Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
1
A crítica à separação entre instrumentalidade e comunicação tem
desdobramentos importantes com respeito à própria idéia de racionalidade,
em torno da qual se criou o grande e equivocado cavalo de batalha da
contraposição entre uma racionalidade “meramente” instrumental, vista
como de alguma forma “vil” ou “inferior”, e uma outra, supostamente
1
Em segundo lugar, parece impossível manter o valor da autonomia,
como tal, à parte do nível estratégico, ou do nível da “afirmação de si” – para
tomar a definição que dá o próprio Habermas da noção de “interesse”,
definição esta formulada com antecedência de maneira similar por Alessandro
Pizzorno, que fala de “distinguir-se”.2 Há dois significados aparentemente
contrastantes que se associam com “autonomia”. O primeiro é justamente a
autonomia como auto-afirmação. Estamos, neste caso, diante de um ator
capaz de seguir, sem mais, os seus impulsos, ou de se afirmar de maneira
espontânea, e a autonomia neste sentido é afim à idéia do poder como algo
que permite ao ator não precisar aprender.3 O outro significado é a autonomia
como autocontrole, envolvendo a idéia de que a impulsividade se vê
restringida por um fator de compulsão que é escolhido, em alguma medida, e
portanto resulta de uma postura reflexiva (ou por normas que são escolhidas e,
assim, da responsabilidade do próprio ator, de acordo com a etimologia do
vocábulo “autonomia”).
2
algum componente de auto-afirmação? Habermas sustenta ele mesmo que a
realização da autonomia supostamente “política” ou “pública” envolve a
afirmação dos cidadãos na esfera política, onde viriam a assumir a posição de
autores da lei (o que seria até condição necessária para que a autonomia
privada chegasse mesmo a existir);5 pode isso ser visto como envolvendo a
autonomia num sentido que efetivamente evite o componente de afirmação de
si, mesmo que o “si” a ser afirmado remeta a uma identidade e a um ideal de
vida definidos comunitariamente ou como consequência da imersão na
coletividade? Ainda que destaquemos a ligação entre autonomia e
reflexividade, também a idéia “nobre” de autonomia como autocontrole supõe
(como claramente se dá na teoria do desenvolvimento moral elaborada pelo
próprio Habermas, com base no trabalho de Lawrence Kohlberg e Jean Piaget)6
a capacidade, por parte do indivíduo, de “descentrar-se” (Piaget) e se afastar
da sociedade e de suas normas convencionais na moralidade “pós-
convencional”. Ela supõe, portanto, que haja escolha relativamente à própria
identidade individual – com inevitável ambiguidade quanto à relação entre o
aspecto de auto-afirmação e o componente de “desprendimento” que a idéia
de autocontrole também contém. Pode a distinção entre autonomia privada e
autonomia pública ou política sustentar-se de maneira efetiva no contexto de
tais questões?
5
Ver, por exemplo, Between Facts and Norms, pp. 119 e seguintes.
6
Veja-se, por exemplo, Jürgen Habermas, “Moral Development and Ego
Identity”, capítulo 2 de J. Habermas, Communication and the Evolution of
Society, Boston, Beacon Press, 1979.
7
Timur Kuran, Private Truths, Public Lies: The Social Consequences of
Preference Falsification, Cambridge, Mass., Harvard University Press,
1995.
3
bem como seu uso recente por Kuran e outros, apontam para o potencial
libertário do fluxo desimpedido de comunicação entre os cidadãos, por outro
lado observações como as que se referem ao “politicamente correto” nos
fazem lembrar os temas da “psicologia de multidões” e o sentido em que, por
exemplo, o voto secreto é uma conquista democrática, ao proteger a opinião
privada contra a opinião pública.
4
especialmente na literatura relacionada com as políticas sociais do estado,
tendem a mover-se, com frequência de maneira confusa e incoerente, no
espaço definido pela tensão entre os dois valores.9
II
9
Assim, no artigo citado de Kelly, o idealizado cidadão participante e
“republicano” é contraposto, com referência ao estado de bem-estar, à
postura do “cliente” em termos que sugerem uma espécie de “cidadania
negativa”, como se o próprio sucesso do estado de bem-estar resultasse em
introduzir um elemento de “mercado” no nobre status de cidadão e assim,
de algum modo, em aviltá-lo. Naturalmente, isso não é de todo coerente
com o fato de que a reivindicação dos direitos sociais que ocorre com o
estado de bem-estar seja vista por Kelly, ao lado da reivindicação dos
direitos liberais, como ela própria uma manifestação do “civil”,
supostamente uma dimensão autêntica da cidadania. Posição similar emerge
também em textos de Habermas, onde o contraste entre cidadão e cliente é
colocado em correspondência com o contraste entre esferas vitais
estruturadas comunicativamente, por um lado, e as esferas “sistêmicas” do
estado e da economia, por outro (veja-se, por exemplo, Jürgen Habermas,
“A Nova Intransparência: A Crise do Estado de Bem-Estar Social e o
Esgotamento das Energias Utópicas”, Novos Estudos Cebrap, no. 18,
setembro de 1987). Em vez dessa tendência algo inconsistente a favorecer
o conteúdo republicano da idéia de cidadania, a literatura relativa a
cidadania e política social no Brasil se mostra frequentemente confusa em
grau extremo, em alguns casos denunciando, com notável insensibilidade
para com as dificuldades envolvidas, tanto a cidadania liberal das
práticas individualistas e privatistas quanto a forma “passiva” de
cidadania em que se tem a dependência perante a assistência paternalista
do estado (veja-se, em particular, Maria Victória Benevides, A Cidadania
Ativa, São Paulo, Atica, 1991).
10
Veja-se, por exemplo, Habermas, Théorie et Pratique, vol. I, p. 105,
nota 5, e p. 34.
5
Com efeito, pode-se mostrar que o debate ou a deliberação coletiva é
um suposto subjacente mesmo aos dois mais importantes mecanismos com
recurso aos quais se procura acomodar realisticamente, na prática cotidiana, o
ideal utópico do acordo unânime. O primeiro é a regra da maioria, que se acha
claramente baseada no artifício de conceber a unanimidade como algo capaz
de ocorrer em graus diversos: mais votos em determinada direção, “mais
unânime” a decisão (se não, não haveria razão para dar precedência às
preferências da maioria sobre as da minoria e para tomar as primeiras como
equivalendo às preferências da comunidade como um todo). O outro
mecanismo, afim às velhas concepções relacionadas com a idéia do rei-filósofo,
vale-se de suposições com respeito a de onde (ou de quem) tenderão a provir
os melhores argumentos: já que é impossível contar com que as pessoas
afetadas possam sempre discutir indefinidamente, ou por todo o tempo que se
fizesse necessário para obter o acordo de todos (além de que há situações em
que a presteza das decisões é vital), deleguemos as decisões a pessoas de
maior conhecimento nas áreas relevantes – o médico ou o juiz, por exemplo, ou
talvez simplesmente aquelas pessoas que escolhemos como nossos
representantes e líderes e às quais garantimos as condições necessárias a que
possam dedicar-se às questões a serem objeto de decisão.
11
Abba Lerner, “The Economics and Politics of Consumer Sovereignty”,
American Economic Review, May 1972, vol. 62, no. 2, apud Samuel Bowles e
Herbert Gintis, “The Revenge of Homo Economicus: Contested Exchange and
the Revival of Political Economy”, Journal of Economic Perspectives, vol.
7, no. 1, inverno de 1993.
6
cidadãos que tenham emergido das limitações de classe e se libertado dos
grilhões milenares da estratificação social e da exploração o potencial de um
pluralismo cultural irrestrito pode desenvolver-se plenamente” – e Habermas
não deixa de acrescentar, significativamente, que esse potencial “ocorre de
maneira abundante tanto nos conflitos quanto nas formas de vida geradoras de
significado (meaning-generating forms of life)”.12
12
Habermas, Between Facts and Norms, p. 308.
7
Evoquemos aqui alguns resultados de esforços desenvolvidos por Samuel
Bowles e Herbert Gintis para mapear revisões recentes no campo da
economia, nas quais a perspectiva walrasiana neoclássica é
crescentemente confrontada por uma variedade de abordagens “pós-
walrasianas” que “repolitizam” o campo. Examinando a maneira como as
transações econômicas são tratadas em diferentes abordagens, Bowles e
Gintis sintetizam suas observações numa tabela de dupla entrada que se
refere às suposições orientadoras de cada abordagem com respeito a dois
aspectos. De um lado, temos a natureza do enforcement of claims, ou dos
mecanismos pelos quais se impõe o controle ou a regulação das transações
e dos reclamos relativos a elas: esse controle pode ser visto como
“exógeno” e exercido pelo estado, com suas leis e as imposições nelas
baseadas, ou como “endógeno”, isto é, exercido pelos próprios agentes,
num contexto que será necessariamente tenso e propenso ao conflito. De
outro lado, temos a natureza dos próprios agentes ou de suas preferências
e normas: aqui pode haver seja suposições afins ao individualismo
metodológico, em que as preferências e normas surgem como “exógenas”
e “dadas”, seja a suposição de preferências e normas “endógenas” que
podem ser mudadas, quer através do conflito aberto, quer, naturalmente,
através de processos que incluem o debate ou a deliberação coletiva.
Como ressaltam Bowles e Gintis, no caso da combinação de controle
(enforcement) exógeno com preferências e normas também exógenas
estamos na esfera marcada pelas suposições da economia neoclássica: a
atividade econômica surge aí como competição vitoriana e cavalheiresca,
em que “um aperto de mãos é um aperto de mãos” e o estado vigilante
permite que as transações ocorram sem custos. Em contraste, com
controle endógeno se tem não apenas interação estratégica, mas a “busca
do interesse próprio com perfídia”,13 e as transações inevitavelmente
envolvem custos.
8
Mas pode-se justapor a perspectiva de Bowles e Gintis a uma outra, o
que introduz um meandro curioso e importante na discussão do tema geral.
Refiro-me à perspectiva a ser encontrada entre autores ligados à abordagem
da escolha racional, especialmente Adam Przeworski, em elaborações mais ou
menos recentes sobre o problema da implantação e consolidação da
democracia.15 O aspecto curioso consiste em que, tratando-se de uma
perspectiva que pretende valer-se dos recursos “realistas” de uma abordagem
econômica dos problemas da política, a implantação e a consolidação da
democracia (ou seja, uma forma peculiarmente bem sucedida da “solução” do
problema político que Lerner aponta como suposto das transações
econômicas) são vistas como decorrendo de mecanismos self-enforcing, ou
“auto-impositivos”, que correspondem nitidamente ao caso de enforcement
endógeno de Bowles e Gintis. A diferença crucial quanto à perspectiva destes
últimos é que, em vez de o enforcement endógeno surgir associado com
formas conflituosas de intercâmbio, Przeworski o associa antes com o
“equilíbrio” que resulta dos ajustamentos espontâneos e automáticos próprios
da operação dos mecanismos do mercado. O elemento de realismo na
perspectiva de Przeworski diria respeito ao fato de que aqui se trata de
interesses: a produção da democracia poderia prescindir da referência a
normas, o que, na verdade, se desdobra na pretensão de que ela pode
prescindir também de qualquer forma de negociação ou barganha explícita.16
Mas há, em contrapartida, a idealização implícita do jogo de interesses, como
condição de que, ao invés do conflito áspero e talvez violento ou de equilíbrios
negativos que poderiam brotar, se possa vir a ter o equilíbrio propício que
conduza “automaticamente” à democracia e a consolide.
15
Veja-se especialmente Adam Przeworski, “Democracy as an Equilibrium”,
Nova York, New York University, ms., outubro de 1995; Adam Przeworski,
“Capitalismo, Democracia, Pactos”, em J. A. G. Albuquerque e E. R.
Durham, A Transição Política: Necessidades e Limites da Negociação, São
Paulo, Universidade de São Paulo, 1987; e Adam Przeworski,
“Microfoundations of Pacts in Latin America”, Chicago, University of
Chicago, ms., março de 1987. Embora este último seja um texto provisório,
que até onde sei não chegou a publicar-se, o mesmo esquema analítico é
retomado como capítulo I (“Democracy”) de Political and Economic Reforms:
Democracy and Markets in Eastern Europe and Latin America, Chicago,
University of Chicago, ms., outubro de 1990 (publicado em seguida como
Democracy and the Market: Political and Economic Reforms in Eastern
Europe and Latin America, Nova York, Cambridge University Press, 1991).
16
Aliás, uma curiosidade adicional é a de que esse “realismo” avesso às
normas tem seu próprio e explícito conteúdo normativo ou doutrinário:
Przeworski sustenta que “a quintessência da democracia é que não há
ninguém para impô-la” (to enforce it – note-se que isso significa
justamente que o enforcement seria necessariamente endógeno), e a busca
de um “consenso democrático” que marcaria muitas discussões latino-
americanas a respeito das transições recentes de regimes autoritários à
democracia é descrita como reveladora de um “legado intelectual não-
democrático”. Veja-se Przeworski, “Microfoundations of Pacts in Latin
America”, p. 8.
9
salientar o meandro importante acima anunciado. Se há um sentido bem claro
em que um parlamento, ou a operação aberta de mecanismos deliberativos,
supõe ao menos certa acomodação dos interesses e, nesse sentido, um
“problema político resolvido”, a pretensão de Przeworski no sentido de que as
transações mercantis resolvam por si mesmas o problema político se revela
infundada. O “problema político resolvido” surge como suposição necessária
também no caso em que a própria interação estratégica, ou a interação
baseada em interesses, venha a assumir formas benignas, quer se trate, na
esfera econômica convencional, de um mercado de competição regrada e
eventualmente cavalheiresca, quer se trate, na esfera sociopolítica mais
ampla, da democracia estável, fundada em instituições efetivas, nas quais um
fatal ingrediente “deliberativo” e o substrato normativo adequado estarão
sempre presentes. Esboça-se aí uma espécie de jogo dialético entre as
dimensões básicas – estratégia versus comunicação, ou autonomia versus
convergência e solidariedade –, do qual alguns aspectos adicionais serão
elaborados adiante.
III
17
Assim, em “Democracy as an Equilibrium”, vemos Przeworski acabar por
admitir um tipo de equilíbrio sustentado por “compromissos normativos” e
por explorar a idéia de institucionalização em termos que envolvem a
correspondência entre normas e equilíbrios auto-impositivos. Já em
“Capitalismo, Democracia, Pactos” o vemos envolvido numa petição de
princípio em que a busca de uma solução institucional que seja auto-
impositiva para o problema da democracia é reiteradamente caracterizada
em termos que deixam evidente sua própria dependência de conquistas
institucionais prévias. Discussão mais detida se encontra em meu
“Racionalidade, ‘Sociologia’ e a Consolidação da Democracia”, republicado
em Reis, Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira.
18
Robert A. Dahl, After the Revolution: Authority in a Good Society, New
Haven, Yale University Press, 1970.
10
maioria. Notemos aqui, contudo, que há uma importante alternativa em que o
critério é satisfeito fora da esfera do debate e dispensando o debate. Refiro-me
ao mercado, ou a mecanismos análogos aos do mercado de que se acaba de
falar a propósito de sugestões de Przeworski. Nas situações em que operam
tais mecanismos, em vez de deliberar conjuntamente, debater e talvez votar,
as pessoas simplesmente agem por si mesmas e fazem o que julgam melhor,
com ajustamentos espontâneos do comportamento de cada um ao dos demais
(como diz Przeworski ao definir o conceito de “equilíbrio”, “cada qual faz o que
é melhor para si dado o que os outros fazem”).19 Naturalmente, os mecanismos
de mercado envolvem riscos de negação da possibilidade de escolha pessoal:
não apenas cada qual é exposto às inconveniências ou “externalidades” (na
linguagem dos economistas) que derivam do livre comportamento dos demais
e suas consequências no nível agregado, mas também “o que os outros fazem”
pode resultar na introdução de elementos de poder e desigualdade, com
monopólios ou oligopólios. Mas, se o mercado apresenta esses custos
“externos”, o esforço de organização e de levar as pessoas à participação em
decisões coletivas tem seus próprios custos (“internos”), o que cria a
necessidade de recorrer a outro dos três critérios de Dahl, o da economia.
11
em meu nome se eu não pudesse supor que a pessoa em questão se identifica
comigo e busca de fato o meu melhor interesse – caso contrário, seu maior
conhecimento ou informação pode na verdade surgir como algo a ser temido
por mim.
Dimensão relevante dos problemas que surgem aqui tem a ver com a
questão da tecnocracia – uma preocupação saliente, como é sabido, da
tradição de pensamento, incluindo a chamada Escola de Frankfurt, a que
muitas das idéias de Habermas se acham relacionadas. A característica central
de uma perspectiva tecnocrática pode ser apontada na tendência a supor que
os fins são dados e não-problemáticos, donde se seguiria que o problema
importante é o do grau de conhecimento “técnico” ou de informação com
respeito aos meios que deverão levar aos fins. Ao contrário, a democracia se
baseia no suposto de que os fins são problemáticos: os fins relevantes são
múltiplos, dizendo respeito aos numerosos indivíduos e a coletividades ou
categorias não apenas diversas, mas ocasionalmente antagônicas, e o desafio
decisivo é o de como conciliar e acomodar a multiplicidade de fins.20
Naturalmente, no que se refere à definição dos próprios fins dificilmente se
poderia sustentar que os peritos ou especialistas devessem desfrutar de
precedência sobre os cidadãos comuns, sob pena de se negar de vez o
compromisso com a idéia mesma de democracia. Isso tem desdobramentos
importantes quanto ao papel dos recursos cognitivos relativamente ao tema
geral da democracia, da participação e da deliberação: quaisquer que sejam as
reservas realísticas a serem impostas às formulações mais radicais ou
ambiciosas do ideal deliberativo, permanece inevitavelmente, em algum grau,
a necessidade de mecanismos que permitam aos cidadãos comuns se
tornarem capazes de pelo menos colocar a questão de como diferentes
políticas, na qualidade de “meios” (talvez em níveis diversos de cadeias mais
ou menos complexas de fins e meios), se articulam com os fins “últimos” a
serem perseguidos – se necessário pelo questionamento dos próprios peritos,
ademais dos líderes.
12
diferencial à informação relevante com a falta de identificação e confiança
completas nas relações entre representantes e representados é, naturalmente,
o ponto central da teoria sobre as relações mandante-agente (principal-agent
theory), elaborada em campos novos como a “economia da informação”, de
Joseph Stiglitz, ou, em geral, na economia “pós-walrasiana” anteriormente
mencionada.21 Os problemas aí tratados são de clara importância na vida das
corporações econômicas, como, por exemplo, nas relações entre proprietários
e administradores, ou entre estes e os trabalhadores. Mas são também
cruciais, obviamente, na esfera da política democrática, sobretudo no que se
refere às relações entre os cidadãos como mandantes e os representantes
eleitos como mandatários ou agentes: que mecanismos serão necessários para
assegurar sensibilidade, responsabilidade e a apropriada prestação de contas
(accountability) por parte dos mandatários?22
21
Veja-se, por exemplo, Joseph Stiglitz, Whither Socialism?, Cambridge,
Mass., The MIT Press, 1994, e Bowles e Gintis, “The Revenge of Homo
Economicus”.
22
Veja-se Bernard Manin, Adam Przeworski e Susan C. Stokes,
“Introduction”, em Democracy, Accountability, and Representation, ed. A.
Przeworski, S. C. Stokes e B. Manin, Nova York, Cambridge University
Press, 1999.
23
Veja-se Jon Elster, Sour Grapes: Studies in the Subversion of
Rationality, Nova York, Cambridge University Press, 1985.
13
IV
14
estratégica, ou por fatores que deveriam ser vistos como espúrios daquele
ponto de vista idealizado: argumentos baseados em regras, por exemplo, vão
surgir, pondera Sejersted, como racionalizações. 27 Apreciado na perspectiva
das discussões que lidam com a “procedimentalização” entendida como
maneira de levar processos reais de deliberação coletiva a se aproximarem do
modelo do debate “autêntico” e baseado exclusivamente na força dos
argumentos, o princípio surge como claramente contraditório. Pois restringir o
papel da “competência” e ampliar o espaço da interação estratégica aberta
entre os interesses aparece nele como forma de melhorar os resultados dos
processos de deliberação com respeito a algo que deveria ser crucial para
aquele modelo, ou seja, a possibilidade de que diferentes pontos de vista
sejam efetivamente considerados.
15
representação funcional como trabalhadores nos círculos corporativos. Isso
tem sido visto por alguns autores, com boas razões, como um desenvolvimento
decisivo até mesmo do ponto de vista inclinado a destacar a importância da
democracia político-eleitoral, pois ele seria parte central do “compromisso
social” que esteve sujacente à estabilidade democrática em seguida à Segunda
Guerra Mundial, particularmente nos países que aderiram de forma mais plena
aos arranjos socialdemocráticos. Nessa perspectiva, o corporativismo se
associa com o estado de bem-estar e com o enriquecimento da própria idéia de
cidadania em termos dos direitos sociais que Marshall destacou, ao lado dos
seus componentes relativos aos direitos civis e políticos. E os novos
desenvolvimentos trazidos pela globalização intensificada, ao enviar de novo
às asperezas do mercado os aspectos correspondentes à dimensão social da
cidadania e ao comprometer as estruturas corporativas, podem ser vistos
como colocando em risco a própria democracia.30
16
favoráveis à operação efetiva, em âmbitos variados, de processos de
deliberação coletiva, em vez do conflito aberto ou de sua perene ameaça. Isso
tem sido tratado na literatura sob o rótulo de “segmentação”, com a qual a
tendência de que problemas de identidade se desdobrem em disposições
beligerantes pode ser neutralizada e o processo político pode eventualmente
vir a assumir caráter “desideologizado” e marcado pela tolerância e pelo ânimo
propício à negociação e ao debate.31 Mas assinale-se algo mais: as condições
que permitem a criação de espaços de discussão e deliberação (e são
estimuladas por eles) favorecem também a operação dos mecanismos de
mercado, orientados pela busca tendencialmente pragmática ou “fria”, e talvez
“racional”, do interesse próprio.
31
Veja-se, por exemplo, Giovanni Sartori, Parties and Party Systems: A
Framework for Analysis, vol. I, Nova York, Cambridge University Press,
1976. Embora o tema da segmentação seja aí explorado em suas conexões
especificamente com os partidos e os sistemas partidários, Sartori remete
ao sentido sociológico geral do conceito estabelecido por Talcott Parsons
em Structure and Process in Modern Societies (Nova York, The Free Press,
1960, p. 263), onde a “segmentação” é distinguida da “diferenciação” pelo
fato de que, enquanto subsistemas diferenciados exercem funções
diferentes mas complementares, subsistemas segmentados exercem as mesmas
funções. Politicamente, isso se associa com a idéia de que as decisões
importantes para os subsistemas ou categorias coletivas parciais, como as
que dizem respeito a identidades e vínculos “primordiais” (Geertz), sejam
deixadas nas mãos dos próprios segmentos envolvidos, assegurando-se sua
autonomia e a despolitização das questões de identidade – e abrindo-se
assim a possibilidade da construção de espaços de negociação e
deliberação conjunta quanto aos demais assuntos. Aguda exploração do tema
geral pode ser encontrada em Stephen Holmes, “Gag Rules or the Politics
of Omission” (em Elster e Slagstad, Constitutionalism and Democracy),
onde as teses de Lijphart sobre consociativismo são aproximadas das
idéias de Clifford Geertz em “The Integrative Revolution: Primordial
Sentiments and Civil Politics in the New States”, em C. Geertz, The
Interpretation of Cultures, Nova York, Basic Books, 1973.
17
Há alguns sentidos bem distintos em que a fórmula da “autonomia do
político” é usualmente entendida, incluindo um sentido que se refere a
questões de natureza metodológica e outros em que as questões envolvidas se
poderiam designar como “substantivas” ou teóricas. Se tomamos o primeiro
sentido, em que a fórmula diz respeito a um problema de relações causais
entre diferentes esferas ou planos da realidade social tal como vistas por
modelos analíticos em competição, parece não haver como escapar do recurso
a um velho postulado que responde em termos “sociológicos” à indagação
básica envolvida: as características assumidas pelo estado surgem aí como
dependentes de um substrato correspondente à distribuição social do poder.
Nesta perspectiva, o fato de que o estado venha a revelar-se, em algum grau
significativo, quer a expressão da vontade de todos (do interesse público), quer
um instrumento apropriado por alguns e usado para reprimir e explorar os
outros depende, em princípio, da forma assumida pelo jogo de interesses que
tem lugar no nível da própria sociedade e de quem nele prevalece (os
marxistas diriam que depende da luta de classes). Tal postulado nada mais faz
do que ver o estado, afinal de contas, como parte da sociedade, e não é de
maneira alguma incompatível com o reconhecimento da ocorrência ocasional
de um amplo grau de “iniciativa” estatal. Mas duas coisas de interesse podem
ser ditas se começamos desse postulado analítico ou metodológico.
18
não obstante, resultam em consagrar relações de dominação abertas ou
veladas (considere-se a idéia da “dependência estrutural” do estado perante os
interesses empresariais como algo inerente ao capitalismo, ou o diagnóstico da
“tecnoestrutura” formulado por John Kenneth Galbraith anos atrás com
respeito aos Estados Unidos).
19
pretender que o mero jogo dos interesses, assumindo benigna forma
“mercantil” antes que violenta ou beligerante, conduza por si só à solução self-
enforcing do próprio problema constitucional ou, nos termos de Abba Lerner, à
condição em que o “problema político” geral se acha “resolvido”. Ainda que,
quando se trata do nível “operacional” ou cotidiano da coexistência política, o
mercado propicie, especialmente em sociedades grandes e complexas, o
modelo com cuja operação mais difusa se deverá contar, e embora a operação
do modelo de deliberação suponha espaços institucionais apropriadamente
“acomodados”, não há como imaginar a construção de instituições políticas
sem a instauração de espaços de deliberação e a presença de fatores
normativos e “deliberativos” que eventualmente propiciem “pactos” bem
sucedidos, em diversos níveis, e lhes dêem consequência. E instituições
efetivas, como também se viu, são necessárias para o funcionamento
adequado do próprio mercado.
VI
20
mercantis acima assinalada em Przeworski, desde que corrigida quanto à visão
das instituições políticas como efeitos benignos e automáticos do mercado.
21
crédito devido), torna-se claro que ela se acha logicamente entrelaçada com as
idéias de poder e de interação estratégica – e que não há razão para restringir
a categoria do mercado, vista como o espaço do jogo dos interesses, à arena
econômica. Na verdade, a referência às categorias de “interesses”,
“estratégia” e “poder”, e às afinidades entre elas, resulta em propiciar critério
fundamental para uma definição analítica da política como tal, em contraste
com a referência rombuda (a que se recorre com frequência, seja explícita ou
implicitamente) ao estado como uma espécie de “pedaço” concreto da
sociedade. De acordo com essa definição, a política teria a ver com os
problemas postos pela interação estratégica e a busca de auto-afirmação ou de
poder em qualquer contexto social concreto, independentemente do conteúdo
específico dos fins ou valores que podem ser objeto de conflito ou cooperação
em uma ou outra esfera de interação – fins materiais ou “econômicos” ou fins
relacionados com religião, classe, raça, etnia, gênero, geração ou o que mais
seja. Em outras palavras, a política, entendida como o jogo dos interesses e
sua eventual acomodação, não tem conteúdo próprio e é socialmente ubíqua:
ela penetra, mesmo se em forma “larvar”, as relações sociais de qualquer tipo,
dizendo respeito à “base social” dos conflitos e aos focos potenciais ou atuais
de solidariedade e identificação grupal que se envolvem em tais conflitos – da
mesma forma em que diz respeito também à expressão organizacional dos
conflitos e solidariedades no nível convencionalmente referido como “político”
ou “político-institucional”, onde o fator de convergência representado por um
estado apropriadamente complexo e efetivo se afirma, como condição de que
o jogo dos interesses não leve a Hobbes. De novo, não há como deixar de
assinalar o componente “deliberativo” envolvido na aposta quanto a essa
expressão organizacional (e parlamentar) dos conflitos.
22
que os indivíduos ou cidadãos deveriam ponderar judiciosamente suas ações a
cada passo, será necessário que uma ética amplamente compartilhada pela
coletividade como tal venha a operar rotineiramente; mas essa ética – como tal
inevitavelmente “convencional” – terá de ser de natureza tal que estimule a
autonomia individual e formas “pós-convencionais” de moralidade.
23
nossas preocupações, é especialmente interessante o fato de que Gellner,
recorrendo a Fustel de Coulanges, não hesita em incluir sob a caracterização
negativa da sociedade comunal a própria “cidade antiga” da Grécia e de Roma
que propicia frequente referência idealizada para a celebração das virtudes
cívico-republicanas – e, naturalmente, para muito da literatura “deliberativa”.
Afinal de contas, como nos foi lembrado recentemente também por Ellen
Meiksins Wood,39 não havia direitos civis em Atenas. E a “sociedade civil” de
Gellner como modelo positivo tem de ser contrastada também, o que é feito
por ele de maneira enfática, com a sociedade cívica dos sonhos de tanta gente.
Na verdade, Gellner critica explicitamente mesmo a visão idealizada da
“sociedade civil” a ser encontrada com frequência na literatura em que se deu
a revivescência atual do conceito, na qual – contrastando com seu uso clássico
em Hegel, por exemplo, para quem a sociedade civil é o espaço dos interesses
e dos particularismos, em oposição ao universalismo próprio do estado – ele é
associado com altruísmo, espírito público e civismo (em termos das categorias
de Kelly com respeito à cidadania, tratar-se-ia antes de uma espécie de
“sociedade cívica” do que propriamente de “sociedade civil”). É bem claro que,
além dos grupos de interesse propriamente, podemos ter também, como
participantes na sociedade pluralista, associações ou organizações orientadas
pela preocupação com assuntos públicos, e é supérfluo dizer que isso
naturalmente constitui, de certo ângulo, algo desejável e bom. Mas o fato de
que concepções divergentes (e militantes) do bem público sejam muitas vezes
propensas a se envolver pronta e intensamente em interações estritamente
estratégicas e mesmo beligerantes, em contraste com a tolerância que o
pragmatismo dos interesses tende a induzir, fala em favor da perspectiva de
Gellner. E essa perspectiva deve ser tida em conta especialmente diante da
pretensão, por alguns dos paladinos recentes da sociedade civil, de que, dado
o seu caráter “virtuoso”, esta última, funcionando como uma espécie de fonte
difusa de convergência e coesão, viesse a substituir e tornar dispensável o
próprio estado.
39
Ellen Meiksins Wood, Democracia contra Capitalismo: A Renovação do
Materialismo Histórico, São Paulo, Boitempo Editorial, 2003 (edição
inglesa original de 1995).
40
“Anti-Capitalist Protests”, The Economist, 23-29 de setembro de 2000,
pp. 85-87.
24
corporações “cumpridoras da lei”, ou a reclamar a mudança de políticas por
parte de governos democraticamente eleitos?
VII
41
Dahl, After the Revolution, e também Robert A. Dahl, Um Prefácio à
Democracia Econômica, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990 (edição
americana original de 1985).
25
No mundo da globalização e da afirmação transnacional dos mercados
econômico e financeiro, não parece haver dúvida quanto à desejabilidade de
não apenas reforçar, se possível, os poderes regulatórios dos estados no plano
nacional (embora tenhamos presentemente estados e estados, com
capacidades muito diversas quanto ao exercício de influência sobre espaços
nacionais e internacionais), mas também de estabelecer efetivamente o
equivalente funcional do estado, e portanto um fator de convergência e
controle, no próprio nível transnacional ou internacional em que aqueles
mercados tendem crescentemente a operar. É também claro que, sejam quais
forem as dificuldades e o caráter improvável de que a tarefa se revista (entre
outras razões pelas próprias assimetrias entre os estados nacionais e a
carência de um substrato comunitário real na escala planetária), instituir o
equivalente funcional do estado no plano internacional envolveria a criação de
foros de debate e deliberação capazes de mostrar-se muito mais efetivos que
os de que dispomos atualmente.
42
Veja-se, por exemplo, Jonathan Simon, “Governing through Crime”, ms.,
janeiro de 1997.
26