário da Sedes, o
presidente da CGT, Antonio Carlos dos Reis (Salim), justificou a decisão da se-
guinte forma: “não podemos concordar com a política governamental, cujos re-
sultados não satisfazem de nenhum modo os interesses da maioria dos trabalha-
dores brasileiros, principalmente no que diz respeito à geração de emprego e ao
bem-estar social” (Confederação Geral dos Trabalhadores, 2004).
Sobre o relacionamento interno entre os(as) conselheiros(as) representantes do
governo e os(as) da sociedade civil, chama a atenção o fato do CDES não funcio-
nar em torno de uma hierarquia de cargos, típica do modelo burocrático weberiano
(Weber, 1982), característico das estruturas dos estados modernos. Mesmo a par-
ticipação dos membros do governo – presidente da República e ministros – não é
marcada pela autoridade do cargo. Todos os entrevistados declararam que esses
integrantes do CDES não costumam ter ascendência sobre os(as) demais
conselheiros(as), e que seus comportamentos têm sido preponderantemente de
ouvir as manifestações dos(as) representantes da sociedade. Um dos entrevistados,
funcionário da Sedes, informou que, mesmo com a presença do presidente da
República nas reuniões do Pleno do CDES, os(as) demais conselheiros(as) não se
sentem constrangidos(as) em fazer uso da palavra.
Com efeito, os exemplos dos debates – críticas e reivindicações – sobre a polí-
tica econômica do governo, e a falta de ascendência das autoridades do governo
sobre seus pares no Conselho podem ser vistos como indicativos da inexistência
de constrangimento hierárquico, que caso existisse seria contrário ao caráter de-
mocrático e participativo que o CDES parece ter.
Já dissemos que um ponto polêmico em discussões do CDES é a questão dos juros
básicos da economia. Segundo Ruediger e Riccio (2004), esse tem sido um dos prin-
cipais objetos de divergências entre conselheiros(as). Episódio marcante é a manifes-
tação explícita do Conselho ocorrida na terceira reunião do Pleno, em junho de 2003.
Naquela ocasião, por meio da terceira carta de concertação, explicitou-se posição
clara sobre a necessidade de redução dos juros. O conflito fica mais claro na seguinte
descrição: alguns conselheiros, dentre eles o empresário Antoninho Trevisan (CDES,
2003 e), apresentaram proposta de uma nota a ser divulgada em defesa da redução da
taxa de juros básicos da economia, além do já expresso na carta de concertação (Sofia
e Silveira, 2003). Conforme nos relatou um dos conselheiros presentes àquela reu-
nião, o conteúdo da carta foi motivo de forte oposição por parte de conselheiros que
entendiam o gesto como prejudicial à credibilidade do país. Segundo esse entrevista-
do, o conselheiro “Roberto Setúbal, do Itaú, disse que uma nota dessas seria muito
prejudicial ao país por que poderia prejudicar a [sua] credibilidade”. Consta na ata
daquela reunião que a tal nota teria seu conteúdo comunicado ao presidente da Re-
pública pelo então secretário da Sedes (CDES, 2003 e).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
50

3.3 Papel político do CDES e repercussão de suas atividades no governo


Em termos normativos diz-se sobre os encaminhamentos do CDES que “os temas
que forem alvos de consenso deverão ser indicados às diversas representações par-
tidárias no Legislativo, podendo o Conselho tornar-se sujeito ativo nos processos
de negociação política no Parlamento” (Sedes, 2003 d). Desse modo, o CDES é
detentor daquilo que Ruediger e Riccio (2004) chamam de “poder simbólico”.
Os autores acreditam que o CDES, por ter um papel de assessoramento, se apre-
senta como um coletivo mais independente se comparado ao Congresso Nacional
em termos de expressão cívica pactuada e menos submissa aos ditames da
tecnoburocracia ou a pressões e interesses de caráter particularista.
Cabe lembrar que a atribuição principal do CDES é assessorar e aconselhar o
presidente da República, ou seja, os encaminhamentos do Conselho podem ou
não ser acatados pelo presidente ou pelo governo. Isso ficou claro em exemplo
utilizado por um servidor da Sedes. No momento que o entrevistamos, duas ques-
tões tomavam conta do debate nacional: o reajuste do salário mínimo e a taxa de
juros básicos da economia. Sobre isso, o nosso entrevistado disse que “se vier uma
recomendação sobre o salário mínimo [maior que os R$ 260,00 definidos pelo
governo] ou sobre a taxa de juros [básicos da economia], eu tenho certeza que o
presidente não vai acatar”. Essa clareza também há dentro do Conselho. Para um
dos conselheiros que ouvimos, “o Conselho é um órgão consultivo; nunca nós
podemos deixar de esquecer que o Conselho é um órgão de assessoramento ao
presidente da República”.
Nesse contexto, foi possível perceber algumas reclamações de que nem sempre
as posições do Conselho se transformam em decisões do governo. Por exemplo,
consta na ata da sétima reunião do Pleno do CDES o registro do conselheiro
Pedro Teruel, ligado à esfera do capital, observando “que a fórmula de cobrança
da [Contribuição para Financiamento da Seguridade Social] Cofins não coincidiu
com a proposta debatida pelo Conselho” (CDES, 2004 b).
Em alguns casos, o CDES é utilizado como um fórum para o governo apresen-
tar propostas, e não para construção conjunta de soluções. De acordo com um
dos conselheiros entrevistados, ligado à esfera social, “já no momento da reforma
da previdência [...], o Conselho passou a ser não um espaço de negociação, mas
um espaço [...] no qual o governo expunha suas idéias para a sociedade”. Outro
conselheiro, ligado à esfera do capital, além de confirmar esse entendimento sobre
a reforma da previdência, afirmou que “quando se discutiu a questão da reforma
tributária, veio o projeto do governo para ser discutido dentro do CDES”. Não
foi construído, mas apreciado pelo CDES.
Um integrante do Conselho, representante do segmento empresarial, com o
qual pudemos conversar na última reunião do Grupo de Acompanhamento de
Políticas Sociais, ocorrida em outubro de 2004, reportando-se à época das
reformas da previdência e tributária, deixou clara a sua dúvida quanto à efe-
tiva utilização das contribuições do CDES nas propostas encaminhadas pelo
governo ao parlamento. Por exemplo, ele criticou o fato do CDES ter tido
apenas um dia para analisar a questão tributária, o que não poderia ocorrer
pela magnitude e complexidade do tema. Nesse caso, disse ele, o que chegou
ao Conselho foi uma proposta discutida entre o governo federal e os governa-
dores dos estados.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
51

Os exemplos acima fornecem alguns indícios de uma lógica estratégica em que


o governo parecia buscar apoio e legitimação para suas idéias em vez de procurar
formatar propostas de reformas advindas do diálogo entre governo e representan-
tes da sociedade no Conselho (ver item 3.4).
Sobre o caso da reforma da previdência, chama atenção ter havido temas com
quantidades relativamente baixas de consensos. Em relação ao tema “benefícios e
transição”, matérias como instituição de teto remuneratório, elevação da idade
mínima de aposentadoria, redução do valor das pensões e contribuição dos inati-
vos são exemplos sobre os quais a ata da reunião do Pleno que analisou o relató-
rio encaminhado ao presidente da República não mostra nenhum consenso (CDES,
2003 d). Não obstante, tais matérias constaram na proposta de reforma encami-
nhada pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo.
Nesse ponto, é preciso salientar que as impressões acima foram colhidas do que
disseram nossos entrevistados, todos ligados ao CDES – conselheiros e suplentes
que participam de reuniões – e um servidor da Sedes. Não foi possível fazer um
levantamento mais profundo, tabular todas as proposições do CDES e compará-las
com as medidas tomadas pelo governo, o que poderia dar uma dimensão mais
precisa do caso. Assim, fica o alerta de que um estudo mais aprofundado poderia
trazer maior clareza para a questão. Todavia, é preciso reforçar que são opiniões de
atores com participação efetiva nas atividades do Conselho.

2.4 Repercussão das atividades do CDES na sociedade civil e expressão na mídia


Primeiramente, cabe esclarecer que a descrição abaixo se baseia em uma amostra
de notícias e artigos veiculados no país desde pouco antes da posse do atual gover-
no, quando já se articulava a criação do CDES. Logo, não se trata de um esforço
exaustivo acerca da repercussão das atividades do Conselho, mas um apanhado
geral de manifestações que julgamos importantes para o escopo deste trabalho.
Para Sonia Fleury, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e conselheira
do CDES, a criação do Conselho foi a “maior inovação política e institucional do
governo Lula”, e sua existência e funcionamento conferem maior densidade à
democracia brasileira, resgatando um modelo institucional aspirado e idealizado
pela sociedade desde a Constituição de 1988 (Fleury, 2003 a, 2003 b).
Sobre a formação do CDES, uma das primeiras polêmicas surgidas foi a res-
peito da sua composição. Em função da predominância quantitativa do seg-
mento empresarial (ver tabela 1), gerou dúvidas e até mesmo temores sobre o
desequilíbrio de “forças” dentro do Conselho. Reportagem da Folha de S.Paulo
citava: “A desproporção já desperta críticas dos dirigentes das centrais sindicais
e de velhos eleitores do PT [...] que temem ver o conselho transformado num
grande fórum de defesa dos interesses empresariais” (apud Vieira, 2003). A mes-
ma reportagem dizia que a explicação do governo para tal predominância era a
necessidade de reformas – previdenciária e tributária – que exigiriam ampla co-
alizão de forças para aprová-las no Congresso. Para Tarso Genro, ministro da
Sedes à época, “sem uma forte participação empresarial não há concertação
política que funcione no país”.
A Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong) cita
empresários e segmento sindical para também demonstrar certa preocupação com
a questão do equilíbrio. E alerta:
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
52

Condição necessária para o avanço da democracia participativa


será a superação da percepção limitada que o governo Lula parece
ter da sociedade – privilegiando os setores empresariais e sindical,
como ficou mais do que patente na composição do Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) –, em detrimento da
enorme diversidade de atores sociais e políticos, que expressam
interesses difusos e defendem plataformas amplas como a dos
Direitos Sociais e a da sustentabilidade ambiental. (Associação
Brasileira de Organizações Não-Governamentais, 2004)

A forma de escolha dos conselheiros também foi questiona e punha em dúvida


se o CDES efetivamente representava a sociedade, uma vez que seus integrantes
foram designados pelo presidente da República. Para o professor José Arthur
Giannotti, da Universidade de São Paulo (USP), “a sociedade só poderia estar
verdadeiramente representada por meio do voto direto para a escolha dos repre-
sentantes”. Em reposta, o então ministro José Dirceu, da Casa Civil, declarou que
dentre os integrantes do Conselho havia um grande número de pessoas reconheci-
damente eleitoras do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do ex-senador
José Serra (Folha de S.Paulo, 2003). Verdade ou não sobre em quem os conselhei-
ros votaram, a resposta do ministro se restringiu a rebater a crítica, sem ir à essên-
cia da questão: a falta do voto direto.
A visão da mídia, a partir das reportagens que analisamos, sobre a influência do
CDES em decisões do governo, se assemelha a já debatida no item anterior – o
governo parece, em alguns casos, ter o CDES mais como um canal de interlocução
com a sociedade e de busca de apoio a suas propostas do que efetivamente de
aproveitamento das propostas da sociedade. Em matéria da Agência Carta Maior
consta que “nos primeiros meses de funcionamento, a missão estratégica do órgão
criado para desencadear a negociação de um novo contrato social ficou subordina-
da ao papel político de legitimação das reformas propostas pelo governo. Foi uma
tática usada para justificar medidas amargas e pressionar o Congresso” (Breve, 2004).
Esse também foi o entendimento de um dos conselheiros do CDES, o presiden-
te da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemig) Robson
Andrade, segundo apurou a Agência Folha On-line em dezembro de 2003. No
entendimento do conselheiro:
No primeiro ano da gestão Lula, pesaram mais as opiniões dos
governadores dos Estados e do próprio governo do que as dos
membros do conselho [...]. As reformas, especialmente a tributária,
são um bom exemplo disso. Prevaleceram mais os interesses dos
Estados e da União [...] É mais fácil negociar com 27 governadores
do que com 81 conselheiros, que não constituem um grupo homo-
gêneo. (Peixoto, 2003)
Segundo essa mesma reportagem, o presidente da Fiemig acreditava que a falta
de consensos no CDES fazia com que os temas virassem propostas do governo.
Por outro lado, o empresário viu como lado positivo do Conselho a existência de
um canal de interlocução com o governo. Para ele, “hoje, o empresariado tem
mais interlocução do que no passado. Isso é extremamente importante para for-
mar opinião e colocar propostas”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
53

A falta de consensos, por exemplo, sobre a reforma da previdência, já fora


relatada pela Folha de S.Paulo, em abril de 2003. Em uma das reportagens sobre
o assunto, cujo título “CDES deixa temas polêmicos para Lula”, corrobora o
entendimento do presidente da Fiemig sobre a conseqüência da falta de consenso,
diz-se que em temas polêmicos da reforma da previdência, como cobrança de
inativos, redução de pensões e elevação da idade mínima para aposentadoria no
setor público, não houve consenso algum (Sofia, 2003).
A percepção sobre a relação entre CDES e governo, pode ser observada a
partir de um pequeno texto do jornalista Elio Gaspari (2004), que comenta a
quinta reunião do CDES, ocorrida em dezembro de 2003. Em tom irônico,
descreve a reunião em que o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e o presi-
dente do Banco Central, Henrique Meirelles “expuseram as maravilhas do go-
verno”, na qual o “governo se expressou por meio de ausências: não comparece-
ram, nem mandaram representantes, os comissários Luiz Gushiken e José Dir-
ceu, nem o doutor Celso Amorim”. O jornalista cita ainda que nos debates
ocorridos após as exposições da equipe econômica, 26 conselheiros pediram a
palavra, e desses, “três, talvez cinco”, defenderam a política econômica do go-
verno, os demais reclamaram. Ele ressalta que durante os debates Palocci e
Meirelles não estavam mais na reunião.
Finalizamos este tópico com uma matéria da Agência Estado, na qual Suely
Caldas (2004) diz:
Têm se mostrado frustrantes as experiências de Lula em criar
instâncias prévias, fora do desenho democrático institucional, para
supostamente buscar um diálogo com a sociedade civil. Com
funções que se confundiam com as do Congresso, o Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social é hoje um órgão esvaziado,
seus integrantes cansaram de discutir, discutir e não decidir porque
as decisões cabem aos parlamentares. [...] É perda de tempo tentar
reinventar a roda criando instâncias de discussão que não decidem
e só atrasam.

Nesse caso, a jornalista explicita um entendimento um tanto restrito de de-


mocracia na medida em que considera os representantes eleitos como os únicos
responsáveis pelo processo decisório. Não se pode esquecer que, mesmo na de-
mocracia representativa, a sociedade pode sim ter um papel que vá além do
voto: o da pressão e do controle social. Para isso, um espaço público não-estatal
pode servir à ampliação da democracia, dependendo da sua estrutura, do seu
modo de funcionamento, e, principalmente, da sua legitimidade política. Além
disso, é importante observar que a matéria diz ser o CDES “um órgão esvazia-
do”. Ressalvamos que, ao consultar as oito atas de reuniões ordinárias disponí-
veis até o momento pudemos observar que, pelo menos no que se refere à parti-
cipação, ou presença, de conselheiros(as) representantes da sociedade, o CDES
não parece ter se esvaziado. Nas três primeiras reuniões, quando o CDES era
formado por 82 membros, compareceram em média 77 conselheiros(as) e/ou
suplentes. Da quarta até a oitava reunião, quando o Conselho era formado por
90 membros, compareceram 84 conselheiros(as) e/ou suplentes, em média, a
cada reunião.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
54

4. O CDES COMO ESPAÇO PÚBLICO DE PARTICIPAÇÃO


Esta seção visa discutir, a partir das análises precedentes, a caracterização do CDES
como um espaço público de participação. Para isso serão abordados três aspectos
relacionados à oportunidade de participação da sociedade civil nas questões tra-
tadas pelo Conselho: primeiramente, discute-se a originem dos temas submetidos
ao CDES; em seguida, como se processa a questão da oportunidade de manifesta-
ção dos(as) conselheiro(as); e por fim, de forma breve, o tratamento dado pela
Sedes e pelo próprio CDES à publicidade dos atos do Conselho.

4.1 Origem dos temas discutidos


Da análise das atas das reuniões do Pleno do CDES, percebe-se que a maioria dos
temas discutidos são propostos pelo governo. Na primeira reunião ordinária do
Conselho, em 13 de fevereiro de 2003, quando o mesmo foi instalado, discuti-
ram-se alguns aspectos das reformas – trabalhista, previdenciária e tributária –
que o governo recém-empossado tencionava realizar. Uma passagem da ata da-
quela reunião deixa claro que a proposta nasceu com delineamentos dados pelo
governo: “Os Ministros de Estado Jaques Wagner, Ricardo Berzoini e Antonio
Palocci Filho [...] expuseram os princípios e diretrizes que orientarão as reformas
trabalhista, previdenciária e tributária” (CDES, 2003 a, grifo nosso).
Esse entendimento é reforçado pela reivindicação do conselheiro Luis Aimberê,
ligado à esfera das personalidades, feita na sexta reunião do Pleno. A ata da reu-
nião registra passagem em que “reivindica formato diferente das reuniões, para
que alguns conselheiros possam falar no início, e não no final; o Conselho deve
ser mais ouvido” (CDES, 2004 c). Na mesma reunião, outro integrante do CDES,
o conselheiro José Moroni, ligado à esfera social, se manifestou na mesma linha –
a ata registra sua proposta de “iniciar as reuniões com algumas falas de conselhei-
ros, pois iniciamos com doze ministros e estamos com dois na fala dos conselhei-
ros” (CDES, 2004 c).
A questão da origem dos temas propostos segue aspectos normativos, visto
que no Termo de Referência do CDES consta:
As agendas a serem propostas pelo Executivo ao Conselho serão
definidas através de reunião convocada pelo Presidente da Repúbli-
ca, com a presença do Ministro Chefe da Casa Civil, do Secretário
Geral da Presidência, do Secretário de Comunicação do Governo,
do Ministro da Fazenda e do Secretário da Secretaria Especial do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. (Sedes, 2003 d)

Foi o caso das reformas da previdência e tributária, que constaram como as


primeiras atribuições da agenda de trabalho do CDES definida pelo presidente da
República (Sedes, 2003 b).
Apesar da aparente preponderância de iniciativas do governo na definição das
pautas, salientamos que é facultado ao CDES e a todos(as) os(as) seus(uas)
conselheiros(as) emitir opiniões originadas no âmbito do próprio Conselho. O
Termo de Referência do CDES diz:
O Conselho também poderá emitir – por solicitação de qualquer
dos seus integrantes – ‘recomendação’ consensual ao Presidente da
República. A recomendação poderá versar sobre temas relacionados
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
55

com o desenvolvimento econômico-social do país, ou de determi-


nada região, ou Estado, mesmo que o assunto não esteja em pauta,
mas seja aceito pela maioria simples dos presentes como matéria
relevante. (Sedes, 2003 d)

O próprio decreto que instituiu o regimento interno do Conselho prevê que


lhe é facultado “elaborar informes e estudos especiais sobre temas objeto da
concertação, independentemente de prévia agenda proposta pelo Presidente da
República” (Brasil, 2003 a). Entretanto, conforme já dito neste mesmo texto (ver
item 3.3), cabe salientar – e isso foi expresso com muita clareza por um funcioná-
rio da Sedes – que o presidente da República pode ou não acatar os encaminha-
mentos do Conselho, sejam eles consensos, recomendações ou sugestões.

4.2 Oportunidade de manifestação


Dentre os aspectos que contribuem para uma lógica democrático-participativa do
CDES, destaca-se a oportunidade de manifestação que é facultada a qualquer um
dos seus membros. De acordo com os depoimentos dos entrevistados, em nenhum
momento observou-se qualquer tentativa de cerceamento da palavra. Ao contrá-
rio, todos entendem que o CDES é um espaço onde se procura incentivar a parti-
cipação. Segundo um desses entrevistados, “todos têm direito [de falar], todos se
manifestam; todos aqueles que se inscrevem para estar discutindo são ouvidos”.
O decreto que regulamenta a composição e o funcionamento do CDES apre-
senta uma série de regras para disciplinar o ordenamento das falas de conselheiras
e conselheiros. No artigo 9º consta: “O Conselheiro que quiser usar da palavra
nas reuniões do CDES deverá inscrever-se, no decorrer das sessões, perante o Secre-
tário Executivo do Conselho, de acordo com a ordem da pauta” (Brasil, 2003 a,
grifo nosso). Além disso, para os casos em que não for possível a todos falar, em
função de alguma limitação de tempo ou de inscrição fora dos prazos regulamen-
tares, o mesmo decreto garante que “independentemente da intervenção do Con-
selheiro nas reuniões do CDES, ser-lhe-á facultado registrar a sua posição, por
escrito, que deverá constar das respectivas atas” (Brasil, 2003 a).
Por outro lado, é importante frisar que nem sempre um assunto sugerido será
submetido à discussão do Pleno do CDES. A Sedes seleciona os temas que são
submetidos ao Pleno após considerações, segundo um de seus funcionários, sobre
o interesse nacional que deve ter um assunto para merecer tal tratamento. Porém,
um assunto porventura considerado como não pertinente de análise pelo Pleno
naquele momento será discutido em outro fórum. Para esse fim, a Sedes promove
colóquios específicos (ver itens 2.4 e 3.2).
Os aspectos até aqui mencionados indicam uma estrutura normativa que pri-
vilegia a participação, um tanto restrita ao direito, embora amplo, de manifesta-
ção, expressão e defesa de pontos de vista (ver item 3.3). Ademais, essa mesma
estrutura normativa não é totalmente capaz de garantir a participação de todos,
principalmente se algum ator tiver maior controle sobre a agenda do Conselho.
Fleury (2003 b) chama a atenção para o risco de se comprometer a possibilidade
de concertação se o CDES se tornar mera platéia diante da pauta definida pelo
governo. A autora, que também é conselheira do CDES, alerta que, por diferentes
razões, o tempo destinado para que o governo apresente suas propostas tem sido
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
56

progressivamente maior do que o tempo destinado à discussão por parte dos(as)


conselheiros(as). Para ela, seria imprescindível que o CDES construísse agenda
própria que lhe permitisse aprofundar os assuntos.

4.3 Publicidade e acesso à informação


Característica que merece destaque sobre o comportamento do CDES se refere
à comunicação, tanto dele com o ambiente como em seu interior. Um dos
conselheiros declarou que “o volume de comunicação, a clareza, a transparên-
cia, tudo o que ocorre com os conselheiros é trocado entre os conselheiros;
existe uma lista de e-mails em que você troca [informações] com os conselhei-
ros”. Com relação à demanda de informações por parte de conselheiros(as) à
Sedes, o volume tem sido, segundo relato de um servidor daquela Secretaria,
relativamente pequeno.
Em relação à sociedade, chama atenção a publicidade dada ao que se dis-
cute no âmbito do CDES e às manifestações de conselheiros(as) dirigidas ao
próprio Conselho ou à sua coordenação. Se considerarmos a quantidade de
dados e de documentos disponíveis na Internet,12 pode-se inferir que há uma
considerável preocupação em tornar públicas as discussões do Conselho. É o
caso das atas do Pleno do CDES e dos grupos temáticos. Nesses documentos,
não são raros registros de intervenções de conselheiros(as) criticando, às vezes
de forma contundente, políticas do governo ou mesmo aspectos do modo de
funcionamento do CDES.
No caso dos grupos temáticos, onde o nível de detalhamento dos assuntos em
pauta tende a ser maior, “é facultado ao Conselheiro ou Convidado fazer-se assis-
tir por técnicos, nas reuniões” (Sedes, 2003 c). Adicionalmente, “Ministros de
Estado e dirigentes de órgãos da Administração Pública poderão ser convidados
para comparecer a reuniões do Grupo Temático, a fim de prestarem informações
e subsídios a seus membros” (Sedes, 2003 c).
O tratamento dado à informação, de modo a torná-la pública, reforça o que
Ruediger e Riccio (2004) constataram sobre ser o CDES um meio capaz de possi-
bilitar a circulação de argumentos muitas vezes sufocados pelo processo político
tradicional.

5. CONCLUSÃO
Dado o caráter exploratório da parte empírica do presente trabalho, existem duas
importantes conclusões a que se pode chegar a partir dos dados levantados e ana-
lisados. A primeira diz respeito à constituição do CDES e a forma como foi idea-
lizado. Essa constituição buscou dar ao Conselho um formato de incentivo à
participação e um espaço com características democráticas.
Quando direcionamos nossa análise ao modo de funcionamento do CDES,
no que se refere à participação dos(as) conselheiros(as) nas discussões, continua
a percepção de que há uma lógica com contornos democráticos em sua forma.

12
Ver nota 2.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
57

Entretanto, quando se trata do aspecto da efetividade dos encaminhamentos


produzidos a partir das discussões no CDES nas ações do governo, essa lógica
parece perder força. Fica claro que o governo discute, ouve, porém reserva-se o
direito de agir de acordo com as suas concepções políticas acerca dos temas
analisados pelo Conselho.
Diante disso, se, em seu início, o CDES foi imaginado como um fórum de
grande capacidade de interferência nas ações do governo, como ficou subentendi-
do nas palavras do então secretário da Sedes Tarso Genro ao afirmar que “o con-
selho vai definir a linha mestra do governo” (Vieira, 2003), poderíamos dizer que
essa expectativa ainda não se confirmou.
Adicionalmente, pretendeu-se explorar pontos que revelassem desafios e ambi-
güidades subjacentes a um modelo de gestão substancialmente diferente de todo o
contexto político no qual vem sendo constituída a administração pública brasi-
leira. Essa administração, tendo um histórico de profunda orientação burocrática
e patrimonialista (Castor, 2000; Faoro, 2001), dificilmente se libertaria de uma
orientação instrumental apenas com o estabelecimento de um espaço estruturado
em moldes participativos. Os pontos contraditórios levantados podem indicar
certa dificuldade por parte dos atores – em especial os integrantes do governo –
em se desvencilharem de uma ação social orientada para o êxito particularista.
Todavia, esse aspecto é apenas hipotético, sendo necessários estudos mais acurados
para a sua verificação.
Finalmente, se partirmos da idéia de Bobbio (2000) de que para avaliar o nível de
desenvolvimento da democracia não podemos mais mensurá-lo pela quantidade de
pessoas que votam, mas sim pela quantidade de locais – diferentes dos locais políticos
– em que o cidadão pode exercer o direito de voto, o CDES é um esforço importante
na busca de democratização das relações entre o estado e a sociedade brasileira.

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MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
62

ANEXO 1 – COMPARATIVO DE CASOS INTERNACIONAIS DE CONSELHOS


ECONÔMICOS E SOCIAIS

AFRICA DO SUL ESPANHA FRANÇA HOLANDA PORTUGAL

Nome National Economic Consejo Económico Le Conseíl Sociaal-Economische Conselho


Development and y Social Économique et Raad Económico e Social
Labour Council Social

Membros Até 72 61 231 33 64

Setores Governo; empresári- Organizações Empresas e Governo*; Governo e regiões


representados os; trabalhadores patronais; cooperativas; empresas; autônomas;
organizados e sindicatos; territórios de agricultura; empresas, coopera-
sindicatos; agricultura e pesca; ultramar; agricultura representantes dos tivas e turismo; agri-
organizações associações de e artesãos; trabalhadores; cultura; sindicatos;
comunitárias. cooperativas; sindicatos; universidades,
consumidores e sociedades de * contém especialis- ciência e tecnologia;
usuários; especialis- benefício mútuo; tas independentes, associações
tas de notório associações de geralmente ambientalistas, de
saber. famílias; expatriados; acadêmicos de consumidores, de
profissionais liberais economia, finanças, famílias e de
e personalidades direito e sociologia. mulheres e
especializadas em entidades de
economia, solidariedade social;
sociedade, ciência e profissionais liberais
cultura. e personalidades.

Atribuições e Promover crescimen- Emitir opiniões Redigir recomenda- Aconselhar o Pronunciar-se sobre
objetivos to econômico, sobre projetos de lei ções às autoridades governo sobre projetos das
participação nas e decretos nas áreas francesas, e fornecer temas de natureza grandes opções e
decisões econômicas socioeconômica e informações ao econômica e social, políticas de
e eqüidade social; trabalhista, assim legislativo quando de acordo com os reestruturação de
produzir acordos como outros da elaboração de objetivos de desenvolvimento
acerca de políticas assuntos que o leis; promover crescimento socioeconômico;
econômicas e sociais; governo julgue aproximação e econômico sobre a utilização de
considerar os relevantes. Pode diálogo entre os balanceado de fundos comunitári-
projetos de também elaborar diferentes grupos desenvolvimento os, estruturais e
legislação trabalhista relatórios, a convite nele representados; sustentável, de específicos; sobre as
e mudanças do governo ou por emitir opinião sobre maior participação propostas de planos
significativas nas iniciativa própria, o orçamento possível para os setoriais e espaciais
políticas econômicas sobre temas de sua público e sobre trabalhadores, e de de âmbito nacional;
e sociais antes da atribuição. projetos econômi- distribuição justa de apreciar as posições
submissão ao cos e sociais de renda. do país na União
parlamento; interesse do país. Supervisionar os Européia no âmbito
promover a trabalhos de nacional das
formulação de câmaras setoriais e políticas econômica
políticas coordena- participar da e social e a evolução
das em assuntos implementação de da situação de
econômicos e sociais; certas leis. desenvolvimento
e conduzir atividades regional; e promover
de solução de o diálogo e a
controvérsias entre concertação entre os
empregadores e atores sociais.
trabalhadores.

Principais Finanças públicas e Economia e finanças Trabalho; desenvol- Política econômica e Política econômica e
temas política monetária; públicas; relações vimento regional; social de médio social; desenvolvi-
tratados comércio e trabalhistas, empre- planejamento rural prazo; regulamenta- mento regional e
indústria; mercado go e segurança e urbano; assuntos ção da seguridade ordenamento do
de trabalho; social; assuntos sociais, ambientais, social; legislação território; questões
desenvolvimento; sociais; agricultura e financeiros, trabalhista e trabalhistas.
crescimento e pesca; educação e econômicos, industrial; participa-
eqüidade. cultura; saúde e internacionais; ção dos trabalhado-
consumo; meio tecnologia e res; mercado de
ambiente; transporte pesquisa; alimento trabalho e
e comunicações; e agricultura; e educação; política
indústria e energia; orçamento anual. européia; planeja-
habitação; desenvolvi- mento ambiental e
mento regional; tráfego; desenvolvi-
mercado europeu e mento sustentável;
cooperação para o assuntos de
desenvolvimento. consumidores.

Fonte: Presidência da República/Sedes. Experiência internacional. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/cdes/>.


Acesso em: 30 de outubro de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
63

ANEXO 2 – CONSELHEIROS(AS) REPRESENTANTES DA SOCIEDADE CIVIL NO CDES

ESFERA*
CONSELHEIROS(AS)
CAPITAL ORIGEM

Abílio dos Santos Diniz Grupo Pão de Açúcar

Amarílio Proença de Macêdo Empresário Ramo Alimentação Nordeste - J. Macêdo Alim. S/A

Antoninho Marmo Trevisan Presidente Trevisan Auditoria, Consultoria e Educação

Benjamin Steinbruch Companhia Siderúrgica Nacional - CSN

Carlos Jereissati Filho Associação Brasileira de Shopping Centers - Abrasce

Daniel Feffer Companhia Suzano de Papel e Celulose

Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro – Firjan

Eugênio Emílio Staub Gradiente

Fábio Colletti Barbosa Banco ABN Amro Real S.A

Fernando Roberto Moreira Salles Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração – CBMM

Fernando Xavier Ferreira Grupo Telefônica do Brasil

Gabriel Jorge Ferreira Federação Brasileira das Associações de Bancos – Febraban

Gustavo Carlos Marin Garat Citibank

Horácio Lafer Piva Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp

Ivo Rosset Empresário do Setor Têxtil - Valisère, Cia Maritima, Agua Doce

Jorge Gerdau Johannpeter Grupo Gerdau

José Carlos Costa Marques Bumlai Empresário e Pecuarista

José Luis Cutrale Representante do Setor Sucocítrico

José Mendo Mizael de Souza Instituto Brasileiro de Mineração - Ibam

Joseph Couri Assoc. Nac. dos Sindicatos das Micro e Peq. Indústrias - Assimpi

Luiz Carlos Delben Leite Presidente da Assoc. Bras. Ind. de Máquinas e Equip. -Abimaq

Luiz Otávio Gomes Confederação Nacional das Associações Comerciais

Lutfala Bitar Engenheiro e Empresário na Região Norte

Márcio Artur Cypriano Bradesco

Márcio Lopes de Freitas Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB

Maurílio Biagi Filho Representante do Setor Sucroalcooleiro

Mauro Knijnik Empresário

Miguel João Jorge Filho Banco Santander

Oded Grajew Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social

Omilton Visconde Júnior Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica - Febrafarma

Paulo Antônio Skaf Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção - ABIT

Paulo Roberto de Godoy Pereira Assoc. Brasileira da Infra-estrutura e Indústrias de Base - Abdib

Paulo Safady Simão Câmara Brasileira da Indústria da Construção - CBIC

Paulo Vellinho Empresário

Pedro Luiz Teruel Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania - Cives


MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
64

ESFERA*
CONSELHEIROS(AS)
CAPITAL ORIGEM

Raymundo Magliano Filho Bovespa

Ricardo Young Silva Instituto Ethos

Rinaldo Campos Soares Usiminas

Roberto Egydio Setubal Banco Itaú

Robson Braga de Andrade Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais

Rodrigo Costa da Rocha Loures Nutrimental

Rogelio Golfarb Assoc. Nac. de Fabricantes de Veículos Automotores - Anfavea

Roger Agnelli Companhia Vale do Rio Doce

Sérgio Haberfeld Dixie Toga

Waldemar Verdi Junior Fed. Nac. da Distribuição de Veíc. Automotores - Fenabrave

PERSONALIDADES

Dráuzio Varella Médico

Frank Algot Eugen Svensson Professor Universitário

Hélgio Trindade Professor Universitário

José Carlos de Souza Braga Economista e Professor Universitário

José Fernandes do Rego Professor Universitário e especialista em Economia Rural

José Joaquim Calmon de Passos Jurista

Luiz Aimberê Soares de Freitas Professor Universitário

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo Economista

Luiz Gonzaga Schroeder Lessa General-de-Exército

Maria Victória Benevides Cientista Política

Muniz Sodré de Araújo Cabral Professor universitário e estudioso da cultura negra

Paulo Roberto de M. Rego Figueiredo Advogado, Jornalista e Professor Universitário

Sônia Maria Fleury Teixeira Professora Universitária

Tânia Bacelar de Araújo Professora Universitária

SOCIAL

Alceu Nieckarz Bispo Evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus

Cláudio Baldino Maciel Associação Brasileira de Magistrados - AMB

Cláudio Soares de Oliveira Ferreira Ordem dos Advogados do Brasil - OAB

Dom Tomás Balduíno Comissão Pastoral da Terra

Glaci Therezinha Zancan Representante da Soc. Bras. para o Progresso da Ciência - SBPC

Gustavo Lemos Petta União Nacional de Estudantes - UNE

José Antônio Moroni Fórum Nacional de Assistência Social - FNAS

Lucélia Santos Atriz

Marfan Martins Vieira Associação Nacional dos Membros do Ministério Público

Milu Villela Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM


MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
65

ESFERA*
CONSELHEIROS(AS)
CAPITAL ORIGEM

Nilson do Amaral Fanini Pastor Evangélico - Aliança Batista Mundial

Pedro de Assis Ribeiro de Oliveira Comunidades Eclesiais de Base

Roberto Baggio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST

Sérgio Haddad Assoc. Brasileira de Organizações Não Governamentais - Abong

Silas Malafaia Pastor Evangélico - Assembléia de Deus

Sueli Carneiro Rede de Entidade de Mulheres Negras

Viviane Senna Lalli Instituto Ayrton Senna

Zilda Arns Neumann Pastoral da Criança

TRABALHO

Altemir Antônio Tortelli Fed. dos Trab. da Agric. Familiar da Região Sul - Fetraf-Sul

Antônio Fernandes dos Santos Neto Central Geral dos Trabalhadores do Brasil - CGTB

Clemente Ganz Lucio Dep. Intersindical de Estatística e Estudos Socioecon. - DIEESE

João Carlos Gonçalves Força Sindical

João Felício Central Única dos Trabalhadores – CUT

João Resende Lima Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas - Cobap

João Vaccari Neto Sindicato dos Bancários São Paulo

Jorge Nazareno Rodrigues Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco

José Calixto Ramos Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria - CNTI

Juçara Maria Dutra Vieira Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE

Laerte Teixeira da Costa Central Autônoma de Trabalhadores – CAT

Luiz Marinho Sindicato dos Metalúrgicos do ABC

Manoel José dos Santos Conf. Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag

Fonte: Presidência da República/Sedes. Conselheiros representantes da sociedade.


Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/cdes/>. Acesso em: 30 de outubro de 2004.
* A classificação dos(as) conselheiros(as) em esferas de atuação foi feita pelo autor.
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CONFERÊNCIA CIDADES*

A Conferência das Cidades teve um importante antecedente: o processo de apro-


vação do Estatuto das Cidades e do Conselho das Cidades, de caráter consultivo,
ainda no governo FHC, como resultado das lutas do Fórum Nacional pela Refor-
ma Urbana. A rigor, a própria criação do Ministério das Cidades e da proposta de
uma Conferência Nacional das Cidades no governo Lula são parte integrante
desse processo de afirmação de uma agenda urbana colocada pelos movimentos
sociais, particularmente pelo Fórum.
Em uma primeira etapa, em março/abril de 2003, o Ministério das Cidades
convidou cerca de 80 entidades da sociedade civil de caráter nacional, como Abong,
Ibase, Fase, Ibam, Bento Rubião, federações de empresários, profissionais e de
universidades, para constituir uma coordenação preparatória para a Conferência.
Essas 80 entidades elegeram uma coordenação executiva, com cerca de 30 a 40
pessoas, para, em reuniões mensais, organizar a Conferência. A composição dessa
coordenação executiva obedeceu a critérios representativos por segmentos sociais,
conforme proposta do Ministério: movimentos populares, empresários, acade-
mia/ONGs/entidades profissionais. Surgiu aí um primeiro problema, que se ma-
nifestaria com vigor posteriormente na Conferência: a colocação de ONGs, aca-
demia e entidades profissionais no mesmo segmento social, ou seja, com a mesma
representação. Uma outra questão séria de representação surgiu na discussão a
respeito dos Fóruns, tal como o da Reforma Urbana e do Saneamento. Em sendo
tais fóruns uma articulação de entidades, quem deveria se fazer representar, eles
próprios ou as entidades? Tal questão até hoje está em aberto.
A comissão executiva tinha, basicamente quatro funções: preparar o regimen-
to da Conferência, discutir o documento-base preparado pelo governo, propor a
futura constituição do Conselho das Cidades e organizar as conferências estadu-
ais. Em todo o processo, houve uma pactuação muito grande e o trabalho foi
respaldado pelas 80 entidades que se reuniram uma ou duas vezes.
As conferências estaduais e municipais superaram as expectativas, constituin-
do um sucesso em termos de capacidade de mobilização. O Ministério das Cida-
des efetivamente apoiou o processo, com ativa participação de seus funcionários
na articulação e realização das conferências.
Na Conferência nacional, manifestaram-se alguns interesses bastante contraditó-
rios e o documento dela resultante revelou-se mais tímido do que desejava a comissão
executiva. Esta queria uma visão articulada das questões relativas à habitação, ao
saneamento e aos transportes, mas o documento final reiterava uma visão parcial e
segmentada. Na verdade, no próprio Ministério essa visão integrada não foi inteira-
mente incorporada, talvez por receio de se arriscar tudo em uma Conferência que
ninguém sabia como iria terminar. E, deve ser ressaltado, o próprio Ministério estava
sendo construído, com todos os problemas decorrentes da montagem de uma buro-
cracia tão ampla. Com isso, questões centrais, como a metropolitana, sequer foram
citadas. Por outro lado, tampouco os movimentos populares/ONGs conseguiram
mudar a visão setorializada. Mesmo no movimento popular existem visões muito
específicas para questão habitacional, transportes, saneamento etc. e um certo
corporativismo que dificulta uma visão mais ampla da questão urbana.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
67

Durante a Conferência, um dos embates mais importantes foi o relativo à


titularidade do saneamento. De um lado, empresários e governos estaduais, arti-
culados com entidades profissionais e alguns acadêmicos defendiam a titularidade
estadual, ao passo que o Fórum da Reforma Urbana, ONGs, companhias muni-
cipais, movimentos sociais, setores profissionais e parte da academia defendiam a
titularidade municipal. O grande interesse dos “estadualistas” era o de privatizar
o saneamento. A titularidade municipal acabou por ser aprovada, graças aos
movimentos populares e ONGs, que sempre estiveram profundamente articula-
dos. Os movimentos sociais também ganharam a votação a respeito da gestão
pública do saneamento. Tais votações evidenciam uma característica da Confe-
rência: a profunda articulação dos movimentos populares, que formaram um bloco
bastante coeso e que atuou com poucas contradições, fruto do amadurecimento
de suas posições ao longo de anos de luta em instâncias como o Fórum Nacional
pela Reforma Urbana.
Outro conflito central que se deu disse respeito à questão da representação. A
rigor, pode-se mesmo afirmar que o que dominou a Conferência foram os conflitos de
representação para o Conselho Nacional de Cidades, e menos o conteúdo do docu-
mento-base da própria Conferência. Tal conflito se desdobrou em duas frentes.
A questão da regionalidade reunia representantes de alguns governos estaduais
e de ONGs e movimentos sociais que não estavam articuladas às grandes redes
nacionais. Tais governos e entidades, a maioria de natureza local, temiam que, em
um Conselho Nacional de Cidades estruturado em representações de segmentos
da sociedade, eles não teriam qualquer tipo de voz. Como solução de consenso,
após um conflito bastante acirrado, foram indicados 27 observadores estaduais,
que podem fazer lobby e participar de comissões, mas que não têm direito a voto.
A segunda frente dizia respeito às ONGs e movimentos sociais que participa-
vam de redes nacionais, como o Fórum da Reforma Urbana e a Abong, e as que
não participavam de tais redes. Acabou por ser decidido que as três vagas no
Conselho das Cidades que cabiam a ONGs e movimentos populares seriam pre-
enchidas por entidades de caráter nacional, sendo duas vagas de suplentes ocupa-
das por entidades de caráter local. A discussão passa pela natureza dessas redes
nacionais: sendo articulações de entidades, elas devem se fazer representar ou as
próprias entidades devem fazê-lo?
Houve, por fim, um conflito com o governo, que queria uma composição
paritária entre governo e sociedade no Fórum, mas a sociedade acabou, por ser
mais plural e heterogênea, tendo maioria numérica.
Com o fim da Conferência, tem-se uma conjuntura de fortalecimento dos
movimentos sociais urbanos, como atesta a centralidade na agenda política da
questão da moradia, muito embora o Fundo Nacional de Habitação ainda não
tenha sido aprovado, e há um ambiente favorável à participação no âmbito do
Ministério das Cidades. O Ministério das Cidades incorpora a dimensão da parti-
cipação, embora muitas coisas ainda devam ser feitas, como a transformação do
Conselho das Cidades em uma instância deliberativa, e não apenas consultiva.

(*) Texto produzido a partir de entrevista concedida por Orlando Jr., diretor da Fase, para Moema Miranda
e Flávio Limoncic, em 07/05/2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
68

O PROCESSO DA CONFERÊNCIA DO MEIO AMBIENTE EM NÍVEL FEDERAL

Carlos Tautz
Jornalista, pesquisador do Ibase

A1. Etapas do processo

1. Registrar as várias etapas do processo de organização da Conferência


2. Identificar os atores responsáveis pelas iniciativas
3. Identificar os atores participantes neste processo

A proposta de realização de uma Conferência Nacional de Meio Ambiente que


orientasse o poder público federal na execução de políticas públicas tem suas
origens nas discussões há anos realizadas pela Secretaria Nacional de Meio Ambi-
ente e Desenvolvimento Sustentável (Semads) do Partido dos Trabalhadores (PT),
o maior e mais influente entre aqueles(as) que sustentaram em 2002 a vitoriosa
candidatura à Presidência da República de Luís Inácio Lula da Silva, ele próprio o
mais importante representante do PT.
A proposta também consta do programa de governo de Lula para a área do
meio ambiente, redigida e subscrita pelos(as) ambientalistas do partido em ampla
cooperação com dezenas de representantes de movimentos sociais e organizações
não-governamentais brasileiras que atuam no campo do socioambientalismo – e
que estavam, todos(as), representados(as) na I Conferência de Meio Ambiente do
governo Lula. Essa é a mais remota a origem desse evento, realizado entre 28 e 30
de novembro de 2003, na Universidade de Brasília (UnB), ainda no primeiro ano
do mandato de Lula. A conferência teve como objetivo principal a coleta de in-
formações para subsidiar a elaboração de políticas públicas.
É esse, aliás, o caráter, consultivo, da Conferência. Diferentemente da Confe-
rência de Segurança Alimentar e Nutricional, a do Meio Ambiente não necessari-
amente desaguaria em um espaço institucional definidor de políticas. Ela, no fun-
do, se constituiu em um instrumento de auscultação da sociedade, de levanta-
mentos de dados que o aparato estatal não conseguiria produzir, em uma ágora de
proposições de saídas para as várias crises socioambientais por que passa o Brasil.
O documento de convocação da Conferência, que teve como tema geral “Va-
mos Cuidar do Brasil”, foi divulgado por iniciativa da titular do Ministério do
Meio Ambiente (MMA), senadora (PT-AC) Marina Silva, no primeiro semestre de
2003 – e continha uma grande novidade. Fruto da aproximação histórica da minis-
tra e de seus(as) colaboradores(as) de movimentos e redes atuantes no campo da
educação ambiental, também foi convocada a I Conferência Nacional Infanto-
Juvenil pelo Meio Ambiente (realizada em parceria com o Ministério da Educação),
que se revelou um poderoso instrumento de educação para o exercício da
aprofundado da cidadania, tendo envolvido mais de 5,2 milhões de professores(as),
técnicos(as) e estudantes infantis e adolescentes. A propósito, o espírito da partici-
pação e da pedagogia ambiental orientou todas as fases da Conferência.
A construção da Conferência, mostraram as várias entrevistas realizadas, teve
como grande fiador a figura da ministra Marina Silva. Representante histórica do
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
69

movimento socioambientalista brasileiro, herdeira simbólica do legado de Chico


Mendes, reconhecida internacionalmente como militante das mais importantes
causas ambientalistas e de seus atores populares, a figura de Marina foi a garantia
que boa parte – se não todas – as organizações atraídas às conferências regionais e
à nacional tiveram de que esse processo se constituía em um modo novo de elabo-
ração de políticas públicas e de que seriam consideradas todas as posições que
compõem a miríade conhecida por movimento ambientalista brasileiro.
Marina foi a única ministra “eleita” no governo Lula. Meses antes do segun-
do turno da eleição presidencial de 2002, o nome da então senadora acreana foi
apoiado pelas quase 300 mais importantes organizações não-governamentais e
movimentos sociais do Brasil, em abaixo-assinado entregue ao então presidente
nacional do PT e hoje Ministro-Chefe da Casa Civil, José Dirceu. Foram exata-
mente essas organizações que, menos de um ano depois, estavam dedicadas à
construção da Conferência, que havia sido inscrita na agenda socioambiental bra-
sileira por um movimento que fez confluir em determinado momento os interes-
ses do governo e da sociedade.
O nome de Marina também foi o primeiro a ser confirmado por Lula para
compor o Ministério, momentos antes de ele também confirmar o nome do médi-
co Antônio Palocci para ocupar a pasta da Fazenda, sinalizando que, no governo
que se iniciou em 1o de janeiro de 2003, as duas áreas – a ambiental e a econômica
– teriam pesos políticos eqüivalentes. Durante o Fórum Social Mundial de Porto
Alegre, Marina foi longamente ovacionada por milhares de pessoas, por onde
quer que passasse. Pois foi essa pessoa que galvanizou o apoio de amplos setores
sociais, que encarnou o espírito da Conferência.
Assim, a Conferência do Meio Ambiente, ainda que se enquadre no processo
geral de conferências consultivas que o governo Lula inaugura, deve ser sempre
muito creditada à estreita relação que a ministra Marina sempre manteve e man-
tém com os mais diversos setores da sociedade, e foi também o fator determinante
da acorrida de centenas de entidades da sociedade ao convite ao debate.
Nesse ambiente, a Conferência para adultos(as) – a que teve o papel de indi-
car elementos que, uma vez assimilados pelo Executivo federal, comporiam o
principal das políticas públicas – teve três objetivos, que por si só explicitavam a
razão principal da realização da Conferência:
1. construir diretrizes para a consolidação do Sisnama (Sistema Nacional de Meio
Ambiente). O Sisnama é o complexo administrativo, legal e político integrado
pelos órgãos e legislação ambiental dos três níveis da administração pública;
2. diagnosticar e mapear a situação socioambiental do país. Levantar indicado-
res, atores sociais e fixar prioridades; e
3. promover um processo de mobilização e educação ambiental.
A maneira de alcançar esses objetivos era colher a opinião e as informações das
organizações da sociedade nos seguintes temas: recursos hídricos; biodiversidade
e espaços territoriais especialmente protegidos (unidades de conservação como
áreas de proteção ambiental, reservas e parques); infra-estrutura: energia e trans-
portes; agricultura, pecuária, recursos pesqueiros e florestais; mudanças climá-
ticas e meio ambiente urbano. Esses foram os temas estruturantes dos debates
estaduais, propostos pela tese-guia elaborada em conjunto pelo MMA e por
consultorias contratadas pelo Ministério. Em cada Estado, eles foram debati-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
70

dos e adendados, de acordo com a realidade regional. Assim, por exemplo, os


tema áreas protegidas (parques etc.), recursos hídricos e diversidade biológica
adquiriram importância maior nos Estados amazônicos, onde o território em
boa medida é constituído por parques estaduais e federais de floresta tropical
úmida, aquelas de mais intensa e extensa biodiversidade, e onde também se
localizam os maiores reservatórios de água doce do país.
É válido observar que a convocação, organização e realização das conferên-
cias para os(as) adultos(as) e para as crianças e adolescentes talvez tenha sido a
principal atividade estruturante do Ministério em 2003. O MMA colocou, ao
longo de quase seis meses de 2003, toda a sua (parca) infra-estrutura adminis-
trativa na tarefa de organizar as duas Conferências. Essa tarefa coube, inicial-
mente, às 27 gerências do Ibama (Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis), agência de regulação ambiental submetida administra-
tiva e politicamente ao MMA, nos Estados e no Distrito Federal, que tomaram
a iniciativa de convidar lideranças socioambientais locais e os governos estadu-
ais para organizar regionalmente as conferências.
Foram essas conferências estaduais que elegeram os(as) 912 delegados(as) à
Conferência Nacional, discutiram uma tese-guia proposta pelo MMA e enca-
minharam as suas propostas específicas ao evento realizado em Brasília, em
um tipo de processo piramidal que se iniciou localmente pela base ampliada –
segundo o MMA, a construção da Conferência Nacional, versão adultos(as),
contou com a participação direta de mais de 70 mil pessoas em encontros
preparatórios regionais, municipais, setoriais e nas 27 Pré-Conferências Nacio-
nais nos Estados, culminando na Conferência Nacional em si.
Como em sua grande maioria as gerências do Ibama são ocupadas técnicos(as)
oriundos(as) dos movimentos socioambientais regionais [que os(as) indica-
ram], a seleção dos grupos regionais que começaram a organizar as conferênci-
as regionais se deu em um sistema de consultas pessoais. A origem petista da
maior parte desses(as) gerentes contribuiu decisivamente para o diálogo pro-
dutivo que ocorreu entre esses(as) representantes do Estado e as organizações
da sociedade nos diferentes entes da Federação.
Os grupos que organizaram as conferências regionais, chamadas pelo MMA
de Pré-Conferências Nacionais, articularam-se de formas variadas, mas todos
com um ponto de partida: os Ibamas estaduais, que cederam as instalações e
pessoal, além de disponibilizar recursos financeiros e intermediar o patrocínio
de estatais federais às conferências estaduais.
Foram constituídas Comissões Organizadoras Estaduais, compostas por or-
ganizações governamentais e não-governamentais, federações de indústria, co-
mércio e agricultura, além de sindicatos de trabalhadores(as) desses setores eco-
nômicos, que constituíam o chamado “setor produtivo” – seriam os demais
setores improdutivos? Também integravam essas instâncias organizativas mo-
vimentos sociais, representantes de universidades e de populações tradicionais,
estas abarcando indígenas, ribeirinhos(as), quilombolas e habitantes de áreas
protegidas.
4. Identificar e descrever a institucionalidade constituída para implementar o pro-
cesso (denominação; mandato; recursos disponíveis; procedimentos; membros)
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
71

A2. Instrumentos da iniciativa


1. Comitê de acompanhamento (ou a instância correspondente)
1.1. Composição.
1.2. Coordenação.
1.3. Descreva a forma de funcionamento do Comitê (ou da instância correspondente), ressaltan-
do suas atribuições, número de reuniões, assiduidade dos membros, existência de atas.
1.4. Descreva o processo de formação do Comitê, ressaltando as tensões, conflitos, alianças e
acordos mais relevantes.

Nesse ponto, é importante recordar o processo piramidal de realização da confe-


rência. As conferências regionais/estaduais elaboraram as suas próprias propostas,
com base na tese-guia elaborada pelo MMA, e produziam cada uma um docu-
mento – conjunto de propostas e de moções – que foram enviados à instância
nacional. Assim, o papel coordenador da Conferência Nacional adquiriu, na maior
parte do tempo, um caráter mais administrativo, organizativo. Ele foi propositivo
apenas no início do processo, quando elaborou os temas para debate e a tese-guia.
As formas de organização dessas coordenações estaduais foram variadas, mas
tinham como base as orientações de que o Ibama, como representante do MMA,
detonaria o processo de organização e passaria o seu comando às organizações
regionais e aos governos estaduais – principalmente aqueles que tivessem mais
afinidade política com o governo federal. Em geral, essas coordenações regionais
foram integradas por um coletivo de dez a 15 membros, envolvendo forçosamen-
te pelo menos um(a) representante das gerências regionais do Ibama e um(a) do
governo estadual, além dos(as) representantes de organizações da sociedade, que
completaram o quadro.
Assim, o número de membros, os tipos de membros e a periodicidade de reu-
nião variavam de Estado para Estado – à coordenação nacional coube um caráter
mais administrativo, como dito antes. Até mesmo os locais de reunião variavam
desde a sede do Ibama (caso de vários Estados), a sede de uma organização pára-
governamental, como o Crea, o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura
(no caso do Rio de Janeiro) e sedes de organizações não-governamentais, como a
Fase (no Espírito Santo).
É importante observar que essa aparente autonomia para organização pode
esconder sérias deficiências organizativas e mesmo políticas. Um exemplo é a libe-
ração de verbas para a contratação da infra-estrutura para a realização das etapas
regionais da conferência. Em muitos Estados, foram as organizações da sociedade
que, na prática, responsabilizaram-se por viabilizar a conferência, cedendo mão-
de-obra, locais para reuniões e para a realização das pré-conferências, recursos
para viagens, recursos de informática etc. Em alguns Estados, como no caso do
Rio de Janeiro, a Petrobras, patrocinadora do evento, dedicou-se a construir a sua
própria conferência, apenas com seus(suas) funcionários(as), e somente liberou os
recursos financeiros acordados em sua cota de patrocínio meses após a realização
da Conferência Estadual.
Em outros Estados, a participação dos governos foi apenas formal, devido às
pesadas críticas que as organizações da sociedade impuseram às políticas ambientais
e econômicas regionais e que também se manifestaram durante a Conferência
Nacional.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
72

Cada Estado tinha autonomia para decidir a sua forma de organização, desde
que elaborasse propostas para cada item proposto na tese-guia. A coordenação,
portanto, variou de Estado para Estado, tendo a Conferência Nacional uma co-
ordenação definida pelo Ministério – com cerca de dez membros atuantes
escolhidos(as) a critério do MMA, porém de origens variadas, de empresários(as)
a indígenas – que terminou por conduzir também o evento final da Conferência.
Os(as) delegados(as) foram eleitos(as) em conferências/assembléias regionais,
das quais participavam qualquer cidadão(ã) eleito(a) em conferências regionais.
A escolha de delegados(as) à Conferência Nacional obedeceu a um regime de
proporcionalidade definido pelo MMA, dos quais se destacaram dois grupos: os
Estados que atingiram o limite superior para a delegação, 50 delegados(as) (Ama-
zonas, Pará, Bahia, Ceará, Mato Grosso, São Paulo e Rio Grande do Sul), e os
Estados que elegeram mais de 40 delegados(as) (Maranhão, Rio Grande do Nor-
te, Mato Grosso do Sul).
Do total de delegados(as), 33% eram representantes das esferas de governo
municipal, estadual, distrital e federal [foram 305 delegados(as), dos(as) quais
35% municipais, 38% estaduais e 27% federais], 41% de movimentos sociais,
populações tradicionais [indígenas, quilombolas e ribeirinhos(as)] e ONGs
ambientalistas, 19% de universidades, centros de pesquisa e conselhos profissio-
nais e 7% do setor produtivo, aí colocados(as) tanto trabalhadores(as) quanto
entidades de produtores(as). O próprio MMA surpreendeu-se com a eleição de 68
delegados(as) que representavam o setor “juventude”.
Por essa estratificação, fica claro que a Conferência conseguiu abarcar a totali-
dade de um público muito heterogêneo em sua composição, origem e proposta de
atuação social e ambiental. A cota mínima de participação de mulheres – 30% –
pré-estabelecida pelo MMA, foi plenamente alcançada. Segundo o MMA, dos(as)
delegados(as) eleitos(as), 576 eram homens e 336 mulheres.
Essa heterogeneidade reflete a chamada transversalidade que o tema
socioambiental incorpora. A propósito, essa transversalidade – a qualidade que o
tema socioambiental tem de perpassar diversas áreas, da política à economia, da
ciência ao movimento social, da legislação até questões de fundo religioso – é um
dos eixos em torno dos quais a ministra Marina definiu a prioridade da ação
governamental na área de meio ambiente, sem que os demais setores do governo
Lula tenham também incorporado essa preocupação. A própria exclusão da mi-
nistra Marina do núcleo decisório do governo explicita que a preocupação com a
transversalidade – ao contrário do que fazia crer a suposta prioridade dada ao
MMA quando do anúncio do nome de Marina para ocupar a pasta – é apenas
mais uma figura de retórica do discurso da política oficial.
Apostando nessa perspectiva, aqueles atores que compõem o chamado movi-
mento ambientalista – integrado pelos mesmos atores que acorreram à Conferên-
cia – aderiu integralmente ao chamamento da conferência. Principalmente por-
que o convocador era ninguém menos do que Marina Silva.
Isso, entretanto, não impediu a ocorrência de vários tipos de tensão entre as
organizações da sociedade e, principalmente, os(as) representantes dos governos
estaduais ocupados por forças políticas menos próximas do PT – que, é necessário
recordar, convidou para a redação do programa de governo de Lula boa parte
daquelas entidades que puxaram o processo de organização da conferência.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
73

O momento político em que ela se realizou, contudo, era outro. As divergênci-


as entre a necessidade pragmática de um governo central que se dedica à estabili-
zação financeira, tarefa para a qual necessita do apoio dos(as) governadores(as)
que controlam as bancadas estaduais no Congresso Nacional, levou o governo
federal a contemporizar com várias posições defendidas pelos governos estaduais
e que entraram em choque direto com a ação da maior parte das organizações que
abraçaram a realização da Conferência.
No frigir dos ovos, quando se manifestaram posições antagônicas entre orga-
nizações da sociedade e representantes dos estados – como, por exemplo, nos
casos de eleição de delegados(as), em que alguns(mas) eleitos(as) perderam esses
cargos em função da busca de governos por maior participação da Conferência
Nacional –, a decisão da coordenação da conferência foi a de, regra geral, não
iniciar embates com os(as) governadores(as). Os(as) delegados(as) que perderam
essa condição viajaram à Conferência Nacional e dela participaram na qualidade
de “convidados(as)” do MMA.
Em sua versão infanto-juvenil, a conferência reuniu mais de 5,2 milhões de
pessoas, entre estudantes, professores(as) e a comunidade em cerca de 15 mil con-
ferências nas escolas de Ensino Fundamental de todo o país, com uma média de
público de 360 pessoas por conferência em cada escola. Foram 380 os(as) delega-
dos e delegadas entre 11 e 15 anos de idade presentes à Conferência Infanto-
Juvenil, sendo 14 jovens de cada Estado, à exceção de Pernambuco, com oito
delegados(as), de acordo com a seguinte distribuição: professores(as) 4%, alunos(as)
de Ensino Médio 15%; alunos(as) de 1a a 4a série 15%; comunidade 15% e
alunos(as) de 5a a 8a série 51%.

2. Documentos oficiais
2.1. Documento base
2.1.1. Descreva o processo de elaboração e aprovação do documento (quem elaborou a pro-
posta inicial; quem participou das discussões; quais foram as instâncias institucionais de deba-
te e aprovação do documento; principais pontos de debate e tensão; responsáveis pela reda-
ção final).
2.1.2. Breve resumo do conteúdo da versão final do documento.
2.2. Documento de regras sobre a participação dos diferentes atores sociais no processo da
Conferência
2.2.1. Descreva o processo de elaboração e aprovação do documento (quem elaborou a proposta
inicial, quem participou das discussões; quais foram as instâncias institucionais de debate e
aprovação do documento; principais pontos de debate e tensão; responsável pela redação final).
2.2.2. Descrição das principais regras de participação no processo da conferência.

3.Temas tratados (entrevistas e atas)


3.1. Identificação dos temas tratados.
3.2. Mapeamento dos debates a respeito dos temas.
3.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos a respeito dos temas.
3.3.1. Para os atores de governo, incluir as articulações e tensões inter e intra
governamentais.
3.3.2. Para os atores da sociedade civil, registrar as articulações (prévias ou não) de grupos
e/ou redes.
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74

4. Propostas e sugestões da conferência (entrevistas, atas e documentos produzidos)


4.1. Identificação das propostas e sugestões.
4.2. Mapeamento dos debates na construção das propostas e sugestões.
4.3. Mapeamento das articulações, consensos e dissensos na construção das propostas e sugestões.
4.3.1. Para os atores de governo, incluir as articulações e tensões inter e intra governamentais.
4.3.2. Para os atores da sociedade civil, registrar as articulações (prévias ou não) de grupos
e/ou redes.

Como já foi dito anteriormente, o documento base, ou tese-guia, foi proposto


pelos(as) técnicos(as) do MMA e consultorias contratadas para esse fim, em torno
de seis megatemas que, teoricamente, abarcariam a totalidade das questões neces-
sárias para, conforme o próprio Ministério coloca na convocação da Conferência,
ser enfrentadas na busca de um desenvolvimento nacional assentado sobre bases
sustentáveis social e ambientalmente. Os temas são: recursos hídricos;
biodiversidade e espaços territoriais especialmente protegidos (unidades de con-
servação, como áreas de proteção ambiental, reservas e parques); infra-estrutura:
energia e transportes; agricultura, pecuária, recursos pesqueiros e florestais; mu-
danças climáticas; e meio ambiente urbano.
Quase todos eles também constavam da pauta de convocação de outras confe-
rências, indicando que a transversalidade defendida pela ministra Marina estives-
se sendo colocada em prática. Assim, por exemplo, no tema da infra-estrutura,
foram debatidas – e fortemente criticadas pelas organizações da sociedade – obras
como a construção de hidrelétricas em Rondônia, para fornecer energia ao com-
plexo agroexportador de soja, que constavam dos debates em torno de outro
espaço de diálogo governo-sociedade, o Plano Plurianual 2004-2007, o PPA.
Outro exemplo de como essa transversalidade estaria sendo praticada foram as
questões relativas à agricultura, cuja opção pela monocultura com o propósito de
venda ao mercado externo sofreu fortíssimas críticas, em consonância com o que
ocorreu na Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional. É óbvia a razão pela
qual esses temas são recorrentes nas várias conferências que o Poder Público Execu-
tivo federal convocou em 2003. Na de meio ambiente, em especial, está muito
presente, tanto no temário quanto na intervenção da grande maioria dos atores,
questões que dizem respeito aos paradigmas, aos modelos de desenvolvimento eco-
nômico e social e até ao processo civilizatório em andamento no Brasil.
Fazendo um esforço de síntese, ainda que correndo o risco da simplificação, é
possível dizer que debater questões como a das mudanças climáticas exige a defi-
nição de um modelo de geração de energia e de transporte, além da forma de
ocupação do solo urbano e rural, que tocam nas grandes opções de modelo de
produção de alimentos, o que define o maior ou menos grau de proteção à
biodiversidade. Este resumo mostra a escala da interrelação dos temas postos ao
debate e a importância deles para a definição de um modelo de desenvolvimento
nacional brasileiro, que definiu a Conferência.
Vale, nesse ponto, dedicar algumas linhas a respeito do tema mais freqüente
nas conferências regionais e que, levado sob a forma de moção à Conferência
Nacional, gerou aclamação ao discurso de Marina Silva e vaias estrondosas à
intervenção do Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva: o tema dos
transgênicos, que, à altura da Conferência, haviam sido liberados pela segunda
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
75

vez em menos de um ano por um governo que, em sua proposta, em pelo menos
seis oportunidades, prometia precaução no estudo desse problema.
Pelo menos 25 das 27 conferências estaduais aprovaram moções que preconi-
zavam restrições, em graus variados, à utilização dos organismos geneticamente
modificados (OGMs) e, em especial, críticas às seguidas liberações, por parte do
Executivo federal, da safra gaúcha contaminada por soja transgênica. Uma mo-
ção-síntese de condenação aos transgênicos foi apresentada e aprovada na Confe-
rência Nacional, em contraponto incisivo à política oficial que, às exceções das
posições da ministra Marina e do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel
Rosseto, demonstra clara simpatia pela adoção desses organismos.
Outra questão que mobilizou porções importantes de delegados(as) de pelo
menos cinco dos mais populosos Estados brasileiros de três regiões, que recolheu
amplo apoio de diversos movimentos socioambientalistas, e que causou forte cons-
trangimento ao governo, foi o caso do estímulo governamental às monoculturas
do pinus e do eucalipto para produção de celulose.
A pergunta intrínseca que os movimentos sociais fizeram na conferência, sob
a forma de propostas e de moções, foi: “qual é o modelo de desenvolvimento
que se propõe para o Brasil?”. Afinal, argumentaram os movimentos, a opção
estratégica do governo pelo negócio agrícola de exportação significa colocar em
segundo plano as reivindicações dos movimentos sociais e incentivar
monoculturas em larga escala com venda prioritária aos mercados internacio-
nais, por ora em cotação alta.
As monoculturas incluem a criação em larguíssima escala do gado de corte e a
plantação de soja (ambos avançam na direção da floresta amazônica), a cana de
açúcar e a do pinus e do eucalipto. Plantada em larga escala no Rio Grande do
Sul, norte do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, sul da Bahia e em Minas Gerais
(Estados de onde vieram as mais veementes propostas contrárias à sua adoção), a
monocultura industrial do pinus e do eucalipto, conectada à produção internaci-
onal de papel, é acusada por organizações não-governamentais, sindicatos de
trabalhadores(as) rurais, comunidades remanescentes de quilombos e muitas ou-
tras entidades populares de estar associada a desrespeito da legislação ambiental e
dos direitos humanos.
Em fevereiro de 2004, o governo anunciou um Plano Nacional de Florestas
[os(as) ambientalistas reclamam que monocultura de pinus e de eucalipto não é
floresta], que estava em fase final de gestação à altura da conferência. O Plano
prevê transformar a monocultura em iniciativa de governo, envolvendo os Minis-
térios da Agricultura, da Indústria e do Desenvolvimento e do Meio Ambiente.
Temas como esses lideraram as atenções dos vários movimentos, em quase to-
dos os Estados, mas não conseguiram romper com uma espécie de isolamento
temático que caracterizou as participações dos diversos atores. Cada um deles
dedicou-se prioritariamente a interferir no debate em sua área específica de com-
petência: quem era originário(a) de questões urbanas, por exemplo, dedicou-se a
elas em todo o processo. O mesmo se repetiu com os demais temas, exceto o das
mudanças climáticas, que pela sua própria natureza, exigiu uma intervenção
sistêmica, holística, que incorpore as diversas interfaces desse assunto.
Mesmo a “bancada” do setor produtivo, os(as) representantes das empresas,
que em todas as conferências regionais, assim como na nacional, atuou de forma
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
76

muito coordenada e competente – elaborando propostas de consenso e que ex-


pressassem o seu próprio ponto de vista –, focou sua intervenção naqueles itens
que mais diretamente expressassem seus interesses. Essa característica, aliás, é
explicada pelo fato de as empresas não terem em seu conjunto uma proposta
civilizatória, o que, no fundo, caracteriza o debate ambiental e, em certa medida,
mesmo a participação daqueles movimentos que se possa criticar pela sua inter-
venção, digamos, corporativa, na Conferência.
Como as demais moções, a dos transgênicos foi incorporada ao texto final da
Conferência, disponibilizada no site do Ministério na internet, o http://
www.mma.gov.br/conferencianacional/area.cfm?id_area=370, em que podem ser
encontrados os seguintes textos relativos à Conferência: Tese da Conferência Na-
cional, o Decreto que cria a Conferência Nacional do Meio Ambiente, o Regula-
mento da Conferência Nacional, o Manual para as Comissões Organizadoras, a
Minuta do Regimento Interno para Pré-Conferência, a Minuta para Conferências
Estaduais, a Apresentação Conferência Nacional, o Texto-Base e o Passo-a-Passo
das Conferências nos Estados) e entregue ao Ministério, para consideração na
elaboração das políticas públicas. Nada, nem a vinculação da ministra Marina e
sua força moral e política perante os movimentos sociais e o próprio Presidente da
República, garante que elas serão transformadas em políticas públicas.

5. Identificação dos resultados alcançados


5.1. Natureza das deliberações da conferência (consultivas, normativas, deliberativas).
5.2. Quais são os canais institucionais através dos quais as decisões, sugestões ou recomenda-
ções apresentadas pela Conferência são repassadas para as agências governamentais?
5.3. Propostas e sugestões incorporadas pelo governo (federal ou estadual).
5.3.1. Razões para incorporação: força da articulação interna à Conferência, interesse do
governo em incorporar, etc. (entrevistas).
5.4. Propostas e sugestões que não foram incorporadas pelo governo (federal ou estadual).
5.4.1. Razões para a não incorporação: fragilidade da articulação interna à Conferência,
desinteresse do governo em incorporar, etc. (entrevistas).

Até abril de 2004, as entidades que participaram da Conferência Nacional


ainda não haviam recebido qualquer informação a respeito de processos de acom-
panhamento da implantação das propostas formuladas na Conferência Nacional
e entregues ao poder público através do MMA. Apenas estava prevista a divulga-
ção de um CD com as deliberações do evento.
Há, entretanto, um claro sentimento entre várias das entidades que tomaram
parte do processo de que houve um acolhimento seletivo das propostas formuladas
na Conferência. Todas aquelas que convergiam com a proposta crescimentista clás-
sica da política econômica em vigor, ao que parece, seriam acolhidas.
Mas aquelas propostas que se chocavam com as diretrizes gerais da política
econômica, como, por exemplo, o estímulo às monoculturas da soja, das espécies
celulósicas e da criação de gado – destinadas à exportação geradoras de dólares
velozes, continuariam a ser estimuladas pelo governo, a despeito dos impactos
sociais e ambientais que elas viessem a causar.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
77

MONITORAMENTO DA CONFERÊNCIA DAS CIDADES

Edson Gonçalves Silva


Pesquisador da Fase/PA

1. Contexto situacional

1.1. Apresentação
A pesquisa da situação de implementação dos Conselhos da Cidade no município de
Belém e sua construção pela sua representação nos demais municípios do Estado do
Pará se constituiu como um desafio ao objetivo da pesquisa, considerando as dificul-
dades encontradas para a obtenção de informações pela via das entrevistas com os
sujeitos envolvidos, em função da dinâmica de suas responsabilidades cotidianas e de
imprevistos que impossibilitaram agilizar o acesso às informações em menor tempo,
durante o desenvolvimento do trabalho. No entanto, as inúmeras tentativas permiti-
ram que fosse garantido o sucesso do trabalho, possibilitando a avaliação da situação
dessas instâncias de co-gestão urbano-rural no Estado do Pará.
Para uma abrangência de informações que pudessem responder as questões-
chave que balizariam a pesquisa, foi feita a delimitação de seis entrevistas com as
pessoas1 envolvidas no processo e com domínio sobre o assunto, que pudessem
contribuir com relatos significativos para a análise da situação dos conselhos em
cada esfera de governo.
Desse modo, as informações contidas neste relatório estão repletas de informa-
ções que justificam a situação dos conselhos nas duas esferas e registram com
clareza as concepções ideo-políticas de cada ente, demonstrando de que maneira
os espaços urbano e rural são pensados no campo do planejamento e da organiza-
ção, denotando a quais interesses esses projetos estão vinculados, considerando as
diferenças que cada gestão implementa como política de governo, o que determi-
na, em cada esfera, os resultados das políticas de desenvolvimento socioespacial
em processo na região.
É importante destacar que a dinâmica de condução da organização dos conse-
lhos da cidade em cada esfera de governo obedece a uma dinâmica própria. O
governo do Estado desenvolve suas ações a partir do seu plano de governo, esta-
belecendo interlocuções com os sujeitos que compõem as associações dos municí-
pios e aliados políticos em vários municípios do Estado.
Ressalta-se a constatação do conflito político-partidário entre o governo esta-
dual (PSDB e aliados) e o governo municipal de Belém (PT e aliados) que, durante
suas gestões, vem se processando enquanto luta pela hegemonia política no muni-
cípio de Belém e Estado do Pará e que também se desenvolveu no embate político

1
Os sujeitos entrevistados foram escolhidos respeitando a paridade representativa, para garantir a imparcialidade nas
análises das informações. Desse modo, foram entrevistados: os representantes eleitos nas conferências estadual e
municipal (um em cada esfera); um representante dos movimentos sociais ligado ao Movimento Nacional de Luta Pela
Moradia (MNLM); um representante do governo municipal de Belém e um estudioso sobre desenvolvimento urbano e rural.
É importante registrar que inúmeras tentativas foram feitas para garantir a entrevista com o Secretário de Desenvolvimen-
to Urbano do Governo do Estado, mas todas as tentativas foram sem sucesso devido às várias justificativas dadas pela
chefia de gabinete.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
78

antes e durante a realização das conferências municipal e estadual, que ocorreram


no ano de 2003 e que se estenderam durante todo o ano de 2004, devido ao
processo de sucessão do Legislativo e Executivo à prefeitura da capital, que possu-
íam, à época, representantes dos dois projetos de governo em disputa, sendo um
dos pontos a serem considerados neste estudo, como o contraponto que caracteri-
za a concepção das gestões sobre espaços urbanos e rurais em Belém e em grande
parte dos municípios do Pará.

1.2. A análise das entrevistas: situação dos conselhos a partir da fala dos sujeitos
1.2.1. ENTREVISTA COM A REPRESENTANTE DO CONSELHO DA CIDADE PELO MUNICÍPIO DE BELÉM,
LAÉLIA BRITO
A organização do Conselho da Cidade em Belém
A entrevista com a Sr.ª Laélia Brito, membro da comissão executiva do Conse-
lho da Cidade, representante do Conselho Distrital do Distrito Administrativo do
Entroncamento e uma das representantes de Belém no Conselho das Cidades, foi
uma das entrevistadas que mais esclareceu a real situação do Conselho da Cidade
em Belém, devido a clareza das afirmações e opiniões prestadas, que evidenciaram
a forma como foi desenvolvida desde 1997 até ano de 2003, evidenciando a
experiência da gestão democrática da cidade pela via da participação popular.
Em um dos primeiros depoimentos da entrevistada, contatou-se como ocorre a
organização do Conselho da Cidade no município de Belém, que já existia, com
dinâmica própria, muito antes das determinações de formação dos Conselhos nas três
esferas de governo pelo Ministério das Cidades, não fugindo ao cumprimento da
prerrogativa legal do Estatuto da Cidade. Também esclareceu que não existe represen-
tante oficial do Conselho da Cidade de Belém junto ao Ministério das Cidades, afir-
mando que todos os conselheiros executivos têm igual poder de representação. Isso
demonstra o compartilhamento de responsabilidades pelas ações políticas na gestão
da cidade, não sendo centralizada na figura de um representante. Por outro lado,
impõem um exercício da democracia representativa dentro do próprio Conselho.
A Sr.ª Laélia explicou que o processo de eleição dos conselheiros da cidade em
Belém ocorreu através de eleições por bairro, onde os sujeito que alcançaram um
percentual de votos além do estabelecido pelo membros da comissão eleitoral
foram eleitos como conselheiros da cidade. “O Conselho da Cidade é representa-
ção dos conselheiros distritais, de conselheiros setoriais, de conselheiros temáticos
e também de entidades como Abong, CBB, CUT; então o Conselho da Cidade se
mantém dessa forma nessa composição”.

A relação do Conselho da Cidade com a prefeitura municipal


Sobre o apoio do governo municipal nas ações do Conselho da Cidade, a entre-
vistada afirmou que a prefeitura de Belém, até o ano de 2003 (último ano de admi-
nistração petista na Capital), prestou todo o apoio infraestrutural e logístico para o
desenvolvimento das atividades do Conselho. Ainda explicou que toda essa dinâ-
mica de participação popular nasceu com a experiência do Orçamento Participativo
em 1997 e prosseguiu até 2000, quando surgiu o Congresso da Cidade de Belém,
onde o apoio do Poder Público municipal sempre foi prestado a organização desses
eventos. Por dentro dessas afirmações, considerou como essa relação influenciou a
dinâmica interna dos conselheiros ao afirmar: “ (...) eu vejo até que os conselheiros
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
79

tendem até se acomodar e se deixar um pouco tutelar pelo governo municipal”. Por
outro lado, reconheceu “ (...) a nossa instância é respeitada, tudo o que diz respeito
ao planejamento do governo municipal da cidade, é passado pelo Conselho da
Cidade, o Conselho referenda, a L.D.O., é o Conselho da Cidade que aprova e
acompanha na Câmara, todo em qualquer planejamento e orçamento público, e
nesse ponto nós somos respeitados. Se porventura chegue a ter um determinado
conflito, do que a gente não concorde, o prefeito acata a decisão do Conselho da
Cidade, para ele e para o governo é a instância máxima de decisão”.
Com relação ao espaço de atividade do Conselho da Cidade, a entrevistada
falou que, no ano de 2003, a prefeitura cedeu um espaço para o desenvolvimento
das ações do Conselho, chamado Casa do Congresso da Cidade, que é adminis-
trada pelo Conselho da Cidade, que até então desempenhava suas funções em
uma sala da Secretaria Municipal de Coordenação Geral do Planejamento e Ges-
tão – Segep, caracterizada por ela como: “espaço da participação popular onde
nós vamos estar agregando toda a população de Belém, todos os conselhos de
direitos, enfim, todo aquele cidadão que queira esta contribuindo, reivindicando,
então nós vamos ser esse centro (...) então o Prefeito nos repassou essa Casa no
Congresso da Cidade, mas não só a sede do Conselho da Cidade, mas como as
salas para as Administrações Regionais foi uma demanda do 3º Congresso Geral
da Cidade, foi implementada agora, recente”.

Uma nova administração municipal, uma nova relação política


Foi levantada pela entrevistada uma preocupação com a nova administração
municipal que, para ela, irá dificultar o reconhecimento do Conselho da Cidade como
instância de participação popular. “O que a gente vê é que nós vamos estar daqui para
frente é com dificuldade como esse novo governo que está assumindo e que não
reconhece o Conselho da Cidade de Belém, não reconhece essa forma de participação
popular. O prefeito eleito disse durante a campanha e diz a todo instante que não
reconhece (...) apesar dele fazer parte do governo federal, mas não reconhece. Tanto
que o Estado não implementou até hoje o Conselho das Cidades em nível estadual”.
Ainda sobre esse ponto, a Sr.ª Laélia destacou que a estrutura operacional
disponibilizada pela prefeitura garante a viabilidade das ações; contudo, não con-
siderou mais importante que a garra e a coragem dos conselheiros em lutar pelos
interesses da cidade através do Conselho. Referiu-se ao 4º Congresso Geral da
Cidade, em que foi aprovada uma Carta Compromisso, em que constam as exi-
gências de implementação de todas as decisões aprovadas no C.G.C. desde 2000,
referindo-se ao que falta ser aprovado e outras formas de participação como Fórum
Pan-Amazônico, o Fórum Social Mundial, que caracterizou como instâncias em
que Conselho da Cidade sempre esteve presente. “O Congresso da Cidade de Belém
é referência a nível mundial, então sempre teve uma relação com outros países
inclusive. No Encontro das Águas, que vai haver agora em maio, o Congresso da
Cidade está em uma mesa e é atuante também como coordenador do processo.
Então nós não vamos deixar com que isso se acabe, com certeza. Agora, o impac-
to que nós vamos ter é da falta de reconhecimento. Mas nós vamos estar ali, na
resistência, exigindo o nosso reconhecimento até porque ninguém é funcionário
público. Nós fomos eleitos de uma forma legítima, direta, pelo povo, e com certe-
za nós vamos estar reivindicando esse espaço que é nosso”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
80

O Conselho da Cidade e os movimentos sociais na construção da gestão da cidade


Nas respostas sobre a relação do Conselho da Cidade com os movimentos
sociais que lutam pela reforma urbana em Belém e nas considerações sobre o
Plano Diretor, a entrevistada declarou: “ (...) nós temos dentro do processo de
congresso durante o ano; nós tivemos o congresso temático, nós temos dois con-
selheiros eleitos pela temática Plano Diretor Urbano. E que esse congresso foi
específico para discutir essas ações democráticas, chamando todos os movimen-
tos, inclusive moradia, para estar nessa regularização fundiária que falta ser regu-
larizada junto à secretaria do município (...) Hoje, na cidade, nós estamos levan-
do a frente o que foi aprovado no 3º Congresso, no Plano Diretor Urbano e,
durante esse ano, o Plano Belém 400 Anos. Então, no nosso Plano Belém 400
Anos, está todo o processo de planejamento da cidade, quer seja no Plano Diretor
Urbano, quer seja em outros setores”.

Avaliação da gestão democrática pela experiência do Orçamento Participativo


e Congresso da Cidade
Perguntada sobre o significado das experiências do Orçamento Participativo e
do Congresso da Cidade para a Gestão Democrática da cidade de Belém, a entrevis-
tada realizou a seguinte avaliação: “O Orçamento Participativo veio como um
pontapé inicial a chamar a população a começar a participar, a saber que temos
poder de decisão, que o cidadão pode chegar e demandar, e exigir os seus direitos
(...) Eu participo deste O.P. e fui delegada de várias obras, mas é um pouco limita-
do, porque nós apenas discutíamos o orçamento do ano seguinte e estávamos sem-
pre presas mais a obras físicas: escola, asfalto, e nós tínhamos inclusive muitas difi-
culdades em aprovar projetos sociais. O único projeto que era inovador na cidade
era o Bolsa Escola. Então todo mundo queria Bolsa Escola. Asfalto, nós tínhamos
essa dificuldade de colocar para a população que a cidade, apesar de necessitar
disso, precisava ser planejada muito mais além. Então, o Congresso de Cidade,
como se fala Congresso Setorial, que na verdade é tudo Congresso da Cidade, é que
apenas dentro do Conselho a gente divide por setores, mas todo e qualquer espaço
em que a comunidade está reunida é o Congresso da Cidade. O Congresso da Cida-
de veio trazer, inclusive esses setores: homossexuais, negros, crianças, índios, feiran-
tes, deficientes físicos visuais, os idosos... Quer dizer, começou olhar a cidade como
um todo, não só o asfalto, não só o Bolsa Escola, a criança em situação de risco,
mas a cidade como um todo, com todos os seus atores. Isso para nós foi inovador,
foi muito gratificante, e reafirmou a participação popular na cidade, que todo e
qualquer cidadão, apesar de morar em determinado bairro, apesar de saber que a
sua rua precisa ser asfaltada, mas ele já começou a ter aquele olhar de que precisava
de uma casa dos idosos, de que precisava de um centro de referência a drogaditos na
cidade, que precisava de obras de impacto para a cidade como a Primeiro de De-
zembro... Então ele começou a sair do seu umbigo e a ver a cidade como um todo”.
Questionada sobre o processo de planejamento das ações do Conselho da Ci-
dade por eixo temático, com vista a se tornarem anteprojetos para virarem políti-
cas públicas, a entrevistada informou que esse nível de organização operativa acon-
tece de maneira conjunta com todos membros que compõem o Congresso da
Cidade: “O Conselho da Cidade, sempre no início de cada ano, faz o planejamen-
to estratégico junto com todos os conselheiros distritais, setoriais, temáticos, com
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
81

todo mundo junto, e a gente se detém nos nossos eixos temáticos: gestão demo-
crática, inclusão social, direitos humanos. A partir daí, os conselheiros ligados ou
não a determinado eixo já dão prosseguimento ao que nós aprovamos, ao que
população está demandando. Agora com o Belém 400 Anos ficou mais fácil ain-
da, porque a gente já tem um plano para os 400 anos. Nós vamos nos debruçar
em cima desse plano e estar apenas junto à comunidade trabalhando esse plano”.
Solicitada a avaliar a experiência da gestão da cidade através do exercício da
participação popular, a entrevistada mostrou-se satisfeita com a forma de gover-
no petista, reconhecendo-se enquanto sociedade civil nessa proposta construída
na parceria Estado/sociedade civil. Nesse sentido, apontou os ganhos que houve
no âmbito da gestão da cidade durante os oito anos de governo democrático e
popular, declarando os fatores que contribuíram para o fortalecimento do Con-
selho da Cidade. “Os avanços foram inúmeros. Poder chamar o cidadão para
construir a cidade, construindo o planejamento da cidade, o futuro da cidade.
Hoje, por mais que queriam dizer que isso não vai acontecer mais, é impossível,
porque o hoje o cidadão participa, ele reivindica e, independente do governo ser
democrático e que deu o pontapé inicial para essa participação popular o cida-
dão também reivindica. Então a partir do momento que esse governo não res-
ponde à determinada ação, o cidadão também reivindica desse governo, reivin-
dica do estadual e também do federal. Nós vamos continuar com essa postura
de sociedade civil que aprendeu a reconhecer e a saber de seus direitos, e conti-
nuar reivindicando”.

O futuro do Conselho Cidade de Belém em 2005


Sobre os possíveis problemas que o Conselho da Cidade poderá enfrentar
com a nova administração municipal, a entrevistada foi precisa em responder
que medidas de resistência e de precação já foram pensadas para a garantia das
deliberações ainda não concretizadas, tanto demandas pelo O.P. como pelo
Congresso da Cidade. “Nós estamos com todo o nosso material de processo
que foi demandado, o Belém 400 Anos, obras demandadas no O.P. ainda,
tudo que possa ser passado para essa equipe de transição. E nós temos o co-
nhecimento do que vai ficar em caixa, quanto vai ser repassado. O Conselho
da Cidade tem esse controle todo, nós vamos cobrar da forma como está sen-
do executado. Nós do Conselho da Cidade, enquanto instância, que éramos
respeitados pelo governo municipal, vamos cobrar essa mesma lisura, tanto
que, logo depois da posse, nós vamos ter a reunião para discutir o Congresso
2005, e vamos chamar o novo prefeito, até porque tem que recompor os qua-
dros dentro do governo que fazem parte do Conselho da Cidade (...) Aqui no
nosso regimento, que é do governo, não tem direito a voto, mas necessita
acontecer a recomposição do membros, aí é que nós vamos começar a nos
deparar com essa relação. Independente de partido político, independente de
quem esteja à frente como titular, mas nós vamos continuar a trabalhar nessa
ação junto com a prefeitura, e independente, quer queira ou não, hoje nós
temos o conhecimento de tudo dentro do governo municipal, de todo o orça-
mento, de todas as obras, o que falta ser inaugurado. Não só o Conselho da
Cidade, como o Distrital acompanha, tem as comissões de fiscalização nas
obras, então nós vamos continuar com essa relação”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
82

Avaliando o governo Lula, o Ministério das Cidades e o governo estadual na


implementação do Estatuto das Cidades
“(...) No governo Lula, foi um avanço esse Ministério das Cidades de inclusive
estar provocando nos Estados, nas cidades, as Conferências das Cidades, apesar
dessa dificuldade política. Mas eu vejo que é um avanço. O Ministério das Cida-
des vem participando, em Belém, das ações, mas eu vejo que não necessariamente
caberia ao governo federal que isso fosse implementado, mas tem essa dificuldade
política. Nós temos um governo do Estado que boicotou a cidade de Belém du-
rante esses oito anos, retirando porcentagem do ICMS. Desde 97 para cá, foi
retirado, que dizer, não tem interesse em chamar a população para estar partici-
pando. Quer dizer, aconteceu a Conferência, já tem um tempo e nada foi feito.
Falta vontade política. Nós não tínhamos a presença do governo federal, nós não
tínhamos um governo do Estado democrático, apenas a prefeitura de Belém come-
çou, desde 97, a implementar a participação popular, e tem o Congresso da Cidade,
tem o Conselho da Cidade, além até que o governo federal está propondo hoje,
então é bem mais além, bem mais avançada a proposta, e o que eu vejo é essa
vontade política. Tem vontade política na prefeitura de Belém, mas a gente não vê
essa vontade política em nível estadual. Então por mais que seja uma diretriz do
governo federal, se não houver essa vontade política, vai continuar apenas no pa-
pel, como está desde a Conferência para cá. Belém continuou nas suas ações porque
já existia, mas e as outras cidades? Acho que não foi implementado nem um conse-
lho, pelo que eu saiba, a gente tem como referência os municípios aqui próximos.
Nós, que já estamos com essa experiência de segunda gestão do Conselho da Cida-
de, nunca fomos chamados para nada em nível estadual. Pelo contrário, nós temos
muitas dificuldades quando tem conferências estaduais de saúde, da criança, de
assistência (...) porque eles fecham um cerco político mesmo e não reconhecem a
representação de Belém, principalmente o Congresso da Cidade, não querem reco-
nhecer como espaço de participação popular”.

1.2.2. ENTREVISTA COM A PESQUISADORA OLINDA RODRIGUES MALATO


A entrevista com uma estudiosa de questões que envolvem o desenvolvimento
urbano e rural no Brasil representa, para o objeto da pesquisa, esclarecimentos
mais balizados à luz do estudo científico, destacando as minúcias técnicas e polí-
ticas que envolvem o planejamento das cidades e a forma como são gestadas pelas
três esferas de governo no país, em diferentes estágios de sua implementação. Des-
se modo, para garantir uma análise imparcial do assunto, foi que realizou-se en-
trevista com a professora Olinda Rodrigues Malato (professora-titular do curso
de Serviço Social da UFPA e doutoranda em Serviço Social pela Escola de Serviço
Social da UFRJ, onde desenvolve o tema da tese de doutorado “Do O.P. ao Con-
gresso da Cidade: a experiência de Belém do Pará”), destacada como entrevistada
para a obtenção de uma análise mais científica sobre o objeto pesquisado.

Avaliando a política para as cidades do governo Lula


No início da entrevista, a Sr.ª Olinda realizou uma avaliação do governo Lula,
em que teceu considerações parciais sobre as ações que vêm sendo executadas pelo
Ministério das Cidades, considerando que ainda estão em andamento as forma-
ções dos conselhos nos municípios brasileiros.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
83

“Eu acho que, no início, criou-se uma expectativa muito grande, ou pelo menos
se tinha a expectativa de que as coisas iam caminhar melhor. Eu não posso falar das
ações específicas que eles tomaram, mas, a princípio, foi muito importante, só pelo
fato de terem criado o Ministério das Cidades para conduzir as políticas para as
cidades. Mas eu particularmente esperava um pouquinho mais, e é só o que eu
tenho visto. De repente, eu não esteja acompanhando muito bem (...) Foram
implementadas algumas ações no sentido de conhecer, mapear as necessidades das
cidades. Aqui no Pará, o que eu tomei conhecimento foi a elaboração do PPA e de
alguns conselhos (...) Falando com algumas pessoas que participaram daquele mo-
mento, as pessoas me disseram que tiveram retorno (...) A gente só pode falar que
uma política está funcionando bem a partir do momento em que ela é colocada em
execução. Eu acho que só o fato de você fazer uma pesquisa de necessidade não é o
suficiente para a gente avaliar essas políticas. Portanto, eu acho que ainda não
existem mudanças concretas”.

Falando sobre a experiência do O.P. e do Congresso da Cidade


A professora Olinda fez ressalvas sobre o processo de participação popular
através da gestão democrática em Belém, relembrou o Orçamento Participativo
na primeira gestão petista como um “ensaio” mal realizado, em função da falta
de uma metodologia governamental mais consistente e organizada que levasse em
conta as demandas vs. o orçamento municipal; realizou considerações sobre a
revisão do Plano Diretor em Belém; caracterizou o Congresso da Cidade como
avançado, pois avaliou que esse espaço conseguiu congregar os vários sujeitos que
fazem parte da construção democrática da cidade; por fim, teceu comentários
sobre a implementação dos Conselhos da Cidade no Estado do Pará, consideran-
do se tratar de um espaço onde a participação da sociedade civil inexiste e as
decisões ficam centradas nas decisões governamentais e presas a interesses escusos.

Orçamento Participativo
“ (...) No processo do O.P. aqui em Belém, houve uma mobilização tão grande
(...) que isso causou um certo espanto, porque a população foi mesmo, ela foi
chamada e ela foi participar. Está certo que não foi aquela população mais
politizada, mas foi aquela população dos bairros que participa em função das
necessidades. Mas não dá para negar essa participação, não vou dizer que não foi
participação. É participação porque, através desse movimento, pode-se elaborar
formas de capacitação, de formação de lideranças, enfim, uma série de coisas que
se pode fazer no âmbito dessas assembléias, inclusive de politização das massas,
então isso me parece que não foi feito (...) Houve, sim, naquele primeiro momen-
to, muitas demandas, foi tanta demanda, que o pessoal da prefeitura ficou espan-
tado, não sabiam o quê fazer com tudo aquilo. Eu entrevistei uma pessoa lá de
dentro da CRC e ela me falou que foram mais de 60 mil demandas no primeiro
ano. Como atender tudo isso? Então eu acho que tem outras questões que preci-
sam balizar nessa análise: uma coisa é você falar de participação em Porto Alegre
e outra coisa é você falar de participação aqui em Belém. Porque lá em Porto
alegre tem uma cultura de participação bem mais sólida do que aqui. E antes do
PT assumir o governo lá”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
84

Congresso da Cidade
“Olha, eu acho que a experiência do Congresso da Cidade é muito boa em
termos de democratização, mas democratização, quando se fala em espaço urbano,
é muito ampla. Porque tem uma série de elementos (...) Acho que essa experiência
iniciou um processo de democratização no sentido de ampliar essa participação
para vários setores, isso já entra na questão da participação popular, no planeja-
mento urbano. Só que eu acho muito frágil, é um caminho de longo prazo, não dá
para a gente falar que, só com o fato de termos implementado o Congresso da
Cidade, nós já avançamos muito (...) Existe, como eu costumo dizer, uma mão via
dupla: não adianta um governo propor ou ampliar essa participação se os movi-
mentos e a população não têm condições de ampliar essa participação. Essa amplia-
ção da participação não é na presença física das pessoas que chegam para partici-
par do Congresso. Eu acho que esta faltando uma preparação maior, uma forma-
ção maior, para que se discuta questões do urbano, não só para discutir, mas para
fazer que elas sejam validadas. Pois uma coisa é encher uma plenária com 700,
800 pessoas e depois, mesmo depois de aprovado o plano de investimentos no
contexto das prioridades, se desviava os recursos, então não vamos fazer porque
não tem recursos. Enfim, o que foi definido naquelas plenárias tem que ser sagra-
do para ser legítimo”.

A discussão do Plano Diretor nos oitos anos de governo petista em Belém


“Eu acho que o negativo foi não se aprofundar no debate do Plano Diretor,
embora no último ano eu tenha percebido uma movimentação por dentro do
Congresso da Cidade. Deveria ser o ponto de partida para todas essas discussões,
inclusive sobre a revisão do Plano Diretor, que acabou não havendo essa revisão e
passou do prazo inclusive (...) Porque, além do Plano Diretor, existe o Estatuto
da Cidade, e o Estatuto da Cidade complementa o Plano Diretor e vice-versa.
Então eu acredito que isso foi um dos pontos negativos desse governo em relação
à construção de uma política em desenvolvimento urbano. Eles deixaram muito a
desejar nesse aspecto para mim”.

Analisando o papel do Estado, da sociedade civil organizada e das ONGs na


construção da política de desenvolvimento urbano em Belém
“Hoje em dia existe uma série de ONGs por ai. Agora as ONGs que nós
temos aqui em Belém, que discutem o urbano, são poucas, na verdade, que eu
conheço. A Fase é uma delas, e eu acho que elas estão fazendo um papel impor-
tante na questão da formação. Eu acho esse papel é interessante e contribui
bastante. Só que, para mim, é muito reduzido. A ação deles é muito reduzida
porque, em oito anos de governo, era para se discutir muito mais essas questões
do O.P. e do Congresso da Cidade que nós estamos discutindo aqui. Então eu
creio que as ONGs, assim como os movimentos populares, deixaram a desejar
até pela afinidade política (...) A maior parte das ONGs que trabalham a ques-
tão urbana têm afinidade com partidos de esquerda, principalmente com o PT.
Agora tem um detalhe: as ONGs têm recursos, os movimentos populares, não.
Trabalham naquele dia-a-dia, eles não têm condições de planejamento. Às vezes
é uma pessoa, ou duas, que levam aquela organização à frente (...) Eu percebo
que eles estão naquela falta de organização, de planejamento de suas ações.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
85

Então elas acabam ficando lá no seu espaço territorial, elas fazem na medida da
necessidade daquele espaço, discutem as questões que estão relacionadas àque-
las necessidades. Agora essa tríade, como você coloca, ONGs/Estado/movimen-
tos, eu acho que a tendência é se ampliar esse debate entre os três. As ONGs
estão com um poder de discussão mais à frente que o Estado. No Estado do
Pará, é difícil falar nesse novo contexto (...) Sou um pouco cética com relação a
tudo o que está ai”.
“ (...) Como eu te disse, é um via de mão dupla, não dá para esperar só pelo
governo, pelo poder instituído. Eu acho que os movimentos têm um papel funda-
mental nessa questão dos Conselhos. Se o movimento não está ali para tocar isso
adiante, para chamar, para organizar, para mobilizar, se ele não se interessa, não
adianta esperar que o poder público vá fazer isso. O movimento tem papel funda-
mental: dos setores, é único que não pode cochilar, sempre digo isso. Porque o
governo atende a todos (...) ele tem que atender à toda a sociedade e a pressão
vem de todos os lados. Eu acredito que esse papel é do movimento, de pressionar
mesmo quando tem um novo espaço. Porque o Conselho é um novo espaço de
debate, de discussão, e é claro que não interessa a muita gente que a sociedade
civil amplie esse espaço. Ela vai colocar explicitamente o debate sobre uma discus-
são muito séria, que é o orçamento público”.

Sobre a situação do Conselho da Cidade em Belém no final da gestão munici-


pal do PT
“O Conselho da Cidade estava se construindo, estava se ampliando, estava se
adequando. Enfim, quando você cria algo novo, a tendência é acontecer erros,
acertos, e era o que estava acontecendo. Mas eu acho que eles estavam acertando,
estavam no caminho certo, só que não houve uma consolidação desse processo,
foi muito pouco tempo. Agora que os conselheiros estavam se dando conta desse
espaço, do poder que esse espaço propiciava à participação da população e deles
também no âmbito das discussões das políticas, sejam elas de que tipo fossem,
porque todas as políticas passavam pelo Conselho. Embora, claro, muitos
questionamentos (...) Mas esse espaço estava aí (...) tinha sido aberto a essa parti-
cipação e eles estavam se encontrando, digamos. Agora me parece que eles encon-
traram um espaço específico para o Conselho, porque até então o espaço de en-
contro era a Segep, estava muito atrelado. E isso, do meu ponto de vista, tirava
um pouco da autonomia desse Conselho. Pode até continuar o Conselho, mas um
Conselho que tenha autonomia de aprovar o Plano de Investimentos, de chegar lá
e questionar, discutir como se fazia. Eu participei de várias assembléias em que os
conselheiros chegavam e discutiam, cobravam. Isso a gente não tinha visto em
governo nenhum aqui em Belém. Agora, saber se isso vai continuar dessa forma,
eu tenho quase certeza que não. Tenho uma expectativa de continuidade, mas
não dos mesmos moldes como estavam acontecendo anteriormente”.

Abordando as questões que envolvem a implementação dos Conselhos das


Cidades no Estado do Pará
“Olha, como você falou antes, a Amat, a Amut e Amam, desde que foram
criadas, são associações compostas por produtores rurais, as elites políticas, as elites
econômicas desses municípios. O conhecimento que eu tenho é esse, então eu não
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
86

tenho muitas expectativas em relação a mudanças mais concretas para os setores


mais ausentes do processo econômico. Até porque a experiência é mais trabalhar
com setores populares (...) Os setores populares têm que se organizar independente
de existir essas associações. Porque essas associações concretamente não têm víncu-
los. Eu posso elencar uma série de associações que atuam, mas elas não têm vez no
debate, dificilmente você consegue perceber isso. O que eu já vi dessas associações é
que elas têm uma ligação direta com o Poder Executivo no município. E esses
municípios têm, com certeza, uma ligação direta com o governo do Estado. Então
é aquela história, toda a ligação do governo do Estado (...) sempre esteve atrelada a
interesses econômicos, e resta muito pouco para outros setores da sociedade. E como
a maior parte desses municípios são desorganizados em termos de participação po-
pular, não existe uma [resistência]. Aqui em Belém existe uma boa representação,
mas na maior parte dos municípios do Pará, não existe essa organização, assim,
como a gente gostaria que existisse, que tenha força política. Falta força política
para eles. Eu creio que a via para a implementação desses Conselhos tem que ser
mesmo um investimento para que eles consigam um mínimo de organização possí-
vel e façam um enfrentamento com esses setores”.

1.2.3 ENTREVISTA COM JURANDIR NOVAES SANTOS DE NOVAES (EX-SECRETÁRIA DE PLANEJA-


MENTO DO MUNICÍPIO DE BELÉM)
A entrevista com a ex-secretária municipal de Planejamento teve para o subsí-
dio da pesquisa uma importância especial em função da riqueza de informações
prestadas por essa pessoa, que ocupou um cargo de grande importância na admi-
nistração local, diretamente ligada às ações de desenvolvimento urbano, detendo
o domínio do planejamento e da execução no campo da gestão democrática du-
rante grande parte do governo petista na cidade de Belém.
Durante toda entrevista, os depoimentos tiveram um caráter analítico e
avaliativo, nos quais foram destacados vários momentos do processo de desenvol-
vimento das ações governamentais a partir do exercício da participação popular,
englobando questões políticas e organizacionais dos espaços e instâncias de co-
gestão levadas à frente pelo “Governo do Povo”.

Análise sobre as Conferências Estadual e Municipal das Cidades


“A Conferência Municipal das Cidades foi um momento de aglutinação de se-
tores importantes da cidade. Ela trouxe uma reflexão, a possibilidade de se discutir
de forma sistematizada, que também já se vinha discutindo de forma sistematizada
na prefeitura de Belém, e trouxe um elemento novo, que foi trazer para o debate
municipal as três esferas de governo e também representação dos movimentos soci-
ais. Por outro lado, no caso de Belém especialmente, nós tivemos, em um primeiro
momento, uma dificuldade que foi o fato do governo do Estado destinar para os
municípios, em particular, Belém, uma definição de participação muito aquém da
que a capital deveria ter. Isso fez com que o Ministério das Cidades tivesse que fazer
um diálogo específico com o governo do Estado para poder levar quantativamente
a participação de Belém enquanto cidade. Ao mesmo tempo, os critérios de repre-
sentação estabelecidos pelo Ministério davam para todo o Estado, ao nosso ver,
àquela altura, menor para o município do que o município deveria ter, os critérios
locais eram definidos pela instância estadual somente, naquele momento”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
87

As dificuldades em garantir representações do Conselho Municipal na Confe-


rência Municipal das Cidades
“ (...) As representações nossas aqui da Conferência Municipal foram todas
representações de entidades, se eu não me engano, não tinha a possibilidade de
representação territorial, era apenas representação, com base, referência
organizativa, tanto que nós tivemos dificuldades para eleger representantes do
Conselho da Cidade. Havia alguns atores localizados que questionavam a partici-
pação dos Conselhos das Cidades, e nós assim garantimos aqui, dentro de uma
luta muito interna durante a Conferência. Não tinha dentro dos critérios, inicial-
mente, espaço para que o Conselho da Cidade participasse e o Conselho da Cidade
sim, tem representação territorial. Mas, se eu não me engano, a Conferência Muni-
cipal não tinha critério de representação de distrito, mas um critério de representa-
ção de entidade e de governo. Os critérios estabelecidos pelo Ministério (...) é poder
público, movimento popular, entidades empresariais, entidades, organizações não-
governamentais, então não tem um critério de representação de distrito. A represen-
tação territorial se dá pela abrangência das próprias entidades (...)”.

Sobre o apoio da prefeitura de Belém para a realização da Conferência Municipal


“A prefeitura foi uma das primeiras a tomar iniciativa. O prefeito Edmilson
fez o decreto, que é uma exigência do processo que tenha um decreto municipal,
e criamos todas as condições políticas que eram possíveis da nossa parte e condi-
ções materiais para a realização da Conferência. E foi muito interessante, porque
nós trouxemos para o debate, junto com os atores que estavam construindo, te-
mas que eram já objeto do debate na cidade, um outro tema novo, mas aqueles
temas que já vinham sendo debatidos, eles tinham muita coincidência com temas
apresentados pelos Ministérios das Cidades”.

Opiniões sobre a mudança no comando da gestão municipal em Belém


“(...) Não tenho como responder a todas as questões e achar que tudo o que eu
vou dizer é o que vai acontecer, não tenho condições de fazer inferências que vão
se concretizar porque a realidade é muito dinâmica, os processos surpreendem,
embora haja um quadro previsível: uma menor, uma total diminuição da partici-
pação do governo no estímulo do processo de organização dos movimentos ou de
participação de setores e pessoas que não necessariamente estão envolvidas ou
participam das entidades organizadas. Então, esse chamamento à participação,
eu acho que o que nós vivemos aqui em Belém foi um momento de retomada
desse processo organizativo, depois de uma década de 80 de refluxo do processo
de organização de mobilização. Principalmente a partir do início dos anos 90,
começa o processo de revigoramento das entidades de bairro, associações, entida-
des gerais, nessa luta, nesse embate pela reforma urbana, pela luta de democrati-
zação de acesso à cidade. Agora o que vai ocorrer, com esse próximo governo, se
os movimentos vão sustentar uma luta (...) eu acho que nós estamos vivendo esses
dias de restabelecimento, de parar para pensar nos rumos e tudo, como que cada
um vai se organizar, que cada setor vai fazer oposição sistemática a eventuais
perdas de conquistas ou retirar mesmo as conquistas, nós já temos um sinal, que é
o fato de nós termos disponibilizado uma casa como referência da participação
popular e que temos notícia que o próximo governo não vai garantir esse espaço,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
88

pelo contrário, vai recuperar essa casa de forma a não disponibilizar para o Con-
selho da Cidade, porque ela foi desapropriada para esse fim, e não sei se há uma
disposição de apoio governamental. Por outro lado, eu creio que vai haver uma
certa mobilização e resistência para que esses espaços políticos de organização
sejam assegurados. Há um plano de investimentos que foi aprovado pelo povo,
um plano que está em curso de obras que estão sendo realizadas e outras conquis-
tas no campo da liberdade, da quebra de preconceitos de vários setores como de
homossexuais, negros, índios e muitos outros. São conquistas muito difíceis de
serem retiradas, mas eu acredito que não vai ser fácil. Por outro lado, os meios de
repressão, de coerção, são muito fortes também, daqueles que não acreditam na
democracia. Eu acho que não vai ser uma relação tão respeitosa, tão ativa, como
se tinha. Mas eu acho que a gente tem que acreditar que um salto organizativo
importante para que esses processos todos não sejam aniquilados e voltemos aos
patamares de décadas atrás”.

A interlocução com os movimentos sociais para a construção democrática da cidade


“O governo tinha e tem um projeto que era, primeiro, de democratizar o aces-
so à cidade, acesso em todos os sentidos, não apenas acesso daqueles que histori-
camente se organizavam, mas o acesso de todos, inclusive daqueles que passaram
a perceber um pouco mais a possibilidade de que a cidade pode ser sua a partir do
governo. Há esse processo anterior ao nosso governo e há um processo que foi
sendo construído a partir da existência do ‘Governo do Povo’. Em relação à mo-
radia, os primeiros projetos que nós tivemos aprovados no governo foram proje-
tos de moradia, foram quase 50 milhões aprovados na Caixa Econômica para a
melhoria de condições de habitabilidade. Algumas dessas áreas foram ocupadas
pelo Movimento. Nós nem pudemos continuar o projeto porque os critérios dos
financiadores não cabiam. As áreas foram ocupadas e nós deixamos essas áreas
ocupadas pelo Movimento. Ao mesmo tempo, nós vamos juntos trazendo para a
cena também esses atores que já se organizavam, trazendo à cena outros atores
que tinham demandas que também não estavam pautadas pelos ditos organiza-
dos (...) São os cidadãos comuns que nunca tiveram a oportunidade de participar
de uma reunião, de uma assembléia, que nunca tiveram a oportunidade de sair da
sua casa, de demandar, de reivindicar direitos. São aqueles que, muitas das vezes,
não se reconhecem nas entidades organizadas, que nem sempre representam a
todos (...) Então você tem um conjunto de interesses na cidade que, muitas vezes,
estão pautados nas pautas específicas, e muitas não estão pautadas”.

As ações de governo para o desenvolvimento sócio-econômico da área insular


e continental de Belém
“O nosso desafio foi fazer uma combinação daquilo que estava colocado como
desafio para Belém, trazer esse debate público transparente, aberto, franco, colo-
cando os limites, as possibilidades, o que pode, o que não pode, e isso foi trazendo
para nós a possibilidade de construir uma metodologia que nós definimos como
Plano de Desenvolvimento Local Sustentável, que é para cada área da cidade definir
estratégias, a partir de necessidades específicas de atores que se mobilizam naquelas
áreas, mas que também se relacionam com toda a cidade. E construir planos que
atendam à necessidade de uma determinada área específica, mas que sejam vinculadas
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
89

com a dinâmica da cidade, para que a gente não construa guetos. Portanto, não são
demandas específicas, isoladas. Tudo isso é um processo de resgatar uma estratégia de
planejamento para Belém que não existia (...) Esse planejamento era relegado a uma
instância técnico-burocrática, muitas vezes distante do povo, das necessidades coleti-
vas. Um dos grandes desafios, naturalmente que as ilhas, as áreas insulares são uma
das prioridades agora na revisão do Plano Diretor, absolutamente prioritárias (...)
Todas essas áreas já ocupadas, organizadas, como também criar condições de preser-
vação, numa relação que não exclua a vida humana de outras áreas ainda não
ocupadas. Como Belém era muito carente, os investimentos em projetos sociais
importantes para criar condições dignas de vida para a maioria dos moradores das
ilhas, são 14 anexos, Família Saudável para Mosqueiro, esgotamento sanitário,
transporte escolar para crianças das ilhas, projetos agropecuários, apoio a áreas
ocupadas em Mosqueiro de famílias de assentamentos... Havia uma demanda re-
primida por políticas sociais que precisavam ser supridas. O desafio que nós estáva-
mos enfrentando era combinar todas as conquistas sociais com estratégias de preser-
vação da vida humana e preservação da natureza nessas áreas. Implantar um proje-
to de dez milhões em Mosqueiro para garantir saúde, é importante para garantir
qualidade de vida”.

Qual o legado que a experiência da gestão democrática deixa para a cidade?


“Eu acho que Belém é outra, do ponto de vista dessa autodeterminação, da
possibilidade de se construir. Todas essas pessoas que estiveram nesse processo
tiveram suas vidas transformadas, do ponto de vista da percepção, da possibilida-
de de que elas têm de serem livres. Naturalmente que esse não é um processo que
não se esgota no quarto, no quinto, no sexto, no sétimo, no oitavo ano, é um
processo que faz parte da História e, como processo histórico, existem momentos
de refluxos, momentos de maiores avanços. Eu acho que o maior legado é esse. É
saber que uma cidade pode ser governada por seu povo, a despeito dos governantes,
como isso vai servir de instrumento para que governos usem de meios de repres-
são, de cooptação, de coerção (...) Belém viveu e tem a possibilidade de viver uma
relação muito mais politizada do que tinha no passado, e hoje está muito claro
que um projeto para outra Belém, independente de quem está no governo. Eu
acho que está muito claro que existem projetos em disputa na cidade”.

Falando sobre a metodologia de revisão e operacionalização do Plano Diretor


“Nós adaptamos a metodologia do Congresso da Cidade (...) desde 2003, o
Plano Diretor foi tema prioritário do Congresso. Durante o ano de 2003, nós já
definimos inclusive os conselheiros que representavam o tema de Plano Diretor
dentro do processo de Congresso. Tinham conselheiros temáticos, fizemos semi-
nários nos distritos, fizemos o seminário municipal, que aconteceu ano passado
para discutir Plano Diretor, fizemos vários seminários com representantes de ou-
tros Estados, Ministério das Cidades (...) Na verdade, fizemos uma dinâmica de
discutir tematicamente por dentro do Congresso, fizemos oficinas e seminários
municipais, fizemos visitas monitoradas que chamamos de ateliê, visitas a diver-
sas áreas estratégicas da cidade com representantes de moradores das áreas e com
técnicos especializados em planejamento urbano, visitamos algumas áreas dessas
para indicar como essas áreas poderiam ser incorporadas na dinâmica da cidade
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
90

obedecendo a diretrizes gerais, fizemos seminários por secretaria... Praticamente a


maioria das secretarias, por tema, cada secretaria dentro da dinâmica de balanço.
Tivemos a consultoria do professor José Júlio (...) ele que fez o trabalho de acom-
panhamento do relatório final da revisão, ele apresentou esse documento já quase
agora no final do nosso governo. O Plano Diretor é tema das atividades prioritárias
que constam dentro do programa ‘Habitar Brasil BID’, que é um programa que
nós temos dentro do Ministério das Cidades.Ele tem dois subprogramas, que são
o ‘Programa de Unidades de assentamentos subnormais’, que é o que a gente
executa no Tucunduba, que é o projeto físico-social, e tem o programa de ‘Desen-
volvimento Institucional’. Dentro desse subprograma de ‘Desenvolvimento
Institucional’, que elabora o ‘Plano Estratégico Municipal de Assentamento
Subnormal’ , o ‘Pemas’, o Plano Diretor é uma das principais ações, então nos
adotamos essa metodologia”.

Comentando sobre os limites e dificuldades para a política de desenvolvimen-


to urbano e rural no Estado do Pará
“Uma grande dificuldade é que nós não temos políticas regionais. As políti-
cas ainda são ou muito municipais, estaduais, na tentativa cada vez maior das
esferas estaduais nas esferas locais. Uma relação muito verticalizada, e o fato de
não ter política regional de desenvolvimento cria uma dificuldade de coordena-
ção das estratégias locais, com as estratégias regionais e com as estratégias naci-
onais. Porque os municípios que se pautam apenas por projetos, por linhas de
financiamento (...) Há recursos disponíveis, então o município indica esses re-
cursos quando poderia se ter um debate regional mais intenso. Seriam as linhas
gerais do desenvolvimento que desdobrariam, naturalmente levando em conta
todas as necessidades locais. Um outro aspecto, com base na nossa experiência
de construção da Conferência, é que eu acho que tinha que dar espaço para
entidades novas, grupos organizados, não necessariamente com tradição (...)
que deveriam ter maior reconhecimento das iniciativas de organização local para
que não sejam somente os clássicos, as entidades já reconhecidas nacionalmente
com repercussão local (...) A dificuldade está em fazer esse diálogo diretamente
com os atores locais (...) Quais as categorias fundamentais da constituição de
uma cidade?”.

Avaliando os resultados do Orçamento Participativo e do Congresso da Cida-


de no campo da participação popular
“Basta pegar tudo o que foi feito na cidade. Se você fizer um levantamento
de tudo o que foi feito pelo nosso governo, você chegaria a conclusão de que,
por exemplo, nenhuma escola que nós construímos foi decidida pelo prefeito,
nenhuma unidade de saúde foi decidida pelo secretário de saúde ou pelo prefei-
to. Isso mostra que cada espaço desses, cada serviço novo para atender aos ho-
mossexuais, portadores de Aids, mostra que ter uma representação dos negros
junto à Secretaria Municipal de Educação (...) São conquistas que falam por si
(...) Nada mais revelador do que fazer cotejamento daquilo o que foi feito na
cidade, daquilo que foi alcançado, combinado, para identificar de onde surgiu
essa decisão (...) O governo também propôs projetos na sua parte, submeteu a
esse fórum e muitos desses projetos foram aprovados, como, por exemplo, o
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
91

Ver-o-Peso, forma 1.100 participantes das plenárias do distrito do Dabel que deci-
diram em 98 que o Ver-o-Peso deveria ser executado pelo governo. Mas nós estimu-
lamos que o Ver-o-Peso fosse um projeto aprovado, assim como a Augusto
Montenegro foi uma iniciativa do governo, não apareceu como demanda popular,
mas não precisava porque era algo auto-evidente (...) de que você não poderia
ter o centro isolado de uma parte de seu município. Então a participação popu-
lar aqui em Belém se realizou concretamente”.

Sobre a política de desenvolvimento urbano do governo Lula pelo Ministério


das Cidades
“Sem dúvida que o Ministério das Cidades, por si, já é um avanço, a existência
dele. É uma das equipes que tem feito esforço para pensar projetos de cidade, é
um das mais acessíveis, é uma das que mais conhece a realidade das cidades. E
nós, em especial, do governo, podemos aprovar projetos importantes na área de
abastecimento de água, de urbanização, de construção de casas (...) A definição
de projetos específicos dentro do Ministério das Cidades foi um avanço, se dispor
a estudar as cidades. Começou o processo de reflexão, de chamar a atenção para o
fato que as cidades existem, elas não são instâncias abstratas e que há esferas
federais que pensam a cidade, elas não são apenas espaços de realização de políti-
cas pensadas de forma verticalizada. Eu acho que o Ministério das Cidades veio
para romper com isso. Esse esforço do Conselho Nacional (...) e se tiver um esfor-
ço para que os Conselhos Municipais da Cidade sejam implantados efetivamente,
eu não tenho conhecimento de quantos foram implantados, no nosso caso aqui já
existia o Conselho (...) São instâncias importantes para aglutinar inclusive todos
esses atores que, muitas vezes, encontram-se dispersos, cada um pensando o seu
modo (...) mas que possa estabelecer diretrizes gerais para a cidade, metas que
possam dar mais elementos ainda para que se possa pensar um projeto de cidade.
Essa exigência legal de implantação dos Planos Diretores até 2006 é uma medida
importante, que é de lei. Seria uma oportunidade única para que o próprio Ministé-
rio das Cidades acompanhe, estabeleça as diretrizes, que é o que vem fazendo, crie
referências em cada região, em cada local, em cada cidade, para que, ao final, as
cidades, que são muito próximas, que têm características comuns, que têm identi-
dade, principalmente no nosso Estado que é tão repartido em termos de identidade
cultural, que você transforme os Planos Diretores em plano atualizados, que sejam
planos que resguardem as especificidades, mas que tenham elementos que possam
contribuir para a construção dessa política regional a que eu me referi”.

1.2.4 ENTREVISTA COM CARLA ARAÚJO (REPRESENTANTE DO GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ


JUNTO AO MINISTÉRIO DAS CIDADES)
Como única entrevistada e representante da esfera estadual, a entrevista Sr.ª
Carla Araújo (socióloga e assessora política do governo do Estado) se demonstrou
importante e esclarecedora no que tange a organização e operacionalização da
política de desenvolvimento regional no Estado do Pará, a partir das diretrizes de
governo e das relações políticas mantidas através de coligações estabelecidas por
esse com os municípios que compõem o Estado.
O conteúdo da entrevista centra-se em alguns aspectos do processo de
implementação e situação do Conselho Estadual das Cidades; da condução da
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política de desenvolvimento urbano-rural no Pará e abordagem da via estratégica


adotada pelo Estado para o cumprimento das exigências estabelecidas pelo Mi-
nistério das Cidades, mesclada aos interesses dos sujeitos políticos que comandam
o Executivo através de metodologia governamental própria.
Ressalta-se que, devido à sua extensão territorial, à diversidade cultural e aos
atores que o compõem o cenário do Estado do Pará, a operacionalização do Con-
selho Estadual das Cidades representa um grande desafio ao Poder Executivo
estadual e às municipalidades locais. Desse modo, para além das divergências ideo-
políticas, a construção de uma política de desenvolvimento para as cidades no
Estado do Pará irá requerer um planejamento das políticas de acordo com as
especificidades regionais, levando em conta as reais demandas locais. Eis o campo
do desafio e do conflito.

Da Conferência Nacional à Conferência Estadual das Cidades do Pará: carac-


terísticas e processos
“Primeiramente, a gente vai fazer uma retrospectiva de como aconteceu o pro-
cesso de construção no âmbito da 1ª Conferência Nacional das Cidades no Esta-
do do Pará (...) Foram destacados dois assessores para acompanhar o processo de
constituição, haja vista que nós participamos no âmbito nacional, conforme dele-
gado pelo Ministério e conforme consta no regimento (...) A Casa Civil integrou
a comissão que construiu, que formatou a Conferência das Cidades. Nesse senti-
do, nós acompanhamos todo o processo. Como o Estado do Pará tem dimensões
continentais, em função dessa distância e do prazo que foi dado, praticamente em
cima da hora para fazer as Conferências Municipais. Nós regionalizamos as Con-
ferências através das associações e dos consórcios municipais. Então nós congre-
gamos esses consórcios e toda a parceria foi feita a partir dos consórcios e associ-
ações através da Federação. (...) Reunimos os consórcios, reunimos as secretarias
gerais com os presidentes que agregaram os municípios afiliados e as Conferências
foram regionalizadas, foram constituídas nesse sentido (...) As Conferências fo-
ram regionalizadas, como as ações do governo do Estado são orientadas no senti-
do da gente facilitar o fluxo dessas informações através dessas entidades para
chegar aos municípios. A constituição da chapa e do 61 delegados que participa-
ram da Conferência Nacional foram acordadas politicamente (...) como é que
ficaria, que município seriam mais estratégicos para participar dessa discussão no
âmbito nacional. Inicialmente, como é uma inovação, eu poderia dizer que, no
âmbito da participação na política de desenvolvimento urbano, ninguém sabia
direito como iria funcionar efetivamente (...) Nós tivemos o cuidado de fazer um
levantamento de quais municípios causariam maior impacto nas suas regiões no
âmbito da política de desenvolvimento urbano, haja vista que a maioria dos
municípios do Estado do Pará são rurais, 80% dos municípios do Estado têm esse
formato. Há população urbana em pouquíssimos municípios e além do mais nós
temos os pólos, então a maioria da população está naqueles pólos. Um exemplo
disso é Santarém: é um pólo daqueles municípios arredores, onde toda concentra-
ção urbana está em Santarém (...) hospitais, as grandes escolas, a própria coleta
do lixo na área das residências, enfim, toda aquela política urbana, há uma difi-
culdade no Estado do Pará em função dessas características”.
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O posicionamento do Estado do Pará diante a política de desenvolvimento


urbano e rural do Ministério das Cidades
“(...) O Estado do Pará tem que ser trabalhado nas duas frentes, antes de mais
nada. Então não se pode pensar só numa população urbana ou só num desenvol-
vimento urbano para tender as quatro políticas que são discutidas no âmbito do
Conselho Nacional das Cidades. Como fazer saneamento para uma população
rural, se ela produz lixo orgânico? No âmbito da coleta de água, como é que elas
utilizam? (...) As discussões têm que ser diferenciadas (...) No âmbito da habita-
ção, no âmbito da mobilidade urbana, do trânsito, como é que essas pessoas se
deslocam? (...) A gente precisa discutir, e eu acho que o Ministério tem que levar
isso em consideração. Só que aí nós já passamos por questões políticas, essencial-
mente políticas. Eu diria que a Região Norte do Brasil tem essa característica, é
por isso que nós batemos num ponto em que, muito mais que observadores, os
representantes dos Estados precisam ser conselheiros, ter voz e voto. O que acon-
tece? Nós do Norte e Nordeste do Brasil, que conhecemos essas especificidades do
nossos Estados, isso não perpassa, porque o tempo todo a Região Sul está discu-
tindo como dar o tratamento final dos resíduos sólidos. Nós estamos ainda pen-
sando ainda em como coletar esses resíduos. Então é uma política totalmente
diferenciada, tem essas duas frentes. A política não deveria ser essencialmente ur-
bana, porque existe um questão rural que é relevante”.

Como se encontra o Conselho Estadual das Cidades no Estado do Pará?


“(...) Nós não tivemos muito claro o processo de construção em função do
tempo. Tudo foi publicado em cima da hora nos diários, tudo muito feito atrope-
lado (...) Ninguém teve direito como absorver. O que o Ministério vai fazer? Como
ele funciona? Em função disso, nós não construímos o Conselho na 1ª Conferência,
até mesmo porque a maioria dos Estados não o fizeram, porque era um critério de
participação. Nem existia uma resolução que obrigasse os Estados a cumprirem (...)
Agora, na 2ª Conferência Nacional, nós vamos ter que cumprir, vai ter que sair os
Conselhos Estaduais, os Conselhos Municipais ou Regionais – que é o caso do
Estado do Pará que, com certeza, eu creio, serão Regionais porque isso não afeta
muito os municípios, haja vista que o ônus do custo de quem constrói o Conselho,
ou seja, quem constitui o Conselho das Cidades tem que arcar com as despesas”.

A idéia da construção dos Conselhos pelo modelo da regionalização no Pará


“A diferenciação básica (...) um exemplo: você regionaliza a construção dos
Conselhos, em vez de um Conselho Municipal, você tem um Conselho Regional
(...) O Conselho Regional vai discutir no âmbito da região, considerando a
especificidade de cada município que esta no bloco (...) Então a coisa se torna
ímpar e você otimiza, ganha tempo. Você otimiza os recursos que vêm, melhor
distribui, e você começa a modernizar o sistema administrativo a partir de que
você gerencia isso, fica bem melhor (...) No momento em que você agrupa, que
você trabalha com consórcios, principalmente com consórcios e associações no
Estado do Pará, que têm especificidades essencialmente administrativas. Então
por ali perpassam características comuns, e quando você organiza em bloco, é
porque eles tiveram mais convergências do que divergências. Porque tem municí-
pio que tem Secretaria de Habitação e outros que não têm, municípios que têm
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Secretaria de Saneamento e outros que não têm, então é por isso eu é interessante
trabalhar por região (...) Você consegue congregar todas as áreas de interesse, vai
ser blocada a idéia, blocar nesse sentido é criar esses grupos por área técnica (...)
As associações é que vão indicar, unir e se alinhar com as nossas discussões no
âmbito do governo do Estado. Então você vai ter dois cenários, um municipal,
onde você tem os técnicos por área de interesse, e o outro estadual, onde vão
perpassar os interesses de cada Executivo, tanto municipal quanto estadual”.

As dificuldades e os encaminhamentos para a implementação das deliberações


da 1ª Conferência das Cidades do Estado do Pará
“A primeira questão refere-se ao modelo nacional, que não estava muito claro,
estava obscuro. Segunda, a própria condição do processo, não foi orientado para
isso. Como eu falei, não era um critério nacional. Então, objetivamente, as difi-
culdades encontradas na construção do Conselho não foram no sentido da cons-
trução, a gente apenas colocou um pouco mais para frente. E o que vai acontecer
agora? Nós vamos alinhar por área de interesse (saneamento, habitação etc.) e
também já estabelecemos um link com as associações de municípios, conforme
construído na 1ª Conferência Nacional (...) Vai ser montado um grupo de traba-
lho paralelo, antecipando o que vai ser feito no regimento. Veja bem, a idéia é
exatamente construir nesse sentido (...) Eu acho que o Conselho Nacional ama-
dureceu. Acompanhamos a primeira reunião, em que eu fui representando o Esta-
do (...) Nós observamos algumas lacunas, por exemplo, a ausência dos nossos
técnicos por área de interesse. Vamos levar agora para a 4ª reunião nacional os
técnicos que vão acompanhar os comitês técnicos, vão como convidados. Ter voz
e não ter voto não interessa para a gente, o importante é que eles saibam o que
está acontecendo efetivamente no âmbito do Conselho Nacional”.

A condução da política de desenvolvimento urbano-rural pelo governo do


Estado do Pará no âmbito da participação popular e da gestão democrática das
cidades
“ (...) Enquanto cientista político, eu responderia que isso ainda falta amadu-
recer muito no Estado do Pará. (...) Os governos executivos, tanto estaduais quanto
municipais, não vêem com bons olhos essa idéia de participação. Então, veja
bem, nós temos uma ação governamental que é social-democrata. Ela não resgata
a democracia em si. Então onde perpassam os interesses da população? Isso não é
participação, porque a idéia de participação é muito complexa. Ela envolve uma
série de precedentes e de atores que vão desde os políticos eleitorais até os sociais.
Então o que nós vamos garantir com certeza, ai eu volto a falar enquanto governo
do Estado, a gente tem essa visão que é complexa, essa participação (...) A Seurb já
tem o mapa das entidades, como foi feito na primeira conferência, de quem é quem
das entidades, que áreas de interesse na sociedade civil, principalmente as institui-
ções acadêmicas, esse pessoal todo tem interesse em participar. Essas organizações
vão se fazer presentes em todo o campo de discussão (...) A gente não pode deixar só
de um lado se não o negócio fica desigual. Nós temos que equilibrar essas duas
frentes. Mas nós temos como premissa, garantir a participação representativa da
sociedade civil. (...) Diria que o perfil do governo do Estado do Pará é no sentido de
orientar, de certa forma, a harmonia na condução das políticas (...) tanto é que nós
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nunca tivemos animosidades no sentido dos movimentos sociais. Você não vê


muita greve, porque a gente encontra um consenso sempre que há uma reivindica-
ção, a gente procura atender da melhor forma possível dentro do orçamento. Por
exemplo, a política de desenvolvimento urbano é muito precária no Estado. Esse
tipo de movimento a gente não tem. Nós temos algumas cooperativas, como a
Conteto, nós temos alguns movimentos, como o Movimento Nacional de Luta
pela Moradia, que tem uma representação aqui no Estado (...) algumas entidades,
mas eu diria que elas não vão armadas para qualquer discussão (...) vão enquanto
propositivos e consultivos”.

O planejamento regionalizado das ações de desenvolvimento urbano-rural pelo


Conselho Estadual do Pará e as associações dos municípios
“(...) O governo do Estado procura sempre a política e forma como está sendo
conduzido no Conselho Nacional, tanto é que a garantia da participação dos
conselheiros é sempre feita em todas as reuniões. Dessa forma, nós podemos
visualizar como é que o governo federal está fazendo. Com relação ao cronograma,
nós acompanhamos o calendário nacional porque é hierárquica a construção do
processo das Conferências: governo federal, governo estadual, aí depois que vai
para os municípios, então cada um vai regendo em suas instâncias, mas vem de
cima para baixo a coisa. Nós efetivamos desse jeito a construção coletiva, e eu já
pontuei algumas coisas (...) Nós temos uma minuta de regimento que vai ser
discutida com os nossos técnicos, e já vamos chamar a associação dos municípios
para deixar a par dos prazos estabelecidos pelo Conselho Nacional, então tem o
cronograma e o regimento. Então tem toda uma formatação que foi discutida no
âmbito nacional e que foi trazida para o Estado do Pará”.

Os limites orçamentários para a viabilização da política de desenvolvimento


urbano nos municípios paraenses
“ (...) Das políticas do governo federal, a questão orçamentária eu poderia
dizer que (...) estamos acompanhando a discussão orçamentária nacional. Volto a
repetir: não é culpa Do governo federal no âmbito do Ministério, porque real-
mente foi enxugado significativamente o orçamento. Então o que a gente vê muito
vago é porque está muito conceitual. A gente vai para lá, tem discussões interes-
santíssimas, mas muito academicistas, principalmente os comitês técnicos (...) Nós
não temos o retorno orçamentário concreto para o desenvolvimento urbano. Por
quê? A gente fica lá, discutindo, discutindo, discutindo, onera muito, principal-
mente para o governo federal, que custeia a maioria das viagens, o deslocamento,
enfim, tem uma série de custos pagos para quem vai fazer palestras. E o que a
gente tem de concreto hoje no âmbito de tudo o que já foi discutido, além do que
é votado no campo orçamentário nas áreas de desenvolvimento urbano, política
nacional de habitação, tudo bem, isso é interessante. Mas o que de concreto eu
tenho para chegar lá para o meu prefeito e dizer para ele ‘Olha, prefeito, a gente
tem plano nacional de habitação’. Ele vai dizer: ‘O que é isso? Eu quero é saber de
dinheiro aqui no meu caixa para fazer casa’ (...) A maior dificuldade é essa, a
gente não está vendo o retorno concreto de tudo o que está sendo discutido, está
bem academicista (...) Inclusive uma das dificuldades para implantação do nosso
Conselho no âmbito regional, tanto no âmbito regional/municipal e estadual, vai
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ser essa, sim. Isso é uma realidade dos nossos prefeitos, infelizmente (...) Eles que-
rem um retorno efetivo, o que eu preciso trazer de orçamento, de investimento
para o meu município. O saneamento e o Projeto Alvorada, por que estão estag-
nados pelo governo federal? O Projeto Alvorada era política de desenvolvimento
urbano mais concreta que nós tivemos, porque ele ia lá no município e arrumava
a rede de esgoto, mandava fazer casa, mandava fazer as latrinas, sanitários, enfim.
Então é isso é que esta faltando”.

1.2.5 ENTREVISTA COM MIGUEL LOBATO (REPRESENTANTE DO MOVIMENTO NACIONAL DE LUTA


PELA MORADIA NO CONSELHO NACIONAL DAS CIDADES)
Para o contraponto das idéias sobre a operacionalização da política de desen-
volvimento das cidades, feita pelas três esferas de governo em cumprimento às
exigências prerrogadas pelo Estatuto da Cidade, sob a ótica dos movimentos so-
ciais que lutam pela democratização da gestão das cidades no país. Destacou-se
como sujeito importante para expressar as idéias referentes ao objeto da pesquisa
o representante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Sr.
Miguel Lobato, que vem participando ativamente dos fóruns de debate que dis-
cutem o desenvolvimento das cidades e que, pela sua trajetória e concepções, se
posicionou crítico à condução da política de desenvolvimento das cidades nos
âmbitos local, regional e nacional, abordando pontos que inferem sobre a partici-
pação popular, a gestão democrática, o controle social, o orçamento público e o
Ministério das Cidades.

Avaliando a experiência de gestão democrática em Belém pela prática da parti-


cipação popular
“Vamos fazer um parâmetro da gestão antes da do Edmilson e uma depois.
Efetivamente, o Orçamento Participativo é um avanço no que tange a participa-
ção da população. Agora, efetivamente, ele contém erros, tanto o Orçamento
Participativo, como o Congresso das Cidades que a prefeitura de Belém criou. Ela
diferenciou do criado em Porto Alegre. Aqui em Belém, para mim, o grande erro
foi você só discutir obra, mobilizar a sociedade para discutir obra, a sociedade ir
lá para dizer que a sua rua tem que ser asfaltada (...) Criou-se uma cultura de
quem leva mais, ganha. Então, na realidade, você tem um briga das comunidades
contra as comunidades. Uma outra coisa é que você esvaziou, o parâmetro funda-
mental é esvaziar os movimentos sociais. É inadmissível na cidade de Belém, um
cidadão lá da passagem São Luís, lá no bairro de Icoaraci, com 110 casas, lá na
Oito de Maio. O cidadão que sai de lá para ser só delegado de lá só para ter a sua
rua asfaltada, tem o mesmo voto que a coordenação geral da CBB, a Comissão de
Bairros de Belém. O voto dele tem o mesmo peso que a da presidente da Femecam.
O debate está em não pensar a cidade, em democratizar a gestão, em democratizar
a participação social. O debate era assim: para eu ter a minha rua asfaltada, ou eu
tenho que ir para Orçamento Participativo ou para o Congresso da Cidade. O
Congresso da Cidade era para pensar a cidade, para pensar a política, pensar as
estratégias da cidade, de como a cidade desenvolver, de como o cidadão poderia se
incluir na cidade, de como gente está planejando a cidade em conjunto. O proble-
ma é quando você diz assim, as verbas do IPTU são para discutir as obras da
cidade, você aguça população de vir para o Congresso da Cidade, aí você chama
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para o Congresso da Cidade dez mil pessoas, aí você vai para a televisão e diz
assim: ‘No Congresso da Cidade desse ano participaram 50 mil pessoas, 200 mil
pessoas’. Mas efetivamente, o que se traçou lá de estratégias para a cidade? O que
foi que o munícipe disse que era importante para a cidade? Muito pouca coisa. O
que saiu de lá foi um monte de obra que deveria ser feita. Acabou que a popula-
ção deliberou um monte de obra e a prefeitura não fez porque o orçamento dela
não comportava. Ao invés de você fazer uma participação popular qualificada, a
partir da qualificação eu não quero discutir obra, eu não quero discutir orçamen-
to. Eu quero é discutir o que a cidade precisa, como é que cidade tem que desen-
volver, no vários temas e, na transversalidade dos temas, desde a urbanização,
desde a nova visão do Plano Diretor, da geração de emprego e renda, da política
do desenvolvimento sustentável e tal (...) O Congresso da Cidade serviu para
haver um choque, um conflito de interesses da população pobre, que é um briga
de trabalhador contra trabalhador”.

Como se planejar a cidade com participação popular e controle social?


“Primeiro, participação popular não é assembleísmo, nem só audiência públi-
ca. Tem várias maneiras de participação popular, inclusive pegando propostas dos
movimentos e aprimorando elas. Eu acho que os movimentos sociais no Brasil se
desenvolveram muito a partir de 80, a partir de 88, quando eles fizeram ter o
capítulo da política urbana na marra (...) onde eles colocaram o Projeto de Lei
2.710, que cria Fundo Nacional de Moradia Popular, quando aprova o Estatuto
das Cidades, tudo isso foi um desdobramento. Com esses desdobramentos, os
movimentos sociais no Brasil conseguiram avançar de serem um movimento me-
ramente reivindicatório para serem movimentos efetivamente propositivos. Na
década de 70, propor a macrodrenagem, que hoje está na sua fase final, que nem
o governo do município de Belém, que nem o governo do Estado diz que foi uma
proposta dos movimentos sociais, foi uma proposta efetivamente da CBB (...) Os
movimentos sociais sabem hoje como se desenvolve a cidade. Então a gente tem
que sair do debate meramente tecnicista, no qual os técnicos sabem tudo, para
implementar um debate participação, da co-gestão, da gestão democrática. Por-
que gestão democrática não é colocar dez mil pessoas em uma assembléia e dizer
que isso aqui é orçamento participativo. A gestão democrática é você optar desde
a qualificação profissional, da implementação da verba, do direcionamento da
cidade. Para onde a cidade tem que crescer, como é que a cidade tem que crescer,
como é que a gente faz a inclusão social, como é que a gente trata os diferentes. E
esse debate não é a partir de voto, a partir de crachá, ele um debate do acúmulo
da experiência que as pessoas vêm tendo em seus municípios, e ele não é um
processo que se cria do dia para noite, ele é um processo de longo prazo, indepen-
dente de o governante ser de esquerda ou de direita. Nem um governante quer que
a sociedade civil diga para ele como ele tem que governar, nenhum dirigente quer
ser fiscalizado, independente da matiz política dele. A discussão da democratiza-
ção das informações é um debate neoliberal. Se a gente pegar a Revolução France-
sa, ela já dizia isso, que participação popular deveria ter, quem fez a Revolução
Francesa não foram os socialistas, foi a burguesia, foram os capitalistas. Então
participação popular para a gente obedece a um parâmetro, ao parâmetro da co-
gestão. Se não tiver co-gestão, se não tiver o controle social, em função do controle
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sobre o social, aqui no Brasil tem muito, é o prefeito que quer intervir na entidade,
é o governador intervém na entidade, é o presidente da República que intervém na
entidade, são os conselhos de amigos, são as entidades que fazem parte do meu
campo político, então coloca essas entidades dentro dos conselhos porque elas
vão servir de correia de transmissão, então isso é um controle sobre o social. O
controle social que a gente quer é um controle tenha num conselho municipal
dotação orçamentária para fazer o que ele quer, que ele tenha infra-estrutura,
que ele tenha livre arbítrio para fiscalizar o gestor, que o gestor não esteja inter-
vindo no trabalho do conselho. Essa é um pouco da gestão democrática que a
gente quer”.

A relação dos movimentos sociais com a prefeitura de Belém nos oito anos de
governo
“ (...) Uma coisa que eu acho extremamente errada é que a gente capacita muito
para participar de controle social os movimentos sociais, como se a participação
popular não fosse uma bandeira dos movimentos sociais, a gente se esquece e deixa
de capacitar o gestor para ele aprender que a participação social é fundamental, não
só a gestão. Enquanto a gente tiver uma matiz política, gestores que acham que
participação popular tem que ser uma marca, tem que ser um direito do cidadão,
porque o dinheiro que ele está administrando não é dele, é do munícipe, e do munícipe
pobre que é quem paga imposto. Enquanto a gente não tiver gestores que tenham
essa clareza e essa concepção, nós não vamos ter participação popular, nós vamos
ter arremedos, nós vamos ter discussão de orçamento de participativo. Nós, do
movimento social, trabalhamos muito mais com a lógica da política urbana (...)
Nós só temos um viés, principal mote da política urbana é a terra, a terra está na
mão da burguesia há anos, e vai continuar assim se não houver um tratamento de
choque no debate da política fundiária no Brasil. Tanto faz da questão urbana,
quanto da questão rural. O que nós fizemos para mostrar que a maneira como a
prefeitura está levando foi a ocupação de terra, inclusive em terras municipais em
Belém. E aí mostra que os gestores não estão preparados em estabelecer o debate
com os movimentos sociais. Uma prefeitura que se arvora em se dizer democrática e
popular, você teve o enfrentamento com a policia, você tem uma área da prefeitura
de Belém que não está regularizada, então isso mostra que a democracia não é tão
democrática, que a participação popular não é tão popular, porque quando você
ocupa uma área que é da prefeitura, ao invés de o tratamento ser outro (...) Olha, os
governos de direita trataram o movimento na base do chicote, na base do cacete, na
base da polícia. A questão do desenvolvimento urbano no Brasil é uma questão
social, ela não é uma questão de polícia. Então, um governo democrático-popular
no mínimo deveria ter esse pensamento. Não foi esse o pensamento da prefeitura de
Belém. O tratamento foi o mesmo do embate, do choque, da tentativa de cooptação
de lideranças para derrubar as lideranças que estavam dirigindo a ocupação. A gen-
te percebeu que discussão da democracia vai até onde não me atinja. Nos oito anos
de Orçamento Participativo e Congresso da Cidade, efetivamente tem duas corren-
tes no O.P. e no Congresso da Cidade (...) Tem aquele pessoal que defende essa
maneira de que Orçamento Participativo é de quem leva mais, de que o governo
tem que interferir por dentro como interferiu, como sempre as obras que passaram
foram as obras que o governo quis. Tem uma outra corrente que diz que não, que o
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debate é para pensar a cidade, que é para construir a cidade, que é para educar o que
é participação popular que efetivamente não houve. Portanto, o Orçamento
Participativo tem que ser uma organização da sociedade para o governo, e não do
governo para a sociedade “.
O posicionamento do movimento diante a implementação do Conselho da
Cidade em Belém
“Eu acho que tem duas coisas que Belém está à frente no Brasil. O Plano
Diretor é um dos mais avançados do Brasil. Tudo o que esta no Estatuto da
Cidade, pouca coisa não esta no Plano Diretor de Belém. O Plano Diretor de
Belém criava o Conduma, a prefeitura de Belém, desde a gestão do Hélio Gueiros
até a gestão do Edmilson, não criou o Comduma, que é o Conselho Municipal de
Desenvolvimento Urbano, que seria similar ao Conselho Nacional das Cidades.
Onde hoje você tem um conselho que discuta desenvolvimento urbano no muni-
cípio de Belém, o conselho do orçamento participativo não substituiu o Conselho
Municipal das cidades. O Plano Diretor de Belém não foi implementado, o Plano
Diretor de Belém não foi revisado e o Plano Diretor de Belém fez dez anos em
fevereiro. O Plano Diretor de Belém foi sancionado em 93. A sociedade civil não
foi chamada para discutir como esse Plano Diretor seria revisado (...) Nem para a
gente fazer um debate de como seria a participação popular por dentro do Plano
Diretor. Porque o Plano Diretor de Belém é um dos melhores do Brasil no que
tange ao desenvolvimento urbano, a questões urbanísticas, mas ele é falho no que
tange a outras coisas. O Plano Diretor de Belém não avançou no que tange a
política de saúde, a questão da geração de emprego e renda, a questão da partici-
pação popular, ele não avançou nisso. Você não tem um diagnóstico de Belém
dentro do quadro do perfil epidemiológico, você não tem geração de turismo
para as nossas 39 ilhas, você tem um quadro urbanístico, mas quando você vai
pensar a cidade para médio e longo prazo, ele não serve, ele serve para o pensa-
mento da cidade urbana, não a partir da transversalidade, a partir de todas as
questões sociais que a cidade precisaria enfrentar. Então esse foi um dos erros
dessa gestão, de não ter participação popular. Para nós, Orçamento Participativo
e Congresso da Cidade não efetivamente dizem que têm participação popular”.

Reflexões sobre processo da criação dos Conselhos Municipal e Estadual das


Cidades no Brasil
“ (...) O primeiro ponto é a novidade de discussão da política urbana. Os
movimentos sociais, depois de 12 anos de enfrentamento, nós conseguimos colo-
car na pauta política do Brasil o desenvolvimento urbano, a moradia, o sanea-
mento ambiental, o transporte público com mobilidade, e pensar a transversalidade
disso que não tinha no Brasil. Então, acho eu foi um ganho dos movimentos a
criação do Ministério das Cidades (...) o Estatuto das Cidades e a aprovação do
Conselho Nacional das Cidades (...) fazer a primeira Conferência Nacional das
cidades foi um luta que os movimentos vinham discutindo há dez anos atrás.
Então fazer a primeira Conferência Nacional e no Brasil ter 3.216 Conferências
Municipais, e todos os Estados fazerem suas Conferências foi um avanço. O pro-
blema é que os recursos para saneamento, para transporte e para habitação estão
no Ministério das Cidades, então os governadores se acham na obrigação de fazer,
porque quem tem o recurso, que é do governo federal, porque o governo federal
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pede, eu tenho que fazer, mas quando chega na hora de discutir a fiscalização, a
participação social, como isso não está amarrado em lei, aí os governantes não
querem. A minha visão é a seguinte, fazer o Conselho das Cidades nos municípi-
os, nos Estados e vai melhorar o da União, porque nós estamos participando. Mas
nós temos críticas e diferenças com eles, se o P.L. 2.710 for aprovado no Senado,
for aprovado na Câmara e no Senado (...) e se o P.L. disser que tem que haver
fundo e Conselho no âmbito, municipal, estadual e nacional. Você só vai poder
pegar recurso para moradia popular se você tiver o Conselho, então é uma moeda
de troca, é uma obrigatoriedade. Só que o problema, particularmente para nós do
Movimento Nacional de Luta pela Moradia, é a institucionalização da
obrigatoriedade (...) Então institucionalizar a participação popular pode ser um
princípio ruim (...) Só vai ter Conselho da Cidade se tiver uma lei na qual o
governador, para ter verba, vai ter que criar o Conselho. Isso é ruim porque não
educa. Isso não educa os movimentos sociais e nem educa os governantes, que
ainda tratam o recurso público como se fosse recurso próprio. Os governantes só
vão fazer governo se tiver dinheiro, é igual ao da saúde. Se não fosse obrigatório
ter Conselho Municipal da saúde, existiriam bem poucos ou quase nenhum no
Brasil todo. Então com o Conselho da Cidade, a lógica vai ser a mesma. O pro-
blema é que isso mostra efetivamente a falta de compromisso dos governantes em
exercerem e colocarem como principalidade a participação social. A participação
social nesse país é feita pela obrigatoriedade. Na hora que acabar a obrigatoriedade,
na hora que desinstitucionalizar a participação social, a participação social no
Brasil acaba. O Brasil vive uma democracia de aparência, porque o filho de pobre
não está na universidade pública, porque o Ensino Médio e Básico são de péssima
qualidade, e a Educação Infantil não existe”.

Opiniões e críticas sobre a gestão do governo Lula


“O Lula foi candidato quatro vezes, e se você pegar o programa de governo de
89 para o de 2002 (...) o Lula resolveu fazer um trajeto socialista em 89, e quando
ele chega em 2002, ele chega com um projeto de governo da social-democracia. E
resolve lançar em 2002, naquela carta ao povo brasileiro, a carta da social-demo-
cracia, e resolve fazer um governo de coalizão, nos moldes do governo da Inglater-
ra, nos moldes do governo da Alemanha, vai buscar todos os partidos para conse-
guir a maioria no Congresso Nacional. Todo o governo de coalizão é um governo
de disputa. Infelizmente quem está ganhando a disputa hoje dos movimentos
sociais é o setor empresarial. A economia no Brasil, os seus índices de aumento da
balança comercial, o seus índices de exportação, de manutenção da inflação, ser-
vem para classe alta da sociedade, a classe média da sociedade, os programas
sociais que estão sendo implementado, estão aquém do que o Brasil precisa, por-
que efetivamente o Brasil passou 500 anos sem governo. Então o governo Lula é
um governo da social-democracia, é um governo em disputa, e os movimentos
sociais precisam continuar a fazer a disputa, e a disputa do governo Lula é na rua,
na luta pelos programas e projetos, alguns movimentos sociais estão fazendo isso,
o MST faz essa disputa muito clara quando indica cargo. E o MST tem muitos
cargos no governo Lula, dos seus aliados, seus advogados dos Estados. E o MST
faz isso quando faz o enfrentamento do desenvolvimento agrário, porque é alia-
do, faz o enfrentamento com o ministro da agricultura que não aliado, o MST faz
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
101

essa leitura muito bem feita, os movimentos estão começando fazer, fazem essa
disputa por dentro dos espaços que eles acham que devem ser feitos. Para mim, o
governo Lula, em um pequeno espaço de tempo, se ele não muda a política eco-
nômica, ele está mostrando que ele veio para a classe média, e aí ele não consegue
incluir os excluídos, porque, para mim, está tratando hoje igual os desiguais e o
que a gente sempre defendeu, no movimento social como um todo, tanto faz o
movimento sindical como o popular, é tratar os desiguais, desiguais. (...) Não
acaba o déficit habitacional, dizendo que tem um déficit de 17 milhões de unida-
des, quer seja para a melhoria, quer seja para construir novos, mas ai diz e não
tem que estar no SPC, para tu pegares o financiamento, tu precisas estar emprega-
do e o teu município precisa estar fora do contingenciamento que o FMI mandou.
Se continua com essa lógica, que o FMI implementou no governo Fernando
Henrique Cardoso e está tentando manter no governo Lula, efetivamente essa
lógica vai dizer o seguinte: ‘trata os teus desiguais, iguais’. Aí você não vai ter
dinheiro para habitação, para a população de baixa renda, mas você tem para a
alta, porque o FAT, Fundo de Amparo ao Trabalhador, financia para quem ganha
acima de dez salários mínimos, mas ele não financia para quem ganha de zero a
cinco, ele não financia para quem ganha de zero a três. O FGTS financia, o Pro-
grama de Arrendamento Residencial é para quem ganha de três a seis, mas 78%
da população brasileira ganha de zero a três, então você está deixando 78% da
população excluída e aí está trabalhando mesma lógica de mercado neoliberal
que o Fernando Henrique Cardoso vinha trabalhando. A lógica do desenvolvi-
mento urbano tem que mudar e ela só muda se mudar a lógica da política econô-
mica. A política econômica tem que dizer que saneamento é investimento, e não
deve estar submetida a lógica do FMI, que diz não empresta recurso se o municí-
pio passar de 40% do seu endividamento. Porque saneamento não é saúde, então
você está fazendo uma saúde preventiva, então você não tem que deixar de em-
prestar porque o FMI não quer que empreste”.

Avaliando o modelo de governo do Estado do Pará na condução da política de


desenvolvimento municipal
“Os municípios do Estado do Pará estão em tremendo abandono. O governo e
a justiça do Estado do Pará foram obrigados retirar recursos que Belém tenha que
ter através do ICMS para ver se ele conseguia custear alguns municípios. Hoje, o
debate que o governo do Pará tem de desenvolvimentista não vai desenvolver abso-
lutamente nada, pois apesar do Pará ser o Estado mais rico da Federação, mas nós
vivemos por era, nós vivemos era da borracha, nós vivemos a era do ouro e agora
nós estamos vivendo a era do desemprego. Acaba com reserva hidromineral de Carajás,
acabou com o Estado do Pará. O Estado do Pará hoje não consegue ter um progra-
ma de desenvolvimento da agricultura familiar, nem urbana, nem rural (...) Nós
não temos nenhum investimento na área de desenvolvimento proposto pelo gover-
no do Estado. O orçamento que a Assembléia vai votar tem zero para habitação no
Estado todo, sem contrapartida para o saneamento, e para a área da saúde, ele está
colocando o pagamento de pessoal como se fosse para a área da saúde, então não é
investimento (...) Hoje nós estamos numa situação de calamidade, o Pará não tem
um hospital de alta e média complexidade fora de Belém, não tem uma política de
desenvolvimento sustentável, o mapeamento econômico-ecológico, foi feito sem
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
102

participação social nenhuma, um projeto feito do dia para noite por um bando de
tecnocratas, colocado na Assembléia Legislativa para ser votado. Um índice de 30%
de desempregados e o trabalho informal altíssimo. Então essa é política que nós
estamos vivendo no Estado do Pará e se a gente não tiver uma saída que seja a partir
de envolver os movimentos sociais, o Estado do Pará está fadado a um colapso
fiscal e financeiro. O governo do Estado do Pará continua aplicando a redução do
Estado, continua aplicando lógica neoliberal”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
103

LUTAS PELO ACESSO À CIDADE EM PORTO ALEGRE: OS LIMITES DA


INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO

Sérgio Baierle
Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos
www.ongcidade.org

Existem duas formas de reagir à relativamente pequena relevância que a partici-


pação popular acabou obtendo no governo Lula. Uma delas consiste na crítica
aos limites internos ao governo, das posições políticas que se cristalizaram como
eixos dominantes de atuação e impedem que os poucos espaços de participação
existentes operem agendas de mobilização social em larga escala. Uma outra pro-
cura reconstruir a acumulação de limites a partir dos próprios avanços dos proces-
sos participativos em níveisl local, estadual e nacional. Claro que, para ambas as
formas, é possível ter um olhar de governo, e um outro a partir da sociedade civil
e dos movimentos sociais. Assim como é possível ter um olhar conservador, que
busca desconstituir a possibilidade da participação popular, e um outro progres-
sista ou radical, que vê na participação uma forma de controle do governo pela
cidadania e/ou um caminho para a emancipação social. É desta última perspecti-
va que pretendo partir neste texto.
Em Porto Alegre, o tema da habitação comemora nas assembléias do orça-
mento participativo de 2005 o pentacampeonato como principal demanda da
cidade. A recorrência do tema e a complexa institucionalidade desenvolvida na
cidade para promover a melhoria das condições de vida da população justificam
que se utilize este exemplo como modelo para se pensar as condições em a partici-
pação das classes populares na gestão desta política específica pode se dar.
Ainda é muito rarefeita a repercussão da participação do Estado no Conselho
Nacional das Cidades. O Rio Grande do Sul tem quatro titulares nesse Conselho
(dois de governo – Estado e Porto Alegre – e dois da sociedade – Conam e Federa-
ção dos Arquitetos). Por Porto Alegre, vêm participando o vereador Raul Carrion,
do PCdoB (que havia saído como suplente), e o diretor do Departamento Muni-
cipal de Habitação (Flávio Helmann, na gestão Verle e, na gestão Fogaça, ainda
não há definição sobre a continuidade da participação através do novo diretor do
órgão, Nelcir Tessaro). Infelizmente, que se saiba, até o momento não houve ne-
nhum ato público para um retorno organizado do que vem sendo discutido nesse
Conselho por parte dos seus participantes no Estado, a menos que se considere
como tal a reunião de convidados a dedo ocorrida em abril de 2005 para a orga-
nização de um Fórum Estadual dos Planos Diretores Participativos, reunindo prin-
cipalmente empresários, entidades de classe e ONGs.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
104

Representantes do Rio Grande do Sul no Conselho Nacional das Cidades

NOME FUNÇÃO ENTIDADE SEGMENTO CIDADE

Eduardo Bimbi Titular Federação Nacional dos Trabalhadores Porto Alegre


Arquitetos e Urbanistas

Flávio José Helmann da Silva Titular Frente Nacional de Prefeitos - Poder Público Porto Alegre
Metropolitanos Municipal

Paulo César Marques da Silva Suplente Associação Nacional de Entidades Profissio- Porto Alegre
Pesquisa e Ensino em nais, Acadêmicas e de
Transporte Pesquisa

Carlos Atílio Todeschini Suplente Associação Nacional dos Poder Público Porto Alegre
Serviços Municipais de Municipal
Saneamento

João Alberto Farias Fontoura Suplente Central de Movimentos Movimento Popular Porto Alegre
Populares

Wilson Valério da R. Lopes Titular Confederação Nacional de Movimento Popular Eldorado do Sul
Associações de Moradores

Carlos Augusto Belolli de Almeida Suplente Federação Nacional dos Trabalhadores Porto Alegre
Metroviários

Alceu Moreira da Silva Titular Governo do Estado do Rio Poder Público Estadual Porto Alegre
Grande do Sul

Marcelo Fornauski Soares Suplente Movimento Nacional de Luta Movimento Popular Santa Maria
pela Moradia

Rafael José Altenhofen Suplente Rede de ONGs Mata Atlântica Organizações Não- São Leopoldo
Governamentais

Raul Carrion Suplente União dos Vereadores do Poder Público Porto Alegre
Brasil Municipal

Não houve nenhum impedimento por parte do governo federal para que informa-
ções mais organizadas sobre o Conselho das Cidades fossem fornecidas. Afinal, cente-
nas e centenas de pessoas participaram das reuniões e conferências preparatórias. Na
minha opinião, isso não ocorre por acaso, mas faz parte de uma tendência quando a
representação é construída a partir de organizações. O retorno tende a ocorrer para a
organização, e não para o conjunto da sociedade. Mesmo no caso de representantes
governamentais, a devolução se traduz no uso de informações sobre programas e
linhas de financiamento para as políticas do governo. Ou seja, os próprios governos
se comportam de forma corporativa. No caso de representantes parlamentares, aí o
uso se dá pelos mandatos e não pelo parlamento, mas isso é devido à própria natureza
da disputa parlamentar. O corporativismo da classe política não se manifesta en-
quanto comunhão de idéias, mas através do consenso quanto aos procedimentos.
Voltemos, portanto, às disputas em torno das questões urbanas na cidade de
Porto Alegre. Diferentemente do que ocorre em nível nacional, em Porto Alegre
houve uma profunda aposta nos processos participativos e na mobilização popu-
lar. Muito antes da aprovação do Estatuto da Cidade, Porto Alegre já tinha em lei
municipal a maioria dos instrumentos urbanísticos ali previstos. O Plano Diretor
de Desenvolvimento Urbano e Ambiental porto-alegrense não é uma peça de fic-
ção, é desde 2000 uma ferramenta participativa de gestão em funcionamento1.

1
O PDDUA de Porto Alegre foi sancionado pelo prefeito em 01.12.99, após vários anos de discussão entre governo,
sociedade e parlamento. O primeiro plano diretor de Porto Alegre data de 1979, mas antes dele já havia uma tradição de
planejamento que vinha desde os planos viários de 1914 e 1939 (que instalou um Conselho) até o Plano de 1959, que
estabelecia rígidas exigências urbanísticas para cidade.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
105

Da mesma forma, Porto Alegre também foi precursora na criação, em 1995, do


Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação (Comathab). Isso para não falar
do Orçamento Participativo, implantado a partir de 1989. É por todo esse desen-
volvimento e amadurecimento histórico que Porto Alegre permite uma análise mais
aprofundada dos sentidos e possibilidades da participação popular. Nosso propósi-
to neste texto é o de identificar as matrizes históricas dos processos participativos na
cidade e, a partir daí, discutir a qualidade das disputas políticas recentes que se dão
nos conselhos municipais ligados ao tema da moradia e do planejamento urbano.

Matrizes históricas da participação popular em Porto Alegre


O objetivo aqui não é fazer uma longa exposição histórica, o que já foi feito em
outro lugar2, mas situar algumas características principais que informam os pro-
cessos participativos atualmente vivenciados na cidade. Nesse sentido, importa
mostrar o lugar atribuído às classes populares pelas diferentes perspectivas políti-
cas que governaram Porto Alegre.

a) Positivismo autoritário
A tradição mais antiga é a do positivismo autoritário, que chegou ao poder no
final do século XIX com Júlio de Castilhos e, posteriormente, se consolidou com
Borges de Medeiros. Essa perspectiva afirma o papel iluminista a ser desempenha-
do pelo Estado como instrumento de modernização social. Quando em 1939, a
partir dos estudos técnicos do urbanista Arnaldo Gladosch, foi instalado um con-
selho de planejamento, não era para que a sociedade participasse, mas para que
um colegiado técnico pudesse chegar às melhores conclusões para o desenvolvi-
mento capitalista da cidade. Na época, através da abertura de grandes avenidas,
como foi o caso da Avenida Farrapos. Entretanto, para esse Estado modernizador
havia um lugar para as classes populares na construção do progresso material.
Não é por acaso, por exemplo, que ligados à Escola de Engenharia seriam criados
vários institutos de ensino técnico e profissionalizante e que se daria progressiva-
mente ênfase ao investimento na educação das classes trabalhadoras.

b) Populismo modernizador
Essa vocação modernizadora do positivismo não é tão afastada quanto pode pa-
recer da vertente populista que se consolida nos anos 50, nos governos de Leonel
Brizola, não por acaso, engenheiro. O sindicalismo de Estado3 criado pelo projeto
populista no Brasil era um modelo não apenas para o sindicalismo, mas para o
conjunto das classes populares. Em 1959, foi criada em Porto Alegre a Fracab
(Federação Rio-grandense das Associações Comunitárias e de Amigos de Bairro),
com a mesma pretensão ao monopólio da representação e ao aparelhismo políti-
co-partidário da estrutura sindical oficial. As primeiras favelas em Porto Alegre da-
tam do início dos anos 50. Mal emergiam os primeiros movimentos comunitários e já

2
Vide BAIERLE, Sérgio. Um novo princípio ético-político, in www.democraciaparticipativa.org.
3
Vide BOITO JR., Armando. O sindicalismo de estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical, São Paulo,
Campinas: Hucitec/Unicamp, 1991.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
106

havia uma estrutura pára-estatal preparada para dirigi-los. Assim como os sindi-
catos eram dependentes do governo via mecanismos regulatórios da justiça do
trabalho e repasses do imposto sindical, a Fracab dependia de repasses do governo
para o seu funcionamento. Tanto assim que, após o golpe de 1964, a entidade
simplesmente passou a adotar uma linha de adesismo ao regime, que durou até
meados dos anos 70.
Também é de 1959 um novo Plano Urbano para Porto Alegre, não apenas
viário, mas também voltado para o zoneamento. Em plena era de migração cam-
po-cidade, esse plano projetava um modelo europeu/norte-americano para Porto
Alegre. Nele imaginava-se uma cidade igual para todos através do estabelecimen-
to de rígidos padrões urbanísticos, que acabariam fazendo crescer as cidades da
periferia, onde as exigências eram menores. Um cordão de vazios urbanos separa-
va Porto Alegre das cidades vizinhas. O resultado mais ou menos óbvio foi o
aumento progressivo dos loteamentos irregulares e clandestinos até atingir 24%
da população em 1990 (IBGE, 1990). Estudos mais recentes apontam uma redu-
ção para 20% (DEMHAB, 20014) após uma década de Orçamento Participativo
e políticas de urbanização de favelas e de regularização fundiária5. Mas mesmo os
governos da frente popular (1989-2004) não foram suficientes para conter as
ocupações de terrenos (média de mais de 20 tentativas de ocupação por ano).

c) Populismo clientelista
Diferentemente do populismo sindical, a matriz populista comunitária na verda-
de não teve tempo para se desenvolver até o seu limite e foi abortada precocemen-
te pelo golpe de 1964. Em Porto Alegre, ela é retomada pelos próprios interventores
da ditadura após 1975, quando o BNH começa a abrir espaço para políticas de
recuperação urbana. Entretanto, depurada de seu componente de mobilização
política e restrita a uma lógica pragmática de troca de obras por votos, a partir do
final dos anos 70, ela revelou-se insuficiente para conter o ascenso dos movimen-
tos comunitários, então aliados aos movimentos sindicais, numa conjuntura de
progressiva mobilização contra a ditadura militar. Atualmente, no governo Fogaça
(2005-2008) parece retornar ao poder essa matriz autoritária-clientelista, doura-
da por teorias de integração social copiadas dos manuais do Banco Mundial (através
do conceito de governança solidária local6).
Quando os trabalhistas voltam ao poder em Porto Alegre (Governo Collares,
1986-1988), o “povo” já não era mais o mesmo, já havia sido educado por uma
outra lógica na luta contra a ditadura, assim como já não havia mais o mesmo
consenso entre as esquerdas como no pré-64. Collares acenou com a idéia de
criação dos Conselhos Populares, que seriam conselhos a serem criados para cada
secretaria. As comunidades dos diversos bairros poderiam participar dos diversos

4
DEMHAB, Prefeitura Municipal de Porto Alegre - Diagnóstico da Situação Habitacional de Porto Alegre, Porto Alegre,
2001.
5
Para uma visão mais abrangente da evolução das políticas de planejamento urbano em Porto Alegre, vide: ALFONSIN,
Betânia e outros, Políticas habitacionais na região metropolitana de Porto Alegre, Rio, Observatório IPPUR/UFRJ-Fase,
http://www.ippur.ufrj.br/observatorio/redehabitat/rmpo.htm.
6
Vide Boletim Cidade n. 14, de maio/2005: http://www.ongcidade.org/site/arquivos/boletim/14425eb1c905068.pdf.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
107

conselhos através dos presidentes de associações de moradores, mas os secretários


de cada pasta seriam a autoridade em última instância para a tomada de decisões.
Esse seria o modelo para completar a obra populista no terreno comunitário, mas
o projeto não chegou a ser implantado porque o governo ficou com medo de não
conseguir controlar os setores comunitários organizados simpatizantes de outras
forças políticas (PT e PMDB)7.

d) Participacionismo movimentalista
A redução da transição do regime militar a um movimento limitado ao campo da
política institucional, cuja expressão mais significativa foi o movimento das Dire-
tas Já, que culminou numa eleição indireta e numa progressiva desmobilização
social (das centrais sindicais aos próprios “fiscais do Sarney”), acabou forçando
os movimentos sociais a um movimento de luta pela ampliação da arena política.
Criar conselhos locais, estaduais e federais; lutar para que esses conselhos possam
controlar fundos próprios, com destinação exclusiva; garantir uma maioria de
representantes da sociedade civil nesses conselhos; conferir-lhes poder legal: para o
assim chamado campo movimentalista (dos lutas sociais), esse movimento tor-
nou-se bandeira de luta em todas as áreas sociais.
O grande modelo inspirador do participacionismo foram os conselhos de saú-
de da zona leste de São Paulo. Esse modelo se consolidou institucionalmente com
o SUS. O modelo combina a idéia de participação direta dos usuários de determi-
nados serviços nas suas próprias regiões, dos profissionais que diretamente pres-
tam os serviços, dos governos e dos prestadores privados. E também no aspecto
do financiamento, o SUS é modelar. Hoje os recursos do SUS transitam de forma
separada pela contabilidade dos governos locais, sendo sua utilização submetida
à deliberação do conselho de saúde. Se é certo que a participação permitiu um
maior controle dos gastos públicos em saúde, também é certo que tanto os
prestadores privados, quanto o governo federal preservaram suas esferas de auto-
nomia relativa no manejo destes recursos.
Criança e Adolescente, Assistência Social, Conselhos Tutelares e, no caso de
Porto Alegre, Plano Diretor e Habitação são conselhos que seguem o modelo do
SUS. O próprio Orçamento Participativo (OP), articulando regiões e temáticas,
embora sem o mesmo arcabouço legal-institucional, também incorpora elemen-
tos básicos do SUS, tais como a discussão direta dos problemas vividos pelas co-
munidades populares e o funcionamento via comissões ou fóruns, a partir dos
quais se constrói a representação ao nível da cidade como um todo. A diferença é
que o OP constitui-se como uma esfera pública essencialmente plebéia. Não há
cadeira cativa para nenhum setor ou corporação. Cada cidadão vale um cidadão,
um voto na assembléia. No modelo do SUS são atribuídos pesos iguais a forças
essencialmente diferentes, o que tende a empurrar o jogo deliberativo para o em-
pate permanente. Se o peso decisório dos atores já é garantido de antemão, qual-
quer decisão que implique perdas relevantes para um deles dificilmente será apro-
vada. Em Porto Alegre, por exemplo, após quase duas décadas de gestão

7
Para uma análise detalhada deste processo, vide MOURA, Maria Suzana de Souza. Limites à participação popular na
gestão da cidade, Porto Alegre, PROPUR/UFRGS (tese de mestrado), 1989.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
108

participativa, sequer foi possível fazer com que a classe médica cumpra a carga
horária estipulada no contrato de trabalho. Mas foi possível ampliar o número de
postos de atendimento, o horário de funcionamento, a qualidade dos serviços, os
critérios de ingresso, etc. Esse modelo não pode ser dissociado da luta dos partidos
políticos de oposição que se formam a partir do final dos anos 70. Num contexto
em que a arena política formal estava fechada para os partidos de esquerda, lutar
para ampliar os espaços de participação era uma forma de ir conquistando espaços
aos poucos e de politizar o que era possível politizar - as questões quotidianas da
população. À medida em que esses partidos chegam ao poder, nem sempre se man-
tém a mesma aposta na participação, já que, na oposição, ela é uma estratégia e, na
situação, pode ser um risco. Da mesma forma, nos anos 90, com o refluxo corporativo
dos movimentos sindicais, sobretudo na área do funcionalismo público, grande
parte das ações sindicais junto aos usuários dos serviços por eles prestados acabaram
sendo reduzidas a um denuncismo mais corporativo do que conscientizador.
Nossa hipótese aqui é de que os processos participativos só funcionam efetiva-
mente quando amparados em amplas mobilizações sociais capazes de tensionar os
governos e gerar uma opinião pública a favor de determinadas causas. Isso significa
que a partilha efetiva de poder em espaços participativos não tem como ser resulta-
do apenas de um discurso de campanha, mas depende da articulação de forças
sociais que a sustentem. No caso do OP de Porto Alegre, a partilha de poder era
uma condição para o apoio efetivo dos setores populares, numa conjuntura em que
o governo não tinha minoria na Câmara de Vereadores e precisava fazer uma refor-
ma fiscal para poder afirmar seu projeto de governo. Ou o governo se subordinava
ao jogo parlamentar tradicional e abria mão de um projeto real de inversão de
prioridades, como fez Lula, ou utilizava a mobilização social como forma de pres-
são. Optou por esta segunda fórmula, utilizando-se também a participação direta
ao invés da representação por entidades, o que permitiu colocar em questão a repre-
sentação de muitos dirigentes presos a esquemas clientelistas tradicionais.

O funcionamento recente dos espaços participativos nas áreas de habitação e


planejamento urbano
Antes de mais nada, é preciso destacar que as políticas habitacionais em Porto Alegre
têm apresentado resultados bastante significativos, como a já mencionada redução
da área de irregularidade fundiária para apenas 20% da população, o que é, acredito,
um fato inédito entre as capitais brasileiras, bem como tem sido possível assegurar
uma oferta ao redor de mil unidades/ano para a população de baixa renda (entre lotes
urbanizados, casas e apartamentos). De forma semelhantes, no âmbito do planeja-
mento urbano, tem sido possível urbanizar núcleos populares em áreas centrais da
cidade, realizar operações consorciadas em benefício dos setores mais pobres, bem
como assegurar um amplo espaço de negociação nos casos de ocupações e de emer-
gências. Não são esses os resultados que nos interessa analisar aqui. O volume de
investimentos governamentais nas áreas mais pobres mudou a cara da cidade nos
últimos anos. O apoio a esses resultados expressa um relativo consenso sobre entre
setores populares, empreiteiros de obras, governo e sociedade em geral, até porque eles
são funcionais ao sistema capitalista. Não é disso que pretendemos tratar aqui, mas
exatamente dos pontos não consensuais, dos pontos em que há disputa ou em que os
arranjos implicam problemas para a qualidade de vida na cidade.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
109

a) Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação - Comathab


Vejamos primeiro como funciona a estrutura participativa da política habitacional
em Porto Alegre. Embora caiba ao Comathab deliberar sobre as políticas
habitacionais, o primeiro espaço onde as demandas são apresentadas é o OP. É nas
assembléias regionais e nos fóruns respectivos que propostas de regularização, urba-
nização, compra de áreas ou produção de lotes e unidades construídas são listadas
por ordem de prioridade para o governo. Caso habitação fique entre as três primei-
ras demandas da cidade, é certo que haverá recursos para investimentos, o que tem
ocorrido invariavelmente praticamente desde que habitação se tornou um tema
priorizável no OP. Os fóruns regionais do OP são portanto espaços estratégicos
para os movimentos de moradia na cidade. Além dos fóruns regionais, também o
fórum temático do OP de Organização da Cidade e Desenvolvimento Urbano e
Ambiental é importante para a apresentação de propostas mais gerais para a cidade,
como o apoio a cooperativas habitacionais, por exemplo. Após a definição dos
recursos disponíveis, cabe ao Demhab, em conjunto com o Gabinete de Planeja-
mento, a definição das obras e serviços concretos a serem desenvolvidos.
É aqui que deveria iniciar o trabalho do Comathab e é aqui que iniciam os
problemas. Geralmente a proposta final a ser apresentada pelo Comathab ao
COP (Conselho do Orçamento Participativo) só é apresentada ao Comathab às
vésperas de sua ida ao COP. Ou seja, todo o processo de construção da proposta
se dá internamente ao governo e não em conjunto com o Comathab. Segundo o
governo, isso se deve a várias limitações, como a demora nas negociações com a
Caixa Econômica Federal, a dificuldade de adequar as áreas disponíveis às ne-
cessidades das regiões, as dificuldades técnicas em ampliar os trabalhos de regu-
larização fundiária, etc. O fato concreto é que, existindo já há quase uma déca-
da, o Comathab ainda não constituiu uma rotina adequada de trabalho em que
todas as informações estratégicas estejam disponíveis. É curioso, por exemplo,
que tanto a gestão anterior (PT) quanto a atual (PPS) julguem impróprio divul-
gar os dados do Banco de Terras do município (Lei Complementar n. 269/92)
aos membros do Conselho, devido ao risco de ocupações, como se a burocracia
que administra os dados ou os próprios membros do governo fossem, em prin-
cípio, mais confiáveis. Da mesma forma, não são trazidos para o Conselho os
dados da execução orçamentária do plano de investimentos, nem a prestação de
contas do Fundo Municipal de Desenvolvimento (que incorpora recursos do
solo criado e outros). Segundo o governo, tais controles caberiam a um segundo
conselho, o Conselho Deliberativo do Demhab, em que os participantes são
quase todos indicados pelo próprio governo e cuja atuação não se traduz em
nenhuma divulgação pública de seu trabalho. Cf. estudo do Pólis, encomenda-
do pelo próprio órgão:
“(...) o Comthab, embora sendo órgão deliberativo, não atua
como tal. Ainda não está resolvida a questão de duplicidade de
atribuições ou o sombreamento com o Conselho Deliberativo do
Demhab. Por lei, as principais atribuições do Comthab estariam
relacionadas à deliberação nas questões do acesso à terra e
moradia, a gestão do FMD, e a fiscalização e controle sobre as
ações da política habitacional. Também existem alguns
sombreamentos com CMDUA e com o COP. Caberia ao
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
110

Comthab propor o plano de aplicação do FMD, principal


instrumento para a efetivação do papel deliberativo do
Comthab. Enquanto essa discussão não evoluiu, seu papel se
esvazia frente a potencialidade prevista em lei.”8

Como tem sido possível sustentar este esvaziamento ao longo de vários anos?
A resposta é relativamente simples. Primeiro, despendendo anos apenas para
organizar o regimento interno e garantir pelo menos uma rotina de reuniões,
embora não de procedimentos. Segundo, priorizando a discussão de situações
imediatas e emergenciais ou simplesmente pontuais, ligadas aos interesses deste
ou daquele conselheiro. Como um terço dos conselheiros vêm das regiões do OP
(agrupadas duas a duas), é natural que tragam um conjunto de demandas de
serviços para as reuniões, mas não é aceitável que elas acabem substituindo a
ausência de decisões sobre a política habitacional propriamente dita. Terceiro,
postergando sistematicamente o fornecimento de informações relevantes. Exis-
tem os dados gerais dos gastos do Departamento, mas praticamente não se tem
dados sobre a execução dos projetos específicos. Como conseqüência, a função
educativa que poderia ter o funcionamento do Comathab para os participantes
e para aqueles que eles representam acaba meio que se perdendo, e se reforçam
os aspectos mais imediatistas da participação. Talvez isso ajude a explicar tam-
bém o escasso retorno do resultado das reuniões para o conjunto da sociedade e
mesmo para as pessoas que escolheram os conselheiros em suas regiões. Da mes-
ma forma se explica também o pequeno interesse dos setores empresarias da
construção civil em participar desse conselho, o mesmo podendo ser dito dos
representantes do próprio governo, sendo necessário muitas vezes adiar delibe-
rações em função de problemas de quorum.
Como tem sido possível, então, combinar esse esvaziamento com a efetividade
dos investimentos em habitação no município (R$ 321.000.000,00 em 16 anos,
beneficiando mais de 50.000 famílias). A resposta a esta pergunta é um pouco
mais complexa, já que na verdade o Demhab divide com outros setores do gover-
no as decisões estratégicas sobre a política habitacional. Assim, existia todo um
amplo espaço de bastidores onde se articulavam líderes comunitários e governo,
sobretudo no âmbito do OP. Na verdade, só muito recentemente é que o Demhab
vem se aparelhando para o desempenho de um papel mais estratégico. Durante a
maior parte de sua existência o órgão funcionava mais como uma imobiliária
popular, repassando financiamentos da CEF e administrando uma carteira sem-
pre com alto índice de inadimplência (estimada pelo novo secretário Tessaro em
80% atualmente). Além disso, como havia uma relativa coincidência de propósi-
tos entre governo e líderes comunitários, não havia muita preocupação com as
formalidades de funcionamento do conselho, desde que, na prática, os investi-
mentos ocorressem.

8
Pólis, Perfil da Habitação de Interesse Social em Porto Alegre, Porto Alegre, novembro de 2004. Disponível em: http:/
/lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/demhab/usu_doc/texto_final_completo_volume_1_corrigido.doc.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
111

A conseqüência, mais uma vez, foi a despolitização da questão habitacional.


A melhor expressão disso foi o recuo do governo na questão do direito real de
uso (DRU). Um dos debates mais relevantes tratados no âmbito do Comathab
teve a ver com o repasse de chaves em áreas de concessão de uso. Segundo a Lei
Orgânica do Município (Art. 203), para os terrenos públicos ocupados até 89
seria possível aplicar o DRU, ou seja, o direito dos ocupantes permanecerem no
local mediante o pagamento de um pequeno “aluguel” ao município9. Posteri-
ormente, estendeu-se o DRU também para outras situações. A concessão pode-
ria ser transferida aos herdeiros e a única condição era de que o imóvel não
poderia ser repassado a terceiros, a não ser via devolução do mesmo ao Demhab,
que então selecionaria uma outra família em situação de carência. Como o ór-
gão na verdade apenas aplicava o instrumento do DRU, não havia um trabalho
pedagógico sobre as suas vantagens sobre a propriedade privada (que implicaria
ao morador um custo de mercado a ser pago e não um simples aluguel, além do
custo social para o conjunto da sociedade, já que, pelo instrumento da livre
venda, seriam retirados imóveis de uso social para serem repassados ao mercado
privado). Somando-se a isso a pressão de setores de oposição, que procuravam
mostrar o DRU como uma forma de discriminação social, e mais o incentivo
velado dado ao comércio ilegal de chaves, gerou-se o caldo de cultura necessário
para pressionar a prefeitura a rever as regras do jogo, o que ocorreu durante a I
Conferência Municipal de Habitação em Porto Alegre, em 1997, em que foi
tirada a recomendação de realização de um Seminário específico para tal fim.
Desse Seminário surgiu um projeto de alteração na legislação do DRU, tornado
lei em 2000 (Lei Complementar 445), permitindo a venda dos imóveis por par-
te de detentores de DRU, mas sob determinadas condições (via Demhab, garan-
tia de que o comprador também apresenta as mesmas condições de carência).
Essa alteração abriu espaço para novas propostas na Câmara de Vereadores,
como a possibilidade de conversão em financiamento após dez anos de DRU e
outras. Não se trata apenas de uma questão de razoabilidade, como pode pare-
cer à primeira vista, mas da contradição entre interesse social e apropriação
individual. A situação só veio a tornar-se polêmica porque o Demhab assumiu
uma gestão policial dos loteamentos que administra. Ao invés de incentivar e
educar para uma gestão coletiva das unidades, o Demhab assumiu um papel de
síndico, numa relação ao mesmo tempo autoritária e paternalista com os seus
“clientes”. Mesmo após 16 anos de administração popular, o Demhab ainda
trata os sujeitos populares como se fossem incapazes de autonomia e de respon-
sabilidade coletiva. E quanto mais assim os trata, mais assim eles se comportam,
como se observa pelos níveis de inadimplência e pelas situações caóticas que se
estabelecem em determinados espaços geridos diretamente pelo órgão.

9
Concessão do Direito Real de Uso - Previsto no Artigo 203 da Lei Orgânica Porto Alegre - instrumento utilizado
basicamente nas áreas públicas de uso comum, ou no reassentamento de comunidades que residem em áreas impróprias
ao uso habitacional - áreas de risco. Tal concessão é dada para famílias de baixa renda (0 a 5 s.m.) e que não sejam
proprietárias de outro imóvel. No caso de morte do concessionário, nos termos do artigo 7º da Lei Complementar Municipal
242/91, alterado pela Lei Complementar Municipal 455/2000, “será prevista a ordem de vocação hereditária nos termos
do artigo 1603 do Código Civil Brasileiro”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
112

Poderia ter sido diferente. É interessante notar que os mesmos partidos que
ontem defendiam os concessionários do DRU em nome da igualdade de oportu-
nidades (todos têm o direito de ser proprietários), são os mesmos que hoje, no
governo Fogaça, promovem uma razzia sobre os imóveis financiados via Demhab,
obrigando à revisão dos contratos em alguns casos e à negociação dos atrasados
em geral (mutuários de maior poder aquisitivo são acusados de privilegiados,
moradores de áreas de ocupação são convidados a pagarem pelos terrenos que
ocupam). Tudo isso numa conjuntura de desemprego, em que muitos sequer con-
seguem pagar a conta de luz. Numa área do loteamento Timbaúva, em 2005, os
moradores se recusaram a assinar contratos para a instalação regular de energia
elétrica porque não teriam como pagar a conta, preferindo continuar com o siste-
ma de gatos. O DRU implica um “aluguel” mensal de pouco mais de dez reais,
um financiamento que, mesmo subsidiado, não fica por menos de meio salário
mínimo. Com a recente instituição do programa Dono da Casa pelo Demhab10, o
DRU pode ser convertido em financiamento habitacional em até 240 meses. No
fundo, o que se busca é ampliar a receita do órgão.
Não era tão difícil assim derrubar o argumento de que todos seremos iguais,
todos teremos a propriedade capitalista plena. Mas isso implicaria um outro
projeto, menos pragmático e mais político. Nesse sentido, ao simplesmente aceitar
as demandas do senso comum, assegurou-se o direito à moradia, mas limitou-se
o espaço de autoria popular no uso desse direito. Optou-se pela provisão de
lotes e unidades via empreiteiras de obras (com o argumento de que este era um
limitador imposto pela CEF) e relegaram-se as iniciativas populares como as
cooperativas autogestionárias a um espaço secundário. Apenas para registrar
um exemplo disso, em 2004, em pleno ano eleitoral, o movimento de luta pela
moradia conseguiu inserir na agenda municipal um projeto-piloto com recursos
a fundo perdido da CEF para moradia a moradores de baixa renda. Tratava-se
de uma experiência inédita ainda em Porto Alegre, onde o movimento organi-
zaria sistema de mutirão remunerado para a construção das unidades, a partir
de uma unidade própria de produção de tijolos de fibrocimento e via a consti-
tuição de uma cooperativa de moradores para a gestão do loteamento, incluin-
do propostas para geração de renda, creche, sede social, etc. A CEF repassou os
recursos ao município, as obras iniciaram, futuros moradores começaram a tra-
balhar no mutirão, só que os repasses para a remuneração dos trabalhadores
não ocorreram, também eles entraram no sistema de contingenciamento das
despesas do governo. Sem comentários.

10
Cf. http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?p_secao=22 – “O programa trata da opção de compra de
unidades habitacionais de interesse social. A nova modalidade de contrato torna o morador proprietário do imóvel, como
refere o nome. Assim, casa e todas suas benfeitorias podem ser transferidas, desde que atendidos alguns requisitos
legais. Além disso, o programa atende antigas reivindicações dos moradores: a garantia da escritura de sua casa e o
pagamento das prestações por tempo determinado. O Demhab parcela o valor da casa em até 240 meses. O contrato de
superfície garante que a área seja utilizada exclusivamente com o fim de habitação de interesse social, protegendo as
terras públicas de especuladores imobiliários. As casas e apartamentos construídos pelo Demhab eram entregues
mediante um contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Agora há uma nova opção de contrato: o Contrato
de Direito de Superfície.”
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
113

b) Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental – CMDUA (ou simplesmente


Conselho do Plano Diretor)
Diferentemente do Comathab, o CMDUA11 foi desde sempre uma área de interes-
se prioritário dos setores empresarias ligados à construção civil, sobretudo através
do Sinduscon (Sindicato das Indústrias da Construção Civil). Como salientamos
no início, um conselho de planejamento urbano já existia desde 1939. O que
mudou com a aprovação de um novo Plano Diretor, em 1999 (em substituição ao
de 1979), além é claro da incorporação de vários instrumentos de reforma urba-
na, a maioria dos quais já inscritos em leis complementares anteriormente, foi a
composição e o funcionamento. Foram criados os Fóruns Regionais de Planeja-
mento, agrupando regiões do OP mais ou menos duas a duas, e tal como no
Comathab foram incorporados um terço de representantes vindos desses fóruns.
A idéia original seria de que essa fórmula garantiria um peso significativo para os
representantes comunitários, embora a representação regional não estivesse restri-
ta às associações de moradores, como no caso do Comathab. Na prática, isso
acabou não funcionando bem assim, porque os setores empresarias e as corporações
respectivas (Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sociedade de Engenharia do Rio
Grande do Sul, Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura, Sindicato
dos Corretores de Imóveis do Rio Grande do Sul) acabaram se organizando para
participar também dos fóruns regionais. Ou seja, se havia a ilusão de que esse
novo design levaria a um desequilíbrio na correlação de forças, na prática isso não
ocorreu, o que não quer dizer que não houve ganhos para os setores comunitários
que começaram a participar. A simples criação dos fóruns regionais de planeja-
mento colocou na agenda dos fóruns regionais do OP a questão do planejamento
urbano, proporcionando uma discussão para além das demandas de obras e servi-
ços. Muitas atividades que antes se instalavam nas regiões sem que ninguém ficas-
se sabendo antes, passaram a ter de ser avaliadas pelos fóruns, permitindo uma
discussão mais ampla sobre sua conveniência.
Entretanto, a rotina burocrática de funcionamento do Conselho pouco ainda
se alterou. O ritual de receber projetos individuais e remetê-los para pareceres dos
conselheiros e dos fóruns regionais acaba ocupando a maior parte do tempo dos
conselheiros. Tinha-se a idéia de que as regiões discutiram o seu planejamento,
mas isso na verdade pouco avançou. Faltam mapas e informações estratégicas
para que os fóruns possam passar a um outro patamar de desempenho. Isso aca-
bou desmotivando a participação comunitária, que não vê muitas possibilidades
de resultados concretos nos fóruns. Por outro lado, o governo mais uma vez mos-
trou-se reticente em assumir o seu papel pedagógico, o que permite muitas vezes
um jogo esquizofrênico entre setores empresarias e comunitários. Para a maior
parte dos setores comunitários, tanto faz o que os empresários pretendem para as
áreas nobres da cidade, isso não lhes interessa diretamente. Da mesma forma, para
os setores empresarias, não interessa muito saber o que o governo e as comunida-
des pretendem nas periferias. O próprio Plano Diretor já é um pouco o resultado

11
O regimento interno do CMDUA, assim como o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre,
encontram-se disponíveis em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
114

disso, na medida em que permitiu-se regimes urbanísticos diferenciados e de inte-


resse social nas periferias e, ao mesmo tempo, alterações nos índices construtivos
nas áreas nobres via mecanismo do solo criado. Pensado originalmente como um
instrumento de responsabilização pelo uso intensivo de infra-estrutura urbana,
acabou se convertendo em um mecanismo facilitador dos processos de
verticalização, sobretudo após a vitória dos setores empresárias na determinação
de um valor relativamente baixo por metro quadrado adicional de solo criado.
Mesmo projetos que poderiam servir como ponte entre os diversos setores parti-
cipantes, como o Urbanizador Social, continuam ainda como simples promessa. O
Urbanizador Social12 (Lei n. 9.162/03) consiste basicamente na articulação de um
conjunto de instrumentos de flexibilização urbanística e de incentivos diversos, de
modo a atrair empreendedores privados e mesmo cooperativas comunitárias para a
produção de lotes e unidades habitacionais de interesse social, isto é, a preços aces-
síveis para a população com renda familiar entre 2,5 e 5 salários mínimos. Trata-se,
na verdade, da tentativa de constituir uma solução de mercado para dar conta de
demandas sociais, com o poder público entrando com subsídios diversos de modo a
transformar a demanda social em demanda de mercado. É uma espécie de “renda
mínima” habitacional. Os setores empresariais não parecem suficientemente atraí-
dos porque as garantias de retorno não estão plenamente asseguradas. Já as coope-
rativas populares dependeriam de financiamento via CEF, o que só é possível via
garantia hipotecária individual (ou seja, submissão a regras bancárias de aprovação
de cadastro). Embora seja um projeto cheio de boas intenções, assim como o Fome
Zero, por exemplo, na medida em que fica reduzido a uma “bolsa” e não dá conta
das condições em que se reproduz a exclusão urbana, nem implica de fato numa
alternativa de autoria popular para a questão da moradias, o que implicaria uma
outra lógica de financiamento, torna-se apenas mais tipo de solução pontual, quando
não de franco subsídio ao lucro privado.
Um outro exemplo recentíssimo e que permite visualizar a dinâmica de poder
que atravessa o CMDUA é o que se refere às Estações Rádio-Base (ERBs). As ERBs
são as famosas antenas instaladas em várias regiões da cidade para viabilizar o funci-
onamento de aparelhos celulares. De acordo com a legislação, a instalação dessas
estações deveria passar por avaliação de impacto ambiental e serem aprovadas pelo
CMDUA. Porém, na medida em que era necessário ouvir também os fóruns regio-
nais de planejamento, acabou sendo gerado um impasse, pois muitas comunidades
criticavam as áreas escolhidas e a ausência de consultas às comunidades na instala-
ção original. O governo, embora em princípio favorável à aprovação, aceitou os
argumentos comunitários e vinha segurando a votação até o final de 2004. Quan-
do o novo governo assumiu, em janeiro de 2004, aproveitando a situação de rela-
tiva desmobilização em período de férias escolares e de transição de governo, fez
aprovar ainda em janeiro as instalações já feitas. De lá para cá, vários projetos de
interesse dos grandes incorporadores imobiliários têm sido aprovados de forma atro-
pelada pela Secretaria do Planejamento Municipal, como se esses setores mal pudes-
sem esperar a chegada do novo governo ao poder. Projetos controvertidos como o

12
Vide http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/lei_do_urbanizador_social_ok.pdf.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
115

Parque Germânia (megaempreendimento imobiliário do grupo Goldstein), a


reurbanização do cais do porto (ao estilo do que ocorreu em Belém) e outros agora
correm em grande velocidade, sem nem sequer passarem mais por discussões ampli-
adas junto ao Conselho do OP. O próximo passo do novo governo será a revisão do
Plano Diretor e da própria composição do Conselho, sendo muito provável a ex-
clusão ou subalternização completa dos fóruns regionais. O que isso significa? Sig-
nifica na prática a ampliação de uma dominação que os setores empresariais já
detinham no CMDUA, que já havia sido expressa na votação dos valores para o
solo criado e em outras situações (como, por exemplo, na autorização concedida
ainda no governo Verle, para que os interessados pudessem conversar dentro da
SPM diretamente com os técnicos que analisavam projetos de seu interesse com
vistas a dar mais celeridade aos trâmites burocráticos). Mais do que isso, por que
um governo que vinha do campo popular não conseguiu abrir espaço para o forta-
lecimento dos movimentos populares na área do planejamento urbano? Por que os
setores populares continuaram presos às suas demandas pragmáticas ou mesmo se
deixaram cooptar em algumas situações? Certamente muitas respostas poderiam ser
tentadas ou até ser devolvida a pergunta: e daí, qual o problema?

Conclusões
Sem ter a pretensão de chegar a conclusões exaustivas, mesmo porque aqui apenas
se relataram algumas situações exemplares, seria possível sugerir x níveis de conse-
qüências políticas sobre o funcionamento dos conselhos setoriais em Porto Ale-
gre. Ressalvando que não estou incluindo entre estes o Conselho do OP, que tem
um caráter diferente e mereceria toda uma outra discussão em separado.
A. A simples existência de espaços abertos para a participação popular, aqui en-
tendida como a participação direta ou via entidades ligadas aos movimentos
sociais de base, não significa, nem garante necessariamente um maior controle
popular sobre as políticas públicas. No caso de Porto Alegre, essas políticas
continuaram a ser definidas basicamente no âmbito interno das secretarias de
governo. O apelo à participação popular se traduziu mais como um apelo ao
endosso a essas políticas do que propriamente uma abertura para um processo
de autoria popular. Os setores comunitários organizados não apresentaram
condições de atuação estratégica que os qualificassem para uma intervenção
mais autônoma nesses espaços. Quando não atuando em parceria com o go-
verno, dependeram de movimentos de outros partidos políticos para incidir
sobre questões de seu interesse mais pragmático.
B. Em todas as situações analisadas, é quase sempre relativamente fácil ao governo
concentrar e filtrar as informações estratégicas relevantes, dosar a sua publicidade
e pautar a dinâmica de funcionamento dos conselhos. Isso só não ocorre quando
há a interferência de ONGs e de outros partidos políticos. Os setores comunitários
não conseguiram até aqui construir uma estrutura mais autônoma de intervenção,
o que os leva a depender de recursos de poder externos nos momentos de disputa.
C. Mesmo em governos em tese comprometidos com as bandeiras dos movimen-
tos sociais, há sempre uma pesagem de custos e benefícios políticos no
enfrentamento de determinadas questões. Ou seja, quanto mais os conselhei-
ros passam a utilizar o espaço de deliberação para a sua própria organização
em parceria com o governo, menos recursos de poder passam a ter.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
116

D. Nos conselhos setoriais, a forma de representação tende mais para o burocráti-


co-corporativo do que para o popular, isto é, junta competências técnico-polí-
ticas com representação classista, profissional ou comunitária. O fato de que
um terço ou a maioria dos representantes venha da sociedade civil não altera
muito os resultados, pois sempre é possível ao governo manipular ou mesmo
alterar algumas representações da sociedade, bem como a própria sociedade é
já dividida corporativamente nos conselhos. Quando o governo é progressista,
como foi o caso em Porto Alegre (1989/2004) é possível impulsionar algumas
iniciativas mais populares, mas quando o governo é conservador, os setores
populares viram a minoria da minoria, tendo de enfrentar o governo e os seto-
res empresarias. O máximo que é possível então são pactos de proteção mútua,
mas não há como falar em controle social no sentido de radicalização demo-
crática. E mesmo no caso de governos populares, como não há um compro-
misso com os representados, como ocorre no OP com os fóruns regionais,
ocorre uma certa tendência a que os participantes nesses conselhos setoriais
privilegiam seus próprios interesses nas discussões (por exemplo, viabilizando
convênios entre o poder público e as suas entidades, etc.).

Depois de mais de uma década de aposta na institucionalidade via conselhos,


já é mais do que tempo de nos perguntarmos sobre os resultados mais concretos
dessas experiências. Por mais que seja importante valorizar o processo, a cultura
política desenvolvida pelos participantes, o aprendizado das políticas públicas,
não podemos deixar de perceber a fragilidade do funcionamento concreto das
políticas abrangidas pelos conselhos. Saúde, por exemplo: é óbvio que o caos
existente não culpa da participação e sim dos limites impostos pelos governos às
soluções propostas via conselhos, mas também é óbvio que essa participação não
conseguiu se traduzir em reação pública aos problemas. Os conselhos setoriais
têm se mostrado incapazes de grandes mobilizações, assim como sequer conse-
guem dar publicidade às discussões que travam em seu interior.
Isto posto, o investimento na participação via conselhos precisa enfrentar al-
guns desafios fundamentais:
:.: evitar o uso desses espaços como simples instrumento de neutralização das
tensões sociais, nos quais as lideranças populares gastam enorme energia e aca-
bam se afastando de suas bases;
:.: garantir uma transparência pública do que se passa nas áreas respectivas, não
apenas através de relatos públicos, como também através da construção coleti-
va de indicadores sociais (populares) de desempenho das políticas públicas;
:.: desenvolver espaços mais qualificados e abertos de formação, onde novas pro-
postas possam emergir a partir da base dos movimentos sociais;
:.: retomar as manifestações públicas como elemento indispensável de fortaleci-
mento e afirmação dos interesses populares diante dos governos.

A derrota da frente popular em Porto Alegre abre um espaço privilegiado de


avaliação da institucionalidade participativa. Se muitos dos limites expostos aci-
ma podem ser creditados à prática do “companheirismo”, isto é, a tolerância dos
movimentos populares com governos comprometidos com as suas causas, num
governo de “oposição”, como é o caso do governo Fogaça, a corda tende a ser
estendida até os seus limites de possibilidade.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Conflitos em torno do direito à moradia
na região central de São Paulo
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

CONFLITOS EM TORNO DO DIREITO À MORADIA NA REGIÃO CENTRAL DE SÃO PAULO

Ana Claudia Chaves Teixeira


Mestre em Ciência Política,
coordenadora do Projeto de Participação
Cidadã do Instituto Pólis
Anaclaudia@polis.org.br

Francisco de Assis Comaru


Engenheiro civil, doutor em saúde pública,
membro da equipe técnica do Instituto Pólis
(Núcleo de Urbanismo)
<comaru@polis.org.br>

Renato Cymbalista
Doutorando em Arquitetura e Urbanismo,
coordenador do Núcleo de Urbanismo
do Instituto Pólis

Weber Sutti
Arquiteto, pesquisador do Instituto Polis.
<weber@polis.org.br

Por mais de três séculos após sua fundação em 1554, a cidade de São Paulo
correspondeu ao território situado entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí, na
chamada colina histórica da cidade. A partir de meados do século XIX, com o
aumento do papel estratégico da cidade e da importância das conexões com o
Porto de Santos e com o vasto interior paulista, São Paulo passou por um gigan-
tesco crescimento em área e população. A região que por séculos abrigou o con-
junto da cidade foi assumindo cada vez mais a identidade de centro histórico.
Com o crescimento, a região central apresentou funções específicas no contex-
to da cidade: acolheu o glamour dos cafés, teatros e cinemas; os bairros nobres das
elites em Campos Elísios e Higienópolis, inaugurando o crescimento da parte rica
da cidade no cone sudoeste; os equipamentos terciários como as sedes de bancos,
a Bolsa de Valores, as funções governamentais da cidade e do estado, e também,
em algumas partes, as faces – por vezes explícitas, outras invisíveis – da pobreza e
da moradia superdensa do operariado nas vilas e nos cortiços. Foi também na
área central que se instalou grande parte da população de rua da cidade.
O Centro da cidade não se constituiu como território homogêneo e foi histo-
ricamente dividido em sub-regiões. A partir da década de 1940, o chamado “tri-
ângulo histórico” da cidade, região circunscrita pelas ruas Direita, XV de Novem-
bro e São Bento, perdia as funções residenciais e assumia cada vez mais as funções
terciárias, sediando os setores financeiro e administrativo da cidade. Parte do co-
mércio elegante, assim como a ocupação vertical da elite e da classe média, se
redirecionou para a região do outro lado do Vale do Anhangabaú, constituindo o
chamado “Centro Novo”, na região da Praça Ramos de Azevedo, Praça da Repú-
blica, Rua Barão de Itapetininga e Avenida São Luiz.
Embora fosse um espaço hierarquizado em alguns subterritórios, o Centro de
São Paulo foi durante grande parte do século XX um espaço de convivência entre
todas as classes sociais da cidade, coexistindo (não sem conflitos) sedes de grandes
empresas, vendedores ambulantes, luxuosos edifícios residenciais, a vida religiosa,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

equipamentos culturais como faculdades e bibliotecas, edifícios superpovoados


de quitinetes, o aparato administrativo governamental, a bolsa de Valores, a Jus-
tiça e os profissionais liberais.
A segregação na cidade mudou de escala a partir da década de 1960, quando
setores das elites transferiram parte das atividades de serviços e comerciais para
a região da Avenida Paulista, acompanhando o deslocamento, que já vinha ocor-
rendo há décadas, das atividades residenciais para essa região. Aos poucos, pro-
fissionais liberais, sedes de bancos e empresas transnacionais se instalam na re-
gião da Paulista, acompanhados de investimentos públicos em qualidade urba-
nística que buscavam afirmar a nova centralidade e a imagem de cidade moder-
na e dinâmica.
A nova centralidade terciária também atendia às demandas crescentes por esta-
cionamentos e leito carroçável relacionadas à escolha das elites e classes médias de
São Paulo pelo transporte individual, que já congestionava as estreitas ruas do
Centro antigo.1
Ao mesmo tempo em que uma sociabilidade elegante para os negócios da cida-
de era reproduzida na Avenida Paulista, a estratégia do poder público em relação
aos sistemas de transporte e viário transformava-se. Até 1965, a prioridade da
prefeitura foi a de abrir definitivamente o tecido da região à circulação do auto-
móvel, com o alargamento de vias, compondo um sistema de avenidas radiais e
perimetrais, que integrava o Centro antigo à sua área de expansão – o Centro
novo da cidade, do outro lado do Vale do Anhangabaú. À medida que reforça-
vam o papel de centralidade hegemônica da região central da cidade, essas inter-
venções vinham acompanhadas de um sistema de espaços públicos e da
monumentalização da arquitetura edificada nos eixos principais.
A partir de 1965, as intervenções viárias assumiram caráter distinto. Uma série
de grandes obras viárias como pontes, viadutos e vias elevadas transformaram o
Centro da cidade em nó articulador de toda a acessibilidade metropolitana. Se
por um lado essas grandes intervenções revelam a necessidade de atender à deman-
da por leito carroçável de uma São Paulo que priorizava o automóvel (o número
de automóveis multiplicou por dez entre 1960 e 1980), por outro lado a nova
acessibilidade e a degradação espacial resultantes dessas intervenções
potencializaram a fuga das atividades de maior prestígio para o quadrante sudo-
este da cidade (Nakano, Campos Neto e Rolnik, 2004, p. 130-133).
Em relação ao transporte público, desde a década de 1940 a prefeitura investe
na implantação de uma gigantesca rede de ônibus na cidade. A região central é até
hoje ponto final das linhas radiais, que foram progressivamente ocupando partes
das praças e parques da região com terminais – Praça da Bandeira, Praça Pedro
Lessa, Parque Dom Pedro, Praça Princesa Isabel. A partir da década de 1980,
foram implementados corredores de ônibus em vias segregadas, que também têm
como foco a região central.

1
Para tentar adaptar-se a esse modelo, o Centro de São Paulo teve, via de regra, o comprometimento de espaços públicos
e equipamentos sociais para a expansão viária. Como exemplos, temos a Praça da República, o Parque Dom Pedro II,
dentre outros.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

No entanto, trata-se de uma rede deficiente, que freqüentemente exige trans-


bordos a pé e gera grandes fluxos de pedestres em alguns pontos. Para responder
aos grandes fluxos de pedestres, a prefeitura construiu na década de 1970 um
sistema de calçadões nas vias que apresentavam incompatibilidades de convivên-
cia entre pedestres e veículos, e também nos espaços com dificuldades de conexão
com o sistema viário principal, constituindo uma rede de calçadões de cerca de
7km (Nakano, Campos Neto e Rolnik, 2004, p. 136). A implementação dos
calçadões significou também o aumento dos desequilíbrios no uso dos espaços
convertidos: ruas superlotadas durante o dia e abandonadas à noite,
potencializando o esvaziamento para os usos de habitação. As dificuldades de
acesso por táxi e automóvel já foram também relacionadas à perda de estabeleci-
mentos comerciais e escritórios (Urbs, 2002 b, p. 26). Atualmente, está em discus-
são a abertura parcial dos calçadões para os automóveis.
A migração das elites na cidade não se deteve na Avenida Paulista: novas (e
ainda mais segregadas) centralidades foram constituídas na Avenida Brigadeiro
Faria Lima, Berrini e Marginal Pinheiros, esvaziando ainda mais as áreas centrais
das funções de elite. O abandono das elites permitiu, em certa medida, uma apro-
priação cada vez mais popular das partes do Centro antes vetadas aos segmentos
mais pobres. Essa apropriação significou ao mesmo tempo causa e efeito da fuga
das elites, desejosas de diferenciação social e procurando manter distâncias cada
vez maiores da convivência com os mais pobres. Em alguns casos resultou na
busca de produtos imobiliários como condomínios e loteamentos fechados, algu-
mas vezes a grandes distâncias do Centro ou até mesmo em outros municípios.
Em São Paulo, Alphaville é a expressão maior desse modelo.
Apesar da valorização dos bairros do cone sudoeste da cidade, o Centro man-
teve o alto valor de preço do solo, principalmente devido às possibilidades de uso
comercial do nível térreo dos edifícios.2 A região sedia, até hoje, o maior índice de
empregos de toda a cidade. Por outro lado, o empobrecimento do conjunto da
população da cidade desde a década de 1980 significou dificuldade de acesso
generalizado das classes média, média-baixa e baixa à moradia nos locais com
maior infra-estrutura da cidade, impedindo que parte significativa dos imóveis
desocupados pelos setores mais ricos fossem ocupados pelos mais pobres.
Em relação aos equipamentos públicos, a saída das elites das áreas centrais
da cidade deu-se em paralelo a um processo mais amplo de abandono de equi-
pamentos públicos e sistemas públicos de saúde e educação não-universitária. A
mudança na demanda significou em muitos casos a queda dos padrões de aten-
dimento de equipamentos que anteriormente atendiam às classes médias e elites
da cidade.
O abandono das áreas centrais pelas elites, entretanto, nunca foi total. Princi-
palmente pelo fato de o valor simbólico e histórico das áreas centrais não ser
reprodutível em outras áreas. No início da década de 1990, com uma construção

2
Apenas no fim da década de 1960 o centro deixa de ser o metro quadrado mais caro da cidade, posto assumido pela
Avenida Paulista. Hoje em dia a Paulista divide este status mercadológico com a região da Faria Lima e Berrini e outras
áreas do quadrante sudoeste. No entanto, o centro nunca teve uma baixa no seu valor do solo, que apenas se manteve
estável gerando outro paradoxo que é “quem pode pagar não quer morar e quem quer morar, não pode pagar”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

dos grandes proprietários, ganha força a idéia de que o Centro precisava de uma
“revitalização”, significando uma iniciativa de retorno de uma sociabilidade de
classe média e de elite às áreas centrais.
No ano de 1991 é fundada a Associação Viva o Centro, a partir da explicitação
dos interesses de proprietários, comerciantes, empresários, mas sobretudo do setor
bancário e financeiro, com claros interesses em materializar a valorização, a
reelitização, por meio de uma agenda em torno da recuperação do Centro para as
atividades da classe média e da elite da cidade. A Associação Viva o Centro tem
como maior patrocinador o Bank Boston, em cujas dependências está localizada
a sua sede desde a fundação.3
A Associação Viva o Centro (AVC) tem historicamente se posicionado a favor
do aumento de acessibilidade de automóveis nos calçadões do Centro histórico,
seletivos aos empresários e executivos; pelo embelezamento superficial e generali-
zado de praças e monumentos; pela priorização do uso do Centro para o turismo
e para os turistas e pelo aumento do policiamento ostensivo.
Do ponto de vista dos setores populares, além de tradicional local de trabalho
e de circulação, partes das regiões centrais da cidade historicamente constituíram-
se como local de moradia, principalmente nos cortiços. Esses se disseminaram
como tipologia padrão de moradia das classes operárias, trabalhadoras e dos po-
bres, nos locais menos valorizados e desinteressantes para as atividades comerciais
ou degradados pela saída das classes mais altas. As lutas sociais na região central
de São Paulo têm origens bastante antigas, remontando às reações às políticas
higienistas do início do século XX. A agenda dos direitos humanos, no entanto,
chega aos setores populares de forma mais sistemática com a organização de mo-
vimentos de luta por moradia e movimentos de moradores de cortiços, a partir
dos anos 1980. A Associação dos Trabalhadores e dos Quintais e Cortiços da
Região da Mooca são exemplos da resistência e luta por melhores condições de
vida nos distritos centrais desde os anos 1970. Além dos moradores de rua, há
outros usos populares da região como o comércio ambulante popular, grupos de
cultura popular, feiras de artesanato e regionais, movimentos de moradia, coope-
rativas de reciclagem (os carroceiros), entre outros.4
Os grupos localizados de moradores que lutam contra despejos e por outros
direitos foram agregando-se em articulações mais amplas. Uma das primeiras
foi a Unificação das Lutas de Cortiços (ULC) que nasceu em 1988. Em 1997, a
partir de uma dissidência da ULC, foi fundado outro movimento, o Fórum dos
Cortiços. No ano seguinte, outra dissidência da ULC e é criado o Movimento de
Moradia do Centro (MMC). No ano 2000, a partir do Fórum dos Cortiços,
nasce o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). Desde então surgiram
outros movimentos menores que também lutam pelo direito à moradia digna
no Centro de São Paulo.

3
Ver anexo 2, das associadas à Associação Viva o Centro.
4
Não se trata aqui de defender que o Centro deva pertencer somente às camadas populares, muito menos aceitar as
condições totalmente impróprias com as quais são forçados a conviver, por exemplo, os moradores de rua, dos cortiços,
os ambulantes que se sujeitam a precaríssimas condições como forma de sobrevivência.
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6

Os movimentos de moradia da região central articulam-se em níveis mais


abrangente com movimentos maiores de luta por moradia. Assim, por exemplo, a
ULC, o MMC e o Fórum dos Cortiços congregam-se na União dos Movimentos de
Moradia de São Paulo (UMM) fundado em 1985, que por sua vez faz parte da
União Nacional dos Movimentos de Moradia. Já o MSTC saiu recentemente da
UMM e participou da criação da articulação da Frente de Luta por Moradia (FLM).
Os movimentos locais ligados a UMM participam de articulações locais, regi-
onais e nacionais de entidades e movimentos como o Fórum Centro Vivo, forma-
do em 1999, a Articulação Estadual pelo Direito a Cidade e o Fórum Nacional da
Reforma Urbana.
Todos os movimentos, redes e articulações alinham-se no campo de elabora-
ção, defesa e luta pela Reforma Urbana nas cidades do Brasil, e tem como referên-
cia central de luta o direito à moradia digna.
Na segunda metade da década de 1990, os movimentos organizados de luta
por moradia começaram a despertar para a existência e importância do significa-
tivo parque edificado e desocupado da região. Iniciam então um movimento de
luta pela ocupação desses imóveis, e começam a exigir políticas públicas que res-
pondam a essa demanda. Em contrapartida, começam a ser combatidos como se
fossem geradores de uma suposta perda de vida do Centro de São Paulo. Ao
mesmo tempo, grandes projetos, geralmente públicos e na vertente de cultura,
buscam valorizar o Centro e expulsar os moradores atuais.
É essa a base do conflito estudado por este texto: dois grupos sociais e dois
discursos disputando as ações do poder público para as áreas centrais. Por um
lado, uma visão que busca recuperar o território perdido pelas elites no Centro da
cidade. Por outro, segmentos populares que desejam ocupar um vácuo deixado
pela fuga de atividades e moradores do Centro, e pressionar por ações públicas
que possam viabilizar que isso ocorra em condições melhores e sob a moldura de
uma política pública deliberada.
Dentro desse contexto, optamos por nos debruçar sobre os conflitos na região
central, com foco na temática habitacional e na especulação imobiliária alimentada
por essa disputa. Vamos analisar o papel dos governos federal, estadual e municipal
nos conflitos do Centro, bem como o papel da sociedade civil. Procuraremos exa-
minar dois estudos de caso: do edifício da Rua do Ouvidor, número 63 – uma
ocupação do Movimento de Moradia do Centro e caso particular que explicita as
contradições que envolvem o conflito habitacional no Centro de São Paulo –, e o
estudo sobre o Projeto do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o
Centro, que aponta interesses e projetos múltiplos sobre a mesma região.
Do ponto de vista da cidade de São Paulo, o repovoamento do Centro e das
áreas com infra-estrutura da cidade pela população de baixa renda é uma disputa
que tem conseqüências para toda a região metropolitana. Enquanto existem na
cidade cerca de 400 mil imóveis desocupados, seguem sendo ocupadas pela popu-
lação de baixa renda, por inexistência de alternativas, as áreas de mananciais,
serras, beiras de córrego, periferias longínquas. Reverter o processo de esvazia-
mento das áreas providas de infra-estrutura, portanto, poderia reverter a urbani-
zação periférica, ambientalmente predatória e segregadora, padrão na Região
Metropolitana de São Paulo. Pela perspectiva da problemática em questão, a
abrangência do conflito pode ser considerada de escala nacional. Todas as maio-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

res cidades do país, inclusive cidades médias, têm suas áreas centrais despovoadas,
principalmente por causa dos altos preços da terra, do empobrecimento da popu-
lação, da dinâmica do mercado imobiliário e da ausência de atuação do estado
por meio de políticas urbanas e fundiárias. Da mesma forma, é muito presente o
projeto de recuperação de centros históricos para atividades culturais e usos de
elites. O encaminhamento do conflito em São Paulo e a acomodação das forças
em disputa reforçarão um dos dois projetos para os centros históricos no país.
É importante ressaltar a existência de vários outros conflitos presentes na área
central, que fazem parte da disputa mais ampla a respeito de quem, e com qual
respaldo do poder público, deve ocupar essa parte da cidade – por exemplo, con-
flitos envolvendo os vendedores ambulantes, os catadores de materiais recicláveis,
os grupos de teatro popular e de teatro de rua.

Papel e atuação dos governos


A pergunta que perseguimos ao analisar o papel dos governos nos conflitos em
torno do Centro é: para o poder público, quem deve ocupar e usar o Centro da
cidade? A expectativa de uma resposta única e genérica foi logo abortada. No
lugar de uma resposta que dá um sentido geral para as intervenções públicas no
Centro de São Paulo, surge um agregado de proposições dos governos federal,
estadual e municipal, que varia desde planos e projetos globais, mas jamais efeti-
vados, até conjuntos de intervenções reais e poderosas, nunca explicitados como
partes de um todo. Sem descartar a fragmentação ou falta de direção das interven-
ções estatais, os vários sentidos apontados são também, de certa forma, conseqü-
ência da estrutura federativa brasileira pós 1988, que dá autonomia à União, aos
estados e municípios para realizarem suas intervenções. No caso da política urba-
na, a autonomia produz algumas áreas de sobreposições e sombreamentos nas
competências estadual e municipal na condução das políticas públicas.
Para dar maior legibilidade aos vários sentidos das intervenções públicas no
Centro de São Paulo, recorreremos à divisão federativa e administrativa vigente,
separando os projetos do governo federal, estadual e municipal. Como era de se
esperar, a esfera municipal é aquela que mais se ocupou com projetos e interven-
ções específicas para a área central da cidade, razão pela qual subdividimos a
seção que trata das intervenções municipais em três vertentes: investimentos,
regulação e planos e projetos.

Governo federal
Não se pode afirmar que o Centro de São Paulo foi objeto de atenção especí-
fica por parte do governo federal de forma prioritária, nem em relação à alocação
de investimentos. Se compararmos com a grande quantidade de equipamentos
federais existente no Rio de Janeiro, por exemplo, ou mesmo levando em conta a
forte presença das universidades federais nas áreas centrais das diversas capitais
brasileiras, a presença de equipamentos públicos federais no Centro de São Paulo
é reduzida. Ainda assim, é no Centro que se encontra a maior densidade de órgãos
públicos federais.
No entanto, nos últimos anos, verifica-se certa priorização na região central
para a instalação de equipamentos do governo federal. A Caixa Econômica Fede-
ral tem o projeto de centralizar suas atividades na região da Sé, saindo da Avenida
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8

Paulista, além da crescente presença de equipamentos culturais pertencentes ao


governo federal na área. Por exemplo, o conjunto da Caixa Econômica Federal
será também um centro cultural, em abril de 2001 foi inaugurado o Centro Cul-
tural Banco do Brasil. Está também previsto para a área o Centro Cultural dos
Correios, na Avenida São João, cujo projeto data de 1996 e cujas obras arrastam-
se há anos. Soma-se a isso o já existente centro cultural da Fundação Nacional da
Arte (Funarte), nos Campos Elíseos.5
Excetuando-se os investimentos pontuais, pouco se pode dizer de uma estraté-
gia global do governo federal para as regiões centrais das cidades, que ocorrem
mais relacionadas à idéia de preservação de patrimônio histórico e arquitetônico
do que propriamente a uma compreensão global a respeito do Centro das cidades
e a uma opção política pela intervenção.
Na década de 1990 articulou-se um programa federal especificamente focado
na intervenção em centros históricos – o Programa Monumenta, com recursos do
BID –, que contemplava o município de São Paulo em seu desenho inicial. Trata-
se de um programa de operação complexa, pois pressupõe a cooperação entre os
governos federal, estadual e municipal. No caso de São Paulo, as ações do Progra-
ma Monumenta são de escala restrita, concentram-se na região da Luz e relacio-
nam-se, principalmente, à restauração de edifícios de interesse histórico.6
Também na década de 1990 foi construído pela Caixa Econômica Federal o Pro-
grama de Arrendamento Residencial (PAR), orientado para a faixa de renda de 3 a 6
salários mínimos e baseado na aquisição de imóvel por arrendamento residencial
durante 15 anos, ao cabo dos quais o morador tem a opção de compra do imóvel
descontando o montante já desembolsado. Embora não seja especificamente voltado
para a moradia nas áreas centrais, o PAR tem sido utilizado em São Paulo para a
construção de moradia nas áreas centrais. O conjunto da Caixa Econômica Federal
na Sé terá 26 unidades habitacionais de um e dois dormitórios viabilizadas pelo PAR.
Em 2003, o governo federal instituiu o seu programa de requalificação de áreas
centrais, alocado na Secretaria de Programas Urbanos do Ministério das Cidades. Em
São Paulo, a principal ação do programa é iniciar o processo que viabilize empreendi-
mentos de habitação de interesse social em imóveis de propriedade da União nas áreas
centrais, não utilizados para atividades operacionais. Para isso, foi construído um
grupo de trabalho com o Ministério das Cidades, a Secretaria de Patrimônio da União
e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS – o principal proprietário de edifícios
do governo federal na região central), que fez um levantamento dos edifícios existen-
tes e procura construir projetos habitacionais para eles. Nove desses edifícios estão em
processo de estudo de viabilidade pela Caixa Econômica Federal para realizar empre-
endimentos do PAR, para uma faixa de renda de 3 a 6 salários mínimos.7 Outros
edifícios, com maiores dificuldades jurídicas de repasse dos imóveis, estão em estudos
para outros tipos de empreendimentos. A principal dificuldade é o fato de o INSS
nunca ter feito esse tipo de operação.

5
Todavia não se compara aos equipamentos existentes no Rio de Janeiro, que possui uma densidade muito maior de
equipamentos federais, que pese o fato do Rio de Janeiro já ter sido a capital federal.
6
O site do programa é <www.monumenta.gov.br>.
7
Segundo a coordenadora do programa, Margareth Uemura, em 25 de julho de 2005.
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9

Governo do Estado
Diferentemente da estratégia do governo federal, as intervenções do governo
do estado para o Centro de São Paulo revelam que a região tem se tornado uma
prioridade crescente de intervenção pública.
Enquanto nas esferas municipal e federal a regra dos últimos anos foi a troca
de partidos e de projetos políticos no poder, o governo do estado de São Paulo é
ocupado desde o início da década de 1990 pelo mesmo partido (Partido da Social
Democracia Brasileira – PSDB). O fato atribui mais clareza ao sentido das inter-
venções, que poderíamos classificar como uma estratégia elitista para o Centro.
Dividimos essas intervenções em três vertentes principais:
1. O governo do estado elegeu o Centro da cidade como um de seus principais
focos de investimento em equipamentos culturais, em muitos momentos mai-
ores que os investimentos em habitação e de atendimentos básicos. São exem-
plos desses investimentos nos últimos dez anos: a construção da Sala São Pau-
lo; a restauração do Teatro São Pedro; a reforma da Pinacoteca do estado e do
Museu de Arte Sacra; a reforma do antigo edifício do Departamento de Or-
dem Política e Social (DOPS), cedido às atividades da Pinacoteca do estado; o
antigo Hotel Piratininga, transformado no centro de estudos musicais Tom
Jobim. A reforma da Pinacoteca do estado foi acompanhada pela renovação
do Jardim da Luz, que tem tido seu acesso mais selecionado e vigiado. Além da
reforma, a Estação da Luz ganhará um centro cultural da língua portuguesa
financiado em parceria com a iniciativa privada.
A instalação dos equipamentos culturais revela também uma hierarquização
interna aos territórios do Centro pelo governo do estado. Enquanto o Centro
velho e a região da Luz vêm acolhendo quase todos os equipamentos culturais
mencionados acima, outras regiões, que talvez possam ser chamadas de “peri-
ferias do Centro” ( os distritos do Brás, Liberdade, Campos Elíseos e Liberda-
de), recebem investimentos destinados às camadas populares, como os restau-
rantes populares (Urbs, 2002 a, p. 11).
Vale ressaltar que a maior parte desses equipamentos culturais é totalmente
impermeável ao público popular residente no Centro e não há nenhuma cam-
panha ou ação do governo do estado para que se interfira nessa relação. É
comum que as pessoas cheguem à Sala São Paulo em seu automóvel, assistam
ao espetáculo e vão embora sem o menor contato com o bairro, o que contri-
bui para maior segregação e uma espécie de museificação, com o objetivo ape-
nas de valorização imobiliária, e não humana, das regiões em questão.
2. Outro grande aporte na região é a construção da linha quatro do metrô que
conectará o Centro à rica região sudoeste da cidade. A nova linha vai transfor-
mar a estação da Luz no maior ponto de transbordo de transporte de massa da
cidade, com conexões para as linhas de trem urbano. A malha já existente de
trem urbano, reformada pelo governo do estado, busca qualidade e facilita sua
integração com o metrô nas estações Brás, Barra Funda e Luz.
3. Quanto aos órgãos administrativos, o governo do estado seguiu a tendência e,
em 2003, comprou oito prédios na área central, nas ruas Boa Vista e XV de
Novembro, destinados a acolher as secretarias de Habitação, Transportes Metro-
politanos e Emprego e Relações do Trabalho, além de cinco empresas estaduais:
Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU), Metrô,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), Departamento de Águas


e Energia Elétrica (DAEE) e Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano
S.A. (Emplasa), e um segundo gabinete do governador nos Campos Elísios. Em
parte, na busca da redução dos custos de aluguel, em parte para contribuir com
a recuperação do Centro, o governo do estado vem concentrando crescentemente
os órgãos da administração pública na região (Urbs, 2003, p. 42).
Na questão habitacional, o governo do estado não foca sua atuação no Cen-
tro, a exceção do Programa de Atuação de Cortiços (PAC) que teve início em
meados da década de 1990 através de financiamento do BID e foi regulamen-
tado por decreto em 1998.8 O programa demorou a sair do papel e somente a
partir de 2003 começou a ser efetivado. Até fevereiro de 2005, 277 unidades
habitacionais foram construídas na capital, e 704 encontravam-se em constru-
ção.9 Porém, a maior linha de atendimento dentro do programa é a ajuda de
custo, em torno de R$ 2.500,00 por família em situação de emergência. Após
o recebimento da ajuda de custo, a família é considerada atendida em sua
demanda habitacional.

Governo municipal
É na esfera municipal que se revelam com mais clareza os distintos projetos
políticos para o Centro de São Paulo: tanto o lugar que a cidade, direta ou indi-
retamente, proposital ou inadvertidamente, reservou para o seu centro nas últi-
mas décadas, quanto, mais recentemente, as divergências e contradições referentes
à disputa em relação ao projeto da prefeitura para o Centro. Essas disputas refle-
tem compromissos dos projetos também divergentes que distintos atores da soci-
edade civil e dos setores privados explicitaram para o Centro nos últimos anos.
INVESTIMENTOS E PROJETOS
Mesmo levando em conta o deslocamento das elites rumo ao sudoeste, o Cen-
tro da cidade jamais deixou de representar região prioritária para os investimen-
tos da prefeitura em qualificação dos espaços públicos da cidade, nem sempre
bem sucedidos em relação aos resultados esperados.
A gestão de Luíza Erundina (Partido dos Trabalhadores – PT - 1989-1992)
marcou o amadurecimento de um discurso que pregava a volta dos equipamentos
do governo municipal para o Centro. Em 1991, o gabinete da prefeita, antes no
parque do Ibirapuera, foi transferido para o Palácio das Indústrias. A ação pre-
tendia simbolizar a volta do poder público para o Centro da cidade.
Na década seguinte, diversas secretarias municipais voltaram ao Centro. A
prefeita Marta Suplicy prosseguiu o movimento, com a mudança das secretarias
de Saúde, Assistência Social, Cultura, entre outras. A Orquestra Sinfônica Muni-
cipal, a Orquestra Municipal de Repertório, o Balé da Cidade, as escolas de Mú-
sica e de Bailado e a administração do Teatro Municipal também se mudaram
para o Largo do Paissandu, em um edifício inteiramente reconvertido para ativi-
dades culturais.

8
Decreto 43.132 de junho de 1998 do governo do Estado
9
Segundo informação do portal do governo do estado de São Paulo: <http://www.saopaulo.sp.gov.br/acoes/cdhu.htm>
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11

Em 2002, a sede da prefeitura municipal foi novamente transferida, desta vez


para a porção mais nobre do Centro de São Paulo – um edifício debruçado sobre o
Vale do Anhangabaú. Em janeiro de 2004, das 21 secretarias municipais, 15 encon-
travam-se instaladas no Centro, representando economia de 4,8 milhões ao ano aos
cofres públicos e trazendo a gestão municipal para o região (Urbs, 2004, p. 24).
Outros investimentos nos espaços públicos a serem considerados, entre 1991 e
2002, foram as reurbanizações do Largo São Bento, do Pátio do Colégio, da
Praça Ramos de Azevedo, da Praça Patriarca, dos viadutos do Chá e Santa Ifigênia.
Vários desses projetos realizaram-se em parceria com a iniciativa privada.
Sobre a questão habitacional é fundamental compreender que a região central
perdeu cerca de 40% de sua população desde a década de 1980, e atualmente
apresenta as mais altas taxas de desocupação de imóveis da cidade.
Foi no início da década de 1990 que a prefeitura iniciou ações para viabilizar
projetos públicos de habitação de interesse social na região. Pela primeira vez na
história da cidade, inicia-se uma pequena, porém importante produção de habitação
de interesse social para os moradores de cortiços. Dois projetos verticalizados deman-
dados pela ULC, os conjuntos Madre de Deus da Mooca (45 unidades) e Celso Garcia
no Brás (182 unidades), foram produzidos pelo sistema de mutirão com autogestão.
Durante a gestão Maluf/Pitta, a produção de moradia em áreas centrais foi
interrompida em prol de projetos em áreas com maior visibilidade, e as sobras dos
mutirões paralisadas ou retardadas. Na campanha de 2000, a então candidata
Marta Suplicy estabeleceu como compromisso a construção de habitação de inte-
resse social nas áreas centrais, em resposta a uma demanda já amadurecida nos
setores técnicos e populares. Somente dois anos após as eleições os resultados do
programa começaram a aparecer (Cardoso, 2004, p. 61-64).
O Programam Morar no Centro subdividiu-se em três subprogramas: Progra-
ma de Arrendamento Residencial (PAR), utilizando o sistema de financiamento
da Caixa Econômica Federal; Locação Social; e Programa de Reabilitação Inte-
grada do Habitat (PRIH). Em janeiro de 2004, segundo a prefeita, o Programa
Morar no Centro beneficiava 1.200 famílias (Urbs, 2004, p. 24).
Quanto ao Programa de Locação Social, grande inovação no panorama muni-
cipal, destaca-se o Parque do Gato, com 270 unidades residenciais. Outros terre-
nos em áreas centrais, próximas ao metrô Belém, ao metrô Bresser e à Avenida São
João, e na Vila dos Idosos (no bairro do Pari), foram comprados pela prefeitura
para a construção de locações sociais, mas as unidades habitacionais não foram
entregues até o fim do mandato da Prefeita.10
Outro programa importante é o Bolsa-Aluguel, concebido para atender a ne-
cessidades emergenciais de famílias com baixos rendimentos. Consiste em subsídi-
os de até 300 reais por mês, por até 30 meses, renováveis por mais 30. Outra
modalidade do Bolsa-Aluguel é a garantia da prefeitura municipal como fiadora
do locatário em caso de inadimplência. O programa chegou a beneficiar mais de
1.650 famílias como, por exemplo, parte das unidades da Favela do Gato e os

10
Segundo informação do portal Vermelho <www.vermelho.org.br>, acessado em 27 de julho de 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
12

ex-moradores do Edifício São Vito, desocupado em 2004 para futuro empreendi-


mento habitacional.
O PRIH, um dos programas mais importantes da gestão, consistia em inter-
venções localizadas nas áreas de habitação e condições urbanas em 10 perímetros
selecionados no Centro da cidade. Dentro desse programa o perímetro do Glicério
foi escolhido como um projeto piloto, mesmo assim não chegou a ser implementado.
Ao assumir a prefeitura, o prefeito José Serra demonstrou total falta de sensibi-
lidade para a questão da habitação no Centro. Segundo Sidnei Euzébio, coorde-
nador da ULC, “a revitalização da Praça Coronel Fernando Prestes, próxima à
estação de metrô Tiradentes, vai custar R$ 3 milhões para a cidade. Enquanto
isso, famílias de bairros nos arredores são despejadas por não receberem Bolsa-
Aluguel da prefeitura”.11 Os programas habitacionais do Centro foram, via de
regra, interrompidos, assim como os equipamentos sociais de atendimento à po-
pulação de rua (inclusive crianças) estão sendo retirados da região central.

Regulação do uso do solo


O Centro de São Paulo foi historicamente uma das regiões agraciadas com os
maiores coeficientes de aproveitamento para a construção, o dobro da área per-
mitida para a maior parte da cidade (Nakano, Campos Neto e Rolnik, 2004, p.
141). O Centro da cidade foi a primeira área a se verticalizar, mas desde a década
de 1960 o mercado imobiliário vem perdendo o interesse em investir nas áreas
centrais. Em contrapartida, investe em outras centralidades como a Avenida
Paulista, a Faria Lima e a Marginal Pinheiros para imóveis comerciais, e os bair-
ros do quadrante sudoeste para edifícios residenciais (Somekh, 1997). Atualmen-
te, poucos são aqueles que exercem os potenciais construtivos permitidos, ainda
que existam muitas áreas não-verticalizadas no Centro.
Em 1991, foi aprovada a Operação Urbana Anhangabaú, que buscava atrair
investimentos privados para a região, principalmente por meio da venda de poten-
cial construtivo. Enfrentando o desinteresse do mercado imobiliário, a Operação
Urbana não teve resultados significativos. Em 1996, foi substituída pela Operação
Urbana Centro, utilizada prioritariamente para a transferência de potencial cons-
trutivo de edifícios do Centro para outras regiões, principalmente em casos de recu-
peração de patrimônio histórico. Na verdade, mais do que expressar o interesse por
investir no Centro, a transferência de potencial construtivo aumenta ainda mais o
desequilíbrio da região em relação a outras centralidades, pois os direitos construti-
vos adquiridos são exercidos em geral nas áreas mais dinâmicas da cidade do ponto
de vista imobiliário (Nakano, Campos Neto e Rolnik, 2004, p. 144).
Outra iniciativa foi a Lei de Fachadas, instituída em 1997 e destinada a preser-
var a paisagem do Centro, que concede a isenção do Imposto Predial e Territorial
Urbano (IPTU) para imóveis que tenham suas fachadas restauradas. Esse instru-
mento é utilizado principalmente por corporações cuja intenção é produzir uma
imagem positiva sobre sua inserção na cidade.

11
Segundo informação do portal Vermelho <www.vermelho.org.br>, acessado em 27 de julho de 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13

Em 2002, já na gestão de Marta Suplicy, foi aprovado o novo Plano Diretor


para a cidade, que expressa intenções bastante diferentes para o Centro. Ele divi-
de a cidade em duas macrozonas: de Proteção Ambiental e de Estruturação e
Qualificação Urbana, esta última destinada a acomodar a ocupação urbana do
município. A macrozona de Estruturação e Qualificação Urbana, por sua vez,
divide-se em quatro macroáreas: Reestruturação e Requalificação Urbana; Urba-
nização Consolidada; Urbanização em Consolidação e Urbanização e Qualifica-
ção. A área central do município encontra-se inserida na macroárea de
Reestruturação e Requalificação, definida como área que “passa atualmente por
processos de esvaziamento populacional e desocupação dos imóveis, embora seja
bem dotada de infra-estrutura e acessibilidade e apresente alta taxa de emprego”.
O Plano Diretor tem como objetivos de intervenção nessa macroárea a reversão
do esvaziamento habitacional através do estímulo ao uso habitacional de interes-
se social e da intensificação da promoção imobiliária; a melhoria da qualidade
dos espaços públicos e do meio ambiente; o estímulo às atividades de comércio e
serviços; a preservação e reabilitação do patrimônio arquitetônico e a reorganiza-
ção da infra-estrutura e do transporte coletivo.12
A principal inovação do Plano Diretor foi a instituição das Zonas Especiais de
Interesse Social 3 (Zeis 3), definidas como:
[...] áreas com predominância de terrenos ou edificações
subutilizados, conforme estabelecido nesta lei, adequados à urbani-
zação, onde haja interesse público, expresso por meio desta lei, ou
dos planos regionais ou de lei específica, em promover a recupera-
ção urbanística, a regularização fundiária, a produção de Habita-
ções de Interesse Social (HIS) ou de mercado popular (HMP), e
melhorar as condições habitacionais da população moradora”.13

O instrumento das Zeis surge na década de 1980, e vem sendo aplicado e


transformado desde então, sempre com o intuito de garantir a permanência e a
oferta de terras com infra-estruturas para a moradia de baixa renda nas cidades
brasileiras (Mourad, 2000). Mesmo sendo a primeira vez que esse tipo de
zoneamento é instituído na cidade, é necessário ressaltar que se trata de um pro-
cesso repleto de concessões por parte dos setores populares. A maior parte das Zeis
3 é proposta nas partes mais degradadas do Centro, que já são historicamente
ocupadas por moradia de baixa renda. Em comparação, poucas são as Zeis
marcadas nas partes mais nobres do Centro. Outra questão é o fato de ser tam-
bém possível construir HMP nas Zeis 3. Trata-se de habitação “de mercado popu-
lar”, para a faixa de renda de até 16 salários mínimos, ou seja, cerca de R$ 4.800
de renda familiar em julho de 2005. O instrumento, que originalmente se propu-
nha a garantir a oferta de terras para a habitação de interesse social, não necessa-
riamente garante isso.

12
Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo – Lei 13.430, de 13 de setembro de 2002, art. 155.
13
Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo – Lei 13.430, de 13 de setembro de 2002, art. 171.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

Embora governos federal, estadual e municipal tenham passado na década de


1990 por orientações políticas distintas, é possível identificar atitudes comuns às
três esferas de governo, que perpassam as nuanças partidárias. Parece ser consenso
entre os gestores públicos que o Centro da cidade é também, por vocação, o cen-
tro administrativo. Também parece consensual a iniciativa de reforçar o seu cará-
ter de centro simbólico, por meio de investimentos em qualificação da paisagem e
dos espaços públicos, zeladoria urbana e implantação de equipamentos culturais.
A tentativa de alavancar a participação de empreendimentos e capital privado é
também uma constante desde a década de 1990.
O ponto básico que diferencia as ações de alguns governos é o da Habitação
de Interesse Social. Para os governos sem tradição de interlocução com movi-
mentos populares organizados a temática não se transforma em política públi-
ca. A orientação, mesmo que implícita, parece ser a de que os pobres têm outro
lugar em seu projeto de cidade, longe do glamour, do centro simbólico, admi-
nistrativo e de decisão.
Para governos mais comprometidos com os segmentos populares, como as
duas gestões petistas e o governo Lula, a temática é bem mais presente. Cabe
dizer que a idéia de habitação social nas áreas centrais é mais presente no discur-
so do que nas ações desses governos. Tampouco desaparecem as formulações
baseadas nos “empreendimentos âncora” e na gentrificação. Ocorre que em al-
guns governos específicos há a negociação e a composição de interesses, em ou-
tros, nem isso.
Os conflitos ficam evidentes nas falas de Marco Antônio Ramos de Almeida,
presidente da Diretoria Executiva da Associação Viva o Centro, e de Paulo Teixeira,
vereador de São Paulo e ex-secretário municipal de Habitação:
A ampliação do uso residencial do Centro é um imperativo da
estratégia de requalificação de áreas centrais, não podendo ser
considerada uma ação de política habitacional. À parte as limita-
ções de ordem técnica e econômica do retrofit e conversão para o
uso residencial de imóveis comerciais ociosos e as decorrentes da
sua localização em áreas fortemente ocupadas por atividades de
comércio e serviços, há que considerar que, no caso de São Paulo,
essa ocupação em nenhuma hipótese alcançará a escala que a torne
relevante como política de moradia. Também as limitações da
oferta de imóveis para reciclar e de terrenos para construir jamais
permitirão uma produção em massa de residências no centro
paulistano. Um programa bem sucedido de uso residencial do
centro será importante por seu significado simbólico, não como
atendimento à esmagadora demanda por moradia na cidade.
(Almeida, 2002)

Desenvolver uma política habitacional no Centro de São Paulo é uma oportuni-


dade de combinar a produção de moradias com a preservação do patrimônio e da
identidade cultural e social da região, que tem como características a convivência de
pessoas de diferentes faixas de renda e a mistura do uso residencial com atividades
comerciais e de serviços. Por essa razão, ao se articular a política habitacional com o
conjunto de intervenções, públicas e privadas, voltadas à reabilitação da região
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

central e ao seu repovoamento, uma das principais preocupações é garantir que as


pessoas que hoje moram e trabalham no Centro possam ser beneficiadas pelo pro-
cesso, mediante programas que garantam sua permanência.14

Caracterização e papel de diferentes atores da sociedade civil


Os atores da sociedade civil envolvidos nos diversos conflitos, e que disputam
a região central, são inúmeros. No entanto, identificam-se diferenças importantes
na forma e no grau de organização e articulação, nos interesses que defendem, nos
princípios, nas práticas e no público representado. Não é possível esgotar aqui a
análise dos atores sociais e econômicos da região central, mas apenas situar muito
brevemente elementos de suas origens, composições, tendências, de seus valores e
comportamentos, tendo como pano de fundo a conjuntura atual das ações do
poder público.
Vamos nos ater àqueles atores que possuem interesses claramente identificáveis,
com distintas visões e que disputam projetos para o Centro. Obviamente que, no
tecido social, econômico e cultural complexo que compõe o Centro da cidade
identifica-se um espectro bastante amplo com centenas de atores e interesses. Os
diferentes atores que analisamos têm, historicamente, defendido interesses própri-
os, de forma isolada ou articulados em grupos, redes ou coalizões. Esses atores
sempre recorreram às suas articulações, redes e coalizões quando necessitavam
jogar maior peso numa disputa específica (por meio, por exemplo, de sindicatos,
federações, associações, articulações de movimentos etc.)
Nesse sentido, um novo elemento surgiu a partir dos anos 1990, quando fo-
ram criadas articulações ou coalizões mais amplas, a partir de atores já em cena,
especificamente para lutar, advogar e defender interesses e projetos para a região
central de São Paulo.
Em 1991 foi fundada a Associação Viva o Centro (AVC) com o propósito de
articular diferentes atores com interesses na revitalização ou requalificação do
Centro da cidade. Segundo informações da própria AVC, a entidade tem como
objetivo:
[...] o desenvolvimento da área central de São Paulo, em seus
aspectos urbanísticos, culturais, funcionais, sociais e econômicos,
de forma a transformá-la num grande, forte e eficiente Centro
Metropolitano, que contribua eficazmente para o equilíbrio econô-
mico e social da metrópole, para o pleno acesso à cidadania e o
bem-estar por toda a população.
A AVC reuniu inicialmente o setor empresarial dos bancos, comér-
cio e serviços localizados na região. Constitui-se assim, uma coali-
zão ampla de diferentes atores que advogam pela revitalização do
Centro. Segundo sua Diretoria Executiva é uma entidade
“dedicada única e exclusivamente ao processo de recuperação do
centro” (Almeida, 2005).

14
Paulo Teixeira na introdução do Programa Morar no Centro, março de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

A AVC defende publicamente (por meio da Revista Urbs que edita, do seu site
na Internet, de boletins, seminários, conselhos em que participa e outros espaços
da esfera pública instituída) interesses que aparecem como bandeiras históricas,
tais como: melhoria do serviço de limpeza pública (intensificação da zeladoria
urbana), iluminação pública de melhor qualidade, maior acessibilidade dos auto-
móveis à região central (especialmente uso seletivo de automóveis nos calçadões
do centro histórico para executivos de empresas e bancos), retirada e destinação
de outros espaços da cidade para os vendedores ambulantes da economia infor-
mal (denominam de disciplinamento do uso do espaço público) e incentivo aos
investimentos públicos e privados em grandes equipamentos de uso cultural.
Recentemente, a AVC defendeu a requalificação do Pólo Luz – Santa Ifigênia
(região popularmente conhecida por Cracolândia, onde a prefeitura realizou, no
primeiro semestre de 2005, ações muito controversas de limpeza física – segundo
muitos atores, limpeza social – sendo acusada por entidades diversas de violação
dos direitos humanos dos que freqüentam, vivem e trabalham na região, expul-
sando e agredindo a população excluída, com uso de força policial, sem oferecer
alternativas concretas de inclusão social por meio de políticas públicas).
A Associação propõe também uma readequação do sistema viário no Vale do
Anhangabaú (com maior liberdade para circulação de veículos, a exemplo do
defendido para alguns calçadões do centro histórico); construção de garagens sub-
terrâneas (que estimulariam e facilitariam o uso do transporte individual no Cen-
tro); implantação de um sistema territorializado de zeladoria urbana, segurança e
fiscalização, entre outros.
Os atores que integram a AVC representam empresas, bancos, federações, sin-
dicatos patronais, associações comerciais e empresariais. A AVC possui ainda um
Programa de Ações Locais que, segundo a própria Associação, possui milhares de
representantes de empresas e organizações, além de moradores do Centro.
Levantamento realizado em julho de 2005 no seu site na Internet, revela que a
AVC possui 124 associados, entre os quais, instituições de caráter e área de atuação
financeira: sete bancos nacionais privados; estatais e multinacionais; três associa-
ções de bancos; a Bolsa de Valores de São Paulo e a Bolsa de Mercadorias & Futuros
– nada menos que o coração do mercado financeiro e de investimentos do Brasil.
Entre outros associados, ligados ao setor patronal e empresarial podemos citar
instituições de peso considerável na economia da cidade, do estado e do nosso país,
tais como: Federação Brasileira das Associações de Bancos (Febraban), Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Federação de Hotéis, Restaurantes,
Bares e Similares do Estado de São Paulo, Federação do Comércio do Estado de São
Paulo (Fecomércio), Federação Interestadual das Instituições de Crédito, Financia-
mento e Investimento (Fenacrefi). Participam também a Associação Nacional das
Corretoras de Valores, Câmbio e Mercadorias (Ancor) e a Associação Nacional das
Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi).
Chama a atenção o número de órgãos do governo do estado de São Paulo
associados à AVC: Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo; Empresa Metro-
politana de Planejamento da Grande São Paulo (Emplasa), Empresa Metropoli-
tana de Transportes Urbanos de São Paulo (EMTU), Escola Estadual de São Pau-
lo, Polícia Civil do Estado de São Paulo (Delegacia de Turismo – Deatur); Polícia
Militar do Estado de São Paulo (7o BPM-M); Secretaria de Estado da Educação;
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania; Secretaria de Estado dos


Transportes Metropolitanos; Tribunal de Justiça de São Paulo.
Como contraponto à AVC há outro conjunto de atores que se caracterizam
mais claramente pela identificação com causas populares. Defendem a democrati-
zação e popularização do Centro; o acesso aos equipamentos públicos e sociais; a
inclusão socioeconômica e espacial na região central; a não-expulsão e não-
gentrificação; o acesso à moradia, emprego, infra-estrutura e serviços públicos de
boa qualidade. Enfim, defendem a reforma urbana da região central.
Assim, no final dos anos 1990, por iniciativa de entidades e pessoas ligadas a
universidades, movimentos populares de moradia, organizações não-governamen-
tais (de habitação, direitos humanos, segurança alimentar etc.), sindicatos, gru-
pos de teatro, professores, estudantes e lideranças populares, entre outros, foi cri-
ado o Fórum Centro Vivo (FCV), espaço de articulação e diálogo desses atores.
O FCV também possui bandeiras históricas importantes que passam pela inclu-
são social, econômica e cultural da população de baixa renda; democratização de
todos os espaços da região; promoção da cidadania de grupos tradicionalmente
excluídos; valorização do espaço público aberto e de livre acesso a todos; produção
de habitação de interesse social adequada aos grupos mais pobres dos movimentos
de moradia, de modo a evitar a expulsão para as periferias longínquas da metrópole
(gentrificação). Essas bandeiras são defendidas, por meio das entidades e dos movi-
mentos, em seminários, espaços públicos, conselhos de representação, manifesta-
ções, atos públicos populares, debates, publicações, jornais, pesquisas acadêmicas e
apresentações dos grupos de teatros nas praças e espaços públicos do Centro.
Entre os participantes do FCV encontram-se organizações não-governamen-
tais, como o Instituto Pólis, o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, o
Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (Usina), a União de Mulheres de
São Paulo, a Ação da Cidadania, o Instituto Brasileiro de Administração Pública
(Ibap); diversos movimentos sociais de luta por moradia (ULC; Movimento de
Moradia do Centro – MMC, Fórum dos Cortiços, MSTC, Movimento de Mora-
dia da Região Central – MMRC, Comunas Urbana, Marcha Mundial de Mulhe-
res, Frente de Lutas por Moradia –FLM; União dos Movimentos de Moradia-SP
– UMM, entre outros), Movimentos dos Ambulantes de São Paulo, Central dos
Movimentos Populares (CMP), Fórum da População em Situação de Rua, Gru-
pos de Teatro de Rua (como Tablado de Arruar e Teatro de Narradores), universi-
dades e laboratórios de universidades como Universidade Mackenzie, e o Labora-
tório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo (LabHab da FAUUSP), Grêmio dos
Estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (GFAU) da USP, Escritório
Piloto do Grêmio Politécnico (EP) da USP; sindicatos como Sindicato dos Ambu-
lantes de São Paulo e Sindicato da Economia Informal da Central Única de Tra-
balhadores (CUT), constituindo-se cerca de 41 diferentes entidades entre organi-
zações não-governamentais, movimentos, sindicatos, laboratórios, centros acadê-
micos e universidades.15

15
Para conhecer a lista completa das entidades participantes do Fórum Centro Vivo, ver o Anexo I.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

É importante frisar que, certamente, além desses, existem outros atores que
possuem e defendem interesses para o centro da cidade (de proprietários e investi-
dores a militantes populares). Entretanto, identificamos essas duas articulações
de importância central e que foram instituídas com o claro propósito de propor
transformações, disputar e influir nas políticas públicas e nos investimentos da
região: a Associação Viva o Centro e o Fórum Centro Vivo.
Em uma análise mais qualitativa desses atores, podem-se notar diferenças muito
importantes, muitas vezes antagônicas e contrárias. Se essas diferenças são visíveis
nos textos e documentos produzidos, elas ganham cores mais forte nos discursos e
nas práticas e formas de atuação, de advocacia e articulação.
Para contextualizar e exemplificar, o Centro de São Paulo passa, em 2005, por
um intenso processo dirigido de elitização, glamorização e limpeza patrocinado
pelos poderes públicos municipal, com apoio do poder público estadual e de de-
cisões importantes do poder judiciário.
Tanto o discurso como as ações oficiais têm objetivos de limpeza física, acom-
panhado de limpeza social, da população mais vulnerável. Assistimos atualmente
ao gradeamento (fechamento) de parte de praças públicas (Praça da República e
Praça da Sé), bem como ação bastante repressiva das Polícias Militar e Civil e da
Guarda Civil Metropolitana junto aos vendedores ambulantes e trabalhadores da
economia informal. Entidades dos Direitos Humanos e a imprensa mostraram e
denunciaram recentemente que as crianças e adolescentes de rua foram, em diver-
sas situações, retiradas das ruas com uso de força policial (o que é proibido pela
lei federal do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA).
O poder judiciário, em poucos meses, decretou diversos mandados de reinte-
gração de posse e despejo dos moradores dos cortiços onde moram os mais pobres
e ocupações dos movimentos organizados de moradia. A prefeitura, por meio da
Secretaria da Habitação, interrompeu diversos programas habitacionais impor-
tantes que estavam em andamento no ano de 2004, como Bolsa-Aluguel e o
Programa de Locação Social, voltados ao atendimento das famílias com renda
inferior a três salários mínimos. O Programa Perímetros de Reabilitação Integra-
da do Habitat (PRIHs) também foi interrompido, o que é preocupante pela inter-
venção estratégica em territórios com alta densidade de população excluída, de-
gradados e com potencial para reabilitação em áreas de Zeis.
O Programa Ação Centro, que conta com financiamento de aproximadamen-
te US$100 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), possui o
Conselho Ação Centro, paritário (no qual o FCV e a AVC têm assento), que
deveria realizar reuniões bimensais, mas que, neste ano de 2005, ainda não con-
vocou nenhuma. Diversas ações do governo atual mostram tendência à terceirização
e à privatização, interrupção do processo de descentralização administrativa nas
áreas da saúde e educação, bem como interrupção, fechamento ou pouca atenção
e valorização das instâncias e mecanismos de participação e controle social insti-
tuídos e vigentes (conselhos, comissões e comitês municipais).
Nota-se que a AVC não se posicionou diante das graves e visíveis violações que
acontecem no Centro, apesar de citar no seu sítio na Internet a preocupação com
a cidadania, a democracia, com o desenvolvimento econômico e social e com o
atendimento da população em situação de rua. Ao contrário, mostra-se satisfeita,
desde que no conjunto das ações suas prioridades e sua pauta sejam incluídas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

Mas a satisfação não é plena – o Centro, apesar de tudo, ainda contém certo grau de
popularização, como a presença dos vendedores ambulantes nas praças e calçadas.
Por essa conjuntura, os integrantes do FCV têm se reunido e discutido for-
mas efetivas e articuladas de resistência, organização e denúncia local, regional
e internacional das violações dos direitos humanos patrocinadas pelo estado,
pela prefeitura e pelos proprietários. Isso acontece especialmente nas reintegra-
ções de posses e despejos forçados de ocupações dos movimentos de moradia
(ocupados por milhares de sem-teto pobres, cuja maioria é de mulheres, crianças
e idosos), quando a polícia age com muita violência, promovendo agressões
físicas e prisões.
O quadro das articulações e da organização dos atores sociais e econômicos da
região central nos permite concluir, ao menos por enquanto, que se a disputa e a
luta pelo Centro sempre existiu na história da cidade, atualmente os atores estão
mais organizados e pró-ativos, de ambos os lados. Entretanto, há um gigantesco
desequilíbrio de poder econômico e político entre as partes – fato que, aliás, tam-
bém foi regra no passado.

Estudos de caso: dois conflitos em torno da moradia na área central


O PROJETO BID – AÇÃO CENTRO
Histórico
Durante o processo de renegociação da dívida pública do município de São
Paulo com o governo federal, que se iniciou no ano de 1997 e foi finalizado em
2000, São Paulo – que de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal não pos-
suía capacidade de endividamento – foi autorizado a levar adiante a
excepcionalidade ao limite da dívida somente para dois aportes futuros: um para
a integração do sistema de transportes públicos e outro, de US$ 100,4 milhões
oriundos do BID, para investir em um processo de “revitalização do Centro”,
projeto que já estava em negociação pelo então prefeito Celso Pitta.
Uma coalizão de interesses em relação aos desígnios da área central
já se vinha delineando desde os anos 1990. Isso pode ser identifica-
do através das obras da gestão Luíza Erundina (1989-1992), da
constituição da Associação Viva o Centro (1991) e do próprio
Programa e Comissão PROCENTRO, justificando a
excepcionalidade para o financiamento deste projeto. Entretanto a
gestão de Celso Pitta não priorizou a viabilização do empréstimo.
(Silva, 2004, p. 31)

A partir da eleição de Marta Suplicy (2001) foi estabelecido como prioridade


do governo buscar os recursos provenientes do BID.
A formulação de uma política específica para essa região da cidade
abarcou três itens interligados, porém distintos: a) a constituição de
um novo arranjo institucional de gestão e de promoção do desen-
volvimento econômico da Área Central; b) a implantação do
programa de reabilitação do centro, posteriormente denominado
Ação Centro; e c) a reestruturação da legislação tributária e urba-
nística dessa região. (Silva, 2004, p. 29)
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20

Dessa forma, o programa Ação Centro foi estruturado nos primeiros anos da
gestão Marta Suplicy, negociado com o BID durante longo tempo e assinado
somente em junho de 2004. Durante esse período ocorreram diversas mudanças
administrativas para a realização do programa. A transferência do órgão gestor
do programa (o Procentro) da Secretaria Municipal de Habitação (SeHab) para a
Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), que depois resultou na substituição
da Coordenadoria Procentro pelo Fórum de Desenvolvimento Social e Econômi-
co do Centro de São Paulo, é um bom exemplo.
Essas mudanças demonstram a prioridade com que foi tratado o assunto pela
gestão municipal, e o esforço de viabilizar recursos para investimento em São
Paulo, financeiramente sufocado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Concepção do programa
O projeto é, ao mesmo tempo, espelho e alvo de muitas disputas que ocorrem
no Centro de São Paulo. O papel do poder público local – fundamental para a
viabilização do programa e para a definição, no decorrer do longo processo de
negociação com o BID, de seus rumos - é intenso em disputas e revelador de
grandes contradições.
Em uma primeira proposta de intervenção no Centro a referência foi o docu-
mento “Reconstruir o Centro”, elaborado ainda na campanha eleitoral:
[...] as ações propostas se espraiavam por uma área bastante vasta,
coincidindo com a própria área da então Administração Regional
da Sé [além da atual subprefeitura da Sé os distritos do Pari e
Brás]. À medida que a negociação com a instituição financeira foi
evoluindo e por orientação dela própria, houve uma focalização
das ações de forma a obter efeitos de sinergia. As ações vastamente
pulverizadas corriam o risco de não se potencializarem umas às
outras e o programa diluir-se por uma área por demais vasta.
(Silva, 2004, p. 28)

Essa visão é questionável, uma vez que as ações pulverizadas podem trabalhar
no intuito de diminuir as segregações intra-urbanas. Porém, as ações geram menos
impacto nas áreas escolhidas e dão sentido à posição descrita abaixo:
Através da visão dos gestores do banco, que “sempre querem que
haja recuperação dos custos”; [...] o indicador de sucesso é a
valorização imobiliária; defendem sistemas não subsidiados;
querem que o projeto se pague, caso contrário o banco não finan-
cia [...]. A imposição da racionalidade da recuperação de custos nos
projetos começa na etapa preliminar de sua formulação e na
escolha de indicadores que serão utilizados para avaliar a taxa de
retorno de cada intervenção. Uma das gestoras descreve como a
lógica financeira do banco é transportada para a dos projetos: “Os
cálculos são de economistas, baseados nos interesses dos bancos.
Na realidade, não fazem uma análise sociológica das intervenções,
mas uma análise bancária. [...] Sempre afirmamos que os indicado-
res de ganhos econômicos eram contrários aos indicadores sociais.
Enquanto o banco quer reduzir a população pobre no centro,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21

porque não consome, é altamente subsidiada e está no limite da


sobrevivência, nós queremos mantê-la. Para o banco, isso é irracio-
nal, não aumenta a arrecadação”. (Arantes, 2004, p. 156)

A partir da pesquisa de Arantes, outra característica da concepção do projeto


fica evidente, principalmente quando entrevista uma gestora do programa:
[...] “o banco conversa e tem reuniões com os empresários sem que
estejamos presentes”. Quando indagamos se o banco recuaria caso
uma importante associação empresarial estivesse insatisfeita com o
programa, respondeu que “sim, com certeza. Nas nossas reuniões
[com a sociedade civil] essa associação é apenas mais uma
interlocutora, mas para o banco ela é a principal referência”. Os
empresários, diz, apoiaram a proposta do BID de concentrar
intervenções no centro histórico-financeiro e influenciaram direta-
mente na decisão sobre alguns investimentos, especialmente os de
“zeladoria urbana”. (Arantes, 2004, p. 155)

Por fim, temos a definição do conjunto de ações na qual o cenário de


repovoamento do centro com construção de habitações populares, que poderia
ser claramente identificado com a gestão da prefeita Marta Suplicy, foi recusado
pelo banco. A taxa de retorno era de apenas 4% ao ano, três vezes menor que o
custo mínimo do capital. O cenário selecionado (e altamente recomendado pelo
BID) era o de melhor “‘custo-eficiência’, [com] projetos de ‘recuperação urba-
na’ – abrangendo iluminação, segurança e zeladoria urbana (os mais reivindica-
dos pelos empresários) – [que] tiveram a maior taxa de retorno, estimada em
35,5% ao ano” (Procentro apud Arantes,2004, p. 68).
O poder público, seguindo a cartilha de financiamento do BID, assume um
papel secundário dentro desse processo de “recuperação do Centro” e coordena
os seus investimentos dentro da lógica da iniciativa privada, pela qual o princi-
pal indicador é o da valorização imobiliária, que pode gerar os maiores retornos
através de maior arrecadação de impostos. Ou, nas palavras da economista Sil-
via Schor, responsável pela construção da metodologia dos indicadores pela Fun-
dação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) da USP:
Se você olhar o propósito do projeto, a definição é muito clara: o poder públi-
co está se propondo a transformar um conjunto de condições da área central pra
que os agentes privados respondam a essas novas condições. E essa é a resultante,
quer dizer, a criação das condições e a resposta dos agentes privados, na verdade
constituem o processo, a matéria-prima desse processo de desenvolvimento eco-
nômico e social.16

16
Silvia Schor no Café com Centro – debate com o Fórum Centro Vivo em julho de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

Desenhos de Gestão
De acordo com exigência contratual do BID, era necessária a existência de um
conselho com participação da sociedade civil para monitoramento dos investi-
mentos a serem executados através do empréstimo. Nesse sentido, a Emurb, por
meio de reestruturação institucional, criou a Agência de Desenvolvimento do Cen-
tro, o Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro de São Paulo e
a Coordenação Executiva Ação Centro. A missão da primeira é a de constituir-se
num agente facilitador e de fomento tanto das atividades econômicas já existen-
tes no Centro quanto de novas atividades que venham dinamizar a economia
local, o segundo tem mais um caráter representativo e deliberativo e o terceiro
possui um perfil mais operativo (Silva, 2004, p. 31).
O Fórum de Desenvolvimento Social e Econômico do Centro de São Paulo é
composto pelos órgãos públicos e entidades da sociedade civil já representados na
Comissão Procentro; pelos membros da Comissão Executiva da Operação Urba-
na Centro; pelos membros do Conselho do Programa de Incentivos Seletivos; e
por todos os conselheiros que compõem o Conselho do Orçamento Participativo
da Subprefeitura Sé, do Conselho Municipal da Habitação e do Conselho Muni-
cipal de Política Urbana. Através do fórum foram realizadas duas séries de reuni-
ões temáticas, mas as deliberações e as definições nunca ocorreram através dele.
Já a Coordenação Executiva só se reuniu entre junho e dezembro de 2004 em
reuniões quinzenais, sempre com uma composição provisória que não conseguiu
encaminhar e efetivar a eleição, ou mesmo os critérios, de uma Coordenação efe-
tiva. Boa parte do trabalho da comissão era de deliberações sobre programas de
incentivo para a região central, o que por vezes desfocava o objetivo maior da
Coordenação que seria o acompanhamento operativo do programa.
Uma questão discutida no Fórum Centro Vivo é a criação pela Emurb de outro
conselho para o monitoramento e acompanhamento do programa Ação Centro
em vez de reforçar a estrutura participativa já existente na gestão municipal (Con-
selho Municipal de Habitação, Conselho Municipal de Política Urbana etc.). Um
dos argumentos utilizados foi que o recorte territorial do programa (apenas distri-
tos Sé e República) era único. Porém, a interpretação foi a de que a Emurb (e a
Associação Viva o Centro) queria maior controle sobre os recursos, saída possibi-
litada pela indicação de uma coordenação provisória.

Projetos
O programa estava estruturado em cinco eixos: 1. Reversão da desvalorização
imobiliária e recuperação da função residencial; 2. Transformação do perfil eco-
nômico e social; 3. Recuperação do ambiente urbano; 4. Transporte e circulação;
5. Fortalecimento institucional do município.
Segundo Arantes (2004, p. 150), entretanto, “o embate entre técnicos da pre-
feitura de São Paulo e do banco teve como principal ponto de discórdia a questão
habitacional e, especificamente, o programa de “locação social” destinado à po-
pulação de baixa renda (com menos de 3 salários mínimos). A prefeitura preten-
dia criar um importante estoque público de habitações na área central, para aten-
der as famílias excluídas de outros programas (inclusive do PAC-BID) por insufi-
ciência de renda. O banco teria se oposto “do início ao fim”, afirmando que não
aceitaria um grande volume de subsídios e que as experiências de parques estatais
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23

de habitações fracassaram mundialmente. O BID apoiava, por sua vez, que os


recursos fossem utilizados para atrair a classe média a morar no centro – “propu-
seram pagar 10 mil reais de subsídio direto a quem eles chamavam ‘os pionei-
ros’.” [...] Helena Mena Barreto afirma, contudo, que a locação social só foi
aprovada pelo BID com a condição de “constar no contrato como um projeto
experimental”, com um limite máximo de 1,6 mil unidades habitacionais. Foi
acertado com o BID, segundo ela, atender os moradores da região, sem atrair
novos habitantes: “Eles estão supondo que a população de baixa renda não vai
aumentar.” Isso reduz, se não posterga, a ambição inicial da administração petista,
manifesta em seu programa de governo, de “repovoar a área central”. O acordo
de ambas as partes teve expressão numérica: o contrato indica que os gastos em
habitação (empréstimo mais contrapartida) serão de apenas 16% do total de in-
vestimentos diretos.
Observando-se o plano de investimentos do projeto, percebe-se que somando
os três programas claramente de vertente sociais (1.1.3 – Morar no Centro; 1.2.3
– Regularização do comércio informal; e, 1.2.5 – Atenção a grupos vulneráveis)
temos o montante de apenas 25,26% de todo o investimento. Vale ressaltar que
assim como tais “programas de vertente sociais” serão palco de disputas para que
se efetivem como propostas de transformação da realidade paulistana, não pode-
mos negar que o restante das obras também possuem vertente social, pois buscam
a melhoria do espaço público e de gestão. Porém, a grande questão é: o projeto
buscará a valorização fundiária ou o uso social do parque edificado?

RUA DO OUVIDOR, 63
Histórico
O prédio da Rua do Ouvidor, 63 foi construído por particulares na década de
1940, e em 24 de janeiro de 1950 foi desapropriado pelo governo do estado de
São Paulo. Desde então foi ocupado por diversos órgãos estaduais, sendo a Secre-
taria de Estado de Cultura a última a fazê-lo. Na década de 1990 o estado optou
por desocupar o prédio, que permaneceu fechado e sem uso até 1997.17 Em de-
zembro deste ano, o prédio foi ocupado pelo Movimento de Moradia do Centro
para pressionar o governo na implementação de uma política habitacional no
Centro da cidade. O governo do estado, através da Procuradoria Geral do Estado,
entrou com pedido-liminar de reintegração de posse no mesmo mês, alegando que
o edifício não oferecia segurança para seus ocupantes e a ele faltava infra-estrutu-
ra mínima (água e luz). Essa liminar foi concedida no próprio mês de dezembro
de 1997, mas nunca foi cumprida.
Em 1999 foi realizado, no prédio da Rua do Ouvidor, um laboratório de
projeto integrado e participativo para requalificação de cortiço,18 promovido pelo
Escritório Piloto da Escola Politécnica da USP e a Escola Politécnica de Torino.

17
A exceção de um zelador e sua família que durante todo esse período moraram no prédio.
18
Essa experiência foi publicada em 2002 pela FAUUSP e hoje encontra-se em segunda edição pela editora AnnaBlume
(ver Santos et al., 2002).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24

Nesse laboratório, que contou com a participação de mais de 130 pessoas entre
estudantes, professores universitários, pesquisadores e moradores, foi elaborada
uma proposta física para a reconversão do edifício em moradia popular demons-
trando a viabilidade técnica e financeira da proposta.19
A partir de 2003, a Assessoria Técnica Integra e alguns participantes do Labo-
ratório começaram a acompanhar o aprofundamento da proposta técnica e as
negociações para a viabilização do projeto, que, à época, havia alcançado certa
repercussão.
Na gestão Marta Suplicy o projeto não conseguiu ser viabilizado por progra-
mas municipais. As negociações com Secretaria de Estado de Cultura para a venda
do imóvel não progrediram e os encaminhamentos com a Caixa Econômica Fede-
ral, para viabilizar o projeto do Programa de Arrendamento Residencial, não fo-
ram priorizados para o edifício. Único, porém importante, ganho institucional
nesse período é a demarcação do prédio da Rua do Ouvidor como Zona de Inte-
resse Social no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo de 2001.
Em 2005, quando José Serra (PSDB) assume a gestão da cidade de São Paulo,
todas as ocupações dos movimentos de moradia organizados do Centro de São
Paulo ficam ameaçadas por liminares de reintegração de posse.20 Os procedimen-
tos para as suas efetivações são rapidamente encaminhados, em ação casada, a um
projeto de limpeza social no Centro da cidade ao arrepio do Plano Diretor Muni-
cipal que determina que a maioria dessas áreas sujeitas à reintegração se destinem
à habitação de interesse social.

Conflito
O conflito principal envolve os movimentos organizados de luta por moradia
e o poder público, que não assume o projeto anterior de fixar a população de
baixa renda nas áreas centrais. A postura atual da prefeitura é a de enfrentamento
com os movimentos e de utilização de canais jurídicos para desalojar ocupações já
existentes, além da paralisação de novos projetos e da regulamentação que pode-
ria garantir a oferta de novas unidades habitacionais para a baixa renda. Em um
movimento que parece articulado, o governo do estado promoveu ações de despe-
jo de seus imóveis e, em paralelo, a Justiça emitiu um mandado de prisão para
uma das principais lideranças de moradia da área central, dias antes da notifica-
ção de reintegração de posse.
Explicita-se nesse momento um embate entre a função social da propriedade,
o direito à moradia e à cidade e o projeto de valorização do Centro, o
patrimonialismo, e a responsabilidade do estado em garantir a segurança das pes-
soas que ocupam um imóvel de sua propriedade (razão alegada na liminar de
reintegração de posse).

19
Ressalvamos aqui todas as precariedades dos programas governamentais para áreas centrais de grandes cidades já
mencionadas na primeira parte deste trabalho.
20
Via de regra, esses processos são despertados pelo Ministério Público que aciona o estado, com imposição de multa
caso não atenda à sua responsabilidade de zelar por seu patrimônio. O que leva o estado a retomar processos de
reintegração já existentes.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25

A questão dos direitos é bastante relevante, pois toda a construção que funda-
menta o zoneamento de interesse social e a função social da propriedade relacio-
na-se ao conceito do direito à cidade, luta do campo democrático, que envolve a
resistência aos despejos forçados e a democratização da regulação urbanística. O
Brasil vem, inclusive, protagonizando internacionalmente, a partir de atores dos
movimentos de moradia nas áreas centrais, a carta mundial pelo direito à cidade
e a Relatoria Nacional pelo Direito à Moradia da ONU, que dedicou algumas de
suas atividades às visitas e interlocuções com os movimentos de moradia nas áreas
centrais em 2004.

O processo de negociação
Com o processo de reintegração de posse em andamento a partir de abril de
2005 foi acionada uma ampla rede, chamada de Grupo de Emergência, de atores
sociais que atuam pela reforma urbana e pelo direito à moradia para garantir os
direitos das 90 famílias moradoras do edifício da Rua do Ouvidor, um dos grandes
símbolos da luta por moradia popular no Centro de São Paulo. Esses atores perten-
cem aos Movimentos Sociais (MMC, UMM e CMP), às Assessorias (Casa Assessoria
Técnica e Integra Cooperativa), às ONGs (Centro Gaspar Garcia de Direitos Hu-
manos, Instituto Pólis, Cohre Américas). Além deles, há parlamentares (vereadores
Paulo Teixeira e Soninha – PT, deputados estaduais Mário Reali, Maria Lúcia Prandi
e Ítalo Cardoso – PT, e o senador Eduardo Suplicy – PT) e outras organizações. O
intuito dessa articulação é o de buscar canais de negociação com as três esferas de
governo, com o ministério público estadual e o judiciário.
Nesse processo, que durou menos de um mês (de 15 de abril a 13 de maio de
2005), foram realizadas mais de 30 reuniões com os órgãos envolvidos em busca
de uma solução para a situação, além do acompanhamento jurídico.
A proposta inicial era de saída imediata das famílias que receberiam uma aju-
da de custo de R$ 2.500,00 através do programa PAC-BID da CDHU. As famíli-
as, após o recebimento dessa quantia, seriam consideradas atendidas em sua de-
manda habitacional.
Por uma questão metodológica tentaremos descrever, mesmo que superficial-
mente, o papel e a postura de cada agente público envolvido nesse processo frente
às demandas e pressões do Grupo de Emergência:
Ministério Público Estadual: Começou o processo ao acionar o estado de São
Paulo a retomar a posse do imóvel, sob pena de multa diária de R$ 10 mil. Nota-
se que na sentença não havia nenhuma obrigatoriedade do estado atender a de-
manda habitacional dessa população. Quando acessado no final do processo de
negociação (vale ressaltar a dificuldade de acesso a esse agente, bem como a falta
de informação sobre como o processo havia sido encaminhado internamente)
mostrou-se irredutível da retomada do imóvel pelo estado devido “sua total falta
de segurança”, porém sensível ao processo em curso flexibilizando a multa e per-
mitindo margem maior para a negociação.
Secretaria de Habitação do Município de São Paulo: Procurada na tentativa
de garantir o direito à moradia das famílias com atendimento em programas
habitacionais como o Bolsa- Aluguel e Locação Social. Nunca estabeleceu um
diálogo sobre o caso, sempre alegando falta de verba e se eximindo da responsabi-
lidade de poder público municipal. Ficou evidente, pela negativa do diálogo, a
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
26

falta de compromisso da gestão, em especial da SeHab, com os movimentos soci-


ais organizados e com os projetos de repovoamento do centro até então em curso.
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU): Por ser ór-
gão estadual, sempre teve protagonismo no conflito, até mesmo porque vários de
seus técnicos já haviam, em momentos passados, discutido possibilidades
habitacionais para os moradores da Rua do Ouvidor. No entanto, até a interven-
ção da Casa Civil do estado e o compromisso da Caixa Econômica Federal em
intervir no prédio, a CDHU era irredutível no oferecimento da ajuda de custo,
que, como sabemos, é totalmente insuficiente para resolver a questão habitacional.
Após a intervenção da Casa Civil e da “conversa triangulada” entre Procuradoria
Geral do Estado, Ministério Público Estadual e 2ª Vara Cível, que possibilitou
um prazo maior para parte das famílias, acenou com a possibilidade de atendi-
mento com carta de crédito para as famílias que possuíam renda suficiente.
Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo (SEC): Primeira procurada para discu-
tir a questão, pois é a proprietária do prédio. Deixou claro desde o princípio que a
questão não estava ao seu alcance, bem como não caberia a ela a definição sobre o
patrimônio do estado. Soma-se a essas “não-posições” o fato de o governador fazer
uma reforma no secretariado, incluindo essa pasta, no meio do período de negociação.
Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo: Foi o órgão que centralizou o
processo de reintegração a certa altura da negociação. O fato demonstra a impor-
tância simbólica e/ou estratégica da questão frente ao governo do estado e, prin-
cipalmente, aos agentes da sociedade civil que atuaram diretamente e indireta-
mente na negociação propiciando grande repercussão, mesmo que hermética (a
grande mídia nunca foi alcançada), ao caso. Teve papel decisivo ao assumir a
decisão política de saída negociada e intervir no processo na Procuradoria Geral
do Estado, no Ministério Público e na CDHU (mudando a possibilidade de aten-
dimento). Só interveio no processo após atuação direta de parlamentares, em es-
pecial do Senador Suplicy, com o governador do estado Geraldo Alckmin e o
secretário da Casa Civil Arnaldo Madeira.
Ministério das Cidades: Procurado no início, assumiu uma postura de
distanciamento em relação ao conflito. Isso indica certa ambigüidade do governo
Lula em relação aos movimentos populares organizados. Por um lado, abre canais
de participação e co-gestão de políticas, como as Conferências e o Conselho das
Cidades, e por outro, evita conflitos com outras esferas de governo com o receio de
não conseguir gerir a solução para o conflito. No entanto, teve papel importante no
diálogo indireto com outros atores, como a Caixa Econômica Federal.
Caixa Econômica Federal: Foi de extrema importância para o processo, pois
participou ativamente com os outros órgãos envolvidos, mesmo que em diversos
momentos evitasse assumir responsabilidades diretas de viabilização de projeto, atra-
vés do Programa de Arrendamento Residencial, para o prédio da Rua do Ouvidor.
Solicitou às assessorias técnicas para que atendessem diversas demandas burocráti-
cas bancárias para um projeto de reforma. Entretanto, ao final de um longo proces-
so (praticamente todo o período de negociação), assumiu a posição de viabilização
do projeto de reforma, ficando pendente a aquisição do edifício (devido a um gran-
de custo de reforma e aos altos valores dos edifícios centrais, não haveria recurso
para pagar o prédio em valores de mercado – passando ao estado a necessidade de
co-responsabilidade no projeto de repovoamento do Centro).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
27

Procuradoria Geral do Estado: Coordenou o processo de reintegração de pos-


se. Órgão com baixa permeabilidade à população, alegou, desde o princípio, que
era vítima de um processo do Ministério Público Estadual e que nada poderia
fazer se não fosse revertida sua posição de vítima. Participou da negociação no
final do processo.
Judiciário – 11ª Vara Cível da Capital: Expediu o mandado de reintegração de
posse em caráter liminar.
Vale ressaltar que em todas as esferas, em menor ou maior escala, existem
contradições internas e movimentos políticos. Essa dinâmica impossibilita a gene-
ralização de um único caráter para cada um dos órgãos citados. Soma-se a isso a
disputa político-partidária polarizada entre PT (governo federal) e PSDB (muni-
cípio e estado) e um constante “jogo de empurra” entre esses atores (muitas vezes,
até entre prefeitura e estado).

Solução negociada e situação atual: julho 2005


Em 13 de maio de 2005, foi finalmente decidido entre o Grupo de Emergên-
cia, Procuradoria do Estado, Ministério Público Estadual e a Casa Civil do Esta-
do de São Paulo que o prédio seria de fato desocupado o mais breve possível, mas
a reintegração seria suspensa. A desocupação poderia ser feita de forma gradual –
as famílias que têm para onde ir sairiam imediatamente, as pessoas com condições
de acessar programas habitacionais teriam mais tempo para encaminhar os pro-
cessos para a CDHU (Cartas de Crédito) e para a CEF (em projetos de PAR) e os
moradores sem nenhuma possibilidade teriam mais tempo para buscarem alterna-
tivas e negociações e, no limite, aceitarem a ajuda de custo da CDHU. O aumento
de prazo também proporcionou mais tempo para a negociação com a CEF da
viabilização de um projeto de PAR no edifício da Rua do Ouvidor.
Atualmente, a execução de moradia popular na Rua do Ouvidor esbarra no
governo do estado, proprietário do prédio. Vale lembrar que o dinheiro do PAR
poderia ser complementado por verbas da prefeitura do município, o que não tem
sido feito nesta nova gestão, alegando-se o alto custo da terra nas áreas centrais de
São Paulo. Isso tem inviabilizado a execução desse programa no Centro.
Podemos concluir que o caso explicitou como os diversos órgãos governamen-
tais têm tratado situações de conflito: com distanciamento e tentando atribuir a
responsabilidade a outros órgãos governamentais. Além disso, demonstrou que
quando a pressão política é efetiva, os entraves técnicos criados pelos
distanciamentos pretendidos são rapidamente retirados, com a mesma facilidade
com que são recolocados frente a novos interesses governamentais.
O processo de negociação continua, assim como a luta dos atores populares
para a democratização do Centro e para a efetivação da Reforma Urbana, princi-
palmente na tentativa de consolidar o direito à moradia no centro da cidade,
garantido pelo atual Plano Diretor da cidade de São Paulo.

Conclusão
Este texto teve por objetivo analisar os conflitos na região central da cidade de
São Paulo, com foco na temática habitacional. Apontamos as atuações e os pro-
jetos dos governos federal, estadual e municipal, bem como o papel de distintas
formas de organização da sociedade civil. Para aprofundar esta análise, escolhe-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
28

mos dois estudos de caso: os conflitos em torno da ocupação do edifício da Rua


do Ouvidor, 63 e em torno do Projeto do BID para o Centro de São Paulo.
Como afirmamos durante o texto, o Centro com seus equipamentos públicos e
infra-estrutura é um território em disputa. A forma como cada um concebe o uso e
a apropriação dessa região revela muito de cada concepção de desenvolvimento.
Por isso, ao realizarmos este percurso, procuramos perceber qual concepção de
desenvolvimento cada um dos envolvidos tinha, identificando até que ponto essa
concepção de desenvolvimento incorporava o direito à cidade e à cidadania, en-
tendida como a participação dos habitantes das cidades na condução de seus
destinos. O direito à cidade inclui ainda o direito à terra, aos meios de subsistên-
cia, à moradia, ao saneamento ambiental, à saúde, à educação, ao transporte
público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer e à informação. Inclui o respeito às
minorias, à pluralidade étnica, sexual e cultural e ao usufruto de um espaço cultu-
ralmente rico e diversificado, sem distinções de gênero, etnia, raça, linguagem e
crenças.21 A tradução do direito à cidade para os conflitos em torno do Centro de
São Paulo significa a defesa de que a região seja usufruída pelos setores de baixa
renda (incluindo o direito de viver no Centro), revertendo o padrão histórico no
qual as classes populares são “deslocadas” para as regiões mais longínquas e sem
infra-estrutura das cidades.
Comparando-se o governo Marta Suplicy ao Governo Serra é possível identifi-
car dois projetos distintos para o Centro, ainda que não possamos chamar ne-
nhum dos dois de inteiramente progressista ou popular. O primeiro procurou
incorporar, de alguma forma, o direito à cidade, ao fazer uma mediação (ou aco-
modação dos conflitos), levando em conta distintos interesses presentes na socie-
dade. Na prática, a acomodação não significou um combate radical à desigualda-
de, como pudemos ver no caso do projeto BID, mas certamente foi uma concep-
ção que considerou que há distintos interesses na sociedade e que é preciso dialo-
gar com eles. Evidentemente que esse diálogo gera contradições, como no caso do
BID, em que o preço da terra revela interesses irreconciliáveis que necessitariam de
uma clara tomada de posição por parte da prefeitura.
Já o governo Serra optou por dialogar preferencialmente com um tipo de inte-
resse, ao ouvir os setores de classes média e alta e tomá-los como únicos represen-
tantes da sociedade civil. Esse projeto entende que o Centro deva ser ocupado
pelos setores comerciais, administrativos, pela cultura como museificação, e para
isso, é preciso fazer uma verdadeira “limpeza social”. O modelo vai ao encontro
de setores privados que querem lucros imobiliários imediatos através da valoriza-
ção da terra, expulsão da população de baixa renda para as áreas mais remotas da
cidade, e a geração de empregos também de baixa renda, especificamente na cons-
trução civil. Esse é o processo que vivemos neste momento em São Paulo. Na
prática, significa um conjunto violento de reintegrações de posse, verdadeiras ba-
talhas, que se transformam em notícias nos grandes meios de comunicação. Só
neste ano, destacam-se as reintegrações da Prestes Maia, Tenente Pena, Paula Sou-
za e Plínio Ramos.

21
Veja o site do Fórum Nacional de Reforma Urbana (www.forumreformaurbana.org.br).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
29

Estamos aqui frente a duas abordagens distintas de desenvolvimento: uma


delas incorpora (ainda que em situação de desigualdade) os pobres nas estratégias
de renovação urbana; a outra dá total primazia às forças econômicas de elite
como motor da requalificação urbanística.
Esperava-se que o governo federal, especialmente com a criação do Ministério
das Cidades, atuasse nos conflitos das áreas centrais das cidades, expressando cla-
ramente um modelo de desenvolvimento que incluísse o direito à cidade, a partir
de duas formas concretas: no caso de São Paulo, muitas propriedades que poderi-
am se transformar em moradia no Centro são do governo federal, como edifícios
de propriedade do INSS. Exemplarmente, o governo federal poderia transformar
esses edifícios em moradia popular; poderia também, em médio prazo, investir
numa política para as regiões metropolitanas do país, o que incluiria uma política
de ocupação dos centros urbanos. A Conferência das Cidades que acontece neste
ano (2005) prevê que haverá a construção de uma política nacional de desenvol-
vimento urbano para as regiões metropolitanas. Infelizmente, depois da queda do
ministro Olívio Dutra, o futuro dessa política ainda está incerto.
Podemos dizer que a pouca incidência do governo federal nos conflitos do
Centro são reflexo da falta de um modelo de desenvolvimento que incorpore o
direito à cidade, não apenas no plano das intenções, mas com ações e principal-
mente recursos públicos. Essa quase omissão reforça, mesmo que não intencional-
mente, o projeto de expulsão das classes populares do Centro e de “limpeza soci-
al” operado pelo atual governo municipal.

Referências bibliográficas
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lo, n. 37, abr./maio 2005.
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São Paulo, ano VI, n. 26, maio/jun. 2002.
ARANTES, Pedro Fiori. O ajuste urbano: as políticas do Banco
Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. 2004. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), Universidade
de São Paulo (USP), São Paulo.
MOURAD, Laila Nazem. Democratização do acesso à terra em
Diadema. 2000. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Ur-
banismo, PUC-Campinas, Campinas.
NAKANO, Kazuo; CAMPOS NETO, Cândido Malta; ROLNIK,
Raquel. Dinâmicas dos subespaços da área central de São Paulo. In: COMIN,
Álvaro Augusto; SOMEKH, Nadia (Coords.). Caminhos para o centro:
estratégias de desenvolvimento para a região central de São Paulo. São Pau-
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URBS. Revalorizar São Paulo para os próximos 450 anos. Urbs,
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______. Calçadão urgente. Urbs, São Paulo, ano VI, n. 27, jul./
ago. 2002 b.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
30

______. Bom prato na 25 de março. Urbs, ano VI, n. 26, maio/


jun. 2002 a.
SILVA, Luís Octávio da. Decadência e reabilitação do centro de
São Paulo. In: ___. (Org.). Ação para o centro de São Paulo. São Paulo:
Cebrap, 2004. (CD-ROM).
SOMEKH, Nádia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador.
São Paulo: Edusp, 1997.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31

ANEXO 1. Entidades que compõem o Fórum Centro Vivo


Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida – São Paulo
Associação Comunitária da Região Central
Associação das Bancas de Jornal
Brigada Nacional de Defesa Civil
Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos – participante da elaboração do Projeto
(2003).
Central dos Movimentos Populares (CMP) – União dos Movimentos de Moradia de São
Paulo (UMM-São Paulo)
Comitê Pró-Conselho de Representantes
Comunas Urbanas – MMM
Escola da Cidade
Escritório Piloto do Grêmio Politécnico da Universidade de São Paulo.
Fórum da População de Rua da Região Central – SP
Fórum dos Cortiços
Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
Grêmio Politécnico da Universidade de São Paulo
Grupo XIX de Teatro
Instituto Brasileiro de Administração Pública
Integra Cooperativa
Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo – LabHab
Líder dos Ambulantes da 25 de Março
Movimento de Luta por Moradia e Emprego – MLME -
Movimento de Moradia do Centro – MMC
Movimento de Moradia da Região Central – MMRC
Movimento Nacional de Luta por Moradia – MNLM
Movimento Ambientalista
Movimento de Ambulantes de São Paulo
Movimento dos Sem-Teto do Centro – MSTC
Olhar Periférico
Olinda Prudência
Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais – Pólis
Sindicato dos Mototaxistas – SindMoto
Sindicato dos Trabalhadores da Economia Informal da Central Única dos Trabalhadores
– Sintein
Tablado de Arruar
Teatro de Narradores
Teatro União Olho Vivo
União dos Movimentos de Moradia de São Paulo – UMM-SP
União de Mulheres de São Paulo – participante da elaboração do Projeto (2003).
Universidade Mackenzie
Usina
Verso Cooperativa
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ANEXO 2. Lista das entidades e grupos associados à Associação Viva o Centro22


Administração e Representações Telles
Agromont Administração de Bens e Participações
Agropecuária Juruá
Associação Brasileira das Empresas de Leasing - Abel
Associação Brasileira de Bancos - ABBC
Associação Brasileira de Bancos Internacionais - ABBI
Associação Brasileira de Designers de Interiores
Associação Brasileira de Empresas de Serviços Especiais de Engenharia
Associação Brasileira de Gastronomia, Hospitalidade e Turismo - Abresi
Associação Brasileira de Pedestres - Abraspe
Associação Brasileira dos Fotógrafos
Associação Cristã de Moços de São Paulo - ACM
Associação das Empresas Distribuidoras de Valores - Adeval
Associação de Comerciantes, Empresários e Liberais do Centro de São Paulo - Acelcesp
Associação dos Advogados de São Paulo - AASP
Associação dos Antigos Alunos do Ginásio do Estado - AAAGE
Associação dos Bancos no Estado de São Paulo - Assobesp
Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil - ADVB
Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo
Associação dos Lojistas da Florêncio de Abreu - Alfa
Associação dos Oficiais de Justiça do Estado de São Paulo
Associação Nacional das Corretoras de Valores, Câmbio e Mercadorias - Ancor
Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento - Acrefi
Associação Vida Positiva - Prevenção e Cidadania
Banco ABN AMRO Real
Banco do Brasil
Banco do Estado de São Paulo - Banespa
Banco Itaú
Banco Itaú BBA
Banco Nossa Caixa
BankBoston
Bolsa de Mercadorias & Futuros - BM&F
Bolsa de Valores de São Paulo - Bovespa
Caixa Econômica Federal
Câmara Interbancária de Pagamentos - CIP
Cartório Medeiros
Casa da Bóia
Casas Bahia
Celso Figueiredo Filho
Central de Outdoor
Centro Acadêmico XI de Agosto
Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – Cesa

22
Fonte: <www.vivaocentro.org.br>.
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Centro Universitário Belas Artes


Chocolates Kopenhagen
Cia Brasileira de Alumínio - CBA
Cia Central de Importação e Exportação - Concentral
Cia do Metropolitano de São Paulo - Metrô
Cia Paulista de Trens Metropolitanos - CPTM
Círcolo Italiano - San Paolo
Colégio de São Bento de São Paulo
Condomínio Edifício Mercantil Finasa
Congregação Israelita de São Paulo/Templo Beth-El
Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo
CVC Turismo
Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo - Emplasa
Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo - EMTU
Escola Estadual de São Paulo
Escritório Fralino Sica
Estapar Estacionamentos
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Federação Brasileira das Associações de Bancos - Febraban
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - FiespP
Federação de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares do Estado de São Paulo
Federação do Comércio do Estado de São Paulo - Fecomércio
Federação Interestadual das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento -
FenacrefiI
Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP
Grupo Lund de Editoras Associadas
Grupo TMS
Hilton São Paulo
Igreja do Beato Anchieta
Inspetoria Salesiana de São Paulo Instituto dos Arquitetos do Brasil - IAB/SP
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
Instituto Martius-Staden
Instituto Paulista de Ensino e Pesquisa
Intarco Projetos e Consultoria
International Police Association
Ituana Agropecuária
José Eduardo Loureiro
José Rodolpho Perazzolo
Just Traduções
Klabin
Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo
Logos Engenharia
Luigi Bertolli
Machado, Meyer, Sendacz e Ópice - Advogados
Mosteiro de São Bento de São Paulo
Museu da Cidade de São Paulo
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Museu Pe. Anchieta


Nova Ação Brindes
Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/SP
Papelaria Formosa
Paróquia Nossa Senhora da Consolação
Pellegrino e Associados Engenharia de Avaliações
Pinheiro Neto - Advogados
Pioneer Corretora de Câmbio
Polícia Civil do Estado de São Paulo - Deatur
Polícia Militar do Estado de São Paulo (7º BPM-M)
PricewaterhouseCoopers Auditores Independentes
Rotary Club de São Paulo - República
São Paulo Convention & Visitors Bureau
Savoy Imobiliária Construtora
Secretaria de Estado da Educação
Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania
Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos
Serasa
Serviço Social do Comércio - Sesc Carmo
Sindicato das Sociedades de Advogados dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro
Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de São Paulo
Sindicato dos Empregados no Comércio de São Paulo
Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo,Osasco e Região
Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo - Apeoesp
Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva - Sinaenco
Amigos de Vila Buarque, Santa Cecília, Higienópolis e Pacaembu
Sonia Marques Dobler - Advogados
Superintendência do Trabalho Artesanal nas Comunidades de São Paulo - Sutaco
Theatro Municipal de São Paulo
Terraço Itália Restaurante
Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados
Tribunal de Justiça de São Paulo
Trides Cia. Imobiliária Administradora
Universidade Anhembi Morumbi
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Reforma universitária no Brasil:
1994–2005
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

REFORMA UNIVERSITÁRIA NO BRASIL: 1994–2005

Valdemar Sguissardi
Doutor em Ciências da Educação, professor
titular do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep)
vs@merconet.com.br

Introdução
Art. 1o – Esta Lei estabelece normas gerais da educação superior,
regula a educação superior no sistema federal de ensino e dá outras
providências. (Anteprojeto de lei da reforma da educação superior)

O anteprojeto de lei da reforma da educação superior entregue pelo ministro da


Educação ao presidente Lula, no dia 29 de julho de 2005, a ser encaminhado pelo
Poder Executivo ao exame do Congresso Nacional, apesar de possuir um caráter
bastante amplo e alterar oito leis do setor, entre elas a Lei 5.540/68 (da reforma
universitária), se aprovado, ainda assim não conterá toda a reforma. Tratar-se-á,
na verdade, da última etapa, importante, de um processo que se desdobra há pelo
menos uma década, isto é, desde o início do governo Fernando Henrique Cardoso
(FHC) e da gestão do ministro Paulo Renato de Sousa no Ministério da Educação
(MEC), em janeiro de 1995.
Esse anteprojeto possui diversos traços e marcas que o credenciariam, se aprovado
na forma atual (terceira versão), a provocar uma importante guinada na orientação
da reforma da educação superior em curso nesta última década. Primeiro, pelo seu
modus faciendi, isto é, pelos procedimentos adotados quando de sua elaboração em
duas etapas (primeira e segunda versões) em que, durante cerca de um ano e meio,
esteve aberto a ampla participação e discussão da sociedade civil organizada ou não.
Isso parece essencial para o sucesso de sua eventual futura implantação. Segundo,
pelas bandeiras desfraldadas ou objetivos centrais que visa alcançar: fortalecimento
do setor público federal – via promoção de suas efetivas autonomia e sustentabilidade
financeira e de sua significativa expansão – e regulação e controle do sistema federal
público e privado, com especial atenção para o setor privado/mercantil.
Entretanto, essas bandeiras ou objetivos centrais defrontam-se com dois gran-
des potenciais obstáculos, condicionantes de sua efetividade: de um lado, a pró-
pria legislação anterior, incluída e aprovada durante o governo Lula, entre elas as
Leis da Parceria Público-Privada (PPP), da Inovação Tecnológica e do Programa
Educação para Todos (ProUni), mas principalmente a visão/concepção dominan-
te no Ministério da Fazenda em relação ao lugar que deve ocupar a educação
superior nas despesas do fundo público – concepção que continua muito próxima
da disseminada por organismos multilaterais, como Banco Mundial, Banco
Interamericano do Desenvolvimento (BID) e Organização Mundial do Comércio
(OMC), seguida bastante à risca no octênio FHC (cf. Brasil, 2003); e, por outro,
diante da atual crise política, a fragilidade das posições do Poder Executivo no
Congresso Nacional, onde facilmente tenderão a se aglutinar as forças represen-
tantes dos interesses do setor privado/mercantil, podendo reduzir sensivelmente o
alcance dessas bandeiras, ou as modificar radicalmente, da mesma forma que já o
fizeram em relação à proposta governamental do ProUni em passado recente.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

Para demonstrar essa hipótese, será examinada, no item 1 deste texto, a ques-
tão universitária ou da educação superior no Brasil no período de 1994 a 2002.
Nesse item, serão destacadas algumas características do sistema de educação
superior do país, entre elas: as restritas dimensões do campo, a diferenciação
institucional, a expansão do setor privado e a restrição gradativa do setor públi-
co, a desigual distribuição regional, a (má) distribuição por área de conheci-
mento, a concentração da pós-graduação no setor público e na região Sudeste
(em especial em São Paulo), a questão da avaliação (Provão), o modelo univer-
sitário predominante (e em franca expansão), isto é, da universidade de ensino
(em detrimento da universidade de pesquisa). Destacar-se-á, também, o esforço
de produção de um acervo legislativo ou de marcos regulatórios, durante esse
período, que, em grande medida, traduziram (ou coincidiram com) orientações
fundadas em algumas teses disseminadas em âmbito global por instituições e
organismos mundiais (Consenso de Washington, Banco Mundial, BID e OMC)
e por órgãos e institutos universitários no país (Núcleo de Pesquisas sobre Ensi-
no Superior/Nupes da Universidade de São Paulo/USP, entre outros). Esses mar-
cos, presentes na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e em outras leis, decretos e
portarias, balizaram a expansão restrita do setor público e a desenfreada expan-
são do setor privado no nível de graduação. Isso se efetiva de várias formas, por
medidas tais como de restrição do financiamento e da autonomia do setor pú-
blico federal e de liberação, com mínimos controles, da criação e do
credenciamento de instituições de ensino superior (IES) privadas, principalmen-
te isoladas ou no máximo constituídas como centros universitários (estes têm
autonomia para criarem cursos, mas sem a obrigação da produção de conheci-
mentos via pesquisa). Um lugar especial será reservado ao Plano Nacional de
Educação (PNE) para registro de sua importância política e de como, em razão
dos vetos presidenciais, quando de sua sanção em janeiro de 2001, tornou-se
uma simples “carta de intenções”, e não mais um plano orientador de políticas
de Estado.
No item 2, far-se-á breve apresentação das principais teses que têm orientado
as “reformas pontuais” da educação superior no Brasil e que, fundadas em espe-
cial no diagnóstico neo ou ultraliberal da economia e do Estado, assim como nos
documentos do Banco Mundial, do BID e da OMC, estão conduzindo a universi-
dade brasileira a transitar das adaptações dos modelos clássicos de universidade
(napoleônico ou humboldtiano) para os “modelos de ocasião”, fundados nessas
teses, que podem ser denominados de modelo da “universidade mundial do Ban-
co Mundial” ou de “modelo anglo-saxão”, para não se falar do modelo que está
sendo gerado na Comunidade Econômica Européia (CEE), a partir, especialmen-
te, da Declaração de Bolonha (1999). Esse “modelo de ocasião” pode ser também
caracterizado pelos qualificativos neoprofissional, heterônomo e competitivo ou,
ainda, como diz Chaui (1999), funcional e operacional.
No item 3, apresentar-se-á, em breves traços, o cenário da educação superior
durante os dois anos e meio do governo Lula. Cabe fazer rápida menção ao plano
de governo para a educação superior (diagnóstico e propostas que retomam parci-
almente o PNE), à legislação produzida (leis das PPPs, da Inovação Tecnológica,
do ProUni e do Sinaes, entre outras), que condiciona o alcance do novo antepro-
jeto de lei da reforma da educação superior.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

No item 4, proceder-se-á a uma análise dos traços e do significado do antepro-


jeto de lei da reforma da educação superior: o sistema de educação superior, a
autonomia universitária, o financiamento das instituições federais de ensino su-
perior (Ifes), o novo sistema de avaliação, a associação ensino-pesquisa-extensão,
a democratização da universidade (no âmbito da estrutura e organização do po-
der interno e em relação ao acesso e permanência dos grupos sociais hoje excluí-
dos por razões de pobreza ou raça), e os novos padrões de exigência quanto à
carreira docente, aos vínculos institucionais, à qualificação docente e aos padrões
para credenciamento e recredenciamento das IES, todos esses como garantia de
qualidade e regulação do sistema federal público e privado.
Nas considerações finais, deverão ser reiteradas algumas das características do
“sistema” universitário no Brasil hoje composto por universidades neoprofissionais
(ou essencialmente de ensino), heterônomas (dependentes cada vez mais de agenda
externa), competitivas (necessitando a cada dia mais buscarem recursos da iniciati-
va privada que complementem as verbas do fundo público, além de implantarem
gerenciamento empresarial e instituírem fundações privadas de apoio institucional).
Serão reiteradas também as possibilidades e dificuldades de o anteprojeto de lei da
reforma da educação superior, a tramitar no Congresso, ser aprovado no formato
encaminhado pelo Poder Executivo e produzir os resultados dele esperados.

1. A educação superior no Brasil de 1994 a 2002 e as “reformas pontuais”


Os anos de 1994 a 2002, por corresponderem ao octênio presidencial de FHC, foram
marcados pela continuidade administrativa tanto na esfera da economia como na da
educação (os dois ministros dessas áreas permaneceram no cargo por oito anos).
Não se pode falar sobre a questão da educação superior nesse período sem
situá-la no contexto mais amplo da inserção subalterna do país à economia glo-
bal e na permanência ou no agravamento dos inaceitáveis índices de desigualdade
social na década de 1990 e nesse período de oito anos correspondente a dois
mandatos presidenciais.
O que se denomina de modernização conservadora, que se inicia com os gover-
nos de Collor de Mello (1990–1991), seguiu-se no de Itamar Franco (1992–1994)
e recrudesceu no de FHC (1995–2002). Nessa década, e em especial no governo
FHC, efetivou-se uma série de ajustes estruturais e fiscais e reformas orientadas
para o mercado. No octênio FHC, ocorreram as principais mudanças que condu-
ziram à reconfiguração das esferas pública e privada, no âmbito do Estado, assim
como da educação superior. 1
A integração do país à economia mundial dá-se enfatizando o novo papel
atribuído ao mercado na alocação dos recursos e diminuindo as funções do Esta-
do, em especial quando este é pensado como provedor dos serviços sociais (entre
eles, a educação). As medidas recomendadas, como se sabe, foram: combate ao
déficit público, ajuste fiscal, privatização, liberação/ajuste de preços,
desregulamentação do setor financeiro, liberação do comércio, incentivo aos in-
vestimentos externos, reforma do sistema de previdência/seguridade social, e re-
forma, desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho.

1
Para esses dados contextuais, retomamos no essencial o que consta em Sguissardi (2002 a, p. 25 e 26).
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5

São suficientemente conhecidas as recomendações do Consenso de Washing-


ton, que sintetizariam, ao fim da década de 1980, as recomendações de organis-
mos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e
outros, para que se precise comentá-las. Desse modo, basta relacioná-las: equilí-
brio orçamentário, sobretudo mediante a redução dos gastos públicos; abertura
comercial, pela redução das tarifas de importação e eliminação das barreiras não-
tarifárias; liberalização financeira, pela reformulação das normas que restringem
o ingresso de capital estrangeiro; desregulamentação dos mercados domésticos,
pela eliminação dos instrumentos de intervenção do Estado, como controle de
preços, incentivos etc.; e privatização das empresas e dos serviços públicos.
No período em foco, buscou-se o equilíbrio orçamentário, como regra e a cada
sobressalto oficial diante das incertezas da economia, mediante cortes nos gastos
com os serviços públicos e, em especial, com a aprovação da Lei da Responsabili-
dade Fiscal. Os demais cânones liberalizantes, isto é, a abertura comercial, a
liberalização financeira, a desregulamentação dos mercados domésticos, o fim do
controle de preços e da vinculação dos reajustes salariais aos índices inflacionári-
os, e, principalmente, a privatização das empresas estatais e dos serviços públicos,
todos, enfim, foram seguidos bastante à risca. De dezenas e dezenas de empresas
estatais, por exemplo, restaram apenas algumas de grande expressão, como a
Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal.
Em 1995, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE), o Brasil apresentava o seguinte quadro de distribui-
ção pessoal de renda do trabalho: o 1% mais rico obtinha 13,9% da renda total
do trabalho, maior que os 13,0% da renda obtida pelos 50% mais pobres; os 5%
mais ricos obtinham 36,6% da renda, cerca de oito vezes a renda obtida pelos
30% mais pobres da população, que obtinham apenas 4,4% da renda do traba-
lho; os 10% mais ricos obtinham 48,2% da renda total do trabalho, enquanto os
10% mais pobres obtinham apenas 1,1% (DIEESE, 2001, p. 35)
Esse quadro de concentração de renda manteve-se praticamente inalterado
durante o período em estudo, o que mostra que as políticas públicas na economia
e nos serviços não tiveram caráter distributivo de renda.
Nesse contexto, devem ser vistos o quadro da educação superior e as “reformas
pontuais” por que tem passado.

Alguns dados e aspectos importantes da educação superior no período 1994–2002


Em ordem e forma aleatórias, podem ser elencados alguns dados e aspectos im-
portantes da educação superior no Brasil nesse período, principalmente relaciona-
dos ao nível da graduação.
1. A cobertura do sistema. Em relação à população da faixa etária de 18 a 24
anos, a cobertura média no período foi de aproximadamente 7%, situando-se
entre as mais baixas da América Latina, em que há casos de países como a
Argentina, o Chile e o Uruguai, que já ultrapassavam, em 2002, os 30%, meta
que o Brasil estabeleceu para o ano 2011, isto é, dez anos após a aprovação do
Plano Nacional de Educação em janeiro de 2001.
2. A diversidade institucional. Para um total de 851 IES em 1994, apenas 127
eram universidades, 87 eram faculdades integradas e 637 eram faculdades ou
instituições isoladas. No ano de 2003, para o qual se tem dados detalhados
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6

(Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/Inep – Censo da


Educação Superior – Resumo Técnico), as IES já somam 1.859, das quais 163
universidades, 200 centros universitários e faculdades integradas e 1.496 fa-
culdades ou instituições isoladas (incluídos os centros de educação tecnológica).
3. A privatização do sistema. A distribuição entre o setor público e o setor priva-
do tem evoluído no sentido de aprofundar a predominância deste em relação
àquele, situando o Brasil, hoje, como o país de maior índice de privatização da
América Latina e entre os cinco de maior índice no mundo, se considerados o
número de IES e o percentual de matrículas. Em 1994, das 851 IES, 192 (22,5%)
eram públicas e 659 (77,5%) eram privadas. Se consideradas apenas as univer-
sidades, 68 (53,5%) eram públicas e 59 (46,5%) eram privadas. Em 2002, das
1.637 IES, 195 (11,9%) eram públicas e 1.442 (88,1%) eram privadas. Nesse
período de oito anos, as IES privadas passaram de 77,5% para 88,1% e, en-
quanto o número de IES cresceu 92% e o de IES públicas permaneceu estável,
o das IES privadas cresceu 118%.

Distribuição Percentual do Número de Instituições de Educação Superior, por Cate-


goria Administrativa – Brasil 1992-2002

100%

80%

60%

40%

20%

0%
1992 1994 1996 1998 2000 2002

PÚBLICA PRIVADA

Fonte: Mec/Inep/Daes, 2003..

O mesmo fenômeno se verifica em relação à evolução das matrículas.


No período de 1994 a 2002, para um aumento total de matrículas da ordem
de 109%, o do setor privado foi 150%, três vezes maior que o do setor públi-
co, de apenas 52%. Cabe registrar, ainda assim, que o principal aumento no
setor público se deu nas estaduais.
O setor privado, que, em 1994, concentrava 58% das matrículas, em 2002 já
concentra 70%.2

2
Segundo dados do Banco Mundial, já em 1994 o Brasil situava-se entre os países do mundo com maior taxa de
privatização da educação superior, no extremo oposto de países como França, Alemanha, Estados Unidos, Tailândia,
México, Venezuela, Argentina, Honduras, Bolívia, Itália, Espanha, Quênia, Panamá, Áustria, Suécia, Paquistão, cujo
montante de matrículas garantidas pelo fundo público, em cada um destes países, é superior a 75% (World Bank, 1994).
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7

Tabela 1 – Evolução do número de matrículas por tipo de IES e sua natureza pública ou
privada – Brasil: 1994–2002

ANO BRASIL
TOTAL PÚBLICO PRIVADO

1994 1.661.034 690.450 970.584

2002 3.479.913 1.051.655 2.428.258

% 109 52 150

Fonte: 1. MEC; INEP. Evolução das estatísticas sobre educação superior no Brasil – 1980–1998. Brasília:
MEC, 1999; 2. MEC; INEP. Sinopse estatística da educação superior 2000. Brasília: MEC, 2003.

4. A distribuição regional. Cabe destacar as distorções da distribuição regional da


educação superior no país, conforme mostra tabela abaixo, no caso das IES e
vagas oferecidas, para o ano 2000.

Tabela 1 – Distribuição das IES e das vagas segundo a natureza pública ou privada das
IES e região (números aproximados) – Brasil: 2000

REGIÕES, % DA POPULAÇÃO PÚBLICAS PRIVADAS PRIVADAS


E NATUREZA DAS IES Nº % Nº % Nº %

Norte 5% IES 11 6 35 3 46 4
Vagas 26.301 11 23.353 2 49.654 4

Nordeste 29% IES 44 25 113 11 157 13


Vagas 68.740 28 72.825 7 141.565 12

Sudeste 43% IES 72 41 595 60 667 56


Vagas 83.311 34 624.468 64 707.779 58

Sul 15% IES 34 19 142 14 176 15


Vagas 42.638 17 171.832 18 214.470 18

Centro- 7% IES 15 8 119 12 134 11


Oeste* Vagas 24.642 10 78.177 8 102.819 8

Totais 100 IES 176 100 1004 100 1.180 100


Vagas 245.632 100 970.655 100 1.216.287 100

Fonte: 1. IBGE; PNAD. População Residente. Brasília: IBGE, 1999. 2. MEC; INEP. Sinopse estatística da
educação superior 2000. Brasília: MEC, 2001.

Além do montante insuficiente de vagas, verifica-se sua má distribuição regio-


nal. Constata-se que o número de vagas é sempre superior percentualmente ao
número de matrículas no caso do setor privado e inferior no caso do setor
público.
No ano 2000, observa-se que, para um total de 1.216.287 vagas, o setor pri-
vado ofereceu 970.655 ou 79,8%, e o setor público, 245.632 ou 20,2%. Des-
taquem-se os casos das regiões Nordeste e Sudeste. Aquela, com 29% da popu-
lação brasileira, conta com apenas 13% das IES e 12% das vagas; esta, com
43% da população, conta com 56% das instituições e 58% das vagas.
Verifica-se também que o percentual de IES e de vagas públicas está bastante
próximo do percentual regional da população, com algum percentual a mais
de oferta no caso do Norte e do Centro-Oeste e a menos no caso do Sudeste.
Em contrapartida, as IES e as vagas privadas concentram-se principalmente no
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8

Sudeste (60% e 64%, respectivamente, para uma população de 43% do to-


tal). No Nordeste, para uma população de 29% do país, localizam-se apenas
11% das IES e 7% das vagas privadas.3
5. Concentração por área de conhecimento. Outro traço da educação superior do
período, que tendeu a se agravar nos anos seguintes, é o da concentração por
área de conhecimento. No ano 2000, a área de ciências sociais aplicadas (ad-
ministração, direito, contabilidade, negócios) concentrava 41,6% do total de
matrículas. As IES privadas concentravam, nos cursos dessa área, 50,1% de
suas matrículas, contra 24% nas federais e 20% nas estaduais. A área de edu-
cação concentrava outros 21,7% do total de vagas, restando apenas cerca de
37% das vagas para todas as demais áreas do conhecimento. Essa concentra-
ção verifica-se em especial no setor privado, dada a alta procura, mas princi-
palmente, por hipótese, aos baixos investimentos e altos retornos financeiros.
As áreas que requerem maiores investimentos, como as de engenharia, saúde,
entre outras, tendem a ser atendidas pelo setor público.
6. A concentração no ensino noturno (no setor privado). A Tabela 3 mostra que
57% das matrículas de graduação no país concentram-se no ensino superior
noturno. Mostra também que é no setor privado, que detém 70% das matrí-
culas do sistema, que se concentra a maioria dos estudantes do período notur-
no, isto é, dois terços de suas matrículas. No caso das IES federais, de cada cem
matrículas, 77 são do período diurno e apenas 23 do noturno.

Tabela 3 – Matrícula no turno noturno, por dependência administrativa – 2000

TOTAL FEDERAL ESTADUAL MUNICIPAL PRIVADA


Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %

Total D/N 2.694.245 100 482.750 100 332.104 100 72.172 100 1.807.219 100

Diurno 1.183.907 43 371.213 77 183.884 55 17.624 24 611.186 34

Noturno 1.510.338 57 111.537 23 148.220 45 54.548 76 1.196.033 66

Fonte: MEC/Inep. Sinopse estatística da educação superior 2000. Brasília: MEC/Inep, 2001.

7. Concentração regional da pós-graduação. De forma muito mais acentuada que


na graduação, dá-se a concentração regional da pós-graduação. A grande dife-
rença em relação à graduação é a inversão da concentração por dependência
administrativa: na pós-graduação ela ocorre no setor público, em especial no
doutorado, e aqui ocupam lugar relevante as estaduais e, entre estas, as paulistas
Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).

3
O caso do Distrito Federal deve ser registrado. Em 2000, contava com cerca de 40 IES, mas com uma única pública (a UnB)
e 39 privadas, das quais 37 particulares ou privadas stricto sensu. Nesse ano, as vagas oferecidas foram 32.251, das
quais apenas 3.904 (12%) públicas e 28.347 (88%) privadas: 3.910 (14%) de IES comunitárias e/ou confessionais e
24.437 (86%) de IES particulares ou privadas stricto sensu.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
9

Tabela 4 – Distribuição das matrículas de mestrado e doutorado por dependência admi-


nistrativa – Brasil e regiões Sudeste e Sul – 1999
BRASIL E DEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA
REGIÕES TOTAL
PÚBLICA PRIVADA
TOTAL FEDERAL ESTADUAL

Brasil Mestrado 56.911 48.139 29.337 18.802 8.772


Doutorado 29.940 27.203 13 027 14.176 2.737

Sudeste Mestrado 37.178 30.258 12.425 17.833 6.920


Doutorado 24.060 21.657 7.594 14.063 2.403

Sul Mestrado 10.388 8.724 8.007 717 1.664


Doutorado 3.614 3.280 3.191 89 334

Total Mestrado 47.566 38.982 20.432 18.550 8.584


SE+Sul Doutorado 27.674 24.937 10.785 14.142 2.737

Total Mestrado e 86.851 75.342 42.464 32.978 11.509


Brasil Doutorado

Fonte: MEC; INEP. Resultados e tendências da educação superior – Brasil. Brasília, ago. 2000.

A Tabela 4 mostra que, no ano de 1999, a pós-graduação stricto sensu estava


extremamente concentrada no setor público, com 86,7%, contra 13,3% no
setor privado. No nível do mestrado, o setor público respondia por 84,6%, e o
setor privado, por 15,4%. No nível do doutorado, o setor público respondia
por 90,9%, e o setor privado, por apenas 9,1%.
A concentração regional se verifica quando analisados os dados do Sudeste
(e Sul) em confronto com os dados globais. O Sudeste concentra 65% das
matrículas do mestrado e 80,3% do doutorado. As estaduais – e, como já
observado, especialmente as paulistas – concentram cerca de 50% de todas as
matrículas de doutorado do país: 14.176, para um total de 29.940.
8. Financiamento das Ifes. Para se analisar as políticas públicas de educação supe-
rior durante o período, um indicador importante é o do financiamento federal
das Ifes, obrigação constitucional. O índice mais utilizado é do percentual em
relação ao PIB, ano a ano, do total de recursos destinados ao conjunto das Ifes.
Tabela 5 – Recursos das Ifes – todas as fontes – como percentual do PIB – 1994 a 2002.
Valores em R$ milhões a preços de janeiro de 2002 (IGP-DI/FGV)

ANO PIB BRASIL


RECURSOS DAS IFES % DO PIB

1994 1.067.765 9.699 0,91

1995 1.179.919 10.402 0,88

1996 1.280.178 9.373 0,73

1997 1.326.222 9.208 0,69

1998 1.340.292 9.046 0,67

1999 1.269.438 8.854 0,70

2000 1.257.969 8.346 0,66

2001 1.242.027 7.638 0,61

2002 1.204.740 7.767 0,64

Fonte: PIB: Banco Central do Brasil e Ipea (http://www.ipeadata.gov.br); impostos: Arrecadação da Receita
Administrada pela SRF (http://www.receita.fazenda.gov.br); recursos das Ifes: 1990–1994, MF/STN/CGC, 1995–
2001: Execução Orçamentária da União (http://www.camara.gov.br); desp. correntes do FPF: Execução Orçamen-
tária do Governo Federal e Balanço Geral da União. (Amaral, 2003, p. 188 – Extrato da tabela 5.46).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

Os recursos destinados às Ifes no ano 1989 corresponderam a 0,97% do PIB.


Em 1994, eles correspondiam a 0,91%. Oito anos passados, eles correspondiam
a 0,64% e, no ano anterior, tinham correspondido a 0,61%, numa redução de
cerca de 33% em relação ao início do octênio governamental. Caso fosse
tomado como referência o total das despesas correntes do fundo público fede-
ral, a queda no índice se revelaria ainda mais acentuada: 44%. Essa redução
tem sido a mais drástica das últimas décadas.
Ocorre registrar que, no período de 1994 a 2002, o ensino superior público
federal teve uma expansão de 37% nas matrículas e uma redução de 5% de seu
corpo docente e de 21% de seu quadro de funcionários, além do quase conge-
lamento salarial de docentes e funcionários técnico-administrativos. Esse con-
gelamento foi parcialmente compensado apenas por uma gratificação propor-
cional aos índices individuais de “produtividade”, intitulada, no caso dos do-
centes, de gratificação de estímulo à docência (GED).
O custo/aluno, um dos principais alvos da crítica ao ensino superior federal,
excluídos os gastos com hospitais universitários e outros não relacionados di-
retamente ao ensino, sofreu, no período de 1995 a 2001, uma redução de
51% (de R$ 11.198,00 para R$ 5.488,00). Esse porcentual de redução, com
valores a preços de janeiro de 2002 (IGP-DI/FGV), como fração do PIB naci-
onal, foi de 53,7% (Amaral, 2003 p. 123).4
9. Autonomia de gestão financeira x autonomia financeira. Entre as iniciativas
oficiais para redução do financiamento federal da educação superior, no caso,
das Ifes, durante o governo FHC, por iniciativa do MEC, foram feitas várias
tentativas de aprovar, no Congresso Nacional, emendas constitucionais ou leis
ordinárias que promovessem um tipo de autonomia – autonomia financeira,
em lugar da autonomia de gestão financeira, estabelecida pela Constituição
Federal – que autorizaria as universidades federais a arrecadar fundos de qual-
quer natureza, na ausência do financiamento estatal previsto na Constituição.
Visando desobrigar o Estado da plena manutenção das Ifes, incentivou-se a
criação das polêmicas Fundações de Apoio Institucional (FAI), entidades pri-
vadas, no interior dos campi universitários.5
10. Exame Nacional de Cursos (Provão). Em lugar de um sistema de avaliação
que visava conciliar as exigências oficiais de supervisão, regulação e controle e
a auto-avaliação institucional pelas comunidades universitárias, estruturado
sob a gestão do ministro Murílio Hingel (governo Itamar Franco) e denomina-
do Programa Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (Paiub), a
partir de 1997 passou-se a utilizar um sistema de avaliação da educação supe-
rior que comportava fundamentalmente dois instrumentos: exame das condi-
ções de oferta (infra-estrutura, currículo acadêmico, qualificação docente etc.)
e o Exame Nacional de Cursos (mais conhecido como Provão), consistente
numa única prova escrita, com predominância de questões de múltipla escolha
sobre os conteúdos curriculares, para os concluintes dos cursos. Esse sistema

4
Para mais informações sobre a redução do financiamento das Ifes, ver Sguissardi (2005 b) e, em especial, Amaral (2003).
5
No ano de 2001, as FAIs eram 96 nas Ifes, com um crescimento de 129% em relação ao ano de 1995. (Amaral, 2003,
p. 183). Para mais informações sobre as FAIs, ver Sguissardi (2002 b).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11

foi imposto à revelia da opinião majoritária de dirigentes e professores univer-


sitários, representados por suas associações. Além do fato de ser o Provão uma
prova que, por ser aplicada uma única vez, não media o aporte do curso para
alunos, sua forma de apresentação das médias e do ranking que se estabelecia
entre os cursos de cada área, utilizando-se uma distribuição que respeitava a
curva de Gauss, prestava-se a muita contestação. Por último, a forma como a
imprensa explorava os resultados desse ranking de cursos e instituições colo-
cou-o sob grande suspeita de mais servir ao interesse oficial de demonstrar
controle sobre o sistema do que de efetivamente avaliá-lo e regulá-lo. O fato é
que, após seis anos de aplicação, tendo envolvido na última prova quase duas
dezenas de cursos em nível nacional, não houve suspensão ou impedimento de
funcionamento de nenhum curso ou instituição.
11. Modelo de universidade. Os dados sobre a diferenciação institucional (ver
item 2) e a constatação de que na prática apenas as universidades com sistemas
de pós-graduação consolidados desenvolvem programas de pesquisa e, portan-
to, cumprem o preceito constitucional da associação ensino-pesquisa-exten-
são, mostram que o modelo largamente predominante e em expansão nesse
período foi o aqui denominado modelo de universidade de ensino em detri-
mento do modelo de universidade de pesquisa.6
12. Legislação educacional. O esforço de produção de um acervo legislativo ou de
marcos regulatórios para o ensino superior, durante o período em foco, foi
considerável. Traduziu, sob muitos aspectos, teses e orientações disseminadas
por documentos de organismos multilaterais. O trabalho desenvolvido no
Congresso Nacional pelo Poder Executivo levou à aprovação de uma Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9.394/96) de caráter
minimalista, cujo capítulo da educação superior apenas traçou linhas gerais
para o sistema, deixando para a legislação complementar o detalhamento.
Assim, por meio dos decretos 2.207/97, 2.306/97 e 3.860/01, além da grande
diversificação institucional hoje existente, estabeleceu-se uma concessiva inter-
pretação da letra do artigo 207 da Constituição Federal, que estabelece a obe-
diência ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Por esses Decretos, ficaram liberadas da obediência a esse princípio
nada menos que 1.024 IES sobre um total de 1.180 IES, no ano de
2000; apenas as universidades a ele sendo obrigadas. Como na
prática não existe nenhuma imposição legal que condicione a
aprovação de novas IES à sua organização na forma de universida-
des, tem-se aqui um elemento importante a garantir a
“flexibilização” do suposto modelo único de educação superior.
(Sguissardi, 2004, p. 43)

Alguns dos principais mentores dessa legislação principal e complementar têm


defendido, desde a década de 1980, a necessidade de flexibilizar o suposto mo-
delo único imposto pela Lei da Reforma Universitária de 1968, que estabelecia

6
Para maior aprofundamento dessa questão, ver Sguissardi (2004).
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12

a associação ensino-pesquisa e, em caráter preferencial, a criação de IES no for-


mato de universidades. A suposta predominância desse modelo, que de fato
sempre foi minoritário, é que estaria engessando o sistema educacional brasileiro
e tornando-o muito caro para as possibilidades do Estado nacional.
Pelo Decreto 2.306/97, foram reconhecidas as IES privadas com fins lucrativos
(empresas comerciais). Esse decreto foi substituído, em 2001, pelo Decreto
3.860/01, que, sobre as entidades mantenedoras das IES privadas, assim estatui:
“Art. 3o – As pessoas jurídicas de direito privado mantenedoras de instituições
de ensino superior poderão assumir qualquer das formas admitidas em direito
de natureza civil ou comercial, e, quando constituídas como fundação, serão
regidas pelo disposto no art. 24 do Código Civil Brasileiro” (Sguissardi, 2004,
p. 46 e 47; grifo do autor).7
Pelo artigo 6º, as entidades mantenedoras com finalidade lucrativa deverão
apenas elaborar, a cada exercício fiscal, demonstrações financeiras atestadas
por profissionais competentes (contadores). Não têm mais obrigação, como
previsto no Decreto 2.306/97, de publicar demonstrações financeiras “certifi-
cadas por auditores independentes, com o parecer do conselho fiscal ou órgão
equivalente”, nem de se submeterem, “a qualquer tempo, a auditoria pelo
Poder Público” (ibidem).
Seja pela drástica redução do financiamento às Ifes, seja pelas facilidades de
criação de IES privadas, especialmente com finalidade de lucro, explica-se, em
grande medida, a pequena expansão do setor público e a grande expansão do
setor privado no período.
Os vetos presidenciais relativos às metas para a educação superior no Plano
Nacional de Educação (Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001) são outros indi-
cadores das políticas oficiais em relação ao sistema e o tornam, no dizer de
Valente e Romano (2002, p. 97 et passim), uma simples carta de intenções.
Mais uma vez, pela mensagem presidencial encaminhada ao Congresso em 9
de janeiro de 2001, fica-se sabendo que foi a opinião do Ministério da Fazen-
da que determinou os vetos. Dos nove vetos, quatro referiam-se ao ensino
superior. Um deles incidiu sobre a meta que estabelecia que o número de vagas
no ensino superior público não poderia ser inferior a 40% do total desse nível
de ensino. Outro incidiu sobre a subvinculação de 75% dos recursos da União
a serem destinados à manutenção, desenvolvimento e expansão das Ifes. Foi
vetada a meta que propunha a ampliação do financiamento público à pesqui-
sa científica e tecnológica.
Outros vetos indiretamente afetaram o fortalecimento da educação superior
pública, uma vez que impediram o aumento do financiamento público da
educação. O primeiro deles é o que propunha, no prazo de dez anos, o aumen-
to dos gastos públicos federais, estaduais e municipais para 7% do PIB, sendo
os recursos ampliados à razão de 0,5 nos quatro primeiros anos e de 0,6 nos

7
O artigo 7o do Decreto 2.306/97 reconhecia as IES privadas stricto sensu e assim as definia: “As instituições privadas de
ensino, classificadas como particulares em sentido estrito, com finalidade lucrativa, ainda que de natureza civil, quando
mantidas e administradas por pessoa física, ficam submetidas ao regime da legislação mercantil, quanto aos encargos
fiscais, parafiscais e trabalhistas, como se comerciais fossem, equiparados seus mantenedores e administradores ao
comerciante em nome individual”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13

anos seguintes. Outro eliminou a proposta do PNE de se excluir das despesas


com manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas com pagamento
dos aposentados e pensionistas do ensino superior público.
A principal justificativa para os vetos foi o respeito à Lei da Responsabilidade
Fiscal, mas, com isso, e porque sem aumento de despesas não há Plano Nacio-
nal de Educação, inviabilizou-se um plano que, embora tendo como eixo cen-
tral algumas diretrizes caras ao FMI e ao Banco Mundial, dada sua bastante
ampla discussão no Congresso, continha princípios e metas que poderiam sig-
nificar importantes avanços para a educação em geral e para a educação supe-
rior em particular.

2. Algumas teses que orientaram as “reformas pontuais” da educação superior no


octênio FHC (1994–2002)
As “reformas pontuais”, que não dependeram necessariamente de uma lei especí-
fica, mas de uma série de instrumentos legais e de medidas, como a redução dos
recursos financeiros, garantidores da mudança, tiveram como pano de fundo os
ajustes da economia sugeridos pelo diagnóstico neoliberal e o que temos denomi-
nado de teses defendidas em especial pelo Banco Mundial e divulgadas por docu-
mentos de natureza diversa ao longo das décadas de 1980 e 1990.
O fim do século XX pôs a educação superior na berlinda. A ciência e o ensino
superior tornaram-se muito mais presentes, como fatores de produção e parte inte-
grante da economia, mercadorias ou quase-mercadorias, em países centrais, da pe-
riferia e da semiperiferia. Da mesma forma que o diagnóstico neoliberal identifica
entre as principais causas do fracasso da economia do Estado do Bem-estar sua
crescente falta de competitividade, também a educação superior – entendida como
parte essencial da economia moderna – necessitaria passar por um choque de
competitividade.8 Deveria tornar-se um promissor mercado ou quase-mercado de
serviços a ser regulamentado no âmbito dos Acordos Gerais é no do Comércio e
Serviços (AGCS) da Organização Mundial do Comércio (OMC). O reconhecimen-
to legal, no Brasil, das IES com fins lucrativos antecipou a agenda da OMC e, de
alguma forma, enfraquece a posição (oficiosa) do Brasil contrária, no âmbito dessa
organização, à regulamentação desses serviços. A descoberta desse traço essencial à
educação superior (competitividade) permite que se fale nas IES como empresas
econômicas a serem administradas de modo empresarial/gerencial.
Pierre Bourdieu (1998) denunciava, no fim da década de 1990, o imperialis-
mo da razão neoliberal a expressar-se de diferentes maneiras. Uma delas, por meio
de teses que vão sendo midiaticamente disseminadas pelo planeta. Os planos,
relatórios e pareceres de organismos multilaterais, cartilhas como a do Consenso
de Washington, relatórios de comissões nacionais (como o Dearing Report), o
Plano Diretor da Reforma do Estado (Brasil, 1995), a legislação e os anteprojetos
de lei específicos da educação superior ou de outras áreas das políticas públicas,
como a da previdência, e estudos de núcleos de pesquisa de universidades, entre
outros, serão seus veículos mais imediatos.

8
Os objetivos da utilidade, da eficiência e da eficácia do empreendimento educativo, retomados à outrance hoje pelos
ultraliberais, já estavam presentes na obra clássica de Adam Smith, Riqueza das nações (1983).
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14

Ao lado de teses que, do ponto de vista da economia ou da administração


pública, afetam profundamente as políticas públicas de educação superior – por
exemplo, do déficit público, que resultaria da exacerbação do Estado-Providên-
cia ou do Estado desenvolvimentista –, algumas envolvem diretamente, do ponto
de vista da reforma administrativo-gerencial do aparelho do Estado, a questão do
ensino superior e sua maior ou menor implementação pelo poder público.

Dentre essas teses, algumas são destacadas a seguir.


1. Tese do maior retorno social e individual dos investimentos em educação básica que o dos
investimentos em educação superior.
Essa tese está exposta de forma exaustiva, e será retomada em documentos poste-
riores de forma sintética, no documento do Banco Mundial, de 1986, intitulado
Financing education in developing countries – An exploration of policy options
(World Bank, 1986).9
Objetivando induzir os países em desenvolvimento a investirem seus parcos
recursos públicos prioritariamente na educação primária e, posteriormente, na
educação secundária, ao mesmo tempo em que recomendava a diminuição dos
investimentos públicos na educação superior e a diversificação de suas fontes de
recursos (fim da gratuidade e imposição de taxas de matrículas e mensalidades), o
documento apresenta o que julga “Considerável evidência [...] acerca do retorno
privado e social dos investimentos em educação tanto nos países desenvolvidos
como nos em desenvolvimento”. (Sguissardi, 2005 b, p. 198)10
Ela irá sofrer revisão – com reconhecimento do equívoco teórico-empírico co-
metido – em documento do Banco, de 2000, intitulado Higher education in
developing countries: peril and promise (World Bank, 2000), cuja elaboração é
apresentada oficialmente como uma parceria com a Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Após oito anos da publicação do documento de 1986, essa tese foi retomada
no talvez mais importante documento do Banco das duas últimas décadas – Higher
education: the lessons of experience (1994). Nele, faz-se o elogio do Chile (de
Pinochet), por ter ido muito além das sugestões do Banco. As reformas desse país,
por isso, foram apontadas como exemplo para os demais países.11

2. Tese da universidade de ensino x universidade de pesquisa


Nesse documento, faz-se extenso diagnóstico da crise da educação superior, em que
o déficit público aparece como conseqüência também do suposto excessivo com-
prometimento do fundo público com o ensino superior e, especialmente, com as
universidades de “modelo europeu” ou universidades de pesquisa (modelo
humboldtiano). O Banco, por sua vez, defende, de forma implícita, a universidade

9
A autoria é atribuída a Georg Psacharopoulos, Jee-Peng Tan e Emmanuel Jimenez, com colaboradores.
10
Para uma mais aprofundada análise dessa e demais teses, e suas conseqüências, que serão apresentadas neste texto,
ver Sguissardi (2005 b).
11
O Chile é elogiado, entre outras razões, por ter reduzido os gastos estatais com a educação superior. “No mesmo
período, a parte do gasto público destinada à educação superior, como porcentagem do PIB, diminuiu de 1,65 a 0,45%”
(World Bank, 1994, p. 33). A retomada dessa tese explicita-se em afirmações como: “No entanto, no setor de educação
há provas de que as inversões no nível terciário têm taxas de rentabilidade social mais baixas que as inversões no ensino
primário e secundário [...].” (World Bank, 1994, p. 14).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

de ensino. Dessa tese decorrem as recomendações de maior diferenciação institucional,


“incluído o desenvolvimento de instituições privadas”, e a criação de incentivos
“para que as instituições públicas diversifiquem as fontes de financiamento, por
exemplo, a participação dos estudantes nos gastos e a estreita vinculação entre fi-
nanciamento fiscal e os resultados” (World Bank, 1994, p. 4 e 29).12

3. Tese do ensino superior como bem antes privado que público


É exatamente em documento preparado pelo Banco Mundial, em 1998, The
financing and management of higher education – A status report on worldwide
reforms,10 como contribuição para as discussões da Conferência Mundial sobre
Educação Superior, organizada pela Unesco, em Paris, nesse ano, que uma tese
complementar às duas anteriores, em especial à primeira, seria exposta.
Nesse documento, faz-se, antes de tudo, um balanço das reformas no que
concerne ao financiamento e à gestão das universidades e demais IES e afirma-se a
constatação de um “movimento surpreendentemente homogêneo” nesse proces-
so, mesmo em países de sistemas econômicos e políticos diferentes e vivendo dife-
rentes níveis de desenvolvimento industrial e tecnológico (World Bank, 1998, p.
2). Constatava o resultado de recomendações presentes em documentos anterio-
res do Banco: expansão de matrículas e de IES, cada vez mais diferenciadas; redu-
ção do custo/aluno; orientações e soluções do mercado; diversificação de fontes
ou busca de recursos não-estatais. Identifica-se que essas reformas estariam, en-
tão, muito mais “orientadas para o mercado do que para a propriedade pública
ou para a planificação e regulação estatais”, o que se deve, segundo o Banco, à
“crescente importância que em quase todo o mundo têm adquirido o capitalismo
de mercado e os princípios da economia neoliberal”(World Bank, 1998, p. 4;
grifos nossos).
Esse preâmbulo se fez necessário para a apresentação em grande estilo da tese
do ensino superior como bem antes privado que público. Os argumentos são
retirados da obra de Nicholas Barr, The economics of the Welfare State (1993, p.
106 e 345), segundo o qual, no dizer do Banco, o ensino superior responderia a
muitas das condições identificadas por esse autor como sendo características de
um bem privado, “que se pode subordinar às forças do mercado”.
Para o Banco, esse nível de ensino não poderia ser tratado como um “bem
estritamente público”, em razão de suas condições de competitividade (oferta
limitada), excluibilidade (pode-se obtê-lo mediante pagamento) e recusa (não é
requerido por todos). Essas características corresponderiam mais a um bem priva-
do do que a um bem público. Além disso, porque os consumidores em geral esta-
riam bem informados a respeito, e os provedores, mal informados, estariam dadas
“as condições ideais para o funcionamento das forças do mercado” (World Bank,
1998, p. 5).

12
Como se viu em páginas anteriores, a partir de 1994, no caso do Brasil, recrudesce o processo de redução de gastos
públicos federais para as Ifes e de expansão da privatização desse nível de ensino.
13
O documento é atribuído ao consultor D. Bruce Johnstone (da Universidade de Buffalo, Estados Unidos), com a
colaboração de Alka Arora e William Experton.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

Diante do quadro apresentado no item 1 e da clareza e funcionalidade dessas


teses, no contexto das reformas ultraliberais da economia e da reforma do Estado,
não é de estranhar que possam ter fundamentado, de forma explícita ou implíci-
ta, as políticas públicas de muitos países e, no caso, das brasileiras. Não é de
estranhar que possam ter reforçado e orientado diversas das ações das “reformas
pontuais” da educação superior nos últimos anos, tais como:
A. a gradativa desresponsabilização do Estado com o financiamento e a manu-
tenção da educação superior, embora mantendo sobre ela estrito e crescente
controle, via sistemas de avaliação, regulação, controle e credenciamento;
B. o estímulo e pelas facilidades para a criação e expansão de IES privadas sem e
com fins lucrativos;
C. a indução a que as IES públicas sejam organizadas e geridas à semelhança de
empresas econômicas;
D. a valorização da qualidade acadêmica em moldes administrativo-gerenciais e
empresariais: produto, custo/benefício;
E. o incentivo à competição intra e interinstitucional;
F. a manutenção das Ifes sem autonomia de gestão financeira e tentativas de apro-
vação de instrumentos legais que instituíssem um modelo de autonomia dis-
tinto do constitucional, isto é, autonomia financeira em lugar da autonomia
de gestão financeira;
G. o implemento à diversificação das fontes de financiamento, mediante, entre
outras medidas, a criação de FAIs, a cobrança de mensalidades, contratos de
pesquisa com empresas, venda de serviços e consultorias, e doações da iniciati-
va privada;
H. o implemento à diferenciação institucional – universidades de ensino, em especi-
al –, além de carreira docente por instituição, salários individualizados por volu-
me de aulas e de produção científica (vide gratificação de estimulo à docência).

Essas teses parecem estar de fato orientando o trânsito da universidade bra-


sileira – para não dizer latino-americana e mesmo, sob certos aspectos, mundi-
al – do seu funcionamento sob os parâmetros da adaptação ou da superposição
dos modelos clássicos de universidade (napoleônico ou humboldtiano) para
os dos modelos de ocasião, fundados nessas teses, que podem ser denominados
de modelo da “universidade mundial do Banco Mundial” (Aboites, 1996) ou
de “modelo anglo-saxão”, por sua implantação, primeiro na Inglaterra, de
Thatcher, e depois também em outros países da antiga Commonwealth, como
Austrália, Nova Zelândia e Canadá (Dias, 2003). Esse “modelo de ocasião”
pode ser também caracterizado pelos qualificativos neoprofissional, heterônomo
e competitivo 14 ou, ainda, na caracterização de Chauí (1999), funcional e
operacional.

14
Para uma melhor explicitação desse “novo” modelo de universidade, ver Sguissardi (2004).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

3. A educação superior nos anos Lula (2003–2005)


Considerada a trajetória do Presidente da República eleito, do principal partido
de sua base de apoio e do Plano de Governo para a Educação Superior, a expecta-
tiva era de que esta – a Educação Superior - sofresse uma guinada importante no
seu processo de desenvolvimento, tendo como pano de fundo uma virada tam-
bém significativa nos rumos da economia nacional.
O pano de fundo manteve-se basicamente o mesmo. Na área universitária, os
instrumentos legais e as medidas administrativas, incluídas as financeiras, mos-
tram que até o anteprojeto de lei da reforma da educação superior não houve
rupturas com o processo anterior, a não ser, em certa medida, na adoção de novo
sistema nacional de avaliação.
Passados dois anos e meio, constata-se que não prevaleceram políticas hetero-
doxas na economia ou antineoliberais em qualquer campo da administração pú-
blica, mas, sim, uma clara continuidade das políticas do octênio anterior, tanto
no campo da macroeconomia, dos compromissos com o mundo financeiro, quanto
nas alianças políticas com partidos de centro e de centro-direita. Tudo justificado
pela busca da governabilidade. O fiel pagamento da dívida pública (interna e,
principalmente, externa), a elevação do superávit primário para tanto, as taxas de
juros básicos, a reforma da Previdência que feriu interesses de aliados históricos
dos mandatários e as concessões doutrinárias e ideológicas em campos essenciais
da administração pública revelam que a Carta ao Povo Brasileiro,15 de julho de
2002, constituiu-se no efetivo plano de governo em substituição ao plano labori-
osa e cuidadosamente elaborado para todas as áreas de atuação do governo, entre
eles o da educação superior.
No âmbito das políticas públicas de educação superior, apesar da existência de
um capítulo sobre este nível de ensino no Plano de Governo para a Educação
(PGE) – Uma escola do tamanho do Brasil –, do qual se ocupou um grupo signi-
ficativo de especialistas, que o discutiram em dezenas de seminários regionais du-
rante mais de um ano, somente agora, no anteprojeto de Lei da Reforma, está
sendo bastante seriamente levado em conta, se excluídas a criação do Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e algumas outras medidas
de regulação e controle da expansão do sistema.
Os compromissos básicos constantes do PGE para a educação superior podem
resumir-se em:
A. promoção da autonomia universitária e da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão nos termos constitucionais (artigo 207 da CF);
B. consolidação das instituições públicas como referência para o conjunto das IES
do país;
C. expansão significativa da oferta de vagas no ensino superior, em especial no
setor público e em cursos noturnos;

15
Na Carta, alguns compromissos se destacam: plano de governo que se sustente na redução da vulnerabilidade externa,
em reformas estruturais (tributária, agrária, previdenciária e trabalhista), no combate à fome, à insegurança pública e ao
déficit habitacional; 2. governabilidade via coalizão nacional, que implica processo exaustivo de negociação, alianças,
pacto social e crescimento com estabilidade; respeito aos contratos e obrigações do país, e não ao calote na dívida
externa e política austera de controle do endividamento público; segurança dos investidores não-especulativos; controle
inflacionário; equilíbrio fiscal; superávit primário, visando à capacidade de honrar compromissos (ver Sguissardi, 2005 a).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

D. ampliação do financiamento público ao setor público, revisão e ampliação do


crédito educativo e criação de programa de bolsas universitárias, com recursos
não-vinculados constitucionalmente à educação;
F. a defesa dos princípios constitucionais da gratuidade do ensino superior públi-
co (artigo 206, IV, da CF).

Desses compromissos decorreram 25 propostas (vide Anexo I), que cobrem um


amplo leque de ações e medidas a serem implementadas durante o mandato pre-
sidencial 2003–2006.
Sob muitos aspectos, retomavam-se as metas do Plano Nacional de Educação
(PNE) aprovado no ano anterior (2001), tentando-se recuperar o que tinha sido
vetado quando de sua sanção presidencial.
Comprometia-se o futuro governo, em resumo, a:
1. ampliar as vagas de forma compatível com a meta de 30% da faixa etária até
o ano 2011 e atingir, no médio prazo, uma proporção de 40% das matrículas
no setor público;
2. promover a autonomia nos termos constitucionais, incluindo a escolha dos
dirigentes;
3. resolver a questão da desigualdade da oferta regional de vagas na graduação e
pós-graduação e buscar melhor oferta de cursos e vagas em áreas de conheci-
mento que melhor respondam às necessidades do projeto nacional de desen-
volvimento;
4. modificar o sistema de seleção, com atenção para as minorias raciais e
socioeconômicas (cotas);
5. substituir o sistema de avaliação vigente (Provão);
6. revisar carreiras e matrizes salariais de docentes e funcionários técnico-adminis-
trativos das Ifes;
7. ampliar a supervisão, pelo poder público, da oferta e expansão dos serviços
públicos de educação superior prestados por IES públicas e privadas, aperfei-
çoar e aplicar a atual legislação sobre reconhecimento ou renovação da condi-
ção de universidade atribuída às IES públicas ou privadas, com base em proce-
dimentos definidos pelo sistema nacional de avaliação institucional, e redefinir
os critérios para autorização de funcionamento de novos cursos, para reconhe-
cimento dos cursos autorizados e em funcionamento, e para credenciamento e
recredenciamento das IES;
8. estabelecer novo marco legal para as FAIs criadas nas IES públicas, regulamen-
tando suas atribuições na prestação de serviços, de modo a garantir seu estrito
controle e o retorno dos recursos financeiros e patrimoniais auferidos em suas
atividades à respectiva IES, e impedir sua utilização por interesses de indivídu-
os ou grupos.

Em relação ao financiamento da educação superior, não houve proposta de


um índice sobre o PIB, por exemplo, ou sobre a verba orçamentária destinada
ao MEC, mas houve o compromisso de, reexaminados os vetos ao PNE, buscar
aumentar gradativamente os gastos com educação, de modo a atingir-se, no
prazo de dez anos, no mínimo o índice de 7% do PIB, conforme meta vetada
desse plano.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

Como já apontado, essas propostas estão sendo parcialmente visadas no ante-


projeto de lei da reforma da educação superior a ser encaminhado ao Congresso
Nacional, portanto, o plano de governo para a educação superior teria servido
muito parcialmente como diretriz das ações oficiais nessa área até o presente.
Cabe observar aqui algumas medidas, especialmente do ponto de vista legal,
que marcam as ações federais no setor no período em pauta.
O momento atual, marcado pelo processo de elaboração do anteprojeto de Lei
de Educação Superior, foi antecedido, no governo Lula, por quatro leis, que apon-
tam mais para a continuidade do que para descontinuidade das políticas anteriores
no setor e que, direta ou indiretamente, condicionam ou limitam os eventuais avanços
dessa futura lei, que possui, entre seus objetivos, o fortalecimento do setor público
e a regulação do sistema, em especial em seu setor privado/mercantil.
A Lei 10.861, de 14 de abril de 2004, criou o Sinaes. Pretendeu-se, com essa
lei, a superação dos conhecidos limites do Exame Nacional de Cursos (Provão)
por um sistema muito mais complexo de ações de avaliação, entre as quais duas
provas, uma na entrada e outra na saída do sistema, realizadas por amostragem.
O novo sistema teria trazido avanços inegáveis, mas, ainda assim, é questionado
porque não respeitaria a autonomia universitária e seria centralizador no que tan-
ge à constituição da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Conaes),
responsável pelas principais diretrizes e normas relativas ao sistema.
A Lei 10.973 (Lei de Inovação Tecnológica), vinculada ao Ministério de Ciência
e Tecnologia, de 2 de dezembro de 2004, trata dos incentivos à inovação e à pesqui-
sa científica e tecnológica no ambiente produtivo. Essa lei cria facilidades para a
utilização dos recursos – físicos, materiais e humanos – das universidades pelas em-
presas, assim como a transferência de tecnologia daquelas para estas. Viabiliza a
alocação de recursos públicos para empresas nos projetos ditos de inovação. Prevê a
gratificação dos pesquisadores cujos conhecimentos venham a ser utilizados por
empresas. A principal crítica que lhe é feita é de que, justificada pela necessidade de
aproximação universidade–empresa, criaria sérios riscos de distorção da verdadeira
função pública da universidade no campo científico e da inovação e, dada a penú-
ria financeira das universidades públicas e seus docentes/pesquisadores, criaria tam-
bém facilidades para a subordinação da agenda universitária ao campo empresarial,
limitando a liberdade acadêmica e aprofundando o fenômeno da heteronomia uni-
versitária, um dos traços da universidade hoje em muitos países
A Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004, institui normas gerais para licita-
ção e contratação de parceria público-privada (PPP) no âmbito da administração
pública. Essa lei prevê a parceria do Estado com empresas privadas nas mais dife-
rentes áreas da produção, comércio de bens e serviços de natureza pública e cole-
tiva, isto é, pesquisa, desenvolvimento tecnológico, meio ambiente, patrimônio
histórico e cultural, e serviços de educação e ensino.16 Permite a outorga de recur-

16
“’Art. 2º, § 2º - Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a
usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens.’
Em tese, e a princípio, a definição acima permite conceder/delegar ao setor privado a produção e o fornecimento
de bens e serviços públicos de uso gratuito, o que significa uma área de abrangência bastante ampla: manutenção do
patrimônio histórico e cultural, serviços de educação e de saúde em estabelecimentos públicos, preservação do meio
ambiente, saneamento básico, funções de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico em laboratórios públicos, por
exemplo, entre outras atividades. Serviços dos quais o Estado é o usuário direto, como os serviços de informática, também
poderão ser objeto de concessão administrativa sempre que abrangerem mais do que o simples fornecimento de mão-de-
obra, tiverem valor superior a R$ 20 milhões e prazo contratual superior a 5 anos (exigências gerais de todo projeto de
concessão em parceria)” (Juruá, 2005, grifos nossos).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20

sos públicos à administração de entes privados. Como contrapartida do ente pri-


vado, requer-se não mais do que 30% do valor do empreendimento, com todas as
salvaguardas oficiais. Justificariam essa lei a baixa capacidade de investimento
estatal e a suposta superioridade gerencial privada. A crítica principal, no caso da
educação, é que, para além do fortalecimento do pólo privado do Estado ou
como parte dele, amplia-se a utilização dos recursos públicos por entidades priva-
das, com ou sem fins lucrativos.
Finalmente, a Lei 11.096, de 13 de janeiro de 2005, instituiu o Programa Uni-
versidade para Todos (ProUni). Essa lei regula a atuação de entidades beneficentes
de assistência social no ensino superior. O programa, pretextando a “publicização”
do privado, na forma como foi aprovado e está sendo implementado, fortalece as
instituições privadas comerciais de ensino. Pode-se entendê-la como uma forma de
aplicação lato sensu do espírito das PPPs no campo do ensino superior. Em troca da
isenção de um conjunto de impostos pelas IES privadas (o programa é muito mais
interessante para as instituições com fins lucrativos), aprovou-se a possibilidade de
troca de cerca de 10% das vagas ou 8,5% da receita bruta, na forma de bolsas para
alunos egressos de escolas públicas, entre outros.
A atuação dos lobbies do ensino superior privado/comercial quando da
tramitação da medida provisória no Congresso Nacional acabou por modificar a
seu favor a proposta oficial que, ao início, era mais exigente – maior percentual
de vagas e de receita por idêntico montante de impostos –, o que tornava essas
vagas menos onerosas que as das universidades federais, por exemplo, embora
dessa operação saísse fortalecido exatamente o setor privado que mais se expan-
diu nos últimos anos, isto é, o com fins lucrativos.17 Cálculos financeiros indicam
que, com as modificações atuais, o custo dessas vagas em IES privadas – que
priorizam as atividades de ensino e apresentam em geral baixa qualidade – tor-
nou-se maior do que o seriam para o Tesouro Nacional nas universidades públi-
cas, que priorizam atividades de ensino e pesquisa e são, normalmente, de melhor
qualidade. A utilização dos espaços ociosos dos campi das Ifes teria sido muito
menos onerosa e cumpriria parte de um dos compromissos do plano de governo
para a educação superior.
As medidas administrativas, especialmente em relação à abertura e ao
credenciamento de cursos e novas IES, foram importantes formas de
implementação do plano de governo. O mesmo se pode dizer da criação de qua-
tro novas universidades federais e de 32 novos campi como forma de expansão
das Ifes e das vagas no setor público (federal). Entretanto, no que concerne ao
financiamento, nó górdio da questão universitária, o montante de recursos finan-
ceiros destinados às instituições federais, reduzidos de 0,91% a cerca de 0,60%
do PIB no octênio anterior, manteve-se praticamente inalterado durante os dois
primeiros anos deste governo.18

17
Para mais informações e análises sobre o significado do ProUni no âmbito das finanças públicas e da renúncia fiscal, ver
Carvalho e Lopreato (2005).
18
Dados fornecidos por Vera Flores, coordenadora da assessoria de comunicação do Ministério da Educação, em carta ao
Painel dos Leitores do jornal Folha de S.Paulo, em 25 de agosto de 2005.
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4. Anteprojeto de lei da reforma da educação superior: perspectivas


Como já dito, o anteprojeto de lei da reforma da educação superior (Brasil, 2005),
mesmo que aprovado nos termos de sua versão atual a ser encaminhada ao Con-
gresso Nacional, não comportará toda a reforma, que é um longo e denso processo,
impossível de ser enfeixado numa única lei. Essa lei seria a última e importante
etapa de tal processo, sob certos aspectos, de continuidade, sob outros, de ruptura.
Esse anteprojeto distingue-se da legislação em vigor, antes de tudo, pelo pro-
cesso de quase 18 meses de discussão coordenada pelo MEC, tendo como
interlocutores a comunidade acadêmico-científica, entidades de dirigentes univer-
sitários do setor público e do setor privado, entidades empresariais e de trabalha-
dores, e movimentos sociais urbanos e rurais.
Seus grandes eixos, entre os quais se destacam o fortalecimento do setor público
federal e a regulação do sistema federal público e privado, guardam bastante iden-
tidade com as propostas ou metas do plano de governo para a educação superior.
O fortalecimento do setor público federal dar-se-ia especialmente pela promoção
de efetiva autonomia universitária – em que se destaca a autonomia administrativa e
de gestão financeira, com orçamento global e repasse por duodécimos –, pela previsão
de sua sustentabilidade financeira e pela definição de metas precisas de expansão.
A regulação e o controle do sistema federal público e privado, que se dará pelo
Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), já em fase de im-
plantação, pelas normas muito mais rígidas quanto a credenciamento e
recredenciamento de cursos e instituições, assim como, com o estabelecimento de
critérios muito mais exigentes em relação ao vínculo institucional e à qualificação
dos docentes das IES universidades, centros universitários e faculdades, responde
a preocupações relativas principalmente às IES de natureza privada/mercantil.
A mais controversa das questões postas pelo anteprojeto é a do financiamento
da educação superior pública federal. Ela está presente no artigo 49, em que se
estabelece que “a União aplicará, anualmente, nas instituições federais de ensino
superior, nunca menos de 75% (setenta e cinco por cento) da receita constitucio-
nalmente vinculada à manutenção e desenvolvimento do ensino” (artigo 49, caput).
Constitui-se um avanço a definição desse percentual, caso o Ministério da Fa-
zenda não lhe faça oposição clara ou velada. Entretanto, os recursos disso resultantes
se revelariam ainda insuficientes para as necessidades das Ifes, mesmo com a prevista
exclusão desse cálculo de um conjunto de recursos, receitas e despesas, tais como:
I – os recursos alocados às instituições federais de ensino superior
por entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica
e tecnológica e por suas congêneres privadas;
II – os recursos alocados às instituições federais de ensino superior
mediante convênios, contratos, programas e projetos de coopera-
ção, por órgãos e entidades públicas federais não participantes do
sistema federal de ensino superior, por outros órgãos e entidades
públicas de qualquer nível de governo, bem como por organizações
internacionais;
III – as receitas próprias das instituições federais de ensino superior,
geradas por suas atividades e serviços;
IV – as despesas que não se caracterizem como de manutenção e
desenvolvimento do ensino;
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

V – as despesas com inativos e pensionistas das instituições federais


de ensino superior, sem prejuízo de seus direitos específicos;
VI – as despesas referentes a ações e serviços públicos de saúde
promovidos pelos hospitais vinculados às instituições federais de
ensino, contabilizadas para efeito do cumprimento do disposto no
art. 198, § 2º da Constituição Federal e art. 77 do Ato das Disposi-
ções Constitucionais Transitórias; e
VII – as despesas com pagamentos de débitos judiciais originados
em legislação vigente no período anterior à promulgação desta Lei,
ou que resultem de atos posteriores que não tenham decorrido de
decisão emanada das instituições federais. (artigo 49; grifos nossos)

Seriam ainda insuficientes, porque, apesar dessas importantes exclusões, o


montante de recursos que esse índice de 75% proporcionará pode ser visto, ainda
assim, como provavelmente insuficiente para recuperar o déficit acumulado nos
últimos 15 anos – quando os recursos destinados à manutenção das Ifes reduzi-
ram-se gradativamente de 0,97% a cerca de 0,50% (talvez menos) do PIB –, que
provocou o “sucateamento” dos campi das Ifes, e para cobrir as necessidades
financeiras exigidas pela expansão prevista pela futura lei. Esta determina que, no
médio prazo, se eleve o total de matrículas no setor público da educação superior
a 40% do total de matrículas do sistema, que, por sua vez, deverá alcançar o
índice de 30% da faixa etária de 18 a 24 anos. Isso significa multiplicar por três
a atual população universitária brasileira e por cinco a do setor público.
É importante também sinalizar o que estabelece o parágrafo 4º desse artigo,
isto é, que as Ifes apliquem 12%, no mínimo, “de seus orçamentos de manuten-
ção e desenvolvimento do ensino em despesas de capital e despesas de custeio,
excluídas as despesas de pessoal, nos termos das leis que regem as finanças pú-
blicas”. Isso faz sentido, principalmente se for considerado que, nos últimos dez
anos, com pequenas oscilações, houve uma redução da ordem de 100 para 10
nos recursos para custeio e capital destinado pelo Tesouro ao conjunto das Ifes,
redução que seria a principal responsável pelo “sucateamento” dos campi fede-
rais acima mencionado.
Sobre a questão do financiamento das Ifes, é importante destacar a não-extinção
das polêmicas fundações de apoio institucional, vistas por seus opositores, em
geral preocupados com a natureza pública das IES apoiadas, como uma forma
velada, mas muito eficaz, de privatização do espaço público e de implementação
da autonomia financeira (Sguissardi, 2002 b). A extinção era proposta na primei-
ra versão desse anteprojeto. Sob pressão, em especial dos dirigentes das Ifes, via
sua associação nacional (Andifes), houve recuo oficial na segunda versão. Para se
garantirem mínimos de controle das IES apoiadas sobre o funcionamento dessas
organizações privadas, no artigo 61, das Disposições Transitórias, prevê-se uma
alteração na Lei 8.958, de 20 de dezembro de 1994, mediante adendo de um
parágrafo ao seu artigo 2º, nos seguintes termos:
Parágrafo único. São condições para credenciamento e renovação de
credenciamento de que trata o inciso III:
I – estatuto referendado pelo conselho superior da instituição apoiada;
II – órgão deliberativo superior da fundação integrado por no mínimo
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23

um terço de membros designados pelo conselho superior da instituição


apoiada; e
III – demonstrações contábeis do exercício social, acompanhadas
de parecer de auditoria independente, bem como relatório anual de
gestão, encaminhados ao conselho superior da instituição apoiada
para apreciação, em até sessenta dias após a devida aprovação pelo
órgão deliberativo superior da fundação.

O risco de ações que lesem o patrimônio público das Ifes existe e talvez não
compensem no longo prazo as eventuais vantagens da existência dessas funda-
ções. A autonomia universitária a ser garantida por essa lei deveria poder compor-
tar e garantir as ações, atualmente necessárias, dessas fundações, quando as Ifes
ainda se encontram privadas do efetivo usufruto do estatuto da autonomia. Se,
com o implemento da autonomia por essa futura lei, ainda persistirem obstáculos
à plena participação das Ifes autônomas em operações administrativo-financei-
ras, que hoje somente as fundações têm condições de executar e que sejam impres-
cindíveis à manutenção e funcionamento das Ifes, talvez seja muito mais reco-
mendável a abolição desses entraves via lei específica do que a convivência com os
riscos anteriormente mencionados.
Outro capítulo importante do anteprojeto diz respeito à regulação da educa-
ção superior no sistema federal de ensino.
São nove artigos (33 a 41) dedicados à definição da função regulatória da
União e dos mecanismos a serem utilizados para tanto, entre os quais os que
articulam as ações de avaliação do Sinaes e as medidas de pré-credenciamento,
credenciamento e recredenciamento das IES, e de autorização de cursos.
Resta saber se o Sinaes (e a Conaes) terá sucesso na sua delicada fase de implan-
tação gradativa do sistema de avaliação e se haverá de se impor como critério e
âncora dessa imprescindível função regulatória de um sistema que, em especial em
sua face privada e comercial, até o momento viu-se muito pouco cerceado por
critérios de qualidade em sua rápida e incontrolada expansão.
O anteprojeto demonstra a preocupação dos proponentes com a democrati-
zação interna da gestão – autonomia na indicação dos dirigentes – e também com
a democratização do acesso, incluindo, pela primeira vez, numa lei de reforma da
educação superior, questões polêmicas como a das denominadas ações afirmativas
ou de inclusão social. O acesso e a permanência, no sistema, de alunos egressos do
ensino médio público, de afrodescendentes e indígenas, com ações de “nivelamento
educacional”, fazem parte desse cuidado com a democratização do sistema.
Mas, exatamente por tratar-se de questão polêmica, as determinações legais
restringem-se ao âmbito das Ifes. O mesmo vale para a assistência estudantil, a
que essas instituições oficiais serão obrigadas a destinar no mínimo 9% de sua
verba de custeio (artigo 54).
Dada a questão polêmica, neste estudo já referida, da proposta incluída na
agenda do Acordo Geral de Comércio e Serviços (AGCS), da OMC, de regula-
mentação dos serviços educacionais, em relação ao que o Brasil ter-se-ia manifes-
tado contrário, porque a educação é um bem público de interesse nacional, causa
estranheza que, no parágrafo 4º do artigo 13, das Disposições Gerais, se reconhe-
ça e permita a participação do capital estrangeiro nas entidades mantenedoras de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24

IES privadas comerciais. Isso está explícito no anteprojeto ao se estabelecer que


“pelo menos 70% (setenta por cento) do capital total e do capital votante das
entidades mantenedoras de instituição de ensino superior, quando constituídas
sob a forma de sociedade com finalidades lucrativas, deverá pertencer, direta ou
indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos”. Faz
pequeno contrapeso a essa concessão às propostas da agenda do AGCS da OMC
a proibição da franquia no sistema de educação superior no país, estabelecida
pelo parágrafo 5º desse mesmo artigo.
A diferenciação institucional, tão incentivada nas “recomendações” do Banco
Mundial, é minorada, quando, no artigo 15, as IES são classificadas em universi-
dades, centros universitários e faculdades.
Todas as IES do sistema deverão observar um conjunto de diretrizes, cujas
conseqüências para sua não-observância não estão muito claras na lei. Entre ou-
tras diretrizes constantes do artigo 17, parágrafo 4º, podem ser destacadas as se-
guintes:
I – implementação de planos de carreira, bem como de capacitação
e treinamento, para docentes e pessoal técnico e administrativo;
II – divulgação pública de critérios de seleção para admissão de
docentes e pessoal técnico e administrativo;
III – avaliação institucional interna e externa, abrangendo seus
cursos e programas, com a participação de docentes, estudantes,
pessoal técnico e administrativo e representantes da sociedade civil.

Cada tipo de IES deverá, para fazer jus a sua denominação – universidade,
centro universitário e faculdade –, obedecer a alguns requisitos mínimos, em grau
de exigência decrescente.
Da universidade exige-se, entre outros:
I – estrutura pluridisciplinar, com oferta regular, em diferentes
campos do saber, de pelo menos dezesseis cursos de graduação ou
de pós-graduação stricto sensu, todos reconhecidos e com avaliação
positiva pelas instâncias competentes, sendo, pelo menos, oito
cursos de graduação, três cursos de mestrado e um curso de douto-
rado; [...]
III – um terço do corpo docente em regime de tempo integral ou
dedicação exclusiva, majoritariamente com titulação acadêmica de
mestrado ou doutorado;
IV – metade do corpo docente com titulação acadêmica de
mestrado ou doutorado, sendo pelo menos metade destes doutores;
e
V – indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. (artigo 18;
grifos nossos).

Enfatize-se igualmente o esforço de explicitar tanto as atividades-fim da


universidade como sua indissociabilidade:
A universidade, no exercício de sua autonomia, deve promover
concomitantemente:
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25

I – geração de conhecimentos, tecnologias, cultura e arte;


II – disseminação e transferência de conhecimentos e tecnologias,
preservação e difusão do patrimônio histórico-cultural, artístico e
ambiental;
III – formação acadêmica e profissional em padrões de qualidade
reconhecidos nacional e internacionalmente; e
IV – articulação com a sociedade, visando contribuir por meio de
suas atividades de ensino, pesquisa e extensão para o desenvolvi-
mento educacional, socioeconômico e ambiental sustentável de sua
região. (artigo 19)

As exigências para os centros universitários são proporcionalmente menores;


para as faculdades são ainda menores do que as cobradas aos centros (pelo menos
um curso e o mínimo de um quinto dos docentes com mestrado ou doutorado).
A atualização no tempo dessas exigências é proposta como atribuição das
Conferências Nacionais de Educação Superior a serem realizadas no mínimo a
cada quatro anos. Essas conferências teriam também a atribuição de rever os
parâmetros de financiamento das Ifes (artigo 60).
A principal observação crítica a ser feita é que, apesar da enorme diferença
quanto ao grau de exigência requerido das universidades e das faculdades, por
exemplo, a validade dos diplomas e certificados concedidos por umas e outras
será legalmente a mesma em todo o território nacional.

Considerações finais
Se o país não estivesse vivendo a crise política – do governo e do seu principal
partido – que fragiliza inegavelmente sua base de apoio no Congresso Nacional e
não fossem tão fortes os interesses do setor privado comercial da educação superi-
or representados nesse espaço político, talvez fosse correto prever a aprovação de
uma lei que, com todas as suas eventuais limitações, pudesse significar uma rup-
tura bastante significativa com o processo de reforma da educação superior em
curso nesta última década.
Entretanto, a crise existe e são muito profundas as marcas de um sistema uni-
versitário, no Brasil, caracterizadamente neoprofissional, em que mais de 90%
das instituições se identificam como instituições ou universidades apenas de ensi-
no. É forte a tendência de, mesmo as universidades que desenvolvem traços níti-
dos do modelo humboldtiano ou de pesquisa, tendo em vista a penúria de verbas
e os baixos salários, estarem se tornando universidades heterônomas, isto é, cuja
agenda de pesquisa e de criação de novas carreiras está obedecendo cada vez mais
a interesses externos vinculados a prioridades do mercado ou de agências que
valorizam certo tipo de pesquisa operacional muito mais do que a pesquisa básica
ou de áreas não valoradas do ponto de vista mercantil. São cada vez mais eviden-
tes as marcas da competição no campo científico-acadêmico, seja em razão da
gratificação de estímulo à docência (GED), seja pelo produtivismo acadêmico
engendrado em especial pelo modelo de avaliação da Capes, seja pela disputa
acirrada entre docentes pesquisadores pelos sempre insuficientes recursos destina-
dos à ciência e tecnologia. Finalmente, é grande o peso das estruturas vigentes na
educação superior no país, fortalecidas por “reformas pontuais” via legislação
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
26

específica do período FHC e também do período Lula. Essa legislação não se


revoga de um dia para outro, nem se desfazem e superam as estruturas que nelas se
apóiam porque uma nova lei inovadora, propondo ruptura do processo vigente,
foi aprovada.
Diante disso, pode-se levantar como hipótese plausível que são pequenas as
chances de esse anteprojeto de lei ser aprovado pelo atual Congresso Nacional e
ainda mais remotas as chances de que venha a sê-lo sem alterações importantes
propostas pelos representantes dos interesses contrariados, isto é, os que vêem
nessa eventual futura lei um instrumento à disposição do Estado para promover o
fortalecimento, ainda que limitado, do setor público e para regular em especial o
setor privado comercial. A perspectiva de diminuição das facilidades de expansão
do privado, com fins lucrativos, isto é, de redução da lucratividade dos negócios
no quase-mercado da educação superior, tenderá a ser o motor da desqualificação
desse anteprojeto, elaborado com audiência bastante respeitosa da comunidade
dos interessados e ancorado em uma concepção de universidade que retoma ban-
deiras históricas por uma universidade que se contraponha à universidade mundi-
al da globalização ou ao modelo anglo-saxão neopragmático e eficientista.

Piracicaba, 11 de novembro de 2005

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45, 46 e § 12, 52, parágrafo único, 54 e 88 da Lei n° 9.394, de 20 de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
27

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ANEXO I

PLANO DO GOVERNO LULA PARA A EDUCAÇÃO – 2003–2006


UMA ESCOLA DO TAMANHO DO BRASIL
Educação Superior
[...]
Assim os compromissos básicos do nosso governo com a educação superior são:
A. a promoção da autonomia universitária e da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão nos termos constitucionais (artigo 207 da CF);
B. o reconhecimento do papel estratégico das universidades, em especial as do
setor público, para o desenvolvimento econômico e social do país;
C. a consolidação das instituições públicas como referência para o conjunto das
IES do país;
D. a expansão significativa da oferta de vagas no ensino superior, em especial no
setor público e em cursos noturnos;
E. a ampliação do financiamento público ao setor público, revisão e ampliação
do crédito educativo e criação de programa de bolsas universitárias, com recur-
sos não vinculados constitucionalmente à educação;
F. a defesa dos princípios constitucionais da gratuidade do ensino superior públi-
co (artigo 206, IV, da CF);
G. o envolvimento das IES, em especial as do setor público, com a qualificação
profissional dos professores para a educação básica, em cursos que garantam
formação de alta qualidade acadêmico-científica e pedagógica e associem ensi-
no, pesquisa e extensão.

Propostas
1. Ampliar, em quatro anos, as vagas no ensino superior, em taxas compatíveis
com o estabelecido no PNE (prover, até o final da década, a oferta da educa-
ção superior para, pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos).
2. Ampliar a oferta de ensino público universitário, de modo a projetar, no médio
prazo, uma proporção de no mínimo 40% do total de vagas, prevendo inclu-
sive a parceria da União com os Estados na criação de novos estabelecimentos
de educação superior (meta referenciada em dispositivo do PNE aprovado pelo
Congresso Nacional e vetado pelo presidente da República).
3. Promover o aumento anual do número de mestres e de doutores formados no
sistema nacional de pós-graduação em pelo menos 5%, em conformidade com
meta estabelecida pelo PNE.
4. Promover a autonomia universitária nos termos constitucionais, vinculando-a
à democracia interna, baseada na tomada de decisões por órgãos colegiados
representativos e no controle social mediante mecanismos abertos de prestação
de contas e de avaliação institucional.
5. Revisar a legislação de escolha de dirigentes nas Ifes compatibilizando-a com o
princípio constitucional da autonomia universitária.
6. Estabelecer e implantar medidas que visem diminuir a desigualdade de oferta
de cursos e vagas de graduação e pós-graduação em termos regionais e de
interiorização.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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7. Planejar e incentivar, na graduação e pós-graduação, a oferta de cursos e vagas


em áreas de conhecimento que melhor respondam às necessidades do projeto
nacional de desenvolvimento.
8. Estabelecer mecanismos e critérios que superem os limites do atual processo de
seleção e considerem a possibilidade de novas formas de acesso ao ensino supe-
rior, em especial para negros e estudantes egressos da escola pública. Tal medi-
da deve se fazer acompanhar, quando necessário, de programas de nivelamento
de conhecimento sob a responsabilidade das instituições de ensino superior.
9. Estabelecer medidas com vistas a reduzir a evasão escolar.
10. Implantar de forma progressiva uma rede universitária nacional de ensino
superior à distância, com exigente padrão de qualidade.
11. Ampliar os programas de iniciação científica (PET e Pibic) e criar programas
de iniciação à docência e à extensão.
12. Rever o atual sistema de avaliação que inclui o Exame Nacional de Cursos -
ENC ou Provão e implantar um sistema nacional de avaliação institucional a
partir, entre outras, da experiência do Programa de Avaliação Institucional das
Universidades Brasileiras (Paiub).
13. Revisar as carreiras e matrizes salariais dos docentes e funcionários técnico-
administrativos das Ifes (universidades e Cefets) com base em parâmetros de
qualificação e desempenho, e adoção de planos de qualificação profissional
para os funcionários técnico-administrativos.
14. Revisar as atribuições e a composição (representatividade) do Conselho Naci-
onal de Educação (CNE).
15. Ampliar a supervisão, pelo poder público, da oferta e expansão dos serviços
públicos de educação superior prestados por IES públicas e privadas, respeita-
da a autonomia universitária.
16. Aperfeiçoar e aplicar a atual legislação sobre reconhecimento ou renovação da
condição de universidade atribuída às IES públicas ou privadas, com base em
procedimentos definidos pelo sistema nacional de avaliação institucional.
17. Redefinir os critérios para autorização de funcionamento de novos cursos,
para reconhecimento dos cursos autorizados e em funcionamento, e para
credenciamento e recredenciamento das IES.
18. Substituir o atual sistema de crédito educativo (Fies) por um novo Programa
Social de Apoio ao Estudante, com crédito educativo para 396 mil estudantes,
que obedeça a critérios de carência dos candidatos e de qualidade comprovada
da IES e dos cursos que freqüentarem, conforme meta do PNE aprovado pelo
Congresso Nacional e vetado pelo presidente da República.
19. Criar um Programa de Bolsas Universitárias, no âmbito do Programa Nacio-
nal de Renda Mínima, para beneficiar 180 mil estudantes carentes que estu-
dem em cursos de qualidade comprovada e que, em contrapartida, realizem
trabalho social comunitário.
20. Estabelecer novo marco legal para as Fundações de Apoio Institucional (FAI)
criadas nas IES públicas, regulamentando suas atribuições na prestação de ser-
viços às IES, ao setor produtivo e à sociedade, de modo a garantir seu estrito
controle pela respectiva IES, sua submissão às diretrizes maiores da IES, o re-
torno dos recursos financeiros e patrimoniais auferidos em suas atividades à
IES, e impedir sua utilização por interesses de indivíduos ou grupos.
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31

21. Implementar programas nacionais de recuperação, ampliação e transforma-


ção das bibliotecas universitárias.
22. Implementar programas de incentivo às áreas de Artes nas IES.
23. Revisar a legislação e o estatuto dos hospitais universitários, para integrar
suas atividades acadêmicas de ensino e pesquisa com a necessária qualidade de
suas atividades assistenciais.
24. Envolver as universidades nos programas de ampliação de emprego e renda, e
de formação e qualificação profissional dos trabalhadores.
25. Envolver as universidades nos programas de apoio e difusão tecnológica às
micros, pequenas e médias empresas.

O financiamento público da educação no Brasil


As propostas de ação do governo Lula para superar a grave situação educacional
atual devem estar em consonância com as reivindicações da sociedade civil orga-
nizada refletidas nos avanços políticos feitos no âmbito do Congresso Nacional
quando da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE).
Uma das ações prioritárias do governo Lula nessa direção será reexaminar os
vetos do presidente Fernando Henrique ao PNE, criando as condições para que,
através do esforço conjunto da União, Estados, Distrito Federal e municípios, o
percentual de gastos públicos em educação em relação ao PIB sejam elevados para
o mínimo de 7% no período de dez anos.

Coligação Lula Presidente, outubro de 2002.


UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
O Companheiro liberou:
o caso dos transgênicos no governo Lula
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2

O COMPANHEIRO LIBEROU: O CASO DOS TRANSGÊNICOS NO GOVERNO LULA

Gabriel Bianconi Fernandes


Engenheiro agrônomo e assessor técnico
da Assessoria e Serviços a Projetos em
Agricultura Alternativa (AS-PTA)

Principalmente pela força que ganhou a candidatura de Lula, a corrida presiden-


cial de 2002 marcou a história recente da política no Brasil. O sentimento predo-
minante à época – “desta vez Lula chegará lá” – reavivou esperanças na socieda-
de, ansiosa por transformações, trouxe novo gás ao debate sobre projetos para o
desenvolvimento do país e um voto de confiança à classe política.
Ao mesmo tempo, Lula impôs que, se fosse para perder sua quarta eleição, não
concorreria, e o pragmatismo passou, então, a prevalecer sobre os ideais partidá-
rios. Assim, a conformação da chapa “Lula Presidente” com partidos que tradici-
onalmente não compartilharam dos mesmos ideais do Partido dos Trabalhadores
(PT) foi um sinal de alerta, confirmado pela divulgação da Carta ao Povo Brasi-
leiro, em junho de 2002. Nela, as medidas que hoje caracterizam a atuação do
Ministério da Fazenda são enfatizadas, destacando-se a geração de superávit pri-
mário e o aumento das exportações. Depois de ganhas as eleições e transcorridos
alguns meses, à medida que não surgiam sinais de que qualquer transformação
estivesse em curso, cresceram as críticas de aliados e de membros do próprio parti-
do à forma como o governo vinha sendo conduzido.
Uma vez com o comando do país em mãos, o governo foi crescentemente dando
sinais de que a busca pela maioria no Congresso, que teoricamente lhe asseguraria
maior “governabilidade”, havia se tornado uma verdadeira obsessão, sendo recor-
rentemente justificativa para o abandono dos ideais que constituíram o PT e das
propostas que motivaram eleitores a votar em Lula. Talvez estivesse aqui a oportu-
nidade única, histórica, que Lula teve e desperdiçou. A cúpula do governo petista
não soube (ou não quis) inovar politicamente. As mais de 53 milhões de pessoas
que votaram em Lula esperavam mudanças e estavam dispostas a dar o apoio polí-
tico e o respaldo social que seriam necessários para sustentar o governo nas ocasiões
em que fossem adotadas medidas contrárias ao interesse dos setores que se benefici-
am da ordem estabelecida. Lula foi eleito para promover mudanças, mas elas não
ocorreram, muito menos na forma de fazer política, e o conservadorismo tomou
conta do núcleo de decisão do governo. O apoio concreto da maioria da sociedade
foi trocado pelo virtual apoio da maioria no Congresso. O governo popular negou
sua identidade e deu as costas ao povo. Deu as costas também a uma parcela de seus
integrantes, tanto que os parlamentares petistas que se mantiveram fiéis às posições
históricas do partido e não se renderam às “forças pragmáticas” são tidos pela
cúpula do governo como um verdadeiro estorvo.
A tendência continuísta que marca a gestão petista pode ser ilustrada em
diferentes áreas. Este texto, certo de ser incompleto, procura apresentar essa
tendência a partir da questão dos transgênicos, discutindo a forma como esse
tema foi tratado pelo governo desde a legalização de plantios clandestinos até
seu empenho para aprovar uma lei de biossegurança que sofreu forte oposição
da sociedade civil organizada e recebeu aplausos de ruralistas e das empresas de
biotecnologia.
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3

Os compromissos de campanha
Durante a corrida presidencial de 2002, a Campanha Por um Brasil Livre de
Transgênicos1 enviou enquete a cinco candidatos questionando-os sobre as políti-
cas que adotariam em relação aos transgênicos, caso fossem eleitos. Lula foi um
dos três que responderam às perguntas e, na ocasião, formalizou o compromisso
de apoiar uma moratória à liberação do cultivo comercial e da comercialização de
transgênicos no Brasil por tempo indeterminado e de manter uma política de
controle rigoroso de atividades com produtos transgênicos.
Seu compromisso com a moratória aos produtos transgênicos até que todas as
dúvidas relativas à sua segurança para a saúde e o meio ambiente, assim como às
questões relativas ao mercado, estivessem resolvidas foi firmado também em dife-
rentes momentos do programa de governo do PT (no Programa Meio Ambiente e
Qualidade de Vida,2,3 no Programa Vida Digna no Campo4 e duas vezes no Pro-
grama Fome Zero5).
Antes disso, ainda em 2001, em visita à comunidade de agricultores familiares
de São Mateus do Sul, no Paraná, durante a Caravana da Agricultura Familiar,
Lula disse que seria “no mínimo burrice” liberar os transgênicos no Brasil. E
continuou afirmando que “eu sou radicalmente contra [a liberação dos
transgênicos] e acho um retrocesso o governo fazer isso. Isso, na verdade, está
acontecendo porque, mais uma vez, a elite política deste país se rende ao fascínio
de uma multinacional”.6 Assim, fica a pergunta: o candidato mentiu a seus eleito-
res ou mudou de posição após assumir o comando do Planalto? Se o fez, ainda
não comunicou os motivos que o levaram a rever sua posição.

1
Ver anexo.
2
Um breve diagnóstico da situação do marco regulatório existente no país foi feito na página 12, assim como uma crítica
à legitimidade da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio): “De acordo com o princípio da precaução,
consagrado na Agenda 21, quanto ao potencial impacto dos transgênicos à saúde e ao meio ambiente, o Brasil ainda não
pode comercializar os organismos geneticamente modificados (OGMs). Mas o atual governo vem pressionando o Congres-
so a votar projeto de lei que facilita a liberação dos transgênicos, sem a necessidade de realizar estudos toxicológicos ou
ambientais preliminares. Recentemente, o Executivo baixou uma Medida Provisória (2.137/2000), conferindo amplos
poderes decisórios para a CTNBio, que já se mostrou abertamente favorável aos OGMs e tem tido, por isso mesmo, sua
representatividade diretamente questionada”.
3
Consta entre as suas propostas: [...] “Estabelecer ações integradas de controle, fiscalização e repressão a plantios
clandestinos e ilegais no país“ (p. 28, grifo nosso).
4
Lê-se na página 22 do Programa Vida Digna no Campo: “Manter a moratória provisória na produção, comercialização e
consumo dos produtos transgênicos, sem desprezar os investimentos públicos na pesquisa, até a definição do perfil do
mercado desses produtos, e o conhecimento científico sobre os seus reais impactos na saúde humana e no meio ambiente”.
5
A relação com a segurança alimentar é feita na página 50 do Programa Fome Zero: “A produção de sementes
transgênicas e sua disseminação entre os agricultores é também um problema de segurança alimentar”.
E na página 87 consta a seguinte análise política sobre fome, oferta e acesso a alimentos e o papel dos transgênicos:
“Coerentemente com o diagnóstico realizado de que o problema da fome do Brasil, hoje, não é a falta de disponibilidade
de alimentos, mas o acesso a eles, não concordamos com a justificativa de que a produção de alimentos transgênicos
ajude a combater a fome no país. Pelo contrário, a liberação da produção de transgênicos promoverá uma maior
dependência dos produtores dessa tecnologia que, além de mais cara, é monopólio de empresas multinacionais (cerca de
90% das variedades em teste no Brasil são patenteadas por apenas seis empresas multinacionais, que estão entre as
maiores do mundo). Além disso, agravaria a atual dependência por outras tecnologias associadas, como uso de herbicidas
e outros insumos, para os quais essas plantas são resistentes. O cultivo de produtos transgênicos poderá prejudicar o
acesso aos mercados externos importantes para o Brasil, que exigem áreas livres de transgênicos e pode promover uma
poluição genética com resultados imprevisíveis. Dessa forma, o Projeto Fome Zero apóia as propostas da Campanha
Nacional Por um Brasil Livre de Transgênicos, que envolve diversas entidades e ONGs ligadas aos movimentos sociais e
ambientais” (grifo nosso).
6
Depoimento gravado em vídeo (arquivo AS-PTA).
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4

Monsanto e União em Ação


Em 1998, após a aprovação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio)7 para uso comercial da soja transgênica, o Instituto Brasileiro de Defe-
sa do Consumidor (Idec) ajuizou ação cautelar para suspender a autorização con-
cedida pela CTNBio para a comercialização e o plantio da soja transgênica Roundup
Ready, da Monsanto, sem a realização de estudos e relatórios de impacto ambiental
(EIA/Rima) e da regulamentação da segurança alimentar do produto. Para refor-
çar a iniciativa, o Greenpeace se juntou à ação. Logo em seguida, o Idec ajuizou
também ação civil pública requerendo que nenhum organismo transgênico fosse
liberado no Brasil sem a realização dos estudos de impacto ambiental e das avali-
ações de riscos à saúde humana e sem a implementação de regras de rotulagem de
acordo com o Código de Defesa do Consumidor. Deu-se início, assim, à longa
disputa judicial envolvendo o uso de organismos transgênicos.
Após decisão liminar sobre a ação cautelar suspendendo a liberação da soja
transgênica, a 6a Vara Federal de Brasília determinou, em 2000, apreciando a
ação civil pública, que os organismos transgênicos deveriam obrigatoriamente
passar por estudos de avaliação de riscos ambientais e à saúde antes de serem
comercializados. Entre julgamentos em diversas instâncias, a liberação dos
transgênicos seguiu suspensa até o início de 2005, quando foi aprovada a nova
Lei de Biossegurança, a Lei 11.105/05 (note-se que as medidas provisórias que
liberaram a soja transgênica a partir de 2003 ferem decisões judiciais em vigor).
Destaca-se que, após o primeiro julgamento, a União se juntou à Monsanto para
recorrer contra a decisão.
Assim que Lula assumiu a presidência, a campanha pediu que o governo se retiras-
se da ação judicial que disputava ao lado da Monsanto contra o Idec e o Greenpeace.
O pedido foi ignorado. Também intercederam junto ao presidente, sem êxito, a mi-
nistra do Meio Ambiente, Marina Silva (PT/AC), e o advogado geral da União, Álva-
ro Ribeiro da Costa. Foi ignorado, também, o ofício do núcleo agrário do PT na
Câmara Federal encaminhado ao ministro-chefe da Casa Civil, reivindicando que a
União deixasse de ser parte no recurso ora em julgamento no Tribunal Regional Fede-
ral. O fato de essa investida não ter tido sucesso foi o primeiro grande sinal de alerta
sobre a postura que o governo viria a assumir na questão.
Um aspecto fundamental envolvendo os transgênicos na Justiça deve ser desta-
cado: nem a soja nem qualquer outro organismo geneticamente modificado ja-
mais estiveram proibidos no país. A Monsanto, multinacional do ramo de semen-
tes, transgênicos e agrotóxicos, que detém cerca de 90% do mercado mundial de
transgênicos, preferiu investir no contencioso judicial a submeter seus produtos a
estudos de biossegurança.

7
Órgão vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia encarregado de emitir pareceres técnicos sobre a biossegurança
de organismos transgênicos. À época constituído por 18 titulares, seus suplentes e uma secretaria executiva também
vincula ao Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT). A CTNBio era composta por representantes de seis ministérios
(Ciência e Tecnologia, Saúde, Meio Ambiente, Educação, Relações Exteriores e Agricultura), dois representantes da
sociedade civil (defesa do consumidor e proteção à saúde do trabalhador), um das indústrias do setor de biotecnologia
e por oito pesquisadores.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

A “herança maldita abençoada”


A situação dos plantios ilegais de soja transgênica no Sul encontrada pelo gover-
no Lula foi logo classificada por ele mesmo como sendo mais um naco da “heran-
ça maldita” recebida do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Somente no início de 2003, o governo acordou para o problema da safra gaú-
cha, já debaixo da pressão dos agricultores gaúchos mobilizados pela Federação
da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) e apoiados pelo governador Germano
Rigotto (PMDB).
Do seu lado, as organizações da sociedade civil já vinham discutindo a crise
anunciada da safra gaúcha desde antes da posse do novo governo. Para isso,
foi convocado um amplo seminário em Brasília que contou com a participa-
ção de representantes de 85 organizações da sociedade civil. A solução propos-
ta foi a exportação, considerando que a omissão do governo FHC, da Monsanto
e da Farsul provocou uma situação calamitosa que arruinaria os agricultores
gaúchos se aplicada a lei com rigor, isto é, se a soja fosse destruída. Alguns
técnicos e responsáveis do governo afirmaram que tal solução, ou seja, a ex-
portação, seria impossível, pois “faltaria soja para o mercado interno” se esse
volume fosse exportado. Falácia. As previsões de exportação para o ano eram
de mais de 31 milhões de toneladas de equivalente grão e ainda sobrariam
quase 19 milhões para o mercado interno, mais do que o suficiente para abas-
tecer as indústrias.
A falta de controle da situação, revelada pelo desencontro dos números usa-
dos, jogou a favor do fato consumado, e o governo ficou à vontade para passar a
fatura a seu antecessor. Para justificar a recusa à sugestão feita pela Campanha
Por um Brasil Livre de Transgênicos de exportar a parcela contaminada da safra,
o presidente afirmou que não seria possível exportar toda a safra de soja, alegan-
do que toda ela estaria contaminada. O ministro Roberto Rodrigues, em declara-
ção aos jornais após a liberação, falou em 8% da safra nacional, correspondentes
a 4 milhões de toneladas. Anteriormente, alguns membros do governo de vários
ministérios haviam falado em 30% da safra nacional, ou 15 milhões de tonela-
das. Outros haviam precisado estimativas de 70% da safra do Rio Grande do Sul,
30% da safra do Paraná e 15% da safra do Mato Grosso, o que resultaria em 9,6
milhões de toneladas. Ninguém informou a fonte desses dados.
Formalmente, o governo convocara, para tratar do assunto, uma comissão
interministerial coordenada pela Casa Civil, que contava com a participação de
mais oito ministérios: Meio Ambiente, Agricultura, Saúde, Ciência e Tecnologia,
Desenvolvimento Agrário, Justiça, Segurança Alimentar e Desenvolvimento, In-
dústria e Comércio Exterior. Em sua primeira reunião, a comissão traçou como
meta definir o que fazer com a safra de soja contaminada do Rio Grande do Sul e
como evitar que esse problema se repetisse no ano seguinte, determinar a organi-
zação institucional do governo para dar um tratamento adequado aos transgênicos
e tirar a posição do governo quanto à ação que corria na Justiça. Na prática, essa
comissão não operou e acabou sendo dissolvida, tendo a decisão ficado restrita a
um pequeno grupo que incluía os ministros José Dirceu (Casa Civil), Marina Silva
e Roberto Rodrigues (Agricultura). Não é difícil notar que a composição desse
grupo menor teve como objetivo isolar a ministra do Meio Ambiente, a qual dizia
querer que aquela fosse a última safra transgênica do país.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6

Apesar da ausência de dados oficiais, sabia-se à época que o plantio com se-
mentes contrabandeadas da Argentina estava concentrado no estado do Rio Gran-
de do Sul. Mais tarde, em 2004, o Ministério da Agricultura informou sobre a
safra de soja 2002–2003: dos cerca de 4 milhões de toneladas de soja transgênica,
no máximo, em um total de mais de 50 milhões de toneladas, 93% se concentra-
vam no Rio Grande do Sul8 (65% da área total com soja no estado).

Os primeiros movimentos
A forma de o governo resolver a situação foi editar uma medida provisória (a MP
113) para legalizar a comercialização da soja produzida clandestinamente, permi-
tindo que ela fosse vendida tanto no mercado interno como no externo.
Com outro tipo de atitude nessa ocasião, a situação de descontrole sobre os
plantios clandestinos vivenciadas nas safras seguintes poderia ter sido completa-
mente diferente. Para que isso acontecesse, o governo deveria ter agido no sentido
de reprimir a contravenção, baixando medidas para evitar a multiplicação de
plantios ilegais e que visassem à recomposição de estoques de sementes convenci-
onais e à reconversão das áreas. Mas o governo fez o contrário: cedeu à pressão
dos ruralistas e do governador do Rio Grande do Sul e, apesar de criticar a situa-
ção recebida pelo governo anterior, abençoou-a.

Da medida provisória ao projeto de lei


Ao chegar ao Congresso, a MP tinha um prazo curto para ser votada antes de
fechar a pauta. Na votação, a MP poderia ser mantida na íntegra, rejeitada na
íntegra, ou sofrer alterações e se transformar num projeto de lei de conversão. No
total, foram apresentadas 72 propostas de emenda, das quais 63 partiram dos
ruralistas, com vistas a transformar a MP em um projeto que facilitasse o cultivo
de transgênicos no país. As nove restantes vieram dos deputados Fernando Ferro
(PT/PE), Luci Choinacki (PT/SC) e Janete Capiberibe (PSB/AP), que propunham
restrições à liberação.
Na ocasião, as entidades e movimentos da campanha se reuniram com lideran-
ças do Congresso e ministros para discutir as posições do governo e como seria a
passagem da MP pelo Congresso. Todos, com exceção da Agricultura, responde-
ram que a posição do governo era pela manutenção do texto original. No mesmo
período, desfrutando de grande liberdade, o ministro da Agricultura foi à impren-
sa declarar que “esta provavelmente será a última safra antes de o Congresso
liberar a produção de transgênicos”.
O parecer do deputado Josias Gomes (PT/BA), relator da MP no Congresso, só
foi divulgado na manhã em que foi votado e sugeriu a manutenção do texto na
íntegra, com rejeição das 72 emendas apresentadas. No entanto, o governo nego-
ciou algumas alterações com a bancada ruralista com o argumento de que isso seria
necessário para garantir a aprovação do parecer no plenário. Os ruralistas ameaça-
vam votar um substitutivo global, caso não houvesse concessões na proposta do

8
Dados do Ministério da Agricultura fornecidos ao deputado Edson Duarte (PV/BA) em resposta a requerimento de pedido
de informação (nº 2.081, de 2004).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

relator. As concessões feitas incluíam o aumento do prazo para comercialização da


safra, o afrouxamento das penalidades nos casos de descumprimento da norma, a
permissão de acesso a mecanismos oficiais de crédito agrícola e financiamento e
uma tolerância de 1% de contaminação com soja transgênica para rotulagem.
Com essas mudanças, o governo deu um sinal aos agricultores dizendo que a
infração não era tão grave e que o governo não estava tão empenhado em puni-
los. Ou seja, arriscar a ilegalidade de novo na próxima safra poderia não parecer
tão perigoso.
Mas o que não estava escrito na MP era que, para conseguir esse acordo, mes-
mo com todas as alterações concedidas, o governo prometeu à bancada ruralista
encaminhar ao Congresso, no prazo de 30 dias, um projeto de lei regulamentando
a matéria de uma vez por todas. Segundo o acordo, o projeto de lei seria encami-
nhado em regime de urgência constitucional, ou seja, sem a necessidade de apreci-
ação por comissões, sendo levado a plenário em 45 dias. Nesse meio tempo, o
Ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, foi ao Rio Grande do Sul, em uma
solenidade dos que plantam ilegalmente soja modificada e, de lá, avisou que a
Casa Civil já estava encaminhando o projeto de lei ao Congresso.

O trenzinho da Monsanto
Ainda durante o governo FHC, a Monsanto convidou um grupo de parlamentares
para ir aos Estados Unidos visitar sua sede. As organizações da campanha souberam
da iniciativa e articularam uma ação de denúncia, que acabou por abortar a viagem.
Em junho de 2003, já sob Lula, a proposta foi retomada, mas com nova cara: o
convite foi feito pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, e as passagens seriam
pagas pela Associação Brasileira de Sementes (Abrasem), que tem a Monsanto como
afiliada – com desembolso estimado em R$ 231.288,00.9 Dessa vez, a viagem saiu, e
a maior parte da comitiva recebeu as passagens e uma ajuda de custo de US$ 600 em
espécie das mãos da embaixadora dos Estados Unidos em Brasília, Donna Hrinak.
Embarcaram no “trenzinho da Monsanto” os deputados federais Josias Gomes
(PT/BA), Nilson Mourão (PT/AC), Paulo Pimenta (PT/RS), Zé Geraldo (PT/PA),
Fernando Ferro, Givaldo Carimbão (PSB/AL) e Luiz Carlos Heinze (PP/RS). Além
de ir à sede da Monsanto em Saint Louis e a órgãos do governo norte-americano, a
comitiva foi à África do Sul, onde a multinacional produz sementes de espécies
transgênicas e mantém campos experimentais. A passagem pela África não poderia
deixar de incluir uma visita a um famoso parque nacional para um safári.
Pelo governo, também viajaram o assessor do ministro-chefe da Casa Civil,
Érico Feltrin, que acompanhou, pela Casa Civil, o processo de elaboração do
projeto de lei, e Marcos Afonso, diretor administrativo do Ministério das Rela-
ções Exteriores.
Indagado sobre os aspectos éticos da viagem, Feltrin respondeu: “Eu não tinha
analisado o assunto sob esse aspecto. Nossa intenção é ter acesso a todo tipo de
informação sobre o assunto”.10 No governo FHC, Érico Feltrin ocupara cargo de

9
Informação do jornal Folha de S.Paulo, de 18 de junho de 2003.
10
Idem.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8

confiança na equipe do ex-ministro da Agricultura, Marcus Vinícius Pratini de Mo-


rais, que, mais de uma vez, “anunciou” dos Estados Unidos que o Brasil havia libera-
do os transgênicos. Não por acaso, essas declarações foram feitas às vésperas de a
Monsanto divulgar, nos Estados Unidos, a seus acionistas seu balanço financeiro.
Integraram a comitiva a título de observadores dois assessores do PT na Câmara,
dois representantes de ONGs brasileiras (Instituto de Estudos Sociais e Econômicos/
Inesc e Centro de Pesquisa e Assessoria/Esplar), quatro cientistas e um representante da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No primeiro relato que divulga-
ram, os observadores destacaram que os parlamentares ficaram surpresos com a “reve-
lação” de que o Food and Drug Administration (FDA), órgão que regula alimentos e
medicamentos nos Estados Unidos, não faz qualquer teste para certificar a segurança
dos alimentos transgênicos e que a instituição apenas homologa o que as empresas
dizem. Apesar disso, a lavagem cerebral feita nos deputados funcionou. Quase todos
voltaram favoráveis à liberação dos transgênicos. O deputado Fernando Ferro é um
exemplo de parlamentar que tinha um passado ativo de crítico e voltou favorável.

Governo ignora sua MP 113


A passagem da MP 113 pelo Congresso deu origem à Lei 10.668, que estabelecia
que toda a soja transgênica da safra 2002–2003 deveria ser segregada da conven-
cional e identificada com rótulos sempre que a contaminação com transgênicos
fosse superior a 1%. Além disso, o governo deveria ainda criar mecanismos de
incentivo à exportação da soja transgênica, bem como impedir que os grãos
transgênicos colhidos em 2003 fossem usados como sementes na safra 2003–2004.
A comprovação de que o governo – especificamente, o Ministério da Agricul-
tura – não controlou a soja transgênica colhida em 2003 partiu de um requeri-
mento de informação ao Ministério da Agricultura formalizado pelo deputado
federal Edson Duarte (PV/BA).11
Com apenas uma das repostas oficiais do Ministério. pode-se observar sua
política deliberada de “deixar rolar”, que contribuiu na prática para que vigoras-
se a “lei do fato consumado”.
Perguntou o requerimento:
Que destino foi dado à soja transgênica que está sendo colhida,
submetida à MP 113? Que volume destinou-se ao mercado interno
e ao mercado externo? Que Unidades da Federação estão recebendo
esta soja? Para que países está sendo ou será exportada?

E a resposta dada foi:


Segundo o artigo 1º da Lei 10.688/03, a comercialização da safra
de soja 2003 é ação legal até o dia 31 de janeiro de 2004, sendo
vedada, entretanto, a sua utilização como grão. Desta forma, o
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, até o momen-
to, tem conferido aos grãos comercializados, dentro de suas funções
de rotina, o mesmo tratamento do grão convencional, sendo
inviável a determinação precisa do destino da parcela transgênica.

11
Requerimento de Informação nº 2.081, de 2004.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
9

O governo nunca teve a preocupação de controlar o cultivo ilegal de soja


transgênica no país. O fato de o Ministério da Agricultura não produzir, ou não
divulgar, estatísticas sobre a real extensão do problema também contribuiu, de
maneira decisiva, para que estimativas propositadamente infladas sugerissem sem-
pre um quadro de difícil reversão. Prova dessa omissão foi a declaração de um
técnico do Ministério da Agricultura que disse ao jornal Folha de S.Paulo que,
após a liberação da comercialização, nem os produtores nem o ministério se pre-
ocuparam em fazer a segregação entre a soja transgênica e a convencional.12
A legislação brasileira de rotulagem prevê uma divisão de tarefas entre órgãos
dos ministérios da Agricultura, da Saúde e da Justiça ao longo da cadeia de pro-
dução de alimentos. O Ministério da Agricultura é a encarregado de fiscalizar as
lavouras; o da Saúde, as indústrias; e o da Justiça, o comércio. A cooperação entre
esses órgãos, sobretudo por meio da troca de informações, permitiria a
rastreabilidade dos produtos e sua rotulagem. Para isso, o ponto de partida seri-
am as informações das fiscalizações a campo, nunca repassadas pelo Ministério da
Agricultura aos demais ministérios. Assim, a rotulagem de alimentos e derivados
de transgênicos continua até hoje em vigor, mas no papel.
E o deputado Duarte conclui: “As respostas que obtive do Ministério da Agri-
cultura mostram que o governo não estava preparado para liberar a comercialização
da soja e fazer cumprir a lei. Se não estava preparado, por que liberou?”.

A segunda MP, a 131


O projeto de lei não avançou com a velocidade que o ministro Roberto Rodrigues
gostaria, e o governo já havia sinalizado que não reprimiria o plantio de soja
transgênica ilegal. Isso gerou o seguinte resultado: com a proximidade do plantio
de uma nova safra, novamente ruralistas gaúchos capitaneados pela Farsul e pelo
governador do estado pressionaram por uma nova MP, dessa vez com a exigência
de que fosse liberado o plantio da soja RR na safra 2003– 2004.
O governo, com sua postura de não desagradar àqueles que sempre foram
considerados adversários, consentiu em publicar mais uma medida provisória.
Um primeiro texto foi acordado em reunião que o presidente Lula convocou com
o governador Germano Rigotto (PMDB/RS) – levado a Brasília em jatinho da
Força Aérea Brasileira –, o ministro da Casa Civil, parlamentares pró-transgênicos
(Paulo Paim e Paulo Pimenta, ambos do PT/RS, e Josias Gomes, do PT/BA) e o
secretário executivo do Ministério da Agricultura, para decidir a questão. A mi-
nistra Marina Silva sequer foi avisada da reunião e, por estar fora de Brasília,
ordenou que o secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente, Cláudio
Langone, fosse até o Palácio do Planalto e pedisse que a MP não fosse assinada
antes de uma conversa pessoal dela com o presidente.
Lula sabia que liberar o plantio da soja transgênica via medida provisória seria
uma medida bastante impopular. Assim, viajou para o exterior e deixou a tarefa
para o vice-presidente.

12
Informação do jornal Folha de S.Paulo, de 23 de agosto de 2003.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

A atitude do presidente foi alvo de forte mobilização da sociedade, que en-


viou e-mails contra a proposta ao vice-presidente José Alencar, ao presidente
Lula e aos ministros, mas enviou flores à ministra Marina Silva.
Nesse período, participavam do Acampamento Nacional contra os
Transgênicos, pela Soberania Nacional e pela Alimentação Saudável, em Brasília,
mais de 400 trabalhadores e trabalhadoras rurais de todas as regiões do Brasil.
Integrantes de diversos movimentos sociais e organizações de agricultores, como
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Pasto-
ral da Terra (CPT), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movi-
mento de Atingidos por Barragens (MAB), a Articulação Nacional das Mulhe-
res Trabalhadoras Rurais (ANMTR), a Federação dos Trabalhadores na Agri-
cultura Familiar (Fetraf-Sul)/CUT, a Rede Ecovida de Agroecologia e a Articu-
lação do Semi-Árido Paraibano (ASA-PB), ficaram mais de um mês acampa-
dos em Brasília em protesto contra a liberação dos transgênicos. Além das
manifestações públicas, as pessoas acampadas também promoveram palestras,
debates e oficinas.
O acampamento e as manifestações contra a edição da medida provisória e
do projeto de lei receberam o apoio, entre outros, da Comissão para o Serviço
da Caridade, Justiça e Paz da CNBB, por meio do seu presidente, dom Aldo Di
Cillo Pagotto, bispo de Sobral (CE), e dos bispos dom Demétrio Valentini, de
Jales (SP), dom frei Luís Flávio Cappio, de Barra (BA), dom Pedro Luiz
Stringhini, bispo auxiliar de São Paulo, e de parlamentares, como a senadora
Fátima Cleide (PT/RO), que, do plenário do Senado, convidou seus colegas a
participarem das atividades previstas para o período em que os trabalhadores
permaneceriam acampados.
A Associação dos Magistrados do Brasil e a Associação Nacional de Procura-
dores também se posicionaram, alertando o vice-presidente sobre os riscos de
assinar uma medida considerada inconstitucional.
Toda essa pressão não conseguiu impedir que a MP fosse publicada em 26 de
setembro, autorizando o plantio de sementes de soja transgênica na safra 2003–
2004, mas constrangeu o governo como jamais se havia visto nesse campo e
rendeu capa dos principais jornais do país, chamando a atenção para a comple-
xidade do tema e para tantos problemas que o governo insistiu em esconder. A
sociedade ficou mais sensibilizada para o problema dos transgênicos.
Não fosse essa mobilização, que respaldou o esforço empreendido pela mi-
nistra Marina Silva, apoiada pelo ministro Miguel Rosseto (Desenvolvimento
Agrário), o resultado seria certamente ainda pior. A MP assinada foi recupera-
da em uma série de pontos a partir do texto negociado com o governador
Rigotto.
Para justificar sua decisão, Lula adotou a argumentação do lobby pró-
transgênicos, dizendo que, àquela altura, não haveria sementes convencionais
em quantidade suficiente para abastecer os sojicultores do sul do país na safra
2003–2004. No entanto, havia cerca de 250 mil toneladas de mais de 40
variedades convencionais disponíveis para aquele estado, segundo dados do
próprio Ministério da Agricultura. Essas sementes seriam suficientes para co-
brir cerca de 5 milhões de hectares, ou seja, mais que a área total cultivada
com soja no estado.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11

Posteriormente, em junho de 2004, a China recusou quatro carregamentos da


safra 2003–2004. A soja exportada apresentava elevados níveis de contaminação
por fungicidas usados para tratar sementes, mas nunca grãos destinados ao consu-
mo. A conclusão óbvia é a de que, ao receberem a sinalização do governo de que
o plantio de soja transgênica estava liberado, os produtores estocaram as semen-
tes convencionais que haviam comprado e recorreram às transgênicas. Com a co-
lheita, produtores e empresas desovaram as sementes não-utilizadas misturadas
aos grãos colhidos. Como os níveis de contaminação foram bastante elevados,
sobretudo no primeiro carregamento, fica evidente que nunca faltou semente de
soja não-transgênica. Na tentativa de reverter a rejeição do produto, o ministério
da Agricultura enviou delegação à China. Sua posição foi a de que não havia
problema sanitário em jogo, mas sim a imposição de barreiras comerciais pelos
chineses. Com a MP 131, Lula novamente não só manteve, mas também estimu-
lou o plantio de soja transgênica no país.
Mas as manifestações e ações contrárias à MP 131 se multiplicaram tanto no
Congresso como fora dele. Dias após a publicação da MP, foi divulgada uma nota
pública de repúdio à MP. Em apenas dois dias de articulação, mais de dez senadores e
30 deputados e de dezenas de organizações da sociedade civil aderiram ao manifesto.
O senador pelo PSB do Amapá, Alberto Capiberibe, renunciou à vice-lideran-
ça do governo no Senado por ser contra a MP 131.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) enviou uma carta ao
presidente manifestando seu “desconforto pelo fato de, desde fevereiro passado
[2003], estar buscando dialogar, sem sucesso, primeiro em relação à edição da MP
113, e depois sobre o Projeto de Lei ainda em discussão e, agora, sobre a MP 131,
que trata de uma questão com evidente relação com o tema da Segurança Alimen-
tar e Nutricional”. A carta foi assinada por seu então presidente Luiz Marinho
(também presidente da CUT). Lula telefonou para Marinho e prometeu incorpo-
rar os grupos de trabalho do Consea nos debates sobre transgênicos.13
O Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu três pedidos de ações diretas de
inconstitucionalidade (Adin) visando à suspensão da MP. O primeiro a protoco-
lar a ação foi o Partido Verde (PV). Diversos parlamentares de vários partidos
acompanharam o deputado José Sarney Filho (ex-ministro de Meio Ambiente) ao
STF para a entrega da ação.
Dois dias depois do PV, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agri-
cultura (Contag) e o procurador geral da República, Cláudio Fontelles, ajuizaram
suas Adins.
A decisão da Contag em recorrer contra a MP 131 foi tomada em reunião com
representantes das Federações de Trabalhadores na Agricultura de todos os esta-
dos por 26 votos a um. Só a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag)
gaúcha votou contra.
O procurador geral da República decidiu tentar impugnar a MP após receber
representação assinada pela Associação Nacional dos Procuradores, pela Associa-
ção Nacional dos Juízes Federais e por outras entidades, solicitando a medida.

13
Informação do jornal Folha de S.Paulo, de 3 de outubro de 2003.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
12

Certamente, com o intuito de amenizar o enorme desgaste político provocado


pela edição da MP 131, o governo encaminhou, poucos dias depois, à Câmara
dos Deputados o projeto de lei de biossegurança razoável, como a ministra Marina
desejava, soubemos depois, para entregá-lo às raposas no Congresso.

O projeto de lei do governo


O projeto de lei do governo estava programado para atender a todos os anseios
dos ruralistas. Como foi relatado, só não o foi de imediato graças ao enorme
desgaste gerado pela publicação da MP 131.
Para elaborá-lo, o presidente Lula criou uma comissão interministerial que
trabalhou durante alguns meses até apresentar uma proposta. Concluída a minu-
ta, o presidente convocou uma reunião para definir a versão final do texto a ser
encaminhado ao Congresso. A imprensa, no entanto, divulgou que ele seria dife-
rente do produzido pelo grupo. Por determinação do presidente, o conteúdo do
projeto não foi divulgado, e os ministros participantes ficaram proibidos de dar
declarações a respeito.
A comissão interministerial operou quase que sem nenhuma influência da so-
ciedade civil, mas, para não dizer que não houve oportunidade de participar desse
processo, após inúmeros pedidos, algumas audiências foram realizadas na Câma-
ra, além de ter sido organizado um seminário, bastante desequilibrado em sua
composição e distribuição do tempo, é bom destacar.
Nesse meio tempo, Lula foi convencido a ouvir os especialistas, e a ministra
Marina deu seu primeiro sinal de condescendência. Um técnico da Empresa Brasi-
leira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), conhecido propagandista dos
transgênicos, apresentou seus argumentos ao presidente em reunião que não teve
direito ao contraditório. Marina não se esforçou para que o presidente também
recebesse especialistas com visão similar à do Ministério. Ao sair dessa reunião,
Lula disse estar “tecnicamente convencido das vantagens dos transgênicos”.
Após quatro meses de trabalho da comissão, o governo encaminhou seu proje-
to de regulamentação dos transgênicos ao Congresso no fim de outubro de 2003.
O texto foi considerado uma vitória do movimento ambientalista e da ministra
Marina Silva por preservar as competências dos ministérios envolvidos com o
tema e por determinar que qualquer produto transgênico só pudesse ser liberado
comercialmente após passar por avaliações de riscos e sobre sua conveniência eco-
nômica e social. A campanha avaliou que ele resolvia a maior parte dos conflitos
de interpretação sobre a legislação e encerraria o imbróglio legal que o governo
criara com a edição de medidas provisórias para legalizar o cultivo e
comercialização da soja transgênica.
Mas a aparente boa vontade do governo não passou de resposta momentânea
ao descontentamento dos diferentes setores da sociedade que se levantaram con-
tra a edição da segunda MP pelo governo para liberar a soja RR. Nos bastidores
do Congresso, foram costurados os acordos que garantiram a desconfiguração do
projeto original.
Em seu ponto mais polêmico, foi proposto que a CTNBio emitiria parece-
res prévios sobre pedidos de liberação comercial de organismos transgênicos,
que seriam vinculantes nos casos favoráveis à liberação (ou seja, quando a
CTNBio recomendasse a liberação, os ministérios seriam obrigados a acatar os
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13

pareceres e a emitir os registros; quando a CTNBio rejeitasse pedidos de libe-


ração de transgênicos, o processo se encerraria e não seguiria para os ministé-
rios) a avaliação pelos ministérios seria conduzida). O projeto de lei também
propôs a criação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), composto
por 11 ministros e incumbido de avaliar a conveniência e a oportunidade
socioeconômica de produtos em vias de liberação para uso comercial. O CNBS
só se reuniria por determinação do presidente da República ou solicitação de
qualquer um de seus membros.
Uma semana antes de o projeto de lei chegar à Câmara, foi lançada a Frente
Parlamentar pela Biossegurança, com 71 deputados federais e três senadores, lide-
rados (extra-oficialmente) pelo deputado João Alfredo (PT/CE). A Frente teve o
papel de puxar o debate no Congresso e mobilizar os parlamentares críticos aos
transgênicos durante sua passagem pelas duas Casas.

A MP marotamente modificada
Mesmo no calor da renúncia do senador João Capiberibe (PSB/AP) à vice-lide-
rança do governo no Senado e da saída do deputado Fernando Gabeira do PT
(RJ), ambos em protesto contra a edição da MP 131, o governo deu de ombros
às demonstrações de insatisfação de seus aliados e indicou o deputado Paulo
Pimenta, do PT gaúcho, para relator da medida provisória. Pimenta vinha se
destacando no partido como grande propagandista dos transgênicos, apoiando
todas as ações de pressão em favor da liberação na tentativa de ganhar prestígio
entre os grupos de agricultores gaúchos. A nomeação foi lamentada pelo depu-
tado Orlando Desconsi, também do PT gaúcho, e por outros petistas, que ma-
nifestaram seu descontentamento à imprensa. Em reação à crise, o presidente do
PT, José Genoíno, chegou a propor que o PT retomasse seu programa de gover-
no, sobretudo na área ambiental. Mas esses desgastes com a bancada do parti-
do, com o Judiciário e com a sociedade civil organizada pareceram não incomo-
dar o governo.
Repetindo a lógica da soja transgênica, introduzida ilegalmente, Lula
contrabandeou em uma MP sobre habitação popular um artigo que estendeu em
40 dias o prazo para que os agricultores que fossem plantar soja transgênica em
2003 assinassem o Termo de Compromisso, Responsabilidade e Ajustamento de
Conduta. A assinatura do termo, exigido pela MP 131, que liberou o plantio da
soja transgênica na safra 2003–2004, era necessária para que os agricultores con-
seguissem financiamento oficial. Ponto para o ministro Roberto Rodrigues, que
se acertou com o chefe da Casa Civil14 para passar o artigo por debaixo dos panos.
A rasteira, que também feriu as normas para edição de medidas provisórias, foi
levada a cabo com o presidente em viagem à Espanha, de forma a isolá-lo das
críticas. Repetiu-se a fórmula usada para a ocasião da assinatura da MP 131, que
ficou para o vice José Alencar.

14
Conforme declaração de Rodrigues à Agência Estado em 24 de outubro de 2003.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

Soja Roundup Ready + Roundup


A soja transgênica foi modificada para ser resistente ao herbicida à base de glifosato,
Roundup. Daí seu nome, Roundup Ready (ou RR). A Monsanto detém as paten-
tes da soja RR e, até 2000, tinha também direitos monopólicos sobre o glifosato
garantidos por patentes.
A MP 131 autorizou o plantio de sementes de soja transgênica no Brasil para
a safra 2003–2004. Acontece que o Roundup não tinha registro para ser usado
em pós-emergência no Brasil. Seu uso era permitido para controle do mato antes
de a cultura nascer. Visando solucionar o problema, o Ministério da Agricultura
encaminhou ao Comitê Técnico de Assessoramento para Agrotóxicos (CTA) uma
solicitação para autorização de uso emergencial do produto na soja transgênica. E
o Idec ingressou na Justiça Federal com uma ação civil pública contra o uso do
herbicida em pós-emergência na soja.
O comitê, composto por dois representantes do Ministério da Saúde, dois do
Ministério da Agricultura e dois do Ministério do Ambiente, negou o pedido do
Ministério da Agricultura, revelando quão sem critério foi a liberação da soja
transgênica. A rigor, tecnicamente a autorização do plantio não serviria para nada,
pois, sem o Roundup, de nada serve a semente transgênica.
Então, voltou à cena o governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto
(PMDB), que, em reunião com José Dirceu, pressionou o governo pela liberação
do uso do glifosato. A situação montada com a medida provisória regularizou
temporariamente a situação do agricultor que usou as sementes vindas da Argen-
tina, mas, ao mesmo tempo, poderia prendê-lo caso fosse usado o herbicida glifosato
sobre a lavoura crescida.
O impasse, que chegou a ser avaliado como vitória do Ministério do Meio Am-
biente, após idas e vindas acabou sendo resolvido por decisão política, que não só
liberou o uso do glifosato na parte aérea da soja, mas também elevou em 50 vezes o
limite máximo de resíduo do agrotóxico permitido no produto colhido.

O primeiro turno de votação da Lei na Câmara


Quando o projeto de lei chegou à Câmara, o então líder do governo, deputado
Aldo Rebelo (PCdoB/SP), recebeu sua relatoria. Aldo chegou a apresentar um
parecer à Comissão Especial Temporária, que analisaria o texto antes de ele ser
encaminhado ao plenário, mas foi nomeado ministro da Coordenação Política
antes de sua votação. O deputado Renildo Calheiros (PCdoB/PE) assumiu a
relatoria do texto que foi finalmente aprovado.
Teve peso sobre a decisão da Câmara a atuação da Comissão Especial Tempo-
rária. Ela foi presidida pelo ruralista Silas Brasileiros (PMDB/MG) e teve maioria
de deputados pró-transgênicos e contrários à manutenção do texto do governo. À
época, já se sabia que, sem a determinação do governo, esse projeto não sairia
ileso de sua travessia pelo Congresso. Corroborava com essa visão o fato de que,
até aquele momento, o governo se regozijava de ter conseguido aprovar as maté-
rias que julgava importantes. Mas a participação do partido do governo na co-
missão reforçava a tese de que o envio ao Congresso de um projeto pautado pelo
princípio da precaução era uma farsa. Tanto é que, dos seis deputados petistas
que integraram a comissão, quatro eram pela rápida liberação dos transgênicos
(Josias Gomes/BA, Paulo Pimenta/RS, José Pimentel/CE e Fernando Ferro/PE) e
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

dois pela cautela (Luci Choinack/SC e João Grandão/MS). A nomeação do líder


Aldo Rebelo como relator do projeto de lei mostrava que o projeto seria aprovado
do jeito que o governo quisesse. Ao assumir a função, Rebelo declarou ser “a favor
[dos transgênicos] com margem de segurança. Não apenas na questão da saúde,
mas também comercial. Não pode haver monopólio de sementes”.15 Citando fon-
tes palacianas, a Folha de S.Paulo publicou, na mesma ocasião, reportagem que
informava: “Apesar de ter feito mudanças para prestigiar a ministra Marina Silva, o
Planalto avalia que [seu] projeto [...] será modificado no Congresso pela bancada
ruralista. [...] O governo crê que será aprovado projeto mais próximo ao defendido
pelo ministro Roberto Rodrigues (Agricultura), que tem visão mais pragmática e
comercial sobre o tema do que Marina”.16 A queda-de-braço estava conformada, e
o governo, sem assumir publicamente, tomou partido pelo “pragmatismo”.
De fato, o parecer apresentado por Aldo Rebelo à Comissão Especial, enquanto
ainda era relator do projeto de lei na Câmara, conferia poder terminativo à CTNBio
para deliberar sobre pesquisa e comercialização de organismos transgênicos.
Ao assumir a relatoria do projeto, Renildo Calheiros não acatou o texto dei-
xado por Aldo Rabelo e recomeçou a discussão. Em parte por isso, apesar de não
demonstrar à época ter posição sobre o tema, foi insistentemente classificado pela
imprensa como “forte aliado da ministra Marina Silva”.
A ministra do Meio Ambiente, como parece ser sua forma de fazer política,
interferiu nessa negociação já quase no ponto de não-retorno, indo ter com Lula
pessoalmente. A intervenção da ministra também incluiu negociações madrugada
adentro na casa do deputado João Paulo Cunha (PT/SP), então presidente da
Câmara. Há a suspeita de que, na casa de Cunha, a ministra tenha chegado até a
ameaçar entregar o cargo.
Finalmente, o projeto de lei aprovado em fevereiro de 2004 na Câmara dos
Deputados foi resultado de um enorme esforço de negociação que também contou
com a participação ativa do próprio governo. Como resultado dessa negociação, o
texto sofreu pioras em relação ao projeto de lei original enviado pelo Executivo ao
Congresso. Mesmo assim, foi mantida uma distinção fundamental entre competên-
cias para autorização de pesquisas e para liberações comerciais de transgênicos.
O meio termo produzido pelo processo político na Câmara deixava a cargo
exclusivo da CTNBio a liberação para pesquisas envolvendo transgênicos (atenden-
do a reivindicações dos ruralistas em sua suposta defesa da “liberdade de pesquisa”
e do avanço científico), mas as autorizações para comercialização deveriam passar
por diversas instâncias. A primeira delas seria uma revisão da biossegurança do
produto feita pela CTNBio, seguida por uma análise dos aspectos da conveniência
e oportunidade socioeconômica e do interesse nacional feita pelo CNBS. Feito isso,
o pedido seguiria para os órgãos de fiscalização e registro dos Ministérios da Agri-
cultura, da Saúde e do Meio Ambiente e à Secretaria de Especial de Aqüicultura e
Pesca da Presidência da República, garantindo, assim, a realização prévia dos estu-
dos de impacto à saúde e ao meio ambiente. Se esses órgãos, a partir dos estudos

15
Informação do jornal O Estado de S. Paulo, em 5 de novembro de 2003.
16
Informação da Folha Online, de 4 de novembro de 2003.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

apresentados pelo solicitante, concluíssem pela ausência de riscos, o parecer voltaria


ao CNBS para autorização em última e definitiva instância.
Destaca-se que toda essa movimentação não foi suficiente para garantir um
bom resultado na votação, que dependeu dos votos da bancada religiosa. Esta
acabou apoiando o projeto tido como do governo com a condição, aceita, de que
ficassem proibidas as pesquisas com células-tronco embrionárias.

No Senado, um novo projeto


Estando a bola com o Senado, ruralistas e seus apoiadores logo se animaram para
substituir a versão da Câmara pela proposta do ex-líder do governo Aldo Rebelo.
Paradoxalmente ou não, a iniciativa do comunista foi, em diversas ocasiões, ob-
jeto de elogios por aqueles que representam o que há de conservadorismo na Casa.
As pressões por mudanças no projeto de lei e os anseios do lobby da indústria
de biotecnologia foram capitaneados pelo senador paranaense Osmar Dias (PDT).
O contraponto natural seria feito pela senadora Marina Silva, na ocasião já com
uma longa lista de derrotas acumuladas como titular da pasta de meio ambiente.
Seu substituto na Casa, embora crítico aos transgênicos, não assumiu esse papel.
Outra voz que naturalmente se levantaria em defesa do princípio da precaução e
da conservação da biodiversidade seria a do senador João Capiberibe (PSB/AP).
Mas o período em que o projeto tramitou na Casa coincidiu com o desenrolar de
um processo do PMDB no Tribunal Regional Eleitoral que cassou o mandato do
parlamentar e de sua esposa, a deputada Janete Capiberibe (PSB/AP). O casal
obteve liminar na Justiça para seguir com o mandato, mas passou a se dedicar
quase que exclusivamente à sua defesa, ficando fora desse combate.
Quando o projeto começou a ser discutido no Senado, a preocupação do go-
verno era a de que ele fosse aprovado ainda no primeiro semestre de 2004 para
evitar que a aproximação de outro ciclo agrícola o forçasse a editar nova medida
provisória para anistiar os produtores do Sul. Assim, os líderes do governo foram
orientados a se mobilizar para aprovar logo o projeto de lei. Pelo regimento,
qualquer mudança sofrida pelo texto faria com que ele voltasse à Câmara. Desse
modo, se o governo estivesse de fato querendo agilidade, a melhor solução seria
orientar sua base a aprovar a versão vinda da Câmara e rejeitar emendas. Essa
saída teria apoio de movimentos e entidades da sociedade civil organizada.
Durante algum tempo, o núcleo do governo chegou a sustentar essa posição,
declarando que defenderia o seu projeto, isto é, o substitutivo do deputado
Calheiros.17 Pura fachada, pois, ao mesmo tempo, Rebelo admitia que os senado-
res da base, com os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, estavam
discutindo uma ou outra modificação, como afirmara o próprio Rebelo após reu-
nião com parlamentares ruralistas e o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues.18
Esse grupo reivindicava a adoção do substitutivo apresentado por Rebelo como
forma de lograr a liberação comercial dos transgênicos sem a realização de avalia-
ções de riscos à saúde e ao meio ambiente, previstas na Constituição Federal.

17
Declarações do ministro Aldo Rebelo à Agencia Estado, em 19 de maio de 2004.
18
Idem.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

Mas falar nesses termos não soaria bem. Logo, o movimento pró-transgênicos
no Senado manteve o discurso usado na Câmara, de defesa da ciência e do avanço
da pesquisa, mas destacando todas as promessas no campo da medicina que po-
dem advir da manipulação de células-tronco embrionárias. Essa foi a desculpa
usada para se defender a modificação do projeto, já que a Câmara já havia facili-
tado bastante o uso experimental de organismos transgênicos, até mesmo
flexibilizando sua introdução no meio ambiente.
Figuras conhecidas do lobby pró-transgênico começaram a circular pelo Con-
gresso em companhia das lideranças do movimento pela liberação da pesquisa
com células-tronco, que, repetidas vezes, levaram deficientes físicos para acompa-
nhar sessões do Senado em que havia chance de o projeto ser votado. Essas cenas
tomaram conta do noticiário e, com grande investida do Jornal Nacional (da
Rede Globo), a aprovação da lei de biossegurança passou a ser objeto quase que
de comoção nacional – de fato, a liberação dos transgênicos sequer era citada em
muitas das reportagens sobre o projeto de lei de biossegurança.
Nesse período, a campanha produziu documentos e uma série de cartas abertas
alertando os senadores para a falsidade e real objetivo desses argumentos. Tam-
bém se alertou sobre os aspectos inconstitucionais da proposta. O projeto aprova-
do na Câmara tornou a CTNBio a única e definitiva instância a avaliar e decidir
sobre liberações de pesquisas com transgênicos, não havendo, portanto, riscos de
uma suposta paralisação da atividade. Esse ponto havia sido objeto de negociação
e teve de ser cedido na Câmara para que se chegasse a um acordo para votação.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), órgão do Ministério do Meio Ambiente responsável pelo licenciamento
ambiental, foi crucificado no Senado, mas ninguém quis ouvir que a realização
dos estudos de impacto ambiental é atribuição do requerente, e não do Ibama.
Ou seja, uma empresa que leve, por exemplo, um, dois ou mais anos para realizar
os estudos depois de receber as orientações do Ibama, não pode atribuir ao órgão
a responsabilidade pelo prazo total do processo. Ruralistas e também membros
do governo, como o petista Aloísio Mercadante (SP), líder do governo no Senado,
miraram o licenciamento ambiental como sendo um tipo de burocracia que só
atrasa os empreendimentos e retarda investimentos e pesquisas.
Osmar Dias chegou a aprovar um projeto substitutivo ao da Câmara na Co-
missão de Educação, que ele presidia. O senador, além de querer agradar as em-
presas de biotecnologia, visava também contrariar as posições antitransgênicos de
seu rival político Roberto Requião (PMDB), governador do Paraná. Um outro
substitutivo, relatado pelo vice-líder do governo, senador Ney Suassuna (PMDB/
PB), foi aprovado em audiência conjunta de outras três comissões da Casa,19 pro-
pondo também a liberação rápida e facilitada dos transgênicos.
Em alguns pontos, o projeto de lei de Suassuna piorou o de Osmar Dias. Pro-
punha, por exemplo, a liberação definitiva do plantio da soja transgênica, sem a
necessidade de qualquer avaliação de riscos à saúde e ao meio ambiente.

19
Comissão de Assuntos Sociais, Comissão de Assuntos Econômicos e Comissão de Constituição e Justiça.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

O projeto de Suassuna só passou nas Comissões do Senado graças ao insistente


empenho do senador Mercadante e da líder da bancada petista Ideli Salvati (SC),
que cumprias as orientações recebidas. Enquanto corria o debate na sessão,
Mercadante costurava o apoio de outros líderes ao relatório do Suassuna até dar
o sinal verde para o presidente da sessão abrir a votação. Esse relatório conjunto
é que foi a votação no plenário do Senado.
O senador Mercadante disse e repetiu que a participação dos órgãos governa-
mentais da saúde e meio ambiente no processo de autorização para uso comercial
de transgênicos era uma moratória branca ou moratória disfarçada aos transgênicos.
Ao dizer isso, ele atestava que os transgênicos não resistiriam a avaliações de riscos
à saúde e ao meio ambiente, já que essa seria a única justificativa que esses órgãos
teriam para não autorizar o uso de qualquer transgênico. A real moratória que exis-
te hoje, no Brasil e no mundo, é a moratória aos estudos científicos independentes de
avaliação de riscos dos produtos transgênicos. Como porta-voz do lobby pró-trans-
gênicos, e se alinhando aos ruralistas, Mercadante desqualificou esses órgãos e colo-
cou os estudos de impacto ao ambiente e à saúde no rol das burocracias desnecessárias.
Na Câmara, após um período fazendo corpo mole, o governo acabara defen-
dendo seu projeto. No Senado, após a fase de corpo mole, o governo terminou
por apoiar – e aprovar – um projeto de lei substitutivo em frontal contradição
com sua posição inicial.

A estratégia da contaminação – cena 2


Em abril de 2004, a imprensa noticiou as suspeitas de cultivo de algodão
transgênico na região Centro-Oeste. A suspeita foi levantada pelo próprio diretor
de assuntos corporativos da Monsanto Brasil. Em agosto do mesmo ano, o Mi-
nistério da Agricultura (Mapa) confirmou a presença clandestina dessas sementes
em lavouras do Mato Grosso. Apesar disso, não tomou nenhuma medida para
coibir a dispersão dessas sementes, nem mesmo para identificar de onde vinha a
contaminação e saber de seus responsáveis. O Mapa esclareceu na ocasião que
plantar algodão transgênico era crime previsto em lei e que seus responsáveis seri-
am autuados. Mas, segundo o próprio ministério, a destruição ou não das lavou-
ras dependeria das justificativas que os produtores apresentassem, ou seja, se fos-
sem bons de papo, as coisas poderiam ser relativizadas.
Mas nem foi preciso chegar a tanto, já que, meses depois, a CTNBio liquidou
a fatura permitindo a venda de sementes de algodão convencional com até 1% de
contaminação por transgênicos para a safra 2004–2005.
Essa decisão da CTNBio foi tão comercial quanto o pedido a ela feito para
legalização da contaminação e nada tem a ver com biossegurança. O requerente
não apresentou dados sobre a oferta de sementes de algodão, sobre sua demanda,
nem sobre a extensão e a localização da contaminação alegada. Tampouco foram
apresentadas informações sobre a segurança do produto. A decisão foi ao mesmo
tempo ilegal, já que corria na Justiça uma ação tratando das atribuições da
CTNBio. Além disso, já se sabia que a Embrapa tinha sementes certificadas de
algodão suficientes para cobrir 30% da área plantada com algodão, que dispen-
sariam a necessidade das sementes contaminadas.
O Ministério do Meio Ambiente, voto vencido, solicitou que a requerente
apresentasse estudos adicionais e, posteriormente, apresentou recurso à CTNBio
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

contestando sua decisão, tanto do ponto de vista de procedimento interno e res-


peito ao regimento da Comissão como do ponto de vista de seu mérito científico.
Em julho de 2005, o Ministério Público Federal ameaçou entrar com uma
ação civil pública contra a CTNBio, por considerar ilegal a decisão de aprovar a
comercialização de sementes de algodão contaminadas por transgênicos. A
procuradora da república Ana Paula Mantovani argumentou que a decisão da
Comissão não foi embasada em uma avaliação técnica criteriosa e que envolvesse
possíveis impactos sobre segurança alimentar, saúde humana e riscos ambientais.
Mantovani também alegou que a decisão foi tomada sem a aprovação de dois
terços dos 18 membros da CTNBio, como determina a lei.

Mais uma MP para a soja


Ao assinar a segunda MP em setembro de 2003, Lula prometera não mais tratar do
assunto por meio de medidas provisórias. Apesar disso, um ano depois ele não só
editou outra MP tornando definitivo o provisório, mas também ameaçou reproduzir
nela o texto do projeto de lei aprovado no Senado e dar um basta nessa discussão.
Usando as palavras do jornalista Janio de Freitas, “o plantio [de transgênicos]
aqui é feito com base em duas leis, tipicamente brasileiras e opostas à da proibi-
ção: a lei da impunidade e a lei do fato consumado”. Em vez de coibir o crime e
punir aqueles que estavam fora da lei, o governo interveio mais uma vez no senti-
do de mudar a lei para regularizar a situação.
A MP 223, liberando o plantio da soja transgênica na safra 2004–2005, foi a
terceira medida concreta do presidente Lula para inviabilizar a produção de soja não-
transgênica no país. A medida não apresentou nenhum tipo de diretriz ou regulamen-
tação para garantir ou retomar a produção de soja não-transgênica, nem mesmo o
direito dos agricultores que a preferem. Não contente, a cúpula do governo petista
continuou insistindo em não reconhecer o Paraná como território livre de transgênicos.

O turno final de votação na Câmara


Como o Senado aprovou um projeto distinto daquele que recebeu da Câmara,
suas alterações tiveram que voltar à Casa para nova apreciação. No afã de apro-
var a versão do Senado, lideranças ruralistas em articulação com líderes do gover-
no destituíram o deputado Renildo Calheiros da relatoria do projeto, cedendo o
posto ao ruralista e ardoroso defensor dos transgênicos Darcísio Perondi (PMDB/
RS). A prática de destituir relatores é bem rara, mas, como o deputado era errone-
amente visto como aliado da ministra Marina, avaliou-se que valeria a pena en-
frentar um possível desgaste resultante da manobra.
Em demonstração clara da interferência do governo, ao assumir a relatoria,
Perondi disparou: “Esperamos que o acordo realizado pelo líder do governo no
Senado Federal, senador Aloizio Mercadante, e que contou com o apoio do Palá-
cio do Planalto, possa agora ser cumprido e que possamos aprovar o texto apro-
vado naquela casa”.20 Durante a tumultuada sessão, o vice-líder do governo na

20
Voto do relator lido em 10 de novembro de 2004 na comissão especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei
2.401-B, de 2003.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20

Câmara, Beto Albuquerque (PSB-RS), afirmou que o ministro da Coordenação


Política, Aldo Rebelo, havia orientado que ele defendesse a aprovação do relató-
rio de Perondi, por ser o mesmo texto do Senado. “Falei com o ministro Aldo. A
Coordenação Política vota favorável ao texto do Senado e o que está sendo rela-
tado pelo deputado Darcísio Perondi me parece ser igual ao que foi aprovado
pelos senadores”.21 O deputado ainda elogiou a aprovação do projeto e lembrou
que o Planalto defendia o texto do Senado.
Nesse turno final de votação, o governo abandonou qualquer cerimônia em
relação aos temas ambientais e “tratorou” a ministra Marina Silva e demais inte-
ressados na questão, como os ministros da Saúde e do Desenvolvimento Agrário.
O então líder do governo na Câmara, professor Luizinho (PT/SP), disse que o
governo queria ver aprovado o projeto de lei do Senado, já que isso não represen-
tava apenas a aprovação de mais uma lei, mas sim “uma questão de Estado”.
Sabe-se lá o que ele queria dizer com isso.
A reunião da bancada do PT que precedeu a votação apontou um racha no
partido, com 21 deputados para cada lado. Mas a orientação de voto para o
partido feita pelo deputado Paulo Rocha (PA), líder do PT na Câmara, foi tam-
bém em defesa do projeto de lei do Senado, com a ressalva de que os parlamenta-
res do partido estavam liberados para votar como quisessem.
Mas, embora possa não parecer, as disputas em torno desse tema não termi-
naram com a votação de 2 de fevereiro de 2005, que aprovou no plenário da
Câmara o texto originado no Senado. Segundo o governo, o objetivo, ao se
criar uma nova legislação sobre biossegurança (o Brasil já tinha uma, criada em
1995), era encerrar as disputas judiciais sobre a questão. No entanto, a lei apro-
vada, fruto de um governo transgenicamente modificado, apresenta tantos as-
pectos inconstitucionais (como a retirada de competências legais de ministérios
e o desrespeito ao pacto federativo), que o resultado certamente será o inverso.
Novas disputas judiciais já estão em curso, complicando ainda mais um cenário
já bastante tumultuado.

Repúdio
No período entre a aprovação da lei no Congresso e a sanção do presidente,
várias organizações se mobilizaram para cobrar de Lula que ele vetasse os arti-
gos da lei que davam poderem totais à CTNBio. Lula acabou por vetar alguns
artigos, mas não os que foram pedidos pelas entidades e movimentos. Após a
sanção da lei, a Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica, a AS-PTA,
o Centro Ecológico Ipê, a Fase, o Fórum Estadual da Segurança Alimentar e
Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul, o Fórum Nacional das Entida-
des Civis de Defesa do Consumidor, o Greenpeace, o Inesc, o MAB, o MST e a
Terra de Direitos divulgaram uma carta criticando a medida do governo, com
o seguinte conteúdo:

21
Informação do jornal O Estado de S. Paulo, de 11 de novembro de 2004.
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21

Organizações e movimentos da sociedade civil ligados às áreas


ambiental, de consumidores e de agricultura familiar repudiaram
fortemente o presidente Lula por haver sancionado a nova Lei de
Biossegurança, que permite que transgênicos sejam introduzidos no
meio ambiente e na alimentação humana e animal sem os necessá-
rios estudos de impacto ambiental e na saúde por parte do Ministé-
rio do Meio Ambiente e da Saúde.

Em vez da cuidadosa análise dos órgãos responsáveis, a nova lei de


biossegurança concretizou os planos das multinacionais de
biotecnologia permitindo que um número reduzido de cientistas da
CTNBio decida questões de grande complexidade científica em
processo sumário.

Para as entidades, o presidente Lula prestou um desserviço inédito


na história do país, ao isentar a tecnologia dos transgênicos de
licenciamento ambiental com estudo de impacto ambiental. Esta
decisão é um precedente para que outras atividades e obras potenci-
almente causadoras de significativa degradação ambiental reivindi-
quem com sucesso para si o mesmo privilégio, desconstruindo a
política ambiental elaborada ao longo das duas últimas décadas
pelos governos anteriores, pelo Conselho Nacional do Meio Ambi-
ente e pela sociedade civil.

Visto em retrospectiva, é evidente que o PT e o governo Lula


trabalharam ativamente para retirar do Ministério do Meio Ambi-
ente e da Saúde as suas competências constitucionais, facilitando a
liberação irresponsável de transgênicos no território nacional. A
inclusão de um artigo referente à manipulação de células-tronco
embrionárias para pesquisa serviu de cortina de fumaça para o
lobby pró-transgênicos, desviando as atenções do público para
tema que nada tinha a ver com a questão dos transgênicos e com as
sérias implicações da lei.

É com pesar que as entidades reconhecem que o Governo Lula não


está à altura das suas responsabilidades constitucionais, ao não ser
capaz de zelar pelos interesses do país.

Liberar enquanto ainda há tempo


A nova Lei de Biossegurança trouxe mudanças para a CTNBio e previu sua
reformulação. Antes de ter a Comissão desfeita, seus integrantes correram para
liberar o que desse, enquanto ainda lhes restava algum tempo útil (período entre
a aprovação da lei e a sanção presidencial). O algodão transgênico da Monsanto
foi o primeiro deles. A CTNBio inverteu sua pauta de prioridades, colocou o
algodão no topo da lista e consagrou sua liberação, independente dos protestos
do representante do Ministério do Meio Ambiente, que novamente levantou uma
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

série de problemas em relação à forma de decisão e à precariedade científica dos


documentos usados para subsidiá-la.
A liberação desse mesmo algodão na Indonésia acabou por desvendar métodos
escusos usados pela empresa. Em janeiro de 2005, a Monsanto foi condenada a
pagar multa de US$ 1,5 milhão por ter subornado funcionários do governo
indonésio para que essa mesma variedade de algodão que a CTNBio liberou no
Brasil (a Bollgard) fosse autorizada para uso comercial na Indonésia sem a realiza-
ção de estudos de impacto ambiental.
A nova Lei de Biossegurança agilizou essa situação e foi direto ao ponto. A
CTNBio, a critério próprio, pode contrariar a Constituição e dispensar a realiza-
ção de estudos prévios de impacto ambiental. Detalhe: antes mesmo da entrada
em vigor da nova lei, a CTNBio já o fez.
Antes de ser destituída, a Comissão ainda teve tempo de também aprovar a
importação de milho transgênico da Argentina, alegando uma inexistente quebra
de safra na produção nacional em contradição com dados da Companhia Nacio-
nal de Abastecimento (Mapa). Nessa decisão, o presidente da CTNBio liberou
também a importação de variedades que não constavam do pedido feito pela
Associação dos Avicultores de Pernambuco à Comissão. Não satisfeito, ele ainda
proclamou, sem votação, que futuros pedidos de mesmo teor estariam automati-
camente liberados.

O olho do furacão
Os poderes e as atribuições da CTNBio são objeto de conflito desde sua criação,
em 1996. Seus integrantes deveriam ser especialistas em biossegurança, ou seja,
em avaliação de risco dos organismos transgênicos. Mas, na prática, isso nunca se
verificou. Sempre houve membros da Comissão que desenvolviam transgênicos e
eram, portanto, diretamente interessados na liberação desses produtos. Ao con-
trário do que ocorria, representantes de indústrias jamais poderiam ter assento na
Comissão, já que seus votos serão sempre balizados por interesses comerciais.
Ademais, representantes de determinados ministérios, como o de Relações Exteri-
ores e de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, dificilmente serão es-
pecialistas em biossegurança, tendendo a votar a partir de orientações políticas.
Todos esses fatores foram tirando o caráter técnico da Comissão, prejudicado
novamente pelo fato de suas decisões terem sempre sido tomadas por maioria
simples, evidenciando, com freqüência, falta de consenso entre cientistas para um
tema de natureza interdisciplinar.
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança teve seu jogo armado para ser
uma esteira rápida de liberação comercial de transgênicos, sempre em conformi-
dade com os interesses dos proponentes da biotecnologia, passando longe da
biossegurança.
A Comissão não é um órgão governamental e seus membros se reuniam uma
vez por mês em Brasília para deliberar sobre uma pilha de pedidos de pesquisa,
certificados de qualidade em biossegurança e uso comercial de transgênicos. Dos
oito pesquisadores titulares que compuseram a última Comissão, quatro eram
especialistas em biotecnologia, pesquisadores que desenvolvem organismos
transgênicos, o que está bastante longe da especialidade em biossegurança. Desses
quatro pesquisadores, dois eram conselheiros do Conselho de Informações sobre
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23

Biotecnologia (CIB), pseudo-ONG de promoção da biotecnologia financiada pela


Monsanto, da Bayer e de outras empresas de agrotóxicos e transgênicos.
Os outros quatro especialistas não eram ligados à biotecnologia nem muito
menos à biossegurança. Têm suas carreiras dedicadas a outras áreas que não a
avaliação de riscos do uso de transgênicos. A CTNBio também oferecia assento a
um representante das indústrias (o último foi uma pessoa da Syngenta, outra
financiadora do CIB). O conflito explícito de interesses ainda era ampliado pela
secretaria executiva da Comissão, que tinha como assessor técnico o Gutemberg
Delfino, que também participa da pseudo-ONG da Monsanto (os outros mem-
bros eram representantes dos ministérios) e da Associação Nacional de
Biossegurança (Anbio), outra entidade de propaganda dos transgênicos também
financiada pela Monsanto e outras. O dramático era ver que pessoas decidiam
sobre tema de tamanha complexidade e ninguém queria ver isso.
Essa rede de instrumentos políticos e burocráticos tem, em seus nós, a indicação
de membros para a Comissão, sua composição interna, seus processos de tomada de
decisão e sua falta de transparência. E como as decisões sempre foram tomadas por
maioria simples, os poucos entendidos em biossegurança tendiam a ser sempre vo-
tos vencidos. Esse foi um dos principais motivos que levou a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde, a deixar a Comissão.
A partir da aprovação da Lei 11.105, a competência exclusiva em matéria de
biossegurança passou a ser da CTNBio, pequeno órgão vinculado ao Ministério
da Ciência e Tecnologia, formado por 54 membros (27 titulares e 27 suplentes).
Essa comissão ditará as regras e autorizará liberações de caráter experimental e
comercial de organismos geneticamente modificados no Brasil.
Uma questão essencial para guiar o seu trabalho é a elaboração da política
nacional de biossegurança, que deve ser construída com o debate público envol-
vendo todos os segmentos interessados. A Comissão, até hoje, não criou diretri-
zes, princípios e objetivos que dessem corpo a uma política de biossegurança. Ao
contrário, sua política foi, até o momento, a de promover produtos da
biotecnologia, e não a biossegurança.
Para que a nova lei mude a forma de atuar da Comissão, será fundamental
aumentar sua transparência e criar mecanismos de participação direta e efetiva de
entidades e de pesquisadores interessados. Para que a CTNBio mude, também será
fundamental acabar com os casos de conflitos de interesses entre seus membros.

COBRANÇA DE ROYALTIES – Na safra colhida em 2004, agricultores do Rio Grande do


Sul e de Santa Catarina começaram a pagar uma taxa tecnológica de R$ 0,60 por saca,
na entrega de sua soja aos cerealistas ou às cooperativas. Quase todos esses estabele-
cimentos nos dois estados fizeram acordos com a Monsanto, que detém as patentes da
soja transgênica Roundup Ready (RR), e ficaram com parte da taxa recolhida. Além de
problemas com contaminação, que pode se dar em diferentes fases da produção, prin-
cipalmente no uso compartilhado de máquinas e caminhões, os produtores ainda en-
frentaram problemas de cobrança indevida de royalties.
Foi o que aconteceu a um casal de agricultores de um assentamento da região central do
Rio Grande do Sul que continuou plantando soja convencional, enquanto boa parte de seus
vizinhos aderiu à soja da Monsanto. Determinado a ter suas lavouras livres de transgênicos,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24

o casal fez questão de comprar sementes certificadas para garantir que elas não seriam
transgênicas, nem estariam contaminadas. Mas, ao fazer o pedido na cooperativa onde
costumava comprar seus insumos, o casal ouviu do vendedor que ali só se vendiam semen-
tes transgênicas (prática ilegal à época). O casal buscou, então, uma cooperativa de outro
município, onde conseguiu comprar as sementes não-transgênicas certificadas.
Mas os cuidados dos agricultores não acabaram por aí. Eles também foram os primeiros
do assentamento a fazer a colheita. Como a máquina é de uso coletivo, colhendo a soja
antes dos outros, ela viria sem contaminação de outras lavouras.
Ao entregar sua produção na cooperativa, os agricultores foram questionados sobre a
natureza da soja. Disseram que a produção era não-transgênica. Foi feita, então, uma
análise rápida, cujo resultado fica pronto na hora. Para espanto do casal, o resultado foi
positivo. Mesmo após todo cuidado que tiveram, a soja que eles estavam entregando,
segundo o teste, era transgênica. Além da decepção vivida, o casal ainda teve que
pagar o custo do teste de transgenia e uma taxa de R$ 1,50/saca (em vez de R$ 0,60),
por ter usado ilegalmente a tecnologia da Monsanto.
Para garantir que a taxa de uso da semente RR seria realmente cobrada, a Monsanto
contratou uma das maiores empresas de auditoria do mundo (a Price Waterhouse) e
espalhou auditores nos pontos de recebimento de soja no Rio Grande do Sul.
A história do casal militante antitransgênicos se espalhou na região. A partir daí, todos
passaram a declarar sua produção como transgênica, mesmo aqueles que sabiam que
tinham lavouras convencionais. O receio de todos era ter de pagar R$ 1,50 por saca em
vez de R$ 0,60.
Inconformado com a situação, o casal voltou à cooperativa acompanhado de um agrônomo
amigo da família e pediu uma nova análise da soja que havia entregue. Foi aí que a
situação foi esclarecida. Os resultados das análises estavam sendo interpretados de forma
incorreta, levando o técnico da cooperativa a classificar a soja convencional como transgênica.
Os kits de análise de transgenia, bem como as instruções de uso, foram fornecidos pela
Monsanto. É provável que os responsáveis pelo recebimento de soja nas cooperativas e os
cerealistas tenham sido mal informados, levando a esse tipo de erro. Enquanto os testes
prosseguem sendo feitos de forma equivocada, a Monsanto vai recolhendo taxas dos agri-
cultores de forma indevida. Com isso, as estimativas de produção de soja transgênica tam-
bém foram bem maiores que a realidade, reforçando a política do “fato consumado”.
COEXISTÊNCIA – A contaminação de lavouras de soja orgânica por grãos transgênicos
levou o empresário Paulo Moraes, proprietário da empresa Eco Brazil Organics Ltda., a
paralisar suas atividades e ter um prejuízo de US$ 3 milhões, em 2004. Além disso, 17
funcionários foram demitidos, e o nome da sua empresa no exterior foi comprometido.
“Nunca mais vou trabalhar com soja orgânica porque o Brasil corre o risco de estar
100% contaminado pela transgenia em quatro ou cinco anos, se nada for feito pelo
governo federal”, lamentou o empresário.
Atendendo a solicitações de seus clientes, o empresário começou a trabalhar com farelo
de soja orgânica em 2001. Para isso, investiu pesado em incentivos para agricultores do
Rio Grande do Sul, sobretudo das cidades de Passo Fundo e Treze de Maio. “Buscáva-
mos a soja orgânica do Rio Grande do Sul e levávamos para uma empresa em Santa
Catarina, que processava a soja e nos entregava o farelo”, contou.
“Em 2001, exportamos 3,5 mil toneladas de farelo orgânico, e os números só aumenta-
ram ano após ano. A nossa previsão para 2004 era de vender 10 mil toneladas de
farelo”, relatou. No entanto, casos de contaminação começaram a surgir em 2002. No
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25

ano seguinte, o grau de contaminação da soja aumentou e, em 2004, a empresa encer-


rou as atividades porque toda a soja comprada do Rio Grande do Sul estava contamina-
da. Moraes conta que os produtores tomaram todas as precauções possíveis, mas fazen-
das vizinhas plantaram soja transgênica, o que acabou contaminando as propriedades
próximas. Vários lotes de soja foram rejeitados pelos clientes em virtude do alto grau de
contaminação.
“Tive que rescindir contratos internacionais porque não consegui mais comprar soja
orgânica. Os produtores que ainda conseguem cultivar o grão orgânico já estão compro-
metidos com outras empresas e acabei ficando sem fornecedor”, contou o empresário.
Os últimos contratos que Moraes não conseguiu honrar eram com empresas da França
e dos Estados Unidos, que pagariam US$ 600 por tonelada de farelo de soja orgânica,
contra US$ 220 pagos pela tonelada da soja convencional.
“Descobri que não há interesse em combater o contrabando de sementes de soja
transgênica, muito menos a plantação dos grãos”, afirmou.
Fonte: Agência Estadual de Notícias do Paraná e comunicação pessoal, em dezembro de 2004.

A ciência reducionista da transgenia


Boa parte da genética e de suas aplicações práticas, entre elas a transgenia, está
baseada naquilo que o meio científico conhece por Dogma Central da Biologia.22
Nele, o DNA, tido como a seqüência genética, é copiado para moléculas de RNA,
e estas são traduzidas em proteínas. Ou seja, o RNA seria um fiel transcritor e
tradutor do texto genético original.
Acontece que cientistas estão descobrindo um vasto campo de evidências que
negam o Dogma Central, constatando que o RNA tem um papel ativo, não só de
decidir quais seqüências de DNA devem ser copiadas, mas também de selecionar
quais devem ser destruídas e quais devem ser rearranjadas.
Desde meados da década de 1970, pesquisadores vêm notando que há uma
enormidade de interações entre os genes e o ambiente na vida dos organismos.
Essas relações, além de mudarem as funções dos genes, também conferem nova
estrutura a genes e genomas.
Todos os genes estão presentes em todas as células de um organismo. Mas, na
natureza, eles não funcionam o tempo todo nem mesmo em todas as células. Os
genes são controlados de forma que eles só se expressam quando necessário (por
exemplo, os genes responsáveis pela abertura de flores só se manifestarão na prima-
vera). Esse controle é tido como resultado tanto do material genético do organismo
como de sua interação com o ambiente. Nos transgênicos, os genes sintéticos artifi-
cialmente inseridos se expressam o tempo todo e em todas as células, até mesmo
naquelas presentes em partes dos organismos que são destinadas ao consumo.
Os recentes resultados da tentativa de seqüenciamento do genoma humano
reduziram em cerca de 20% sua estimativa anterior sobre o número de genes da
espécie humana, mostrando que seus mecanismos genéticos são substancialmente

22
Adaptado do texto “Death of the Central Dogma”, publicado no site do Institute of Science in Society (Isis). Disponível
em: <http://www.i-sis.org.uk/DCD.php >. Acesso em: 27 nov. 2005.
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26

ainda mais complexos. No caso dos transgênicos, isso evidencia quão difícil pode
ser a tarefa de se determinar uma única função de um único gene sem que isso
acarrete efeitos indesejados ou inesperados.
Estudos já mostraram, por exemplo, que tanto a dieta como o ritmo de vida
de uma mãe podem afetar os padrões de expressão dos genes no embrião e no
feto. Por sua vez, esses padrões determinarão a saúde do organismo no futuro.
Existem genes em filhotes de ratos que são resultado direto da forma como suas
mães os trataram na primeira semana de vida. Isso mostra que o ambiente envia
instruções à expressão dos genes.
Tais evidências também questionam a teoria clássica da seleção natural, segundo a
qual, por meio de mutações genéticas aleatórias, os mais adaptados, ou seja, os que
têm bons genes, sobrevivem e deixam um maior número de descendentes. As relações
entre ambiente e genoma têm se mostrado muito mais dinâmicas e recíprocas.
Já se sabe que muitas seqüências de genes que não codificam proteínas, tidas como
DNA lixo, participam da regulação do desenvolvimento e da expressão de genes.
Essas revelações recentes estão associadas a descobertas que indicam que o RNA, e
não só as proteínas, tem papel decisivo na transcrição da informação genética.
Tudo isso contradiz o Dogma Central, que postula um controle linear e
mecanicista da informação genética. E foi a partir dele que se cunharam as expres-
sões que nos acostumamos a ouvir com o avanço da biotecnologia, que conotam
grande precisão, como engenharia genética, recortar e colar, ou ligar e desligar
genes. Esses termos não só revelam sob qual paradigma científico eles se origina-
ram, mas também tentam transmitir à sociedade a noção de que a ciência tem
forte domínio da técnica e dos segredos da vida. Estamos, na verdade, longe disso.

Riscos associados
Estamos assistindo a uma aposta em uma tecnologia que envolve grandes incertezas e
riscos em sua maioria ainda desconhecidos e imprevisíveis, tanto que empresas como a
Monsanto não encontram seguradoras dispostas a assumir os riscos de suas atividades.
Além dos tão falados riscos à saúde e ao meio ambiente, há também aspectos
socioeconômicos e de autonomia que devem ser levados em consideração. Atual-
mente, apenas cinco empresas controlam dois terços do mercado de sementes no
mundo.23 Esse controle, quase monopólico dos recursos genéticos destinados à
produção de alimentos e fibras, é reforçado sobremaneira com o reconhecimento
de patentes sobre sementes. Isso ocorre, no plano nacional, por meio das leis de
propriedade industrial; no plano internacional, na Organização Mundial do Co-
mércio (OMC), por meio do acordo conhecido como Trips (do nome em inglês
Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights). Um país não pode ser
membro da OMC sem reconhecer os termos do Trips.
Disso resulta que agricultores que cultivam sementes transgênicas não podem
separar sementes para sua próxima lavoura, sob pena de serem acusados de viola-
ção de patentes. Só nos Estados Unidos, a Monsanto já processou mais de cem

23
MOONEY, P. R. El Siglo ETC: erosión, transformación tecnológica y concentración corporativa en el siglo 21. Montevidéu:
Grupo ETC, 2002.
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27

agricultores por suposto uso indevido de sua tecnologia. Para defender os direitos
que as patentes lhe conferem, a multinacional mantém um time de 75 pessoas
com um orçamento de US$ 10 milhões destinado a investigar e perseguir agricul-
tores que não seguirem à risca os termos do acordo que assinaram com a empresa
para usar suas sementes.24
O caso mais conhecido de disputa judicial entre a Monsanto e um agricultor
foi o do canadense Percy Schmeiser.25 Mesmo sem nunca ter usados as sementes
transgênicas da Monsanto, seus campos de canola foram contaminados por plan-
tações vizinhas. Isso foi suficiente para ele e sua família serem processados por
violação de patentes. Após vários anos de contencioso na Justiça e de recursos em
todas as instâncias, a Corte suprema do Canadá reconheceu que, independente-
mente de os “genes da Monsanto” aparecerem na propriedade da família contra a
vontade dela, prevaleceriam no caso os direitos da empresa. Percy perdeu a causa,
que pela repercussão ganha, serviu de recado a outros países mostrando que a
força da propriedade intelectual falará mais alto.
Há também questões mercadológicas a serem consideradas. Ao expandir a pro-
dução de soja transgênica, o Brasil, como segundo maior produtor e exportador
mundial do grão, abrirá mão de sua posição de único país capaz de abastecer o
mercado internacional com o produto não-modificado e de desfrutar economica-
mente dessa posição. Essa possível escassez vem preocupando consumidores, so-
bretudo na Europa. Em agosto de 2005, o Consórcio Varejista Britânico encami-
nhou uma carta ao presidente Lula manifestando sua preocupação com o fato de
as lavouras transgênicas estarem se espalhando pelo país. Na carta, também são
apresentados dados da rejeição da população inglesa aos alimentos transgênicos,
revelando que 79% não comprariam produtos transgênicos, e, mesmo que a segu-
rança desses produtos fosse comprava, 61% não os consumiria.
A União Européia vem adotando novas diretrizes para a rotulagem de alimen-
tos transgênicos e também para rastrear os produtos desde sua origem. Entrando
em vigor, passarão a ser rotulados também os alimentos derivados de animais
alimentados com transgênicos. Como a soja brasileira é exportada principalmen-
te para ração, ainda não se sabe ao certo o impacto que essas normativas trarão.
Mas nem por isso esse aspecto deixa de ser relevante.

A ação política da Casa Civil


As grandes negociações que demandavam decisão da cúpula do governo sempre
passaram pela Casa Civil. No caso dos transgênicos, não foi diferente. O apoio
político traduzido em votos no Congresso era lá negociado – imaginava-se que só
na base da distribuição de cargos e liberação de emendas. A prática fisiológica,
por si só inteiramente condenável para um partido comprometido com a transfor-
mação, ficou pequena após as denúncias de arrecadação e desvio de dinheiro para
compra de deputados, que liquidou com o chamado “núcleo duro” do governo.

24
THE CENTER FOR FOOD SAFETY. Monsanto vs. US farmers, 2005. Disponível em: <http://www.centerforfoodsafety.org/
Monsantovsusfarmersreport.cfm>. Acesso em: 27 nov. 2005.
25
Sobre o caso, ver o site <http://www.percyschmeiser.com/>.
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28

O fato de deputados petistas que tiveram papel de destaque na aprovação da


lei de biossegurança, como Josias Gomes (BA), Paulo Pimenta (RS) e Paulo Rocha
(PA) estarem envolvidos nas ilegalidades que fizeram ruir o governo, ajuda a re-
forçar a hipótese de que os transgênicos foram negociados e que o governo, de
fato, não via maior importância no tema. Todos esses parlamentarem são alta-
mente fiéis ao ex-ministro José Dirceu.
Uma retrospectiva dos principais momentos em que o governo teve que se
posicionar sobre os transgênicos também revela outra faceta da negociação. A
vertente oposicionista do PMDB era objeto de cobiça do ex-chefe da Casa Civil,
principalmente pelo desejo de unir os dois maiores partidos do Congresso em uma
coligação PT-PMDB para concorrer à presidência em 2006. Germano Rigotto,
governador peemedebista do Rio Grande do Sul, fazia a interlocução do governo
com a ala oposicionista do PMDB e também foi bastante ativo em defender os
interesses dos ruralistas gaúchos. Nos momentos de decisão, como visto, o Planal-
to acionou Rigotto.
De qualquer forma, mesmo antes das revelações sobre o “mensalão”, a políti-
ca de alianças foi se revelando um verdadeiro fracasso, pois, a cada votação de
matérias polêmicas ou que o governo julgava importante, novas concessões ti-
nham que ser feitas, fosse fornecendo cargos, liberando emendas ou barganhando
apoio em outras matérias. Além disso, sabe-se, hoje, que esse apoio resultava de
um engendrado esquema de corrupção que, entre outros destinos, comprava vo-
tos e “fidelidade” de congressistas e estimulava a migração entre partidos.
Em julho de 2005, o PSDB, na tentativa de comprovar o pagamento a depu-
tados em troca de votos, divulgou um gráfico que apresenta o cruzamento das
datas de saques em dinheiro dos bancos usados no esquema com votações no
Congresso de matérias que o governo considerava de seu interesse ou prioritárias.
A lei de biossegurança está entre os projetos citados pelos tucanos cujos períodos
de votação coincidiram com os saques escusos.
O descaso que o núcleo dirigente do governo demonstrou com as questões
ditas ambientais mostrou também que a crítica ambiental acolhida pelo partido,
ao menos para eles, não gozava de reconhecimento estratégico a ponto de ser
enfrentada a partir da implementação de políticas públicas alternativas. Para usar
um termo recorrente, não passou de bravata, e o desenvolvimento sustentável como
proposta transversal de governo pereceu entre as intenções da ministra Marina Silva.
Se um dia desvendada, a origem do dinheiro que guiava votações ajudará muito
a esclarecer as opções políticas e táticas do governo e também a dar nome e cara
aos atores que se beneficiam das leis aprovadas.

A omissão estratégica do Estado


No plano federal o governo foi omisso, não fiscalizando nem controlando os
plantios ilegais de soja transgênica, não impedindo a continuada entrada de se-
mentes da Argentina e não rotulando alimentos. Essa ausência do Estado come-
çou, deve-se dizer, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Do ponto de vista dos que visam à introdução rápida e desregulamentada dos
transgênicos, tal omissão oficial ajuda a consolidar a impressão de que a contami-
nação é uma estratégia bastante eficaz. Inicialmente, as indústrias da biotecnologia
acham uma brecha para contaminar as sementes do principal produto agrícola do
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29

país. Feito isso, elas permitem, num primeiro momento, que o mercado ilegal de
sementes se expanda e, num segundo momento, pressionam, junto com produto-
res, para que os governos reconheçam e legitimem o fato consumado. Além do
caso brasileiro, isso ocorreu em vários outros países, como na Índia, na Romênia,
no Paraguai, na Argentina, na África do Sul e em países da África Ocidental.
Os ruralistas e as indústrias não estiveram sozinhos na empreitada de
desregulamentar o uso de transgênicos. Eles contaram com toda a dedicação do
líder do governo no Senado, o senador Aloísio Mercadante. Seus discursos repeti-
am todas as promessas das empresas de biotecnologia, que, até agora, não foram
comprovadas. Dizia o senador que os transgênicos conservam mais o solo, redu-
zem o consumo de agrotóxicos e até evitam o desmatamento, já que são mais
produtivos. Elencados os potenciais dos transgênicos, o senador concluía em seus
discursos que “os ambientalistas deveriam ser os primeiros a defender o uso da
biotecnologia na agricultura”.
Ao baixar três MPs para a soja transgênica, o governo firmou um estado de
anomia, no qual a estratégia da contaminação e da introdução ilegal de sementes
transgênicas passou a ser uma opção para as indústrias de biotecnologia, que até
agora não fizeram valer suas promessas.

Futuros conflitos
Com a liberação para plantio comercial da soja e do algodão transgênicos e das
demais culturas que podem vir, a Justiça passará a ser um ator cada vez mais
requisitado. Isso por três principais motivos: pela não-aplicação da lei de rotulagem
para alimentos que contenham transgênicos ou sejam derivados deles; por proces-
sos movidos por agricultores que cultivam orgânicos ou convencionais e tenham
suas lavouras contaminadas por vizinhos que plantam transgênicos; e pela
Monsanto ou por outras empresas alegando uso indevido de sua tecnologia e
violação de patentes.
Para quem dizia que queria, com a aprovação de uma nova lei, acabar com as
disputas judiciais acerca do tema, pode-se dizer que o tiro passou bem longe do alvo.

Qual política e qual biossegurança?


Mesmo com a aprovação da Lei de Biossegurança, pode-se dizer que não há no
país uma política de biossegurança destinada a controlar e minimizar os riscos
associados à tecnologia, garantir a integridade das demais formas de produção e o
direito de escolha de produtores, consumidores e empresas.
Uma grave falha de nossa legislação sobre transgênicos é a ausência de um sistema
jurídico de responsabilidade e de gerenciamento de risco. Não foram até hoje criados
mecanismos para proteger ou indenizar agricultores que tiverem suas lavouras conta-
minadas por transgênicos ou prejudicadas por herbicidas usados por vizinhos que
adotaram sementes transgênicas. Também não está prevista responsabilização por
danos ambientais ou à saúde advindos do uso de transgênicos. Prejuízos derivados da
ausência de uma política de biossegurança recairão sobre a sociedade.
Também é necessário estabelecer quem se responsabiliza no caso de danos ao
ambiente e à saúde humana e quais os mecanismos de proteção que os produtores
ecológicos e os não-transgênicos terão para que suas lavouras não sejam contami-
nadas. A questão da responsabilização tem tamanha importância que, na Europa,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
30

onde a empresa que desenvolveu o produto deve assumir seu risco, a Bayer teve,
em 2004, uma de suas variedades de milho transgênico aprovada para
comercialização, mas preferiu não a lançar no mercado até que as normas de
responsabilização estivessem clarificadas.

A opção pelo agronegócio


Lula sempre obteve maciça votação entre agricultores familiares e suas organiza-
ções e entre trabalhadores rurais sem terra, que viam nele a opção pelo favorecimento
do acesso a recursos produtivos, como terra e água, e pela promoção do desenvol-
vimento em bases mais includentes e descentralizadas. Esperava-se de um governo
lulista, além da realização de um amplo processo de reforma agrária, o fortaleci-
mento da agricultura familiar, a revitalização dos serviços públicos de extensão
rural a partir de um enfoque agroecológico, a criação de linhas de crédito alterna-
tivo para a produção agroecológica e de outros mecanismos, como pesquisa e
comercialização, que pudessem viabilizar um amplo processo de conversão da
agricultura de base familiar à agroecologia. Alguns desses aspectos avançaram
nesses quase três anos, mas não de forma a configurar uma política de desenvolvi-
mento rural baseada na agricultura sustentável, na diversificação produtiva, no
fortalecimento de mercados locais e na circulação interna de riquezas.
Não são raras as avaliações que dizem que o PT chegou ao governo sem um
projeto para o país, mas com um projeto de poder que incluía a reeleição de Lula.
Para isso, o governo centrou suas forças na busca por alianças que supostamente
lhes dariam maior capacidade de governar, ou maior governabilidade, no jargão
atual. Assim, incorporou a lógica pragmática e aproximou-se do que há de mais
retrógrado na política, dos setores mais fisiológicos, daqueles que, independente
da orientação político-ideológica do governo, não mudam, permanecem fiéis ao
governo. Não ousou inovar na forma de fazer política e deu as mãos ao fisiologismo.
A nomeação do ministro da Agricultura foi, no campo que estamos discutin-
do, a mais emblemática demonstração de que o governo não estava disposto a
promover transformações. Roberto Rodrigues foi escolhido por ser o nome de
maior destaque e influência no empresariado rural. Dirigente de organizações e
associações representativas do agronegócio, Rodrigues representava para Lula uma
possibilidade de interlocução com os ruralistas do Congresso para obter deles
apoio para a manutenção do poder. Desse ponto de vista, interessou especialmen-
te ao núcleo petista do Planalto o fato de a ligação desses parlamentares com o
líder do agronegócio se manter acima de divergências entre governo e oposição, já
que a bancada ruralista tem parlamentares dos dois lados, mas vota de acordo
com as orientações do ministro e deve grande fidelidade a ele.
Se faltava ao governo a visão de um ponto onde se almejava chegar, o mesmo
não ocorria com o titular do Ministério da Agricultura. Seu projeto de promoção
e fortalecimento do agronegócio monocultor, exportador e altamente consumi-
dor de recursos naturais representava uma rota de colisão explícita com políticas
no campo do desenvolvimento agrário, do meio ambiente, da saúde, da seguran-
ça alimentar, da inclusão social e dos direitos humanos.
A exportação de commodities agrícolas foi o elemento que pesou para concre-
tizar a política econômica voltada para a geração de superávit primário para o
pagamento de juros de dívidas. Isso permitiu a aliança da Agricultura com os
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31

demais ministérios empenhados na execução dessa política, como o da Fazenda, o


de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e o de Ciência e Tecnologia.
Assim, ficou configurado o racha ministerial dentro do governo, que promove
políticas antagônicas e que, sempre quando colocadas lado a lado para decisão do
governo, pendeu para aquele que apresentava cifras mais expressivas.
Apesar de nomear petistas progressistas para as pastas do Desenvolvimento
Agrário e do Meio Ambiente, Lula, ao entregar um de seus ministérios a Roberto
Rodrigues, fez a opção pelo agronegócio. Embora nunca feito de forma assumi-
da, isso ao mesmo tempo representou a opção pela liberação dos transgênicos.
O período de modernização da agricultura ocorrido nas últimas quatro déca-
das ficou conhecido como Revolução Verde. Com amplo incentivo do Estado,
por meio do direcionamento das políticas de ensino e pesquisa agropecuários,
assistência técnica e crédito agrícola, foram amplamente difundidos os pacotes
tecnológicos da agricultura convencional baseados no uso de sementes melhora-
das, entre elas as híbridas, fertilizantes químicos, agrotóxicos e maquinário. Por
ser altamente dependente de insumos externos à propriedade, esse modelo agríco-
la promoveu uma aproximação crescente da agricultura ao setor industrial.
As sementes transgênicas representam a continuidade desse paradigma, pro-
movendo uma vinculação campo–indústria ainda mais forte. Hoje, as empresas
de insumos são as mesmas das de sementes (e de fármacos). Um grupo de não mais
de meia dúzia de multinacionais comprou praticamente todas as empresas nacio-
nais de insumos e controla o setor. Só a Monsanto, por exemplo, controla mais de
90% do mercado de trangênicos no mundo. Não é de se estranhar, portanto, que
atualmente, de cada quatro hectares cultivados com plantas transgênicas, três usam
sementes resistentes a herbicidas. A mesma empresa fatura duas vezes, vendendo
sementes e vendendo o herbicida, apesar de as empresas prometerem que o uso de
sementes transgênicas reduz o uso de agrotóxicos. Mesmo dez anos depois do
início da produção de transgênicos no mundo, a venda de agrotóxicos continua
sendo a principal fonte de receita dessas empresas.
A apropriação privada de recursos genéticos por meio do patenteamento de
sementes vem para consolidar a dependência dos agricultores em relação à indús-
tria. Com a agricultura comandada pelo setor industrial e com a indústria con-
centrada e orientada para controlar ainda mais o sistema produtivo com pacotes
tecnológicos agora com sementes pateteadas, a opção pelo agronegócio é também
a opção pelos transgênicos.
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32

ANEXO
A Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos é uma rede que abriga ONGs,
associações, movimentos populares e grupos diversos. As entidades que integram
a campanha se comprometem com os princípios que a norteiam, entre eles: lutar
pela instituição do debate amplo e democrático sobre os transgênicos com a soci-
edade, pela aplicação do princípio da precaução, pela realização de estudos
criteriosos sobre a biossegurança dos transgênicos e pela avaliação dos impactos
da agricultura transgênica sobre a produção de base familiar. As entidades da
campanha defendem a agroecologia como modelo de produção para o campo e a
rotulagem plena de alimentos que contenham transgênicos. Todas suas manifes-
tações são pacíficas.
A seguir, listam-se cem organizações e redes que, em diferentes momentos, se
envolveram e realizaram ações de campanha contra os transgênicos:
Articulação Nacional pela Agroecologia (ANA); Confederação Nacional dos
Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação, Cooperativas de Cereais e Assalari-
ados Rurais (Contac)/CUT; Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agri-
cultura (Contag); Central Única dos Trabalhadores (CUT) Nacional; Federação
dos Trabalhadores na Agricultura Familiar na Região Sul (Fetraf)/CUT; Movi-
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Núcleo Agrário do Partido
dos Trabalhadores – Câmara Federal; Instituto Brasileiro de Defesa do Consumi-
dor (Idec); Centro de Tecnologias Alternativas e Populares da Zona da Mata (CTA-
ZM) – MG; Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimen-
to Agrário (Sinpaf) – Diretoria Nacional; Assessoar; Federação de Maricultores de
Santa Catarina (Famasc); Secretaria Nacional de Formação (SNF)/CUT; Assesso-
ria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA); Associação de Agri-
cultura Orgânico (AAO); Centro Ecológico de Ipê (CE-Ipê) – RS; CTA/Formad-
MT; Animação Pastoral e Social do Meio Rural (APR); Federação dos Trabalha-
dores na Agricultura do Estado de Tocantins; Terra e Direitos; Rede Nacional de
Advogados Populares (Renap); Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria; Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos; Fundação Rureco; Associação Gaúcha de
Proteção ao Ambiente Natural (Agapan); Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA); Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Espírito Santo; Rede
Ecovida de Agroecologia; Sinpaf – Seção Sindical do CNPA; Grupo de Trabalho
Amazônico (GTA); Instituto Terra Azul; Fetagro – Rondônia; Associação dos
Agricultores Biológicos do Rio de Janeiro (Abio); Rede de Mulheres Rurais da
América Latina e Caribe; Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR); Mo-
vimento dos Atingidos por Barragens (MAB)/Crabi; Associação Profissional dos
Engenheiros Florestais – RJ; Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e
Agronomia (Crea) – RJ; Sociedade Brasileira de Engenharia Florestal (Sbef); Mo-
vimento de Cidadania pelas Águas; Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do
Sul; Fundação Cebrac; Associação Ambientalista Pangea; Coalizão Rios Vivos;
Cetap; Comissão Pastoral da Terra (CPT); Cooperativa de Crédito Solidário
(Cresol); Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) – Chapecó/SC; STR –
Espumoso/RS; STR – Constantina/RS; Centro de Estudos e Formação Chico
Mendes – Toledo/PR; Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá; Instituto
Sociedade, População e Natureza (ISPN); Sindicato dos Sociólogos de São Paulo;
Centro Vianei de Educação Popular; Fase – Solidariedade e Educação; STR –
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33

Chopinzinho/PR; Sintraf; Fórum das Organizações dos Trabalhadores e Traba-


lhadoras Rurais da Região Centro-Sul do Paraná; Sinpaf/Cenargen; Greenpeace
Brasil; Núcleo Sindical Sudoeste do Paraná; Associação dos Professores Universi-
tários de Santa Catarina (APUFSC); Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc);
Secretaria de Agricultura do Paraná; ActionAid Brasil; Agora/RS; Fesans/RS; Co-
operativa Ecológica Coolméia; Cooperiguaçu; Federação dos Trabalhadores na
Agricultura – Pernambuco; Federação dos Trabalhadores na Agricultura – MG
(Fetaemg); Associação das Donas de Casa, dos Consumidores e da Cidadania
(Adocon) – SC; Associação de Defesa e Orientação dos Consumidores (Adoc) –
PR; Sistema de Cooperativa de Leite da Agricultura Familiar – Francisco Beltrão/
PR; Fórum das Entidades – Região Centro do Paraná; Cooperecológica; Movi-
mento das Donas de Casa e Consumidores – RS; Movimento das Donas de Casa
e Consumidores – BA; STR – Mandaí/SC; Fetagri – MS; Associação Crescer; Friends
of the Earth International; Rede de Jornalistas Ambientais Brasileiros; Cooperati-
va Central de Reforma Agrária (CCA) do Paraná; Deser – Movimento de Mulhe-
res Camponesas; Via Campesina; Feab; Instituto Socioambiental (ISA); Instituto
Biodinâmico (IBD); Associação Biodinâmica (ABD); Rede Capa; Holos; Ação
Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH); Fórum Brasileiro de
ONGs e Movimentos Sociais; Caminho de Libertação dos Sem Terra – CLST;
Movimento de Luta pela Terra (MLT); Movimento de Libertação dos Sem Terra
(MLST); Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL).

Agradecimentos especiais a Flavia Londres, que vivenciou essa história, pela


revisão e sugestões ao texto.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
A rodovia BR-163
e o desafio da sustentabilidade
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

A RODOVIA BR-163 E O DESAFIO DA SUSTENTABILIDADE

Ane A. C. Alencar
Geógrafa, pesquisadora na área
de planejamento regional do Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam)
ane@ipam.org.br

A pavimentação dos 993 quilômetros da rodovia BR-163 que atravessam o sudoes-


te paraense desponta como uma das principais e mais comentadas obras de infra-
estrutura da atualidade brasileira. Se, por um lado, o debate em torno da obra
reforça sua importância para o escoamento da produção de soja do centro-norte do
Mato Grosso, por outro, gera revolta nos movimentos socioambientais e nas popu-
lações tradicionais que, apesar de quererem a trafegabilidade da estrada, têm convi-
vido com o clima de violência e o conflito pela posse da terra e pela exploração
descontrolada dos seus recursos naturais. O cenário é agravado pela situação fundiária
indefinida da região, que facilita a grilagem de terras da União e a expulsão das
populações tradicionais, e é facilitado pela inoperância e/ou cumplicidade das au-
toridades ambientais, fundiárias, policiais e indígenas. A histórica ausência do esta-
do nesse trecho da rodovia ajuda a acirrar os conflitos e põe em xeque a viabilidade
socioambiental e a sustentabilidade do empreendimento.
Para tentar reverter esse processo acelerado de ocupação desordenada e os con-
seqüentes impactos no meio ambiente e nas populações locais, o atual governo
federal elegeu a BR-163 como obra-modelo. Em fevereiro de 2004, foi criado um
grupo de trabalho interministerial (GTI) para discutir a sustentabilidade da rodo-
via e propor um plano de ação para o corredor que liga a cidade de Cuiabá a
Santarém. O processo foi motivado pela pressão dos movimentos sociais locais
que vinham, desde 2003, se articulando para discutir e unificar uma proposta de
desenvolvimento regional, na qual a pavimentação da estrada representava ape-
nas um dos elementos. Paralelamente, os empresários ligados ao setor do
agronegócio e aos políticos locais se articularam em um consórcio, propondo ao
governo uma parceria para a pavimentação da rodovia. De certa forma, a
mobilização social teve suas propostas contempladas nas versões escritas do plano
e algumas de suas demandas, como a criação de reservas extrativistas na região,
foram efetivamente atendidas. Ao mesmo tempo, a parceria para a pavimentação
da rodovia, antes prevista como uma obra público-privada, foi redirecionada para
uma concessão totalmente privada. Apesar dos avanços no processo de negocia-
ção com vários grupos da região, propiciados pela construção do Plano BR-163
Sustentável, realizado pelo GTI, o governo não tem conseguido conter a intensa
migração e a rápida corrida pela terra e por seus recursos, principalmente na re-
gião paraense atravessada pela BR-163.
A morosidade da ação da máquina governamental nas suas três esferas de go-
verno e a fragilidade dos órgãos públicos com base na região acentuam-se com o
sucateamento da infra-estrutura e com a corrupção presente no corpo funcional.
As recentes ações de fortalecimento dos órgãos públicos na região, como o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), associa-
das ao poder de polícia, além da expedição de marcos regulatórios, como a Portaria
10, de dezembro de 2004, assinada conjuntamente pelo Instituto Nacional de
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3

Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pelo Ministério do Desenvolvimento


Agrário (MDA), e a Medida Provisória 239, que estabelece a limitação adminis-
trativa de 8,2 milhões de hectares ao longo da rodovia, só têm acirrado os confli-
tos na região, pois afetam diretamente a grilagem de terras e a exploração madei-
reira ilegal. Essas duas últimas atividades, apesar de ilícitas, representam o lastro
da economia local atualmente – são fonte de empregos e de poder político.
Em suma, o governo federal encontra-se em uma encruzilhada. Se, por um
lado, suas ações têm repercutido na direção da solução dos problemas de ocupa-
ção desordenada da terra e do uso indiscriminado de seus recursos, por outro, têm
acirrado a violência contra populações tradicionais e agilizado o desmatamento
na região. O contra-senso nos faz acreditar que a sustentabilidade tão almejada
para a região não depende somente das ações e da presença do governo, mas
também da capacidade da sociedade local em perceber o que representa o saque
de suas riquezas para o futuro da região.

1. A pavimentação e o acirramento dos conflitos na Cuiabá–Santarém


Os investimentos em infra-estrutura de transporte na Amazônia têm despontado
historicamente como o elemento central das políticas governamentais de desen-
volvimento para a região. No passado, a abertura de estradas numa região apa-
rentemente inóspita como a Amazônia despertou interesse dos cidadãos brasilei-
ros, principalmente do Nordeste do país, pela terra e dos governantes e empresá-
rios, pela facilidade de acesso aos recursos naturais como minérios e madeira. Essa
estratégia geopolítica possibilitou o avanço da fronteira agrícola e a expansão das
atividades agropecuárias para o interior da Amazônia, além de permitir a ligação
com as regiões mais desenvolvidas do país. Apesar de os projetos estarem embasados
na premissa de que vão trazer melhorias para a produção econômica e para o
bem-estar social, o resultado histórico desses investimentos, como a abertura de
novas estradas, teve como reflexo uma ocupação desordenada: 80% do
desmatamento da região encontra-se ao longo de suas principais rodovias fede-
rais. Acredita-se que parte dos impactos causados pela abertura ou pavimentação
de uma estrada na Amazônia possa ser minimizado se os investimentos forem
acompanhados de apoio governamental em outras áreas que não somente a de
infra-estrutura.
A abertura de estradas e também a pavimentação delas podem causar mudan-
ças estruturais na composição da paisagem, no crescimento populacional e no
arranjo dos usos da terra da região beneficiada. A rodovia Cuiabá–Santarém,
aberta no início da década de 1970, está passando por esse processo de rearranjo
espacial impulsionado pela sua iminente pavimentação. Dos 1.756 quilômetros
de rodovia, que ligam a cidade de Cuiabá, no sul do estado do Mato Grosso, a
Santarém, nas margens do rio Amazonas, no Pará, 993 quilômetros ainda não
receberam asfalto. Esse trecho não-pavimentado encontra-se entre a cidade de
Guarantã, no norte do Mato Grosso, e o quilômetro 101, ao sul da cidade de
Santarém, representando quase a totalidade do trecho da rodovia que atravessa o
Pará. A região sofre com as péssimas condições de trafegabilidade da rodovia,
principalmente na época chuvosa, deixando a população que vive às suas mar-
gens em uma situação de abandono e sem possibilidade de desenvolvimento eco-
nômico para suas atividades.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

Depois de três décadas de abandono, essa rodovia volta à pauta do governo


federal como uma obra prioritária no Programa Avança Brasil, do governo Fernando
Henrique Cardoso (FHC), e ganha força no Programa Brasil para Todos, do gover-
no Lula. Agora, não mais com o objetivo principal de fomentar a ocupação ou de
integrar a economia de regiões brasileiras, mas, principalmente, visa diminuir o
custo de transporte da soja das regiões central e setentrional do Mato Grosso para o
porto de Santarém. Esse forte apelo econômico tem movimentado empresários e
políticos da região e recebeu o apoio dos empresários da Zona Franca de Manaus,
que também representam outro grande grupo beneficiado com a ligação efetiva do
porto de Santarém com a região central e Sudeste do país.
Mesmo com os benefícios privados provenientes da pavimentação, se ela não for
acompanhada de investimentos em planejamento, pode se repetir a história de ou-
tras grandes obras de infra-estrutura na região, causando impactos sociais, ecológi-
cos e econômicos irreparáveis tanto para a população local como para o ecossistema.
Somente o anúncio da pavimentação da rodovia tem provocado o aumento
populacional nas cidades da região, a disputa pela terra e pela posse dos seus recur-
sos naturais. A ocupação desordenada favorece os novos empreendedores e empre-
sários que vêem, nessa região de fronteira ainda pouco desmatada, uma oportuni-
dade de investimento em terras a baixo custo e de apropriação de seus recursos
florestais. Esse modelo de ocupação é característico dos modelos de desenvolvimen-
to tradicionais que se baseiam em investimentos externos a população local e favo-
recem a concentração de renda, reproduzindo uma paisagem dominada por latifún-
dios (grande concentração de terra), por economias baseadas na exploração e por
exportação de matéria-prima e atividades agropecuárias extensivas.
Um fator que facilita a apropriação da terra e de seus recursos na região é a
situação fundiária do sudoeste do Pará, onde grande parte do território pertence
legalmente ao governo federal e permanece ainda sem destinação estabelecida. A
indefinição fundiária tem acirrado os conflitos e aumentado os casos de violência e
os assassinatos no campo. Essas terras, de propriedade da União, que dominam a
região no trecho paraense da rodovia entre a fronteira com o Mato Grosso até os
limites dos projetos de colonização no município de Trairão, têm sido apropriadas
ilegalmente, gerando a expulsão de populações tradicionais. As unidades de conser-
vação e terras indígenas dessa região são focos de pressão e de saques de madeira e
minérios. Se continuarem nesse ritmo intensivo de exploração, perderão, a longo
prazo, sua finalidade de conservação da biodiversidade, de manutenção das funções
ecológicas e de preservação do patrimônio cultural de suas populações.
Em suma, a corrida pelos recursos naturais, incentivada pela possibilidade de
melhoria da infra-estrutura de transporte, tem acelerado o desmatamento na re-
gião e promovido a grilagem de terra, a especulação imobiliária e o estabeleci-
mento de grandes fazendas de pecuária extensiva e pouco produtiva. Além disso,
a garimpagem dos recursos florestais, por meio da exploração madeireira
desordenada, degrada as florestas da região deixando-as vulneráveis aos incêndios
florestais e sem valor econômico competitivo com os usos da terra agropecuários.
Por fim, esse modelo de ocupação da fronteira incentiva a expropriação social das
populações tradicionais, que não usufrui dos benefícios econômicos gerados ao
longo do processo. Assim, diante da possibilidade de asfaltamento do trecho
paraense da Cuiabá–Santarém, um novo desafio se impõe: como transformar esse
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

modelo de baixa produtividade e exaustão dos recursos naturais em um modelo


no qual o desmatamento seja reduzido ao estritamente necessário, com benefícios
maiores para toda a sociedade?

2. Mais de 30 anos de história da Cuiabá–Santarém


A rodovia Cuiabá–Santarém foi planejada como um dos projetos do Plano de
Integração Nacional e começou a ser aberta em 1973. A principal justificativa
para a construção da BR-163 seria a integração dos projetos de colonização da
Transamazônica à região Centro-Oeste, ligação de grande importância em virtude
da não-navegabilidade do Alto Tapajós (acima de Itaituba) e por possibilitar aos
colonos dos municípios de Placas, Rurópolis e Itaituba acesso a Santarém e a
outras regiões do país. Além disso, essa rodovia, que corta terras ricas em minéri-
os, possibilitaria o acesso às áreas de mineração e de garimpo próximas a Itaituba
e reduziria os custos de transporte de cargas nos estados do Pará, de Mato Grosso
e de Rondônia, além de permitir a exploração madeireira de regiões ricas em ma-
deira de lei. A Cuiabá–Santarém poderia favorecer também as companhias res-
ponsáveis pelos assentamentos privados no centro-norte do Mato Grosso e os
garimpos, além de fornecer acesso aos recursos florestais desse estado.
A história de abertura da Cuiabá–Santarém ou BR-163 nos leva ao dia 1º de
setembro de 1970, quando foram iniciados oficialmente os trabalhos nessa rodo-
via. O exército brasileiro, através do 8º e 9º Batalhão de Engenharia de Constru-
ção (BEC), recebeu do Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER)
a responsabilidade de ligar a região Centro-Oeste ao Baixo Amazonas pela cons-
trução desse eixo rodoviário. As obras foram divididas em dois trechos: o primei-
ro indo de Santarém até a localidade de Cachimbo (de norte para o sul), sendo
responsabilidade do 8º BEC com base em Santarém; o segundo trecho, de Cuiabá
ao Cachimbo (de sul para o norte), destinado ao 9º BEC. As obras de implanta-
ção dessa rodovia se estenderam por pouco mais de seis anos. Ela foi inaugurada
em 20 de outubro de 1976.
Apesar de ter o seu traçado concluído no fim da década de 1970, o asfaltamento
nunca foi completado. Dos 1.756 quilômetros que ligam a cidade de Cuiabá a
Santarém, 993 quilômetros encontram-se não-pavimentados – 893 quilômetros
cortam o sudoeste do Pará e 100 quilômetros atravessam a região central do Mato
Grosso. A rodovia teve a sua manutenção totalmente abandonada na década de
1980, voltando a receber atenção governamental somente na década de 1990.
Em 1991, foi realizada, pela Secretaria Executiva de Transportes (Setran), a licita-
ção das obras de pavimentação do trecho da rodovia a partir da divisa paraense
até a cidade de Rurópolis. Esse trecho foi dividido em quatro lotes e destinado a
licitação para empreiteiras. Entretanto, as obras de pavimentação estiveram prati-
camente paralisadas no período, não avançando até 1997, quando a continuação
dos trabalhos voltou para o domínio do DNER.
Em 2000, com o crescimento da produção de grãos, a Cuiabá–Santarém co-
meça a despontar como nova rota para baratear o transporte da soja produzida
na região central e norte do Mato Grosso, despertando o interesse do governo e
dos empresários pela sua pavimentação. Esse fato motivou as empreiteiras res-
ponsáveis pelos quatro lotes anteriormente licitados a se reunirem em um consór-
cio construtor, ficando com a responsabilidade de deixar todo o trecho trafegável
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6

até 2002. Nesse período, foram realizadas obras de terraplenagem e de revesti-


mento primário nos locais onde existia a maior concentração de atoleiros, e fo-
ram pavimentados 30 quilômetros da rodovia entre Campo Verde (quilômetro
30), no cruzamento entre a Cuiabá–Santarém e a Transamazônica, e a cidade de
Trairão. Esse mesmo trecho, somado ao trecho da Transamazônica de Campo
Verde a Miritituba, foi alvo de análise do Estudo de Impacto Ambiental – Relató-
rio de Impacto Ambiental (EIA-Rima), contratado pelo Departamento Nacional
de Infra-Estrutura e Transporte (DNIT) em 2002, para avaliar os impactos da
pavimentação da rodovia. Esse estudo ficou sob a responsabilidade da Ecoplan e
foi entregue ao Ibama em 2003 para ser avaliado. O EIA-Rima foi discutido e
apresentado em audiências públicas que ocorreram em agosto de 2004.
Paralelamente ao processo de audiências públicas para a apresentação do EIA-
Rima, ocorreram as consultas públicas no Pará, no Mato Grosso, no Amazonas e
em Brasília para a apresentação da primeira versão do Plano BR-163 Sustentável.
Esse plano foi fruto do GTI criado em março de 2004, composto por 14 ministé-
rios, e sob coordenação da Casa Civil da Presidência da República. A necessidade
de criação de um grupo de trabalho para a construção de um plano integrado de
desenvolvimento para a região de influência da BR-163 surgiu em decorrência
dos problemas latentes da dinâmica da fronteira e da pressão dos movimentos
sociais e das organizações não-governamentais (ONGs) de atuação local por in-
vestimentos sociais, econômicos e ambientais que acompanhassem a pavimenta-
ção da estrada e, portanto, diminuíssem seu impacto. Já como uma das ações do
Plano BR-163 Sustentável, no fim de 2004, o governo federal criou uma série de
unidades de conservação na área de influência da rodovia e interditou adminis-
trativamente uma região de aproximadamente 8 milhões de hectares na margem
esquerda da estrada.
Essas decisões de cunho fundiário, associadas à intensificação da ação do Ibama
na região, à expedição da Portaria 10 do Incra, que suspendeu a liberação de
planos de manejo em terras públicas, e às operações de investigação contra a
corrupção no Incra e no Ibama, criaram uma situação de caos na economia local,
dominada pelo comércio de terras e de madeira. Em abril de 2005, a segunda
versão do Plano BR-163 Sustentável foi discutida em uma nova rodada de con-
sultas públicas na região. O resultado está sendo sistematizado pelo GTI da BR-
163 e está prestes a ser apresentado com a última versão do plano. Apesar de o
processo de consultas ter sido criticado pelo pouco retorno de seus resultados à
população local, a metodologia empregada possibilitou o diálogo e o confronto
entre os vários atores econômicos, sociais e políticos.
A última audiência pública referente à rodovia BR-163 ocorreu em maio de
2005, em Brasília, e tratou da apresentação do estudo sobre o modelo de conces-
são da estrada encomendado pelo DNIT ao Instituto Militar de Engenharia (IME).
Na audiência, foi confirmada a viabilidade econômica da exploração da rodovia
e foi assumido publicamente que a pavimentação da BR-163 ficaria sob a respon-
sabilidade do setor privado – prevista para ser uma concessão de 20 anos –, des-
cartando o arranjo previamente suscitado de Parceria Público-Privada (PPP). Atu-
almente, o DNIT está esperando a análise do EIA-Rima e a liberação da licença de
funcionamento pelo Ibama, além de preparar o edital para a licitação dos trechos
de pavimentação e manutenção da estrada.
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3. A diversidade de características ao longo da Cuiabá–Santarém


O processo histórico de ocupação e a heterogeneidade das condições naturais de
solo, clima, relevo e vegetação dão a rodovia Cuiabá–Santarém uma diversidade
de usos da terra e de paisagens claramente diferenciadas de norte a sul. Para faci-
litar o diagnóstico da área diretamente afetada pela pavimentação da estrada e a
compreensão das potencialidades de uso dos recursos naturais, foram definidas
regiões com base nas características físicas, nas atividades econômicas predomi-
nantes e no tipo de ocupação. A partir dessa abordagem, a BR-163, que atravessa
o Pará, foi dividida em três regiões:
1. Região do Baixo Amazonas – Fronteira antiga, com mais de 300 anos de
ocupação, é constituída pelos municípios de Santarém e Belterra, os únicos
cortados pela rodovia na região. Entretanto, o impacto dessa rodovia afeta
outros municípios do Baixo Amazonas. Na área, dominada por floresta
ombrófila densa e várzea ao longo do rio Amazonas, foram implantados pro-
jetos de assentamento pelo Incra em 1973, acompanhando a abertura das ro-
dovias Cuiabá–Santarém e Transamazônica. A atividade econômica historica-
mente predominante é a agricultura familiar, com a lavoura branca e o
extrativismo de produtos florestais madeireiros e não-madeireiros, além da
pecuária extensiva de baixa produtividade e da pesca de subsistência. Porém,
nos últimos anos essa região tem despontado como uma das principais frontei-
ras de expansão do cultivo da soja no estado do Pará em virtude da existência,
no planalto Tapajós-Xingu, de uma formação com extensas superfícies de for-
ma tabular (“platôs”) propícias à mecanização, além da localização estratégi-
ca próxima ao porto de grãos da Cargill, empresa de produtos agrícolas, inau-
gurado em 14 de abril de 2003 na orla da cidade de Santarém. Mesmo tendo
características de uma região de colonização, ela se difere das demais pelo fato
de ter sido inicialmente ocupada a partir do rio Tapajós e do Amazonas, onde
se concentra grande parte da população paraense ao longo da rodovia e 18%
da população total do corredor.
2. Região da Transamazônica – Representada pela área de confluência entre as
rodovias Cuiabá–Santarém e Transamazônica, tem como principal caracterís-
tica a ocupação direcionada pelos projetos de colonização da década de 1970.
É conformada pelos municípios de Placas, Rurópolis, Trairão, Aveiro e a parte
norte do município de Itaituba, todos atravessados por essas rodovias. A pro-
dução agrícola familiar, com a lavoura de subsistência e de culturas perenes,
representa a principal atividade, tendo como produtos de destaque a mandio-
ca, a banana, o cacau, o café, a laranja e a pimenta-do-reino, mas cedendo
espaço para a pecuária de pequena produção. Extensas áreas de floresta
ombrófila densa e aberta caracterizam a vegetação da região e fornecem maté-
ria-prima para a indústria madeireira, que se consolida como atividade econô-
mica por ser a principal beneficiada pelo intenso processo de grilagem de terras
que vem ocorrendo ao redor dos projetos de colonização e próximo das unida-
des de conservação. A pecuária se faz presente na área, principalmente em pe-
quenas propriedades. Grandes fazendas também são encontradas, mas sem
característica empresarial e de baixa produtividade. A região encontra-se sob
influência de solos argilosos de textura média e de um relevo acidentado, de-
corrente de sua localização entre a bacia amazônica e o cráton amazônico. A
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topografia acidentada encontrada é uma das principais barreiras para a expan-


são de cultivos agrícolas de larga escala que necessitam de mecanização. Nessa
zona, concentram-se 10% da população dos municípios da área de influência
do corredor Cuiabá–Santarém.
3. Região Sudoeste do Pará – Vasta região representada, principalmente, pelo
município de Novo Progresso e partes dos municípios de Itaituba e Altamira,
sendo que somente o primeiro possui sede ao longo da rodovia. Outros impor-
tantes centros de negócios são a vila de Moraes de Almeida, pertencente ao
município de Itaituba e portal para a reserva garimpeira localizada entre os rios
Jamanxim e Tapajós, e o distrito de Castelo dos Sonhos, pertencente ao municí-
pio de Altamira, localizado às margens da rodovia e ficando a mais de 1.000
quilômetros de distância da sua sede municipal. A região do sudoeste paraense
passou por uma fase de decadência do garimpo de ouro no início da década de
1990, mas ainda preserva uma tradição de mineração tradicional. Na região,
grandes garimpos, como Crepori, representam importantes centros. Hoje, des-
ponta como um dos principais pólos madeireiros do Pará e da Amazônia. Em
virtude da abundância de recursos florestais ainda relativamente preservados,
essa região passa por um processo dinâmico de extração madeireira motivado
pela melhoria das condições de trafegabilidade da rodovia principal e do esgota-
mento dos recursos florestais no norte do Mato Grosso. Outra atividade de
extrema importância na região é a pecuária, que, apesar de estar presente desde a
abertura da estrada, recentemente vem adquirindo características empresariais,
deixando de ter o caráter de atividade voltada para a especulação de terras e
garantia de posse. A irregularidade da situação fundiária predominante na área
faz com que a disputa pela posse da terra e de seus recursos seja acirrada, gerando
conflitos e colocando a região entre as mais violentas da Amazônia. Apesar de
sofrer com a intensa migração provocada pelo anúncio da pavimentação – prin-
cipalmente para beneficiar os produtores de soja do Mato Grosso –, possivel-
mente não terá grandes áreas convertidas para a produção de soja, pois está
localizada em terrenos de topografia irregular com muitos afloramentos rocho-
sos. Uma região com extensas áreas planas encontra-se na Serra do Cachimbo,
dominada por vegetação de campinarana e solos arenosos. A população da re-
gião compreende apenas 2% do total do corredor, segundo dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

4. A disputa pela terra e por seus recursos ao longo da BR-163


No passado, a região do Pará atravessada pela BR-163 era ocupada dominante-
mente por populações tradicionais (índios, ribeirinhos, extrativistas etc.), que ti-
nham como tradição práticas de uso da terra pouco danosas ao meio ambiente. A
abertura da estrada, no início da década de 1970, proporcionou o acesso à terra a
um conjunto de novos atores econômicos, sociais e políticos. Esse fluxo foi recen-
temente intensificado a partir do anúncio da pavimentação da rodovia, em 2001.
Entre os grupos de atores que começaram a fazer parte da história da Cuiabá–
Santarém nos últimos 30 anos estão: madeireiros, pecuaristas, agricultores famili-
ares (colonos e assentados), garimpeiros e, mais recentemente, grileiros (comerci-
antes ilegais de terra), empresários agrícolas (grandes produtores de grãos) e as
ONGs que trabalham pela conservação do meio ambiente. Esses grupos de atores,
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somados às populações tradicionais ainda existentes na região, representam a di-


versidade de interesses sobre a terra e seus recursos estabelecidos atualmente ao
longo da rodovia. Os diversos interesses sobre o domínio e sobre o uso da terra e dos
recursos naturais despontam como a principal fonte de conflito entre os grupos
sociais e econômicos presentes na região. Os conflitos são potencializados pela au-
sência de instituições do estado e/ou pela conivência e inoperância das poucas insti-
tuições governamentais existentes com a elite local, dominada por madeireiros e
fazendeiros, caracterizando uma região com pouca ou inexistente governança.
A história de conflito entre esses atores sociais, econômicos e políticos é um
reflexo de suas relações com a terra e de suas estratégias de ocupação e apropria-
ção dos recursos naturais. No contexto da Cuiabá–Santarém que atravessa o esta-
do do Pará, um grupo de atores de grande relevância para a dinâmica regional de
ocupação e para o uso dos recursos é o madeireiro. Esse grupo, representado por
extratores e empresários, é inerente das regiões de fronteira da Amazônia pela
própria natureza extrativa de sua atividade que requer abundância de recursos
florestais. Os madeireiros representam a atividade econômica de maior crescimen-
to nos últimos cinco anos na região, principalmente em virtude da abundância de
florestas com espécies madeireiras de alto valor econômico, legalmente “sem dono”,
a baixo – ou sem – custo, à melhoria da infra-estrutura viária local, facilitando o
acesso ao recurso florestal, e à abundância de mão-de-obra barata advinda do
declínio dos garimpos da região. Outros fatores, como a escassez de matéria-pri-
ma no Mato Grosso, a inclusão de novas tecnologias no processo de extração e o
aumento do número de espécies de valor comercial no mercado, também têm
incentivado a expansão da atividade para o sudoeste paraense. Entretanto, gran-
de parte do setor madeireiro atua ilegalmente na Amazônia, sem planos de mane-
jo, gerando empregos perigosos e mal pagos e promovendo a exploração de alto
impacto na floresta. Esse tipo de exploração gera danos à estrutura florestal e à
biodiversidade, além de tornar a floresta mais susceptível aos incêndios florestais,
naturalmente pouco comuns na região.
Atualmente, os grandes centros madeireiros da região cortada pela rodovia
Cuiabá–Santarém no sudoeste paraense são as cidades de Castelo dos Sonhos (dis-
trito de Altamira), Moraes de Almeida (pertencente ao município de Itaituba),
Novo Progresso e Itaituba. Com exceção de Itaituba, esses centros madeireiros
ganharam forma e força com a migração e o investimento de empresários do
norte do Mato Grosso, motivados principalmente pela escassez de madeira na
região de origem e pela indefinição fundiária da região paraense. A indefinição
proporciona a aquisição de grandes áreas de floresta a baixo custo, o que tem sido
uma estratégia comum entre as empresas madeireiras para obter grandes reservas
de estoque de madeira de alto valor comercial.
A exploração madeireira, que ocorre na área de influência dessas cidades, co-
meça a entrar no segundo ciclo de corte, ou seja, deixa de ser voltada somente
para a extração de madeiras nobres (alto valor comercial), que podem pagar pelo
investimento em infra-estrutura necessário à extração, e começa a extrair um sele-
to número de espécies de médio valor comercial que necessitam de alguma infra-
estrutura previamente estabelecida. A madeira extraída da região segue rumo ao
sul pela própria rodovia, servindo principalmente ao mercado doméstico do su-
deste do país. Esses ciclos de extração, assim como sua intensidade e abrangência,
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se diferem ao longo da rodovia, dependendo do acesso ao recurso madeireiro e ao


mercado consumidor dessa madeira. No centro-norte do Mato Grosso, a inten-
sidade da exploração madeireira – concentrada no pólo da cidade de Sinop, com 30
anos de existência – esgotou a matéria-prima de melhor qualidade e agora explora
as espécies madeireiras que, anteriormente, não tinham valor comercial. Na região
de Trairão, Itaituba, Rurópolis e Placas, do trecho paraense de influência da Cuiabá–
Santarém ao norte do pólo de Novo Progresso, a extração madeireira volta-se prin-
cipalmente para a exportação, a partir da extração de espécies nobres e de alto valor
comercial, que realiza através do porto de Itaituba. Na região de Santarém, a explo-
ração madeireira abastece prioritariamente o mercado externo, entretanto aumenta
o número de espécies a serem exploradas na área, possivelmente por causa da melhoria
da infra-estrutura implantada nos últimos anos.
A pavimentação do trecho paraense da Cuiabá–Santarém traz uma perspectiva
de intensificação e de expansão do setor madeireiro para a região do Pólo de
Novo Progresso. O acesso, facilitado pela pavimentação, às estradas secundárias
da região permitiria economia no custo de extração e no de transporte, possibili-
tando mais investimentos em ramais madeireiros. Permitiria, também, acesso a
novas áreas, assim como diminuiria o custo de transporte para o mercado, tor-
nando viável a comercialização de mais espécies. Com a pavimentação da Cuiabá–
Santarém, a indústria madeireira do extremo norte da rodovia e da região da
Transamazônica sob a influência da estrada, que atualmente está exportando um
pequeno número de espécies (de oito a dez) pelos portos de Itaituba e de Santarém,
terá madeira para abastecer o mercado doméstico do sul e sudeste do país, incen-
tivando ainda mais a rápida expansão da atividade na região.
Os madeireiros, além de terem um importante papel de abrir o caminho para
novas frentes de ocupação da região por meio de seus ramais madeireiros, domi-
nam o poder econômico e político local na grande maioria das cidades ao longo
da rodovia no sudoeste do Pará. São eles os principais responsáveis pela movi-
mentação financeira nessas regiões de fronteira e um dos maiores empregadores,
dividindo o posto somente com o poder público local. Onde não conseguem
oficialmente o poder político – prefeituras municipais – atuam em “parceria”,
sendo um dos grandes aliados na manutenção da infra-estrutura de estradas vicinais,
o que lhes garante respeitabilidade da população da zona rural (colonos, assenta-
dos, índios, fazendeiros), da urbana e de seus governantes. Todos esses elementos
dão aos madeireiros um status privilegiado em relação aos outros atores na dispu-
ta pela terra e pelos recursos florestais no trecho do sudoeste paraense cortado
pela Cuiabá–Santarém. O grande desafio desse setor é a sustentabilidade da extra-
ção madeireira a longo prazo, evitando a rápida escassez do recurso. Essa
sustentabilidade não será atingida enquanto não forem delimitadas áreas específi-
cas para a atividade, que possam garantir sua destinação de uso no futuro através
do manejo florestal exigido por lei. A delimitação fundiária oficial evitaria confli-
tos com outros atores e manteria a estrutura econômica das cidades que depen-
dem da exploração madeireira.
Outro grupo de atores de grande influência política na região é representado
pelos pecuaristas que, assim como os madeireiros, detêm a posse de grandes áreas
de terra e são os responsáveis pela maior parte do desmatamento às margens da
rodovia, principalmente entre as cidades de Moraes de Almeida e Castelo dos
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Sonhos. Somente na região de Novo Progresso, importante pólo da pecuária regi-


onal, 80% dos primeiros dez quilômetros às margens da estrada foram desmatados,
principalmente, para essa atividade. A implantação de grandes áreas de pastagem
para o desenvolvimento da pecuária na região foi uma prática utilizada por mui-
tos anos nos primeiros quilômetros da Cuiabá–Santarém como justificativa de
benfeitoria para garantir a posse da terra. Entretanto, a perspectiva de pavimen-
tação da rodovia associada à possibilidade de eliminação das barreiras sanitárias
para a carne paraense (eliminação da aftosa) tem mudado o caráter especulativo
da atividade. A súbita valorização das terras provocada pelo frenesi da pavimen-
tação da Cuiabá–Santarém motivou os velhos donos, que por anos abandonaram
seus grandes pastos, a voltarem para reclamar suas terras. Em alguns casos, encon-
traram as mesmas nas mãos de terceiros. Fatos que acirraram os conflitos na re-
gião, transformada em bolsões de violência, onde a prática comum era a de fazen-
deiros poderosos e influentes contratarem um “exército” particular de pistoleiros
para resguardar ou tomar suas posses.
Aqueles que conseguiram se estabelecer viram, na região, um alto potencial para
a pecuária, passando a investir pesado na organização da atividade. Foi nesse con-
texto, de expectativa pela pavimentação e de definição dos limites das propriedades
e da elite pecuária da região, que o setor pecuário local sofreu transformações pro-
fundas. O setor se organizou e se especializou com objetivo de atingir as altas taxas
de retorno conseguidas no Mato Grosso e ganhar o mercado nacional e até o inter-
nacional. Essa mudança deve-se também à mentalidade dos novos pecuaristas, que
venderam suas terras no Mato Grosso para duplicar suas posses no Pará, hoje parte
da classe empresarial do setor na região. Apesar da pecuária não empregar muita
mão-de-obra, pela natureza extensiva da atividade praticada no local, o reflexo do
investimento nessa atividade pode ser percebido nas principais cidades da região
por meio do aumento do setor de serviços especializados (lojas, concessionárias,
serviços veterinários etc.). Entretanto, a transformação da pecuária em uma ativi-
dade realmente produtiva não está atingindo a totalidade da região. A pecuária
especulativa, utilizada como fachada pelos grileiros e “novos pecuaristas” para ga-
rantir a posse da terra, tem sido praticada em larga escala, principalmente a partir
dos dez quilômetros de distância da rodovia. Esse tipo de atitude gera graves confli-
tos com os madeireiros, que precisam do recurso florestal, e com as populações
tradicionais (ribeirinhos e extrativistas) que, por ventura, já ocupavam essas terras.
A criação extensiva de gado no corredor tem diversas vantagens em relação a
outros usos do solo, podendo, assim, dominar a paisagem futura da região. A
pecuária extensiva é uma atividade de baixo investimento, pouco risco e baixos
custos de produção. Exige menor trabalho de supervisão, de controle no processo
produtivo e tem menor potencial de conflitos trabalhistas por empregar pouca
mão-de-obra. O gado é um produto com preços crescentes nos últimos anos e
uma fonte de capital líquido por ser facilmente transacionável. Além disso, o
custo de manutenção da terra, o denominado Imposto Territorial Rural (ITR),
tem alíquota muito baixa para propriedades que apresentam alguma produção, e
a pecuária, mesmo quando muito improdutiva (menos de 0,70 cabeça por hecta-
re), é considerada legalmente produtiva. Ao contrário da agricultura, a fiscaliza-
ção da atividade pecuária é difícil e, no caso dos grandes proprietários, existe o
poder político e cultural que caracterizam essa atividade.
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Logo, se a trajetória de ocupação da rodovia BR-163 seguir os moldes de


outras rodovias da região, é esperado que a concorrência pelas terras disponíveis
ao longo do corredor seja liderada pela atividade pecuária, produzindo uma pai-
sagem dominada pelas pastagens extensivas, de baixa lucratividade e produtivi-
dade, que aumenta de forma acelerada o desmatamento. Nesse contexto, a renta-
bilidade conseguida pela especulação com a terra barraria o desenvolvimento de
alternativas econômicas mais sustentáveis e de maior ganho social como sistemas
agroflorestais, manejo florestal de baixo impacto e extração de produtos flores-
tais não-madeireiros (frutos, látex e essências vegetais).
Como evitar esse cenário tradicional, decorrente da implementação da pecuá-
ria extensiva, com a qual predominaria a especulação e a devastação das riquezas
florestais ainda intocadas na Cuiabá–Santarém? Quais são as alternativas para
desenvolver a criação de gado visando à lucratividade do setor, o menor
desmatamento e inibir conflitos com outros atores? O desafio é intensificar o uso
das áreas já desmatadas e evitar novas áreas desmatadas somente para especula-
ção. Em outras palavras, a intensificação e a especialização da atividade pecuária
podem ser opções viáveis para obter alto retorno econômico e reduzir o impacto
sobre a cobertura vegetal, embora isso demande um período de tempo maior. A
intensificação duplica a produtividade do pasto por meio de investimentos em
adubação e arado da terra, seleção de gramíneas adequadas, novas tecnologias,
prevenção do fogo acidental e tratamento da saúde do gado. Esse sistema pode ser
implementado em áreas abandonadas para evitar o avanço da atividade sobre a
floresta. Além disso, a pecuária intensiva não usa fogo, reduzindo a possibilidade
de incêndios florestais. A pecuária de corte em pastagens reformadas através da
intensificação do uso da terra tem registrado, na última década, taxas de retorno
variando entre 12% e 21%. Na região de Paragominas, mais de 600 mil hectares
de terra abandonada foram recuperados com variedades melhoradas de pasto, a
custos aproximados de US$ 260 por hectare, permitindo densidades de uma a 1,5
cabeça por hectare e gerando retornos destes investimentos de 13 a 14%. Esse tipo
de experiência mostra a viabilidade econômica do sistema de pecuária intensiva
na Amazônia e sua sustentabilidade ambiental por ser desenvolvida em áreas já
alteradas. Entretanto, para que o sistema garanta a heterogeneidade de atores e de
usos da terra é preciso que seja delimitada sua expansão e que seja garantida a
destinação de terras para a pequena produção.
Outros atores que começam a afetar direta e indiretamente a região são os
grandes empresários do setor da agricultura mecanizada. Diretamente, porque
grandes áreas anteriormente ocupadas pela produção familiar estão sendo reverti-
das em campos de soja; indiretamente, porque a expansão dessa atividade tem
impulsionado o asfaltamento da rodovia Cuiabá–Santarém, gerando uma dinâ-
mica de ocupação desordenada. A pavimentação da rodovia e a construção do
porto graneleiro da Cargill em Santarém fazem parte da estratégia de expansão do
sistema multimodal de transporte, facilitando o escoamento da produção de cer-
ca de 3 milhões de toneladas de soja por ano (35% da produção de Mato Grosso)
produzidas no centro-norte do Mato Grosso. Atualmente, a produção é escoada
para os mercados internacionais através do porto de Santos, que fica a mais de 2
mil quilômetros na direção sudeste do país. O asfaltamento da Cuiabá–Santarém
e a construção do novo porto em Santarém reduziriam essa distância terrestre em
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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800 quilômetros, e em até sete dias a distância marítima, o que tem criado expec-
tativa nos investidores que já mostram interesse em plantar soja cada vez mais ao
norte, incorporando novas áreas da região amazônica no processo produtivo, por
causa dos menores preços e das menores distâncias do porto de exportação e do
mercado internacional.
O completo asfaltamento da Cuiabá–Santarém recebe apoio político e empre-
sarial muito forte, principalmente no norte de Mato Grosso, o que facilita a en-
trada da agricultura mecanizada em larga escala na região. É preciso desenvolver
mecanismos para maximizar os benefícios que a expansão dessa cultura pode
trazer para a região e minimizar seus impactos negativos sobre a cobertura vegetal
e as populações locais. Nesse sentido, o engajamento do setor agroindustrial com-
prometido com o desenvolvimento local, estendendo seus investimentos para ou-
tros setores que dinamizem a economia e gerem maior renda e igualdade social,
será determinante. Num cenário tradicional, o asfaltamento da Cuiabá–Santarém
deverá induzir a expansão da soja para o extremo norte do corredor, pois grande
parte do sudoeste paraense tem terreno de topografia acidentada e repleta de
afloramentos rochosos, inapropriado à mecanização. Logo, os platôs localizados
ao sul da cidade de Santarém representariam essas áreas prioritárias para a expan-
são do cultivo no oeste paraense. Além disso, as áreas planas da região estão a
poucos quilômetros do porto de Santarém, tendo por isso um dos menores custos
de transporte do país.
A soja pode constituir-se na base da economia do extremo norte e do sul do
corredor, ativando indiretamente outras atividades econômicas como avicultura,
suinocultura, pecuária, turismo e outros serviços que gerarem emprego e renda para
a população local. Não obstante, os ganhos estarão concentrados em pequenos
setores da sociedade que possuem a capacidade de efetuar altos investimentos, sem
alcançar a grande maioria da população do corredor, que simplesmente observará o
desenvolvimento passar e se localizar em alguns pólos. Embora existam empregos
secundários gerados pelas indústrias de fertilizantes, sementes, agrotóxicos, máqui-
nas, pelos restaurantes e pelas lojas especializadas para o setor do agronegócio, o
desafio será o de mudar o cenário de concentração de riqueza, fazendo com que a
indústria da soja possa, de fato, contribuir para o desenvolvimento da região por
meio da maximização dos benefícios da agroindústria e a minimização de seus
impactos sobre o meio ambiente e a população que habita o corredor.
O setor familiar rural, que engloba aqueles atores cuja mão-de-obra produtiva
é familiar, como a dos colonos e assentados, representa atualmente um dos grupos
mais ameaçados pela pavimentação da estrada. Entretanto, dependendo de como
o processo de planejamento que acompanha a pavimentação for conduzido, ele
terá o potencial de ser um dos mais beneficiados. Assim, esse grupo de atores é a
chave para o êxito social e econômico da obra, pois representa a maioria da popu-
lação rural do corredor com potencial produtivo que, se não for aproveitado,
pode gerar bolsões de pobreza nas cidades da região. Entre as ameaças ao grupo
de atores estão os problemas fundiários, a falta de infra-estrutura para a produ-
ção e a comercialização nos assentamentos e comunidades, a falta de organização
social e a inexistência de alternativas economicamente viáveis para o sistema de
produção agrícola atual. A maior parte desses produtores está concentrada ao
longo de travessões abertos na época da implantação dos projetos de colonização
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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nas décadas de 1970 e 1980, ou nos novos assentamentos demarcados a partir da


década de 1990. Nessa região, os produtores familiares possuem pequenos lotes
(em média cem hectares) e se dedicam ao plantio de lavouras temporárias (arroz,
milho, feijão e mandioca) e, em menor escala, ao plantio de banana, cacau, café,
pimenta-do-reino e outras lavouras permanentes. Além disso, a fonte de renda
está associada à venda da madeira de seus lotes e à criação de gado em pequena,
porém crescente, escala.
A situação atual dos recursos naturais dos assentamentos e dos projetos de
colonização da região é um reflexo de sua intensiva história de uso e representa
uma das principais fontes de conflito com outros atores econômicos. Nos assenta-
mentos implantados na década de 1980, mais da metade dos lotes já foi desmatado,
sendo que o restante da cobertura florestal original já teve a madeira de valor
econômico extraída. Em geral, a área desmatada nessas propriedades é dominada
por vegetação secundária infestada por capim (pastagens abandonadas), de baixo
valor produtivo. No restante da propriedade, predominam áreas de pastagem de
baixa produtividade. Lavouras anuais e/ou perenes ocorrem em uma área bem
reduzida e para subsistência. Essas áreas estão sendo vendidas e apropriadas por
médios e grandes fazendeiros, o que demonstra a tendência de concentração de
terra nos assentamentos. Nos assentamentos e nas comunidades ocupadas na dé-
cada de 1990, o retrato da situação dos recursos naturais é um pouco menos
alarmante. Nesses locais ainda existe floresta com potencial extrativo, floresta
secundária (capoeira) com potencial agrícola e menor concentração de terras por
fazendeiros. Porém, nota-se claramente a mesma tendência de aumento da ativida-
de pecuária e o esgotamento dos recursos naturais, além de uma situação de pobre-
za e de falta de infra-estrutura para a produção. O futuro dessas paisagens domina-
das pela produção familiar indica a possibilidade de serem transformadas em gran-
des áreas de pecuária extensiva, principalmente se investimentos em sistemas agríco-
las viáveis adaptados a esse grupo não forem feitos. Por causa da baixa rentabilida-
de da pecuária praticada nos moldes tradicionais, os agricultores acabam tendo que
vender a terra pela impossibilidade de manter seu sistema de produção.
O asfaltamento da Cuiabá–Santarém pode trazer um novo cenário para a agri-
cultura familiar na região. Para tal, será preciso reverter essas limitações e propor-
cionar aos produtores familiares condições de fixação na terra, sem que tenham
que migrar para novas áreas, contribuindo para a expansão da fronteira agrícola.
Para chegar a essa estabilidade, três fatores são fundamentais: melhor qualidade
de vida; implantação de sistemas produtivos mais sustentáveis (econômica e
ambientalmente); e manutenção da qualidade dos recursos hídricos e florestais.
Ou seja: a estabilidade da produção familiar está muito relacionada à qualidade
de vida no campo. Isso inclui sistema de saúde funcionando, sistema educacional
compatível com as necessidades, transporte de passageiros e de carga na freqüên-
cia necessária para suprir novas demandas de comercialização, eletricidade que dê
acesso aos meios de comunicação e possibilite a conservação de alimentos. Além
disso, é preciso que o sistema produtivo familiar se intensifique e se diversifique,
deixando de realizar a prática do corte e da queima a cada ano. Nesse sistema, a
produtividade do trabalho é maior do que a encontrada atualmente, garantindo
maior renda para o mesmo esforço de trabalho. Em um lote continuariam a exis-
tir culturas anuais e criação de animais. A mudança ocorreria na base técnica de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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produção e na introdução do componente agroflorestal e extrativista em maiores


escalas, pelo caráter de alta adaptabilidade ao sistema familiar (intensivo em mão-
de-obra e alto rendimento por área) em detrimento da tendência a atividade pe-
cuária, que continuaria a existir, mas em menor escala.
As populações tradicionais do corredor (ribeirinhos, extrativistas, índios), tam-
bém representadas pela mão-de-obra familiar, despontam, com os agricultores
familiares, como um grupo bastante afetado pela dinâmica provocada pelo anún-
cio da pavimentação. Esse grupo concentra-se em comunidades ao longo dos prin-
cipais rios da região e de seus afluentes como o rio Tapajós, a oeste da rodovia, e
os rios Iriri e Curuá-Uma, a leste da rodovia. Sua estratégia de sobrevivência está
ligada à prática diversifica de produção. Em virtude da precariedade de infra-
estrutura de serviços, eles desenvolveram um sistema produtivo que vai além do
cultivo anual e perene, utilizando estratégias diferenciadas de produção, como a
pesca, a coleta de produtos florestais não madeireiros – castanha, copaíba, látex,
entre outros. Ao contrário dos colonos e assentados, grande parte das comunida-
des tradicionais da região não possui a posse de suas terras. Com exceção das
terras indígenas e de duas reservas extrativistas criadas na região (Tapajós/Arapiuns
e Riozinho do Anfrísio), esses grupos familiares tradicionais não têm seu territó-
rio reconhecido formalmente. Isso facilita a apropriação de suas terras por outros
atores como os madeireiros, os pecuaristas, os fazendeiros. Para que a pavimenta-
ção da rodovia não traga tantos prejuízos, o primeiro passo seria a identificação e
a demarcação de todas as áreas de ocorrência de população tradicional, para que
tenham destinação garantida para esse fim.
As ONGs de cunho ambientalistas e/ou que trabalham com temáticas
socioambientais, apesar de não representarem um grupo econômico, fazem parte
de um outro grupo de atores com posicionamentos e atuação relevantes à disputa
pela terra e ao uso dos recursos da região. Apesar de ser um grupo diversificado,
composto por organizações pequenas de atuação local, passando pelas regionais e
até pelas de representação internacional, as organizações têm em comum a luta
pela conservação dos recursos naturais e do patrimônio histórico das populações
tradicionais. Esse objetivo dá ao grupo um status político e social de luta pela
posse da terra para fins de conservação, além de advogar por práticas de uso da
terra menos danosas ao meio ambiente, o que acaba indo de encontro a estratégi-
as de outros grupos com objetivos puramente econômicos. Nesse sentido, as ONGs
socioambientais que atuam na região têm como principais aliados, na discussão
sobre a necessidade da destinação de áreas para a conservação e para melhores
práticas produtivas, as instituições representativas dos produtores familiares e das
populações tradicionais. Essa união de forças traz para o debate sobre a pavimen-
tação da rodovia importantes elementos, que vão além da visão parcial de benefí-
cio econômico para os empresários. Pela união desses grupos, ou seja, da unidade
dos movimentos sociais, o debate sobre a pavimentação da estrada ganha força
do ponto de vista de benefícios sociais, intrinsecamente relacionados à posse e à
destinação da terra e ao uso sustentável de seus recursos.
Em suma, a disputa pela terra e pelo uso de seus recursos ao longo da rodovia
Cuiabá–Santarém parece ser um fator fundamental para a geração de conflitos na
região. Portanto, para diminuir as tensões na região o primeiro passo seria o de
definir a destinação de terras para os grupos acima citados. De certa maneira, em
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16

regiões de fronteira, o poder econômico e político são determinados pela quanti-


dade de terra sob a posse de um ator específico. A lógica não é diferente ao longo
da Cuiabá–Santarém – quanto mais terra, mais acesso aos recursos, maior o gan-
ho econômico e maior a chance de influenciar o poder político local. O cenário é
desfavorável para aqueles que entendem a necessidade do ganho econômico, mas
advogam pela melhor distribuição do mesmo, que geraria mais benefícios sociais
e, portanto, um desenvolvimento econômico mais igualitário. Nesse aspecto, os
empresários do ramo madeireiro e agropecuário compõem o primeiro grupo, en-
quanto que os movimentos sociais são as representações ativas do segundo con-
junto de atores.

5. As diversas estratégias frente ao desenvolvimento da região


Apesar de a pavimentação da BR-163 ainda ser uma obra indesejada para alguns
ambientalistas mais radicais, representa um sonho antigo de empresários, assentados,
colonos, fazendeiros, madeireiros, políticos locais e moradores dos núcleos urbanos
ao longo da estrada, que sempre viram nessa obra um caminho para a melhoria da
qualidade de vida e para o tão esperado desenvolvimento. Porém, mesmo com a
maioria da população local apoiando a obra, ela tem sido discutida de forma contro-
versa pelos diversos seguimentos da sociedade. Isso ocorre porque a estratégia desses
atores econômicos e sociais quanto aos rumos do desenvolvimento para a região da
Cuiabá–Santarém é um reflexo da forma de pensar o uso dos recursos naturais, assim
como da visão da abrangência dos beneficiados no processo de desenvolvimento.
Nesse sentido, surgem dois grandes grupos de atores não-governamentais, repre-
sentados pelo setor privado/empresarial e pelos movimentos sociais, com
posicionamentos antagônicos sobre o tipo de desenvolvimento esperado para a re-
gião atravessada pela rodovia Cuiabá–Santarém. Enquanto os movimentos sociais
não criticam a pavimentação da estrada em si, mas a concentração de terras e de
benefícios ocasionada pela expansão da ocupação desordenada da soja, da pecuária
e da exploração ilegal de madeireiras, os empresários do setor madeireiro e
agropecuário ressaltam somente as possibilidades do benefício econômico da região
a qualquer custo, investindo em uma estratégia de expansão dessas atividades. A
dicotomia no posicionamento também reflete a visão diferenciada sobre a dimen-
são dos impactos indiretos do asfaltamento. Enquanto os movimentos sociais acham
fundamental a ocorrência de ações paralelas de mitigação dos impactos, os empre-
sários, especialmente os que vieram de outras regiões, acham desnecessárias tais ações
e destacam somente o efeito positivo do crescimento econômico após o asfaltamento.
Um elemento de fundamental importância para o êxito da estratégia é o nível
de organização e as características dos grupos frente à disputa pelos seus interes-
ses. De certa forma, a estrutura de organização social no trecho paraense da Cuiabá–
Santarém segue a delimitação geográfica da área de atuação de distintas institui-
ções dos movimentos sociais e do setor empresarial. Duas regiões se destacam
como pólos de representação diferenciada dos movimentos sociais e do setor em-
presarial: o Baixo Amazonas e o sudoeste do Pará, representado pela vasta área
que cobre os municípios paraenses ao sul de Itaituba.
A região do Baixo Amazonas apresenta diversas instituições do movimento soci-
al e ambiental de atuação local, mas poucas são as entidades de atuação regional
com trabalhos contínuos sobre esse tema. A maioria das instituições da sociedade
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civil local representa associações e sindicatos de produtores rurais familiares, ten-


do como segundo maior grupo de ONGs locais com ações na linha de desenvolvi-
mento sustentável para os setores econômicos e sociais menos favorecidos. Dentre
os temas de maior discussão na região estão a instalação de grandes projetos de
infra-estrutura e de projetos privados como o Porto da Cargill, a pavimentação
da BR-163 e a implantação da mina da Alcoa em Juruti, a grilagem de terras
públicas e a expansão da cultura de soja. A maioria dessas instituições de repre-
sentação dos produtores familiares tem uma forte influência político-partidária,
o que dificulta, historicamente, seu relacionamento com o setor privado e, até
recentemente, com o governo local.
As últimas eleições municipais criaram um espaço propício para o diálogo entre
esses grupos, que se reflete na própria composição do Fórum Local do Plano BR-163
Sustentável, instituído pelo governo federal em Santarém. Esse fato político também
tem sua importância regional no que diz respeito à possibilidade de negociação entre
os setores locais – Santarém é considerada a principal cidade do Baixo Amazonas com
influência considerável sobre a situação política dos municípios vizinhos. Apesar do
clima propício à negociação, existem instituições do movimento social que não estão
dispostas a negociar com os outros setores. Essas instituições representam uma parte
do movimento social ligada aos movimentos religiosos e de formação ideológica so-
cialista, que não acreditam ou confiam na possibilidade de divisão dos benefícios e da
negociação destes entre os produtores familiares e os grandes empresários. Outros,
identificados com a representação da classe produtiva dos produtores familiares e das
ONGs de cunho socioambiental, acham que é possível a estrada trazer benefícios a
todos e que, para isso, é preciso conscientizar o setor empresarial sobre a proposta de
desenvolvimento includente do movimento social. Então, se antes as instituições da
sociedade civil tinham um posicionamento um pouco mais homogêneo (“todos con-
tra o governo local e o setor privado”), hoje esse segmento encontra-se fragmentado
com a perspectiva de um canal de diálogo com outros setores, colocando frente a
frente os com posicionamentos mais radicais e inegociáveis e os que têm um
posicionamento mais passível de negociação.
Ao contrário da região do Baixo Amazonas, uma das características mais laten-
tes dos movimentos sociais na região ao sul de Itaituba é a carência de ONGs que
trabalhem com assuntos socioambientais. A maioria das entidades sociais na região
é representada pelos sindicatos dos trabalhadores rurais e pelas associações de pe-
quenos produtores. Somente há quatro anos é que instituições como o Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e a Fundação Viver, Produzir e Preservar
(FVPP), começaram a desenvolver um trabalho na região voltado para assuntos de
relevância ambiental, mas com apelo social. A carência de organizações locais levou
essas instituições a criarem um fórum com representação física na região, semente
de um movimento social mais articulado e proativo. O fato de os sindicatos da
região estarem ligados oficialmente às instituições de representação com sede em
Santarém – a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará, Bai-
xo Amazonas (Fetagri-Bam) – tem dificultado a ação dessa representação na região,
pela distância e falta de recursos financeiros para o deslocamento.
A relação entre as instituições da sociedade civil local com os setores públicos e
privados é difícil. O poder público local representa o setor privado ligado à explo-
ração madeireira. Esses setores têm instigado a população e mobilizado a mídia
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local contra a ação das instituições da sociedade civil na região, o que dificulta o
trabalho de disseminação, discussão e construção de uma proposta de desenvolvi-
mento local. As recentes ações dos órgãos do governo federal (Incra e Ibama) na
região, com a Portaria 10 e a medida provisória que interditou administrativa-
mente aproximadamente 8 milhões de hectares na região, têm acirrado o conflito
entre setor privado/governo local e as organizações sociais locais. O clima na re-
gião é de medo e de violência.
Apesar das diferenças regionais em termos de organização, e mesmo aquelas
divergências internas entre os grupos, os posicionamentos e as estratégias seguem
um padrão geral entre as regiões. Esses posicionamentos se fazem presentes na
dicotomia dos discursos utilizados tanto pelos movimentos sociais quanto pelo
setor privado empresarial. No discurso geral, os movimentos sociais acusam o setor
privado de pensar em beneficio próprio a qualquer preço, enquanto que o setor
empresarial acusa o movimento social de atrapalhar o desenvolvimento. Para que
cheguem a um consenso, é preciso desmistificar o que há por trás do discurso de
cada um e achar o ponto comum. Nesse caso, todos querem o desenvolvimento e a
pavimentação, entretanto é preciso que o setor empresarial e a população entendam
que a proposta de desenvolvimento dos movimentos sociais não é excludente. Ela
enfoca direitos e deveres de cidadãos que não são contra o desenvolvimento, pelo
contrário, querem aproveitar do mesmo em toda a sua magnitude e, para isso,
precisam de uma ajuda, que vai além da melhoria da infra-estrutura viária, para
incrementarem a produção e permaneceram com suas identidades.
Preocupados com as conseqüências da pavimentação da Cuiabá–Santarém – a
ocupação desordenada e a rápida apropriação dos recursos naturais da região –,
os movimentos sociais se organizaram de norte a sul da rodovia nos estados do
Pará e do Mato Grosso para discutir e debater, de forma participativa, os cami-
nhos do desenvolvimento para a região. O movimento começou modesto no Pará
em 2001 e foi ganhando força até que, em 2003, recebeu adesões de instituições
do movimento social do Mato Grosso. O grande objetivo era a construção e
implementação de uma proposta unificada de desenvolvimento regional para a
área de influência da Cuiabá–Santarém. A plataforma de discussão montada in-
cluiu dezenas de reuniões preparatórias em quatro sub-regiões na área de influên-
cia da rodovia denominadas de pólos. Os pólos encampavam as seguintes regiões:
Baixo Amazonas, BR-163 no Pará (sudoeste paraense), Transamazônica e centro-
norte do Mato Grosso. As reuniões preparatórias subsidiaram a realização de quatro
encontros regionais, que ocorreram de outubro a dezembro de 2003 nas cidades
de Altamira (Pará), Sinop (Mato Grosso), Santarém (Pará) e Itaituba (Pará) res-
pectivamente. Essa mobilização envolveu mais de 2 mil participantes, centenas de
lideranças locais e representantes de organizações do movimento social,
ambientalista e indígena do Pará e do Mato Grosso. Em março de 2004 foi rea-
lizado em Santarém um encontro de consolidação das propostas regionais apresen-
tando ações e proposições em cinco eixos temáticos: infra-estrutura e serviços bási-
cos rurais e urbanos; ordenamento fundiário e combate à violência no campo; es-
tratégias produtivas e manejo dos recursos naturais; fortalecimento social e cultural
das populações locais; e gestão ambiental, monitoramento e áreas protegidas. O
resultado do encontro foi publicado como a Carta de Santarém, lida e entregue
pessoalmente para os ministros do Meio Ambiente e da Integração Nacional, que
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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participaram do evento. O grupo de organizações do movimento social se


institucionalizou e hoje compõe o Consórcio Socioambiental da BR-163. Esse
consórcio está sob a liderança do Grupo de Trabalho Amazônico e é composto
por 32 instituições da sociedade civil que atuam ao longo da rodovia. Dentre as
propostas apresentadas – e aceitas – no plano de desenvolvimento dos movimen-
tos sociais, a criação das reservas extrativistas Riozinho do Anfrísio e Verde Para
Sempre e a criação de grande parte das unidades de conservação da Terra do Meio
merecem destaque pela ousadia do governo em frear a especulação de terra em
áreas de fronteira ativa. Assim, as organizações da sociedade civil assumem fun-
ções cada vez mais importantes no processo de planejamento e formação de opi-
nião política e têm contribuído para o fortalecimento das ações governamentais
externas, principalmente em áreas dominados pela elite local que controla as ins-
tituições governamentais municipais.

6. As instituições políticas e o papel do governo para o desenvolvimento da região


A estratégia e o posicionamento do governo frente à pavimentação da Cuiabá–
Santarém e suas respostas às demandas de desenvolvimento da região se diferenci-
am não só entre as esferas municipal, estadual e federal, mas também entre as
próprias instituições de cada esfera. Os governos municipais, com exceção de al-
guns poucos municípios ao redor de Santarém, advogam pelo asfaltamento, mas
acham que ele deve ser acompanhado de políticas de apoio ao desenvolvimento
local. No caso dos outros municípios mais ao sul da rodovia no Pará, o asfaltamento
é ponto pacífico e não há exigência para a obra. Nesses municípios o setor políti-
co é ligado ao poder econômico local dos empresários e qualquer impedimento
ou barreira que adie o asfaltamento é visto com maus olhos.
Em relação ao governo do Pará, a situação parece ser a de imparcialidade
frente à pavimentação da rodovia e ao desenvolvimento local. Enquanto no dis-
curso o governo estadual ressalta a necessidade da pavimentação, pouco tem feito
na arena política para efetivá-la. De fato, o oeste paraense parece ser uma região
politicamente perigosa para o governo atual. Caso fortalecida com a pavimenta-
ção, pode criar condições para uma futura divisão estadual. De qualquer forma, o
governo estadual tem estado ausente das discussões mais importantes sobre o de-
senvolvimento da rodovia e ainda não se mostra disposto a um diálogo mais
aberto com a sociedade civil. Apesar disso, aprovou a Lei do Macrozoneamento,
que prevê, para a região sudoeste do Pará, grandes áreas destinadas às unidades de
conservação de uso sustentável, onde atividades como a exploração madeireira ou
a extração de produtos não florestais por populações tradicionais teriam seu terri-
tório garantido. Por outro lado, na região norte do corredor, nos arredores de
Santarém, o macrozoneamento aponta para consolidação e expansão das ativida-
des produtivas. Essa política pode acirrar os ânimos dos pecuaristas e de alguns
madeireiros no sudoeste do Pará, assim como incomodar os produtores familiares
da região de Santarém que estão sofrendo com a expansão de atividades que
concentram terra, como a soja.
É na esfera federal, entretanto, que as discussões e ações relacionadas ao desen-
volvimento da região atravessada pela Cuiabá–Santarém ganham força. A obra
de pavimentação foi a primeira da esfera federal a ter um plano de desenvolvi-
mento associado à obra que contou com a participação ativa de um conjunto de
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ministérios encabeçados pela Casa Civil – os ministérios do Meio Ambiente, da


Integração Nacional, da Desenvolvimento Agrário e dos Transportes. O plano
surgiu no seio das discussões dos movimentos sociais que, preocupados com o
avanço da ocupação desordenada e com a perda de suas terras, começaram em
2003 um processo de construção de uma proposta de planejamento regional bem
mais abrangente do que somente os investimentos na pavimentação da estrada. O
governo federal, percebendo a gravidade da situação e a possibilidade de experi-
mentar um modelo diferenciado de planejamento, criou um grupo de trabalho
interministerial em fevereiro de 2004, que ficou responsável pela confecção de um
plano de desenvolvimento para a área de influência da rodovia BR-163 (Cuiabá–
Santarém). O Plano, que recebeu a denominação de BR-163 Sustentável, atual-
mente encontra-se em sua segunda versão e foi amplamente discutido em consul-
tas públicas com todos os atores locais nas principais cidades ao longo da rodo-
via. Apesar das várias críticas relacionadas ao modelo das consultas, entre elas a
dificuldade de discussão do plano em grupos heterogêneos de atores, inibindo
aqueles em menor número, a falta do retorno dos resultados etc., não se pode
negar que o próprio governo exerceu um papel fundamental de mediador de con-
flitos em um grande, e talvez primeiro, exercício da história do planejamento no
Brasil. Como resultados dessas consultas, e elementos fundamentais para o
monitoramento e para a execução do Plano governamental para a região, foram
instituídos Fóruns Locais de debate. Esses fóruns estão em fase de implantação e
representam um espaço privilegiado para a negociação de conflitos entre os ato-
res. Basicamente, do jeito como foram construídos, os fóruns contam com a par-
ticipação – e garantia da mesma proporção – tanto dos movimentos sociais, in-
cluindo organizações representativas de classe da produção familiar e ONGs, como
do setor empresarial.
Apesar de o plano ter sinalizado um posicionamento pró-ativo do governo em
relação à sustentabilidade da região, existem contradições aparentes demonstradas
nas atitudes deliberadas pelos diversos ministérios que compõem o GTI. Há minis-
térios que tomam o plano com total descaso e outros que vêem o plano como mais
uma barreira para a própria pavimentação. Um dos principais advogados de defesa
do Plano é o Ministério do Meio Ambiente, que assume uma posição de liderança
informal e é o contato mais direto com a sociedade civil. Entretanto, esse ministério
tem tido pouca força na arena política e tem perdido a maioria das batalhas para os
Ministérios da Agricultura e do Planejamento. O que, de certa forma, demonstra
um risco para a credibilidade da implementação do Plano.
Apesar de todo o investimento governamental no Plano e em ações para conter
os impactos negativos da pavimentação, o estado parece não ter a velocidade
adequada para enfrentar a dinâmica de ocupação de terra e de degradação/explo-
ração dos recursos. A estrutura das instituições governamentais na área está
sucateada e a corrupção ainda é muito presente entre os funcionários dessas insti-
tuições. As recentes investigações, como a Operação Faroeste no Incra e a Opera-
ção Curupira que atingiu o Ibama, são provas da vontade do novo governo de
acabar com velhas práticas de corrupção nos órgãos. A tentativa de fortalecê-los
através do pesado investimento no cadastramento de propriedades rurais e na
criação de novas unidades regionais, como é o caso recente do Incra de Santarém
e a criação das bases operativas na região pelo Ibama, tem trazido resultados
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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positivos, dando sinais de inibição e dificuldade para a grilagem de terras e para a


exploração madeireira ilegal na região. Ainda nessa linha, o governo federal, como
ações prioritárias do Plano da Br-163 Sustentável, criou marcos regulatórios im-
portantíssimos rumo ao ordenamento territorial. Esses marcos foram a expedição
da Portaria 10, assinada conjuntamente pelo Incra/MDA e pelo Ibama/MMA em
dezembro de 2004 e a Medida Provisória 239, que estabeleceu limitação adminis-
trativa para uma área de 8,2 milhões de hectares no sudoeste do Pará cortado pela
rodovia, proibindo qualquer tipo de atividade na área. O reflexo dessas iniciati-
vas pode ser sentido nos ânimos dos madeireiros, que por duas vezes fecharam a
rodovia. Antes, fatos como esses só eram realizados por representantes dos movi-
mentos sociais. Na verdade, o governo sinaliza em uma direção positiva, mas a
intensidade e a velocidade da dinâmica de ocupação parece não ceder frente à
pressão governamental. Fica, então, o desafio para o governo – o de nadar contra
a corrente em um mar de incertezas que ele próprio criou, pois até mesmo a certe-
za da pavimentação é um fato questionável, mesmo depois de todo o prejuízo.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Matar, morrer, “civilizar”:
o “problema da segurança pública”
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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MATAR, MORRER, “CIVILIZAR”: O “PROBLEMA DA SEGURANÇA PÚBLICA”

Luiz Antonio Machado da Silva


Sociólogo e antropólogo, professor do Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) da Universidade
Candido Mendes (Ucam) e do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais (Ifcs) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
lmachado@iuperj.br

Márcia Pereira Leite


Doutora em sociologia, professora do Departamento
de Ciências Sociais da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj)
marciaspleite@uol.com.br

Luis Carlos Fridman


Sociólogo, professor da Universidade
Federal Fluminense (UFF)
lcfridman@alternex.com.br

A perspectiva adotada
O “problema da segurança pública”, alimentado cotidianamente pelos altíssimos
índices da criminalidade violenta que não cedem nem sofrem reversão significati-
va, revela feições que podem ser associadas à natureza de relações mais gerais que
presidem o funcionamento da sociedade brasileira. Mas, sob a expressão “funcio-
namento da sociedade brasileira”, algo pode ser capturado e muito pode ser dei-
xado de fora do campo de visão. A presente reflexão se dirige exatamente ao que
tem sido mencionado com pouca freqüência, ao que, de certa maneira, permanece
oculto no campo de discussão sobre a segurança pública. Evidentemente não se
tem a pretensão de estabelecer um novo paradigma ou trombetear uma originali-
dade que não faz parte dos objetivos do texto. A intenção é apenas salientar
certos aspectos de uma migração na maneira socialmente difundida de conceber e
tematizar relações de força implicadas na questão da segurança pública tal como
ela se configura na atualidade.
Historicamente, o “problema da segurança pública” no país esteve subordina-
do às disputas de riqueza e de poder, ou seja, aos conflitos de classe que implica-
vam – de acordo com os recursos politicamente amealhados – o maior ou menor
assédio ao estado como regulador dos processos ligados à desigualdade social.
Hoje, porém, o tema da segurança pública autonomizou-se, expressando uma
profunda mudança na percepção coletiva da vida social e, conseqüentemente, na
forma pela qual esse embate se delineia. Rebaixados das disputas pelo controle do
poder estatal e pela distribuição de direitos, certas dinâmicas relevantes dos con-
flitos de classe nas grandes cidades brasileiras restringem-se a aspectos da vida
cotidiana, expressando-se como confrontos entre categorias sociais difusamente
representadas no quadro de sentimentos de medo e de insegurança.
Certa vez, em uma conferência na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio) na década de 1970, Darcy Ribeiro afirmou que chegaria o dia
em que os ricos morariam em fortalezas cercadas de pobres por todos os lados. A
profecia se cumpriu. Arrebatado defensor da intervenção estatal, dotado de inte-
ligência invulgar, que certamente lhe permitiria acompanhar a dinâmica dos fatos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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se fosse vivo, Darcy não poderia prever que a disputa entre ricos e pobres (ou a
questão da justiça social) sofreria tantos transtornos e distorções. Em vez de propor-
cionar um questionamento profundo das causas e dos modos de provisão de con-
trole social pelo Estado, permite o robustecimento da mentalidade da “segurança
apesar dos outros, no lugar da “segurança com os outros” (Bauman, 2001). Na
percepção social atual, todos os segmentos sociais, atingidos e assustados com a
violência cotidiana, culpam-se uns aos outros, desencontradamente, pela dissolu-
ção de um mítico ordenamento das relações sociais, calmo e previsível, que prova-
velmente nunca existiu. O conflito de classes, agravado e intocado, paira ao fundo.
Essa demanda monocórdica de grande parte da população pela recomposição da
ordem pode ser traduzida como uma tentativa de preservação das rotinas que garante
a previsibilidade da vida cotidiana. Sua contraface é a neutralização do assombro e
do medo, pois, na percepção social dominante, os episódios de violência estão em
todo lugar. Os estratos superiores consideram que os culpados por essa situação são os
moradores das favelas, reformulando o mito das classes perigosas, agora baseado em
uma visão fortemente polarizada dos espaços urbanos. Uma associação direta e per-
versa os rotula de bandidos ou quase bandidos por ocuparem todos os mesmos terri-
tórios da pobreza e da vulnerabilidade social. Inversamente, para grandes contingen-
tes das camadas populares, suas dificuldades devem-se ao que denominam com fre-
qüência como covardia, seja dos ricos e dos aparelhos do estado (que, apesar de todo
o poder que detêm, não lhes disponibilizam sequer os serviços mais essenciais, subme-
tendo-os, ademais, ao arbítrio e à violência de seus agentes), seja da que resulta da
tirania dos bandos armados ligados à economia das drogas.
Nessa perspectiva, o atual “problema da segurança pública” denota o desloca-
mento dos conflitos de classe articulados na linguagem da oposição entre cidada-
nia e desigualdade para disputas de outra natureza. O debate sobre a cidadania se
estreitou, reduzindo-se ao núcleo duro dos direitos civis que postula as garantias
à pessoa e à propriedade. As disputas agora se concentram na provisão de controle
social pelo estado, isto é, focalizam a quantidade, legitimidade e adequação dos
meios repressivos – a força comedida (e seu extravasamento) da polícia versus a
força ilegal, de fato, da criminalidade violenta. Os protagonistas desses conflitos
tornam-se assim categorias sociais estereotipadas e difusamente representadas que,
por conseqüência, não definem fronteiras identitárias claras. A ação coletiva, quando
existe, encontra-se despojada de organicidade. Nessa arena pública erodida e
desertificada, a tradicional linguagem dos direitos torna-se anacrônica e frágil,
pois vem regar a terra nua das rotinas da vida privada.
Adiante se verá como a evolução do conflito social reduziu a questão mais
geral da cidadania ao tema dos direitos civis e como esse se limita cada vez mais a
demandas por repressão, a todo custo, da criminalidade violenta. Aqui cumpre
mencionar que essa questão, articulada a partir das percepções de desproteção
pessoal como o “problema da segurança pública”, significou um passo além nessa
espiral reducionista: limitou-se a focalizar o resguardo das rotinas que organizam
a vida privada. Com isso, o “problema da segurança pública”, tal como está
posto no momento, impede a tematização da justiça social e da desigualdade, ou
mesmo, em níveis mais imediatos, do acesso das camadas populares – em especial,
de seu arquétipo atual, os favelados – à justiça efetivamente disponível. E ainda
faz com que o debate público seja travado de maneira cada vez mais inorgânica.
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Do ponto de vista aqui adotado, torna-se necessário um esforço de arejamento


da opinião pública, hoje fortemente enquadrada por uma combinação perversa
de emoções e sentimentos, percepções e cognições, que encapsula o conflito social,
despolitizando-o. O primeiro passo para isso é reconhecer e descrever esse impasse,
admitindo que a recuperação da ação coletiva e de uma esfera pública mais densa
passa pelo desmonte do “problema da segurança pública” e pela desnaturalização
da linguagem que ele articula.

O recorte do objeto
A partir dessa perspectiva, o recorte do objeto analisado nas páginas seguintes
assentou-se em duas ordens de consideração.
A primeira delas é que, jurídica e politicamente, a segurança pública – pelo
menos enquanto compreendida como a ação policial de repressão ao crime co-
mum, suas modalidades e conseqüências sociais – não é uma questão nacional.
Não há sombra de dúvida que o crime e sua repressão galvanizam a atenção geral
do país, desde os mais altos burocratas do estado até as mais simples conversas de
esquina, passando pelos políticos, pelos formadores de opinião e pela mídia. De
fato, é possível dizer que esse é o grande problema urbano das últimas décadas,
mas, por outro lado, também é necessário reconhecer que ele tem especificidades
locais sempre muito relevantes para serem desconsideradas.
Sem pretender esgotar o assunto, vale ressaltar que a atuação policial é, consti-
tucionalmente, da esfera de competência dos estados, mas a expansão do crime
comum violento é um problema urbano, afetando, portanto, os poderes munici-
pais. E, como atinge todo o tecido urbano nacional (embora se concentre com
mais intensidade nas grandes cidades), não poderia deixar de preocupar as instân-
cias federais do governo. Esse emaranhado de competências legais e questões prá-
ticas tem provocado, como não poderia deixar de ser, choques de interesses políti-
co-partidários cujas clivagens mais relevantes, do ponto de vista das ações concre-
tas de repressão ao crime, ocorrem localmente. Isso produz um quadro extrema-
mente variado no tempo e no espaço que impede abordagens generalizadoras,
pois lhes retira a necessária concretude.
Por outro lado, em parte em virtude desses mesmos problemas, em parte em
virtude dos altos níveis de expansão da criminalidade – além de sua importância
histórica no cenário nacional –, o Rio de Janeiro tem sido considerado um caso
exemplar, quase um tipo ideal, de metrópole afetada pela questão da (in)segurança
pública. Para os efeitos deste trabalho, não vem ao caso discutir se essa percepção
se confirma ou não pelos índices disponíveis sobre o crime violento e sobre a
atividade policial. Basta admitir que, infelizmente, a cidade apresenta, em alta
dose, todos os ingredientes anteriormente apontados, o que a torna, para usar a
consagrada expressão de Geertz, um caso “bom para pensar” essas questões.
A segunda ordem de considerações aparece com as profundas transformações
nos conflitos sociais ocorridas nas últimas décadas. Eles incorporam, cada vez
mais obsessivamente, os temas relacionados à crescente imprevisibilidade das roti-
nas cotidianas. E não podem ser compreendidos sem referência ao medo que essa
insegurança provoca, atribuído à criminalidade violenta. Dessa maneira, muda
não apenas o objeto das disputas, mas também o enquadramento delas – a per-
cepção coletivamente construída dos problemas públicos altera-se dramaticamente.
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Por esse motivo, e considerado que esse tópico tem sido pouco trabalhado pela
literatura, este texto enfatiza a dimensão cognitiva dos conflitos, procurando
mapear a constituição, o desenvolvimento e algumas implicações do “problema
da segurança pública”.

A emergência do “problema da segurança pública”


Até o amplo movimento que culminou com a redemocratização brasileira, as
lutas envolvendo as profundas desigualdades que marcam a estratificação social
do país sempre disseram respeito aos direitos sociais, embora fossem elencadas
como parte das discussões sobre o desenvolvimento econômico: pleno emprego,
proteção ao trabalho e todo o arsenal de dispositivos envolvidos nessas questões.
As mobilizações que visavam à derrubada da ditadura militar, entretanto, tende-
ram a apagar momentaneamente as profundas diferenças que caracterizam nossa
sociedade civil e alimentavam aquele debate. Com isso, colocaram no centro da
agenda pública a questão dos direitos civis e políticos, isto é, das “liberdades
democráticas”, como então se dizia. O quadro geral em que se desenrolavam os
conflitos deslocou-se, assim, da economia (ou da exploração econômica) para a
política (ou para a dominação política).
A questão dos direitos sociais, especialmente dos direitos do trabalho, não desapa-
receu do horizonte e do debate políticos da época. Mas a remoção do entulho auto-
ritário (isto é, o fim da legislação de exceção introduzida no ordenamento jurídico
brasileiro, bem como a supressão do corporativismo que, desde o governo Vargas,
impregnava a legislação trabalhista e sindical e a representação de grupos econômicos
nos aparelhos estatais) passou a ser vista como condição suficiente para promover sua
garantia e universalização. Numa palavra, a ampliação da luta contra a ditadura
reorientou o debate político e acadêmico da década de 1980, agora centrado nos
temas institucionais dos direitos e da cidadania e de como poderiam conduzir o país
à democratização substantiva da vida social (cf. Weffort, 1981; Vianna, 1983). É
óbvio que, como problema de fato, a antiga “questão do desenvolvimento” não
desaparece, mas ela deixa de ser formulada diretamente em termos econômicos e
passa a ser pensada e discutida em termos jurídico-institucionais (Silva, 1995).1 O
reconhecimento dessa transformação, que nada tem de superficial, é muito importan-
te para a compreensão de como se desenvolveram as políticas de segurança pública
nas últimas décadas e de sua desvinculação quase absoluta da temática do desenvol-
vimento econômico, apesar das constantes referências à pobreza.
Reunidas no processo constituinte – momento culminante da articulação do
conflito social por intermédio da linguagem dos direitos –, as forças políticas que
haviam resistido à ditadura militar empenharam-se em incorporar à Carta de 1988
um conjunto de proposições que garantisse as liberdades individuais, ampliasse e
renovasse as formas de participação política e universalizasse os direitos sociais.

1
Essa parece continuar a ser a tendência amplamente dominante, apesar dos esforços de setores da esquerda (certos
segmentos dos partidos organizados, alguns formadores de opinião com presença na mídia, pequenos bolsões de
pesquisadores na academia etc.) de reintroduzir uma crítica mais direta das políticas econômicas, voltando a discutir a
expansão do emprego, a proteção do trabalho etc., como formas de superação da crescente tendência ao desemprego
e seus perversos efeitos sociais. Até o momento, porém, essas tentativas não têm obtido êxito a não ser marginalmente.
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No entanto, se as garantias civis e políticas foram aprovadas sem dificuldades,


pelo menos retoricamente, os direitos sociais, embora inscritos no texto constitu-
cional, encontraram profundas resistências que acabaram por se materializar não
na ausência pura e simples da Constituição, mas em limitações formais explícitas
à sua auto-aplicabilidade. Além disso, desde então, perderam sua vocação univer-
sal, pois têm sofrido diversas revisões que restringem seu escopo e/ou suspendem
sua vigência sob certas condições.
Essa resistência expressava o esgotamento do projeto desenvolvimentista, ten-
dência que já vinha se delineando desde o fim do “milagre econômico”. Anunciava
também o vigor com que as dinâmicas associadas à globalização e à reestruturação
produtiva se abatiam sobre nós, reverberadas e amplificadas pela direita nativa. Os
“novos tempos”, cujos efeitos só seriam sentidos em sua plenitude a partir da déca-
da de 1990, já então pareciam sepultar definitivamente a possibilidade oferecida
pelo nacional-desenvolvimentismo – ao menos no plano retórico – de todos se inte-
grarem aos esforços de crescimento e modernização capitalista, beneficiando-se tam-
bém de seus frutos. Era a derrota final de uma ideologia que demandava trabalho
árduo aos trabalhadores, mas que os recompensava na medida de sua relevância
para o processo de acumulação, que Santos (1987) designou como “cidadania re-
gulada”.2 Por meio do trabalho e/ou da educação – supunha-se – as diferentes cate-
gorias de trabalhadores poderiam, dependendo de sua inserção produtiva e no devi-
do tempo, incorporar-se plenamente à cidadania, desfrutando de mobilidade social
ascendente para si e/ou para seus filhos e netos.
Deslocados os conflitos de classe para o campo da política institucional com o
retorno do processo eleitoral e da democracia representativa, a defesa dos interes-
ses populares passou a ser formulada com foco no problema dos “direitos huma-
nos”, expressão que fundia o tópico das liberdades democráticas (os direitos civis
e políticos) com a questão social (os direitos sociais) que dominou a agenda pú-
blica até a década de 1970, subordinando-a, como aqui se sugere, à sua dimensão
jurídica. Essa era a forma que, no bojo da redemocratização brasileira, assumia a
perspectiva igualitária e includente que marcou a ideologia dominante do
“desenvolvimentismo” durante boa parte da industrialização brasileira.
Nesse quadro, é compreensível que o governador Brizola, como líder de grande
apelo popular ligado ao trabalhismo, tenha reorientado, pelo menos em parte, a
tradição na qual se inseria e estruturado toda a campanha que o elegeu no Rio de
Janeiro pela primeira vez (1983–1986) em torno dessa palavra de ordem: os direitos

2
Como se sabe, a institucionalização dos direitos de cidadania no Brasil não seguiu o postulado da universalidade que
define a própria noção de cidadão e que foi aplicado em grande parte da Europa, sendo sintetizado por Marshall (1967)
como uma medida de igualdade que correlaciona, a partir de um elenco de direitos, indivíduos pertencentes a um estado
nacional. Comparando os dois processos, Lautier (1987) destaca na experiência européia a assimilação da “cidadania
plena” à “cidadania salarial”, que se caracteriza pela garantia dos direitos sociais correlata ao exercício do trabalho
assalariado, e também a inadequação do modelo marshalliano para o caso brasileiro, caracterizado por uma cidadania
fragmentada, “de geometria variável”. Com isso, remete à incapacidade de o estado “definir estatutos sociais, ajustá-
los e unificá-los em um sistema único de direitos-deveres” (Lautier, 1987, p. 89). Evidência disso seria o fato da “imensa
maioria dos atores da economia informal não [estar] inscrita no sistema de direitos-deveres sociais ligado ao emprego
assalariado: se uma pequena parte deles tem acesso ao sistema de saúde, quase todos estão excluídos da aposentado-
ria, da garantia jurídica do emprego etc.” (Lautier, 1997, p. 86).
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humanos.3 E que, uma vez eleito, tenha entronizado, como uma das principais
políticas de seu governo, a defesa dos direitos dos presos. Vale lembrar que as
péssimas condições carcerárias tradicionais na sociedade brasileira tornaram-se
públicas ainda na ditadura, quando se discutia o tratamento que o estado dava
aos presos políticos. Entretanto, só em um momento posterior, e com fortes vari-
ações locais quanto à relevância da questão, elas se tornaram objeto de uma polí-
tica de governo. Isso ocorreu em particular com Leonel Brizola, no Rio de Janeiro,
e com Franco Montoro, em São Paulo.4
Em São Paulo, a defesa dos direitos dos presos foi liderada pela Igreja Católi-
ca, tendo à frente o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, ativista dos direitos humanos
dos presos políticos durante a ditadura militar. O cardeal também apoiou o “novo
sindicalismo”, que então surgia no ABC paulista. A absorção dessa política pelo
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – que reunia grande par-
te da oposição à ditadura e governava o estado e a cidade de São Paulo – possivel-
mente foi um dos fatores do insucesso desse partido nas disputas eleitorais seguin-
tes para a prefeitura da cidade, apesar de vitorioso nas disputas eleitorais para o
estado (Leite, 2000). Na interpretação de Pierucci (1987) e Zaluar (1995), a capi-
tal, mais sensível à temática da ordem e da segurança, elegia – com exceção de
Luíza Erundina, cuja eleição esteve relacionada a circunstâncias muito específicas
– políticos de direita fortemente comprometidos com a manutenção da ordem e
com o endurecimento em relação a presos, criminosos e suspeitos das camadas
populares. Processo similar ocorreu com a liderança política do governador Brizola
no Rio de Janeiro e com seu partido, que, pelas razões que se verá, progressiva-
mente foram perdendo votos e legitimidade no município do Rio de Janeiro. As
eleições de 1988 foram as últimas em que o Partido Democrático Trabalhista
(PDT) conseguiu eleger o prefeito da cidade.
No caso do Rio de Janeiro, a política do governo Brizola envolvia, além da
defesa dos direitos dos presos, o respeito aos direitos humanos como premissa da
execução das políticas de segurança pública nas favelas, bairros populares e perife-
rias. Tudo indica que essa diretriz expressava um duplo movimento.5 Por um lado,
explorava as possibilidades abertas pela conjuntura, que estimulava propostas de
mudança social restritas aos direitos civis. Por outro, (re)construía politicamente
sua base eleitoral com uma bandeira de luta alternativa, mas não incompatível,

3
Ao contrário do desenvolvimento posterior desse mesmo tópico, que estende a compreensão dos direitos humanos e a
busca a mudança de percepção do núcleo dos direitos civis e políticos para os direitos sociais, culturais e, mais
recentemente, ambientais, gerando mesmo uma nova terminologia – os Desca (direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais) – e novas formas de luta. Contudo, este desdobramento, mesmo agora, encontra-se ainda restrito aos
segmentos mais politizados da população. Note-se, de passagem, que a discussão em torno dos Desca tem desconsiderado
ou posto em segundo plano o tratamento da segurança pública. Isso pode ser visto na quase completa ausência do tema
nos debates e realizações da Frente Nacional de Reforma Urbana e do Ministério das Cidades, já no governo Lula. E,
reciprocamente, no silêncio em torno da temática dos Desca na quase totalidade das reflexões e propostas em torno do
“problema da segurança pública”.
4
Para além das condições específicas a esses estados, deve-se notar que poucos governadores tinham uma trajetória e
uma percepção da política que lhes possibilitassem transitar de temas regionais para questões nacionais, como o fazia
Brizola (cf. Sarmento, 2004).
5
Sobre as diretrizes do governo Brizola na área de segurança pública, ver o ponto de vista de um de seus principais atores:
Nazareth Cerqueira (1998).
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com a grande aceitação do “trabalhismo” – assimilado pela reforma partidária


do início da década de 1980 pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Ivete
Vargas –, mantendo, assim, uma perspectiva igualitária e includente de tanto ape-
lo popular.6
Posicionando-se a favor de um tratamento digno aos presos comuns e aos
moradores de favelas e de bairros pobres e periféricos, Brizola e seu grupo justifi-
cavam sua posição de defensores “dos que não têm voz”. Paralelamente, o gover-
no Brizola reabriu o debate voltado para o investimento em uma educação públi-
ca de qualidade associada a políticas de atenção às crianças por meio dos Centros
Integrados de Educação Pública (Cieps), retomou a ação de regularização fundiária
com o programa “A cada família um lote” e realizou obras de infra-estrutura nas
favelas. Todas essas políticas públicas privilegiavam claramente os estratos popu-
lares, atualizando suas lutas por direitos sociais ao traduzir as reivindicações à
cidade (Silva, 2002) formuladas como acesso pleno à educação e à moradia. Com
isso, o governo Brizola contrapunha-se à hipótese, sempre presente no horizonte
de preferências das camadas abastadas do Rio de Janeiro, de remoção das favelas
e deslocamento de seus moradores para a periferia. E não respondia às expectati-
vas difusas de incremento da repressão, que se formavam a partir da percepção da
expansão da “violência urbana” (Silva, 1976).
Por isso mesmo, como em São Paulo, mas com o condimento adicional da
grande visibilidade das favelas cariocas, formou-se a opinião de que Brizola havia
escolhido governar a favor do lumpensinato e contra o restante da cidade. Avali-
ando suas opções políticas nesse contexto, não há como desconhecer que o apelo
direto às massas de Brizola constituiu sua força e sua fraqueza, tendo em vista a
complexidade da sociedade brasileira no pós-64. Tampouco se pode ignorar que
essa postura teve significativo impacto na percepção social em torno dos conflitos
de classe, redefinindo a compreensão da ordem social e, portanto, os conflitos a
respeito da segurança pública.
De fato, a tomada de posição do governo Brizola a favor dos direitos huma-
nos, nos termos anteriormente definidos, produziu uma forte reação de amplos
setores das classes médias. Esses, já há algum tempo, vinham se ressentindo da
expansão do crime violento (comum, não político), que não mais se restringia aos
espaços urbanos pauperizados e, por isso mesmo, afetava profundamente suas
rotinas cotidianas, gerando medo e insegurança. Adicionava-se a isso o medo e a
insegurança experimentados pelas próprias camadas populares, também submeti-
das, já àquela época, à criminalidade violenta. Entretanto, até o governo Brizola,
o crime comum violento não chegava a se constituir em um problema público.
Ele permanecia objeto de comentários privados, que expressavam descontenta-
mento e certa ansiedade ainda difusos, como foi sugerido anteriormente. Nessas
condições, a simples menção a direitos de presos e criminosos e/ou a oposição
explícita ao “vigilantismo” (Pinheiro, 1982, p.18) – tradicional conduta brutal

6
Para a análise desse momento e de seus desdobramentos na trajetória de Brizola, consultar Motta (2004) e Sento-Sé
(1999).
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das forças policiais diante de suspeitos de origem popular7 –, peças importantes


do discurso e da atuação brizolista, se apresentavam como uma afronta para sig-
nificativos setores da opinião pública.8
A proposta de tratamento igualitário a ser dispensado a todos os cidadãos foi
ironizada pelas forças policiais, por adversários políticos do governo e por grande
parte da mídia como uma formalidade inaceitável e impeditiva de ações práticas
e eficazes. Essa crítica com freqüência era travestida de lamentação: “a polícia
agora tem que chamar o vagabundo de cidadão”. Sobre esse aspecto, vale ainda
lembrar os duros ataques desfechados pela mídia, em especial pelo Jornal do Bra-
sil, à “inação policial” e ao “estímulo ao crime” que estariam sendo produzidos
pelo governo Brizola. Rodrigues (1995), em sua análise sobre a produção do medo
do crime pela mídia no período, sustenta que esse jornal chegou mesmo a argu-
mentar que “a proibição de incursões massivas das forças policiais nos morros da
cidade” – resultado de um acordo do governador com as lideranças comunitárias
como forma de proteger os direitos humanos e a integridade física dos moradores
de favelas – equivaleria “à concessão de ‘extraterritorialidade de fato’ aos trafi-
cantes de drogas que lá se instalavam”. Formulação que, como argumenta o au-
tor, sustentou a tese de que “a ordem social nas periferias e favelas era mantida,
não mais pelo Estado, e sim, pelo crime organizado, e a suspeita da existência de
‘ligações perigosas’9 entre o universo popular, o mundo do crime e o governo”
(Rodrigues, 1995, p. 22). Essa compreensão tendeu a generalizar-se sob a forma
da interpretação, empiricamente inadequada, mas quase canônica, estruturada
em torno da ausência do estado nas favelas e demais territórios da pobreza.
A idéia antiga e largamente disseminada no senso comum e nos aparatos de
segurança pública, de que o respeito aos direitos de presos, criminosos e suspeitos
em geral seria incompatível com a eficiência das políticas de segurança pública,10
acaba por tornar-se explícita e consolidada como o núcleo da ampla resistência e
da rejeição das camadas médias cariocas ao governador Brizola. Esse estado de
opinião parece ter se expressado vigorosamente no processo eleitoral subseqüente,
que levou Moreira Franco (1987–1990) ao governo do estado do Rio de Janeiro
com a promessa de acabar com a violência em seis meses.

7
Pinheiro (1982, p. 18) destaca que o termo se refere à atuação policial além da lei e sem controle do Judiciário, que faz
uso da tortura e desrespeita as garantias democráticas dos cidadãos – “preceitos rigorosos [...] para a detenção, guarda
de suspeitos, direito a defesa de advogado, tomada de depoimento [...]” – por considerá-las um luxo inaplicável no
combate aos inimigos da sociedade. Categoria que, naquela conjuntura, abrangia os criminosos comuns, mas que havia
sido incorporada a ditadura militar, quando a mesma lógica era aplicada a sindicalistas e a militantes de esquerda.
8
Em conhecido artigo, Bourdieu (1983) afirma, já no título, que “a opinião pública não existe”. Mas cumpre lembrar que
o que esse autor pretende com a afirmativa é indicar a manipulação simbólica das pesquisas de opinião, que lidam com
uma “opinião média”, que efetivamente não existe. Aqui, porém, “opinião pública” diz respeito às tomadas de posição
que ocorrem em ambientes coletivos institucionalizados, fora dos espaços privados (domésticos, de vizinhança etc.), e que
respondem a questões que deixaram de ser vistas como meros eventos individuais, isolados. Sem dúvida, essas questões,
como enfatiza Bourdieu no artigo citado, expressam relações de poder. Por outro lado, exatamente por isso, somente são
questões porque contêm uma divergência coletivamente compartilhada que extravasa as contendas particulares. O
conceito de “opinião pública”, portanto, tal como é operacionalizado neste texto, expressa ao mesmo tempo componen-
tes de consenso ou similaridade e de conflito ou debate coletivo sem que seja possível associá-los a grupos e/ou
organizações portadores de uma identidade e de um projeto comum.
9
Para uma instigante compreensão das relações entre a vida institucional e o mundo do crime, muito diferente da criticada
por Rodrigues, mas usando a mesma metáfora das “ligações perigosas”, cf. Misse (1997).
10
A literatura em torno dessa questão é ampla. Como exemplos de um enfoque a partir da tópica dos direitos, cf. Leite
(1995) e Sento-Sé (1998). Para uma discussão equivalente, mas em torno dos dilemas e tendências do uso da força pela
polícia, ver Paixão (1995), Moraes (1999), Muniz (1999), Muniz et al. (1999) e Brodeur (2004).
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O retorno de Brizola e de Nilo Batista ao poder, nos anos 1991–1994, foi em


grande parte tributário da força política que esse grupo ainda tinha no interior do
estado e nas favelas da capital. Mas, já então, se anunciava seu ocaso. A consoli-
dação do “problema da segurança pública” como pauta central dos conflitos
urbanos teve importante parcela de responsabilidade. À medida que os episódios
de violência física cresciam em freqüência, intensidade e, principalmente, visibili-
dade no Rio de Janeiro, expressando novas modalidades de criminalidade que
ensejavam uma percepção formulada a partir das metáforas da guerra e da “cida-
de partida”, o tema passava a dominar os debates, as propostas de intervenção e
as escolhas eleitorais subseqüentes. Vários dos antigos aliados descolaram-se do
governador Brizola, em uma crítica aberta a sua política de direitos humanos. As
eleições de 1992 para a prefeitura desenvolveram-se sob o impacto dos “arras-
tões”, que forneceram o clima para a reiterada acusação feita por Cesar Maia e
pela mídia (especialmente o Jornal do Brasil) à candidata Benedita da Silva de,
uma vez eleita, governar para as favelas e deixar os “arrastões” se espalharem pela
cidade (Dolhnikoff et al., 1995; Leite, 2000).
Sintetizando e aprofundando a argumentação anterior, gostaríamos ainda de des-
tacar que, na primeira metade da década de 1980, consolidou-se o debate em torno
dos procedimentos correntes de repressão ao crime, desnaturalizando, explicitando e
trazendo para o debate coletivo o tradicional recurso à coerção e à violência física que
caracterizou por muito tempo o tratamento dado aos desvios de conduta das cama-
das populares. Isso ocorreu em um momento de sobrepolitização da experiência his-
tórica, com forte ênfase no quadro jurídico-institucional e polarização da disputa
político-partidária. Gerou-se, assim, uma radicalização entre argumentos que critica-
vam a violência ilegítima, mas institucionalizada, dos aparelhos de controle social, e
entre argumentos que criticavam a crescente violência empregada pelos criminosos
comuns em suas ações. Uma vez que cada um desses campos via o outro como inimi-
go, armou-se uma forma militarizada de prosseguir o debate em torno da ampliação
dos direitos civis que, em última instância, é o que está em questão nessas disputas. A
insegurança e o medo passaram a pautar o debate sobre a expansão da cidadania. Tal
discussão tornou público o sentimento de insegurança e de medo relacionado à desor-
ganização da vida cotidiana, privada, do conjunto da população. Gera-se, assim, um
círculo vicioso em cujo epicentro estão demandas pela recomposição da ordem social,
as quais fecham o foco dos conflitos sociais na espiral de violência policial e criminal.
É no quadro anteriormente esboçado que vêm se constituindo as políticas gover-
namentais de segurança pública das últimas décadas. O primeiro governo Brizola
representa, assim, o momento em que se estrutura a “problemática”11 da segurança
pública, intimamente associada a um novo elemento constitutivo da opinião pú-
blica – o medo que, até esse momento, esteve presente apenas nas conversas caracte-
rísticas da vida privada. Essa problemática marca, desde então, a condução das
políticas públicas de segurança experimentadas no estado do Rio de Janeiro.

11
O termo é usado no sentido do estruturalismo francês: “No es la matéria de la reflexión lo que caracteriza y califica la
reflexión, sino la modalidade de la reflexión; la relación efectiva que la reflexión mantiene con sus objetos, es decir la
problemática fundamental a partir de la cual son pensados los objetos de este pensamiento” (Althusser, 1973, p. 54, grifos
do autor). Ver também Foucault (2002, prefácio), para quem uma “problemática” é o campo (e o horizonte) de uma estrutura
cognitiva determinada, que define os aspectos visíveis ou invisíveis, interiores ou exteriores, dos problemas enunciados.
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A inflexão “civilizatória”: das demandas por “ação enérgica” à proposição


da “terceira via”
As eleições para o governo do estado e para a presidência da república, em 1994
(disputadas por Brizola), realizaram-se sob a radicalização do debate articulado
nos termos analisados anteriormente. O estímulo mais imediatamente visível eram
os índices crescentes de diversas modalidades de crimes, cujo sentido e alcance
foram relativizados pelos estudos desenvolvidos, com apoio da Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), por
Luiz Eduardo Soares e colaboradores (1996) no Núcleo de Estudos sobre Violên-
cia da organização não-governamental (ONG) Instituto de Estudos da Religião
(Iser), que era então recém-criado, mas já intervinha ativamente no debate públi-
co sobre a violência na/da cidade. O pano de fundo, entretanto, era o domínio
territorial das favelas pelas quadrilhas de traficantes de drogas e as disputas per-
manentes pelo controle das bases de venda de cocaína a varejo instaladas nesses
locais. Com o recurso a armamentos cada vez mais pesados, os confrontos entre as
quadrilhas concorrentes, e/ou entre elas e a polícia, não tardaram a desbordar
para as ruas, com as “balas perdidas” dando origem à percepção de uma guerra e
produzindo a generalização de um medo difuso do que era desde já algum tempo
designado como violência urbana (Silva, 1976; 2004).
A esse quadro de desarticulação das rotinas que caracterizam uma vida urbana
ordenada era contraposta a bem-sucedida experiência de policiamento da cidade
pelas forças armadas durante a realização da Conferência Mundial do Meio Am-
biente de 1992 (ECO 92), que emergia como modelo alternativo de segurança
pública ao alcance da cidade, mas recusado pelo governo estadual. Outras experi-
ências, contudo, também permaneciam no horizonte desse debate, especialmente
aquelas derivadas do campo interno dos aparatos de segurança pública e que
ofereciam como solução para o problema da violência a eliminação física dos, a
seu juízo, criminosos. As chacinas de Acari (junho de 1990), Vigário Geral (julho
de 1993) e Candelária (agosto de1993) talvez tenham sido o ápice da visibilidade
dessa contribuição oficiosa às tentativas de solução do problema da segurança.
Mas não se pode perder de vista que essas ações continuam a ser recorrentemente
praticadas, como demonstram a última grande chacina em Nova Iguaçu e em
Queimados, em março de 2005, e os inúmeros homicídios de responsabilidade de
policiais nas favelas cariocas (Justiça Global, 2004). Nem se deve esquecer que
essas práticas de extermínio em nada alteraram a violência dos criminosos, que
continuam a aterrorizar a cidade, especialmente nas áreas de favela.
Parece desnecessário acrescentar que tal modo de ação policial dá continuida-
de aos tradicionais “esquadrões da morte”, como os “Homens de Ouro” e a
“Scuderie Le Coq”, de triste memória. Essas organizações clandestinas de grupos
de policiais ainda existem (pense-se nos “Cavalos Corredores”, por exemplo),
porém o extermínio como modalidade de intervenção parece reproduzir-se de uma
forma ainda mais perversa, porque, articulada de modo menos orgânico, vem
permeando de maneira difusa as práticas dos policiais e convertendo-se em um
aspecto tácito da ideologia da corporação.
No contexto de polarização dos primeiros anos da década de 1990, quando
dominam as propostas favoráveis a uma recomposição da ordem social a qual-
quer custo, Nilo Batista, governador em exercício, foi levado a assinar um convê-
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12

nio com o governo federal para realizar a Operação Rio (alocação das forças
armadas no combate direto a criminalidade no Rio de Janeiro), entre o primeiro e
o segundo turno das eleições estaduais. A forte pressão e a premência da qual se
revestiu a medida possivelmente respondem, em parte, pela vitória do candidato
do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Marcello Alencar. Uma vez
que aludiam à necessidade e urgência de equacionar com presteza a questão da
criminalidade, afirmando que isso seria possível desde que houvesse vontade polí-
tica, insunuava-se que com o PDT vitorioso isso não ocorreria (Leite, 1995; Cal-
deira, 1996). Vale acrescentar que “vontade política” para combater com “dure-
za” o crime e licença para exceder a “força comedida” que corresponde ao poder
de polícia legítimo, são idéias que se desdobram naturalmente.
Assim, face aos processos locais de exacerbação do crime violento, do medo e
da insegurança, o Rio de Janeiro consolidava-se no imaginário nacional como
caso exemplar de violência urbana: antecipava a experiência das situações de
disrupção que espreitariam nossas grandes cidades e, ao mesmo tempo, constituía
um possível laboratório de propostas para seu equacionamento sob a forma de
políticas públicas visando garantir a segurança da população. Não por acaso, o
então presidente Fernando Henrique Cardoso, discutindo o tema da violência,
reiteradamente referia-se à cidade como o “farol da nação”.12
Lugar importante nesse debate, e em seus giros de sentido, foi o do governador
Marcello Alencar (1995–1998). Antigo quadro brizolista e respeitado advogado
de presos políticos perseguidos pela ditadura que, naquele contexto, se distancia-
ra do ex-governador e ingressara no PSDB. Na campanha pelo governo do esta-
do, no segundo semestre de 1994, quando o tema da violência dominava os deba-
tes, Marcello Alencar argumentava:
O medo, o instinto de preservação e a ausência da ação do Estado
nas comunidades reforçam o compromisso delas [das favelas] com
os bandidos. Agravando esse quadro [...] a brutalidade das ações
policiais, colocando na linha de tiro pessoas humildes e muitas
vezes inocentes. (Jornal do Brasil, 8 de agosto de 1994)

Como alternativa, prometia desenvolver uma “ação institucional paralela e


complementar à ação policial” que levasse a cidadania às favelas por meio da
“criação de Centros Comunitários de Defesa da Cidadania” (uma experiência do
governo Brizola/Nilo Batista), da implementação de “políticas de promoção soci-
al e educacional” e da “participação do Juizado de Pequenas Causas, da Delega-
cia Regional do Trabalho e do Instituto Félix Pacheco” (ibidem).13
Por lidar com a violência a partir dessa angulação, o governador escolhera,
como secretário de segurança pública, o general Euclimar da Silveira, um trunfo
por sua participação na celebrada segurança da ECO 92. Poucos meses depois,
entretanto, mudaria suas posições ao enfrentar o que, à época, os jornais denomi-
naram de “crise de Santa Teresa”: uma disputa de quadrilhas de traficantes rivais

12
Cf. o noticiário do Jornal do Brasil e de O Globo sobre o movimento Reage Rio, em novembro de 1995. Ver também Leite (2000).
13
Para a centralidade do tema da violência na campanha de 1994 pelo governo do estado do Rio de Janeiro, como também
para a análise que se segue sobre o governo Marcello Alencar, cf. Leite (1995) e Caldeira (1996; 1998).
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pelo controle do Morro dos Prazeres. A longa duração do conflito, sua intensidade
e, sobretudo, o fato de se espraiar pelas ruas do bairro (casas usadas como esconde-
rijo/posição de tiro, carros e seus donos utilizados para fugas espetaculares) foram
representadas como uma expressão da guerra que ameaçaria o Rio: o morro descia
e assaltava o asfalto. Pressionado pela mídia e por políticos adversários para adotar
uma “ação enérgica”, Marcello Alencar ainda resistiu, sustentando:
Aceitamos até o confronto com os marginais, mas não
alucinadamente, entrando nos morros e metralhando tudo, como
se fez em outros tempos, sem nenhum resultado para as populações
carentes. (Jornal do Brasil, 5 de maio de 1995)

O governador, entretanto, progressivamente capitulava, divulgando sua nova


orientação às forças policiais – “quem levantar a arma contra a polícia morre”
(Jornal do Brasil, 6 de maio de 1995) – sob os aplausos dos jornais que sustenta-
vam: “Não há como invocar ‘direitos humanos’ quando eles só beneficiam homi-
cidas e drogados” (Jornal do Brasil, editorial “A guerra da lei”, 9 de maio de
1995). Para esse jornal, os direitos humanos estariam “comprometendo a eficácia
policial e a proteção aos cidadãos” (Jornal do Brasil, editorial “Cidadelas sitia-
das”, 19 de maio de 1995). Nesse contexto, a posição “moderada” do secretário
de Segurança foi sistematicamente desqualificada pela mídia. Para O Globo (14
de maio de 1995), por exemplo, o general Euclimar da Silva seria um burocrata,
incapaz da “ação enérgica” que se fazia necessária. Na Assembléia Legislativa,
deputados do Partido progressista (PP) e do PTB, aliados de Marcello Alencar,
exigiam sua substituição imediata. Jarbas Stelmann, do PTB, por exemplo, argu-
mentou: “ele está mais para d. Hélder Câmara do que para Sivuca” (O Dia, 6 de
maio de 1995), aludindo ao policial, ex-integrante dos “Homens de Ouro”, que
se elegera deputado estadual com o lema “bandido bom é bandido morto”.
A crise se resolveu, enfim, com a nomeação do general Nilton Cerqueira, um
“duro histórico”, para a Secretaria de Segurança Pública do estado. Suas novas
orientações (atirar primeiro e conferir depois; não prestar ajuda a bandido ferido;
sigilo e surpresa na ação policial), posteriormente complementadas pela “gratifi-
cação faroeste”, que premiava os policiais que matassem mais bandidos aumen-
tando em até 150% seus soldos, despertaram o seguinte comentário em editorial
do Jornal do Brasil (24 de maio de 1995), intitulado “Selo de garantia”: “a polí-
cia pretende voltar a servir aos cidadãos, deixando de facilitar a vida dos bandi-
dos”. Fechara-se o círculo. O governador Marcello Alencar assumia o rebaixa-
mento da cidadania à defesa dos direitos civis de uma parte da população carioca
e convocava a “imprensa e o povo para uma cruzada cívica em defesa dos direitos
à vida, à segurança de ir e vir” (“Co-responsabilidade e unidade”, Marcello Alencar,
Jornal do Brasil, 25 de maio de 1995).
Consolidavam-se, assim, as metáforas da guerra e da cidade partida como refe-
rências à violência urbana no Rio de Janeiro, estreitando mais ainda os limites do
debate sobre segurança pública entre o pólo que propugnava (e realizava) as “ações
enérgicas”, “duras”, demandadas por amplos segmentos da sociedade, e o pólo
defensor da compatibilização entre eficiência policial e respeito aos direitos hu-
manos (este, como foi visto, articulado em torno do grupo brizolista e do Núcleo
de Estudos sobre a Violência do Iser). Era como se, da compreensão do problema
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

às propostas de atuação, tudo estivesse marcado por uma tomada de posição


prévia: a escolha de um lado da “cidade partida” a proteger.14 Até mesmo o chefe
da Polícia Civil, delegado Hélio Luz, identificado como de esquerda, argumenta-
va que a instituição de “santuários do crime” nos morros da cidade era produto
da defesa da inviolabilidade das casas nas favelas pelo governo anterior (cf. Jornal
do Brasil, 10 de abril de 1996).
Nesse contexto de polarização, produziu-se o que está aqui designado como
uma inflexão civilizatória: a proposta de pacificação da cidade por meio de solu-
ções democráticas para o “problema da segurança pública”, com isso significando
o respeito aos direitos civis de toda a população e a submissão das atividades poli-
ciais ao controle da sociedade civil. A proposta advogava a necessidade de domesti-
car a polícia e de levar a cidadania para as favelas e periferias, integrando seus
habitantes, particularmente os jovens, à cidade (Leite, 2000). Surgida inicialmente
do campo da sociedade civil, agregava pesquisadores interessados em diversas mo-
dalidades de violência, integrantes de ONGs e de movimentos sociais, e se configu-
rava como uma forte corrente de opinião que intervinha no debate público, procu-
rando pautar a atuação do governo estadual e influir sobre a opinião pública.
Sua atuação envolvia pelo menos três linhas. Uma dizia respeito à produção e
publicização de dados e análises sobre homicídios dolosos, letalidade policial,
vitimização de jovens e crianças, violência doméstica, entre outros (cf. Soares et al.,
1996; Cano, 1997). Apoiada nessa, uma segunda linha de conduta era a proposição
de novos procedimentos e rotinas policiais, bem como de políticas públicas focadas
nos segmentos populacionais compreendidos como “de risco”, isto é, que se encon-
trariam em situações-limite facilitadoras do ingresso no crime. Uma terceira frente de
atuação relacionava-se à realização de atos e campanhas contra a violência. Tais ações
alcançavam ampla ressonância no espaço público, sendo ao mesmo tempo oferecidas
aos governantes como contribuição da sociedade civil e por ela reivindicadas. É só
lembrar, por exemplo, o “Abraço à Candelária” e a “Caminhada a Vigário Geral”
(marcos inaugurais da atuação do Viva Rio, ONG coirmã do Iser), em 1993, na
esteira das chacinas de Acari, de Candelária e de Vigário Geral. Dois anos depois, o
movimento “Reage Rio” convocou um milhão de pessoas para uma passeata da
Igreja da Candelária ao Largo da Cinelândia contra a violência, como pressão e rei-
vindicação pelo investimento de um milhão de reais para reforma e reequipamento
da polícia e projetos sociais nas favelas cariocas (Leite, 1996). A esses atos se somaram
diversas caminhadas e protestos contra casos específicos de violência; rituais religiosos
(da romaria pela paz à cidade de Aparecida a manifestações de afirmação de liberdade
religiosa e compromisso de todas as religiões com a causa da paz, bem como celebra-
ções diversas); campanhas como a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, as
muitas edições da campanha pelo desarmamento e, finalmente, a campanha “Basta,
eu quero paz!” – em reação ao episódio conhecido como o “seqüestro do ônibus
174”, em 2000 – que culminou no “Mural da Dor” (Birman, 2004).

14
Há inúmeras declarações do general Nilton Cerqueira nesse sentido, como por exemplo: “Ao criticarem a ação da
polícia, esses sociólogos não contribuem para a repressão ao crime. Muito pelo contrário, acabam dificultando o trabalho
da PM nos morros e favelas. Essa atitude está virando uma espécie de proteção aos traficantes” (Jornal do Brasil, 20 de
maio de 1996). A referência ao grupo do Iser, o qual freqüentemente também menosprezava como “policiólogos”,
evidenciava a arrogância corporativa de quem não admitia críticas dos “de fora” da polícia. Sobre as diretrizes do governo
Marcello Alencar na área de segurança pública, cf. o ponto de vista de um de seus principais atores em Cerqueira (1998).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

Todos esses atos e campanhas procuravam, ainda, comprometer os moradores


do Rio de Janeiro com um envolvimento ativo na causa da paz por meio de
manifestações de solidariedade em relação aos pobres e favelados. Essa convoca-
ção – para “fazer a sua parte” – repercutiu amplamente no Rio de Janeiro, sendo
muitas vezes apontada como a contrapartida solidária de uma cidadania que va-
loriza também os deveres dos cidadãos, como no caso da campanha contra a
fome. Em outros casos, contudo, acabou por se apequenar, desenvolvendo “’as
redes de solidariedade’ no interior de uma lógica mais instrumental de integração
de segmentos que a exclusão social teria levado às franjas da marginalidade e do
crime” (Leite, 2000, p. 84).
Ao fim da década de 1990, a polarização mencionada ampliou-se, desdobran-
do-se. Até então, como foi visto, o pólo defensor da compatibilização entre efici-
ência policial e respeito aos direitos humanos falara da sociedade civil para o
estado, articulando propostas alternativas no campo da segurança pública que
ora eram ofertadas ao estado (governo Nilo Batista), ora eram dele reivindicadas
(governo Marcello Alencar). Em ambos os casos, a inflexão civilizatória provinha
da sociedade civil, fundamentando a legitimidade de suas propostas tanto no
saber acadêmico (a seriedade, qualidade e repercussão social dos dados e análises
produzidos não autorizava seu mero descarte pelo pólo adversário), como nas
reivindicações dos movimentos e campanhas contra a violência que as incorpora-
vam à sua demanda genérica de pacificação da cidade.
As eleições de 1998 para o governo do estado apresentaram, contudo, uma
novidade: a proposta de realização da inflexão civilizatória a partir do aparelho
de estado. Articulada no interior de uma composição entre o PDT e o Partido dos
Trabalhadores (PT), com a candidatura de Anthony Garotinho e de Benedita da
Silva, essa proposta adquiriu centralidade naquele contexto eleitoral, que foi
marcado pelo tema da segurança pública, evidenciando a ressonância da polariza-
ção mencionada anteriormente. Peça importante da campanha de Garotinho foi
o livro Violência e criminalidade no Estado do Rio de Janeiro. Diagnóstico e
propostas para uma política de segurança pública, publicação que o candidato
assinou junto com Luiz Eduardo Soares e demais pesquisadores do Núcleo de
Estudos sobre a Violência do Iser. Nele, os autores advertiam:
A lição que devemos aprender, de uma vez por todas, é a seguinte:
não se combate a barbárie com a barbárie. É falsa a oposição:
‘eficiência na repressão ao crime versus respeito à lei’ (e, portanto,
aos direitos humanos e civis das populações pobres) (Garotinho;
Soares et al., 1998, p. 17, grifos dos autores).

O livro possibilitou ao candidato do PDT apresentar-se como qualificado para


enfrentar o tema da segurança pública exatamente por sua associação a esse grupo
e a suas propostas. Tendo sua imagem pública ainda fortemente vinculada a Brizola,
Garotinho deste se distanciava abraçando o que foi então enunciado como a “ter-
ceira via”: uma alternativa às políticas de segurança pública dos governos estaduais
anteriores que oscilariam, em um movimento pendular, entre “o endurecimento
contra o crime” e o “absenteísmo na área da segurança pública que fora associado
à defesa dos direitos humanos” (Soares, 2000, p. 110-114; cf. também Soares et al.,
1996, p. 281). Para fundamentar sua plataforma de governo, o candidato a ela
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

incorporou a justificação elaborada pelo grupo do Iser sintetizando as análises e


dados de pesquisa publicados em Soares et al. (1996). Surgiam, assim, as suas sete
“Propostas para uma política democrática de segurança pública” (Garotinho; Soa-
res et al., 1998, p. 142-153):
I. criar o Conselho de Segurança Pública (Consep);
II. investir em inteligência investigativa;
III. reformar as polícias civil e militar;
IV. implantar sistema de trabalho para presos no Departamento do Sistema
Penitenciário do Rio de Janeiro (Desipe) e apoiar penas alternativas;
V. gerar alternativas de incorporação à cidadania, sobretudo para a juventude
pobre;
VI. reduzir a violência contra as mulheres e seus efeitos;
VII. monitorar o Consep com pesquisas e aprimoramento de dados.

A estratégia também se evidencia na publicação de artigo resumindo essas pro-


postas (Garotinho, 1998), no número da revista Archè organizado por Caldeira,
como resultado de um ciclo de debates sobre “crime organizado e política de
segurança pública no Rio de Janeiro”, na Universidade Candido Mendes. Adicio-
nalmente, Garotinho também se construía como especialista em segurança públi-
ca por meio de um conjunto de fotografias encartado no livro, em que era retra-
tado em encontros com acadêmicos e autoridades em segurança pública de outros
países, discutindo dados e análises e articulando intercâmbios.
Do ponto de vista do principal articulador e formulador da “terceira via”,
Luiz Eduardo Soares, a associação com o governo Garotinho representava a pos-
sibilidade e a esperança de por em prática as propostas de uma política pública de
segurança democrática e eficiente:
Eleito, o governador Garotinho tornou-se o primeiro protagonista
da terceira via na segurança pública. Uma via distinta do
absenteísmo da esquerda, cujo desempenho vinha se mostrando
melhor nas denúncias do que na construção de alternativas realis-
tas, e diferente do velho terrorismo cultuado pela direita, que joga
com o medo da população e se realiza como ponta-de-lança da
barbárie nas favelas. Sua vitória tornou possível a primeira experi-
ência de suspensão do movimento pendular. (Soares, 2000, p.144)

O experimento, parte do que é aqui designado como inflexão civilizatória, foi


implementado por Luiz Eduardo Soares enquanto subsecretário de Pesquisa e
Cidadania da Secretaria de Segurança Pública, desde a posse de Garotinho, em 1o
de janeiro de 1999, quando foi criada a subsecretaria com a equipe proveniente
do grupo do Iser e seus colaboradores, até 17 de março de 2000, quando foi
exonerado pelo governador.15 O sucesso de algumas de suas iniciativas foi inegá-
vel. Dentre elas, destacam-se: “a redução em 40% do número de civis mortos pela

15
Para o relato desse experimento, ver Soares (2000). Ver também a entrevista realizada com Luiz Eduardo Soares por
Sérgio Adorno disponível em: <http://www.luizeduardosoares.com.br/docs/sergio_adorno_entrevista - les.doc>.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

polícia,16 bem como a redução do número de policiais mortos, além de uma apre-
ensão recorde de armas em poder dos criminosos: 9 mil” (Justiça Global, 2004,
p.15). Podem também ser lembrados esforços correlatos e de igual importância
desenvolvidos como parte dessa experiência especialmente as iniciativas de “civi-
lização” dos pobres e favelados. Formuladas como alternativas para a incorpora-
ção dos jovens à cidadania, compreendiam desde projetos de geração de trabalho
e renda até ações no campo da auto-estima e do reconhecimento, obtendo grande
ressonância na cidade (cf. os inúmeros relatos do autor em Soares, 2000).
Contudo, a “terceira via” fracassou, sendo encerrada como experimento com
a saída de Luiz Eduardo Soares e seu grupo do governo. Além das disputas de
poder no interior do governo, o fracasso ocorreu, em grande parte, em virtude da
resistência da corporação policial ao núcleo de suas propostas incorporadas à
plataforma do governador Garotinho: o projeto de “civilizar” a polícia – sinteti-
zado nos temas de sua reforma (moral), de seu reaparelhamento (técnico) e de sua
modernização (associação de técnicas investigativas e de pesquisas científicas,
monitoramento e prevenção). As sucessivas crises que motivaram a demissão do
subsecretário, enfrentadas por ele como se fossem apenas uma reação da “banda
podre” da polícia (Soares, 2000), revelaram a impossibilidade de realização desse
projeto, mantendo inalteradas as relações de força que eram parte do “problema
da segurança pública”. Iniciativa isolada e boicotada nos aparelhos de poder, sem
contar com apoio efetivo de outras e significativas forças políticas, a inflexão
civilizatória voltada para a polícia terminou derrotada pela exterioridade da pro-
posta em relação ao projeto dos governantes que, face à intensa e continuada
resistência da corporação, dela não hesitaram em abrir mão.
O movimento pendular seguia seu curso habitual. A Secretaria de Segurança
Pública retomava o endurecimento contra o crime. Basta um dado para demons-
trar com exatidão a mudança que se processara. Nos dois anos subseqüentes do
governo Garotinho, o resultado da política de segurança pública, agora sob o
comando exclusivo do coronel Josias Quintal, se expressava em quase o dobro do
número de “mortos civis” (não envolvidos nos conflitos armados) em interven-
ções policiais, aumentando de 289, em 1999, para 592, em 2001 (Justiça Global,
2002; 2004).
A saída de Garotinho do governo estadual para disputar as eleições presidenci-
ais, em 2002, e sua substituição pela vice-governadora, Benedita da Silva, criou
uma situação que foi interpretada por ela e por seu partido, o PT, como a oportu-
nidade de “fazer diferença no Rio de Janeiro” – o que certamente só produziria
impacto desde que focada na atuação policial. Luiz Eduardo Soares retornou ao
governo do estado, dessa vez com mais liberdade para implementar as propostas
relativas à “terceira via” no campo da segurança pública. Entre várias iniciativas,
pode-se salientar o monitoramento da violência por meio de um dirigível e de

16
Dimensão particularmente expressiva quando se sabe que as execuções sumárias no Rio de Janeiro, como em outros
estados, são encobertas nas estatísticas sob a categoria de “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”,
figuras jurídicas relativas a mortes cometidas por policiais em legítima defesa. Para essa questão, ver Cano (2003).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

várias pesquisas, e o impulso ao projeto da “delegacia legal”. Em sua gestão foi


capturado Elias Maluco, responsável pelo assassinato de Tim Lopes – jornalista
da Rede Globo que fora descoberto e assassinado pela quadrilha de traficantes
local quando fazia pesquisas para reportagem sobre sexo e drogas em bailes funk
no chamado Complexo do Alemão. Sua morte revelou à cidade uma modalidade
de assassinato que, até então, só atemorizava e se abatia sobre os moradores de
favelas, o “microondas”,17 despertando o horror, a indignação e a exigência de
punição dos culpados entre amplos segmentos da população carioca.
A captura de Elias Maluco terminou por se constituir como um evento-de-
monstração da possibilidade e da eficácia da “terceira via”. O traficante foi preso
na favela sem que tivesse sido disparado um único tiro ou que alguma pessoa
tivesse sido molestada. O tradicional procedimento do “pé na porta” das habita-
ções foi substituído pela investigação inteligente e pelo uso de um instrumento
legal (o mandado de busca e apreensão itinerante ou genérico), que se apresentou
como ação eficiente e respeitadora dos direitos civis dos moradores de favelas. O
fato de o mandado judicial ser “itinerante” ou “genérico” despertou críticas dos
que argüiam sua ilegalidade, uma vez que, pela lei, eles devem ser individuais e
específicos (cf. Justiça Global, 2004, p. 17). A despeito disso, o caso é lembrado
por muitos moradores de favelas como exemplo da possibilidade de uma política
de segurança pública alternativa, isto é, democrática e eficiente, ao contrário da
praticada nos territórios favelados.
Com a derrota do PT nas eleições para o governo do estado do Rio de Janeiro,
em 2002, cessava a inflexão civilizatória. O ex-governador e sua esposa, Rosinha
Matheus, agora abrigados em nova legenda (PMDB), executaram a mesma e ve-
lha política. No governo Rosinha Matheus (2003–2006), Josias Quintal, o pri-
meiro secretário de segurança, logo de início declarou: “Nosso bloco está na rua e
se alguém tiver que ter algum conflito que tenha. Se alguém tiver que morrer por
isso, que morra. Nós vamos partir para dentro” (O Globo, 27 de fevereiro de
2003). A ineficiência de sua política motivou rearticulações internas ao aparato
de governo. O coronel Quintal foi cumprir seu mandato de deputado federal em
Brasília, sendo substituído no cargo por Garotinho, que imediatamente anunciou
a realização da operação “Pressão Máxima”. Com 15 dias no cargo, o novo secre-
tário de segurança já divulgava, comemorando, “a morte de mais de 100 pessoas
(supostos ‘bandidos’)” (cf. O Globo, 11 de maio de 2003 apud Justiça Global,
2004, p.18).
Essa política, desde então, vem orientando o governo do estado do Rio de
Janeiro, que hoje tem à frente da Secretaria de Segurança Pública o delegado
Marcelo Itagiba. Seu maior símbolo é o “caveirão”, veículo blindado da polícia
militar utilizado em suas incursões às favelas, que representa, por seu poder béli-
co, um passo a mais na concepção militarizada de segurança pública que aqui se
examina. Mais do que isso, o “caveirão”, que entra nas favelas anunciando em
seu sistema de som – “nós vamos passar por cima, nós vamos pegar sua alma” –,

17
A vitima é colocada dentro de vários pneus de caminhão e banhada viva com gasolina. Em seguida, se lhe ateia fogo.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

é também o símbolo do caráter violento, arbitrário e discriminador dessa política


e de como seus agentes se vangloriam de realizá-la ao “arrepio da lei”.
Nessa configuração, pouco puderam (ou quiseram) realizar os governos de
Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva, ao lançarem seus
Planos Nacionais de Segurança Pública (PNSPs), respectivamente, em 2000 e 2003.
Tal como no caso dos documentos nacionais de proteção aos direitos humanos –
contrapartida necessária –, a concepção de ambos os planos é, em muitos aspec-
tos, defasada e restrita (no próprio âmbito declaratório) em relação às convenções
internacionais (cf. Justiça Global, 2002, p. 161-178). Além disso, não incorpo-
ram vários dos elementos demandados, há tempos, por militantes de direitos hu-
manos e por organizações nacionais e internacionais para alterar a situação ante-
riormente descrita. Ou o fazem de forma abstrata, sem lhes conferir prioridade ou
enunciar e garantir as condições de sua implementação.
Dois tipos de problemas colaboram para isso. O primeiro é de natureza legal e
deve-se às limitações constitucionais, relacionadas ao sistema federativo, para a
programação de ações efetivas a partir do governo federal nos campos da seguran-
ça pública e dos direitos humanos. O segundo é de natureza política e se relaciona
às demandas por ordem e às relações de força que protagonizam os conflitos
anteriormente descritos. Sua combinação potencializa os limites dos PNSPs. As-
sim, permanecem fora dos documentos legais e dos esforços políticos para a alte-
ração do quadro medidas importantes como a unificação das polícias e seu con-
trole externo (que as ouvidorias, na prática dependentes das corporações polici-
ais, não têm condições de realizar), a unificação de cadastros criminais, a realiza-
ção de cadastro de estados e municípios tolerantes com a criminalidade e a impu-
nidade e a federalização dos crimes contra os direitos humanos (cf. Pinheiro, 2000,
p.249-258; Justiça Global, 2002, p.161-169).
A federalização dos crimes contra os direitos humanos constitui, sem dúvida,
um recurso importante para garantir a autonomia dos tribunais, impedir a impu-
nidade e possibilitar a reparação de violações dos direitos humanos.18 Aprovada
pela Emenda Constitucional 45 (que versa sobre a reforma do Judiciário), a
federalização vem enfrentando enormes resistências dos poderes executivo e judi-
ciário nos estados permanecendo, até o momento, de difícil implantação.19 Ou-
tras medidas incorporadas aos PNSPs também parecem ser apenas reações pontu-
ais e datadas, presas a chacinas, crimes bárbaros e/ou escândalos de impunidade e,
nesse sentido, respostas à pressão da opinião pública e de organismos internacio-
nais. Sem intervir sobre as relações de força que estão em sua origem, os governos
federais terminam por relegá-las, pouco depois, ao limbo das “leis que não pe-
gam”. Esse ponto é também salientado pela ONG Justiça Global:

18
“O deslocamento da competência processual para a Justiça Federal nas hipóteses de graves crimes contra os direitos
humanos é medida reivindicada há muito pela sociedade civil organizada e também já estava prevista como ação
governamental de curto prazo desde o Programa [Nacional de Direitos Humanos] de 1996” (Justiça Global, 2002, p.169).
19
Os recentes julgamentos ou encaminhamentos judiciários no caso dos envolvidos nas chacinas do Morro do Borel (Farias,
2005) e de Eldorado dos Carajás (O Globo, 25 de setembro de 2005, 3. ed., p. 15), além da recusa do Superior Tribunal
Federal em federalizar o caso do assassinato da freira Dorothy Stang por pistoleiros, no Pará (O Globo, 25 de setembro
de 2005, 3. ed., p. 15), indicam as dificuldades apontadas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20

A maior parte das ‘respostas’ do estado consistiu em instrumentos


jurídicos regulatórios e paliativos, geralmente criados
episodicamente como respostas às grandes tragédias nacionais, que,
se implementadas de forma esparsa e isolada, não conseguem
dirimir as falhas estruturais de problemas, tais como a impunidade,
a violência e a corrupção policial, a morosidade do Poder Judiciá-
rio e a sua vulnerabilidade nas instâncias estaduais (2002, p. 164).

A esse respeito, vale lembrar que o PNSP do governo Fernando Henrique


Cardoso só foi lançado em 2000 (sexto ano de sua gestão, considerados os
dois governos) e, mesmo assim, como uma resposta aos episódios relacionados
ao caso conhecido como “seqüestro do ônibus 174”, no Rio de Janeiro, e ao
clamor público que suscitaram. A percepção social de um agravamento dos
conflitos violentos nas grandes cidades fez com que o governo lançasse tam-
bém, em 2001, um Plano Nacional de Prevenção à Violência. O plano tinha
por foco a população considerada como “de risco”, moradora em municípios
tidos como “bolsões de violência” nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro,
Vitória e Recife. Previa diversas “ações integradas” para “reduzir os índices de
criminalidade”,20 mas acabou operando sobretudo com projetos pontuais re-
lacionados à geração de emprego e de renda, protagonismo juvenil e auto-
estima, gestão social, meio ambiente e gênero, segundo a lógica dominante no
período antes mencionada.21
Já o PNSP do governo Lula escolheu investir, por meio de amplo financiamen-
to de pesquisas, na melhoria dos dados e análises sobre políticas públicas relacio-
nadas à área de segurança.22 Também são inegáveis seus resultados no que concerne
à atuação da polícia federal. Nas demais áreas de ação, contudo, o PNSP/2003
continua a ser, como o plano que o precedeu, restrito em seu sentido e alcance
prático, sem sequer conseguir limitar a autonomia desfrutada pelas polícias esta-
duais e coibir sua violência.23 As chacinas continuam se reproduzindo e a tortura
segue sendo prática sistemática nas delegacias e instituições prisionais brasileiras.24
Isso sem falar na violência praticada pelas milícias privadas que continuam atu-
ando, como sempre, nas cidades e no campo do país.

20
O Plano Nacional de Prevenção à Violência previa iniciativas nas áreas de saúde, educação, esportes, lazer e prevenção
do uso de drogas, que seriam implementadas pela da cooperação entre os governos federal, estadual e municipal, os
poderes legislativo e judiciário e o Ministério Público.
21
Ver, por exemplo, os projetos do Centro Nacional de Formação Comunitária (Cenafoco).
22
O que possivelmente se relaciona à participação de Luiz Eduardo Soares, e de seu grupo, no 2o escalão do governo,
novamente animados pela esperança de produzir uma inflexão civilizatória, dessa vez no plano federal. Não cabe nos
limites deste texto a discussão de sua derrota, mas nela certamente influíram os conflitos associados aos limites das
intervenções dos governos federais sobre o “problema da segurança pública”.
23
Cf. os índices de letalidade policial nas grandes cidades brasileiras em Cano (2003), em muito superiores aos de outros
países.
24
A reportagem de Jailton de Carvalho, no jornal O Globo (4 de maio de 2003, p. 18), pode ilustrar o ponto destacado:
levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Procuradores de Justiça revela que, de 1998 a 2002, dos 524 casos de
tortura denunciados pelos Ministérios Públicos estaduais à justiça, apenas 4,3% (15 casos) foram julgados e só 1,7%
(nove casos) acarretou condenações, embora em instâncias ainda não definitivas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21

A situação atual – a sustentação do medo pela palavra


A inspetora Marina Magessi, até pouco tempo, chefe de investigações da Polícia
Civil da Secretaria de Segurança Pública e importante porta-voz desse segmento
policial, produz um aggiornamento do discurso da instituição policial no Rio de
Janeiro e, assim, uma narrativa pretensamente civilizatória no atual quadro de
perversões. Dirigida diretamente aos agentes policiais e às lideranças de favelas, a
narrativa da inspetora Magessi sobrepassa seus alvos mais imediatos ao produzir
imagens e argumentos que repercutem na sociedade.25 Nisso reside a sua eficácia.
Aggiornamento é um termo aqui utilizado a partir da obra de Antonio Gramsci,
referido à vida cultural italiana e aplicado aos processos de dominação ideológi-
ca. Na interpretação do autor, a ideologia dominante é mais do um estoque fixo
de idéias-base meramente a serviço da ocultação da natureza das relações capita-
listas de produção. Ao esmiuçar os mecanismos de introjeção de valores e concep-
ções de mundo, Gramsci considera que a ideologia diz respeito às formas de “lo-
calizar e resolver problemas”, passo indispensável para a conquista de corações e
mentes. Tal processo abrange desde o senso comum à filosofia mais avançada até
então existente, o que imprime a direção intelectual e moral exercida sobre o
conjunto da sociedade.
O aggiornamento compõe-se de “explicações sobre o mundo”, atualizadas e
persuasivas, dirigidas às aspirações, às demandas, aos sofrimentos e às possibilida-
des de ação das classes e de grandes agrupamentos sociais. Tal interpretação evi-
dentemente não se iguala à imagem da ideologia dominante como um bloco
monolítico a ser atingido por uma cultura oposta, que porventura porá por terra
toda a ocultação e permitirá aos seres humanos a visão translúcida de todas as
relações que afetam suas vidas. Gramsci enfatiza o jogo e a disputa intelectual e
moral na moderna sociedade de classes capitalista. Por isso, seus estudos sobre
hegemonia enfatizam predominantemente a capacidade de persuasão por parte
dos agentes históricos.
As tentativas de aggiornamento, entretanto, não se reduzem às investidas
recentíssimas conduzidas pela inspetora Magessi. Um de seus possíveis marcos cro-
nológicos remonta aos anos 1993-95, sob o efeito dos enfrentamentos deflagrados
pelas chacinas da Candelária e de Vigário Geral e da primeira grande manifestação
contra a violência na cidade do Rio de Janeiro articulada pela ONG Viva Rio, em
1995, que ganhou o nome de “Reage Rio”. Naquele momento, como visto, o
debate se polarizava entre, de um lado, o campo de defesa dos direitos humanos
(Brizola/Nilo Baptista), que já então incluía Luiz Eduardo Soares e seu grupo, e, de
outro, o aparato de segurança pública (secretários de Segurança, chefe da Polícia
Civil e demais representantes dos interesses corporativos da polícia), além do prefei-
to e do governador, adversários do grupo brizolista. Permanecia em questão a

25
Marina Magessi tornou-se conhecida ao comandar as operações policiais que resultaram na prisão dos traficantes
Marcinho VP, Elias Maluco e Fernandinho Beira Mar. Teve também papel importante nas investigações sobre o conflito
entre grupos de traficantes pelo controle da favela da Rocinha, em 2004. Sua atuação tem sido divulgada pela própria
inspetora e recebido destaque na mídia (cf. “Polinter lotada: a mulher que comandou as principais investigações
realizadas no Rio de Janeiro. O destino incerto da inspetora Marina Magessi”, O Globo, 6 de setembro de 2005, p. 13).
Afastada da Polinter diante da notícia de que presos eram obrigados a assumir por escrito a responsabilidade por sua
integridade física, declarou: “Nosso orgulho é que é a terceira vez que nossa equipe é afastada, mas sem denúncias de
corrupção, tortura e sem sangue de ninguém” (O Globo, 7 de setembro de 2005, p. 13).
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22

generalidade do tratamento igualitário no plano dos direitos civis que, como par-
te da política de direitos humanos do governo Brizola, destacava a necessidade de
uma incursão “civilizatória” sobre – de fora e contra, vale acrescentar – a própria
instituição policial que, obviamente, viria a enfrentar grande resistência da
corporação.
Buscava-se transformar o aparato policial em algo mais do que uma versão
atual dos capitães do mato do período escravocrata: uma instituição submetida à
lei e ao controle público de sua conduta. Com essa angulação e ambição iniciou-
se uma disputa, que permanece até hoje, em torno dos temas da reforma e moder-
nização da polícia. Como se viu aqui, a tentativa de implementação desses propó-
sitos no governo Garotinho/Benedita enfrentou a resistência e o boicote do apara-
to policial, além da incapacidade e/ou descompromisso dos próprios governantes
em realizá-la. O resultado final ficou reduzido, no governo Benedita da Silva, ao
que se pode compreender como projetos demonstração de uma possibilidade al-
ternativa de gestão da segurança pública.
Nas palavras de Marina Magessi, ao contrário, a relação entre aggiornato e
civilizatório não é necessária – como queria Luiz Eduardo Soares –, mas contin-
gente. Ela incorpora algumas críticas feitas à polícia, sugerindo que de fato as
coisas não podem continuar como estão, para se apresentar como possível medi-
adora entre a instituição e o conjunto da sociedade. No caso da intervenção poli-
cial nas favelas, desqualifica seus moradores como atores decisivos no debate. De
fato, a inspetora Magessi acaba por promover unilateralmente o papel da polícia,
tornando-se porta-voz dessa instituição. Sua argumentação pública contribui para
ocultar ou desvanecer a política tácita do estado para as favelas baseada no des-
respeito aos direitos humanos, violência, brutalidade e homicídios de jovens por
policiais. Esses desmandos estão registrados em sólidos dados estatísticos e em
relatos densos e absolutamente verossímeis dos familiares das muitas vítimas da
violência policial no Rio de Janeiro (Justiça Global, 2004; Birman e Leite, 2004;
Farias, 2004). A ação policial tem resultados idênticos à conduta da criminalidade
violenta corporificada pelos “donos do morro”.
O arbítrio e a corrupção estão enraizados na corporação como a tônica da
intervenção nas favelas e vêm sendo denunciados, sem sucesso, há pelo menos
uma década. O medo, que alimenta as flutuações da opinião pública frente ao
“problema da segurança pública”, favorece a anuência à orientação governamen-
tal quanto a procedimentos, prioridades e (negação de) direitos em relação à po-
pulação favelada. Magessi prefere reduzir este padrão institucionalizado de con-
duta a excessos ou desvios de comportamentos individuais dos “maus policiais”
(que replicariam em suas organizações os maus políticos, maus pesquisadores,
maus médicos, más mães etc.). Esse artifício retórico lhe possibilita estabelecer a
mediação que dilui responsabilidades e joga as instituições e suas práticas regula-
res numa zona de sombra da qual só podem emergir indivíduos, igualados nas
suas misérias e em seus vícios, irmanados em suas perdas.
Marina Magessi busca, assim, construir-se como voz civilizada da polícia, que
pode falar para a sociedade e com os segmentos favelados. Mas fala, sobretudo,
pelos interesses corporativos. Ao fazê-lo, justifica a práxis policial e, como barrei-
ra contra qualquer interferência sobre sua autonomia, constrói – como talvez não
se tenha feito antes – um nexo entre essa e os desejos e as necessidades dos favelados:
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23

No episódio da prisão do William [presidente da Associação de


Moradores da Rocinha acusado de associação com o tráfico] eu
conversei com ele na delegacia, porque a minha delegacia foi
responsável pela prisão dele e eu sou a responsável pelas investiga-
ções que levaram não à prisão dele, mas ao desencadeamento dessa
operação. ‘William, você, hoje, guardadas as devidas proporções,
tem que se lembrar de Nelson Mandela. Você, hoje, é prefeito de
uma cidade de 200.000 habitantes.’ [...] Vocês acham que eu acho
que o William é culpado? [...] digo que não. Por quê? Porque aí
vamos cair naquela coisa da conivência [...] e que é de uma hipocri-
sia tremenda, que é achar que alguém pode viver numa favela,
morar nela, representar todos os segmentos daquela favela, sem
conversar com o tráfico. [...] Mas além da conivência e da convi-
vência, tem a conveniência. E a conveniência é de políticos que não
têm nenhum tipo de verdadeira motivação pelos problemas de
vocês [favelados]. [...] Eu acho que agora é hora de falar [...] E
vocês podem contar conosco, pelo menos com o nosso trabalho, da
minha equipe e dos policiais que eu represento.26

O deslocamento das críticas ao arbítrio e à brutalidade, tidos agora como even-


tuais e desviantes e não como tacitamente institucionalizados, deixa intocada sua
permanência como modalidade de intervenção policial nos bairros pobres e perifé-
ricos e nas favelas. O argumento passa ao largo da crítica e/ou de qualquer compro-
metimento com uma ação que vise modificar as práticas policiais, já que elas estão
supostamente restritas a seres abstratos e naturais, os “maus policiais”. Defendendo
a tese dos excessos, a inspetora Magessi retira o foco do debate das práticas estatais
de criminalização e repressão das camadas populares, especialmente os favelados,
ao mesmo tempo em que valoriza o que não pode deixar de ser consensual – a
“boa” polícia –, apresentando-se como sua representante e, nessa qualidade, aliada
dos moradores de favelas e dos dirigentes de suas organizações:
Vocês podem acompanhar o trabalho da nossa equipe. É sempre
sem tiro, é sempre sem demonstração de força, sempre sem
esculacho, sem tortura e sem morte porque a nossa meta é
ajudar a população. Eu sou a destinatária do meu trabalho. Na
hora que o meu trabalho tiver sucesso, eu tenho mais paz e a
minha família também.27

A inspetora Magessi é uma intelectual orgânica da instituição policial no Rio


de Janeiro porque “traz para si”, pensa, elabora, localiza problemas e resolve, ou
seja, produz uma narrativa que inclui os mais variados episódios que envolvem a

26
Intervenção de Marina Magessi no debate público sobre Associações de Moradores, promovido pela vereadora Andréa
Gouvêa Vieira, em 22 de março de 2005, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e registrada em seu Diário Oficial, de 28
de março de 2005, p.13.
27
Idem, ibidem.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24

ação dos policiais em seu contato/confronto permanente com a população pobre


e favelada e com os grupos armados que se alimentam da economia da droga
nesses territórios da cidade do Rio de Janeiro. Ela está nas páginas dos jornais e na
tela da televisão, participa de debates, atua com desembaraço no espaço público e
nas arenas políticas, e mostra-se uma especialista em todos os problemas relativos
à violência e à atividade criminosa. Constrói argumentos, contesta opiniões de
pessoas e grupos organizados, expõe os pontos de vista da corporação policial e
com isso aggiorna permanentemente as razões da intervenção das forças repressi-
vas, em um cenário marcado pela impunidade das feições criminosas dessa inter-
venção e da desconsideração ininterrupta das garantias mínimas do exercício da
cidadania por parte do povo pobre e favelado.
Um exemplo típico: quando confrontada com a saga trágica das mães de fi-
lhos mortos pela polícia em embates nos morros cariocas, a inspetora Magessi
neutraliza a dramaticidade das denúncias e das cobranças sobre a responsabilida-
de do estado, e mais especificamente, da natureza e do caráter da ação repressiva
por parte das forças policiais, por meio da lembrança das mães dos policiais mor-
tos em combate. Com isso, iguala a matança indiscriminada de inocentes e de
criminosos à defesa da integridade dos policiais. O que significa, na prática, o
obscurecimento das desigualdades sociais estruturais e a suspensão dos controles
democráticos sobre a atividade policial, além de abrir a possibilidade (ou certeza)
para novas matanças.
Por outro lado, ao brandir as “baixas de ambos os lados” – em clara alusão à
metáfora da guerra – desqualifica a vulnerabilidade das camadas populares, espe-
cialmente dos favelados, e reaproxima os moradores das favelas do mundo do
crime. No caso das mães dos jovens mortos em incursões policiais nessas áreas,
reenvia seus apelos, denúncias, cobranças e sua ação coletiva para um campo do
qual elas fazem um enorme esforço para se separar. Dessa forma, Magessi dilui e se
contrapõe ao trabalho de limpeza moral que as mães empreendem nas falas, do-
cumentos e rituais com que se apresentam no espaço público para denunciar a
violência policial e cobrar justiça e punições ao estado (Birman e Leite, 2004).
Quando se iguala a dor, tudo fica como está. É uma espécie de anistia aos atos
passados ou recentes da política repressiva e a manutenção de seu modus operandi.
Também significa uma anistia para os crimes futuros, que sacrificarão diretamen-
te a população favelada. Mantém-se, como foi afirmado, a defesa corporativa de
uma instituição que, ancorada nas expectativas de uma opinião pública muito
influenciada pelo medo,28 reluta incansavelmente em se sujeitar ao questionamento
de suas práticas.
Em algum momento incerto do futuro as coisas poderão mudar ou revelar
algum avanço auspicioso, mas, até agora, a batalha a respeito do isolamento das
favelas e das condições de existência desses grandes contingentes vem sendo ganha

28
A metáfora da guerra, na medida em que define o oponente como inimigo e remete a contextos que demandam o uso
máximo da força, acaba por gerar medo também entre os próprios policiais em suas atividades de repressão ao crime, que
reagem aprofundando os métodos violentos, reproduzindo e generalizando uma cadeia exponencial que parece não ter fim.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25

pelas forças mais retrógradas da sociedade. E mais: com efetiva aceitação por
grandes setores da população. Atualmente esse investimento regressivo conta com
a ajuda e a propagação de idéias que são aggiornadas por quadros orgânicos da
polícia, aqui exemplificados na pessoa da inspetora Magessi. Vale lembrar de uma
das máximas que circulam pela cidade, que ilustram e consolidam aquele isola-
mento: “direitos humanos para quem é direito”.29 Essa maneira de localizar e
resolver problemas coloca em campos opostos quem não deveria ser atravessado
por essa cisão. Se a solidariedade já é um produto escasso nas condições contem-
porâneas da hiperindividualização, mesmo nas sociedades capitalistas avançadas,
o conjunto de práticas e mentalidades interpretadas como a segurança apesar dos
outros (em vez da segurança com os outros) em países como o Brasil, atormenta-
do pela criminalidade violenta, torna-se com facilidade uma defesa do arbítrio e
da brutalidade. A justificativa construída pela inspetora é uma forma de preserva-
ção dessas características das práticas policiais tacitamente institucionalizadas.
Dentre as demais iniciativas de aggiornamento, há que considerar também o
papel do secretário de Segurança do estado, o delegado da Polícia Federal Marcelo
Itagiba. Em contraste com a imagem pública do general Nilton Cerqueira, que
exerceu o mesmo posto no governo de Marcello Alencar e que se vangloriava de ter
perseguido e liquidado Carlos Lamarca, Itagiba não se apresenta como “caçador de
cabeças”. A contribuição “civilizatória” do general Cerqueira foi a já mencionada
“gratificação faroeste” e a desqualificação como “policiólogos” dos cientistas soci-
ais que, como parte das análises sobre vitimização – as quais, evidentemente, preci-
savam considerar tanto a atividade policial quanto a dos criminosos – discutiam a
letalidade da conduta dos primeiros. A presença do general Cerqueira à frente da
Secretaria de Segurança significava o casamento da vida democrática e civil,
institucionalmente frágil para lidar com o crescimento acentuado da violência na
cidade, com a “eficácia” repressiva dos métodos da ditadura.
Já Marcelo Itagiba produz uma prática discursiva nova, marcada pelo efeito
político do deslocamento. Ela opera uma espantosa inversão, que também pode
ter eficácia persuasiva, definida pelo lugar que atribui aos aparatos de segurança
pública, a partir do qual sustenta uma cobrança da polícia com relação à socieda-
de. Em vez de reconhecer o poder da sociedade de fiscalizar as instituições públi-
cas e estatais, transfere a responsabilidade pela “eficácia” do combate ao crime
para os cidadãos comuns, atribuindo-lhes também, no mesmo movimento, par-
cela da culpa por seus insucessos. Num primeiro momento, no contexto da co-
nhecida “crise da Rocinha”, que levou à prisão de William (já mencionada em
citação anterior), conclamou os favelados a uma “insurreição pela cidadania”
traduzida em práticas de denúncia dos componentes e nichos do narcotráfico em
seus locais de moradia:

29
A pesquisa “Lei, Justiça e Cidadania” (Centro de Pesquisa e Documentação/CPDOC da Fundação Getúlio Vargas/FGV
e Iser, 1997) demonstrou, para a população residente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a prevalência de uma
parca idéia de direito civil, referida apenas ao controle da criminalidade: 63,4% concordam totalmente que os bandidos
não devem ter direitos respeitados, 51,8% toleram linchamentos e 40,4% justificam o uso de métodos violentos para
confissão de suspeitos. É a “cidadania de geometria variável” de Lautier (1997) articulando a percepção social da
segurança pública.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
26

É hora da insurreição pacífica e cidadã dos moradores. Em coope-


ração com o estado, é preciso impor barreiras ao crime, denuncian-
do anonimamente os facínoras que os oprimem e os maus policiais
que os desrespeitam. A maioria tem que derrotar a minoria. Contra
as armas dos traficantes, vamos construir uma rede de solidariedade
que, por meio da informação e da denúncia, irá destruí-los. Para a
diminuição da taxa de criminalidade, todos devem ter a capacidade
de se preocupar e agir em defesa da sua rua, de seu vizinho, de sua
comunidade e, por fim, de sua cidade [...] Somos todos nós contra
eles, os criminosos.30

Não por acaso, o apelo ao combate às quadrilhas de traficantes de drogas


aliou-se à divulgação pela mídia do “sucesso” da repressão privada, agora “alter-
nativa”, de iniciativa dos moradores. São milícias constituídas na maior parte por
ex-policiais, as chamadas “polícias mineiras”, que geralmente contam com o apoio
das forças regulares de segurança pública. Essas práticas foram apresentadas pelos
meios de comunicação de massa como um exemplo bem sucedido da postura
cidadã em que cada um “faz a sua parte”.31
O delegado Itagiba tornou-se uma espécie de pregador civil, sugerindo até que a
sociedade deveria fazer passeatas contra o uso das drogas. A partir de um episódio
recente, em que uma aposentada filmou de sua janela o movimento do tráfico na
Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, Itagiba, embora com cautela, convocou a
população a ter a mesma disposição de “combater esse mal”, seguindo métodos
equivalentes. A insinuação deu certo: o mote foi adotado com toda a clareza pelo
jornalista Aydano André Motta, em artigo intitulado “Senhora Dignidade”, publi-
cado na página de opinião do jornal O Globo (9 de setembro de 2005, p.7), que
sugeria enfaticamente que a referida aposentada fosse tomada como exemplo e
inspiração. Assim, o estado narra, sugere, discrimina, se ausenta, preserva opressões
e a sociedade sente-se ameaçada permanentemente em seu cotidiano.
Esse deslocamento (Bauman, 2000) proporciona evidentes rendimentos políticos
às forças policiais e às agências responsáveis pela segurança pública. De um lado, as
torna opacas à apreciação e ao controle públicos. A ofensiva agora parte delas, sobre
a responsabilidade da sociedade. De outro, busca neutralizar os grupos organizados e
a movimentação social que contestam o arbítrio policial e suas conseqüências.
O aggiornamento produzido por Marcelo Itagiba mantém intocadas as tenta-
tivas de isolamento das favelas, ao elaborar uma narrativa “civilizatória”, limpa,
persuasiva, que tem sua face cruel e concreta no trabalho “sujo” dos policiais e na
adesão, apoio e/ou submissão das populações a essa alternativa. Sob esse manto,
que reforça a aceitação dos métodos violentos da repressão policial às “classes
perigosas” por parte de amplos setores da opinião pública (e mesmo uma percen-

30
Marcelo Itagiba, “Insurreição pela cidadania”, jornal O Globo, 19 de março de 2005, p. 7. Também publicado na página
de abertura do site da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (http://www.ssp.rj.gov.br, acesso em:
17 de julho de 2005).
31
Cf., por exemplo, “Cidade de Deus na mira dos milicianos. Área onde vivem mais de 38 mil pessoas ainda tem tráfico
e grupos de PMs querem expulsar os bandidos” (O Globo, 20 de março de 2005, p.19) e a série do mesmo jornal “Vida
Severina”, especialmente a reportagem “De olhos bem fechados para a violência” (O Globo, 21 de maio de 2005, p. 16).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
27

tagem significativa dos próprios estratos assim rotulados), a curva estatística de


homicídios de jovens pobres no Rio de Janeiro continua com os contornos de
genocídio. Aos assassinatos cometidos pela criminalidade violenta, que tanto viti-
ma inocentes quanto os próprios membros dos bandos de criminosos, continua a
se somar o extermínio realizado por policiais.32
Apresentado de maneira um tanto brutal, o atual “problema da segurança pú-
blica” está polarizado em torno de uma pergunta: deve-se “civilizar” as instituições
policiais, com vistas a tornar os controles sociais da vida urbana mais transparentes
e legítimos; ou, “civilizar” as classes perigosas – cujo arquétipo são os favelados,
especialmente no caso exemplar do Rio de Janeiro – de modo a impedir a dissolu-
ção da ordem social? Têm-se, assim, todos os ingredientes que reproduzem e ossificam
o deslocamento dos conflitos sociais, da estrutura das desigualdades sociais para a
questão dos controles institucionais que garantem as rotinas cotidianas. Pelo me-
nos, a médio prazo, não parece haver espaço para a aceitação pública de outra(s)
pergunta(s) capaz(es) de reorientar os conflitos e abrir a possibilidade de nova(s)
proposta(s) visando à recomposição da ordem social.

Conclusão
Neste texto, enfatizou-se a influência das diferentes conjunturas para um proces-
so coletivamente construído de afunilamento da percepção social das relações de
classe, que acabou desembocando na autonomização do “problema da segurança
pública”. Procurou-se demonstrar que:
1. tal como a opinião pública o compreende, o debate político em torno de como
enfrentá-lo está dramaticamente reduzido e não abre espaço para uma interven-
ção sistemática e relevante que, formulada na linguagem universalista dos direi-
tos, discuta as relações entre cidadania e desenvolvimento. Aos poucos, limitan-
do-o à expansão do crime violento direta ou indiretamente ligado ao consumo
da economia das drogas, fechou-se um círculo de ferro que polariza as disputas
em dois campos opostos, mas convergentes em suas visões reducionistas. De um
lado, a defesa de uma atuação “dura”, “enérgica” (ou seja, além da “força
comedida” que caracteriza o poder repressivo em sua institucionalidade legal)
da polícia contra a ameaça à ordem representada pelos criminosos. De outro, a
denúncia do excesso de força empregado pelos policiais, esta com um poder de
penetração na opinião pública muito mais débil;
2. esse foco limitado constitui-se como contrapartida de um crescente sentimento
de insegurança e medo do crime violento. Na medida em que esse está, de fato,
em inequívoca expansão, não se pode atribuir o medo generalizado apenas ou
sobretudo a uma produção imaginária ou da mídia como sugerem, por exem-
plo, Chesnais (1981) e Soares (1996) respectivamente. Porém, mesmo tratan-
do-se de um sentimento diretamente embasado na realidade concreta, o medo

32
Reportagem de Alessandro Soler (O Globo, 24 de setembro de 2005, p. 23) chama atenção para o enorme desequilíbrio
dos quantitativos de mortes de policiais e outros membros da população urbana a partir dos autos de resistência: “De
acordo com dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública, foram mortos 398 civis e 99 policiais em confrontos
em 1998. Cinco anos depois, morreram ‘em resistência’ 1195, contra 45 policiais. Em 2004 houve uma diminuição no
número de civis mortos, mas ainda assim a estatística ficou em um patamar elevado: 983". Ver também Cano (1997; 2003)
e Justiça Global (2002; 2003; 2004) que destacam, além desse desequilíbrio, outros indicadores de execuções sumárias:
disparos na cabeça, pelas costas, à queima-roupa e/ou vários “impactos de bala”, por exemplo.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
28

e a insegurança que o acompanha tendem a dissolver a confiança, que é a


condição de qualquer relação de alteridade. Assim, a cognição que o medo
gera apóia-se em representações de um antagonismo difuso entre grandes cate-
gorias sociais sem delimitação clara. O quadro não favorece o desenvolvimen-
to de uma ação coletiva com um mínimo de organicidade, seja na forma de
movimentos sociais sem um quadro dirigente unívoco, seja na forma da ação
comum de agentes com uma identidade firmemente estabelecida. É evidente
que a situação implica duas conseqüências no que diz respeito à participação
dos poderes públicos na questão. A primeira é que a margem de autonomia no
funcionamento dos aparatos institucionais, como a polícia, fica consideravel-
mente acrescida. A segunda é que para eles convergem todas as demandas, por
mais desencontradas e contraditórias que sejam, de recomposição do tecido
social, fechando-se o círculo de ferro;
3. no caso do Rio de Janeiro, a progressão das questões anteriormente resumidas
trouxe em seu bojo uma articulação indissociável entre o “problema da seguran-
ça pública” e o problema das favelas. Essa combinação expressa com a nitidez
da exemplaridade, a ligação mais genérica presente em todas as cidades brasilei-
ras entre o “problema da segurança pública” e os territórios da pobreza.

Não há espaço, assim, para a formulação de políticas de segurança articu-


ladas a um debate mais amplo que as insira no quadro das relações entre cida-
dania e desenvolvimento. O “problema da segurança pública” está estruturado
a partir de pressupostos e preconceitos que restringem as propostas de inter-
venção ao aprofundamento e racionalização dos meios de repressão. Nas raras
vezes em que entra o tema da cidadania, por meio da discussão de políticas
sociais, elas são pensadas de modo reducionista e instrumental, isto é, como
formas de salvar moralmente, ou (re)civilizar, as classes populares (especial-
mente sua juventude), construindo barreiras contra a participação em ativida-
des criminais. Em outras palavras, as políticas sociais passam a ser compreen-
didas e formuladas como políticas de segurança – meras formas de controle
social focadas na pobreza. É o que Moraes (2005) denomina de “policialização
das políticas sociais”.
Acresce que a superposição do “problema da segurança” com o problema
das favelas acaba por territorializar a focalização destas políticas, que agora se
dirigem menos a grupos sociais específicos e mais a áreas urbanas tidas como
perigosas. Fecha-se, assim, o círculo de ferro que redesenha o espaço urbano
segundo a lógica do medo e a metáfora da guerra: de um lado, os “comandos”
ligados à economia das drogas defendendo pela força suas áreas de atuação; de
outro, as instituições policiais ignorando as fronteiras históricas dos locais de
moradia da população pobre, e impondo a definição dos “complexos” de fave-
las; e finalmente políticas sociais “policializadas”, focadas nessas novas repre-
sentações da cidade. Em uma situação como essa, de esgarçamento da sociabili-
dade com o correspondente recuo da esfera pública, e uma opinião pública cujo
horizonte se resume a demandas por ordem a qualquer custo, só um milagre
poderia produzir uma ação coletiva densa e politicamente forte.
Para finalizar, uma palavra a mais sobre a constituição e a prevalência do con-
trole territorial sobre o controle populacional.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Como foi visto, as mudanças na organização do conflito social produziram um


vasto conjunto de dispositivos em função do qual ações, de origens diversas e desti-
nadas a fins próprios, acabam por aliar o descontrole dos organismos responsáveis
pela segurança pública com a aceitação cultural e ideológica de que áreas da cidade,
já penalizadas com a presença de bandos armados, podem ser tomadas de assalto
por forças policiais que reprimem, matam e fazem negócios escusos. Em conseqüên-
cia, alarga-se o campo da aceitação social da arbitrariedade sem fim: a segurança
pública torna-se concebível em detrimento do “outro”. Na atual vigência da men-
talidade que destina à favela o lugar do “outro” da cidade (e, no limite, da socieda-
de), a parcela da população que ali está instalada tornou-se “matável” pelos agen-
tes de segurança, sob o olhar complacente daqueles que se sentem “aliviados” ou
“vingados” pelo uso da força nas localidades onde prolifera a organização dos
bandos armados que operam a economia da droga. Tornam-se uma “gente
sacrificável” – ou homo sacer, nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben
(2002) – sem que isso seja percebido ou repudiado como delito inaceitável.
Intencionais ou não, essas ações terminam por isolar as favelas do resto da
cidade, reduzindo-as a cidadelas do crime ou regiões liberadas do narcotráfico,
agravando a violência a que se encontram submetidos os moradores, com enor-
mes danos à expressão livre dos seus padecimentos e dos seus interesses. Na atual
configuração institucional reservada à segurança pública, o uso inteligente da re-
pressão é muito mais uma evocação vazia do que uma prática efetiva. A interven-
ção decisiva do estado por meio de políticas públicas de caráter regenerador e
geral é muito mais uma promessa do que uma possibilidade. A informação e o
esclarecimento da população de forma a diminuir a força do preconceito e estabe-
lecer pontes sólidas de integração social é uma iniciativa que nunca foi sequer
aventada. A vontade política de enfrentar esses obstáculos cede lugar permanen-
temente ao uso da miséria e da insegurança para auferir vantagens eleitorais por
meio do clientelismo (o que envolve, às vezes, acordos com o narcotráfico em
troca de votos). O prestígio de bravatas do tipo “mata e esfola” por parte dos
governantes repercute profundamente em uma população com medo e favorece
sempre as soluções autoritárias. Tudo isso, é claro, afeta mais intensamente os
“territórios da pobreza” cujo coração, na realidade e no imaginário coletivo, são
as favelas.
Para melhor fundamentar essa interpretação, vale a pena um breve comentá-
rio sobre o movimento “Basta”, analisando seu significado nos termos da tendên-
cia de organizar as práticas e os dispositivos de controle social focalizando territó-
rios e não mais populações.
Surgido no Rio de Janeiro em 2004, o movimento foi deflagrado por setores
das classes médias e das elites da Zona Sul carioca, que provavelmente nunca
antes haviam participado do mundo das reivindicações políticas, ao colocar gran-
des faixas com os dizeres “Basta!” nas varandas dos seus apartamentos localiza-
dos em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas, das praias de São Conrado, Ipanema,
Copacabana e Leblon e nas demais ruas desses bairros nobres. Reuniões foram
convocadas, vereadores e ONGs hipotecaram apoio ao movimento e a mídia deu
destaque à iniciativa. O “Basta!” era um grito de socorro e de exigência de medi-
das drásticas para o combate à criminalidade, uma espécie de apelo transcendental
ao governo e à polícia. Não havia qualquer referência explícita a contingentes
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
30

sociais, forças ou instituições implicadas com a progressão da violência. Mas hou-


ve panfletagens nas ruas, campanhas de esclarecimento, declarações dos envolvi-
dos e interpelações de autoridades em uma espécie de insatisfação civil que tinha
a pretensão de se tornar uma corrente de opinião ou um grupo de pressão.
Atualmente, assiste-se ao definhamento do movimento, mas durante os pou-
cos meses em que ganhou repercussão pública, ele serviu para acentuar e solidifi-
car as fronteiras sociais. Foi como se os participantes dissessem “queremos a vio-
lência longe de nós”, “tratem de conter a violência nos limites dos morros e fave-
las”, “façam o horror desaparecer da vista de nossas varandas” ou, no limite,
“matem os bastardos lá onde eles moram”.33 Esse é um exemplo da mentalidade
que assimila a idéia da segurança apesar dos outros e das amplas conseqüências
sociais dessa postura em uma metrópole de um país atravessado por enorme desi-
gualdade estrutural e por índices de violência alarmantes. O movimento “Basta!”
é uma das concretizações ideológicas e políticas da demanda por vigilância ou
cerco sobre “as classes perigosas”, uma formulação inorgânica de pessoas atemo-
rizadas, incertas quanto ao futuro, que por isso mesmo tornam-se menos dispos-
tas a correr os riscos exigidos da ação coletiva organicamente estruturada e se
lançam à cata do “inimigo próximo”.
O movimento “Basta!” pode ser tomado como um caso-limite e
paradigmático ou tipo ideal de uma mentalidade que, a partir dos setores mais
favorecidos da sociedade, se enraíza na opinião pública e nas instituições esta-
tais. O “inimigo próximo” contra quem ele se dirige é o “bandido”, que tem
um endereço – as favelas –, sem maiores cuidados em diferenciar seus morado-
res. Dessa maneira, em nossas cidades, a fúria contra o “inimigo próximo” atin-
ge a possibilidade de grandes contingentes humanos pobres e vulneráveis se
manterem vivos para, quem sabe, poderem participar de alguma ação coletiva,
até mesmo contra os criminosos que os rodeiam. São cercados por todos os
fogos: da polícia e dos bandos armados ligados ao narcotráfico. Esse tipo de
insegurança, aliada à permissão cultural da aniquilação “não-delituosa”, revela
uma relação de forças que não foi sequer arranhada pelas políticas de segurança
pública. Com isso, pode-se dizer que seus extensos documentos tornam-se, de
fato, apenas peças de retórica a reboque dessas mesmas relações que eles não
conseguem – ou não se dispõem a – revelar.

33
Essa última frase, que se refere a um caso relatado por Bauman (2000) como exemplo dos fenômenos perversos de
deslocamento, quando parcelas da população investem sua fúria contra “inimigos próximos”, aplica-se com propriedade
à situação em análise.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31

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UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Terra Indígena Raposa Serra do Sol
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2

TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL

Paulo Santilli
Antropólogo, professor da Universidade
Estadual Paulista (Unesp)
santilli@fclar.unesp.br

A homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, estabelecida por decreto


presidencial de 15 de abril de 2005, concluiu uma etapa decisiva do processo
administrativo para o reconhecimento oficial dos direitos territoriais dos povos
indígenas que habitam a região situada no extremo nordeste do estado de Roraima:
os Makuxi, os Wapixana, os Taurepang e os Ingarikó.
Fruto de luta política, acirrada ao longo das últimas três décadas, em torno da
qual se organizaram e mobilizaram o movimento indígena e os interesses da elite
fundiária local, o decreto guarda as marcas de tal confronto, bem como deixa em
aberto algumas perguntas relativas ao futuro. É o que pretende demonstrar a
análise que segue.

O último cerco
Diferentes da maior parte de outras terras na Amazônia, os campos e serras do
nordeste do atual estado de Roraima foram, em período colonial, considerados
propriedade da Coroa portuguesa. Na condição de “próprios nacionais”, atra-
vessaram o Império e chegaram à primeira República. Eram, no fim do século
XIX, três fazendas – São Bento, São Marcos e São José –, cuja definição de
propriedade estatal recobria os territórios indígenas. Data dessa época sua grilagem
por particulares.
A ocupação fundiária no Vale do Rio Branco remonta à chegada de migrantes
nordestinos que vieram estabelecer posses particulares para a criação de gado em
meio a aldeias indígenas a partir da década de 70 do século XIX. Para a instala-
ção de criatórios de gado em meio às aldeias, os posseiros, via de regra, buscaram
o consentimento e a colaboração da população indígena a partir de expedientes
clientelistas, como a oferta de bens manufaturados – em geral tecidos, sal, açúcar,
ferramentas, utensílios de pesca, aguardente –, além de carne e leite. A adoção de
crianças indígenas e o parentesco ritual também foram expedientes amplamente
utilizados pelos posseiros, que serviram para reforçar os laços clientelistas com os
habitantes das aldeias adjacentes.
A disputa pela terra, naquele período, esteve centrada em embates políticos
nos âmbitos administrativo e jurídico, regional e nacional. Por um lado, as pre-
tensões locais de posseiros ganharam respaldo do governo estadual do Amazonas
que, aventando uma interpretação espúria do artigo 64 da Constituição de 1891
– que delegava aos estados legislação supletiva sobre as terras devolutas da União
–, tomou como devolutas terras indígenas e expediu a concessão de centenas de
títulos de propriedade de terras a particulares durante as primeiras décadas do
século XX. Esses títulos incidiram em áreas de incontestável ocupação Makuxi e
Wapixana. Por outro lado, diante das reiteradas denúncias de invasão das fazen-
das nacionais por particulares, o governo federal instalou, em 1915, uma sede
regional do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) na Fazenda Nacional São Mar-
cos, com jurisdição sobre todo o Vale do Rio Branco.
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3

Os conflitos da agência oficial com os fazendeiros e as autoridades locais não


se resumiam a uma disputa em torno da propriedade estatal das terras. Tais con-
flitos consistiam em questão mais abrangente, que afetava direitos territoriais in-
dígenas, uma vez que, também nessa área, o governo estadual do Amazonas ten-
taria imiscuir-se, motivado por interesses da população regional. Avançando so-
bre um campo de atuação que a legislação federal atribuía ao SPI, o governo do
Amazonas tomou a iniciativa de promulgar, em 1917, a Lei 941, que, entre ou-
tras medidas, reservava uma área entre os rios Surumu e Cotingo para os índios
Makuxi e Jaricuna (ou Taurepan).
A referida lei, sob todos os ângulos, afigurava-se um paradoxo jurídico: tanto
pelo fato de o governo estadual extrapolar suas atribuições, pois delegava, no
artigo 6º, ao governo da União a tarefa de demarcar, no prazo de três anos, as
áreas que então reservava, como também, e de modo mais grave, a Lei de 1917
implicitamente liberava a área restante à ocupação de particulares ao reservar aos
Makuxi e aos Taurepan uma pequena faixa da real extensão de seus territórios.
Mais do que regular a ocupação indígena, portanto, a lei voltava-se para a legali-
zação das posses indevidamente estabelecidas até aquele momento e as que se
seguiriam. Ainda assim, e apesar dos esforços feitos por parte do SPI para que
fosse respeitada, a dita lei não chegou a surtir maiores efeitos concretos. As terras
públicas, chamadas “fazendas nacionais”, continuaram a ser invadidas por pos-
seiros adventícios. Delas, apenas parte do que fora a Fazenda São Marcos chegará,
em 1989, demarcada como território indígena.
A violência física e mesmo o desterro foram práticas largamente utilizadas
contra a população indígena, conforme testemunharam unanimemente os cronis-
tas da época. É o que se pode constatar nos termos registrados pelo general Rondon
em 1927, quando chefiava a Comissão de Inspeção de Fronteiras: “Que diferença
entre os ingleses da Guiana e os brasileiros da Fronteira. Aqueles procuram cha-
mar para o seu território todos os índios da região; estes escorraçam seus patrícios
das suas próprias terras, obrigando-os a expatriarem-se!”.1
Das primeiras décadas do século XX até a década de 1970, as tensões sociais
em Roraima só se agravaram, motivadas por surtos esporádicos de garimpagem e,
sobretudo, pela intensificação da ocupação fundiária, aliada à ausência de uma
política oficial para o ordenamento das terras indígenas. A década de 1970, em
particular, inaugura a entrada da agroempresa na região, que haveria de acirrar a
violência interétnica pelo progressivo cerceamento da mobilidade da população
indígena e de suas práticas de exploração econômica do território.

A pulverização dos territórios indígenas


Decorridos aproximadamente 60 anos desde as primeiras providências para a re-
gularização fundiária adotadas pelo SPI, a Fundação Nacional do Índio (Funai)
retomou os procedimentos para o reconhecimento dos direitos territoriais indíge-
nas na região e instituiu, em meados da década de 1970, sucessivos grupos de

1
Diário da Inspeção de Fronteiras Realizada pelo General Cândido Mariano da Silva Rondon, p. 69, 1927 - 1a Comissão
Demarcadora de Limites, Belém, PA.
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4

trabalho para proceder à identificação, à delimitação e à demarcação das terras


habitadas pelos Makuxi, Wapixana, Taurepan e Ingarikó nos campos e serras do
então território federal de Roraima.
Tais grupos de trabalho instituídos no contexto dos grandes projetos governa-
mentais de colonização e exploração econômica da Amazônia – como a discrimina-
ção de extensas glebas de terras devolutas para a titulação privada, a instalação de
agrovilas, a construção da rodovia Perimetral Norte, entre outros empreendidos
pelo regime militar – realizaram um procedimento sumário ao considerar apenas as
áreas momentaneamente exploradas pelos índios. O procedimento adotado para a
identificação das terras indígenas, na época, não considerou a mobilidade intrínse-
ca do padrão aldeão tradicional, atribuindo-a à desorganização provocada pelas
frentes de expansão colonizadora. Ao tomar como fato consumado a redução
territorial imposta aos índios pelo avanço da pecuária nos campos naturais, o pro-
cedimento para identificação desconsiderou os territórios de ocupação tradicional e
definiu, por exclusão, as terras que restavam em torno das aldeias. Promoveu-se
uma acomodação geral dos posseiros, respaldados pela elite política local, avançan-
do, por um lado, os limites pretendidos para as posses sobre as áreas circunscritas a
aldeias indígenas identificadas, a princípio, como terras indígenas, e, por outro lado,
credenciando posseiros como legítimos detentores de direito a indenizações, em
virtude da suposta desapropriação por parte do Estado.
Nesse recorte, feito visivelmente para acomodar os posseiros instalados na re-
gião de colonização mais antiga, situada ao sul e a oeste dos campos naturais, o
território de ocupação tradicional indígena foi pulverizado em pequenas áreas
correspondentes ao espaço circunstancialmente ocupado e explorado por cada
uma das aldeias. Sob o argumento de que fracionadas em “ilhas” as terras indíge-
nas poderiam ser logo regularizadas, obteve-se, por vezes, o consentimento explí-
cito dos habitantes das aldeias para o recorte do território Makuxi e Wapixana
em duas dezenas de pequenas áreas espalhadas às margens do alto curso do Rio
Branco e nos vales dos rios Mucajaí, Cauamé e Uraricoera. Essas áreas foram
delimitadas, demarcadas e/ou homologadas ainda na década de 1980. Tal
ordenamento agrário, confinando a ocupação indígena a partir de linhas secas e
arbitrariamente traçadas entre terras tituladas e posseiros, originou uma situação
de conflitos endêmicos, dirimidos em grande parte com a intervenção policial.

Das políticas indígena e indigenista: a criação de um território contínuo


Na área situada no extremo nordeste do Vale do Rio Branco, tal fórmula revelou-
se inviável, em virtude da maior concentração de aldeias e, sobretudo, pela oposi-
ção das lideranças indígenas locais que, desde a retomada dos procedimentos para
o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas pela Funai, em meados da
década de 1970, realizavam reuniões periódicas conhecidas como “Assembléias
de Tuxauas”, para discutir e denunciar as violências praticadas por fazendeiros e
garimpeiros e as conseqüências funestas do retalhamento territorial em curso na
região de colonização mais antiga. Nas Assembléias de Tuxauas, realizadas com o
apoio da Igreja Católica, as lideranças indígenas tiveram oportunidade de consta-
tar que a deterioração das relações clientelistas com os regionais não eram apenas
problemas pessoais: se, em um primeiro momento, haveria contrapartidas de reci-
procidade nas relações entre índios e posseiros – pelo menos é assim que os índios
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

representam tais relações inaugurais com os brancos –, com o decorrer do tempo


eclodiriam conflitos em virtude da interrupção ou diminuição dos préstimos ini-
cialmente ofertados pelos criadores de gado. Para tanto, confluíam, explosiva-
mente, a crescente depredação das roças indígenas pelo gado, a proibição da pesca
com timbó, a restrição do acesso aos lagos e outras fontes d’água perenes, cerca-
dos pelos pecuaristas, bem como o progressivo escasseamento da caça, sem falar
da frustração com a prometida educação das crianças indígenas que, na maior
parte dos casos, se revelava exploração do trabalho em regime servil. Trocando
experiências semelhantes durante encontros seguidos, as lideranças indígenas che-
garam a formular e a articular posições conjuntas diante das imposições da socie-
dade regional e das demandas da agência indigenista oficial.
Pode-se compreender assim que, no plano formal, a área de ocupação indígena
situada no extremo nordeste do atual estado de Roraima já estivesse em processo
de identificação desde 1977, juntamente com outras áreas no Vale do Rio Branco.
Porém, diante da oposição das lideranças indígenas locais às propostas de
retalhamento de seu território tradicional, os procedimentos administrativos es-
tancavam em impasses. A Portaria GM/111, de 14 de março de 1977, institui o
primeiro grupo de trabalho interministerial (GTI) para proceder à identificação
da área indígena Makuxi, mas não consta do processo Funai/BSB/3233/77 qual-
quer relatório conclusivo.
Simultaneamente à atuação desse primeiro grupo de trabalho, no mesmo ano
de 1977, os índios começam a mobilizar-se contra posseiros e garimpeiros, e to-
mam algumas iniciativas para romper os vínculos clientelistas e a prestação de
trabalho nas fazendas e garimpos. Articulam alternativas de acesso aos bens ma-
nufaturados sem a intermediação dos “marreteiros”, como a implantação do pro-
jeto de cantinas comunitárias, subsidiado pela diocese local, que viabilizava a
venda da farinha de mandioca produzida nas aldeias na cidade de Boa Vista.
Foi durante as Assembléias de Tuxauas realizadas anualmente, portanto no
processo de disputa pela terra, que se construiu, paulatinamente, a concepção de
um território contínuo, desencadeando uma nova etapa no processo de
territorialização dos povos indígenas na região.
O termo composto Raposa Serra do Sol surgiu com a junção dos nomes de duas
aldeias: Maikam Pîsi, Perna da Raposa ou Raposa (aldeia Makuxi situada na re-
gião do lavrado, à margem direita do rio Tacutu), e Wei-Tepui, Serra do Sol (aldeia
formada pelos Ingarikó ao norte, na região das serras, próxima ao alto curso do rio
Cotingo). Esse composto é o termo designativo Macuxi e Ingarikó para um mesmo
território de ocupação tradicional, concebido como uma extensão contínua, abran-
gendo regiões ecologicamente distintas: os campos ao sul e as serras ao norte.
Para que um território contínuo, abrangendo diversas aldeias, fosse reconheci-
do administrativamente, ainda seriam necessários vários grupos de trabalho para
produzir os estudos etno-históricos previstos pela legislação e, principalmente,
angariar apoios e respaldo de movimentos sociais e da opinião pública para supe-
rar as resistências de fazendeiros, de garimpeiros e de seus representantes no gover-
no local e no Congresso Nacional.
Com efeito, um novo grupo de trabalho foi instituído pela Portaria 509/E,
expedida pela presidência da Funai em 9 de janeiro de 1979, para identificar a área
indígena Raposa Serra do Sol. Os trabalhos previstos foram realizados apenas
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6

parcialmente, mas, mesmo assim, chegou-se a indicar, em caráter provisório e sem


a realização dos necessários estudos antropológicos e historiográficos, uma área
com extensão de 1.347.810 hectares.
A Portaria 1.645/E, de 29 de maio de 1984, posteriormente revalidada pelas
Portarias 1.661/E, de 6 de julho de 1984, e 1.777/E, de 4 de outubro de 1984,
igualmente expedidas pela presidência da Funai, instituiu mais um grupo de tra-
balho para realizar a identificação e o levantamento fundiário da área Indígena
Raposa Serra do Sol, cujos trabalhos tampouco foram conclusivos. Os estudos
então efetuados indicaram uma área com a extensão de 1.577.850 hectares,
desmembrada nas seguintes propostas de áreas contíguas: Xununuetamu, com
aproximadamente 53.510 hectares; Surumu, com aproximadamente 455.610
hectares; Raposa, com aproximadamente 347.040 hectares; e Maturuca-Serra do
Sol, com aproximadamente 721.690 hectares. Tais propostas foram unificadas e
englobaram aldeias que ficavam à sua margem. Assim, compôs-se uma única área
identificada, com aproximadamente 2 milhões hectares.
Um novo recorte foi ensaiado com a Portaria pp/3644, de 6 de novembro de
1987, que interditou, para fins de estudo e definição, a área indígena
Xununuetamu. Com a extensão de 48.750 hectares, foi desmembrada da Raposa
Serra do Sol com a alegação de premência para debelar os conflitos eclodidos
entre índios e regionais.
Sob os auspícios do Projeto Calha Norte, mais um GTI foi instituído em 25 de
março de 1988 (Portaria pp/0347/88) para realizar levantamento fundiário e cartorial
na área Indígena Raposa Serra do Sol. Como tantos outros, esse GTI também não
avançou o processo de reconhecimento da área em questão, mas cabe notar que, no
mesmo período, foram destinados recursos do Projeto Calha Norte para a demarca-
ção da Terra Indígena São Marcos – com uma extensão de 654.110 hectares, abran-
gendo dezenas de aldeias Makuxi e Taurepan –, contígua à Raposa Serra do Sol. Tal
área, até então incidente na Fazenda Nacional São Marcos, já era propriedade do
Estado, havia sediado as expedições de inspeção (1927) e demarcação (1933) de
fronteiras e, apesar de amplamente invadida por particulares, abrigava desde 1915
um posto da agência indigenista oficial. É significativo o fato de recursos do Calha
Norte terem sido também destinados para promover reuniões de lideranças indíge-
nas contrapondo-se abertamente à influência exercida pela Igreja Católica sobre as
Assembléias de Tuxauas. Valendo-se do arcabouço institucional da Funai, os estra-
tegistas do Projeto Calha Norte buscavam criar uma fonte alternativa de legitimação
dos pleitos indígenas, que, ao fortalecer a demanda pelo reconhecimento oficial da
terra indígena São Marcos, ao mesmo tempo pudesse se contrapor à reivindicação,
sustentada pelas Assembléias de Tuxauas, pelo reconhecimento do território contí-
nuo na Área Indígena Raposa Serra do Sol.
Por outro lado, ainda no âmbito do mesmo Projeto Calha Norte, procurou-se
forjar um conflito entre etnias que posteriormente viria a ser aventado como jus-
tificativa para a divisão de um território indígena contínuo. A Portaria
Interministerial 345 de 13 de junho de 1989 declarou a posse permanente dos
índios Ingarikó de uma área de 90 mil hectares, desmembrada da área indígena
Raposa Serra do Sol, contrariando frontalmente todos os estudos precedentes que
demonstraram os vínculos estreitos e essenciais que ligavam as aldeias dentro e
fora dos referidos limites.
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7

Tal desmembramento não se efetivou, mas é imperativo lembrar que a garimpa-


gem na área indígena Raposa Serra do Sol, esporádica até meados da década de 1980,
intensificou-se a partir de 1988, promovida pelo Projeto Calha Norte.
Com a abertura de pistas para pouso e decolagem de aviões, incrementou-se um
grande surto de garimpagem, inicialmente direcionado para a Área Yanomami, pró-
xima à fronteira com a Venezuela. Entretanto, a partir das operações realizadas pelo
governo federal de desintrusão da área Yanomami – então demarcada –, o fluxo dos
garimpeiros, sob incentivo do recém-instalado governo estadual de Roraima, foi
redirecionado para a Área Raposa Serra do Sol, junto à fronteira com a Guiana,
sintomaticamente mais vulnerável por não se encontrar regularizada como terra indí-
gena. A propagação súbita de garimpagem trouxe como conseqüências imediata-
mente visíveis o recrudescimento da violência contra a população indígena, o alastra-
mento de epidemias de malária e leishmaniose e a degradação do meio ambiente. No
período em que se agravou a escalada de violência denunciada pelos índios, envolve-
ram-se na questão apenas missões religiosas locais e entidades indigenistas não-gover-
namentais, que somaram sua atuação ao longo do tempo. O Ministério Público
Federal interveio posteriormente, com a instauração de uma ação judicial, em 1991,
contra a Funai, a União Federal e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama), considerando-os como principais responsá-
veis por violações contra os direitos indígenas e contra as normas de proteção ambiental.
Com a experiência de inúmeros embates com fazendeiros e garimpeiros, fortale-
ceu-se entre os índios a consciência da importância do reconhecimento de seus direi-
tos territoriais. A luta por um território contínuo foi conduzida em várias frentes
simultâneas. A realização de reuniões de lideranças indígenas com mais freqüência
possibilitou iniciativas de trabalho em mutirão para angariar recursos e pressionar a
saída de posseiros e, também, para mobilizar recursos por meio da diocese de Roraima
a fim de implementar o “projeto do gado”, que visava promover a ocupação das
terras em disputa com os regionais e, sobretudo, a construção de um amplo arco de
apoios e alianças envolvendo entidades civis e oficiais para repercutir denúncias das
violências cometidas contra a população indígena e a reivindicação pelo reconheci-
mento dos direitos territoriais. O crescimento das Assembléias de Tuxauas anuais,
abrangendo um número cada vez maior de lideranças indígenas ao longo da década
de 1980, levou à criação do Conselho Regional das Serras e, posteriormente, dos
conselhos regionais da Raposa, Surumu, Baixo Cotingo, Amajari, Serra da Lua, Taiano
e São Marcos, que constituíram a base do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
A construção de uma organização política verticalizada – o CIR, entidade colegiada,
composta pelas lideranças políticas de centenas de aldeias Makuxi, Wapixana, Taurepan
e Ingarikó – estabeleceu uma instância de interlocução com o estado e a sociedade
civil. Também firmou, como correlato necessário, a reivindicação por uma unidade
territorial abrangente, pluriétnica e emblematizada na área Raposa Serra do Sol.

Dos descaminhos do jogo político que permeia o processo de reconhecimento dos


direitos indígenas
As portarias 1.141/92, 1.285/92, 1.375/92 e 1.553/92, finalmente, instituíram
GTIs que realizaram novos estudos de identificação e levantamento fundiário
responsáveis por definir uma área identificada com a extensão de 1.678.800 hec-
tares. Essa proposta conclusiva foi aprovada pela Comissão Especial de Análise
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8

da Funai por meio do Parecer 036/DID/DAF, de 12 de abril de 1993, publicado


no Diário Oficial da União, em 21 de maio do mesmo ano.
Concluídas as etapas técnicas de identificação e delimitação da Terra Indígena
Raposa Serra do Sol, o processo saiu do âmbito administrativo da Funai e foi
encaminhado à resolução política do gabinete do ministro da Justiça, que preferiu
não arcar com o ônus de uma decisão política e optou por verbalizar opiniões
favoráveis e acenos de encaminhamento positivo a todos os envolvidos na pen-
dência, até mesmo os extremos opostos, isto é, os políticos roraimenses, os garim-
peiros, os posseiros, os índios, os indigenistas e os ambientalistas.
Em 1993, quando vencia o prazo constitucional para a demarcação das ter-
ras indígenas no país, o ministro Maurício Corrêa, embora enfático em anunci-
ar promessas contraditórias, preferiu encaminhar o processo para outras esferas,
entre as quais a do Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa), a título de colher
opiniões. O expediente utilizado para chamar os militares a participar do pro-
cesso decisório quanto à Raposa Serra do Sol foi o argumento genérico de sua
incidência em “faixa de fronteira”. Mesmo que se colhessem pareceres favorá-
veis à demarcação emitidos pela Advocacia Geral da União, pela assessoria jurí-
dica do Ministério da Justiça e pelo Ministério Público Federal, o processo ad-
ministrativo para o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas fora para-
lisado, a pretexto de inconvenientes alegados pelo Emfa e de recalcitrantes pres-
sões políticas da bancada federal e do governo do estado de Roraima. Embora
fosse, para dizer o mínimo, extemporânea a alegação de segurança nacional
cinco anos após a promulgação da atual Constituição, a utilização do recurso
protelatório veio evidenciar que, com a criação do estado de Roraima, onde se
encontra, proporcionalmente, a maior população indígena do país e onde o
conflito pela terra é agudo, o governo estadual, juntamente com uma bancada
inflada de dez deputados federais e três senadores, tornou-se fator interveniente,
de peso ponderável, no ordenamento fundiário.
A protelação deliberada do governo federal provocou o acirramento da
disputa pela terra, instigando o aumento da violência contra os índios e des-
dobrando os embates em diversos planos. Logo no primeiro mandato, a re-
cém-instalada Assembléia Legislativa do Estado de Roraima apressou-se em
regulamentar as normas para a criação de novas unidades administrativas e,
aproveitando a confluência ocasional de garimpeiros, instituiu, em 1992, os
municípios de Pacaraima e Uiramutã totalmente incidentes nas áreas indíge-
nas São Marcos e Raposa Serra do Sol, numa clara tentativa de inviabilizar
sua regularização.
Em resposta, o CIR recorreu aos órgãos oficiais encarregados do cumprimento
dos direitos indígenas, enviou protestos à Procuradoria da República, à Funai e à
Advocacia Geral da União. Diante da iminência de instalação dos dois municípi-
os, a Funai impetrou uma ação judicial de interdito proibitório contra o estado
de Roraima, pleiteando a sua sustação, bem como a abstenção, por parte do
governo estadual, de outros atos em áreas indígenas sob a jurisdição federal. Os
coordenadores do CIR formalizaram uma ação cautelar perante o Supremo Tri-
bunal Federal (STF) e, ao lado dessas, foi impetrada pela Procuradoria Geral da
República uma ação direta de inconstitucionalidade, obstando as eleições muni-
cipais em áreas indígenas.
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Dos procedimentos vigentes para o reconhecimento das terras indígenas


O impasse legal e político em torno da demarcação da área indígena Raposa Serra
do Sol tornou-se ainda mais exacerbado com a instituição do Decreto 1.775, em
janeiro de 1996. Invocando o artigo 55 da Constituição em vigor – que garante o
direito ao contraditório e à ampla defesa a todos os acusados em processos judici-
ais e administrativos –, o Decreto 1.775/96 abriu à contestação dos afetados to-
das as terras indígenas no país cujo processo de regularização fundiária não havia
sido ainda encerrado com o devido registro no Serviço de Patrimônio da União.
Baixado sem prévio debate com a sociedade civil e, portanto, à revelia da opinião
pública, o decreto levantou protestos e acirrada polêmica: especialistas de diversas
áreas, em particular juristas eminentes, advertiam o Executivo quanto ao fato de
que o Decreto 1.775 afrontava o princípio, firmado no artigo 231 da Constitui-
ção, do direito primeiro dos povos indígenas à terra que ocupam, sobre o qual
nenhum outro direito pode prevalecer. Nesse sentido, ressaltavam que o decreto
constituía apenas mais um fator de turbação ao sempre adiado dever constitucio-
nal de demarcação das terras indígenas.
Uma vez expirado o prazo estipulado pelo decreto para as contestações aos
processos de regularização fundiária das terras indígenas, e respondidas pelo Mi-
nistério da Justiça as milhares de contestações feitas relativas às mais diferentes
áreas no país, revelaram-se os alvos preferenciais do decreto: as terras indígenas de
grandes extensões contínuas – São Marcos e Raposa Serra do Sol. Demonstrava-
se, afinal, o que já se prometia no texto do decreto, ou seja, permitir ao Poder
Executivo driblar a letra da lei e das convenções internacionais contra o genocídio
das quais é assinante, burlar pareceres e procedimentos técnicos a favor dos arran-
jos políticos de ocasião e dos votos que tal decisão pode render entre representan-
tes de elites locais retrógradas.
De fato, o Decreto 1.775/96 sequer se aplicava ao caso da área Raposa Serra
do Sol, uma vez que, em 1995, o governo de Roraima já havia contestado formal-
mente a proposta de identificação de 1992, o que motivou seu reexame por parte
da Funai. Após reexame, a Funai manifestou-se conclusivamente pela correção da
proposta de 1992. No âmbito do Decreto 1.775/96, as contestações feitas à de-
marcação da área Raposa Serra do Sol subiram às dezenas, provenientes do setor
privado e, de modo mais empenhado, do governo do estado de Roraima, que não
mediu esforços ou gastos para mobilizar advogados, dentro e fora da região, bem
como encomendar três laudos antropológicos favoráveis à sua demanda.
O Ministério da Justiça, embora refutando, de direito, todas as contesta-
ções, abriu, de fato, o flanco para acolher o pleito do governo estadual e de
latifundiários com influência política na região. O acolhimento, por parte do
Executivo, dado a tais pleitos era exclusivamente político: em resposta a essas
contestações específicas, o Ministério da Justiça subscrevia os estudos já reali-
zados pela Funai e apontava sua correção, mas, paradoxalmente, reconhecia
os direitos adquiridos por pecuaristas e a colonização por garimpos e povoa-
dos sustentada pelo governo estadual. Em suma, o Despacho nº 80, baixado
pelo então ministro da Justiça Nelson Jobim, rejeitava os pedidos de contesta-
ção apresentados à Funai, mas estipulava uma redução de cerca de 300 mil
hectares da área, com a exclusão de vilarejos que serviram como antigas bases
de apoio a garimpagem, de estradas e de fazendas tituladas pelo Instituto
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Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que representava a di-


visão do território indígena em diversas partes isoladas.
Porém, como definiu o próprio ministro da Justiça, no contexto do Decreto
1.775 e do Despacho nº 80, a área indígena Raposa Serra do Sol foi trazida à
condição de “caso paradigmático” para a política indigenista em todo o país.
Pode-se acrescentar que se tornou paradigmático também para a política indíge-
na: o movimento indígena expandiu-se consideravelmente ao longo das décadas
de 1980 e de 1990, as Assembléias de Tuxauas tornaram-se fóruns de debates
ampliados com a participação de diversas entidades como o Ministério Público
Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de
Imprensa (ABI), a Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), o Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), a União Nacional dos Índios (UNI), a Comissão
Pró-Yanomami (CCPY), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Co-
missão Pró-Índio de São Paulo (CPI), o Instituto Socioambiental (ISA), o
International Work Group for Indigenous Affairs (Iwigia), a Alianza Amazônica,
a Catholic Agency for Overseas Development (Cafod), a Coordenadoria Ecumênica
de Serviço (Cese), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Bra-
sileira (Coiab), o Greenpeace, o Movimondo, a Agência Norueguesa para Coope-
ração Internacional (Norad), a Operação Amazônica Nativa (Opam), a Oxfam
América, a Pro Indios di Roraima, a Pro Regenwald, a Rainforest Foundation, o
Survival International, The Nature Conservancy (TNC), além de representantes
de comissões parlamentares, entre outros.
No plano político mais amplo da sociedade nacional houve, também, no de-
correr das duas últimas décadas, a emergência da questão étnica, com a projeção
de movimentos sociais e de lideranças indígenas que passaram a atuar com maior
desenvoltura, conquistando espaços nos meios de comunicação e interferindo di-
retamente no cenário político nacional. A constituição promulgada em 1988 foi
inédita ao reconhecer o direito à diferença aos índios, rompendo com a tradição
assimilacionista instituída pela legislação anterior e criando as condições legais
para a superação da tutela do Estado, estabelecida pelo Código Civil brasileiro.
Ao assegurar aos índios, às suas comunidades e organizações a iniciativa judicial
na defesa de seus direitos e interesses, a nova constituição extinguiu o monopólio
do Estado na representação dos índios, exercido nas últimas décadas pela Funai.
Abriu-se, assim, espaço para que os próprios índios se credenciassem como prota-
gonistas legítimos de seus pleitos e de suas ações perante o Estado.
Além disso, em decorrência das disposições contidas na constituição vigente,
esferas jurídicas do Estado ganharam autonomia com a criação de novas atribui-
ções para o Ministério Público Federal/Procuradoria Geral da República, como a
de intervir e defender os direitos difusos na sociedade, nos quais se incluem os
direitos políticos e territoriais dos povos indígenas. O Ministério Público veio,
desse modo, somar forças com a preexistente Advocacia Geral da União, a quem
cabe defender as terras indígenas, que constituem bens da União.
Articulando alianças e apoios em um renovado arcabouço político e institucional,
o CIR logrou reverter a retalhação do território indígena prevista pelo ministro da
Justiça no Despacho nº 80. Dada a própria dificuldade para a sua execução, ao
traçar arbitrariamente linhas secas por entre aldeias, a medida baixada pelo minis-
tro não pôde ser implementada diante da resistência da população e das lideranças
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indígenas. O impasse criado com essa disposição inexeqüível, que, mais uma vez,
tentando conciliar interesses antagônicos, intensificou o acirramento da disputa
pela terra e as pressões sobre o governo federal, só foi solucionado em 1998, com
sua revogação e substituição pela Portaria 820, assinada pelo então ministro Renan
Calheiros, que declarou a terra indígena Raposa Serra do Sol de posse permanente
dos povos Makuxi, Wapixana, Taurepan, Ingarikó e Patamona.
Contrariando o argumento utilizado pelo ministro da Justiça por ocasião da
assinatura do Decreto 1.775/96 – no qual justificava a criação de uma instância
para a contestação administrativa no processo de reconhecimento dos direitos
territoriais indígenas com o objetivo de evitar posteriores contestações judiciais –
, o governo do estado de Roraima, logo no ano seguinte à demarcação da terra
indígena Raposa Serra do Sol, impetrou um mandado de segurança no Superior
Tribunal de Justiça (STJ), com pedido de anulação da Portaria 820/98. O pedido
de mandado acabou negado pelo STJ em 2002, mas durante os anos de sua
tramitação serviu de amparo formal ao governo do estado para afrontar os proce-
dimentos da regularização fundiária em curso e promover uma nova ocupação
das terras indígenas, subsidiando a instalação de arrozeiros nas planícies às mar-
gens do rio Tacutu.
Ainda outra medida liminar, expedida em março de 2004 pelo juiz da primeira
instância da Justiça Federal em Roraima, suspendeu parcialmente a Portaria 820/
98. Em setembro do mesmo ano, o STF manteve a interdição à continuidade do
processo administrativo. Até que, no mês de dezembro, o próprio STF suspendeu
as medidas contrárias à homologação da demarcação. Nesse meio tempo, três
novas aldeias formadas pelos índios foram incendiadas pelos arrozeiros, habitan-
tes da aldeia Maturuca foram assassinados por posseiros, inúmeras outras amea-
ças e violências foram cometidas contra os habitantes da Raposa Serra do Sol.
Cabe ressaltar que tamanha protelação ainda custou ao país denúncias de vio-
lação dos direitos humanos na Comissão de Direitos Humanos da Organização
dos Estados Americanos, que culminaram com uma medida cautelar condenando
o governo brasileiro a garantir a segurança na área, especialmente na porção ao
sul, onde as aldeias próximas aos arrozais estavam sendo incendiadas.

Do desempenho atual do governo


Enfim, no dia 15 de abril de 2005 o presidente da República assinou o decreto
de homologação da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em
uma extensão de 1.743.000 de hectares, habitada por 15 mil índios, dispostos
em 152 aldeias. Encerrou a etapa decisiva de uma luta que já durava pelo
menos 30 anos. Os índios comemoram a homologação, mas, da forma como
foi feita, apresenta novos problemas.
A portaria de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol já havia sido
assinada pelo ministro da Justiça em 1998, mas a etapa seguinte do processo
administrativo, a homologação da demarcação, era protelada desde então. O atual
presidente da República, ainda durante a campanha eleitoral, esteve na Raposa
Serra do Sol e comprometeu-se com a homologação da área.
A demora para a homologação, em virtude do recrudescimento dos conflitos e da
mobilização da população indígena, pôs o caso da Raposa Serra do Sol em evidência
na mídia, convertido, por um lado, na principal reivindicação do movimento
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indigenista e das lideranças indígenas no país e, por outro, em bandeira para


aglutinação de interesses dos setores antiindígenas. O impasse político causado
pela protelação da homologação fomentou o alastramento do conflito em torno
da ocupação da área por diversas esferas administrativas, envolvendo órgãos
fundiários, ambientais, o Ministério Público, a formação de comissões especiais
no parlamento e mesmo o poder judiciário, em várias instâncias. O episódio da
filiação em bloco do governador, de deputados, de prefeitos e vereadores
roraimenses, então acossados pelo escândalo dos gafanhotos, ao partido do go-
verno federal e de seus aliados logo após as eleições presidenciais, demonstrou,
mais uma vez, que a protelação do processo administrativo para o reconhecimen-
to dos direitos territoriais indígenas estava condicionada à negociação de apoio
político aos projetos do governo federal.
O caso da Raposa Serra do Sol rendeu dezenas de batalhas judiciais, com ações
patrocinadas por políticos no âmbito municipal, estadual e federal, que acabaram
convergindo para o STF. Como tais ações tinham por objeto a portaria de demarca-
ção da área, o atual ministro da Justiça decidiu, para retomar a iniciativa adminis-
trativa que cabia ao Poder Executivo e viabilizar a homologação da demarcação,
revogar tal portaria e substituí-la por outra que, contendo diversas ressalvas, estabe-
lecia praticamente os mesmos limites estipulados anteriormente. Trata-se da Porta-
ria 534, assinada pelo ministro Márcio Thomaz Bastos no dia 13 de abril de 2005,
revogando a Portaria 820/98, assinada pelo então ministro Renan Calheiros. A
revogação de uma portaria por outra permitiu ao STF extinguir os processos que
incidiam sobre a demarcação da área indígena por perda de objeto.
A viabilização do ato de homologação da demarcação da Raposa Serra do
Sol demandou entendimentos entre magistrados do STF, assessores do Ministério
da Justiça e uma atuação inaudita de intermediação por parte da Procuradoria
Geral da República. O Ministério Público Federal apresentou ao STF a reclama-
ção que apontou conflito de competências entre o estado de Roraima e a União,
no caso das ações em tramitação na 1ª Vara da Seção Judiciária de Roraima e de
recursos interligados no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nos quais foram
proferidas as liminares que suspendiam a eficácia da Portaria 820/98. A Suprema
Corte acatou a reclamação em 14 de abril e, na seqüência, extinguiu todos os
processos por perda de objeto, uma vez que a referida portaria havia sido substi-
tuída pela Portaria 534/05, assinada no dia anterior e publicada no Diário Ofici-
al no dia 15. O entendimento – a substituição de uma portaria por outra, permi-
tindo a extinção das ações então em curso – foi avalizado pelo Ministério Público
Federal e concatenado com a assinatura do decreto presidencial de homologação
da demarcação no dia 15 de abril.
A nova portaria de demarcação, embora conservando os limites anterior-
mente estipulados, exclui uma área (a sede do município de Uiramutã, em que
mais de 90% da população é indígena), que é insuficiente para quaisquer ativi-
dades produtivas em um município, e mantém um foco de intrusão no territó-
rio indígena, utilizada como base para atividades de garimpo, comércio de be-
bidas alcoólicas e exploração de recursos naturais. O Uiramutã é, antes de tudo,
uma aldeia Makuxi. Se tal exclusão, na avaliação do Ministério da Justiça, tor-
nou politicamente viável a homologação de um território indígena contínuo
por representar uma concessão aos políticos roraimenses, isso não deixa de ser
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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problemático: converte-se uma aldeia em um bolsão de funcionários públicos


sem perspectiva de atuação. As primeiras notícias do local indicam apenas um
incremento do comércio de bebidas.
Em suma, as modificações introduzidas pela Portaria 534 tiveram por objeti-
vo contemplar os interesses dos políticos contrários à homologação da terra indí-
gena e evitar eventuais demandas indenizatórias por parte dos índios, excluindo
também linhas de transmissão de energia elétrica e o leito das estradas estaduais e
federais localizadas na área.
O governo federal divulgou diversas medidas complementares ao ato de ho-
mologação, entre elas o repasse de uma verba de R$ 2,5 milhões, por meio de um
convênio firmado pela Funai e pela Secretaria de Estado do Índio, à Sociedade
dos Povos Indígenas Unidos de Roraima (Sodiur), uma entidade criada com o
apoio do governo estadual. O dinheiro deverá ser aplicado em projetos de criação
de peixes, viveiros de mudas, canalização de água e atividades agrícolas, e, note-
se, exclusivamente nas aldeias cujas lideranças políticas estão afiliadas à organiza-
ção que se constituiu recentemente em oposição à homologação da Terra Indíge-
na Raposa Serra do Sol. Tal medida vem consagrar a prática que se tornou notória
nos últimos anos, de utilização de recursos públicos – como o acesso aos progra-
mas de vale-refeição, distribuição de cestas básicas, concessão de empregos e apo-
sentadorias – em favor de arrebanhar adeptos para a formação de entidades de
existência efêmera e composição volúvel, que gravitam na órbita de interesses
privados de exploração econômica das terras indígenas.
A Portaria 534 também prevê que os ocupantes não-indígenas, incluindo os
produtores rurais que invadiram a área, deverão ser retirados num prazo de até
um ano e que as benfeitorias construídas de boa-fé serão todas indenizadas. Incidem
na região, de acordo com o Ministério da Justiça, 63 ocupações em área rural – 47
pequenos pecuaristas e 16 rizicultores. O governo federal divulgou, entre as medi-
das complementares ao ato de homologação, a disponibilização de uma verba de
R$ 5 milhões para a desintrusão da área. Os pequenos pecuaristas já estão estabe-
lecendo entendimentos com a Funai e com as lideranças indígenas para a entrega
ou retirada do rebanho, embora alguns contestem os valores estipulados para a
indenização e pretendam recorrer à justiça.
Resta o problema dos rizicultores. Apesar de poucos, têm grande poder de
pressão e influência política. Também já são apontados como os beneficiários das
várias medidas “compensatórias” anunciadas pelo governo federal, como a
destinação de 150 mil hectares de terras da União para implantação de pólos
agropecuários e acesso a créditos de bancos estatais. Como ingressaram em área
indígena após a sua demarcação (feita em 1998) e implantaram empreendimen-
tos em grande parte viabilizados com recursos públicos, não poderiam ser consi-
derados posseiros ou responsáveis por benfeitorias de boa-fé e, portanto,
credenciados para receber indenizações ou compensações.
Um outro ponto ainda um tanto obscuro na nova portaria diz respeito ao
Parque Nacional do Monte Roraima. O parque, situado a extremo norte da terra
indígena, poderá ser submetido, por decreto presidencial, a regime jurídico de
dupla afetação: como bem público da União destinado à preservação do meio
ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos povos indígenas. Dessa
forma, o parque deverá ter uma gestão compartilhada entre o Ibama, a Funai e os
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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índios que habitam a região. Como a terra indígena abriga etnias distintas e o
histórico das relações entre os órgãos ambientais e indigenista na área é
marcadamente conflituoso, a portaria não resolve a questão, mas remete uma
possível solução para o futuro.
O processo de regularização fundiária da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
ainda está por ser concluído com o registro da área no Cartório de Registro de
Imóveis e no Serviço do Patrimônio da União. Contraditoriamente, a Sodiur –
entidade beneficiada com as medidas compensatórias –, à frente de duas outras
entidades indígenas, também criadas recentemente, aliadas a 12 rizicultores e a
uma empresa agropecuária, impetrou mandado de segurança (MS 25483) no STF
contra o decreto presidencial de homologação da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol. Às vésperas das comemorações pela homologação da terra indígena, dezenas
de homens encapuzados atearam fogo na antiga missão do Surumu, onde se rea-
lizavam as Assembléias de Tuxauas. Enquanto a grande maioria dos índios habi-
tantes da Raposa Serra do Sol se reúne para festejar a homologação, a ponte sobre
o rio Urucuri, que dá acesso às aldeias onde acontecem as comemorações, foi
incendiada. Mesmo com o decreto presidencial de homologação, o simples cum-
primento da legislação federal ainda é contestado ostensivamente pelos interessa-
dos em se apropriar dos recursos naturais existentes nas terras indígenas em Roraima.
Em termos gerais, as perspectivas delineadas para a gestão do território em
questão apontam, por um lado, um colossal passivo ambiental e social e, por
outro, uma parcela significativa de recursos públicos canalizados para os que se
opuseram à sua homologação. Os conflitos que permeiam as relações entre a soci-
edade regional e os povos indígenas habitantes na Raposa Serra do Sol opõem
concepções distintas de desenvolvimento, voltadas à expansão da pecuária exten-
siva, à monocultura e à exploração predatória dos recursos minerais, onde os
índios se inserem como força de trabalho, em contraste com as atividades de cul-
tivo, criação de animais e utilização da flora e fauna nativas a partir das formas
próprias de organização social, concebidas e implementadas coletivamente.
Essas questões, consideradas em conjunto, revelam uma grande margem de
arbítrio político no desfecho de um processo administrativo e podem constituir
precedentes importantes para a política indigenista e ambiental no país.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Um mar de eucaliptos
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UM MAR DE EUCALIPTOS

Carlos Tautz
Jornalista, pesquisador do Ibase

Índio Tupiniquim, Antonino de Souza, 75 anos, vive na aldeia Pau-Brasil, mu-


nicípio de Aracruz, litoral norte do Espírito Santo. Por ali, região originalmente
coberta por Mata Atlântica, não há mais exemplar da árvore que deu o nome
ao país. Até onde sua vista alcança, o ex-cacique só vê um mar de eucalipto, a
planta que é o principal insumo da indústria celulósica, uma das maiores no
território capixaba.
A Pau-Brasil é uma ilha com algumas centenas de habitantes. Está perto da
empresa do mesmo nome, e bem no meio de um arco de 20 municípios (Aracruz,
Fundão, Linhares, Serra, Conceição da Barra, Jaguaré, Pedro Canário, Pinheiros,
Rio Bananal, São Mateus, Sooretama, Vila Valério, Alcobaça, Caravelas, Ibirapuã,
Mucuri, Nova Viçosa, Teixeira de Freitas, Prado e Veredas) que abriga entre 200
mil e 260 mil hectares de monocultura das espécies pínus e eucaliptos – um verda-
deiro oceano uniformemente verde, exatamente como um uniforme militar.
Pínus e eucalipto são as espécies de árvores cujas matrizes são objeto de estrito
controle de engenharia genética, cultivadas pela megaempresa Aracruz Celulose, alvo
de uma série de denúncias de desrespeito a uma ampla gama de direitos sociais e
individuais e até de uma comissão parlamentar de inquérito na Assembléia Legislativa
capixaba. A Aracruz controla 30% do mercado mundial de celulose branqueada, o
que a torna líder, com produção de 2,4 milhões de toneladas por ano. Além disso, é
hegemônica no negócio de produção de árvores no Espírito Santo.
Antonino e cerca de 1.500 indígenas Tupiniquim (que estão no Espírito Santo
desde sempre) e Guarani (que chegaram àquelas paragens na década de 1960,
vindos do sul do Brasil) estão no centro de um dos principais conflitos
socioambientais do país.
Embora muito estigmatizados pela mídia regional, fortemente concentrada e
amplamente influenciada pelos poucos anunciantes de peso, entre eles, a Aracruz
Celulose, os indígenas e demais opositores à monocultura do eucalipto têm conse-
guido poucas, mas importantes vitórias. Graças, principalmente, à capacidade de
reprodução da informação e da mobilização de apoio por parte de entidades da
sociedade civil organizada, as manifestações contrárias à monocultura de eucalipto
ganham alguma repercussão na imprensa e no Congresso nacionais.
Os indígenas são uma espécie de Davi em luta contra o Golias Aracruz, corporação
gigante que tem papel-chave no mercado internacional da celulose branqueada,
produto elementar para a fabricação de papéis para imprimir e escrever, papéis sani-
tários e papéis especiais que podem vir a ganhar altíssimo valor agregado em vários
tipos de indústrias, até mesmo a de impressão de jornais e revistas.

Outros protagonistas da luta


Em verdade, não são os indígenas os únicos a protagonizarem essa luta contra a
empresa, herdeira de um modelo que começou a ser implantado na década de
1950 por determinação e estímulo do estado brasileiro. Na época, os governos
induziram empresas estatais e particulares a realizarem projetos econômicos que
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desconheciam direitos e valores dos habitantes tradicionais das áreas nas quais os
chamados pólos de desenvolvimento eram implantados. Pequenos agricultores e
agricultores sem terra, remanescentes de quilombos e outros tipos de proprietários
rurais de base familiar, que exploram a terra para subsistência exatamente como
seus ancestrais, também são protagonistas, hoje, na batalha pela propriedade e
pelo uso do solo, que tem, no Espírito Santo, uma espécie de paradigma.
Paradoxalmente, se o Espírito Santo é o estado brasileiro (e, talvez, a região
do planeta) onde a base produtora da indústria celulósica está mais direta e
intimamente conectada ao sistema de mercados produtores e consumidores in-
ternacionais, também é unidade da federação nacional em que os setores nega-
tivamente impactados mais se organizam para disputar a propriedade da terra e
reimplantar modos de uso que reivindicam como tradicionais e que os
ambientalistas vêem como o principal fator de manutenção das diversidades
agrícola, social, cultural e biológica da região.
Com sua resistência, esses setores negativamente impactados também expres-
sam valores de vida e de relação com a terra – meio de subsistência física e
cultural – e uma visão radicalmente distinta do modelo de extração em massa
de recursos hídricos e de nutrientes do solo para a monocultura do eucalipto.
Esse sistema é totalmente voltado para exportação e exige intensidade e
extensividade da produção ao menor custo, em flagrante contradição com a
baixa exigência de recursos dos modos de uso tradicionais, dedicados quase
sempre à subsistência familiar ou, no máximo, ao atendimento a mercados con-
sumidores locais e diminutos.
O complexo industrial da celulose envolve a monocultura do eucalipto, passa
por pelo menos três grandes fábricas de produção instaladas em regiões próximas
e termina no porto exclusivo da Aracruz, o Portocel, igualmente localizado no
território do Espírito Santo. Por ele é escoada toda a produção da empresa no
sudeste e nordeste do país, inclusive a da Veracel, complexo industrial localizado
no extremo sul da Bahia, a cerca de 200 quilômetros do epicentro da monocultura
no solo capixaba – 98% da produção da Veracel destina-se ao mercado externo.
A Aracruz tem 50% do capital desse complexo.
Vários são os fatores que alimentam a disputa entre os operadores globalizados
das monoculturas para produção de celulose e os habitantes tradicionais das áreas
usadas para a plantação de árvores. Porém, uma razão importante e pouquíssimo
explorada, que está na raiz do problema, parece ser a principal explicação.

O global desconectado do local


Trata-se da vocação da indústria para atender às demandas variáveis do mercado
externo, independentemente das particularidades sociais das comunidades locais.
Essa vocação se transforma em único objetivo a partir de condições extremamen-
te favoráveis, como a que se verificou nos últimos dez anos, quando o mercado
mundial de celulose cresceu à taxa média anual de 5,5%.
Orientada para aproveitar ao máximo períodos de alta no mercado, enquanto
se prepara para agüentar outros de baixa, a empresa vê no exterior, ora compra-
dor, ora vendedor, a razão de sua existência. São preços mais altos ou mais baixos,
metas de produção e adaptação a processos mais produtivos que norteiam toda a
sua atuação, para a qual o mercado nacional é praticamente dispensável.
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O contexto local e nacional e todas as suas regulações – leis de proteção trabalhis-


ta, ambiental ou de propriedade, tradições ancestrais no uso do solo e atendimento às
necessidades, até mesmo alimentares, dos habitantes da região – representam, aos
olhos dos operadores do processo da monocultura, apenas obstáculos a serem
superados na busca de seus objetivos empresariais e exclusivos.
O espaço físico, real e palpável, só tem importância no início do processo,
quando é necessário extrair do solo a água e os nutrientes para o crescimento da
planta. A partir daí, conta outro tipo de espaço, o econômico, que funciona sob
leis próprias, a despeito de agentes, mesmo do estado, que poderiam exercer algu-
ma restrição a esse vôo mundo afora. O estado ou é cooptado para seguidamente
decidir em favor dos operadores ou se torna parte interessada no processo, por
exemplo, ao fornecer crédito de origem pública para a contínua expansão das
operações – como exige a escala alcançada pela empresa e a sua disputa pela
liderança do mercado internacional de celulose.
A conexão com o internacional, em detrimento do nacional, tem inflexão decisiva
em meados da década de 1970. A conjuntura global aponta para a carência de celu-
lose – logo após as crises do petróleo no início da mesma década – e põe os países
detentores de recursos naturais (terra/nutrientes, água e insolação), como o Brasil, em
situação de vantagem no nicho da produção de insumos para a indústria de papel.
No limite máximo da cooptação (ou da confluência de interesses), o estado
torna-se sócio dos operadores. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES), por exemplo, ao mesmo tempo que retém 12,5% do capital da
Aracruz, financia a expansão da empresa. Isso cria uma situação em que o banco
opera em duas pontas: financiando uma empresa na qual tem participação impor-
tante e angariando ganhos econômicos da atuação desse receptor de desembolsos.

O BNDES e o Programa Nacional de Florestas


Foi o que aconteceu em vários casos ao longo da história e, mais recentemente, no
fornecimento de crédito para expansão das atividades do conglomerado, confor-
me o texto a seguir, de divulgação para a imprensa, constante no site do banco na
Internet (www.bndes.gov.br) e relativo ao ano 2001 (o financiamento do BNDES
à Aracruz se estendeu, pelo menos, até 2003, quando o banco anunciou novos
desembolsos à companhia):
A diretoria do BNDES assinou contrato de financiamento no valor de
R$ 666,3 milhões com a Aracruz Celulose S.A., que aplicará os
recursos em um projeto de expansão da capacidade de produção de
celulose branqueada de eucalipto, de 1,3 milhão de toneladas/ano
para 2 milhões de toneladas/ano, em sua unidade industrial localizada
em Aracruz, Espírito Santo. Os recursos serão também aplicados no
plantio – até 2002 – de cerca de 129 mil hectares de florestas de
eucalipto em diversas áreas situadas no Espírito Santo e na Bahia. O
investimento total no empreendimento é de R$ 1,66 bilhão. O projeto
vai criar 200 empregos diretos na área industrial e 2.100 na florestal.

Os investimentos na área industrial – que aumentarão a


competitividade da empresa – consistem na instalação da terceira
linha de produção de celulose, com capacidade de 700 mil toneladas/
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ano, denominada “fiberline C”. Essa unidade será construída ao


lado da fábrica atual (linhas “A” e “B”). A nova linha deverá
começar a operar em agosto de 2002. A expansão da produção
representará expressivo incremento nas exportações brasileiras, com
um acréscimo superior a US$ 300 milhões por ano na geração de
divisas do país.

O programa florestal abrange a implantação, fomento e manuten-


ção de novas florestas e reforma, replantio e manutenção das atuais
florestas da Aracruz, totalizando 144.470 hectares. O projeto prevê
também gastos em programas sociais da empresa. Um deles, já
apoiado pelo BNDES, é o “Aracruz na Escola”, que objetiva a
melhoria contínua da infra-estrutura das escolas públicas localiza-
das nas áreas de influência da companhia.

Outra dimensão da intervenção do estado nesse setor dá-se com o Programa


Nacional de Florestas (PNF), em cuja viabilização tiveram papel preponderante
os Ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura.
O Programa foi criado pelo Decreto 3.420, de 20 de abril de 2000, e remo-
delado no início de 2004, no segundo ano do governo Lula. Tem como finali-
dades gerais propor instrumentos e normas ambientais; promover, coordenar e
integrar ações que assegurem o uso sustentável dos recursos florestais; a expan-
são da base florestal plantada; a recuperação de áreas alteradas; o apoio às po-
pulações tradicionais e indígenas; a criação de novas unidades de conservação; a
educação; ciência e tecnologia florestal; os serviços ambientais das florestas; a
assistência técnica e extensão florestal; o mercado e o comércio de produtos
florestais; a difusão, capacitação e implantação de sistemas agroflorestais; o
manejo florestal de uso múltiplo e o monitoramento de desmatamentos, quei-
madas e incêndios florestais predatórios.
Para isso, o PNF quer, até 2007, expandir a base florestal plantada associada à
recuperação de áreas degradadas com o plantio de 800 mil hectares em pequenas
e médias propriedades; o plantio de 1,2 milhão de hectares por meio de progra-
mas empresariais sustentáveis e a recuperação de 200 mil hectares degradados.
A preocupação e a crítica dos movimentos de oposição ao crescimento da
monocultura do eucalipto residem justamente naquilo que o governo chama de
“programas empresariais sustentáveis”. Os socioambientalistas fazem dois tipos
de leitura do que seja esse plantio de novos 1,2 milhão de hectares. Primeiro, a
reprodução pura e simples da opção que combatem, ou seja, mais pínus e, princi-
palmente, eucalipto, ainda sob o estímulo do estado. Depois, a insistência do
estado em optar preferencialmente pelo negócio agrícola, sempre receptor de fati-
as maiores de financiamento oficial do que aqueles setores vinculados à agricultu-
ra voltada ao atendimento dos mercados locais e regionais.
Os socioambientalistas, entretanto, começam a refinar a crítica e conseguem
enxergar no PNF do governo Lula uma modernização do sistema de monocultura,
que já se aproxima do cinqüentenário: a sua utilização, também, como sumidouro
de carbono, ou grandes absorvedores de um dos principais elementos químicos que,
uma vez despejado na atmosfera, contribui decisivamente para elevar a temperatura
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do globo e provocar mudanças no clima. A quantificação da quantidade de car-


bono seqüestrada da atmosfera, após ser certificada por empresas e governos (go-
verno, no caso do Brasil), é transformada em título negociável em mercados fi-
nanceiros internacionais.
A propósito, é válido recordar que o Brasil já lidera o ranking internacional de
projetos aceitos no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL),
instrumento financeiro constante do Protocolo de Quioto, que quer transformar
o seqüestro de carbono em negócio, para desestimular as emissões. Outra lem-
brança: os diplomatas e técnicos brasileiros foram os que, durante a discussão do
protocolo, mais contribuíram na elaboração do MDL.
Assim, a monocultura do eucalipto prepararia um salto de qualidade renova-
dor. Aprofundaria a aliança estratégica com o estado brasileiro ao atrair um novo
programa oficial de expansão da monocultura e, também, em ter participação
acionária direta nas empresas celulósicas, por meio do BNDES.
Outra crítica a ser feita é sobre a nova dimensão do negócio celulósico e o
aumento da concentração de renda. A agregação de valor ao negócio celulósico
proporcionada pela incorporação da atividade de captação de carbono, sem que
um tostão sequer a mais fosse gasto na ampliação da infra-estrutura, catapultaria
a produtividade do setor.
Há, porém, dois problemas à vista de imediato. Em primeiro lugar, nada indi-
ca que esse ganho extra de valor, de produtividade e de recursos financeiros signi-
fique a repartição desses ganhos com as populações do entorno da monocultura.
Depois, já existe uma corrente do movimento ambientalista internacional que
questiona a simples quantificação do carbono seqüestrado, porque esse processo
não leva em conta a necessidade enorme de água e de nutrientes do solo de que
necessita uma árvore de eucalipto até que seja atingido o ponto de abate e sua
transformação em celulose.
Nesse contexto, encontram-se, de um lado, interesses do estado imbricados
com aqueles do capital privado e, de outro, milhares de brasileiros historicamente
desconsiderados por esse estado. Assim, é praticamente inviável qualquer tentati-
va de estabelecer laços de solidariedade ou, pelo menos, de cumplicidade entre os
operadores e as comunidades envolvidas no processo – sejam eles habitantes tra-
dicionais, reivindicadores de terra usada na monocultura para realização de refor-
ma agrária, funcionários das empresas envolvidas ou a comunidade do entorno
dos empreendimentos, como já foi prática corrente em outras iniciativas históri-
cas do capitalismo brasileiro.
Os Tupiniquim e os Guarani, apesar de serem apenas um dos vários setores
negativamente impactados pela monocultura de árvores, constituem, no período
de elaboração deste estudo, um eixo próprio de resistência e de proposição de um
modelo de desenvolvimento social alternativo à monocultura de árvores.
Sua importância específica reside no fato de estarem, como movimento, em
evidente ascensão política, assumindo a iniciativa na disputa com a Aracruz – e
sendo, em certa medida, modelo de iniciativa política para, por exemplo, os re-
manescentes de quilombo, que igualmente se debatem com a indústria e já avisa-
ram que se inspirarão nos indígenas para retomarem terras reivindicadas. Em maio
de 2005, cerca de 500 indígenas – decididamente apoiados pela Rede Alerta Con-
tra o Deserto Verde, que mais à frente será abordada – lideraram a retomada de
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terras (também chamada por movimentos de apoio de autodemarcação) e volta-


ram a uma área de 11 mil hectares que disputam com a Aracruz. Foi a terceira
ação deste tipo em quase 40 anos, desde que a empresa começou a plantar eucalipto
em solo capixaba. A primeira ação aconteceu em 1974, em plena ditadura civil-
militar; a segunda, em 1998, quando a Policial Federal deslocou efetivos de vários
estados para cercar a área objeto daquela retomada.
No caso mais recente, os indígenas enfrentam tentativa de repressão. Porém,
agora não mais por parte do estado brasileiro, como foi aquela da Polícia Federal
há sete anos, mas originada na Aracruz, que contratou a empresa de segurança
privada Visel, acusada pelos Tupiniquim e os Guarani – e por eles denunciada ao
Congresso brasileiro e ao Ministério da Justiça, por meio da Fundação Nacional
do Índio (Funai) – de exercerem pressão contra seus membros.
Toda a disputa entre ocupantes tradicionais do meio rural capixaba e
estimuladores da monocultura do eucalipto inicia-se em 1956, quando a então
empresa estatal Companhia Vale do Rio Doce adquiriu ao governo do estado do
Espírito Santo a Reserva Florestal de Linhares, com área de 23 mil hectares, e ali
começou a desenvolver experimentos que, mais tarde, transformar-se-iam nas atuais
monoculturas de eucalipto. A Aracruz – que, dada a sua escala e protagonismo no
estímulo à monocultura no estado, é atualmente a grande antagonista dos peque-
nos usuários da terra – iniciou suas atividades monocultoras mais tarde, em 1967,
ao herdar a iniciativa da Vale e após os desmatamentos em escala industrial.
Foi justamente na entrada em cena da Aracruz que Antonino, a esposa e oito
filhos foram expulsos das terras onde hoje se localiza a Pau-Brasil – as quais
retornaram somente no fim do século XX. Desterrado e, portanto, em processo de
desculturação, sem alternativa para garantir o sustento da família, Antonino foi
obrigado a trabalhar temporariamente para a própria Aracruz.

Os marcos na história da monocultura


Como observa o relatório “Temas conflituosos relacionados à expansão da base
florestal plantada e definição de estratégias para minimização dos conflitos iden-
tificados”, elaborado no âmbito do Programa Nacional de Florestas da Secretaria
de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente,
[...] os censos demográficos dos anos de sessenta e setenta não
registravam a ocorrência de grupos indígenas na região. Somente na
década de oitenta os grupos locais (anteriormente designados como
caboclos) foram mais amplamente reconhecidos como pertencentes
aos grupos Guarani e Tupiniquim, ensejando o início de processos
para demarcação de suas terras. No final da década passada foi
encaminhado um laudo ao Ministério da Justiça, reconhecendo
13.500 hectares, em duas áreas distintas, como terras tradicional-
mente indígenas. No entanto, por deliberação do referido ministé-
rio, apenas 2.500 hectares foram homologados e demarcados.
Insatisfeitos com tal demarcação, os indígenas invadiram trechos
da área que consideravam suas, determinando, por parte da
Aracruz, o acionamento da justiça [...].

Essa “invasão”, relatada no trecho citado, ocorreu em maio de 2005.


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A intervenção da Vale, na década de 1950, e posteriormente da Aracruz, uma


década depois, deu-se porque, na época, o Estado brasileiro colocou em prática
uma política baseada na implantação de projetos rurais que tinha por objetivo a
constituição de núcleos de desenvolvimento e pólos avançados do capitalismo
brasileiro sertão adentro. Pretendia levar empregos que exigissem mão-de-obra
com algum grau de especialização e infra-estrutura básica nos locais de implanta-
ção dos projetos, esperando que a partir deles a região progredisse. Porém, nunca
foi levado em conta o valor intrínseco dos ecossistemas em que os povos viviam e
onde foram desenvolvidos esses projetos, o que explica a série de denúncias do
desmatamento aberto, a exaustão de fontes hídricas e de rios inteiros, além da
contaminação do solo pelo uso de venenos agrícolas nas plantações de eucalipto.
A visão patrimonialista típica e hegemônica na história brasileira impediu que essa
política pública considerasse os direitos e a cultura de povos anteriormente instalados
nas mesmas áreas. Assim, ocupações de base familiar, como a de pequenos produto-
res, muitos deles estrangeiros migrantes, e de base comunitária, como a dos indígenas
e dos remanescentes de quilombolas, não foram enxergadas como formas legítimas
de propriedade porque não estavam necessariamente formalizadas do ponto de vista
jurídico. Estava aí a base supostamente jurídica que viabilizou tanto a contestação
legal das milhares de pequenas propriedades como a expulsão pura e simples, por
meios agressivos, desses moradores tradicionais do sertão capixaba.
Como observou o “Segundo relatório de violações de direitos humanos econô-
micos, sociais, culturais e ambientais – A monocultura de eucalipto, a empresa
Aracruz Celulose e estado do Espírito Santo/Brasil”, elaborado pelas organizações
não-governamentais Terre des Hommes e Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional (Fase), em dezembro de 2003,
analisando esse contexto de forma generalizada, pode-se então
afirmar que não há ruptura entre seu aparecimento e a pior das
nossas tradições terceiro mundistas: a formação de uma elite que
une interesses financeiros à violência de um estado ditatorial, que
privilegia grupos econômicos sem nenhum compromisso com a
sociedade civil local, que se instalam nesses territórios com todas as
prerrogativas e regalias. [...] no caso específico da Aracruz Celulose
esse cenário de privilégios acabou por criar uma verdadeira “caixa
preta” onde a forma pela qual as terras da empresa foram adquiri-
das e seu violento processo de legitimação junto às populações
tradicionais, permanece até hoje obscura. O que se sabe, é que sua
chegada nestas terras foi sinônimo de violência: devastação da flora
e fauna presentes na Mata Atlântica, expulsão e destruição de
aldeias indígenas, dissolução de comunidades rurais quilombolas.

Junte-se a isso o fato de a história do Espírito Santo registrar derrubada siste-


mática, científica, rápida e voraz da Mata Atlântica para aquisição de madeiras
nobres (o estado possui a menor taxa remanescente desse ecossistema), com uma
violenta indústria de grilagem dela interdependente. Especula-se, também, que do
Espírito Santo tenha saído a maior parte da madeira utilizada, na década de 1950,
na construção de Brasília, em momento imediatamente anterior ao replantio maciço
de árvores, mas que já então preparava o sistema da monocultura do eucalipto.
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O resultado é um contexto histórico que em grande medida explica a atual


situação de conflito descrita em outra observação contida no mesmo relatório da
Terre des Hommes e da Fase:
Com uma política agressiva, a Aracruz conseguiu reduzir a eucalipto
as seguintes aldeias indígenas: Amarelo, Olho d´água, Guaxindiba,
Porto da Lancha, Cantagalo, Araribá, Braço Morto, Areal, Sauê,
Gimunhuna, Piranema, Potiri, Sahy Pequeno, Batinga, Santa Joana,
Morcego, Garoupas, Rio das Minhoca, Morobá, Rio da Prata, Ambu,
Lagoa, Suruaca, Cavalhinho, Sauaçu, Concheira, Rio Quartel, São
Bento, Laginha, Baiacu, Peixe Verde, Jurumim e Destacamento.

Quarenta mil hectares de terra só na década de 1960 transformados


em eucalipto. Para as dezenas de famílias remanescentes, apenas os 40
hectares de terra das aldeias de Caieras Velha e Pau-Brasil. Desde
então, a luta por terra é uma constante na vida das aldeias:
autodemarcações, ocupações, solicitações à Funai para nova demarca-
ção das terras; todo o tipo de recurso já foi mobilizado nesse sentido.
A disparidade entre o que deveria ser área indígena e o que realmente
se efetiva é absurda. Somente no município de Aracruz, onde está
instalada a fábrica, dos 13.579 hectares que deveriam ser área indíge-
na, apenas 2.571 hectares encontram-se efetivamente ocupados por eles.

Diante de tanta concentração fundiária, era de se esperar que um movimento


de trabalhadores que atuasse nesse setor intrinsecamente vinculado ao território,
como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), também tivesse
um papel nessa disputa no corredor de paisagem única, composta apenas de
eucalipto, que se estende do Espírito Santo em direção ao extremo sul da Bahia –
área anteriormente típica de floresta atlântica.
Em abril de 2004, quando a Aracruz estava prestes a inaugurar a fábrica Veracel,
o MST, em sua contínua estratégia de reivindicar terra e recursos para reforma agrária
e produção local de alimentos, ocupou parte da área destinada ao plantio de árvores,
contígua à planta industrial que recebeu financiamento expressivo do BNDES. E ali,
durante a invasão da terra, usou pela primeira vez uma palavra de ordem simples, mas
tão objetiva que expressa com clareza inequívoca a diferença que separa o seu projeto
estratégico daquele operado pela Aracruz: “ninguém come eucalipto”.

A Rede vai se inspirar em Augusto Ruschi


O nome não poderia ser mais indicativo das causas que defende: Rede Alerta Con-
tra o Deserto Verde. Fundada em 1998, em parte fruto da organicidade que o
movimento social alcançara seis anos antes na Conferência das Nações Unidas so-
bre Meio Ambiente (RIO 92), essa frente de organizações de vários tipos – não-
governamentais (como a Fase e a Associação dos Geógrafos do Brasil, seção Espíri-
to Santo), sindicais (Sindicato dos Petroleiros do Espírito Santo), ambientalistas,
indígenas e indigenistas, de agricultores familiares e sem terra (como o Movimento
dos Pequenos Agricultores), remanescentes de quilombolas, grupos de mulheres e
ativistas sociais – inspirou-se no falecido biólogo e ambientalista Augusto Ruschi,
que, quando vivo, foi um dos maiores especialistas mundial em bromélias e colibris.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Amante e amigo da natureza, visceralmente ligado à proteção do mundo natu-


ral e profundo conhecedor da importância das diversidades para a harmonia das
sociedades, Ruschi foi o primeiro a tornar público aquele que deve ser o maior
malefício causado pela monocultura de árvores em seu estado, e que mais tarde
veio a inspirar a Rede: a perda quase total da diversidade biológica em extensas
áreas contínuas em que reina apenas uma espécie de árvore. Para o biólogo, são
milhares de árvores, mas não é uma floresta. É um verdadeiro deserto verde.
Inspirada pelo espírito de Ruschi, a Rede se transformou no principal antago-
nista do modelo de monocultura do eucalipto. Sem prejuízo das ascensões even-
tuais de alguns de seus membros, como acontece agora com os indígenas
Tupiniquim e Guarani, é a Rede o principal repositório de informações e de ações
críticas em relação à indústria do eucalipto e defensora de várias dimensões da
diversidade, ameaçadas pela expansão do negócio celulósico.
À concepção biológica da monocultura, inaugurada por Ruschi, diversos mo-
vimentos sociais, negativamente impactados por sua expansão, agregaram-se, con-
ferindo o caráter político plural da Rede. Mostram que a produção de árvores
também destrói a diversidade cultural dos diversos povos que, com seus usos pró-
prios, retribuem à terra a diversidade que lhe fortalece agrícola e ecologicamente e
garante justiça e equanimidade no acesso aos recursos naturais.
Conforme descrição do relatório do Projeto Direitos Humanos Econômicos,
Sociais, Culturais e Ambientais (Desc), da Terre des Hommes e da Fase (esta, uma
das principais impulsionadoras da Rede),
A Rede Alerta Contra o Deserto Verde é uma ampla e informal
composição de grupos e atores sociais. Abriga desde índios e
quilombolas às ONGs e Via Campesina; de Igrejas a sindicatos; de
artistas a acadêmicos, de pesquisadores a movimentos de estudantes
e mulheres. Não se restringe ao Espírito Santo, mas se espalha pelo
sul do estado da Bahia, pelo Rio de Janeiro e por Minas Gerais,
reunindo as diferentes tradições encontradas de forma particular-
mente rica nesta região: geraizeros, quilombolas, pataxós, guaranis,
tupinikins e pequenos agricultores, vários que são forçados a
experimentar a vida através do convívio direto com o deserto verde
do eucaliptal.

A multiplicidade dessas falas reúne-se em movimento de resistência. Não ape-


nas à cultura do eucalipto, mas a um modelo específico de desenvolvimento que
privilegia a uniformidade. Massacradas pela chegada de uma modernidade per-
versa que desconsidera sua ancestralidade e territorialidade, essas culturas radicadas
há séculos neste território reivindicam o direito básico de existir e transmitir para
seus descendentes seus valores e crenças.
A existência dessa rede cultural reflete dois lados diversos de nossa
contemporaneidade. Por um lado, é a resistência ao que há de mais excludente
e arcaico no espaço rural brasileiro atual: agrobusiness, agrotóxico, fomento,
monocultura, grandes propriedades. Por outro, traz o frescor de uma nova
possibilidade de organização da sociedade civil, a das “Redes” que, espalha-
das por diversos territórios, línguas, culturas, se reúnem em torno de um pro-
pósito em comum.
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No caso específico da Rede Alerta contra o Deserto Verde, sua espacialização


ao longo da monocultura do eucalipto em quatro estados tem o propósito
comum de exigir o cumprimento de direitos fundamentais que vêm sendo sis-
tematicamente violados, usurpados pelo grande negócio que se tornou a in-
dústria da celulose nessas regiões. São diferentes falas que no fundo dizem da
mesma violenta avalanche econômica, política, social e cultural que contami-
nou regiões antes ocupadas pela agricultura familiar, por florestas nativas ou
pelas culturas tradicionais.

Mulheres e água contaminada


É importante notar a parte do relatório Desc dedicada à participação das mulhe-
res na luta contra a monocultura:
A presença das mulheres nas lutas socioambientais é cada vez
maior. Segundo o “Fórum das Mulheres do Espírito Santo”,
movimento também pertencente à Rede Alerta Contra o Deserto
Verde, esse acontecimento é resultado de algumas constatações que
puderam ser feitas por esse grupo, entre elas:
– são as mulheres que usam a água supostamente contaminada
pelos agrotóxicos para: lavar a roupa e os alimentos, fazer a
comida, encher o filtro que abastece a família, regar a horta e,
ainda dar banho nos filhos;
– têm de lidar com o solo desertificado para produzir a horta que
abastece a família;
– cuidam da família doente e, muitas vezes, não contam com
qualquer assistência médico-hospitalar;
– estão sendo provavelmente contaminadas, contraindo câncer de
mama e de útero.

E aqui, na referência à participação muito ativa das mulheres na Rede, ficam


implícitos pelo menos outros dois impactos da monocultura no ambiente. O pri-
meiro é a exigência de volumes de água em quantidades crescentes, aplicadas no
crescimento rápido das árvores, que seca os recursos hídricos. O outro são os
efeitos colaterais da aplicação em massa de venenos agrícolas, para prevenir o
aparecimento de pragas que sempre ameaçam monoculturas com quase nenhuma
variação genética e sem, portanto, a proteção natural que lhes seria proporciona-
da pela diversidade de genes em seu DNA.
Ainda quanto à constituição da Rede, é válido observar o relatório Ministério
do Meio Ambiente:
Desde sua criação essa Rede já organizou três grandes encontros –
sendo um deles internacional –, entre todos os seus participantes e
outros atores considerados aliados para a discussão de alternativas
contra a expansão contínua e massiva de plantações industriais de
árvores de rápido crescimento e mais especificamente o modelo de
ocupação promovido pelo setor de celulose & papel e considerado
por essas entidades como excludente socioeconomicamente e
ambientalmente danoso. Essas entidades e/ou redes e fóruns criados a
partir do trabalho destas entidades já estenderam sua a atuação além
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deste eixo, como é o caso do estado de Minas Gerais, apresentado


adiante. Além do mais, entidades de outros estados e países tam-
bém atuam em parceria com essas entidades [...] Em 2003, as
articulações da Rede Alerta contra o Deserto Verde chegaram ao
Fórum Social Mundial e nasceu a Rede Latino-americana contra as
Monoculturas de Árvores.

Nacionalmente, a Rede se articula com outras redes da sociedade organizada,


para ampliar a visibilidade de sua luta, conforme é descrito no relatório Desc:
No cenário dos confrontos socioambientais atuais, poderíamos
destacar como parceiras: Rede Cerrado, Articulação do Semi-árido,
Rede de Justiça Ambiental, Articulação Nacional de Agroecologia,
além da própria Inter-redes, no âmbito da Associação Brasileira de
ONGs (Abong).

A luta da Rede – materializada em manifestações de rua e pressões sobre os


poderes Executivo e Legislativo de âmbito estadual e federal, com o apoio de
organizações similares no Brasil e no exterior – começou na resistência à supressão
de direitos sociais e individuais de milhares de impactados ao longo de quase
cinco décadas de monocultura do eucalipto e deu origem à elaboração, mínima
que seja, de novos modelos de desenvolvimento.
Como não poderia deixar de ser em uma situação como essa, o MST (seção
Espírito Santo) é um dos mais ativos integrantes da Rede, até mesmo pela situa-
ção da reforma agrária no estado, que tem mais de 65 mil famílias sem terra.
Segundo o relatório Desc, as terras dos remanescentes de quilombos:
[...] sempre foram um alvo privilegiado da empresa Aracruz Celulo-
se. [...] na política de aquisição e legitimação de terras pela Aracruz
Celulose [...] Aqueles que pretendiam resistir foram sendo pouco a
pouco cercados pela derrubada da mata e pela devastação da fauna
e da flora que antes lhes forneciam a subsistência: “O território
negro se concretizava pela apropriação e uso comum desses recur-
sos, através de práticas extrativistas nas grandes extensões de matas,
brejos e rios [...], assim como da pequena produção das roças”.

Hoje, como contraponto do projeto celulósico, uma das demandas mais im-
portantes da Rede e de outros opositores da monocultura é a elaboração do
zoneamento econômico e ecológico do Espírito Santo, sugerindo a divisão legal
do estado de acordo com as vocações ecológicas e históricas após o levantamento
técnico dessas vocações.
Essa proposta busca um contraponto teórico direto com a indústria, ao pro-
por um plano de utilização do solo em tudo diferente e antagônico àquele repre-
sentado pela Aracruz: debatido publicamente, para ser diversificado e democráti-
co, garantindo protagonismo aos que, até aqui, olharam o crescimento da produ-
ção exclusivamente pelo ângulo dos impactos negativos socioambientais e cultu-
rais que lhes coube com exclusividade.
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13

Quem é a Aracruz
Os trechos a seguir foram todos extraídos do relatório Desc, já citado, e são auto-
explicativos:
Atualmente, segundo dados da própria empresa disponíveis na
Internet, as operações florestais da Aracruz alcançam os estados do
Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. São
aproximadamente 242 mil hectares de plantios próprios de
eucalipto. Somente no ES são três unidades produtivas com capaci-
dade total de 2 milhões de toneladas anuais de celulose. Com a
inauguração da Fábrica C em agosto de 2002 e a aquisição da
Riocell (atual Guaíba) em julho de 2003, a capacidade de produção
da empresa alcançará a inacreditável marca.

Financiar essa escala surrealista de produção de pasta celulósica não é


tarefa simples. Para tanto, a empresa precisa alimentar, na mesma
proporção, novos plantios. Para incrementar essa produção, a
Aracruz inicia em março de 1990 o chamado “Programa de Fomen-
to Florestal”. Esse programa consistiria em uma “parceria” entre
pequenos e médios agricultores e a empresa, os primeiros cedendo
suas terras para o plantio e a segunda garantindo toda a assistência
técnica e se comprometendo com a compra da produção [...].

Além da compra direta, o Fomento Florestal, como já foi dito, é


hoje uma importante estratégia, atingindo 1.950 propriedades
rurais no estado. A meta é ter 2.500 propriedades plantando mais
de 35 mil hectares. A concentração de terras se torna ainda mais
assustadora se forem computadas as áreas que a empresa pretende
plantar com recursos do [Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar] Pronaf Florestal [...] uma linha de crédito
destinada a contribuir com o aumento da cobertura florestal nas
propriedades, através do estímulo à atividade florestal, bem como
estimular a adoção de sistemas agroflorestais como componente
dos sistemas produtivos na agricultura familiar.

[...] Ocorre que para garantir a execução do Programa Florestal do


governo estadual, a Secretaria Estadual da Agricultura, através do
[Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural]
Incaper, em parceria com a Aracruz Celulose, está usando os recursos
do Pronaf Florestal para fomentar os plantios de eucalipto para fins
de celulose no ES. Sem dúvida nenhuma, mais do que agricultura
familiar, o Pronaf Florestal no ES tem servido aos interesses políticos
do governo estadual e, principalmente, à Aracruz Celulose. [...] A
crise do café (base da agricultura familiar no ES), culminada na safra
de 2002, obrigou muitos agricultores e outras comunidades tradicio-
nais a diversificarem suas atividades. Isso seria positivo se não fosse o
fato da Aracruz Celulose aproveitar-se dessa crise e oferecer, a dezenas
de famílias, melhorias através do Fomento Florestal. Com o ‘pacote
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

tecnológico’ para a produção de eucalipto para fins de celulose,


cresce o uso de agrotóxicos, a contaminação dos corpos de água,
nascentes, animais e até das pessoas, principalmente as crianças nas
famílias que resistem, ilhadas na atividade da empresa [...].

A água é factual e simbolicamente um dos mais importantes


territórios de conflito entre a Aracruz Celulose e a sociedade civil
no Espírito Santo, notadamente onde estão concentrados os
plantios e as fábricas da empresa. A apropriação, o uso e a signifi-
cação dos recursos hídricos possuem lógicas radicalmente contradi-
tórias, caso se compare a empresa e a sociedade vizinha. O consu-
mo diário das fábricas A, B e C da Aracruz Celulose atinge 248 mil
metros cúbicos. Trata-se de um super consumo, necessário ao
Processo Kraft de produção de celulose. [...] as fábricas da Aracruz
consomem H2O na mesma proporção de uma grande cidade de
cerca de 2,5 milhões de habitantes, considerando um consumo
médio diário de 100 litros de água por habitante.

Já no site da empresa na Internet, a autodescrição da Aracruz é a que segue:


[a] Companhia estimula o plantio de eucalipto por terceiros através
do Programa Produtor Florestal, que abrange cerca de 78 mil
hectares, contratados com mais de 3 mil produtores rurais no Espíri-
to Santo, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A capacidade
nominal de produção da Aracruz, de cerca de 3 milhões de toneladas
anuais de celulose, está distribuída pelas unidades de Barra do
Riacho-ES (2 milhões de toneladas), Guaíba-RS (400 mil toneladas)
e Veracel-BA (450 mil toneladas). [...] O controle acionário da
Aracruz é exercido pelos grupos Safra, Lorentzen e Votorantim (28%
do capital votante cada) e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social – BNDES (12,5%). As ações preferenciais da
Companhia, perfazendo 56% do total do capital, são negociadas
nas Bolsas de Valores de São Paulo, Nova York e Madri.

Outra interpretação sobre a Aracruz, conforme o relatório do Ministério do


Meio Ambiente, citando o relatório Desc, nos é fornecida por um dos coordenado-
res estaduais do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Valmir Noventa:
Valmir Noventa relatou que a empresa tem cerca de 220 mil hectares
plantados com eucalipto no Espírito Santo, principalmente no norte
do estado. Sendo que a empresa declara que possui no total
187.488. E no início do corrente ano, novas discrepâncias foram
apontadas em matéria publicada no jornal on-line Século Diário, em
15 de fevereiro de 2005, descrevendo os dados do Balanço Financei-
ro da Aracruz em 2004: “A empresa assume plantios de eucalipto em
252 mil hectares, e a propriedade de outros 133 mil hectares de
terras, em quatro estados. Os ambientalistas afirmam, contudo, que
a empresa deve ter pelo menos 450 mil hectares de eucalipto planta-
dos somente no Espírito Santo e na Bahia”.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Sobre o percentual da base territorial ocupada com plantios de


eucalipto, a Aracruz declara em seu website que: “Na média, as
áreas [totais] da empresa ocupam 11,8% dos municípios de
abrangência”. Mas, contrapondo essa informação e imputando
responsabilidade também para outras empresas, o relatório da Fase
declara que: “Considerando ainda as áreas planas do estado
(1.505.000 hectares), e desses, 973.000 hectares sendo áreas planas
mecanizáveis, a Aracruz Celulose ocupa com suas plantações
8,75% da área. Levando em conta também os plantios de outras
empresas como a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a Bahia
Sul Celulose e prevendo inclusive o aumento do plantio previsto
pela Aracruz Celulose, neste momento, tal porcentagem saltará
para 25,51% das áreas planas mecanizáveis do estado, uma porcen-
tagem extremamente significativa”. Além do mais, nesse mesmo
documento é citado que a Aracruz e a Bahia Sul na época planeja-
vam adquirir, em conjunto, os 40 mil hectares de terras e florestas
de eucalipto nelas plantadas, localizadas na região de São Mateus,
no estado do Espírito Santo, pertencendo às Florestas Rio Doce
S.A. e controlada, até então, pela Companhia Vale do Rio Doce.

O projeto histórico do estado brasileiro


O relatório do Ministério do Meio Ambiente esmiúça a dança de aquisições e
vendas de participações das empresas do setor de celulose, que bem poderiam
configurar alguma situação de confronto à legislação antitruste. De quebra, ainda
reafirma o papel secundário, porém importante, do estado brasileiro nesses proje-
tos que visam à concentração de renda e à privatização, indireta, dos recursos
naturais que deveriam ser de responsabilidade e usufruto de todos os brasileiros:
Também na década de 1990 houve a delimitação do nicho de
grandes empresas controlando cerca de 90% das exportações brasilei-
ras: Aracruz Celulose no estado do Espírito Santo, Cenibra no estado
de Minas Gerais, Suzano/Bahia Sul Celulose na Bahia, Votorantim
Celulose e Papel em São Paulo, Riocell no Rio Grande do Sul e Jarí
Celulose no Amapá. A Veracel Celulose, em fase final de construção
no Sul da Bahia, também busca se integrar a esse clube seleto.

Todas essas empresas contam, ou contaram, de uma maneira ou de


outra, com o apoio do BNDES e algumas são em parte controladas
por investidores externos. Outra característica do setor é a tendên-
cia, desde a fase de expansão na década de 1970, de concentração,
assim essas empresas são competidoras, mas têm controles
acionários cruzados.

Vale ressaltar, agora, mais uma crítica do Movimento de Pequenos Agriculto-


res (MPA), amplificada pela Rede Alerta Contra o Deserto Verde:
segundo cálculos elaborados pela entidade e divulgados em denún-
cia enviada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 20 de
fevereiro de 2003, em 30 anos, a Aracruz Celulose recebeu favores
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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do governo federal que totalizam R$ 13 bilhões. Nesse período,


todo o dinheiro aplicado pelo governo federal, em agricultura, no
Espírito Santo totaliza apenas R$ 1,5 bilhão.

Mesmo que essa análise não abranja o período atual do governo Lula, espera-
se que essa tendência apontada pelo MPA tenha, ainda que com restrições quanto
à quantia exata, se aprofundado. Desde 2003, o BNDES continuou a liberar
recursos para a ampliação da capacidade produtiva da empresa, sem que
contrapartida equivalente tenha sido observada no setor antagônico, o de agricul-
tores de base familiar. Ratificação dessa suposição é a presença do presidente Lula
na inauguração de mais uma fase da Veracel, programada para o final de setem-
bro de 2005.
Essas constatações evidenciam, mais uma vez, que o estado brasileiro, ao lon-
go da história do país, pelo menos em relação à indústria da monocultura do
eucalipto, vem tendo um projeto preponderante. Ele se alia ou se deixa cooptar
pelos interesses maiores de grandes grupos econômicos, em especial os de controle
privado.
Efetiva ou não, feita de caso pensado ou não, essa estratégia se choca frontal-
mente com direitos e interesses da maioria da população, que não recebe fatia
equivalente do bolo de recursos oficiais e, ao mesmo tempo, evidencia uma estra-
tégia histórica que, mesmo sem ser assumida, mostra uma escolha permanente,
automática até, por aqueles que já concentram a maior parte da renda nacional.
O “projeto”, por assim dizer, do Estado brasileiro não pára no tempo. Ao
contrário, moderniza vivamente as opções de instrumento de gerenciamento eco-
nômico. É o caso da indução do crescimento de alguns grupos, por meio do apoio
em forma de programas oficiais de incentivo às atividades do grande negócio
agrícola, que consegue articular em torno de si até ministérios cujos titulares, em
tese, ocupariam posições diametralmente opostas no espectro político.
Esse antagonismo pode ser exemplificado com a posição do ministro da Agri-
cultura, decididamente muito mais próximo dos grandes grupos econômicos atu-
antes no meio rural, e com a da ministra do Meio Ambiente, historicamente sen-
sível às demandas dos grupos sociais negativamente impactados pelas monoculturas
do eucalipto.
Não é à toa que o estudo dos prováveis impactos socioambientais do Progra-
ma Nacional de Florestas surge no Ministério do Meio Ambiente, comandado
por Marina Silva, atendendo às queixas dos grupos sociais que a ele têm acesso, e
não no Ministério da Agricultura, chefiado por Roberto Rodrigues, que possui
vínculos profissionais e negociais, de décadas, com os maiores grupos empresari-
ais do chamado negócio agrícola no Brasil e no exterior.
O “projeto” estatal igualmente se verifica na participação acionária expressiva
do estado em grupos econômicos privados, sem que qualquer justificativa de inte-
resse nacional, muito menos local ou regional, explique essa sociedade.
Afinal, em nenhum momento sócios como a Aracruz pertenceram a setores
estratégicos para a economia nacional, como poderia ser argumentado no caso,
por exemplo, da Companhia Vale do Rio Doce, vendida em situação amplamente
desvantajosa paro o setor público, em pleno vigor da ideologia da privatização. A
Aracruz não pertenceu ao escopo dos estratégicos, nem durante a era da estatização
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

total – mas que eventualmente foi necessária para criação de vetores mínimos de
desenvolvimento nacional –, nem depois da entronização do mercado e da
privatização ampla, geral e irrestrita, quando o espaço privado foi alçado à qua-
lidade de dogma.
Outra dimensão do processo de modernização para poucos do estado pode ser
configurado no ganho extraordinário de produtividade que os grupos da produ-
ção celulósica almejam quando miram o comércio dos créditos de carbono – e é
importante chamar a atenção para o que dizem cientistas, financistas, economis-
tas e ambientalistas: esse instrumento financeiro tem um potencial reduzidíssimo
para interferir positivamente nas mudanças crescentes que o clima do planeta vem
enfrentando, pelo menos na escala de tempo de que o globo terrestre e a humani-
dade necessitam para reverter os novos padrões de severidade que os fenômenos
climáticos apresentam.
Esses críticos alertam que, pelo menos nas primeiras etapas da implantação
dos mecanismos financeiros antipoluição, apenas obterão vantagem os
intermediadores, os brokers, que assumirem a tarefa de negociá-los nos mercados
mundo afora.
A situação de conflito com os defensores de outros tipos de utilização do solo
e dos recursos naturais tem tudo para continuar, uma vez que continua a indefinição
quanto à propriedade da terra, que levou os Tupiniquim e os Guarani a promove-
rem a retomada dos milhares de hectares que julgam seus. E ainda há a preferência
que o estado manifesta pelos grandes grupos, ao dedicar recursos para o financia-
mento de grandes plantas industriais, em que ele próprio toma parte, e, ao mesmo
tempo, ao deixar de realizar políticas públicas amplas, como a reforma agrária.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Avanço da fronteira agrícola e
agronegócio em Mato Grosso
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2

AVANÇO DA FRONTEIRA AGRÍCOLA E AGRONEGÓCIO EM MATO GROSSO

Elton Rivas
Jornalista e coordenador do Fórum Mato-grossense
de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad)

Marla Bittencourt
Estudante de jornalismo

A Amazônia está sangrando. De agosto de 2003 a agosto de 2004, foram desmatados


26.130 quilômetros quadrados de área de floresta na Amazônia brasileira. Mato
Grosso foi o responsável pela maior extensão desse desmatamento, com a impressi-
onante marca de 12.586 quilômetros quadrados. O estado desmatou simplesmente
o dobro do segundo colocado, Pará, no ranking da devastação ambiental.
Esses dados são o resultado direto de um modelo agrícola agressivo no que
diz respeito à incorporação de novas áreas e da falta de uma política ambiental
que dê conta de conciliar desenvolvimento econômico com preservação do meio
ambiente. Esse modelo privilegia a ação predatória em detrimento de práticas
sustentáveis que respeitem, antes de mais nada, os aspectos culturais, a diversida-
de humana da Amazônia e a biodiversidade. Ao contrário disso, derruba matas,
queima florestas, expulsa populações tradicionais, como os povos indígenas e
pequenos agricultores, de suas terras e as ocupa.
O agronegócio, praticado nesses termos, traz à tona um quadro em que a
privação do direito humano ao meio ambiente no estado de Mato Grosso está
diretamente relacionada à geração de conflitos de interesses dos diversos segmen-
tos econômicos e sociais. Se, de um lado, as políticas públicas incentivam a im-
plantação e a consolidação desse modelo de monocultura voltado à exportação,
de outro encontramos pequenos produtores, por exemplo, encurralados por con-
ta de não se adequarem ao modelo tecnológico de produção ficando à margem
dos recursos destinados ao setor agrícola.
O carro-chefe da agricultura no estado é a soja. Mesmo com a propagada
crise no setor agrícola, em especial no preço da soja, as áreas de plantio do grão
em Mato Grosso cresceram 17%, saltando de 5,148 milhões para 6,024 milhões
de hectares, segundo dados disponibilizados pela Federação da Agricultura e Pe-
cuária do Estado de Mato Grosso (Famato).
A soja, que, nas décadas de 1970 e 1980, avançou sobre o cerrado, está
subindo gradativamente para a região amazônica de Mato Grosso. Nessas déca-
das, o estado sofreu intenso fluxo migratório, com incentivos governamentais
que pretendiam promover o desenvolvimento a qualquer custo nas regiões Cen-
tro-Oeste e Norte. Essa política integracionista não considerou as questões
ambientais e sociais da Amazônia brasileira e gerou, entre outras coisas, obras de
grande impacto como a BR-163 e a Transamazônica. A floresta e o cerrado mato-
grossenses eram (e ainda são) encarados como extensas áreas desabitadas e sem
função econômica, a não ser sua utilização para a monocultura em larga escala.
Na visão dos migrantes, a Amazônia era um vazio humano que precisava ser
ocupado, mas – nem naquela época, nem em tempos mais recentes – não se
aprofundou a análise do impacto socioambiental da intervenção não-planejada
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

na região. O governador Blairo Maggi (PPS) ressaltou, em encontro com lideran-


ças ruralistas, que, no passado, os agricultores eram vistos como “desbravado-
res”, uma vez que eram incentivados a virem para Mato Grosso e para o Pará,
com o intuito de que abrissem áreas e trouxessem o desenvolvimento econômico
para essas regiões. “Hoje, esses mesmos desbravadores são taxados como crimino-
sos ambientais”, criticou o governador.
Pensando a conjuntura de hoje como se ainda estivéssemos na década de
1970, esses segmentos do intitulado setor produtivo esbarram em novas concep-
ções, cada vez mais difundidas na sociedade brasileira, que consideram, até mes-
mo em políticas públicas específicas, a questão ambiental, a existência de índios,
seringueiros, extrativistas, agricultores familiares e outros segmentos sociais repre-
sentativos da diversidade cultural do país que emergem no cenário atual como
atores políticos atuantes.
O avanço da agricultura e da pecuária rumo à Amazônia tem relação íntima
com a questão da privação do direito humano ao meio ambiente. Populações
estão sendo impedidas de acessar recursos naturais, que são fundamentais na luta
por melhores condições de vida. Esses recursos não podem ser apenas
dimensionados por seu valor econômico. O acesso a eles também inclui o conhe-
cimento tradicional, inovações e práticas de populações tradicionais relacionadas
a espécies e ecossistemas. As populações desses ecossistemas dependem desses re-
cursos, pois possuem um modo de vida estreitamente relacionado com eles.
O impacto dessa política no estado é desastroso, com a acelerada diminui-
ção do cerrado, o comprometimento de cabeceiras de rios da bacia amazônica em
função da utilização inadequada dessas áreas e os altos índices de desmatamento
apresentados nos últimos anos. Também é desastroso do ponto de vista social,
com a alta incidência de trabalho escravo em Mato Grosso e a falta de investi-
mentos na agricultura familiar.

Crise no setor agrícola


Uma queda de 39,4% na receita obtida com os embarques de soja determinou a
retração de 4,5% das exportações brasileiras do agronegócio em junho de 2005
na comparação com o mesmo período de 2004. Segundo especialistas, o tombo
da soja se explica pelo alto custo de produção, defasagem cambial, baixa remune-
ração da atividade, falta de mecanismos de sustentação dos preços agrícolas, infra-
estrutura deficiente e importações predatórias.
Para os grandes produtores, o momento vivido é de crise no setor. Porém essa
“crise” não é empecilho para barrar o avanço da fronteira agrícola em Mato
Grosso, no sul do Pará e também no sul do Amazonas. O modelo de desenvolvi-
mento econômico escolhido para o estado parece manter seu rumo embalado por
questões como a grilagem de terras públicas por grandes produtores, desrespeito à
legislação ambiental aliada ao crescimento das áreas agriculturáveis, falta de in-
centivo à agricultura familiar e o acirramento de conflitos fundiários.
Essa fase pela qual passa o setor agrícola em Mato Grosso é reveladora da
alteração da forma de organização social e do tipo de relações sociais que se esta-
belecem entre os diferentes atores em disputa. Estratégias antes utilizadas pelos
movimentos sociais passam, hoje, a fazer parte do repertório utilizado pelos seg-
mentos empresariais.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

Curiosamente, mesmo dominando a cena política e econômica no estado,


ainda assim lançam mão desses mecanismos, como por exemplo, fechamento de
estradas, passeatas e outras formas de manifestações historicamente caracteriza-
das como populares e com capacidade de pautar agenda pública. A concretização
dessa apropriação de mecanismos ocorreu no último dia 29 de junho, quando
mais de 20 mil pessoas e 2,5 mil tratores circularam pela Esplanada dos Ministé-
rios na maior manifestação pública do setor, intitulada de “Tratoraço”.
O Tratoraço foi um mecanismo semelhante ao utilizado pelos grupos sociais
como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pois a marcha
para Brasília, com direito a desfile de tratores pela Esplanada dos Ministérios, em
nada deixou a desejar às estratégias do MST. Uma clara evidência desse tipo de
comportamento foram os cinco piquetes formados por tratores e latas de lixo
formados em ruas de Brasília e nos estacionamentos dos ministérios.
Toda essa movimentação tem como objetivo sensibilizar a opinião pública
para as alegadas agruras pelas quais passa o setor. A “crise” da soja se transfor-
mou em um artifício pelo qual os produtores querem fazer crer que o problema
deles é um problema de todos, que o próprio estado está ameaçado, como se a
soja representasse o elo entre toda a população de Mato Grosso, como se a produ-
ção agrícola fosse aquilo que nos torna todos mato-grossenses. Salvando o
agronegócio, salva-se o estado de Mato Grosso.
A mobilização em torno do Tratoraço envolveu grupos de produtores mato-
grossenses, a maioria deles do norte do estado, uma região de transição onde a ativi-
dade madeireira cede espaço, cada vez mais, para a produção de soja. E é claro que
mobilizações dessa natureza exigem investimentos para que ocorram. Mato Grosso
não divulgou números a respeito disso, mas, para se ter uma idéia dos gastos, vale
citar o exemplo de Goiás. De acordo com matéria publicada pela revista Produtor
Rural, de responsabilidade da Famato, a cidade de Jataí (GO), um dos pontos de
passagem do “Tratoraço”, o investimento em alimentação foi de R$ 3 mil por 800
marmitas. De acordo com a revista, o estado de Goiás participou com 1.300 tratores,
850 caminhões e 9 mil pessoas. A estimativa de gastos foi de R$ 1,2 milhão de
desembolso para deslocar os agricultores goianos. A manifestação contou com cara-
vanas vindas de diversas regiões do país, como dos estados de Goiás, Rio Grande do
Sul, Santa Catarina, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo.
Nas assembléias populares, conselhos e fóruns se fazem presentes os represen-
tantes de fazendeiros e madeireiros buscando intervir nas políticas públicas no
estado. Em agosto de 2005, promovido pela Secretaria de Meio Ambiente (Sema),
ocorreu um fórum, quando foi lançada a nova secretaria, criada para substituir a
Fundação do Meio Ambiente (Fema), envolvida em atos ilegais revelados na
Operação Curupira. O fórum teve também como meta a elaboração de propostas
para as políticas de floresta, pantanal e cerrado. Entre os chamados para a discus-
são, predominavam os fazendeiros e madeireiros, trazidos e apoiados pela Famato,
pressionando para que suas propostas fossem aceitas. Nenhuma comunidade in-
dígena, pantaneira, ribeirinha ou quilombola teve representantes nesse fórum.
Apesar da ausência das populações tradicionais no fórum da Sema, a convoca-
ção para o debate por meio dos meios de comunicação já demonstra um avanço do
processo democrático. Embora ainda errando no método, o governo de Mato Grosso
já percebe que a presença da sociedade civil organizada precisa ser considerada.
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5

A partir da atuação da Polícia Federal (PF), as madeireiras no norte do estado


foram interditadas, paralisando a principal atividade econômica da região. Mes-
mo com o protesto dos madeireiros, que apresentaram os números do desemprego
depois da interdição, a PF e o interventor do Instituto Brasileiro do Meio Ambi-
ente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aumentaram o rigor para a
liberação das autorizações de transporte de produtos florestais (ATPFs). Isso, no
entanto, não é suficiente, já que o número de fiscais é pequeno e nem todos os
caminhões carregados de madeira podem ser fiscalizados.
Para suprir a necessidade de mais fiscalização, o Ibama assinou um contrato de
cooperação com a Sema, no qual o órgão estadual assume a responsabilidade de
fiscalizar o estado de Mato Grosso e o federal é responsável pelo trabalho da
Secretaria. Esse contrato foi visto com desconfiança por entidades da sociedade
civil, já que toda a política do governo Maggi é de incentivo à expansão das
monoculturas.

Áreas protegidas e terras indígenas


Na cidade de Canarana, ocorreu, em outubro de 2004, o Encontro das Cabecei-
ras do Xingu, promovido pelo Instituto Socioambiental (ISA), que reuniu diver-
sos atores sociais na busca de consenso sobre temas como a preservação e recupe-
ração de cabeceiras de rios e matas ciliares. Nesse encontro, foi assinado um docu-
mento em que fazendeiros, indígenas e pequenos agricultores se comprometeram
a respeitar as nascentes e afluentes do rio Xingu. Por demanda da sociedade ou
por exigência de mercado, alguns fazendeiros mudam as formas de manejo das
suas lavouras, reduzindo agrotóxicos e respeitando as áreas de preservação perma-
nentes (APPs).
Embora pareça que o discurso desenvolvimentista esteja mudando, ainda exis-
tem pontos de estrangulamento que não permitem que um novo paradigma de
desenvolvimento econômico seja de fato implementado em Mato Grosso.
A incorporação de novas áreas do cerrado mato-grossense à produção extensi-
va de soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e outros cultivares não se detém diante
das cobiçadas terras indígenas, hoje demarcadas e homologadas, mas nem por isso
imunes aos interesses do agronegócio. Cada vez mais cercadas, algumas terras indí-
genas vivem situações de escassez da pesca, da caça e da coleta que, até bem pouco,
era realizada onde hoje estão grandes monoculturas. Até os empregos que alguns
indígenas tinham na implantação das fazendas hoje estão desaparecendo, pois a
sofisticação técnica suprimiu praticamente todos os empregos indígenas.
Existe, no estado, um constante assédio a lideranças indígenas e pequenos agri-
cultores por meio do discurso do agronegócio. Na concepção dos grandes produ-
tores, a integração dos índios e dos agricultores familiares na economia de merca-
do é a única alternativa para a sobrevivência desses povos, nem que, para isso, eles
tenham de abrir mão de suas terras, de modo pacífico ou veladamente violento,
explicitando a mesma das mais diversas formas (simbólica, física e cultural).
Não se confere espaço a iniciativas que reportem a um modelo que considere
os recursos naturais como possibilidade de desenvolvimento econômico e social,
que pensem a produção a partir das populações e do meio ambiente local. O
governador Blairo Maggi, em declaração ao jornal Folha do Estado, em 27 de
maio de 2005, afirmou que “o estado não vai desenvolver catando coquinhos na
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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floresta”, deixando claro o que é de interesse do governo, ou seja, o desprezo pelo


potencial dos recursos naturais que a floresta e o cerrado oferecem.
Em abril, os jornais da capital mato-grossense, em sua maioria, publicaram
uma matéria distribuída pela Secretaria de Comunicação do Estado destacando a
política de incentivo agrícola fomentada pelo governo do estado. O mesmo go-
vernador que, em 2003, pediu a moratória de 24 meses em quaisquer ampliações
e demarcações de terras indígenas no estado apropria-se, agora, de um discurso
que aponta para a inserção dos povos indígenas no modelo do agronegócio. Ao
fazer isso, acredita que essa é melhor forma de contemplar as reivindicações histo-
ricamente feitas por essas populações, conforme trecho da reportagem publicada
pelo jornal Folha do Estado em 27 de maio:
Dando continuidade à política estabelecida de proporcionar
melhores condições de vida aos povos indígenas do estado e tam-
bém de buscar condições pacíficas entre índios e produtores rurais,
o governador Blairo Maggi participou, neste domingo, da colheita
de arroz, realizada na aldeia xavante Areões, a 20 quilômetros do
Município de Água Boa (750 km a Nordeste de Cuiabá).1
Em vez de defender a Constituição Federal, que assegura aos índios “direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, o governo do estado
recorre ao antigo discurso de que há “muita terra para pouco índio” ou que as
terras indígenas são um obstáculo ao desenvolvimento econômico. Além disso,
conduz políticas fundamentadas na integração dos índios ao modelo produtivo
vigente em Mato Grosso, como afirma o ex-superintendente de políticas indíge-
nas do estado, Idevar José Sardinha:
Antigamente, os índios sobreviviam da caça e da pesca. Hoje, isso
não acontece mais. Por isso, é preciso criar condições de
sustentabilidade nas aldeias. A gestão Blairo Maggi implantou um
novo modelo de política indigenista, capacitando os índios e
buscando criar alternativas para que as próprias comunidades
consigam o auto-sustento.

As ações “para a sustentabilidade” nas aldeias também são realizadas por


meio de parcerias do governo, com prefeituras e produtores rurais por meio de
iniciativas como a viabilização da estrutura para o plantio, doação de sementes,
empréstimo de máquinas, colheita, armazenamento, transporte e comercialização
da produção.
O discurso ideológico do agronegócio em Mato Grosso é tão eficaz que os
índios Pareci, mesmo sem o apoio oficial do governo, como tiveram os Xavante,
estabeleceram parcerias com produtores rurais para o plantio de soja em áreas de
cerrado, no interior das terras indígenas, ferindo a legislação federal no que diz
respeito à utilização econômica dessas áreas.

1
Disponível no site da Secretaria de Comunicação Social do governo de Mato Grosso: <http://www.secom.mt.gov.br>.
Acesso em: 24 abr. 2005.
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Na aldeia Bacaval, a associação indígena Waimaré tem a pretensão de plan-


tar mil hectares de arroz, sendo que 500 serão iniciados ainda neste ano. De acor-
do com o coordenador da associação, Arnaldo Zunizakae, o plantio será realiza-
do em parceria com uma empresa que fornecerá os insumos como sementes e
adubo, que serão pagos posteriormente com uma parcela da produção.
Outro exemplo dessa dominação ideológica, desse discurso desenvolvimentista
com grande foco na produção de soja, está na crescente mudança de investimen-
tos feita por pecuaristas de várias regiões do estado, como a região do vale do
Guaporé. Concentrando grandes produtores de gado, o município de Vila Bela da
Santíssima Trindade assiste agora a uma adesão cada vez maior dos pecuaristas ao
plantio de soja em suas áreas, antes ocupadas apenas por bovinos. Já são mais de
10 mil hectares plantados em menos de três anos e a expectativa é de aumento das
áreas plantadas consorciando a atividade com a pecuária.

Mecanismos de depredação
Potencialmente, três agentes promovem uma escala de devastação de áreas que é
responsável pela agonia da floresta e do cerrado. O movimento de expansão de
fronteira agrícola obedece a uma ordem de derrubada das matas pelos madeirei-
ros, com posterior ocupação das áreas desmatadas com pasto para a criação de
gado, preparando o solo para a etapa que fecha o ciclo, o plantio de soja.
De acordo com dados do governo federal em 2003, houve redução do
desmatamento de 28% para 2%, o que, em Mato Grosso, não ocorreu. Nem
mesmo o Plano de Preservação e Controle do Desmatamento da Amazônia, cria-
do em 2004 e contando com a participação de 13 ministérios, não produziu
efeitos positivos no estado.
A ausência de uma política pública ambiental em Mato Grosso reflete-se nos
números levantados, nos quais quase a metade (48,1%) do total desmatado na
Amazônia Legal ocorreu no estado. Dos 12.576 quilômetros quadrados
desmatados em Mato Grosso, apenas 4.176 quilômetros quadrados tiveram
desmatamento realizado de forma legal.
O avanço da devastação foi tão intenso que mais de 70% da destruição flores-
tal ocorreu entre maio e julho de 2004, na atual gestão do governador Blairo
Maggi. A cidade de Aripuanã (MT), foi a campeã de devastação: 346,51 hectares.
Em seguida, Novo Progresso (PA), com 311,42 hectares de floresta destruída, e
Altamira (PA), com a perda de 290,6 hectares.
Os índices atuais são superiores à média anual ocorrida durante a ditadura militar,
ficando abaixo apenas do pico ocorrido durante o primeiro ano do Plano Real, no
governo Fernando Henrique Cardoso, com 29 mil quilômetros quadrados desmatados.
A exemplo do que aconteceu no período militar, novamente os holofotes do
mundo se voltam para o Brasil, especialmente para Mato Grosso. O diário britâ-
nico The Independent publicou reportagem de capa intitulada: “O estupro da
floresta...e o homem por trás disso”.
Segundo o jornal, Maggi, é “um fazendeiro milionário e um político sem com-
promissos que preside o boom da produção de soja brasileira”. O governador rece-
beu outro título: Rei do Desflorestamento. O jornal afirma que a explosão da soja,
alimentando um mercado mundial aparentemente insaciável por grãos usados na
ração para gado, é o principal motor da destruição da floresta.
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Em 31 de maio de 2005, o jornal norte-americano The New York Times dedicou


seu editorial à degradação da Amazônia. Nele, defendia o argumento de que não se
pode transformar a floresta em ração para gado. Observa que um dos principais
problemas é o cultivo da soja, facilitado pelo governador de Mato Grosso e “rei da
soja”. Blairo Maggi, que é o maior produtor individual de soja do mundo, afirma
que só desmata dentro do que a lei permite e que continuará desmatando dentro
desse limite. Diz também que a culpa não é dele, pois suas áreas de plantio ficam no
cerrado, e não na floresta amazônica, como se isso fosse justificativa.
Nessa balança, desequilibrada, entre desenvolvimento e preservação ambiental,
o estado tenta manter um crescimento anual de 8% a 10%, e para tanto tem no
agronegócio o seu mecanismo, encontrando nas exportações a sua rentabilidade
maior. Mas esse crescimento tem sido alcançado mediante o sacrifício do meio
ambiente, em nome da exportação de grãos e madeira, enquanto a floresta e o
cerrado estão se transformando em um mosaico de plantações.
Esse sistema de destruição do meio ambiente gerou índices alarmantes em ter-
mos de desmatamento no estado, o que acabou desencadeando, em 2 de junho de
2005, na deflagração da Operação Curupira, conduzida pelos Ministérios Públi-
cos Federal e Estadual e pela Polícia Federal, que desmantelou um esquema de
corrupção no Ibama e na Fema.
Para chegar aos responsáveis pelo desmatamento no estado, durante nove meses
foram feitas inúmeras investigações nas quais foi desbaratada a quadrilha formada
por servidores públicos, empresários do ramo madeireiro, contadores e despachan-
tes. O esquema, segundo a Polícia Federal, envolveu cerca de 600 madeireiras.
Os servidores acusados vendiam guias em branco de ATPFs, por cerca de R$ 1
mil, para despachantes que criavam empresas-fantasma. As ATPFs são documentos
que comprovam a origem legal da madeira, ou seja, se ela vem de um desmatamento
autorizado. Dessa forma, o documento servia para encobrir toras retiradas ilegal-
mente de fazendas e terras indígenas. O documento é expedido pelo Ibama para as
empresas em situação regular que possuem planos de manejo florestal.
A quadrilha há 14 anos extraía madeira ilegalmente em Mato Grosso. A ação
contra quadrilha que praticava crimes ambientais ocorreu em 16 municípios de
Mato Grosso, no Distrito Federal e em mais seis estados. Os cálculos para recupe-
rar a área devastada pela “máfia da madeira”, apontam o montante de R$ 108
milhões. A quadrilha teria desmatado 43 mil hectares (equivalente a 52 mil cam-
pos de futebol) na Amazônia para retirar, ilegalmente, 1,9 milhão de metros cúbi-
cos de madeira.
O interventor do Ibama, Elielson Ayres de Souza, que conduziu os levanta-
mentos nos nove meses que antecederam a operação afirmou que, até agora, ape-
nas a responsabilidade dos madeireiros e pessoas ligadas diretamente a essa cadeia
de devastação foi apurada. O foco das investigações será voltado posteriormente
para o levantamento dos 20 maiores desmatadores de Mato Grosso.
O governo de Mato Grosso vem argumentando na imprensa que está preo-
cupado com a devastação ambiental. Subitamente, resolveu intervir na economia
do estado por meio da redução da alíquota do Imposto sobre Circulação de Mer-
cadoria e Serviços (ICMS) para venda do “boi em pé” de 12% para 3%. Segundo
o governador Blairo Maggi, Mato Grosso detém o maior rebanho bovino nacio-
nal, com 26 milhões de cabeças, mas a capacidade de abate é de 4 milhões. Por
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isso, o boi precisa ganhar incentivo para ser abatido fora do estado. Os donos de
frigoríficos de Mato Grosso estão revoltados com a medida. Porém, o que mais
chama a atenção, pelo ponto de vista deste texto, é o argumento do governador.
Baseado em números levantados pelo Instituto de Defesa Agropecuária do Esta-
do de Mato Grosso (Indea), que indicam um crescimento da pecuária superior a
10% ao ano, o aumento do desmatamento para abrigar novas pastagens ultrapas-
sará, nos próximos três anos, áreas superiores a 1,1 milhão de hectares ao ano,
atingindo, no período, um índice de 3,4 milhões de hectares. Para o governador,
esse aumento no desmatamento se mostra totalmente inviável para o estado, fazen-
do crer que a decisão de baixar a alíquota não é fruto de pressão do mercado, nem
que visa aumentar o número de cabeças abatidas (mesmo que fora do estado) e,
conseqüentemente, a arrecadação, e sim que é para preservar o meio ambiente.
Mas será que, quando os empresários resolverem investir em novos frigoríficos
para abater o gado dentro do estado – e, como em razão da redução da alíquota,
já de início a capacidade de abate fora do estado vai aumentar –, não se pode
deduzir que a produção de 26 milhões de cabeças tenderá a aumentar em poucos
anos? A medida provisória que estabelece a diminuição da alíquota ainda não foi
votada na Assembléia Legislativa do estado.

Perspectivas
Como resultado imediato da Operação Curupira, quando a máfia da madeira foi
pretensamente desarticulada, o governador Blairo Maggi determinou a extinção da
Fema e criou, em seu lugar, a Sema, na qual se deposita a expectativa da criação de
uma política ambiental de fato, o que até hoje não se viu no estado. Para assumir a
nova secretaria, foi remanejado o secretário de Saúde, Marcos Machado.
Machado é promotor de Justiça e teve passagens por duas secretarias do estado,
uma delas na gestão Dante de Oliveira (PSDB), tendo permanecido após a eleição
do novo governo, de oposição. Considerado um “coringa”, tem boa reputação
entre a opinião pública por ter identificado e combatido a corrupção dentro das
instituições em que atuou. Acredita-se, agora, que o conflito de interpretação entre
legislação federal e legislação estadual, no que diz respeito ao índice de desmatamento
numa suposta zona de transição entre floresta e cerrado, tenha seu fim.
O “conflito” de leis, na verdade, ao longo do tempo não passa de um conflito
de interesses, em que oportunamente são buscadas as lacunas da lei para alicerçar
os desmatamentos na legislação estadual. Essa estratégia abriu precedente para
que situações problematizadas gerassem desmatamentos autorizados – e, quando
não são autorizados, os agentes da devastação acabam recorrendo a meios ilegais.

O agronegócio na economia de Mato Grosso


Segundo dados do governo federal num balanço de 2004, 608 mil postos de
trabalho foram abertos na indústria, 308 mil no comércio, 488 mil na área de
serviços e apenas 250 mil na agricultura. Basicamente, constrói-se um mito de que
o agronegócio é a atividade mais importante do estado, desviando a atenção para
a discussão da diversificação da atividade econômica, do impacto social e ambiental
decorrente dessa atividade.
O agronegócio é importante, mas não é a base da arrecadação de Mato Gros-
so. Outras atividades, como o comércio, sempre foram atividades importantes:
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55% da arrecadação do estado é oriunda do comércio e de serviços, somados à


indústria, concentrando a atividade urbana, chega-se a 70%.
Além dessas novas modalidades, nota-se uma incorporação de temáticas como
desenvolvimento sustentável, agenda positiva, preservação ambiental e respeito à
legislação específica. O presidente da Famato, Homero Pereira, comunica: “Se
temos problemas ambientais, temos que debater e superar. A questão do trabalho
escravo vamos chamar para nós. Não somos escravistas, e os produtores têm que
pautar o assunto, trazer para nossa agenda”. Ele completa, afirmando que a ins-
tituição e os produtores devem tomar para si esses desafios.
Cabe ressaltar que os recentes episódios envolvendo o estado provocaram uma
reação do governo estadual. A realização do 1o Seminário de Desenvolvimento
Sustentável, com a presença de diversos secretários do estado, do governador Blairo
Maggi e da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, indica que o tema desen-
volvimento e preservação ambiental passou a fazer parte da agenda pública.
Porém, não se pode dizer que iniciativas práticas tenham se materializado
em termos de políticas públicas direcionadas para uma outra concepção de desen-
volvimento. Como exemplo, podemos citar o zoneamento econômico-ecológico
do estado, que ainda aguarda para entrar na pauta de votações da Assembléia
Legislativa do Estado, assim como ainda continuam indefinidas as políticas para
os povos indígenas e até mesmo as linhas de ação da recém-criada Secretaria Esta-
dual de Meio Ambiente de Mato Groso.
Em relação à participação da sociedade civil no estado, percebe-se uma certa
frustração em relação às expectativas geradas pelos processos de consulta popular
do governo federal, sobretudo nas propostas apresentadas no Plano Plurianual
(PPA) de 2004–2007 e na Conferência do Meio ambiente realizada no estado. As
entrevistas realizadas no âmbito do projeto Mapas, em 2004, evidenciaram o
temor dos diversos atores sociais de que esses espaços de participação abertos à
sociedade se tornassem apenas instrumento de legitimação de políticas já previa-
mente elaboradas, não se distinguindo, então, de práticas de governos anteriores
no que diz respeito à construção de políticas públicas no país. Esse temor, para a
grande maioria dos atores entrevistados à época, tornou-se realidade em uma
nova consulta realizada em julho de 2005.
No campo de disputa do modelo de desenvolvimento e da política econômica,
prevaleceu a lógica dos mercados, do apoio à agricultura pautada na concentra-
ção da propriedade em grandes unidades de produção, incentivando os pequenos
proprietários a venderem suas terras e a especulação de terras em novas frentes, em
especial na Amazônia Brasileira. Toda e qualquer iniciativa fora desse contexto
parece não fazer frente às escolhas tomadas no sentido de expandir e consolidar a
posição do estado no mercado exportador de grãos, mesmo que, para isso, a
equação desenvolvimento versus preservação não seja adequadamente realizada,
levando a reboque as demandas históricas de movimentos e grupos sociais como
sindicatos, ONGs e outros movimentos populares.
Os movimentos sociais têm acionado o Ministério do Meio Ambiente, que
tem financiado projetos, por meio de organizações sociais, de incentivo à agri-
cultura familiar e à agroecologia. Uma das propostas do MMA é a criação de
um grupo de trabalho interministerial que dialogue com a sociedade civil e os
movimentos sociais para propor programas e projetos que possam ser apoiados
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11

por políticas públicas, apoiando a agricultura ecológica, que é tradicionalmente


praticada por muitos dos pequenos agricultores sem sequer conhecerem o con-
ceito de ecologia.
O Projeto de Mobilização e Capacitação para a Prevenção de Incêndios Flores-
tais na Amazônia, conhecido como Proteger, é uma iniciativa do Grupo de Traba-
lho Amazônico (GTA) e do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhado-
ras Rurais (MSTR). O Proteger capacita pequenos agricultores e assentados a pre-
servar as Áreas de proteção permanente (APPs) e desenvolver processos produtivos
harmônicos com o meio ambiente, aproveitando os potenciais dos produtos da
floresta. O programa é coordenado pela Secretaria de Coordenação da Amazônia
do Ministério do Meio Ambiente.
Existem entidades e uma parcela do governo federal na busca de alternativas ao
modelo concentrador do agronegócio. Na agricultura familiar e agroecológica, ne-
cessita-se de mais mão-de-obra. E, a partir da capacitação dos agricultores e técni-
cos, é possível superar os rendimentos por hectare da soja, do milho ou do algodão.
A participação de instituições públicas e privadas, além da sociedade, é neces-
sária, pois as questões ambientais estão presentes em temas tão diversos quanto
infra-estrutura, energia, mineração, agricultura, saneamento e biotecnologia. Mas
a tentativa do governo federal de implementar uma política ambiental tem sido
frustrada. Apesar de o governo federal, por meio do Instituto de Pesquisas Espa-
ciais (Inpe) ter investido em monitoramento por satélite, gerando imagens digitais
em tempo real para o Ibama, ainda assim o sistema de fiscalização não impediu os
altos níveis de desmatamento em Mato Grosso e em toda a região amazônica.
A proposta do governo federal é manter canais de diálogo abertos à sociedade
para orientar as linhas de desenvolvimento estratégico do país na busca de propo-
sições e sugestões para a elaboração da agenda nacional de desenvolvimento, que
precisa ser materializada. Os diversos atores da sociedade civil, que deveriam ser
os geradores de políticas mais aproximadas às suas realidades, não estão sendo os
agentes determinantes desse processo.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Lutas em Porto Alegre:
entre a revolução política e o transformismo
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LUTAS EM PORTO ALEGRE: ENTRE A REVOLUÇÃO POLÍTICA E O TRANSFORMISMO

Sérgio Baierle
Cientista político, integrante da coordenação
do Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos

Na política de massa, dizer a verdade é uma necessidade política.


Gramsci

Existem duas formas de reagir à relativamente pequena relevância que a partici-


pação popular acabou obtendo no governo Lula. A primeira consiste na crítica
aos limites internos ao governo, às posições políticas que se cristalizaram como
eixos dominantes de atuação e impedem que os poucos espaços de participação
existentes operem agendas de mobilização social em larga escala. A segunda pro-
cura reconstruir a acumulação de limites a partir dos próprios avanços dos proces-
sos participativos em nível local, estadual e nacional. Para ambas as formas, é
possível ter um olhar de governo e outro a partir da sociedade civil e dos movi-
mentos sociais, assim como é possível ter um olhar conservador, que busca
desconstituir a possibilidade da participação popular, e outro, progressista ou ra-
dical, que vê na participação uma forma de controle do governo pela cidadania e/
ou um caminho para a emancipação social. É desta última perspectiva que pre-
tendo partir neste texto.
Em Porto Alegre, o tema da habitação comemora, nas assembléias do orça-
mento participativo (OP) de 2005, o pentacampeonato como principal demanda
da cidade. A recorrência do tema e a complexa institucionalidade desenvolvida na
cidade para promover a melhoria das condições de vida da população justificam
que se utilize esse exemplo como modelo para pensar as condições em que a par-
ticipação das classes populares na gestão dessa política específica pode ocorrer.

Três primeiras prioridades do OP em Porto Alegre (1992–2006)

TEMAS ANO-EXERCÍCIO DE EXECUÇÃO DAS PRIORIDADES

2006 2005 2004 2003 2002 2001 2000 1999 1998 1997 1996 1995 1994 1993 1992

Saneamento 3 1 3 3 2 3 3 1 1

Habitação 1 1 1 1 1 2 1 3 2 1 3 2 1 3

Pavimentação 3 3 3 1 2 2 1 2 1 1 2 2 3

Educação 2 2 3 2 2 2

Saúde 3 3

Assistencia Social 2

Fonte: Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos (www.ongcidade.org).


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3

Recentemente, o Ministério das Cidades anunciou duas iniciativas que prome-


tem mobilizar centenas de municípios brasileiros. São elas:

A) a necessidade de revisão dos planos diretores para municípios com mais de 50


mil habitantes, visando a sua adequação ao Estatuto da Cidade. Segundo in-
formação disponível no site do Ministério:
Os novos marcos do planejamento são a inclusão e a participação, o plane-
jamento passa a ser inclusivo, pois deve incidir sobre todos os segmentos da
sociedade trazendo justiça social, efetivando direitos e superando o simples
estabelecimento de parâmetros; e ele é participativo porque pressupõe o
envolvimento dos diferentes grupos sociais na construção das políticas, pro-
duzindo pactos compartilhados entre o Estado e os segmentos da sociedade
que comparecem para essa construção, principalmente os setores populares,
que, pela primeira vez, têm poder de decisão sobre os rumos das políticas de
planejamento no país;
B) o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), iniciativa popu-
lar que tramitava há 13 anos no Congresso Nacional, foi aprovado pelo Sena-
do no dia 24 de maio de 2005. Segundo informação do site do Ministério:
O principal objetivo do Fundo é somar e articular todos os recursos para
ações em habitação nos três níveis de governo – federal, estaduais e munici-
pais – e direcioná-los para atender as famílias de baixa renda, prevendo
também um Conselho Gestor para o Fundo e a instituição de um Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS.

Ambas as iniciativas trabalham a partir da hipótese de uma sinergia entre os


vários níveis de governo, a iniciativa privada e os movimentos sociais e as entidades
a eles ligadas para a produção de um desenvolvimento urbano capaz de integrar a
população de baixa renda e melhorar a qualidade de vida nas cidades. Se na área
rural, a esquizofrenia entre integração social e desenvolvimento econômico se re-
produz até mesmo em nível ministerial, na área urbana, ao menos discursivamente,
existe a busca de um consenso, um pacto, para transformar as carências da popula-
ção de baixa renda em demanda solvente, via doses adequadas de subsídio governa-
mental (recursos financeiros, marco regulatório e oferta de terras). Embora a versão
final do Fundo de Moradia Popular não incorpore o volume e as fontes de recursos
que se julgavam possíveis, existe a idéia de que ele possa ter um impacto social
relevante se devidamente combinado com os novos instrumentos de planejamento
urbano previstos no Estatuto da Cidade. Nesse sentido, a defesa de planos diretores
participativos em todos os estados tem um papel estratégico fundamental.
Por trás desse esforço do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades,
existe uma grande questão: até que ponto é possível combinar interesses privados
e públicos na produção de soluções sociais tendo como marco regulatório o Esta-
tuto da Cidade e, por base técnica, a atual estrutura de planejamento das médias
e grandes cidades? Até que ponto podem ser combináveis as relevantes intenções
sociais que presidem a gestão do Ministério das Cidades com o planejamento
urbano realmente existente, as empreiteiras de obras e incorporadoras imobiliári-
as que de fato existem em nossas cidades e, não menos importantes, as práticas
efetivas dos movimentos de luta pela moradia?
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4

Para responder a essa questão, acreditamos que Porto Alegre, hoje, se configu-
ra como um caso duplamente exemplar. Primeiro, porque é possivelmente a cida-
de brasileira que mais avançou no estabelecimento de um marco regulatório den-
tro dos parâmetros que se consolidaram no Estatuto da Cidade, tendo avançado
também na estruturação de uma base tecnológica sofisticada em termos de recur-
sos técnicos (mapeamento aerofotogramétrico digitalizado e pesquisas atualizadas
sobre as condições de ocupação na cidade, por exemplo). Segundo, porque, após
16 anos de construção de parâmetros públicos progressistas para a gestão estraté-
gica da cidade, Porto Alegre é administrada, hoje, por um governo de setores que,
durante anos, se opuseram a essa construção coletiva.
Assim, Porto Alegre permite, no presente, verificar até que ponto é possível
articular uma sinergia progressista a partir de uma base técnico-regulatória pro-
gressista, ao amparo de incentivos federais no mesmo sentido, mas no âmbito de
um governo local ambivalente, que precisa dos recursos federais para levar adian-
te suas promessas sociais (“regularização fundiária para todos!”), mas que tem
compromissos “genéticos” com as grandes incorporadoras e empreiteiras da cida-
de. Serão os movimentos sociais locais e a institucionalidade construída capazes
de fazer frente contra o retorno desses interesses tradicionais ao governo da cida-
de? Constituem os instrumentos legais previstos no Estatuto da Cidade ferramen-
tas inequívocas de transformação social no âmbito do urbano? Qual a qualidade
do diálogo que se estabelece entre os distintos atores nas arenas de discussão exis-
tentes na cidade (Conselho do Orçamento Participativo, Conselho Municipal de
Acesso à Terra e Habitação e Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e
Ambiental)? E, para além dessas arenas, como fica o diálogo entre os diferentes
níveis de governo, municipal, estadual e federal a partir das propostas que vêm do
governo federal?

1. A experiência de Porto Alegre

O mito da ordem
Para visitantes desavisados, parece que o império da ordem se impõe universal-
mente em Porto Alegre. Um eficiente serviço de limpeza urbana, muitas árvores,
ruas pavimentadas, bom transporte coletivo, semelhante a uma cidade européia.
Aliás, de Júlio de Castilhos a Vargas, de Geisel a Tarso Genro, os gaúchos vendem
ao Brasil a utopia de um capitalismo regulado pelo Estado, em versão oligárquica,
populista, militar ou “não-estatal”.
Muitos pesquisadores e pesquisadoras que vêm à cidade conhecer a experiência
de orçamento participativo perguntam: onde estão os pobres? Cadê as favelas? A
maioria aqui é mesmo de brancos? De fato, para os padrões brasileiros, o número
de pobres é relativamente pequeno em Porto Alegre, cerca de 30% da população,
espremidos em menos de 10% do território (onde dorme a cidadania informal).
Mesmo assim, são poucos os guetos de extrema pobreza. A maioria das situações
de pobreza se mistura e se confunde com o tecido urbano formal. Mas os pobres,
entretanto, continuam pobres. Os negros continuam sendo três quintos dos revis-
tados em batidas policiais (embora representem menos de um quinto da popula-
ção da cidade), o desemprego entre as mulheres na Região Metropolitana de Por-
to Alegre é 1,5 maior que o dos homens (18,6% contra 12%) e entre jovens de 16
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

e 24 anos chega a 30%.1 Eles estão lá, mas numa condição inédita de igualdade
em termos de acesso às infra-estruturas urbanas. Não há como comparar, por
exemplo, as ocupações urbanas na África do Sul, onde o acesso às redes de água e
eletricidade é inexistente, com as ocupações recentes em Porto Alegre, onde proli-
feram os “gatos” (ligações clandestinas) e a integração aos demais serviços urba-
nos (coleta de lixo, transporte público, escolas, projetos comunitários etc.).
Os setores comunitários desta cidade promoveram, de certa forma, uma revo-
lução política nas últimas duas décadas (por revolução política entende-se, neste
texto, uma radical mudança no lugar das classes populares na gestão pública da
cidade). Isso se percebe tanto na interação sociopolítica participativa como no
próprio âmbito físico-territorial. Das 284.922 pessoas vivendo em áreas infor-
mais (22,1% da população da cidade em 1996), metade foi coberta pelo Progra-
ma de Regularização Fundiária (PRF) da Prefeitura,2 que atingiu 36.650 famílias
em 2004. O fato de tais famílias estarem incluídas no PRF não quer dizer que
todas essas áreas já tenham sido regularizadas e urbanizadas, mas significa uma
garantia de permanência e de acesso a serviços básicos. Igualmente, o fato de
metade dos assentamentos irregulares não estar no programa não significa exclu-
são de serviços, mas uma situação de maior risco legal de remoção forçada.

Redução de necessidades básicas em Porto Alegre

CARÊNCIA/INDICADOR 1988 2003

Economias sem acesso à rede de água 5,3% 0,5%

Vias urbanas sem pavimentação 690 km 390 km

Economias sem acesso à rede de esgoto 54% 16%

Volume de esgoto lançado no Lago Guaíba sem tratamento 98% 73%

Economias sem acesso à coleta de lixo 15% 0%

Analfabetismo 5,6%. 3,3%

Assentamentos irregulares 25,8% 18,4% (2001)

Mortalidade infantil 18,6% (1992) 13,9% (2002)

Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2004.

Quando se compara, entretanto, os resultados de Porto Alegre com os de ou-


tras capitais brasileiras, como na tabela seguinte, com indicadores organizados
pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), com base
em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), verificamos
que também outras cidades apresentam situação habitacional semelhante ou mes-
mo melhor, como é o caso de Vitória, Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo.
Embora Porto Alegre, diferentemente dessas cidades, disponha, desde meados da
década de 1990, de uma legislação urbana mais compatível com as possibilidades

1
Conforme dados da Fundação de Economia e Estatística (FEE), cujo site é <www.fee.tche.br>.
2
Dados fornecidos pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab) da Prefeitura de Porto Alegre.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6

que vieram a ser inscritas no Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001), devemos
admitir que os mesmos resultados podem ser obtidos por diferentes meios e que
não necessariamente foram os novos instrumentos urbanísticos que produziram
aqueles resultados. Por exemplo, nos últimos anos, enquanto Porto Alegre produ-
zia uma média de mil unidades/ano (entre lotes urbanizados e casas/apartamen-
tos), Curitiba produzia cerca de 2 mil unidades/ano.

Índice de Desenvolvimento Humano – idh (2000) e necessidades habitacionais por adensamento


e infra-estrutura e índice de carência habitacional entre capitais brasileiras (2000)

CAPITAL IDH NECESSIDADES HABITACINAIS

POR POR INFRA- DÉFICIT HABITACIONAL ÍNDICE DE CARÊNCIA


ADENSAMENTO ESTRUTURA Unidades % HABITACIONAL (ICH)

Porto Alegre 0,865 5% 10% 26.340 6 0,966

Vitória 0,856 5% 5% 6.067 7 0,990

Curitiba 0,856 4% 9% 25.147 5 0,973

Brasília 0,844 7% 16% 62.904 11 0,932

São Paulo 0,841 11% 11% 173.388 6 0,964

Belo Horizonte 0,839 6% 9% 47.997 8 0,973

Belém 0,806 18% 31% 62.432 21 0,852

Salvador 0,805 11% 40% 70.173 11 0,918

Recife 0,797 9% 44% 47.327 13 0,835

Manaus 0,774 21% 38% 53.656 16 0,791

Fontes: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal para o ano 2000, utilizado como indexador da
tabela (Pnud/Ipea/FJP, Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2003), e
http://www.ippur.ufrj.br/observatorio/mapastematicos.htm

Obs.: Os indicadores do Ippur têm por base os dados do Censo IBGE 2000. Os percentuais de adensamento,
infra-estrutura e déficit têm por referência o total de unidades existentes em cada cidade. Para caracterizar as
habitações com adensamento excessivo, foi considerada a densidade de moradores por domicílio urbano. Tomou-
se como suportável o limite de até três moradores por dormitório, nas casas e apartamentos urbanos. Os problemas
de acesso à infra-estrutura, por sua vez, podem ser de carência de alguma de suas modalidades (iluminação,
abastecimento de água, instalação sanitária ou destino do lixo), ou relacionado a algum tipo de deficiência no
acesso, ou seja, aquelas que têm infra-estrutura mínima, porém de forma deficiente. Já o ICH é um índice que tenta
dar alguma noção sobre a oferta de serviços elementares de saneamento básico. As variáveis que tratam da oferta
dos serviços de infra-estrutura básica oferecidos nos domicílios se resumem a: tipo de abastecimento de água nos
domicílios particulares permanentes, presença de banheiro ou sanitário nos domicílios particulares permanentes e o
tipo de escoadouro disponível e, por fim, o destino do lixo dos domicílios particulares permanentes. Quanto mais
próximo de 1 estiver o índice, menor será a carência habitacional e vice-versa.

A pergunta pertinente, portanto, é sobre a qualidade dos resultados. Qual o


diferencial de sentido desse aparente sucesso em Porto Alegre? Significa, por exem-
plo, a retirada dessas áreas do mercado imobiliário e sua subordinação a uma
outra lógica, a da necessidade social regulada por parâmetros públicos? Como
90% das áreas informalmente ocupadas são áreas públicas,3 o instrumento apli-
cado a elas na maior parte dos processos de regularização fundiária é a Concessão
do Direito Real de Uso (CDRU) ou a do Direito de Uso simplesmente (CDU), que

3
Idem.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

mantêm a propriedade em nome do poder público, transferindo aos ocupantes e


seus descendentes o direito de uso enquanto efetivamente na posse da proprieda-
de, mediante o pagamento de um “arrendamento” mensal, cujo valor é pratica-
mente simbólico, variando entre R$ 8 e R$ 15, conforme a renda familiar. Como
forma de baratear o custo da moradia, o CDU também vinha sendo aplicado às
novas unidades habitacionais produzidas pelo Departamento Municipal de Ha-
bitação (Demhab): foram 4.231 concessões entre 1995 e 2003, para um total de
9.244 unidades habitacionais novas produzidas pelo órgão nesse período.

Matrizes históricas da cidadania em Porto Alegre


O objetivo, neste texto, não é fazer uma longa exposição histórica – o que, aliás,
já foi feito4 –, mas situar algumas características principais que informam os pro-
cessos participativos atualmente vivenciados na cidade. Nesse sentido, importa
mostrar o lugar atribuído/conquistado pelas classes populares nas diferentes pers-
pectivas políticas que governaram Porto Alegre.
A) POSITIVISMO AUTORITÁRIO
A tradição mais forte é a do positivismo autoritário que chegou ao poder no
fim do século XIX com Júlio de Castilhos e, posteriormente, se consolidou com
Borges de Medeiros. Essa perspectiva afirma o papel iluminista a ser desempenha-
do pelo Estado como instrumento de modernização social. De 1897 a 1937, ou
seja, por 40 anos, Porto Alegre foi governada pelo Partido Republicano Rio-
grandense (PRR). É curioso notar que, apesar de as eleições serem absolutamente
fraudadas durante praticamente todo esse período, o PRR manteve a fama de
governar “honestamente”.5 Em 1939, a partir dos estudos técnicos do urbanista
Arnaldo Gladosch, foi instalado um conselho de planejamento, mas não era para
que a sociedade participasse, e sim para que um colegiado técnico pudesse chegar
às melhores conclusões para o desenvolvimento capitalista da cidade. Na época,
isso ocorria sobretudo por meio da abertura de grandes avenidas, como foi o caso

4
Vide Baierle (1992). Um novo princípio ético-político: prática social e sujeito nos movimentos populares urbanos em Porto
Alegre nos anos 80, Campinas, Tese de Mestrado em Ciência Política – UNICAMP <http://www.democraciaparticipativa.org/
Arquivos/SergioBaierle.pdf>.
5
Com a República, foi criada a função de intendente, cargo que, no início, era de nomeação pelo presidente do Estado
e depois por votação “popular” (poucos eram os eleitores aptos a votar, o voto era a descoberto, não havia justiça
eleitoral, as fraudes eram freqüentes, o que só começou a mudar de fato após o fim do Estado Novo, em 1945). O primeiro
intendente eleito de Porto Alegre foi José Montaury, em 1897. Galeria de prefeitos de Porto Alegre: Alfredo Azevedo,
nomeado (1892k–1896); Luís Farias dos Santos, nomeado (1896 –1896); Cherubin Febeliano da Costa, nomeado (1896–
1897); José Montaury – PRR, eleito (1897–1924); Otávio Rocha – PRR, eleito (1824–1828); Alberto Bins – PRR, eleito
e depois nomeado (1928–1937); Loureiro da Silva, nomeado (1937–1943); Brochado da Rocha – PTB, nomeado (1943–
1945); Clóvis Pestana, nomeado (1945); Ivo Wolf, nomeado (1945–1946); Egídio Costa, nomeado (1946); Conrado Riegel
Ferrari, nomeado (1946–1947); Gabriel Pedro Moacir, nomeado (1947–1948); Ildo Meneghetti – PSD, nomeado (1948–
1951); Elyseu Paglioli, nomeado (1951); José Antônio Aranha, presidente da Câmara (1951–1952); Ildo Meneghetti –
PSD, eleito em 1951, nas primeiras eleições para prefeito após o fim do Estado Novo (1952–1954); Ludolpho Boehl,
presidente da Câmara (1954–1954); Manoel Osório da Rosa, presidente da Câmara (1954–1955); Manoel Vargas, vice
(1955–1955); Marin Aranha, presidente da Câmara (1955–1956); Leonel Brizola – PTB, eleito (1956–1958); Tristão
Sucupira Viana (1958–1960), vice; Loureiro da Silva – PDC (1960–1963); Sereno Chaise – PTB, eleito (1964–1964),
cassado quatro meses após assumir; Célio Marques Fernandes – Arena, presidente da Câmara (1964–1969), com
pequeno intervalo em 1965, quando exerceu, como presidente da Câmara, Renato Souza; Thompson Flores – Arena,
nomeado (1969–1975), autor da frase: “Se querem mais verde, vamos pintar os viadutos de verde”; Guilherme Sócias
Villela – Arena, nomeado (1975–1983); João Antônio Dib – PDS, nomeado (1983–1986); Alceu Collares – PDT, eleito
(1986–1988), primeiro prefeito eleito após o fim da ditadura militar; Olívio Dutra – PT, eleito (1989–1992); Tarso Genro
– PT, eleito (1993–1996); Raul Pont – PT, eleito (1997–2000); Tarso Genro – PT, eleito (2001–2002); João Verle – PT
(2002–2004), vice; José Fogaça – PPS, eleito (2005, mandato até 2008).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
8

da Avenida Farrapos. Para esse Estado modernizador, higienizador e racista (vide


a política de remoções forçadas na área central da cidade), entretanto, havia um
lugar para as classes populares na construção do progresso material: o papel su-
balterno de operários e técnicos profissionais. Não é por acaso, por exemplo, que,
ligados à Escola de Engenharia, seriam criados vários institutos de ensino técnico
e profissionalizante e que se daria progressivamente ênfase ao investimento na
educação das classes trabalhadoras.
O quadro abaixo oferece uma breve idéia da evolução da legislação urbanísti-
ca em Porto Alegre. Embora as palavras “plano” e “planejamento” sejam utiliza-
das, elas se referem basicamente a práticas limitadas a propostas viárias e de
zoneamento. Mesmo o plano de 1999, que procurou incorporar aspectos mais
amplos e ambiciosos (culturais, ambientais, territoriais e econômicos), procuran-
do dar conta também das necessidades de desenvolvimento local e de inclusão
social, acabou esbarrando em problemas operativos, como será salientado neste
texto. Tem-se a impressão de que as diversas condicionantes que informaram o
plano (regulação urbanística, participação popular, planejamento estratégico) fo-
ram simplesmente justapostas, mas não integradas de fato, prevalecendo, na prá-
tica, o tratamento burocrático urbanístico tradicional.

Evolução da legislação urbanística em Porto Alegre

ANO PLANO CARACTERÍSTICAS

1914 Plano Geral de Plano basicamente viário exigindo a abertura de vias de acesso para desafogar o trânsito
Melhoramentos (avenidas Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos), de inspiração hausmanniana (trânsito,
beleza e higiene). No ano anterior, fora aprovado o Regulamento Geral de Construções
(proibia prédios de madeira na área central, concedendo isenção de imposto predial para
quem passasse a construir em alvenaria), incentivando a verticalização e atendendo aos
“superiores interesses da higiene e saúde pública” (orientação para obras de saneamento
básico combinadas com demolição de cortiços, porões e becos na área central, cujos
moradores eram acossados pela “Comissão Sanitária”).

1927 Decreto nº 180 Estabelece o imposto predial diferenciado sobre imóveis conforme localização (centro,
periferia), densidade (número de pavimentos) e tipologia (cortiços/porões, madeira, mistos),
incidindo também sobre os vazios urbanos (com altas taxas na área central, com o objetivo
expresso de combater a especulação imobiliária). Na prática, o decreto integrava o esforço do
intendente Otávio Rocha para ampliar a arrecadação local (incluindo sobretaxa de 20% nos
tributos locais) para enfrentar o crescente endividamento da cidade.

1937 Linhas Gerais do Plano basicamente viário com o desenho de um corredor de acesso à cidade (Avenida
Plano Diretor Farrapos) e a previsão de um túnel sob a Avenida Independência (Viaduto da Conceição,
construído 40 anos depois). O plano coincide com o fechamento da Câmara de Vereadores
em 1937 e sua substituição por um Conselho Técnico de Administração. Com o fechamento
da Câmara e o clima ditatorial, as desapropriações para fins urbanos ficavam facilitadas, o que
permitiu concluir as obras da Borges de Medeiros e Salgado Filho.

1938 Plano Gladosch Plano ainda basicamente viário, mas que já incorporava uma visão da cidade como um todo, de
inspiração funcionalista (cidade como rede de homens, máquinas, mercadorias e serviços que precisa
ser regulada), tendo como exemplo o trabalho de Agache no Rio de Janeiro (escola francesa),
apontava para a necessidade de zoneamento (áreas verdes, industriais etc.) e também incentivava a
verticalização, atendendo ao desejo de modernização das elites, que implicava apagar o passado
colonial e construir uma nova identidade. Em 1939, foi criado o Conselho do Plano Diretor.

1959 Plano Diretor de Entrou em vigor em 1961. Plano geral de desenvolvimento urbano, de caráter modernista, regula-
Porto Alegre mentava a superfície mais habitada da cidade a partir de quatro funções: habitação, trabalho, lazer
e circulação. Estabelecia padrões uniformes para os loteamentos (igualdade = padronização).

1979 I Plano Diretor Este plano consolidava todo um conjunto de normas já existentes e atingia toda a área do
de Desenvolvi- município (divisão urbano/rural), estabelecendo áreas de ocupação intensiva e extensiva, bem
mento Urbano como de preservação ambiental. O regime urbanístico e o controle de edificações passavam a
(PDDU) se basear nas definições do Plano para cada Unidade Territorial de Planejamento. Outra
novidade foi a abertura para uma limitada representação comunitária no conselho do Plano.
Continua na página seguinte
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
9

Evolução da legislação urbanística em Porto Alegre (continuação)

ANO PLANO CARACTERÍSTICAS

1990 Nova Lei Reconhece os conselhos populares, permite a iniciativa popular em projetos de lei e estabelece
Orgânica a participação popular no orçamento e no planejamento municipal, a criação de um fundo
Municipal (LOM) municipal de desenvolvimento e todo um conjunto de instrumentos de reforma urbana
(direito real de uso, solo criado, banco de terras, função social da propriedade com previsão
de IPTU progressivo e parcelamento ou edificação compulsórios, desapropriação por interesse
social ou utilidade pública, usucapião, regularização fundiária e outros).

1999 Plano Diretor de Adoção do planejamento estratégico, concepção de zoneamento flexível com previsão de
zonas mistas e corredores de desenvolvimento (cidade xadrez), com a incorporação dos vários
instrumentos de reforma urbana regulamentados durante a década de 1990 a partir da Lei
Orgânica Municipal. Ampliação da participação comunitária por meio da criação de oito
regiões de gestão do planejamento, todas com assento no conselho do Plano.

Fontes: Secretaria de Planejamento Municipal (SPM/PMPA); Lei Orgânica Municipal; Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA); Panizzi e Rovatti (1993); Strohaecker (2005).

B) POPULISMO MODERNIZADOR
Essa vocação modernizadora do positivismo não é tão afastada quanto pode
parecer da vertente populista que se consolida na década de 1950, nos governos
de Leonel Brizola,7 que, não por acaso, é um engenheiro. O sindicalismo de Esta-
do criado pelo projeto populista no Brasil era um modelo não apenas para o
sindicalismo, mas também para o conjunto das classes populares (ver Boito Jr.,
1991). Em 1959, foi criada em Porto Alegre a Federação Rio-grandense das Asso-
ciações Comunitárias e de Amigos de Bairro (Fracab), com a mesma pretensão ao
monopólio da representação e ao aparelhismo político-partidário da estrutura
sindical oficial. As primeiras favelas em Porto Alegre datam da década de 1940,
mas é na década seguinte que elas passam a se configurar como uma alternativa
mais efetiva para a moradia popular nas periferias da cidade, a partir da consoli-
dação do padrão rodoviário em substituição ao ferroviário.
Mal emergiam os primeiros movimentos comunitários e já havia uma estrutu-
ra paraestatal preparada para dirigi-los. Assim como os sindicatos eram depen-
dentes do governo via mecanismos regulatórios da Justiça do Trabalho e de repas-
ses do imposto sindical, a Fracab dependia de repasses/apoios da Assembléia
Legislativa e de governos para o seu funcionamento. Após o golpe de 1964, a
entidade simplesmente passou a adotar uma linha de adesismo ao regime, que
durou até meados da década de 1970. O organicismo brizolista consistia basica-
mente num esforço estatal de articulação e mobilização política para a radicalização
do bloco nacional-desenvolvimentista. Ao mesmo tempo que bloqueava a inde-
pendência de classe dos setores populares, o Estado aparecia como protagonista
potencial de uma transformação social, como instrumento de luta contra o “im-
perialismo” ou como braço “protetor” dos “trabalhadores do Brasil”. A distri-
buição clientelista de chaves em conjuntos habitacionais, como foi o caso da Vila
dos Industriários (IAPI) em Porto Alegre, era acompanhada da organização de
entidades de moradores, cujo papel principal era o de serem elos com o governo.

7
Leonel Brizola foi prefeito de Porto Alegre de 1955 a 1958 e governador do Rio Grande do Sul de 1959 a 1962.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

É importante lembrar que, no início, essas entidades não tinham praticamente


caráter reivindicativo, mas apenas associativo e recreativo.
É preciso ressaltar, entretanto, que o laço político trabalhista, construído sob a
ótica de que cabe ao Estado organizar a sociedade e estabelecer critérios de acesso
à cidadania (regulada), implicava uma troca efetiva com os setores populares. Ao
abrir caminhos para a participação consentida e a satisfação de necessidades ur-
banas básicas, criavam-se também espaços para a atribuição de sentidos alternati-
vos às palavras de ordem vindas de cima, o que viria a ser particularmente impor-
tante no momento em que aquelas cadeias de comando foram rompidas pela
força (pós-1964). Na oposição, essas entidades foram um refúgio para os militan-
tes perseguidos e, posteriormente, um espaço de reafirmação política. Dada a vio-
lência com que o regime militar se abateu sobre as populações urbanas faveladas,
jogando milhares de pessoas para periferias distantes e sem infra-estrutura (em
Porto Alegre, havia o programa Remover para Promover8), não é difícil entender
essa simpatia.

Evolução da população de Porto Alegre e da Região Metropolitana

ANO PORTO ALEGRE REGIÃO METROPOLITANA

1872 43.398 -

1890 52.421 -

1900 73.474 -

1920 179.263 -

1940 272.232 405.320ª

1950 394.151 590.310ª

1960 641.173 1.054.020

1970 885.545 1.577.496

1980 1.175.477 2.285.167

1991 1.262.631 3.015.960

2000 1.360.590 3.658.376

Fonte: Censos do IBGE.


ª Germ, Plano de Desenvolvimento Metropolitano – PDM, Porto Alegre, 1973.

Também é de 1959 um novo plano urbano para Porto Alegre, não apenas
viário, mas também voltado para o zoneamento. Em plena era de migração cam-
po–cidade, esse plano projetava um modelo europeu/norte-americano para Porto
Alegre. Nele, imaginava-se uma cidade igual para todos por meio do estabeleci-
mento de rígidos padrões urbanísticos, que acabariam fazendo crescer as cidades

8
Por meio desse projeto, foi criado um bairro novo na cidade, a Restinga, na zona extremo sul, muito longe do centro do
que era a cidade então, que serviu para reassentar as pessoas removidas à força do centro da cidade. As pessoas foram
simplesmente jogadas em terrenos sem a mínima infra-estrutura. Havia uma linha de ônibus que buscava as pessoas para
o trabalho de manhã cedo e as trazia de volta no fim do dia. O projeto serviu para que vários proprietários dos terrenos
intermediários entre o centro urbano e a Restinga se beneficiassem da progressiva extensão de infra-estrutura até lá.
Como nas townships sul-africanas, as pessoas eram confinadas num gueto do qual só podiam sair para trabalhar.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11

da periferia, onde as exigências eram menores. Um cordão de vazios urbanos sepa-


rava Porto Alegre das cidades vizinhas. O resultado mais ou menos óbvio foi o
aumento progressivo dos loteamentos irregulares e clandestinos até atingir 25%
da população em 1988. A crer nas estimativas mais recentes do Demhab, teria
havido uma redução para menos de 20%, após uma década de OP e políticas de
urbanização de favelas e de regularização fundiária.9 Mas mesmo as políticas
proativas dos governos da Frente Popular (1989–2004) não foram suficientes
para conter as novas ocupações de terrenos (média de mais de 20 tentativas de
ocupação por ano) e funcionaram mais como um corpo de bombeiros apagando
um incêndio atrás do outro.

Evolução dos assentamentos irregulares em Porto Alegre (1950–1996)

ANO Nº DE UNIDADES POPULAÇÃO DOS POPULAÇÃO DE % POP. LOT./POP. TOTAL


LOTEAMENTOS FAMILIARES LOTEAMENTOS PORTO ALEGRE

1950 41 3.965 16.303 394.151 4,1

1964 56 13.588 65.595 667.397 9,8

1973 124 20.152 105.833 991.900 10,7

1983* 167 39.909 180.489 1.125.477 (1) 16,0

1988** 212 72.555 326.497 1.263.403 (1) 25,8

1996 390 73.057 284.922 1.286.879 22,1

2001*** n. d. n. d. 251.883 1.370.289 18,4

Fonte: Demhab, Mapa da Irregularidade Fundiária em Porto Alegre, 1999.

(*) Metroplan (1988)


(**) Secretaria do Planejamento Municipal – Dados Estimativos (1991)
(***) Demhab, Prefeitura Municipal de Porto Alegre – Diagnóstico da Situação
Habitacional de Porto Alegre, 2001 (Estimativas para a população
urbana – documento subsídio à 2ª Conferência Municipal de Habitação).
(1) Dados de população da cidade dos censos de 1980 e 1991, respectivamente.

C) AUTORITARISMO POPULISTA-CLIENTELISTA
Diferentemente do populismo sindical, a matriz populista modernizadora não
teve tempo, na verdade, para se desenvolver até o seu limite. Foi abortada preco-
cemente pelo golpe de 1964. Em Porto Alegre, ela seria retomada em duas ocasi-
ões. Primeiro, dez anos mais tarde, pelos próprios interventores da ditadura após
1975, em função da necessidade de competir eleitoralmente no quadro da abertu-
ra “lenta e gradual”. Quando o Banco Nacional da Habitação (BNH) começa a
abrir espaço para políticas de recuperação urbana, emerge um novo populismo,
clientelista, autoritário, restrito à lógica pragmática de troca de obras por votos.10
Não se tratava mais da integração política das classes subalternas, mas de sua

9
Para uma visão mais abrangente da evolução das políticas de planejamento urbano em Porto Alegre, vide Alfonsin et al.
(2004).
10
Atualmente, no governo Fogaça (2005–2008), parece retornar ao poder essa matriz autoritário-clientelista, dourada por
teorias de integração social copiadas dos manuais do Banco Mundial, por meio do conceito de governança solidária local
(ver Cidade, 2005).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
12

integração enquanto massa consumidora. Foi criada, então, uma série de progra-
mas sociais e habitacionais de gabinete, que buscavam despolitizar as associações
de moradores (AMs) em processo de crescente mobilização na virada para a déca-
da de 1980. Em Porto Alegre, via entrega da direção do Demhab a políticos
profissionais, e não mais a tecnocratas, a tática básica utilizada era a decretação
de utilidade pública para as áreas ocupadas irregularmente. Como essas áreas, em
geral, ficavam em locais impróprios para moradia (beiras de arroio, encostas de
morro, áreas de preservação ambiental), portanto, sem grande valor de mercado
para os seus proprietários originais, em virtude das proibições inscritas na legisla-
ção urbanística do município, a sua compra posteriormente pelo poder público
representou uma ocasião para grandes negócios. Ao mesmo tempo, a população
moradora nessas áreas passava a ter na Prefeitura o seu grande aliado, ou inimigo,
diante das ações de despejo, dependendo de seu “bom comportamento” eleitoral.
Com um grande número de AMs gravitando ao redor dos partidos de oposição ao
regime militar, os interventores municipais (prefeitos de capitais voltaram a ser
eleitos somente a partir de 1985) buscavam criar um campo de forças a seu favor,
operando de modo até um pouco semelhante aos trabalhistas da década de 1950,
distribuindo lotes de terra e aceitando dialogar somente com as AMs por eles
criadas ou a eles vinculadas. Os tempos, porém, eram outros.
Logo em seguida, no fim da década de 1970, esta matriz autoritário-clientelista
se revelaria insuficiente para conter o ascenso dos movimentos comunitários, então
aliados aos movimentos sindicais, numa conjuntura de progressiva mobilização
contra a ditadura militar. Essas ações traduziam, principalmente, a afirmação de
uma cultura de direitos, a consciência de que o atendimento das reivindicações não
é um favor do Estado, mas um dever e um direito básico de cidadania. Há uma
mudança fundamental na postura de relacionamento com o poder público. Em
lugar do pedinte submisso, aparecia um novo personagem, desafiador da ordem,
capaz de ocupações coletivas de terrenos, barricadas nas ruas, enfrentamento físico
com a polícia, concentrações na frente dos órgãos públicos e tendo, naquela época
(entre os anos 1975 e 1985), imediata repercussão nos meios de comunicação, inte-
grados pelo campo oposicionista como atos de protesto contra o regime militar.
D) O MOVIMENTO
Não tendo ocorrido um questionamento mais transformador dos formatos
organizativos e institucionais, garantiu-se uma sobrevida para o padrão delegatório
que presidira historicamente a criação de associações de moradores (AMs) em
Porto Alegre. Mesmo assim, desenvolveu-se um processo intenso de mobilização
popular, questionando sistematicamente o padrão autoritário de relacionamento
do poder público com as organizações populares, o qual denominamos neste do-
cumento como a “prática do enfrentamento”. Foi um período rico de experiênci-
as de articulação entre organizações de trabalhadores e de moradores. A greve dos
trabalhadores da construção civil, em Porto Alegre, em 1979, por exemplo, trou-
xe para as ruas do centro da cidade famílias inteiras atuando na coleta do fundo
de greve, mostrando para a “opinião pública” situações de pobreza geralmente
escondidas. O multipartidarismo, de volta à legalidade, permitia a construção e a
retomada de vínculos populares, unificando-se as lutas no combate ao regime
militar, com manifestações maciças de protesto. Havia a sensação de que grandes
transformações sociais estavam ao alcance da mão. Como lembra Vinícius Fagundes
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13

Almeida, da AM da Estrada dos Alpes, em Porto Alegre: “As reuniões eram feitas
na Igreja Católica, na capela, mas a gente convidava o pessoal evangélico, todos,
de todas as religiões, para que participassem. Foi um dos momentos mais bonitos
da nossa luta comunitária, porque a gente sabia que estava lutando, tinha um
inimigo comum e visualizava ele. Então, a gente combatia ele: era a ditadura”.
A empolgação nos meios de esquerda com a possibilidade de uma crescente
mobilização contra o regime militar levava um grande número de militantes a um
esforço para construir “O Movimento”: a subordinação de toda a heterogeneidade
de ações geralmente pragmáticas das comunidades populares ao projeto de cria-
ção de um sujeito coletivo unitário, dirigido pelo sindicalismo “combativo” e
dotado de hierarquia vertical de comando. Da crítica ao “peleguismo” das AMs,
passou-se rápido demais à disputa pelo comando dessas entidades, prática que
viria a ser criticada mais tarde como o “fetiche dos aparelhos”11 – mutatis
mutandis, apenas se repetia o que já ocorria no meio sindical “combativo” com a
reprodução do chamado “sindicalismo de Estado” (Boito Jr., 1996). De um lado
a idéia de duplo poder (via “comissões de fábrica” e “conselhos populares”), de
outro a vida real nas periferias urbanas, massificação cultural e pragmatismo nas
negociações (via aceitação da tutela estatal no reconhecimento das organizações
sindicais e populares). A fundação da União das Associações de Moradores de
Porto Alegre (Uampa) em 1983 pode ser considerada ao mesmo tempo como
expressão de culminância e de crise desse esforço. Como combinar o monopólio
de representação por local de moradia reivindicado pelas AMs com o pluralismo
das temáticas de mobilização emergentes e que envolviam também profissionais
de saúde, de educação e de assistência social? Cooperativas, grupos de mulheres,
comunidades eclesiais de base, movimentos estudantis, tudo deveria se subordinar
às AMs, e estas, à Uampa? E como conciliar, na Uampa, as disputas entre os
diferentes partidos em construção/reconstrução? A sonhada unidade popular não
tinha como realizar-se de forma meramente instrumental. Em nome dos princípi-
os de não-partidarização e da autonomia em relação aos governos, a Uampa foi se
tornando progressivamente o contrário, sobretudo após 1987, com o fim da as-
sessoria prestada pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
(Fase) em Porto Alegre: uma entidade atrelada e instrumentalizada pelas forças
partidárias que a presidiam. Em vez da politização das lutas comunitárias, o re-
sultado foi o reforço do que pode ser chamado como a ideologia do comunitarismo,
que concebe as comunidades populares como totalidades homogêneas cujo hori-
zonte máximo é o acesso à cidade (enquanto infra-estrutura, equipamentos e ser-
viços). Pavimentação é asfalto, escola é prédio, saúde é posto de saúde, tratamen-
to é remédio, transporte é ônibus, cultura é show, “comida é pasto, bebida é
água”. Criada em parte como alternativa à ditadura do PMDB desde o fim da
década de 1970 na Fracab, a Uampa foi progressivamente perdendo sua legitimi-
dade entre os ativistas comunitários. Certamente, manteve sua relevância em de-
fesa do direito à moradia e no bloqueio de ações de despejo, mas não conseguiu
mais recuperar o nível de enraizamento social que lhe deu origem.

11
Segundo Haroldo de Abreu: “[...] petrificação de lideranças sem massas, transformadas em cadeias de transmissão de
visões particulares e ‘salvadoras’ do mundo. Mas cadeia de transmissão sem movimento não passa de máquina parada,
que reproduz apenas a fetichização dos aparelhos e a reificação dos militantes” (1991, p. 7).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

O quadro a seguir mostra a evolução das opções eleitorais em Porto Alegre, após
a ditadura militar. Observa-se uma progressiva perda de expressão de PDT e PMDB
em favor do PT até 1996 e uma tendência inversa a partir de 2000, culminando
com a eleição de Fogaça (PPS, ex-senador pelo PMDB) em 2004. Em 1985, o PDT
com Collares obteve 43% dos votos e era o partido preferido pelos eleitores em
Porto Alegre, seguido do PMDB, que obteve 29% e do PT, então com apenas 11%.
Apenas 11 anos depois, em 1996, a situação era totalmente inversa: o PT atingia
52% da preferência dos eleitores, e o PDT e o PMDB reduziam sua participação a
5% cada um. Em 1998, nas eleições para o governo do estado, o PT com Olívio
Dutra atingiria 54% no primeiro turno em Porto Alegre, sua pontuação máxima
na cidade. A partir daí, inicia-se um progressivo declínio. Em 2000, o PT ainda
faria 49% dos votos para prefeito no primeiro turno, caindo, em 2004, para 38%.
O PPS, que em 2000 obtivera menos de 1%, em 2004, com Fogaça (ex-PMDB),
conseguiu 28% no primeiro turno e venceu com 53% no segundo.

Evolução dos assentamentos irregulares em Porto Alegre (1950–1996)

PARTIDOS 1985 1988 1992 1996 2000 2004


(1º turno) (1º turno) (1º turno) (1º turno)

PT 69.429 247.517 307.145 408.998 381.117 304.135


(Raul Pont) (Olívio Dutra) (Tarso Genro) (Raul Pont) (Tarso Genro) (Raul Pont)
491.775 378.099
(2o turno) (2o turno)

PDT 257.549 158.256 85.796 41.774 157.015 78.919


(A. Collares) (Carlos Araújo) (Carlos Araújo) (V. da Cunha) (A. Collares) (Vieira da
282.575 Cunha)
(2o turno)

PMDB 173.198 72.097 120.114 40.297 50.416 46.671


(Carrion Jr.) (A. Britto) (C. Schirmer) (Paulo Odone) (C. Busatto) (Mendes Ribeiro)

PDS/PPB 57.751 93.862 32.556 48.224


(V. Faccioni) (G. Villela) (Jarbas Lima) (M. do Carmo)

PTB 53.761 24.524


(Valdir Fraga) (Valdir Fraga)

PSDB 18.050 167.397 121.598


(Mercedes (Yeda Crusius) (Yeda Crusius)
Rodrigues)

PFL 53.769
(G. Bonow)

PPS 229.113
(José Fogaça)
431.820
(2o turno)

PSB 24.588
(Beto
Albuquerque)

Fonte: TRE-RS (Siglas de origem dos candidatos).


MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

A combinação entre pragmatismo comunitário e combatividade versus pro-


gramas sociais clientelistas (tíquete do leite e outros) e ações hegemônicas12 dos
profissionais das áreas sociais (saúde, educação e assistência social) encontrou,
nas articulações regionais, a sua ágora. Favorecendo a consolidação do OP (pós-
1989), nesses espaços é onde se articulam e desenvolvem as lutas populares na
cidade, desde a defesa de ocupações de terras e as ações diretas sobre os governos
reivindicando infra-estrutura e serviços até atividades de formação e o debate e
planejamento de estratégias de ação.

Articulações regionais de associações de moradores em Porto Alegre

ARTICULAÇÃO ANO DE ASSOCIAÇÕES ASSOCIAÇÕES REGIÃO ORIGENS


REGIONAL CRIAÇÃO FUNDADORAS EXISTENTES (*)

União de Vilas 1979 16 23 Grande Cruzeiro Luta pela terra, saneamento e


da Grande escolas
Cruzeiro

União de Vilas 1982 14 20 Lomba Luta pela água e transporte


da Lomba do público
Pinheiro

Conselho 1982 6 28 Centro-Sul Mobilização para discutir


Comunitário eleições municipais
da Cavalhada

Conselho 1985 10 14 Grande Glória Defesa de ocupações em áreas


Popular da de preservação ambiental
Glória

Conselho 1987 10 18 Norte Luta por escola pública,


Popular da melhorias urbanas e controle de
Zona Norte centro comunitário

Conselho 1987 5 21 Eixo Ocupações de terra e de


Popular do conjuntos habitacionais
Eixo da semiconstruídos
Baltazar

Conselho da 1988 5 9 Restinga Influência de ativistas ligados


Restinga ao PT

Conselho 1989 3 12 Leste Mobilização para discutir


Popular da eleições municipais
Zona Leste

Fonte: Arquivos da antiga Fase Regional Porto Alegre, com dados trabalhados
pelo autor e montados por Maya Fruet (2002).
(*) Associações existentes naquela zona da cidade quando da criação da articulação.

D) A ERA DA GESTÃO POPULAR-PARTICIPATIVA


A segunda tentativa de fazer ressurgir o populismo modernizador, foi quando
os trabalhistas voltaram ao poder em Porto Alegre (governo Collares, 1986–1988),
mas nem o trabalhismo nem o “povo” eram mais os mesmos. O trabalhismo
havia se transformado numa bússola sem norte, diante do desaparecimento da
“burguesia nacional” como projeto nacional-desenvolvimentista. E o “povo”, ao

12
Entende-se por ações hegemônicas a busca de um consentimento ativo por parte de determinados grupos ou blocos
sociais a partir da proposição de princípios ético-políticos com a pretensão de validade universal. Durante a década de
1980, os movimentos sindicais das áreas sociais (saúde, educação e assistência social) apresentavam forte tendência a
defender políticas públicas progressistas e a buscar a adesão a essas propostas dos públicos com os quais trabalhavam.
A crise da década de 1990 acabaria levando esses movimentos a um refluxo corporativo.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

contrário, havia sido educado por uma outra lógica na luta contra a ditadura,
assim como já não havia mais o mesmo consenso entre as esquerdas como no pré-
1964. Collares acenou com a idéia organicista de criação dos “conselhos popula-
res”, que, na verdade, seriam conselhos setoriais a serem criados para cada secreta-
ria. As comunidades dos diversos bairros poderiam participar dos diversos conse-
lhos setoriais propostos por meio dos presidentes de associações de moradores,
mas os secretários de cada pasta seriam a autoridade em última instância para a
tomada de decisões. Esse seria o modelo para completar a obra populista no terre-
no comunitário, mas o projeto não chegou a ser implantado, porque o governo
ficou com medo de não conseguir controlar os setores comunitários organizados
simpatizantes de outras forças políticas (PT e PMDB, sobretudo).13
A redução da transição do regime militar a um movimento limitado ao campo
da política institucional – cuja expressão mais significativa foi o movimento Dire-
tas Já, que culminou numa eleição indireta e numa progressiva desmobilização
social (das centrais sindicais aos próprios “fiscais do Sarney”) – acabou forçando
os movimentos sociais a um movimento de luta pela ampliação da arena política.
Criar conselhos locais, estaduais e federais; lutar para que esses conselhos possam
controlar fundos próprios, com destinação exclusiva; garantir uma maioria de
representantes da sociedade civil nesses conselhos; conferir-lhes poder legal – para
o assim chamado campo gestionário (das lutas sociais), esse movimento tornou-se
bandeira de luta em todas as áreas sociais.
O grande modelo inspirador da gestão popular-participativa foram os con-
selhos de saúde da Zona Leste de São Paulo. Esse modelo se consolidou
institucionalmente com o Sistema Único de Saúde (SUS) e combina a idéia de
participação direta dos usuários de determinados serviços nas suas próprias regi-
ões, dos profissionais que diretamente prestam os serviços, dos governos e dos
prestadores privados. Também no aspecto do financiamento, o SUS é modelar.
Hoje, os recursos do SUS transitam de forma separada pela contabilidade dos
governos locais, sendo sua utilização submetida à deliberação do conselho de
saúde. Se é certo que a participação permitiu um maior controle dos gastos públi-
cos em saúde, também é certo que tanto os prestadores privados como o governo
federal preservaram suas esferas de autonomia relativa no manejo desses recursos.
Segundo levantamento realizado pela ONG Cidade, existiam em Porto Ale-
gre, no fim da década de 1990, mais de 30 conselhos, dos quais aproximadamen-
te 20 estão em efetivo funcionamento. Conforme pesquisa mais recente, elabora-
da por Betânia Alfonsin para o 4º Congresso da Cidade, em 2003, mesmo entre
os 20 principais conselhos havia problemas de quorum e funcionamento, como se
observa no quadro seguinte, que também permite identificar as áreas de conflito
não só entre os conselhos, mas entre estes e o orçamento participativo.

13
Para uma análise detalhada desse processo, vide Moura (1989).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

Funcionamento dos principais conselhos setoriais em Porto Alegre – março/maio 2003

CONSELHO FUNCIONAMEN- CONFLITO INTEGRAÇÃO/ INTEGRAÇÃO CONFLITO


TO REGULAR E COM O COP COOPERAÇÃO COM OUTROS COM OUTROS
QUORUM COM O COP CONSELHOS CONSELHOS

CMDUA (Plano SIM COMTU COMAM


Diretor)

COMATHAB SIM SIM Conselho


(Habitação) (recente Deliberativo do
retomada) DEMHAB

COMAM (Meio NR NR NR NR NR
Ambiente)

COMPHAC SIM CMDUA


(Patrimônio
Histórico)

CONCET (Ciência e SIM VÁRIOS


Tecnologia)

CONCONT SIM
(Contribuintes)

CONCOM NÃO
(Comunicação)

COMTU SIM SIM


(Transporte)

CMAS SIM SIM CMDCA


(Assistência Social)

CMDCA (Criança e SIM SIM CMAS


Adolescente)

CMDH (Direitos SIM SIM


Humanos)

CMAA SIM CMS, CMDCA


(Abastecimento)

CMD (Desporto) NÃO

CONTUR (Turismo) NÃO

CONEN NR
(Entorpecentes)

CONDIM (Mulher) SIM SIM

CME (Educação) SIM SIM CMDCA

CMC (Cultura) SIM CME, COMPHAC

CMS (Saúde) SIM SIM

COMUI (Idoso) SIM CONDIM

Fonte: Alfonsin (2003).


MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

Na mesma pesquisa de 2003, também foram identificadas pelos conselheiros


entrevistados as principais dificuldades para o bom funcionamento dos conse-
lhos, conforme o gráfico abaixo.

Funcionamento dos principais conselhos setoriais em Porto Alegre – março/maio 2003

INFRA-ESTRUTURA

INEXISTÊNCIA DE PODER

ORÇAMENTO PARA VIABILIZAR AS POLÍTICAS

VOLUME EXCESSIVO DE TRABALHO

COMPOSIÇÃO LEGAL INADEQUADA

AUSÊNCIA DE APOIO FINANCEIRO AOS CONSELHEIROS

COMUNICAÇÃO DEFICIENTE

QUALIFICAÇÃO DOS CONSELHEIROS

ENVOLVIMENTO DOS ÓRGÃOS DO EXECUTIVO

CLAREZA DO PAPEL DO CONSELHO

Chama a atenção o destaque maior dado aos itens “infra-estrutura” e “ausên-


cia de apoio financeiro aos conselheiros”, o que sugere uma preocupação maior
com as condições pessoais de participação dos conselheiros do que propriamente
com as atividades dos conselhos. Aparentemente, trata-se de mais um indicador
da tendência à profissionalização dos militantes, expressa também na pressão por
convênios para o financiamento de atividades de interesse comunitário. Ao lado
dos cidadãos comuns, ressurge e tende a cristalizar-se um conjunto de cidadãos
profissionais, buscando constituir-se enquanto “classe política intermediária” en-
tre as bases corporativas e/ou comunidades populares e o Executivo e o Parlamen-
to (papel que era desempenhado pelos presidentes de AMs no modelo populista).
No caso das comunidades populares, essa “classe” tem o seu desempenho mode-
rado pelos fóruns regionais (OP, planejamento, comissões locais de saúde etc.), o
que garante certa renovação de lideranças e certo controle sobre as atividades
conveniadas. Como ensina Villasante, muitas vezes confundimos o tecido
associativo com os movimentos sociais: “São dois aspectos que se necessitam
mutuamente, embora sejam claramente paradoxais: se há mobilização, então a
associação é ultrapassada e, se a associação se consolida, o movimento fica con-
trolado” (2002, p. 33).
Os conselhos apresentam os mais variados formatos institucionais. Alguns vêm
da antiga tradição técnico-corporativa (educação, por exemplo) e não incorpo-
ram a participação popular, outros têm uma matriz mais explicitamente técnica
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

ou, então, corporativa, ou mesmo estatizada (Conselho Deliberativo do DEMHAB,


por exemplo). Criança e Adolescente, Assistência Social, Plano Diretor e Habita-
ção são conselhos que se aproximaram mais do modelo do SUS. O próprio OP,
articulando regiões e temáticas, embora sem o mesmo arcabouço legal-institucional,
também incorpora elementos básicos do SUS, tais como a discussão direta dos
problemas vividos pelas comunidades populares e o funcionamento via comissões
ou fóruns, a partir dos quais se constrói a representação ao nível da cidade como
um todo. A diferença é que o OP constitui-se como uma esfera pública essencial-
mente plebéia. Não há cadeira cativa para nenhum setor ou corporação. Cada
cidadão vale um cidadão, um voto na assembléia. No modelo do SUS, são atribu-
ídos pesos iguais a forças essencialmente diferentes, o que tende a empurrar o jogo
deliberativo para o empate permanente. Se o peso decisório dos atores já é garan-
tido de antemão, qualquer decisão que implique perdas relevantes para um deles
dificilmente será aprovada. Em Porto Alegre, por exemplo, após quase duas déca-
das de gestão participativa, sequer foi possível fazer com que a classe médica cum-
pra a carga horária estipulada no contrato de trabalho. Mas foi possível ampliar
o número de postos de atendimento, o horário de funcionamento, a qualidade
dos serviços, os critérios de ingresso etc. Esse modelo não pode ser dissociado da
luta dos partidos políticos de oposição que se formam a partir do fim da década
de 1970. Num contexto em que a arena política formal estava fechada para os
partidos de esquerda, lutar para ampliar os espaços de participação era uma for-
ma de ir conquistando espaços aos poucos e de politizar o que era possível politizar,
as questões quotidianas da população. À medida que esses partidos chegam ao
poder, nem sempre se mantém a mesma aposta na participação, já que, na oposi-
ção, ela é uma estratégia e, na situação, pode ser um risco. Da mesma forma, na
década de 1990, com o refluxo corporativo dos movimentos sindicais, sobretudo
na área do funcionalismo público, grande parte das ações sindicais direcionadas
usuários dos serviços por eles prestados acabou sendo reduzida a um denuncismo
mais corporativo do que conscientizador.
Para além dos problemas de sombreamento e efetividade dos conselhos setoriais
e sem termos a pretensão de chegar a conclusões exaustivas, existem alguns limites
no funcionamento dos conselhos setoriais em Porto Alegre e no Brasil, como mostra
Rudá Ricci (2004).14 Todos que apostam na construção dessas experiências preci-
sam enfrentar esses limites, até mesmo para responder aos novos constrangimen-
tos trazidos pela conjuntura atual:
A) a simples existência de espaços abertos para a participação popular, aqui en-
tendida como a participação direta ou via entidades ligadas aos movimentos
sociais de base, não significa – nem necessariamente garante – um maior con-
trole popular sobre as políticas públicas;

1
Embora discordando da análise de Ricci sobre as experiências de OP, que nos parecem superficiais, feitas, sobretudo,
a partir da experiência de Belém, em que o OP seria “superado” pelos Congressos da Cidade, que incorporariam a
dimensão do planejamento (vide Ricci, 2002), consideramos a análise que faz sobre os limites de atuação dos conselhos
gestores e sobre o governo Lula bastante precisas. Os Congressos da Cidade são pontuais, ou seja, suas conseqüências
têm de ser monitoradas por outras instâncias, quebram com a participação cidadã ao incorporarem os próprios quadros
do governo no processo de disputa em assembléia, além de lidarem com uma infinidade de temas durante pouquíssimo
tempo, o que transforma as deliberações em simples recomendações a serem seguidas ou não pelos governos, não
havendo, portanto, pelo menos nesses congressos, quase nada que possa efetivamente ser chamado de planejamento,
muito menos de reforma do Estado.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20

B) a gestão e a circulação de informações é precária, seja pelo lado do governo,


seja pelo lado dos conselheiros, sendo quase sempre relativamente fácil para o
governo concentrar e filtrar as informações estratégicas relevantes, dosar a sua
publicidade e pautar a dinâmica de funcionamento das reuniões;
C) nas situações de conflito, os representantes comunitários só conseguiram espa-
ços efetivos de poder a partir da mobilização de recursos externos às reuniões,
via manifestações públicas, denúncias na mídia e envolvimento de ONGs e/ou
de partidos políticos;
D) a capacidade de elaborar e propor políticas e programas tem dependido muito
do próprio governo para a formatação das propostas vindas da sociedade, o
que permite ao governo imprimir o viés que mais lhe interessa;
E) o controle dos resultados é quase que artesanal. É verificado se o projeto foi
executado ou não, mas não se examinam os custos efetivos, e o retorno às
comunidades populares fica na dependência de relatos orais,
F) os bastidores dos conselhos setoriais pelo lado da sociedade civil são frágeis, pontu-
ais ou simplesmente inexistem, caracterizando uma situação de ausência de articu-
lação política. Isso permite ao governo, que obviamente se articula internamente,
impor suas pautas e agendas de trabalho aos conselhos, os quais são aprisionados
por rotinas burocráticas insignificantes durante a maior parte do tempo;
G) as grandes questões sobre as quais os conselheiros precisariam decidir são apre-
sentadas geralmente às pressas, para decisões que precisam ser tomadas em
caráter de urgência, com pouquíssimo tempo para discussão, ou, então, deter-
minados temas simplesmente vão saindo da pauta para sempre;
H) nos conselhos setoriais, como já destacado, a forma de representação tende
mais para o burocrático-corporativo do que para o popular, isto é, junta com-
petências técnico-políticas com representação classista, profissional ou comu-
nitária. O fato de que um terço ou a maioria dos representantes venha da
sociedade civil não altera muito os resultados, pois sempre é possível ao gover-
no manipular ou mesmo alterar algumas representações da sociedade, bem
como a própria sociedade já é dividida corporativamente nos conselhos. Além
disso, quando a representação não é controlada pela base, ocorre certa tendên-
cia a que os participantes nesses conselhos setoriais privilegiem seus próprios
interesses nas discussões (por exemplo, viabilizando convênios entre o poder
público e as suas entidades etc.);
I) quando o governo é progressista, como foi o caso em Porto Alegre (1989–
2004), é possível impulsionar algumas iniciativas mais populares. Quando o
governo é conservador, os setores populares viram a minoria da minoria, tendo
de enfrentar o governo e os setores empresariais. O máximo que é possível,
então, são pactos de proteção mútua, mas não há como falar em controle
social no sentido de radicalização democrática.

A relativa facilidade com que o governo Fogaça vem desconstituindo os conse-


lhos setoriais em Porto Alegre, em parte devido justamente a esses limites, levou
um conjunto de conselheiros a criar, no primeiro semestre de 2005, o Fórum dos
Conselhos Municipais, com o objetivo de construir estratégias de defesa do papel
dos conselhos como instrumentos de controle social sobre o governo. Embora
tendo o “quê”, o “quem” e o “como” regulamentados em lei, ao contrário do
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21

OP, que tem garantido em lei apenas o “quê”, os conselhos setoriais vêm encon-
trando mais dificuldades para sobreviver numa conjuntura política adversa do
que o OP. Sem desprezar a importância da inscrição de direitos em lei, verificamos
que o enraizamento social tem se mostrado uma garantia mais forte do que a
jurídica, não apenas porque a produção de justiça é ineficiente no Brasil, mas
também porque a própria objetividade da justiça não é gerada em abstrato.

E) PARTICIPAÇÃO CIDADÃ E CO-GESTÃO


Nossa hipótese é de que os processos participativos só funcionam efetivamente
quando amparados em amplas mobilizações sociais capazes de tensionar os gover-
nos e gerar uma opinião pública a favor de determinadas causas. Isso significa que
a partilha efetiva de poder em espaços participativos não tem como ser resultado
apenas de um discurso de campanha, mas depende da articulação de forças sociais
que a sustentem. Em Porto Alegre, os partidos da Frente Popular precisaram dra-
maticamente do OP para enfrentar uma conjuntura extremamente difícil ao lon-
go da última década. Diante de um legislativo local sempre com maioria oposici-
onista, um orçamento inicialmente quase todo comprometido apenas com a fo-
lha salarial dos funcionários, uma mídia local hegemonizada por um único gran-
de grupo empresarial, um empresariado urbano (empreiteiras, empresas de trans-
porte, comerciantes, empresários do setor de serviços) dominado em grande parte
por uma lógica patrimonialista e predatória em relação à qualidade de vida e ao
meio ambiente, uma burocracia estatal em ampla medida submissa e carente de
qualificação profissional, quando não preconceituosa em relação aos movimen-
tos sociais, seria impossível manter-se no poder e adquirir governabilidade sobre
as políticas públicas sem uma ampla base popular. Mas não podia ser qualquer
base, pois jogaria o governo nos braços do populismo tradicional (a maioria dos
dirigentes de associações de moradores era mais simpática ao PDT e ao PMDB do
que ao PT). Por isso, foi fundamental a participação direta, como forma de ga-
rantir a todos os cidadãos, sobretudo aos mais humildes, o direito de influir pes-
soalmente no destino de sua cidade e de seu estado. Foi quebrada a hierarquia de
“cidadãos profissionais” que julgavam ter assento garantido nas relações com o
governo a partir de organizações muitas vezes fantasmas. Não é o governo quem
diz com quem aceita conversar e com quem não aceita. É a sociedade, por meio de
seus cidadãos e de suas entidades efetivamente representativas – com capacidade
de mobilização real –, que define os parceiros do jogo.
Para a Uampa, deveriam participar do OP apenas os presidentes de AMs, ou
pelo menos deveriam ter um espaço previamente garantido. Apesar de essa pro-
posta não ter sido aceita, a Uampa ainda conseguiu garantir um espaço cativo no
Conselho do Orçamento Participativo (COP), assim como o Sindicato dos
Municipários de Porto Alegre (Simpa), mas todos os demais 46 conselheiros titu-
lares e seus respectivos suplentes são eleitos diretamente em assembléias regionais
(16) e temáticas (7). O governo também tem direito a dois titulares e respectivos
suplentes, mas sem direito a voto. Claro que a divisão do trabalho não pode ser
abolida por decreto, nem a estrutura jurídico-política do poder local poderia ser
transformada apenas por um esforço de vontade, muito menos o PT abriu mão do
direito de governar, mas o OP em Porto Alegre, ao adquirir um caráter essencial-
mente plebeu, colocou o cidadão comum das vilas populares no centro do poder de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

decisão sobre os investimentos da prefeitura. A grande maioria dos participantes


no OP pertence às classes populares, são trabalhadores sem qualificação, a maio-
ria mulheres, com escolaridade primária, renda familiar mensal inferior a R$
1.000,00 e uma forte presença de negros e de descendentes indígenas, numa cida-
de onde a grande maioria se considera branca.15 Mesmo que, para o COP, haja
uma certa variação nesse perfil, sobretudo em termos de renda, escolaridade e
gênero, já que não se alteram relações seculares pela simples mágica de um novo
desenho institucional, o importante é observar as tendências de fundo, a partici-
pação crescente das mulheres, o aumento constante do número de participantes e
o “fio terra” que prende os representantes às suas bases regionais e temáticas: o
controle dos representantes diretamente pelos representados, podendo os conse-
lheiros ter o seu mandato revogado por decisão do fórum de delegados em reu-
nião especialmente convocada para esse fim.

Dados básicos dos participantes no OP em Porto Alegre – 1995 ou 1998/2002 (%)

SEXO POPULAÇÃO PLENÁRIO PLENÁRIO DIR. DELEGADOS CONSELHEIROS*


2000 1995 2000 AMs

Mulheres 53,3 46,8 56,4 55,7 60,6 32,6

Homens 46,7 52,2 43,3 44,3 39,4 67,4

NR – 1,0 0,4 – – –

ESCOLARIDADE POPULAÇÃO PLENÁRIO PLENÁRIO DIR. DELEGADOS CONSELHEIROS*


2000 1995 2000 AMs

Ensino Funda- 43,1 55,6 64,1 56,5 49,5 39,4


mental ou menos

Ensino Médio 26,3 31,2 23,8 28,3 30,1 31,1


(completo ou não)

Superior 21,1 14,2 12,0 15,3 20,3 29,5


(completo ou não)

NR – – 0,1 – – –

IDADE POPULAÇÃO PLENÁRIO PLENÁRIO DIR. DELEGADOS CONSELHEIROS*


2000 1995 2000 AMs

16 - 25 22,1 15,8 19,5 8,4 6,5 3,3

26 - 33 18,2 19,1 17,4 17,6 12,6 14,8

34 - 41 14,5 23,0 19,9 21,4 19,5 24,6

42 - 49 16,8 18,8 18,6 19,8 24,4 24,6

50 ou mais 28,4 22,4 24,5 32,8 37,0 32,8

NR – 0,9 – – – –

Continua na página seguinte

15
Vide as pesquisas (“Quem é o público do OP?”) realizadas pelo Cidade – Centro de Assessoria e Estudos Urbanos e
outros parceiros em 1995, 1998, 2000 e 2002. Dados gerais disponíveis em artigos no site do Cidade (www.ongcidade.org).
Segundo dados do IBGE, de 2004, os autodeclarados negros e pardos em Porto Alegre, por exemplo, representariam
11,9% da população em idade ativa. Nas plenárias do OP, eles representaram 28,1% do público em 2002, chegando a
24% dos delegados e a 23% dos conselheiros.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23

Dados básicos dos participantes no OP em Porto Alegre – 1995 ou 1998/2002 (%)


(continuação)

RENDA POPULAÇÃO PLENÁRIO PLENÁRIO DIR. ELEGADOS CONSELHEIROS*


FAMILIAR (nª de 2000 1995 2000 AMs
salários mínimos)

0-2 26,9 30,9 39,4 25,9 23,7 21,7

2-4 17,3 26,1 29,9 37,4 31,8 28,3

4-8 21,7 21,1 18,4 19,1 25,3 21,7

8 - 12 11,6 9,7 5,1 8,4 9,0 13,3

12 ou mais 22,4 12,2 6,8 8,4 10,2 15,0

NR – – 0,4 0,8 – –

Fonte: Fase/Cidade/PMPA-1995, Cidade/PMPA-1998, e Cidade-2002.


A pesquisa de 1995 foi efetuada na segunda rodada do OP, as demais, na primeira.
(*) Dados de pesquisa complementar realizada diretamente no Conselho do Orçamento Participativo
(gestão 2002–2003).

Glossário
• População: Dados do Censo IBGE 2000 para Porto Alegre.
• Plenário: participantes entrevistados na primeira rodada do OP no ano de 2002.
• Dir. AMs: participantes entrevistados na primeira rodada do OP no ano de 2002 que são dirigentes de
associações de moradores.
• Delegados: participantes entrevistados na primeira rodada do OP no ano de 2002 que são ou foram,
em algum momento, delegados do OP.
• Conselheiros: participantes entrevistados na primeira rodada do OP no ano de 2002 que são ou
foram, em algum momento, conselheiros do OP.
• NR: pessoas que não responderam.

O PT vinha dos movimentos sociais, mas o seu forte em Porto Alegre eram,
sobretudo, os sindicatos dos setores médios (arquitetos, jornalistas, bancários, pro-
fessores, telefônicos etc.). Nos setores comunitários, a inserção do PT se dava, em
especial, por meio das comunidades de base da Igreja, dos programas de extensão
universitária em algumas regiões – sobretudo a Lomba do Pinheiro, onde se locali-
zava o campus da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e para onde
haviam sido transferidas as áreas de Letras, História e Ciências Sociais – e da atua-
ção de profissionais de educação, saúde e assistência social em algumas comunida-
des. Essas inserções não se davam de forma exatamente articulada, já que eram
atravessadas pelas tendências internas ao PT, assim como ocorria na área sindical.

Participação no OP de acordo com o grupo e/ou entidade a que se filia

GRUPO/ENTIDADE/CONDIÇÃO 1995 2002 DELEGADOS CONSELHEIROS

Associações de moradores 50,5 48,3 68,3 73,8

Conselhos populares ou uniões de vilas 8,7 3,7 11,0 18,0

Grupos religiosos ou culturais 10,6 8,9 15,4 16,4

Partidos políticos 4,5 4,2 13,0 19,7

Sindicatos 4,2 3,2 6,5 6,6

Entidades em geral (inclui anteriores) 75,9 61,1 86,6 86,9

Primeira vez que participa do OP 48,5 47,5 - -

Fonte: Cidade-2002
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Embora curto-circuitando a hierarquia e a pretensão ao monopólio de represen-


tação das lideranças comunitárias tradicionais, a participação direta implicava uma
aposta e um risco. Se o PT tentasse um movimento de instrumentalização organicista
dos setores comunitários no estilo do PDT, certamente teria fracassado, porque não
tinha o mesmo grau de enraizamento desse partido. Mesmo o PDT acabou gerando
ressentimentos ao tentar simplesmente “comandar a massa popular”. Por outro
lado, os combates internos do PT haviam ensinado um mínimo de procedimentos
democráticos em situações de ausência de dominação. O PT de Porto Alegre, dife-
rentemente de São Paulo, por exemplo, nunca teve o predomínio absoluto de uma
tendência. Isso foi obrigando as diversas tendências políticas internas ao respeito
mútuo, mesmo que a contragosto muitas vezes. O próprio governo Olívio em Por-
to Alegre (1989–1992), que inicialmente impôs uma composição predominante-
mente vinculada às suas tendências de sustentação interna, acabou aceitando, a
partir da crise do processo de intervenção no sistema de transporte coletivo, uma
composição mais de acordo com o peso de cada corrente. Essa aprendizagem con-
tribuiu para a atitude “generosa” de não condicionar participação e opção partidá-
ria. Como costumava brincar o falecido Gildo Lima, da Coordenação de Relações
Comunitárias do governo: “Aqui todos podem participar, não importa de onde a
pessoa vem, até os gremistas são bem-vindos!”.
O risco de que lideranças vinculadas ao PDT e ao PMDB, via Uampa, e estru-
turas partidárias respectivas boicotassem e inviabilizassem o processo acabou não
se configurando, porque a Uampa já se encontrava bastante desgastada por essa
época (1989–1990) e porque a adesão espontânea das pessoas nas vilas populares
tendia a crescer à medida que suas decisões de fato passaram a ser implementadas
(sobretudo a partir de 1991). Ao contrário, no início do OP em Porto Alegre,
tinha-se a nítida impressão de que a atratividade do processo era maior entre
militantes ligados ao PDT e ao PMDB do que ao próprio PT, que esperavam ações
mais radicais do governo em relação aos problemas urbanos. Uma outra decisão
importante foi a de não transformar em lei as regras de funcionamento do OP.
Diferentemente dos conselhos setoriais participativos que surgiam a partir do SUS,
a Frente Popular em Porto Alegre, com base nas determinações genéricas da Lei
Orgânica Municipal de 1990, abriu espaço para a auto-regulamentação do OP
pelos próprios participantes. Isso permitiu que a experiência fosse sendo progres-
sivamente qualificada pelo debate constante entre participantes e governo. Assim,
das reuniões regulares quase que informais para discutir as demandas priorizadas
pelas comunidades na sala ao lado do gabinete do prefeito passou-se progressiva-
mente para uma estrutura baseada em parâmetros coletivamente construídos de
justiça social (tributária, distributiva e sociopolítica), no desdobramento de todos
os itens do orçamento municipal e na formalização das decisões por meio da
publicação do plano de investimentos contemplando a apresentação dos dados
gerais do orçamento, o resultado das escolhas prioritárias dos participantes e as
obras e serviços por regiões e temáticas.
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2. A emergência de um novo princípio ético-político para a política urbana

Em Porto Alegre, a opção dos governos da Frente Popular (1989–2004) pela


Concessão do Direito de Uso, consignado já na Lei Orgânica Municipal de 1990,
não se deu exatamente por consenso das comunidades populares. Tratou-se da
obediência a um instrumento legal por pressão de entidades como o Serviço de
Assessoria Jurídica Gratuita (Saju), da UFRGS, a Uampa, a Fase Porto Alegre e o
Cidade, ONG então recém-criada (1987) e que havia surgido a partir de um
núcleo de assessoria popular existente no Sindicato dos Arquitetos. Essas entida-
des foram fundamentais na introdução de instrumentos urbanísticos progressistas
na Lei Orgânica Municipal (LOM), juntamente com o gabinete do vereador Lauro
Hagemann (à época, do PCB) e o Sindicato dos Artesãos.
Emergia um novo paradigma capaz de obter a adesão pontual dos vereadores,
muito embora os governos da Frente Popular jamais tenham tido maioria no parla-
mento local. Tendo por base os fóruns constituídos ao redor dos processos constituin-
tes nacional, estadual e municipal, e inspirado nas experiências históricas européias de
Bolonha e Barcelona, por exemplo, nas latino-americanas, como Havana e Villa El
Salvador, e nas brasileiras, como Lages, Pelotas, Vila Velha e Recife (com o Plano de
Regularização de Zonas Especiais de Interesse Social/Prezeis), esse novo modelo tinha
dois eixos básicos: a participação popular na gestão das políticas de desenvolvimento
urbano e a adoção de instrumentos legais relacionados à função social da proprieda-
de. Dados de 1985 mostravam que apenas 15 proprietários detinham 21% dos vazi-
os urbanos em Porto Alegre, sendo que os vazios urbanos correspondiam então a
53,66% do circuito urbano da cidade (ver Barcellos, 1986, p. 28-29).
O crescimento das frentes presididas pelo PT se deu, sobretudo, a partir de três
compromissos: ética na gestão da coisa pública, promoção de justiça social e parti-
cipação e transparência nos processos decisórios (cf. Ricci, 2005). Em Porto Alegre,
havia ainda um elemento adicional, que limitaria em parte a penetração do PT em
determinados segmentos empresariais médios e grandes e que havia sido expresso na
campanha de Olívio Dutra à prefeitura em 1988: a idéia de que, para que os setores
populares pudessem ganhar, outros setores deveriam perder. Ou seja, o projeto de
governo defendia a idéia de que a redistribuição da renda urbana não poderia ser
feita apenas a partir da inversão de prioridades no direcionamento do orçamento
público, sendo necessário não apenas limitar a apropriação dos investimentos pú-
blicos pelos setores privados empresariais, mas também responsabilizá-los, via re-
forma tributária, pelos meios de consumo coletivo necessários para a reprodução
social das classes populares. Tratava-se de um projeto de ênfase classista, que via na
redução da taxa de exploração urbana patrocinada pelas classes capitalistas do
urbano (empreiteiras, grandes proprietários e grandes comerciantes) o meio para
recuperar as finanças públicas e garantir o acesso à cidade e à cidadania por parte
das classes populares. Essa redução da taxa de exploração urbana, entretanto, não
era acompanhada de uma proposta alternativa para o desenvolvimento econômico
da cidade. A justiça social seria produzida pela socialização da renda urbana (via
elevação da carga tributária) e pela imposição de limites à geração dessa renda (IPTU
progressivo sobre os vazios urbanos, por exemplo, ou adoção da Taxa Transporte,
obrigando os comerciantes a arcar com parte ou todos os custos de deslocamento
dos usuários de transporte coletivo).
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26

Enquanto foi possível avançar na recuperação das receitas próprias via política
fiscal, esse projeto parecia até mesmo gerar um ciclo proativo na economia, ao
estimular, via financiamento público, um conjunto de obras executadas por
empreiteiras com base nas decisões de investimento do OP. Não é de graça que a
Região Metropolitana de Porto Alegre ainda hoje detém a menor taxa de desem-
prego entre as capitais pesquisadas pela rede Dieese/Seade.

Taxas de desemprego em regiões metropolitanas selecionadas – jan./jun. 2005 (%)

REGIÕES 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 JUN 2005
METROPLITANAS

Belo Horizonte 15,9 17,9 17,8 18,3 18,1 20,0 19,3 17,7

Distrito Federal 19,7 22,1 20,2 20,5 20,7 22,9 20,9 19,5

Porto Alegre 15,9 19,0 16,6 14,9 15,3 16,7 15,9 15,0

Recife 21,6 22,1 20,7 21,1 20,3 23,2 23,1 22,6

Salvador 24,9 27,7 26,6 27,5 27,3 28,0 25,5 25,5

São Paulo 18,2 19,3 17,6 17,6 19,0 19,9 18,7 17,5

Fonte: Convênio Seade-SP e Dieese; FEE, FGTAS/SINE-RS; STDH/GDF; CEI/FJP/Setas/Sine-MG; SEI/Setras/


UFBA; Seplandes-PE (disponível em: www.dieese.org.br).

O sucesso do OP em Porto Alegre acabou contagiando dezenas de cidades no


Brasil e em outros países. Embora sem o alcance dos conselhos setoriais (mais de
30 mil conselhos setoriais existentes para um total de 5.560 municípios no Bra-
sil), 30,9% das cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes no Brasil no
período 2001–2004 adotavam OP (ou 43,4% da população vivendo em cidades
com mais de 100 mil habitantes), conforme o quadro a seguir.

Percentual de experiências e de população com OP por classe de população em cidades


de mais de 100 mil habitantes no Brasil (1997–2004)

POPULAÇÃO Nº DE POPULAÇÃO CIDADES COM OP (%) POP. EM CIDADES COM OP (%)


CIDADES DAS CIDADES
EXISTENTES 1997–2000 2001–2004 1997–2000 2001–2004

100.001–200.000 117 16.406.325 10,3 (12) 22,2 (26) 10,9 23,1

200.001–500.000 76 23.221.680 17,1 (13) 38,2 (29) 16,0 38,8

500.001–1.000.000 18 12.583.713 22,2 (4) 38,9 (7) 24,1 39,8

Mais de 1.000.000 12 32.338.174 33,3 (4) 58,3 (7) 18,4 58,5

Total 223 84.549.892 14,8 (33) 30,9 (69) 17,1 43,4

Fonte: Marchetti (2005).

A partir do início do novo milênio, entretanto, em Porto Alegre, por diversos


motivos, esse modelo começou a esbarrar em limites que levaram o orçamento
municipal a um recorrente déficit, como é possível observar na tabela seguinte.
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Porto Alegre – Balanço Orçamentário Resumido (valores históricos em R$ milhões


RECEITAS 2002 2003 2004 DESPESAS 2002 2003 2004

1. RECEITAS CORRENTES 1.523 1.748 1.832 3. DESPESAS CORRENTES 1.450 1.675 1.786

1.1 Receitas próprias 826 1.043 1.079 3.1 Despesas com pessoal 770 985 1.052

IPTU 107 175 139 Pessoal ativo 454 638 744

ISS 178 204 241 Inativos e pensionistas 220 286 303

Outras receitas próprias 541 664 699 Outras despesas com pessoal 96 61 5

1.2 Transferências 697 705 753 3.2 Outras despesas correntes 680 691 734

FPM 44 45 49 Juros pagos 23 40 45

Outras transferências 653 659 704 Demais despesas correntes 657 651 689

2. RECEITAS DE CAPITAL 64 52 80 4. DESPESAS DE CAPITAL 171 153 202

Operações de crédito 53 44 49 Investimentos 125 115 145

Alienação de bens 9 5 26 Amortização de dívidas 45 37 45

Outras receitas de capital 2 2 5 Outras despesas de capital 1 1 12

Total receitas (1+2) 1.586 1.799 1.913 Total despesas (3+4) 1.621 1.828 1.988

Déficit 34 29 75 Sperávit 0 0 0

Total 1.621 1.828 1.988 Total 1.621 1.828 1.988

Fonte: Finbra, 2002, 2003, 2004 (disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br).

Claro que essa situação precisa ser relacionada com a opção municipal pela
ampliação da margem de endividamento,16 sobretudo via financiamento obtido
no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de US$ 58 milhões, para a
realização da III Perimetral (12 quilômetros de avenida cruzando a cidade de
norte a sul que elevaram o nível de endividamento e o comprometimento anual
com amortizações e juros), assim como tem a ver com a perda relativa de peso
econômico da cidade no conjunto do Rio Grande do Sul, o que tem impacto nas
transferências constitucionais feitas pelo Estado, conforme quadro a seguir. A re-
dução do índice de retorno do ICMS, vide quadro abaixo, para 10,513 em 2006
significará uma perda orçamentária de aproximadamente R$ 38 milhões (ou seja,
o equivalente a um quarto dos investimentos executados em 2004).
Índice de retorno do ICMS (Porto Alegre – 2000–2006)

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Índice 13,916 13,349 12,603 12,135 11,831 11,299 10,513

16
14
12
10
8
6
4
2
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Fonte: Sefaz-RS - AIM (Índice de retorno ICMS) / Índice Participação Municípios

16
A dívida consolidada de Porto Alegre, que representava menos de 10% da Receita Corrente Líquida (RCL) após reforma
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
28

Junte-se a isso também a crise fiscal do Rio Grande do Sul (por conta de isen-
ções fiscais e do peso da dívida pública após sua “federalização” em 1998), o
aumento dos gastos com pessoal (sobretudo quando aumentam as demandas nas
áreas de saúde, educação e assistência social17) e mais os constrangimentos criados
pela Lei de Responsabilidade Fiscal (necessidade de superávit primário como con-
dição para novos financiamentos), bem como a dificuldade da Frente Popular em
enfrentar uma reforma administrativa sem ter de necessariamente cair nas receitas
tradicionais de ajuste. A elevação da carga tributária federal e a reconcentração de
recursos naquele âmbito durante o governo FHC, somadas à política monetária
extremamente restritiva, contribuíram também para limitar o uso de políticas
anticíclicas por parte dos governos municipais em geral.18 Entre 1999 e 2002,
segundo o IBGE, a participação de Porto Alegre no PIB brasileiro caiu de 1,13%
para 0,97%.

Evolução dos impostos arrecadados localmente em Porto Alegre – valores em milhões


de reais, corrigidos pela inflação até dezembro de 2002

250

200

150

100

50

0
1989 1993 1997 2001 2002

IPTU SERVIÇOS TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE

Fonte: Gaplan/PMPA, 2004.

De qualquer forma, não foram esses limites mais recentes os principais


limitadores do novo paradigma urbano nos governos da Frente Popular em Porto
Alegre. Dois fatores, um estrutural e outro conjuntural, acabaram contribuindo
de forma mais determinante para que o desempenho da área de planejamento
urbano ficasse muito aquém do sonhado pelo novo paradigma. O primeiro
limitador foi a estrutura burocrática tradicional da Secretaria de Planejamento

fiscal local no início da década de 1990, passou para 25% da RCL em 2000 e chegou a 32% no primeiro quadrimestre de
2005 (R$ 569 milhões). Observa-se, nesse período, também uma progressiva redução do ativo disponível, pois a dívida
consolidada líquida (= dívida - disponibilidades) variou muito mais, de 12,5% da RCL, em 2000, para 24,5% da RCL, no
primeiro quadrimestre de 2005. Ainda assim, Porto Alegre ainda está longe do teto de endividamento admitido pela Lei
de Responsabilidade Fiscal, que permite uma dívida líquida de até 120% da RCL.
17
Porto Alegre compromete, hoje, 49,82% da RCL com pessoal (dados do primeiro quadrimestre de 2005, conforme
disponível no site Secretaria da Receita Federal (http://www.tesouro.fazenda.gov.br).
18
Conforme dados da Secretaria da Receita Federal, entre 1998 e 2004, a carga fiscal no Brasil elevou-se de 29,7% do
PIB para 35,9%. Ao mesmo tempo, a participação do governo federal no bolo tributário nacional se eleva de 56,1%, em
1996, para 60,1%, em 2002, enquanto decresce a participação dos estados (de 27,6% para 24,6%) e dos municípios (de
16,2% para 15,3%) no mesmo período.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
29

Municipal (SPM). A resistência tecnocrática à “irracionalidade” dos investimentos


decididos pelas classes populares, envolvendo parte da própria equipe indicada pelo
governo, levou o prefeito Olívio Dutra a ter de criar uma estrutura paralela para
montar o orçamento municipal, o Gabinete de Planejamento (Gaplan). Contra a
urbanização de favelas em áreas centrais, os tecnocratas alegavam, por exemplo,
que haveria uma relação custo/benefício maior com a remoção dos moradores para
áreas periféricas. Os terrenos em áreas centrais ocupados por favelas poderiam ser
vendidos e, com os recursos gerados, seria possível assentar um número muito mai-
or de famílias. Outro argumento era de que a cidade deveria ser igual para todos.
Como, para manter todas as famílias no local, a urbanização de favelas implicaria
a adoção de padrões urbanísticos “rebaixados” (largura das ruas, dimensão dos
lotes etc.), haveria uma “discriminação” dos moradores dessas áreas.
Esse tipo de preconceito ainda hoje gera teses conservadoras de que o OP teria
destruído o planejamento urbano na cidade. Parece, ao contrário, que a tecnocracia
ligada ao planejamento urbano preferia cometer haraquiri a questionar os pressu-
postos elitistas que a colonizavam desde décadas. Isso acabou provocando uma
relação esquizofrênica entre OP e planejamento urbano, porque, embora o OP
não necessitasse dos preconceitos dos tecnocratas do planejamento, seria ingênuo
supor que pudesse prescindir da contribuição técnica qualificada na discussão dos
investimentos municipais. A opção pela pavimentação asfáltica, por exemplo,
impermeabilizando o solo e aumentando a velocidade dos veículos em áreas de
moradia popular, poderia ter sido mais bem discutida com os participantes do
OP, assim como determinadas opções na área do saneamento básico (incremento
das redes de coleta de esgotos sem uma tempestiva contrapartida em seu trata-
mento). Levou quase uma década para que novos técnicos ligados ao novo
paradigma descrito anteriormente chegassem a posições relevantes de influência
na SPM. Assim como o orçamento, também a equipe de regularização fundiária
acabou sendo transferida da SPM para o Demhab, para, só mais tarde, poder
voltar à SPM.
O segundo limitador que prejudicou o desempenho do planejamento urbano,
o conjuntural, foi a estratégia econômica de cunho predominantemente fiscal a
que “se obrigou” a Frente Popular logo de início, em 1989. Isso levou os econo-
mistas militantes trazidos para o governo (ligados, sobretudo, à Sociedade de
Economia) a priorizar um olhar mais arrecadador do que propriamente transfor-
mador sobre a dinâmica econômica local e as possibilidades dos novos instru-
mentos de regulação urbana consignados pela Lei Orgânica Municipal de 1990.
O máximo que se avançava a partir desse olhar era na direção da produção de
justiça tributária (quem ganha mais deve pagar mais). Seu principal instrumento
foi a proposta de IPTU progressivo sobre os vazios urbanos. Apesar de aprovado
pelos vereadores, ficou sub judice até o fim da década de 1990, em função de
ação impetrada pelo então vereador Isaac Ainhorn (PDT), atualmente secretário
de Planejamento no governo Fogaça. Quando a justiça finalmente decide pela
legalidade do IPTU progressivo, numa conjuntura favorável à aprovação do Esta-
tuto da Cidade no Congresso Nacional, uma nova lei municipal deveria ser apro-
vada para regular a matéria. Entretanto, o cerco dos partidos de oposição às ini-
ciativas fiscais da Frente Popular, já em seu terceiro mandato, impediria a aprova-
ção da proposta.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
30

3. O funcionamento recente dos espaços participativos nas áreas de habitação e pla-


nejamento urbano
Em primeiro lugar, é preciso destacar que as políticas habitacionais em Porto Ale-
gre têm apresentado resultados bastante significativos, como a já mencionada
redução da área de irregularidade fundiária, o que é um fato inédito entre as
capitais brasileiras, bem como tem sido possível assegurar uma oferta ao redor de
mil unidades/ano para a população de baixa renda (entre lotes urbanizados, casas
e apartamentos). De forma semelhante, no âmbito do planejamento urbano, tem
sido possível urbanizar núcleos populares em áreas centrais da cidade, realizar
operações consorciadas em benefício dos setores mais pobres, bem como assegurar
um amplo espaço de negociação nos casos de ocupações e de emergências. Embo-
ra parcialmente bem-sucedida, as políticas adotadas confirmam a regra. A princi-
pal “política” para a moradia popular em Porto Alegre e nas grandes capitais
brasileiras tem se baseado num contínuo movimento de ocupações. Não são esses
os resultados para serem analisados neste documento, num primeiro momento.

Regularização fundiária e produção habitacional em Porto Alegre por região (1989–2004)

REGIÃO REGULARIZAÇÃO PRODUÇÃO TOTAL DE FAMÍLIAS


FUNDIÁRIA HABITACIONAL BENEFICIADAS

HUMAITÁ/NAVEGANTES 876 2.083 2.959

NOROESTE 64 164 228

LESTE 7.737 61 7.798

LOMBA DO PINHEIRO 4.741 403 5.144

NORTE 1.733 663 2.396

NORDESTE 3.298 4.322 7.620

PARTENON 2.794 350 3.144

RESTINGA 542 2.508 3.050

GLÓRIA 2.299 238 2.537

CRUZEIRO 6.764 917 7.681

CRISTAL 1.363 21 1.384

CENTRO-SUL 1.137 1.660 2.797

EXTREMO-SUL 284 589 873

EIXO DA BALTAZAR 751 1.478 2.229

SUL 1.908 195 2.103

CENTRO 359 495 854

TOTAL 36.650 16.147 52.797

Fonte: DEMHAB, Habitação é prioridade em Porto Alegre, Porto Alegre, PMPA, 2004.

O volume de investimentos governamentais nas áreas mais pobres mudou a


cara da cidade nos últimos anos. O apoio a esses resultados expressa um relativo
consenso entre setores populares, empreiteiros de obras, governo e sociedade em
geral, até porque eles são funcionais ao sistema capitalista. O que pretendemos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31

tratar, neste texto, é precisamente dos pontos não consensuais, dos pontos em
que há disputa ou onde os arranjos implicam problemas para a qualidade de
vida na cidade.

a) Conselho Municipal de Acesso a Terra e Habitação (Comathab)


Vejamos, inicialmente, como funciona a estrutura participativa da política
habitacional em Porto Alegre. Embora caiba ao Comathab deliberar sobre as polí-
ticas habitacionais, o primeiro espaço onde as demandas são apresentadas é o OP. É
nas assembléias regionais e nos fóruns respectivos que propostas de regularização,
urbanização, compra de áreas ou produção de lotes e unidades construídas são
listadas por ordem de prioridade para o governo. Caso habitação fique entre as três
primeiras demandas da cidade, é certo que haverá recursos para investimentos, o
que tem ocorrido invariavelmente desde que habitação se tornou um tema possível
de ser priorizado no OP. Os fóruns regionais do OP são, portanto, espaços estraté-
gicos para os movimentos de moradia na cidade. Além dos fóruns regionais, o
fórum temático do OP de Organização da Cidade e Desenvolvimento Urbano e
Ambiental também é importante para a apresentação de propostas mais gerais para
a cidade, como o apoio a cooperativas habitacionais, por exemplo. Após a defini-
ção dos recursos disponíveis, cabe ao Demhab, em parceria com o Gabinete de
Planejamento, a definição das obras e dos serviços concretos a serem desenvolvidos.
Nesse ponto, deveria iniciar o trabalho do Comathab e é nele onde se iniciam
os problemas. Geralmente, a proposta final a ser apresentada pelo Comathab ao
Conselho do Orçamento Participativo (COP) só é apresentada àquele às vésperas
de sua ida a este. Ou seja, todo o processo de construção da proposta se dá inter-
namente ao governo, e não em parceria com o Comathab. Segundo o governo,
isso se deve a várias limitações, como a demora nas negociações com a Caixa
Econômica Federal, a dificuldade de adequar as áreas disponíveis às necessidades
das regiões, as dificuldades técnicas em ampliar os trabalhos de regularização
fundiária etc. O fato concreto é que, existindo há quase uma década, o Comathab
ainda não constituiu uma rotina adequada de trabalho, na qual todas as infor-
mações estratégicas estejam disponíveis. É curioso, por exemplo, que tanto a ges-
tão anterior (PT) como a atual (PPS) julguem impróprio divulgar os dados do
Banco de Terras do município (Lei Complementar 269/92) aos membros do con-
selho, em virtude do risco de ocupações, como se a burocracia que administra os
dados ou os próprios membros do governo fossem em princípio mais confiáveis.
Da mesma forma, não são trazidos para o conselho os dados da execução orça-
mentária do plano de investimentos, nem a prestação de contas do Fundo Muni-
cipal de Desenvolvimento (que incorpora recursos do solo criado e outros). Se-
gundo o governo, tais controles caberiam a um segundo conselho, o Conselho
Deliberativo do Demhab, no qual os participantes são quase todos indicados pelo
próprio governo e cuja atuação não se traduz em nenhuma divulgação pública de
seu trabalho. Conforme estudo do Pólis, encomendado pelo próprio órgão:
[...] o Comathab, embora sendo órgão deliberativo, não atua como
tal. Ainda não está resolvida a questão de duplicidade de atribui-
ções ou o sombreamento com o Conselho Deliberativo do
Demhab. Por lei as principais atribuições do Comahab estariam
relacionadas à deliberação nas questões do acesso à terra e moradia,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
32

a gestão do FMD, e a fiscalização e controle sobre as ações da


política habitacional. Também existem alguns sombreamentos com
CMDUA e com o COP. Caberia ao Comathab propor o plano de
aplicação do FMD, principal instrumento para a efetivação do
papel deliberativo do Comathab. Enquanto esta discussão não
evoluiu, seu papel se esvazia frente à potencialidade prevista em lei.
(Pólis, 2004)

Como tem sido possível sustentar esse esvaziamento ao longo de vários anos?
A resposta é relativamente simples. Primeiro, despendendo anos apenas para or-
ganizar o regimento interno e garantir pelo menos uma rotina de reuniões, embo-
ra não de procedimentos. Segundo, priorizando a discussão de situações imedia-
tas e emergenciais ou simplesmente pontuais, ligadas aos interesses desse ou da-
quele conselheiro. Como um terço dos conselheiros vem das regiões do OP (agru-
padas duas a duas), é natural que tragam um conjunto de demandas de serviços
para as reuniões, mas não é aceitável que elas acabem substituindo a ausência de
decisões sobre a política habitacional propriamente dita. Terceiro, postergando
sistematicamente o fornecimento de informações relevantes. Existem os dados
gerais dos gastos do Departamento, mas praticamente não há dados sobre a exe-
cução dos projetos específicos. Como conseqüência, a função educativa que po-
deria ter o funcionamento do Comathab para os participantes e para aqueles que
representam acaba meio perdida e se reforçam os aspectos mais imediatistas da
participação. Talvez isso também ajude a explicar o escasso retorno do resultado
das reuniões para o conjunto da sociedade e mesmo para as pessoas que escolhe-
ram os conselheiros em suas regiões. Da mesma forma, explica-se também o pe-
queno interesse dos setores empresarias da construção civil em participar desse
conselho, e o mesmo pode ser dito dos representantes do próprio governo, sendo
necessário muitas vezes adiar deliberações em função de problemas de quorum.
Como, então, pode combinar-se esse esvaziamento com a efetividade dos in-
vestimentos em habitação no município (R$ 321 milhões em 16 anos, benefici-
ando um número aproximado de 53 mil famílias)? A resposta a essa pergunta é
um pouco mais complexa, já que, na verdade, o Demhab divide com outros seto-
res do governo as decisões estratégicas sobre a política habitacional. Assim, existia
todo um amplo espaço de bastidores em que se articulavam líderes comunitários
e governo, sobretudo no âmbito do OP. Na verdade, só muito recentemente, o
Demhab vem se aparelhando para o desempenho de um papel mais estratégico.
Durante a maior parte de sua existência, o órgão funcionava mais como uma
imobiliária popular, repassando financiamentos da CEF e administrando uma
carteira sempre com alto índice de inadimplência (estimada atualmente em 80%,
segundo o novo diretor geral do departamento, Nelcir Tessaro). Além disso, como
havia uma relativa coincidência de propósitos entre governo e líderes comunitári-
os, não havia muita preocupação com as formalidades de funcionamento do con-
selho, desde que, na prática, os investimentos ocorressem.
A conseqüência, mais uma vez, foi a despolitização da questão habitacional. A
melhor expressão disso foi o recuo do governo na questão da Concessão do Direi-
to de Uso. Um dos debates mais relevantes tratados no âmbito do Comathab teve
a ver com o repasse de chaves em áreas de concessão de uso. Segundo a Lei Orgâ-
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
33

nica do Município (artigo 203), para os terrenos públicos ocupados até 1989
seria possível aplicar a Concessão do Direito Real de Uso (CDRU), ou seja, o
direito dos ocupantes permanecerem no local mediante o pagamento de um pe-
queno “aluguel” ao município.19 Posteriormente, estendeu-se o direito de uso tam-
bém para outras situações. A concessão poderia ser transferida aos herdeiros, e a
única condição era de que o imóvel não poderia ser repassado a terceiros, a não
ser pela sua devolução ao Demhab, que, então, selecionaria outra família em
situação de carência. Na prática, não havia um trabalho pedagógico a respeito de
suas vantagens sobre a propriedade privada (que implicaria ao morador um custo
de mercado a ser pago, e não um simples aluguel, além do custo social para o
conjunto da sociedade, já que, pelo instrumento da livre venda, seriam retirados
imóveis de uso social para serem repassados ao mercado privado).
Somando-se a isso, a pressão de setores de oposição que procuravam mostrar a
concessão do direito de uso como uma forma de discriminação social e mais o
incentivo velado dado ao comércio ilegal de chaves, gerou-se o caldo de cultura
necessário para pressionar a Prefeitura a rever as regras do jogo, o que ocorreu du-
rante a 1ª Conferência Municipal de Habitação em Porto Alegre, em 1997, quando
foi tirada a recomendação de realização de um seminário específico para tal fim.
Desse seminário surgiu um projeto de alteração na legislação, tornado lei em 2000
(Lei Complementar 445), que permite a venda dos imóveis por parte de detentores
do direito de uso, mas sob determinadas condições (via Demhab, garantia de que o
comprador também apresenta as mesmas condições de carência). Essa alteração
abriu espaço para novas propostas na Câmara de Vereadores, como a possibilidade
de conversão em financiamento habitacional após dez anos, entre outras.
No governo Fogaça, com a recente instituição do programa Dono da Casa
pelo Demhab,20 a concessão do direito de uso pode ser convertida em financia-
mento habitacional em até 240 meses. Não se trata apenas de uma questão de
razoabilidade, como pode parecer à primeira vista, mas da contradição entre inte-
resse social e apropriação individual. A disputa política em torno da questão con-
cessão versus propriedade tornou-se emblemática do modelo de gestão autoritária
adotado pelo Demhab. Esse órgão, mesmo após 16 anos de administração popu-
lar, não conseguiu alterar certo ranço policialesco-clientelista na gestão dos seus
loteamentos. Embora existam alguns casos exemplares, de um modo geral não foi
possível desenvolver um trabalho mais efetivo de educação popular, voltado para

19
A CDRU é um instrumento utilizado basicamente nas áreas públicas de uso comum ou no reassentamento de
comunidades que residem em áreas impróprias ao uso habitacional, ou seja, as áreas de risco. Tal concessão é dada para
famílias de baixa renda (até cinco salários mínimos) e que não sejam proprietárias de outro imóvel. No caso de morte do
concessionário, nos termos do artigo 7º da Lei Complementar Municipal 242/91, alterado pela Lei Complementar
Municipal 455/2000, “será prevista a ordem de vocação hereditária nos termos do artigo 1.603 do Código Civil Brasileiro”.
20
No site do Demhab, lê-se a respeito do programa Dono da Casa: “O programa trata da opção de compra de unidades
habitacionais de interesse social. A nova modalidade de contrato torna o morador proprietário do imóvel, como refere o
nome. Assim, casa e todas suas benfeitorias podem ser transferidas, desde que atendidos alguns requisitos legais. Além
disso, o programa atende antigas reivindicações dos moradores: a garantia da escritura de sua casa e o pagamento das
prestações por tempo determinado. O Demhab parcela o valor da casa em até 240 meses. O contrato de superfície garante
que a área seja utilizada exclusivamente com o fim de habitação de interesse social, protegendo as terras públicas de
especuladores imobiliários. As casas e apartamentos construídos pelo Demhab eram entregues mediante um contrato de
Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Agora, há uma nova opção de contrato: o Contrato de Direito de Superfície”.
Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?p_secao=22>. Acesso em: 27 nov. 2005.
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a gestão coletiva dos loteamentos e conjuntos habitacionais. O Demhab acabou


assumindo um papel de síndico não-eleito, numa relação ao mesmo tempo auto-
ritária e paternalista com seus “clientes”. Não por acaso, é um dos órgãos da
prefeitura com maior número de cargos em comissão (CCs). São 66 CCs de livre
provimento pelo prefeito, só perdendo para o Departamento Municipal de Água
e Esgotos (DMAE), com 108 CCs, e para o gabinete do prefeito, com 86 CCs.21
Nesse processo, os sujeitos populares acabam sendo tratados geralmente como se
fossem incapazes de autonomia e de responsabilidade coletiva. Não se rompe com
a barreira do contrato individual, da hipoteca individual. Quanto mais são trata-
dos como flagelados e não como cidadãos, mais assim eles se comportam, como
se observa pelos níveis de inadimplência e pelas situações caóticas que se estabele-
cem em determinados espaços geridos diretamente pelo órgão.
O novo governo, o de Fogaça, já reconhecia a situação caótica de muitos con-
domínios desde antes das eleições. O programa Dono da Casa é justamente uma
de suas promessas de campanha. Como já mencionado, a concessão do direito de
uso implica um “aluguel” mensal (entre R$ 8 e R$ 15). A conversão em financi-
amento imobiliário implica aumentar a parcela mensal em mais de 1.000% (mes-
mo subsidiadas, as prestações ficam entre R$ 70 e R$ 150). A lógica aparente do
programa é de que as pessoas não são responsáveis porque não têm a propriedade
dos imóveis que possuem.
Por trás disso, há, na verdade, uma questão mais ideológico-fiscal do que soci-
al. O Departamento tem um comprometimento mensal com financiamentos ob-
tidos na CEF ao redor de R$ 585 mil mensais (referentes a 22,5 mil unidades),
sendo R$ 290 mil referentes a um único condomínio, o Jardim Leopoldina (1.092
unidades), fruto de uma complicada negociação realizada com os ocupantes.22 A
receita própria do Demhab (de mutuários, beneficiários do direito de uso e ou-
tras) está em aproximadamente R$ 376 mil mensais. O subsídio líquido às famí-
lias envolvidas seria, portanto, de mais ou menos R$ 210 mil mensais. Caso ve-
nha a ser resolvida a inadimplência do Jardim Leopoldina, haverá uma redução
substancial dessa diferença, mesmo se considerando que será necessário reduzir as
prestações para valores compatíveis com a renda efetiva das famílias. Além disso,
verifica-se que o maior custo corrente do Demhab, R$ 1,3 milhão mensal, é com
a folha de salários, e não com os pagamentos à CEF.
Desse modo, a fúria fiscal que atualmente se abate sobre as comunidades popu-
lares em áreas geridas pelo Demhab, através dos programas Dono da Casa, Moradia
Legal (“regularização contratual”) e Fique Legal (“regularização econômica”),

21
Porto Alegre tem 778 CCs, dos quais 40 são conselheiros tutelares eleitos pela população. O custo mensal da folha dos
CCs gira ao redor de R$ 2,5 milhões. O número total de servidores públicos municipais ativos é de aproximadamente 12,5
mil, dos quais 2,5 mil ocupam funções gratificadas (FGs).
22
Tratava-se de um condomínio destinado aos setores médios. Acabou sendo ocupado em 1987, quando da falência do
BNH. Para viabilizar a permanência das famílias no local, nas negociações com a incorporadora responsável pela obra,
manteve-se um valor baixo para as prestações, estimando que não haveria inadimplência. Como o município ficou como
garantidor dos financiamentos, cabe a ele arcar integralmente com os custos de inadimplência. A situação é complexa,
porque, mesmo assim, o valor das prestações, corrigido pela variação do CUB, em alguns casos ficou muito alto (alguns
moradores têm prestações ao redor de R$ 600). Além disso, muitos ocupantes originais acabaram vendendo as chaves,
os novos ocupantes não se sentem seguros em pagar, e o Demhab, até a chegada do governo Fogaça, nunca quis encarar
o custo político de provocar o despejo de 80% das 1.092 famílias que lá residem. Estima-se que 10% dos 22,5 mil imóveis
do Departamento tenham sido transferidos irregularmente.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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ameaçando com ações de despejo e pressionando pelo reenquadramento cadastral/


contratual, tem mais a ver com os problemas fiscais da Prefeitura do que propri-
amente com a inadimplência. Além dos programas citados, há ainda o Água
Certa (“regularização dos registros de água”), em que são instalados registros
individuais e coletivos nos loteamentos. Caso a soma do consumo individual
seja inferior ao consumo coletivo (o que supostamente comprovaria a existência
de “gatos”), o saldo é rateado entre o conjunto dos titulares de registros indivi-
duais. É o mesmo modelo que vem sendo adotado pela Companhia Estadual de
Energia Elétrica (CEEE), atualmente a sexta maior empresa do Rio Grande do
Sul. E há ainda outros programas municipais na mesma direção, como o que
cria as frentes de trabalho voluntário, nas quais famílias comprovadamente ca-
rentes podem inscrever um de seus membros como voluntário em troca da con-
cessão mensal de uma cesta básica. Na prática, significa obrigação de prestação
de um “serviço militar” em troca de comida, pois é voluntário apenas por deses-
pero. Faltaria apenas recriar as senzalas para que os novos escravos tivessem
onde dormir.
O efeito dessa fúria fiscal sobre as comunidades populares, entretanto, tem
conseqüências imediatas no aumento do custo de vida de famílias que estão entre
as mais pobres da cidade, bem como, por meio da conversão da concessão de uso
em financiamento, abre a porta para que as décadas de construção de habitações
populares sejam devoradas em poucos anos pelo mercado imobiliário,
realimentando-se, mais uma vez, o ciclo de ocupações em áreas de risco e/ou pre-
servação ambiental. Tudo isso ocorre numa conjuntura de desemprego, em que
muitos sequer conseguem pagar a conta de luz. Numa área do loteamento
Timbaúva, por exemplo, agora em 2005, os moradores se recusaram a assinar
contratos para a instalação regular de energia elétrica, porque não teriam como
pagar a conta, preferindo continuar com o sistema de “gatos”.
Podia ter sido diferente. Não era tão difícil assim derrubar o argumento de que
“todos seremos iguais, todos seremos proprietários capitalistas”. Mas isso impli-
caria outro projeto, menos pragmático e mais político. Nesse sentido, ao simples-
mente aceitar as demandas do senso comum, assegurou-se o direito à moradia,
mas limitou-se o espaço de autoria popular no uso de tal direito. Optou-se pela
provisão individual de lotes e unidades via empreiteiras de obras (com o argumen-
to de que esse era um limitador imposto pela CEF) e relegaram-se as iniciativas
populares como as cooperativas autogestionárias a um espaço secundário. Apenas
para registrar um exemplo, em 2004, em pleno ano eleitoral, o movimento de
luta pela moradia conseguiu inserir na agenda municipal um projeto-piloto com
recursos a fundo perdido da CEF para moradia a moradores de baixa renda.
Tratava-se de uma experiência inédita ainda em Porto Alegre, onde o movimento
organizaria sistema de mutirão remunerado para a construção das unidades, a
partir de uma unidade própria de produção de tijolos de fibrocimento e da cons-
tituição de uma cooperativa de moradores para a gestão do loteamento, incluin-
do propostas para geração de renda, creche, sede social etc. A CEF repassou os
recursos ao município, as obras foram iniciadas, futuros moradores começaram a
trabalhar no mutirão, só que os repasses para a remuneração dos trabalhadores
não ocorreram, pois também eles entraram no sistema de contingenciamento das
despesas do governo. Sem comentários.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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O governo Fogaça, ao estabelecer essa fúria fiscal sobre as áreas do Demhab e


tentar implantar a tolerância zero com relação às novas ocupações, está, na verda-
de, apenas reforçando uma tendência administrativa que, de certa forma, sempre
caracterizou a política habitacional de Porto Alegre. Com certeza essa tendência
sofreu inflexões e foi obrigada a uma maior tolerância pela pressão das comuni-
dades organizadas no OP. Essa tolerância garantiu a constante normalização dos
conflitos habitacionais numa cidade em que vinham ocorrendo 20 ocupações por
ano, em média, como mencionado no início deste documento. Embora tente ado-
cicar o discurso, ao oferecer descontos e vantagens legais para o enquadramento
dos moradores das vilas populares, ao juntar intolerância administrativa e intole-
rância política, o Demhab traz novamente os movimentos de luta pela moradia
para o confronto direto, como vem ocorrendo em várias situações de ocupação ao
longo deste ano.
Apresentando-se em nome da construção da governança solidária local (novo
conceito trazido pelo governo Fogaça e que será analisado neste texto), politica-
mente, são realizados dois movimentos. De um lado, a decisão de priorizar a
regularização fundiária, por meio da titulação individual da posse, preferencial-
mente já transformada em financiamento imobiliário. Isso está sendo feito tanto
a partir de um melhor aparelhamento jurídico para dar agilidade às ações como
da abertura de frentes de enquadramento de diferentes situações de posse, em
grande parte das áreas ocupadas irregularmente. Por outro lado, o governo procu-
ra levar as próprias comunidades populares a discriminarem entre o “carente” e o
“grileiro”, entre o honesto consumidor privado de água e energia e o “caloteiro”,
buscando adquirir o monopólio da “ordem habitacional” nas vilas populares.
Também o PT, quando chegou ao governo em 1989, teve essa pretensão, por meio
do programa More Melhor Participando, cujo apelo era para que os detentores de
imóveis financiados via Demhab regularizassem seus pagamentos. Em troca, os
recursos assim obtidos seriam aplicados em melhorias nos próprios loteamentos.
Também as novas ocupações eram rigidamente fiscalizadas quase que diretamente
pela nova diretora geral à época, Lires Marques. Naquele então (1989-1992),
essa lógica fiscalista foi sendo gradativamente moderada pela pressão das comu-
nidades populares via OP.23
A experiência dos fóruns regionais do OP mostrou justamente que a constru-
ção de uma responsabilidade social só pode ser fruto de uma ética coletivamente
constituída. A definição de uma política habitacional pautada pela regularização
fundiária e a urbanização de vilas populares não foi um movimento espontâneo
da administração popular, mas o resultado concreto da partilha efetiva de poder
implantada pela participação popular. Já no atual contexto do governo Fogaça,
ainda é incerto até que ponto a intolerância administrativa poderá ser limitada
pela pressão política, uma vez que é outro o projeto político no poder. Curioso é

23
Por pressão das comunidades populares, articuladas no Fórum Municipal de Reforma Urbana, foi possível fazer com que
os governos da Frente Popular incorporassem a partir de 1992 políticas ativas de regularização fundiária, bem como de
reassentamento de famílias em áreas de risco/preservação (via os seguintes programas: Programa de Regularização
Fundiária; Programa de Reassentamento; Programa de Cooperativismo Habitacional Autogestionário, que pouco avançou;
Programa de Ajuda Mútua/Mutirão, que gerou apenas 173 unidades, infelizmente; Programa de Regularização de
Loteamentos Clandestinos e Irregulares; bem como compra de áreas para projetos de moradia, por meio do OP).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
37

perceber que essa mesma rigidez fiscal atual não se reproduz no relacionamento
com as classes empresariais, ao contrário. O governo Fogaça vem reunindo os
setores empresariais da cidade, por segmento, para propor a redução do Imposto
sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN). Embora variando de setor para
setor, a redução tende a ficar em torno de 40% (redução da incidência do tributo
de 5% para 3%). Argumenta-se que a redução permitiria trazer todo um conjun-
to de empresários para o campo da legalidade e, conseqüentemente, compensar a
redução com diminuição da evasão fiscal. Por enquanto, o que é certo é a atração
política desse conjunto para o campo ideológico do novo governo.

b) Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA)


Diferentemente do Comathab, o CMDUA24 foi, desde sempre, uma área de inte-
resse prioritário dos setores empresarias ligados à construção civil, sobretudo por
meio do Sindicato das Indústrias da Construção Civil (Sinduscon). Como salien-
tamos no início, um conselho de planejamento urbano já existia desde 1939. O
que mudou com a aprovação de um novo Plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano e Ambiental (PDDUA) em 1999 (em substituição ao de 1979) – além, é
claro, da incorporação de vários instrumentos de reforma urbana, a maioria dos
quais já inscritos em leis complementares anteriormente – foi a composição e o
funcionamento. Foram criados os Fóruns Regionais de Planejamento, agrupando
regiões do OP mais ou menos duas a duas, e, tal como no Comathab, foram
incorporados um terço de representantes vindos destes fóruns.
Na idéia original, essa fórmula garantiria um peso significativo para os repre-
sentantes comunitários, embora a representação regional não estivesse restrita às
associações de moradores, como no caso do Comathab. Na prática, acabou não
funcionando bem assim, porque os setores empresariais e as respectivas corporações
(Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sociedade de Engenharia do Rio Grande do
Sul, Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura, Sindicato dos Correto-
res de Imóveis do Rio Grande do Sul) acabaram se organizando para participar
também dos fóruns regionais. Ou seja, se havia a ilusão de que esse novo design
levaria a um desequilíbrio na correlação de forças, na prática isso não ocorreu, o
que não significa que não houve ganhos para os setores comunitários que come-
çaram a participar. A simples criação dos fóruns regionais de planejamento inseriu
na agenda dos fóruns regionais do OP a questão do planejamento urbano, pro-
porcionando uma discussão para além das demandas de obras e serviços. Na re-
gião Lomba do Pinheiro, por exemplo, desenvolveu-se um trabalho inédito de
planejamento urbano participativo,25 iniciado antes mesmo da entrada em vigor
do novo PDDUA. Muitas atividades que antes se instalavam nas regiões sem que
ninguém ficasse sabendo antes passaram a ter de ser avaliadas pelos fóruns, permi-
tindo uma discussão mais ampla sobre sua conveniência.

24
O regimento interno do CMDUA, assim como o PDDUA de Porto Alegre, encontra-se disponível no site da Secretaria de
Planejamento Municipal da Prefeitura de Porto Alegre (http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/).
25
Vide o documento “Construindo a Lomba do futuro”, disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/
spm/usu_doc/publi_lomba_ordenado.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Entretanto, a rotina burocrática de funcionamento do conselho pouco ainda


se alterou. O ritual de receber projetos individuais e remetê-los para pareceres dos
conselheiros e dos fóruns regionais acaba ocupando a maior parte do tempo dos
membros do conselho. Tinha-se a idéia de que as regiões discutiriam o seu plane-
jamento, mas, na verdade, isso pouco avançou. A própria equipe do governo, em
parte composta por CCs sem qualificação na área de planejamento urbano (a
SPM dispunha de 18 CCs), apresentava dificuldades para trabalhar com mapas e
informações estratégicas para que os fóruns pudessem passar a um outro patamar
de desempenho, ainda mais para utilizar ferramentas didáticas com os represen-
tantes comunitários no CMDUA e nos fóruns regionais de planejamento. Isso
acabou desmotivando a participação comunitária mais de base, que não vê mui-
tas possibilidades de resultados concretos nos fóruns.
Por outro lado, o governo, mais uma vez, mostrou-se reticente em assumir o
seu papel pedagógico, o que permite, não raro, um jogo esquizofrênico entre seto-
res empresarias e comunitários. Para a maior parte dos setores comunitários, tan-
to faz o que os empresários pretendem para as áreas nobres da cidade, isso não
lhes interessa diretamente. Da mesma forma, para os setores empresariais, não
interessa muito saber o que o governo e as comunidades pretendem nas periferias.
O próprio Plano Diretor de 1999 já é um pouco o resultado disso, uma vez que
permitiu regimes urbanísticos diferenciados e de interesse social nas periferias e,
ao mesmo tempo, alterações nos índices construtivos nas áreas nobres, via meca-
nismo do solo criado. Pensado originalmente como um instrumento de
responsabilização pelo uso intensivo de infra-estrutura urbana, acabou se conver-
tendo em um mecanismo facilitador dos processos de verticalização, sobretudo
após a vitória dos setores empresariais na determinação de um valor relativamente
baixo por metro quadrado adicional de solo criado.
Mesmo projetos que poderiam servir como ponte entre os diversos setores par-
ticipantes, como o Urbanizador Social, continuam ainda como simples promessa.
O Urbanizador Social26 (Lei 9.162/03) consiste basicamente na articulação de um
conjunto de instrumentos de flexibilização urbanística e de incentivos diversos de
modo a atrair empreendedores privados e mesmo cooperativas comunitárias para
a produção de lotes e unidades habitacionais de interesse social, isto é, a preços
acessíveis para a população com renda familiar entre 2,5 e 5 salários mínimos.
Trata-se, na verdade, da tentativa de constituir uma solução de mercado para dar
conta de demandas sociais, com o poder público entrando com subsídios diversos
de modo a transformar a demanda social em demanda de mercado. É uma espécie
de “renda mínima” habitacional.
Os setores empresariais, conforme manifestação da representação do Sinduscon
no CMDUA, não parecem suficientemente atraídos porque as garantias de retor-
no não estão plenamente asseguradas. Já as cooperativas populares dependeriam
de financiamento via CEF, o que só é possível via garantia hipotecária individual
(ou seja, submissão a regras bancárias de aprovação de cadastro). Embora seja um

26
O texto da Lei 9.162 está disponível em : <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/
lei_do_urbanizador_social_ok.pdf>. Acesso em : 27 nov. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
39

projeto cheio de boas intenções – uma vez que fica reduzido a uma “bolsa” e não
dá conta das condições em que se reproduz a exclusão urbana, nem implica, de
fato, uma alternativa de autoria popular para a questão das moradias, o que
envolveria uma outra lógica de financiamento –, torna-se apenas mais um projeto
de solução pontual, quando não de franco subsídio ao lucro privado.
Um outro exemplo recente e que permite visualizar a dinâmica de poder que
atravessa o CMDUA é o que se refere às Estações de Rádiobase (ERBs). As ERBs
são as famosas antenas instaladas em várias regiões da cidade para viabilizar o
funcionamento de aparelhos celulares. De acordo com a legislação, a instalação
dessas estações deveria observar regras ambientais mínimas27 e precisaria ser apro-
vada pelo CMDUA. Porém, uma vez que era necessário ouvir também os fóruns
regionais de planejamento, acabou sendo gerado um impasse existente desde o
governo Verle, pois muitas comunidades criticavam as áreas escolhidas e a
inobservância dos termos da legislação. O governo Verle, embora em princípio
favorável à aprovação, aceitou os argumentos comunitários e vinha adiando uma
definição sobre a questão. Quando o governo Fogaça assumiu, em janeiro de 2005,
fez aprovar todos os processos de forma conjunta, aproveitando a situação de rela-
tiva desmobilização em período de férias escolares e de transição de governo. Foram
estabelecidos termos de ajustamento de conduta dali para frente, prorrogando, na
prática, o prazo que já havia sido dado para adequação legal das instalações, tal
como era reivindicado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do
Sul (Fiergs). Os setores empresariais, que haviam sido derrotados na justiça quando
questionaram a legitimidade de uma lei municipal regular a matéria, compensaram
a perda jurídica com uma vitória na prática. Além disso, ainda obtiveram do gover-
no Fogaça a edição do Decreto-lei 14.826/05, que restringe o prazo para a Comis-
são de Análise Urbanística e Gerenciamento avaliar o impacto urbano de empreen-
dimentos. O decreto passou a toque de caixa pelo CMDUA, sem que os conselhei-
ros comunitários sequer percebessem, em meados de fevereiro de 2005, quando o
quorum é mais baixo. Em seguida, foi apresentado, com toda a pompa e circuns-
tância, em uma reunião almoço do Sinduscon. De lá para cá, vários outros projetos
de interesse dos grandes incorporadores imobiliários têm sido aprovados de forma
atropelada pela Secretaria do Planejamento Municipal, como se esses setores mal
pudessem esperar a chegada do novo governo ao poder. Projetos controvertidos,
como o Parque Germânia (megaempreendimento imobiliário dos grupos Goldsztein
e Condor numa área de 40 hectares na Zona Leste),28 a reurbanização do cais do
porto (ao estilo shopping, como o que foi feito ao lado do Mercado Ver-o-Peso em
Belém do Pará e que descaracterizou a área portuária da cidade) e outros, correm,
agora, em grande velocidade, sem nem ao menos passar por discussões ampliadas
no conselho do OP.

27
De acordo com a Lei Municipal 8.896/02, as antenas devem observar distância mínima de 450 metros entre uma torre
e outra e distância mínima de três metros entre a base da torre e os terrenos lindeiros.
28
A Condor é a maior proprietária de vazios urbanos de Porto Alegre, e a Goldztein é a maior incorporadora imobiliária.
A polêmica envolvendo o loteamento diz respeito à possível privatização branca de áreas que deveriam ser destinadas ao
uso público, pois essas áreas (que constituirão um parque) serão separadas do resto da cidade (sobretudo vilas populares
do entorno) por um cinturão de edificações destinadas ao mercado de alta classe média.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
40

Enquanto isso, projetos de interesse público mais amplo, como o caso das
Áreas Especiais de Interesse Cultural (AEICs), são engavetados e retirados da pau-
ta. Conforme estabelece o Plano Diretor, as AEICs “são áreas que apresentam
ocorrência de Patrimônio Cultural que deve ser preservado a fim de evitar a perda
ou o desaparecimento das características que lhes conferem peculiaridade”. No
PDDUA, 45 áreas haviam sido identificadas e mais 35 tinham sido propostas em
estudo encomendado à Faculdade de Arquitetura da Universidade Ritter dos Reis.
Como a maior parte das áreas encontra-se em regiões “nobres” (Moinhos de Ven-
to, Petrópolis e Rio Branco), os setores empresariais questionavam a quantidade e
a qualidade dos estudos, ignorando os movimentos de moradores e ambientalistas
contra o incremento da verticalização (movimento pelo direito ao sol). Também
acabou sendo engavetado pelo novo governo o projeto de lei que regulamentava
a ação e o poder de deliberação dos Fóruns Regionais de Planejamento.
O próximo passo do novo governo será a revisão do Plano Diretor e da pró-
pria composição do conselho, sendo muito provável a exclusão ou subalternização
completa dos fóruns regionais. O que isso significa? Significa, na prática, a ampli-
ação de uma dominação que os setores empresariais já detinham no CMDUA,
que já havia sido expressa na votação dos valores para o solo criado e em outras
situações (como, por exemplo, na autorização concedida ainda no governo Verle,
para que os interessados pudessem conversar dentro da SPM diretamente com os
técnicos que analisavam projetos de seu interesse com vistas a dar mais celeridade
aos trâmites burocráticos). Mais do que isso, por que um governo que vinha do
campo popular não conseguiu abrir espaço para o fortalecimento dos movimen-
tos populares na área do planejamento urbano? Por que os setores populares con-
tinuaram presos às suas demandas pragmáticas ou mesmo se deixaram cooptar
em algumas situações? Certamente, muitas respostas poderiam ser tentadas ou até
ser devolvida a pergunta: qual seria a alternativa?
A atuação dos setores comunitários não pode se resumir a simplesmente tentar
barrar empreendimentos empresariais de qualidade social, cultural, ambiental ou
econômica duvidosa. É certo que não existe “a alternativa”, mas, se os setores
populares que se fortaleceram nos espaços participativos gerados na cidade pre-
tendem disputar algum sentido e ter um efetivo papel protagonista na definição
do futuro da cidade, precisam construir-se coletivamente para essa luta.

6. Reação termidoriana e mutação dos processos participativos


A eleição de Fogaça (PPS) para a prefeitura de Porto Alegre em 2004 significou
mais do que uma simples derrota conjuntural da Frente Popular. Trata-se de uma
“reação termidoriana” muito bem construída e estrategicamente desenvolvida.
Fogaça venceu com facilidade nos setores de classes alta e média, perdendo por
pequena margem nas classes populares com renda familiar mensal até R$ 1.000,00
(vide quadro a seguir). Nessa faixa de renda, encontra-se um terço da população
da cidade. A votação do PT verificada nos estratos mais baixos de renda mostra
com clareza duas coisas: quem eram os mais interessados na continuidade da Frente
Popular e a eficácia da aliança política costurada pelo bloco empresarial, envol-
vendo tanto os tradicionais partidos conservadores (PMDB, PP, PSDB e PFL)
como os trabalhistas (PDT e PTB) e os verdes (PV).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
41

% De votos conforme renda média dos bairros na cidade

RENDA MÉDIA DOS BAIRROS PONT FOGAÇA PONT


(PT) (PPS) 1996

Menos de mil reais 48,7 47,3 52,7

De mil a dois mil reais 44,5 51,7 52,4

De dois a quatro mil reais 37,9 58,9 48,1

Mais de quatro mil reais 28,5 68,4 40,4

Fonte: Marenco, 2004

Ainda é cedo para se ter uma idéia do ocorrerá com o OP em Porto Alegre,
mas, com certeza, ele não será mais o mesmo. Apesar de o prefeito Fogaça e seu
homem forte, César Busatto, repetirem ad nauseam que o OP será mantido, a
coalizão de forças que os sustenta, o seu passado político e o que parecem enten-
der por OP sugerem um outro sentido para essas declarações. Antes das eleições, o
ex-senador Fogaça vinha trabalhando como consultor para a Fiergs e, antes disso,
trabalhou para o Grupo RBS. César Busatto foi o secretário da Fazenda do gover-
nador Antônio Britto (1995–1998). Nele estava centralizada a política de demis-
sões voluntárias (PDVs), incentivos fiscais e privatizações. Não por acaso, ele é,
agora, o responsável pelo OP.
O projeto de governo de Fogaça é articulado pelo conceito de Governança
Solidária Local. Segundo afirmado nas plenárias do OP pelo secretário de Coor-
denação Política e Governança Local, César Busatto, “a Governança Local é um
fórum executivo, não-deliberativo; é uma articulação em rede que busca criar
pactos de co-responsabilidade. Nesse espaço, não tem disputa, não tem votação,
não tem delegado”. Buscando o envolvimento das comunidades locais com metas
e indicadores de resultados a serem alcançados, “o princípio norteador desse mo-
delo é a co-responsabilidade em favor da inclusão social. A idéia central é instau-
rar, em Porto Alegre, uma parceria permanente entre o Poder público, a iniciativa
privada e o terceiro setor que busque resolver os problemas da cidade” (Busatto e
Vargas, 2004, p. 26). Acima do OP e de todo o conjunto de instâncias participativas
existentes na cidade, será criada uma nova esfera pública, o Fórum da Governança
Solidária Local.29 Os Centros Administrativos Regionais serão convertidos em cen-
tros de governança solidária regional, articulando o conjunto das instituições com
presença na região (escolas, centros de saúde, postos policiais, fundações empresa-
riais, ONGs, organizações assistências, clubes etc.).
Mais do que um simples conceito, essa nova esfera incluiria os supostamente
“excluídos” do OP (universidade, fundações privadas, sindicatos empresariais,
organismos profissionais e outros). Essa esfera não substituiria o OP, segundo o
governo, mas contribuiria para a sua governabilidade ao atrair outros setores para
o processamento das demandas do OP, sobretudo no que se refere ao seu financi-
amento. A idéia de governança solidária local vem das leituras que o atual gover-
no vem fazendo das propostas do Banco Mundial para o desenvolvimento local.

29
O organograma apresentado pelo novo governo está disponível em: <http://www.ongcidade.org/site/arquivos/boletim/
14425eb1c905068.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2005.
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42

A partir da Conferência Internacional Sobre Desenvolvimento Local, realizada


pelo Banco Mundial, em Washington, de 16 a 18 de junho de 2004, o orçamento
participativo é formalmente incorporado ao seu kit de intervenção nos países do
Terceiro Mundo:
Os programas de orçamento participativo são, cada vez mais, um
importante complemento aos elementos formais dos sistemas
responsáveis (eleitoral, representativo e processual) exigidos pela
legislação do governo local. Muitas iniciativas do orçamento
participativo foram além de colocação de prioridades e alocação de
recursos para incluir mecanismos para unir as pessoas (várias
representações comunitárias ou serviços beneficiários) e escritórios
locais monitorando o uso de recursos e a qualidade dos serviços.
Planejamento participativo e orçamento são, assim, empregados
para fortalecer a responsabilidade de forma a promover o mútuo
aprendizado por cidadãos e agentes públicos no melhoramento dos
serviços. (Banco Mundial, 2004)

Paralelamente a esse movimento, apresentado com destaque na mídia, o novo


governo começou a cortar algumas das políticas ligadas ao OP, como os repasses
de recursos municipais para o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos
(agora o governo limita-se a repassar apenas o que recebe do governo federal) e a
distribuição de alimentos para as cozinhas comunitárias ligadas ao Fome Zero
local. A distribuição de cestas básicas está sendo vinculada a contrapartidas em
termos de trabalho voluntário, tal como as Frentes de Trabalho Voluntário. Às
organizações comunitárias responsáveis pela gestão de programas não-continua-
dos foi sugerido procurar o apoio de outros níveis de governo e de ONGs ou
fundações privadas, ou seja, deveriam procurar manter os serviços sem depender
diretamente do governo, mas por meio da “governança”.
Nas reuniões do OP, é dito que o governo quer fortalecer os conselheiros, dan-
do-lhes “total autonomia”. Somente após os cortes de programas e a ausência de
respostas em muitas áreas demandadas pelas organizações comunitárias, vai fi-
cando claro para esses setores o que significa de fato essa autonomia. Isso gerou
um movimento de articulação entre os conselheiros como forma de garantir a
continuidade da responsabilidade pública pela manutenção dos serviços e políti-
cas sociais, bem como o respeito às instâncias participativas.
Conforme observou Sophia Mappa, “governança significa a gestão administra-
tiva da ordem social. Tem um alcance implícito que é de despolitização das esco-
lhas/ajustes sociais. Em outros termos, o poder estaria confiscado pelas elites finan-
ceiras e técnico-administrativas com finalidades decididas de antemão e na ausência
das sociedades” (2004, p. 24). O novo governo argumenta que orçamento público
não dá conta dos problemas das comunidades. Via Governança Solidária Local
seria possível compor um “orçamento social”, que seria a soma de recursos huma-
nos e financeiros dos parceiros do Fórum da Governança Solidária Local.
A indicação por trás desse discurso é de que, na prática, haveria uma privatização
das responsabilidades no financiamento das demandas das comunidades. Deter-
minados programas sociais (creches, telecentros, atendimento escolar no turno
inverso, cestas básicas etc.) que já vinham sendo incorporados como direitos de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
43

cidadania passam, agora, a depender da boa vontade de terceiros. Inicialmente,


ainda nos governos anteriores, esses programas foram repassados às próprias co-
munidades sob o argumento do “empoderamento” das comunidades e da econo-
mia de custos. Agora, depois que as comunidades se apropriaram de sua gestão, os
recursos passam a ser contingenciados e precisam ser complementados pelo Tercei-
ro Setor. Irresponsabilidade vira co-responsabilidade!
Não temos como saber ainda até que ponto as organizações comunitárias de base
serão subordinadas a metodologias administrativas importadas do setor privado. Para
recolocar a questão em termos gramscianos, trata-se apenas de um simulacro ou de
uma efetiva ação hegemônica ampliada articulada pelos setores empresariais por meio
de suas fundações sociais (Fundação RBS, Parceiros Voluntários etc.)? Muitas empre-
sas locais já vêm atuando há anos a partir da idéia de responsabilidade social, apoian-
do muitas iniciativas na área da assistência social. Um movimento significativo de
articulação dessas empresas ocorreu na ampliação do Hospital da Santa Casa, cujo
administrador, não por acaso, era o ex-governador Antônio Britto. Entretanto, o
movimento que agora se desenha requer uma mudança estratégica complexa, pois
implica propor um projeto para as classes populares que não seja o de simples clientes.
Que o discurso ideológico da assistência social empresarial responsabilize as classes
populares pela própria pobreza, pela sua falta de “empreendedorismo” e seu baixo
“capital social” é uma coisa, mas fazer com que as classes populares assumam para si
mesmas esse discurso é outra bem diferente. Como diz Luciana Tatagiba, “esses mo-
delos participativos requerem um certo tipo de ator social. Para ajudar no melhor
funcionamento de um ‘Estado neutro’, administrado como se fosse uma empresa
privada, é preciso uma sociedade civil liberal, cuja ação pauta-se por critérios objeti-
vos, pragmáticos, não ideológicos, uma sociedade civil afinada com os valores de
mercado, que engendre uma esfera pública liberal” (2005, p. 14).
Por isso, é preciso um fórum 100% institucional acima do OP, para neutralizar os
conflitos e o caráter plebeu da participação direta e subordiná-los a um planejamento
previamente acertado pelas instituições públicas e do Terceiro Setor. Por mais que a
mídia e uma relativa ampliação das doações de recursos pelas empresas possam aju-
dar, uma ação mobilizadora dos setores populares nessa lógica implica necessariamen-
te um corpo-a-corpo a ser desempenhado nas microrredes sociais. Como é pouco
provável que o pequeno corpo de militantes recrutados como cargos de confiança nos
partidos aliados PTB e PDT tenha condições de desempenhar essa tarefa com o grau
de neutralidade e a competência técnica requeridos pelo modelo, já que sua qualifica-
ção militante está muito mais ligada ao assistencialismo clientelista do que qualquer
outra coisa, é no âmbito da ampliação do espaço de atuação do Terceiro Setor que
encontraremos o elemento dinâmico do modelo. Ainda conforme Luciana Tabagiba,
nos marcos da democracia gerencial, a participação despe-se de seu
potencial transformador, por meio de um deslocamento da
centralidade do conflito, uma vez que o que está em jogo não é a
mudança das condições de dominação, mas a possibilidade de
administrar de forma eficiente os recursos financeiros, materiais e
humanos existentes. O que se busca, como horizonte de expectati-
vas, não é a explicitação dos conflitos e a busca de acordos –
contingentes e retomáveis – mas a ‘dissolução’ desses conflitos
numa gerência eficiente. (2005, p. 15)
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
44

Uma pista concreta para o futuro da governança havia sido deixada já no ano
passado, pela divulgação pública do documento “A crise do Estado: reformas
para racionalizar a máquina pública”,30 entregue em dezembro de 2004 pelas
federações empresariais ao governo do estado. Nesse documento, com inspiração
em Bresser Pereira, é apresentada ao governo uma proposta de “publicização” da
máquina pública. Por “publicização”, entende-se a “produção não-lucrativa de
bens e serviços públicos não-exclusivos de Estado, pela sociedade, que assume
parte da operação na administração estatal indireta, visando permitir a
maximização dos resultados de ação social”. Que serviços seriam esses, concreta-
mente? Segundo o documento, seriam os serviços de saúde, educação, segurança e
qualificação para o trabalho. Além disso, é sugerida a privatização das áreas de
água e saneamento, bem como de energia, sem falar, é claro, do Banrisul. Os
setores empresariais se propõem a mexer profundamente na burocracia e na
contratualidade estatal, não para publicizá-las, como afirmam, mas para subordiná-
las integralmente aos seus interesses, retirando todo o seu verniz republicano em
nome de uma objetividade técnico-econômica. Não mais se trata das “razões de
Estado” do Estado patrimonial-burocrático, mas da ditadura dos imperativos do
mercado travestidos de exigência da “sociedade civil liberal”. Na verdade, borra-
se a distinção entre mercado e sociedade civil característica desse último conceito,
já que, uma vez capturado o Estado pela tutela financeira dos mercados, é a
própria sociedade civil que passa a operar com critérios mercantis.
É por essa visão, de que só o que é privado é “público”, que esses mesmos
empresários encaram o OP, como uma ferramenta de normalização social e o
embrião de novas oportunidades de privatização. Não havendo muito mais o que
privatizar no Estado, busca-se, agora, privatizar o que ainda há de público na
própria sociedade. Ao que tudo indica, é para isso que os atores “excluídos” pelo
OP em Porto Alegre estariam sendo convidados. Por meio de ferramentas gerenciais,
como a criação de agências executivas ou organizações sociais financiadas pelo
poder público (via contratos de gestão e o concurso de projetos com base em
indicadores de desempenho), os movimentos comunitários seriam progressiva-
mente induzidos a se ajustarem a requisitos técnico-administrativos empresariais.
Não se trataria, pois, de uma ação clientelista tradicional, mas de uma hegemonia
capitalista pós-moderna, que se daria pela transformação da gestão das desigual-
dades sociais em oportunidades de mercado. Tal como o trabalhador, quando
encontra emprego, é forçado a aceitar as condições impostas pelo empregador,
também as organizações comunitárias só seriam “empregadas” dentro das condi-
ções impostas pelos seus financiadores, e não criadas por elas mesmas por meio da
luta política.
Outra pista na mesma direção foi dada pela aceitação tanto pelo governo do
Estado do Rio Grande do Sul como pelo governo de Porto Alegre de uma
consultoria oferecida pelo Programa Gaúcho da Qualidade e Produtividade
(PGQP)31 para estudar as possibilidades de racionalização nos gastos públicos

30
O artigo de Merlin (2005) oferece uma síntese do documento.
31
Para mais informações, vide: <http://www.portalqualidade.com/programas/pgqp/o_pgqp/oque.asp>. Acesso em: 27 nov. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
45

respectivos. Foi contratada a mesma empresa de consultoria que assessora o go-


vernador Aécio Neves (2003–2006) em Minas Gerais: o Instituto de Desenvolvi-
mento Gerencial (INDG).32 O custo será pago pelos empresários, e não pelos gover-
nos, ou seja, via INDG, os empresários estarão atuando diretamente dentro dos
órgãos públicos, acessando informações estratégicas e ainda podendo apresentar
propostas de seu interesse como se fossem opções técnicas. Obviamente que a acei-
tação de tal proposta não passou por nenhuma discussão pública (apenas foi
divulgada na mídia), tendo passado a quilômetros de distância do conselho do OP.
Ao longo de 16 anos, mesmo com todos os problemas que foram se acumulan-
do na condução do OP (burocratização, relativa intransparência na execução or-
çamentária), desenvolveu-se entre as comunidades populares uma cultura
participativa emancipatória, em que os cidadãos comuns ampliavam a esfera da
política para os bairros. Todos os convênios feitos pela prefeitura com organiza-
ções comunitárias de base tinham por base escolhas feitas no âmbito do OP, de
acordo com critérios decididos coletivamente nos fóruns regionais e no conselho
do OP. Os requisitos técnicos se subordinavam às decisões políticas. Por exemplo,
se a avaliação técnica não recomendava um determinado prédio comunitário para
o funcionamento de uma creche, era possível alterar a própria lógica do programa
respectivo e incluir também a construção de um prédio em condições para o con-
vênio. Por isso, o conflito que ora se desenvolve entre o governo Fogaça e os
movimentos comunitários em Porto Alegre permite tanto uma avaliação da
sustentabilidade do OP33 pós-PT como dos limites do novo modelo da co-respon-
sabilidade público-privada.

7. Conclusões
Houve um tempo em que se dizia que o problema do Brasil era o povo. Havia até
piada sobre isso. Deus teria feito um país maravilhoso, mas com um povinho
muito do ordinário. Nesse preconceito contra o povo, incluía-se tudo: das origens
escravistas às instituições políticas. Na sociologia, isso aparecia nas críticas à pre-
cariedade de nossa sociedade civil, sempre atrelada ao Estado e limitada às franjas
mais ilustradas dos setores médios, incapaz de articular o conjunto da população.
Concluía-se pela existência de um déficit de povo, não de poder.
Nos últimos 20 anos, as classes populares deste país romperam o cordão de
isolamento que as separava da participação política autônoma. Encerramos, ain-
da que lenta e gradualmente, mais de duas décadas de ditadura militar. Direitos
básicos de cidadania foram estendidos ao conjunto da população, não obstante
sua precária qualidade. Já se foi o tempo em que apenas quem tinha carteira de
trabalho assinada tinha direito aos serviços de saúde pública, por exemplo. Com
a abertura do voto aos analfabetos a partir de 1988 e a retomada plena das liber-
dades políticas, estabelecemos efetivamente o sufrágio universal. Por intermédio
dos meios de comunicação de massa, o conjunto da população é bem ou mal

32
O site do INDG é <http://www.indg.com.br/>.
33
Para conhecer o que dizem os atuais conselheiros do OP a respeito, vide <http://www.ongcidade.org/site/arquivos/
jornal/final42137ff7a9adb.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
46

informado do que acontece no país. Essa afluência popular, sobretudo nos meios
urbanos, traduz-se também no econômico, mesmo que por vias transversas, por meio
da gradativa conquista de melhorias nas infra-estruturas urbanas, da vagarosíssima,
porém constante, regularização fundiária de áreas de ocupação, no acesso à educação
e no desenvolvimento de imensas redes de produção e comércio informal.
Já a cidadania propriamente política das classes populares vinha passando por
um processo que ia mais além dos simples atos de votar e ser votado. Grande parte
das políticas sociais em vigor passou a ser acompanhada por conselhos locais que
fiscalizam a aplicação dos recursos e os seus resultados. Tratou-se de uma fantás-
tica aposta nas instituições democráticas. Na área do desenvolvimento urbano,
em 2003, contando apenas os estados da região Sul (Paraná, Rio Grande do Sul e
Santa Catarina), realizaram-se 196 conferências municipais das cidades, 54 con-
ferências regionais e, claro, três estaduais. Na área da segurança alimentar, os nú-
meros são ainda mais impressionantes. Praticamente todos os médios e grandes
municípios passaram a desenvolver políticas minimamente participativas para dar
conta do combate à fome, nem que seja para se credenciarem como beneficiários
de recursos federais. Apenas no Rio Grande do Sul, foram realizadas 240 confe-
rências municipais de segurança alimentar. Menos impressionantes, mas não me-
nos significativos, foram os eventos nas áreas de meio ambiente, educação e saú-
de. Os fatos, porém, são cabeças-duras, como dizia o estrategista Lenin. Após três
anos de governo Lula, mesmo o mais motivado militante da participação popular
percebe que não há entusiasmo que resista ao simulacro.
Se algo faltou, não foi certamente a vontade cívica de construir um país
melhor. Existe, portanto, uma imensa demanda de nação que não encontra es-
paço nas possibilidades atuais da política. Alguns espaços para conversar até
existem, o que não existe é conseqüência, o que reduz a participação a um ritual
impotente na construção de soluções capazes de vertebrar grandes mobilizações
sociais. Alguns comentaristas econômicos, cinicamente, dizem que chegou o
momento de cairmos todos na real, de abandonarmos os sonhos de mudanças
mágicas nas condições sociais existentes. Temos, então, o salário mínimo possí-
vel, as políticas sociais possíveis, o Estado possível. Temos a faca, mas não po-
demos dividir os recursos, pois eles já têm dono. Ninguém mais fala em planeja-
mento, os governos parecem prisioneiros do quotidiano, as batalhas são trava-
das a cada dia e o futuro é uma zona que não existe. Não falta o povo, mas não
temos mais o país.
As oportunidades participativas abertas pelo governo Lula não somente foram
limitadas e inconsistentes em sua maioria, mas também coincidiram, no caso de
Porto Alegre, com um estresse de gestão da Frente Popular que administrava a
cidade até 2004. O último Congresso da Cidade, realizado em 2003, já mostrava
certo esvaziamento participativo, uma vez que se percebia que parte substantiva
do público era composta pelos próprios quadros do governo, num contexto de
acirramento das disputas entre as tendências internas. Com certeza, as oportuni-
dades trazidas pela preparação de conferências nacionais para as mais diversas
áreas (meio ambiente, cidades, segurança alimentar etc.) serviram para dar certo
gás aos movimentos sociais, mas a sua descontinuidade e a ausência de perspecti-
vas mais concretas de participação popular na gestão das políticas públicas acaba-
ram gerando um processo de banalização da participação.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
47

A segunda Conferência da Cidade, realizada em Porto Alegre, em agosto de


2005, preparatória à conferência estadual e à nacional, foi um atestado claro do
esgotamento das possibilidades de um modelo que não consegue ir além da interação
sociopolítica. Aproximadamente cem pessoas participaram, das quais mais de 90
saíram como delegadas, quase que numa representação um para um. Os mesmos
cidadãos profissionais de sempre brigando por espaço. Da primeira Conferência
Nacional das Cidades, ficaram dois conselheiros por Porto Alegre, um vereador e
o diretor geral do Demhab. Que se saiba, jamais convocaram uma audiência pú-
blica para prestar contas de seu desempenho no Conselho das Cidades, assim
como também jamais foram intimados a fazê-lo pelos delegados que participa-
ram do processo. Da banalização ao oportunismo é apenas um passo. Em mea-
dos do primeiro semestre de 2005, foi sendo gestado, em Porto Alegre, por estí-
mulo do próprio Ministério das Cidades, o Fórum Estadual dos Planos Diretores
Participativos. Uma vez que a revisão ou implantação de planos diretores conta
com recursos desse ministério, via CEF, compareceram dezenas de entidades liga-
das às corporações profissionais de arquitetos, engenheiros e empresários do urba-
no, uma parte significativa das quais jamais integrou os processos participativos
vividos na cidade. Mas estavam todas lá, colocando-se como especialistas em pla-
nejamento participativo.
Os processos participativos estabelecidos em Porto Alegre nos últimos anos
foram frutos do esforço de múltiplos sujeitos. Assim, não se pode atribuir a eles
um sentido único, muito menos uma origem mítica. Nunca foi fácil a partilha de
poder em Porto Alegre. Em primeiro lugar, é preciso lembrar mais uma vez que a
tradição de articular regionalmente diferentes entidades e movimentos das comu-
nidades populares vem desde o fim da década de 1970. A Lomba do Pinheiro, a
Grande Cruzeiro, o Partenon, a Zona Norte, a Cavalhada, a Grande Glória e a
Restinga não aprenderam a lutar por seus direitos ontem. Foram as lutas popula-
res que obrigaram os governos a dialogar com as comunidades populares. A partir
desse diálogo, foi possível construir o OP como um conjunto de espaços para a
co-gestão da cidade.
Em segundo lugar, foi o cansaço com as manipulações eleitoreiras que levou os
setores mais lúcidos dos movimentos populares urbanos a construir no âmbito do
governo municipal regras mais civilizadas de relacionamento com os poderes pú-
blicos. O orçamento participativo permitiu politizar as lutas sociais. Do panelaço
das mulheres da Grande Cruzeiro em frente à Prefeitura, surgiu o programa de
convênio de creches. Se não fosse a luta das próprias pessoas portadoras de defici-
ências, não haveria ônibus adaptados para cadeirantes. Assim como não haveria o
programa de regularização fundiária, tampouco a Planetário, o Condomínio dos
Anjos, as incubadoras populares, a ampliação dos postos comunitários, da rede
escolar municipal e tantas coisas mais. A partir da criação de espaços para discutir
essas políticas todas, foram sendo constituídos ou reconstituídos os conselhos
setoriais, incorporando a representação das comunidades, estabelecendo a co-ges-
tão dos equipamentos públicos, criando uma nova forma de gestão da cidade.
Em terceiro lugar, como já era identificado pelos movimentos comunitários
em 1987, nada disso faria sentido se não fosse possível discutir e decidir sobre o
conjunto do orçamento e sobre o planejamento urbano. Levou-se mais de uma
década votando leis de reforma urbana, como o Banco de Terras, o Solo Criado,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
48

as Áreas de Interesse Social, o Fundo Municipal de Desenvolvimento, o


Urbanizador Social e a gestão participativa disso por meio do Conselho Munici-
pal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental.
Por fim, o mais fundamental, a possibilidade de controle popular sobre os
investimentos, desde a decisão sobre obras e serviços, ao acompanhamento dos
processos licitatórios e à execução das obras, estabelecendo-se um cotidiano de
gestão comunitária dos serviços públicos em todas as regiões da cidade.
De acordo com esses princípios, poderia ser dito que a democracia participativa
existente em Porto Alegre consistia num contrato social construído de baixo para
cima, combinando estrutura e processo, baseado na participação direta e em crité-
rios de justiça social, visando à construção e à co-gestão do orçamento e das
políticas públicas. Implicava um trânsito permanente entre representantes e co-
munidades populares.
O norte político que presidiu a constituição de conselhos participativos, seja o
OP, sejam os setoriais, foi a possibilidade de construir e gerir políticas com priori-
dade para os setores mais espoliados da cidade. Existe muita nebulosidade hoje
sobre o sentido das políticas públicas, sobretudo nas áreas de assistência social,
saúde e educação. Como visto, há também, por um lado, uma forte tendência em
favor da reafirmação da autoridade burocrática e, por outro, da privatização des-
ses serviços, aliada ainda à idéia de exploração do voluntariado. Afirmar o sujeito
em lugar do objeto, o cidadão em lugar do cliente, o controle popular em lugar da
burocracia e a co-gestão em lugar da autocracia dos secretários de governo conti-
nua sendo uma tarefa permanente da democracia participativa. A nova conjuntu-
ra política estabelecida a partir de 2005 apresenta, entretanto, outros desafios na
relação entre participação, gestão pública e desenvolvimento econômico.
Em 2004, não foi o Fórum Social Mundial nem o OP e a participação popular
que foram derrotados nas eleições em Porto Alegre, foi o governo da Frente Popu-
lar. Ao limitar-se apenas à dimensão sociopolítica da gestão, sem conseguir desen-
volver alternativas coerentes e sustentáveis tanto no âmbito econômico-financei-
ro (para além do nível fiscal-redistributivo) como no institucional-administrativo
(não houve uma contrapartida de esquerda à proposta de reforma administrativa
neoliberal, cujo design brasileiro foi proposto por Bresser Pereira),34 a Frente Po-
pular só tinha como alternativa a tarefa de permanente mobilização social em
torno das políticas de governo. Entretanto, à medida que a quantidade de parti-
cipantes tendia a transformar-se em qualidade política, o governo não tinha con-
dições estruturais de dar conseqüência administrativa e econômica às demandas
que vinham da sociedade.
Com isso, foi perdendo gradativamente sua capacidade de liderança política,
primeiro em relação aos setores médios e, posteriormente, aos próprios setores po-
pulares que eram os principais beneficiários da inversão de prioridades estabelecida
pelo OP. Os dois principais desdobramentos da caminhada dos movimentos popu-
lares por meio do OP diziam respeito à gestão comunitária e às iniciativas de econo-
mia solidária. A Frente Popular não conseguiu reagir de maneira proativa a essas

34
Vide o excelente trabalho de Ana Paula Paes de Paula (2005).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
49

duas temáticas. Ampliava o número de convênios com entidades comunitárias, mas


não encarava o debate sobre os parâmetros públicos de sua gestão. Esboçava pe-
quenas iniciativas de estímulo à economia solidária, mas não conseguia desatar o
nó da interação dessas iniciativas com as políticas públicas e a economia da cidade.
O estresse administrativo-financeiro se traduzia numa cobrança cada vez maior
sobre os CCs. “Ou troteia ou sai da canha”, ameaçava em 2004 o prefeito João
Verle. Mas já era tarde para tentar compensar no suor da camisa o que 16 anos não
haviam produzido estruturalmente.
O governo Fogaça tem uma proposta de governo simultaneamente econômico-
financeira, institucional-administrativa e sociopolítica. Nela, a emancipação social
é substituída pela integração subalterna às classes burguesas locais. Resta saber se os
setores populares que sustentam a democracia participativa na cidade serão capazes
do salto quântico necessário não apenas para recolocar o conflito inerente às con-
tradições sociais na cena política local, mas para reagir propositivamente às profun-
das mudanças que se operam na gestão administrativa e econômica de Porto Alegre
e do Brasil (dois modelos contraditoriamente cada vez mais próximos35).
Os movimentos sociais estão diante de um dilema cínico. É cada vez maior o
número de jovens que olha para a política com desprezo, prometendo anular o voto
nas próximas eleições. Em outros setores, renasce a vontade de uma solução autori-
tária para a crise moral e ética vivida pelo país, expresso no apelo a que alguém,
com uma arma na mão, aplique um corretivo à classe política como um todo.
Internamente às burocracias de governo, crescem os apelos para um reforço nos
controles burocráticos sobre as políticas públicas, o que, na prática, acaba se tradu-
zindo pelo seu contrário: o aumento da entropia do sistema e da tendência ao
insulamento autárquico. Propostas como a autonomia do Banco Central, por exem-
plo, caminham nessa direção, como se controle público democrático, populismo e
corrupção sistêmica fossem sinônimos. A ironia, o alheamento político e certa me-
lancolia ensimesmada empurram a cidadania para um cinismo paralisante.
Os cínicos da Grécia antiga (Antístenes, Diógenes de Sinope e Hiparquia) che-
garam a ser considerados como os “filósofos do proletariado”, pela irreverência
radical diante de uma civilização incapaz de reconhecer os não-cidadãos como
parte da mesma humanidade. Platão considerava todos os “bárbaros” inimigos
por natureza, e Aristóteles ia mais além, considerando todos os “bárbaros” como
escravos por natureza. Contra essa ideologia da facção oligárquica da cidade-
Estado grega, Diógenes se declarava um “cidadão do mundo”, negando desde-
nhosamente participar da civilização da cidade-Estado.36 O cinismo pós-moderno

35
Enquanto o PT “majoritariamente” se integra às classes políticas conservadoras, o setor mais moderno dessas classes
redescobre a necessidade de atuar como “burguesia”, pela reconversão gerencial da crise das ações hegemônicas do
adversário. Ainda que se possa dizer que, no governo Lula, existe uma ênfase diferenciada no papel do Estado como
agente de regulação (o Estado busca recuperar o papel econômico e geopolítico estratégico que vinha perdendo desde
o fim do regime militar), essa ênfase é moderada pela ausência de um projeto de reforma administrativa, bem como pela
crescente adesão às propostas de cunho privatista, como é o caso das parcerias público-privadas, do incentivo aos fundos
previdenciários privados, da compra de vagas nas universidades privadas via renúncia fiscal, da destinação privatista dos
fundos públicos gerados sobre os salários (como é o caso do FAT) e da submissão à expansão do agronegócio em áreas
de reservas (Amazônia, Raposa do Sol), para não mencionar a contínua “privatização” do próprio orçamento público pelo
capital financeiro por meio da política monetária. No plano da interação sociopolítica, o governo Lula rechaçou de pronto
a idéia de um orçamento participativo nacional, bem como adotou a mesma bandeira da governança pela criação do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o “Conselhão”, sonhando com a produção de um pacto produtivista
capital-trabalho ao estilo das mesas de concertación que encantam o Banco Mundial e que proliferam sem sucesso pela
América Latina (vide Peru, Bolívia, Equador, Nicarágua e outros).
36
Para um estudo social da filosofia grega, vide Farrington (1984).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
50

atual, ao contrário, serve para naturalizar as relações de dominação e anular a


possibilidade da política, tornando-se a ideologia típica do neoliberalismo (vide
Bewes, 1997). Para os novos cínicos, não apenas o individualismo possessivo seria
a única motivação das pessoas, mas, sim, todos os processos de vida coletiva ten-
deriam ao totalitarismo. O coletivo seria, assim, sempre vítima de traição por
algum Stalin da vida, mais cedo ou mais tarde, a menos que houvesse algum
benefício pessoal em promover o bem comum. “O que é de todos não é de nin-
guém e o que não é de ninguém é dos vivos”, afirmam. A única forma “honesta”
de ação social seria por meio do mercado (que seria a melhor forma de relação
entre estranhos), no qual todos perseguiriam o lucro pessoal beneficiando o co-
letivo por meio da concorrência.
Não por acaso, dentro dessa lógica mercadológica da qualidade, o governo
Fogaça, por exemplo, passou a obrigar as entidades interessadas em conveniar
novos telecentros a se submeterem a uma concorrência semipública (combinação
entre critérios técnicos e palavra final a ser emitida por fóruns regionais constitu-
ídos pelo governo). Antes o critério para a instalação de telecentros passava pela
capacidade de comunidades populares assumirem diretamente a sua gestão. O
novo governo distingue os pobres como população-alvo, mas não como sujeitos
diferenciados de outras classes sociais. Assim, no novo sistema de concorrência, o
popular como sujeito deixa de ter relevância. Comunidade, sem adjetivos, passa a
designar o conjunto de entidades em uma determinada região. Se um condomínio
de luxo, por exemplo, apresentar-se para gerenciar um telecentro dirigido à popu-
lação-alvo (os pobres, as classes perigosas), ele passa a concorrer em igualdade de
condições com as organizações populares. Tal como ocorre nos concursos públi-
cos, dos quais todos podem participar, invariavelmente as classes médias ocupam
a maioria dos cargos, as comunidades populares passam a ser recolocadas em um
papel passivo em nome da igualdade jurídica típica do Estado capitalista.
Gramsci utiliza o conceito de transformismo em dois momentos. Primeiro,
como um processo molecular ocorrido na Itália entre 1860 e 1900, em que figu-
ras políticas individuais formadas pelos partidos de oposição democrática vão
sendo incorporados individualmente pelas classes políticas moderadas e conserva-
doras, dentro de um processo também chamado como revolução passiva, caracte-
rizado por uma crescente desmobilização social. Segundo, a partir de 1900, como
o transformismo de grupos inteiros de quadros políticos de esquerda que pulam
para o campo moderado. No caso brasileiro, o colapso moral e ético do campo
majoritário do PT, para não falar dos “sucessos” econômicos do governo Lula, e
sendo o PT o grande partido surgido dos movimentos sociais na década de 1980,
permite que se atualize o conceito de transformismo para dar conta da formação
de uma nova classe política que, após se consolidar como tal, se afasta progressi-
vamente dos movimentos sociais em nome do realismo político.
A força dos movimentos sociais reside em sua capacidade de proposição e
mobilização. Essa capacidade, porém, não surge espontaneamente, é uma cons-
trução social que depende, entre outras coisas, de ativistas, organização, recursos,
método, estratégia, comunicação, parcerias etc. A grande diferença da esquerda
brasileira parecia estar na capacidade de propor, e não apenas se contrapor. A sua
auto-inviabilidade política no governo Lula joga as grandes massas sociais de
volta à dicotomia entre ordem conservadora e crítica desordenada. O
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
51

transformismo do campo majoritário permitiu que o PT ganhasse as eleições, mas


com a perda de si próprio. Independentemente da simpatia que se tenha ou não
pelo PT, é indiscutível que o partido reunia aquela capacidade identificada anteri-
ormente na articulação política de movimentos sociais. Ao apostar na
institucionalidade como estratégia de transformação social, abrindo mão de sua
independência de classe, uma parte significativa dos movimentos sociais acabou
se cristalizando num conjunto de entidades (de ONGs a sindicatos) e gravitando
ao redor dos espaços de governo. A presente conjuntura tornou o cinismo uma
atitude inevitável para quem se disponha a fazer uso da razão para analisá-la, mas
como administrá-lo enquanto vacina sem sucumbir a essa paralisia apolítica pós-
moderna? A crítica desordenada é uma forma de resistência e é extremamente
saudável e necessária para que os movimentos sociais recuperem sua autonomia e
sua vitalidade neste momento, venha do bispo dom Luiz Flávio Cappio ou dos
moradores de rua de São Paulo escorraçados pela polícia de Serra & Alckmin. A
iniciativa política, entretanto, foi perdida e será muito difícil recuperá-la para o
campo da esquerda nos próximos anos.

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UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Rio São Francisco:
transposição, integração e revitalização
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

RIO SÃO FRANCISCO: TRANSPOSIÇÃO, INTEGRAÇÃO E REVITALIZAÇÃO

Tereza Rozowykwiat
Jornalista com especialização em sociologia, colunista
do JC OnLine e integrante da assessoria de imprensa do
Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco
tecarozowyk@gmail.com

Vanja Carneiro Campos


Socióloga e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
maria.campos@fundaj.gov.br

Este trabalho é resultado de pesquisa realizada em fontes secundárias, constituídas


fundamentalmente de documentos elaborados pelo governo federal, governos esta-
duais, matérias de jornais, sites de agências de notícias e de entidades especializadas
no tema em debate, bem como livros e estudos publicados sobre o assunto. Na
tentativa de oferecer à população um mapeamento atualizado das discussões entre
as várias instâncias públicas e a sociedade civil, buscamos informações recentes,
detendo a atenção nos textos produzidos, sobretudo, nos anos de 2004 e 2005,
referentes ao Projeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco às Bacias
Hidrográficas do Nordeste Setentrional, ora apresentado pelo governo Lula.

Breve histórico do rio São Francisco


À margem das discussões travadas entre historiadores portugueses e espanhóis
sobre a primazia do descobrimento da América, a história oficial nos conta que o
rio São Francisco foi descoberto em 4 de outubro de 1501 pelo mercador e nave-
gador italiano Américo Vespúcio e pelo também comerciante e armador André
Gonçalves. Naquela época, o rio São Francisco era chamado pelos índios tupis de
Opará, que significa “rio-mar”. Outras tribos o conheciam como “rio Tonto”,
“rio Doido” ou “rio Perdido”, em função da sua grande quantidade de curvas. O
nome São Francisco nasceu da vontade dos colonizadores de homenagear o santo,
nascido na Itália 319 anos antes do seu descobrimento.
Opará, a partir dessa descoberta, conheceu toda sorte de expedições européi-
as, servindo de ponto de apoio para a colonização dos sertões goianos, porta de
entrada para o Brasil Central. Em 1543, a Coroa portuguesa autorizou a criação
de gado na região. O rio São Francisco foi então denominado rio dos Currais, por
ter servido de trilha para transporte e criação de gado na época colonial.
Em 1675, enquanto a bandeira de Lourenço de Castanho descobria jazidas de
ouro em afluentes do rio e exterminava os índios cataguases, os portugueses também
buscavam sufocar a resistência dos escravos fugitivos e organizados nos quilombos,
formando repúblicas negras que desafiaram, por muito tempo, o domínio da Coroa,
até que, no dia 20 de dezembro de 1695, uma tropa mercenária, contratada por
Portugal e pelos usineiros de açúcar da capitania de Pernambuco, destruiu o último
reduto da resistência armada dos escravos, o célebre Quilombo dos Palmares.
O Velho Chico, como também costuma ser chamado, ainda ficou na memória
do povo brasileiro como o rio da Integração Nacional, tendo em vista o papel que
desempenhou ao facilitar o acesso dos bandeirantes ao sertão e ao permitir o
escoamento da produção da região, durante a Segunda Guerra Mundial.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

Foi no início do século XX, mais precisamente em 1902, com a publicação de


Os Sertões, de Euclides da Cunha, que a elite brasileira, concentrada no litoral e
no sul do país, tomou conhecimento em riqueza de detalhes dos sertões do Brasil,
da bacia do São Francisco e do “salto prodigioso de Paulo Afonso”.
A pátria sem dono, abandonada pelas leis e instituições, moradia de índios,
mulatos, caboclos e pretos, circunscritos ao jugo do latifúndio e dos latifundiári-
os, passou a ser revelada pelo engenheiro e repórter Euclides da Cunha, incumbi-
do de descortinar o massacre de Canudos: um dos episódios mais dramáticos da
história brasileira, que manchou de sangue o início da Primeira República, no
sertão da Bahia. Até hoje ouvimos o lamento do escritor: “O heroísmo tem nos
sertões, para todo sempre perdidas, tragédias espantosas”. O Brasil também sofria
o impacto da segunda revolução industrial.
Para melhor entender o universo do qual falamos, não é demais lembrar as
palavras do historiador e pesquisador Frederico Pernambucano de Mello sobre o
sertão, em seu aprofundado estudo sobre o cangaço, que esmiúça o uso sistemáti-
co da violência abatida sobre os legítimos habitantes daquelas terras, os Guerrei-
ros do Sol:
[...] Isolamento e incomunicabilidade respondendo pela caracterís-
tica mais marcante do universo cultural sertanejo: o arcaísmo.
Ainda hoje se pode sentir o eco do que foi esse traço fortíssimo da
vida social fixada na caatinga, por conta do abandono em que esta
jazeu ao longo de séculos. Nos modos de produção, nas relações
negociais, na religiosidade, na moral, inclusive a sexual, na lingua-
gem, nas formas de resolução de conflitos, nos jogos, no lazer, na
predominância do interesse privado sobre o público, do individual
sobre o coletivo, em tudo, enfim, a mumificação dos costumes
provocada pelo isolamento deitou seu braço poderoso, a ponto de
se respirar ali, ainda nas primeiras décadas do século passado, um
clima humano muito próximo do quinhentismo e do seiscentismo
trazidos pelos portugueses do primeiro momento da colonização.
(2004, p. 20)

Considerado o terceiro maior rio do Brasil, com 3.163 quilômetros de extensão,


segundo algumas fontes, ou com 2.700 e 2.800 quilômetros, conforme a medição
de outras,1 o rio São Francisco nasce na serra da Canastra no município de Piumi,
oeste de Minas Gerais, e desemboca no Oceano Atlântico, entre os estados de Sergipe
e Alagoas. Suas águas oferecem múltiplo uso do seu potencial hídrico, convertidas
para abastecimento humano, agricultura irrigada, geração de energia, navegação,
piscicultura, lazer e turismo. Cerca de 13 milhões de pessoas vivem nos 450 muni-
cípios e cinco estados em torno de sua extensão, o equivalente a 10% da população
brasileira. O seu curso pode ser dividido em quatro trechos diferenciados: o do alto

1
Algumas fontes apresentam 3.163 quilômetros de extensão, a exemplo do texto “Rio São Francisco”, disponível no site
da Fundação Joaquim Nabuco (http://www.fundaj.gov.br/docs/pe/pe0048.html). Outras, como o texto da Administração
da Hidrovia do São Francisco (http://www.ahsfra.gov.br/rio2.htm), indicam 2.800 quilômetros e, ainda, 2.700 quilômetros,
como se encontra no site do Projeto São Francisco do Ministério da Integração Nacional (http://www.mi.gov.br/saofrancisco).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

São Francisco, que vai até a confluência com o rio Jequitaí, em Minas Gerais; o
médio São Francisco, início do trecho navegável do rio, que segue até a barragem de
Sobradinho, na Bahia; e o submédio e o baixo, entre Sobradinho e a foz.
Quanto à geração de energia elétrica, o rio São Francisco é, ainda hoje, o
principal recurso natural que impulsiona o desenvolvimento regional, fornecendo
energia para abastecimento de todo o Nordeste e parte do estado de Minas Ge-
rais, por meio das hidrelétricas de Paulo Afonso, Itaparica, Três Marias e Xingó.
Esta (a segunda maior do país, com capacidade para produzir 3 mil megawatts)
teve suas obras concluídas na década de 1990.
A extensão da hidrovia do São Francisco equivale à distância entre Brasília
(DF) e Salvador (BA). Sem dúvida, é a mais econômica forma de ligação entre o
centro-sul do país e a região Nordeste. Com o seu extremo sul localizado na
cidade de Pirapora (MG), a hidrovia é interligada por ferrovias e estradas aos
mais importantes centros econômicos do Sudeste, além de fazer parte do corredor
de exportação Centro–Leste. Ao norte, nas cidades vizinhas a Juazeiro (BA) e
Petrolina (PE), a hidrovia está ligada às principais capitais do Nordeste, dada à
posição geográfica dessas duas cidades. Diferentes tipos de carga são transporta-
dos, destacando-se produtos como gipsita, soja, milho, algodão, polpa de toma-
te, gesso agrícola e fertilizantes. Atualmente, a hidrovia do São Francisco passa
por uma etapa de grandes intervenções físicas.
No que se refere à navegação, durante todo o ano o rio São Francisco oferece
condições naturais em parte do seu curso, e sua profundidade (calado) varia de
acordo com o regime de chuvas. O São Francisco apresenta condições naturais de
navegação entre Pirapora (MG) e Petrolina (PE)/Juazeiro (BA). Seu porto mais
importante é o de Pirapora (MG), interligado aos portos fluviais de Petrolina
(PE) e Juazeiro (BA), e aos marítimos de Vitória (ES), Rio de Janeiro (RJ), Santos
(SP), Salvador (BA), Recife (PE) e Suape (PE), por rodovias e ferrovias.
Em relação à agricultura, no vale do São Francisco, as áreas mais propícias ao
aproveitamento agrícola situam-se às margens do rio. Por isso, a maior parcela da
população se encontra estabelecida nas proximidades do rio.
Inúmeros problemas de natureza social e econômica vêm, ao longo dos anos,
afetando o percurso natural do rio, como o assoreamento, o desmatamento de
suas várzeas, a poluição, a pesca predatória, as queimadas, o uso inadequado de
adubos químicos, o garimpo e a irrigação.

O rio São Francisco e a face rica do vale da pobreza


Desde os tempos remotos de formação da nacionalidade brasileira, o rio São Fran-
cisco e seus afluentes exercem grande importância para o Nordeste, detentores
naturais que são das rotas de desenvolvimento e balizadores de integração econô-
mica de toda a imensa região banhada por suas águas, ou compreendida em sua
área de influência.
No entanto, o modelo de desenvolvimento implantado na região e no país,
sobretudo na década de 1970, não promoveu a integração social, econômica e
cultural, nem protegeu o meio ambiente. Aqui arriscamos dizer que certas iniciati-
vas que visaram, ao longo do tempo, democratizar o nosso generoso e caudaloso rio
nasceram igualmente do viés colonial, sob a inspiração das espadas afiadas de por-
tugueses, holandeses e bandeirantes. Foram criados e alimentados os chamados
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

“pólos de prosperidade”, sem que as atividades produtivas incorporassem em suas


“ilhas da fantasia”, na proporção de seus crescentes rendimentos e incentivos fede-
rais, a grande mão-de-obra local, fato comprovado pela dramática exportação de
gente, primeiramente para o Sul e depois para o Centro-Oeste, o classificado êxodo
rural, amalgamado em todos os censos demográficos do Brasil.
Foi um modelo de desenvolvimento que provocou a morte do rio às marretadas,
que fechou os olhos para a pesca predatória e propiciou os projetos de irrigação
mal implantados e o uso inadequado de adubos químicos e, também, a constru-
ção de barragens e hidrelétricas sem a proteção do ecossistema. O desmatamento
realizado por carvoarias, pecuaristas e agricultores, além de extinguir a flora e a
fauna, deixou desprotegidas as terras das margens do rio, que são carregadas para
o fundo do leito, aumentando a largura do rio e diminuindo a sua profundidade,
sendo a principal causa de transbordamentos e da perda de navegabilidade. As-
sim, o São Francisco fica, cada vez mais, pantanoso na época das chuvas e mais
árido na época da seca.
Não só o desmatamento, mas também a poluição, ameaça a sobrevivência da
região. Até a década de 1990, das 97 cidades às margens do São Francisco, em
Pernambuco, apenas cinco dispunham de sistema de tratamento de esgotos. Assim,
dejetos humanos in natura somam-se aos agrotóxicos das lavouras e ao mercúrio
dos garimpos. Essa água, capaz de matar e provocar mutações genéticas, é a consumida
pela população ribeirinha. Projetos imediatistas de irrigação, aliados ao desvio da
função pública do então Departamento Nacional de Obras contra a Seca, que atuou
para o benefício privado de poucos, já secaram três dos 16 afluentes que eram
perenes: os rios Verde Grande e Gorotuba, em Minas, e Salitre, na Bahia. O modelo
de agricultura dos projetos com financiamento aprovado era calcado no uso inten-
sivo de adubos químicos e agrotóxicos fortíssimos como o Aldrin e o Folidol.
O vale do rio São Francisco é possuidor de subsolo riquíssimo, coberto por um
solo em que, se houver irrigação, tudo brota. Nele, encontram-se as reservas brasi-
leiras de zinco, enxofre e chumbo. Lá também se localizam de 40% a 60% de todas
as nossas reservas de cromo, ardósia e diamante; 20% a 40% de nosso ferro, calcário,
gipsita, ocre, quartzo, ouro e mármore; 10% a 20% de cobre, manganês, fertilizan-
tes, fosfatados e argila, além de outros minerais menos significativos. Isso foi assun-
to abordado em pronunciamento intitulado “O rio São Francisco está morrendo”,
proferido pelo deputado federal Gonzaga Patriota (PSB/PE), na Câmara dos Depu-
tados. O deputado nasceu em Petrolina e tem sua base política firmada na região.
Vale ressaltar também o Pólo Gesseiro, em Araripina (PE), e a fruticultura
irrigada em torno de Petrolina (PE), que é responsável pela produção de mais de
50 toneladas de uvas por hectare ao ano, enquanto a região Sul produz em média
16 toneladas. A partir da vinicultura, foi criada uma indústria de vinhos conside-
rados dos melhores do Brasil, tanto que a área recebeu o cognome de “Califórnia
Brasileira”. O pólo irrigado de Petrolina, abrigado no chamado Vale das Maravi-
lhas, conhecido por sua fertilidade, produz ainda manga, acerola, melão e atemoia,
frutas que são exportadas para os Estados Unidos e a Europa.
À riqueza dos pólos, alia-se agora a do vale do rio Assu, no Rio Grande do
Norte, que será receptor da água do São Francisco. A área da Petrobras no vale do
Assu rendeu, em 2004, uma média de 22.492 barris de óleo por dia, correspon-
dentes a 9% da produção nacional em campos terrestres, segundo a reportagem
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6

“Face rica do vale da pobreza”, publicada no caderno Brasil, do Diário de


Pernambuco, em 21 de novembro de 2004. As operações compreendem os muni-
cípios de Alto do Rodrigues, Macau, Assu, Guamaré, Pendências, Carnaubais e
Porto do Mangue, que faturaram até outubro de 2004, a título de royalties pela
produção de petróleo, cerca de R$ 43 milhões. A Petrobras tem, na região, 347
empregados próprios. Empreiteiras contratadas pela estatal asseguram mais 1.740
postos de trabalho. Ainda de acordo com a reportagem do Diário de Pernambuco,
a Petrobras retomou recentemente a construção da Usina
Termelétrica do Vale do Açu (Termoaçu). A empresa adota grafia
diferente do nome do rio. A termelétrica terá uma potência de 340
megawatts, aproximadamente a metade da usina de Três Marias,
no rio São Francisco, em Minas, e custará US$ 300 milhões,
divididos entre a Petrobras (80%) e o consórcio Guaraniana
(20%). A venda de energia da Termoaçu já está garantida por
contratos com as companhias de distribuição do Rio Grande do
Norte, a Cosern, e da Bahia, a Coelba. A própria Petrobras vai usar
parte da eletricidade e 610 toneladas por hora de vapor nas ativida-
des de extração e transporte de petróleo do Vale do Assu.

O vale do Assu é também chamado de Polígono do Camarão – cultura que


consome no mínimo duas vezes mais água do que a agricultura irrigada.2 O estado
do Rio Grande do Norte consome atualmente 32 metros cúbicos por segundo (m3/
s) de água. Cerca de um terço desse volume, 11,11 m3/s, é absorvido pelos criatórios
do crustáceo, principal produto de exportação do estado. A reportagem citada do
Diário de Pernambuco informa que a agricultura irrigada leva 14,5 m3/s. O abaste-
cimento urbano gasta modestos 5,31 m3/s.
Antecipando a discussão sobre o tema deste trabalho, esses números permitem
dizer que a água da transposição do rio São Francisco para o vale do Assu, como
revela o jornal, “é uma disputa entre exportadores de camarão e empresários da
lavoura irrigada”. E a reportagem acrescenta: “Por falta de regras e de uma insti-
tuição oficial responsável, nem agricultores nem criadores de camarão do Rio
Grande do Norte são cobrados pelo uso da água. Já existe, no entanto, um confli-
to de demandas de água no vale do Assu, impulsionado principalmente pela ex-
pansão dos tanques de crustáceos”.
O Polígono do Camarão está próximo do oceano, o que possibilita o
bombeamento da água de maré para represas de engorda do crustáceo nos muni-
cípios de Pendências e Carnaubais. Na prática, contudo, a água do rio Assu que
chega ao estuário é usada para equilibrar a salinidade dos viveiros. A criação de
camarões de água doce bombeada do rio Assu, no entanto, já é uma realidade. A
Aqua Viva Balanced Food Ltda., em Carnaubais, diz a matéria, é a única empresa
regularizada. Obteve outorga da Agência Nacional de Águas (ANA) para bombe-
ar até 2,1 m3/s para 120 hectares de tanques de camarão. A Aqua Food vende
toda a produção, atualmente de 6 a 8 toneladas por trimestre em 50 hectares de
espelho d’água, para a Europa.

2 Ver comentário no item 5.1: Posição do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
7

Por outro lado, a história dos projetos de irrigação São Gonçalo e Várzeas de
Sousa, ambos no município de Sousa, na Paraíba, revela como, em nome da po-
pulação assolada pela seca, centenas de milhões de reais são investidos em obras
conflitantes e ineficazes, muitas vezes contaminadas por disputas políticas locais.
Conforme reportagem do Estado de Minas, sob o título “Interesse político no
combate à seca”, assinada pelo jornalista Bernardino Furtado, publicada em 26
de novembro de 2004, São Gonçalo, projetado para ter 3 mil hectares de lavou-
ras, só irriga 1.500 hectares, ainda assim nos anos em que há reserva suficiente de
água nos açudes associados. Várzeas de Sousa, informa Furtado, inaugurado em
2002, não tem um único hectare irrigado. “Custou R$ 105 milhões, metade apli-
cada no Canal da Redenção, de 37 quilômetros, que está completamente seco.”
A reportagem do Estado de Minas aponta que, em 1998, o governo da Paraíba,
com a ajuda de recursos do orçamento federal, começou a construção do Canal
da Redenção, a partir da barragem Coremas-Mãe d’Água:
Esse complexo de dois grandes açudes interligados foi inaugurado no
governo Juscelino Kubitschek, na segunda metade da década de
1950. Com 1,4 bilhão de metros cúbicos, é formado pelas águas do
rio Piancó, um afluente que deságua no Piranhas próximo à cidade
de Pombal, 60 quilômetros abaixo de Sousa. No projeto original do
Canal da Redenção, previa-se um reforço do abastecimento de água
do perímetro de irrigação São Gonçalo, para torná-lo perene. O
segundo governo José Maranhão decidiu, no entanto, dirigir a
totalidade da água para um projeto de irrigação novo, o Várzea de
Sousa, de 5 mil hectares. Foram investidos, também com participa-
ção do governo federal, R$ 55 milhões em barragens auxiliares,
bombas e tubos. O perímetro Várzeas do Sousa tornou-se a menina-
dos-olhos da administração José Maranhão, que entregou a obra no
fim do mandato em 2002, com infra-estrutura montada para irrigar
a primeira etapa, com 1.320 hectares. Seu candidato à sucessão,
Roberto Paulino (PMDB), no entanto, foi derrotado por Cássio
Cunha Lima (PSDB). Passados dois anos, o governo estadual ainda
não realizou a licitação dos lotes da primeira etapa do Várzeas de
Sousa. O Canal da Redenção sofreu avarias e a rede de cabos de alta
tensão do perímetro de irrigação foi roubada.

Talvez possamos, com alguns pequenos exemplos do passado remoto e do


passado recente, concluir este capítulo dizendo o que muitos outros já disseram
noutras oportunidades: foi desse Nordeste, o dos grandes proprietários, que desde
sempre cuidaram os governos.

Das intervenções ao longo do tempo


A polêmica em torno da transposição do São Francisco tem 150 anos e já envol-
veu diferentes propostas. Começou a ser discutida na época do Império, durante o
reinado de d. Pedro II, mais precisamente em 1857, quando o Nordeste enfrentou
uma grande seca. Ainda no período colonial, apareceram os primeiros relatos
sobre as secas no Nordeste. Documentos revelam que, entre 1721 e 1727, houve
uma grande estiagem que obrigou Portugal a enviar três navios de mantimentos,
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8

determinando, entretanto, que os beneficiários fossem recrutados para trabalhar


na melhoria da infra-estrutura da região. Soluções mais estruturadoras, contudo,
só começaram a ser analisadas após a Independência, mais precisamente em 1838,
quando foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que reuniu
geólogos, botânicos, zoólogos, astrônomos e geógrafos.
A equipe, chefiada pelo barão de Capanema, apresentou os resultados do seu
primeiro trabalho em 1859, após uma viagem ao Nordeste. Reconheceu a neces-
sidade de melhorar as estruturas de transporte e armazenamento de água e propôs
a construção de 30 açudes e de um sistema que levasse água do São Francisco para
o rio Jaguaribe, no interior do Ceará.
Entre os anos de 1877 e 1879, ocorreu o que ficou conhecido como a Grande
Seca, durante a qual morreram de sede e de fome cerca de 1,7 milhão de pessoas.
Tal situação levou as autoridades a pensarem mais seriamente na construção de
açudes. Mas, o primeiro só foi inaugurado em 1906, embora as obras tivessem
sido iniciadas 22 anos antes, ou seja, em 1884.
A primeira iniciativa concreta dos republicanos para minimizar os efeitos da
seca se deu com a criação, em 1909, da Inspetoria de Obras contra as Secas, que
reuniu especialistas estrangeiros para o estudo das águas subterrâneas do Nordes-
te. Em 1913, eles elaboraram o mapa de um canal que ligaria o rio São Francisco
ao Jaguaribe.
No primeiro governo de Getúlio Vargas, o órgão passou a se chamar Departa-
mento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS). Por meio dele, foram feitas
perfurações de poços artesianos, construção de açudes públicos e privados, reflores-
tamento, desenvolvimento de uma lavoura de seca, provocação artificial de chuvas
e irrigação de propriedades. Na década de 1980, passou a ser chamado de Departa-
mento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) e começou a elaborar um ante-
projeto para integrar as águas do São Francisco ao semi-árido setentrional.
Na década de 1940, foi denunciada a morte do São Francisco por dois Carlos
ilustres: o poeta Drummond de Andrade e Lacerda, ex-governador do Rio de Janei-
ro. Mas a situação só viria a se tornar alarmante na seca de 1954 e, depois, na de
1971, quando o gigantesco reservatório de Três Marias praticamente se esgotou e a
lâmina de água do rio, em Pirapora (MG), tinha menos de 70 centímetros.
Em 1976, por ocasião de uma seca ainda pior, recorda o deputado federal
Gonzaga Patriota (PSB/PE), em pronunciamento transcrito na publicação datada
de 1998, do Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados,
intitulada Brasil: economia pelo avesso: “o velho barqueiro Agostinho Soares da
Silva, do alto dos seus oitenta e três anos, perguntava a um repórter da revista
Manchete: ‘Moço, me diga aí: vale a pena matar esse mundão de água?’”. Certa-
mente, continua o deputado Patriota, a resposta continua a ser não: não vale
matar esse mundão de água, por onde os pioneiros rebanhos de gado piauiense
vieram a colonizar o sertão mineiro. Mas, depois da pergunta feita há duas déca-
das pelo velho barqueiro, a cada estação de seca, prossegue o deputado em seu
discurso, o rio se torna menos navegável, mais pantanoso, mais seco.
Recentemente, em 1985, o extinto DNOS propôs a retirada de 300 m3/s, que
seriam transportados por um só canal para reforçar a irrigação de áreas próximas
aos açudes de Castanhão (CE) e Armando Ribeiro Gonçalves (RN). Esse projeto
não previa a revitalização do rio São Francisco.
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9

No governo de Itamar Franco, o projeto então apresentado reduzia para 180


3
m /s o volume de água a ser desviado. Além de Castanhão e Armando Ribeiro
Gonçalves, Santa Cruz (RN) igualmente seria uma área beneficiada. O projeto
também não contemplava a revitalização do rio. Os seus críticos declararam à
época que, aparentemente, era um projeto louvável, mas, na prática, não consi-
derou a água que seria perdida por evaporação e infiltração, nem os efeitos
colaterais forçosamente advindos do desvio de tão grande quantidade de água;
não considerou a perda de navegabilidade em certos trechos, nem a morte dos
peixes, nem nada além da potencialidade de irrigação sem comprometimento
do potencial hidrelétrico.
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a proposta foi ainda mais
tímida. Previa a captação, para consumo e irrigação, de 48 m3/s, por meio de dois
canais. Além dos já citados açudes, incluía o de Epitácio Pessoa e Engenheiro
Ávidos (PB) e o de Entremontes (PE). Outros 15 m3/s seriam destinados à irriga-
ção do próprio vale do São Francisco. Contudo, o projeto beneficiava uma popu-
lação 50% maior do que os projetos anteriores. A proposta do governo FHC,
igualmente, ignorou a revitalização.
Em discurso proferido na 393ª Reunião do Conselho Deliberativo da Supe-
rintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), realizada em Petrolina
(PE), em 21 de setembro de 1995, o então governador Miguel Arraes falou
sobre a Transnordestina, ferrovia que deveria ligar o sertão de Pernambuco e do
Piauí aos Portos de Suape (PE) e Pecém (CE). Lembrou ao presidente que “nós
somos hoje uma região isolada pela falta de transporte ferroviário, pela liquida-
ção da hidrovia, que nasce em Petrolina, e que pode nos ligar a Minas Gerais, a
1.400 quilômetros. Uma região isolada pela estagnação das ferrovias que nos
ligam e que daqui poderá se ligar a todas as capitais do Nordeste, se 200 ou 300
quilômetros de estrada de ferro forem feitas, se forem corrigidas e se forem refei-
tas”, declarou o governador, lembrando a seguir que a Ferrovia Central de
Pernambuco, começada em 1865, levou 77 anos para chegar a Salgueiro e lá
está parada, sem continuidade, “quando se trata de uma obra necessária à liga-
ção entre a área navegável do São Francisco e todas as capitais do Nordeste. É a
obra inacabada mais antiga do país, porque começou sob o comando de Pedro
II e até agora não foi completada como projeto” (Arraes, 1997, p. 507).
Após o agravamento da crise do abastecimento hídrico do Nordeste no ano de
1999, ainda no governo FHC, a transposição do rio São Francisco passou a ser
vista como grande alternativa de solução do problema.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, no ano 2000, o deputado federal e
ex-governador do estado de Pernambuco, Miguel Arraes, denunciava a venda do
São Francisco, sob o título “Vende-se o rio São Francisco”. Segundo Arraes, o rio,
dito “da integração nacional”, foi posto à venda pelo governo federal, atendendo
aos ditames do sistema financeiro internacional. Diz o ex-governador:
Será uma venda disfarçada, numa transação em que o bem que
aparece como objeto de alienação é o controle acionário da Chesf
(Companhia Hidrelétrica do São Francisco). Mas, como alertam há
anos pessoas de todas as latitudes técnicas e políticas, a Chesf não
existe sem o São Francisco. Portanto, não se pode vender a empresa
sem dar, como peso morto, o ‘grande rio’.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

O ex-governador, no mesmo artigo citado, recorda: “Num recuo tático provo-


cado por acordo parlamentar, o governo FHC determinou a adiamento do
esquartejamento da Chesf em quatro empresas, para fins de privatização”. Diz
ainda que, nas últimas décadas, a água do rio vem sendo objeto de feroz disputa
política. Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas projetam irrigar 3 milhões de hec-
tares de terra nos próximos anos. Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, que não
estão nas margens do rio, mobilizam suas bancadas em defesa de projetos de
transposição de águas. “Todos acalentam com entusiasmo a idéia de consolidar a
hidrovia do São Francisco.”
Por fim, Arraes indaga:
De que modo essas necessidades podem ser compatibilizadas com a
atuação privada, que visa ao lucro? E, afinal, por que privatizar?
Alega-se que operadoras privadas concorrerão entre si e oferecerão
energia melhor e mais barata. Como, se a água que move as turbi-
nas é escassa e disputada, sujeita a racionamentos periódicos, o que
significa faturamento menor para as operadoras? O próprio gover-
no federal projeta grandes investimentos em irrigação. Como as
futuras donas do rio serão ressarcidas pela água “desviada”?

O projeto de privatização da Chesf foi arquivado, porém o fantasma ainda


assusta a população da região, testemunha de governos e políticas econômicas
que vêm, ao longo dos séculos, privilegiando e reforçando os que já possuem
terra, água, incentivos e insumos.

Desenvolvimento da proposta atual do governo federal


Ao anunciar o projeto de transposição do rio São Francisco, o governo Lula
reacendeu uma das mais consolidadas polêmicas nacionais, como vimos anterior-
mente. O debate se apresenta de forma polarizada: contra e a favor. O problema
da discussão polarizada conduz ao receio de tangenciar dois temas extremamente
relevantes para o desenvolvimento sustentável do Nordeste e, por conseqüência,
do próprio país: a gestão integrada dos recursos hídricos e a revitalização do São
Francisco. Pondera o Fórum Social Nordestino, em editorial do seu portal, de 6
de abril de 2005.
A proposta do governo atual já passou por vários estágios. O Plano Plurianual
de 2004–2007 do governo federal priorizou inúmeras ações no setor hídrico para
o Nordeste, cujas extensões previstas alcançam até o ano de 2015. O plano é
composto de quatro grandes ações, a saber: a integração de bacias do Nordeste, a
revitalização ambiental da bacia do São Francisco, os projetos de irrigação na
região e o Proágua, que visa ao suprimento urbano.
Portanto, o governo Lula pretende promover a captação de 26 m3/s, podendo
chegar a 127, em situações em que a barragem de Sobradinho esteja sangrando.
Também acrescenta a necessidade de revitalização do rio, por meio de ações a
serem executadas ao longo de 20 anos.
A revitalização hidroambiental da bacia do São Francisco é um programa co-
ordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, com a participação do Ministério
da Integração Nacional e da sociedade são-franciscana. O programa contempla
ações voltadas para o reflorestamento das áreas críticas, construção de barragens
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11

em afluentes, melhoria da calha navegável, tratamento de esgoto das cidades e vilas


localizadas nas suas margens, controle da irrigação e educação ambiental. Há tam-
bém ações para melhoria das condições de vida das comunidades ribeirinhas.
O governo federal declara ter investido, em 2004, R$ 26 milhões em ações de
revitalização do rio. O orçamento para 2005 reservou mais R$ 100 milhões dos
Ministérios da Integração Nacional e do Meio Ambiente. Por outro lado, desde
1988, segundo publicação do Ministério da Integração Regional, a Chesf vem
repassando diretamente aos estados e aos municípios da bacia do São Francisco
6% do seu faturamento bruto, o que equivale a R$ 90 milhões por ano. Por lei,
esse recurso só pode ser aplicado para revitalizar o rio. O Ministério das Cidades,
por sua vez, ainda de acordo com os dados transmitidos pelo Ministério da
Integração Nacional, está aplicando R$ 620 milhões em projetos de saneamento
básico e abastecimento de água em 86 municípios da bacia.3
Na visão do deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), defensor da obra e
relator da proposta de emenda constitucional (PEC) que cria um fundo especial
para a revitalização da região sob influência da bacia do rio São Francisco, a
participação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por meio do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no processo de
integração, com projetos de regularização fundiária e assentamentos nas regiões
que serão atendidas, seria a garantia de que a água não se concentraria nas mãos
dos que menos necessitam. A assessoria do próprio Incra, procurada pela equipe
de reportagem especial da Agência Carta Maior, conforme matéria divulgada pela
Internet em 22 de junho de 2005, não assume tamanha responsabilidade de ga-
rantir a justiça social do projeto.
Diante da resistência à transposição por parte de largos segmentos políticos e
sociais, o governo passou a denominar sua proposta de Projeto de Integração da
Bacia do Rio São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional,
região que engloba os estados do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, parte de
Pernambuco e Alagoas. O governo diz não se tratar apenas de uma mudança de
nome, mas de concepção, e comunica que esse projeto é fundamental para assegu-
rar a oferta de água a mais de 12 milhões de brasileiros e brasileiras que habitam
as regiões mais pobres do Brasil e convivem, há muitas décadas, com os problemas
decorrentes da escassez e da irregularidade das chuvas.4
Segundo a avaliação do governo, trata-se de proposta de desenvolvimento sus-
tentável para o semi-árido nordestino que distribuirá melhor a água na região,
integrando as bacias superavitárias com as bacias deficitárias, garantindo condi-
ções mínimas de sobrevivência para milhões de famílias sertanejas. O governo
garante que o curso do rio não será desviado. Apenas 1,5% da água jogada no
mar será captada para garantir o consumo humano e animal na região. Também
assegura que não serão afetadas as atividades econômicas, nem a navegação.
A obra contemplaria inicialmente a construção de 622 quilômetros de canais
revestidos de concreto, com bombas de água nas regiões topograficamente desfa-
voráveis e pequenas turbinas hidrelétricas para produção de energia em áreas que

3
Informações sobre o projeto encontram-se disponíveis em: <www.mi.gov.br/saofrancisco>.
4
Ver <www.mi.gov.br/saofrancisco>.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
12

apresentem quedas d’água. A captação de água seguiria por dois eixos. Para o
Eixo Norte, a transposição está prevista a partir do município de Cabrobó (PE),
sendo projetados: quatro estações de bombeamento, 22 aquedutos, seis túneis, 26
reservatórios de pequeno porte e duas pequenas centrais hidrelétricas, junto aos
reservatórios de Jati e Atalho (CE). Quanto ao Eixo Leste, no reservatório de
Itaparica, na divisa da Bahia com Pernambuco, será composto de cinco estações
de bombeamento, cinco aquedutos, dois túneis e 9 reservatórios de pequeno por-
te. O custo inicial da obra se encontra orçado em R$ 4,5 bilhões. Os dois eixos
levarão as águas do São Francisco da represa de Sobradinho (PE) para as bacias
dos rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN), Piranhas-Açu (PB/RN), Paraíba (PB), Moxotó
(PE) e Brígida (PE) (ver Figura 1).
Em abril de 2005, o Instituto Brasileiro do meio Ambiente e de Recursos Na-
turais Renováveis (Ibama) concedeu licença para a construção de dois canais de
622 quilômetros, a fim de levar água aos estados da Paraíba, Ceará, Rio Grande
do Norte e parte de Pernambuco. Os estados doadores de água seriam o próprio
Pernambuco, além de Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas. Os que podem se
transformar em doadores, isto é, os que são banhados pelo São Francisco, se
posicionaram contra o projeto, ao contrário dos receptores. Entretanto, de acor-
do com reportagem publicada no Jornal do Commercio, de autoria de Jamildo
Melo, na edição de 29 de julho de 2005, o ministro Ciro Gomes decidiu ampliar
o projeto de transposição com o objetivo de atender a algumas reivindicações do
estado de Pernambuco. Anunciou que será criado mais um eixo, o Oeste, que
passará pelo traçado originalmente previsto para a construção do Canal do Ser-
tão. A obra deverá captar água de Sobradinho para fortalecer o pólo irrigado de
Petrolina, chegando até Araripina. O Eixo Oeste atravessará cerca de 400 quilô-
metros, beneficiando uma área com grande potencial econômico, ampliando os
projetos de fruticultura do estado (ver Figura 2).
O governo federal garante que não haverá prejuízos econômicos ou ambientais
para os estados banhados pelo rio São Francisco, ressalvando uma pequena redução
da geração de energia nas usinas da Chesf, o que, segundo a administração federal,
não causará o menor problema, uma vez que o Nordeste está interligado ao sistema
nacional de distribuição de energia. No caso de Minas Gerais, por exemplo, a cap-
tação de água ocorrerá centenas de quilômetros depois de o rio ter deixado o terri-
tório mineiro. Informa que a primeira captação será feita após a barragem de
Sobradinho, na divisa entre a Bahia e Pernambuco, num trecho cuja vazão já está
regularizada por essa represa. A segunda captação será realizada no lago de Itaparica,
também na divisa entre a Bahia e Pernambuco, não causando qualquer impacto
econômico ou ambiental, segundo o governo federal. Alagoas e Sergipe também
não serão afetados porque a vazão do rio nesses estados é plenamente regulada
pelas represas da Chesf, que alterou as condições originais do rio próximo da foz.5
No que se refere à questão, a ANA garante que existe água suficiente para ser
desviada sem atrapalhar a produção de energia. Entretanto, como um dos canais
partirá de um ponto abaixo de Sobradinho e acima das maiores geradoras de

5
Idem.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13

eletricidade, isto é, Itaparica, o complexo de Paulo Afonso, Moxotó e Xingó, a


situação preocupa especialistas que consideram que Sobradinho, inaugurada em
1979, é fundamental para o sistema da Chesf, pois assegura a água necessária
para mover as turbinas das hidrelétricas de maior potência e produtividade. Acre-
dita-se que a redução do volume médio de metros cúbicos que serão suprimidos
com a transposição resultará numa diminuição da capacidade de geração de ener-
gia elétrica pela Chesf da ordem de 2,4%.6
No relatório de impacto ambiental (Rima), o governo aponta diminuição de re-
ceitas municipais, uma vez que a redução da energia gerada nas usinas de Itaparica,
Xingó e Paulo Afonso/Moxotó resultará, também, na redução dos valores de com-
pensação recebidos pelos municípios que tiveram parcelas de seus territórios inunda-
dos para formação desses reservatórios e dos reservatórios a montante e/ou ocupados
pelas instalações destinadas à produção de energia elétrica. O Rima estima que as
perdas das receitas municipais serão, no entanto, inferiores a 4% para qualquer mu-
nicípio afetado, sendo que, para a grande maioria, devem ficar abaixo de 1%.
O governo acena então, ainda no Rima, com programas compensatórios cujo
objetivo principal é apoiar, com recursos técnicos e financeiros, os municípios
onde os impactos decorrentes das obras do empreendimento serão sentidos com
maior intensidade:
Esse apoio volta-se para iniciativas que permitam a prática de ações
para elevar a qualidade de vida nas comunidades locais, atendendo
às demandas de suas populações, principalmente no que diz respei-
to aos seguintes aspectos: melhoria na rede viária local; melhoria e
construção de escolas rurais e urbanas; melhoria de saneamento,
voltada para implantação de aterros controlados, redes de água e
esgoto e estações de tratamento de esgoto; desenvolvimento de
atividade de cultura, esporte e lazer (construção de ginásios
poliesportivos) e melhoria de infra-estrutura de saúde, com a
construção de postos de saúde e a aquisição de equipamentos
médico-hospitalares.

Quando indagado se não existe uma outra solução técnica mais econômica que
a transposição, o governo federal responde que a água dos rios intermitentes do
semi-árido setentrional já é armazenada em grandes açudes e investe-se muito nessas
obras para disponibilizar relativamente pouca água. Para cada metro cúbico de
água disponibilizado perdem-se três metros cúbicos por evaporação e sangramento
dos açudes. Assim, é preciso represar quatro metros cúbicos para usar apenas um. O
que poderá ocorrer, em muitas bacias, alerta o governo, é que a construção de novos
açudes necessários para distribuir água no território acabará causando mais perdas
de água por evaporação, reduzindo a água disponível no conjunto da bacia.
Quanto aos poços, o governo afirma que a opção pela captação de água em
lençóis subterrâneos por meio de poços é viável, mas limitada ao volume renovável,
e só pode ser feita, basicamente, nos terrenos sedimentares permeáveis, que ocor-

6
Idem.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

rem em 30% do Polígono das Secas e de forma concentrada na zona costeira e no


estado do Piauí. Portanto, 70% do semi-árido não conta com essa opção, pois o
terreno é pedregoso e não permite a infiltração de água. A qualidade da água,
muitas vezes com alto teor de sais e outros minerais, torna-se imprópria para o
consumo humano e mesmo para a irrigação.
O governo admite que a coleta de água das chuvas em cisternas é um método
utilizado para garantir água potável no meio rural às populações dispersas, que
vivem longe das adutoras. As cisternas, no entanto, na visão do governo, não
produzem mudanças estruturais nem a inserção desses segmentos na vida moder-
na. O uso de cisternas seria válido em uma conjuntura emergencial, porém precá-
rio se for concebido como forma de abastecimento permanente. Argumenta, ain-
da, que, em muitos lugares, chove pouco e, nas épocas de seca, a cisterna é um
recurso que pode esgotar-se. Por fim, destaca a contaminação das cisternas por
coliformes fecais e outras formas de poluição.
Quando questionado se o projeto de integração trará problemas ambientais, o
governo federal comunica que o Rima, documento elaborado por equipe
multidisciplinar composta de 40 cientistas e técnicos não ligados ao governo fe-
deral, conclui, ao fim de suas 132 páginas, afirma que os impactos gerados pelo
projeto de integração poderão ser perfeitamente atenuados e monitorados por
meio dos programas ambientais propostos.7
Os argumentos ora apresentados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva se
referem ao reforço do abastecimento de água, à redução das desigualdades regio-
nais, à incorporação do semi-árido à economia nacional, à melhoria das condi-
ções sociais das populações, à geração de empregos, ao aumento da renda e à
possibilidade de desenvolvimento de novas atividades econômicas.
No dia 10 de maio de 2005, o edital para licitação das obras do projeto de
transposição foi publicado no Diário Oficial da União, prevendo a construção
dos eixos Leste e Norte. A concorrência abrangerá a execução das obras civis,
instalação, montagem, testes e condicionamento dos equipamentos mecânicos e
elétricos, e elaboração de projetos executivos. A licitação para as obras do Eixo
Oeste ficaria para um segundo momento. Contudo, no dia 26 de julho de 2005,
foi adiada pela terceira vez a data para o recebimento de propostas de empresas
interessadas na construção dos eixos Norte e Leste, conforme noticiou o Jornal do
Commercio, em 26 de julho de 2005. O motivo foi ação que tramita no Tribunal
de Contas da União (TCU) com o objetivo de suspender a licitação, tendo em
vista denúncias de irregularidades no processo. O adiamento ocorreu também,
segundo o jornal, para que fossem feitas adequações técnicas ao edital de licitação
de forma a atender pedidos encaminhados por pequenas e médias empresas, que
consideraram o prazo curto para elaboração de projetos.
A intenção do governo federal é de que a Chesf se torne gestora do empreendi-
mento a ser realizado. Originalmente, a companhia foi criada para gerar, transmi-
tir e comercializar energia elétrica. A fim de que possa gerenciar bombas e canais

7
O Rima está disponível no site do Ministério da Integração Nacional.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

do projeto de transposição, quando as obras forem concluídas, a Chesf terá que


ter o seu estatuto modificado. Segundo a direção da estatal, a empresa está con-
cluindo os estudos que orientarão essa mudança.

Posicionamento dos segmentos envolvidos (identificação dos conflitos)


Posição do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco
O Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), instituído por decre-
to presidencial em 2001 e formado por representes do governo federal, governos
estaduais, prefeituras, empresas consumidoras de água, hidrelétricas, universida-
des, associações profissionais e ONGs vinculadas à defesa do meio ambiente, só
admite o desvio de água para o abastecimento humano e animal, posição comple-
tamente diferente da que é adotada pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos,
em que o governo federal tem maioria.
Os que são contra o projeto dizem que ele foi idealizado não para atender às
populações carentes que sofrem com as secas, mas para favorecer os grandes negó-
cios com a expansão dos viveiros de camarões no Rio Grande do Norte e ajudar
empresários cujos investimentos precisam de irrigação. Os críticos do projeto afir-
mam que não há déficit de água para abastecimento humano, nem no Ceará nem
no Rio Grande do Norte.
No caso do Ceará, acaba de ser inaugurado o primeiro trecho do Canal de
Integração, com 55 quilômetros. Concluído, ligará a região em que se localiza o
açude de Castanhão à Região Metropolitana de Fortaleza, passando por 11 mu-
nicípios. Por outro lado, o Ceará argumenta que existem 21 empresas que dese-
jam se instalar na bacia do rio Piranhas-Açu para desenvolver a criação de cama-
rões, que ocupa o segundo lugar no ranking de exportação do estado. Contudo,
segundo o governo estadual, não há água suficiente para responder às necessida-
des de expansão dessas atividades. A área é conhecida como o Polígono do Cama-
rão, cultura que consome duas vezes mais água do que a agricultura irrigada.
Quanto ao abastecimento para consumo, os técnicos avaliam que o Ceará já
possui uma grande rede de fornecimento de água e que continua investindo na sua
ampliação. A conclusão do Canal da Integração assegurará água à Região Metro-
politana de Fortaleza para os próximos 30 anos. A obra é financiada pelo Banco
Mundial e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Utilizando água do açude de Castanhão, beneficiará a agricultura irrigada e servirá
ao complexo industrial e portuário de Pecém, além de assegurar o consumo huma-
no. Entretanto, como o Ceará disputa com outros estados a implantação de uma
refinaria de petróleo e de uma siderúrgica, o governo estadual afirma que os seus
mananciais não são suficientes para esses empreendimentos futuros.
O Ceará dispõe de outras reservas hídricas como os açudes de Orós e de
Banabuiú. Conta, ainda, com o Canal do Trabalhador, construído durante o go-
verno do atual ministro da Integração, Ciro Gomes, e que se encontra pratica-
mente ocioso, funcionando apenas como um sistema sobressalente.
Conforme notícia publicada no Diário de Pernambuco, em 15 de maio de
2005, cujo título era: “Transposição usa mais água do que diz Governo”, o Pro-
jeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nor-
deste Setentrional (transposição) comprometerá em média 24% da vazão máxi-
ma que pode ser retirada do rio. O cálculo é do Comitê da Bacia Hidrográfica do
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

Rio São Francisco (CBHSF) e vai de encontro a um dos principais argumentos


utilizados pelo governo federal – o de que a obra vai “retirar apenas 1,5% das
águas perdidas para o mar”. Segundo nota pública de esclarecimento divulgada
pelo comitê, o Pacto de Gestão das Águas da Bacia, contida no Plano de Recursos
Hídricos, fixa que a vazão máxima que pode ser retirada é de 360 m³/s, dos quais
ainda restam 269 m³/s. “É sobre esse saldo existente para todos os usos consulti-
vos nos sete estados da bacia que deve ser realizado o cálculo”, diz a nota. Para o
comitê, afirmar que os 26 m³/s que o projeto retirará são destinados ao consumo
humano é apenas uma manobra para esconder a real utilização dessas águas.

Documento da SBPC e posições de estudiosos e técnicos


Na avaliação de diversos profissionais envolvidos na discussão sobre o desvio das
águas do São Francisco, o projeto é uma temeridade. Para Manoel Dantas Vilar
Filho, engenheiro hidráulico e ex-secretário de Planejamento da Paraíba, a maior
parte do semi-árido é inadequada à irrigação, visto que possui um solo raso e
susceptível à salinização, o que não justificaria investimentos nesse sentido.
Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte foi criada uma comissão de
professores para analisar o problema. De acordo com José Abner Júnior, doutor
em hidrografia, o empreendimento levará água para onde já existe em abundân-
cia. Ressalta que o custo será proibitivo para a irrigação e que as regiões mais secas
não serão atendidas. O professor lembra que a água será levada para o vale do
Apodi, onde existe um rio perenizado por barragens e consideráveis reservas sub-
terrâneas de água. Argumenta, ainda, que a barragem Armando Gonçalves
tem capacidade de vazão de 17 m3/s, maior do que a água liberada, representando
o dobro do que é consumido pelos 2,7 milhões de habitantes do estado. Mas
deixa claro que o traçado do canal a ser construído para fazer escoar as águas do
São Francisco exclui a parte da população mais necessitada: a do vale do Seridó,
no sul do estado.
Para o subeditor do Jornal do Meio Ambiente e coordenador de programas
socioambientais da Câmara de Cultura, Henrique Cortez, o projeto de transposi-
ção do rio São Francisco não atende aos grandes desafios da região: regularização
fundiária, acesso à água e um modelo de desenvolvimento estruturado na agricul-
tura familiar. Declara, em seu artigo “Um projeto que não garante acesso à água”,
divulgado pela Agência Carta Maior, em 18 de fevereiro de 2005, que os recursos
previstos no orçamento de 2005 (mais de R$ 600 milhões) já seriam suficientes
para construir mais de 1 milhão de cisternas de placas, atendendo a mais de 5
milhões de pessoas.
Sebastião Barreto Campello, professor da Universidade Federal de Pernambuco,
em seu artigo “Ainda a transposição”, publicado no Diário de Pernambuco de 25
de junho de 2005, indaga o motivo de construir outras calhas, se as margens do
São Francisco não estão ainda irrigadas.
Diz Barreto Campello que, depois da abertura das novas calhas, ainda é neces-
sário fazer a irrigação nas suas margens.
O São Francisco é um rio de grande percurso, mas de pouca vazão
média (2.850 m3/s), se comparado com os grandes rios nacionais,
como o Tocantins (11.800 m3/s), o Paraná (11.000 m3/s), o Ama-
zonas (133.380 m3/s) etc. Esse projeto alucinado exigirá R$ 4,5
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

bilhões, enquanto a Adutora do Oeste, projeto que beneficiará 220


mil habitantes, continua paralisada por falta de verba. Calcula-se
que a atual vazão do rio São Francisco poderá irrigar 1 milhão de
hectares, mas só irriga 330 mil hectares, segundo o agrônomo Aron
Jordão de Oliveira. Calcula-se que cada hectare irrigado, distante
400 quilômetros do seu leito, custa 12 vezes mais do que os feitos
nas suas margens e evapora, ao longo do canal, 1,5 vezes o volume
aproveitado.

Como solução para as regiões mais distantes das suas margens, Barreto
Campello sugere a construção de açudes e a irrigação dessas margens.
Para o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna, a solução
para a seca no Nordeste está no desenvolvimento de novas formas de gerir a
água que já existe na região: seus 70 mil açudes acumulam um potencial de 37
bilhões de m³/s, o maior volume represado em regiões semi-áridas do mundo.
Segundo o pesquisador, os pontos mais relevantes do problema dizem respeito
às limitações das vazões no rio, o que tem gerado freqüentes conflitos entre a
geração de energia (o racionamento ocorrido em 2001 foi uma prova disso) e a
irrigação praticada no vale, dificultando, sobremaneira, a ampliação da área
irrigada na sua bacia hidrográfica.
Há ainda técnicos que defendem uma transposição do rio Tocantins para o São
Francisco, antes de transferir as águas dessa bacia para outros rios e açudes. Sem essa
realização, a transposição do São Francisco será ineficaz ao longo prazo, apresen-
tando mais problema do que solução, dizem uns. Para outros, defensores do mesmo
argumento, o Tocantins está mais próximo e a 140 metros de altura. Bastaria abrir
um canal de 200 quilômetros até o rio Preto, na Bahia, que deságua no São Francis-
co. Nunca mais haveria problema de abastecimento no Nordeste, asseguram.
O documento resultante do Encontro Internacional sobre Transferência de Águas
entre Grandes Bacias Hidrográficas, promovido pela Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), em outubro de 2004, repudiou veementemente o
projeto de transposição do governo federal. A entidade manifestou preocupação
com o fato de que o São Francisco já não dispõe de vazão suficiente para atender
às demandas contidas no projeto do governo. Caso sejam viabilizadas as constru-
ções dos dois eixos, Norte e Leste, será necessária uma vazão de até 127 m³/s. A
SBPC lembra que o rio dispõe de uma vazão alocável de aproximadamente 360
m³/s, sendo que 335 m³/s já foram utilizados em diversos empreendimentos, exis-
tindo um direito adquirido de uso dessas águas. O que resta, portanto, para ser
alocado são apenas 25 m³/s. O documento da SBPC afirma que o governo federal
tem conhecimento dessa situação de penúria hídrica e, por isso, buscou alternati-
va para retirar água do rio sem comprometer o setor elétrico e o agrícola.
Nesse sentido, o governo passou a propor a revisão das outorgas já concedidas
e pensa em usar as águas da represa de Sobradinho quando ela estiver com 94%
de sua capacidade de armazenamento preenchidas. O relatório adverte que a situ-
ação de plenitude da capacidade de Sobradinho, historicamente, só ocorre de sete
em sete anos. Sobradinho sangrou em 1997, e o fenômeno só voltou a ser obser-
vado em abril de 2004. Nesse período, ocorreram severas secas na região, e, em
2001, o país teve de enfrentar a sua mais séria crise energética.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

Considera a SBPC que o Nordeste possui água em todos os seus estados em


volume suficiente para satisfazer às necessidades de consumo da população, restan-
do, portanto, ao governo descobrir como racionalizar a sua utilização. Referindo-se
aos estados que serão beneficiados com a oferta de água do São Francisco, a SBPC
destaca que o Ceará possui uma oferta potencial de 215 m³/s, enquanto o consumo
é de apenas 54 m³/s. Já o Rio Grande do Norte possui uma oferta potencial de 70
m³/s e um consumo atual de 33 m³/s. A Paraíba tem uma oferta potencial de 32 m³/
s e um consumo de 21 m³/s. A conclusão do relatório é de que as águas do São
Francisco serão levadas para locais onde já existe abundância do produto.
Como proposta, a SBPC sugere a execução de projetos hidráulicos
estruturadores, partindo das bacias dos estados que seriam receptores das águas
do São Francisco para a bacia do próprio rio São Francisco, mediante uso integra-
do do potencial hídrico existente. Com isso, ficaria assegurado que a transposição
do rio funcionaria como uma alternativa complementar, ao mesmo tempo que as
fontes locais de água existentes nos estados deixariam de ser subutilizadas.
À voz dos cientistas somou-se, em janeiro de 2005, manifesto lançando, em
Salvador, criando a Frente Nacional em Defesa do São Francisco e contra a Trans-
posição. O movimento entende que o programa do governo federal tem objetivos
políticos e atende a interesses econômicos considerados menores. Segundo seus
integrantes, “o que interessa ao Brasil é a construção de um grande Programa de
Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Semi-Árido que, ao invés de atender
somente a empreiteiras, contemple alternativas mais baratas, mais sustentáveis e
de retorno mais rápido para resolver de fato os dramas da escassez hídrica e da
convivência com o semi-árido”.
Esse movimento se propôs a defender a Constituição Brasileira e a Lei Nacio-
nal dos Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. Segundo
o documento, tais leis estão sendo violentamente rasgadas pelo governo federal,
“em atitude extremamente negativa para a consolidação do desenvolvimento da
democracia que todos queremos construir”.8
Em fevereiro de 2005, novo documento foi lançado, denominado Transposi-
ção das Águas do São Francisco, assinado por 47 entidades, tais como universida-
des federais, associações de moradores de cidades a serem atingidas pelo projeto e
grupos de ecologistas. Em suas conclusões, o manifesto afirma que a transposição
é desnecessária, econômica e socialmente inviável e prejudicial ao meio ambiente.
Segundo o documento, cada hectare irrigado da forma como propõe o governo
será responsável por uma perda de água que possibilitaria a irrigação de aproxi-
madamente três hectares de terras às margens do São Francisco.
Apolo Heringer, signatário do manifesto e coordenador do Projeto Manuelzão,
grupo da Universidade Federal de Minas Gerais, entende que a transposição tem
caráter demagógico. “No vale do São Francisco ainda existem terras que não são
irrigadas. Só em Minas Gerais, com investimentos bem mais modestos do que os
apresentados pelo governo federal, seria possível irrigar terras que, mesmo sendo

8
O documento de criação do movimento foi transcrito no site do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e
Agronomia da Bahia (Crea-BA) <www.creaba.org.br> e assinado por entidades da sociedade civil, instituições, Ministérios
Públicos estaduais, representantes de governos municipais e estaduais e parlamentares.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

de boa qualidade, não produzem nada ou quase nada devido à falta de água”,
declara. Ele acredita que o projeto governamental é de interesse do agronegócio e
das empreiteiras, enquanto o pequeno produtor, “se um dia for beneficiado pelo
projeto de transposição, nunca terá dinheiro para arcar com os custos da irriga-
ção. Terá de ser subsidiado”, afirma.9
Também em 19 de julho de 2005, por ocasião da presença do ministro Ciro
Gomes na 57ª Reunião da SBPC, ocorrida em Fortaleza, o público presente mani-
festou grande insatisfação com o projeto de integração do rio São Francisco. O
ministro voltou a afirmar estar seguro de que “o projeto chegou num ponto em
que é possível dizer que 12 milhões de pessoas serão beneficiadas no Nordeste sem
que nenhum brasileiro sequer seja prejudicado”. Ciro Gomes comunicou que,
para alcançar essa meta, o projeto original foi modificado. O objetivo foi reduzir
a vazão do rio a ser utilizada no plano (de 360 m³/s para algo em torno de 26 m³/
s, na versão atual).
Conforme notícia divulgada pela Agência Brasil, no Portal da Cidadania, assi-
nada por Olga Bardawil, o ministro da Integração Nacional reconheceu que o
primeiro patamar era inviável, mas acredita que o atual representará a cessão de
apenas 1,4% do total da água do rio (Bardawil, 2005).
Ainda na 57ª Reunião da SBPC, conforme artigo de Verônica Falcão, enviada
especial do Jornal do Commercio, a professora da Universidade Federal da Bahia
e coordenadora do Comitê da Bacia do Rio São Francisco, pesquisadora Yvonilde
Medeiros, disse que os estados doadores da água – Pernambuco, Bahia, Sergipe e
Alagoas – deveriam receber pelo recurso. Segundo a professora, “em todos os
projetos de transposição do mundo a bacia hidrográfica que doa é compensada
pelos danos”, justifica.
Para o hidrólogo Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo (USP), citado
no mesmo artigo do Jornal do Commercio, “ainda não está claro a quem o pro-
jeto irá atender e quantas pessoas beneficiará”. O professor Rebouças lembrou
que o Banco Mundial emitiu um parecer contrário à transposição por duvidar do
alcance social da obra. “Ricos têm dinheiro para ganhar, não para gastar”, adver-
tiu o professor, que, no entanto, anunciou não ser contra o projeto. Sugeriu que
alguns aspectos, a exemplo do alcance social, sejam mais bem discutidos.

Posições dos governadores


Durante o terceiro governo Arraes (de 1995 a 1999), muitas discussões foram
feitas em Pernambuco e noutros estados sobre a transposição de águas do São
Francisco e de outros rios. O governo do estado, à época, ao tempo em que mani-
festou sua preocupação com a situação do rio, com as dúvidas sobre a viabilidade
financeira e administrativa do empreendimento, discutiu por meio de seus técni-
cos as diferentes alternativas e negociou, com o governo dederal de então, uma
solução que atendesse também às necessidades de Pernambuco. Desse processo de
negociação, surgiu o projeto do Ramal Leste, voltado às necessidades de
Pernambuco e da Paraíba.

9
Manifesto divulgado pelo site <www.manuelzao.ufmg.br>.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20

O governador Jarbas Vasconcelos conseguiu, no fim de maio de 2005, a promes-


sa de que seria alterada a proposta inicial do governo federal, em relação ao traçado
original de transposição do rio São Francisco. Recebeu do ministro da Integração,
Ciro Gomes, a garantia de que seu estado seria beneficiado de forma a atender aos
municípios de Arcoverde e Pesqueira, que ficariam interligados ao rio Ipojuca, no
agreste. Para isso, seriam necessárias alterações no Eixo Leste, que sairá de Itaparica,
em Petrolina, seguindo em direção à Paraíba. Pernambuco tem uma situação dife-
renciada em relação aos demais estados envolvidos com a transposição das águas, já
que, além de ser doador, é também receptor. Entretanto, essa mudança no trajeto
inicial do Eixo Leste ainda precisaria ser transformada em projeto, ter orçamento
específico, ser submetida à apreciação de engenheiros e analisada do ponto de vista
do volume de água que deverá envolver e os custos financeiros.
O atual governo de Pernambuco também reivindicou a substituição do Eixo
Norte pelo Canal do Sertão, que sairia de Sobradinho, beneficiando 130 mil hec-
tares de terras agricultáveis, incluindo Petrolina. O ministro Ciro Gomes decla-
rou, segundo notícia publicada no Diário de Pernambuco de 27 de maio de 2005,
que essa proposta é bem mais complexa e cara, e que não podia ter uma resposta
rápida. Contudo, foi uma proposta semelhante a essa que terminou prevalecen-
do. Segundo notícia publicada no Diário de Pernambuco, em sua edição de 30 de
julho, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, enviou carta ao governa-
dor Jarbas Vasconcelos, falando das mudanças que estava disposto a fazer no
projeto original.
Essas alterações foram expostas pelo governador em reunião do Conselho do
Pacto 21, no dia 29 de julho de 2005, e, segundo Jarbas, depois de concretizadas,
Pernambuco ganhará uma área irrigada maior do que aquela que possui hoje e que
engloba 43 mil hectares. Passaria a contar com mais 77 mil hectares espalhados
entre o agreste e o sertão e com a possibilidade de geração de 231 novos empregos,
segundo sua estimativa. O Pacto 21 reúne lideranças empresariais e políticas para
discutir projetos estratégicos. A iniciativa deverá custar aos cofres da União aproxi-
madamente R$ 1 bilhão. Ciro Gomes acenou com a possibilidade de conclusão de
grande parte do canal até o fim de 2006. Outra conquista para Pernambuco foi a
decisão do governo federal de aumentar a vazão do açude de Entremontes, no Eixo
Norte, o que beneficiará a irrigação nos municípios de Ouricuri e Parnamirim. A
carta do ministro ao governador pernambucano, entretanto, não trata das mudan-
ças pretendidas no Eixo Leste para ligar Sertânia a Pesqueira.
As mudanças no projeto, apresentadas ao governo de Pernambuco, estão lon-
ge de satisfazerem a Jarbas Vasconcelos. Conforme notícia publicada no Jornal do
Commercio de 31 de julho, o governador ainda fará muitas exigências, especial-
mente quanto ao custo da água. Segundo a reportagem, ele pretende que o custo
da água seja variável, argumentando que não é justo que os estados banhados
pelo São Francisco paguem o mesmo preço que o Ceará e o Rio Grande do Norte.
A avaliação é de que o custo do transporte da água deve variar de acordo com a
distância, como acontece com o petróleo e o gás natural. Pernambuco não vem se
mostrando disposto a subsidiar água para outros estados.
Durante a reunião do Pacto 21, empresários pernambucanos se mostraram
descrentes em relação à transposição do São Francisco. Em entrevistas ao Diário
de Pernambuco, deixaram claro que acham difícil que o projeto saia do papel,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21

especialmente em razão dos custos. Essa é a opinião, por exemplo, do conselheiro


do Pacto 21, empresário Eduardo Oliveira, da Asa Indústria. Avaliação seme-
lhante faz o advogado José Paulo Cavalcanti Filho.
Por outro lado, notícia publicada pelo Diário de Pernambuco do dia 6 de
agosto de 2005 mostra que o Consórcio de Desenvolvimento do Sertão do Pajeú
(Condesp), integrado por 17 municípios, vem se mobilizando para exigir a in-
clusão da região no projeto de transposição do São Francisco. Reunido em
Garanhuns, no dia 3 de agosto, o grupo entregou um documento ao presidente
Lula e, no dia 5, promoveu uma reunião na sede da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) para discutir os próximos passos. Participaram do debate políti-
cos, lideranças do semi-árido e representantes dos governos de Minas Gerais,
Alagoas e Sergipe.
A proposta é no sentido de que o Pajeú seja beneficiado pelo Eixo Leste, que
fica a 30 quilômetros da nascente do rio que dá nome à região. Os empresários
querem que o canal passe pela cidade de Monteiro, na Paraíba, e vá até o municí-
pio de Itapetim, em Pernambuco, onde fica localizada a nascente do rio. Na oca-
sião, o deputado federal Raul Jungmann (PPS/PE) apresentou projeto de lei de
iniciativa popular que tem por objetivo mudar o traçado do Eixo Leste.
Sob o título “Ao apagar das luzes”, o pesquisador João Suassuna divulgou
artigo na Agência Carta Maior, em 30 de maio de 2005, que contesta a posição
do governo de Pernambuco, manifestada pelo governador Jarbas Vasconcelos,
“pois faltou o indispensável aprofundamento das discussões técnicas sobre o pro-
jeto”. Segundo Suassuna, não seria possível o fornecimento dos volumes exceden-
tes reivindicados, sem pôr em risco todos os investimentos já realizados ao longo
da bacia hidrográfica do rio São Francisco. Aponta o pesquisador:
Para se ter idéia dessa problemática, só no setor elétrico foram
aplicados, na região, cerca de US$ 13 bilhões, e o pólo de irrigação,
com cerca de 340 mil hectares irrigados, vem crescendo a uma taxa
de 4% ao ano, exigindo volumes hídricos proporcionais à sua
ampliação. Essas características têm resultado em situações
conflituosas em ambos os setores (elétrico e irrigacionista), cujo
principal agente causador é o uso das águas de um rio que já vem
dando sinais de exaustão, tendo como prova o racionamento de
energia ocorrido em 2001. (Suassuna, 2005)

Ao tomar conhecimento da carta dirigida por Ciro Gomes a Jarbas Vasconce-


los, João Suassuna, em entrevista ao Diário de Pernambuco de 30 de julho de
2005, disse que o fato de o governo federal ter atendido às reivindicações de
Pernambuco não passa de “mera cena política”. Na sua avaliação, o Planalto está
tentando conquistar o apoio do governo pernambucano aprovando um projeto
fadado ao fracasso.
No caso da Paraíba, o governador Cássio Cunha Lima admite que os benefíci-
os econômicos da transposição interessam mais ao seu estado do que questões
vinculadas ao abastecimento humano. Segundo ele, uma cidade como Campina
Grande, por exemplo, está com seu desenvolvimento industrial estagnado por
falta de oferta de água. Um pólo cerâmico estava planejado para se instalar no
município, e o projeto não avançou por falta de água e de gás natural.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

Em 26 de junho de 2005, o secretário executivo do Comitê da Bacia


Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Luiz Carlos Fontes, distribuiu aos
meios de comunicação do país carta aberta dirigida ao presidente Lula,
reproduzida a seguir. Os integrantes do comitê consideraram o documento “um
marco importante em relação ao Projeto de Transposição. Pela primeira vez, os
governadores de Minas Gerais, Bahia e Sergipe estiveram reunidos para tratar
desta questão”.
A carta – assinada pelos governadores Aécio Neves (MG), Paulo Souto (BA) e
João Alves Filho (SE), pela diretoria executiva e por instituições de Minas Gerais,
Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco que compõem o comitê, por senadores,
deputados federais e prefeitos por ocasião da abertura da 6ª Reunião Plenária do
Comitê, realizada no dia 15 de junho de 2005, no Palácio das Artes, em Belo
Horizonte – é uma síntese mais recente da posição desses governos estaduais e do
CBHSF “sobre as graves questões nacionais que estão envolvidas neste projeto e
as conseqüências da imposição desta transposição”.
O documento pede ao presidente Lula, em virtude das dúvidas e incertezas
técnicas, institucionais, ambientais e socioeconômicas que cercam o atual projeto
de transposição, que promova a ampliação do debate do tema com a sociedade
brasileira e estimule a negociação, no âmbito do pacto federativo, entre os esta-
dos doadores e receptores das águas são-franciscanas, determinando o adiamento
das obras, “até que uma solução sustentável e negociada possa ser encontrada”.
Na íntegra, é o seguinte o teor da carta dirigida ao presidente Lula:

Senhor Presidente:

As águas crescem porque se encontram. E é em nome desse encontro marcado, natu-


ralmente, pela natureza que nos protege e integra, chamado Bacia Hidrográfica do Rio
São Francisco, que nos dirigimos, publicamente, a Vossa Excelência.

No entendimento do Comitê da Bacia, da Sociedade Brasileira para o Progresso da


Ciência – SBPC, do Banco Mundial e de inúmeros cientistas, a transposição da Bacia do
Rio São Francisco para as bacias receptoras do Nordeste Setentrional jamais poderia ser
o ato inicial de uma solução integrada e sustentável para o Semi-Árido, mas a última
etapa de um conjunto de ações que deveria começar pela democratização do acesso à
água, através da adução e distribuição do estoque de água já existente, tanto na região
receptora como doadora, a conclusão das obras de infra-estrutura hídrica paralisadas, a
revitalização da bacia do Velho Chico e pelo investimento prioritário em soluções de
convivência com a seca para a população dispersa do semi-árido, quase metade dela
contida no Vale do São Francisco.

Diante desta avaliação e em virtude das dúvidas e incertezas técnicas, institucionais,


ambientais e socioeconômicas que cercam o atual projeto de transposição, conclamamos
Vossa Excelência a ampliar o debate do tema com a sociedade brasileira e estimular a
negociação, no âmbito do pacto federativo, entre os Estados doadores e receptores das
águas sanfranciscanas determinando o adiamento das obras, até que uma solução sus-
tentável e negociada possa ser encontrada.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23

Mesmo assim, visando não deixar dúvida quanto a nossa irrecusável solidariedade aos
irmãos nordestinos, apoiamos integralmente a decisão do Comitê de permitir a transpo-
sição de água para abastecimento humano e dessedentação animal nos casos de com-
provada escassez de recursos hídricos, quando não houver alternativa de suprimento
local nas regiões receptoras, concomitantemente com a implantação do Plano de Recur-
sos Hídricos da Bacia Hidrográfica.

Como rio da unidade nacional, o São Francisco constitui-se no elo físico, orgânico,
cultural e socioeconômico da integração do País, representando o corredor natural de
interligação do Nordeste com o Sudeste brasileiros, do litoral com o Sertão e eixo de
conectividade dos biomas da caatinga e do cerrado. As suas águas, mesmo que degra-
dadas, ainda banham e levam vida a sete unidades da Federação. Mas correm o risco
de não fazê-lo mais num futuro ecologicamente previsível, porque o rio vem perdendo,
progressivamente, em lenta agonia, sua vocação natural de ser fonte de vida e riqueza
para os brasileiros, especialmente para os nossos compatriotas do Nordeste.

Na sua área de abrangência, temos 3 milhões de hectares de terras potenciais e oficial-


mente aptas para serem irrigadas. Mas as águas assim induzidas do Velho Chico só
chegam hoje a apenas 340 mil hectares, dos quais em torno de 150.000 ha com as
obras de infra-estrutura inacabadas e, conseqüentemente, sem nenhum aproveitamen-
to socioeconômico.

A plena utilização do potencial representado pelas atividades usuárias das águas já


outorgadas legalmente, mais o crescimento da demanda para abastecimento público,
incluindo geração de energia e navegação, levarão ao esgotamento da disponibilidade
correspondente à vazão que pode ser alocada para os múltiplos usos no curto e médio
prazos. Quantos mais eles serão em 2030?

Vem do rio, e não de nós, os dados da realidade que, desde d. Pedro II, a indústria da
seca insiste em negar, embaçando a visão dos nossos governantes ao longo da história.
Pertencem a esta realidade a poluição das águas, a devastação das matas ciliares e das
áreas de recarga dos lençóis freáticos, a prática das queimadas, o garimpo predatório,
a erosão e o assoreamento, a cunha salina da foz, entre outros fatores que ameaçam a
vida do rio. Do pescado que, mesmo raro, por causa da poluição e do assoreamento,
resistiu até início dos anos 90, hoje só se pesca 20%. E os nossos irmãos barranqueiros
ainda dão graças a Deus.

Não é essa realidade que, acreditamos, um presidente do Brasil com a sua biografia e a
sua ecologia social quer transpor para o Nordeste Setentrional. Mas um São Francisco
revitalizado. Um rio ambientalmente recuperado, economicamente viável e socialmen-
te mais justo, sobretudo para a população pobre que, mesmo vivendo à beira do rio,
permanece atrelada ao ciclo histórico de pobreza que a disponibilidade de água, por si
mesma, não é suficiente para romper e superar.

Torna-se necessário, ainda, Senhor Presidente, reconhecer o papel do Comitê da Bacia,


como instância legítima para definir o pacto de alocação de águas porque não há outro
motivo ou futuro maior para os nossos irmãos nordestinos, que pedirmos o seu apoio e
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
24

reconhecimento federal na gestão colegiada e democrática das águas do Velho Chico.


A sua participação e comprometimento, como estadista de um Mundo novo a nossa
frente, na implantação do Plano de Recursos Hídricos proposto pelo Grupo Técnico de
Trabalho liderado pela Agência Nacional de Água se aprovado pelo Comitê da Bacia
deste que é o maior rio genuinamente brasileiro e um dos mais importantes no contexto
geopolítico do nosso País.

Junte-se a nós, presidente, na tarefa inadiável de salvar o Velho Chico.

REVITALIZAÇÃO, JÁ! Acompanhada dos investimentos necessários para aumentar a


oferta e democratizar o acesso à água, bem como concluir as obras de infra-estrutura
hídrica inacabadas em toda a região semi-árida brasileira, reorientando as políticas pú-
blicas para o desenvolvimento regional sustentável, como preconizam instituições isen-
tas de inquestionável credibilidade nacional e internacional, como a SBPC e o Banco
Mundial. REVITALIZAÇÃO JÁ!!
TRANSPOSIÇÃO EM DEBATE. DESFRALDE ESTA BANDEIRA, PRESIDENTE!!!
Belo Horizonte, 15 de junho de 2005

Posição das representações indígenas


Em 22 de maio de 2005 foi realizada plenária indígena envolvendo as populações
ribeirinhas que habitam as aldeias Tuxá, Truká, Tumbalalá, Pankararu, Atikum,
Fulniô, Kaxixó, Pankararé, Karapotó, Kariri-Xocó, Tingui Botó e Kapinawá, den-
tre as 24 tribos que vivem na bacia. Os índios integram o CBHSF. O evento ocorreu
na aldeia Truká, na Ilha de Assunção, no município de Cabrobó (PE). Na ocasião,
reafirmaram a disposição de luta contra a transposição do rio São Francisco. Argu-
mentaram que a medida favorece o agronegócio, as empreiteiras e, especialmente, o
processo político-eleitoral, sem a preocupação com os impactos sociais, políticos e
ambientais que afetarão toda a população que habita a bacia do São Francisco. “O
governo fala em levar água para 12 milhões de pessoas, mas não explica que a
maior parte ficará para os latifundiários. Se fosse para abastecimento humano, ele
optaria por poços e cisternas, que têm um custo bem mais barato”, afirma o caci-
que Neguinho Truká, em entrevista à jornalista Jaqueline Andrade, do Diário de
Pernambuco, publicada no dia 23 de maio de 2005 (Villas-Boas, 2005).
Os índios questionam sua representatividade no comitê, ressaltando que ne-
nhuma tribo tem condições financeiras para o deslocamento necessário à partici-
pação nas discussões do problema, conforme a realidade de cada povo, já que eles
se espalham da nascente do rio, em Minas, até o mar. Nesse sentido, esperam
maior apoio governamental. Por outro lado, cobram a realização do estudo de
impacto ambiental mais aprofundado, uma vez que vários municípios da Bahia e
de Pernambuco são localizados em áreas de desertificação.
As lideranças indígenas demonstram grande apreensão em relação à sobrevivên-
cia das tribos, pois, hoje, ainda sofrem as conseqüências das construções de
Sobradinho e Itaparica, que, em função do represamento das águas, reduziram con-
sideravelmente a quantidade de peixes e crustáceos. Durante a plenária, o represen-
tante dos Kariri-Xocó, de Alagoas, Dioclécio Franco Tenório, destacou que, além
da questão da pesca, os índios vêm sofrendo com a dificuldade de cultivar as terras.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
25

As tribos que se sentem prejudicadas discutem a hipótese de buscar apoio inter-


nacional da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização dos Esta-
dos Americanos (OEA) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) con-
tra a transposição. O cacique Neguinho Truká, da tribo que se apresenta como o
maior plantador de arroz de Pernambuco, responsável por mais de 80% da pro-
dução total do estado, lembra que, por lei, a retirada de recursos naturais dos
índios tem que ser autorizada pelo Congresso Nacional. Na Justiça, já correm
várias ações contra a transposição, ajuizadas pela OAB, pelo Ministério Público
Federal e pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), além de sindicatos, associ-
ações de catadores de caranguejos e do Ministério Público de alguns estados. A
representação indígena é apoiada por ONGs e pelo Conselho Indigenista Missio-
nário, ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.
A bacia do São Francisco abriga 24 povos indígenas. Dois deles, entretanto,
serão diretamente afetados pela transposição das águas. É que o Eixo Norte parte
de Cabrobó (PE), município que fica a 30 quilômetros da ilha de Assunção, onde
vivem os Truká. A ilha de Assunção e mais 72 ilhotas férteis ocupam uma área de
5.769 hectares, onde vivem cerca de 3.500 índios, segundo levantamento feito
pela (Fundação Nacional da Saúde) Funasa, em 2004. Apesar da grande produ-
ção de arroz, a pobreza marca a vida dos moradores que, em sua maioria, vivem
em casas de barro.
Na outra margem, está radicado o povo Tumbalalá, em Abará, na Bahia. O
cacique da tribo, Cícero Marinheiro, que também é vereador de Abaré, em entre-
vista à jornalista Jaqueline Andrade, publicada no Diário de Pernambuco de 22
de maio de 2005, lembra que os povos ribeirinhos foram extremamente prejudi-
cados com as construções das barragens de Sobradinho, em 1979, e Itaparica, em
1988. Segundo ele, as barragens dificultaram a desova dos peixes que vêm se
tornando cada vez mais escassos. Por outro lado, sem as enchentes naturais, gran-
de parte das terras perdeu a fertilidade. O cacique afirma ainda que o rio vem
recebendo dejetos de várias cidades. Atualmente, grande parte das famílias sobre-
vive da pensão recebida pelos mais velhos que conseguiram aposentadoria, segun-
do explica Jaqueline Andrade, na edição do Diário de Pernambuco do dia 24 de
maio de 2005. O Ministério da Integração promete que realizará algumas obras
na aldeia para melhorar a qualidade de vida dos Tumbalalá.
O próprio governo, por meio do coordenador geral do projeto, Pedro Britto,
do Ministério da Integração Nacional, admite que as barragens prejudicaram os
índios, mas assegura que, agora, será diferente, conforme a matéria publicada
pelo Diário de Pernambuco. O mesmo não pensa o pesquisador da Fundação
Joaquim Nabuco, João Suassuna: “A captação de um dos canais se inicia no
município onde os índios dividem as ilhotas. O canal tem 25 metros de largura e
cinco de profundidade. Será que a vazão continuará a mesma?”.
No dia 30 de junho de 2005, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes,
assinou um convênio para a construção de 140 casas na aldeia Truká, anunciando
algumas políticas compensatórias para os índios, como a pavimentação da estra-
da que corta a ilha de Assunção para facilitar o escoamento da produção de arroz.
O Rima, divulgado em julho de 2004, identifica mais duas tribos em
Pernambuco que estão radicadas próximas aos locais em que serão realizadas as
obras previstas para a transposição do rio: Kambiwá e Pipipã. Os primeiros vivem
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nos municípios de Ibimirim e Inajá (PE), ocupando uma área de 31.495 hectares.
De acordo com informações da Funasa, a tribo é composta por mais de 2.500
pessoas. A tribo Pipipã está localizada no município de Floresta (PE) e ainda não
foi demarcada. Sua população é de aproximadamente mil pessoas. Entretanto, a
área reivindicada pelos Pipipã, ou seja, a aldeia denominada de Caraíba, fica
situada perto do Eixo Leste do projeto.
“O objetivo do programa é apoiar, com recursos técnicos e financeiros, as comu-
nidades indígenas potencialmente impactadas, após um processo de negociação junto
a seus representantes e lideranças, de modo a compensar os possíveis danos resultan-
tes da futura implantação do empreendimento”, afirmam os técnicos responsáveis
pela elaboração do Rima. Segundo o documento, é intenção do governo criar alter-
nativas de produção para essas populações, reforçar atividades artesanais e melho-
rar os serviços de saúde e saneamento, especialmente no que se refere à coleta do
lixo e ao oferecimento de água de boa qualidade para o consumo.

Comunidades quilombolas
Uma das áreas onde ainda hoje vivem descendentes de escravos que tentam preser-
var sua cultura e suas tradições e que vai ser atingida pela transposição das águas
do São Francisco é a Comunidade Negra Rural Rio das Rãs, que, na realidade,
engloba nove núcleos: Brasileira, Enxu, Bom Retiro, Barreiro do Jacaré, Central,
Aribá, Mucambo, Vila Mariana e Rio das Rãs. Lá, residem quase 600 famílias,
em 39 mil hectares de terras, no município de Bom Jesus da Lapa, localizado na
região econômica do médio São Francisco, na Bahia. Essas comunidades foram
formadas no período escravocrata por negros que fugiam dos maus-tratos impos-
tos pelos senhores. Para lá afluíram também índios que buscavam proteção con-
tra os novos donos das terras.
Rio das Rãs passou a sofrer um processo de valorização na década de 1970,
mediante o financiamento, pela Sudene, de planos de irrigação. Na década de
1990, os grandes projetos de irrigação da Companhia de Desenvolvimento dos
Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) ganharam maior impulso, favo-
recendo, também, Bom Jesus da Lapa, localidade em que muitos foram implanta-
dos. A concentração de terras no município e a conseqüente concentração de ren-
da aumentaram os conflitos entre fazendeiros e comunidades carentes, entre elas
as dos quilombolas, conforme relato publicado no site da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro.10
Tais disputas vão lentamente sendo contornadas, no caso de Rio das Rãs. Ações
para garantir o abastecimento de água às famílias são implantadas pela Funasa,
Codevasf, Ministério das Cidades, Ministério da Saúde e Fundação Palmares. A
população conta hoje com poços artesianos, os quais têm se mostrado insuficien-
tes para atender às necessidades. O governo afirma que o projeto do São Francisco
inclui a construção de um reservatório para irrigar as plantações.
Quanto ao quilombo Conceição de Criolas, para citar apenas um como exem-
plo de discordância da implantação do projeto de transposição do rio São Francis-
co, a sua representante Maria Aparecida Mendes da Silva, membro da Articulação

10
Ver http://geografia.igeo.uerj.br/
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Estadual das Comunidades Quilombolas de Pernambuco e participante da Confe-


rência Nacional do Meio Ambiente, realizada em dezembro de 2003, entre os qua-
tro delegados quilombolas presentes ao evento, revelou a sua grande aflição na
discussão do tema.
Informa o artigo “Participantes da Conferência Nacional do Meio Ambiente
definem como ‘querem cuidar do Brasil’”, do site Notícias socioambientais, que
Aparecida é “filha” do quilombo Conceição de Criolas – um dos 31 titulados
pelo governo federal, até o momento, de um total de 4 mil auto-identificados no
país11 –, uma área de 17 mil hectares, na qual vivem 4 mil pessoas, localizada em
Salgueiro (PE). O município abastecido pelo São Francisco chega a ficar 15 dias
sem água.
No entender de Maria Aparecida: “Precisamos refletir bem: quanto vai se gas-
tar? Será que essa é a melhor solução ou existem outras alternativas? Será que as
pessoas que estão passando as maiores dificuldades vão ser beneficiadas?”. A re-
presentante dos quilombolas considera que a questão relacionada a território ain-
da está entre as principais demandas do grupo. “Nós queremos a terra, que já é
nossa, projetos de geração de renda, valorização das potencialidades locais e
melhoria na saúde e na educação” (Fontes, 2003).

Movimentos dos sem-terra e representações dos trabalhadores rurais


A questão das terras que se estendem ao longo das margens do São Francisco,
assim como aquelas que estão na rota por onde passarão os Eixos Norte e Leste –
que levarão as águas do rio para outras regiões –, vem preocupando diferentes
segmentos da sociedade, como os sindicatos rurais, as pastorais da Igreja Católi-
ca, os movimentos de trabalhadores sem terra, associações de pequenos agriculto-
res e grupos de ecologistas.
Em janeiro de 2005, Miguel Rossetto, ministro do Desenvolvimento Agrário,
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, Pedro Britto, interino da Integração
Nacional, e Luiz Dulci, secretário geral da Presidência da República, apresentaram
o projeto de integração das águas do São Francisco aos dirigentes da Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Na oportunidade, Miguel
Rossetto disse que a determinação do governo era desenvolver obras capazes de
beneficiar agricultores e que, para isso, seria imprescindível a regularização fundiária.
Também em janeiro de 2005, foi realizada em Salgueiro (PE) audiência pro-
movida pelo Ibama. Contou com a presença de 318 pessoas. De acordo com
artigo da Agência Brasil, divulgado pelo site da Contag,12 sob o título “São Fran-
cisco: revitalização e acesso à terra sem maiores preocupações para os ribeirinhos”,
o líder sindical Jânio da Silva, da CUT, sugeriu que antes da transposição das

11
O processo de regularização de terras de quilombo sofreu um retrocesso a partir de 2001, quando o então presidente
Fernando Henrique Cardoso assinou o Decreto 3.912/2001. As regras estipuladas por esse decreto restringiram os direitos
consagrados aos quilombolas pela Constituição de 1988 e inviabilizaram novas titulações. Assim, como consta no site da
Comissão Pró-Índio de São Paulo (www.cpisp.org.br/comunidades/html/terras/home_terras.html), nenhuma terra de
quilombo foi titulada pelo governo FHC a partir de setembro de 2000. O governo Lula revogou tal decreto em novembro
de 2003, instituindo novas normas por meio do Decreto 4.887/2003. No entanto, o ritmo das titulações continua lento. Até
dezembro de 2004, o governo Lula titulou apenas duas terras de quilombo, beneficiando três comunidades do Pará.
12
Ver <www.contag.org.br>.
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águas fosse realizada a revitalização do rio. Em resposta, o representante do Mi-


nistério da Integração Nacional, João Ubaldo Cagnin, garantiu que o processo de
revitalização já foi iniciado, mas que levará mais de dez anos para ser concluído.
Segundo Cagnin, as duas ações podem ser desenvolvidas concomitantemente.
Por sua vez, o presidente da Federação dos Trabalhadores em Agricultura de
Pernambuco (Fetape), Aristides Santos, indagou sobre as intenções do governo em
relação aos trabalhadores rurais dos quatro estados que serão atingidos pelas obras,
isto é, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Cagnin declarou que o
governo já assumiu o compromisso de incentivar a agricultura familiar e que o
Incra já cadastrou 725 famílias que serão atingidas pela transposição das águas,
hoje residentes nos locais que serão inundados pelos canais previstos no projeto.
Em 2005, a Gazeta Mercantil publicou, em sua edição do dia 1º de fevereiro,
que o Ministério do Desenvolvimento Agrário estaria levantando a situação
fundiária de 310 mil hectares de terras localizadas às margens dos canais que
serão construídos pelo governo e que a área havia sido declarada de utilidade
pública pelo presidente Lula, com o objetivo de evitar a especulação imobiliária.
De acordo com o jornal, desses 310 mil hectares, 50 mil são considerados própri-
os para a agricultura. Toda essa área, conforme afirma o governo, será reservada
para a implantação de assentamentos.
Um dos problemas levantados é o da desapropriação das terras por onde pas-
sarão os canais, o que, necessariamente, levará a um processo de êxodo rural.
Reconhece o governo que, nas áreas por onde passarão os Eixos Norte e Leste,
aproximadamente 4 mil hectares de terras agricultáveis serão perdidas. O Rima
estima que, no primeiro momento do empreendimento, quando haverá a desa-
propriação de terras, poderá ocorrer a diminuição de 2.300 empregos diretos nas
zonas rurais de Salgueiro, São José das Piranhas, Verdejante, Baixio e Santa Hele-
na. No entanto, o governo acena com uma compensação: durante a construção
dos canais, que deverá durar quatro anos, serão criados 5 mil empregos. Vale
ressaltar que, terminadas as obras, esses postos de trabalho já não mais existirão.
Mas, de acordo com o governo, a longo prazo o empreendimento aumentará a
quantidade de terras irrigadas, até em locais onde hoje não há produção agrícola
por falta de água. Tal situação levaria ao crescimento da demanda por mão-de-
obra, gerando, no fim, novos empregos.
Outra realidade que o governo admite é que haverá um processo de especula-
ção em torno das terras a serem valorizadas com a implantação dos canais, o que,
inevitavelmente, resultará na expulsão branca das comunidades pobres, formadas
por posseiros, pequenos proprietários e trabalhadores sem terra, que atualmente
vivem nesses locais. Como resposta aos questionamentos feitos sobre o destino
que será dado a esses agricultores, o governo é lacônico: fará o cadastro das áreas,
qualificando os imóveis e seus moradores e, depois, desapropriará as terras de
interesse social. O governo prevê a implantação de um programa de reassentamento
com o objetivo de oferecer às famílias condições socioeconômicas semelhantes às
que possuem atualmente.
O governo federal não ignora o fato de que as secas da região têm forçado a
migração, que, por sua vez, respondem pelo inchaço das áreas urbanas, provocan-
do o crescimento desordenado das regiões metropolitanas nordestinas e também
de outros estados. Acredita, porém, que o desvio das águas do São Francisco
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favorecerá a agricultura irrigada, prevendo a criação de 180 mil empregos diretos


no sertão, conforme afirma o Rima. Com isso, ficariam retidas na área rural do
Nordeste setentrional 400 mil pessoas.
Em maio de 2005, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, todos os
secretários do ministério e o presidente da Codevasf reuniram-se com 30 integrantes
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), garantindo que os as-
sentamentos localizados na bacia do São Francisco serão todos beneficiados pelo
programa de revitalização do rio. As reivindicações dos sem-terra foram apresenta-
das pelo coordenador do MST de Sergipe, João Daniel. Entre outros pontos, ele
assinalou a importância da implantação de programas que gerem emprego e renda
nos assentamentos e a liberação de verbas dos fundos constitucionais voltados para
o financiamento de cooperativas e associações vinculadas à reforma agrária.
No fim, ficou acertado que técnicos da Codevasf vão se encarregar do treina-
mento dos assentados da bacia do São Francisco, para que possam desenvolver a
criação intensiva de peixes. Os técnicos também repassarão conhecimentos sobre
a produção de mudas que serão utilizadas na recuperação das matas ciliares. Ciro
Gomes estimulou a idéia da piscicultura, ressaltando que a atividade pode se trans-
formar em importante instrumento de geração de renda, principalmente se for
voltada para a exportação.
Segundo reportagem publicada pelo Jornal do Commercio de 26 de julho, no
dia anterior o Ministério da Integração Nacional havia publicado uma lista com os
nomes dos proprietários de terras que serão atingidos pelo projeto de transposição e
que foram convocados para receber suas indenizações. Da relação constavam tam-
bém os preços que seriam pagos pelas terras. Toda a área que será cortada pelos
canais foi declarada de utilidade pública pelo presidente Lula, em maio de 2004.
O Diário de Pernambuco de 3 de agosto de 2005 traz mais detalhes sobre a
desapropriação de terras, benfeitorias e cobertura vegetal das áreas consideradas
de interesse social e utilidade pública. A população a ser atingida pela transposi-
ção deverá tratar com uma comissão de desapropriação (as comissões serão insta-
ladas em prédios do DNOCS nos vários estados). Os valores estabelecidos para as
terras, contudo, são irrisórios. Um terreno medindo 3,144 hectares foi avaliado
em R$ 1.897,05, por exemplo. Nos quatro estados, isto é, Pernambuco, Paraíba,
Rio Grande do Norte e Ceará, o governo federal calcula que gastará R$ 36 mi-
lhões para assentar 710 famílias. Com a desapropriação, os agricultores terão que
optar entre ocupar algum terreno remanescente, migrar para outra localidade no
mesmo município ou para agrovilas que serão construídas futuramente.

Aspectos ambientais levantados


O Nordeste setentrional possui clima semi-árido, com temperaturas médias va-
riando entre 20 e 28 graus centígrados. As chuvas escassas, quando ocorrem,
estão concentradas nos meses de fevereiro a maio. A vegetação natural é a caa-
tinga, que, mesmo muito resistente à falta de água, já se encontra bastante de-
gradada nas regiões próximas às cidades e povoados, em conseqüência do
desmatamento realizado para a construção de moradias e cercas ou para ser
usado como lenha ou carvão. Em tais condições, a agricultura irrigada é vista
como uma saída para a economia da região. O Rima identifica, na área do
projeto de transposição das águas do São Francisco, 500 mil hectares de terras
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
30

com grande potencial para agricultura irrigada, próprias para o cultivo de aba-
caxi, melão, uva, goiaba, acerola e melancia.
Em documento denominado “Perguntas e respostas sobre a integração do rio
São Francisco com as bacias hidrográficas do Nordeste setentrional”, o próprio
Ministério da Integração Nacional reconhece que o rio tem sido muito massacrado
pela ação do homem por meio da poluição por esgotos, construção de barragens
para a geração de energia elétrica, assoreamento provocado pelo desmatamento dos
cerrados para beneficiar a agropecuária e agressão às suas matas ciliares. Admite que
a derrubada das matas que cobriam margens e encostas causou o assoreamento e a
formação de bancos de areia que dificultam a navegação e a reprodução dos peixes.
Estudos realizados pela Fundação Joaquim Nabuco estimam que a bacia do São
Francisco já perdeu 75% da sua vegetação e 95% das matas ciliares.
O Rima também reconhece o prejuízo que vem sofrendo a fauna que habita o
São Francisco ou suas margens. No que se refere às aves, são mais de 400 espécies
características da caatinga ou que passam pela região migrando do hemisfério
norte. Elas são alvos freqüentes de caçadores que, apesar da proibição legal, as
comercializam em feiras. Da mesma forma, os mamíferos também são vítimas dos
caçadores, utilizados para a alimentação ou para a venda de peles. A caça e o
desmatamento são apontados como responsáveis pela extinção de animais como
a lontra, a onça-pintada, a suçuarana, o tatu-bola, o porco-do-mato, o gato-
maracajá e o tatu-prego, entre outros. Mas os peixes são mesmo os mais agredidos
pelas ações do homem, em virtude da redução das matas que margeiam o rio e
seus afluentes e da construção de açudes.
Outro aspecto negativo da transposição, reconhecido pelo próprio Rima, é o
fato de que “escavações para a abertura de canais, túneis, estradas de acesso, ex-
tração de terra e pedra para utilização na obra poderão interferir nos processos de
erosão nos solos da região”. Diz ainda o relatório que, em conseqüência das obras,
os solos ficarão mais vulneráveis à ação das chuvas, podendo ocorrer desabamen-
tos nas margens não só de rios como de reservatórios. Segundo o Rima, até mes-
mo a expansão da agricultura irrigada pode contribuir para o aumento da erosão.
O Ministério da Integração Regional enfatiza, em seu documento “Conheça os
benefícios que esse projeto vai trazer para o país”, que o Rima “é um documento
tão criterioso que até a emissão de poeira pelas máquinas durante as obras de execu-
ção dos canais para levar água do rio São Francisco ao semi-árido nordestino é
apontada como impacto ambiental negativo”. O próprio Ministério comunica que
se trata, porém, de um impacto localizado apenas no eixo das obras e de duração
limitada, de pouca relevância. Esclarece que, para controlar a poeira, as construto-
ras terão de executar o Plano Ambiental de Construção e realizar atividades de
transporte e escavação em horários predeterminados, dando prioridade aos perío-
dos em que o número de pessoas prejudicadas seja menor. Garante que, em alguns
casos, será feito o revestimento das vias que tiverem maior fluxo de tráfego.
Diante das atuais condições do São Francisco, o projeto apresentado continua
sendo muito questionado pelos ambientalistas. Como resposta, o governo plane-
jou a revitalização do rio mediante a implementação de ações voltadas para o
reflorestamento, construção de barragens em rios afluentes, melhoria da calha
navegável, tratamento de esgotos nas cidades e vilas situadas às margens do São
Francisco, controle da irrigação e educação ambiental.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31

Artigo de Henrique Cortez, subeditor do Jornal do Meio Ambiente, publicado


na Agência Carta Maior, sob o título “Revitalizar o Chico antes de transpor”,
demonstra a preocupação dos estudiosos com a necessidade de conciliar o desen-
volvimento da região com a preservação do rio. “Se a transposição é um tema
polêmico e sujeito a intermináveis discussões, a revitalização é consenso”, declara.
O autor lembra que o Nordeste, que concentra 28% da população do país, mas
dispõe de apenas 3% de suas reservas hídricas (70% no São Francisco e 6% no
Parnaíba), precisa ter muito cuidado com as ações relativas à gestão das águas.
Segundo Cortez, essa gestão vem perdendo eficiência uma vez que é diluída por
mais de meia dúzia de ministérios, órgãos, departamentos e instituições de pes-
quisa, o que diminui a visão sistêmica do problema.
Cortez explica que as matas ciliares têm importante papel na bacia hidrográfica,
pois são responsáveis pela qualidade da água, pela sustentação do solo nas mar-
gens, evitando a erosão e o assoreamento, pela sobrevivência da fauna silvestre
aquática e terrestre ribeirinhas e pela regularização dos regimes dos rios, por meio
dos lençóis freáticos.
Referindo-se ao assoreamento, o pesquisador diz que este é um grande desastre
que praticamente inviabilizou a função de hidrovia do São Francisco. Conforme
destaca, hoje, em diversos trechos é possível atravessar o rio a pé, como em Traipu,
na divisa de Alagoas com Sergipe. Assinala que a perda do potencial de
hidronavegação é mais um fator de estagnação econômica da bacia, impedindo a
criação de emprego e renda.
Quanto à poluição do rio, ressalta a necessidade de controle do lançamento de
esgotos no rio por cerca de 400 núcleos urbanos. Lembra que, em 2001, quando
o reservatório de Sobradinho ficou com apenas 7% da sua capacidade, a toxidade
da água atingiu índices alarmantes. Afirma que um programa de saneamento
básico na bacia do São Francisco, além de promover a melhoria da qualidade de
vida, ampliar a saúde pública, aumentar a expectativa de vida da população e
reduzir a mortalidade infantil, ainda contribui para a qualidade da produção
agrícola na região. Tendo em vista a importância da pesca para as populações
ribeirinhas, Cortez insiste na recuperação ambiental da bacia, também como for-
ma de garantir a sobrevivência dos moradores.
O geógrafo Aziz Ab’Saber, professor emérito da Universidade de São Paulo,
acredita que a transposição possa ser feita, “se houver recursos e se não for feita
demagogicamente, como se fosse resolver os problemas do semi-árido”. Na opi-
nião de Ab’Saber, o EIA/Rima do projeto “foi feito apenas por obrigação admi-
nistrativa. É muito restrito”. Para o professor Ab’Saber, seria crucial que a pro-
posta se baseasse em um atendimento integrado das populações mais pobres e as
economicamente melhor situadas.
Em matéria da Agência Carta Maior, Ab’Saber cita o caso do rio Jaguaribe, no
Ceará, em que existe um grande número de produtores vazenteiros, que plantam
culturas de vazante nas margens dos rios, aproveitando-se da irrigação natural
propiciada a essas áreas pelas cheias anuais do rio. Os vazenteiros plantam, sobre-
tudo, mandioca, feijão e milho, garantindo o abastecimento das feiras do sertão.
Ab’Saber explica que, se eles se utilizam de áreas públicas para essas culturas e se for
liberada mais água dos açudes no Jaguaribe, como o Castanhão, “eles não poderão
continuar produzindo essa horticultura excepcional”. O professor afirma que “os
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
32

técnicos a favor da transposição dizem que o ‘vazentismo já era’. Só que o povo


não era. Ele tem que ser pensado. Socioeconomicamente, socioculturalmente”. A
fim de democratizar os benefícios, Ab’Saber recomenda a realização da reforma
agrária em toda a bacia do Jaguaribe, dizendo ser fundamental para o sucesso de
uma empreitada como a transposição (Biondi e Hashizume, 2004).
O Partido Verde (PV), que se encontra rompido com o governo Lula desde
maio de 2005, por meio do vice-líder do partido na Câmara, deputado Edson
Duarte (BA), apresenta, como um de seus principais argumentos contra o projeto,
o fato de o próprio governo reconhecer que ele interfere nas áreas indígenas, se-
gundo artigo de Mônica Pinto, publicado no site ambientebrasil. Assim como as
comunidades indígenas radicadas nos locais a serem afetados pela transposição
das águas, o deputado insiste na tese de que a proposta governamental precisa de
aprovação do Congresso Nacional. Lembra que o próprio Ibama reconheceu que
a participação popular nas decisões foi pequena.13
Na opinião do vice-líder do PV, o Ibama, mesmo tendo autorizado a execução
das obras, faz questionamentos relevantes ao projeto. Segundo ele, uma licença
prévia concedida pelo Ibama normalmente tem entre oito e dez condicionantes.
No entanto, conforme afirma, a que foi concedida em relação ao São Francisco
possui 31. Para ele, o Rima “é muito mais uma peça publicitária do que efetiva-
mente uma garantia de que o projeto de transposição não causará danos ao meio
ambiente e ao futuro do rio São Francisco”.
No mesmo artigo, contudo, o diretor de Licenciamento e Qualidade Ambiental
do Ibama, Luiz Felippe Kunz Júnior, contesta os argumentos do parlamentar dizen-
do que a aprovação pelo Congresso Nacional só seria exigida se houvesse a intenção
de “aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos e pes-
quisa e a lavra das riquezas minerais”. Assegura que não serão aproveitados recursos
hídricos das terras indígenas. Quanto à participação popular, insinua que ela não se
deu de forma intensa, por motivo de desinteresse dos envolvidos.

Negociação e marcos regulatórios


Antes de abordar a questão específica da negociação entre as partes envolvidas na
questão da transposição do rio São Francisco e o projeto apresentado pelo gover-
no federal, lembramos o resultado do encontro paralelo ao 2º Fórum Alternativo
Mundial da Água (Fame), realizado em 10 de março de 2005, em Genebra.
Desse encontro paralelo participaram parlamentares brasileiros que apresenta-
ram documento solicitando ao coordenador do evento a incorporação do texto
produzido à declaração final do Fame. Segundo os parlamentares presentes, entre
eles o deputado federal Mauro Passos (PT-SC), autor da proposta, a luta contra a
privatização da água nos países pobres terá poucas chances de vitória se não fo-
rem criados, nos países ricos, mecanismos efetivos de pressão sobre instituições
como a ONU, o Banco Mundial e o FMI, entre outras.
Essa pressão, contudo, só poderá ser exercida a contento se for imediatamente
formada uma aliança permanente entre as forças políticas progressistas de ambos

13
Ver site <www.ambientebrasil.com.br>.
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33

os lados. A incorporação dessas duas premissas foi a maior vitória do encontro


Parlamentares Unidos pela Água, como informou Maurício Thuswohl, para a
Agência Carta Maior, em 19 de março de 2005.
Além de discutir um conjunto de propostas gerais para a condução da luta
internacional contra a privatização das águas, ONGs que também participaram
do Fame discutiram estratégias de confronto à agenda do 4º Fórum Mundial da
Água (FMA), evento organizado por instituições financeiras multilaterais e
corporações transnacionais, chamado pelas ONGs de fórum oficial, que deverá
ocorrer em 2006, no México.
Segundo o economista David Barkin, professor da Universidade Livre Metropo-
litana do México, citado na matéria de Verena Glass para a Agência Carta Maior,
o principal objetivo das empresas multinacionais de saneamento e
distribuição da água é claramente assumir a parte lucrativa deste setor,
ou seja, a gestão dos serviços. Essa fatia, que dispensa os caríssimos
investimentos em infra-estrutura (geralmente bancados pelo poder
público), pode mais facilmente ser alvo de ações que possibilitem o
livre manejo de preços e do próprio serviço. Por outro lado, parcerias
com as instituições financeiras possibilitam a apropriação de toda a
cadeia de saneamento e distribuição de água, o que pode excluir
definitivamente o poder público do controle desses serviços.

No caso específico das águas do rio São Francisco, centrado no argumento do


efeito social para a região, o governo Lula declara, em seu projeto de transposi-
ção, que a redução dos desequilíbrios regionais de renda entre a região Nordeste e
o centro-sul do país exigirá melhor nível de saneamento básico e crescimento da
indústria, dos serviços e da produção agrícola, inclusive no semi-árido. Diz o go-
verno que as tensões geradas na administração da água para distribuí-la entre os
vários usuários serão, cada vez mais, críticas, se não houver uma gestão eficaz e
um reforço dos mananciais locais, “[...] a menos que se admita como referência
uma estagnação de seu desenvolvimento e de sua população, ou seja, a persistên-
cia do processo migratório e da pobreza do Nordeste”.
Assegura que a transposição das águas do São Francisco interferirá nesse qua-
dro quase que inexorável, contribuindo para iniciar mudanças nas condições de
sustentabilidade do semi-árido setentrional, desencadeando mecanismos de cres-
cimento econômico em cadeias produtivas variadas na indústria, no turismo e na
agricultura irrigada com três tipos de efeitos:
:.: criação de empregos e oportunidades de trabalho, com reflexos na massa sala-
rial e na distribuição de renda das famílias;
:.: aumento da produção e dos níveis de produtividade com efeitos na criação de
novos fatos geradores de receita orçamentária que, por sua vez, possam favore-
cer diretamente a provisão de bens e serviços públicos, com repercussões posi-
tivas na chamada renda não monetária das famílias; e
:.: melhoria no abastecimento hídrico da população.

O governo atual diz que há resistências ao projeto por falta de informação e


por equívocos existentes em projetos semelhantes apresentados por governos an-
teriores. “O projeto atual, no entanto, é bastante diferente dos anteriores e bem
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34

melhor, porque incorpora já muitas críticas feitas no passado, por ambientalistas


e outros interessados, e corrige os erros e exageros contidos nos outros projetos”.
Alega que o CBHSF pediu prazos e o governo federal atendeu ao pedido. Tam-
bém declara que o comitê deliberou o plano de bacia e entendeu de aprovar os 26
m3/s e censurar a outra fração. Por isso, o governo decidiu levar o projeto ao
Conselho Nacional de Recursos Hídricos, “que é um fórum interativo”. “Nele, o
governo e a sociedade civil estão representados, o que dá a possibilidade de se
examinar isso sob o ponto de vista do interesse público e do ponto de vista do
interesse nacional. Já o Comitê de Bacia representa só os doadores. Houve queixas
quanto a isso, mas o procedimento normal é, depois do Comitê de Bacia, consul-
tar o Conselho Nacional de Recursos Hídricos”.14
A Carta de Propriá, aprovada na consulta pública da Câmara Consultiva Re-
gional do baixo São Francisco, que representou as populações dos estados de
Alagoas e Sergipe na audiência pública promovida pelo CBHSF, em 18 de outu-
bro de 2004, denuncia “métodos autoritários que estão sendo empregados por
autoridades do governo para executar o Projeto de Transposição das Águas do
São Francisco”. A carta pede ao presidente para rever o projeto, “cuja concepção,
herdada do governo anterior, jamais atendeu aos necessários parâmetros da eqüi-
dade, de uma relação equilibrada do custo/benefício das obras, e de uma concep-
ção de desenvolvimento sustentável e socialmente justo para as populações da
bacia do São Francisco e do semi-árido brasileiro”.15
Na mesma carta, os representantes declaram que é inquietante verificar que os
Ministérios do Meio Ambiente e da Integração Nacional estejam “promovendo em
escala nacional uma dispendiosa campanha de massificação de informações ten-
denciosas, cujo objetivo tem sido o de mascarar os verdadeiros números relativos ao
projeto de transposição e de simplificar grosseiramente as implicações socioeconômicas
desse projeto e sua oportunidade”. Queixam-se, ainda, de o governo federal contes-
tar as prerrogativas do Comitê da Bacia Hidrográfica como instância legítima para
estabelecer os limites de alocação e critérios de outorga de direito de uso das águas,
conforme os ditames da Lei Nacional dos Recursos Hídricos.
O Ministério da Integração Nacional, por meio do documento “Perguntas e
respostas sobre a integração do rio São Francisco com as bacias hidrográficas do
Nordeste setentrional”, informa que a Lei de Recursos Hídricos (9.333/97) deter-
mina que o Estado deve garantir a necessária disponibilidade de água para a popu-
lação, onde ela reside. Além disso, a gestão dos recursos hídricos, embora realizada
por bacias hidrográficas isoladas, não determina os direitos de quem pode ter acesso
à água, especialmente nos rios federais, cuja água pertence a toda sociedade brasilei-
ra. Desse modo, o governo entende que a integração da bacia do São Francisco às
do Nordeste setentrional é essencial para promover a igualdade de oportunidades
para todos os brasileiros, “evitando que uns sejam prejudicados, sem necessaria-
mente beneficiar os outros, pois existirá água para todos, ainda durante muitas
décadas, sem a necessidade de trazer água de rios de outras regiões”.

14
Informações disponíveis no site do projeto de interligação (www.mi.gov.br/saofrancisco).
15
A carta está disponível no Portal de Informações Ambientais – Coalizão Rios Vivos (www.riosvivos.org.br/
canal.php?canal=50&mat_id=4239).
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35

Complementando a argumentação oficial exposta no parágrafo anterior, no


item “Conseqüências para o rio São Francisco”, constante também de documen-
to apresentado pelo governo federal, em sua versão resumida, encontra-se decla-
rado que, “do ponto de vista da Lei 9.333/97, o projeto de transferência das
águas deve ser considerado como mais um usuário da água na bacia do São Fran-
cisco e, como tal, está sujeito às regras que definem a concorrência pelo recurso
hídrico na bacia. Assim, o custo de oportunidade da água bruta disponível no São
Francisco deverá ser estabelecido e seus usuários deverão operar segundo critérios
estabelecidos para outorga e cobrança pela água da bacia de um rio, cujas águas
são de domínio federal”.
Desse modo, o governo federal submeteu o projeto ao Conselho Nacional de
Recursos Hídricos, ao longo dos meses de janeiro e fevereiro de 2005. O Ibama
promoveu oito audiências públicas destinadas à apreciação do Relatório de Impac-
to Ambiental do Projeto de Integração de Bacias, que, aprovado, permitirá a licita-
ção e a execução das obras civis. O governo declara que o objetivo dessas audiências
foi ouvir a sociedade civil e as entidades privadas e oficiais interessadas na questão.
A Frente Cearense por uma Nova Cultura das Águas e contra a Transposição
do São Francisco lançou, no dia 2 de junho de 2005, documento denominado
“Mentiras e verdades sobre a transposição do São Francisco”, em que questiona o
Ibama por não considerar as 34 comunidades indígenas e as 153 comunidades
quilombolas que estão na área de abrangência do projeto. A entidade não acredi-
ta que o governo possa realizar a transposição das águas e ao mesmo tempo a
revitalização do rio.
Ressalta que não existem recursos para viabilizar os dois empreendimentos
concomitantemente. Lembra que o governo terá também que cuidar das hidrelé-
tricas, já que o projeto provocará insegurança quanto à eficácia do fornecimento
de energia. Por fim, condena a transposição, argumentando que ela vai elevar os
preços das tarifas de água e luz, em virtude dos altos custos que se serão necessá-
rios à operação e à manutenção do sistema.
Em sua passagem pelo Recife, em 30 de junho de 2005, o ministro Ciro Go-
mes afirmou para a equipe do Jornal do Commercio, conforme artigo publicada
no caderno Economia, que o governo federal pretendia dar a ordem de serviço
para a realização das obras de transposição do rio São Francisco ainda no mês de
agosto. Logo depois, seriam iniciadas as obras. O ministro declarou que “não há
impedimento judicial ao projeto” e comunicou que a Advocacia Geral da União
(AGU) fez uma reclamação ao presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
esperando conseguir derrubar liminar que impede a realização das obras. Ainda
de acordo com o ministro, a questão já passou pelo Tribunal Regional Federal da
Bahia, que cassou a liminar que impedia a tomada de qualquer iniciativa para
concretizar o projeto, mas manteve a decisão de não liberar a realização das obras.
Garantiu o ministro que não haverá atraso no cronograma das obras (orçadas em
R$ 4,5 bilhões, quantia que será bancada pela União).
Vale lembrar que a Carta do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Fran-
cisco, assinada pelos governadores dos estados de Minas Gerais, Bahia e Sergipe e
por instituições de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco, foi data-
da de 15 de junho de 2005, portanto, 15 dias antes do anúncio do ministro da
Integração Nacional.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
36

Em março de 2005, nos dias 19 e 20, foi a vez de o Ministério Público de


Pernambuco, em conjunto com o Ministério Público da Bahia, promover o Fórum
Permanente de Defesa do São Francisco. O evento contou com a participação do
Ibama e foi realizado em Juazeiro, na Bahia, com a participação de aproximada-
mente 350 pessoas. A promotora de Justiça do MP pernambucano, Ana Rúbia
Torres, apresentou os trabalhos desenvolvidos pela Coordenadoria Interestadual
das Promotorias de Justiça de Defesa do Rio São Francisco (Cipe São Francisco),
composta por representantes dos Ministérios Públicos dos lugares que serão atin-
gidos pelo projeto governamental. Posicionando-se contra a transposição, pro-
motores, juízes, técnicos de órgãos ambientais, lideranças sociais, estudantes, pes-
cadores, assentados, quilombolas, índios e pequenos agricultores realizaram o que
chamaram de “Romaria das Águas”, um ato público em defesa do Velho Chico.
Pelo visto, a discussão está longe de terminar, pois ainda envolve aspectos jurídi-
co-constitucionais, além da legislação específica sobre os recursos hídricos. Somam-
se também leis que demarcam e disciplinam reservas indígenas, que reconhecem
comunidades quilombolas, que desapropriam terras, regularizam propriedades e
estabelecem indenizações, revisão e concessão de outorgas etc. (ver Figura 3).

Considerações finais
Sabe-se que, desde 1852, os engenheiros do imperador d. Pedro II já se preocupa-
vam com o semi-árido nordestino, pois desejavam vê-lo irrigado com a água do
São Francisco. De lá para cá, a idéia surgiu nos planos governamentais e deles
desapareceu incontáveis vezes, enquanto a região padecia, e sofre até hoje, as con-
seqüências da seca.
Muitos sabem, no entanto, que o fator limitante da região semi-árida do Nor-
deste não é só a água. No caso da agricultura, por exemplo, a falta de agregação
de valor aos produtos e o custo de escoamento da produção são igualmente sérios,
visto que muitas vezes os perímetros irrigados espalhados pela região têm as suas
safras prejudicadas e mesmo inviabilizadas pelo custo de transporte. Assim, a fer-
rovia Transnordestina, as hidrovias onde possam ser feitas e a interligação das
diferentes formas de transporte agregada à questão hídrica passam a ser ponto de
interseção das reivindicações de amplos setores da região.
O jornalista Mauro Santayana, em seu artigo “Águas desunidas”, divulgado
pela Agência Carta Maior, reforça em certa medida esse argumento quando declara:
“[...] o que o governo pensa gastar, somente este ano, com o início da implantação
do projeto, dá e sobra para tornar menos assassinas as rodovias brasileiras, que se
encontram intransitáveis. Torná-las menos letais e reduzir o custo do preço dos
transportes, onerado pela insegurança e pela pesada manutenção dos veículos”.
A SBPC recomendou em seu documento, já citado anteriormente, que é essen-
cial que sejam avaliadas com rigor as disponibilidades hídricas locais, antes de
qualquer definição sobre transposição de água a grandes distâncias. Praticamente
todas as bacias hidrográficas do Nordeste dispõem de estudos em diferentes graus
de profundidade, traduzidos em planos estaduais e planos de bacia. A mobilização
natural que surge com a possibilidade de serem aumentadas as ofertas hídricas
locais com as águas do São Francisco deve ser confrontada com as necessidades
reais da população. Caso contrário, corre-se o risco de levar água para onde já
existe, reforçando o ditado popular bastante conhecido entre os nordestinos: o
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
37

rio só corre para o mar, ou, ainda, obrigar um paciente terminal a doar sangue
para quem se mostra com saúde regular. E se algum dia o pequeno agricultor for
beneficiado pelo projeto, será difícil imaginar que tenha recursos para arcar com
os custos de irrigação.
Diante dos textos colecionados ao longo deste trabalho, percebemos que os
conflitos de interesse entre grupos, representações, entidades e instituições federais
em torno do projeto de transposição vêm se agudizando. A posição do CBHSF –
instância que congrega representações de diversas latitudes: governo federal, go-
vernos estaduais e municipais, empresas consumidoras de água, universidades,
associações profissionais, ONGs, comunidades quilombolas e populações indíge-
nas – opõe-se sistematicamente ao projeto de transposição. O comitê afirma que
não há déficit de água para abastecimento humano nem no Ceará nem no Rio
Grande do Norte. Alega que a transposição comprometerá em média 24% da
vazão máxima que pode ser retirada do rio. Manifesta preocupação com o meio
ambiente e com as populações tradicionais que do rio tiram o seu sustento. Do
lado da oposição também se encontram os representantes dos estados doadores
da água (Pernambuco, Bahia, Sergipe e Alagoas), que querem receber benefícios,
até mesmo fiscais, pela doação, além de sugerir a implantação de mais um canal,
como no caso de Pernambuco, mais precisamente para atender ao pólo irrigado
de Petrolina.
Por outro lado, observamos a determinação do governo federal em implantar
o projeto de transposição – herdado em quase toda sua concepção do governo
anterior e não levado a cabo por impedimentos judiciais, técnicos, políticos e
econômicos – antes de, no entanto, poder apresentar à população os frutos madu-
ros de um processo de ampla negociação entre as partes envolvidas na questão. O
receio das representações populares é a sanha do poder econômico sobre as deci-
sões de governo, a pressionar por acréscimos de rotas que, pelo visto, favorecem
sobretudo a ampliação dos pólos existentes e o aumento da produção da grande
empresa.
O ministro Ciro Gomes clama aos estados doadores por solidariedade.
Santayana, no mesmo artigo citado acima, responde contundentemente:
[...] se não houver, em cada um dos Estados envolvidos, referendo
popular que autorize o desvio das águas do São Francisco, a transpo-
sição será mais um dos insultos do poder central contra a autonomia
dos Estados. Argumenta-se com a necessidade de que os Estados
banhados pelo rio sejam solidários com os Estados nordestinos.
Solidariedade, ao que se saiba, é um sentimento voluntário. Não
pode haver solidariedade compulsória. Além disso, é preciso verificar
bem se as obras irão beneficiar os sertanejos pobres do Agreste, ou se
irão beneficiar os grandes plantadores de frutas para a exportação e
abastecer as piscinas dos arrogantes milionários da região.

O projeto de revitalização do rio São Francisco parece ser o único ponto de


consenso nas discussões travadas em torno da transposição. É que o referido pro-
jeto inclui, entre outras ações, como o desassoreamento do leito e o replantio das
margens, iniciativas que representarão mudanças significativas na qualidade de
vida da população. É o caso, por exemplo, da proposta de saneamento básico e a
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
38

que contempla assistência médica mais eficiente e melhoria das unidades


habitacionais. No que se refere ao restante da proposta de transposição do gover-
no, ela é olhada de soslaio e com desconfiança por expressiva parte dos agentes
envolvidos, chegando alguns deles a declarar que será um empreendimento desas-
troso, que poderá comprometer definitivamente a vitalidade do rio e a sobrevi-
vência das populações tradicionais, habitantes originários de suas margens.
Cabe aqui questionar o conceito de desenvolvimento e a sua relatividade.
Como parece óbvio, desenvolvimento, para determinadas comunidades que es-
tão mergulhadas em estado de carência absoluta, pode significar um bico de luz
ou uma simples cisterna. Para outras, com um nível tecnológico avançado, a
palavra ganha significado diferente, que pode implicar o uso de pesquisas cien-
tíficas altamente sofisticadas. Portanto, em se tratando do São Francisco, vale
lembrar que desenvolvimento para comunidades indígenas e quilombolas e para
pequenos agricultores que sobrevivem às margens do rio pode ser entendido
como melhores condições de vida e preservação de suas culturas ou, ainda, como
obtenção de fontes de renda que tornem a sobrevivência menos dramática. Para
grandes proprietários, empresários de diversos ramos, a expectativa sobe para
megapatamares.
Dentro dessa perspectiva, é preciso perguntar a quem, de fato, servirá a trans-
posição e quem usufruirá do pretendido desenvolvimento que ela poderá gerar.
A partir dos posicionamentos assumidos por diversos segmentos da sociedade
que se mostram preocupados com a questão, faz-se imprescindível que o gover-
no assegure, não só pelo discurso, mas também por meio de uma prática
elucidativa e indiscutível, que os dividendos econômicos do projeto não sirvam
somente para enriquecer as camadas já privilegiadas, mas que sejam revertidos,
de verdade e de fato, em vantagens significativas para a maioria da população.
Assim, a fim de que o rio São Francisco venha a confirmar o seu cognome de rio
da Integração Nacional, recomendamos prudência, cautela, discussão e mais
informação – receita elementar para qualquer ação que se proponha a atingir os
seus amplos objetivos.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
39

Mapas
Figura 1
Projeto de transposição das águas do rio São Francisco para o Nordeste setentrional

Fonte: VBA (2000).

No ensaio “Um povo esquecido: projetos apagam a biodiversidade e o territó-


rio tradicional no rio São Francisco”, Renata Marson Teixeira de Andrade assim
comenta o mapa do projeto de transposição das águas do rio São Francisco para
o Nordeste setentrional (Figura 1): “Este mapa do projeto não leva em conta o
rio São Francisco abaixo das estações de bombeamento, não mostra outros usos
de água além de irrigação, para agricultura de exportação e uso urbano. Não leva
em conta os usos ambientais e econômicos das comunidades tradicionais ao lon-
go da região, como as tribos dos povos Truká, nem as comunidades tradicionais
de quilombos e de pescadores artesanais, sendo que todos têm voto no comitê da
bacia do rio São Francisco, e são contrários à transposição. Este mapa é alarman-
te, dado que, nas várias cidades abaixo da tomada da água para a transposição,
vive a maior parte da população de comunidades tradicionais. Parece até mais
alarmante, quando se considera que as ilhas, várzeas e águas do rio São Francisco
sejam tão centrais para a identidade e a economia destas comunidades tradicio-
nais. E essas comunidades nunca outorgaram seus territórios tradicionais para o
governo brasileiro” (Andrade, 2005).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
40

Figura 2

Fonte: Jornal do Commercio, 29 jul. 2005 (Caderno Economia).


MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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Figura 3
Potenciais conflitos e desafios para gerenciar a bacia do São Francisco

Fonte: GEF-São Francisco (2004).


MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
42

Referências bibliográficas

ANDRADE, Renata Marson Teixeira. Um povo esquecido: proje-


tos apagam a biodiversidade e o território tradicional no rio São Francisco.
ComCiência, 10 fev. 2005. Disponível em: <http://www.comciencia.br/re-
portagens/2005/02/13.shtml>. Acesso em: 4 dez. 2005.

ARRAES, Miguel. Pensamento e ação política. Rio de Janeiro:


Topbooks, 1997.

BARDAWIL, Olga. Mudanças na integração do São Francisco


garantem que não haverá prejudicados com projeto, diz Ciro. Radiobrás,
18 jul. 2005. Disponível em: <http://www.radiobras.gov.br/
materia_i_2004.php?materia=232706&editoria=&q=1>. Acesso em: 4 dez.
2005.

BIONDI, Antônio; HASHIZUME, Maurício. Projeto de transpo-


sição não garante água aos necessitados. Carta Maior, 30 nov. 2004. Dispo-
nível em: <http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?id=2612&cd_
editoria=002&coluna=reportagens>. Acesso em: 4 dez. 2005.

FONTES, Cristiane. Participantes da Conferência Nacional do Meio


Ambiente definem “como querem cuidar do Brasil”. Insituto Socioambiental,
2 dez. 2003. Disponível em: <http://www.socioambiental.org/nsa/
detalhe?id=1499>. Acesso em: 4 dez. 2005.

PERNAMBUCANO DE MELLO, Frederico. Guerreiros do sol


– Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 2. ed. São Paulo:
Massangana, 2004.

SUASSUNA, João. Ao apagar das luzes. Carta Maior, 30 maio 2005.


Disponível em: <agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?coluna=
boletim&id=1303>. Acesso em: 4 dez. 2005.

VILLAS-BOAS, Zoraide. Plenária indígena: índios da bacia reafir-


mam luta contra transposição do São Francisco. Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência, 6. jun. 2005. Disponível em: <http://www.sbpcpe.org/
noticias/?dt=2005_06_06#00126>. Acesso em: 4 dez. 2005.
UM PROJETO APOIO
RELATÓRIO DO PROJETO
> DEZEMBRO DE 2005

Estudo de caso
Disputas entre MDA e Mapa
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
2

DISPUTAS ENTRE MDA E MAPA

Nilsa Luzzi
Engenheira agrônoma, doutoranda do Curso de
Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ)
nilsaluzzi@terra.com.br

1. INTRODUÇÃO
O Brasil possui hoje uma complexa realidade no meio rural que se traduz na
existência de dicotomias acentuadas que demonstram, de um lado, um projeto
agrícola em nível de desenvolvimento dos países desenvolvidos e, de outro, a
agricultura desenvolvida pelo setor familiar com todas as suas especificidades,
demandando um projeto próprio. Em razão mesmo dessas diferenças, as políti-
cas públicas exercidas pelo governo brasileiro se expressam na existência de dois
ministérios distintos: o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(Mapa), identificado com os interesses do agronegócio, e o Ministério do De-
senvolvimento Agrário (MDA), que trabalha com a diversidade dos agricultores
familiares e com os demais segmentos que necessitam de uma política pública
específica para esse setor.
O objetivo deste ensaio é investigar as divergências e disputas existentes entre
diferentes modelos de desenvolvimento, na perspectiva da democracia e dos direi-
tos sociais, que podem, explícita ou implicitamente, orientar – ou ser o resultado
de – atividades e políticas concebidas e/ou implementadas pelo Mapa e pelo MDA.
Para isso, foram realizadas algumas entrevistas com a finalidade de compreender
os elementos convergentes e divergentes na condução das políticas exercidas nessa
área, e que puderam ser percebidos nos diferentes depoimentos. Vale lembrar que
as diferentes posições manifestas não traduzem apenas um embate entre as políti-
cas exercidas pelos dois ministérios, mas também, por vezes, demonstraram as
ambigüidades do discurso adotado em um único ministério.
Os entrevistados foram questionados sobre as divergências e as disputas exis-
tentes entre os dois ministérios a partir das ações realizadas com base nos modelos
de desenvolvimento, que podem orientar essas ações ou serem resultantes de sua
implementação. Que modelo de desenvolvimento está, implícita ou explicita-
mente, incorporado nas propostas e nas ações apoiadas por cada ministério? Que
sujeitos sociais estão incluídos no discurso? Quais são as posições defendidas pe-
los atores e/ou sujeitos sociais? Como podem ser caracterizadas as disputas nos
diversos campos a serem considerados? Quais as possíveis arenas ou espaços pú-
blicos onde essas disputas se manifestam? Quais as ações/políticas implementadas
que poderiam revelar a existência de modelos alternativos de desenvolvimento?
Este texto foi construído tendo por base as entrevistas realizadas em Brasília
com atores selecionados, entre os dias 25 e 29 de julho de 2005, e o acesso a
documentos, programas e projetos do Mapa e do MDA.1 Foram entrevistados 11

1
Veja a estrutura organizacional do Mapa e do MDA no anexo.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
3

representantes dos ministérios2 e de suas entidades vinculadas.3 Desses entrevista-


dos, quatro são representantes do Mapa e sete, do MDA. Foram entrevistados,
ainda, sete representantes de outras instituições.4 Algumas entrevistas foram reali-
zadas no Rio de Janeiro.
Inicialmente, farei uma breve descrição dos ministérios, destacando suas estru-
turas organizacionais, as linhas de atuação, os objetivos e as principais políticas
implementadas. Posteriormente, tendo por base as entrevistas, apresentarei os prin-
cipais pontos de divergências/disputas encontrados que refletem as posições dos
ministérios e as diferentes estratégias de desenvolvimento adotadas. Também se-
rão abordadas mais detalhadamente três temáticas – reforma agrária, crédito ru-
ral e negociações internacionais –, nas quais as divergências aparecem de forma
mais explícita na configuração de diferentes modelos de desenvolvimento.

2. BREVE APRESENTAÇÃO DOS MINISTÉRIOS


2.1. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)
O Mapa, originalmente denominado Secretaria de Estado dos Negócios da Agri-
cultura, Comércio e Obras Públicas, foi criado em 1860, completando em 2005,
portanto, 145 anos. A estrutura organizacional e as competências do ministério se
alteraram durante a sua existência. Atualmente, o Mapa formula e executa políti-
cas para o desenvolvimento do agronegócio, integrando aspectos mercadológicos,
tecnológicos, científicos, organizacionais e ambientais para atender os consumido-
res brasileiros e o mercado internacional. Segundo dados oficiais, a atuação do
ministério baseia-se na busca de sanidade animal e vegetal, na organização da ca-
deia produtiva do agronegócio, na modernização da política agrícola, no incentivo
às exportações, no uso sustentável dos recursos naturais e no bem-estar social.
De acordo com o Mapa, o agronegócio brasileiro vem crescendo e desempenha
um papel importante no desenvolvimento econômico do Brasil. O setor gera hoje
mais de 37% dos empregos no território nacional, possui participação em 33%
do Produto Interno Bruto (PIB) e responde por 42% das exportações, levando o
Brasil a uma posição de destaque no ranking das nações mais competitivas do
mundo na produção de commodities agroindustriais, com enorme potencial de
expansão horizontal e vertical da oferta. Além disso, o país detém o quarto lugar
nas exportações agrícolas mundiais, com uma taxa média de crescimento acima
de 6% ao ano. É o primeiro exportador mundial de soja, café, açúcar, suco de
laranja, tabaco, carne bovina e de frango. Em 2004, as exportações do setor atin-
giram US$ 39 bilhões, com um crescimento de 27,3% em relação ao ano anterior.
Com a conquista de novos mercados externos, a expectativa do Mapa é de um
incremento de 15% em 2005.

2
Secretaria de Política Agrícola (SPA)/Mapa, Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo (SDC)/Mapa,
Secretaria de Agricultura Familiar (SAF)/MDA, Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT)/MDA, Departamento de
Assistência Técnica e Extensão Rural (Dater)/MDA e Departamento de Planejamento e Economia Agrícola (Deagri)/Mapa.
3
Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)/Mapa, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead)/
MDA e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)/MDA.
4
Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade (CPDA)/UFRRJ, Instituto de Pesquisa em Economia Aplicada (Ipea), Confederação Nacional da
Agricultura (CNA) e Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
4

As principais ações e políticas realizadas pelo Mapa são destinadas aos agricul-
tores empresariais, embora muitas ações beneficiem os agricultores de forma ge-
ral. Destacam-se como prioridades estratégicas do ministério para o período de
2005/2006: o controle sanitário de pragas e doenças; o processo de geração e
transferência de tecnologia para o agronegócio, a agroenergia, que consiste na
produção e no uso de energia renovável através da biomassa; a qualidade dos
produtos e agregação de valor; as negociações internacionais e a defesa comercial;
a interlocução com a sociedade através das câmaras setoriais e temáticas; a políti-
ca agrícola (novos instrumentos e seguro rural); o desenvolvimento sustentável a
partir do uso equilibrado dos recursos naturais; o cooperativismo e o associativismo
como instrumento de inclusão social e a excelência administrativa do ministério.
O Mapa possui nove programas de investimento financiados principalmente
com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
que têm por objetivo modernizar o setor, melhorar a infra-estrutura, promover o
desenvolvimento das cooperativas, recuperar solos e pastagens e diversas iniciati-
vas de agregação de valor:
:.: Programa de Desenvolvimento da Fruticultura (Prodefruta) – investimentos fixos e
semifixos relacionados com implantação ou melhoramento de espécies frutíferas;
:.: Programa de Modernização da Agricultura e Conservação de recursos Naturais
(Moderagro) – correção do solo, adubação verde, conservação do solo, recupe-
ração de pastagens e sistematização de várzeas;
:.: Programa de Desenvolvimento do Agronegócio (Prodeagro) – investimentos
fixos e semifixos relacionados com floricultura, ovinocapricultura, aqüicultura,
apicultura, suinocultura, avicultura e sericicultura e pecuária de leite;
:.: Programa de Incentivo à Irrigação e à Armazenagem (Moderinfra) – investi-
mentos fixos e semifixos direcionados à agricultura irrigada e à instalação e
modernização de armazéns nas propriedades rurais;
:.: Programa de Desenvolvimento Cooperativo para Agregação de Valor à Produ-
ção Agropecuária (Prodecoop) – investimentos fixos e semifixos para as estru-
turas cooperativas visando agregar valor à produção agropecuária;
:.: Programa de Plantio Comercial e Recuperação de Florestas (Propflora) – inves-
timentos fixos e semifixos para plantio, produção comercial de florestas e re-
composição de reserva legal;
:.: Programa de Modernização da Frota de Máquinas e Equipamentos Agrícolas
(Moderfrota) – aquisição de tratores agrícolas, implementos associados,
colheitadeiras e equipamentos para beneficiamento de café;
:.: Programa de Geração de Emprego e Renda (Proger) Investimento Rural – in-
vestimentos fixos e semifixos para pequenos produtores;
:.: linha de crédito do BNDES de Financiamento para Aquisição de Máquinas e
Equipamentos (Finame) Agrícola Especial – compra de máquinas e equipa-
mentos, inclusive para beneficiamento de algodão, frutas, sementes, pescados,
entre outros, exceto os itens financiáveis do Moderfrota.

Podemos observar na, Tabela 1, os programas e os limites máximos de recursos


destinados por agricultor, os encargos financeiros e o prazo máximo de pagamen-
to de cada programa. Os recursos variam de R$ 56 mil por agricultor para o
Proger Investimento Rural até 600 mil para o Moderinfra
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
5

Tabela1: Programas de investimento do plano agrícola e pecuário com os limites máxi-


mos de recursos, encargos financeiro e prazos de pagamento.

PROGRAMA LIMITES ENCARGO PRAZO


FINANCEIRO MÁXIMO
(% a.a.) (anos)
2004-2005 2005-2006

Prodefruta Até R$ 200 mil 1. Até R$ 200 mil 8,75 8


2. Até R$ 600 mil –
investimento coletivo

Moderagro Até R$ 200 mil Até R$ 200 mil 8,75 5

Prodeagro Até R$ 150 mil 1. Até R$ 200 mil 8,75 5


2. Até R$ 600 mil –
investimento coletivo

Moderinfra 1. Até R$ 600 mil 1. Até R$ 600 mil 8,75 8


2. Até R$ 1,8 milhão – 2. Até R$ 1,8 milhão – 10,75*
investimento coletivo investimento coletivo

Prodecoop 1. Até R$ 20milhões por UF 1. Até R$ 35 milhões por UF 10,75 12


2. Até R$ 40 milhões: 2. Até R$ 70 milhões:
a) investimento em outra UF a) investimento em outra UF;
b) empreendimento no
âmbito da Cooperativa
Central

Propflora Até R$ 150 mil Até R$ 150 mil 8,75 12

Moderfrota 1. Renda < R$ 150 mil – 1. Renda < R$ 150 mil – 9,75 5
100% do valor do bem 100% do valor do bem 12,75 6
2. Renda > R$ 150 mil – 2. Renda > R$ 150 mi –
80% do valor do bem 90% do valor do bem

Proger Investimento R$ 56 mil R$ 56 mil 8,00 8

Finame Agrícola – 1. R$ 300 mil (alguns 13,95 5


Especial setores)
2. Demais setores – sem
limites

*Os encargos de 8,75% ao ano (a.a.) são para contratações de até R$ 400 mil. Contratações entre R$
400 mil e R$ 600 mil têm encargos de 10,75% a.a. onde o asterisco entra na tabela?
Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2005/06.

O Mapa criou na safra 2004–2005 novos instrumentos de crédito rural e de


comercialização destinados para a competitividade do agronegócio. Em especial, o
Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA),5 a Letra de Comércio Agrícola
(LCA),6 o Contrato Privado de Opção de Venda (pelo qual as empresas privadas
darão suporte à comercialização e garantia de renda), o Contrato de Opção de Com-
pra dos Estoques Públicos (para viabilizar a venda dos estoques do governo com
entrega futura, a preço definido), e o Certificado de Depósito Agropecuário (CDA),
instrumento que tem por objetivo atrair recursos para a comercialização agrícola.7

5
O Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) é um título de crédito de livre negociação emitido por pessoas jurídicas
do agronegócio (cooperativas, indústrias de insumos, indústrias de processamento, armazenadores, exportadores etc.),
instituições financeiras e empresas de securitização de direitos creditórios. Esses títulos permitem a criação dos fundos de
investimento do agronegócio.
6
A Letra de Comércio Agrícola (LCA) é um instrumento para ser colocado no exterior com o objetivo de captar poupança de
investidores estrangeiros por meio de commercial paper ou equivalentes emitidos exclusivamente por instituições financeiras.
7
O Certificado de Depósito Agropecuário (CDA), regulamentado pela Lei de Armazenagem, é um instrumento pelo qual
o agricultor poderá depositar o seu produto no armazém e o armazenador poderá emitir um título que será registrado
eletronicamente e negociado junto aos investidores.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
6

Com a criação desses novos instrumentos de crédito, em estreita interação com


o setor privado, o Mapa visa captar dinheiro do mercado para investimento na
agricultura a juros mais baratos que os de mercado. Atualmente, cerca de 70%
dos recursos destinados para a agricultura patronal têm juros livres de mercado,
um recurso considerado muito caro pelos agricultores.
Se pudesse resumir numa frase: estamos tentando botar a agricultu-
ra brasileira no mercado. Menos governo, mais instrumentos de
mercado. A gente imagina que um dia teremos uma taxa de juros
civilizada e a agricultura brasileira vai estar preparada para estar
dentro deste mercado.

O Mapa, a partir de 2003, retomou a política de estoques públicos de


alimentos, que estava praticamente abandonada. Em 2003, o estoque público
brasileiro era de apenas 140 mil toneladas e, em 2004, passou para 1,35 mi-
lhão de toneladas. A previsão para 2005 é atingir entre 3 e 4 milhões de tone-
ladas de alimentos. O Brasil já teve um volume de estoque de 25% a 30% da
safra, ou seja, numa safra de 70 milhões de toneladas de produtos o estoque
era de 20 milhões de toneladas. Atualmente, de 120 milhões de toneladas o
estoque é de apenas 2 milhões de toneladas, quer dizer, a política hoje é próxi-
ma de zero.
Além disso, está sendo regulamentada a Lei do Seguro Rural (Decreto 5.121
de 2004) e instalado o Comitê Gestor do Seguro Rural, responsável por definir as
diretrizes e políticas para a subvenção ao seguro rural. A proposta é para que o
governo ajude a pagar uma porcentagem do prêmio do seguro. Essa política de
seguro foi testada no fim de 2004, mas entrará em vigor efetivamente na safra de
2005, depois da definição dos aspectos operacionais e de como se dará o paga-
mento do seguro. Também está sendo regulamentado o Programa de Garantia da
Atividade Agropecuária (Proagro), por meio da criação de comitê gestor (Decreto
5.185 de 2004), com a finalidade de elaborar propostas de reformulação e reali-
zação de medidas de aperfeiçoamento do programa.
No Plano Agrícola e Pecuário (PAP) de 2005–2006, houve a destinação de um
estímulo financeiro aos agricultores que tiverem em suas terras áreas de preserva-
ção permanente ou apresentarem plano de recuperação de matas ciliares e reserva
legal. Esses agricultores terão 15% de crédito adicional para o custeio da produ-
ção no caso de apresentarem projetos de adequação ambiental. Da mesma forma,
os agricultores que utilizarem sistemas de rastreabilidade na produção pecuária
terão 15% de crédito adicional. Os agricultores que comprovarem a utilização de
práticas de integração lavoura–pecuária terão limites independentes entre custeio
agrícola e custeio pecuário.
A seguir, serão apresentados dois programas que, de certa forma, não fazem
parte da estratégia geral utilizada pelo Mapa por causa da especificidade do pú-
blico que atingem e da proposta de trabalhar com uma mudança tecnológica
baseada na agroecologia. O Programa de Aquisição de Alimentos (PPA) tem como
público prioritário os agricultores familiares e setores mais carentes da população.
Enquanto o Programa de Desenvolvimento da Agricultura Orgânica (Pró-Orgâ-
nico) tem por objetivo estimular o crescimento do segmento de orgânicos na agri-
cultura brasileira.
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7

PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS (PAA)


O PAA foi criado em julho de 2003 (Lei 10.696/03) e está sob a responsabilidade
da Conab, empresa pública vinculada ao Mapa.4 Esse programa tem dois objeti-
vos principais: apoiar a comercialização agropecuária dos agricultores familiares,
estimulando a produção de alimentos, e facilitar o acesso a esses alimentos pelas
famílias em situação de insegurança alimentar.
O programa é fruto de construção coletiva e foi aperfeiçoado no espaço
institucional do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(Consea), com contribuições de vários segmentos. É uma ação estruturante do
Fome Zero que viabiliza maior estabilidade à atividade da agricultura familiar.
Segundo dados oficiais, ao comprar a produção do pequeno agricultor que tem
dificuldade de inserção no mercado a um preço preestabelecido, o governo federal
garante renda para o agricultor, redução do preço das cestas destinadas aos pro-
gramas sociais e ainda facilita o processo de doação de alimentos. O programa
também estimula a permanência do agricultor na sua região de origem, promove
a recuperação e a preservação da agrobiodiversidade por meio do incentivo à
produção orgânica e agroextrativista e estimula o desenvolvimento econômico e
social nas regiões onde atua.
A gerência do programa está a cargo de um comitê integrado por representan-
tes dos ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Desenvolvimento
Agrário, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Fazenda e Planejamento,
Orçamento e Gestão. Os recursos destinados ao PAA são provenientes do Minis-
tério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a operacionalização
está a cargo do MDS e da Conab.
A Conab operacionaliza as ações diretas de comercialização e doação de produ-
tos da agricultura familiar. A empresa compra a produção, sem intermediários e a
preços de referência, por meio de quatro mecanismos específicos: Compra Anteci-
pada da Agricultura Familiar (Caaf), para disponibilizar recursos ao plantio (prin-
cipalmente produtos da cesta básica); Contrato de Garantia de Compra da Agricul-
tura Familiar, que assegura a opção de venda da produção familiar ao estado a
preço pré-determinado; Compra Direta da Agricultura Familiar (CDAF), para pos-
sibilitar a venda de alimentos ao estado a preço de referência; e Compra Antecipada
Especial da Agricultura Familiar (Caeaf), que adquire produtos de origem agrícola,
pecuária e extrativista da agricultura familiar, visando à formação de estoques ou à
doação simultânea a populações em situação de risco alimentar.
Diferentemente do MDS, que tem convênios com estados e municípios para o
gerenciamento do crédito, na Conab o convênio é feito direto com as organiza-
ções sociais (associações e cooperativas de agricultores), buscando criar mecanis-
mos de gestão participativa e fortalecimento desses grupos. Segundo a Tabela 2,
foram aplicados pela Conab, em 2003, R$ 82 milhões no programa de aquisição
de alimentos, o que beneficiou 41 mil famílias. Em 2004, foram destinados R$
107 milhões, beneficiando 50 mil famílias.
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8

Tabela2: Famílias beneficiadas e recursos aplicados por mecanismo no PAA/Conab nos


anos 2003 e 2004

REGIÃO CAAF CDAF CAEAF TOTAL

N. RECURSOS N. RECURSOS N. RECURSOS N. RECURSOS


FAMÍLIA ($) FAMÍLIA ($) FAMÍLIA ($) FAMÍLIA ($)

Norte 3.129 2.489.729,80 124 132.152,41 2.621 5.572.275,06 3.747 8.194.157,27

Nordeste 15.952 26.163.250,76 1.488 2.788.957,42 1.340 2.720.199,90 18.780 31.672.408,08

Sudeste 3.026 7.454.140,03 43 79.394,75 31 70.130,00 3.100 7.603.664,78

Sul 3.296 7.085.181,53 585 1.169.579,50 3.819 9.384.488,00 7.700 17.639.249,03

C.Oeste 4.675 14.008.255,75 1.212 2.423.472,38 0 0 5.887 16.431.728,13

Total 30.078 57.200.557,87 3.452 6.593.556,46 7.811 17.747.092,96 41.341 81.541.207,29


CONAB/PAA 2004
Norte 3.102 7.183.226,39 6.833 12.406.204,50 3.894 8.878.223,86 13.829 28.467.654,75

Nordeste 11.420 23.168.976,61 6.241 12.677.986,62 3.036 6.534.954,73 20.697 42.381.917,96

Sudeste 1.291 3.142.760,48 925 2.159.461,71 1.606 3.722.015,88 3.822 9.024.238,07

Sul 246 420.524,80 412 1.029.500,00 9.524 22.431.380,03 10.182 23.881.404,83

C.Oeste 348 728.267,90 1.422 2.947.006,09 26 64.000,00 1.796 3.739.273,99

Total 16.407 34.643.756,18 15.833 31.220.158,92 18.086 41.630.574,50 50.326 107.494.489,6

Fonte: Conab.

Vale ressaltar que o Nordeste obteve cerca de 40% de todos os recursos do


programa, o que corrobora o objetivo de atender os grupos mais carentes e os que
têm maior dificuldade de acesso ao mercado. A Tabela 2 também mostra que, no
mecanismo de compra antecipada, que funciona como uma espécie de crédito de
custeio, houve decréscimo de 40% dos recursos aplicados em 2004 comparados
aos de 2003; já no mecanismos de compra direta (compra para doação ou forma-
ção de estoque) e de compra antecipada especial (compra e distribuição local que
favorece os arranjos locais) houve aumento bastante significativo tanto no volu-
me de recursos como no número de famílias beneficiadas em 2004. Outro desta-
que é que, em 2004, houve investimento maior do programa na região Norte. O
número de famílias beneficiadas passou de 3.747 para 13.829. A região Centro-
Oeste foi a única que recebeu menos recursos em 2004.
O programa teve avaliação bastante positiva nos dois primeiros anos de funci-
onamento, embora com alcances bastante limitados devido à insuficiência de re-
cursos. Ele atua na comercialização da produção, ponto crucial e grande deficiên-
cia das políticas voltadas para a agricultura familiar. Além disso, por ser um recur-
so que não tem intermediação de bancos é muito menos burocrático. O agricul-
tor, em vez de pagar em dinheiro, pode pagar em produtos e receber um preço
justo por eles. “Esta é, de fato, uma outra concepção de intervenção pública sem
intermediação de bancos, com garantia de compra e com preços predefinidos.”
Importante lembrar que o PAA possibilitou um redirecionamento das ações da
Conab – empresa de abastecimento que tinha tradicionalmente um perfil mais volta-
do ao agronegócio –, passando a trabalhar também com outro público e com outra
dinâmica de intervenção, o que favorece a inclusão social e o desenvolvimento local.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
9

O programa estimulou a diversificação da produção familiar, o resgate de hábitos


alimentares e a produção de sementes crioulas ao comprar a diversidade de produtos
produzidos pela agricultura familiar. Outro ponto positivo foi o fortalecimento das
organizações sociais.
Esta questão do empoderamento efetivo é uma grande virtude do
programa. E junto entra a questão de fazer com que essas organiza-
ções venham a se credenciar de uma forma mais qualificada, na
qual, por exemplo, elas passam a ter uma contabilidade, um
processo de gestão administrativa, a questão da certidão negativa
de débito. Ou seja, todos os agricultores têm que ter CPF e muitos
foram retirar documentos porque ainda não os tinham. Então, tem
aspectos de cidadania, pequenos, mas que representam um saldo
positivo muito grande.

O grande limite do programa são os recursos escassos. A consolidação efetiva


do PAA depende do aperfeiçoamento dos instrumentos e de vontade política. Em
2005, o MDA assumiu o Programa como estratégico, aportando recursos. A pre-
visão é que em 2006 sejam destinados R$ 500 milhões para o PAA. O fato de ser
gerenciado por cinco ministérios (MDS, Mapa, MDA, Fazenda e Planejamento),
que possuem interesses diferenciados, requer um ajuste das expectativas sobre o
papel e as atribuições do PAA.
Existe uma disputa entre o MDS e a Conab pelos recursos do PAA. Em 2005,
dos R$ 208 milhões destinados ao programa, R$ 142 milhões foram para o MDS
(68%), a maior parte destinado ao Programa do Leite.9 O MDS, diferentemente
da Conab, opera com outra lógica de intervenção e entende que sua função é
comprar alimentos para distribuir para a população carente.
O PAA é um instrumento de política pública criado para incentivar a agricul-
tura familiar, promover a inclusão social no campo e garantir alimento a popula-
ções em situação de insegurança alimentar por meio da compra da produção fa-
miliar, uma das etapas mais críticas do processo agrícola. Em dois anos de funci-
onamento, o programa demonstrou ser um instrumento inovador altamente efi-
ciente e com grandes potencialidades. Os resultados foram bastante positivos e se
refletiram na melhoria da renda dos agricultores beneficiados e na inclusão de
agricultores que se encontravam à margem do processo produtivo. “Isso é o que
tem permitido avançar tanto, ter o grande reconhecimento das organizações soci-
ais, em especial dos movimentos, de que esse é o grande programa do governo
Lula no campo agrícola e agrário.”

PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO DA AGRICULTURA ORGÂNICA (PRÓ-ORGÂNICO)


O Pró-Orgânico foi criado em 2003 e teve sua inclusão no Plano Plurianual 2004–
2007 do Mapa. É um programa que tem por objetivo o estímulo ao desenvolvi-
mento e à expansão da agricultura orgânica brasileira. Segundo dados oficiais, o
Pró-Orgânico é implementado para apoiar e fortalecer os setores da produção, de

9
O MDS administra dois programas: o Compra Direta Local (suplementação alimentar para os programas sociais) e o
Programa do Leite (destinado a crianças, idosos e gestantes).
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
10

processamento e comercialização de produtos orgânicos e para estimular o cresci-


mento desse segmento do agronegócio brasileiro.
O Mapa começou efetivamente a ter um pouco mais de envolvimento com a
questão dos orgânicos a partir da publicação da primeira regulamentação brasi-
leira de orgânicos, a Instrução Normativa de 7 de maio de 1999. As discussões
avançaram e em 2003 foi aprovada a Lei 10.831, que trata da agricultura orgâni-
ca no Brasil. Em 2004 foi criada, dentro do Mapa, a Câmara Setorial da Agricul-
tura Orgânica, vinculada ao Conselho do Agronegócio, um espaço onde são dis-
cutidas as políticas para o setor e, principalmente, a regulamentação da Lei 10.831/
2003. Essa câmara é composta por representantes de entidades empresariais e de
trabalhadores, de organizações não-governamentais e de órgãos públicos relacio-
nados com os diferentes segmentos da cadeia produtiva orgânica.
Em 2005, o Mapa intensifica o discurso do desenvolvimento sustentável e amplia
o Pró-Orgânico, aumentando a equipe de uma para seis pessoas e criando a Coorde-
nação de Agroecologia. Essa coordenação tem a função de trabalhar a regulamenta-
ção da produção orgânica (os mecanismos de garantia da produção orgânica, a ques-
tão das normas e os regulamentos) e difundir os princípios da agroecologia. A equipe
formada passou a trabalhar a articulação com os outros setores do Mapa buscando
disseminar a agricultura orgânica e angariar adeptos para trabalhar com orgânicos.
A idéia é que, com isso, a gente possa ter pessoas com interesse na
agricultura orgânica, com vontade de fazer a coisa crescer, em todas
as áreas do ministério. Não adiantaria só a gente ficar trabalhando
com agricultura orgânica se os outros setores não estivessem tam-
bém imbuídos em ajudar para que isso cresça e desenvolva.

Para articular os diferentes setores do Mapa estão sendo criados Núcleos de Agri-
cultura Orgânica, na sede e em todas as superintendências do ministério, com o obje-
tivo de mobilizar os técnicos do Mapa nas diferentes áreas. Atualmente, o núcleo da
sede tem 65 técnicos, cada um trabalha em sua área, mas todos participam dos cursos
de capacitação e dos seminários sobre agricultura orgânica. Também foram criadas as
Comissões da Produção Orgânica nacional e estaduais (os antigos colegiados), que
têm por objetivo o assessoramento técnico ao Pró-Orgânico. Essas comissões já fo-
ram criadas em 19 estados. São oficializadas com um seminário que repassa informa-
ções e promove discussões sobre o programa. Em cada estado, foram realizados semi-
nários: um com a comissão e outro com o Núcleo de Agricultura Orgânica.
As Comissões da Produção Orgânica são constituídas de forma paritária (50%
de órgãos públicos e 50% de organizações não-governamentais) e têm entre oito
e 20 membros. As instituições participantes das comissões devem ser representati-
vas de segmentos do setor orgânico, tais como: produção, processamento,
certificação, comercialização, pesquisa e assistência técnica. A escolha das entida-
des não-governamentais ocorre via assembléia, com a participação de entidades
previamente cadastradas. A Comissão Nacional da Produção Orgânica foi criada
em 2004, mas seus membros ainda não foram definidos. Ela terá dez membros,
cinco de órgãos públicos e cinco de organizações não-governamentais, com um
representante de cada região a ser eleito pelas comissões estaduais. A previsão é
que isso aconteça até outubro de 2005. São essas Comissões que definirão quais
os projetos que serão apoiados pelo Mapa.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
11

O Pró-Orgânico é um programa ainda em construção, com dotação orçamentária


pequena – cerca de R$ 2 milhões em 2005 –, mas que vem ganhando espaço e reco-
nhecimento dentro do Mapa. O programa possui uma lógica diferenciada de atuação
com proposta de trabalhar em todas as áreas do ministério, na qual se discute e busca-
se apoio para a produção de orgânicos, mesmo em áreas antagônicas.
Mesmo em setores que poderiam ser até antagônicos a nossa
proposta, hoje em dia conseguimos ter simpatia de quase todas as
áreas. Mesmo que esses setores não acreditem que a agricultura
orgânica seja uma alternativa de desenvolvimento, eles acreditam
que a agricultura orgânica é um nicho de mercado e, por isso, o
ministério deve estar atuando.

Outro ponto positivo do programa são conselhos paritários, cujos represen-


tantes definem quais os projetos que serão apoiados, as prioridades que serão
trabalhadas e a identificação das demandas, prioritariamente de grupos organiza-
dos e dos trabalhos coletivos.
O setor de orgânicos não tem uma postura de enfrentamento com os outros
setores do Mapa. Predomina no Mapa a visão de que a agricultura orgânica é um
nicho de mercado, embora existam pessoas que possuam concepção diferente.
Alguns técnicos do Mapa defendem uma agricultura que cause menos impactos
sociais e ambientais e entendem a agroecologia como uma nova orientação pro-
dutiva, mesmo sendo minoria dentro do ministério.
Pra mim, isso é questão de mercado, questão de estabelecer merca-
do. Para alguns setores do ministério esse mercado é um nicho.
Para nós aqui, e para boa parte do pessoal do movimento, entende-
mos que esse é o princípio de uma mudança no paradigma de
produção. Nós entendemos que a produção orgânica pode ser um
objetivo, que a agroecologia pode ser o nosso norte para um
desenvolvimento sustentável no meio rural. Como não prejudica
nada para essas pessoas que acham que é um nicho a gente pensar
assim, então a gente pode conviver sem conflito.

Embora seja um setor amplamente minoritário dentro do Mapa, o setor de


produção orgânica cresce e ganha espaço. Existe, também, o interesse do ministé-
rio em reverter a imagem negativa associada ao agronegócio, preponderantemen-
te a de que causa danos ambientais e exclusão social. Uma vantagem do Mapa é
possuir estrutura nacional já constituída – os conselhos estaduais –, que facilita a
implementação do Pró-Orgânico. Por outro lado, existe demanda da sociedade
por uma vida mais saudável e uma positividade grande da agricultura familiar,
que o Mapa pretende incorporar. Atualmente, já existe um apoio institucional
para trabalhar a produção orgânica, ainda que sob a forma de nichos, o que seria
impensável há alguns anos.

2.2. Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)


O MDA teve sua estrutura regimental regulamentada em 2000. Seu objetivo é
criar oportunidades para que as populações rurais alcancem plena cidadania. Tem
como área de competência a reforma agrária, a promoção do desenvolvimento
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
12

sustentável do segmento rural constituído pelos agricultores familiares, assim como


a identificação, o reconhecimento, a delimitação, demarcação e titulação das ter-
ras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. O MDA teve
como principais mudanças institucionais no governo Lula a criação da Secretaria
de Desenvolvimento Territorial e a transferência dos serviços de assistência técnica
e extensão rural do Mapa para o MDA.
O MDA, assim como outros setores da sociedade civil, se empenha em desen-
volver políticas específicas para os agricultores familiares. A discussão sobre a
importância e o papel da agricultura familiar no desenvolvimento brasileiro ga-
nha força nos últimos anos. Segundo dados do ministério, há mais de 4 milhões
de estabelecimentos familiares no campo. A agricultura familiar é responsável por
mais de 70% de toda a mão-de-obra ocupada no campo, 40% do valor bruto da
produção primária do Brasil e responde pela produção da maioria dos alimentos
que são consumidos nas mesas brasileiras: 84% da mandioca, 67% do feijão,
58% dos suínos, 52% do leite, 49% do milho, 40% das aves e ovos, 32% da
soja, 31% do arroz e 25% do café.
Esses milhões de pequenos produtores que compõem a agricultura familiar
fazem dela um setor em expansão. É um setor forte e importante para o país. A
valorização e o incentivo da agricultura familiar contribuem para a manutenção
de um número significativo de agricultores no campo, favorecem o uso de práti-
cas produtivas ecologicamente mais equilibradas, como a diversificação de culti-
vos, o uso mais racional de insumos industriais e a manutenção do patrimônio
genético. Nesse sentido, a agricultura familiar exerce um papel importante para o
desenvolvimento social e para o crescimento equilibrado do país, porque possibi-
lita a inclusão social, a geração de trabalho e a distribuição de renda.
Grande diferencial do MDA é ter diálogo com os movimentos sociais. Não
consegue responder a todas as demandas, mas existe a preocupação em atender a
pauta de reivindicação dos movimentos – Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) e
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Além disso,
alguns representantes dos movimentos sociais e de ONGs fazem parte da estrutu-
ra do ministério. Eles trazem suas experiências e discussões para dentro do gover-
no, o que possibilita uma proximidade maior com a realidade do público
prioritário e o atendimento das suas demandas.
Entretanto, crítica feita ao MDA, constatada até por pessoas que trabalham
no ministério, aponta para a falta de diálogo entre as secretarias (SAF, SDT e
SRA).10 Cada setor tem suas políticas e ações específicas que, geralmente, pouco se
articulam entre si. “Uma sabe muito pouco do que a outra faz, cada secretaria
tem seu andar, seu compartimento.” As tentativas de diálogo são sempre difíceis
porque ninguém quer abrir mão do seu programa. “As pessoas constroem nichos
de poder aqui dentro. A coisa clássica da burocracia: cada um tem seu programa,

10
A SAF é a secretaria mais antiga do MDA e que dispõe da maior fatia dos recursos. Ela trabalha principalmente com a
agricultura familiar e com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura (Pronaf). A SAF sofre forte influência da Fetraf
e tem um perfil mais sulista refletido na composição da secretaria. A SDT e SRA foram constituídas em 2003 sendo, portanto,
estruturas bastante jovens. Ambas são legitimadas e sofrem influências da Contag. A SRA tem um perfil mais sulista e a SDT,
mais nordestina. A SRA trás a tradição do Banco da Terra, que agora mudou para crédito fundiário, mas a lógica permaneceu
a mesma. A SDT discute a questão da territorialidade do desenvolvimento e administra o Pronaf infra-estrutura.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
13

suas idéias. E isso sustenta a posição política daquela pessoa dentro do ministé-
rio.” Essa desarticulação provoca sobreposições de ações e de políticas que refle-
tem negativamente no plano local. Se fossem planejadas, as políticas poderiam ter
maior abrangência e eficácia.
A seguir, faz-se breve comentário sobre algumas mudanças importantes ocorri-
das no governo Lula, tais como a criação de uma nova política de Assistência
Técnica e Extensão Rural (Ater), a criação da Secretaria de Desenvolvimento
Territorial (SDT) e o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNDR). São políti-
cas importantes que refletem uma mudança do olhar sobre o rural e apontam
para mudança de modelo de desenvolvimento. As transformações buscam a
integração das políticas e uma atuação mais democrática e participativa na reso-
lução dos problemas que envolvem a agricultura familiar e a questão agrária.

SECRETARIA DA AGRICULTURA FAMILIAR (SAF)


A SAF tem por objetivo consolidar um conjunto de políticas para a agricultura
familiar. O principal programa desenvolvido pela secretaria é o Programa Nacio-
nal de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).11 Por meio do Departa-
mento de Assistência Técnica e Extensão Rural (Dater), a SAF coordena a
implementação da política e do novo Programa Nacional de Ater (Pnater), que
são executados por entidades governamentais e não-governamentais. A SAF apóia
programas de capacitação de agricultores e de jovens rurais, como também pro-
move a formação e o fortalecimento de redes de serviços de Ater nos estados,
municípios e territórios. Ela atua em parceria com os conselhos estaduais, territoriais
e municipais de desenvolvimento rural.

POLÍTICA NACIONAL DE ATER (PNATER)


Os serviços de assistência técnica e extensão rural sofreram um processo de
desarticulação na década de 1990 com a extinção da Empresa Brasileira de Assis-
tência Técnica e Extensão Rural (Embrater). Esses serviços foram inicialmente
transferidos para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e,
depois, para o Ministério da Agricultura. Com a vitória de Lula, houve discussão
sobre a importância da Ater pública e foi ressaltada a necessidade de reformular o
serviço para atender prioritariamente a agricultura familiar.12 O departamento de
Ater foi, então, transferido para o MDA e criou-se um grupo de trabalho dentro
do ministério para construir uma nova política nacional de Ater. A transferência
do Dater para o MDA foi considerada um grande avanço pelos movimentos soci-
ais e setores ligados à agricultura familiar. É fruto de anos de disputa e lutas
políticas, até mesmo de setores internos aos órgãos de extensão governamentais.
A nova Política Nacional de Ater foi elaborada por meio de um processo intensa-
mente consultivo, mediante a realização de oficinas regionais em Belém, Curitiba,
Campo Grande e Recife, ao longo de 2003, culminando com um seminário nacional

11
As questões que envolvem o Pronaf serão abordadas no item 3.2 sobre crédito rural.
12
Para o MDA o conceito de agricultura familiar compreende as seguintes categorias: agricultores familiares, assentados
da reforma agrária, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, aqüicultores, extrativistas e os agriculto-
res que desenvolvem atividades não-agrícolas nas unidades familiares.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
14

realizado em Brasília em setembro do mesmo ano. Para a construção do novo enfoque


da política de Ater, foram recuperadas propostas dos movimentos sociais e de enfoques
teóricos desenvolvidos por pesquisadores na década de 1990, principalmente os
trabalhos de Caporal e Costabeber, amplamente discutidos nas oficinas. A proposta
teve por base, também, a experiência de mudança de enfoque da Empresa Brasileira
de Extensão Rural (Emater) gaúcha para a agroecologia no governo Olívio Dutra
(1990–2002).
De acordo com a Política Nacional de Ater:
A nova Ater nasce a partir da análise crítica dos resultados negativos
da Revolução Verde e dos problemas já evidenciados pelos estudos
dos modelos convencionais de Ater baseados no difusionismo, pois
só assim o estado poderá oferecer um instrumento verdadeiramente
novo e capaz de contribuir, decisiva e generosamente, para a constru-
ção de outros estilos de desenvolvimento rural e de agricultura que
além de sustentáveis possam assegurar uma produção qualificada de
alimentos e melhores condições de vida para a população rural e
urbana (Brasil, 2004 a, p. 3).

Existiam três pontos polêmicos que permearam a constituição da proposta de


Ater: a política ser destinada com exclusividade para a agricultura familiar; a
prestação de serviço ser apenas por agências de extensão governamentais e a ex-
clusividade da agroecologia. Depois de muito debate, definiu-se que o público
prioritário seria o da agricultura familiar e que a prestação dos serviços de Ater
seria realizada por entidades estatais e não-estatais que atuassem em extensão
rural (organizações não-governamentais, movimentos sociais, entre outros). No
entanto, a discussão sobre a exclusividade ou não de um modelo tecnológico
baseado na agroecologia foi o ponto mais polêmico e sem consenso. O enfoque
agroecológico figura como o eixo orientador das ações da nova política de Ater,
contudo não há uma opção clara nem mesmo dentro do MDA pela alteração do
modelo tecnológico. Existe uma sinalização para a agroecologia, mas o que pre-
valece ainda é o modelo convencional.
Embora não se tenha uma orientação explícita para uma mudança de modelo
tecnológico no MDA, certamente houve avanços significativos. A agroecologia
está presente no Programa Nacional de Ater (Pronater) como um eixo condutor
que perpassa as políticas de Ater e houve um grande investimento do Dater na
capacitação dos profissionais ligados a Ater para a questão da agroecologia. O
Dater está apoiando algumas experiências que trabalham com enfoque
agroecológico em universidades e escolas técnicas, onde os alunos do último se-
mestre recebem uma bolsa do MDA para fazer estágio numa instituição que tra-
balha com Ater, podendo permanecer com a bolsa por dois anos. O departamento
apóia a formação de agentes para atuar junto a comunidades de quilombolas e
populações indígenas. Outra experiência realizada são três cursos de especializa-
ção em parceria com universidades (Pernambuco, Brasília e Pará) na área de de-
senvolvimento rural sustentável. Além disso, o Dater estabelece parceria com as
delegacias do MDA para a realização de um “encontro de nivelamento conceitual”,
em todos os estados, com duração de 40 horas, para a discussão dos conceitos
básicos da política de Ater.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
15

Há vários elementos que configuram uma proposta diferenciada de desenvol-


vimento dentro do MDA, mas ainda são ações pontuais e necessitam ser amplia-
das e incorporadas num plano nacional de desenvolvimento.
A gente sabe que a implementação disso no Brasil é muito difícil e
complicada, pelos interesses políticos, regionais e tudo mais, mas
há um esforço sendo feito nesse sentido. Nós temos aí muitos
elementos de uma proposta alternativa, que não é uma proposta
do MDA, mas que a sociedade vem construindo há muito tempo e
o MDA, pela sua proximidade com a sociedade, com os movimen-
tos sociais, com a agricultura familiar, tem procurado incorporar,
dar respostas a isso.

Houve mudança significativa no discurso da política nacional de Ater, uma pre-


ocupação de rever o papel histórico que a extensão rural assumiu na modernização
da agricultura e discutir a função que uma instituição pública de Ater deveria ter.
Na nova proposta de Ater existe a preocupação com a inclusão social e a valoriza-
ção do conhecimento tradicional dos agricultores familiares; discussão sobre a mu-
dança do modelo tecnológico através da agroecologia e preocupação maior com a
qualidade de vida, com a produção de alimentos sadios e com a segurança alimen-
tar. Esses elementos são discutidos hoje na política de Ater, o que não acontecia no
passado. A proposta foi construída de forma participativa, com incorporação de
sugestões dos movimentos sociais e de diversas instituições. Outra questão impor-
tante é o estado dividir responsabilidades na execução dessa política com outras
instituições que trabalhavam com extensão rural (ONGs, cooperativas, associa-
ções). As experiências alternativas e inovadoras das organizações não-governamen-
tais ganham espaço e apoio do governo.

SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL (SDT)


A SDT, segundo dados oficiais, tem por objetivo fortalecer a capacidade de
autogestão por meio do apoio às organizações e movimentos sociais e aos gover-
nos locais, priorizando os territórios rurais que tenham maior incidência de agri-
cultores familiares, beneficiários dos programas da reforma agrária e do
reordenamento agrário, quilombolas, ribeirinhos e pescadores artesanais. A SDT
busca harmonizar as estratégias de desenvolvimento territorial, articulando polí-
ticas públicas nos diversos níveis de governo, em sintonia com as necessidades das
populações e organizações da sociedade civil. A secretaria apóia a construção e a
implantação do Programa Territorial de Desenvolvimento Sustentável, política
nacional de apoio ao desenvolvimento dos territórios, que articula políticas pú-
blicas e demandas sociais.
O grande desafio da SDT é articular os diferentes programas e ações num pro-
jeto de desenvolvimento rural. Esse processo acontecerá com o fortalecimento (ou
a criação) de conselhos territoriais, espaços prioritários de discussão e de defini-
ções das demandas da sociedade. O objetivo é trabalhar de forma democrática e
participativa criando instrumentos para potencializar os atores envolvidos nos
territórios e fortalecer a organização dos grupos nas comunidades.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
16

É a idéia de você conceber o processo de desenvolvimento como


um processo que depende da gestão social e nela você inclui
estado, governo e sociedade civil para discutir, encaminhar e
decidir sobre os rumos: o que financiar, o que fazer, qual a apti-
dão de desenvolvimento do território. Isso não chega a ser uma
inovação porque o Pronaf foi baseado nisso, fortaleceu os conse-
lhos municipais. Mas você basear uma proposta de desenvolvi-
mento nesses colegiados e na gestão social é uma inovação impor-
tante que já tem bons resultados”.

A SDT faz oficinas de capacitação, nas quais são reunidos os atores envolvidos
em cada território para se construir essa nova institucionalidade que são os conse-
lhos territoriais. No trabalho de capacitação, a SDT busca discutir a importância
do processo participativo e de criação (ou fortalecimento dos já existentes) de um
espaço onde a sociedade civil tenha voz e voto e consiga expor suas demandas. A
proposta é para os próprios habitantes do território definirem e gerirem a execu-
ção dos projetos de desenvolvimento.
Os conselhos são paritários e, para que tenham legitimidade, devem ser repre-
sentativos da diversidade existente no local. A abordagem territorial pressupõe a
ampliação da capacidade de mobilização e organização dos movimentos sociais e
da sociedade civil para que, reunidos com representantes do estado, entendam,
planejem e promovam o desenvolvimento rural sustentável.
De acordo com a SDT, em alguns territórios os conselhos avançaram muito e
criou-se um espaço de discussão que não existia antes; em outros, foram criados
apenas para atender a uma demanda legal. Por outro lado, há locais, principal-
mente no sul do país, que rejeitam essa proposta de território. A idéia é que a SDT
consiga articular as políticas e ações num enfoque territorial através de ação inte-
grada que envolva um conjunto de atores públicos e privados. Contudo, essa é
uma proposta ainda muito nova que precisa se fortalecer e ganhar legitimidade.
Também é uma abordagem que não abrange todo o território nacional.
A SDT também coordena o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural
Sustentável (Condraf). Esse conselho, segundo dados oficiais, representa a conso-
lidação de uma relação forte com a sociedade civil, a favor do fortalecimento e da
integração de todos os programas de inclusão social, de combate à pobreza, de
reforma agrária e da agricultura familiar. O Condraf é um instrumento de propo-
sição de diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas,
constituindo-se em espaço de concentração e articulação entre os diferentes níveis
de governo e as organizações da sociedade civil. O conselho é paritário e possui 38
membros, 50% indicados por entidades ligadas ao governo e 50% nomeados por
movimentos sociais e pela sociedade civil organizada.

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA)


O Incra é uma autarquia federal criada pelo Decreto 1.110 de 1970 com a
missão prioritária de realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional de
imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. Está presente em todo o
território nacional por meio de 29 superintendências nacionais. Segundo dados
oficiais, o Incra incorpora entre suas prioridades a implantação de um modelo de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
17

assentamento com a concepção de desenvolvimento territorial. O objetivo é im-


plantar modelos compatíveis com as potencialidades e os biomas de cada região
do país e fomentar a integração espacial dos projetos. Outra tarefa importante no
trabalho da autarquia é o equacionamento do passivo ambiental existente, a re-
cuperação da infra-estrutura e o desenvolvimento sustentável dos mais de 5 mil
assentamentos existentes no país.
O II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) foi apresentado em novem-
bro de 2003, durante a Conferência da Terra, em Brasília, momento histórico da
união camponesa que contou com a presença de todos os movimentos sociais. Do
ponto de vista político, ressaltou-se a importância de retomar a positividade da
reforma agrária, em mostrar que, além da função social, a reforma agrária tem
papel econômico importante e impulsiona um outro padrão de desenvolvimento.
O II PNRA é fruto de um amplo diálogo social e esforço coletivo de servidores
e técnicos, com o acúmulo dos movimentos sociais e da reflexão acadêmica. Se-
gundo a proposta, no novo modelo de reforma agrária a recuperação dos atuais e
a implantação dos novos assentamentos contarão com assistência técnica, acesso
ao conhecimento e tecnologias apropriadas. Estarão orientadas por projetos pro-
dutivos adequados às potencialidades regionais e às especificidades de cada bioma
e comprometidos com a sustentabilidade ambiental. Estratégia conjunta de pro-
dução e comercialização que abrirá novas possibilidades econômicas para os as-
sentamentos e para sua integração numa dinâmica de desenvolvimento territorial
(Brasil, 2003, p. 5).
Um novo modelo de assentamento é proposto. Além de garantir o acesso à terra,
prevê ações de produção e geração de renda e acesso aos demais direitos fundamen-
tais. Segundo a proposta, mais de 1 milhão de famílias beneficiadas serão benefici-
adas e mais de 2 milhões de novos postos de trabalho serão criados. As principais
metas do II PNRA são:13 400 mil novas famílias assentadas até 2006, sendo 30 mil
em 2003, 115 mil em 2004, 115 mil em 2005 e 140 mil em 2006; 500 mil famílias
com posses regularizadas até o fim de 2006, com título definitivo da terra; 130 mil
famílias com acesso à terra por meio do Crédito Fundiário, programa que substitui
o antigo Banco da Terra: 17,5 mil até o fim de 2003 e outras 37,5 mil, por ano, até
2006; a recuperação da capacidade produtiva e a viabilidade econômica dos atuais
assentamentos, bem como a universalização do direito à educação, à cultura e à
seguridade social; o reconhecimento, a demarcação e a titulação de áreas de comu-
nidades quilombolas; a garantia de reassentamento dos ocupantes não-índios de
áreas indígenas; a promoção da igualdade de gênero na reforma agrária, com o
apoio a projetos produtivos protagonizados por mulheres; a garantia de assistência
técnica e extensão rural, capacitação, crédito e políticas de comercialização a todas
as famílias das áreas reformadas.
O Incra tem um serviço específico de assessoria técnica aos assentamentos. O
serviço de Assessoria Técnica Social e Ambiental (Ates) foi criado em 2004 a par-
tir de uma reivindicação do MST, que demandava do estado um serviço de exten-
são rural público e exclusivo para os assentamentos de reforma agrária, com base

13
As questões que envolvem a reforma agrária serão discutidas no item 3.1.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
18

no antigo Projeto Lumiar que funcionou entre 1997 e 1999 como um serviço
terceirizado de assistência técnica e extensão rural. Para operacionalizar o serviço
de Ates, o Incra está firmando convênios ou contratando empresas prestadoras de
serviços de extensão rural em todo o Brasil. Há também previsão de contratar
1.500 técnicos para atuar no assessoramento técnico dos assentamentos.
Segundo o Manual Operacional de 2004, os serviços de Ates são compreendi-
dos como:
[...] o conjunto de técnicas e métodos, constitutivos de um processo
educativo, de natureza solidária, permanente, pública e gratuita,
voltado para a construção do conhecimento e das ações
direcionadas à melhoria da qualidade de vida das famílias assenta-
das nos projetos de reforma agrária, tomando por base a qualifica-
ção das pessoas, das comunidades e de suas organizações, visando a
sua promoção em termos ambientais, econômicos, sociais e cultu-
rais, no âmbito local, territorial e regional, dentro do que enseja o
conceito de desenvolvimento rural sustentável.

Institucionalmente, o serviço de Ates está subordinado às diretrizes do Pnater.


Administrativamente, criou uma nova institucionalidade de gestão, que o dife-
rencia do Programa Nacional de Ater, associada à criação de novas modalidades
de crédito para os assentamentos e estabelecendo parcerias com prestadoras de
serviços de assistência técnica. O serviço de Ates é gerido por coordenação naci-
onal, coordenação estadual (superintendências regionais), equipe de articulação
(para coordenar e dar suporte aos núcleos operacionais) e os núcleos operacionais
(técnicos que prestam assessoramento técnico). As coordenações nacional e esta-
dual são compostas por representantes do governo e dos trabalhadores rurais,
entretanto cabe à representação do Incra, nas duas instâncias, a direção dos
trabalhos. Os recursos financeiros, descentralizados, serão entregues às superin-
tendências regionais, mas os critérios para a sua alocação serão definidos pela
coordenação nacional.

PRINCIPAIS DIVERGÊNCIAS ENCONTRADAS


O Brasil possui hoje, em linhas gerais, duas realidades no meio rural que se
materializam na existência de dois ministérios. O Mapa tem como público
prioritário os agricultores empresariais e é identificado com os interesses do
agronegócio. Suas características principais são a intensificação produtiva, o
uso de alta tecnologia e a produção de commodities para exportação, represen-
tando o modelo agrícola modernizador da revolução verde predominante até os
dias atuais. O MDA trabalha com a diversidade dos agricultores familiares que
convivem com uma multiplicidade de situações e se identificam com a diversifi-
cação de culturas, com a produção para o mercado interno e com um uso menos
intensivo do solo e dos recursos naturais, o que poderia conformar um outro
modelo de desenvolvimento mais pautado na inclusão social e no respeito ao
meio ambiente.
O governo tem uma posição clara manifestada no Programa Vida Digna no
Campo. Os dois setores, a agricultura patronal e a agricultura familiar, são com-
plementares num projeto de desenvolvimento para o país:
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
19

As políticas para agricultura familiar devem se desenvolver em


paralelo àquelas orientadas para a agricultura empresarial. A
agricultura empresarial gera empregos, renda e excedentes exportá-
veis. A agricultura familiar, além da produção de alimentos básicos
de qualidade, também promove a ocupação soberana do nosso
território, preserva tradições culturais do nosso país, mantém as
pessoas em sua terra natal e pode contribuir na defesa de nosso
meio ambiente. (Coligação Lula Presidente, 2002)

Do ponto de vista do governo, os dois ministérios têm atribuições diferenciadas


e, em algumas áreas, complementares. Existem áreas de atuação que atendem aos
interesses do conjunto dos agricultores, dentre as quais podemos citar: instituições
de pesquisa (Embrapa), área de defesa vegetal, legislação sanitária, instrumentos de
comercialização (Conab). Na legislação sanitária, existe um esforço dos ministérios
no sentido de alterar a legislação buscando adequá-la às especificidades das
agroindústrias familiares. A existência dessa complementaridade, contudo, não
impede a percepção de que a conformação das políticas, muitas vezes, respondem
melhor ao desenho ou às características de determinado setor da agricultura.
A existência de agendas próprias para cada ministério pode diluir a percepção
dos conflitos. Segundo entendimento do Mapa,
não há divergências do ponto de vista conceitual, todos nós defen-
demos e queremos o bem da agricultura, independentemente desta
linha divisória, imaginária e pouco científica, que coloca o Mapa e
o MDA a chamar a agricultura de familiar ou comercial.

No entanto, as contradições ficam explícitas nas diferenças de visão sobre o


papel da agricultura e nas diferentes estratégias de desenvolvimento, configuran-
do diferenças políticas que vão muito além da existência dos dois ministérios.
As diferenças aparecem em coisas concretas, como no debate sobre a função
social da propriedade e na visão sobre reforma agrária, no tema das negociações
internacionais, na hora de alocar recursos públicos para a reforma agrária e para a
agricultura familiar e no tema da biossegurança. Nesses temas, as diferenças são
mais explícitas e delimitam campos em disputa. Em outros temas, como o do
padrão tecnológico, as diferenças guardam mais ambigüidades, pois a agricultura
orgânica também é estimulada pelo Mapa. O mesmo acontece com o tema do
comércio justo.
Existem disputas entre os ministérios, mas as contradições originadas de dife-
rentes projetos para o meio rural se expressam mais fortemente nas decisões de
governo, na hora de construir posição sobre os temas citados, e na formulação das
políticas para esses setores. Nesses momentos, a formulação do Programa Vida
Digna no Campo, que afirma serem o Mapa e o MDA setores complementares
com papéis diferenciados, é insuficiente para enfrentar essas diferenças. As contra-
dições aparecem na defesa de uma posição sobre biossegurança, na definição de
uma posição no tema das negociações internacionais, na redefinição dos índices
de produtividade utilizados para a desapropriação de terras, entre outros. Na
hora da tomada de decisão apenas uma proposta prevalece, geralmente aquela em
que seu defensor tem mais força política.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
20

Crítica endereçada ao Mapa revela que o padrão de ocupação e desenvolvi-


mento utilizado pela agricultura patronal, embora tenha um papel importante na
balança comercial, não dialoga com o conceito de segurança alimentar, com uma
ocupação do território mais equilibrada e com uma lógica de atividade produtiva
pautada pela sustentabilidade.
No agronegócio você tem imensos ganhos de produtividade, mas
com relações sociais cada vez mais excludentes: concentração
fundiária, dispensa de trabalho, não-respeito ao meio-ambiente. É
um tipo de aumento de produtividade que é extremamente danoso,
a expensas de custos sociais altíssimos.

Na visão do Mapa, não há contradições entre a expansão do agronegócio, a


preservação ambiental e a sustentabilidade social. No entendimento do MDA, as
contradições são evidentes, e esse padrão de desenvolvimento agrícola, de expan-
são do território, precisa ser questionado e alterado.
Segundo o Mapa, a expansão da soja, por exemplo, ocorre sobre áreas já
desmatadas, em áreas de pastagens, e o desmatamento da Amazônia ocorre por
causa da venda de madeira, e não em virtude da abertura de fronteira agrícola.
Sobre os impactos ambientais causados pelo agronegócio, defende que a preserva-
ção do meio ambiente é uma unanimidade. O Brasil tem legislação ambiental
severa, o que falta é uma fiscalização mais eficiente:
O problema do meio ambiente não é um problema de política
agrícola, do ministério, é um caso de polícia federal. As leis estão aí,
você não precisa desmatar para produzir no Brasil. O Brasil tem um
potencial no Centro-Oeste, que já está desmatado há muito tempo,
você está liberando área de pecuária direto. Mas tem um problema
de comércio de madeira no mundo todo: estão tirando madeira para
vender madeira e depois, planta-se alguma coisa lá ou não. Não é
um problema de agricultura. Você vai perguntar: tem gente
desmatando para produzir? Tem, mas é pouco. É que ele tira madei-
ra e acaba produzindo em cima. O problema é a venda de madeira.

De acordo com o ministro Roberto Rodrigues, nos dois últimos anos a área
plantada cresceu cerca de 3 milhões de hectares por ano:
Estudos recentes trazidos inclusive à Presidência da República
mostram que nos próximos 10 anos nós teremos que produzir 60
milhões de toneladas de grãos a mais para atender à demanda
mundial. Isso significa um crescimento mínimo de 2 milhões de
hectares por ano. Outros estudos mostram que aos atuais 62
milhões de hectares cultivados no Brasil – demoramos 500 anos
para chegar a esse número – se somarão outros 30 milhões de
hectares nos próximos 15 anos, cedidos por áreas de pastagens
graças ao espetacular desenvolvimento tecnológico da pecuária de
corte e da pecuária de leite no Brasil. Então, há um horizonte
impressionante de crescimento do agronegócio.6

14
Discurso de Roberto Rodrigues no lançamento do PAP 2004–2005.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
21

Outra crítica ao Mapa é agir, enquanto gestor de um programa de agronegócio,


como se não existisse restrição do ponto de vista normativo na relação entre pro-
priedade fundiária e agronegócio. “Para eles, quanto mais frouxa ou inexistente
for a política agrária, mais realizam o projeto tradicional de modernização técni-
ca da agricultura com concentração fundiária.” É função do MDA cumprir e
fazer cumprir a função social da propriedade, mas como a execução da política
agrária é feita de forma muito tímida, acaba fortalecendo o agronegócio. “O
problema é que o MDA exerce essa função de forma tão precária, tão ambígua
que termina viabilizando que o projeto do agronegócio se concretize com toda
voracidade.”
Nos movimentos sociais, a exemplo do MST, da Contag e da Fetraf, existe
posicionamento claro pela construção de um modelo alternativo de desenvolvi-
mento baseado na valorização da agricultura familiar e nos princípios da
agroecologia. Contudo, esse mesmo posicionamento não fica explícito no MDA.
Existem algumas ações que poderão configurar uma nova concepção de modelo
de desenvolvimento, mas ainda é muito tangencial dentro do ministério, não re-
presenta uma mudança profunda como deveria ser. “Creio que se andou muito
pouco no governo Lula para se transformar esse modelo.”
Para que haja desenvolvimento rural com inclusão social, é necessário fortale-
cer o setor familiar e capacitar o agricultor familiar para que tenha igualdade de
oportunidade. A ampliação da reforma agrária e as iniciativas de garantia de
comercialização (PAA – Conab) são exemplos de políticas que democratizam o
acesso e apresentam resultados bastante positivos para os agricultores mais caren-
tes. Isso, evidentemente, associado a um programa de crédito específico, como é o
caso do Pronaf, que potencializa esse programa de igualdade. A previdência rural
é outro componente da ação capacitadora do estado. A mesma coisa vale para o
Sistema Único de Saúde (SUS) e para a educação fundamental. Nesse sentido, a
política de segurança alimentar poderia ter um papel muito forte se vinculasse
todas as subvenções ao consumo de alimentos, à sua provisão pelo setor familiar.
“Em vez de a merenda escolar ser comprada do agronegócio, compra-se da agri-
cultura familiar. Ao invés de financiar a desigualdade, financia a igualdade. É o
mesmo dinheiro.”
O MDA, como espaço institucional, precisa assumir o comando de um novo
projeto de desenvolvimento que inclua a diversidade da agricultura familiar e crie
condições para a sua sobrevivência. As iniciativas existentes que trabalham nessa
direção deveriam ser articuladas e traduzidas numa política nacional de acesso à
terra, ao crédito, ao seguro rural, à assessoria técnica e à comercialização. É preci-
so trabalhar de forma articulada essas políticas e fortalecer as organizações sociais
criando condições para que haja apoderamento efetivo dos agricultores familia-
res. É um trabalho muito complexo, até porque o setor familiar é bastante hetero-
gêneo, apresenta realidades bastante diferenciadas. Contudo, “só é possível repro-
duzir o setor familiar em bases modernas se tiver políticas de eixo nacional. Se
tiver apenas política local vira uma experiência única, geograficamente isolada”.
Diferença a ser destacada entre os ministérios é o Mapa possuir coesão maior
na execução das políticas, que resulta em maior eficiência. O Mapa tem um obje-
tivo claro: a promoção do agronegócio. Além disso, os agricultores empresariais
possuem terras mais adequadas, fazem uso de alta tecnologia, possuem capital
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
22

financeiro adequado, contam com estratégia de marketing e possuem estrutura de


comercialização. Tudo isso faz com que o agronegócio seja muito eficiente econo-
micamente.
Por sua vez, o MDA se destaca por apresentar um produto potencial que gera
mais igualdade. Além da eficiência econômica, outros indicadores devem ser des-
tacados, tais como: mão-de-obra ocupada, ocupação do espaço, renda da produ-
ção e preservação dos recursos naturais. Esse é um diferencial do MDA, pois gera
um produto potencial que só ele pode produzir.
O MDA aponta para uma perspectiva de convivência de relações
sociais, ambientais e produtivas de uma outra economia que não é
essa. Uma economia na qual você vai deixar de depredar o espaço
florestal, vai deixar de extinguir os cursos d’água, vai deixar de
concentrar a propriedade, vai criar maior relação de trabalho por
produto. Todos esses indicadores tinham que estar capturando as
diferenças micro que existem e que funcionam.

Um exemplo do produto potencial do MDA é o assentamento de Tapeba. Esse


assentamento conseguiu articular localmente uma rede de produção, de
comercialização para a merenda escolar, ocupação da força de trabalho familiar e
agroindustrialização que tem um resultado muito interessante em termos de igual-
dade e expectativa de desenvolvimento para a comunidade. Os resultados, tradu-
zidos em indicadores sociais, ambientais e fundiários, configuram relações com-
pletamente opostas dos resultados conseguidos pelo agronegócio. “Essas compa-
rações é que precisariam ser feitas. Elas poderiam passar a imagem para a opinião
pública: olha, este é o caminho do futuro. O atraso é isso que vocês acham que é
o progresso. O atraso é o agronegócio.”
Todavia, a imagem transmitida pela mídia à sociedade é justamente a oposta.
O que é considerado progresso é o pivô central, o uso de tratores, a soja verde.
Quando a mídia mostra um assentamento ressalta a pobreza, a ineficiência e diz:
“olha o atraso!”. As relações que promovem a igualdade não são lidas no nosso
imaginário como desenvolvimento, ainda é entendido como alta tecnologia. Uma
reprodução do velho modelo de modernização da agricultura da década de 1960.
A imprensa também não divulga os efeitos perversos do agronegócio. Quando
a mídia mostra as áreas desmatadas no Mato Grosso para a introdução da soja, a
morte da freira em Anapu, vítima dos madeireiros, a morte dos fiscais de Unaí no
combate ao trabalho escravo, apresenta-os como fatos isolados, um efeito sem
causa. Esses fatos não são relacionados ao agronegócio. O agronegócio é relacio-
nado somente com alta tecnologia.
Não é divulgado na mídia que a alta tecnologia é a mesma que esgota os
cursos d’água do rio São Francisco, que provoca desmatamento da Floresta Ama-
zônica, que incorpora imensos latifúndios na forma de grilagem, que reproduz
relações sociais atrasadas e que não respeita a função social da propriedade. A
relação não é passada para a opinião pública. “Parece que a idéia-força da igual-
dade não tem nenhum valor cognitivo na nossa vida. Tirar as pessoas da indigên-
cia, da pobreza, parece não ter nada a ver com desenvolvimento. Desenvolvimen-
to é gerar essa massa de mercadorias.” Quando os agricultores assentados saírem
da condição de indigência e começarem a produzir, mesmo que num primeiro
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
23

momento apenas a cesta de alimento que antes não tinham acesso, já é um grande
avanço. Entretanto, parece que isso não tem muita relevância.
O MDA é criticado por não ter uma política agrícola articulada para a agricul-
tura familiar. Sua política é baseada somente no crédito e, além do mais, visa
integrar a agricultura familiar ao agronegócio. “Acho que a ideologia da burocra-
cia do MDA é a de reproduzir o small farmer americano sem a política agrícola
americana; ou ainda, reproduzir o camponês europeu, sem a política agrícola
européia.” Os Estados Unidos possuem política agrícola com garantia de
comercialização da produção, sistema de support price e garantia na lei agrícola.
O Brasil tem o discurso de agricultura familiar baseado somente no fomento ao
crédito. “A Secretaria da Agricultura Familiar tem uma concepção muito
agronegócio de agricultura familiar. Eles acreditam que desenvolver a agricultura
familiar é torná-la parecida com o agronegócio.” Ao fazer isso, apenas 2% dos
estabelecimentos da agricultura familiar são viabilizados. A grande maioria dos 4
milhões de estabelecimento agrícolas familiares continua excluído do processo.
O discurso do MDA e do Mapa são bastante diferentes, mas, na prática, os
dois são bastante parecidos. Por esse motivo, o Mapa (e também a Confederação
Nacional da Agricultura – CNA) quer incorporar o setor familiar, unificar o Pla-
no Safra da agricultura num único ministério e trazer a agricultura familiar para a
sua dependência. Argumenta que a agricultura é uma só e que é o ministério mais
competente para tratar da questão. A CNA quer, inclusive, assumir a responsabi-
lidade sobre a previdência rural e retirá-la da Contag.
Nos últimos anos, a agricultura patronal recuperou a legitimidade perante a
sociedade. Houve reconhecimento pela sua contribuição na balança comercial e
pelo impacto econômico positivo provocado em algumas regiões. Contudo, o
reconhecimento veio acompanhado do crescimento de importância da agricultu-
ra familiar. Dessa forma, essa positividade associada ao tema da agricultura fami-
liar está sendo hoje disputada também pela agricultura patronal.
A agricultura familiar tornou-se base política importante para vários segmen-
tos do meio rural. Sua representação passou a ser disputada pela Organização das
Cooperativas Brasileiras (OCB), pela própria Confederação Nacional da Agricul-
tura (CNA) e pelos parlamentares mais vinculados à agricultura patronal. Sendo
assim, os ruralistas procuram evitar, a qualquer custo, que se consolide qualquer
idéia de contradição e de conflito entre a agricultura familiar e a agricultura pa-
tronal. O objetivo não é criar uma oposição, mas aproximar os dois públicos
num único ministério. Isso corresponde também à visão de organismos internaci-
onais que acham que as duas atividades têm suas vantagens comparativas e que o
grande desafio seria integrá-los num único modelo agrícola.
Atualmente, os padrões de representação da agricultura familiar não são mais
tão claros como no passado. Essa categoria era representada principalmente pelo
sindicalismo e pela Igreja e os campos de força eram bem definidos: trabalhadores
rurais, sindicatos, cooperativas, agroindústrias e latifundiários. Hoje, essa com-
posição de forças tornou-se muito mais complexa e se expressa em contornos
menos nítidos na hora de identificar as formas de representação. Existe uma dis-
puta evidente pela representação da agricultura familiar, e a representação desse
setor familiar não está garantida nem para o sindicalismo rural, nem para os
movimentos sociais.
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24

O MDA divulgou o PIB da agricultura familiar, um trabalho realizado pela


Fundação Instituto de Pesquisa Econômica (Fipe), e revelou que em 2003 as ca-
deias produtivas da agricultura familiar foram responsáveis por 10% do PIB na-
cional, o que corresponde a um valor adicionado de R$ 156 bilhões, representan-
do um terço do PIB do agronegócio. A pesquisa foi feita com a mesma metodologia
com que é estabelecido o PIB do agronegócio, mas o Mapa desqualificou a pes-
quisa dizendo que os dados não correspondiam à realidade. A CNA, para se con-
trapor aos dados, divulgou pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV),
com base nos dados do Censo Agropecuário de 1995/1996, dizendo que os
enquadráveis no Pronaf (representando 3,3 milhões de estabelecimento, 68% do
total brasileiro, que é de 4,8 milhões) contribuíram com apenas 23,6% do valor
bruto da produção total da agropecuária.
Além de evitar que se manifestem mais fortemente as contradições entre a agri-
cultura familiar e a agricultura patronal, o Mapa procura impedir que a agricul-
tura familiar se fortaleça. Talvez, por isso, menospreze a importância econômica
da agricultura familiar e busque, a todo o momento, afirmar que quem é produ-
tivo e eficiente é o setor patronal. Para o Mapa, os agricultores mais pobres deve-
riam ser objeto de políticas sociais.
A separação desses públicos em dois ministérios, nesse contexto, reconhece a
existência de dois projetos de desenvolvimento ou, pelo menos, a existência de
duas realidades divergentes no meio rural.
A realidade do setor familiar, do setor de subsistência, do
campesinato brasileiro, não se comunga, não se conjuga, não se
agrega, não se solidariza com o agronegócio. Ele pode ser
caudatário, subordinado, marginalizado, mas nunca o desenvolvi-
mento do agronegócio vai desenvolver o setor familiar. Isso é da
sua índole.

O agronegócio não precisa da agricultura familiar nem do ponto de vista econô-


mico, nem do ponto de vista técnico. Precisa apenas do ponto de vista da economia
política para criar relações eleitorais, mas isso seria um retrocesso ainda maior.
Não se trata, no entanto, de acabar com o agronegócio. É preciso acabar com
o estilo de agronegócio existente no Brasil, no qual o dono da terra tem poder
absoluto sobre a terra e sobre a força de trabalho. O agronegócio vai continuar
existindo como existe em outras partes do mundo, mas respeitando regras rígidas.
A posição de convivência entre as duas agriculturas não é unânime. Há opini-
ões que defendem a permanência de apenas uma agricultura. Alguns defendem
que deveria ser a agricultura familiar porque o agronegócio possui custos sociais e
ambientais muito elevados e não se sustenta economicamente, uma vez que as
dívidas do setor são sempre renegociadas. Outros defendem que deveria ser o
agronegócio, com alguns agricultores familiares incorporados, outros capacitados
para trabalharem no setor de serviços e os demais, objeto de políticas sociais.
Ainda não foi pedido à sociedade para fazer uma escolha entre a agricultura
familiar e a agricultura patronal, porque ambos têm aportado contribuições dife-
renciadas. Entretanto, é legitimo que a sociedade brasileira faça escolhas de como
ela imagina o meio rural brasileiro. O que se percebe é que existem muitas forças
contrárias impedindo que se consolide um projeto alternativo de desenvolvimento
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25

da agricultura familiar baseado nos princípios da agroecologia. Quando aparecem


iniciativas que percorrem o caminho alternativo, o establishment luta contra e ten-
ta inviabilizar a ampliação desses projetos.
As pessoas não acreditam que possa haver desenvolvimento rural
que não seja do modo antigo. O desenvolvimento está confundido
no imaginário da nossa elite dirigente como sendo aumento da
produção e da produtividade das oligarquias. Quando se pensa o
aumento da produção e da produtividade para realizar mudança de
relações sociais ou em simultâneo, daí não pode!

A seguir, realizaremos análise mais detalhada de alguns pontos específicos, nos


quais também se podem verificar algumas dissonâncias no discurso e nas práticas
adotadas pelo Mapa e pelo MDA. Serão trabalhadas mais especificamente a temática
da reforma agrária, do crédito rural e de negociações internacionais com o objeti-
vo de explicitar as divergências, contradições e, também, as convergências existen-
tes entre os dois ministérios nessas áreas.

Reforma agrária
O presidente Lula assumiu o governo tendo a reforma agrária como um dos
compromissos de campanha. Eram duas promessas: massificar o assentamento
de famílias e levar qualidade aos assentamentos já existentes por meio da melhoria
das condições de infra-estrutura e da assistência técnica, recuperando a capaci-
dade produtiva e a viabilidade econômica. O Programa Vida Digna no Campo
destaca a atualidade e a importância da reforma agrária para o desenvolvimen-
to rural sustentável:
A reforma agrária é reconhecida como condição para a retomada
do crescimento econômico com distribuição de renda e para a
construção de uma nação moderna e soberana. Ela promove a
geração de emprego e renda, a ocupação soberana e equilibrada do
território, garante a segurança alimentar, promove e preserva
tradições culturais e o meio ambiente, impulsiona a economia local
e o desenvolvimento regional (Brasil, 2003, p.7).

Entretanto, mesmo com as evoluções claras na proposta e a grande expec-


tativa dos movimentos sociais com um governo popular, a realidade mostra
que as dificuldades permanecem e os avanços são muito tímidos. O governo
federal assentou 117 mil famílias nos dois primeiros anos de governo, 80% da
meta estabelecida para o período. O número de ocupações de terras aumentou
48% em 2004, comparativamente ao mesmo período do ano anterior. MST e
Contag estimam em 240 mil o número de famílias acampadas esperando se-
rem assentadas em projetos de reforma agrária (Ferreira, 2005). Antigos pro-
blemas como restrição orçamentária e insuficiência de técnicos para apoiar os
projetos de assentamento e para prestar assessoria técnica também permane-
cem. O que se percebe é pouca efetividade das políticas agrárias, refletida na
pressão dos movimentos sociais e na continuidade dos conflitos agrários que,
com freqüência, culminam com assassinatos de trabalhadores rurais em várias
regiões do país.
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26

Em termos de entendimentos sobre reforma agrária existe uma grande diferen-


ça entre o MDA e o Mapa. O MDA reconhece a reforma agrária como um instru-
mento para alterar a estrutura fundiária e a estrutura agrária, com papel funda-
mental na democratização do acesso à terra e como elemento central de outro
projeto de desenvolvimento. A reforma agrária tem a capacidade, quanto mais
ampla for, de redefinir relações de poder e de padrões produtivos no campo.
O Mapa tem outra percepção sobre reforma agrária. A transformação do cam-
po deve vir com a intensificação do uso de tecnologias, ou seja, com a moderniza-
ção da agricultura. O governo deve investir na capacitação e na organização dos
agricultores familiares para que eles tenham mais capacidade de absorver
tecnologias e serviços de gerenciamento. Outro ponto crucial destacado é o acesso
ao crédito para aquisição de insumos, máquinas e equipamentos adequados à
realidade da agricultura familiar.
Na visão do Mapa, a agricultura familiar deve ser inserida em nichos de merca-
do, setores onde poderiam obter mais sucesso.
Se não dá para competir em commodities, milho, arroz, trigo, é
preciso buscar segmentos de agricultura, de agricultura orgânica, de
mel, de produtos em que a mão-de-obra consiga ser mais bem
remunerada do que é no mercado de commodities. Esse é um
grande desafio de inclusão.

O Mapa critica o MDA que, segundo ele, quer resolver o problema do desem-
prego nas cidades com reforma agrária, sugerindo que as pessoas que demandam
terra não possuem aptidão para a agricultura. Hoje a agricultura é feita com
investimento e alta tecnologia.
Nós não estamos falando de reforma agrária para agricultores, mas
para quem não tem trabalho. E o outro lado dessa questão é que
no começo do século a agricultura era feita com terra, hoje você
precisa de água. Você produz hoje sem terra... É claro que estou
exagerando. Mas Agricultura hoje é tecnologia. Agricultura hoje é
investimento. Agricultura hoje é business.

Para o Mapa, em vez de dar terra, é mais barato para a nação resolver o
problema da reforma agrária por outros caminhos. Cita como exemplo a cria-
ção de agroindústrias em pequenas e médias cidades e a criação de empregos no
setor de serviço (mecânicos, manicure e vendedores). Em algumas cidades do
Mato Grosso, onde o agronegócio tem grande importância, não existe mais
desemprego, pois o setor estimulou a criação de empregos em outros setores,
dinamizando a região.
Gente ganhando dinheiro e que está feliz da vida. Ninguém desem-
pregado e não são agricultores, quer dizer, não tem terra. Eu só
acho que a reforma agrária não é a solução para os problemas
como estão dizendo que é. Eu acho que o Brasil devia atacar este
problema de outro jeito.
O Mapa afirma ser mais barato criar emprego em cidades pequenas e médias
do que no campo, pois na cidade já existe infra-estrutura e o campo precisa ainda
de muito investimento.
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27

Outro exemplo é o de uma parceria entre uma empresa produtora de mamão


papaia do Espírito Santo e os agricultores de um assentamento do Rio Grande do
Norte. A empresa produtora de mamão exporta toda a produção para a Europa e
propôs um contrato de parceria com esses agricultores, se comprometendo em for-
necer a tecnologia de produção, assistência técnica e a garantia de comercialização.
Um grupo de aproximadamente 40 pessoas fez a parceria e o resultado foi bastante
positivo, melhorando a qualidade de vida.
Essa é a reforma agrária que nós temos que fazer. Então eu diria,
não é uma questão de se ficar contra. Tem que fazer. Mas não é
uma panacéia para todo mundo. E não é dar a terra e deixar o cara
lá. Você volta cinco anos depois e tem um só dono da terra. O mais
esperto acaba comprando a parte do outro.

Outro caminho apontado para se fazer a reforma agrária é a agregação de


valor aos produtos na própria propriedade, a partir da criação de agroindústrias
com pequenos grupos de agricultores. Esses agricultores poderiam produzir fru-
tas, grande potencial do Brasil, e industrializá-las (sucos, polpa, doces), agregan-
do valor aos produtos e ocupando a mão-de-obra familiar.
O Mapa apontou várias soluções possíveis, mas sempre utilizando alta tecnologia e
altos investimentos, deixando claro que não é uma opção para todos os agricultores. Os
agricultores excluídos deveriam ser capacitados para trabalharem no setor de serviços e
os demais, serem objeto de políticas sociais. O Mapa, assim como o setor patronal e
alguns setores da academia, possui um discurso que procura desqualificar os assenta-
mentos. Esses setores contrários tentam mostrar que os assentamentos não são produti-
vos, que existem vendas de lotes, que o governo tem custos muito elevados com essa
política e que os retornos são questionáveis. Os assentamentos são comparados,
freqüentemente, com favelas rurais. “Quando você busca associar a agricultura familiar
aos pobres que precisam de políticas sociais, está dizendo que quem é produtivo, quem
tem um papel no desenvolvimento é a agricultura patronal.”
Na visão do Mapa há uma postura tímida do governo em relação à resolução
do problema que envolve a questão agrária. Os governos, premidos por mobiliza-
ções sociais, ficam cercando os problemas, mas não tentam, efetivamente, seu
equacionamento.
No fundo minha sensação é a de que os governos têm tido dificulda-
des, ou pouca coragem, para enquadrar de modo efetivo o problema
da reforma agrária no Brasil. Então, se fica gerando investimento – o
FHC diz que foi o governo que mais incorporou gente nas proprie-
dades, que mais propiciou o acesso à terra na história – mas que fim
deu esses projetos de assentamento? Qual o efetivo benefício para as
famílias? Será que a reforma agrária é mais uma questão de distribui-
ção patrimonial do que de oportunidade ou de vocação para a
produção agrícola?

Para o MDA, há muitas forças contrárias à realização da reforma agrária, mas


nos locais em que ela ocorre, principalmente onde tem um mínimo de infra-estru-
tura e organização social, as mudanças são significativas, inclusive para a região
ou município que passam a enxergar a reforma sob outra perspectiva.
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28

A disputa político-ideológica só se sustenta, e por isso é muito


forte, porque tem que impedir o avanço do processo, porque o
avanço do processo desmonta os argumentos ideológicos
preconceituosos em relação aos assentados da reforma agrária.
Então, a direita sabe o que significa o avanço da reforma agrária. É
um questionamento no plano geral da população urbana, mas
especialmente nas regiões onde ela ocorre. Várias pesquisas demons-
tram como a população local muda sua opinião em relação aos
assentados da reforma agrária.

Segundo o MDA, as experiências existentes mostram que, mesmo com todas as


dificuldades e até mesmo com os equívocos cometidos na implementação da políti-
ca agrária, a grande maioria dos assentamentos produziu novos horizontes de vida
e possibilitou melhorias nas condições de vida da população beneficiária, impactando
positivamente a região. O estudo “Impactos dos Assentamentos: um estudo sobre o
meio rural brasileiro” (Leite, Cintrão e Cararine, 2004) mostra que a conquista da
terra possibilitou a retomada de trajetórias pessoais interrompidas e estabeleceu
novos espaços de sociabilidade e novas formas de inserção econômica, política e
social desses atores, alterando, em muitos casos, o próprio poder local.
O MDA ressalta que se esses assentamentos, mesmo com todas as dificuldades,
já produziam resultados positivos, ao ampliar o acesso ao crédito, garantir a assis-
tência técnica, possibilitar alternativas de comercialização e garantir a produção
com seguro rural,7 além de promover a integração dessas ações, é possível visualizar
um novo programa de desenvolvimento rural. “É claro que se a gente tivesse uma
escala maior da reforma agrária esse processo seria mais perceptível.” Fica claro
que existe um comprometimento maior do governo federal na realização da refor-
ma agrária, contudo o resultado não está sendo o esperado. As metas estabelecidas
não são cumpridas e as dificuldades permanecem.
Os principais problemas enfrentados para a desapropriação de terras para fins
de reforma agrária permanecem. Pela legislação em vigor (Constituição Federal de
1988) a função social da propriedade depende do cumprimento simultâneo de
três requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos re-
cursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das dis-
posições que regulam as relações de trabalho. Para as desapropriações, entretanto,
é levado em conta somente o grau de utilização da terra, ou seja, sua eficiência
econômica. Os dois últimos requisitos ainda precisam ser regulamentados e estão
em discussão no Congresso, mas sofrem muita pressão da bancada ruralista.
Sobre a desapropriação por não cumprimento da legislação trabalhista existe
proposta de regulamentação em andamento, aprovada em primeiro turno na
Câmara dos Deputados, que determina a desapropriação, para fins de reforma

15
Em 2004 foi criado o Proagro Mais, uma antiga reivindicação dos movimentos sociais. Esse seguro é voltado para os
agricultores que realizaram financiamento de custeio agrícola no Pronaf e prevê a cobertura de 100% do valor financiado
e de 65% da renda líquida estimada do empreendimento. Caso a perda seja inferior a 30%, não haverá ressarcimento.
O seguro prevê contribuição obrigatória de 2% sobre o valor coberto e a adesão é obrigatória para as culturas zoneadas
(algodão, arroz, feijão, milho, soja, sorgo, trigo e maçã) e para banana, caju, mandioca, mamona e uva. Assim, mais de
95% dos financiamentos de custeio agrícola realizados pelo Pronaf serão cobertos pelo seguro.
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29

agrária, de terras onde for constatado judicialmente o uso de trabalhadores em


situação análoga à escravidão. No entanto, essa emenda precisa ser aprovada ainda
em segundo turno e depois voltar ao Senado, devido às alterações feitas na Câmara.
A proposta sofreu forte pressão contrária da bancada ruralista que conseguiu alterá-
la em vários pontos. A última alteração foi a retirada da preferência para que as
terras desapropriadas fossem destinadas às vítimas do trabalho escravo nelas encon-
tradas. Anteriormente, já havia sido incorporada a determinação de que a desapro-
priação só poderia ocorrer depois do processo transitado em julgado (Ferreira, 2005).
Outro ponto que está em debate e causa muita polêmica é a definição dos
índices de produtividade. Atualmente, os índices de produtividade utilizados para
a desapropriação das terras são de 1975. Os movimentos sociais fizeram várias
reivindicações ao governo Lula com o intuito de revê-los, porém as tentativas de
alteração são sempre vetadas pelo Mapa. O MDA apresentou em abril de 2005
uma tabela atualizada dos índices de produtividade agropecuária que não foi
bem aceita pelo setor ruralista. A Sociedade Rural Brasileira (SRB), através de seu
presidente, reagiu negativamente à nova tabela, afirmando que “buscam-se for-
mas de desapropriar fazendas [...] para insistir num modelo de reforma agrária
ultrapassado, caro e que infelizmente deu absolutamente errado”. Segundo a vi-
são da União Democrática Ruralista, a proposta do MDA seria mal-intenciona-
da, pois foi apresentada num momento em que os produtores rurais passavam
por dificuldades em função da seca e da queda dos preços das commodities agrí-
colas. Para o MDA, a reação contrária ocorreu porque se os novos índices entra-
rem em vigor uma parte expressiva da pecuária extensiva brasileira poderá ser
declarada como improdutiva. Isso, o setor patronal não admite.
Na opinião do ministro do desenvolvimento agrário há ainda uma parcela da
sociedade que percebe a reforma agrária como um problema e critica seus defen-
sores, atribuindo-lhes uma devoção arcaica e inexplicável.
Porém, o que não faz nenhum sentido no Brasil do século 21 é a
lógica anacrônica da concentração de terra, plantada nas capitanias
hereditárias, enraizada nas sesmarias e que frutifica ainda hoje. Se a
grande propriedade produtiva cumpre um papel decisivo, gerando
divisas e ativando a economia, a grande propriedade que pouco ou
nada produz ofende a noção de justiça social que a própria Consti-
tuição abriga. Esse é o verdadeiro arcaísmo. Reforma agrária
realizada dentro da democracia, com respeito à lei, é um instru-
mento civilizatório, que partilha terra e cidadania. Não é proble-
ma. Faz parte da solução (Correio Braziliense, 28 maio de 2005).

Crédito Rural
Segundo o Plano Agrícola e Pecuário 2005/2006, o governo federal irá destinar
R$ 53,35 bilhões para a agricultura na próxima safra. Do total, R$ 44,35 bilhões
serão aplicados na agricultura empresarial. Nas últimas três safras a oferta de
crédito rural cresceu 61% e as taxas de juros anuais permanecem praticamente
inalteradas, conforme pode ser observado na Tabela 3. Nos programas de investi-
mento a oferta de crédito, passou de R$ 5,75 bilhões para R$ 11, 15 bilhões, um
aumento de mais de 90%. Destaca-se que o Moderfrota recebe praticamente a
metade dos recursos destinados para investimento: R$ 5,5 bilhões.
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30

Tabela3: Crédito rural, recursos e fontes de financiamentos das safras 2003/2004, 2004/
2005 e 2005/2006 (R$ milhões)

FONTE DE RECURSOS E SAFRA 2003/2004 SAFRA 2004/2005 SAFRA 2005/2006


PROGRAMAS
PROGRA- EXECU- PROGRA- VAR% PROGRA- VAR%
MADO TADO MADO 04/03 MADO 05/04

1. Custeio e Comercialização 21,400 26,447 28,750 34,3 33,200 15

1.1. Juros Controlados 16,400 19,144 17,700 7,9 20,900 18

1.1.1. Recursos. Obrigatórios – 11,000 12,299 11,500 4,5 15,500 35


Manual do Crédito Rural (MCR) 6-2
(8,75% a.a.)

1.1.2. Poupança Rural – MCR 6-4 3,900 5,537 4,500 15,4 4,000 (11)
(8,75% a.a.)

1.1.3. Proger Rural (8,0% a.a.) 700 405 700 0,0 400 (43)

1.1.4. Fundo da Defesa da Economia 800 250 1,000 25,0 1,000 0,0
Cafeeira (Funcafé) (9,5% a.a.)

1.2. Juros Livres 5,000 7,303 11,050 121,0 12,300 11

1.2.1. Poupança Rural - MCR 6-4 3,000 3,952 5,750 91,7 5,000 (13)

1.2.2. Recursos Livres (demais 1,000 2,038 2,300 130,0 2,300 0,0
bancos)

1.2.3. Banco do Brasil (BB) - Aval de 1,000 1,313 2,000 100,0 5,000 150
Cédula do Produto Rural (CPR)

1.2.4. BB – Fundo de Amparo ao 0 0 1,000 - - -


trabalhador (FAT) Agroindústria

2. Investimento 5,750 7,672 10,700 86,1 11,150 4

2.1. Moderfrota 2,000 2,020 5,500 175,0 5,500 0,0

2.2. Finame Agrícola Especial 500 1,778 500 0,0 500 0,0

2.3. Proger Rural (8,0% a.a.) 250 249 100 (60,0) 100 0,0

2.4. Demais Programas BNDES 2,000 1,729 2,600 30,0 3,050 17

2.5. Fundos Constitucionais 1,000 1,242 2,000 100,0 2,000 0,0

3. Agricultura Empresarial (1 + 2) 27,150 34,120 39,450 45,3 44,360 12

4. Agricultura Familiar 5,400 4,489 7,0 29,6 9,0 28,6

5. Agricultura Total 32,550 37,955 46,45 42,7 53,35 14,85

Fonte: PAP 2004/2005; PAP 2005/2006.

A Tabela 3 nos mostra, também, que a maioria dos recursos do Mapa é desti-
nado ao custeio – na safra 2005/2006 serão destinados R$ 33,2 bilhões. Outro
destaque é para os recursos de custeio com juros controlados, que representam o
maior volume de recursos, R$ 20,9 bilhões. Comparativamente à safra 2003/
2004, aumentou cerca de 28%. Os juros livres de mercado aumentaram 132%
nesse mesmo período, de R$ 5 bilhões para R$ 12,3 bilhões. Vale ressaltar que o
orçamento executado do Mapa é maior que o programado em praticamente to-
das as destinações orçamentárias. O mesmo não se verifica com os créditos desti-
nados à agricultura familiar que, devido a uma série de problemas não consegue
executar todos os recursos programados.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
31

O volume de recursos reservados para os agricultores familiares aumentou con-


sideravelmente no governo Lula. Na safra 2003/2004 foram destinados R$ 5,4
bilhões e na safra 2005/2006 serão R$ 9 bilhões, um aumento de aproximada-
mente 67%. Além do aumento de recursos, aumentou também o número de con-
tratos e os valores do crédito aplicados no Pronaf (ver Tabela 4). O número de
contratos passou de 953 mil em 2002 para 1.570 mil contratos em 2004, um
aumento de 65%, embora isso não signifique atendimento a igual número de
agricultores, pois muitos se beneficiam com mais de um contrato ao longo do
ano. Ainda assim, mais pessoas têm a possibilidade de acessar crédito. É impor-
tante também perceber que esse crescimento se deu em todas as regiões do Brasil,
com destaque para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que possuem os
maiores índices de pobreza rural.
Antes de observarmos a Tabela 4 é importante conhecermos as modalidades de
crédito do Pronaf:16
:.: Pronaf A – voltado para assentados da reforma agrária e destinado à estruturação
da unidade produtiva;
:.: Pronaf B – linha de microcrédito para combater a pobreza no campo. É desig-
nado para agricultores com renda bruta familiar anual de até R$ 2 mil. Dei-
xou de ser destinado exclusivamente aos agricultores familiares do semi-árido
na safra 2003/2004 e foi estendido à região Norte e aos bolsões de pobreza nas
demais regiões do país;
:.: Pronaf C – custeio e investimento para agricultores com renda anual entre R$
2 mil e R$ 14 mil;
:.: Pronaf A/C – custeio para famílias assentadas que já receberam o financiamen-
to do Grupo A;
:.: Pronaf Grupo D – custeio e investimento para agricultores com renda anual
entre R$ 14 mil e R$ 40 mil;
:.: Pronaf E – custeio e investimento para agricultores com renda anual entre R$
40 mil e R$ 60 mil.

16
Além das seis modalidades de Pronaf relacionadas, existem as seguintes linhas de crédito: Pronaf Agroindústria, Pronaf
Florestal, Pronaf Alimentos, Pronaf Semi-Árido, Pronaf Agroecologia, Pronaf Mulher, Pronaf Jovem, Pronaf Pesca, Pronaf
Agregar, Pronaf Pecuária Familiar, Pronaf Turismo Rural e Pronaf Máquinas e Equipamentos.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
32

Tabela4: Número de contratos e montante do crédito rural do Pronaf por enquadramento


e ano fiscal

ENQUADRAMENTO 2002 2003 2004

N. DE MONTANTE N. DE MONTANTE N. DE MONTANTE


CONTRATOS (R$ 1MIL) CONTRATOS (R$ 1MIL) CONTRATOS (R$ 1MIL)

Exigibilidade Bancária 53.923 196.485,3 4.263 20.313,8 94.787 466.714,4


(sem enquadramento)

Grupo A 41.644 560.350,1 45.292 592.405,8 35.457 451.620,5

Grupo A/C 13.966 32.448,6 21.510 53.786,3 19.368 47.716,9

Assentados da RA 55.610 592.798,7 66.802 646.192,2 54.825 499.337,4


(Grupo A + A/C)

Grupo B 168.910 113.325,95 150.792 147.189,8 394.616 391.596,4

Grupo C 410.414 935.768,5 543.939 1.150.358,0 626.122 1.444.091,6

Grupo D 264.390 1.391.953,1 344.058 1.897.143,8 350.111 2.141.854,1

Grupo E - - 28.257 289.454,6 50.991 662.441,8

Identificado/Não - - 1 14.029,3 6 32,8


Registrado

Agroindústria Familiar - - - - 1 189,3

TOTAL 953.247 3.230.331,5 1.138.112 4.164.681,6 1.571.459 5.606.257,9

Fonte: www.pronaf.gov.br.

A Tabela 4 nos mostra, ainda, que em 2004 houve redução dos contratos e dos
recursos determinados para os assentados da reforma agrária – apenas cerca de R$
500 milhões, o que representa 9% do total do crédito aplicado no período, que
foi de R$ 5,6 bilhões. Os demais grupos (B, C, D, E) tiveram um aumento de
recursos nesse período. Os Grupos C e D possuem a maior destinação de recursos,
somando, em 2004, 64% do total. Também, é o público que tem o maior núme-
ro de beneficiários, representando, em 2004, 62% dos contratos. O Grupo B foi
o que mais apresentou crescimento, tanto no montante de recursos como no nú-
mero de contratos – mais do que o dobro de 2003 para 2004. No entanto, o
volume de recursos em 2004 foi menor que o reservado para o Grupo E, o público
mais capitalizado do Pronaf.
O Mapa possui uma dotação orçamentária bem maior que o MDA, conforme
já demonstrado anteriormente. Todavia, o MDA argumenta que eles têm uma
capacidade maior de fazer política. “Nós operamos muito mais créditos que
impactam: assistência técnica, crédito, apoio a projetos de comercialização, de
capacitação. Nós temos uma capacidade, um montante de recursos, muito maior
do que o Mapa para operar isso. Isto não aparece.” A justificativa é que o Mapa
tem uma estrutura ministerial maior, que consome grande volume de recursos
para o custeio. Se forem comparados os recursos discricionários, usados na
operacionalização de políticas, o MDA tem mais recursos.
Há, entretanto, uma diferença relevante no que se refere à taxa de juros. Em-
bora o MDA receba um montante menor de recursos, a maioria deles tem juros
subsidiados, o que significa um aporte maior do tesouro para essas linhas de cré-
dito. No Mapa, as taxas médias de juros são de 8,75% e a maioria dos recursos
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
33

tem taxas livres de mercado, disponível no mercado financeiro. Não se pode fazer
uma comparação apenas do montante destinado para um ou outro ministério,
deve-se observar também quanto o tesouro disponibiliza de crédito para essas
diferentes linhas de crédito. Assim, existe maior investimento por parte do gover-
no em créditos destinados para a agricultura familiar.
Outro ponto que merece destaque é a inadimplência. Segundo o MDA, se
forem comparados os dados de inadimplência, a agricultura patronal apresenta
uma taxa de inadimplência maior do que a agricultura familiar. As dívidas da
agricultura empresarial foram renegociadas nos últimos anos (Pesa, Pesinha) e
esse subsídio custa R$ 3 bilhões por ano para o tesouro. A agricultura patronal
não tem subsídios na taxa de juros, mas, por outro lado, tem um subsídio consi-
derável nos juros das dívidas. Esse é um dado relevante e mostra que a agricultura
patronal, além da fragilidade social e ambiental, apresenta pouca sustentabilidade
econômica em momentos adversos. “Quando tem crise eles querem o apoio pú-
blico, quando eles estão bem, fazem apologia das regras do mercado.”
Os créditos destinados ao Mapa e ao MDA são oriundos praticamente das
mesmas fontes financiadoras, que vem se diversificando cada vez mais (FAT, Fun-
dos Constitucionais, Orçamento Geral da União, Exigibilidades Bancárias,
Funcafé). Existe grande disputa entre os ministérios na hora da alocação dos re-
cursos. “Por que a CNA e o Mapa divulgaram estudos mostrando que o crédito
aplicado na agricultura patronal era mais eficiente do que na agricultura familiar?
Porque está em jogo uma disputa por recursos.” Por sua vez, o MDA divulgou os
dados do PIB da agricultura familiar e o ministro Roberto Rodrigues desqualificou
a pesquisa, conforme visto anteriormente. Fica explícita a disputa e a defesa de
interesse de ambos os setores.
O Pronaf, como programa de crédito, teve uma avaliação bastante positiva,
pois ampliou os recursos e o número de contratos, com mais agricultores atendi-
dos, conforme dados já apresentados. Há preocupação por parte do MDA de
fazer chegar os recursos às regiões mais carentes e às pessoas menos favorecidas.
Foram feitos esforços para simplificar os procedimentos bancários e melhorar as
condições de acesso às linhas de crédito.
Contudo, muitas dificuldades ainda persistem. Os problemas burocráticos e as
dificuldades operacionais dos bancos ainda funcionam como barreiras. O Pronaf
é regido pelo Banco Central e vinculado à legislação que rege o crédito comum, o
que aumenta a burocracia e não leva em conta as especificidades do agricultor
familiar. Muitos agricultores não possuem os documentos básicos exigidos, pro-
vocando atraso ou impedindo o acesso ao crédito. As garantias exigidas pelos
bancos estão sendo equacionadas com a criação de fundos rotativos, mas ainda
representam um problema para os pequenos agricultores. A agência bancária tem
um poder muito grande para avaliar os projetos e estabelecer os riscos, o que faz
com que projetos alternativos (tais como o Pronaf Agroecologia, Pronaf Jovem,
Pronaf Mulher) sejam considerados de alto risco e encontrem muita dificuldade
para serem implementados.
Além das dificuldades na execução dos créditos do Pronaf, o sistema adotado
se estrutura numa lógica por produto, reproduzindo a lógica tradicional da polí-
tica de crédito. O crédito liberado é para financiar o plantio de uma cultura espe-
cífica e o agricultor tem pouca autonomia na escolha da cultura e no uso do
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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recurso, pois isso é definido previamente no projeto. Existe assistência técnica na


hora da realização, mas nem sempre há acompanhamento técnico em sua execu-
ção ou garantia de comercialização. O agricultor, muitas vezes, é obrigado a se
submeter aos atravessadores reduzindo os lucros e aumentando os riscos de se
tornar insolvente.
A comercialização é apontada como a principal dificuldade enfrentada pela
agricultura familiar, especialmente nos assentamentos. O Pronaf não tem instru-
mentos que garantam a comercialização da produção. Essa política que prioriza o
crédito é mais adequada aos agricultores já integrados ao mercado, o que não é a
realidade de grande parte dos beneficiários do Pronaf. O Plano Safra, além de
financiar a produção, deveria intervir na comercialização, criando instrumentos
para que o agricultor comercialize sua produção e tenha garantia de preços dos
produtos. É preciso investir na criação de mercados específicos. Um exemplo a ser
seguido é o Programa de Aquisição de Alimentos realizado pela Conab, apesar de
possuir abrangência muito limitada pela falta de recursos.
Outra crítica dirigida ao Pronaf relaciona-se com a falta de uma proposta
diferenciada de desenvolvimento. O Pronaf disponibiliza crédito para a agricul-
tura familiar, utilizado para a reprodução do sistema convencional e do modelo
hegemônico. A agroecologia é uma dentre as tantas linhas de financiamento exis-
tentes no Pronaf e, ainda assim, introduzida recentemente. Não há estratégia de
transformação do setor rural em um novo modelo tecnológico. Ainda não existe
um direcionamento do crédito e da assistência técnica para a agroecologia confor-
me preconiza a nova política de Ater.
O grande desafio do Pronaf é trabalhar de forma sistêmica. Além do crédito,
pensar o seguro da produção, a assistência técnica qualificada e a comercialização
da produção, sempre numa lógica coletiva de fortalecimento dos grupos locais e
do trabalho familiar e respeitando as especificidades da agricultura familiar. Se
não forem alteradas essas forças, a agricultura familiar vai continuar como um
setor secundário diante da força apresentada pelo agronegócio. Para que tenha-
mos um projeto alternativo é necessário buscar outra idéia de desenvolvimento,
alterar as relações de poder e democratizar o acesso.
Novidade introduzida pelo governo Lula, a diversificação das linhas do Pronaf
busca atender públicos específicos (jovem, mulher, semi-árido, agroecologia, pes-
ca, entre outros). Na verdade, essas linhas possibilitam a elevação do teto de ou-
tros Pronafs, com taxas de juros, carência e limites diferenciados, mantendo os
mesmos critérios de renda. A diversificação de linhas de crédito e o reconhecimen-
to de públicos específicos dentro da agricultura familiar são importantes politica-
mente, mas, na realidade, não têm funcionado a contento. As dificuldades de
operacionalização são imensas e vão desde dificuldades com os bancos na libera-
ção do crédito até a falta de assistência técnica específica para a formulação e
acompanhamento dos projetos.
Proposta para superar as dificuldades e os entraves existentes com as agências
bancárias na operacionalização do crédito, a mudança das normas de crédito ru-
ral cria regras próprias para o Pronaf e o torna menos burocrático e mais adapta-
do à realidade e à diversidade da agricultura familiar. Outra proposta é fazer com
que o crédito deixe de operar pelo sistema de crédito convencional e opere via
Conab. “Aí a Conab pode cumprir um papel fundamental, do chamado banco de
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
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segunda linha. Nós temos institucionalidade para isso, legalidade e formatação


jurídica que permite que trabalhemos como um banco.” Conforme destacado
anteriormente, a Conab já opera com instrumentos de política que não são vincu-
lados às agências bancárias. Entretanto, os bancos já se mobilizam e pressionam
para que o Programa de Aquisição de Alimentos da Conab passe a ser operado via
agências bancárias, retirando da Conab a operacionalização do crédito. São no-
vamente as forças contrárias tentando impedir que o novo apareça e que as rela-
ções de poder se alterem.

Negociações Internacionais
As negociações agrícolas ganham relevância na agenda da política externa brasi-
leira. O Brasil participa atualmente de diversos fóruns de negociação. As negocia-
ções agrícolas se tornaram o foco prioritário do debate e a liberalização do comér-
cio agrícola, o tema no qual as discussões são mais intensas e as posições mais
divergentes. O Brasil possui interesses claramente ofensivos a área de negociações
agrícolas, defendendo maior liberalização da agricultura.
As negociações agrícolas ocorrem em três fóruns: Organização Mundial do
Comércio (OMC), Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e União Européia
– Mercado Comum do Cone Sul (UE-Mercosul). Na Alca as negociações agrícolas
estão paradas. Já no Acordo UE-Mercosul as tentativas de negociação existentes
não são suficientes para fazer avançar os acordos. Na OMC, o acordo agrícola
está estruturado em cima de três pilares: liberalização do mercado, apoio interno
e subsídios às exportações. Essas negociações envolvem debates delicados, refle-
tem posições divergentes dos diversos países no âmbito internacional e tornam-se,
freqüentemente, antagônicas e conflituosas. Nas últimas rodadas de negociações
da OMC não se tem conseguido avançar e chegar a um acordo.
O Brasil tinha tradicionalmente nas negociações agrícolas posição hegemônica
de liberalização de mercado. Com a participação do MDA na agenda de negocia-
ções, outros temas passam a ser incluídos . Novos temas como a segurança ali-
mentar e os mecanismos de proteção para a agricultura familiar mostram a diver-
sidade da agricultura brasileira, mas também trazem consigo a existência de posi-
ções divergentes. As contradições percebidas em outras áreas de disputa nos minis-
térios podem conviver, mas no tema das relações internacionais o mesmo não
acontece. Nas negociações internacionais é preciso a tomada de posição única,
defendida nos fóruns adequados. Essa característica peculiar das negociações in-
ternacionais torna mais conflituosa a defesa da posição a ser adotada, fazendo
refletir de forma mais acirrada, nos fóruns de discussão e nos documentos produ-
zidos, os antagonismos existentes entre os ministérios.
As posições divergentes se expressam muito fortemente em vários aspectos.
O Mapa tem um entendimento diferenciado do MDA em relação ao papel que
o mercado internacional pode cumprir para a agricultura, mais explicitamen-
te, para a segurança alimentar. Para o Mapa, o mercado internacional provê a
segurança alimentar. O ministério defende a redução de tarifas e a abertura de
mercado, baseado na teoria das vantagens comparativas, o que melhoraria o
bem-estar do consumidor urbano porque permitiria uma redução de preços. O
MDA defende justamente o contrário, isto é, que a defesa do mercado interno
é uma pré-condição para a segurança alimentar. Segundo a lógica do Mapa, se
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
36

faz necessário desproteger o mercado interno. A abertura para o comércio in-


ternacional permitiria um acesso àqueles produtos que eventualmente não são
produzidos internamente.
Além disto, há outra característica muito peculiar no caso brasileiro – a garantia
da rentabilidade do agronegócio. Na visão do MDA, “atualmente o agronegócio
só tem um cenário na política internacional: ou ele ganha muito ou ele ganha
pouco, mas ele sempre ganha”. O Brasil é um grande exportador mundial dos
produtos do agronegócio e possui uma competitividade muito grande. Desse modo,
a desregulamentação e a liberalização desses produtos se coadunam com os interes-
ses do agronegócio. Como o setor age em defesa de seus próprios interesses e não
segundo os interesses mais gerais do país, ele tenciona por qualquer tipo de
liberalização. E sempre tende a defender que a liberalização é um ganho para o
agronegócio, mesmo que eventualmente seus ganhos sejam pequenos ou irrisórios.
O cenário de abertura de mercados exerce uma tensão forte e não somente
sobre a agricultura. O agronegócio pressiona também a abertura de outros seto-
res, os chamados setores novos (serviços, investimentos, propriedade intelectual
etc.), a partir de dois motivos principais: na lógica liberal, a abertura viabilizaria
importações de insumos e de serviços mais baratos, ou seja, reduziria os custos da
agricultura e aumentaria a competitividade; e aumentaria o poder de barganha
nas negociações internacionais, principalmente com os europeus, em razão do
interesse por esses setores novos. Segundo essa lógica, o Brasil se beneficiaria com
a liberalização da agricultura, mas os europeus, por outro lado, se beneficiariam
com a liberalização dos setores novos.
Na área de acesso ao mercado, onde as discussões são mais intensas, o MDA
defende posição divergente em relação ao Mapa – o tratamento especial diferencia-
do e o estabelecimento de salvaguardas especiais, proposta essa já incorporada pelo
G-20.17 No acordo agrícola está em negociação o tratamento especial diferenciado,
pelo qual cada país assume os compromissos da OMC conforme sua condição de
desenvolvimento. Aos países em desenvolvimento é dada a possibilidade de um
tratamento especial diferenciado com algumas flexibilidades. Logo, esses países não
precisam assumir tantos compromissos quanto os países desenvolvidos.
O MDA defende o tratamento especial diferenciado para alguns produtos con-
siderados importantes para a agricultura familiar e para a segurança alimentar.
Assim como todos os países em desenvolvimento, o Brasil tem a possibilidade de
proteger a entrada de alguns produtos considerados especiais através de políticas
tarifárias. Essa política de proteção não possui custo operacional, o único dispên-
dio é administrativo e consiste no controle dos produtos pela receita federal. Se-
gundo as regras da OMC, o padrão de proteção não pode ser aumentado. O
estabelecimento de regras de proteção específicas para os países em desenvolvi-
mento estão em debate, mas se o Brasil não exercer seu direito à proteção, infeliz-
mente, não poderá exercê-lo posteriormente. “Temos defendido muito a idéia do

17
Na rodada em Cancún, por uma séria de razões, criou-se o G-20, grupo de países que têm interesses diversos. O G-20
congrega interesses em alguns casos contraditórios sobre a própria liberalização agrícola, principalmente na área de
acesso a mercados. O G-20 é um Brasil ampliado, porque tem desde países extremamente ofensivos, como a Argentina,
que querem abrir mercado, até países como a Índia e a China, que querem proteger o seu mercado na agricultura. O G-
20 é reconhecido como um grupo que consegue conciliar as duas linhas.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
37

direito à proteção. Mesmo nos produtos em que não se tenha problema iminente,
mesmo que sejamos competitivos, como no caso do leite, que passou a ser expor-
tado, devemos ter o direito à proteção”, argumenta o MDA.
As contradições e as particularidades da realidade rural brasileira tornam mais
difíceis a compreensão sobre o posicionamento defensivo adotado pelo Brasil nes-
ses fóruns internacionais. Em parte, isso ocorre pela coexistência de uma agricul-
tura pujante, através da força do agronegócio, e das diversas necessidades e pro-
blemas enfrentados pelos outros setores, dentre eles, a agricultura familiar. Não
por acaso, os americanos tencionaram muito na Conferência da OMC de Cancún
(2003) alegando que o Brasil deveria perder a condição de tratamento especial
diferenciado na agricultura. Eles argumentaram que o Brasil é uma grande força
na agricultura mundial e não deveria requerer tratamento especial. Os europeus
têm o mesmo posicionamento no Acordo UE-Mercosul.
O outro mecanismo de proteção defendido pelo MDA é o estabelecimento de
salvaguardas especiais. Segundo o entendimento do MDA, o Brasil até pode acei-
tar a redução de tarifa em alguns produtos, mas precisa ter a salvaguarda para
voltar à tarifa original no momento que achar conveniente. Atualmente, para que
se comprove que a entrada de determinado produto prejudica algum setor especí-
fico é necessário mover um processo interno e convencer o conselho da OMC
através da abertura de um painel que possibilite comprovar o prejuízo. É um
processo demorado e caro. O painel do algodão, por exemplo, custa para o setor
privado US$ 2 milhões. Nas disputas junto à OMC o Brasil já ganhou várias vezes
e em várias instâncias, inclusive na disputa do algodão. Mesmo assim, os Estados
Unidos dizem que não vão mudar sua política para o algodão. Nesse caso especí-
fico, a OMC admite que o Brasil pode retaliar os Estados Unidos em outro setor,
mas não se pode negar a dificuldade de se retaliar um país com a força dos Esta-
dos Unidos. Por essa razão, o MDA defende um processo anterior que previna o
dano através do estabelecimento de salvaguardas.
Na OMC, as negociações de direito à proteção não são feitas para um país
individualmente, mas para a categoria dos países. A proposta elaborada pelo Consea
sobre tratamento especial diferenciado, discutida internamente e em busca de apoio
de outros países em desenvolvimento, caso seja aprovada na OMC servirá para
todos os países em desenvolvimento. Assim, atingirá o nosso mercado também,
especialmente o do agronegócio. Se a medida passar a valer, alguns países como a
China e a Índia, compradores da soja brasileira, ou os países africanos que com-
pram frango do Brasil, poderão aplicar salvaguardas sobre esses produtos da expor-
tação brasileira. Nesse sentido, a proposta, ao buscar estabelecer alguns mecanis-
mos de defesa para a política agrícola brasileira, favorecendo a agricultura familiar,
encontra no próprio Brasil um outro setor que é prejudicado – o do agronegócio.
Essa é uma discussão muito complexa que expressa as contradições brasileiras.
O MDA justifica o posicionamento destoante em relação ao Mapa com dois
argumentos principais. Primeiro, alega que internacionalmente nunca foi mostra-
do o rural que de fato existe no Brasil. O que aparece é apenas uma versão, a do
agronegócio. Depois, argumenta que o Mapa sempre fez a política internacional
e, por sua vez, sempre mostrou as partes e defendeu as posições que lhe interessa-
va. Apenas mais recentemente o MDA passou a ter incidência na política interna-
cional, defendendo os interesses dos agricultores familiares.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
38

O Mapa é contrário ao estabelecimento de produtos especiais e de mecanismos


de salvaguardas. Defende que os instrumentos têm eficácia restrita à contenção de
importações. Para o ministério, a designação de “produtos especiais” é totalmen-
te ineficaz no caso de produtos em que o Brasil é exportador líquido, pois nenhu-
ma elevação de tarifa alteraria as condições de mercado interno (formação de
preços) desses produtos (Maluf, 2005).
Sobre as tarifas de importação, o Mapa sustenta que a redução das tarifas
brasileiras contribui para que as distorções à produção e ao comércio sejam
reduzidas de forma importante pelos compromissos que vierem a ser acorda-
dos, que incluiriam a eliminação dos subsídios às exportações, a redução subs-
tancial do apoio interno e a melhoria no acesso a mercados dos países desen-
volvidos. Lembra que mais de 80% das importações de produtos agrícolas
feitas pelo Brasil já se realizam com tarifa zero em virtude dos acordos do
Mercosul (Maluf, 2005).
O Mapa sugere considerar que os compromissos de redução de tarifas se darão
com base nas tarifas consolidadas, e não nas tarifas praticadas, o que dá grande
margem de manobra para manter o atual nível tarifário praticado. Para casos
específicos, como algumas linhas tarifárias do leite, propõe a acomodação dentro
do conceito de “produtos sensíveis”, ao qual todos os membros da OMC têm
acesso. Além disso, a margem existente entre as tarifas consolidadas e as pratica-
das – junto com os demais componentes de um futuro acordo – torna desnecessá-
ria a necessidade de o Brasil recorrer ao mecanismo das salvaguardas especiais
(Maluf, 2005).
O Mapa defende a liberalização de mercado respaldado no argumento de que
o acesso ao mercado vai ajudar a desenvolver o país. Esse posicionamento não é
compartilhado pelo MDA Em sua defesa, alega que essa crença nem sempre é
verdadeira, e que em alguns aspectos a abertura seria ruim para o desenvolvimen-
to do país. Como exemplo, cita que o superávit da balança comercial relativo à
soja, interfere largamente na política de reforma agrária, com impacto sobre o
preço da terra, encarecendo seu valor. Ademais, a concentração da produção pro-
voca êxodo rural e degradação do meio ambiente. É uma imbricação claramente
contraditória, porque o sucesso de um lado é o problema da política para o outro.
O MDA, por sua vez, reconhece a importância do comércio internacional
para a agricultura e defende o acesso ao mercado internacional, assim como o
fim dos subsídios distorcivos, tal qual o Mapa, embora seja a favor do subsídio
para quem precisa. O MDA, como o Mapa, critica a política agrícola comum
européia, por ser altamente concentradora e se beneficiar com vantagens explí-
citas. Existem vários pontos distorcidos na política internacional que precisam
ser corrigidos, e os dois ministérios estão de acordo. Contudo, o MDA defende
a flexibilidade das políticas internas brasileira e a proteção de alguns produtos
que são importantes para a segurança alimentar. Não apenas do ponto de vista
do consumo dos produtos, mas, sobretudo, visando à segurança do agricultor e
à viabilização de um projeto nacional de desenvolvimento que contemple e res-
peite a diversidade existente no Brasil. Atualmente, o princípio que rege as ne-
gociações internacionais é o da liberalização comercial. Para o MDA, esse prin-
cípio poderia ser edificado sobre outra lógica, ou seja, sobre as bases do desen-
volvimento e da segurança alimentar.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
39

Segundo visão crítica do MDA, as posições defendidas pelo Mapa nas relações
internacionais não representam a realidade da agricultura brasileira. Representam
a realidade de um setor e, muitas vezes, a visão de alguns segmentos que têm mais
influência nesse setor. O Mapa teria uma visão muito objetiva, mas também mui-
to estreita, pretendendo apenas aumentar o acesso ao mercado internacional, re-
duzindo barreiras e acabando com subsídios à exportação. Seguindo a crítica do
MDA: “eles [Mapa] entendem, e nesse caso com razão, que se você tiver um dis-
curso único de acesso ao mercado, de liberalização, e de nenhuma proteção, é um
discurso mais coerente e dá mais potência a essa demanda deles”. O Mapa é con-
tra qualquer posição que defenda algum tipo de proteção, alegando que
despotencializa a postura brasileira de discurso único e prejudica as concessões
que eventualmente os outros países fariam ao Brasil.
O MDA é contrário à postura radical do Mapa na defesa de um determinado
setor, pois não dialoga com a realidade interna em sua diversidade.
Eles não aceitam nada e ficam dizendo que isso tem um custo
elevado e querem jogar esse custo no nosso colo. Dizem que se nem
a gente quer abrir o nosso mercado como posso exigir isso dos
europeus? Pela lógica, eles têm razão. Mas qual é o objetivo? É
somente abrir o mercado ou também abrir o mercado e garantir
outras coisas?

O Mapa trabalha com a lógica de agronegócio. Por ela, o Brasil é hoje um


grande exportador que deve exercer forte pressão pela abertura dos mercados
mundiais. A abertura de mercado pode beneficiar todos os países, mas beneficia,
sobretudo, os maiores exportadores.
O MDA chama a atenção, também, para a falsa a idéia de que os países desen-
volvidos, especialmente os europeus que têm problemas com tarifas, terão postu-
ra diferenciada se o Brasil oferecer a liberação total do mercado ou a abertura de
mercado com algumas restrições.
Essa visão que o agronegócio brasileiro tem de que os outros países
fazem as suas decisões a partir do que eu ofereço ou não, não é a
mais correta. Não é o determinante. Até pode flexibilizar um
pouco a posição dos europeus, mas, por exemplo, diante da situa-
ção política que a UE vive hoje – a questão da Constituição Euro-
péia etc. – é muita ingenuidade supor que se você chegar para eles e
oferecer alguma coisa, eles abririam o setor de agricultura em razão
das ofertas. Também é muita ingenuidade achar que boa parte da
explicação sobre o porquê deles não abrirem seus mercados está
relacionada com a proteção do nosso mercado também. É ingenui-
dade ou má fé.

O MDA também defende que o Brasil não deveria se furtar ao debate ambiental,
pelo contrário, deveria enfrentá-lo frontalmente. O Brasil tem capacidade e recur-
sos físicos para solicitar um mercado ambientalmente justo e propor o debate de
mercado com enfoque ambiental. Para o MDA, quem deve fazer isso é um país
que tem grande diversidade natural e é o que ocorre com o Brasil. Encabeçando o
debate, o Brasil poderia introduzir a questão da sustentabilidade (econômica,
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
40

social e ambiental) da agricultura, ou seja, a insustentabilidade dos monocultivos,


a abertura de fronteiras, os impactos ambientais da soja e outras questões relevan-
tes relacionadas.
O MDA reconhece a importância do comércio internacional para o estabeleci-
mento da política econômica e para o superávit da balança comercial, mas defende o
estabelecimento de uma pauta nacional que respeite a diversidade da agricultura bra-
sileira e demonstre um equilíbrio entre os setores. É preciso defender posições que
beneficiem toda a agricultura brasileira, construir uma posição de país e não de setor.
Há três principais arenas onde esse debate ocorre e onde são discutidas as posi-
ções brasileiras no tratamento das questões sobre negociações internacionais. A
primeira é um fórum interno formado por um grupo interministerial (Itamaraty,
Mapa, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC,
MDA). O MDA não tem a mesma visão protecionista dos outros membros e se
torna uma voz destoante dentro do governo nesse tema agrícola. O Itamaraty é o
mais neutro. A discussão é paritária, mas a capacidade real de intervenção é bas-
tante diferenciada. A equipe do MDA, que não existe formalmente, é constituída
por três pessoas; no Mapa a equipe é formada por 72 pessoas.
Além disso, o Mapa tem forte articulação com o setor privado e com as grandes
cadeias exportadoras (carne, soja, suco de laranja, açúcar, café). Essas cadeias são repre-
sentadas pelo Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone),
entidade de assessoria ao setor patronal no tema das negociações internacionais. O
Icone integra o fórum do governo que discute a política internacional. Muitas vezes as
contradições na definição das posições de governo não são expressas diretamente pelo
Mapa, mas pelo Instituto, que defende os interesses dos grandes exportadores.
A segunda arena é a Câmara de Comércio Exterior (Camex), órgão integrante
do Conselho de Governo. A Camex tem por objetivo a formulação, adoção, rea-
lização e coordenação de políticas e atividades relativas ao comércio exterior de
bens e serviços, incluindo o turismo. Essa câmara é integrada pelo ministro do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que a preside; pelos ministros
chefe da Casa Civil; das Relações Exteriores; da Fazenda; da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento; e do Planejamento, Orçamento e Gestão. A partir de junho de
2005 o MDA também começou formalmente a fazer parte da Camex.
A terceira instância de discussão é o Itamaraty. Embora não seja um fórum
de tomada de decisões, o Itamaraty gerencia vários temas que acabam se tor-
nando decisões.
Existe uma composição heterogênea dentro destes fóruns de discussão, mas a
capacidade de intervenção é bastante diferenciada. A capacidade de organização e
intervenção que o agronegócio tem é infinitamente maior que os setores que de-
fendem a agricultura familiar.
Outro ponto importante a ser destacado é a grande trajetória e a tradição
histórica nas negociações internacionais do Mapa, enquanto o MDA inseriu-se
recentemente nessa discussão, e com posições divergentes da maioria. Por outro
lado, isso pode ser considerado como um grande avanço, pois o Brasil saiu de
uma posição hegemônica de abertura de mercado e, através do MDA, conseguiu
introduzir na pauta de negociações a discussão sobre o tema da segurança alimen-
tar e a criação de mecanismos de proteção e de salvaguardas especiais que benefi-
ciam a agricultura familiar.
MAPAS | monitoramento ativo da participação da sociedade
41

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As entrevistas demonstraram que não existe hoje no Brasil um posicionamento ho-
mogêneo no que se refere às propostas gerais de desenvolvimento rural. Foram
identificadas duas realidades distintas, a dos agricultores empresariais e do agronegócio,
e a dos agricultores familiares, que se materializam na existência de dois ministérios e
poderiam representar dois modelos de desenvolvimento diferenciados.
O Mapa é identificado, de modo geral, com os interesses do agronegócio e tem
como público prioritário os agricultores empresariais. O setor possui sistema pro-
dutivo mais intensivo no uso de recurso, com utilização de alta tecnologia e pro-
dução de commodities para exportação. O MDA tem por função a realização da
reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura familiar, um segmento bas-
tante heterogêneo. Esse setor possui um sistema produtivo diversificado, mais
voltado para o mercado interno e preocupado com a inclusão social e a preserva-
ção do meio ambiente. O MDA busca a criação de um modelo alternativo de
desenvolvimento, embora com diferenças internas, que fortaleça a agricultura fa-
miliar e tenha por base os princípios da agroecologia.
No governo federal, os processos tornaram-se mais participativos. Foram cria-
dos ou reativados diversos conselhos e fóruns de discussão com representantes de
vários segmentos da sociedade em ambos os ministérios. Os representantes dos
movimentos sociais fazem parte da composição do governo, trazem suas experi-
ências e buscam desenvolver propostas mais voltadas à realidade da agricultura
familiar. Outro avanço do governo foi o reconhecimento da relevância da discus-
são sobre a relação entre gênero, raça e etnia e que esta deve acontecer em todas as
instâncias. O objetivo dessa discussão é dar visibilidade a esse público e criar ações
de inclusão social, embora a dificuldade esteja justamente em transformar o dis-
curso em ações práticas.
Este ensaio mostra que existem diversos elementos inovadores que apontam
para um novo modelo de desenvolvimento. Destacam-se a criação de uma nova
política de assistência técnica e extensão rural exclusiva para os agricultores fami-
liares que têm a agroecologia como eixo orientador das ações; a realização da
reforma agrária com a criação de novos assentamentos e o objetivo de recupera-
ção dos atuais; o aumento do volume de crédito e do número de contratos através
do Pronaf; a criação de seguro agrícola para a agricultura familiar; a criação de
um programa de comercialização da produção para a agricultura familiar; ensino
e pesquisa voltados à realidade da agricultura familiar. Por certo, ainda são ações
pontuais, que precisam ser unificadas num programa nacional para que realmente
possam se transformar em um outro modelo de desenvolvimento.
Atualmente, está cada vez mais na ordem do dia a necessidade de se repensar o
modelo de desenvolvimento rural adotado no Brasil. O modelo dominante já
vem sendo criticado ao longo de várias décadas por ser excludente e provocar
danos ambientais graves. Além disso, ele se baseia em relações trabalhistas precá-
rias. Entretanto, a necessidade de mudança de modelo não está na pauta no go-
verno, que vê os dois setores como complementares e de convivência possível. A
agricultura familiar possui funções diferenciadas e, segundo o governo, um setor
complementar ao agronegócio. Quando existem disputas e se faz necessário uma
tomada de posição – como no caso da Lei de Biossegurança, na transposição do
rio São Francisco, no tema das relações internacionais ou na regulamentação da
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legislação que trata da desapropriação de terras – a opção pela defesa dos interes-
ses do agronegócio é explícita.
Nos últimos anos houve o fortalecimento de ambos os setores. O agronegócio
recuperou sua legitimidade perante a sociedade e apresentou um crescimento bas-
tante elevado no governo Lula. A agricultura familiar, por sua vez, ganhou desta-
que e se tornou base política importante para vários segmentos do meio rural. A
positividade da agricultura familiar fez com que se voltassem os olhares para a
sua diversidade e se criassem políticas específicas mais adaptadas à sua realidade.
Entretanto, o crescimento da agricultura familiar explicitou as contradições do
modelo de desenvolvimento vigente.
No discurso, o Mapa procura evitar que se acirrem as disputas e os conflitos
entre a agricultura patronal e a agricultura familiar e afirma que também é a favor
da agricultura familiar. O Mapa objetiva, inclusive, trazer a agricultura familiar
para sua responsabilidade, unificando a agricultura num único ministério. O mi-
nistério afirma, a todo o momento, que eficiente é o setor patronal e que grande
parte da agricultura familiar deveria ser objeto de políticas sociais. Para o Mapa,
agricultura é investimento, é business e, portanto, não cabe a realização de uma
reforma agrária ampla e maciça: “não é uma panacéia para todos”. Na defesa dos
seus interesses, como no caso das negociações internacionais, o ministério não acei-
ta qualquer concessão e busca sempre fazer com que sua posição prevaleça.
Atualmente, o Mapa tem um discurso de sustentabilidade, de apoio à agricultura
familiar e de defesa ao meio ambiente, procurando com isso reverter a imagem nega-
tiva associada ao agronegócio. As entrevistas revelaram que existem dentro do Mapa
setores que poderiam ser considerados quase antagônicos, que se aproximam mais
das linhas gerais defendidas pelo MDA do que as do próprio Mapa. Um exemplo é o
Projeto de Aquisição de Alimentos da Conab, programa que tem repercussão bastan-
te positiva entre os agricultores familiares e os movimentos sociais. Esse programa é
considerado inovador e de grande eficácia. Outro exemplo é o Pró-Orgânico que,
mesmo sendo entendido como um nicho de mercado, gera certa contradição porque
sugere mudança no modelo tecnológico. Logo, as disputas e contradições não se
expressam apenas entre os dois ministérios, mas também dentro do próprio Mapa.
As contradições aparecem também dentro do MDA. Ficou explícita a falta de
diálogo entre as secretarias e a desarticulação das políticas desenvolvidas pelo
ministério. Existe forte influência dos movimentos sociais dentro das secretarias,
o que acaba inevitavelmente privilegiando o atendimento das necessidades desses
movimentos e demonstra a existência de correlação de forças e disputas pelo po-
der. As secretarias têm capacidade técnica e operacional diferenciadas e a execução
dos programas dependem também da força política das pessoas das secretarias.
Há disputa por espaço e por poder visível dentro do MDA e a articulação política
é praticamente inexistente. A SDT tem por objetivo articular as políticas públicas
no território rural, mas ainda é uma proposta inicial que precisa ser incorporada
pelos outros setores do ministério. Além disso, por causa da deficiência de recur-
sos e da dificuldade maior em trabalhar as especificidades da agricultura familiar,
há dificuldade para fazer avançar as políticas desenvolvidas pelo MDA.
As entrevistas demonstraram que podem ser identificados dois modelos dife-
renciados, ainda que não estejam completamente explicitados, que orientam um
e outro ministério. No Mapa predominam os interesses do agronegócio, embora
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no discurso o ministério procure ressaltar sempre que a agricultura familiar


complementa o agronegócio, desenvolvendo inclusive algumas políticas específi-
cas para essa agricultura. No MDA predominam os interesses da agricultura fami-
liar e existem as bases de um novo modelo de desenvolvimento – proposta que
ainda é nova e, por vezes, confusa e contraditória. Contudo, o ministério não tem
respaldo do governo, o que inviabiliza as políticas diferenciadas de aparecerem
como um modelo.
Apesar do discurso de complementaridade das duas agriculturas feito pelo Mapa,
não está claro, e tampouco demonstrado, que ela exista. Pelo contrário, a expan-
são do agronegócio e a abertura de fronteiras têm criado sérios problemas para a
agricultura familiar – problemas ambientais e exclusão de agricultores – o que
leva ao aumento dos conflitos no campo. Fica explícito que os interesses dos dois
setores são distintos e, muitas vezes, contraditórios. “A realidade do setor familiar
não se conjuga com o agronegócio.” O modelo baseado no agronegócio não
demonstra reforçar os direitos sociais.
Não obstante, a proposta que fortalece a agricultura familiar e caminha na
direção de um modelo alternativo de desenvolvimento não tem apoio do governo
para ser realizada. O MDA não tem apoio político e também não tem recursos
para expandir essas políticas alternativas realizadas em pequena escala. Não exis-
te proposta de ampliação e de articulação em um projeto nacional. Internamente,
prevalece certa desarticulação das políticas e não existe visão unânime sobre a
mudança de modelo tecnológico. Na realidade, o governo Lula não fez uma op-
ção pelo modelo alternativo de desenvolvimento baseado na agricultura familiar,
mas fez uma opção pelo agronegócio.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. MDA/Incra. II
Plano Nacional de Reforma Agrária. Brasília, 2003.
______. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano
Agrícola e Pecuário 2004/2005. Brasília, 2004 c.
______. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Plano Safra
2004/2005. Brasília, 2004 b.
______. Ministério do Desenvolvimento Agrário. MDA/SAF/Dater.
Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural. Brasília, 2004
a.
______. Ministério do Desenvolvimento Agrário. MDA/SAF/Dater.
Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, Pronater 2005.
Brasília, 2005.
COLIGAÇÃO LULA PRESIDENTE. Vida Digna no Campo: de-
senvolvimento rural, política agrícola, agrária e de segurança alimentar. Pro-
grama de governo. 2002.
FERREIRA, Brancolina. Desenvolvimento rural: reforma agrária,
Pronaf e PAA. Brasília: Diset/Ipea, 2005. 19 p.
LEITE, Sérgio; CINTRÃO, Rosângela; CARARINE, Cloviomar.
Políticas agrárias, agrícolas e comerciais e seu rebatimento sobre a agricul-
tura familiar no contexto nordestino. Relatório final. Rio de Janeiro, 2004.
MALUF, Renato S. Considerações de segurança alimentar e
nutricional nas negociações internacionais integradas pelo Brasil. Proposta
para a Câmara Temática I e para a Plenária do Consea, 16 de maio de
2005. 9 p.

Sites pesquisados:
http://www.agricultura.gov.br
http://www.conab.gov.br
http://www.iconebrasil.org.br
http://www.incra.gov.br
http://www.mda.gov.br
http://www.nead.org.br
http://www.pronaf.gov.br
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Anexo

Estrutura Organizacional do Mapa:


ÓRGÃOS DE ASSISTÊNCIA DIRETA AO MINISTRO
Chefia de Gabinete
Consultoria Jurídica
Assessoria
Secretaria Executiva
SECRETARIAS
SPA – Secretaria de Política Agrícola
SDC – Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo
SDA – Secretaria de Defesa Agropecuária
SRI – Secretaria de Relações Internacionais do Agronegócio
SPAE – Secretaria de Produção e Agroenergia
ÓRGÃOS DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA
Ceplac – Comissão executiva do plano da lavoura cacaueira
INMET – Instituto Nacional de Meteorologia
EMPRESAS PÚBLICAS
Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Conab – Companhia Nacional de Abastecimento
EMPRESAS DE ECONOMIA MISTA
Cesgesp – Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo
CASEMG – Companhia de Armazéns e Silos
Ceasa-MG – Central de Abastecimento de Minas Gerais
UNIDADES DESCENTRALIZADAS
Laboratórios
Superintendências Federais
ÓRGÃOS COLEGIADOS:
CNPA – Conselho Nacional de Política Agrícola
CER – Comissão Especial de Recursos
CDPC – Conselho Deliberativo da Política do Café
CIMA – Conselho Interministerial do Açúcar e do Álcool
CDAC – Conselho do Agronegócio do Cacau
Consagro – Conselho do Agronegócio
Câmaras Setoriais (das Cadeias Produtivas)
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Estrutura Organizacional do MDA


ÓRGÃOS DE ASSISTÊNCIA DIRETA AO MINISTRO:
Gabinete do Ministro
Secretaria executiva
Consultoria jurídica
SECRETARIAS
SAF – Secretaria da Agricultura Familiar
SDT – Secretaria de Desenvolvimento Territorial
SRA – Secretaria de Reordenamento Agrário
UNIDADES DESCENTRALIZADAS
DFDAs – Delegacias Federais de Desenvolvimento Agrário
ÓRGÃOS COLEGIADOS
Condraf – Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável
Conselho Curador do Banco da Terra
ENTIDADES VINCULADAS
Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Nead – Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural
UM PROJETO APOIO

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