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Publicado em Participação e Deliberação: Teoria Democrática e Experiências

Institucionais no Brasil Contemporâneo, organizado por Vera Schattan P.


Coelho e Marcos Nobre, São Paulo, Editora 34, 2004; publicado também,
em inglês, sob o título “Deliberation, Interests and Pluralism”, na Revista
DireitoGV, Especial 1, novembro de 2005.

DELIBERAÇÃO, INTERESSES E “SOCIEDADE CIVIL”

Fábio Wanderley Reis

Se nos preocupamos com a democracia, a autonomia é por força um


conceito de interesse crucial para nós. Se tomamos Jürgen Habermas como a
principal influência atual com respeito à idéia da democracia deliberativa,
encontramos em sua obra a tendência a colocar o problema da autonomia num
contexto comunicacional: a autonomia teria a ver com uma relação entre
sujeitos, na qual a condição de ser sujeito, e portanto de ser autônomo, se
afirma e preserva no caso de cada um dos participantes, em contraste com o
que ocorre no contexto instrumental (ou do “trabalho”), que envolve relação
entre sujeitos e objetos. Mas há também a interação estratégica, onde outras
pessoas (outros sujeitos) são frequentemente tratadas como objetos, ainda
que a eficácia em manipulá-las, ou em lidar com elas como objetos, requeira
que se seja capaz de assumir seu próprio ponto de vista, e portanto que se
reconheça sua condição de sujeito.

De toda forma, alguns problemas complicados surgem de imediato se


partimos do contraste entre instrumentalidade e comunicação. Há, para
começar, a dificuldade de manter essas duas dimensões analiticamente
separadas uma da outra. Mesmo a “situação ideal de discurso”, de Habermas,
é, naturalmente, um desiderato ao qual só nos poderemos acercar
instrumentalmente, tratando de criar as condições necessárias para a
comunicação tão desimpedida quanto possível – ou os meios necessários à
comunicação desimpedida como fim. Além disso, a ação comunicativa é
também ação, o que significa que ela mesma envolve inevitavelmente um
problema de eficácia. É preciso que tenhamos normas e sanções adequadas
para assegurar a autonomia de todos no processo de comunicação, e a
situação ideal de discurso cria, nas palavras do próprio Habermas,
comunicação competente, não obstante o fato de que o atributo de ser
competente ou incompetente seja em princípio, para Habermas, algo que
caracteriza a observância de regras técnicas (no trabalho) ou de estratégias
válidas, ou seja, a esfera em que supostamente prevalece a instrumentalidade
(apesar das vacilações de Habermas quanto à interação estratégica).1

1
A crítica à separação entre instrumentalidade e comunicação tem
desdobramentos importantes com respeito à própria idéia de racionalidade,
em torno da qual se criou o grande e equivocado cavalo de batalha da
contraposição entre uma racionalidade “meramente” instrumental, vista
como de alguma forma “vil” ou “inferior”, e uma outra, supostamente

1
Em segundo lugar, parece impossível manter o valor da autonomia,
como tal, à parte do nível estratégico, ou do nível da “afirmação de si” – para
tomar a definição que dá o próprio Habermas da noção de “interesse”,
definição esta formulada com antecedência de maneira similar por Alessandro
Pizzorno, que fala de “distinguir-se”.2 Há dois significados aparentemente
contrastantes que se associam com “autonomia”. O primeiro é justamente a
autonomia como auto-afirmação. Estamos, neste caso, diante de um ator
capaz de seguir, sem mais, os seus impulsos, ou de se afirmar de maneira
espontânea, e a autonomia neste sentido é afim à idéia do poder como algo
que permite ao ator não precisar aprender.3 O outro significado é a autonomia
como autocontrole, envolvendo a idéia de que a impulsividade se vê
restringida por um fator de compulsão que é escolhido, em alguma medida, e
portanto resulta de uma postura reflexiva (ou por normas que são escolhidas e,
assim, da responsabilidade do próprio ator, de acordo com a etimologia do
vocábulo “autonomia”).

Ora, não obstante o contraste aparente entre os dois significados,


algumas observações de interesse se podem fazer se a ambiguidade produzida
por eles é relacionada com certas dificuldades enfrentadas por Habermas na
tentativa de distinguir entre autonomia “política” (ou “pública”) e autonomia
“privada” em Direito e Democracia.4 Apesar de que a idéia de virtude
republicana favoreça a idéia de autonomia como autocontrole, que sugere a
operação de restrições à minha impulsividade como resultado da atenção
prestada à conexão entre meus interesses próprios e os interesses ou objetivos
da coletividade, será de fato possível falar de autonomia sem referência a
“substantiva” e “superior”. A origem dessa contraposição é certamente a
inconsistente distinção de Max Weber entre a “racionalidade com respeito
a fins” e a “racionalidade com respeito a valores”, parte da mixórdia
conceitual em que Weber procura estabelecer tipos de racionalidade por
referência à ética e tipos de ética por referência à racionalidade. A
obra de Jean Piaget me parece fornecer base sólida para a superação da
contraposição instrumentalidade-comunicação e para substituí-la por uma
concepção “operatória” ou “operacional” em que os aspectos objetivo ou
instrumental e social ou comunicacional da racionalidade se integram
devidamente. A inconsistência das concepções de Weber é discutida em
Fábio W. Reis, “Weber e a Política”, a aparecer em Teoria e Sociedade,
número especial dedicado a Weber, sob a coordenação de Renarde F. Nobre.
As idéias de Habermas são examinadas à luz do trabalho de Piaget em Fábio
W. Reis, Política e Racionalidade, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000 (2a.
edição), e mais resumidamente em “Mudança, Racionalidade e Política”, em
F. W. Reis, Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira, São
Paulo, Edusp, 2000.
2
Vejam-se Jürgen Habermas, Théorie et Pratique, Paris, Payot, 1975, vol.
II, pp. 104-105; e Alessandro Pizzorno, “Introduzione allo Studio della
Partecipazione Politica”, Quaderni di Sociologia, vol. 15, no. 3-4,
julho-dezembro de 1966.
3
Cf. Karl Deutsch, The Nerves of Government, Nova York, The Free Press,
1966, p. 111.
4
Jürgen Habermas, Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade, 2
vols., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997. Estarei citando adiante a
edição americana: Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse
Theory of Law and Democracy, Cambridge, Mass., The MIT Press, 1996.

2
algum componente de auto-afirmação? Habermas sustenta ele mesmo que a
realização da autonomia supostamente “política” ou “pública” envolve a
afirmação dos cidadãos na esfera política, onde viriam a assumir a posição de
autores da lei (o que seria até condição necessária para que a autonomia
privada chegasse mesmo a existir);5 pode isso ser visto como envolvendo a
autonomia num sentido que efetivamente evite o componente de afirmação de
si, mesmo que o “si” a ser afirmado remeta a uma identidade e a um ideal de
vida definidos comunitariamente ou como consequência da imersão na
coletividade? Ainda que destaquemos a ligação entre autonomia e
reflexividade, também a idéia “nobre” de autonomia como autocontrole supõe
(como claramente se dá na teoria do desenvolvimento moral elaborada pelo
próprio Habermas, com base no trabalho de Lawrence Kohlberg e Jean Piaget)6
a capacidade, por parte do indivíduo, de “descentrar-se” (Piaget) e se afastar
da sociedade e de suas normas convencionais na moralidade “pós-
convencional”. Ela supõe, portanto, que haja escolha relativamente à própria
identidade individual – com inevitável ambiguidade quanto à relação entre o
aspecto de auto-afirmação e o componente de “desprendimento” que a idéia
de autocontrole também contém. Pode a distinção entre autonomia privada e
autonomia pública ou política sustentar-se de maneira efetiva no contexto de
tais questões?

A aproximação entre a autonomia, de um lado, e a capacidade de


reflexividade e distanciamento com respeito à sociedade, de outro, leva
naturalmente aos problemas tratados na literatura de que Private Truths,
Public Lies, de Timur Kuran, é um importante exemplo recente.7 A preocupação
central de Kuran é o caráter opressivo que a “opinião pública” pode adquirir,
com as pressões por ela exercidas sobre os indivíduos produzindo o
falseamento da “opinião privada”. As condições em que se dá a ocorrência
desse falseamento vão do fenômeno da “ignorância pluralística” resultante da
censura e da repressão autoritária nos países do “socialismo real” ou em
outros regimes ditatoriais (impedindo que os cidadãos venham a ter percepção
clara do grau de apoio de que dispõe o regime junto à população e levando-os
a ocultar sua posição eventualmente contrária) até a pressão das opiniões
julgadas “politicamente corretas” nos países democráticos, as quais, como as
pesquisas têm mostrado, com frequência contam, privadamente, com adesão
muito menos difundida do que sugerem seus efeitos públicos. Naturalmente, os
fenômenos destacados no trabalho de Kuran e em seus antecedentes acham-
se em nítido contraste com uma concepção idealizada da “esfera pública”
como sendo caracterizada, em medida importante, por juízos políticos que
supostamente resultem de autênticos argumentos. E, do ponto de vista do
ideal democrático e do valor da autonomia, o que ressalta nas relações entre
opinião pública e opinião privada é, de novo, ao menos ambíguo: se, por um
lado, velhas constatações e sugestões ligadas à idéia de ignorância pluralística,

5
Ver, por exemplo, Between Facts and Norms, pp. 119 e seguintes.
6
Veja-se, por exemplo, Jürgen Habermas, “Moral Development and Ego
Identity”, capítulo 2 de J. Habermas, Communication and the Evolution of
Society, Boston, Beacon Press, 1979.
7
Timur Kuran, Private Truths, Public Lies: The Social Consequences of
Preference Falsification, Cambridge, Mass., Harvard University Press,
1995.

3
bem como seu uso recente por Kuran e outros, apontam para o potencial
libertário do fluxo desimpedido de comunicação entre os cidadãos, por outro
lado observações como as que se referem ao “politicamente correto” nos
fazem lembrar os temas da “psicologia de multidões” e o sentido em que, por
exemplo, o voto secreto é uma conquista democrática, ao proteger a opinião
privada contra a opinião pública.

Se tomamos a noção de cidadania, tais ambiguidades com respeito à


idéia de autonomia (autonomia pública ou política versus autonomia privada,
os benefícios potenciais da comunicação para a autonomia versus as pressões
indesejáveis da opinião pública) assumem feição nítida diante dos diferentes
sentidos que aquela noção adquire no contexto das tradições liberal, por um
lado, e republicana, por outro, as quais foram o objeto do ensaio clássico de
Benjamin Constant sobre a liberdade dos antigos e a dos modernos. Anos
atrás, George A. Kelly transpôs esses diferentes sentidos em termos da
distinção entre as dimensões “civil” e “cívica” da cidadania. 8 A dimensão
“civil”, de inspiração liberal e privatista, é a que salienta o valor moderno da
autonomia do cidadão perante os demais e perante o estado. O verdadeiro
cidadão, nesta perspectiva, é aquele capaz de se afirmar por si mesmo, que
reclama seus direitos ou promove seus interesses de qualquer tipo,
mobilizando de maneira independente os recursos que controla na esfera
privada ou no mercado. Em contraste, a dimensão “cívica” da cidadania se
refere ao valor da virtude cívica que supostamente caracterizaria a pólis grega
clássica ou a república romana. Em vez da idéia de direitos, a idéia de
solidariedade e dos deveres do cidadão é que prevalece neste caso, e o
cidadão verdadeiro é antes aquele que age de acordo com suas
responsabilidades perante a coletividade, se necessário com sacrifícios
pessoais – até mesmo, no limite, o sacrifício da própria vida.

As discussões correntes sobre a cidadania e os temas correlatos têm


sido fortemente marcadas pelo que há de atraente nos valores
correspondentes a cada uma das duas dimensões (civil e cívica, liberal e
republicana) e pela ambivalência e a tensão resultantes. Temos, do lado “civil”,
o valor envolvido na idéia da cidadania como autonomia e auto-afirmação, o
qual contém, entretanto, a contrapartida de sua afinidade com o egoísmo e o
privatismo. Do outro lado, temos o valor correspondente ao substrato solidário
e altruístico da cidadania como virtude cívica. Se, mesmo no caso da pólis
clássica, a segurança de cada um dependia de que a coletividade fosse capaz
de agir solidariamente, hoje em dia esse valor tem importante manifestação
concreta no estado de bem-estar ou, mais amplamente, no conteúdo social
que a cidadania veio a adquirir e que T. H. Marshall vinculou à obtenção do
status de membro pleno e igual da comunidade nacional, em vez do “toma lá,
dá cá” próprio do mercado. Mas o valor da solidariedade tem, por seu turno, a
contrapartida da dependência individual, a qual, no estado de bem-estar,
aparece na proteção trazida pelo estado, na condição de agente da
comunidade, àqueles que sejam de alguma forma incapazes de se afirmar por
si mesmos. As análises mais ou menos recentes do tema da cidadania,
8
George Armstrong Kelly, “Who Needs a Theory of Citizenship?”, Daedalus,
outono de 1979, pp. 37-53 (Proceedings of the American Academy of Arts
and Sciences, vol. 108, no. 4).

4
especialmente na literatura relacionada com as políticas sociais do estado,
tendem a mover-se, com frequência de maneira confusa e incoerente, no
espaço definido pela tensão entre os dois valores.9

II

Destacar a relevância dos aspectos estratégicos não redunda em negar,


em nível abstrato e doutrinário, a importância da comunicação e do debate
como referência última do ideal democrático, com a ênfase deste na
autonomia. Na verdade, penso que a idéia de um processo de deliberação
coletiva guiado pela busca do acordo unânime se acha inevitavelmente
subjacente, como referência utópica, à própria idéia de política. Nessa
perspectiva, a definição do objeto da ciência política necessariamente envolve
uma postura crítica, e a referência convencional e trivialmente realística às
relações de poder como elemento definidor da política a ser encontrada nos
manuais só pode ser vista como adequada se entendida como envolvendo o
suposto de que o poder é um problema a ser enfrentado no plano prático: não
teríamos política numa sociedade de escravos onde hipoteticamente estes não
dispusessem de qualquer chance de deixar de ser escravos e de se afirmar
autonomamente. Em outras palavras, há boas razões para se recuperar a
intuição aristotélica destacada por Hannah Arendt, com base em visão
idealizada da ágora clássica, em que a política surge como um processo de
comunicação entre iguais que exclui o poder (intuição com respeito à qual
Habermas reconhece seu débito para com Arendt).10

9
Assim, no artigo citado de Kelly, o idealizado cidadão participante e
“republicano” é contraposto, com referência ao estado de bem-estar, à
postura do “cliente” em termos que sugerem uma espécie de “cidadania
negativa”, como se o próprio sucesso do estado de bem-estar resultasse em
introduzir um elemento de “mercado” no nobre status de cidadão e assim,
de algum modo, em aviltá-lo. Naturalmente, isso não é de todo coerente
com o fato de que a reivindicação dos direitos sociais que ocorre com o
estado de bem-estar seja vista por Kelly, ao lado da reivindicação dos
direitos liberais, como ela própria uma manifestação do “civil”,
supostamente uma dimensão autêntica da cidadania. Posição similar emerge
também em textos de Habermas, onde o contraste entre cidadão e cliente é
colocado em correspondência com o contraste entre esferas vitais
estruturadas comunicativamente, por um lado, e as esferas “sistêmicas” do
estado e da economia, por outro (veja-se, por exemplo, Jürgen Habermas,
“A Nova Intransparência: A Crise do Estado de Bem-Estar Social e o
Esgotamento das Energias Utópicas”, Novos Estudos Cebrap, no. 18,
setembro de 1987). Em vez dessa tendência algo inconsistente a favorecer
o conteúdo republicano da idéia de cidadania, a literatura relativa a
cidadania e política social no Brasil se mostra frequentemente confusa em
grau extremo, em alguns casos denunciando, com notável insensibilidade
para com as dificuldades envolvidas, tanto a cidadania liberal das
práticas individualistas e privatistas quanto a forma “passiva” de
cidadania em que se tem a dependência perante a assistência paternalista
do estado (veja-se, em particular, Maria Victória Benevides, A Cidadania
Ativa, São Paulo, Atica, 1991).
10
Veja-se, por exemplo, Habermas, Théorie et Pratique, vol. I, p. 105,
nota 5, e p. 34.

5
Com efeito, pode-se mostrar que o debate ou a deliberação coletiva é
um suposto subjacente mesmo aos dois mais importantes mecanismos com
recurso aos quais se procura acomodar realisticamente, na prática cotidiana, o
ideal utópico do acordo unânime. O primeiro é a regra da maioria, que se acha
claramente baseada no artifício de conceber a unanimidade como algo capaz
de ocorrer em graus diversos: mais votos em determinada direção, “mais
unânime” a decisão (se não, não haveria razão para dar precedência às
preferências da maioria sobre as da minoria e para tomar as primeiras como
equivalendo às preferências da comunidade como um todo). O outro
mecanismo, afim às velhas concepções relacionadas com a idéia do rei-filósofo,
vale-se de suposições com respeito a de onde (ou de quem) tenderão a provir
os melhores argumentos: já que é impossível contar com que as pessoas
afetadas possam sempre discutir indefinidamente, ou por todo o tempo que se
fizesse necessário para obter o acordo de todos (além de que há situações em
que a presteza das decisões é vital), deleguemos as decisões a pessoas de
maior conhecimento nas áreas relevantes – o médico ou o juiz, por exemplo, ou
talvez simplesmente aquelas pessoas que escolhemos como nossos
representantes e líderes e às quais garantimos as condições necessárias a que
possam dedicar-se às questões a serem objeto de decisão.

Naturalmente, uma vez concedida a importância do modelo deliberativo


com respeito ao ingrediente normativo e crítico da própria idéia de política, a
questão crucial é como conciliar essa intuição atraente com o reconhecimento
da presença difusa do componente estratégico salientado pela concepção
“realista” dos manuais. A própria afirmação da necessidade da perspectiva
crítica implica que a realidade da política não se ajusta ao modelo da
deliberação e do debate de desfecho unânime – e implica, portanto, que a
deliberação, seja qual for sua importância normativa em última análise, não
propicia fundação adequada, por si mesma, para uma concepção viável da
política e da democracia.

Muitos anos atrás, o economista Abba Lerner escrevia que “uma


transação econômica é um problema político resolvido”.11 Ora, o recurso à
deliberação coletiva não tem como evitar a suposição de que dificuldades
fundamentais no nível do conflito de interesses tenham sido resolvidas, ou de
que alguma forma de acomodação “constitucional” na coexistência dos
interesses relevantes tenha sido alcançada. Assim, seria possível dizer,
aparentemente com melhores razões do que no caso das transações
econômicas, que “um parlamento é um problema político resolvido”. Note-se
que o próprio Habermas, lidando, em Democracia e Direito, com a esfera
pública informal em que a esfera formal de deliberação parlamentar se nutre,
destaca o fato de que ela “deve, por seu turno, contar com o apoio de uma
base social em que os direitos de cidadania se tenham tornado socialmente
efetivos”, o que aponta não só para a democracia “política” (ou “formal”), mas
também para a democracia “social”: “Somente num público igualitário de

11
Abba Lerner, “The Economics and Politics of Consumer Sovereignty”,
American Economic Review, May 1972, vol. 62, no. 2, apud Samuel Bowles e
Herbert Gintis, “The Revenge of Homo Economicus: Contested Exchange and
the Revival of Political Economy”, Journal of Economic Perspectives, vol.
7, no. 1, inverno de 1993.

6
cidadãos que tenham emergido das limitações de classe e se libertado dos
grilhões milenares da estratificação social e da exploração o potencial de um
pluralismo cultural irrestrito pode desenvolver-se plenamente” – e Habermas
não deixa de acrescentar, significativamente, que esse potencial “ocorre de
maneira abundante tanto nos conflitos quanto nas formas de vida geradoras de
significado (meaning-generating forms of life)”.12

12
Habermas, Between Facts and Norms, p. 308.

7
Evoquemos aqui alguns resultados de esforços desenvolvidos por Samuel
Bowles e Herbert Gintis para mapear revisões recentes no campo da
economia, nas quais a perspectiva walrasiana neoclássica é
crescentemente confrontada por uma variedade de abordagens “pós-
walrasianas” que “repolitizam” o campo. Examinando a maneira como as
transações econômicas são tratadas em diferentes abordagens, Bowles e
Gintis sintetizam suas observações numa tabela de dupla entrada que se
refere às suposições orientadoras de cada abordagem com respeito a dois
aspectos. De um lado, temos a natureza do enforcement of claims, ou dos
mecanismos pelos quais se impõe o controle ou a regulação das transações
e dos reclamos relativos a elas: esse controle pode ser visto como
“exógeno” e exercido pelo estado, com suas leis e as imposições nelas
baseadas, ou como “endógeno”, isto é, exercido pelos próprios agentes,
num contexto que será necessariamente tenso e propenso ao conflito. De
outro lado, temos a natureza dos próprios agentes ou de suas preferências
e normas: aqui pode haver seja suposições afins ao individualismo
metodológico, em que as preferências e normas surgem como “exógenas”
e “dadas”, seja a suposição de preferências e normas “endógenas” que
podem ser mudadas, quer através do conflito aberto, quer, naturalmente,
através de processos que incluem o debate ou a deliberação coletiva.
Como ressaltam Bowles e Gintis, no caso da combinação de controle
(enforcement) exógeno com preferências e normas também exógenas
estamos na esfera marcada pelas suposições da economia neoclássica: a
atividade econômica surge aí como competição vitoriana e cavalheiresca,
em que “um aperto de mãos é um aperto de mãos” e o estado vigilante
permite que as transações ocorram sem custos. Em contraste, com
controle endógeno se tem não apenas interação estratégica, mas a “busca
do interesse próprio com perfídia”,13 e as transações inevitavelmente
envolvem custos.

Embora os autores não formulem os problemas em termos afins à


literatura “deliberativa”, o ponto que nos interessa é o de que a cela
correspondente à deliberação resulta ser, forçosamente, aquela em que temos,
de um lado, suposições “endógenas” quanto à natureza dos agentes, em que a
formação e a transformação de preferências são vistas como processos abertos
e portanto como necessariamente um objeto de estudo, e, de outro,
enforcement exógeno ou propiciado pelo estado. As transações
correspondentes a esta cela são descritas por Bowles e Gintis como
“contratuais”, em contraste com as formas “conflituosas” de intercâmbio ou
transação a serem encontradas nas categorias em que o enforcement é visto
como endógeno.14 A natureza da deliberação como um “problema político
resolvido” se torna bem clara nessa perspectiva.
13
Oliver E. Williamson, “The Economics of Governance: Framework and
Implications”, Journal of Institutional and Theoretical Economics, vol.
140, no. 1, março de 1984 (apud Bowles e Gintis, “The Revenge of Homo
Economicus”, p. 84).
14
Além de Bowles e Gintis, “The Revenge of Homo Economicus”, veja-se
também Samuel Bowles e Herbert Gintis, “Post-Walrasian Political
Economy”, em Markets and Democracy: Participation, Accountability and
Efficiency, ed. S. Bowles, H. Gintis e B. Gustafsson, Nova York,
Cambridge University Press, 1993.

8
Mas pode-se justapor a perspectiva de Bowles e Gintis a uma outra, o
que introduz um meandro curioso e importante na discussão do tema geral.
Refiro-me à perspectiva a ser encontrada entre autores ligados à abordagem
da escolha racional, especialmente Adam Przeworski, em elaborações mais ou
menos recentes sobre o problema da implantação e consolidação da
democracia.15 O aspecto curioso consiste em que, tratando-se de uma
perspectiva que pretende valer-se dos recursos “realistas” de uma abordagem
econômica dos problemas da política, a implantação e a consolidação da
democracia (ou seja, uma forma peculiarmente bem sucedida da “solução” do
problema político que Lerner aponta como suposto das transações
econômicas) são vistas como decorrendo de mecanismos self-enforcing, ou
“auto-impositivos”, que correspondem nitidamente ao caso de enforcement
endógeno de Bowles e Gintis. A diferença crucial quanto à perspectiva destes
últimos é que, em vez de o enforcement endógeno surgir associado com
formas conflituosas de intercâmbio, Przeworski o associa antes com o
“equilíbrio” que resulta dos ajustamentos espontâneos e automáticos próprios
da operação dos mecanismos do mercado. O elemento de realismo na
perspectiva de Przeworski diria respeito ao fato de que aqui se trata de
interesses: a produção da democracia poderia prescindir da referência a
normas, o que, na verdade, se desdobra na pretensão de que ela pode
prescindir também de qualquer forma de negociação ou barganha explícita.16
Mas há, em contrapartida, a idealização implícita do jogo de interesses, como
condição de que, ao invés do conflito áspero e talvez violento ou de equilíbrios
negativos que poderiam brotar, se possa vir a ter o equilíbrio propício que
conduza “automaticamente” à democracia e a consolide.

São várias as inconsistências de Przeworski.17 Mas, justapostas à


perspectiva que se obtém com Bowles e Gintis, tais inconsistências permitem

15
Veja-se especialmente Adam Przeworski, “Democracy as an Equilibrium”,
Nova York, New York University, ms., outubro de 1995; Adam Przeworski,
“Capitalismo, Democracia, Pactos”, em J. A. G. Albuquerque e E. R.
Durham, A Transição Política: Necessidades e Limites da Negociação, São
Paulo, Universidade de São Paulo, 1987; e Adam Przeworski,
“Microfoundations of Pacts in Latin America”, Chicago, University of
Chicago, ms., março de 1987. Embora este último seja um texto provisório,
que até onde sei não chegou a publicar-se, o mesmo esquema analítico é
retomado como capítulo I (“Democracy”) de Political and Economic Reforms:
Democracy and Markets in Eastern Europe and Latin America, Chicago,
University of Chicago, ms., outubro de 1990 (publicado em seguida como
Democracy and the Market: Political and Economic Reforms in Eastern
Europe and Latin America, Nova York, Cambridge University Press, 1991).
16
Aliás, uma curiosidade adicional é a de que esse “realismo” avesso às
normas tem seu próprio e explícito conteúdo normativo ou doutrinário:
Przeworski sustenta que “a quintessência da democracia é que não há
ninguém para impô-la” (to enforce it – note-se que isso significa
justamente que o enforcement seria necessariamente endógeno), e a busca
de um “consenso democrático” que marcaria muitas discussões latino-
americanas a respeito das transições recentes de regimes autoritários à
democracia é descrita como reveladora de um “legado intelectual não-
democrático”. Veja-se Przeworski, “Microfoundations of Pacts in Latin
America”, p. 8.

9
salientar o meandro importante acima anunciado. Se há um sentido bem claro
em que um parlamento, ou a operação aberta de mecanismos deliberativos,
supõe ao menos certa acomodação dos interesses e, nesse sentido, um
“problema político resolvido”, a pretensão de Przeworski no sentido de que as
transações mercantis resolvam por si mesmas o problema político se revela
infundada. O “problema político resolvido” surge como suposição necessária
também no caso em que a própria interação estratégica, ou a interação
baseada em interesses, venha a assumir formas benignas, quer se trate, na
esfera econômica convencional, de um mercado de competição regrada e
eventualmente cavalheiresca, quer se trate, na esfera sociopolítica mais
ampla, da democracia estável, fundada em instituições efetivas, nas quais um
fatal ingrediente “deliberativo” e o substrato normativo adequado estarão
sempre presentes. Esboça-se aí uma espécie de jogo dialético entre as
dimensões básicas – estratégia versus comunicação, ou autonomia versus
convergência e solidariedade –, do qual alguns aspectos adicionais serão
elaborados adiante.

III

O principal aspecto destacado nas seções anteriores aponta para a


tensão entre o ideal deliberativo e o componente estratégico e conflitual
inerente à política. Mas há outro aspecto que uma perspectiva “realista” pode
igualmente apontar (e também aponta trivialmente) como obstáculo ao ideal
deliberativo, a saber, o aspecto dos custos de organização e participação que a
deliberação envolve. Alguns desdobramentos e articulações de dimensões
variadas do problema geral podem ser apreciados a partir do exame feito por
Robert Dahl, anos atrás, dos critérios que deveriam guiar a organização
democrática da sociedade.18 Na análise de Dahl, eles são os critérios da
escolha pessoal, da economia e da competência, que interpreto aqui de
maneira mais ou menos livre.

O critério da escolha pessoal refere-se claramente à idéia da autonomia


como valor central. Em princípio, aquelas decisões que me dizem respeito
serão tomadas por mim mesmo. Como, porém, o mesmo princípio se aplica a
todos, nas decisões coletivas (ou seja, em situações em que o debate deveria
idealmente ocorrer) a tradução prática do princípio leva à idéia da igualdade
política e da busca de regras que lhe sejam afins: a unanimidade e o direito de
veto por parte de cada um, se possível, ou, mais realisticamente, a regra da

17
Assim, em “Democracy as an Equilibrium”, vemos Przeworski acabar por
admitir um tipo de equilíbrio sustentado por “compromissos normativos” e
por explorar a idéia de institucionalização em termos que envolvem a
correspondência entre normas e equilíbrios auto-impositivos. Já em
“Capitalismo, Democracia, Pactos” o vemos envolvido numa petição de
princípio em que a busca de uma solução institucional que seja auto-
impositiva para o problema da democracia é reiteradamente caracterizada
em termos que deixam evidente sua própria dependência de conquistas
institucionais prévias. Discussão mais detida se encontra em meu
“Racionalidade, ‘Sociologia’ e a Consolidação da Democracia”, republicado
em Reis, Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira.
18
Robert A. Dahl, After the Revolution: Authority in a Good Society, New
Haven, Yale University Press, 1970.

10
maioria. Notemos aqui, contudo, que há uma importante alternativa em que o
critério é satisfeito fora da esfera do debate e dispensando o debate. Refiro-me
ao mercado, ou a mecanismos análogos aos do mercado de que se acaba de
falar a propósito de sugestões de Przeworski. Nas situações em que operam
tais mecanismos, em vez de deliberar conjuntamente, debater e talvez votar,
as pessoas simplesmente agem por si mesmas e fazem o que julgam melhor,
com ajustamentos espontâneos do comportamento de cada um ao dos demais
(como diz Przeworski ao definir o conceito de “equilíbrio”, “cada qual faz o que
é melhor para si dado o que os outros fazem”).19 Naturalmente, os mecanismos
de mercado envolvem riscos de negação da possibilidade de escolha pessoal:
não apenas cada qual é exposto às inconveniências ou “externalidades” (na
linguagem dos economistas) que derivam do livre comportamento dos demais
e suas consequências no nível agregado, mas também “o que os outros fazem”
pode resultar na introdução de elementos de poder e desigualdade, com
monopólios ou oligopólios. Mas, se o mercado apresenta esses custos
“externos”, o esforço de organização e de levar as pessoas à participação em
decisões coletivas tem seus próprios custos (“internos”), o que cria a
necessidade de recorrer a outro dos três critérios de Dahl, o da economia.

O critério da economia destaca justamente os custos envolvidos nas


decisões coletivas, procurando reduzi-los. Em contraste com a frequente
adesão sem qualificações à participação como desiderato (que tende a
esquecer o valor de se poder simplesmente ir para casa em paz…), uma
sociedade que exigisse a dedicação em tempo integral às deliberações
coletivas seria obviamente problemática, e a questão se torna então a de
estabelecer o grau de envolvimento público que seria adequado para garantir
que os interesses ou os valores básicos de cada um (isto é, a autonomia)
fossem preservados. O critério da economia se acha claramente envolvido na
regra da maioria como um compromisso tanto no que se refere à unanimidade
quanto, no caso de tratar-se da escolha eleitoral de líderes, na aceitação
realística da representação, em vez das formas de deliberação que envolvam a
participação direta de todos e que uma concepção ambiciosa do ideal
deliberativo nos levaria a contemplar. Mas a delegação com base na
competência, o critério restante de Dahl, pode também ser visto como
justificado, em última análise, por considerações de custos.

O critério da competência diz respeito à qualificação supostamente


superior de algumas pessoas ou seu maior controle de informação relevante
como razão para que as decisões lhes sejam delegadas, em consonância com a
perspectiva do rei-filósofo mencionada acima. Sua ligação com a idéia de
custos é bastante clara, já que ninguém pode esperar ter condições de investir,
em qualquer momento dado, o volume de energia e recursos que seria
necessário para chegar por si mesmo – e em tempo hábil – a boas decisões
sobre os problemas que emergem. Contudo, embora isto não seja destacado
pelo próprio Dahl, o critério da competência introduz de maneira
particularmente nítida um problema que ocorre sempre que tenhamos
representação e, portanto, a decisão por alguns em nome de outros.
Naturalmente, o mero fato de que alguém mais esteja mais bem informado
sobre certo assunto dificilmente seria razão para que eu aceitasse sua decisão
19
Przeworski, “Democracy as an Equilibrium”.

11
em meu nome se eu não pudesse supor que a pessoa em questão se identifica
comigo e busca de fato o meu melhor interesse – caso contrário, seu maior
conhecimento ou informação pode na verdade surgir como algo a ser temido
por mim.

Assim, questões que se referem ao controle de recursos de natureza


cognitiva ou intelectual, em articulações matizadas com problemas de
identidade, acabam por mostrar-se cruciais em conexão com o tema da
representação.

Dimensão relevante dos problemas que surgem aqui tem a ver com a
questão da tecnocracia – uma preocupação saliente, como é sabido, da
tradição de pensamento, incluindo a chamada Escola de Frankfurt, a que
muitas das idéias de Habermas se acham relacionadas. A característica central
de uma perspectiva tecnocrática pode ser apontada na tendência a supor que
os fins são dados e não-problemáticos, donde se seguiria que o problema
importante é o do grau de conhecimento “técnico” ou de informação com
respeito aos meios que deverão levar aos fins. Ao contrário, a democracia se
baseia no suposto de que os fins são problemáticos: os fins relevantes são
múltiplos, dizendo respeito aos numerosos indivíduos e a coletividades ou
categorias não apenas diversas, mas ocasionalmente antagônicas, e o desafio
decisivo é o de como conciliar e acomodar a multiplicidade de fins.20
Naturalmente, no que se refere à definição dos próprios fins dificilmente se
poderia sustentar que os peritos ou especialistas devessem desfrutar de
precedência sobre os cidadãos comuns, sob pena de se negar de vez o
compromisso com a idéia mesma de democracia. Isso tem desdobramentos
importantes quanto ao papel dos recursos cognitivos relativamente ao tema
geral da democracia, da participação e da deliberação: quaisquer que sejam as
reservas realísticas a serem impostas às formulações mais radicais ou
ambiciosas do ideal deliberativo, permanece inevitavelmente, em algum grau,
a necessidade de mecanismos que permitam aos cidadãos comuns se
tornarem capazes de pelo menos colocar a questão de como diferentes
políticas, na qualidade de “meios” (talvez em níveis diversos de cadeias mais
ou menos complexas de fins e meios), se articulam com os fins “últimos” a
serem perseguidos – se necessário pelo questionamento dos próprios peritos,
ademais dos líderes.

Mas, mesmo se pomos de lado a questão específica da tecnocracia, o


problema da identidade continua a colocar-se em conexão com a
representação. Ou se justifica a suposição de um grau extraordinário de
identificação entre representantes e representados ou alguma forma de
controle dos primeiros pelos últimos será necessária. A combinação do acesso
20
Note-se, de passagem, que a denúncia da tecnocracia encontrada em
Habermas, ou, em geral, a denúncia da “colonização” das esferas
comunicativas por elementos de natureza instrumental, é outro aspecto com
respeito ao qual se mostram as dificuldades do empenho de separar mais
cortantemente o instrumental e o comunicativo. É impossível deixar de
reconhecer a base instrumental do próprio questionamento da tecnocracia:
qual é a condição alternativa (ou o fim alternativo) a ser buscada, e
como poderemos avançar rumo a essa condição, isto é, a que meios
deveremos recorrer?

12
diferencial à informação relevante com a falta de identificação e confiança
completas nas relações entre representantes e representados é, naturalmente,
o ponto central da teoria sobre as relações mandante-agente (principal-agent
theory), elaborada em campos novos como a “economia da informação”, de
Joseph Stiglitz, ou, em geral, na economia “pós-walrasiana” anteriormente
mencionada.21 Os problemas aí tratados são de clara importância na vida das
corporações econômicas, como, por exemplo, nas relações entre proprietários
e administradores, ou entre estes e os trabalhadores. Mas são também
cruciais, obviamente, na esfera da política democrática, sobretudo no que se
refere às relações entre os cidadãos como mandantes e os representantes
eleitos como mandatários ou agentes: que mecanismos serão necessários para
assegurar sensibilidade, responsabilidade e a apropriada prestação de contas
(accountability) por parte dos mandatários?22

Mas questões de identidade se aplicam também, de maneira peculiar, à


própria regra da maioria. Ela envolve, como parte da suposição relativa a
“graus de unanimidade”, a suposição de que os agentes ou votantes são
intercambiáveis e de que suas vontades ou manifestações de preferência
podem ser agregadas. Isso redunda em tratar as identidades, em qualquer
sentido mais ou menos ambicioso da expressão e particularmente em suas
ligações com categorias coletivas de diferentes tipos, como irrelevantes: as
pessoas (os votantes) têm apenas interesses ou preferências mais ou menos
imediatistas ou míopes (de novo, preferências “dadas” ou “exógenas”), ou,
pelo menos, se supõe que elas sejam suficientemente semelhantes com
respeito aos fatores fundamentais de identidade para permitir que se ponham
de lado as questões relativas à intensidade das preferências ou à formação e à
transformação delas – questões estas que fatalmente envolvem a identidade e
podem levar, por exemplo, aos temas que certa literatura tem tratado em
termos de “planejamento de caráter” (character planning).23 O que há de
problemático nesses supostos se mostra com especial nitidez no contraste, ao
qual Arend Lijphart em particular tem dado atenção, entre os sistemas
majoritários e os sistemas “consociativos” ou “consensuais”: estes últimos
destacam precisamente a necessidade de dar representação apropriada
àquelas identidades compartilhadas (identidades territoriais há muito
relacionadas ao federalismo, identidades étnicas, religiosas etc.) cuja
importância para as pessoas envolvidas proíbe que sejam tratadas meramente
em termos de contar cabeças, com a consequência possível de que
identidades coletivas de profunda significação sejam colocadas
permanentemente em posição minoritária e se deixe de considerar os
interesses correspondentes de qualquer natureza.24

21
Veja-se, por exemplo, Joseph Stiglitz, Whither Socialism?, Cambridge,
Mass., The MIT Press, 1994, e Bowles e Gintis, “The Revenge of Homo
Economicus”.
22
Veja-se Bernard Manin, Adam Przeworski e Susan C. Stokes,
“Introduction”, em Democracy, Accountability, and Representation, ed. A.
Przeworski, S. C. Stokes e B. Manin, Nova York, Cambridge University
Press, 1999.
23
Veja-se Jon Elster, Sour Grapes: Studies in the Subversion of
Rationality, Nova York, Cambridge University Press, 1985.

13
IV

Quaisquer que sejam as dificuldades ao se tratar de traduzir em termos


práticos o ideal do debate livre e “autêntico”, já temos em operação, na
aparelhagem institucional dos estados democráticos, muitos arranjos
tradicionais em que o ideal deliberativo se realiza em algum grau e
mecanismos sugeridos por critérios como os de Dahl se combinam de
diferentes maneiras. Assim, temos a arena legislativa (o parlamento ou
congresso), marcada por um explícito intuito deliberativo, apesar de baseada
na representação de interesses e identidades coletivas por meio de eleições e
de recorrer com frequência à regra da maioria; temos a esfera judicial, com
recurso frequente à presunção de competência especial na figura do juiz, mas
também com o júri popular em que a representação de opiniões e identidades
é igualmente introduzida de alguma forma, não obstante o papel reservado ao
contraditório e ao debate aberto; temos espaços, como os conselhos em nichos
diversos do aparato estatal ou em instituições como as universidades, em que
a deliberação muitas vezes assume formas bastante próximas da observância
de um princípio consensual ou de unanimidade; e assim por diante. Mas vários
problemas relevantes emergem em conexão com essa variegada
experimentação, na qual encontramos também mecanismos novos e menos
formais.

Podemos considerar, para começar, os problemas levantados na


perspectiva do “realismo legal”, discutido por Ronald Dworkin em Taking
Rights Seriously e destacado por Francis Sejersted, alguns anos atrás, em texto
sobre a transição do constitucionalismo liberal ao pluralismo corporativo no
caso da Noruega.25 A consideração central é que podemos ter melhores
condições para a deliberação democrática efetiva e a tomada de decisões
coletiva (vale dizer, para o debate em que diferentes pontos de vista sejam de
fato levados em conta) se damos representação apropriada aos interesses e
identidades afetados pelas decisões, isto é, se democratizamos a deliberação.
Naturalmente, isso é trivial de certo ponto de vista, pois a idéia envolvida se
acha subjacente ao próprio recurso à representação em geral. Mas, como
assinalado por Sejersted, “esse princípio colide com a noção liberal do juiz
imparcial, a qual sustenta que aqueles que têm interesse em um caso devem
ser vistos como desqualificados para decidir sobre ele”. 26 E cabe acrescentar
que o princípio colide igualmente com a visão idealizada do debate como
baseado na pura força dos argumentos, pois supor a necessidade da presença
efetiva de representantes dos diferentes interesses no processo de deliberação
é admitir que esse processo estará inevitavelmente marcado pela interação
24
Veja-se, por exemplo, Arend Lijphart, Democracy in Plural Societies: A
Comparative Exploration, New Haven, Yale University Press, 1977.
25
Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Cambridge, Mass., Harvard
University Press, 1977; Francis Sejersted, “From Liberal
Constitutionalism to Corporate Pluralism: The Conflict over the Enabling
Acts in Norway after the Second World War and the Subsequent
Constitutional Development”, em Constitutionalism and Democracy, ed. Jon
Elster and Rune Slagstad, Nova York, Cambridge University Press, 1993.
26
Sejersted, “From Liberal Constitutionalism to Corporate Pluralism”, p.
299.

14
estratégica, ou por fatores que deveriam ser vistos como espúrios daquele
ponto de vista idealizado: argumentos baseados em regras, por exemplo, vão
surgir, pondera Sejersted, como racionalizações. 27 Apreciado na perspectiva
das discussões que lidam com a “procedimentalização” entendida como
maneira de levar processos reais de deliberação coletiva a se aproximarem do
modelo do debate “autêntico” e baseado exclusivamente na força dos
argumentos, o princípio surge como claramente contraditório. Pois restringir o
papel da “competência” e ampliar o espaço da interação estratégica aberta
entre os interesses aparece nele como forma de melhorar os resultados dos
processos de deliberação com respeito a algo que deveria ser crucial para
aquele modelo, ou seja, a possibilidade de que diferentes pontos de vista
sejam efetivamente considerados.

Como indicado pelo contexto da discussão de Sejersted, uma


ramificação relevante de tais problemas se tem com o tema do corporativismo
ou do “pluralismo corporativo” (como alguns, incluindo Dahl e o próprio
Sejersted, o chamam, com certas conotações ambíguas).28 Naturalmente, o
problema de dar representação apropriada aos vários interesses surge também
com respeito à arena parlamentar tradicional. Mas o corporativismo envolve
deliberação em espaços institucionais que contornam os mecanismos de
representação eleitoral e parlamentar. Na verdade, essa é a razão principal da
resistência usualmente oposta ao corporativismo em nome da democracia,
pois os mecanismos de deliberação corporativa com frequência têm
acarretado, em grau maior ou menor, informalidade, reduzida visibilidade e a
criação de monopólios de representação, além de supor um papel importante
(“autoritário”?) por parte do estado como promotor da convergência
corporativa. Contudo, o corporativismo, com tais traços supostamente
negativos, desenvolveu-se de modo natural, em países com longa tradição
liberal-democrática, a partir da dinâmica sociopolítica prévia de uma estrutura
que era ela própria autenticamente liberal e pluralista29 – o que se deu, em
larga medida, como mera resposta aos fortes incentivos a que os interesses
com acesso menos “natural” ao estado, por serem de partida menos providos
de recursos “privados” de vários tipos, se organizassem de modo a compensar
essa deficiência. Além disso, o caráter de democratização que Sejersted
salienta nesse processo é inegável, na medida em que o corporativismo torna
possível a uma categoria de agentes (os trabalhadores), anteriormente menos
presentes em decisões socioeconômicas de interesse crucial para eles, passar
a participar de tais decisões em grau que vai muito além da influência que
pode ser exercida através dos mecanismos eleitorais, ao propiciar-lhes a
27
Donde o rule-scepticism da escola de realismo legal, segundo Sejersted.
“Poder positivo só pode ser confrontado com poder positivo, o que
significa que a única maneira pela qual os fracos podem obter garantias e
segurança é se tornarem fortes. A segurança legal deve consequentemente
basear-se no direito de participar do processo de tomada de decisões”.
Idem, p. 299.
28
Robert Dahl, Dilemmas of Pluralist Democracy: Autonomy vs. Control, New
Haven, Yale University Press, 1982.
29
Embora a literatura costume confundir as coisas ao adotar rótulos como
o de “pluralismo democrático” ou o de “neocorporativismo”, pretendendo
que se trate de um corporativismo diferente daquele que ocorre em países
de menor tradição democrática.

15
representação funcional como trabalhadores nos círculos corporativos. Isso
tem sido visto por alguns autores, com boas razões, como um desenvolvimento
decisivo até mesmo do ponto de vista inclinado a destacar a importância da
democracia político-eleitoral, pois ele seria parte central do “compromisso
social” que esteve sujacente à estabilidade democrática em seguida à Segunda
Guerra Mundial, particularmente nos países que aderiram de forma mais plena
aos arranjos socialdemocráticos. Nessa perspectiva, o corporativismo se
associa com o estado de bem-estar e com o enriquecimento da própria idéia de
cidadania em termos dos direitos sociais que Marshall destacou, ao lado dos
seus componentes relativos aos direitos civis e políticos. E os novos
desenvolvimentos trazidos pela globalização intensificada, ao enviar de novo
às asperezas do mercado os aspectos correspondentes à dimensão social da
cidadania e ao comprometer as estruturas corporativas, podem ser vistos
como colocando em risco a própria democracia.30

Duas observações devem ser acrescentadas. A primeira é que se pode


mostrar que o corporativismo, por certo aspecto, envolve problemas análogos
aos da representação consociativa. Em outras palavras, ele diz respeito não
somente a “interesses”, em sentido restrito, mas também a identidades: os
mecanismos corporativos envolvem a representação de certa categoria de
pessoas, a qual, apesar de referir-se a critérios ocupacionais, pode adquirir
significação para a definição das identidades individuais de maneira que
resulta análoga à que temos com os grupos étnicos ou religiosos. Na verdade,
parte decisiva do processo que leva à socialdemocracia, bem como à sua
importância para a estabilização da democracia como tal, se liga ao fato de
que a inclusão das organizações de trabalhadores nas deliberações
corporativas ajudou a neutralizar ou reduzir a relevância política das
identidades pertinentes, e assim a reduzir, na política cotidiana dos países
envolvidos, a importância do risco (ou da percepção do risco) da revolução
anticapitalista.

A segunda observação se refere ao fato de que esse aspecto (a redução


da importância ou saliência política de identidades coletivas) corresponde a um
traço de natureza geral a operar no processo de estabelecer e consolidar a
democracia. O interesse de destacar esse aspecto é realçar outra faceta do
aparente paradoxo mencionado acima: representar os interesses, ou seja, criar
arenas em que o jogo estratégico dos interesses possa assumir caráter
institucional, apesar de estar aparentemente em conflito com o modelo
idealizado do debate, de fato vem a ser a forma decisiva de criar condições
30
A literatura que destaca os vínculos entre a democracia e a idéia de um
compromisso social inclui, por exemplo, Adam Przeworski, Capitalism and
Social Democracy, Nova York, Cambridge University Press, 1985, and J.-A.
Bergougnoux & Bernard Manin, La Social-Démocratie ou le Compromis, Paris,
PUF, 1979. Tanto Przeworski, nesse volume, quanto Dahl, em Dilemmas of
Pluralist Democracy, são exemplos de autores que expressam preocupação
com os riscos para a própria democracia se os arranjos socialdemocráticos
e o “pluralismo corporativo” são postos em xeque. Naturalmente, ainda que
o estabelecimento de mecanismos efetivos possa ser difícil, em princípio
não há razão para que os argumentos eventualmente favoráveis à criação de
espaços corporativos de representação de interesses ocupacionais ou
funcionais não se apliquem também a interesses de outros tipos.

16
favoráveis à operação efetiva, em âmbitos variados, de processos de
deliberação coletiva, em vez do conflito aberto ou de sua perene ameaça. Isso
tem sido tratado na literatura sob o rótulo de “segmentação”, com a qual a
tendência de que problemas de identidade se desdobrem em disposições
beligerantes pode ser neutralizada e o processo político pode eventualmente
vir a assumir caráter “desideologizado” e marcado pela tolerância e pelo ânimo
propício à negociação e ao debate.31 Mas assinale-se algo mais: as condições
que permitem a criação de espaços de discussão e deliberação (e são
estimuladas por eles) favorecem também a operação dos mecanismos de
mercado, orientados pela busca tendencialmente pragmática ou “fria”, e talvez
“racional”, do interesse próprio.

Examinemos por um momento o estado como tal em conexão com o


problema geral das dificuldades nas relações entre a consideração “realística”
dos interesses e das identidades ocasionalmente antagônicas, por um lado, e,
por outro, a atenção apropriada aos aspectos de convergência e solidariedade
que o modelo ideal de deliberação supõe. A questão central é aqui a de se o
estado deveria ser visto como o instrumento principal de convergência e
solidariedade (de produção de poder coletivo, ou de poder sobre a “natureza”,
a ser exercido no interesse de todos) ou antes como o instrumento estratégico
de dominação de umas pessoas sobre as outras (vale dizer, como parte do
problema da distribuição de poder entre os cidadãos). Algumas observações de
interesse podem ser feitas se a questão é considerada com referência às
frequentes discussões (e confusões, dentro ou fora de círculos marxistas) sobre
a chamada “autonomia do político”, frequentemente tomada como significando
a autonomia do próprio estado.

31
Veja-se, por exemplo, Giovanni Sartori, Parties and Party Systems: A
Framework for Analysis, vol. I, Nova York, Cambridge University Press,
1976. Embora o tema da segmentação seja aí explorado em suas conexões
especificamente com os partidos e os sistemas partidários, Sartori remete
ao sentido sociológico geral do conceito estabelecido por Talcott Parsons
em Structure and Process in Modern Societies (Nova York, The Free Press,
1960, p. 263), onde a “segmentação” é distinguida da “diferenciação” pelo
fato de que, enquanto subsistemas diferenciados exercem funções
diferentes mas complementares, subsistemas segmentados exercem as mesmas
funções. Politicamente, isso se associa com a idéia de que as decisões
importantes para os subsistemas ou categorias coletivas parciais, como as
que dizem respeito a identidades e vínculos “primordiais” (Geertz), sejam
deixadas nas mãos dos próprios segmentos envolvidos, assegurando-se sua
autonomia e a despolitização das questões de identidade – e abrindo-se
assim a possibilidade da construção de espaços de negociação e
deliberação conjunta quanto aos demais assuntos. Aguda exploração do tema
geral pode ser encontrada em Stephen Holmes, “Gag Rules or the Politics
of Omission” (em Elster e Slagstad, Constitutionalism and Democracy),
onde as teses de Lijphart sobre consociativismo são aproximadas das
idéias de Clifford Geertz em “The Integrative Revolution: Primordial
Sentiments and Civil Politics in the New States”, em C. Geertz, The
Interpretation of Cultures, Nova York, Basic Books, 1973.

17
Há alguns sentidos bem distintos em que a fórmula da “autonomia do
político” é usualmente entendida, incluindo um sentido que se refere a
questões de natureza metodológica e outros em que as questões envolvidas se
poderiam designar como “substantivas” ou teóricas. Se tomamos o primeiro
sentido, em que a fórmula diz respeito a um problema de relações causais
entre diferentes esferas ou planos da realidade social tal como vistas por
modelos analíticos em competição, parece não haver como escapar do recurso
a um velho postulado que responde em termos “sociológicos” à indagação
básica envolvida: as características assumidas pelo estado surgem aí como
dependentes de um substrato correspondente à distribuição social do poder.
Nesta perspectiva, o fato de que o estado venha a revelar-se, em algum grau
significativo, quer a expressão da vontade de todos (do interesse público), quer
um instrumento apropriado por alguns e usado para reprimir e explorar os
outros depende, em princípio, da forma assumida pelo jogo de interesses que
tem lugar no nível da própria sociedade e de quem nele prevalece (os
marxistas diriam que depende da luta de classes). Tal postulado nada mais faz
do que ver o estado, afinal de contas, como parte da sociedade, e não é de
maneira alguma incompatível com o reconhecimento da ocorrência ocasional
de um amplo grau de “iniciativa” estatal. Mas duas coisas de interesse podem
ser ditas se começamos desse postulado analítico ou metodológico.

Em primeiro lugar, aderir ao postulado não redunda em dar qualquer


resposta predeterminada às questões envolvidas nos vários sentidos
“substantivos”, ou pertinentes propriamente à teoria política, que podem ser
atribuídos à fórmula da “autonomia do político”. Creio que três desses
significados substantivos podem ser distinguidos: o do grau em que o estado
se mostra socialmente “neutro”, ou neutro com respeito a interesses como os
de classe; o da “presença” do estado, ou de sua capacidade de iniciativa que
se acaba de mencionar (stateness); e o da medida em que a arena política se
revela adequadamente institucionalizada e, como consequência, protegida das
vicissitudes e dos resultados cambiantes do processo sociopolítico cotidiano (a
“autonomia da arena política”, na velha expressão de Huntington, em
contraste com a condição “pretoriana” em que as instituições são fracas e os
conflitos sociais levam a que meios de qualquer natureza, incluídos os
violentos, sejam empregados diretamente na arena política).32 Em segundo
lugar, algo talvez mais importante nesta discussão: o problema prática e
teoricamente crucial do ponto de vista político, a saber, o de estabelecer e
consolidar a democracia (que se acha claramente relacionado à questão
huntingtoniana esboçada), na verdade gira em torno, justamente, de certa
articulação das questões salientadas nestes três significados substantivos da
“autonomia do político”, no quadro propiciado pelo postulado metodológico.
Pois, assim como podemos ter um estado que intervém porque não é neutro,
ou porque algum dos atores envolvidos no conflito social foi capaz de controlá-
lo de vez (considere-se a idéia da “ditadura do proletariado”, ou a experiência
do regime brasileiro de 1964, no qual tínhamos a combinação de forte
intervencionismo com óbvio viés quanto aos vínculos e lealdades sociais dos
donos do poder estatal), assim também podemos ter regras do jogo estáveis e
consolidadas (institucionalizadas), e mesmo formalmente democráticas, que,
32
Samuel P. Huntington, Political Order in Changing Societies, New Haven,
Yale University Press, 1968.

18
não obstante, resultam em consagrar relações de dominação abertas ou
veladas (considere-se a idéia da “dependência estrutural” do estado perante os
interesses empresariais como algo inerente ao capitalismo, ou o diagnóstico da
“tecnoestrutura” formulado por John Kenneth Galbraith anos atrás com
respeito aos Estados Unidos).

Isso deságua em que, no que diz respeito ao estado, o problema da


democracia, num sentido ambicioso da expressão, é justamente o de criar as
condições (que não podem deixar de ser em larga medida sociais, apesar de
incluir inevitavelmente o desafio de construção institucional “artificial”) para
que o estado seja de fato neutro: como estabelecer um “compromisso social”
que permita ao próprio estado um grau importante de autonomia diante das
relações estratégicas e das fatais assimetrias da dinâmica dos interesses
privados, de tal forma que se torne possível a ele intervir não somente para
garantir os “direitos liberais”, mas também para buscar compensar as
desigualdades na distribuição social de poder e assegurar as “liberdades
positivas” em que todos venham a ter melhores perspectivas de auto-
realização pessoal.

Ora, essa concepção de um estado autônomo acha-se claramente em


conflito, de certo ângulo, com o ideal da “soberania popular”. Este último
supõe um público homogêneo ao qual o estado deve estar submetido,
enquanto as sugestões acima se referem a sociedades desiguais e ao risco de
que o empenho de submeter o estado à sociedade resulte em submetê-lo aos
cidadãos poderosos e em transformá-lo no famoso “comitê” para a promoção
dos seus interesses. Mas há outro ponto a ser destacado quanto às
preocupações centrais desta discussão. Ele diz respeito ao fato de que, não
obstante toda a ênfase anterior na necessidade de representar
apropriadamente os interesses no estado, não há como deixar de reconhecer
que o estado que queremos deve ser, em grande medida, um estado
paternalista – vale dizer, um estado que não esteja restrito a responder à
capacidade diferencial de pressão por parte dos diversos focos privados de
interesse e identidade. O reconhecimento dessa exigência se reforça pela
impossibilidade de dar representação a todos os interesses, os quais em
muitos casos não alcançam jamais a capacidade de se mostrarem vocais e
afirmativos (em parte precisamente por não chegarem a se constituir em focos
reais de identidade coletiva).

Restaria, então, a indagação de até que ponto uma disposição


propriamente “virtuosa” teria de ser entronizada nesse estado paternalista, ou
se, diversamente, seria possível apostar em esforços de construção
institucional realista do tipo visto como caracterizando a perspectiva dos “Pais
Fundadores” nos Estados Unidos, em que se procura salvaguardar o interesse
público por meio do jogo institucional de egoísmos e “facções”. A resposta
adequada estará certamente na busca de equilíbrio entre os dois pontos de
vista. É ilusório pretender que um grau significativo de neutralidade do estado
possa derivar meramente da virtude, e o equilíbrio de poder será
provavelmente necessário em alguma medida. Mas é igualmente ilusório –
como vimos antes a propósito das apostas de nomes ligados à perspectiva da
“escolha racional” quanto à implantação e à consolidação da democracia –

19
pretender que o mero jogo dos interesses, assumindo benigna forma
“mercantil” antes que violenta ou beligerante, conduza por si só à solução self-
enforcing do próprio problema constitucional ou, nos termos de Abba Lerner, à
condição em que o “problema político” geral se acha “resolvido”. Ainda que,
quando se trata do nível “operacional” ou cotidiano da coexistência política, o
mercado propicie, especialmente em sociedades grandes e complexas, o
modelo com cuja operação mais difusa se deverá contar, e embora a operação
do modelo de deliberação suponha espaços institucionais apropriadamente
“acomodados”, não há como imaginar a construção de instituições políticas
sem a instauração de espaços de deliberação e a presença de fatores
normativos e “deliberativos” que eventualmente propiciem “pactos” bem
sucedidos, em diversos níveis, e lhes dêem consequência. E instituições
efetivas, como também se viu, são necessárias para o funcionamento
adequado do próprio mercado.

VI

Como quer que seja, em particular nas condições próprias de sociedades


grandes e complexas, a forma por excelência de se assegurar a autonomia a
custos “internos” ou organizacionais aceitáveis redunda em reduzir o espaço
em que a deliberação coletiva se faz necessária e procurar criar as condições
para a atuação dos mecanismos de mercado, ou seja, nas quais as pessoas
possam agir por si mesmas, com a minimização simultânea também dos custos
“externos”. Os indispensáveis esforços de construção institucional e
“procedimentalização” serão então guiados, no nível mais abrangente, pela
idéia de que as decisões serão em princípio tomadas pelos próprios atores
dispersos, o que não tem por que ser lido, como se acaba de reiterar, como
significando que não se deva recorrer a procedimentos afins ao modelo
deliberativo sempre que possível. O equilíbrio no que se refere à preocupação
com os custos “internos”, de um lado, e com os custos “externos”, de outro,
será buscado por referência a princípios como o da “subsidiariedade” que se
costuma invocar nas discussões sobre o federalismo, o qual supõe que as
decisões serão transferidas para um nível mais “alto” (do nível dos indivíduos
para aquele de coletividades cada vez mais amplas e abrangentes) somente à
medida que a natureza dos problemas o exija.

Essa perspectiva, que alguns poderiam pretender qualificar de


meramente “liberal”, pode invocar em seu apoio até mesmo o modelo da
sociedade comunista descrito por Marx na Ideologia Alemã, onde o
individualismo e a autonomia individual são levados ao ponto do capricho – não
obstante a óbvia falta de sensibilidade que Marx aí revela quanto ao problema
das “externalidades”, donde a aposta na eliminação do estado. Mas há algo
mais a salientar. O compromisso e o equilíbrio que aqui se procuram entre a
ênfase “realista” nos interesses e o potencial de conflito neles contido, por
uma parte, e os elementos normativos e consensuais afins ao modelo
deliberativo, por outra, encontram certa correspondência numa duplicidade de
faces que cabe apontar na própria noção de mercado. Esta noção pode, assim,
passar a representar ela mesma o ponto de referência para uma espécie de
“utopia realista”, em que se recupera algo da idealização das relações

20
mercantis acima assinalada em Przeworski, desde que corrigida quanto à visão
das instituições políticas como efeitos benignos e automáticos do mercado.

O mais claro suporte dessa perspectiva se encontra na obra de Max


Weber. Nas análises weberianas, o mercado surge como a síntese entre, de um
lado, a “sociedade” e a “ação societária” (distinguidas pela busca “racional” do
interesse próprio, o lado “áspero” do mercado que acima se vinculou a sua
expansão com o processo de globalização) e, de outro lado, a “comunidade” e
a “ação comunal” (ou “comunitária”), distinguidas pelo sentimento de se ser
parte de um todo. O aspecto comunitário do mercado envolve a operação de
um princípio de solidariedade, ainda que se trate de uma solidariedade “rala”,
bem como a adesão a normas que regulam e mitigam a busca por todos do
interesse próprio, assegurando assim que as transações e interações baseadas
no interesse possam ocorrer de maneira reiterada e duradoura sem degenerar
na situação hobbesiana de fraude generalizada e eventualmente de
beligerância.33 Essa solidariedade “rala” pode ser vista como a solidariedade ou
a sociabilidade possível “entre estranhos”, na fórmula sugerida por Bruno Reis
como uma espécie de correção e generalização do enunciado de Weber
segundo o qual as relações de mercado se dão “entre indivíduos que não são
companheiros, vale dizer, entre inimigos”.34

Se o mercado é visto como distinguido por tais traços, é possível atribuir-


lhe alcance e relevância que vão muito além da esfera convencionalmente
concebida como “econômica”, tornando-se apropriado falar de uma espécie de
“mercado político” como idéia reguladora capaz de abranger importantes
aspectos do ideal democrático. Essa sugestão pode ser melhor apreciada por
meio da reavaliação da idéia de interesse. O uso corrente tende a vincular
“interesses” sobretudo com a esfera econômica definida em termos estreitos,
em conexão com valores ou objetivos de natureza “material”. Contudo, se
tomamos a noção de interesse como equivalendo, de maneira geral, à “auto-
afirmação” de que fala Habermas (ou à “auto-distinção”, para dar a Pizzorno o
33
Veja-se, por exemplo, Max Weber, Economía y Sociedad, México, Fondo de
Cultura Económica, 1964, pp. 33-35 e 493-497. Em textos anteriores me
valho das idéias de Weber sobre o mercado ao procurar refletir sobre o
processo de mudança ou desenvolvimento político. Vejam-se especialmente
Fábio W. Reis, “Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Político” e
“Para Pensar Transições: Democracia, Mercado, Estado”, em F. W. Reis,
Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira, São Paulo,
Edusp, 2000.
34
Bruno P. W. Reis, “O Mercado e a Norma: O Estado Moderno e a
Intervenção Pública na Economia”, Revista Brasileira de Ciências Sociais,
vol. 18, no. 52, junho de 2003. A citação de Weber é tomada de Economía y
Sociedad, p. 496. De novo, note-se como essa concepção do mercado
apresenta afinidades com idéias expressas por Habermas sobre alguns
traços cruciais da esfera pública na mesma passagem acima citada de
Between Facts and Norms (p. 308). Depois de destacar os elementos
comunicativos necessários para o controle dos conflitos e os requisitos
sociais desses elementos, Habermas aponta para uma espécie de estado
final de “solidariedade entre estranhos – estranhos que renunciam à
violência e, além disso, na regulação cooperativa de sua vida em comum,
concedem-se uns aos outros o direito de permanecer estranhos” (grifo de
Habermas).

21
crédito devido), torna-se claro que ela se acha logicamente entrelaçada com as
idéias de poder e de interação estratégica – e que não há razão para restringir
a categoria do mercado, vista como o espaço do jogo dos interesses, à arena
econômica. Na verdade, a referência às categorias de “interesses”,
“estratégia” e “poder”, e às afinidades entre elas, resulta em propiciar critério
fundamental para uma definição analítica da política como tal, em contraste
com a referência rombuda (a que se recorre com frequência, seja explícita ou
implicitamente) ao estado como uma espécie de “pedaço” concreto da
sociedade. De acordo com essa definição, a política teria a ver com os
problemas postos pela interação estratégica e a busca de auto-afirmação ou de
poder em qualquer contexto social concreto, independentemente do conteúdo
específico dos fins ou valores que podem ser objeto de conflito ou cooperação
em uma ou outra esfera de interação – fins materiais ou “econômicos” ou fins
relacionados com religião, classe, raça, etnia, gênero, geração ou o que mais
seja. Em outras palavras, a política, entendida como o jogo dos interesses e
sua eventual acomodação, não tem conteúdo próprio e é socialmente ubíqua:
ela penetra, mesmo se em forma “larvar”, as relações sociais de qualquer tipo,
dizendo respeito à “base social” dos conflitos e aos focos potenciais ou atuais
de solidariedade e identificação grupal que se envolvem em tais conflitos – da
mesma forma em que diz respeito também à expressão organizacional dos
conflitos e solidariedades no nível convencionalmente referido como “político”
ou “político-institucional”, onde o fator de convergência representado por um
estado apropriadamente complexo e efetivo se afirma, como condição de que
o jogo dos interesses não leve a Hobbes. De novo, não há como deixar de
assinalar o componente “deliberativo” envolvido na aposta quanto a essa
expressão organizacional (e parlamentar) dos conflitos.

Naturalmente, se assim ampliamos o alcance da noção de mercado,


acabamos por resgatar a velha idéia da sociedade pluralista e individualista.
Nessa sociedade, a concepção prevalecente de virtude cívica é uma concepção
contida ou moderada, marcada sobretudo pela idéia de “tolerância” –
precisamente a sociabilidade ou solidariedade “entre estranhos”, ou a out-
group morality de que trata Wolfgang Schluchter,35 que se acha em nítido
contraste com a fusão e a efusão psicológicas e com o risco de fanatismo e as
disposições beligerantes que tendem a associar-se com elas. Munidos dessa
forma de moralidade cívica, indivíduos autônomos poderão não só escolher
seus parceiros e suas lealdades em diferentes esferas específicas, mas
também, como se assinalou acima a propósito da autonomia como
autocontrole, até mesmo sua identidade pessoal. Assim, a capacidade que
manifestem os indivíduos de “descentração” e distanciamento com respeito à
sociedade, além de suas óbvias conexões com o sentido “nobre” de autonomia
(ou com a autonomia real) e com a possibilidade de neutralizar a relevância
política de questões relacionadas à identidade, torna-se a condição para uma
forma reflexiva de solidariedade que evita as conotações negativas da mera
imersão na sociedade e da identificação ingênua com ela. Sem dúvida, temos
aqui um aspecto claramente paradoxal, do qual não parece haver como
escapar: se vamos ter a efetiva institucionalização ou penetração de uma
cultura democrática e pluralista, de modo a evitar a condição problemática em
35
Wolfgang Schluchter, The Rise of Western Rationalism: Max Weber’s
Developmental History, Los Angeles, University of California Press, 1981.

22
que os indivíduos ou cidadãos deveriam ponderar judiciosamente suas ações a
cada passo, será necessário que uma ética amplamente compartilhada pela
coletividade como tal venha a operar rotineiramente; mas essa ética – como tal
inevitavelmente “convencional” – terá de ser de natureza tal que estimule a
autonomia individual e formas “pós-convencionais” de moralidade.

De maneira afim à idéia de um mercado em operação, tudo isso pode


ser posto em termos da importância de se eliminar ou reduzir o papel da
adscrição e de desigualdades adscritícias, mesmo se as escolhas relevantes
são fatalmente feitas sobre uma “matéria-prima” que é sempre social, ou
socialmente dada ou imposta: é inútil, naturalmente, pretender “voltar” a um
“estado de natureza” pré-social onde se supõe que residiria a identidade
autêntica de cada qual. Além dos elos que se poderiam apontar aqui com uma
longa tradição de pensamento no campo da teoria sociológica geral,
certamente seria supérfluo mencionar, no que se refere às implicações mais
diretamente políticas, a também longa linha “pluralista” de reflexão que vai de
um Tocqueville a um Robert Dahl, passando por nomes como o de William
Kornhauser. Mas talvez valha a pena fazer breve menção a um volume de
Ernest Gellner de alguns anos atrás, sob o título de Condições da Liberdade.36

A razão para destacá-lo tem a ver com um dos modelos negativos de


sociedade a que se opõe o modelo positivo da sociedade pluralista (chamado
por Gellner de sociedade “civil”). Esses modelos negativos usualmente incluem
duas categorias “modernas”: a sociedade “de massas”, onde indivíduos
socialmente desenraizados e atomizados se relacionam com o estado sem
mediação social ou grupal de qualquer espécie, e a sociedade “totalitária”,
onde um estado invasivo procura controlar todos os aspectos da vida dos
indivíduos e das interações sociopolíticas. 37 Mas eles incluem também a
sociedade “tradicional” ou “comunal”. Estando presente tanto em Kornhauser
quanto em Gellner, este modelo de sociedade é examinado detidamente pelo
último, que salienta de modo particularmente vigoroso seus traços negativos.
A sociedade comunal é descrita por Gellner como transformando o indivíduo
em mera “parte integrante” da unidade social e impondo-lhe uma identidade
“sufocante”, o que se opõe à “moderna concepção de liberdade”, que “inclui a
exigência de que as identidades sejam escolhidas e não atribuídas” (ou não
“adscritas”, em correspondência com o termo “adscrição” utilizado acima).
Muitos desses traços negativos e “sufocantes” são vistos por Gellner como
estando presentes, ainda hoje, na umma islâmica, a “comunidade geral
baseada na fé compartilhada por todos e na implementação de sua lei”, bem
como na peculiar “umma secular do marxismo”.38 Mas, do ponto de vista de
36
Ernest Gellner, Condições da Liberdade: A Sociedade Civil e seus
Críticos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1996 (edição inglesa
original de 1994).
37
Veja-se especialmente William Kornhauser, The Politics of Mass Society,
Nova York, The Free Press, 1959.
38
Gellner, Condições da Liberdade, pp. 13-16, 30, 88-92. Como assinala
Holmes, citando Geertz, o que temos aqui é “’comunidade’ em sentido forte
e antiliberal”, sentido este em que “cidadania e comunidade são às vezes
incompatíveis” e em que temos, como escreve Geertz, “o ameaçador choque
frontal entre lealdades primordiais e civis” (cf. Holmes, “Gag Rule or
the Politics of Omission”, pp. 28 e 29 e nota 16).

23
nossas preocupações, é especialmente interessante o fato de que Gellner,
recorrendo a Fustel de Coulanges, não hesita em incluir sob a caracterização
negativa da sociedade comunal a própria “cidade antiga” da Grécia e de Roma
que propicia frequente referência idealizada para a celebração das virtudes
cívico-republicanas – e, naturalmente, para muito da literatura “deliberativa”.
Afinal de contas, como nos foi lembrado recentemente também por Ellen
Meiksins Wood,39 não havia direitos civis em Atenas. E a “sociedade civil” de
Gellner como modelo positivo tem de ser contrastada também, o que é feito
por ele de maneira enfática, com a sociedade cívica dos sonhos de tanta gente.
Na verdade, Gellner critica explicitamente mesmo a visão idealizada da
“sociedade civil” a ser encontrada com frequência na literatura em que se deu
a revivescência atual do conceito, na qual – contrastando com seu uso clássico
em Hegel, por exemplo, para quem a sociedade civil é o espaço dos interesses
e dos particularismos, em oposição ao universalismo próprio do estado – ele é
associado com altruísmo, espírito público e civismo (em termos das categorias
de Kelly com respeito à cidadania, tratar-se-ia antes de uma espécie de
“sociedade cívica” do que propriamente de “sociedade civil”). É bem claro que,
além dos grupos de interesse propriamente, podemos ter também, como
participantes na sociedade pluralista, associações ou organizações orientadas
pela preocupação com assuntos públicos, e é supérfluo dizer que isso
naturalmente constitui, de certo ângulo, algo desejável e bom. Mas o fato de
que concepções divergentes (e militantes) do bem público sejam muitas vezes
propensas a se envolver pronta e intensamente em interações estritamente
estratégicas e mesmo beligerantes, em contraste com a tolerância que o
pragmatismo dos interesses tende a induzir, fala em favor da perspectiva de
Gellner. E essa perspectiva deve ser tida em conta especialmente diante da
pretensão, por alguns dos paladinos recentes da sociedade civil, de que, dado
o seu caráter “virtuoso”, esta última, funcionando como uma espécie de fonte
difusa de convergência e coesão, viesse a substituir e tornar dispensável o
próprio estado.

Deixemos Gellner com essas breves observações. Mas gostaria de fechar


esta seção evocando recente matéria jornalística, que me parece trazer
interessantes sugestões com respeito ao jogo entre mecanismos de mercado,
de um lado, e a arena política e eleitoral convencional, incluindo o problema da
regulação pelo estado, de outro. Alguns anos atrás, a propósito das
manifestações ocorridas em Praga na ocasião de uma das reuniões entre o FMI
e o Banco Mundial, a revista The Economist discutiu o papel das organizações
não-governamentais (ONGs) que se têm envolvido em tais eventos.40 Além de
falar da rápida e eficaz globalização das ONGs e de recriminá-las pela violência
de suas ações, bem como adverti-las das possíveis confusões em suas posições
quanto a temas como as relações entre a pobreza e o desenvolvimento
capitalista, The Economist vai adiante e levanta o problema da legitimidade
democrática de seu comportamento. Quem elegeu as ONGs? Por que se
sentem autorizadas a colocar em questão os atos ou as decisões de

39
Ellen Meiksins Wood, Democracia contra Capitalismo: A Renovação do
Materialismo Histórico, São Paulo, Boitempo Editorial, 2003 (edição
inglesa original de 1995).
40
“Anti-Capitalist Protests”, The Economist, 23-29 de setembro de 2000,
pp. 85-87.

24
corporações “cumpridoras da lei”, ou a reclamar a mudança de políticas por
parte de governos democraticamente eleitos?

Há, por certo, um aspecto com respeito ao qual tais questionamentos se


justificam. Ele tem a ver com o grau em que, nas ações de protesto das ONGs,
há a observância de normas legais ou, ao contrário, a disposição de recorrer à
violência. Essa disposição violenta parece de fato existir, estando presente na
própria definição de alguns dos objetivos anunciados pelos grupos que se
opõem à globalização.

Assinalada essa reserva crucial, porém, pedir credenciais democráticas


às ONGs em termos eleitorais é sem dúvida impróprio. É inquestionavelmente
adequado à dinâmica da democracia que grupos de interesse variados, ou
categorias que compartilham opiniões sobre problemas de interesse público,
possam tratar de organizar-se autonomamente e buscar a vocalização e a
promoção efetiva de seus interesses e opiniões. Mas há algo mais quanto a
isso. Há uma indagação óbvia que não é formulada por The Economist, embora
caiba vê-la como emergindo naturalmente num contexto em que se trata da
vigorosa afirmação transnacional dos mecanismos de mercado, vista com olhos
propícios pela revista: seria o caso de exigir credenciais democrático-eleitorais
das corporações “cumpridoras da lei”, cujas políticas frequentemente afetam
de maneira tão dramática a vida de tanta gente? É possível lembrar aqui a
perspectiva de Robert Dahl em alguns de seus trabalhos, onde o autor,
designando as grandes corporações como “pseudo-privadas” justamente pelo
impacto público de suas decisões, salienta a necessidade de democratizar tais
decisões por meio de alguma forma de representação dos interesses
afetados.41

Se a exigência de credenciais democrático-eleitorais parece absurda no


caso de agentes do mercado convencionalmente econômico, apesar da
concordância quanto à óbvia necessidade de regulação pelo estado, trata-se
aqui de ressaltar que mecanismos de mercado perfeitamente análogos têm
importante papel a cumprir igualmente na arena sociopolítica, embora a
regulação pelo estado seja obviamente necessária também neste caso. O
problema geral, mais uma vez, é o de como conciliar de forma adequada o
interesse público com a autonomia de agentes múltiplos na busca de seus
objetivos de qualquer natureza. E se a salvaguarda do interesse público supõe
a regulação capaz de garantir os valores democráticos (da qual os
procedimentos eleitorais podem ser vistos como instrumento), a autonomia
que se expressa diretamente no mercado (ou na “sociedade civil”) é também
um valor democrático crucial. Até que ponto tratar de regular política e
democraticamente a esfera econômica, em que medida permitir que a
autonomia do mercado penetre a esfera convencionalmente “política” (sem
dúvida incluindo a esfera da “sociedade civil” no sentido que a expressão
adquire na literatura recente)?

VII
41
Dahl, After the Revolution, e também Robert A. Dahl, Um Prefácio à
Democracia Econômica, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990 (edição
americana original de 1985).

25
No mundo da globalização e da afirmação transnacional dos mercados
econômico e financeiro, não parece haver dúvida quanto à desejabilidade de
não apenas reforçar, se possível, os poderes regulatórios dos estados no plano
nacional (embora tenhamos presentemente estados e estados, com
capacidades muito diversas quanto ao exercício de influência sobre espaços
nacionais e internacionais), mas também de estabelecer efetivamente o
equivalente funcional do estado, e portanto um fator de convergência e
controle, no próprio nível transnacional ou internacional em que aqueles
mercados tendem crescentemente a operar. É também claro que, sejam quais
forem as dificuldades e o caráter improvável de que a tarefa se revista (entre
outras razões pelas próprias assimetrias entre os estados nacionais e a
carência de um substrato comunitário real na escala planetária), instituir o
equivalente funcional do estado no plano internacional envolveria a criação de
foros de debate e deliberação capazes de mostrar-se muito mais efetivos que
os de que dispomos atualmente.

O que talvez seja menos claro, contudo, é a necessidade de criar e


expandir o próprio mercado. Pois, não obstante o transbordamento
transnacional das atividades econômicas e financeiras, há um sentido bem
nítido em que os mercados, na verdade, se têm atrofiado. Refiro-me à feição
hobbesiana da globalização, em que as duras formas novas de competição
num mundo globalizado são acompanhadas por formas também novas de
desigualdade e exclusão, com a crise do keynesianismo e da socialdemocracia,
o desemprego, a difusão de relações de trabalho informais e precárias, a
violência urbana crescente e, especialmente nos Estados Unidos, a
“hipercriminalização” e a explosão da população carcerária ou às voltas com a
lei.42 Naturalmente, num país como o Brasil, o impacto da exposição a esses
processos novos vem cumular a enorme desigualdade e as características de
estrutura de castas que marcam a estratificação social herdada da experiência
de séculos com a escravidão. Desnecessário dizer que, para a maioria dos que
se acham submetidos às privações materiais e intelectuais ligadas a tais
condições, os prospectos de participação autônoma em processos significativos
de deliberação coletiva são deveras pobres. E deveríamos provavelmente ter
em mente a necessidade de desenvolvimentos de longo prazo em que, entre
outras coisas, o indispensável paternalismo por parte do estado viesse ajudar a
criar o acesso mais amplo e apropriado aos recursos materiais e intelectuais
exigidos para a emergência de identidades eventualmente capazes de
autonomia e de expressão política, em vez do incremento do mero
comportamento violento e criminoso que temos no momento como a
manifestação mais evidente de nossas duradouras deficiências. Nessa
perspectiva, “criar mercado” pode ser lido como criar as condições para que a
competição deixe de ser, para muitos, um jogo fraudulento, ou a
competitividade nacional um sinônimo de exclusão social.

42
Veja-se, por exemplo, Jonathan Simon, “Governing through Crime”, ms.,
janeiro de 1997.

26

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