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Cinco das mais modernas fábricas do Brasil compõem um retrato do que será a
linha de produção do amanhã
A tarde está quente e os raios de sol atravessam as paredes transparentes dos quatro prédios de
vidro, concreto e metal que formam a nova fábrica da Natura, em Cajamar, município da Grande
São Paulo. Centenas de metros de corredores externos envolvem e ligam o conjunto, num
modelo de arquitetura que lembra um museu de arte moderna. No interior dos prédios, cerca de 3
000 pessoas trabalham em sincronia para colocar diariamente no mercado 800 000 itens de
produtos com a marca da empresa.
Máquinas, equipamentos e painéis eletrônicos - descendentes diretos do velho kan-ban japonês -
estão por todos os lados. Mesmo assim, a fábrica da Natura, uma das maiores produtoras de
cosméticos do país, é silenciosa, limpa e arejada. Uma potente rede de cabos de fibra óptica
percorre toda a construção. Por ela, podem correr desde os comandos para a produção até fitas de
cinema. O projeto modular faz com que a capacidade de produção possa ser duplicada em um
fim de semana.
Não há muros cercando a nova fábrica. Suas estruturas translúcidas e minimalistas permitem que
os funcionários trabalhem em meio a uma paisagem formada por um pedaço preservado de
árvores nativas da Mata Atlântica, jabuticabeiras e uma ferrovia do início do século passado,
desativada em 1983. As bitolas estão sendo restauradas. A idéia é que, dentro de alguns meses,
uma pequena locomotiva passe a circular e, de tempo em tempo, traga levas de visitantes.
O Novo Espaço Natura, como a fábrica foi batizada, é uma revolução diante do que, em boa
parte do século 20, foi chamado de linha de produção. (Teóricos marxistas chegaram a definir a
Ford, em seus primeiros anos, como um campo de concentração gigantesco, fundado sobre o
medo e a exploração física dos trabalhadores.) As diferenças de aspecto, embora
impressionantes, formam o lado menos importante da mudança de um modelo para outro. A
arquitetura é apenas um reflexo de conceitos e de crenças corporativas que devem marcar o
terceiro século da industrialização. "Queremos que este lugar rompa com a idéia tradicional de
fábrica", diz Pedro Luiz Passos, sócio e presidente de operações da Natura. Enquanto observa um
grupo de funcionários que aproveitam a hora do almoço para passear por uma área que remete
aos shopping centers de rua, Passos tenta enxergar o futuro em sua fábrica.
No mundo dos negócios, futuro é um conceito relativo. Ele pode chegar dentro de algumas horas
para certas empresas e levar décadas para atingir outras. O certo é que sua presença é sempre
transformadora. Fábricas continuarão a existir e a dar empregos enquanto o mercado precisar de
bens prosaicos como roupas, carros, CDs de rock, pipoca de microondas, sabonetes e
computadores pessoais. Mas elas farão tudo isso de forma diferente, com pessoas diferentes e,
como conseqüência disso, exigirão um novo modelo de gestão e de liderança.
A fábrica do futuro - seja qual for sua especialidade, tamanho e setor - está alicerçada em bases
comuns: capacidade de combinar tecnologia e talentos, gestão e disseminação do conhecimento,
resposta rápida às demandas de um mercado de gosto cada vez mais individualizado,
flexibilidade, velocidade, desenvolvimento sustentável. Nela, há pouco espaço para a distinção
taylorista entre quem faz e quem decide, quem pensa e quem executa. A ênfase está na qualidade
e na busca permanente da integração com o mundo exterior. Como definiram os americanos Ron
Ashkenas, Dave Ulrich, Todd Jick e Steve Kerr, autores do livro The Boundryless Organization,
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Revista EXAME de - 21/02/2001 Reportagem de Capa, Por Cláudia Vassallo
as organizações bem-sucedidas daqui para a frente serão aquelas que conseguirem acabar com as
fronteiras que separam pessoas, tarefas e lugares.
É difícil apontar - sem correr o risco de ser ingênuo ou simplista - um caso real de produção livre
de barreiras. Mas já há corporações perseguindo esse novo mundo, e algumas de suas mais
ousadas iniciativas foram tomadas no Brasil pós-estabilização. "Algumas das fábricas instaladas
aqui na década de 90 iniciaram um círculo virtuoso", diz Paulo Apsan, presidente da filial
brasileira da consultoria americana Arthur D. Little. "Elas estabelecem um novo padrão, que vem
sendo copiado mundo afora."
Nos últimos três meses, EXAME visitou algumas das mais modernas fábricas instaladas no país.
O ponto de convergência entre elas não é a perfeição nos processos, a redução nos custos, os
recordes de produtividade e a multiplicação da rentabilidade - embora esses sejam objetivos
perseguidos (e muitas vezes atingidos) por todas. O que as une é o fato de estarem, em vários
aspectos e cada uma a seu modo, à frente no tempo. São projetos visionários, com todas as
oportunidades e riscos que isso traz. A nova fábrica da Natura, com seus espaços para
desenvolvimento dos funcionários, sua arquitetura projetada como metáfora da transparência das
relações entre a empresa e o mundo que a cerca, é um dos casos analisados, que complementa e é
complementado pelos demais:
• Em Gravataí, no Rio Grande do Sul, a General Motors, maior corporação mundial, com vendas
de 183,3 bilhões de dólares em 2000, ergueu sua mais moderna e ousada montadora. O complexo
Arara Azul, como foi batizado, foi concebido para ser uma espécie de marco da produção
industrial na era da Internet, um tempo em que o uso da tecnologia serve como a ponte mais
rápida entre a produção e o mercado. A tecnologia passa a ser, também, um instrumento para o
foco em algumas das mais valorizadas competências da indústria: pesquisa, desenvolvimento,
serviços.
• Em meio a uma plantação de mandioca, em Cosmópolis, a 150 quilômetros de São Paulo, o
laboratório americano Eli Lilly instalou sua mais avançada fábrica de antibióticos injetáveis.
Trata-se de um lugar quase deserto, silencioso, onde engenheiros, executivos e operários vestem-
se, igualmente, como cirurgiões. Na fábrica de Cosmópolis, a contaminação do ambiente é nula e
a qualidade dos processos, altíssima. Seus 300 funcionários são treinados para lidar com
detalhes. É isso que a transforma numa fábrica de classe mundial. Neste ano, o Food and Drug
Administration, FDA, órgão americano responsável pela inspeção de alimentos e medicamentos,
deve certificá-la. A partir de então, seus antibióticos poderão ser vendidos para qualquer lugar do
mundo.
• Os escritórios e as linhas de montagem se confundem na unidade da Volkswagen/Audi em São
José dos Pinhais, no Paraná. Em seu grande espaço comum - chamado de centro de comunicação
- circulam operadores de máquina de cabelos compridos e brinco na orelha, moças do escritório,
pintores, soldadores e executivos poliglotas vestidos de terno e gravata. Para lá também
convergem os três grandes braços da fábrica - a armação, a montagem e a pintura de automóveis.
Carros semi-acabados passam ao lado do restaurante suspenso e envidraçado. Lá embaixo, num
dos aquários do setor administrativo, fica o diretor da fábrica, um jovem executivo alemão de 37
anos. Thomas Schmall assumiu o posto logo após a inauguração da fábrica, há dois anos. "O
sucesso depende da troca de informações e do uso que as pessoas farão delas", diz Schmall. "É
preciso discutir, argumentar. Pegar o abacaxi e passá-lo ao colega ao lado é mais fácil, mas não
resolve os problemas."
• Inaugurada há mais de 30 anos, a unidade gaúcha da Springer Carrier, líder de sistemas de
condicionamento de ar, poderia ser uma espécie de museu da obsolescência. Tudo nela parece
levar ao passado: operários usando macacões azuis, máquinas pesadas, graxa. Nada disso,
porém, impede que a fábrica, instalada em Canoas, na Grande Porto Alegre, seja um modelo de
modernidade para a americana Carrier, uma corporação presente em mais de 100 países, com 40
000 funcionários, e que faturou 10 bilhões de dólares em 2000. Seus projetos de utilização
racional da energia e da água seguem os preceitos do crescimento sustentável - uma das grandes
tendências deste século. Sua estratégia de uso da Web é um dos orgulhos do americano Jonathan
Ayers, presidente mundial da Carrier.
A visão conjunta dessas cinco fábricas e a análise dos sinais que cada uma delas emite compõem
um retrato possível da produção industrial do amanhã. O que está em jogo não é o tipo de
tecnologia usada, o grau de automação ou a ousadia arquitetônica. Tudo isso pode ser comprado,
replicado, melhorado. Por trás dos poucos muros que restam nas fábricas do futuro está o foco na
destruição de fronteiras e a construção de novos modelos de relacionamento. Os esforços de seus
líderes giram em torno de cinco grandes eixos.
• NOVAS PESSOAS, NOVOS LÍDERES
• A FÁBRICA TRANSFORMADA EM COMUNIDADE
• O ELO TECNOLÓGICO - A FÁBRICA CONECTADA
• O VÍNCULO COM O CLIENTE
• CRESCIMENTO SUSTENTÁVEL
• VEJA FOTOS
Crescimento sustentável
Em novembro do ano passado, William Clay Ford Jr., presidente do conselho de administração
da Ford Motor Company, anunciou o redesenho e a reconstrução da Ford Rouge Center, nas
cercanias de Detroit. Erguida em 1917 por seu bisavô, o legendário Henry Ford, a fábrica viveu
décadas de apogeu e declínio. Atualmente emprega 7 000 funcionários e produz um só modelo, o
Mustang.
A Rouge precisaria ser abandonada ou reconstruída. Foi então que Bill Ford enxergou na velha
fábrica a possibilidade de exercer o que ele chama de "manufatura sustentável", um conceito que
combina técnicas de produção que minimizam os prejuízos ambientais, flexibidade,
computadores no chão de fábrica e funcionários superespecializados. Segundo Jacques Nasser,
principal executivo da Ford, o novo projeto, de 2 bilhões de dólares, "será um ícone industrial tão
revolucionário para o século 21 quanto o Rouge foi para o século 20".
Na Ford, a nova fábrica não é apenas encarada como uma iniciativa ecologicamente correta, mas
como um passo na perenização do negócio. "As companhias de sucesso no futuro serão aquelas
que conseguirem inovar de forma sustentável", diz o arquiteto americano William McDough,
hoje o nome mais importante do design sustentável no mundo.
Em Rouge, o presente é claustrofóbico, escuro e abafado. O amanhã deve ser iluminado por luz
natural. O teto será coberto por plantas, que ajudarão a reduzir o barulho provocado pela chuva e
deixarão a fábrica fresca no verão e mais quente no inverno. Com isso, haverá a economia de um
ativo precioso: energia. Espécies nativas da região de Michigan estão sendo plantadas ao redor
da fábrica a fim de resgatar o equilíbrio natural da região. A água da chuva será administrada,
com o aproveitamento de fossas naturais.
Na fábrica da Springer Carrier, em Canoas, um conceito semelhante vem sendo implantado. Até
um ano atrás, a linha representava um paradoxo para uma empresa que é líder mundial de
equipamentos de ar condicionado. Os funcionários trabalhavam 8 horas por dia num ambiente
escuro, baixo, insuportavelmente quente no verão e frio no inverno. Hoje, durante o turno do dia,
a iluminação da linha é natural, graças à instalação de um telhado de policarbonato. As
luminárias elétricas são inteligentes. Sempre que há luz natural em quantidade suficiente, a
artificial se apaga automaticamente. Um sistema de drenagem garante o aproveitamento da água
da chuva.
Até o fim de 2001, a refrigeração da fábrica funcionará com energia solar. Em dois anos, toda a
produção será alimentada com o sistema. Cerca de 15 milhões de dólares estão sendo investidos
no projeto - um dinheiro que deve retornar para a empresa em três anos. Apenas com as
mudanças na iluminação, a produtividade dos funcionários aumentou 15% e os custos de energia
foram reduzidos em meio milhão de dólares ao ano. "A fábrica do futuro não precisa ser algo de
filme de ficção científica", diz o gerente Oliveira. "As maiores inovações, muitas vezes, estão em
coisas muito simples, que valem em qualquer lugar do mundo."
Peter Drucker, o maior teórico da administração do século 20, viu as indústrias se
transformarem. Prestes a completar 91 anos, ele é contemporâneo do nascimento do fordismo e
da moderna linha de montagem em série, do aparecimento dos programas de qualidade e
produtividade, do avanço das técnicas japonesas, passando pela digitalização da produção e pelo
surgimento da sociedade do conhecimento. Drucker, do alto de sua experiência, não tem muitas
dúvidas: serão poucas as fábricas que sobreviverão à ruptura do modelo de produção em massa e
às transformações que o futuro trará. É preciso estar preparado desde já. "As mudanças serão
profundas e duradouras", diz ele. "E nós estamos apenas começando a entender o que tudo isso
significa."