Vous êtes sur la page 1sur 125

Edição Especial

Meio ambiente
e democracia

DEMOCRACIA VIVA 27
JUN 2005 / juL 2005
e d i t o r i a l
Dulce Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do Cpdoc/FGV

E sta edição de Democracia Viva está voltada para o meio ambiente.


Trata-se de uma questão central no processo de construção de um mundo mais justo e mais democrático.
O problema é aqui analisado nas suas diferentes dimensões e através de distintas abordagens.

Em entrevista, o assessor da Fase, Jean-Pierre Leroy, afirma que a questão ambiental


precisa ser melhor compreendida por todas as pessoas que lutam por mudanças na sociedade. Para ele,
falar de desenvolvimento é, necessariamente, falar de justiça ambiental. Sabemos que a desigualdade social
é uma das marcas fundamentais da história do nosso país. Em um dos artigos da revista, Henri Acserald
nos mostra que uma das expressões da desigualdade social é a desigualdade ambiental. As populações de
baixa renda são as mais atingidas pelos riscos ambientais. Por isso, é fundamental articular as lutas por
justiça social com as lutas por proteção ambiental.

A ocupação desordenada da região amazônica é um dos objetos de análise da revista.


Para que a floresta amazônica continue a exercer um papel fundamental na manutenção do clima do nosso
país e do nosso planeta, é urgente que se adotem novos padrões na ordenação da sua ocupação espacial. O
grande desafio para a região é conciliar desenvolvimento socioeconômico com a conservação dos recursos
naturais. Críticas ao modelo de desenvolvimento adotado nas últimas décadas estão presentes em vários
artigos. No caso da agricultura, por exemplo, é certo que a expansão da soja tem, por um lado, propiciado
o aumento da entrada de grandes divisas para o país. Mas, por outro, tem contribuído para uma maior
concentração fundiária e para desmatamentos na região amazônica.

A relação entre democracia e fontes de geração de energia é o ponto central do artigo do


pesquisador do Ibase Carlos Tautz. Nesse debate, no qual diferentes posições têm sido defendidas, Tautz
afirma que, no Brasil, opções como as usinas nucleares e as termoelétricas movidas a gás natural devem ser
descartadas. Uma análise sobre a transposição das águas do Rio São Francisco também não poderia estar
ausente nesta edição. A questão é polêmica. Em dois artigos, são apontadas graves distorções econômicas
e sociais presentes no projeto que está sendo apresentado pelo governo federal.

Atualmente, existe uma percepção que a coleta seletiva do lixo e a reciclagem de resíduos
sólidos produzem benefícios econômicos e podem gerar impacto positivo na imagem das empresas que
trabalham com esses materiais, consideradas eco-responsáveis. Nesse campo, enquanto o mercado para os
reciclados cresce a olhos vistos, catadores e catadoras de lixo continuam sendo alvo de forte preconceito.

A equipe de Democracia Viva visitou três comunidades quilombolas. Em todas elas, estão
em curso interessantes projetos de desenvolvimento sustentável. A luta pelo reconhecimento das terras,
a preservação do meio ambiente e a valorização da cultura local são questões essenciais para aquelas co-
munidades. Numa edição especial sobre meio ambiente, não se poderia esquecer do Protoloco de Quioto.
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
3 Artigo Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
Do lixo à cidadania 20040-916 Rio de Janeiro/RJ
Adriana Valle Mota Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852-3517
<ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
10 Especial quilombos
Conselho Curador
Da África para o Brasil Regina Novaes
João Guerra
42 artigo
Carlos Alberto Afonso
Novas articulações em prol Moacir Palmeira
da justiça ambiental Jane Souto de Oliveira
Henri Acselrad
Direção Executiva
48 Nacional Cândido Grzybowski
Dulce Pandolfi
Entrevista Amazônia e o desafio Francisco Menezes
Jean-Pierre Leroy do desenvolvimento sustentável João Sucupira
Paulo Moutinho
Coordenadores(as)
54 variedades Erica Rodrigues
Fernanda Carvalho
56 internacional Iracema Dantas
Itamar Silva
Regimes internacionais e políticas João Roberto Lopes Pinto
de mudanças de clima Leonardo Méllo
Rubens Born Moema Miranda
Núbia Gonçalves
62 pelo mundo
DEMOCRACIA VIVA
64 entrevista
ISSN: 1415-1499
Jean-Pierre Leroy
Diretor Responsável
78 Crônica Cândido Grzybowski
Alcione Araújo Conselho Editorial
Especial quilombos
Alcione Araújo
Da África para o Brasil 80 Resenhas Ari Roitman
Cleonice Dias
84 Transposição das águas Eduardo Henrique Pereira de Oliveira
do rio são francisco Jane Souto de Oliveira
Sérgio Pinheiro Torggler João Roberto Lopes Pinto
Carmen Silvia Maria da Silva Márcia Florêncio
Moema Miranda
96 opinião ibase Regina Novaes
Uma janela histórica está aberta Rosana Heringer
Carlos Tautz Sérgio Leite
Coordenação Editorial
102 indicadores Iracema Dantas
Comportamento ecológico: Subedição
chave para compreensão e resolução AnaCris Bittencourt
da degradação ambiental?
Revisão
Claudia Pato
Marcelo Bessa
108 Cultura Assistentes Editoriais
Arte, cidadania e samba no pé Flávia Mattar
Para apoiar os projetos Jamile Chequer
Luigi Zampetti
desenvolvidos pelo Produção
Ibase, escreva para 114 espaço aberto Geni Macedo
amigos@ibase.br Dinâmica da soja, o desmatamento Estagiária
ou telefone para na fronteira da Amazônia Thais Zimbwe
(21) 3852-6028. Weber A. N. Amaral, Silvio Ferraz
e Roberto Smeraldi Distribuição
Doações de pessoas Maria Edileuza Matias
jurídicas podem ser 123 sua opinião Projeto Gráfico
abatidas do Imposto Mais Programação Visual
de Renda. 124 Última página
Diagramação
Nani Imaginatto Design e Marketing
Capa
Foto de Marcio R.M./Brasil Imagens
Fotolitos
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estraté- Rainer Rio
gia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política
Impressão
editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso Editora Lidador LTDA
de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política.
Tiragem
5 mil exemplares
artigo
Adriana Valle Mota*

Do lixo
Abordar a questão do lixo e suas principais e atuais problemáticas requer um mergulho

no passado, para compreender melhor sobre qual tipo de lixo estamos falando. Afinal,

o lixo faz parte da produção humana desde tempos ancestrais – foi se modificando e se

transformando, assim como a própria vida de maneira geral. Se nos tempos pré-históricos

a quantidade de lixo produzida por homens e mulheres era pequena e pouco variada,

a evolução da ciência e da tecnologia possibilitou a transformação de matérias-primas

naturais e a criação de novos produtos, totalmente estranhos ao meio ambiente, ainda

que bastante úteis para a humanidade. Esses novos produtos, como os papéis, plásticos,

vidros, metais e muitos outros, passaram a fazer parte do dia-a-dia da humanidade e

também do lixo produzido.

Mas, ao contrário do lixo primitivo, que se reintegrava naturalmente ao ambiente,

esses novos materiais compõem um tipo de lixo diferente, um lixo que resiste, que não

se deteriora com facilidade, que ocupa espaço e que incomoda a consciência ambiental

JUN / JUL 2005 3


artigo

O lixo produzido por uma sociedade pode que era lixo, que estava desorganizado e
revelar aspectos importantes sobre seus misturado, passa a ser organizado, selecio-
hábitos de consumo e poder aquisitivo das nado, vira matéria-prima.
famílias. Nas cidades do interior e áreas
rurais, é comum encontrar uma quantidade
Aproveitamento da matéria-prima
maior de lixo orgânico (cascas de frutas e
legumes, restos de alimentos) na composi- Para a indústria da reciclagem, a utilização
ção do lixo doméstico do que a encontrada de resíduos sólidos como matérias-primas é
em grandes centros urbanos. Se pudéssemos um grande achado. Há estudos econômicos
fazer uma comparação entre o lixo domésti- que indicam que a utilização de produtos
co produzido em nossa casa nos dias de hoje recicláveis como matéria-prima reduz sig-
e o lixo doméstico nificativamente os gastos dos processos de
produzido na casa produção, além de reduzir em 74% a po-
de nossos avós, por luição do ar, em 35% a poluição da água,
exemplo, as dife- gerando um ganho de energia de 64%. 1 Há,
renças seriam enor- ainda, uma sensível redução na quantidade de
mes. Um exemplo matéria-prima natural utilizada. Para citar o
muito comum é o exemplo do alumínio, um dos materiais reciclá-
das fraldas descar- veis mais coletados no Brasil, estima-se que a
táveis, um tipo de redução da utilização de bauxita seja da ordem
lixo muito comum de 90% para cada nova latinha produzida.2 Um
hoje, mas conside- reflexo da utilização dos resíduos sólidos como
rado raro 30 anos matéria-prima na indústria da reciclagem é,
atrás. portanto, a diminuição da extração de matéria-
Da mesma -prima virgem.
forma, o tratamen- Uma parte dos(as) economistas e
to dispensado ao pesquisadores(as) que trabalham com a te-
lixo pode revelar mática dos resíduos sólidos é forte contesta­
qual a importância dora da tese mencionada anteriormente e
que a sociedade dá refuta os argumentos de que a indústria
ao tema, se existem da reciclagem se beneficia economicamente
marcos regula­t ó­r ios com a utilização dos resíduos sólidos como
eficazes e técnicas matéria-prima. No entanto, a indústria da
eficientes pa­ra a co- reciclagem segue crescendo e com espaço
leta, transporte, para crescer ainda mais, pois opera com ca-
armazenamento pacidade ociosa no Brasil. E, certamente, o
e destinação final incentivo maior para que o empresariado do
dos resíduos sóli- setor se sinta estimulado a seguir ou ampliar
dos. Entre as técni- seus negócios não diz respeito unicamente
cas utilizadas para aos ganhos ambientais, mas também – e
a des­tinação dos principalmente – aos ganhos econômicos.
resíduos sólidos, Para além dos benefícios econômicos,
uma em especial a coleta seletiva e a reciclagem de resíduos
merece nos­s a con- sólidos podem gerar impacto na imagem das
sideração: a co­le­­ta empresas que trabalham com esses materiais.
seletiva. Se, na década passada, poucos consumido-
A coleta sele- res e consumidoras se sentiam atraídos por
tiva é aquela que recolhe somente os materiais produtos reciclados, hoje o mercado para os
recicláveis, aqueles que podem ser utilizados reciclados cresce a olhos vistos. Várias marcas
como matéria-prima na indústria da reci- e empresas que tinham receio em ver seus
clagem. Papéis, vidros, plásticos, materiais produtos atrelados ao conceito de reciclagem
ferrosos, alumínio e outros tipos de resíduos hoje investem pesado na propaganda dessas
1 CONCEIÇÃO, Márcio Ma-
gera. Os empresários do lixo:
que seriam enterrados em aterros sanitários qualidades, ressaltando seu “compromisso
um paradoxo da modernida- ou jogados em lixões ganham uma nova ambiental” e com o “desenvolvimento auto-
de. Campinas: Átomo, 2003,
p.102-103. vida, deixam de ser lixo e viram matérias- -sustentável”. Uma ampla gama de empresas
2 Idem, ibidem. -primas. Com a coleta seletiva, o resíduo nacionais e internacionais busca se beneficiar

4 Democracia Viva Nº 27
Do lixo à cidadania

com a reciclagem, não apenas por meio Apesar de ser uma prática interessante
da economia que a utilização de resíduos sob diversos aspectos – já destacamos aqui os
sólidos como matérias-primas pode propor- aspectos econômico e ambiental –, a coleta
cionar, mas também investindo pesado na seletiva ainda é uma atividade rara no Brasil
propaganda e na imagem de uma empresa e pouco incentivada pela legislação. Segun-
“ecorresponsável”. do dados do Compromisso Empresarial para
Em abril deste ano, a imprensa noti- a Reciclagem (Cempre), 3 no ano de 2004,
ciou que o Brasil havia alcançado, pela quinta dos 5.566 municípios brasileiros, apenas 273
vez consecutiva, o melhor desempenho entre tinham programas oficiais de coleta seletiva de
todos os países que reciclam o alumínio no lixo. Isso indica que, de cada cem cidades bra-
mundo. Em outras palavras, o Brasil é, hoje, sileiras, apenas cinco tinham coleta seletiva de
um líder do setor de reciclagem de alumínio. lixo realizada por um programa da prefeitura,
No entanto, diferentemente do Japão, o que é o gestor das políticas relacionadas aos
segundo colocado nesse ranking, ainda não resíduos sólidos.
existe uma lei nacional específica que obrigue A região Sudeste concentra 122 expe-
e normatize a criação e manutenção de serviços riências de coleta seletiva das 273 conheci-
de coleta seletiva nos municípios brasileiros. das. São Paulo é o estado com mais cidades
Também não existe ainda no Brasil uma lei atendidas, 84 no total. No Rio de Janeiro,
que responsabilize produtores de embalagens um estado com 92 municípios, apenas 13
recicláveis a investir em programas e projetos cidades são citadas como alvo de programas
que diminuam o impacto ambiental causado de coleta seletiva.
pelo seu descarte inadequado. A coleta seleti-
va, que promove o recolhimento desse tipo de
Organizando e crescendo
embalagem, poderia ser um desses tais projetos.
A participação de catadores e catadoras na

Em busca de uma identidade profissional


Imaginar que apenas os programas oficiais e governamentais são responsáveis por todo o material
que alimenta a indústria da reciclagem no Brasil seria um grande equívoco. Então, de onde vêm
esses materiais? Quem são os trabalhadores de 14 anos de idade na época da pesquisa.
e as trabalhadoras responsáveis de fato pela Além dos catadores e catadoras que estão nos
coleta, seleção, beneficiamento e comerciali- lixões, a PNSB estima que existam mais 800 mil
zação dos recicláveis no Brasil? Há pelo menos catadores e catadoras de rua no país. No mesmo
50 anos, catadores e catadoras de materiais ano de 2000, o Fundo das Nações Unidas para
recicláveis vêm desenvolvendo, de modo infor- a Infância (Unicef) realizou uma pesquisa que
mal, sistemas de coleta seletiva que atendem identificou a presença de catadores e catadoras
a pequenas comunidades, bairros ou cidades de materiais recicláveis em pelo menos 3.800
inteiras. Até mesmo naqueles municípios onde cidades, 68% do total de municípios brasileiros.
existem programas governamentais de coleta Na região Sudeste, a mais desenvolvida econo-
seletiva de lixo, podemos encontrar catadores micamente, esses trabalhadores e trabalhadoras
e catadoras em atividade. Conhecidos no país estão presentes em 74% das cidades. É preciso
afora como garrafeiros(as), carrinheiros(as), ressaltar que tais números, ainda que sejam
catadores(as) de papel ou catadores(as) de oficiais, são considerados subestimados pelo
lixo, esses trabalhadores e trabalhadoras já Fórum Nacional Lixo e Cidadania, uma instância
avançaram em busca da construção de uma organizada de discussão que reúne organizações
identidade profissional e estão se organizando não-governamentais, instituições religiosas,
para conquistar o reconhecimento e a profissio- órgãos governamentais e instituições de ensino
nalização da categoria, que agora faz parte do e pesquisa que atuam nas áreas relacionadas à
Código Brasileiro de Ocupações,4 como catador gestão dos resíduos sólidos e também na área
ou catadora de materiais recicláveis. Dados da social. O Movimento Nacional dos Catadores,
Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), órgão criado por catadores e catadoras do
realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Brasil em 1999, que conta com representantes
e Estatística (IBGE) em 2000, apontam que em quase todos os estados brasileiros, também
os lixões ainda são a alternativa mais comum considera que o número de pessoas que traba-
para a disposição final dos resíduos sólidos nos lham atualmente em lixões é maior do que o
municípios (59% dos casos). Nos lixões, 24.340 apurado pela PNSB.
catadores e catadoras trabalham diariamente,
retirando desses locais o seu sustento e o de 3 Essa e outras informações
estão disponíveis em <www.
suas famílias. Entre essas pessoas, pelo menos cempre.org.br>.
7 mil moram nos lixões e 5.598 tinham menos
4 CBO94 – Portaria 397, de 9
de outubro de 2002, do Minis-
tério do Trabalho e Emprego.

JUN / JUL 2005 5


artigo

coleta seletiva de lixo das cidades tem sido no Rio de Janeiro, é possível afirmar que
uma grande contribuição dessas pessoas a sua organização coletiva permite alguns
para o circuito da reciclagem e para a lim- avanços importantes.
peza pública. É uma atividade econômica Em primeiro lugar, o trabalho em um
que integra outros aspectos importantes grupo organizado favorece a construção da
como a geração de renda, a proteção aos identidade dos catadores e das catadoras
recursos naturais, a educação ambiental, como trabalhadores e trabalhadoras, como
a inclusão social e a prestação de serviços uma categoria profissional. O sentimento de
públicos. pertencimento a um grupo, a uma classe,
Somando-se aos serviços governamen- pode resultar na valorização pessoal e pro-
tais já existentes, estima-se que catadores e fissional dessas pessoas.
catadoras desviam Em segundo lugar, o(a) catador(a)
para o circuito da que trabalha vinculado(a) a uma cooperativa
reciclagem cerca de ou associação tem condições de estabele-
20% dos resíduos cer vínculos mais sólidos com a sociedade,
sólidos urbanos, viabilizando a construção de par­c e­r ias e a
segundo pesquisa prestação de serviços. Para poder coletar os
realizada pelo Uni- recicláveis gerados, por exemplo, por uma
cef em 2000. Isso agência bancária, é preciso ter equipamen-
significa que, graças tos, equipe e regularidade no atendimento.
à participação de Uma cooperativa ou associação atende me-
tais profissionais, a lhor a esses requisitos do que uma pessoa
cada dia mais mate- sozinha. Por outro lado, uma cooperativa
riais recicláveis estão ou associação de cata­d ores(as) pode ser
sendo selecionados, alvo de investimentos por parte de empre-
com um destino ambi­ sas e instituições interessadas em projetos
en­talmente correto, de economia solidária, geração de renda,
economicamente melhorias so­c io­a mbientais etc.
viável e socialmente Em terceiro lugar, uma pessoa sozi-
justo. nha, por mais que se dedique à atividade
Para realizar de recolhimento dos materiais recicláveis,
a coleta de reciclá- não conseguirá alcançar a quan­tidade, o
veis, catadores e ca- volume e o peso necessários para conseguir
tadoras têm atuado os melhores preços no mercado. Para isso,
ao longo destes 50 é preciso ter escala, ou seja, ter recicláveis
anos em diversas em grande quantidade. Além disso, os reci-
frentes de trabalho. cláveis precisam estar beneficiados, mesmo
Algumas dessas pes­­­ que primariamente, ou seja, separados
soas atu­a m em li­ por tipo, prensados, enfardados, pesados.
A produção em escala e o beneficiamento
xões e aterros sani-
dos materiais recicláveis irão fortalecer a
tários; outras atuam
participação das cooperativas e associações
em cen­tros urbanos,
de catadores(as) no mercado dos recicláveis,
ruas, empresas, co-
gerando melhores oportunidades de co-
mércios, escolas,
mercialização, como preços e prazos mais
igrejas etc. Algumas
favoráveis.
trabalham sozinhas,
Finalmente, o diálogo com governos
por conta própria, sem nenhum tipo de apoio
e empresas com vistas à participação no
ou parceria; outras trabalham organizadas
processo de produção e definição de polí-
em grupos (associações, cooperati­vas, grupos
ticas sociais públicas também fica facilitado
comu­ni­tários etc.).
quando catadores e catadoras se organizam.
Para o trabalho desenvolvido pelos ca-
Uma cooperativa ou associação pode firmar
tadores e catadoras, trabalhar soli­t ariamente
parcerias com o poder público para realizar
ou vincu­­lado(a) a um gru­po faz muita diferen-
coleta seletiva em algumas comunidades,
ça. Por meio da experiência adquirida com
ao passo que um(a) cata­d or(a) que trabalhe
o acompanhamento do trabalho de diversos
de forma individualizada não tem a mesma
grupos organizados de catadores e catadoras

6 Democracia Viva Nº 27
Do lixo à cidadania

oportunidade. cerias e apoios, capacitar e profissionalizar


as cooperativas e associações.
Há vários anos, catadores e catado-
Luta contra o preconceito
ras em diferentes cidades do Brasil estão se
Apesar de atuarem em uma atividade que, a organizando, pela criação de cooperativas,
um só tempo, gera emprego e renda, oferece associações e grupos comunitários. A Coopa­
serviços e reduz os gastos públicos emprega- mare (em São Paulo/SP), a Asmare (em Belo
dos na coleta de lixo, nem sempre o trabalho Horizonte/MG) e a CoopCarmo (em Mesquita/
de catadores e catadoras é reconhecido RJ) são exemplos de organizações com mais de
pelo poder público e pela sociedade como uma década de existência.5
importante e fundamental. Ao contrário, em No Rio de Janeiro, catadores e catadoras
várias cidades brasileiras, catadores e cata- reuniram-se em uma rede, a Rede Indepen-
doras enfrentam permanentes dificuldades dente de Catadores de Materiais Recicláveis
e barreiras, lutando contra o preconceito e (Ricamare), que conta com a participação
a falta de oportunidades. de aproximadamente 25 cooperativas e as-
Além disso, outra disputa importantís- sociações de diferentes municípios do estado
sima está sendo travada em torno da coleta do Rio de Janeiro: São Gonçalo, Petrópolis,
seletiva de lixo e da reciclagem nas cidades, Duque de Caxias, Mesquita, Nova Iguaçu, Rio
a partir da construção de duas propostas di- de Janeiro, São João de Meriti, entre outros.
ferentes para o seu desenvolvimento. Numa É um espaço da sociedade civil, independen-
delas, encabeçada pelo setor empresarial, a te, no qual se luta pela defesa de interesses
coleta seletiva fica nas mãos de empresas comuns dos catadores e das catadoras de
particulares, excluindo catadores e catadoras materiais recicláveis. A rede nasceu do pro-
e suas “empresas sociais”. Na outra, a propos- cesso de mobilização dessas pessoas para
ta é a inclusão des­s es(as) trabalhadores(as), o 1º Congresso Nacional dos Catadores de
por meio de sua participação não apenas Materiais Recicláveis, realizado em Brasília,
como pres­ta­d o­res(as) de serviços na coleta no ano de 2001.
seletiva, mas também como co-gestores(as) Por meio da Ricamare, catadores e
da política de resíduos sólidos. Para levar catadoras buscam participar ativamente
adiante essa segunda proposta, catadores e nas diversas instâncias de decisão da gestão
catadoras devem se organizar, buscar par- dos resíduos sólidos no Rio de Janeiro, in-

Movimento nacional
Catadores e catadoras estão se organizando
também nacionalmente, por meio do Movimen-
e 2005), oficinas no Fórum Social Mundial (2003
to Nacional dos Catadores de Materiais Reciclá-
e 2005), parceria com o Ministério do Desen-
veis (MNCR), cuja trajetória teve início em 1999,
volvimento Social, Fundação Avina e Fórum
no 1º Encontro Nacional de Catadores de Papel
Nacional Lixo e Cidadania.O principal desafio
e Material Reaproveitável, em Belo Horizonte. O
que o Movimento Nacional dos Catadores tem
processo de articulação nacional de tais traba-
pela frente no ano de 2005 é promover a realiza-
lhadores e trabalhadoras levou à realização do
ção de 14 Congressos Estaduais de Catadores e
1º Congresso Nacional de Catadores de Mate-
Catadoras de Materiais Recicláveis, nos seguintes
riais Recicláveis, realizado em Brasília de 4 a 6 de
estados: Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas
junho de 2001, que contou com a participação
Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Bahia, Rio
de 1.600 congressistas, entre catadores(as),
Grande do Norte, Sergipe, Ceará, Pará, Paraíba,
técnicos(as) e agentes sociais de 17 estados
Pernambuco, Santa Catarina e Mato Grosso. No
brasileiros. No congresso, foram eleitos os(as)
Rio de Janeiro, o congresso será realizado pela
representantes que assumiram a Comissão Na-
Ricamare, em parceria com a Nova Pesquisa
cional do Movimento, cuja secretaria executiva
e Assessoria em Educação e o Fórum Lixo e
encontra-se na cidade de São Paulo.6 De 1999
Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, no dia 5 Contatos podem ser feitos
até agora, o Movimento Nacional dos Catadores por telefone: Coopamare
1º de outubro, na Universidade do Estado do (11) 3064-3976, Asmare (31)
conseguiu alguns êxitos, realizou encontros e
Rio de Janeiro (Uerj). 3201-0717 e Coopcarmo (21)
eventos, desenvolveu projetos e fez valer a voz 2697-0545.
de catadores e catadoras deste país. Entre as
6 Contato com a secretaria
principais realizações estão as duas edições do execultiva do MNCR pode
Encontro Latino-Americano de Catadores (2003 ser feito pelo telefone (11)
3399-3475 ou pelo e-mail
<secretarianacionalcatadores@

JUN / JUL 2005 7


artigo

*Adriana Valle fluenciando na definição de políticas sociais organização e qualificação do trabalho


Mota públicas que tragam benefícios para as de catadores(as); da oferta de linhas de
Socióloga, pesquisadora cooperativas e associações. Foi o que acon- financiamento público a juros populares
da Nova Pesquisa e teceu no processo de formulação da Política para cooperativas de cata­d o­r es(as); ou até
Assessoria em Educação Estadual de Resíduos Sólidos, Lei 4.191/03, mesmo da destinação dos materiais reci-
e membro da Secretaria cuja elaboração contou com a participação cláveis gerados pelas secretarias e órgãos
Executiva do Fórum ativa da Ricamare. públicos para cooperativas e associações de
Estadual Lixo e Cidadania
catadores(as).
do Rio de Janeiro
Por outro lado, o apoio de universida-
Reconstrução de vidas
amota@novapesquisa. des e outras instituições de ensino e pesquisa
É louvável o esforço feito pelas organizações também pode criar condições para o aper-
de catadores e ca- feiçoamento do trabalho dessas cooperativas
tadoras em vários por meio do oferecimento de apoio técnico
estados do Brasil, às organizações de cata­dores(as); do estudo
no sentido de ofe- de novas tecnologias que propiciem o avanço
recerem melhores de catadores(as) diante da cadeia produtiva
serviços à população dos recicláveis; da inclusão da perspectiva
em geral e melhores de catadores(as) nas disciplinas de educação
condições de traba- ambiental; da celebração de convênios para
lho aos(às) associ­a­ assessoria jurídica aos grupos organizados de
dos(as) e coopera­ catadores(as) por meio de escritórios-modelo;
dos(as). A esses es­ e da destinação dos materiais recicláveis para
forços se soma o as cooperativas e associações de catadores(as).
apoio prestado por A questão do lixo conjuga aspectos
organizações não- técnicos, econômicos, ambientais, culturais,
-governamentais, políticos e sociais que não podem ser tomados
instituições religio- de forma isolada. Nenhuma proposta que
sas, movimentos po- considere apenas um desses aspectos será
pulares, associações boa o suficiente para resolver a questão do
de moradores(as), lixo. Além disso, não é possível continuar a
governos municipais fazer propostas em torno dos resíduos sóli-
e instituições de en- dos desconsiderando a contribuição efetiva
sino e pesquisa. que milhares de catadores e catadoras vêm
No entanto, dando ao desenvolvimento da indústria da
esse apoio não pode reciclagem no Brasil. Essas pessoas, que são
ser apenas fruto do qualificadas para a coleta seletiva, precisam
voluntarismo ou da ser vistas e ouvidas, não como uma curiosida-
solidariedade pontu- de ou um subproduto do lixo, mas como uma
al. Precisa ser a­poio categoria profissional que busca se organizar
planejado, que aten- e reivindicar direitos.
da aos reais interes- A coleta seletiva pode ser um importan-
ses e necessidades te instrumento para a valorização de catadores
de catadores e ca- e catadoras e deve ser utilizada com essa
tadoras e de suas finalidade. É por meio dela que tais profissio-
organizações. nais podem dar sua melhor contribuição para
O apoio go- a cidade e para todas as pessoas que nela
vernamental por habitam. Também é pela coleta seletiva que
meio de programas e políticas públicas, catadores e catadoras podem reconstruir sua
por exemplo, pode propiciar avanços muito trajetória de vida e de trabalho, do lixo à cida-
concretos e importantes: por meio da uni- dania. Endossando a máxima do Movimento
versalização da coleta seletiva no município, Nacional dos Catadores: coleta seletiva sem
priorizando a inclusão de catadores(as) na catador(a) é lixo!
sua gestão e execução; do incentivo à insta-
lação de indústrias recicladoras no estado,
ampliando as possibilidades de negociação
dos materiais recicláveis; da promoção da

8 Democracia Viva Nº 27
JUN / JUL 2005 9
quilo
especial
fotos: arquivo ibase

Da
África
para o
Brasil

10 Democracia Viva Nº 27
ombos
O Artigo 68 da Constituição Federal obriga o Estado a
reconhecer, regularizar e titular os territórios quilombolas de
todo o Brasil – sua inclusão foi fruto da pressão exercida por
lideranças quilombolas de todo o país durante o processo
constituinte em 1988. Mas ainda falta um bocado para tal
direito ser garantido de fato a essas populações. Segundo
levantamento realizado pela Universidade de Brasília (UnB)
e divulgado em maio, das 2.228 comunidades reconhecidas
como quilombolas pelo governo federal, apenas 70 possuem
registro no Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra). O número total em si já é uma polêmica, pois a
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas (Conaq) avalia que existam cerca de 4 mil
comunidades no Brasil. Do que foi levantado pela UnB, grande
parte dessas terras concentra-se na região Nordeste, são 1,4 mil
territórios. Maranhão, com 642 comunidades, está em primeiro
lugar; seguido da Bahia, com 396; e Pará, com 294.
Para esta edição, a equipe da revista Democracia Viva visitou
três dessas comunidades: Conceição das Crioulas, em Pernambuco;
Ivaporunduva, em São Paulo; e São José da Serra, no Rio de
Janeiro. O resultado desses encontros você confere nas páginas
seguintes.

JUN / JUL 2005 11


quilo
Por Iracema Dantas
entrevista

Givânia Vereadora exercendo o


segundo mandato pelo
Partido dos Trabalhadores,
em Salgueiro, sertão de
Pernambuco, Givânia
Silva, 37 anos, traz na
sua trajetória pessoal a
história da reconstrução da
identidade de um povo – um
povo quilombola. Nascida
em Conceição das Crioulas,
distante 50 km da cidade de
Salgueiro, Givânia é referência
para os(as) jovens que
despertam para o exercício
da cidadania. Para ela, a luta
pela terra e a preservação do
meio ambiente não podem
estar distante da luta pela
cidadania: “Enquanto algumas
pessoas estão preocupadas
com esse ou aquele animal
que está em extinção, e
nós também nos preocupamos com isso, estamos preocupadas com
as pessoas que estão em extinção. O meio ambiente para nós não é
descolado das pessoas, é a natureza com as pessoas dentro. Não adianta
deixar o animal se a pessoa não puder mais existir”.
Além de professora, formada em Letras, Givânia é uma política
bastante atuante dentro e fora do estado de Pernambuco. É a única
mulher, a única negra e a única pessoa de origem pobre eleita
vereadora em sua cidade. Nesta entrevista à Democracia Viva, conta
sua luta pessoal e o caminho percorrido até a atual consolidação
do movimento quilombola e a criação da Associação Quilombola de

12 Democracia Viva Nº 27
ombos
Democracia Viva – Qual a origem das famílias brancas. Meu pai, que é agricultor,
de Conceição das Crioulas? era um dos mais resistentes. Ele achava que, ao
Givânia – Não temos registros escritos, mas ir morar numa casa de família branca, poderia
a história oral nos diz que Conceição surge a acabar grávida e não estudar.
partir de um grupo de seis mulheres negras Já minha mãe pensava ao contrário, ela
que por lá fixaram residência. Na época, era achava que, se fosse para engravidar, isso
bastante forte na região o plantio do algodão aconteceria em qualquer lugar, não era estu-
e elas seguiram essa tradição. Com a venda de dando fora, saindo de casa que isso iria aconte-
rendas e do fio de algodão, tornaram-se donas cer. Ela é artesã e trabalhava com cerâmica. Era
da terra. As pessoas mais velhas dizem que o com esse recurso que ela comprava material
documento dessa terra data do ano de 1802. para a gente estudar. Ela sempre defendeu que
Acreditamos que as mulheres chegaram 40 a precisávamos estudar e sabia que esse era o
50 anos antes. meu sonho. Enquanto as meninas se animavam
Democracia Viva – E como surgiu quando começavam a trabalhar com a agri-
esse nome? cultura, eu lamentava cada vez que ia para a
Givânia – Mais uma vez, só temos a história roça. Isso me causava um sofrimento enorme,
oral. Pelo que sabemos, depois da chegada das eu queria estudar, queria ir para a cidade, e
mulheres, veio um homem que trouxe uma meu pai não deixava porque dizia que a gente
imagem de Nossa Senhora da Conceição. Então, tinha que trabalhar para comprar uma casa.
fizeram uma promessa: caso se tornassem do- Democracia Viva – Você tem irmãos
nas daquelas terras, construiriam a capela para e irmãs? Alguém seguiu uma
Nossa Senhora da Conceição. Não sabemos a trajetória semelhante a sua? Você
data exata da construção dessa capela, mas foi tem filhos?
por causa dela que temos o nome de Conceição Givânia – Tenho três irmãs e três irmãos.
das Crioulas, na verdade um distrito da cidade Quem não pôde estudar na época está estudan-
de Salgueiro. A construção foi um marco da do agora, mesmo com idade mais avançada.
conquista da terra. Não tenho filhos, mas tem uma carrada de
Democracia Viva – Sua trajetória gente de que eu cuido, são filhos dos outros.
é bastante incomum para uma Meu filho é o trabalho.
mulher negra, do interior de Democracia Viva – Foi sua mãe que
Pernambuco. Você cursou o ensino incentivou seu estudo?
superior e é uma vereadora muito Givânia – Sim. Quando eu tinha 16 anos,
atuante. Pode contar um pouco surgiu a minha grande oportunidade. Uma
da sua história? funcionária da Secretaria de Educação foi lá em
Givânia – Nasci em Conceição e fui a casa comprar artesanato, e a mamãe contou
primeira mulher a chegar à universidade. Eu que meu sonho era estudar. Essa funcionária
me formei em Letras, em 1996. Até o início disse: “Realmente, é muito complicado levar
da década de 90, normalmente as pessoas só uma pessoa para casa de uma família. Mas
estudavam até a quarta série. Para dar continui- existe um programa na prefeitura em que ela
dade aos estudos, era preciso ir para a cidade podia tentar ingressar. Como contrapartida,
e não tínhamos transporte regular. Algumas vai ter que dar aula para crianças. Se ela
meninas até tentavam estudar na cidade, mas passar num teste, será aceita”. Eu fui, fiz o
havia resistência por parte dos pais porque teste, passei.
muitas acabavam sendo domésticas nas casas Democracia Viva – Assim você

JUN / JUL 2005 13


especial squilombos

iniciou seu trabalho como trabalho era na Pastoral da Juventude, eu era


professora? liberada só para fazer articulações pelos mu-
Givânia – Sim, de 1984 a 1986 fiquei nicípios do sertão. Minha formação na Igreja
nesse programa da prefeitura de Salgueiro. De Católica foi toda na linha do grupo que discutia
segunda a quinta-feira, eu dava aula. Na sexta política, as comunidades eclesiais de base eram
e no sábado, estudava em horário integral. um campo de debates, a Pastoral da Juventude
Quando terminei o que correspondia à oitava era muito forte. Resolvi prestar vestibular e pas-
série, recebi o convite para continuar e fazer sei, comecei a faculdade enquanto trabalhava
o segundo grau. Em seguida, em 1989, houve na Igreja.
o primeiro concurso para a rede municipal de Democracia Viva – Esse seu
ensino. Resolvi fazer o concurso e fui apro- envolvimento já se refletia na sua
vada, tornando-me comunidade?
efetiva no quadro de Givânia – No começo de 1992, foi que-
professores. Paralelo brada a primeira corrente em Conceição. Uma
a isso, eu já atuava, família tradicional, ligada ao PFL [Partido da
estava bem engaja­ Frente Liberal], administrava a cidade de Sal-
da na Pastoral da gueiro desde sempre e nem se preocupava em
Juventude, nas co- fazer campanha eleitoral. Para surpresa geral,
munidades eclesiais um candidato da família perdeu pela primeira
de base. Trabalhava vez em toda a história de Salgueiro. Consegui-
até sexta-feira; aos mos eleger como prefeita uma professora da
sába­­dos e domingos, base da Igreja, catequista, coordenadora desse
eu ia para as comu- nosso movimento. O normal, até então, era que
nidades, reunia e votássemos em quem o fazendeiro da região
animava os jovens mandasse. Meu pai dizia que, se o fazendeiro
para os encontros. votasse no cachorro, ele também votaria. Não
Em 1991, tirei precisava pregar um papel de propaganda,
u m a lic en ç a s em fazer comício, nada. Em 1993, eu já estava
vencimentos porque em Salgueiro fazendo faculdade e me tornava
minha situação esta- bastante conhecida na região. Foi justamente
va insustentável. Não nessa época que os conflitos começaram; fui
era admissível que ameaçada de morte pela primeira vez. Eu era
uma professora da uma professorinha de 25 anos de idade.
rede municipal fizes- Democracia Viva – O que
se o que eu estava fa- representou essa mudança
zendo: questionando no cenário político?
distribuição de me- Givânia – Quando quebramos a oligarquia
renda, debatendo os da cidade, disse à professora que a única
salários, discutindo as coisa que eu queria era a construção de uma
necessidades da co- escola de quinta a oitava série em Conceição.
munidade... O povo Não queria nem voltar a ser funcionária do
começava a se or- município, queria apenas que a nova admi-
ganizar para vir para nistração olhasse para Conceição de forma
a cidade reivindicar diferenciada. Em 1995, a escola ficou pronta, e
carro-pipa, constru- eu continuava a trabalhar na Igreja. A prefeita
ção de estrada. E eu dizia para mim: “Discuta com a comunidade
era servidora do município... Licenciada, fui o nome da escola”.
trabalhar em um programa da Igreja Católica. Foi nesse processo que começamos a
Democracia Viva – E como era discutir a história de Conceição por um olhar
esse trabalho? étnico. Nós nos perguntávamos se éramos
Givânia – Era um projeto financiado pela todos negros. Começamos a assumir a nossa
Misereor [agência de financiamento], da Alema- identidade, a nos assumir negros; até então
nha, e tinha bastante recurso. Recebia salário, todo mundo era moreno, eu inclusive. Demos
que não era ruim, e tinha boas condições de à escola o nome de um professor que nem era
trabalho, inclusive dinheiro para viagens. Essa da rede municipal nem do estado, mas era a
experiência me abriu novos horizontes. Meu pessoa que sabia ler na comunidade. Por isso,

14 Democracia Viva Nº 27
entrevista givânia silva

era tido como professor e era descendente comunidade negra, numa escola de negros,
direto das negras fundadoras. Depois de re- não tinha um professor negro. Como eu era
solvida essa etapa, veio um novo desafio. A concursada, me jogaram para a periferia.
prefeita me disse: “Se a escola é para ser um Continuei dando aula normalmente, fazen-
apoio à comunidade, para dar continuidade a do o melhor que podia. Às sextas-feiras,
esse trabalho que vocês fazem lá, a diretora eu voltava para Conceição, continuando o
não pode ser de fora. Você deve retornar para trabalho, não mais dentro da escola, mas
o município e ser diretora da escola”. do mesmo jeito.
Eu ganhava três salários mínimos e passaria Democracia Viva – Quando você
a ganhar um salário e meio, com a gratificação se candidatou novamente?
de diretora. Já no dia seguinte – acho que por Givânia – Em 2000. Minha candidatura
amar muito o que faço, quando decido, decido já era natural, meu
de vez –, pedi demissão do projeto da Igreja. nome estava con-
Meus amigos acharam que eu estava louca, solidado na cidade,
faltava pouco para eu me formar na faculdade. a discussão do Mo-
Eu disse: “Não vou abandonar a faculdade, vimento Nacional
vou freqüentar as aulas pelo menos três dias das Comunidades
por semana”. Pedi demissão e fui tomar conta Quilombolas virou
da escola. uma referência. Não
Democracia Viva – Como foi esse entendia muito de
retorno à sala de aula? comunicação, como
Givânia – Foi uma experiência maravilhosa. ainda não entendo,
Consegui, com ajuda da Pastoral, selecionar pro- mas fizemos uma
fessores que se afinavam com nossas idéias. Che- campanha do “só
guei para eles no primeiro dia e disse: “Eu não faltou seu voto”.
sei ser diretora, nunca dirigi nada, nem minha Com esse slogan, eu
casa”. As pessoas não acreditavam... Construí- me elegi vereadora,
mos essa escola juntos. Nos dois anos em que sem nada, sem um
fiquei como diretora, em 1995 e 1996, a escola centavo. Eu estava
apareceu em uma pesquisa sobre educação e há seis meses sem
pobreza como uma das melhores propostas de receber salário. Con-
educação da zona rural. Foi uma festa! A escola trariando todo mun-
se firmou ainda mais. Antes de estudar qualquer do, dentro e fora do
coisa que estivesse nos livros didáticos, tinha que grupo, fui a segunda
estudar primeiro sobre Conceição. Em 1996, já mais votada.
estava no PT e me candidatei pela primeira vez. Democracia
Fui vitoriosa pela manhã e, de noite, já não Viva – Você
estava mais eleita. se candidatou
Democracia Viva – Como foi isso? também em
Givânia – Fui eleita, mas o voto ainda era 2004?
no papel... Foi uma grande surpresa, eu não Givânia – Em
tinha nem material, tinha saído candidata 2004, eu me reelegi
apenas pela conjuntura. Na minha cabeça, eu também sem grana,
no máximo iria somar voto para outra pessoa sem nada. Minha
se eleger e eu voltaria para a escola para fazer cabeça não conse-
o que gosto. No dia seguinte à eleição, pela gue admitir algumas
manhã, por um voto eu fiquei como suplente. coisas, por isso é muito difícil para mim. Minha
Resumindo a história: na contagem final eu não campanha sou eu, Deus e algumas pessoas que
estava eleita por um voto! A professora que era acreditam em mim. Ou esse mundo da política
prefeita também não fez o sucessor. tem que melhorar, ou não é meu mundo. Não
A nova administração demitiu todo sei, alguma coisa está errada nesse casamento.
mundo que trabalhava comigo na escola; Ou eu estou errada, ou o mundo está muito
eram contratados. Só ficou a merendeira, distorcido.
ninguém mais. Pior: colocaram no lugar dos Democracia Viva – Refere-se
antigos professores, os brancos, as filhas à falta de apoio político dentro
dos fazendeiros. Foi uma ocupação. Numa do seu partido?

JUN / JUL 2005 15


especial squilombos

Givânia – Não é bem isso. Por causa do riência que cada pessoa tinha que viver para
acirramento dos conflitos e da visibilidade que saber o que é: se manter numa postura de não
temos tido, o partido até tem apoiado bas- se distanciar daquilo que acredita.
tante. O partido sabe que quem está falando Democracia Viva – A AQCC também
por Conceição não é mais nenhum fazendeiro. surgiu em 2000?
Todo o processo que vivemos hoje não é só a Givânia – Sim, a AQCC surgiu num mo-
questão da terra, tem um recheio político muito mento maravilhoso, quando a gente começou a
forte, de manutenção desse espaço comum, discutir de forma mais forte a questão da posse
um espaço político-eleitoral de poder. A terra, da terra. Pelo instrumento do governo, a terra
como meio de produção, é o que menos im- seria titulada em nome de uma organização. Só
porta para esses fazendeiros. O que importa é a que a gente já tinha começado um processo de
propriedade da terra, interação com todas as comunidades. Já que as
o poder que signifi- comunidades eclesiais de base já não mobiliza-
ca estar ali naquele vam, as associações estavam cada uma em seu
meio. A questão é canto, 30 famílias, 25 famílias, começávamos
que não concordo a discutir uma estratégia de interação entre
com alguns acordos essas associações. Aí surgiu essa história, e nós
que são feitos para só consolidamos um processo que já vínhamos
garantir recursos discutindo, que era ter um instrumento que não
para a campanha. substituiria as associações que já estavam lá e,
Fiz minha campanha ao mesmo tempo, pudesse interagir em todo
de moto-táxi, a pé, o território, que não é pequeno. Era mais uma
do jeito que dava... articulação, um modelo de instrumento que
Outro ponto de articulava todas, garantindo as especificidades
tensão é quanto a locais, porque existem comunidades que estão a
alianças políticas. 22 km, a 34 km das outras. Como isso se daria
Havia uma possi- pensando em um território? A gente nem cha-
bilidade de aliança mava de território, mas como a gente pensava
com a qual não con- isso? A AQCC surgiu nesse contexto. Assim,
cordava, que tinha surgiu essa história que terminou empurrando
fazendeiro no meio. para tal modelo que seria uma associação.
Eu briguei dentro do Até então, não tínhamos clareza do que seria,
partido, não é que discutíamos, começávamos a construir nesse
não admitisse, mas rumo. A AQCC surgiu em 2000, exatamente
defendi minha posi- quando a comunidade seria titulada. A gente
ção e acabei tendo entendia que esse instrumento era bastante
o maior apoio den- forte – como é –, mas era preciso que a gente
tro do partido. Isso não só criasse mais uma associação para ficar
trouxe, de certa for- lá, mas era importante pensar a comunidade.
ma, um problema: Nesse mesmo ano, elaboramos um plano de
o outro grupo tinha desenvolvimento sustentável da comunidade,
muito dinheiro, e em que a AQCC assume várias tarefas.
algumas pessoas do Democracia Viva – A AQCC
partido entendiam é composta por pessoas
que era importante de diferentes associações?
ter o dinheiro para Givânia – Sim. A coordenadora-geral é de
fazer a campanha. Eu entendia de forma di- uma associação, o secretário já é de outra. Na
ferente: se o povo me quisesse novamente na prática, a AQCC atua através de comissões . As
Câmara, iria votar; se não votasse, paciência, comissões são: Juventude, que é a mais nova,
eu iria continuar meu trabalho do mesmo jeito. Educação, Comunicação, Saúde, Meio Ambiente,
Sem contar também que se trata de um partido Patrimônio e Geração de Renda. Achamos que
de cidade pequena, as pessoas querem ajudar, ainda precisamos avaliar e estudar mais esse
mas não têm como. Por parte de quem tem modelo, de forma que se torne mais operativo,
dinheiro, não vem nenhuma possibilidade de mas não passa pelas nossas cabeças uma nova
aposta porque quem tem dinheiro quer lutar mudança de perfil ou estrutura.
por outras coisas. É muito difícil, é uma expe- A mudança que houve foi no estatuto,

16 Democracia Viva Nº 27
entrevista givânia silva

em 2004. Revisamos a missão, que antes era fazer – é um debate de forma sistemática
garantir a posse da terra para os moradores de sobre questões de gênero. Sempre discutimos
Conceição; hoje, a missão é muito mais ampla, a saúde, a educação, a geração de renda etc.
definimos nossos valores, nossas crenças. A Acho que, por isso, esse recorte específico
AQCC luta pelo desenvolvimento da comuni- para a questão das mulheres acaba não acon-
dade, levando em conta sua realidade e sua tecendo. Mesmo conhecendo as diferenças
história, a valorização das suas potencialida- nos indicadores entre homens e mulheres de
des, a conscientização do povo negro da sua maneira geral, temos muito essa coisa do global,
importância para construção de uma sociedade do conjunto. Estamos lutando juntos, mas sabe-
justa e igualitária. mos que a voz de Conceição sai muito mais pela
Democracia Viva – Por que apenas mulher que pelo homem.
a questão étnica está explícita? Por Democracia
que não a questão Viva – Qual é
das mulheres? o percentual
Givânia – Quando discutimos a revisão do de homens e
estatuto, o mais forte foi mesmo a questão do mulheres na
território. Debatemos muito o papel da AQCC comunidade?
para promover o desenvolvimento e fortalecer Givânia – Não
a identidade étnica. Creio que a questão das temos essas informa-
mulheres é tão natural que não tínhamos sen- ções, mas creio que
tido falta disso, na prática. Algumas discussões as mulheres são em
em torno da questão de gênero em Conceição maior número. Mas,
foram tão longe que hoje os meninos é que quanto às lideranças
reivindicam ampliar as discussões sobre ga- da comunidade, a
rantir os direitos dos homens! De qualquer maioria é mulher.
forma, acho que a pergunta deve ser debatida Democracia
coletivamente. Vou levar essa inquietação para Viva –
discutir em Conceição. Quantas
Democracia Viva – E quais são os pessoas
maiores desafios atualmente para vivem do
as mulheres de Conceição? artesanato
Givânia – Um desafio que envolve as mu- em Conceição
lheres – mas também toda a comunidade – é das Crioulas?
uma campanha para recuperar o maior prejuízo Essa é a
que já tivemos: a questão do estudo. Hoje te- principal
mos muitas mulheres de 40, 50, 60 anos que fonte de
estão retornando para a escola. Outro desafio renda da
para as mulheres – que mais uma vez é de comunidade?
todos – é nos mantermos lá. Isso significa não Quais os
só a permanência na terra, mas as condições significados
dessa permanência. dessa
É importante entender que em Conceição atividade?
não temos ações sistematizadas exclusivas das Givânia – Essa
mulheres. O que temos é essa liderança natu- não é apenas a nos-
ral. Mesmo no caso do artesanato, que tem sa principal fonte de
mais mulheres participando, também temos renda, é a principal
artesãos. Nossa metodologia – nossa tradição, fonte de renda, de resistência e de existência.
jeito, cultura – nos tem feito caminhar juntos, As pessoas fazem artesanato, mas também
homens e mulheres. A liderança feminina em plantam milho, feijão e batata e criam gali-
Conceição é muito natural e não incomoda nhas e algumas cabras. O artesanato é uma
mais. Ao contrário, estamos lá e temos lide- das possibilidades. O artesanato é muito forte
ranças masculinas maravilhosas, importantes. porque carrega a marca e a história da comu-
Mas faz parte da nossa tradição as mulheres nidade, é por isso que é a principal, mas não
serem muito fortes, o próprio nome nos dá esse necessariamente em termos financeiros. É mais
status de fortaleza. do que a questão financeira, existem esses outros
O que não fizemos ainda – e precisamos significados. No início, quem trabalhava com o

JUN / JUL 2005 17


especial squilombos

caroá era apenas uma pessoa, a Júlia, que virou meio ambiente sou eu, é você, é uma planta.
uma das nossas “bonecas”. Antes de morrer, ela Enquanto algumas pessoas estão preocupadas
teve a felicidade de ver tudo isso, ver aquele com esse ou aquele animal que está em extin-
caroazinho, que ela só fazia um saco para ção, e nós também nos preocupamos com isso,
guardar milho, transformado em uma boneca estamos preocupadas com as pessoas que tam-
ou em uma bolsa maravilhosa. Hoje, as filhas bém estão em extinção. O meio ambiente para
dela estão no artesanato, além de outras cem nós não é descolado das pessoas, é a natureza
pessoas. Às vezes, quando as vendas melhoram, com as pessoas dentro. Não adianta deixar o
o grupo aumenta; quando fica bastante tempo animal se a pessoa não puder mais existir.
sem vender, algumas pessoas saem para cuidar Democracia Viva – Qual sua opinião
da roça, depois voltam. sobre a transposição
Democracia do Rio São Francisco?
Viva – Quantos Givânia – Prefiro acreditar que a transpo-
modelos de sição pode ser benéfica para o Nordeste. Essa
bonecas vocês é uma decisão política que já foi tomada, vai
fazem? acontecer. Só não sei qual será a real contri-
Givânia – São buição para a vida das pessoas. O que sei é
dez, todas com que a transposição não é e nem será a solução
nome e com histó- definitiva para a seca. A transposição tem que
ria. A boneca nunca ser vista como uma obra que vai ajudar certos
é vendida separada- setores, mas que pode causar outros proble-
mente. A história é mas. Não podemos achar que os pobres estão
o mais importante. todos agrupados em tal lugar e que o canal vai
Já esta­m os em um passar e resolver tudo. Não é assim, na nossa
segundo modelo de lógica do sertão não é assim. Não é porque
embalagem, sempre chegou água em uma roça que as pessoas da
com o nome de uma região podem ir trabalhar lá. Essa é a cultura
mulher da comuni- da terra. Se a transposição passasse dentro de
dade e com infor- Conceição, por exemplo, seria muita confusão,
mações sobre ela porque essa água seria entendida como sendo
e sobre Conceição. de quem mora ali. No sertão, a lógica da água
Uma delas é Francis- é outra...
ca Ferreira, umas das Democracia Viva – Em que se
primeiras negras que diferencia a luta pela terra feita
chegaram à comu- pelo movimento quilombola
nidade. Ainda não é da luta feita pelo Movimento
suficientemente ren- dos Trabalhadores Rurais
tável para viver só Sem Terra (MST)?
do artesanato. Para Givânia – Na nossa perspectiva, quando
produzir as bonecas discutimos terra, estamos discutindo territó-
e continuar tendo rio. O que é uma terra para um assentado e
acesso ao caroá, é o que é uma terra para um quilombola? Pela
fundamental que ótica da Contag [Confederação Nacional dos
a questão da terra Trabalhadores na Agricultura], do MST e de
esteja totalmente outros movimentos que legitimamente lutam
resolvida. pela questão da terra, o que se quer é que a
Democracia Viva – Como a AQCC terra seja produtiva. Para nós, as nossas terras
tem atuado em relação ao meio não são as melhores terras, mas nós queremos
ambiente? aquela terra porque há, entre nós e a terra,
Givânia – Se tem alguma preocupação com um sentimento de pertencimento. Quando
a preservação do meio ambiente, de cuidado falamos de território, parece que algumas pes-
com a natureza, é porque as comunidades soas não compreendem que estamos falando
indígenas e quilombolas ainda estão naquela de terra. Dentro da terra, existem as pessoas,
região. Temos um pertencimento muito grande a escola que queremos que seja afinada com a
da terra, mas existem coisas que precisamos história da comunidade, com a história do povo
debater mais. A questão é muito profunda; negro. Precisamos pensar que a saúde tem de

18 Democracia Viva Nº 27
entrevista givânia silva

refletir as doenças que são específicas do nosso trução diferente da nossa, mas também nós,
povo, o que significam os valores e os saberes que temos nossa identidade quilombola. É um
populares e tradicionais da comunidade, as entendimento de cada um olhar de um jeito,
benzedeiras, os chás, as medicinas alternativas, os princípios são comuns, caminhamos para o
os remédios que as mulheres fazem, as pessoas mesmo lugar, mas ora eles podem ir na estrada
que rezam e curam, que não são curandeiras, asfaltada e nós na estrada de chão, ora nós
mas são benzedeiras. Queremos muito mais vamos numa bicicleta, e eles, num jumento.
do que o acesso a uma terra improdutiva que Enfim, os meios podem ser diferentes, mas
está nas mãos de um fazendeiro. Temos um estamos caminhando para um lugar só, para
pertencimento, uma relação de cumplicidade, essa transformação. O certo para mim é que o
é a terra onde meu bisavô nasceu, onde minha governo tem que fazer a reforma agrária. Mas
avó nasceu. Minha mãe é ceramista porque a a reforma agrária a
avó dela também era. Cuidar da cerâmica não é partir do pensamen-
só gerar renda, mas é também manter a história to do MST é uma;
da comunidade viva. São esses aspectos que os do pensamento da
movimentos que a gente citou não têm. Contag é mais pare-
Democracia Viva – O pertencimento cido com a do MST;
a que você se refere se dá por das comunidades in-
outros valores dígenas e quilombo-
que não estão relacionados só las é completamente
à produção. Essa é a contribuição diferente, mas é uma
do movimento quilombola para reforma agrária. O
o debate sobre questão agrária? modelo que está aí
Givânia – Para nós, a terra não só produz não cabe às comuni-
milho, feijão, batata, cenoura, tomate etc. Ela dades quilombolas,
produz sentimento, produz história, produz portanto temos que
cultura, saberes, muita coisa mesmo. São le- ter um modelo de
gítimos todos os movimentos que defendem distribuição de terra
e lutam pelo acesso à terra, mas não é o sufi- para quem quer a
ciente para nós. Se o governo diz: “Aqui está terra para produzir
complicado por causa dos fazendeiros, mas milho, feijão, uma
existe uma área ali que é boa, tem água e vai casa para morar e
dar tudo certo”, não aceitamos. Não vai dar temos que distribuir
certo porque nesse local tem muita coisa a ser terra para aqueles
vivida, é nesse local que queremos produzir. É que estão lá há 300
por isso que até investimos em outras coisas, anos e tiveram suas
porque percebemos que só milho, feijão e to- terras invadidas. No
mate, se existisse água, não segurariam, não nosso caso, foi um
dariam sustentabilidade à comunidade. Este movimento contrá-
para nós tem sido o grande desafio: pautar esse rio: ocuparam as
tema pelo olhar de pertencimento. O aparelho nossas terras. E não
de Estado está pronto para fazer a distribuição fomos só invadidos,
de terra a partir de uma área que será loteada não levaram só as
por famílias. No nosso caso, não só existe um terras, levaram a li-
território comum, mas sim uma individualidade berdade das pessoas,
lá dentro. Não pense que a roça de Maria é a escravizaram as pes-
mesma que a minha, não. Eu tenho a minha soas que lutaram mais de 200 anos por liber-
roça, Maria tem a dela. Mas o nosso território dade, e hoje ainda há restos dessa escravidão.
é maior do que isso. Democracia Viva – Qual a
Democracia Viva – Não seria uma relação da AQCC com a Conaq
questão para debater com outros [Coordenação Nacional de
movimentos, além do governo? Articulação das Comunidades
Givânia – Mas os outros movimentos Negras Rurais Quilombolas]?
pensam de forma diferente. O interessante é e com o movimento negro?
como garantir a união dessas lutas sem perder Givânia – Estamos na Conaq, foi uma das
a identidade: não só eles, que têm uma cons- coisas que ajudamos a articular em 1995. Por

JUN / JUL 2005 19


especial squilombos

sermos secretaria executiva, representamos Givânia – Sim, ainda temos conflitos. O


Pernambuco na Conaq. Com o movimento território já foi reconhecido, foi identificado.
negro, temos algumas articulações também Existe um documento da Fundação Cultu-
por meio da Conaq. Em Pernambuco, o movi- ral Palmares reconhecendo Conceição das
mento negro é menos intenso, dadas algumas Crioulas como território quilombola. O que
dificuldades que enfrentou, está em um proces- falta é o processo de desintrusão, ou seja,
so de reestruturação. Entendemos que temos levantar o que os fazendeiros construíram
uma pauta comum: o combate ao racismo. de bens e indenizá-los para que possam sair
Mas também com olhares diferentes. Nosso do território.
discurso é o combate ao racismo, mas o que é Democracia Viva – Vocês sofrem
combater o racismo para uma pessoa urbana ameaças?
e o que é combater Givânia – Estamos sendo ameaçados
o racismo para nós desde muito tempo. Ameaça de morte é uma
que vivemos na zona coisa já corriqueira. Os conflitos se intensi-
rural? ficaram bastante não só entre as lideranças
Democracia mais velhas, recentemente tiveram investidas
Viva – Como é muito fortes contra a juventude, o que nos
a aproximação deixou bastante preocupados porque os jo-
com o vens têm outro temperamento, isso foi este ano.
movimento Democracia Viva – Há muitas
de mulheres? O lideranças ameaçadas?
fato de estar na Givânia – Que tenham recebido ameaças,
zona rural limita direita ou indiretamente, são cerca de 15
o entrosamento pessoas. A gente tem tentado publicizar isso
com outros ao máximo, mas não existe um esquema de
movimentos? segurança. Eu hoje, por exemplo, tenho limita-
Givânia – L i m i t a ções. Nem sempre posso ir aonde quero; antes,
muito. A distância, eu andava de moto, já não vou mais. Eu ia para
as nossas condi- Conceição em qualquer caminhão de feira,
ções e a nossa es- hoje não posso mais. Na minha cabeça, isso é
trutura se transfor- também uma forma de escravidão, não consigo
mam em algumas lidar muito com isso. Por exemplo, houve uma
dificuldades de festa de conclusão de curso na comunidade, e
participação. Com eu recebi uma recomendação da própria polícia
a Internet, pode- de não ir, porque era uma festa grande no meio
mos acompanhar da rua, não havia controle. Foi muito difícil
o debate um pou- não estar lá naquele momento, é complicado
co melhor. Mesmo explicar. Ao mesmo tempo, há uma sensação
assim, um inter- de “o que eu fiz, por que isso?”.
câmbio freqüente Às vezes me sinto triste, depois me animo
com o movimento porque sei que só está acontecendo tudo
feminista continua isso porque nosso povo despertou, porque
sendo difícil. Em não queremos mais concordar com o que
relação à Articu- foi feito contra nós a vida toda. Se a gente
lação de ONGs de estivesse concordando, estaria tudo bem. Não
Mulheres Negras teria conflito.
Brasileiras, até tivemos uma avanço. Atu- Democracia Viva – Os dados
almente, a Conaq faz parte da Articulação, recentes que o governo federal
mesmo não sendo um movimento só de informou dão conta da existência
mulheres. Isso ocorreu porque, na Articula- de cerca de 2 mil comunidades
ção, não existia a representação da mulher quilombolas. Esse número
negra rural. está perto do real? Como vivem
Democracia Viva – A cidade de essas comunidades?
Salgueiro ainda vive em conflito? Givânia – Na verdade, os dados da Conaq
Não conseguiram ainda a mostram que são cerca de 4 mil comunidades,
regularização da terra, não é? o dobro do que o governo fala. Só no estado

20 Democracia Viva Nº 27
entrevista givânia silva

do Maranhão foram identificadas cerca de 700 dentro da Conaq para fazer valer nosso direito.
comunidades. Há cinco anos, se dizia que havia O município que receber esse recurso vai ter que
quatro comunidades quilombolas em Pernam- aplicar onde realmente deve. Mas tudo isso tem
buco; hoje sabemos que são cerca de 60. muito a ver com a forma como a comunidade
Um problema comum é a questão da terra, a está organizada, com a forma como as forças
questão das políticas públicas, saúde e educação políticas se dão.
se constitui em um elemento. Enquanto nós, de Democracia Viva – Conceição das
Conceição, estamos discutindo de forma ampla Crioulas é a maior comunidade
e profunda a proposta de educação diferenciada quilombola de Pernambuco?
em território, com possibilidade de até o fim Givânia – Sim, temos 3.700 pessoas na
do ano sistematizar isso, existem comunidades comunidade, não é uma comunidade pequena.
que ainda estão brigando para que a escola seja Aqui em Pernambuco e no Brasil, em alguns
feita. São estágios diversos. Estive recentemente campos, nós somos referência. Por exemplo,
no Maranhão e percebo que há muito para ser nessa temática da educação, somos a comuni-
feito. Mesmo em estados com um nível de vida dade quilombola com maior acúmulo. Isso é um
diferenciado, com renda maior, com visibilidade processo que vem se construindo há dez anos. A
maior, como o próprio Rio de Janeiro e São Pau- gente, que vem de uma cultura de base, discute e
lo, a situação das comunidades não é melhor. faz muito. Mas não temos tudo pronto, é preciso
Conceição significa hoje uma das comunidades paciência. É claro que precisamos vencer isso, é
que ousadamente podem ser consideradas bem- um desafio porque muito tem sido feito. Nós
-sucedidas, apesar de tudo isso. acumulamos bastante coisa sobre essa temática,
Democracia Viva – Então o avanço mas não é a realidade geral.
das políticas sociais com relação Democracia Viva – A AQCC está
aos territórios quilombolas está articulada com a Conferência
relacionado com o nível de Nacional sobre Igualdade Racial?
organização política? Givânia – Sim, nós não só ajudamos a co-
Givânia – Tem tudo a ver. Se a comunidade, ordenar o processo da conferência regional, que
localmente, não tiver um debate, os prefeitos aconteceu na nossa cidade. Mas também o que
dizem que elas nem existem, são apenas negros queremos é levar para a conferência estadual a
rurais, elas não se constituem como elementos afirmação de que promoção da igualdade racial
políticos, como segmento, como força, como é, para os quilombolas, antes de qualquer coisa,
grupo étnico. É claro que em algumas administra- o direito à posse da terra, isso é promoção da
ções isso é mais fácil de negociar. Uma situação igualdade racial. Essa questão da posse da terra
assim não acontece com Conceição sem que pelo vai aparecer bastante forte, dada a conjuntura.
menos a gente discuta antes, se não pudermos Também vamos estar numa consulta que aconte-
barrar algo que não queremos, vamos pelo menos cerá em Brasília que vai eleger um percentual de
discutir algumas mudanças. Em outras comuni- delegados para a conferência nacional e devem
dades, não é a mesma coisa porque as pessoas acontecer outros debates por lá.
não estão no mesmo nível de organização. Os Democracia Viva – Você tem
recursos passam pelos municípios e há uma acompanhado o debate sobre cotas
tendência muito grande de invisibilidade dessas nas universidades públicas? Qual é
comunidades por parte das prefeituras. a sua opinião?
Por outro lado, está ocorrendo um movi- Givânia – Tenho acompanhado como parte
mento contrário agora. Algumas prefeituras têm interessada. Aqui, o debate não tem a mesma
procurado comunidades quilombolas porque intensidade que no Sudeste. Por outro lado,
sabem que existe dinheiro no governo federal digo que ainda não estamos discutindo cotas
para investir nessas áreas. Por exemplo, há uma porque o debate é sobre cotas nas universi-
norma no Ministério da Saúde que diz que as dades e ainda estamos brigando para fazer
equipes de saúde da família que atuam em escolas nas comunidades, estamos realmente
comunidades quilombolas têm 40% de incen- em níveis diferenciados. Conceição hoje pode
tivo; então, o médico, a enfermeira e toda a dizer que vai brigar por cotas nas universidades
equipe que estiver lotada em uma comunidade porque já tem alunos para isso. Mas é uma rea-
quilombola vão receber 40% a mais que os lidade apenas de Conceição. No Maranhão, por
profissionais que trabalham em outras áreas. exemplo, as comunidades ainda estão muito
Há uma corrida das prefeituras para garantir mais distantes das cidades e dessa realidade.
esses recursos. Precisamos fazer um debate Pessoalmente, falando como negra, acho

JUN / JUL 2005 21


especial squilombos

que é uma política imediata, não pode se garantida, mas receio que a gente discuta muita
constituir em uma política definitiva, mas neste coisa e não consiga alinhar aquelas discussões
momento é estratégica, temos que apostar. Se com o objetivo do Fórum. Tenho medo de que
o acesso à educação for no ritmo que vai, a isso não aconteça.
gente não consegue chegar. Mas defendo as Democracia Viva – E qual a
cotas como parte de um processo de transição. contribuição do movimento
Melhorar a escola pública é o que nos interessa, quilombola para a construção
porque aí vai sim melhorar a vida dos negros e de um outro mundo possível?
a educação para a população negra. Chegará Givânia – Normalmente, as pessoas nos
um momento em que nós mesmos vamos dizer: procuram e dizem: “Ah, tem comunidade
“Bem, não quero mais cota, não”. Mas isso vai quilombola?”. Primeiro, é um suspense para
levar muitos anos. Como quilombola, posso perguntar se tem, depois também tem uma
dizer que o movimento quilombola ainda não coisa que é interessante, a nossa visão sobre
debateu o suficiente sobre cotas. esse tema. A gente tem contribuído muito
Democracia Viva – Como você avalia para esse debate. Se hoje o governo afirma
o processo Fórum Social Mundial? e várias organizações estão concorrendo para
Givânia – Participamos do Fórum Social trabalhar com os movimentos quilombolas,
Nordestino, em 2004, em Recife, de uma com as comunidades quilombolas, o governo
forma um pouco complicada. A distância pre- principalmente, foi a Conaq que levou para
judicou nossa participação. Para vir à cidade, dentro do governo essa temática. O desenho
precisamos ter R$ 300, é o mínimo para pa- não está bom, a execução, muito pior. Mas seria
gar a passagem, hospedagem. Não tínhamos impossível discutir comunidade quilombola no
dinheiro para ir às reuniões preparatórias, Ministério do Trabalho, no interior de todos os
acompanhamos o processo por e-mail, e isso ministérios, se a gente não tivesse feito uma
termina prejudicando um pouco. Mas pautamos pressão e tivesse ido na construção do GTI.
a nossa temática. Nós nos mobilizamos para Claro que tem a determinação, tem a criação
que outras comunidades também participas- da Seppir [Secretaria Especial de Políticas de
sem, conseguimos ter representações das cinco Promoção da Igualdade Racial], mas a própria
regiões, mas não foi uma presença maciça. criação da secretaria já nasce com o apoio da
Entendemos que nosso fortalecimento depende Conaq. Temos críticas, mas é esse debate que
também da presença em encontros desse tipo. estamos pautando, que temos levado e que
Em relação ao Fórum Social Mundial, só achamos que é uma contribuição importante.
não fui ao da Índia e ao primeiro em Porto Não é a partir de uma pesquisa acadêmica,
Alegre. Lá fizemos várias atividades da Co- de um olhar de alguém que foi lá fazer um
naq, discutimos a questão da regularização relatório, uma visita, é de quem está lá no
fundiária das terras de quilombo em parceria dia-a-dia, vivendo os problemas, tentando
com o Cori, com a Rede Social de Defesa dos encontrar saídas. Inclusive eu acho que, para
Direitos Humanos e o Instituto Pólis. Mas as organizações da sociedade civil, esse é um
também participamos de outras ações, como debate novo, não é algo claro ainda para todo
o Fórum Mundial pela Dignidade Humana. mundo. Acho que a gente tem contribuído
Tive o privilégio de dividir a mesa com uma nesse sentido.
pessoa que tem muito a ver com minha his- Democracia Viva – Como você
tória de formação de igreja: Leonardo Boff. avalia a questão quilombola
Meus olhos brilharam quando lhe disse que, no governo Lula?
mesmo que não soubesse, ele tinha muito a Givânia – Para avaliar o governo Lula é
ver comigo, com a minha formação. Essa foi preciso fazer algumas considerações do que foi
uma indicação da Articulação de ONGs de o governo Fernando Henrique. Passamos oito
Mulheres Negras para participarmos desse fó- anos tentando mostrar que existiam comunida-
rum, e junto com a Articulação coordenamos des quilombolas. No dia 13 de maio de 2002,
uma ação para os parlamentares, foi bacana, com o aval da Fundação Cultural Palmares, o
aconteceu lá na Assembléia Legislativa de Por- governo de FHC vetou, na íntegra, um projeto
to Alegre. Coordenamos uma mesa, lançamos que reconhecia as terras quilombolas. Era um
um material da Articulação. texto muito mal escrito, horroroso, mas era um
Foi uma experiência muito interessante, primeiro passo.
muito importante. Só acho que o Fórum é muito No governo Lula, começamos um novo
grande. Claro que a diversidade tem que ser debate. Começamos a dialogar com o gover-

22 Democracia Viva Nº 27
entrevista givânia silva

no ainda na transição. Tivemos duas reuniões modelo na cabeça das pessoas. Ou se pensa Participaram desta
durante a transição para pautar essa história e uma forma de flexibilizar isso, ou estaremos entrevista: Janaína

fora. Os conceitos deles estão formados, tem Jatobá, coordenadora


disso o que restou foi a criação de um grupo
do Programa de
de trabalho, do qual fizeram parte eu e outras muita coisa para ser quebrada, é uma mudança
Mobilização de Recursos
lideranças no Brasil: o Ivo, do Maranhão; o radical de paradigma. O Estado nunca pensou
da Oxfam-GB; Márcia
Silvano, do Pará; a Gonçalina, do Mato Grosso; nada para nós mesmos. Nós somos excluídos
Laranjeira, coordenadora
o Ronaldo, do Rio; o Oriel, de São Paulo; e o desse Estado que está aí, não há nada, não há de Comunicação do
Potássio, do Rio Grande do Sul. Com esse grupo política nenhuma, não há lei nenhuma, não SOS Corpo; e Rosângela
de trabalho (GT), construímos o Decreto 4.887, há quase indicador nenhum que fale da gente. Bueno, assistente de
que foi sancionado pelo governo no dia 20 de Como poderemos querer estar dentro de um Relações Institucionais
novembro de 2003. negócio em que não existimos? do Ibase
A partir disso é que começou a existir uma O nosso grande
política mais desenhada para a questão dos desafio, não só com
quilombos. O desenho ainda não está bom, o governo Lula, é
mas é alguma coisa, pelo menos temos uma dizer a esse Brasil
política. O que está sendo muito complicado – que ajudamos a
é a implementação desse decreto e das outras fazer – que existi-
ações. Percebo que há muita fragmentação, há mos. Essa é a grande
muito recorte no sentido de fazer coisinhas e comunicação que
não encarar o foco, a garantia da terra. Não temos a fazer. E dizer
temos um saldo muito bom, esperamos que que existe significa
seja esse um dos debates da conferência sobre fazer com que as
igualdade racial. Foram tituladas apenas três ações voltadas para
comunidades no Pará, não foi nenhuma das esses grupos sejam
comunidades que listamos como prioritárias, pauta das decisões
que são as que têm conflitos atuais: no Rio de políticas, e não ações
Janeiro, Marambaia; no Maranhão, Alcântara; fragmentadas.
e no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre,
Morro Alto. Enfim, não temos um saldo tão
bom, esperamos que dê tempo de melhorar
alguns indicadores que, para nós, não são
satisfatórios.
Democracia Viva – Você diz que o
saldo não foi bom, mas seu relato
não mostra uma maior participação?
Givânia – Sem dúvida. Na Conaq, temos
representação em grande parte dos conse-
lhos e espaços políticos. Nossa participação
aumentou e conseguimos gerar uma política.
O que falta é a parte do Estado, é a questão
da operacionalização. Por exemplo, temos re-
presentação no GT de Educação, no Conselho
de Desenvolvimento Sustentável, assento no
GT de Infra-estrutura, no Conselho da Mulher
etc. Houve, sim, um crescimento qualificado
da nossa participação no governo.
Na nossa luta, passamos oito anos expli-
cando o que são as comunidades tradicionais,
e as pessoas não conseguiam compreender.
Agora, estamos há dois anos e meio explican-
do, e outras pessoas também não conseguem
compreender. Estão sempre querendo nos
colocar dentro de um modelo que está na
cabeça deles, na lógica deles. Não conseguem
compreender que as coisas podem acontecer,
mas não por aquela lógica que está pensada
há 500 anos. Essa é uma dificuldade real. É um

JUN / JUL 2005 23


quilo
Iracema Dantas*
reportagem

Crioulas
de
O nome da comunidade é Conceição das Crioulas, mas, diante da força da liderança femi-

nina, a inversão no título desta reportagem faz todo sentido. Distante 500 km de Recife,

Pernambuco, o município de Salgueiro, no Sertão, abriga o maior território quilombola

do estado. São aproximadamente 17 mil hectares, onde vivem 4 mil pessoas em dez

diferentes sítios, com 30 a 50 famílias cada. Sem dados oficiais sobre essa população,

moradores e moradoras da comunidade acreditam que o número de mulheres é maior

que o de homens.

Mas não só a atualidade é marcada pela forte presença feminina. A própria origem

de Conceição das Crioulas está absolutamente ligada a seis mulheres negras que chegaram à

região ainda no fim do século XVIII. Foram elas que, com a venda do algodão, juntaram

dinheiro para comprar a área que hoje é conhecida como Conceição de Crioulas. Na

origem do nome, a participação de Francisco José – um negro que chega a essas terras

trazendo consigo uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Ao oferecê-la às mulheres,

resolvem construir uma capela para a santa. Começa, assim, a história de uma república

24 Democracia Viva Nº 27
ombos
mulheres à
frente do
desenvolvimento
Conceição das Crioulas tem uma forte expres- uma sociedade justa e igualitária, a quebra da
são no movimento quilombola e tem na luta barreira do preconceito e da discriminação racial.
pela terra sua principal atuação. Fundada em Atualmente, além da luta pela terra, a AQCC
julho de 2000, a Associação Quilombola de está voltada para a implantação de um projeto
Conceição das Crioulas (AQCC) – ONG criada político-pedagógico para regiões quilombolas
e dirigida por lideranças da comunidade – tem – realizado em parceira com a Comissão dos
dado visibilidade à empreitada. Encrustada em Professores Indígenas de Xukuru (Copixu), a
uma área de conflitos agrários, Conceição das Prefeitura Municipal de Salgueiro e o Centro
Crioulas é reconhecida como território rema- de Cultura Luiz Freire. Outra iniciativa em curso
nescente de quilombo pela Fundação Cultural é a geração de renda por meio do artesanato
Palmares. Mesmo assim, a região ainda desperta feito com fibra de caroá – uma planta nativa.
a cobiça de fazendeiros que vêem na organiza- A preservação do meio ambiente e o resgate e
ção popular um entrave para seus desmandos. valorização da cultura local também fazem parte
A AQCC conta com os apoios da Universidade da atividade. Uma das maneiras encontradas para
Federal de Pernambuco, por meio do projeto isso é bem inovadora: as principais peças desse
Imaginário Pernambucano, da Oxfam-GB, da artesanato são bonecas que receberam o nome
ActionAid Brasil, do Centro de Cultura Luiz de dez mulheres consideradas “especiais” pela
Freire, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de comunidade. Uma delas é Francisca Ferreira, uma
Salgueiro, do Movimento de Mulheres trabalha- das seis negras que fundaram Conceição das
doras Rurais do Sertão Central e da Prefeitura Crioulas. Em cada embalagem, além do nome
Municipal de Salgueiro. e história da personagem, estão informações
A AQCC tem como objetivos o desen- gerais sobre a comunidade. Outro cuidado é
volvimento da comunidade – levando em conta quanto ao manejo da planta que dá origem
sua realidade e sua história –, a valorização das à fibra, sendo sempre respeitado o tempo da
suas potencialidades, a conscientização do povo colheita.
negro da sua importância para construção de Aparecida Mendes, a Cida, 34 anos, é

JUN / JUL 2005 25


especial squilombos

coordenadora executiva da
AQCC e divide seu tempo
como estudante de Pedagogia,
em Salgueiro. É ela quem en-
fatiza o aspecto de resgate da
cultura quilombola: “Quan­do
Conceição surgiu, o artesanato
veio junto com o plantio de
algodão. As mulheres negras
que aqui chegaram faziam
diferentes tipos de renda. Hoje
fazemos bonecas e outros ob-
jetos com a fibra do caroá e
do catulé e com o barro, mas
não se trata apenas de venda.
Cada uma dessas peças conta
nossa história”. O artesanato
feito a partir do algodão foi
abandonado no fim da década
de 1980, por conta da praga
do bicudo, da popularização
dos fios sintéticos e também
“É meio escondido, como se algo estivesse
da dificuldade em manter as terras para plantios.
errado, mas que resistiu assim como o próprio
“Ficamos à mercê do nada. As pessoas iam em-
povo. Uma contradição nisso tudo é que todo
bora para a cidade grande e quem aqui ficava
mundo se diz católico”. A busca pelo resgate
dependia da aposentadoria dos mais velhos
da cultura africana também está presente por
ou das frentes emergenciais contra a seca”,
meio da educação: “Para nós, educador não é
conta Cida. O grupo de pessoas – cerca de
só quem está na sala de aula com o quadro e
200, na maioria mulheres – envolvido com o
giz. As lideranças contam muito. Hoje a escola
artesanato ainda não pode viver exclusivamente
já está bem voltada para a nossa realidade,
da atividade mas nem pensa em abandoná-la:
mas ainda falta resgatar a nossa origem como
“As pessoas não recebem salário. O pagamento
povo do continente africano. Sonho o dia em
depende da encomenda e das vendas. Mas a
que possa dizer de qual país africano eu sou
atividade tem contribuído muito para manter
descendente”.
nossa identidade, a história da comunidade.
Luiza Maria de Oliveira Silva tem 37
Temos muito orgulho das nossas peças”, explica
anos e representa essa herança. Nascida em
a coordenadora executiva.
um sítio próximo à Conceição, Nívia mudou-se
Apesar da origem católica, Cida não
para a comunidade logo após seu casamento. O
esconde que o sincretismo religioso presente
exercício de benzedeira surgiu da necessidade:
em Conceição das Crioulas também aflorou nos
“Minha filha mais velha vivia doente e eu tinha
últimos tempos: “Na medida em que fomos re-
que ficar na dependência de outras pessoas.
descobrindo, vimos influências que não são da
Então, resolvi aprender e hoje me orgulho de
Igreja. Passamos a observar as influências das
poder ajudar a manter essa tradição”. Outra
religiões de matriz africana. Só não temos isso
atividade desempenhada por essa benzedeira é
aprofundado. É uma pena que a Igreja Católica
o artesanato, cuja renda é gasta integralmente
tenha colocado na cabeça do nosso povo que
para a criação de seus quatro filhos e duas
tudo que vem das religiões africanas é coisa do
filhas. “Quero muito poder ensinar a reza para
demônio”. Um exemplo vem do poder exercido
outra pessoa, mas mulher só pode ensinar para
pela Mãe Magá, também homenageada em
homem. E homem só pode ensinar para mulher.
forma de boneca. Segundo Cida, ela era uma
Quem sabe um dos meus filhos tem o dom?”.
espécie de líder espiritual e conselheira. Além
Sobre a mais forte característica dessa
disso, Mãe Magá era uma experiente parteira
comunidade – a liderança feminina –, a co-
e sempre “sentia” o que ia ou não dar certo.
ordenadora executiva da AQCC explica: “Em
Cida garante que até hoje essas influências es-
Conceição, as mulheres sempre acreditaram
tão presentes com as rezadeiras e mesmo com
primeiro nas possibilidades. É claro que os ho-
alguns rituais de religiões de origem africana:

26 Democracia Viva Nº 27
reportagem Crioulas de Conceição – mulheres à frente do desenvolvimento sustentável

mens também participam das nossas iniciativas as barreiras que temos que enfrentar. Não abro
e projetos, de todas as conquistas, mas são elas mais mão da minha fala”.
se engajam e acreditam primeiro nas mudanças, A AQCC possui seis comissões – Juven-
mesmo quando as coisas são mais difíceis.” De tude e Educação; Comunicação; Saúde; Meio
novo, o artesanato é um exemplo. No início, Ambiente; Patrimônio; e Geração de Renda
apenas as mulheres trabalhavam e iam buscar a – formadas pelas lideranças da comunidade,
matéria-prima nas matas e foram elas também cada qual responsável por levar adiante a dis-
que viram na atividade a possibilidade de gerar cussão e a execução de diferentes iniciativas.
renda de forma mais sistemática. Na hora de Integrante da Comissão de Educação, Márcia
buscar parcerias e divulgar o trabalho, foram as do Nascimento, 31 anos, diretora da Escola José
mulheres que fizeram isso. Mas se inicialmente Néu, de primeira a quarta série, na Vila de Con-
os homens, não participavam hoje fazem parte ceição das Crioulas, explica o papel do grupo:
ativamente do grupo dedicado ao artesanato. “Discutir, a partir da educação que temos, qual
Numa realidade assim, era de se esperar a educação que queremos para a nossa comu-
que a violência contra a mulher não acon- nidade, que tem uma especificidade étnica.
tecesse. Surpreendentemente, acontece. E é Temos discutido um refererencial de educação
discutida de forma corajosa. Em Conceição, para a comunidade tendo como base a história
as mulheres fazem questão de lembrar que e a cultura do nosso povo, nossos valores”. Em
o racismo também é uma forma de violência. todo o território, existem dez escolas públicas,
Cida resume o que sentem sobre o assunto: que ainda seguem o currículo tradicional,
“A diferença é que encaramos esse fato como mas que fazem parte da construção de um
mais um desafio que temos a vencer; é mais projeto político-pedagógico inovador. Há dez
uma barreira que enfrentamos. E não é só a anos, em 1995, quando foi inaugurada a única
violência doméstica. É a violência da discri- escola de quinta a oitava série, os debates sobre
minação racial também. É mais fácil valorizar educação foram iniciados incentivados pela
algo feito por um homem do que por uma então diretora Givânia Silva
mulher. Percebemos claramente que algumas (leia mais na entrevista). O
das barreiras e violências que enfrentamos no projeto Edu­cação e Etnia,
trabalho da AQCC com outras instituições vêm consolidado em 2003, já
do fato de sermos mulheres e negras. A agres- desenvolveu três das etapas
são moral é maior”. Ela própria já passou pela previstas: oficinas de leitura
experiência, quando, no meio de um debate, e escrita, um diagnóstico
um fazendeiro disse: “Você é uma menina que e uma pesquisa sobre as
não sabe o que diz”. Ela lembra que, logo em histórias contadas pelas
seguida, um homem disse a mesma coisa com pessoas mais velhas. A úl-
outras palavras e foi respeitado: “Eu chamo tima etapa, a edição de um
isso de violência; é uma tentativa de fazer calar. livro didático para escolas
Sofremos violência que, infelizmente, não vem quilombolas e não-quilom-
só dos machistas. As mulheres que começam a se bolas, ainda depende de
destacar em reuniões e representações começam financiamento. Nele haverá
a ter problemas. A questão racial às vezes é tão temas como a luta pela
forte que, por isso, defendemos os educadores terra, as festas e tradições,
da comunidade e esperamos que percebam além da própria história de
a importância da valorização da diversidade Conceição das Crioulas.
racial para a auto-estima”. São barreiras que Márcia resume toda essa
acabam transpostas. A fala de Cida não deixa trajetória: “Uma coisa é
dúvida: “Fico lembrando de um tempo em que a gente imaginar o que é
éramos tão isoladas que imaginar dar uma melhor; outra é ouvir o que
entrevista era impossível! Hoje tanto me sinto as pessoas da comunidade
segura a falar da minha história pessoal como pensam. Por isso, em 2004,
da situação da comunidade. Aprendi e ganhei fizemos um mapeamento
muito ao fortalecer o carinho que tenho pela dentro do território qui-
minha comunidade. Teve uma época em que lombola de Conceição das
sonhava em ir para São Paulo. Agora, não me Crioulas”. Foram realizadas
imagino longe daqui. Outro ganho pessoal é entrevistas com lideranças,
o direito de falar, de me colocar, mesmo com pessoas mais velhas e tam-

JUN / JUL 2005 27


especial squilombos

Boneca viva
A idéia de recriar em bonecas algumas das mulheres de Conceição surgiu em 2000, justamente quando

era iniciado o projeto pedagógico. Cida conta que somos fortes”. Ela acredita
a história de Conceição era totalmente oral, sem que as bonecas representam
registros escritos: “Nossa preocupação era que essa também uma forma de com-
riqueza se perdesse nas gerações mais jovens. As bate ao racismo, já que cria
bonecas são uma forma de fortalecer a identidade uma referência positiva para
e homenagear as mulheres que fizeram e que fazem os(as) mais jovens: “As crian-
esta comunidade e que têm se doado com muita ças agora dizem que somos
intensidade”. famosas e se orgulham. Minha
Mas as bonecas são também uma forma de ho- filha fica encantada quando
menagem às atuais lideranças femininas. Lourdinha, dizem que a mãe dela é uma
que também cursa pedagogia, é uma das mulheres boneca. As que estão vivas
transformadas em bonecas. Professora e artesã, foi e as que não estão mais
escolhida por seu trabalho de valorização da beleza aqui são todas símbolos da
e auto-estima da mulher negra. Indicada pelos(as) nossa luta contra qualquer
jovens(as) para virar boneca, Lourdinha considera que discriminação”.
esse é um grande reconhecimento: “Valorizo mesmo
a minha cor e falo para meus alunos que devemos
nos valorizar e nunca aceitar a discriminação. Tenta-
ram nos impedir de ter educação e não conseguiram,

bém com a juventude; além de questões sobre em Conceição, não tinha uma ligação forte
o currículo programático, o perfil de professores com essa história de um povo. Hoje, sei que
e professoras foi altamente discutido. Segundo aprendi mais do que ensinei. Não tinha essa
Márcia, baseado nessa “fala coletiva”, está sendo consciência de ser uma quilombola. Não me
construído um projeto político-pedagógico para considerava uma quilombola.” Dez anos depois
escolas quilombolas. Enquanto todo o processo de chegar à escola mais antiga da Vila, Márcia
não está sistematizado, a AQCC faz questão se sente pertencente a essa comunidade: “Foi
de participar dos mecanismos tradicionais de com a chegada da escola de quinta a oitava
educação: “Nós construímos o atual currículo série, pelas mãos da Givânia, que começamos
com a Secretaria Muncipal de Educação de a buscar essa história que nos era negada. Hoje
Salgueiro, colocamos nossas ações e propostas sei da minha história e da história de resistência
para contemplar a nossa história. O que não de um povo e me identifico com isso. Sou uma
está lá, nós colocamos”, afirma Márcia. No quilombola. Somos ensinados que ser negro é
diagnóstico, a questão do currículo foi ressal- feio, e não queremos ser feios; negamos nossa
tada pela maioria das pessoas ouvidas, sendo identidade. Só quando entendemos nossa his-
apontada a necessidade de que os mais jovens tória, passamos a nos orgulhar da nossa raça.
aprendam seus costumes, seus valores, suas his- É muito importante saber que faço parte de um
tórias e que sejam preparados para a realidade povo que há mais de 500 anos foi massacrado,
local. Segundo Márcia, ao mesmo tempo em assassinado e ainda está aqui resisitindo. Que
que é citada a importância de crianças, rapazes estamos firmes e fortes. Me sinto muito orgu-
e moças aprenderem a trabalhar na roça, por lhosa de pertencer a esse povo“.
exemplo, é bastante enfatizada a necessidade Além da escola de ensino fundamental,
de “ler e escrever bem”. que tem mais de 220 estudantes, a Vila tem a
Nascida a 12 km de Conceição das Escola José Mendes, que vai de quinta a oitava
Crioulas, a própria Márcia tem, na sua história série e também oferece ensino médio a mais
pessoal, a prova de quanto o resgate da identi- de 800 pessoas. Além dos(as) morado­res(as)
dade cultural na educação é capaz de mudar as locais, as unidades atendem estudantes de toda
pessoas. “Vim para Salgueiro para poder estudar; a região. “Mesmo estando dentro de uma área
na época só tínhamos escola até a quarta série. quilombola, valorizamos a diversidade cultural.
Trabalhava em casa de família para poder ter Quilombola e não-quilombolas podem aprender
onde ficar na cidade. Me formei e fiz concurso juntos.”
para o magistério, em 1995. Quando fui lotada Adaumi, de 24 anos, estuda Pedagogia

28 Democracia Viva Nº 27
reportagem Crioulas de Conceição – mulheres à frente do desenvolvimento sustentável

e integra a Comissão de Juventude e Educação. coco do Maranhão e outro sobre um encontro *Iracema Dantas
Um dos projetos implementados por essa co- entre educadores indígenas e quilombolas, que Coordenadora de
missão é o jornal Crioulas. “Fazemos da reunião aconteceu em abril deste ano. “As filmagens com Comunicação do Ibase
de pauta à redação; só a diagramação e a as quebradeiras foram feitas recentemente num
iracema@ibase.br
impressão são feitas fora daqui. Mas nós é que intercâmbio que fizemos com a Associação em
aprovamos o produto final”, explica. São os(as) Áreas de Assentamento do Estado no Maranhão
jovens que se encarregam de fazer as fotos, (Assema). O outro fala do encontro com os indíge-
entrevistas e matérias, escolhendo cada um(a) nas e também sobre o que significa a educação”.
o tema de sua preferência; a produção gráfica Para Adaumi, a liderança feminina de
é assinada pelo projeto Imaginário Pernambu- Conceição das Crioulas, como disse Cida, é
cano, da Universidade Federal de Pernambuco. algo natural: “Somos gratos pelas mulheres
Editado a cada três meses, o jornal Crioulas já não serem acomodadas e nem alienadas.
está na sétima edição e é distribuído para 4 mil Elas sempre procuram formar as pessoas de
pessoas em todo o Brasil. comunidade para o mundo. Elas pensam no
O mais novo empreendimento da Comis- bem de Conceição das Crioulas. Mesmo que os
são é o Crioulas Vídeo – feito em parceria com o homens tenham também papel de liderança, as
Centro de Cultura Luiz Freire, de Recife, e com a mulheres fazem isso de uma maneira mais forte
Universidade de Lisboa. O primeiro vídeo conta e mais voltada para o coletivo”.
a própria história da comunidade e está sendo
exibido em encontros dos quais o grupo participa.
Outros dois já foram filmados e estão em fase
de finalização: um sobre as quebradeiras de

Artesanato e preservação do meio ambiente


Os(as) moradores(as) de Conceição das Crioulas têm grande consciência da importância do manejo

na retirada dos recursos naturais. Prova disso é utilitários do povo de Conceição. Até a década de
que pessoas mais experientes sempre ensinam a 1950, aproximadamente, usavam-se apenas louças de
iniciantes o “tempo certo de colher”. Além de não barro. Muitas dessas peças eram vendidas em feiras
retirarem plantas em fase de crescimento, fazem e lojas de cidades próximas como Cabrobó, Floresta
questão de manter um rodízio nas áreas de e Salgueiro, em povoados e por encomenda. As
extração das diferentes matérias-primas usadas mulheres que trabalham com esse tipo de artesanato
no artesanato local. Outra consciência ecológica são conhecidas como louceiras e pertencem todas a
vem de uma campanha para impedir o banho no mesma família consangüínea.
açude da região. Mesmo diante de um “convite O catulé, uma palmeira silvestre bem comum
ao oásis”, os(as) moradores(as) de Vila da Con- no sertão, fornece uma amêndoa de onde se extrai
ceição, especialmente os(as) mais jovens, fazem óleo. Sua palha é aproveitada no artesanato, sendo
questão de debater freqüentemente a importância transformada em chapéus, cestas, bolsas etc. A palha
de manter a qualidade da água disponível para a de catulé sempre esteve presente na produção de
comunidade. Diante de um quadro como esse, a vassouras e esteiras, sendo considerada uma atividade
inexistência de uma rede de saneamento básico tipicamente das pessoas mais velhas.
é algo a lamentar. Por enquanto, a comunidade Para a coordenadora executiva da AQCC, é im-
conta apenas com energia elétrica. A conquista portante que o artesanato seja visto como algo além
para muitos acabou por inibir as rodas de conver- de geração de renda. “No caso do Caroá, uma planta
sa nas portas das casas, como conta Tia Marina, nativa, por exemplo, a cada extração a força da planta
uma das mais antigas moradoras da Vila: “Agora aumenta. Sabemos que não podemos tirar aleato-
todo mundo tem parabólica e fica vendo novela. riamente.” O artesanato de Conceição das Crioulas
Antes, a gente fica conversando e olhando o céu”. revela uma outra questão: “Precisamos das plantas
Entre os recursos naturais mais utilizados estão nativas para o nosso trabalho. Temos que preservar
o caroá, o barro e o catulé. O caroá é uma bromélia a natureza. O problema é que muitos fazendeiros
que fornece a fibra para a confecção das bonecas. tocam fogo nas plantações só para impedir que a
De caule curto, a planta possui espinhos em sua gente retire a fibra; outros simplesmente arracam as
borda, com folhas que lembram o formato de uma plantas. Alegam que estamos tendo muito dinheiro
rosa. Em meado do século XX, uma fábrica de caroá com isso”.
foi instalada na região, mas foi desativada com a
concorrência do sisal.
O barro está presente até os dias atuais nos

JUN / JUL 2005 29


quilo
AnaCris Bittencourt*
reportagem

No extremo sul do estado de São Paulo, no Vale do Ribeira, no interior do município de

Eldorado, vive uma das mais antigas populações quilombolas do Brasil. A comunidade

de Ivaporunduva é um exemplo de convivência saudável entre os seres humanos e o

meio ambiente. Todos os projetos de desenvolvimento sustentável, que vem imple-

mentando nos últimos cinco anos, levam em conta a preservação e a utilização dos

recursos naturais sem danos à natureza. A defesa dos direitos coletivos, muito bem

sedimentada, tem sido combustível vital para o funcionamento das engrenagens de

uma organização que tem contribuído decisivamente para a garantia de conquistas

como a titulação da terra e servir de exemplo às outras 53 comunidades quilombolas

do Vale. Formada há mais de 300 anos, por um grupo de pessoas que se rebelou contra

a escravidão e cuja resistência garantiu sua liberdade muito antes da abolição da escrava-

tura, hoje a comunidade se depara com novos desafios: garantir o êxito desses projetos

e impedir que seja construída uma barragem no Rio Ribeira do Iguape, uma ameaça às

populações daquela região.

30 Democracia Viva Nº 27
ombos
A Associação Quilombo de Ivaporunduva existe na visita à comunidade: seu poder de lideran-
informalmente desde a década de 1980, mas ça. “Um problema notório nas comunidades
seu estatuto só foi colocado no papel recente- quilombolas é a ausência do serviço público. Se
mente, há 11 anos. Envolve cerca de 300 pes- nossa comunidade está indo bem é porque as
soas de 80 famílias e tem acumulado vitórias: a próprias pessoas de lá correram atrás para suprir
região conta com abastecimento de água e luz suas deficiências. Oxalá todas as comunidades
elétrica, melhorou estradas dentro da área do tivessem informação para isso. A história dos
quilombo e garantiu a permanência de canoei- quilombolas não é fácil de contar. O Vale do
ros para fazer a travessia dos(as) moradores(as) Ribeira tem um movimento consolidado e mi-
no Ribeira; tem desenvolvido projetos de gera- nha comunidade se destaca por concentrarmos
ção de trabalho e renda; reformou a casa onde um maior número de lideranças. Isso tem nos
funciona a escola de primeira a quarta série; favorecido no desenvolvimento de projetos,
construiu uma praça que se tornou ponto de se reflete na busca pela segurança alimentar,
encontro em torno da Igreja de Nossa Senhora pela sustentabilidade”, explica Oriel Rodrigues,
do Rosário dos Homens Pretos – construída 34 anos, advogado, professor de História no
no século XVII e tombada como patrimônio pré-vestibular da comunidade e representante
histórico pelo Conselho de Defesa do Patrimônio das comunidades do estado de São Paulo na
Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Coordenação Nacional de Articulação das Co-
Estado de São Paulo (Condephaat) e também munidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
recententemente restaurada; e construiu uma Se as lideranças mais velhas não ti-
pousada para receber visitantes dispostos(as) veram oportunidade de estudar, foi a parti-
a fazer ecoturismo e conhecer a história local. cipação intensa em movimentos sociais que
Mas a grande mudança está vindo como contribuiu na sua formação, atitude seguida
resultado de três projetos de desenvolvimento pelas pessoas mais jovens. Foi o caso de José
sustentável, implementados a partir de 2001 em Rodrigues da Silva, 43 anos, uma das princi-
parceria com o Instituto de Estudos Sociambien- pais lideranças no quilombo e coordenador da
tais (ISA), sediado na capital paulista. O estrei- associação: “Quando falamos de liderança e
tamento das relações entre a organização e as conhecimento, sempre digo que existem dois
comunidades quilombolas da região começou tipos de faculdade, a formal e a faculdade
em 1996, quando o ISA elaborou o Diagnóstico da vida, do mundo. Esta, onde aprendi, é a
Sociambiental Participativo do Vale do Ribeira. E mais difícil porque temos que aprender tudo
se intensificaram na luta contra as barragens (leia ao mesmo tempo. Muito cedo percebi que,
boxe sobre o assunto). Hoje, os projetos contam se quisesse ajudar a resolver as necessidades
com apoio do PD/A Consolidação, do Ministério do nosso povo, precisava aprender mais em
do Meio Ambiente, da Escola Superior de Agri- menos tempo. Por isso, fui conhecer movi-
cultura Luiz de Queiroz (Esalq) e da Fundação mentos, tentar participar para aprender a nos
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo organizar”, diz ele, que estudou até a sétima
(Fapesp). No início, tiveram também o apoio série do ensino fundamental.
da Fundação Ford. Durante a realização do Para Zé Rodrigues, outro fermento que
diagnóstico, o ISA constatou a existência de 50 faz com que a comunidade se desenvolva é a
comunidades quilombolas, hoje o movimento noção muito forte de coletividade. “Ficamos
já fala em 54. As comunidades têm em média aqui isolados até há algum tempo e nossos
50 famílias, cada uma com seis integrantes. ancestrais sempre valorizaram a idéia do pa-
Boa parte das conquistas de Ivaporundu- rentesco, da amizade, do trabalho conjunto.
va deve-se a um diferencial que salta aos olhos Eles achavam que esse era o melhor caminho

JUN / JUL 2005 31


especial squilombos

para um grupo que já vivia isolado, se não que presta os primeiros-socorros, contamos
nos uníssemos, se ficássemos dispersos, nada com agentes comunitários de saúde toda
daria certo. Essa linhagem continua até hoje, semana, mas ainda é pouco. Gostaríamos de
somos todos parentes, vivemos em família. ter um atendimento específico para o povo
Se alguém tem um problema, todos ajudam. quilombola, um médico que ficasse aqui e
Abrimos mão da ascensão individual em prol da acompanhasse nosso cotidiano. Hoje, quando
ascensão coletiva, preferimos trabalhar e lutar procuramos um hospital fora da comunidade,
juntos para alcançar os mesmos objetivos.” somos respeitados, mas já fomos bastante
Para se ter idéia de até onde vai essa noção de discriminados e sofremos muito com isso,
conjunto, as terras do quilombo não têm divi- eram horas de fila de espera para nada. Ago-
sas, cada pessoa planta onde quer, cria seus ra, somos mais reconhecidos até pela nossa
animais em pasto comunitário, até existem atitude”, afirma.
roças individuais, mas, na hora da colheita, O grupo de artesanato, do qual Maria
todo mundo participa. “Ninguém aqui é rico faz parte, formou-se em 1997, depois de um
nem miserável, temos o suficiente para viver, curso de capacitação oferecido pela Esalq. Da
terra para trabalhar, rio para pescar, temos turma de dez pessoas, a maioria era homem,
muita coisa boa para usar coletivamente”, mas aos poucos as mulheres lideraram o proje-
enfatiza. to. “Como se tratava de um trabalho detalhado
e que precisava ter paciência para fazer e ven-
der, os homens se afastaram e nós tomamos
Elas ganham mais
conta. Nessa época, as mulheres não tinham
A população de Ivaporunduva tem mais uma fonte de renda, sempre trabalhamos na
homens que mulheres (60% contra 40%, roça, só para sobreviver, não havia dinheiro. Por
segundo levantamento realizado em 2001 isso, nos interessamos pelo artesanato”, conta
pelo ISA). Mas também conta com lideranças Araci Atibaia Pedroso, 61 anos, que coordena
femininas. É o caso de Maria da Guia Marinho o grupo.
da Silva, 43 anos, casada com Zé Rodrigues. O aprendizado foi passando de uma
Ela participa do grupo de produção e comer- para outra. Hoje, cerca de 20 mulheres, de 14
cialização do artesanato da palha da bananeira a 70 anos, estão envolvidas na atividade que já
– um dos projetos rende uma média de R$ 300 por família. Depois
de desenvolvimento do primeiro, outros cursos, em parceria com
citados – e também é o ISA, foram organizados, e a quantidade de
membro da Pastoral artesãs aumentou. A matéria-prima é o tronco
da Criança. da bananeira, de onde se tiram filetes, mais
Uma vez por grossos ou mais finos, trançados com a ajuda
mês, realiza visitas de um tear e ornamentados com sementes lo-
mensais de orienta- cais para se transformar em pulseiras, colares,
ção às famílias dessa bolsas, carteiras, tapetes, esteiras, caixinhas e
e de outras comu- cestas. Cada peça tem uma etiqueta, com a his-
nidades, a respeito tória resumida da comunidade. Recentemente,
de saúde, higiene foi construída uma casa para servir de oficina,
e alimentação, cui- armazenamento e venda das peças. Porém,
dados com grávidas por ser um local onde não bate sol e a palha
e crianças, fazendo da banana ser um material sensível à umidade,
ainda a pesagem elas só usam o espaço para venda, fazendo e
de bebês e ensinan- guardando os produtos em casa.
do a multimistura, Esse é um obstáculo a galgar, aprender
complemento vita- a livrar a palha dos fungos, o que as tem im-
mínico de combate pedido de estocar material. “Estamos fazendo
à desnutrição. Para um curso para resolver isso, assim poderemos
Maria, oferecer um aumentar bastante a produção. Temos tido
melhor atendimento bons resultados e o nosso esforço tem sido
de saúde é ainda um recompensado. Muita gente que não conhecia
desafio na região. o quilombo acaba conhecendo nossa história
“Temos em através desse trabalho”, diz Araci.
Eldorado um posto As vendas são feitas na própria sede,

32 Democracia Viva Nº 27
reportagem ivaporunduva, terra de lideranças e conquistas

Arquivo Ibase
Bruno Dias Weiss/ISA

Maria da Guia e o grupo de mulheres do artesanato: o trabalho tem garantido uma renda de R$ 300 mensais às famílias da comunidade de Ivaporunduva.
Recentemente, foi construída uma sede para expor e vender os trabalhos

para visitantes, mas também em exposições, no ISA, Nilto Ignácio Tatto.


feiras e eventos na capital. Para ela, a atividade
transformou a vida das mulheres. “Alguns ho-
Turismo e educação
mens não gostaram quando deixamos o traba-
lho nas roças em troca do artesanato, mas não Buscando um futuro menos acidentado para
dá mesmo para fazer as duas coisas. Depois, a juventude do quilombo, o que não falta é
aos poucos, eles perceberam que passamos a incentivo para estudar, aprender, participar de
ajudar no sustento da família, a melhorar as cursos, seminários e eventos dentro e fora da
condições da casa, comprar material de escola comunidade. Mas sempre com a consciência
para as crianças e, às vezes, até fazer um pas- de que esse aprendizado precisa ser aplicado
seio. O que mudou muito na vida da gente é ali. O curso pré-vestibular comunitário, orga-
que o tempo todo dependíamos dos homens nizado em 2004 com apoio da rede Educafro,
e, a partir do momento em que começamos a levou, no início deste ano, 13 estudantes para
ter renda também, eles nos deram mais valor”, a universidade. “Tentamos mudar a idéia de
enfatiza. que negro não serve para pensar, não serve
Um ponto a destacar é que o traba- para ser intelectual. Das pessoas que entraram
lho artesanal vem dando mais lucros que o na universidade agora, quatro estão fazendo
cultivo da banana orgânica, outro projeto Direito. Aqui no Brasil, Medicina e Direito ainda
de desenvolvimento sustentável, coordenado são cursos para elite, temos que quebrar esses
pelos homens da comunidade. “Esta é uma privilégios. Tenho certeza de que essas pessoas,
atividade em fase de estruturação, mas já tem quando terminarem os estudos, vão trabalhar
significado importante geração de renda para com a nossa comunidade, a simbiose que temos
algumas famílias locais. Os cursos realizados favorece isso”, afirma Oriel.
motivaram o ingresso de outras pessoas na Sua trajétoria é um exemplo da dedicação
atividade, aumentando o número de artesãs e de quem faz parte dessa família. Nascido em Iva-
a quantidade de peças produzidas, assim como porunduva, teve que deixar a comunidade ainda
as possibilidades de comercialização. A criação pequeno para acompanhar seu pai que arru-
da identidade visual, logomarca e de etiquetas mou trabalho na capital. Voltaram quando ele
para identificação foi de fundamental impor- estava com 12 anos. Oriel continou estudando
tância para a maior visibilidade dos produtos e em outro município, Itapeúna, decidido a fazer
para agregar valor às peças. Atualmente, uma um curso técnico de contabilidade. “Nesse
peça do artesanato produzido com a palha, período, já participava como militante da causa
um produto secundário da atividade agrícola, quilombola, fosse contra as barragens ou pelo
chega a ser comercializada por até três ou registro da terra. É difícil conciliar a militância
quatro vezes o preço de uma caixa de bananas com o estudo, queria muito ter o curso superior.
orgânicas”, explica o coordenador dos projetos Cheguei a fazer História, Biologia e Antropo-

JUN / JUL 2005 33


especial squilombos

resolver no futuro.
Arquivo Ibase

“Antes das comunidades quilombolas


terem o direito garantido pela Constituição,
era comum as pessoas saírem daqui por falta
de oportunidades, elas se dirigiam à capital
ou às cidades vizinhas para tentar a sorte.
Depois que tivemos esse direito garantido, a
comunidade se organizou, nos estruturamos
em um sistema coletivo de trabalho. Hoje, é
comum a pessoa sair para fazer um curso,
temos oportunidade de nos preparar pensan-
do em dar esse retorno para a comunidade”,
anima-se Paulo Silvio Pupo, 25 anos, uma
das vozes jovens envolvidas no trabalho de
Lideranças jovens desenvolvem o projeto de parceria com estudantes para preservar a preservar a história da comunidade.
história quilombola. Da esquerda para a direita, Ladio dos Santos, Paulo Pupo e Denildo Ele é um dos três monitores que
acompanham estudantes e professores(as)
de escolas particulares da capital e de outros
municípios em visitas semanais à comuni-
Arquivo Ibase

dade. Trata-se de uma verdadeira aula de


educação ambiental e cidadania. Dentro da
igreja, os grupos assistem a uma palestra
sobre a história do quilombo – dura cerca
de 30 minutos, com ênfase nas lutas que
enfrentaram, na questão do preconceito, o
convívio com a terra, a corrida pelos direitos
e a organização comunitária como chave
dessas conquistas –, conhecem os projetos
que estão sendo desenvolvidos e almoçam
uma comida tipicamente quilombola – como
frango caipira com mandioca, arroz e feijão
mulatinho, verduras e legumes, suco de lima
e doce de banana, tudo cultivado no local,
sem agrotóxicos.
A escola de primeira a quarta série foi recentemente reformada para atender às
“Desenvolvemos com os estudantes
demandas locais uma atividade turística mais voltada para o
étnico e o cultural. São estudantes a partir
da quinta série que querem conhecer como
logia, mas terminei o curso de Direito, no ano vivemos. Mas se torna uma oportunidade de
passado. Isso tudo me serviu de aprendizado, repassar informações sobre a população qui-
porém meu conhecimento maior vem mesmo lombola no Brasil e também mudar uma visão
da militância em movimentos sociais”, conta. distorcida que a maioria tem a nosso respeito.
As representações em instâncias fora Em geral, as escolas passam informações bem
da comunidade, como no Movimento dos equivocadas sobre o assunto, é algo que não
Atingidos por Barragens (MAB), na Pastoral está em livro nenhum, daí ser tão importante
da Criança e na Conaq, são uma mostra essa troca. Com certeza, eles também serão dis-
da força da comunidade de Ivaporunduva. seminadores dessas informações”, afirma Paulo.
As representações também possibilitaram a Críticas como essa culminaram em um
participação nas discussões durante o pro- projeto de construção de uma escola coletiva
cesso constituinte que resultou na inclusão para as comunidades quilombolas do Vale do
do Artigo 68 na Constituição Federal – este Ribeira. A escola, de ensino fundamental e
obriga o Estado a reconhecer, regularizar e médio, está sendo instalada na comunidade
titular os territórios quilombolas de todo o de André Lopes – fundada por famílias que
Brasil. Ivaporunduva está entre as poucas já vieram de Ivaporunduva. A idéia é facilitar a
tituladas, mas essa titulação só alcançou um ida das crianças, já que hoje as comunidades
terço das terras originais, são pendências a só dispõem de escola até a quarta série e, a

34 Democracia Viva Nº 27
reportagem ivaporunduva, terra de lideranças e conquistas

partir daí, elas têm que estudar fora. A intenção em torno de R$ 1,50 a caixa”, defende Nilto.
também é permitir um ensino diferenciado. Outro resultado importante foi a
Quem explica é Maria da Guia: “Essa certificação de 35 produtores pelo Instituto
foi uma reivindicação das comunidades por- Biodinâmico (IBD). A certificação atesta que o
que nossos filhos têm que sair de casa muito produto foi feito dentro de padrões orgânicos
cedo, 3h30, 4h30 da manhã, para estudar em de produção, sem uso de adubos e defensivos
outros municípios. Percebemos que, com essa agrícolas químicos. O padrão de certificação
dificuldade, eles não vão conseguir concluir os orgânica IBD inclui critérios sociais e ambientais,
estudos, queremos que eles estudem em uma tais como não-utilização de trabalho infantil,
escola com horários melhores, que descansem estímulo à preservação e à recuperação de
mais. Queremos também formar as crianças áreas nativas. Trata-se de um selo de qualidade
dentro dos nossos costumes, uma educação vol- e pureza do produto, que acaba se tornando
tada para o trabalho que fazemos para que, no também um cartão de visita no momento da
futuro, eles possam administrar a comunidade”. venda.
O projeto de intercâmbio com as esco- “Antes de conhecer o ISA, já estávamos
las foi discutido por dez anos e colocado em buscando projetos de geração de renda, mas
prática há três. Isso porque abrir a comunidade essa parceria ajudou a fortalecer os projetos,
para o público externo é algo tratado com eles têm um corpo técnico que nos ajuda
particular cuidado. “O estatuto da associação bastante. De seis anos para cá, nossa situa-
reza o que pode o que não pode. Aqui não ção começou a mudar, a idéia é buscar uma
entram drogas, não há problemas de roubo. qualidade de vida cada vez melhor”, diz Zé
Nossos filhos estudam na cidade, mas têm Rodrigues.
essa consciência, não trazem nada disso O próximo desafio é comer­cia­­­lizar a
para cá. Pessoas estranhas quase não entram fruta já ma­dura (climati­za­da), cujo valor chega
aqui, fica mais fácil controlar. Trata-se de um a ser o dobro da fruta verde. “Para isso, já foi
bairro rural de uma cidade no interior e na adquirida uma câmara de clima­ti­z ação. No
nossa cultura não tem essas coisas”, explica momento, estamos trabalhando na capacita-
Zé Rodrigues. ção téc­nica da comunidade”, anima-se Nilto.
Por esse motivo, a pousada, constru- Também es­tá sendo instalada uma unidade
ída em parceria com o governo do estado de processamento de frutas para a produção
ano passado para estimular o ecoturismo na de derivados orgânicos como banana-passa
região, não começou a funcionar. A idéia não e doces.
é abrir o prédio para hospedagem comum,
mas incluir a estadia em um pacote no qual
Da devastação
a história quilombola e a preservação da
à preservação
natureza sejam o prato principal. E como
o projeto ainda não foi acertado, as portas O terceiro proje-
da pousada continuam fechadas ao público. to de desenvol-
vimento é de re-
povoamento do
Banana para dar e vender
palmiteiro juçara.
Um dos projetos que mais têm movimentado A iniciativa, além
a comunidade de Ivaporunduva é o de manejo de resolver um pro-
orgânico da banana. A idéia é aprimorar a blema ambiental
produção e a comercialização e agregar valor grave, já que a es-
à banana produzida, visando independência pécie corria risco
e autonomia da comunidade com relação ao de extinção, vem
mercado. O projeto possibilitou a aquisição solucionando um
de um caminhão, o que tem possibilitado aos aspecto social re-
produtores alcançarem mercados mais vanta- levante – o retorno
josos, sem a interferência de atravessadores de boa parte da
– que ficavam com a maior parte do lucro. força de trabalho
“Os produtores orgânicos têm recebido até R$ masculina para a
5 pela caixa de 20 quilos da fruta verde (não- comunidade. Du-
-climatizada). Se estivessem comercializando rante muitos anos,
com os atravessadores, estariam recebendo era comum a re-

JUN / JUL 2005 35


especial squilombos

tirada clandestina do palmito, entregue por meio ambiente, como acontece hoje. Assim,
qualquer dinheiro a atravessadores. Para fazer muitos partiram para a clandestinidade,
esse trabalho, alguns homens da comunidade cortando palmito para sobreviver”, esclarece
se embrenhavam na mata por semanas, dei- Denildo Rodrigues, 23 anos, irmão de Oriel.
xando abandonadas suas famílias em atividade Segundo informações do ISA, o Vale
perigosa para eles, danosa ao meio ambiente e do Ribeira, onde fica a comunidade de Iva-
praticamente sem retorno financeiro. porunduva, abriga um valioso patrimônio
“Essa devastação acontecia por falta ambiental. São 2,1 milhões de hectares de
de informação da população e também florestas, que representam 21% dos rema-
porque não estávamos preparados para nescentes de mata atlântica do Brasil, 150
receber tanta restrição ambiental. A partir mil hectares de restingas e 17 mil hectares
da década de 80, nossa região passou a de manguezais. Em 1999, a Reserva de Mata
sofrer uma repressão forte por parte dos Atlântica do Sudeste, formada por 17 muni-
órgãos de fiscalização do estado por guardar cípios do Rio Ribeira do Iguape, entrou para
uma porção rara de mata atlântica, não podí- o time das seis áreas brasileiras tombadas
amos desmatar para sobreviver. Por exemplo, como Patrimônio Natural da Humanidade
se vinha o guarda florestal e dizia que não pela Organização das Nações Unidas para a
podíamos fazer roça em determinada área, Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
a população começava a ver aquele guarda O projeto tem possibilitado a reintro-
como inimigo, não tínhamos senso crítico dução da espécie em 200 hectares do terri-
para trabalhar de forma cooperada com o tório quilombola de Ivaporunduva, por meio
da coleta e dispersão das sementes. Até o
momento, a atividade viabilizou a dispersão
de cerca de 3 mil quilos de sementes, cole-
felipe leal/ISA

tadas na própria comunidade. O trabalho


é feito em mutirões, com o envolvimento e
mobilização de grande parte das famílias.
A iniciativa trabalha com a perspec-
tiva de manejo da espécie no futuro, seja o
palmito, a semente ou a polpa. Além de ser
mais uma fonte de renda para a comunida-
de, é importante considerar o seu papel na
manutenção da biodiversidade da região.
“O potencial ecológico da espécie está na
interação com a fauna local, pois funciona
como fonte de alimento de grande parte dos
animais. Isso indica que o palmiteiro é uma
O projeto de replantio do palmiteiro juçara se estende por 200 hectares espécie estratégica para a manutenção da
do território quilombola
dinâmica dos ecos­s iste­m as”, esclarece Nilto.
Felipe leal/ISA

Plantula do palmiteiro juçara: o projeto de repovoamento da espécie envolve


todas as famílias de Ivaporunduva e salvou-a do risco de extinção

36 Democracia Viva Nº 27
reportagem ivaporunduva, terra de lideranças e conquistas

* AnaCris
Interesses empresariais ameaçam o Vale Bittencourt
Há cerca de dez anos, as comunidades quilombolas do Vale Subeditora da revista
Democracia Viva.
Agradeço a colaboração
de Fábio Graf Pedroso,
fotos: arquivo ibase

engenheiro agrônomo,
e Fábio Zanirato,
engenheiro florestal,
pesquisadores do ISA,
que me acompanharam
na visita à Ivaporunduva
e forneceram
informações valiosas
incluídas neste texto

anacris@ibase.br

do Ribeira têm se articulado para tentar impe- “Quando surgiu o boato com relação à
dir a liberação do licenciamento ambiental da construção das barragens, tentamos nos arti-
Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto – prevista para cular com outras comunidades e, aos poucos,
ser construída entre os municípios de Ribeira/ criamos uma consciência crítica com relação
SP e Adrianópolis/PR, no Rio Ribeira do Iguape. às barragens. De acordo com experiências de
Se concretizada, sua instalação está pre- outras comunidades, acontece tudo ao con-
vista para acontecer no alto Vale do Ribeira, trário do que as empresas falam. Diziam que
mas, segundo os estudos já realizados pelo as barragens levariam desenvolvimento para
ISA e publicados na cartilha Tijuco Alto Saiba as regiões atingidas, quando na verdade elas
porque ela não interessa ao Vale do Ribeira, ficaram muito mais pobres. As pessoas que
em 2002, a usina vai prejudicar, direta e indi- antes viviam da terra agora passam fome”, la-
retamente, vários outros municípios situados menta Denildo Rodrigues, liderança jovem em
no médio e baixo Vale. Ivaporunduva, integrante do Movimento de
A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto faz Atingidos por Barragens (MAB), em Brasília, e
parte de uma proposta de construção que do Movimento dos Ameaçados por Barragens
engloba pelo menos mais três usinas a (Moab), que se organizou no Vale do Ribeira.
serem construídas ao longo do rio – é o Denildo se referiu à construção de
que consta no estudo de inventário do Rio barragens para atender aos interesses do
Ribeira de Iguape, aprovado em 1994 pelo empresariado fazendo uma comparação com
Departamento Nacional de Águas e Energia o problema da terra, as barragens seriam lati-
Elétrica (DNAEE) e pela Eletrobrás. Se essas fúndios de água: “Hoje temos uma imensidão
barragens forem construídas, uma área de 11 de água represada, são 2 mil barragens em
mil hectares será inundada para sempre – a todo o Brasil, isso representa o território do
área, equivalente a 11 mil campos de futebol, estado do Tocantins. Em geral, as populações
inclui várias comunidades quilombolas, entre atingidas, que antes moravam às margens dos
elas Ivaporunduva, dois parques estaduais rios, perdem o acesso à água de qualidade e
e áreas urbanas como o centro histórico da passam a ter que disputar uma água barrenta
cidade de Iporanga. com animais, como está acontecendo na Paraí-
O projeto foi planejado pela Companhia ba. É muito doído perceber que hoje o dinheiro
Brasileira de Aluminío (CBA), que pertence está acima dos direitos humanos”, conclui.
ao Grupo Votorantim, com a intenção de Nilto Tatto, do ISA, tem uma visão mais
aumentar a oferta de energia elétrica para otimista: “Acredito que a articulação das
sua indústria de alumínio. Segundo dados comunidades quilombolas com outros setores
do Ibama de 1997, essa energia extra seria da sociedade conseguirá impedir a construção
exclusivamente destinada ao aumento da das barragens. A sociedade civil organizada
produção da empresa. também pode contribuir com essa luta, par-
Nem mesmo no período da construção ticipando do processo de mobilização já em
da barragem – um arco de concreto de 150 curso no Vale e exigindo que sejam realizados
metros de altura, comparável a um prédio de estudos de impacto de toda a bacia antes de
15 andares –, as pessoas das comunidades iniciar qualquer obra”, incentiva.
do Vale do Ribeira seriam beneficiadas, já
que, do conjunto de 1.500 trabalha­do­res(as)
necessários(as) à empreitada, apenas 10% se-
riam da região. Tampouco vai gerar empregos
locais quando estiver funcionando, a previsão
é de ter uma equipe de apenas 123 pessoas.

JUN / JUL 2005 37


quilo
Thais Zimbwe*
reportagem

Resistência
e cultura
em Valença
Preservar a memória é uma das maneiras de construir a história. Com esse objetivo,

a comunidade quilombola São José da Serra realiza todos os anos a Festa de Jongo,

para comemorar o Dia dos Pretos Velhos e a abolição da escravatura. No dia 14 de

maio deste ano, cerca de 600 pessoas puderam conhecer a cultura e as tradições

africanas preservadas numa comunidade quilombola.

O quilombo São José da Serra, localizado na cidade de Valença, no interior

do estado do Rio de Janeiro, existe há cerca de 150 anos e é composto por apro-

ximadamente 200 negros e negras. A comunidade é referência pela preservação

das tradições africanas mantidas por moradores(as) e pela divulgação de seus

patrimônios culturais, tais como a umbanda e o jongo. A comunidade recebeu,

este ano, a medalha estadual de direitos humanos Austregésilo de Athayde, pela

importância do trabalho social e cultural local.

38 Democracia Viva Nº 27
ombos
“Foi muito importante para nós recebermos (tijolo de barro) e cobertas de sapê, o ferro à
essa medalha. Nós aqui da comunidade brasa e o fogão à lenha, que fazem parte do
procuramos manter nossas tradições vivas, cotidiano dos(as) moradores(as) do quilombo
podendo mostrá-las e ensiná-las para quem desde a chegada de seus antepassados, por
vem nos conhecer. Em dias de festa, procu- volta de 1850.
ramos dançar melhor o nosso jongo, cantar Dona Joanna, uma das moradoras mais
melhor as nossas cantigas, para que todas as antigas, nunca saiu da comunidade. “Não pre­
pessoas saiam daqui melhores do que entra- ciso ir até a cidade, tudo que preciso tenho
ram”, comenta Toninho Canecão, presidente aqui e está tudo muito bom. Os jovens que
da Associação de Moradores do Quilombo São sentem vontade de ir lá para fora a todo tem-
José da Serra. po querem aprender outras coisas, estudar e
“Eu vou tocar minha viola, eu sou ne- trabalhar”, diz.
gro cantador. O negro canta, deita e rola lá
na senzala do senhor. Tem que acabar com
Protagonismo juvenil
essa história de negro ser inferior, o negro
é gente como o outro, quer dançar samba e No quilombo São José da Serra, a juventude
ser doutor. O negro mora em palafita, não é tem papel importante, pois é responsável por
culpa dele, não, senhor. A culpa é da Abo- grande parte das tarefas dentro da comunidade.
lição, que veio e não o libertou”, diz a letra Como acontece na liturgia, a maioria dos(as)
da cantiga cantada na missa afro que abriu integrantes é composta de mulheres jovens. Elas
a Festa de Jongo. organizam as celebrações religiosas, regem as
Para festejar o Dia dos Pretos Velhos, missas afros, entre outras atividades.
divindades cultuadas pelas religiões de “Temos que nos preocupar com nosso
matrizes africanas, moradores e morado- futuro, e o futuro da comunidade será definido
ras realizam anualmente a Festa de Jongo, pelo nosso comportamento. Amamos nossa
quando são praticadas diversas manifestações cultura e temos a obrigação de preservá-la
culturais africanas, preservadas no quilombo para que não morra ou seja absorvida pela
desde a época da escravidão. Uma missa afro, modernidade. É complicado para nós, jovens,
na qual se mescla o catolicismo com a um- que temos acesso às informações do mundo
banda, abriu a festa, e todo o público pôde lá fora, não nos influenciarmos pelas outras
participar da celebração. “É muito bonita coisas, mas mesmo assim temos que trabalhar
toda essa festa, nunca pensei que a cultura na cultura, plantar e fazer nosso artesanato,
africana fosse tão forte e bem representada, cantar nossas músicas e tocar o atabaque. Dessa
como estou vendo aqui no quilombo. Sou maneira, a cultura do quilombo não acabará”,
presença garantida ano que vem”, afirma explica Maria de Lourdes, de 24 anos, uma das
Amélia Santtana, que foi para a festa numa integrantes da liturgia do quilombo.
excursão de São Paulo. Uma das manifestações mais caracterís-
A folia de reis, a marujada, o calango, ticas do quilombo São José é o jongo, consi-
a capoeira, o jongo, entre diversas outras derado um dos mais tradicionais do Brasil. Ele
manifestações culturais, puderam ser confe- permanece intacto desde os tempos do Brasil
ridas pelo público nos dois dias de festa no colonial, já teve suas cantigas gravadas em CD e
quilombo. As pessoas que lá compareceram sua história contada em livro. O CD-livro Jongo
conheceram também o trabalho de agricultura do Quilombo São José foi gravado em outubro
de subsistência, a crença religiosa, o artesana- de 2004, registrando a música, a história e a
to tradicional, as casas construídas de adobe cultura do jongo local.

JUN / JUL 2005 39


especial squilombos

* Thais Zimbwe existem 14 comunidades rema-


Formanda de Jornalismo nescentes de quilom­bos, nas quais
pela Centro Universitário vivem cerca de 770 famílias. No
da Cidade, estagiária de caso do quilombo São José da Serra,
Comunicação do Ibase. os(as) ne­gros(as), após a libertação,
Correspondente do permaneceram na fazenda, consti-
Portal Mundo Negro tuindo sua comunidade.
e colunista dos sites
O quilombo de Valença não
Hip Hop BR, Epidemia
tem a característica de um sítio de
Urbana e do Afro
escra­vos(as) fugiti­vos(as). Ele ocupa
Reggae
duas áreas demar­cadas, num total
de 25 hectares. A comunidade foi
reconhecida há seis anos como re-
manescente de quilombo, abrindo
caminho para a titulação de suas
terras. Entretanto, esse processo é
bastante lento e ainda não está con-
cluído, acarretando sérios problemas.
O jongo é uma dança trazida da África
“A demora das autoridades em resolver
pelos escravos e escravas. Também conhe-
a questão sobre a desapropriação das terras que
cido como caxambu, foi uma das poucas
nos pertencem dificulta muito nossa sobrevivên-
possibilidades de diversão e manifes­­­t a­ç ão
cia. As cercas espalhadas ao nosso redor furam as
religiosa dos(as) escravos(as), reunindo
bolas quando jogamos futebol e são um perigo
can­t o e dança em uma grande festividade.
para nossas crianças. Elas impedem o plantio
“Dançar e cantar o jongo é preservar a cul-
dos nossos alimentos, dificultando muito nosso
tura de nossos antepassados, posso tocar
dia-a-dia”, desabafa Toninho.
uma noite inteira, sempre fico muito feliz
Motivados pela forte identidade cultural,
e agradecido de ter herdado essa dança e
a comunidade do quilombo São José da Serra
poder passá-la para meus filhos e todos
consegue se manter como uma das mais belas
os que querem aprender”, expressa Jorge, ao
do país, sendo um relato vivo da história de
lado de seu atabaque, antes de iniciar uma
negros e negras no Brasil.
roda de jongo.
Em todo o estado do Rio de Janeiro,

Pretos velhos
A comemoração em homenagem aos pretos velhos
ocorre no dia 13 de maio, data em que foi assinada
sabedoria de ances-
a Lei Áurea, razão pela qual a umbanda comemora
trais, empregando seus
esse dia. Os pretos velhos são considerados guias
dotes no uso das ervas,
ou protetores somente pelos(as) umbandistas,
plantas, raízes e tudo o
seguidores(as) da umbanda, religião de matriz
mais que estava dispo-
africana cultuada no Brasil. Representam todos os
nível na natureza.
espíritos de humildade, de serenidade e de paciên-
Depois de mor­
cia, que, como escravos, chegaram ao Brasil, para
t o s ( a s ) , passaram a
onde foram trazidos negros e negras de todas as
surgir em lugares ade-
nações africanas, reis, rainhas, príncipes, além de
quados, principalmente
religiosos(as) de várias culturas.
para se manifestarem.
Essas divindades são originárias dos(as)
Esses espíritos se com-
escravos(as) no cativeiro, que eram submetidos(as)
prometiam com a alta
a condições desumanas e implacáveis de trabalho
espiritualidade a ajudar
forçado e a torturas. A vida sofrida nas senzalas,
todas as pessoas necessitadas, independentemente
onde somente mais fortes sobreviviam, reservava-lhes,
de cor ou credo.
entre tantas humilhações, comer os restos de comida
No dia 13 de maio, os(as) adeptos(as) da um­ban­
dos senhores. Esse fator originou a feijoada, um prato
da comem feijoada com as mãos, como uma forma
da culinária bastante apreciado hoje.
de reverenciar os pretos velhos.
Apesar de tudo, esses povos renegados pela
sorte trouxeram em seus espíritos a ciência e a

40 Democracia Viva Nº 27
resistência e cultura em valença

A Festa no Quilombo São José teve a apresentação da Folia de Reis, uma manifestação cultural de origem portuguesa que ainda sobrevive em
cidadezinhas brasileiras

A missa afro do Quilombo São José é liderada pela juventude. A celebração é animada com cantigas ao som de atabaques, violão e cavaquinho

JUN / JUL 2005 41


artigo
Henri Acselrad*

Novas
articulações
em prol
A morte de uma criança, ocorrida em agosto de 2004 em Barra Mansa, no Rio de Janeiro –

quando brincava em um terreno baldio onde produtos químicos entraram em combustão –,

chamou mais uma vez a atenção para o descalabro do lançamento descontrolado de resíduos

industriais perigosos nos espaços públicos, notadamente nos bairros habitados por populações

de baixa renda. Diante de ocorrências trágicas como essa, cabe abrir espaço para a discussão

mais geral sobre a desigualdade social na exposição da população aos riscos ambientais em

nosso país. Esse debate parece estar apenas em seu começo entre as forças empenhadas no

processo de construção democrática. E poderia partir da pergunta: como os movimentos

sociais no Brasil poderiam melhor articular a questão dos riscos ambientais com o debate sobre

as condições de existência da população e com o processo de construção de direitos no país?

Como evidenciar a dimensão ambiental do projeto de construção democrática da sociedade

brasileira? Como fazer entender que os incêndios florestais em Roraima, a seca no Nordeste,

a desigual exposição dos grupos sociais aos riscos da poluição são a expressão do mesmo

processo de produção da desigualdade ambiental que distancia pessoas ricas e pobres, brancas

e negras em nosso país? É da experiência dos próprios movimentos sociais que esperamos

42 Democracia Viva Nº 27
A desigualdade ambiental é uma das expres- do desemprego tende a ser acompanhado de
sões da desigualdade social que marca a histó- uma redução da capacidade de organização e
ria do nosso país. As pessoas pobres estão mais resistência da população trabalhadora, acarre-
expostas aos riscos decorrentes da localização tando, conseqüentemente, uma diminuição
de suas residências, da vulnerabilidade das mo- dos cuidados empresariais com a manuten-
radias a enchentes e desmoronamentos, além ção dos equipamentos, uma intensificação
da ação de esgotos a céu aberto. Há, assim, dos ritmos de trabalho das pessoas que não
forte correlação entre indicadores de pobreza perderam seus empregos, o crescimento dos
e a ocorrência de doenças associadas à poluição acidentes de trabalho e da irresponsabilidade
por ausência de água e esgotamento sanitário ambiental das empresas. A democratização
ou por lançamento de rejeitos sólidos e emis- do controle sobre os riscos é, portanto, muito
sões líquidas e gasosas de origem industrial. mais viável de ser conquistada nos períodos de
Essa desigualdade resulta, em grande parte, menor incidência do desemprego e de maior
da vigência de mecanismos de “privatização de capacidade de mobilização dos atores sociais.
fato” do uso de recursos ambientais. Seu en-
frentamento requer dar visibilidade a processos
Distribuição desigual
pouco visíveis ao senso comum.
Ante os indicadores do que o pensa- As conjunturas históricas podem explicar a
mento dominante considera como principal maior ou menor propensão de os atores sociais
problema ambiental – o desperdício –, em- mobilizarem-se na denúncia da irresponsabili-
presas e governos costumam propugnar ações dade ambiental de mercado. Não há nenhuma
da chamada “modernização ecológica”, desti- lei natural que imponha que as populações
nadas essencialmente a promover ganhos de destituídas coloquem-se automaticamente ao
eficiência e a ativar mercados. Trata-se, nessa lado dos propósitos ambientalmente danosos
perspectiva, de agir exclusivamente dentro de empreendedores pouco responsáveis. Os
da lógica econômica, atribuindo ao mercado movimentos por justiça ambiental vêm, ao
a capacidade institucional de resolver a de- contrário, mostrando como as ligações entre as
gradação ambiental, economizando o meio lutas por justiça social e por proteção ambiental
ambiente e abrindo mercados para novas podem se articular.
tecnologias ditas limpas. Nenhuma referência O movimento de justiça ambiental
é feita, por certo, por esses atores dominantes, constituiu-se inicialmente nos Estados Unidos,
à associação entre degradação ambiental e in- na década de 1980, fruto de uma articulação
justiça social. Por sua vez, os atores sociais que criativa entre lutas de caráter social, territorial,
percebem a importância de tal relação lógica, ambiental e de direitos civis. Já a partir do fim da
ao contrário, não confiam no mercado como década de 1960, redefiniu-se em termos ambien-
instrumento de superação da desigualdade tais um conjunto de embates contra as condições
ambiental e promoção de justiça ambiental. inadequadas de saneamento, de contaminação
Para eles, o enfrentamento da degradação do química de locais de moradia e trabalho, e contra
meio ambiente é o momento da obtenção de a disposição indevida de lixo tóxico e perigoso.
ganhos de democratização, e não apenas de Na década de 1970, sindicatos preocupados
ganhos de eficiência e de mercado, pois há uma com saúde ocupacional, grupos ambientalistas
ligação lógica entre o exercício da democracia e organizações de minorias étnicas articularam-se
e a capacidade de a sociedade se defender da para elaborar em suas pautas o que entendiam
injustiça ambiental. por “questões ambientais urbanas”.
Nas conjunturas recessivas, o crescimento Alguns estudos apontavam já a dis-

JUN / JUL 2005 43


artigo

tribuição espacialmente desigual da poluição uma área”.2 Evidenciou-se, então, que a pro-
segundo a raça das populações a ela mais porção de residentes que pertencem a minorias
expostas, sem, no entanto, que se tenha con- étnicas em comunidades que abrigam depó-
seguido mudar a agenda pública. Em 1976 e sitos de resíduos perigosos é igual ao dobro
1977, diversas negociações foram realizadas, da proporção de minorias nas comunidades
tentando montar coalizões destinadas a incluir desprovidas de tais instalações. O fator raça
na pauta das entidades ambientalistas tradicio- revelou-se mais fortemente cor­relacionado com
nais o combate à localização de lixo tóxico e a distribuição locacional dos rejeitos perigosos
perigoso, predominantemente em áreas de do que o próprio fator baixa renda. Portanto,
concentração residencial de população negra. embora os fatores raça e classe de renda te-
A constituição de um movimento afir- nham se mostrado fortemente interligados, a
mou-se a partir de experiência concreta de luta raça apresentou-se como um indicador mais
inaugurada em Af­ton, no condado de Warren, potente da coincidência entre os locais onde
na Carolina do Norte, em 1982. Ao tomarem as pessoas vivem e onde os resíduos tóxicos
conhecimento da iminente contaminação da são depositados.
rede de abastecimento de água da cidade, caso Foi a partir dessa pesquisa que o re-
fosse nela instalado um depósito de policlorina- verendo Benjamin Chavis cunhou a expressão
to de bifenil, a população do condado organi- “racismo ambiental” para designar “a imposição
zou pro­testos maciços, deitando-se diante dos desproporcional, intencional ou não, de rejeitos
caminhões que para lá traziam a perigosa carga. perigosos às comunidades de cor”.3 Entre os
Com a percepção de que o critério racial estava fatores explicativos de tal fato, alinham-se a
fortemente presente na escolha da localização disponibilidade de terras baratas em comuni-
do depósito daquela carga tóxica, a luta radica­ dades de minorias e suas vizinhanças, a falta
li­zou-se, resultando na prisão de 500 pessoas. de oposição da população local por fraqueza
A população de Afton era composta de 84% organizativa e carência de recursos políticos das
de negros e negras; o condado de Warren, de comunidades de minorias, a falta de mobilidade
64%; e o estado da Carolina do Norte, de 24%.1 espacial das “mino­rias” em razão de discrimina-
Diante de tais evidências, estreitaram-se as ção residencial e, por fim, a sub-representação
convergências entre o movimento dos direitos das “minorias” nas agências governamentais
civis e dos direitos ambientais. responsáveis por decisões de localização dos
Nascido de lutas de base contra iniqüi- rejeitos. Ou seja, tornou-se evidente que for-
dades ambientais locais, o movimento culminou ças de mercado e práticas discriminatórias das
elevando a “justiça ambiental” à condição de agências governamentais concorrem, de forma
questão central na luta pelos direitos civis. Ao articulada, para a produção das desigualdades
mesmo tempo, induziu a incorporação da desi- ambientais.
gualdade ambiental na agenda do movimento A partir de 1987, as organizações de
ambientalista tradicional. Como o conhecimento base começaram a discutir mais intensamente
científico é correntemente evocado em estratégias as ligações entre raça, pobreza e poluição, e
de redução das políticas ambientais em meras so- grupos de pesquisa iniciaram estudos sobre
luções técnicas, o movimento de justiça ambiental as ligações entre problemas ambientais e
estruturou suas estratégias de resistência recor- injustiça social, procurando elaborar os ins-
rendo, de forma inovadora, à própria produção trumentos de uma “avaliação de equidade
de conhecimento. ambiental” que procurava introduzir variáveis
sociais nos tradicionais estudos de avaliação
de impacto. Nesse novo tipo de avaliação, a
1 HARTLEY, Troy W. Environmen- Racismo ambiental
tal justice: an environmental pesquisa participativa envolveria como co-pro-
civil rights value acceptable to Notadamente, o movimento recorreu aos resul- dutores do conhecimento os próprios grupos
all world vies. Environmental
Ethics, vol. 17, p. 278, outo- tados da pesquisa multidisciplinar que promoveu sociais ambientalmente desvantajados, viabi-
no, 1995.
sobre as condições da desigualdade ambiental lizando uma apropriada integração analítica
2 LAITURI, Melinda; KIRBY,
Andrew. Finding fairness in no país. Momento crucial dessa experiência entre processos biofísicos e processos sociais.
America’s cities? The Search for foi a pesquisa realizada em 1987, a pedido da Procurava-se postular, assim, que aquilo que
environmental equity in everyday
life. Journal of Social Issues, vol. Comissão de Justiça Racial da United Church of trabalhadores e trabalhadoras, grupos étni-
50, n. 3, p. 125, 1994.
Christ, que mostrou que “a composição racial cos e comunidades residenciais sabem sobre
3 PINDERHUGHES, Rachel. The
impact of race on environmental
de uma comunidade é a variável mais apta a seus ambientes deve ser visto como parte do
quality: an empirical and theo­ explicar a existência ou inexistência de depósitos conhecimento relevante para a elaboração
re­tical discussion. Sociological
Perspectives, vol. 39, n. 2, p. de rejeitos perigosos de origem comercial em não-discriminatória das políticas ambientais.

44 Democracia Viva Nº 27
Novas articulações em prol da justiça ambiental

Mudanças ocorreram, então, no próprio “fábricas sujas”.


Estado. Pressionado pelo Congressional Black O movimento de justiça ambiental vem
Caucus, em 1990, a Envi­ronmental Pro­tection procurando se internacionalizar para construir
Agency do governo dos Estados Unidos criou uma resistência global às dimensões globais da
um grupo de trabalho para estudar o risco am- reestruturação espacial da poluição, ou seja,
biental em comunidades de baixa renda. Dois para barrar a lógica perversa do conhecido
anos mais tarde, esse grupo concluiria que havia Memorando Summers, 6 no qual, em 1991,
falta de dados para uma discussão da relação o então economista-chefe do Banco Mundial,
entre equidade e meio ambiente e reconheceria Law­rence Summers, justificava a transferência
que os dados disponíveis apontavam tendências de riscos técnicos e industriais para os países
perturbadoras, sugerindo, por essa razão, maior menos desenvolvidos. Tal mecanismo, dizia ele,
participação das comunidades de baixa renda e seria perfeitamen-
minorias no processo decisório relativo às polí- te lógico do ponto
ticas ambientais. de vista econômico,
Em 1991, 600 delegados e delegadas pois os baixos salá-
presentes à 1ª Cúpula Nacional de Lideranças rios da periferia tor-
Ambientalistas de Povos de Cor aprovaram os nam o custo da vida
“17 Princípios da Justiça Ambiental”, estabe- humano mais baixo.
lecendo uma agenda nacional para redesenhar A subpoluição dos
a política ambiental dos Estados Unidos de países pobres é, por
modo a incorporar a pauta das “minorias”, essa lógica, a expres-
comunidades ameríndias, latinas, afro-ame- são de uma inefici-
ricanas e ásio-americanas, tentando mudar o ência a ser corrigida.
eixo de gravidade da atividade ambientalista Embora Summers
naquele país. 4 O movimento de justiça am- tenha, em seguida,
biental consolidou-se, assim como uma rede desmentido a se-
multicultural e multirracial nacional – e, mais riedade de sua as­
recentemente, internacional 5 –, articulando serção, sabemos que
entidades de direitos civis, grupos comunitários, tal processo já exis-
organizações de trabalhadores e trabalhado- tia e veio ganhando
ras, igrejas e intelectuais no enfrentamento mais realidade desde
do “racismo ambiental” como uma forma de o apro­f undamento
racismo institucional, buscando fundir direitos do processo de libe­
civis e preocupações ambientais em uma mesma rali­z ação das eco-
agenda e avançando na superação de 20 anos nomias periféricas.
de dis­sociação e suspeita entre am­bientalistas A d e s l o­c a­l i z a ç ã o
e o movimento negro. industrial tem se
mostrado meio es-
tratégico pelo qual
Tempo de denúncia
as grandes corpo-
A luta pelo reconhecimento da desigualdade rações impõem a
ambiental nos Estados Unidos tem constituí- regressão dos dire-
do um passo importante para a contestação tos sociais e a des-
do modelo de desenvolvimento. O lema do regulação das nor-
movimento tem sido “poluição tóxica para mas ambientais.
ninguém”, e não simplesmente o de deslocar Resistir à chanta-
a poluição de lugar ou “exportar a injusti- gem da deslocali-
ça ambiental” para países onde as classes zação é uma das motivações centrais dos
241, 1996.
trabalhadoras estejam menos organizadas. movimentos por justiça ambiental.
4 BRADEN, Anne. Justice envi-
Trata-se de discutir a pauta da chamada Se, por um lado, sabemos que os me- ronnementale et justice sociale
“tran­sição justa”, de modo que a luta contra canismos de mercado trabalham no sentido aux États Unis. Ecologie Politi-
que, n. 10, p. 10, 1994.
a poluição desigual não destrua simplesmente da produção da desigualdade ambiental – os
5 Seis representantes do mo-
os empregos das pessoas que trabalham nas mais baixos custos de localização de insta- vimento dos Estados Unidos e
das Filipinas estiveram no Rio de
indústrias poluentes ou penalize as populações lações com resíduos tóxicos apontam para Janeiro em 1998, desenvolven-
dos países menos industrializados para onde as áreas onde pessoas pobres moram –, não do contatos com ONGs (como
o Ibase) e grupos acadêmicos
as transnacionais tenderiam a transferir suas podemos desconsiderar, por outro lado, que (como o Ippur/UFRJ).

JUN / JUL 2005 45


artigo

é a omissão das políticas públicas que permite conta também com a formação de um circui-
a ação perversa do mercado. A experiência do to de autoconsumo e um “submer­ca­do” de
movimento de justiça ambiental mostra como sucata, materiais e utensílios contaminados
é possível organizar as populações para exigir para uso doméstico e construtivo: uso de to-
políticas públicas capazes de impedir que tam- néis com traços tóxicos para armazenar água
bém no meio ambiente vigore a desigualdade (dada a falta de abastecimento de água),
social e racial. uso de areia e materiais contaminados para
Constituída em setembro de 2001, aplainar terrenos e construir moradias (dada a
a Rede Brasileira de Justiça Ambiental tem falta de infra-estrutura urbana e habitacional)
denunciado a segregação socioespacial e uso de produtos tóxicos como brinquedo
como o mecanismo pelo qual se faz coincidir (falta de escolas e áreas de lazer). Ou seja, à
a divisão social da sobreposição de benefícios para as empresas,
degradação am- soma-se uma sobreposição de condições de
biental (os riscos destituição para as populações que residem
ambientais sendo em áreas periféricas: insuficiência de renda,
destinados às pes- insuficiente acesso a serviços públicos, a infra-
soas mais pobres) -estrutura e a capacidade de influência sobre
com a divisão espa- o poder regulatório/fiscalizatório. Assim, a
cial da degradação eficiência alocativa empresarial é construída
ambiental (o local pela mediação de processos sociopolíticos
de implantação das espaciais concretos.
atividades perigo- Tais processos são também dotados de
sas e contaminantes uma temporalidade específica, privilegiados
coincidindo com os que são os períodos noturnos para o lança-
locais de moradia mento clandestino de material tóxico. No livro
de população de A noite dos proletários, sobre os primórdios da
baixa renda). condição operária, Jacques Rancière assinala
De um lado, como, à noite, em seu tempo de não-trabalho,
as empresas evitam os proletários procuravam experimentar uma
investir em trata- reversão do mundo, buscando o contrário do
mento e incineração trabalho “onde a vida se perde” e tentando
de resíduos, dadas retardar o sono reparador das forças requeridas
as possibilidades de pela máquina fabril. Buscavam interromper
lançá-los em áre- a hierarquia que subordina trabalhadores e
as desvalorizadas, trabalhadoras manuais àquelas pessoas que
abandonadas pe- receberam o privilégio do trabalho intelectual:
los investimentos investiam, então, em noites de estudo, em-
públicos em infra- briaguez, aprendizado, sonho, discussão ou
-estrutura urbana escrita. Pretendiam mostrar que eram outras
e habitadas por pessoas, indicando a quem tinha o poder que
populações pobres almejavam ser tratados como alguém a quem
e menos organi- várias vidas são devidas, fazendo-se reconhe-
zadas. Elas usu- cer, em que pese o discurso sobre identidade
fruem, assim, de operária, uma dignidade diferente daquela do
uma sobreposição simples pertencimento à categoria salarial.7
de benefícios que Ao contrário, com sua atividade noturna, as
lhes permite maxi- empresas aqui referidas não buscam mostrar-se
mizar sua liberdade de escolha locacional: outras, mas, ao contrário, iguais a si mesmas,
economias técnicas (eliminação de etapas otimizando as condições espaciais e temporais
dos processos físico-químicos), economias da acumulação, dada a inativação noturna das
regulatórias (desconsideração de normas determinações jurídicas.
técnicas, urbanísticas e ambientais) e econo- Assim como a literatura econômica fala
mias transferenciais (transferência de custos de “sistemas produtivos locais” designando
de tratamento e controle ambiental para o “arranjos produtivos cuja interdependência,
6 The Economist, 8 fev. 1991. Estado e população). articulação e vínculos consistentes resultam
7 RANCIÈRE, J. La nuit des Mas a realização dessas “economias” em interação, cooperação e aprendizagem,

46 Democracia Viva Nº 27
Novas articulações em prol da justiça ambiental

possibilitando inovações de produtos, proces- à expansão da grande empresa e do * Henri Acselrad


sos e formatos organizacionais, gerando maior capital financeiro internacionalizado, Professor do Instituto
competitividade empresarial e capacitação apoiados na força militar e política do de Pesquisa e
social”,8 poderíamos sugerir aqui a vigência Estado Imperial. Trata-se da emergência Planejamento Urbano e
de espécies de “sistemas locais de poluição” – na esfera jurídico-política, da exceção Regional da UFRJ (Ippur/

arranjos produtivos cuja interdependência e vín- permanente, na consolidação da lei do UFRJ), pesquisador do
CNPq e organizador
culos resultam em uma articulação espacial dos mais forte, para desgosto dos que se ima-
do livro Conflitos
impactos negativos da produção, otimizando ginam descendentes do Iluminismo e de
ambientais no Brasil
os investimentos pela distribuição dos riscos seu programa de garantias da liberdade
(Relume-Dumará, 2004).
ambientais para os agentes menos dotados de e da igualdade.13
recursos econômicos e políticos.
A ciência política já definia o soberano
O lixo tóxico – é o que denunciam os
como “aquele que decide sobre o estado de
movimentos sociais – costuma não ser visto exceção”. A soberania sobre o ambiente des-
como uma ameaça a cidades comprometidas regulado aqui em pauta é aquela exercida por
por sua própria poluição, desde que estejam forças que condenam moradores e moradoras
azeitados os mecanismos que destinam os de áreas pobres ao estado permanente de
danos às pessoas mais pobres. 9 Colocadas exceção. Grande parte das denúncias sobre os
à parte do mercado, mesmo que dispostas depósitos de lixo tóxico visa à normalização do
a integrar o fluxo de riqueza pela oferta de ambiente, à aplicação das normas ambientais
suas competências, essas pessoas “excluídas” onde elas não vigoram. Mas parte desses
descobrem-se parte integral do circuito de conflitos – sejam aqueles que são politizados,
troca,10 como objeto da imposição do consumo sejam aqueles em que se recorre à violência –
forçado dos produtos invendáveis da atividade põe em pauta o caráter discriminatório desse
capitalista. Mas, para que tal descoberta se dê, estado de exceção localizado.
elas precisam desconstruir todo o arcabouço Para essas vítimas de um estado de proletaires. Paris: Fayard, 1981,
discursivo que “finge emancipação, simula exceção que é regra, segundo Agamben, “a p.7-10.
abundância num cerimonial que não visa so- vida nua atinge sua indeterminação mais ex- 8 CNPq/FINEP/SEBRAE. Interagir
mente ‘distrair’ o trabalhador, mas dar-lhe o trema”. 14 Pela alocação preferencial dos riscos
para competir – promoção de
arranjos produtivos e inovativos no
sentimento de que ele participa de um mesmo tóxicos industriais sobre as classes mais destitu- Brasil. Brasília: Sebrae, 2002, p.13.
ideal, que ele pertence a um gênero humano ídas, o capital instaura uma ordem ambiental, 9 “À medida em que a preo-
cupação pública com os danos
único, quan­do se encon­tra mais isolado que ainda que não se trate de uma ordem jurídica infligidos pelas emissões radio-
nunca, deportado para longe de qualquer formal. Nela, define-se um regime da lei no
ativas, por resíduos tóxicos e
envenenamento por pesticidas
verdadeiro mundo comum”.11 qual a norma jurídica formal vale (ambiental, cresce, o capital encontra sua
liberdade ‘exter­nalizando’ seus
Expondo a sobreposição de desiguais no caso), mas não se aplica (porque não tem custos, impondo os venenos
benefícios e destituições, certos agentes da força), e atos que não possuem o valor de lei
para as comunidades periféricas,
desafiado que é por formas não
denúncia evidenciarão esse “lado noturno do (a penalização ambiental das pessoas pobres) familiares de resistência” (DYER-
-WITHERFORD, N. Cyber-Marx:
capital”, no qual vigoram a desinformação adquirem força impositiva.15 Cria-se, assim, um cycles and circuits of struggle
sistêmica, a irresponsabilização organizada e a espaço vazio de direitos, uma zona de anomia
in High Technology Capitalism.
Chicago: Illinois Press,1999,
política de subestimação sistemática dos riscos na qual todas as determinações jurídicas são p. 233).

(a política chamada por Beck de “destoxificação desativadas, confirmando a oitava tese sobre a 10 CÉLIS, R. De la Ville Mar-
chande à l´Espace-temps.
simbólica”12). Por meio desses expedientes, a filosofia da história, de Walter Benjamin,16 para ALEXANDER, R. et alii. Le temps
penalização das pessoas mais desprotegidas quem a tradição das pessoas oprimidas ensina
et l´espace. Bruxelas: Ousia,
1992, p. 97 e 103.
torna-se regra, e o controle democrático dos que devemos ter sempre em mente concepções 11 Idem, ibidem, p. 102.
riscos, a exceção. da história em que o estado de exceção é a 12 BECK, U. From Industrial
“No capitalismo <convencional>”, regra, ainda que, como vimos aqui, se tratem to Risk Society: questions
of survival, social structure
lembra-nos Luiz Gonzaga Belluzzo, de estados de exceção socioespacialmente and ecological enlightenment.
Theory, Culture & Society, 9:97-
as regras do jogo são as da acumulação circunscritos. 123, 1992.
de riqueza monetária obtida no merca- 13 BELLUZZO, L. G. Democracia
do, isto é, mediante a competição feroz e capitalismo. Folha de S.Paulo,
São Paulo, p. B2, 4 ago. 2002.
entre empresas, Estados e indivíduos.
14 AGAMBEN, G. A zona morta
Em sua roupagem neoliberal, esse da lei. Folha de S.Paulo, São
Paulo, 16 mar. 2003. Caderno
jogo pressupõe a violação sistemática Mais!, p. 5.
das regras. As relações entre o político 15 Idem, ibidem, p. 6.
e o econômico estão configuradas de
16 BENJAMIN, W. Thèses sur
modo a remover quaisquer obstáculos la philosophie de l´histoire. In:

JUN / JUL 2005 47


nacio
nacional
Paulo Moutinho*

Amazônia
eo
desafio do
A Amazônia abriga a última grande floresta tropical contínua do mundo. Berço de um

quarto da biodiversidade do planeta, a região ainda exerce um papel importante na

manutenção do clima regional e global e, apesar do desmatamento alarmante (aproxi-

madamente 2,4 milhões de hectares por ano), 85% de suas florestas ainda estão em pé.

É uma condição ímpar e desafiadora. Se considerarmos o destino dado a outras flores-

tas no mundo ou mesmo no Brasil, como a floresta atlântica, a Amazônia representa a

última chance de se pôr em prática um desenvolvimento capaz de conciliar crescimento

socioeconômico com a conservação dos recursos naturais. Está, portanto, nas mãos do

povo da região e do governo uma oportunidade única (e última) de se promover o tão

sonhado (e falado) desenvolvimento sustentável.

48 Democracia Viva Nº 27
onal
Para que esse desenvolvimento seja alcançado, povo brasileiro é, portanto, o de reorientar essa
são necessárias, contudo, mudanças drásticas trajetória de desenvolvimento predatório para
de rumo. Nas últimas três décadas, a ocupação um de bases mais sustentáveis.
da Amazônia brasileira tem sido caracterizada Para que o desenvolvimento sustentável
pela exploração intensa e desordenada do ca- na Amazônia ocorra não será necessário abrir
pital natural da região – florestas, rios, solos, mão do desejo de crescimento econômico,
fauna e flora. Assumiu-se um modelo baseado como é alardeado, mas sim que se alterem os
na implementação de grandes projetos de colo- princípios vigentes de ocupação dos espaços.
nização (como o Pólo Noroeste em Rondônia), Essa alteração passa pela adoção de um novo
em investimentos na mineração (como Carajás) modelo sustentável de desenvolvimento que
e na construção de longas estradas (como a esteja centrado em uma perspectiva de go-
Transamazônica) e grandes usinas hidrelétricas vernança da fronteira. Para que isso ocorra,
(como Tucuruí). Até agora, 60 milhões de hec- é preciso que os governos federal e estaduais
tares de floresta (uma área equivalente a duas e a sociedade local revejam seus programas
vezes a área do estado de São Paulo) foram e anseios de desenvolvimento. A chave para
derrubados para a implementação de pastagens um desenvolvimento mais sustentável está na
extensivas de baixa produtividade e geradoras adoção de novos padrões de ordenamento da
de poucos empregos. Atualmente, um terço da ocupação do espaço com base em critérios
área coberta por essas pastagens encontra-se fortes de sustentabilidade, e não apenas por
abandonado (cerca de 20 milhões de hectares) estabelecimento de planos de zoneamentos
e, ainda hoje, a maior parte do desmatamento ecológicos, que, muitas vezes, são de aplicação
(de 60% a 70%) resulta da conversão de flores- complicada. Para isso, é preciso que se dê ga-
tas em pastos de uso extensivo (Inpe, 2003). rantia de participação ativa da sociedade civil na
Apesar de todos os investimentos his- discussão de políticas para a região. Ainda, será
tóricos (equivocados ou não) para a ocupação fundamental que políticas ambientais eficientes
da região, pouco resultou em melhoria efetiva sejam implementadas e que o fortalecimento
na qualidade de vida e na distribuição de renda das instituições locais seja garantido.
para a população. Atualmente, cerca de 43%
da população da Amazônia possui renda per
Riscos ambientais
capita abaixo da linha de pobreza (Pnud, 1996;
IBGE, 2000) e 10% da riqueza regional está Num cenário de Amazônia desmatada, por
concentrada em 1% da população (50% das exemplo, qualquer vantagem social ou eco-
pessoas mais pobres ficam com apenas 15% nômica vislumbrada hoje pode se transformar
dessa riqueza) (IBGE, 2000). A atual ocupação em uma grande ilusão no futuro. O custo
da região está, assim, pautada pela exploração, do desmatamento ilegal e descontrolado na
a todo custo – e no menor espaço de tempo região vai além da perda da biodiversidade.
possível –, dos recursos naturais (pouco valori- Inclui a mudança do clima regional. Reduzir a
zados), pelos investimentos em grandes obras, cobertura florestal implica reduzir os índices
especialmente o asfaltamento de rodovias, e pluviométricos na região. Quase a metade da
pela ausência do Estado. O resultado tem sido chuva que cai na Amazônia é produzida pela
a abertura de novas fronteiras preenchidas floresta (Nobre et al., 1991). Ao transpirar, a
por sistemas extensivos de produção de alto vegetação lança milhões de toneladas de vapor
impacto ambiental e baixa rentabilidade e de água que formarão as nuvens. Cientistas
recheadas de conflitos agrários. O desafio do já chamam a Amazônia de “oceano verde”,

JUN / JUL 2005 49


nacional

pois o processo de formação de nuvens é urbanos, como é o caso da BR-163 que liga
similar àquele que ocorre sobre os oceanos. a cidade de Santarém, no Pará, a Cuiabá, no
Sem a floresta, ou mesmo sem parte dela, a Mato Grosso – pode resultar em elevados custos
precipitação poderia sofrer reduções signi- ambientais (desmatamento) e, de quebra, não
ficativas impondo à região períodos de seca trazer benefício algum para uma parcela con-
mais prolongados e intensos (Nobre et al., siderável da população local que vive ao longo
1991; Nepstad et al., 2004, 1999). desses eixos de transporte. Isso ocorre porque
Além dos prejuízos ambientais (perda estradas abrem acesso a áreas remotas e ainda
de biodiversidade, incêndios florestais, emis- sob conservação passiva. Para se ter uma idéia,
são de gases de efeito estufa, de­gradação 70% da degradação ambiental na Amazônia
do solo etc.), vários pre­juízos econômicos gerada pelo desmatamento está concentrada ao
resultariam de tal longo das rodovias pavimentadas (Alves, 1999).
mudança climática Se todas as rodovias que estão sendo plane-
regional. Os incên- jadas para a região fossem implementadas
dios compromete- seguindo os moldes atuais, isto é, o asfalto
riam os estoques de vindo antes da governança, a área desmatada
madeira, e, ironica- pularia dos atuais 15% para 30% ao fim de
mente, as principais 35 anos (Nepstad et al., 2000, 2001). Ocupar
e atuais atividades a Amazônia, portanto, tem custos ambientais
econômicas de ter- de diversas ordens. Ignorá-los poderá gerar um
ra firme (pecuária “progresso” aparente ou imediato, como até
e agroindústria) agora, mas não sustentável.
estariam compro-
metidas (Men­donça
Amazônia sustentável
et al., 2004). Isso
sem falar na falta de A sustentabilidade do desenvolvimento amazô-
reposição da água nico só será garantida se, de uma vez por todas,
dos reservatórios for reconhecido que a Amazônia, com suas
das hidrelétricas a florestas e rios, representa uma oportunidade
um nível satisfatório. para uma nova economia, em que a preserva-
Ressuscitaríamos, as- ção e o uso racional de seus recursos naturais
sim, os “apagões”, conferem uma vantagem futura (e sustentável)
mesmo com inves- diferenciada (Santilli et al., no prelo). Para tanto,
timentos em novas é necessário que os investimentos na região
hidrelétricas. A falta avaliem os seus custos socioambientais. Assim,
de chuvas atingiria o estabelecimento de uma governança local
não somente a Ama- ou regional é fundamental e deve anteceder
zônia, mas também os grandes investimentos em infra-estrutura,
as regiões Sul e Su- especialmente o asfaltamento de rodovias. Por
deste, já que parte governança, poderíamos entender o aumento
do vapor gerado pela da capacidade combinada do Estado, da inicia-
floresta é carregada tiva privada e da sociedade civil na articulação
pelas correntes de ar de seus interesses, no exercício de seus direitos
que se movem para legais e no cumprimento de suas obrigações,
essas regiões. O pla- como forma de solucionar possíveis diferenças
nejamento correto (Bandeira, 1999). Tudo isso sob uma presença
dos investimentos forte do Estado e suas instituições fundamentais
na região é, portanto, fundamental para a como garantia do cumprimento da lei e amparo
sustentabilidade da região. a cidadãos e cidadãs. Não se trata, assim, de
Um dos exemplos mais críticos do efei- estagnar a abertura de novas estradas, mas sim
to negativo de investimentos mal planejados de ordenar o processo de sua implementação.
sobre a região amazônica é o asfaltamento de Sobre um desenvolvimento que prima
estradas. A simples construção e pavimentação pela sustentabilidade e pelo estabelecimento
de rodovias visando apenas a um propósito – de governança local antes dos investimentos
como a criação de corredores de exportação com alto risco ambiental poderiam ser aplicados
de bens ou a integração entre grandes centros mecanismos efetivos de gestão e fiscalização,

50 Democracia Viva Nº 27
Amazônia e o desafio do desenvolvimento sustentável

com a participação dos diferentes setores da de rodovias, que possuem acesso garantido no
sociedade, para reprimir o avanço de novas processo.
fronteiras em áreas remotas onde a governança O potencial de esse cenário de gover-
ainda é baixa (Nepstad et al., 2002; Carvalho nança da fronteira se tornar realidade está
et al., 2002, 2001). Esse processo conduziria a crescendo na Amazônia brasileira. O processo
uma redução na quantidade de terras disponí- de articulação da sociedade civil residente ao
veis e, portanto, no aumento do seu valor de longo da BR-163, que receberá em breve as-
mercado, o que incentivaria a implantação de falto, é um exemplo claro nesse sentido. Esta
culturas perenes, o manejo florestal de baixo sociedade, que depende das riquezas naturais
impacto e outros sistemas mais sustentáveis da região para sobreviver, foi capaz de construir
de produção, como o plantio direto levando um plano de desenvolvimento sustentável para
a um desenvolvimento socioeconômico das a BR-163 e sua área de influência. Tal propos-
populações locais. Concomitantemente, seria ta foi apresentada
preciso que as estradas vicinais, que partem ao governo fede-
das grandes rodovias, recebessem investimentos ral por meio de um
em pavimentação e manutenção para facilitar a consórcio chamado
comercialização dos produtos locais e o acesso “Desenvolvimento
da população rural à saúde, à educação e aos socioambiental da
serviços técnicos. BR-163”, que agora
Mais amplamente, um desenvolvimen- discute com diri-
to socioeconômico da Amazônia com baixo gentes os rumos
custo ambiental poderia ser conseguido, entre para um desenvol-
várias alternativas, por meio da promoção de vimento mais sus-
uma agricultura intensiva em terras já altera- tentável da região. 1
das ou desmatadas ou em regiões onde essas Ou seja, ao contrário
atividades são inadequadas (solos pobres, por do passado, o plane-
exemplo). Ainda, a criação de incentivos para jamento da BR-163
implementação de tecnologias que melhoras- se torna um caso de
sem a produtividade e a sustentabilidade agrí- “governança antes
cola poderia minimizar os impactos ambientais, do asfalto”.
assim como o desenvolvimento de mecanismos Um outro im-
que incentivassem a extração de produtos pressionante caso de
não-madeireiros e o manejo florestal de baixo aumento da capaci-
impacto por parte de pequenos(as) e mé­dios(as) dade de governança
produtores(as) poderiam fornecer uma alterna- local na Amazônia
tiva a esse setor produtivo. Seria também de pode ser ilustrado pela
fundamental importância que houvesse linhas construção do Pro-
de crédito que compensassem produtores(as) ambiente. Trata-se de
da região por comportamentos ambientalmente um programa, ago-
sustentáveis, bem como a promoção de ativi- ra encampado pelo
dades econômicas de vocação florestal, como a governo federal, de
extração de borracha, castanhas, óleos e explo- créditos ambientais
ração madeireira de baixo impacto, como uma oferecidos a peque­
estratégia para reprimir a conversão de floresta nos(as) produtores(as).
para expansão de pastagens. Ainda, a floresta Por iniciativa própria
deveria ser, definitivamente, reconhecida como das associações, as
um recurso prestador de serviços ambientais Federações de Traba-
(equilíbrio do clima, por exemplo) capaz de lhadores na Agricultura (Fetags) da Amazônia,
receber compensação (Santilli et al., no prelo). o Proambiente, que teve sua concepção dentro
Finalmente, seria preciso uma abertu- do Grito da Amazônia de 2000, busca incluir em
ra no processo de decisão política para que sistemas de crédito a compensação por serviços
fosse possível envolver grupos locais que são ambientais prestados para a sociedade quando
raramente consultados nos estágios prévios um produtor assume o uso de sua propriedade de
do planejamento – tais como pequenos(as) acordo com critérios agroambientais e ecológicos.
agricultores(as), organizações de base e municí- Outras iniciativas governamentais também 1 Ver http://www.ipam.org.
br/programas/cenarios/br163/
pios –, assim como atores com poder econômico, lançam esperança de aumento de governança na consorcio.php.
como produ­tores(as) de soja e construtoras

JUN / JUL 2005 51


nacional

* Paulo Moutinho Amazônia. Por exemplo, o caso do sistema de licen- quatro anos). A redução do desmatamento virá
Pesquisador do Instituto ciamento de desmatamento, que foi implementado não apenas pelo aumento da governança, mas
de Pesquisa Ambiental em Mato Grosso, demonstrou ser possível reduzir a também por uma efetiva busca de mecanismos
da Amazônia (Ipam) taxa de desmatamento estadual. O programa, con- que valorizem a floresta em pé. Floresta é mais
moutinho@ipam.org.br tudo, no atual governo, parece não ter o mesmo do que madeira. Será preciso trabalhar com meca-
fôlego, já que as taxas de desmatamento atuais em nismos que possam compensar aqueles governos
Mato Grosso subiram e já correspondem a 50% que reduzem desmatamento tropical ou con-
do total para a Amazônia. Um outro exemplo, servem florestas. Além disso, qualquer atividade
digamos, clássico é o programa de combate ao sustentável na Amazônia precisa adaptar-se ao
fogo do governo federal (Programa de Prevenção contexto ecológico da região. Os conhecimentos
e Controle de Queimadas e Incêndios Florestais científicos sobre essa dinâmica acumulam-se
na Amazônia Legal/ Proarco), que, de 1999 a constantemente, apesar de ainda existirem muitas
2000, conseguiu reduzir o número de focos de áreas de ignorância. Na verdade, muitos desses
incêndio na Amazônia, mostrando que o estado conhecimentos já estavam presentes na década de
pode interferir no uso de fogo na região. Mais 1970, quando se desatou o modelo de ocupação
recentemente, o Plano de Prevenção e Combate predatório.
ao Desmatamento na Amazônia foi lançado pelo
governo federal e, de maneira inédita, reúne 11
ministérios e tem a coordenação da Casa Civil. Tam-
bém de maneira inédita, o plano tem dado ênfase à
questão fundiária e ao combate à grilagem de terras
públicas, dois fatores importantes na produção de
degradação ambiental.
Embora sejam frágeis esses e outros avan-
ços recentes na capacidade de governar a Ama-
zônia, eles mostram que é possível contemplar o
cenário de governança da fronteira agrícola da
Amazônia. Um indicativo dessa fragilidade e do
desafio imposto pelo desenvolvimento sustentável
é o fato de que as taxas de desmatamento na
região seguem a todo vapor. Na década passa-
da, a taxa de desmatamento girou em torno de
1,7 milhão de hectares por ano. Desde o início
da presente década, essa taxa está ao redor de
2,3 milhões (um aumento de 40% nos últimos

Referências bibliográficas
ALVES, D. An analysis of the geographical patterns of NEPSTAD, D.; CAPOBIANCO, J. P.; BARROS, A. C.; CARVALHO,
deforestation in Brazilian Amazonia the 1991-1996 period. In: G.; MOUTINHO, P.; LOPES, U.; LEFEBVRE, P. Avança Brasil: os custos
WOOD, C.; PORRO, R. (Eds.). Patterns and processes of land use in ambientais para a Amazônia. Belém: Alves, 2000. 24 p.
Amazon forests. Gainesville: University of Florida Press, 1999. NEPSTAD, D.; CARVALHO, G.; BARROS, A. C.; ALENCAR, A.;
BANDEIRA, P. Participação, articulação de atores sociais e CAPOBIANCO, J. P.; BISHOP, J.; MOUTINHO, P.; LEFEBVRE, P.;
desenvolvimento regional. Brasília: Ipea, 1999. (Texto para Discussão SILVA, U. L. Road paving, fire regime feedbacks, and the future of
630). Amazon forests. Forest Ecology & Mgt, 154, p. 395-407, 2001.
CARVALHO, G.; MOUTINHO, P.; BARROS, A. C.; NEPSTAD, D. NEPSTAD, D.; McGRATH, D., BARROS, A. C.; ALENCAR, A.;
Sensitive development could protect Amazonia instead of destroying SANTILLI, M.; DIAZ, M. C. Frontier governance in Amazonia. Science,
it. Nature, 409, p. 131, 2001. v. 295, p. 629-630, jan. 2002.
CARVALHO, G.; NEPSTAD, D.; McGRATH, D.; DIAZ, M. C.; SANTILLI, NEPSTAD, D.; MOREIRA, A.; ALENCAR, A. A floresta em
M.; BARROS, A. C. Frontier expansion in the Amazon, balancing development chamas: origens, impactos e prevenção de fogo na Amazônia. Ed.
and sustainability. Environment, v. 44, n. 3, p. 34-45, abr. 2002. rev. Brasília: Ipam, 2004.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censos NEPSTAD, D.; VERÍSSIMO, A.; ALENCAR, A.; NOBRE, C.;
demográficos 1970 e 2000. 2000. Disponível em: <www.ibge.gov. LEFEBVRE, P.; SCHLESINGER, P.; POTTER, C.; MOUTINHO, P.; LIMA,
br>. E.; COCHRANE, M.; BROOKS, V. Large-scale impoverishment of
INPE. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. 2003. Disponível Amazonian forests by logging and fire. Nature, 398, p. 505-508,
em: <http://www.obt.inpe.br/prodes/index.html>. 1999.
MENDONÇA, M. J. C. de; DIAZ, M. C. V.; NEPSTAD, D.; et NOBRE, C. A.; SELLERS, P.; SHUKLA, J. Amazonian deforestation
al. The economic cost of the use of fire in the Amazon. Ecological and regional climate change. Journal of Climate, 4, p. 957-988, 1991.
Economics, 49, p. 89 – 105, 2004. PNUD. Índice de Desenvolvimento Humano, 1996.

52 Democracia Viva Nº 27
O Jornal da Cidadania é distribuído
para pessoas que têm pouco ou ne-
nhum acesso à informação crítica e
comprometida com a democracia.
Nossos leitores e leitoras são, espe-
cialmente, estudantes e professoras
e professores de escolas públicas
de todo o país. Mas também traba-
lhadoras e trabalhadores urbanos e
rurais, líderes comunitários, mora-
doras e moradores de comunida-
des pobres. São 60 mil exemplares
distribuídos gratuitamente.

Participe de mais esta iniciativa do


Ibase. Você pode ajudar com contri-
buições financeiras ou organizando
um núcleo de distribuição.

JUN / JUL 2005 53


v a r i e
v
Flávia Mattar
Colaborou: Alfredo Boneff
a r i e

Riqueza musical Guardiães da terra Campo brasileiro em


foco
O projeto Música, Memória e So- Facetas da condição feminina e
ciabilidade da Maré, coordenado da exclusão social. Este é tema A Comissão Pastoral da Terra (CPT)
pelo professor da Universidade do documentário Sentinelas do lança mais uma edição de seu tradi-
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tempo – mulheres quilombolas, cional relatório Conflitos no Campo
Samuel Araújo, ganha novo fôlego: do pesquisador e cineasta carioca Brasil, com dados relativos a 2004.
foi contemplado com uma bolsa Sergio Brito. Como personagens A publicação é a única do país
“Cientistas do Nosso Estado”, da principais estão as remanescentes que apresenta estimativas sobre os
Fundação Carlos Chagas Filho de do Complexo Quilombola Mata conflitos por terra (violências como
Amparo à Pesquisa do Estado do Cavalo, localizado no município despejos e expulsões) e os números
Rio de Janeiro (Faperj), para o perí- de Nossa Senhora do Livramento, da violência (como assassinatos,
odo de março de 2005 a fevereiro de a 50 quilômetros de Cuiabá, Mato ameaças de morte e prisões). Há,
2006. O objetivo da iniciativa – que Grosso. Lançado em Cuiabá, o filme ainda, dados sobre trabalho escravo
durante 2004 ficou restrita às comu- será exibido no Projeto Cinema e conflitos em virtude da seca, entre
nidades de Nova Holanda e Morro Circulante Arni Sucksdorf, que leva outras informações. Desde 2002,
do Timbaú – é mapear gêneros produções a periferias e municípios conflitos gerados pelo uso da água
musicais existentes na comunidade da capital mato-grossense. passaram a fazer parte dos levanta-
da Maré. O projeto está registrando Elaborado a partir de dois tra- mentos. A publicação é reconhecida
a relação entre gêneros musicais – balhos acadêmicos de Sergio na como científica pelo Instituto Bra-
como forró, funk, hip hop, pagode, área de saúde pública, Sentinelas sileiro de Informação em Ciência e
rap, char­me, samba, gospel, rock, do tempo mostra, em 23 minutos, Tecnologia (IBICT) e é referência
entre outros – e as diferentes etnias depoimentos de mulheres a respeito internacional para as questões
e identidades sociais presentes: de sua relação com a terra e a per- agrárias no Brasil. A documentação
baia­nos(as), paraibanos(as), minei­ cepção que têm de si próprias. O é realizada por agentes da CPT no
ros(as), negros(as), brancos(as) etc. documentarista aborda essa vivên- campo e nas secretarias regionais. Os
O trabalho investiga, ainda, de que cia e o significado de ser, ao mesmo dados de cada estado são enviados
modo a violência permeia estilos tempo, mulher, quilombola e negra para a sede nacional da entidade em
musicais como funk, rap e heavy na sociedade brasileira. “Chamo o Goiás, onde são organizados.
metal. O comércio de fitas, CDs filme de documentário-processo,
www.cpt.org.br
e LPs independentes, lançados e pois ele não se esgota em si mesmo,
vendidos na localidade por músicos está em desenvolvimento. Fizemos
da região, também é estudado. A as entrevistas sem uma preparação
idéia é estender o projeto, em um prévia, pois queria dar um caráter
futuro próximo, para a Mangueira, de conversa mais informal”, diz o
o Morro da Serrinha, a Rocinha e diretor.
outras comunidades conhecidas pela
Solicitação de cópias:
sua riqueza musical.
(21) 2290 4745

54 Democracia Viva Nº 27
d
d a d e a d e s

Negócio coletivo Mandando fechado em Cultura e saúde


saúde e sexualidade
Está prevista para agosto, durante Instrumentos de percussão, cor, fan-
os festejos em homenagem a Nossa Estatísticas revelam o aumento do tasias e dança. É com essa vibração
Senhora da Assunção, a inauguração número de gravidezes indesejadas que o grupo teatral Companhia da
do Centro de Produção Artesanal de na adolescência e da incidência do Saúde, iniciativa da Associação
Conceição das Crioulas. A iniciativa vírus da Aids entre meninas com Brasileira Interdisciplinar de Aids
tem como objetivo abrigar a produ­ menos de 24 anos. O Cemina – Co- (Abia) coordenada pelo dentista
ção artesanal da comunidade. Além municação, Educação e Informação José Marmo da Silva, se apresenta
disso, o centro terá salas de aula e em Gênero e a Redeh aproveitam em escolas públicas, comunidades
uma loja, onde serão vendidos os o potencial mobilizador da cultura carentes, terminais rodoviários,
produtos confeccionados. Moradores hip hop para dar visibilidade ao praças públicas, seminários e con-
e moradoras de localidade – cerca de debate sobre os direitos sexuais e gressos. O grupo é formado por
3.800 – sobrevivem da agricultura fa- reprodutivos. Acaba de ser lançado jovens de terreiros de candomblé
miliar de subsistência e do artesanato. site pelo qual podem ser baixadas, e de favelas. A proposta – que,
Além de fonte de renda, a produção distribuídas e remixadas dez mú- de início, se limitava à utilização
artesanal mantém viva a história da sicas do CD Mandando fechado de técnicas circenses em esquetes
comunidade e gera visibilidade à em saúde e sexualidade, que trata teatrais para abordar a prevenção de
causa do povo quilombola. de temas como corpo e violência, doenças sexualmente transmissíveis
O projeto conta com a doação de gravidez na adolescência, aborto e Aids – atualmente abarca saúde da
25 mil libras, obtidas por meio do e diversidade sexual. Para ampliar infância e da adolescência de forma
Programa de Mobilização de Recur- o alcance das músicas, o CD foi geral. Recentemente, por exemplo,
sos, com o apoio do Departamento gravado e distribuído gratuitamente a companhia montou esquetes
de Marketing da Oxfam, em Oxford. para DJs, integrantes da Rede de sobre racismo na saúde. Para obter
A construção será coordenada pela Mulheres no Rádio, rádios comu- mais informações, basta entrar em
Associação Quilombola de Concei- nitárias, programas voltados para contato com a Abia. As apresenta-
ção das Crioulas, em parceria com o o público jovem, organizações de ções, dependendo da necessidade
Imaginário Pernambucano e o Centro cidadania ativa, conselhos munici- de quem as solicita, são gratuitas.
de Cultura Luiz Freire. pais e estaduais e para o Conselho
(21) 2223-1040
Nacional dos Direitos da Mulher e
da Juventude. abia@abiaids.org.br

www.hiphopdsdr.org.br

JUN / JUL 2005 55


intern
internacional
Rubens Born*
Colaboração: Mark Lutes e Délcio Rodrigues1

Regimes
internacionais
e políticas de
mudanças de
O regime multilateral de mudança de clima, conhecido por meio da Convenção-Quadro

das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) e seu Protocolo de Quioto, é,

além de sua função para a sustentabilidade do desenvolvimento e proteção do sistema

climático, um importante processo para a construção de governança, justiça e coopera-

ção no sistema internacional. Não obstante, fruto dos contextos em que foi gerado e é

operacionalizado, esse regime apresenta enormes desafios para se lograrem, de maneira

efetiva e justa, os objetivos e princípios nele inseridos.

O regime2 de mudança de clima é considerado um dos legados do processo da

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD,

também conhecida como Rio 92), realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992 e

notabilizada por três grandes aspectos: a necessidade de transformação do modelo de

56 Democracia Viva Nº 27
acional
com base então nos conceitos e idéias do das emissões de gases de efeito estufa
desenvolvimento sustentável, a fim de se pro- (GEE), especialmente nos países industria-
tegerem as condições e dinâmicas ecológicas lizados, isto é, a mitigação de principais
que viabilizam a existência de vida no planeta; causas antrópicas, ou alternativa e com-
a necessidade de que as transformações e plementarmente valorizar a contribuição
medidas correspondentes sejam concretizadas da captura de gás carbônico da atmosfera
mediante crescente e mais justa cooperação por atividades de reflorestamento, con-
entre países e organizações; e, finalmente, a tabilizando isso nos esforços globais. Em
ampla participação de diversos segmentos da outras palavras, se políticas e ações devem
sociedade na formulação de políticas e pro- estar voltadas para a redução absoluta de
gramas de ações, nas esferas global, nacional fontes, ou também para a importância, 1 Mark Lutes é mestre em socio-
logia e tem estudos e doutorado
e local, mesmo no âmbito das Nações Unidas. inequívoca, de florestas, sumidouros e em políticas de mudança de
clima. Tem mais de 13 anos de
De fato, a Agenda 21, o ambicioso reservatórios de carbono; experiência em atividades e pes-
acordo de programa de ações, assinado na • se o regime deve fundar-se mais em abor- quisas de ONGs em questões de
mudança de clima. Atuou como
Rio 92 por mais de 170 países, tem seção dagem que valorize políticas de Estados diretor executivo da organização
canadense Conservation Council
especial sobre a participação de segmentos da e respectivos instrumentos de comando of New Brunswick. É autor de
sociedade considerados relevantes (indígenas, e controle (caso da Convenção) ou em publicações acadêmicas sobre
políticas ambientais e mudança
organizações civis, agricultores e agricultoras, mecanismos econômicos, para estimular de clima, bem como sobre acor-
dos e políticas globais em meio
mulheres, jovens, autoridades locais) e reitera, a adesão dos agentes do mercado em ambiente. Canadense, reside no
ao longo de seus 40 capítulos, a importância torno de instrumentos de flexibilização de Brasil há dez anos e tem atuado
como pesquisador associado do
do envolvimento de todos os setores na cons- metas e compromissos mensuráveis (caso Vitae Civilis, representando-a
no Conselho de Coordenação
trução e consolidação das ações para o desen- do Protocolo de Quioto); Internacional do Climate Action
volvimento sustentável. A Rio 92 foi, como • o ônus das medidas de adaptação ou miti- Network.
Délcio Rodrigues é bacharel
dissemos, marco da crescente participação gação às mudanças climáticas nos países em e mestre em física. É ambien-
talista, pesquisador associado
de tais setores em regimes e conferências da desenvolvimento, em especial nos países do Vitae Civilis e membro dos
ONU, sendo que, nos anos seguintes, houve mais pobres; grupos de trabalho de energia
e clima do Fórum Brasileiro de
aprimoramento dos mecanismos e formas de • a adoção de mecanismos efetivos de ONGs e Movimentos Sociais. Foi
assessor do Ministério do Meio
participação de representantes de organiza- monitoramento e medidas de penalida- Ambiente para a realização da
ções da sociedade civil em diversos processos des para o não-cumprimento de metas 1 a Conferência Nacional do
Meio Ambiente (2003), global
e regimes vinculados às Nações Unidas. e compromissos; team leader do Greenpeace
Internacional, diretor de cam-
• a resistência à mudança de padrões eco- panhas do Greenpeace Brasil,
nômicos, tecnológicos e institucionais de coordenador do Instituto Akatu
Convenção de Clima e Protocolo pelo Consumo Responsável,
produção e consumo nos países indus- analista de Planejamento Ener-
de Quioto gético e Relações com Meio
trializados, com a argumentação de seu Ambiente da Jaakko Poyre e
O regime está assentado na Convenção-Qua- relativo custo e indicando-se que medidas Cesp, além de pesquisador do
Instituto de Física da Universi-
dro – negociada entre 1991 e 1992, assinada mais baratas podem ser implementadas em dade de São Paulo.
durante a Rio 92 e em vigor a partir de 1994 países em desenvolvimento para alcançar 2 Uma formulação, entre várias,
de regime internacional refere-se
– e no seu Protocolo de Quioto. O regime é as mesmas metas globais de redução da como o conjunto de objetivos,
marcado por uma longa série de impasses e concentração de gases de efeito estufa. princípios, regras, processos de-
cisórios e instâncias operativas
abordagens distintas para o enfrentamento De fato, do ponto de vista ambiental e que buscam articular ações e
políticas dos diversos atores em
do problema do aquecimento global. Entre mais geral, não importa onde sejam feitas as torno de um problema ou de-
eles, citamos: reduções de emissões ou captura de carbono safio, visando obter resultados
que beneficiem todas as partes
• a ênfase na busca de reduções absolutas atmosférico. Mas tal fato tem as implicações envolvidas.

JUN / JUL 2005 57


internacional

políticas, econômicas e sociais às questões volvimento não têm qualquer obrigação no


associadas a alguns desses impasses e es- sentido de reduzir suas emissões, em função
quemas alternativos de formulação e imple- do princípio das responsabilidades comuns,
mentação do regime. A partir do choque desses mas diferenciadas. Mais de 130 países ra-
enfoques, não necessariamente mutuamente tificaram o Protocolo de Quioto, incluindo
excludentes, surgiram questões (e opções) o Brasil, superando, dessa forma, a marca
como: devem ser mudados prioritariamente necessária de 55 países para sua entrada em
os padrões de produção industrial ou agrícola vigor. Porém, há um requisito adicional para
nos países industrializados, que respondem por a entrada em vigor do Protocolo que exige
cerca de três quartos das emissões de GEE? que a ratificação por países industrializados
São baratas e politicamente factíveis tais mu- corresponda a pelo menos 55% das emissões
danças ou seria me- dos países industrializados relatadas no Ane-
lhor dar prioridade a xo I do Protocolo, limite que só foi possível
ações nos países em atingir com a ratificação da Rússia. Embora os
desenvolvimento, Estados Unidos e a Austrália tivessem anun-
com custos meno- ciado em 2001 que não pretendiam ratificar
res, e eventualmen- o Protocolo, este entrou em vigor a partir de
te dando ênfase na 16 de fevereiro de 2005, uma vez que a Rússia
captura de carbono o ratificou no fim de 2004. Nesse período,
ou crescimento de foram muitas as barganhas e pressões políti-
emissões projetadas cas para lograr ou evitar a ratificação russa,
pelo atual estilo de uma vez que a vigência do Protocolo, nessas
desenvolvimento condições, cria “constrangimentos” políticos
não sustentável? aos Estados Unidos, por um lado, mas per-
Esperava-se mite a viabilização legal de mecanismos com
que os países in- relativo impacto econômico e ambiental nos
dustrializados acei- países que decidiram cumprir o Protocolo.
tassem incluir na O objetivo da convenção é o de al-
Convenção metas cançar a estabilização das concentrações
claras e específicas de gases de efeito estufa na atmosfera num
para a redução de nível que impeça uma interferência antrópi-
emissão de gases de ca perigosa no sistema climático. Esse nível
efeito estufa, posto deverá ser alcançado num prazo suficiente
que alguns deles já que permita aos ecossistemas adap­tarem-
haviam anunciado, se naturalmente à mudança do clima, que
em 1990 e 1991, assegure que a produção de alimentos não
a adoção unilateral seja ameaçada e que permita ao desenvol-
de metas de corte vimento econômico prosseguir de maneira
de emissões. Como sustentável.
tais metas não foram Importante notar também que, hoje,
então definidas, a 1ª os países em desenvolvimento não têm qualquer
Conferência das Par- obrigação no sentido de reduzir suas emissões,
tes (COP), realizada em função do princípio das responsabilidades
em Berlim em 1995, comuns, porém diferenciadas, o que também
deliberou a fixação ficou inscrito no Protocolo de Quioto. Esses pa-
de um mandato (o íses têm o “direito” de aumentar suas emissões,
Mandato de Berlim) mas tal crescimento deve ser em ritmo menor do
para o grupo especial, no âmbito da Convenção, que aquele que ocorreria se o país não tivesse
negociar um protocolo, que foi finalizado na ratificado a Convenção. É que o seu artigo 4.1
cidade de Quioto. Em 1997, foi finalizado o Pro- estabelece compromissos para todos os países,
tocolo de Quioto a partir da referida convenção. para que sejam adotadas medidas variadas,
O Protocolo de Quioto contém dire- mas que, na essência, apontam para a incor-
trizes para a redução das emissões de gases poração dos desafios de prevenir, mitigar
de efeito estufa para países industrializados, ou se adaptar às mudanças de clima nas
relacionados no Anexo l do documento. Im- várias políticas e esferas da vida cotidiana
portante notar que hoje os países em desen- de nossa sociedade: energia, transporte,

58 Democracia Viva Nº 27
Regimes internacionais e políticas de mudanças de clima

urbanismo e habitação, florestas, agricul- redução, em 2012, das emissões de GEE


tura e desenvolvimento agrário, combate à comparadas ao nível existente em 1990.
desertificação, gestão de recursos hídricos A ratificação do documento pela Rússia,
etc. O artigo 4.2 estabelece os compromissos em 2004, deu novo estímulo à sua implemen-
para os países industrializados, até mesmo os tação, baseado em metas de redução para
de contribuir financeiramente para fundos de certos países industrializados, mecanismos
adaptação dos países mais pobres e vulneráveis. de afe­rição do cumprimento de tais metas e
De fato, está claríssimo o objetivo negociações de compromissos progressivos,
da alínea (b) do artigo 4.1 da Convenção- mais amplos e exigentes de redução de
-Quadro de Mudança de Clima, que indica emissões gases de efeito estufa. Entretanto,
compromissos de todos os países para com a reeleição do presidente George W.
“formular, implementar, publicar e atualizar Bush, há expectati-
regularmente programas nacionais e, conforme va generalizada de
o caso, regionais, que incluam medidas para que o atual governo
mitigar a mudança do clima, enfrentando as d o s E stados Uni-
emissões antrópicas por fontes e remoções dos continue hostil
antrópicas por sumidouros de todos os gases às ações e compro-
de efeito estufa não controlados pelo Protocolo missos multilaterais,
de Montreal, bem como medidas para permitir impondo, assim, de-
adaptação adequada à mudança do clima”. safios e limites aos
esforços que con-
tribuem pa­ra a re-
Hostilidades e desafios
dução das emis­s ões
O Protocolo de Quioto funda-se, então, globais. Certamen-
na perspectiva de se lograr o atendimento te, a ausência dos
de metas líquidas e específicas de redução Estados Unidos nos
das emissões de gases de efeito estufa por esforços globais de
países industrializados, listados no Anexo I cumprimento do
da Convenção, e no uso de três mecanismos, Protocolo causará
conhecidos como mecanismos de flexibiliza- ônus adicional para
ção: execução conjunta (Joint Implementation todos os países que
– JI), comércio de “certificados” de redução de aderiram ao regi-
emissões e mecanismo de desenvolvimento me, nos períodos
limpo (MDL). Todos se baseiam na con- subseqüentes.
tabilidade de emissões absolutas de GEE O fato de
deduzindo-se carbono capturado da atmos- que os Estados
fera ou emissões evitadas, segundo critérios Unidos, o país com
especiais. Os dois primeiros só podem ser mais alta emissão
usados entre os países do Anexo I. O MDL de gases de efeito
e o JI vinculam-se a pro­­jetos especiais, em estufa, “pega ca-
que se dará a redução líquida, mensurável e rona” (é um “free
certificada, de emissões de GEE, que sejam rider”, isto é, vai se
implementados em um país hospedeiro e beneficiar dos esfor-
apoiado financeiramente por um país in- ços de outros apesar
dustrializado que obterá parte dos créditos de nada fazer – ou
da redução de carbono obtida. O MDL deve fazer até o contrário
ser exclusivamente aplicado em projetos em do estabelecido no
países em desenvolvimento. regime da Convenção de Clima) torna muito
O Protocolo estabeleceu metas e mais difícil um novo acordo entre os países
regras para o período de 2008 a 2012, sen- industrializados (Anexo I do Protocolo) e os
do que sua continuidade para além desse países em desenvolvimento para reduções
período deve ser objeto de negociações, mais significativas, especialmente após 2012.
cujo início foi marcado para 2005. Pelo Isso tornará também mais difíceis as negocia-
Protocolo, se todos os países industrializa- ções para a adoção de metas de redução por
dos cumprissem integralmente suas metas, alguns países em desenvolvimento, embora
poder-se-iam alcançar cerca de 5,2% de haja pressão enorme para que alguns deles,

JUN / JUL 2005 59


internacional

notadamente China, Brasil e Índia, venham a e do Protocolo de Quioto, países importantes,


ter metas obrigatórias em algum período logo incluindo o Brasil, que se fizeram lideranças nas
após 2012. negociações internacionais deverão continu-
É necessário identificar, no regime ar a exercer um protagonismo para manter
global, uma forma de evitar que o governo viável o regime de cooperação global.
George W. Bush tenha, na prática, o poder de
veto que impeça esforços internacionais de
O caso do Brasil
proteção do sistema climático. Alguns países
podem e devem continuar a exercer liderança O país tem tido um papel significativo e cons-
no processo internacional, com a esperança de trutivo nas negociações internacionais, inclusive
que, a partir da adoção e implementação de no G-77 o grupo de países em desenvolvimento,
políticas domésticas e o cumprimento efetivo o que se evidenciou também com a apresen-
das metas do primeiro período (2008–2012) tação da chamada “Proposta Brasileira” para
do Protocolo de Quioto, possamos ter a adesão alocar metas e compromissos com base na
dos Estados Unidos em um futuro próximo. responsabilidade histórica de cada país para
Por isso, dependendo de quão ativo os Estados o aquecimento global do planeta. Há ainda
Unidos sejam para bloquear a implementação grande expectativa de como o governo fe-
da Convenção-Quadro de Mudança de Clima deral lidará, no longo prazo, com a questão

Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)


Nas negociações internacionais do Protocolo de Quioto, ficou estabelecido o uso de MDL para projetos

novos (adicionais) de desenvolvimento sus- turais. Certamente, ainda há muito em que


tentável, mas no caso de captura de carbono se avançar, do ponto de vista ambiental e
restrito a reflorestamento e aflorestamento, ou social, para o aprimoramento de modelos
seja, criar uma floresta onde antes ainda não e técnicas que nos libertem das mazelas
havia. Por ser um instrumento de mercado, o associadas aos monocultivos arbóreos e
MDL não reúne condições suficientes para ser agrícolas, em geral fundados na grande
usado a fim de implementar e gerir políticas propriedade de terra.
públicas. Da maneira que está atualmente Entretanto, na comunidade ambientalista,
regulamentado, o MDL é instrumento que há expectativa de que o MDL possa servir
permite projetos e negócios privados, com para a recuperação de áreas ambientalmente
base no propósito público de redução efetiva degradadas e que deveriam estar sujeitas a
de emissões existentes ou futuras. Isso cria, en- algum tipo de proteção, gerando empregos
tão, oportunidades para projetos diversos, que e benefícios sociais. Por exemplo, no estado
não necessariamente atendem a demandas ou de São Paulo, o Fórum Paulista de Mudanças
expectativas locais ou nacionais de recuperação Globais de Clima e Biodiversidade fez recen-
ou gestão da qualidade ambiental, por estarem temente instigante discussão sobre como usar
voltadas ao foco específico, que é a redução o MDL para recuperar áreas de preservação
líquida de emissões equivalentes de carbono. permanente (APPs). Mas a eventual indução
Como conseqüência, uma das possibi- pública para projetos “voluntários” de MDL,
lidades de uso do MDL é na expansão de sujeitos aos interesses de mercado, dependerá
monocultivos arbóreos, para produção de do aprofundamento da discussão e de maior
madeira, papel e celulose ou de carvão ve- engajamento da sociedade civil e dos diversos
getal. Sabe-se que são necessários plantios níveis de governo.
de espécies vegetais para a obtenção de
tais produtos, como forma de se diminuir
a pressão antrópica sobre as florestas na-

de mudança de clima. O projeto Brasil em o projeto contemplava como prioritário, para o


Três Tempos, em formulação pela Presidência país, deter o controle de uma fatia considerável
da República desde o fim de 2004, pretende do mercado de MDL, ecoando setores gover-
indicar planos de desenvolvimento para o país namentais e privados que ou negligenciam ou
em cenários de longo prazo: 2015 e 2022. En- resistem à adoção de uma política nacional que
tretanto, com base nas informações disponíveis organize e articule as medidas brasileiras de
à época da redação deste texto (maio de 2005), cumprimento dos compromissos obrigatórios

60 Democracia Viva Nº 27
Regimes internacionais e políticas de mudanças de clima

da Convenção. metros quadrados em período de um ano entre *Rubens Born


Entretanto, fatos recentes do fim de 2003 e 2004, permitem inferir, segundo alguns Coordenador executivo da
2004 e início de 2005 parecem indicar que especialistas, que o Brasil é um dos cinco países Vitae Civilis; engenheiro
maior atenção será prestada aos desafios cor- do mundo com maiores emissões de gases de civil, com especialização
respondentes (por exemplo, a reativação do efeito estufa. O governo brasileiro tem progra- em engenharia ambiental;
Fórum Brasileiro de Mudança de Clima – FBMC; mas nas áreas e eficiência energética e fomento mestre em saúde
pública e ambiental,
a criação de grupo de trabalho sobre o tema de energia por fontes renováveis, mas a prio-
e doutor na área de
no Ministério do Meio Ambiente – MMA). Em ridade continua sendo a expansão da geração
regimes internacionais;
dezembro de 2004, foi divulgada, pela primeira de energia a partir de grandes hidrelétricas e da
coordenador do
vez, a Comunicação Nacional, o relatório que termoeletricidade em vez de expandir mais ainda Grupo de Trabalho de
cada país deve apresentar à Convenção, com as fontes renováveis de energia. Mudanças de Clima
seu inventário de fontes e sumidouros de car- do Fórum Brasileiro de
bono. Pelo relatório, elaborado para o período ONGs e Movimentos
de 1990 a 1994, 73% das emissões brasileiras Sociais (FBMOS) para
de gases de efeito estufa estão associadas a des- Desenvolvimento e Meio
matamento, queimadas e mudança no uso do Ambiente. Participante
solo, especialmente na Amazônia e no cerrado; da delegação brasileira
em diversas etapas da
23% estão associadas à matriz de produção e
Convenção de Clima e
consumo de energia (notadamente combustí-
do Protocolo de Quito.
veis fósseis) e o restante a outros processos e
Foi coordenador da
atividades (aterros sanitários e lixo, atividades delegação do FBOMS na
de segmentos industriais etc.). Rio 92 e na Cúpula de
Os dados de desmatamento recente na Johannesburgo. rborn@
Amazônia, como o de cerca de 26 mil quilô- vitaecivilis.org.br

Política nacional de mudança de clima


No nosso entendimento – e também no de várias entidades do Grupo de Trabalho de Mudança de

Clima do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos de Clima deve:


Sociais para Desenvolvimento Sustentável e Meio a) considerar todos os princípios e compromis-
Ambiente (FBOMS) –, além de organizações de sos assumidos pelo Brasil no regime inter-
outros países, o cumprimento do Artigo 4.1 da nacional, especialmente aqueles delineados
Convenção deve ser levado muito a sério por no artigo 4.1 da Convenção;
todas as nações, incluindo o Brasil.
b) definir os marcos gerais que permitam o
Devemos contar com uma Política Nacional
envolvimento das várias esferas de governo
para Mudança de Clima para, por um lado,
e, portanto, que estimulem todas as unidades
cumprir com seus compromissos internacionais,
da Federação a desenvolver programas e
já ratificados pelo Congresso Nacional e, por
iniciativas compatíveis com os objetivos do
outro, fortalecer a liderança e protagonismo
regime, tendo em vista o previsto na Cons-
global nas negociações do regime multilateral
da Convenção Quadro de Mudança de Clima e tituição de 1988 e o princípio de responsa-
seu Protocolo de Quioto. Para essas negocia- bilidades comuns, porém diferenciadas;
ções, o governo brasileiro deve ter uma postura c) estimular a internalização dos objetivos e
ativa e de liderança quanto ao respeito aos considerações previstas no regime interna-
princípios da Convenção, mas, internamente, cional em políticas e programas setoriais,
preparar o país para os próximos períodos do nas áreas de energia, habitação e cidades,
regime. Entendemos que urge uma discussão transporte, agricultura e desenvolvimento
pública dos objetivos, critérios e instrumentos agrário, conservação ambiental, resíduos,
gerais de tal política, que deveria envolver as mineração etc.
várias áreas de atuação do governo, bem como d) ser flexível para poder considerar a evolução
articular as competências e ações dos estados do regime internacional e, assim, deixar
e municípios em questões como transporte ur- abertas para o país oportunidades para a
bano e intermunicipal, zoneamento territorial adoção de instrumentos e iniciativas que fo-
ecológico-econômico, conservação de florestas, rem acordadas no âmbito das negociações.
eficiência energética e fomento de fontes limpas,
sustentáveis e renováveis de energia, entre ou-
tros. Enfim, essa Política Nacional de Mudança

JUN / JUL 2005 61


MUNDO P ELO MUNDO PE
Jamile Chequer

Ensaios internacionais Flashs que mudam Passo à frente

O Programa Globalização, Cultura Há alguns anos, ser jornalista em O Chile deu um passo à frente no
e Transformações Sociais do Cen- uma guerra ou conflito era quase que diz respeito aos direitos homos-
tro de Investigações Pós-doutorais garantia de vida. Não eram consi­ sexuais. O Projeto de Lei contra a
(Cipost) da Faculdade de Ciências derados(as) alvos, e sim vis­tos(as) Discriminação foi aprovado por 41
Econômicas e Sociais (Faces) da como pessoas neutras que estavam votos a sete. Isso significa que a Câ-
Universidade Central de Venezuela no fogo cruzado cumprindo o papel mara dos Deputados reconhece que,
(UCV) está promovendo o concurso de dar visibilidade aos fatos. Mas nos últimos anos, graves delitos fo-
Cultura e Transformações Sociais. isso mudou. ram cometidos contra as pessoas por
A idéia é estimular e difundir in- Na guerra recente no Iraque, causa de sua orientação sexual. Além
vestigações que analisem, a partir pelo menos 29 jornalistas foram disso, entende que as discriminações
de uma perspectiva cultural, os raptados(as) e 56 mortos(as). Para se explicitam em ações que afetam
processos sociais contemporâneos. se ter uma idéia, durante os 20 anos direito ao trabalho, educação e saúde.
Serão aceitos ensaios que te- da Guerra do Vietnã, as mortes Para o presidente do Movimento
nham entre 10 mil e 16 mil pala- contabilizaram 63. Recentemente, de Integração e Liberação Homos-
vras, escritos em espanhol ou em o Comitê para Proteção de Jorna- sexual (Movilh), Rolando Jiménez,
português e que não tenham sido listas (CPJ) analisou que a morte, essa foi a principal conquista alcan-
publicados em nenhum tipo de meio seguida de impunidade, é a maior çada pelo movimento homossexual
impresso ou virtual. Vale lembrar ameaça para jornalistas no mundo. chileno. “É histórico porque conse-
que o programa considera “cultura” Países como Filipinas, Iraque, guimos que o Estado, pela primeira
uma perspectiva de análise também Colômbia, Bangladesh e Rússia – vez, faça um pronunciamento sobre
de estudo de todos os aspectos nessa ordem – lideram a lista de uma discriminação que existe desde
simbólicos que orientam e tornam “mais perigosos” para se exercer a sempre”, comemora. O projeto foi
possíveis as ações sociais nos mais profissão. Eles abarcam, no período idealizado pela Movilh em resposta
variados âmbitos políticos, econô- de 2000 a 2005, 48% das mortes aos variados casos de discriminação
micos e sociais. desses e dessas profissionais no sexual, de gênero, racial, cultural
Três eixos de análise serão acei- mundo. E, pasmem, nenhum caso etc. Já era hora.
tos: representações, discursos e foi solucionado.
políticas de identidades e diferenças “Por falharem na investigação e
sociais; representações, discursos e na punição dos assassinos, os gover-
políticas de cidadania e sociedade nos desses cinco países encorajam
civil; representações, discursos e aqueles que perseguem o silêncio
políticas de economia, ambiente e da imprensa por meio da violência”,
sociedade. As inscrições devem ser alerta Ann Cooper, da diretoria
feitas até o dia 15 de setembro. executiva da CPJ. E continua: “A
violência se perpetua e o fluxo livre
www.globalcult.org.ve/Program.
de informações é cortado”. É duro
htm
ser jornalista.

62 Democracia Viva Nº 27
LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO

Ranking de desprestígio Chamado nominal Bafafá climático

Qualquer semelhança com uma bar- Em janeiro deste ano, um acordo O Encontro do G-8 que vai acon-
ra de chocolate, recheada de coco, de paz deu fim a uma guerra civil tecer na Escócia entre os dias 6 e
não é mera coincidência. A Nestlé de 21 anos no Sudão. Certo? Não 8 de julho já está dando o que falar.
é uma das poderosas internacionais exatamente. Embora o Conselho de As duas prioridades de discussão
que ganhou o prêmio de empresa Segurança da Organização das Na- serão as mudanças climáticas e o
mais irresponsável por conflitos tra- ções Unidas (ONU) tenha concen- desenvolvimento da África, dois
balhistas na Colômbia. Mas não fez trado esforços na região, a situação tópicos quentes. Mas o que real-
apenas isso. A empresa conseguiu no país continua grave. Segundo mente está chamando a atenção é
a proeza de promover substitutos a organização International Crisis que, na última semana de maio, um
do leite materno, aumentando o Group (ICG), ainda serão necessá- documento com as indicações dos
desmame de bebês e expondo-os rias firmes medidas para restaurar acordos feitos entre os países no que
a riscos de saúde importantes em a segurança e prevenir mortes, que diz respeito ao clima foi colocado
países da América Latina. Não, somam cerca de 10 mil por mês. anonimamente na internet. Com o
não é boato. Haja campanha de O ICG convoca organizações material na mão, confirmado por
conscientização da amamentação internacionais e governos para agi- Tony Blair, a organização Amigos
para desbancar o NAN 1. Não sa- rem urgentemente e fazerem o que da Terra declarou que, substancial-
tisfeita, a Nestlé está envolvida com for possível, sem se preocuparem mente, pouco progresso aconteceu.
a exploração predatória de água no com prerrogativas institucionais “O documento é fraco, ineficaz e
Brasil e em outros países. para sanar o problema. Para isso, carece de urgência”, critica.
“Prêmios dessa natureza são produziu documento indicando Acusações de dedo dos Estados
importantes como contraponto a um os principais problemas e formas Unidos e um chamado de pressão
crescente número de premiações que necessárias de atuação. Entre as para que o país entre no grupo dos
mostram o lado bonito das ações questões mencionadas, faz um cha- assinantes do Protocolo de Quioto,
empresariais. Em geral, relatórios mado especial para a proteção de à parte, a organização pede a in-
e seminários tendem a esconder os civis e manutenção de mantimentos clusão de acordo sobre a evidência
problemas e conflitos com os quais em Darfur, nomeando organizações de que a mudança climática já
as empresas multinacionais estão como a ONU, a União Européia está acontecendo, em determinar
envolvidas”, revela o pesquisador (UE) e a Organização do Tratado do prazos na diminuição doméstica
do Ibase, Ciro Torres. Atlântico Norte (Otan) como capa- dos “gases estufa”, entre outros.
O prêmio foi “entregue” no zes de fazer a diferença. Também é É torcer ou comprar uma máscara
fórum alternativo Olho Público necessário construir um processo de de oxigênio.
em Davos e “contemplou” outras paz efetivo na capital, implementar
empresas, como Shell e Wal-Mart. um acordo de paz entre as partes e
prevenir novos conflitos no Sudão.

JUN / JUL 2005 63


ENTRE Entrevista
Por Iracema Dantas*

VISTA

64 Democracia Viva Nº 9
27
Atual assessor da Federação de Órgãos para Assistência Social
e Educacional (Fase) no programa Amazônia Sustentável, o
francês Jean-Pierre está no Brasil desde 1971: “Era a época
da ditadura. O governo dava muito mais facilmente vistos
para pastores americanos. Dizia-se que, de cada 300 vistos
concedidos, apenas um era para a Igreja Católica”. Iniciou
sua trajetória como religioso no Pará e, hoje, é reconhecido
como um dos mais atuantes defensores do direito ao meio
ambiente. Antes, esteve à frente de importantes momentos
como a criação do Fórum Global de ONGs, evento paralelo à
Rio 92, e do Projeto Brasil Sustentável e Democrático, iniciado
em 1997 e ainda em curso.
Jean-Pierre

Escolhido em 2003 como um dos relatores da


Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos,
Sociais e Culturais (Plataforma Dhesc), iniciativa que teve
o apoio do Programa de Voluntários das Nações Unidas
e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Jean-Pierre
garante: “Muita gente neste país é considerada invisível, são
grupos sociais que não interessam a ninguém ou porque
já foram descartados ou porque nunca serão alvo desse
desenvolvimento”.
O meio ambiente sempre foi entendido como bem
coletivo, mas para Jean-Pierre, quando se trata de injustiça
ambiental, as pessoas atingidas são sempre as mesmas:
mulheres, pobres, trabalhadores e trabalhadoras, negros e
negras: “Os custos desse desenvolvimento para eles chegam
da pior forma, agredindo sua saúde, suas águas, tirando suas
terras...”.
Jean-Pierre afirma que uma das grandes questões da
luta ambiental é não mostrar o que ela tem a ver com o
cotidiano: “Mas um dado além é que não temos grandes
expoentes, pessoas que são capazes de pensar o que significa
esse dia-a-dia do meio ambiente. Na Índia, temos a Vandana
Shiva, mas no Brasil não temos uma pessoa assim. Eu, depois
desses anos trabalhando com a justiça ambiental, vejo que
tropeço todo dia, o tempo todo, no meio ambiente...”. Não
tínhamos, Jean-Pierre...

JUN / JUL 2005 65


entrevista

Você nasceu na França. Em que Como foi sua chegada ao Brasil?


momento e por que resolveu vir Jean-Pierre – Fui para a região do Salgado,
para o Brasil? localizada no litoral do Pará. Como eu achava
Jean-Pierre – Eu era religioso na França, que não sabia nada da realidade – e não sabia
era de uma congregação presente em vários mesmo –, decidi não atuar como padre, mas ir
países e regiões do mundo. Sempre dizia à pesca e à roça para conhecer um pouco dessa
que, se fosse para sair da França, minha vida. Passei oito meses assim: no domingo,
preferência era o Brasil. Não estava nada a acompanhava a missa calado, não fazia nada.
fim de ir para a África e sempre acompanhei Também passei um tempo no Rio de Janeiro em
a conjuntura latino-americana. Em 1968, eu um curso de aculturação para, além de apren-
estava motivado a deixar a França desde que der português, ter estudos sobre a história, a
houvesse essa oportunidade. Como ela não cultura e a arte.
surgia, fiquei na França mesmo, trabalhando No Pará, em que cidade
no meio operário, lidava com migrantes no você ficou?
norte da França, portugueses e norte-africanos, Jean-Pierre – Em Magalhães Barata. Na
vindos da Argélia, do Marrocos. Fui trabalhar época, não existia luz e só havia um carro, da
no meio operário enquanto esperava uma vaga prefeitura. Vi carne duas vezes nesse período:
no Brasil. no casamento da filha de um comerciante e
E o que o levou a se tornar padre? numa festa envolvendo política. Senão, era
É uma tradição na sua família? só peixe, caranguejo, siri, nada de carne.
Jean-Pierre – Venho de uma família bas- Também se comia farinha d’água com um
tante religiosa, tanto do lado do meu pai como pedaço de peixe seco e, às vezes, açaí. Não
do lado da minha mãe. Já criança, queria ser era uma região produtora, mas tinha um
padre. Vivi no oeste da França e depois no pouco de açaí.
norte. Minha família é basicamente da roça: Depois, fui para Belém, ainda como reli-
meu pai era ferroviário, mas todos os meus gioso. Um colega decidiu ser técnico agrícola
tios eram pequenos agri­cultores. Tem também porque chegou à conclusão de que só ser pa-
a questão da militância, meu pai era sindica- dre e rezar missa não levava a nada; e eu não
lista, eu freqüentava, quando adolescente, a quis ficar sozinho. Fui padre em Belém durante
militância operária. Isso também fazia parte um ano, depois comecei a fazer pesquisa de
do meu universo. Participei da Juventude campo. Foi assim até 1974.
Operária Católica, tinha uma grande moti- O que foi mais difícil nesse
vação social. Sempre fui muito motivado, processo de adaptação?
muito empolgado para fazer algo no social, Jean-Pierre – O calor. Quanto ao restante,
tanto que, quando decidi dar o passo além, eu me adaptei bem. Era um ambiente muito
definitivo, ninguém se intrometeu. diferente do que estava acostumado na França,
Quando você deixou a França? evidentemente. Mas a diferença entre mim e
Jean-Pierre – Em 1970, uma equipe de os brasileiros de outros estados que também
colegas que estava no Pará me convidou para chegaram à Amazônia é que eu era estran-
ir para lá. Era para morar no litoral, com os geiro e sabia que não entendia nada de Ama-
pescadores. Eu me lembrei de que, quando zônia. Eles, por serem do Brasil, achavam que
criança, morava à beira-mar. Então, antes de sabiam e, na verdade, eram tão estranhos à
vir para o Brasil, resolvi rever como era viver região quanto eu. Foi um período em que as
da pesca e convidei uns amigos para pescar migrações eram pouquíssimas, era realmente
de arrastão no oeste da França; só ao chegar um outro mundo. Não só pela pujança da
aqui me dei conta do quanto era diferente... natureza, que por si só impressiona muito,
Mas a viagem demorou, deveria ter mas eram também as pessoas, os costumes,
vindo em 1970 e só cheguei ao Brasil no a cultura, as tradições, as comunidades, era
fim de 1971. Era a época da ditadura, e a tudo muito diferente. Se eu não tivesse tido
concessão de vistos para quem era religioso esses meses de convivência antes de começar
ou ligado à Igreja Católica era complicada. a trabalhar, teria feito muito mais besteiras
O governo dava muito mais facilmente vis- do que fiz. Realmente, era preciso aprender
tos para pastores americanos, mas para a aquele modo de viver, de ser, de se relacionar
Igreja Católica, não. Dizia-se que, de cada daquelas pessoas e comunidades. Para mim,
300 vistos concedidos, apenas um era para foi uma experiência fantástica.
a Igreja Católica. Quanto tempo foi padre?

66 Democracia Viva Nº 9
27
Jean-Pierre Leroy

Jean-Pierre – De 1962 a 1974. Decidi


deixar a congregação religiosa por proble-
mas pessoais. Viver sozinho no Brasil não
era nada fácil, vi que realmente não era por
aí que eu poderia ajudar. Como religioso,
achava o trabalho muito limitado. Mesmo
atuando nas comunidades de base, faltava
alguma coisa. Quando decidi deixar a con-
gregação, os colegas me deram seis meses
de salário, era o tempo que eu tinha para
encontrar um trabalho que correspondesse
às minhas aspirações ou voltar para a Fran-
ça. Depois de um mês e meio, Mateus, um
colega da Fase do Pará, soube da minha
decisão e me convidou para trabalhar para a
Fase em Santarém. Foi meu primeiro trabalho
sem ser padre.
Como foi esse primeiro trabalho na
Fase?
Jean-Pierre – A Fase tinha na época dez
ou 12 programas no Brasil todo. No Pará, eram
quatro ou cinco. Em Santarém, o trabalho era
em torno de pequenos agricultores, na verda-
de, eram semi-extrativistas. A Fase trabalhava
também com as comunidades ribeirinhas, em
Tapajós. Hoje, uma parte dessas comunidades
se reconheceu como indígena, mas, na época,
não queriam ser índios. Quando perguntáva-
mos: “Vocês são índios?”, eles respondiam:
“Índios, não!”. Outra parte do trabalho era
feito no Rio Amazonas, na região do Ituqui em
uma comunidade quilombola, que na época
também não se considerava assim, e outra
cabocla, formada pelas populações ribeirinhas.
Em meio a tudo, duas coisas me atraíam mais:
a possibilidade de reorganizar o movimento
sindical rural e a questão da defesa da terra.
No Ituqui, meses antes da minha chega-
da, as comunidades já tinham sido avisadas
de que a terra seria comprada por uma
grande empresa. Nosso trabalho, então,
se dirigiu imediatamente para ajudar na
re­sistência dessas comunidades. Foi uma
experiência interessante e me permitiu ver
que, no fundo, essas comunidades tinham
uma relação com a terra que não era base-
ada na propriedade, isso não existia. Eles
veneravam a memória ancestral da posse,
dos pais, dos avós, bisavós. Essa relação
com a terra, com a sua realidade, chamou
a minha atenção. Era a evidência de uma
relação que combinava várias formas de
sobrevivência, a pesca, a terra, as casas.
Apoiamos muito essa luta.
E conseguiram resistir?
Jean-Pierre – Sim, mas não foi fácil. Eu

OUTUBRO/2000
JUN / JUL 2005 67
entrevista

e uma colega da Fase, Cristina, fomos de- O trabalho seria na região de Pindaré, onde
nunciados. Correu um boato de que a Polícia viveu o sindicalista Manoel da Conceição, uma
Federal tinha dito que seríamos presos por região em que ainda havia gente do PCdoB na
subversão. Isso em um lugar pequeno, ima- clandestinidade. Era um clima barra pesada.
gina! A conclusão é que, durante três meses, Fiquei lá pouco tempo, menos de três meses,
onde a gente sentava ninguém sentava perto, mas organizamos um encontro de lideranças
ninguém ficava onde a gente estivesse. Até de agricultores e tirei uma foto. Das pessoas
hoje, as pessoas lembram da gente e desse fotografadas, duas morreram assassinadas,
trabalho, foi uma ação muito interessante. uma desapareceu e duas tiveram que fugir,
Além dos laços de amizade que fizemos, que ou seja, significa que mais da metade sumiu.
foram muito profundos. Foi uma época muito difícil e estranha, tinha
Nessa época, ainda havia a a grilagem por parte da família Sarney. Só
movimentação de tropas por causa assumi a direção da Fase em junho de 1978.
da Guerrilha do Araguaia? Você foi diretor durante
Jean-Pierre – Sim, mas naquela região a quanto tempo?
maior presença era a do Batalhão de Enge- Jean-Pierre – Fiquei sozinho até 1983. De
nharia, por causa da Transamazônica. Mesmo 1984 até 1986, dividi a direção com o Jorge
assim, o Serviço Secreto foi pesquisar sobre Eduardo Durão, que permanece até hoje. Tí-
nosso trabalho na região. Dissemos que a nhamos combinado que eu deixaria a direção
questão da terra era deles e não da Fase, que e assumiria um novo programa a partir de
estávamos ali para fazer hortas. A isso eles não 1987: eu seria o coordenador do programa de
atribuíam nenhuma importância. meio ambiente e desenvolvimento. Eu já havia
Outra coisa em que me envolvi muito convidado o Cândido Grzybowski, que também
no Pará foi a organização sindical. Como já era da Fase, para que trabalhasse comigo, mas
estava motivado para isso desde a França, fiz o dinheiro do programa não veio. Nessa época,
um convênio com pelegos e trabalhadores o Betinho vinha me cantando para que eu fosse
rurais para ajudar na formação das delegacias para o Ibase. Eu respondia: “Nem pensar, agora
sindicais. Fizemos uma cartilha que correu que deixei a direção da Fase, não estou louco
o Brasil inteiro chamada O que é sindicato. para assumir a direção do Ibase”. Ele convidou
Contribuímos para a formação dos primeiros o Cândido, que veio conversar comigo, e eu
sindicatos de trabalhadores rurais do país. Mas disse: “Aceita!”.
essa é uma outra história, foi depois que eu saí Acho que tive mesmo um papel importante
de Santarém. na história do Ibase. Antes mesmo de ser criado,
Você deixou Santarém para ser fiz parte de um grupo que deu apoio coletivo à
diretor nacional da Fase? idéia. Eram pouquíssimas as ONGs na época, tí-
Jean-Pierre – Não, deixei Santarém para nhamos muita credibilidade, e esse foi um apoio
ir ao Maranhão. A Fase estava estudando de peso. Conversei e também discuti muito com
um grande projeto, financiado por uma mul- o Betinho, inclusive sobre nossas trajetórias
tinacional suíça. Essa empresa dizia ter uma pessoais, mas creio que ajudei bastante. Depois
preocupação com o social e veio negociar com disso, trabalhei vários anos como consultor
a Fase. Só que eu saquei imediatamente que na Novib [agência financiadora holandesa] e
a coisa não iria para frente e que dali surgiriam participava das avaliações do Ibase.
contradições profundas muito rapidamente. Tinha ajudado também a criar a AS-

68 Democracia Viva Nº 9
27
Jean-Pierre Leroy

-PTA [Assessoria e Serviços a Projetos em mento dos Atingidos por Barragens] entrou,
Agricultura Alternativa], que, a princípio, mas outros poucos movimentos participaram.
era um programa da Fase voltado para a O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais
agricultura orgânica – na época era o que Sem Terra] não entrou, a Contag [Confederação
se trabalhava, depois é que começamos a Nacional dos Trabalhadores na Agricultura]
trabalhar a agricultura alternativa. Era uma participou mais ou menos. Mas, para a épo-
preocupação minha desde o tempo do Pará, ca, foi um leque bastante aberto que fez
achava que a agricultura, tal como eu conhe- com que o termo socioambiental ganhasse
cia, não dava. As pessoas não tinham capital peso. Era um encontro sobre meio ambiente
técnico, conhecimento para criar um modelo. e desenvolvimento, mas já com a perspectiva
Eu tinha visto muitas pequenas experiências socioambiental. Obviamente, isso não era
que considerava interessantes. A minha idéia muito evidente, os
era encorajar as pessoas envolvidas nessas ambientalistas não
experiências a se reunirem para propor alter- tinham es­sa tradição,
nativas à agricultura. Isso foi em 1982, 1983, a preocupação deles
hoje é conhecido como agroecologia. era específica com a
Como foi sua participação natureza.
na Rio 92? Muitos dos inte-
Jean-Pierre – Só em 1990 soubemos que grantes desse fórum
ocorreria a Rio 92, até então apenas as enti- não tinham essa per-
dades mais ligadas à questão ambientalista cepção socioambien-
sabiam. Não lembro como, mas passou nas tal, isso surgiu du-
minhas mãos um comunicado que se cons- rante as discussões
tituiria num coletivo de organizações. SOS sobre a importân-
Mata Atlântica, Vitae Civilis e o Centro de De- cia das populações
fesa da Amazônia já estavam nessa articulação. em relação ao meio
Soube que haveria um encontro em Nova Fri- ambiente. Mui­t os
burgo e achei que seria interessante participar. defendiam a Mata
Encontrei um clima horroroso de disputa, que Atlântica e a existên-
não entendi bem, porque se tratava de criar cia de parques e de
uma coordenação, assumir responsabilidades. sistemas de conser-
Acabei intervindo e me pediram para assumir vação, subestiman-
a coordenação do encontro para que não do a importância
terminasse mal. Tive sorte porque, como não das comunidades
era do meio, foi mais fácil apaziguar as coisas. e populações tra-
Depois, me pediram para entrar na coordenação dicionais. Quando
desse fórum. falavam de biodi-
Trata-se do Fórum Brasileiro versidade, falavam
de ONGs e Movimentos Sociais apenas da biodiver-
para Meio Ambiente sidade da natureza,
e Desenvolvimento? mas nunca pensa-
Jean-Pierre – Sim, mas na época se cha- vam, por exemplo,
mava Fórum Preparatório à Conferência da nas sementes do
Sociedade Civil à Rio 92. A idéia era fazer pequeno agricul-
uma conferência paralela à conferência ofi- tor. Foi durante os
cial e fizemos o Fórum Global das ONGs. Era debates da Rio 92
um fórum bastante abrangente; na coorde- que essa percepção
nação, eram cerca de 12 entidades. Estavam mudou. Essas pontes que se criaram talvez
lá as principais organizações dos movimentos sejam uma das coisas mais interessantes...
de mulheres, os vários setores do movimento Que outros resultados teve
negro, todos do movimento ambientalista, o Fórum Global das ONGs?
ONGs do campo mais social, ONGs ligadas Jean-Pierre – Ocorreram avanços em
ao desenvolvimento e à agricultura... A CUT vários setores para além do ambientalismo.
[Central Única dos Trabalhadores] esteve As feministas começaram a pensar sobre a
presente desde o começo, mas as suas sustentabilidade e sobre o meio ambiente,
bases participaram menos. O MAB [Movi- o movimento negro também passou a pen-

OUTUBRO/2000
JUN / JUL 2005 69
entrevista

sar além das suas questões. Começaram a ficou um pouco esvaziado. Mais recentemente,
pensar a sua relação com o meio ambiente houve um encontro importante em Belo Hori-
sustentável. Outro resultado foi que todos zonte, que mostrou que ainda há centenas de
acabaram questionando o que era esse mo- instituições motivadas. Acho que formamos
delo de desenvolvimento vigente. Mas o fato uma geração de pessoas com um determinado
de tornar inseparável a questão ambiental perfil e modo de pensar o meio ambiente.
da questão social foi a experiência mais Antes da Rio 92, havia uma luta de
interessante. especialistas ou de alguns grupos,
O Fórum Global foi um marco. Dentro como a luta pela terra.
dele, fizemos também o Fórum Internacio- O próprio Chico Mendes se dizia
nal, que discutiu os tratados. Tivemos muita um defensor da terra, não usava
abertura para essas discussões, tivemos o termo ambientalista.
diálogos intensos sobre o marco social, o Jean-Pierre – É verdade, Chico Mendes
marco do meio ambiente e desenvolvimen- nunca se denominou ambientalista, ele se
to, o marco da desigualdade... Ao olhar os denominava sindicalista. Só depois o termo
tratados, hoje, vemos que ficaram coeren- ambientalista se tornou positivo e bem-aceito.
tes, interessantes, reuniu gente de todo o Eu também nunca tinha me definido como
lugar. Acredito que foi algo único, ficou como ambientalista e fazia questão de dizer que
referência para vários encontros internacionais não era um.
que vieram depois. Mas hoje você se define como
Fizemos também, na época, um pequeno ambientalista?
livro que colocou as posições do coletivo: Jean-Pierre – Eu não me defino como
Meio ambiente e desenvolvimento: uma visão tal, mas no fundo acho que sou. Tenho uma
das ONGs e movimentos sociais brasileiros. trajetória ligada à pequena produção, ligada
Lembro muito bem de que a maioria das a várias regiões. Assessorei o Fórum PTA, um
pessoas que estavam na fórum de entidades que têm projetos alternati-
coordenação não acredi- vos para a agricultura. Acompanhei a trajetória
tava em tantos resultados, de entidades que caminhavam na direção da
mas passou por cima e se agricultura ecológica, das associações de base.
envolveu diretamente, o Considera que o conceito
Ibase também participou. de socioambientalismo já foi
Isso mostrou que, coleti- absorvido pela sociedade civil?
vamente, a gente podia Jean-Pierre – Acho que sim, hoje encon-
produzir algo e com uma tramos dentro da sociedade pessoas que têm
coerência razoável. intuitivamente o raciocínio de que a questão
A própria existência, ambiental é importante para o Brasil e que ela
até hoje, do Fórum tem a ver diretamente com as nossas vidas. A
Brasileiro de ONGs questão é que o socioambientalismo precisa
e Movimentos ser mais bem percebido pelos que estão nas
Sociais para lutas pelas mudanças.
Meio Ambiente e Foi um marco termos esse conceito na
Desenvolvimento Rio 92, e me preocupava com sua durabili-
é um resultado dessa dade. Quando houve a Rio+5, descobri que
articulação. Você seria duradouro ao retomar o contato com
continua algumas pessoas para animar um grupo e
na coordenação? montar um relatório. Todo mundo topou,
Jean-Pierre – Não, eu foi fácil juntar o grupo – foi um sinal de
fiquei na coordenação do amadurecimento enorme. O marco era cla-
fórum só até 1993 porque ríssimo, o socioambientalismo estava como
fui contra a sua continua- referência. Porém, mais uma vez ficaram de
ção depois da conferência. fora os conservacionistas. Para eles, conser-
Dizia que não podíamos vação é conservação, e o povo nada tem a
viver de lembranças, mes- ver com isso. Eles nunca abriram mão disso
mo que fossem boas, mas e estão evoluindo devagar. Mas também não
fui voto vencido. Continuei entraram certos movimentos sociais que fa-
a participar, mas o fórum zem um trabalho interessante, mas que nunca

70 Democracia Viva Nº 9
27
Jean-Pierre Leroy

colocaram o conceito socioambiental como não mais se aprofundou.


estratégia central. Eu me refiro especialmente, É claro que a sensibilidade
à época, ao MST e à Contag. Hoje, no caso ficou, o movimento sabe que
do MST, suas lideranças já absorveram esse o tema é importante, mas a
conceito, mas não está consolidado, e existem luta concreta não tem a ver
setores que não internalizam. Na Contag, com isso, não chegou a se
isso se deu por setores, mas efetivamente, incorporar como uma agenda
há limites. de trabalho permanente.
E o movimento feminista E do que se trata
incorporou esse conceito? o conceito
Jean-Pierre – Não, a situação é a mesma de racismo
que de outros movimentos. Hoje estamos que- ambiental?
rendo fazer uma ponte para tentar recuperar o Jean-Pierre – Em 2001,
debate feminista sobre a sustentabilidade, mas organizamos um seminário
não sabemos onde nem quem procurar. Esse em Niterói com uma pesqui-
foi um dos movimentos que fez um refluxo. sadora da UFF [Universidade
Precisamos estar entre mulheres, precisamos Federal Flumi­nense] e pesqui-
do Planeta Fêmea. Há momentos em que é sadores do Ippur [Instituto
importante discutir entre si, mas há momentos de Pesquisa e Planejamento
também em que conseguimos avançar justa- Urbano Regional] sobre jus-
mente porque nos abrimos para o diálogo, tiça ambiental. O pesquisador
para o confronto com outros setores. E Robert Bul­lard, dos Estados
acho que o movimento feminista não fez Unidos e especialista no as-
isso de maneira suficiente. Internamente, sunto, veio a esse encontro,
pode ser que tenha debate, mas falta efeti- onde nós criamos a Rede
vamente ampliar essa visão. A esse respeito, Brasileira de Justiça Ambien-
no primeiro Fórum Social Mundial, encorajei tal. Existem estatísticas que
a ONG Ser Mulher a organizar uma oficina mos­tram como os negros
sobre o que cunhei como a luta contra os são afetados pelo racismo
transgênicos e mercantilização do corpo da ambiental. Por exem­­­­plo, se
mulher, um só combate. A oficina teve quatro a maioria dos moradores de
pessoas: as organizadoras e eu, que fui dar favela é negra, esse grupo sofre mais as mazelas
minha solidariedade. Em 2005, com o apoio desse tipo de ambiente. Discutimos também
da Fundação Böll, fizemos uma oficina do sobre a situação do Quilombo de Alcântara e
mesmo tipo, aí vieram cem pessoas, estava em que medida seus moradores eram vítimas
cheio mesmo. Então, isso mudou. Mas veio de um racismo ambiental. O que ficou nesse
uma liderança de uma organização femi- seminário foi a idéia de que deveria existir no
nina e disse: “Jean-Pierre, eu fiquei muito Brasil o racismo ambiental, mas que não era
preocupada porque a gente nem conseguiu um conceito assumido pelo movimento negro.
se entender no nosso campo e você já quer Tanto que, neste ano, vamos fazer uma oficina
que a gente faça alianças”. Ela expressava de trabalho com várias organizações sobre isso.
como era difícil para a organização da qual Queremos saber o que o movimento negro tem
fazia parte refletir sobre essas questões e, a dizer sobre isso.
portanto, entrar para o debate público. Sabe Qual a sua avaliação dos impactos
que nos Estados Unidos um embrião de mulher do processo Fórum Social Mundial
branca e intelectual custa US$ 40 mil? Esse de- sobre o sociambientalismo?
bate é uma forma de trabalhar o feminismo e Jean-Pierre – Eu achava que a questão
a questão ambiental, mas veja como é difícil. ambiental teria mais presença no Fórum So-
Outro exemplo vem do movimento negro, cial Mundial, retomando desde o primeiro. Para
que foi bem atuante na Rio 92. Quem é ligado mim, meio ambiente somos nós dentro desse
ao candomblé sabe que não tem nada mais universo, somos nós dentro desse território e
próximo da natureza: os orixás são energias da como nos relacionamos com ele e que projetos
natureza. Mas isso ficou só em um grupo, de- temos para esse território, que cidadania
pois a gente não mais ouviu esse debate. Agora, para amanhã e cidadania para além do Bra-
é como se a questão negra só fosse ligada aos sil. Sempre achei que a questão ambiental é
quilombos. Houve um afastamento, o debate central. Culturalmente, filosoficamente ou

OUTUBRO/2000
JUN / JUL 2005 71
entrevista

espiritualmente, isso nos ajuda a repensar a ambiente, um tema que tem se


relação com o outro e os impasses do desen- destacado é a questão da água.
volvimento. Acho tão chocante o modo como Jean-Pierre – Isso é porque existem grandes
o território está sendo apropriado, privatizado, lutas pela água atualmente. É um debate no
acho que isso é uma questão central e pensei qual muita gente está antenada. Além disso,
que já haveria uma compreensão mais avança- existem os processos em curso em Cochabamba
da sobre isso. Portanto, quem quisesse discutir e, no Brasil, a questão da transposição do São
democracia, desenvolvimento, paz colocaria Francisco. O problema é que a discussão tem
a questão ambiental dentro. E não foi o que sido apenas técnica, no caso da transposição.
aconteceu, não é o que está acontecendo. Não se discute o futuro, temos essa dificuldade.
Sempre foi um tema à parte no Fórum Social Discutir a água é sair um pouco da água; discu-
Mundial. Quem tra- tir bacia não é falar de água. Para discutir o Rio
balha com a questão São Francisco, é preciso falar de qual projeto
ambiental tem difi- serve para a agricultura no Brasil, que futuro
culdade também de para a gestão do território teremos. Discutir
relacionar isso com apenas a água é mais fácil como gancho, mas
as outras questões, é também não teremos controle das conseqüên-
recíproco. Este ano, cias. Não temos outro projeto, outra proposta,
fiquei chateado ao talvez também por estarmos tão vencidos que
perceber que o prin- seja desanimador. Minha sensação é de que as
cipal evento ligado à pessoas têm medo de ser acusadas de utópicas,
questão ambiental – de não ter os pés no chão.
não lembro o nome, Os primeiros debates ambientais
era um evento brasi- falavam de problemas evidentes,
leiro, com a ministra por exemplo, da poluição dos rios,
[Marina Silva], meio do lixo. Hoje, fala-se de coisas
governamental, do como efeito estufa, um tema que
qual participaram não é tão visível. Existe um debate
muitas pessoas – conceitual que faz com que riscos
teve destaque por reais não sejam percebidos?
causa de algumas Jean-Pierre – O tema do efeito estufa e a
personalidades, e questão do clima é o campo onde se constitui
não por causa do um corpo científico que trabalha com técnicas
tema. Foi um evento extremamente sofisticadas de projeção, avalia-
brasileiro, em que ções de futuros. Há um campo internacional de
havia algumas pes- cientistas que já vem de duas ou mais décadas
soas estrangeiras, e que faz um lobby extremamente forte. Esse
mas não discutiu debate geral é supersofisticado, mas abstrato.
propostas para o Já a biodiversidade avançou menos porque não
desenvolvimento do tem o mesmo suporte científico, não há um
Brasil, para o futuro corpo científico tratando disso, é mais com-
do país. Isso marca, plicado. Mas é verdade que algumas questões
é um limite muito parecem tão distantes da nossa realidade que
nítido. Mas indo por não sabemos como encará-las.
dentro, em peque- Há efetivamente um descompasso muito
nos eventos, dava grande, e esse foi um dos motivos que nos le-
para achar muitos varam a criar a Rede de Justiça Ambiental. Meio
que faziam conexões, que ligavam uma coisa ambiente tem a ver com a nossa vida. Quando
com a outra. Mas mesmo assim o tema não discutimos clima com o pessoal do Pará, por
conseguiu se impor como uma idéia-força para exemplo, temos que mostrar que a época de
o coletivo. Acho que a referência para pensar o chuvas, que já foi de sete meses, é hoje de
futuro ainda é esse debate, a referência ainda apenas cinco meses; simplesmente dois meses
é muito esse desenvolvimento que temos. Não sumiram, isso é muito, muda muita coisa. Vi,
conseguimos nos deslocar ainda para pensar em Santarém, cupuaçu secar mesmo embaixo
com liberdade. de árvores, não rendeu nada porque há seca
Dentro da questão do meio que antes não havia. Não dá para falar simples-

72 Democracia Viva Nº 9
27
Jean-Pierre Leroy

mente do efeito estufa, mas das mudanças que importar para mudar os padrões de produção e
não se percebem a não ser quando acabam em consumo no país, quais seriam as conseqüên-
catástrofe, por exemplo, quando faltou energia cias para o Brasil?”. Minha resposta foi: “Que
elétrica. A grande questão é mostrar efetiva- tal consultarmos outras entidades para ver se
mente às pessoas que o meio ambiente é mais juntos encontramos uma resposta?”
próximo do que elas pensam e que pensar a Foi a mesma filosofia que apliquei na Rio
cidade, pensar água e energia é pensar a rela- 92, no lugar do ‘eu sozinho’, vamos tentar
ção da cidade com o meio ambiente, pensar nos consolidar, nos fortalecer; é uma questão
no entorno, na questão agrícola, nas áreas de metodológica que sempre persegui. Acho que
preservação, o tipo de agricultura, e por aí vai. a produção individual pode ser mais brilhante
Uma das grandes questões é justamente e mais aprofundada, mas a produção coletiva
não mostrar o que essas discussões têm a ver tem a vantagem de ter mais solidez, de repre-
com a nossa vida cotidiana. Mas um dado além sentar conceitos de forma mais ampla e de ter
é que não temos grandes expoentes, pessoas um conceito político mais forte. Considerei mais
que são capazes de pensar o que significa esse interessante perguntarmos o que seria um Bra-
dia-a-dia do meio ambiente, isso não se traduz sil sustentável, pois poderíamos dialogar com
em grandes cabeças, em porta-vozes. Na Índia, outros países a partir de uma posição nossa e,
temos a Vandana Shiva, mas aqui no Brasil não assim, não estaríamos apenas respondendo às
temos uma pessoa assim. Essa compreensão perguntas deles.
de meio ambiente não é algo automático para Então, decidimos ter um programa para
as pessoas em geral. Eu, depois desses anos refletir sobre o país numa perspectiva de
trabalhando com a justiça ambiental, vejo que pensar o que seria um Brasil viável no futuro
tropeço todos os dias, o tempo todo, no meio e como pensar de outro modo a sustentabi-
ambiente... lidade, o desenvolvimento, mais includente, e
Parte das suas reflexões tem que garantisse o futuro do território. Essa foi
um lado de militância, mas parte a perspectiva da criação desse programa, que
tem a ver com a sua atuação juntou a AS-PTA, o Ibase, o Pacs [Instituto Po-
no projeto Brasil Sustentável e líticas Alternaticas para o Cone Sul], o Ippur,
Democrático. Pode contar quando o Instituto de Economia da USP [Universidade
surgiu esse projeto e por quê? de São Paulo] e a Fase. Con­fesso que, com o
Jean-Pierre – Na Europa, também como tempo, ficou mais associado à Fase porque não
fruto da Rio 92, a instituição Amigos da Terra, conseguiu se manter como debate coletivo. Mas
de Paris, começou a se perguntar o que seria a idéia é essa.
uma ação sustentável num país que vivia afo- O Brasil tem que responder a algumas
gado em seu lixo, no estrume. Eles nos per- grandes questões. A questão do trabalho é
guntaram algo assim: “E se a gente parasse de uma. Não dá para refletir nada que tenha

OUTUBRO/2000
JUN / JUL 2005 73
entrevista

a ver com o meio se isso não tem a menor importância nesse


ambiente se não contexto? No governo, há quem pense que a
incorporarmos o economia dos caseiros é muito mais importante
que isso vai levar, do que a agricultura familiar, o rodeio é mais
o que isso vai aju- importante, então pronto, o agrobusiness deu
dar em termos de certo e vai em frente, e é isso o que acontece.
trabalho. A ques- Nos últimos anos, o crescimento industrial
tão da exportação, que tivemos é contraditório com qualquer pro-
levando em conta o jeto sensato para o futuro do país. Ninguém
perfil internacional pensa o custo de energia embutido nisso, é
do Brasil, é fun- tão inviável, não há perspectiva. E a energia vai
damental. Não dá para onde, para quem e para quê? Todos dizem
para pensar o que que o Brasil tem ainda um enorme potencial de
significa desenvol- água, só que isso significa a expulsão de milhões
vimento se não de pessoas. Estive em Minas, onde foram feitas
refletirmos sobre 13 barragens; isso significa que 30 mil pessoas
exportação em ter- vão perder suas terras. Em agosto do ano pas-
mos de uso dos re- sado, em Belo Horizonte, fizemos reuniões, e
cursos, em termos cada representante de comunidade vinha dizer
de degradação do o que significavam para eles essas barragens.
meio ambiente. A Algumas pessoas choravam do começo ao fim
qualidade da vida, da reunião. Além disso, todo o agrobusiness,
a questão da igual- incluindo os usineiros fraudadores e falidos do
dade, a questão Nordeste, agora falam de energia renovável,
da pobreza, como dizem que “o futuro está conosco”. O pior é
isso está relacio- que isso não é urgente de verdade porque a
nado com o meio economia é um debate mais urgente do que o
ambiente? Nossa idéia era dar uma visão desenvolvimento democrático. Só depois pode-
transversal, tentando responder a alguns mos discutir, participar. Refletir sobre o futuro
desafios para o Brasil, e avançamos um pouco do Brasil é chegar a um impasse.
nessa linha. Só que, no fundo, a gente acabou Quais alternativas seriam viáveis?
mostrando a incompatibilidade entre esse Jean-Pierre – Por exemplo, a agricultura
desenvolvimento tal como é hoje e qualquer ecológica. Há três anos, houve um encontro
possibilidade de sustentabilidade, de igual- nacional na Uerj [Universidade do Estado do
dade e de democracia para o futuro. Cada Rio de Janeiro] que reuniu 1.500 pessoas, com
documento que fizemos – e trabalhamos a uma vitalidade tremenda e, agora, certamente
questão da energia, da água, das florestas, há muito mais, muito mais. Se a agricultura eco-
mineração, questão urbana, cerrado, Ama- lógica ainda não tem a capacidade de mostrar
zônia – e qualquer tema misturado a essas impacto suficiente é porque não há políticas
questões transversais nos levaram a esse para isso. Se pegarmos a questão do transpor-
impasse. As reflexões que fizemos mostram te, temos alternativas, sabemos que existem
que são simplesmente inviáveis esse modelo, caminhos, mas não interessam. Construção
esse desenvolvimento, essa agricultura, es­ popular para resolver o déficit habitacional? Há
se tipo de industrialização para o Brasil. São vários modos de encarar isso, existem formas de
contraditórios a qualquer tipo de projeto sustentabilidade com aproveitamento de mate-
que queira possibilitar a sustentabilidade riais locais. O Brasil tem escolas de arquitetura
do território. e engenharia que vêm pensando em soluções
Quais os principais impasses nesse baratas, tem mutirões, tudo para fazer, mas a
modelo de desenvolvimento? legislação para fazer não sai. Em cada setor,
Jean-Pierre – Primeiro, se você quer partir vemos acúmulos fantásticos, mesmo no caso da
da necessidade de o Brasil dar conta dos seus energia. Energia com biomassa é possível, assim
compromissos internacionais, a exportação é como articular sistema diversificado de produ-
sempre o valor central; não há nenhuma refle- ção, criar uma descentralização maior... Mas
xão sobre que exportação, como e para quê. nada disso acontece, não há políticas para isso.
É só crescer e exportar, isso é dado como um Mas o projeto Brasil Sustentável
fato. Como vamos discutir agricultura familiar serve também para vermos a

74 Democracia Viva Nº 9
27
Jean-Pierre Leroy

urgência de retomarmos essas rio por onde passava a madeira que saía de
reflexões, em termos estratégicos. várias posses. Tinha ocorrido um conflito muito
Qual perspectiva você vê? Ou você grande, um grupo tinha queimado um barco do
está abandonando essa linha do movimento, uns tinham levado surra, e por trás
Brasil sustentável? estava o prefeito. Além disso, na Tran­samazônica
Jean-Pierre – Eu quase abandonei, pensei tinha sido assassinado o Ademir Alfeu Fede­ricci,
em ficar só na luta pelos direitos, mas percebi o Dema, coordenador do movimento pela
que ela era muito ligada à questão ambiental sobrevivência da Transamazônica e do Xingu,
e ao desenvolvimento. As pessoas lutam e são e a morte estava ligada, evidentemente, a sua
vítimas porque não têm qualquer projeto de liderança e proposições no movimento por uma
futuro. Então, voltamos às velhas questões. colonização diferente, uma outra agricultu-
Acho que temos que mostrar que o que es- ra, mais amigável,
tamos dizendo é que esse modelo não vai contra os grileiros,
para frente, que por aí vamos quebrar. Mas é contra a invasão das
importante mostrar que, sim, há alternativas, grandes fazendas e
elas existem, têm potencial. Temos que mos- contra a Usina de
trar isso com mais força porque atualmente Belo Monte. Tomei
uma entidade tem duas experiências, outra isso como ponto
tem três ou quatro, e não aparece como algo de partida. Também
substancial. Devemos voltar a fazer conexões havia a Dorothy em
e mostrar, por exemplo, que esse projeto de 1 Anapu.
milhão de cisternas não vai resolver sozinho o Uma luta
problema da água, porque tem que se basear parecida,
em um outro tipo de agricultura para o sertão. não?
Esse tipo de conexão mostra que outra gestão Jean-Pierre
de água é possível. Com o investimento que – Sim, em Anapu
seria usado para a transposição, poderíamos tinham criado o
dar uma injeção para mudar muita coisa. A projeto de desen-
produção, a microprodução, pode não parecer volvimento susten-
nada, mas pode permitir não só que a pessoa tável com apoio do
permaneça no mesmo local, mas também que Ministério do Meio
dinamize a microeconomia local. Esse é apenas Ambiente, mas que
um exemplo, mas, em muitas áreas, temos que também não es-
recuperar isso. tava se viabilizan-
Como foi a experiência de do. Também eram
ser relator nacional de direito madeireiros, mas
humano ao meio ambiente o ponto principal
da Plataforma Dhesc? eram os grileiros.
Jean-Pierre – É muito cedo para avaliar. Em Anapu, conse-
Mas a primeira coisa que vi com essa função g u i mo s f a z e r u m
é que existe um direito humano ao meio encontro secreto,
ambiente, mas isso não é evidente. A Cons- porque o clima de
tituição diz que todos têm direito ao meio medo era muito
ambiente brasileiro. Mas, conversando com grande, mas, nos
os outros relatores, começou a ficar confuso. outros lugares, em
Um dizia: “Sou relator para a alimentação, vou Porto de Moz, por
pegar a questão rural e a água”; o outro com exemplo, consegui-
a saúde, saúde do trabalho. Fiquei pensando o mos reunir 600 pessoas, todas se manifes-
que iria sobrar para o relator de direito humano tando publicamente. Acho que isso teve
ao meio ambiente, senão o direito de visitar par- um papel. Em Altamira, também tivemos
ques nacionais? Eu não sabia, decidi ir logo à bons resultados. Acho que demos ânimo às
luta para ver se aquilo fazia sentido. Fui pelo comunidades e despertamos o sentido da
mais fácil, pelo que conhecia melhor, o Pará. luta pela justiça ambiental. Um exemplo foi
Justamente na época em que havia proble- que o GTA [Grupo de Trabalho Amazônico]
mas sérios lá. Em Porto de Moz, os moradores, lançou a campanha “Na floresta têm direi-
apoiados pelo Green­peace, tinham bar­rado o tos, justiça ambiental na Amazônia”. Estou

OUTUBRO/2000
JUN / JUL 2005 75
entrevista

falando do Pará, mas isso ocorreu em várias custos desse desenvolvimento, o pobre, o
outras regiões. O primeiro passo foi mostrar trabalhador, o negro, a mulher. Os custos
às pessoas que elas têm esse direito, trazer desse desenvolvimento para eles chegam
essa visibilidade. da pior forma, agredindo sua saúde, suas
Por baixo da questão do direito, existem águas, tirando suas terras e por aí vai. Foi o
muitas pessoas e comunidades que se tor- que aconteceu com os negros nos Estados
nam invisíveis, e não falo só dos que estão Unidos, eram pessoas frágeis, e o lixo tóxico
no mato. Os atingidos, por exemplo, pelo era enviado para onde eles moravam. Nós
amianto, em Osasco, são invisíveis, quem estamos fazendo a mesma coisa, são os mu-
fala deles? Eles nem têm acesso aos seus nicípios sacrificados. São lugares onde tudo
prontuários médicos, isso lhes foi negado, é possível, quem vai reclamar? São pessoas
não têm história de doença. A justiça não re- pobres em lugares onde ainda predomina a
solve nada, e eles vão morrendo. O pessoal lei da pistolagem, quem vai reclamar?
da Associação dos Atingidos pelos Produtos Vi que efetivamente era esse o caminho,
Clorários, vítimas da multinacional francesa e conseguimos muita mobilização ao mostrar
Rhodia, em Santos, é outro exemplo dessa que o meio ambiente tinha relação estreita
invisibilidade. Durante 10, 20 anos, a Rhodia com toda essa situação. O projeto da Plata-
gerou um enorme impacto ambiental sobre forma Dhesc, com seus relatores nacionais, foi
os operários e sobre a população. apropriado principalmente por esses grupos
Muita gente neste país é considerada in- atingidos e permitiu que lutassem pelo resgate
visível, são grupos sociais que não interessam de sua dignidade, que voltassem a ser sujeitos
a ninguém ou porque já foram descartados de direito, cidadãos. Além disso, permitiu, em
ou porque nunca serão alvo desse desen- vários lugares, fazer encaminhamentos com o
volvimento. A luta pelos direitos é uma luta Ministério Público federal ou estadual ou órgãos
pela dignidade das pessoas, pela cidadania. de fiscalização.
A luta pela justiça ambiental, pelo direito Poderia citar alguns exemplos?
humano ao meio ambiente pode ser forte Jean-Pierre – Em Pernambuco, denun-
porque coloca em questão que a vida da ciamos uma fazenda que estava avançando
pessoa é a sua relação com seu futuro e com sobre um manguezal. O Ibama [Instituto
o desenvolvimento do país. Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recur-
Quando se fala em injustiça ambien- sos Naturais Renováveis] nos mandou um
tal, são sempre os mesmos que pagam os

76 Democracia Viva Nº 9
27
Jean-Pierre Leroy

relatório sobre as vistorias que fizeram no A questão que precisa ser debatida é séria. *Iracema Dantas
local e as decisões que foram tomadas para Além de repensar o país, de mostrar caminhos Coordenadora de
mudar aquela situação. No interior de Mato de desenvolvimento, precisamos recuperar o Comunicação do Ibase
Grosso, um grupo de pequenos agricultores sentimento de indignação com tanto desres-
Participaram desta
foi deslocado de uma área que virou reserva peito. Quando vi os 30 mortos na chacina da
entrevista: Cândido
indígena, Ouro Branco, para um assenta- Baixada Fluminense, pensei: “Como a situação Grzybowski, diretor-
mento chamado Liberdade. Só que, quando é a mesma, seja nos rincões do Brasil e aqui em geral do Ibase, e
chegaram lá, o assentamento estava ocupado nossa porta”. É a mesma lógica do desmando AnaCris Bittencourt,
por grileiros, produtores de soja. Eles viviam e do mando, aqui e lá. As populações mais subeditora da
em condições atrozes, não tinham organi- pobres, mesmo aqui do Rio de Janeiro, estão Democracia Viva.
zação, não tinham condições básicas de hi- tão distantes do poder e da classe média como
giene, não tinham nada. Fizemos denúncias a Dorothy estava lá em Anapu, a distância é
e demos coragem à turma de se mexer e a mesma. Aliás, quando estive com a Dorothy,
também interpelamos o Ministério Público. em Anapu, na tal reunião secreta que já falei,
A questão dos cinta-largas é emblemáti- ouvi relatos impressionantes sobre a ação de
ca. Estive lá em 2003 e escrevi um relatório grileiros. Ouvi coisas como: “ele tentou me atro-
informando as coisas graves que poderiam pelar no caminho, me joguei no mato porque
acontecer. Só não sabia que matariam escutei o carro”, “queimaram meu barraco, mas
brancos... Esses índios estavam em um felizmente, a gente tinha saído com a família
isolamento de dar dó, com processo nas algumas horas antes”. Dentro do possível, até
costas, com medo de sair. Uma das coisas contava que fosse ouvir isso. Mas o único mo-
que mais me chamaram a atenção em todo mento em que me vieram lágrimas nos olhos foi
lugar foi como as pessoas acham que são livres quando ouvi: “Sabe como os grileiros derrubam
para circular, mas não são. Há comunidades nossos lotes? Vão derrubando a partir da peri-
inteiras ameaçadas que não podem sair do feria, em direção ao centro e, quando chegam
seu pedaço porque têm medo de morrer. Era no meio, deixam uma moita e colocam fogo. O
o caso não só da Dorothy, mas também dos fogo vai se aproximando da moita, de longe, a
índios, a mesma situação... Mas o que a gen- gente escuta o grito dos macacos, dos bichos
te vê também é a dificuldade da Promotoria todos, morrendo asfixiados e queimados”. Para
Pública para realmente poder agir. Se isso não esses moradores, é como se os grileiros estives-
mudar, podemos tirar o cavalo da chuva, essa sem dizendo: “Olha como temos poder, somos
idéia de buscar o desenvolvimento sustentável os donos da vida e da morte”. Isso é realmente
para a Amazônia não vai ocorrer. A força do de dar lágrimas nos olhos.
poder público, se não for articulada, nada vale.
Mas o Ministério Público Federal
não tem atuado?
Jean-Pierre – É uma situação muito grave,
mas percebemos que é possível. O exemplo
do enfrentamento do trabalho escravo mostra
que há caminhos possíveis e que existe gente
a fim de colaborar em todos esses ministérios,
órgãos, na Polícia Federal etc. Basta dar con-
dições para essas pessoas agirem, o que não
ocorre hoje. Quanto mais o poder público
se ausenta de propósito, mais mostra sua
fraqueza, mas, de outro lado, mostrando
que a força está conosco. Outro dia, vi uma
reportagem em que madeireiros ilegais di-
ziam que não aceitam uma dada demarcação
indígena. Como não aceitam? São pilantras,
que praticam o contrabando de madeira, e,
com a cara mais lavada do mundo, dizem
que não aceitam a lei! Sabem que a lei existe,
mas sabem que não terão problemas. Esse
tipo de violação fica parecendo a coisa mais
normal do mundo.

OUTUBRO/2000
JUN / JUL 2005 77
c r ô n i c a

Quatro séculos
do maluco
Há exatos quatrocentos anos, Dom Quixote saúde mental – do que não o culpo nem me
de La Mancha encanta mortais de todas queixo, visto não ser exemplo para ninguém
as partes do mundo. Herói da literatura de – afirmo que ler o Dom Quixote estimula a
cavalaria andante, criado pela imaginação imaginação de qualquer pessoa, em qualquer
delirante do fidalgo Alonso Quijano, um vo- idade, entre outros prazeres. Quatro séculos
raz leitor da literatura de cavalaria andante, como o livro mais vendido do mundo, exceto
ele próprio fruto da delirante imaginação do a Bíblia, provam sua universalidade.
marinheiro Miguel de Cervantes, que preten- A primeira parte de O engenhoso fi-
deu escrever uma paródia para ridicularizar dalgo Dom Quixote de La Mancha foi escrita
a influência, para ele nefasta, da cavalaria em sete anos. Surgiu em Madri em janeiro de
andante. Obra de gênio, tomou as rédeas do 1605, a segunda, dez anos após. Na sábia,
autor, frustrou sua intenção e se eternizou feliz calma em que o escreveu, Cervantes
como a apoteose da literatura de cavalaria jamais sonhou um tal futuro para o livro – a
andante e primeiro romance moderno. Desde condição para se escrever uma obra eterna
a infância as proezas de Dom Quixote de La é não se propor a tal. Tolerante quando a
Mancha habitam minha imaginação – confis- Inquisição assava gente na fogueira, foi um
são, aliás, que serve aos que pretendam, como escritor atento ao sonho humano. Freud per-
Cervantes, usar meus delírios para provar que deu por ignorá-lo.
a literatura de cavalaria andante é nefasta às Nos transes de delírio que assombram
crianças. Malgrado eventual dano à minha a sua pacata vida de leitor, Alonso Quijano

78 Democracia Viva Nº 27
torna-se Dom Quixote. De lança e escudo, sai vontade de um, ora à de outro, e toca a vida, Alcione Araújo
pelas poeirentas trilhas da Mancha sobre o sem pensar em síntese. Vem daí o humor, alcionaraujo@uol.com.br
esquálido Rocinante, seguido pelo fiel Sancho para sublimar as angústias do existir.
Pança. Movem-no a heróica vontade de fazer Quando Quixote ataca gigantes com
justiça, a emoção da aventura, o desejo de se três braços, Sancho avisa que são moinhos
apaixonar. Seu sonho é restaurar o Paraíso de vento. O escudeiro convence o amo de
Perdido ou construir o paraíso na terra – so- que são moinhos e não gigantes? Jamais!
nho inaugural que a história humana apagou, Nem mesmo ferido, após o ataque, se rende:
mas que ecoa no mais profundo da nossa inventa o mago que transformara gigantes
consciência como valor eterno. O homem em moinhos para privá-lo da glória de vencê-
real, egoísta, ganancioso individualista e -los. No que Sancho jamais acreditará. Eis a
violento fez da meta de Quixote uma uto- metáfora da radical diferença de percepções
pia; do nome, o ridículo. O cínico posa de de mundo, que remete à dificuldade de co-
realista e chama de quixotesco o sonho de municação e irremissível solidão. O que não
Quixote. Para Cervantes, só um louco pode impede que o mundo gire, Quixote mande e
encarnar um ideal que o ser humano sonha, Sancho obedeça. A tragédia se insinua entre
mas sua vida nega. E metamorfosear Quijano risos, e sutilmente redesenha o herói como o
em Quixote é concretizar, na própria ficção, o Cavaleiro da Triste Figura.
que imaginamos ao ler. Quijanos sonhando ser Quixote encanta pela loucura da luta
quixotes, não nos identificamos com o pobre por ideais dos quais a razão desistiu – os
Quijano, mas com a fantasia dele, Quixote. humanistas, domesticados pela razão cínica,
Alonso Quijano convence o vizinho viraram técnicos em acomodação. Quixote,
a ser seu escudeiro em troca de imaginária como Cervantes, foi-se em agitação criativa
ilha a ser conquistada. Com Sancho, a dupla e penúria material: “Alonso Quijano, entre
inaugura a contrastação para representar lágrimas e quejas de quienes lo rodeaban, dio
as contradições e ambigüidades humanas, su espiritu; quiero decir que se murió”. Quatro
com a antinomia entre mundo real e ideal. séculos após a sua vinda, restam o quixotesco
Quixote, alto e magro, Sancho, baixo e gor- de anedota, frases divertidas, fugaz admira-
do; Quixote idealista, Sancho materialista; ção. Do ideal, apenas a glória do derrotado.
sonhador, realista; destemido, cauteloso; Venceu o pragmatismo de Sancho. Mas vale
aventureiro, acomodado; perdulário, sovina, a pena ler, quimeras são sempre divertidas;
etc. Homem real, o leitor sabe que Quixote a infância – ou a loucura – ainda mora na
e Sancho coexistem nele; ora curva-se à alma deste quixotesco cronista.

JUN / JUL 2005 79


r e s e n h a

e à função socioambiental da propriedade.


No âmbito infraconstitucional, enfoca a
lei que instituiu o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (Snuc), em
especial as categorias essencialmente
socioambientais por ela delineadas (re-
servas extrativistas e de desenvolvimento
sustentável), bem como esboça alguns
elementos fundamentais à construção de
um regime jurídico sui generis de proteção
aos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade.
O livro começa com uma análise
do desenvolvimento histórico e do con-
texto político e social do surgimento do
movimento socioambientalista no Brasil.
Inicialmente, discorre sobre as origens do
ambientalismo brasileiro e traça um breve
panorama de sua evolução histórica e de seus
Socioambientalismo principais marcos, essencial para uma me-
lhor compreensão da trajetória de alianças
e novos direitos com os movimentos sociais, que culminou
no socioambientalismo – movimento que
Juliana Santilli
desenhou a sua história e definiu os con-
Editora Peirópolis
ceitos e paradigmas que lhe são próprios.
303 págs.
Segundo Juliana, o socioambientalismo
desenvolvido a partir da segunda metade
O livro Socioambientalismo e novos direi- da década de 1980 e consolidado na década
tos surgiu de projeto de pesquisa da autora de 1990, principalmente após a Eco-92, foi
para obter o título de mestre em Direito na estabelecendo seus próprios conceitos e
Universidade de Brasília (UnB). Sua publi- paradigmas, que, por sua vez, foram sendo
cação é uma realização conjunta do Instituto incorporados cada vez mais ao discurso e
Internacional de Educação do Brasil (IEB) à prática política e jurídica.
e o Instituto Socioambiental (ISA), duas Quando, posteriormente, a autora
organizações com trajetórias e experiências analisa o processo constituinte brasileiro
distintas, mas cujos objetivos se unem na e o seu significado para a democratização
promoção do desenvolvimento sustentável da América Latina, abre reflexões críticas
na perspectiva socioambiental. sobre as grandes inovações em relação à
A autora traz uma análise sobre a in- tradição constitucional anterior e a inserção,
fluência do socioambientalismo no sistema na Carta Magna, de capítulos e artigos
jurídico constitucional e infraconstitucio- que plantaram as sementes dos chamados
nal brasileiro, enfocando especificamente “novos direitos” e lançaram as bases cons-
os dispositivos constitucionais referentes titucionais dos “direitos socioambientais”.
à cultura, ao meio ambiente, aos povos in- Esses direitos se inserem no contexto dos
dígenas e quilombolas (minorias étnicas)

80 Democracia Viva Nº 27
novos paradigmas jurídicos, com base sua concretização. São direitos histórica e
nos quais ela discorre sobre os disposi- democraticamente conquistados, e não se
tivos constitucionais dedicados ao meio enquadram nos estreitos limites do dualis-
ambiente, à cultura, aos povos indígenas mo público–privado, mas se inserem num
e quilombolas e à função socioambiental espaço público não-estatal. Os aplicadores
da propriedade, interpretando-os de forma e intérpretes dos direitos socioambientais
sistêmica e integrada. devem ser capazes de compreender o seu
A autora analisa a legislação infra- caráter inovador e a sua enorme generosi-
constitucional para demonstrar que a síntese dade conceitual.
socioambiental permeia todo o Sistema Insiste a autora em que a efetividade
Nacional de Unidades de Conservação, que dos direitos socioambientais exige um papel
privilegia a interface entre biodiversidade e proativo do Estado na sua promoção, por
sociodiversidade, influenciada pelo multi- meio de políticas públicas apropriadas e
culturalismo e pela plurietnicidade. específicas. Distinguem-se, portanto, dos
Juliana afirma que os “novos” direi- direitos “clássicos”, em que o papel do
tos socioambientais impõem a superação Estado se dá apenas na sua garantia, por
de conceitos velhos e surrados, como o meio de instrumentos repressivos quando
direito de propriedade absoluto e ilimitado, são violados. Os direitos socioambientais
que não admite restrições e limitações em só se efetivam mediante a ativa promoção
face de direitos socioambientais. Impõe-se de políticas públicas.
a superação do paradigma individualista Apesar de o trabalho fazer uma aná-
e economicista dos direitos consagrados lise de instrumentos normativos, procura se
pelo chamado direito “moderno”. Não só referenciar e se socorrer de conhecimentos
a propriedade, materialmente considerada, produzidos por outras áreas, especialmente
deve cumprir a sua função socioambiental, as ciências sociais e biológicas, além de
mas também a propriedade imaterial, conhe- estudos antropológicos.
cida como “propriedade intelectual”, que Socioambientalismo e novos direi-
até agora se limita a proteger as inovações tos é uma viagem pelo processo de luta e de
geradas pelo saber considerado científico, reconhecimento da diversidade cultural brasi-
tecnológico. A propriedade intelectual leira realizada por índigenas, seringueiros(as),
deixa, dessa forma, de cumprir qualquer quilombolas, pescado­res(as), agricultores(as)
função social ou ambiental. familiares e outros segmentos sociais que
Os “novos” direitos socioambientais emergem no cenário pós-democratização
rompem com os paradigmas da dogmática como atores políticos contemporâneos. Essa
jurídica tradicional, contaminada pelo viagem ainda está em curso, em processo de
apego ao excessivo formalismo, pela falsa afirmação de direitos sobre a biodiversidade
neutralidade política e científica e pela e sobre os conhecimentos tradicionais a ela
excessiva ênfase nos direitos individuais, associada.
de conteúdo patrimonial e contratualista, de
inspiração liberal. Para a autora, os “novos” Alejandra Leonor Pascual
direitos, conquistados por meio de lutas Professora adjunta da Faculdade de
sociopolíticas democráticas, trazem novos Direito da Universidade de Brasília (UnB)
desafios à ciência jurídica, tanto do ponto
de vista conceitual e doutrinário como de

JUN / JUL 2005 81


pessoas que têm seus direitos violados (em sua
maioria, pessoas com baixo poder aquisitivo)
serem atendidas pelas leis existentes, pois faltam
estrutura e recursos para garantir esse acesso.
A questão dos direitos humanos no
Brasil possui elementos que agravam, ainda
mais, a situação de alguns grupos. Se olhar-
mos a questão dos direitos humanos pelo viés
étnico, por exemplo, vamos descobrir que a
desigualdade no Brasil possui cor, ela é negra.
Essa parcela da população não só é excluída
de seus direitos, mas também é a principal
vítima da violência institucional. E a história
recente do país nos mostra isto: chacina de Vi-
gário Geral, chacina na Baixada Fluminense;
massacre em Eldorado dos Carajás, massacre
no Carandiru, o caso da favela Naval em São
Paulo, entre outros.
A partir da Constituição de 1988, o
Direitos humanos no movimento social brasileiro ganhou fôlego.
Brasil – Diagnósticos Por meio da Carta Magna do país, foram
abertos novos canais de participação (resul-
e perspectivas tado de muita luta por parte dos movimentos
Cláudio Moser e Daniel Rech (Orgs.) sociais da época) e, dessa forma, foi possível
Ceris – Centro de Estatística Religiosa ampliar a capacidade da sociedade civil de
e Investigações Sociais monitoramento e controle social aos governos
412 págs. – principalmente em conselhos. Mas não foi só
a Constituição, outros documentos puseram na
ordem do dia a defesa dos direitos humanos, e
Durante muitos anos no Brasil, principalmente todos eles tiveram ampla participação popular.
a partir da década de 1960, a luta pelos direitos Contudo, o simples fato de termos uma
humanos esteve ligada exclusivamente à Igre- legislação específica para a área de direitos
ja Católica. No início, a luta era por direitos humanos não quer dizer que concretamente
políticos e civis e depois se voltou para toda eles serão respeitados. Exemplo disso é que,
uma gama de direitos que garantem a digni- no Brasil, assistimos à execução de muitas
dade humana: direitos econômicos, direitos lideranças de movimentos sociais e de orga-
culturais e direitos sociais, entre outros. Com nizações populares que apenas queriam ver
o fim da ditadura militar, esses direitos foram esses direitos respeitados.
parar em nossa Constituição Federal e muitos São estes 45 anos de luta no Brasil
até possuem uma legislação específica (direito que o livro organizado por Cláudio Moser e
à saúde e direito à moradia, por exemplo). Daniel Rech analisa, mostrando o que já foi
Porém, mesmo hoje, quando o Brasil já possui feito e o que ainda está por fazer. A divisão
uma Secretaria Especial de Direitos Humanos, dos capítulos do livro não segue a mesma linha
vinculada diretamente ao gabinete do presidente adotada pelo Pacto Internacional dos Direitos
da República, ainda estamos longe de ver as

82 Democracia Viva Nº 27
r e s e n h a

Civis e Políticos (PIDCP) e nem pelo Pacto década de 1960 – que privilegie o pequeno
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais produtor em vez da produção voltada para
e Culturais (PIEDSC). O conteúdo do livro exportação. Ainda figuram como problemas
tem como base a junção desses documentos da realidade agrária brasileira esvaziamento
e trata de analisar as condições necessárias do campo, baixa remuneração da agricultura,
para que haja respeito, proteção e promoção trabalho escravo, elevação dos custos de pro-
dos direitos humanos no Brasil. dução, perda da diversidade e muitos outros
O primeiro capítulo trata da questão do que comprometem uma gama de direitos. Para
desenvolvimento e meio ambiente, escrito por termos esses problemas resolvidos, o autor
José Augusto de Pádua, professor da Univer- aponta como solução uma reforma agrária
sidade Federal do Rio de Janeiro. O autor diz ampla, o fortalecimento da agricultura familiar,
que um meio ambiente degradado trará como ampliação da produção de alimentos ecológi-
conseqüência uma vida social degradada. De- cos e desenvolvimento local sustentável. Essas
monstra, ainda, que o meio ambiente deve ser políticas públicas transformarão as relações no
pensado não só como algo a ser preservado, ele campo, que hoje se apóiam no clientelismo, e
deve ser visto como direito e que o caminho passarão para uma nova fase na qual homens e
que queremos seguir (para algumas pessoas, já mulheres do campo conduzirão seus próprios
estamos nesse caminho) rumo ao desenvolvi- destinos.
mento tem que ser sustentável também do ponto Além de sete capítulos, o livro traz ainda
de vista ambiental. Nesse capítulo, enumera-se uma sessão especial com enfoques específicos
uma série de problemas que afetam diretamente nas seguintes áreas: afrodescendentes, crianças
o meio ambiente, tais como: espaços urbanos e adolescentes, idosos e idosas, povos indígenas,
com grande contingente populacional, falta de migrantes, pescadores e pescadoras e pessoas
saneamento básico, falta de acesso à energia, um portadoras de deficiência. Vale ressaltar que,
número ainda grande de pessoas que migram embora apareçam num capítulo separado, esses
para as cidades, contaminação por agrotóxicos, temas estão presentes nos primeiros capítulos do
desmatamento, lixões, enchentes etc. Todos livro, pois todos(as) os(as) au­tores(as) acredi-
esses problemas, segundo o autor, devem ser tam que, para resolver o problema dos direitos
enfrentados para que se possa garantir o direito humanos no Brasil, é necessário trabalhar
humano a um meio ambiente saudável. cada item transversalizado pela questão de
Já o terceiro capítulo trata da realidade gênero, raça-etnia etc.
agrária brasileira e foi escrito por Daniel Rech, O livro é uma obra imprescindível para
técnico do Centro de Estatística Religiosa e aquelas pessoas que se ocupam das questões de
Investigações Sociais (Ceris). Ele aponta como direitos humanos no Brasil, atores da sociedade
problema crucial da área o seguinte item: traba- civil e integrantes dos governos, pois, somente
lhadores e trabalhadoras rurais não têm direito trabalhando unidos, esses dois grupos serão ca-
à terra, à liberdade e ao trabalho. O estudo as- pazes de criar soluções para as políticas públicas
sinala que no Brasil ainda persistem as grandes na área de direitos humanos, contribuindo para
propriedades, e isso influencia diretamente a a melhora substancial da qualidade de vida da
luta pela posse da terra, diminui a capacidade sociedade brasileira.
produtiva, favorece a especulação imobiliária e
aumenta o número de pessoas sem terra. Além Luciano Cerqueira
disso, mostra que o país carece de uma política Cientista político, pesquisador do Ibase
agrícola – a qual existiu somente no fim da

JUN / JUL 2005 83


Carlos Carvalho/Brasil imagens

84 Democracia Viva Nº 27
O projeto de transposição das águas do Rio São Francisco é um dos carros-chefes do pre-

sidente Lula e também uma das maiores polêmicas em seu governo. Nos últimos grandes

encontros realizados pela sociedade civil organizada – como o Fórum Social Mundial

2005, em janeiro, ou o Fórum Social Nordestino, em novembro de 2004 –, debates,

passeatas e manifestações fizeram ecoar um rotundo “não!” à idéia. Até mesmo dentro

do governo, as opiniões estão divididas. Agora, existe a possibilidade de a população

contribuir com esse debate, por meio de um plebiscito popular que seria realizado no

primeiro domingo de outubro de 2006, simultaneamente ao primeiro turno das eleições.

O Projeto de Decreto Legislativo (PDC) foi apresentando em maio e aguarda votação. A

proposta de transpor as águas do Rio São Francisco como saída aos problemas causados

pela seca no semi-árido nordestino é histórica, surgiu na época do imperador Pedro II

e voltou à tona com força na década de 1980, mas sem sucesso. O projeto atual está

em tramitação na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e deverá

passar também pelo crivo das Comissões de Minas e Energia e de Constituição e Justiça e

de Cidadania. Nesta edição, a revista Democracia Viva busca contribuir para este debate,

trazendo os olhares do engenheiro agrônomo Sérgio Pinheiro Torggler, que aborda os

aspectos econômicos do projeto; e da feminista Carmen Silvia Maria da Silva (da ONG

JUN / JUL 2005 85


transposição das águas do rio são francisco

Perpetuação do assistencialismo
Sérgio Pinheiro Torggler
Engenheiro agrônomo

A defesa do projeto de transposição do Rio São Francisco está baseada na alegação


de que tecnicamente o projeto pode ser feito, devendo gerar um pólo de agricultura
irrigável no polígono das secas, fixando e gerando renda no sertão do Nordeste, e
que esses benefícios justificam por si sós os investimentos de R$ 4,5 bilhões (US$
1,67 bilhões). Já as críticas ao projeto apontam apenas os aspectos ligados ao
volume de água retirado do rio e seus efeitos no aspecto de potencial hidráulico,
de irrigação e de natureza ambiental na porção a jusante do desvio. Esta análise
busca demonstrar que os efeitos econômicos do projeto são relevantes e que os
malefícios econômicos serão enormes para a sociedade brasileira, representando uma
transferência de recursos de contribuintes para o beneficiamento de poucas pessoas,
que serão subsidiadas com esse projeto por décadas.
Como tem sido debatido, a destinação maior do projeto é a criação de núcleos de agricultura irrigável.
Assim, o que procuraremos demonstrar é a viabilidade de se cobrar o custo real da água transportada

da atividade agrícola e verificar, desse modo, mado pelo custo da energia consumida, ou seja,
a viabilidade da iniciativa. Ou seja, o processo custo aplicado ao processo. O segundo grupo é
será comparar os custos da água transportada constituído dos custos fixos, representados pelos
como fator de produção agrícola, apurando a custos administrativos operacionais, depreciação
participação desse custo na receita bruta de e juros; esses custos fixos independem do volu-
agricultores e agricultoras. me de água transposta, existindo mesmo que o
Para que se possa demonstrar inequivo- projeto não opere.
camente a tese levantada, é preciso conhecer Sempre que possível procuraremos
os custos do projeto, mais particularmente o trabalhar com unidades que permitam com-
funcionamento dos processos físicos de trans- paração, ou seja, reais por metro cúbico (m3),
posição e suas grandezas. O cerne do projeto metro cúbico/hectare (m3/ha), e, assim, no fim,
é representado por dois números: o primeiro é será possível avaliar diretamente os efeitos nas
a capacidade nominal projetada de transportar atividades beneficiadas pela água – agricultura
60 m3/s, ou seja, o volume a ser desviado, e o ou consumo humano.
segundo e mais importante número é a altura
de recalque (metros) – uma vez que essa água
Análise do custo variável
será bombeada morro acima para transpor a
barreira geográfica entre as bacias hidrográ- O custo da energia consumida para o bombe-
ficas, no caso 160 m de altura (475–315 m). amento da água é praticamente a totalidade
No entanto, haverá recuperação de parte da do custo variável dessa atividade, uma vez que
energia despendida no bombeamento pela o bombeamento é a única atividade realizada
geração de energia hidroelétrica na descida, com relação direta e proporcional ao produto.
sendo que as colunas de água úteis na geração A quantidade de energia consumida na atividade
somam 92 m (472–380 m). Mas como há per- pode ser calculada utilizando-se o padrão teórico
das na conversão da ordem de 30%, pode-se da quantidade de energia para erguer água, no
dizer que a energia recuperável equivale a um caso utilizaremos o quilowatt-hora (kWh), sendo
desnível de 64 m, permitindo, assim, calcular que 1 kWh corresponde à energia necessária para
que a altura líquida total a ser bombeada será elevar 1 m3 de água a 360 m de altura, ou 360
de 96 m (veja figura a seguir). m3 de água a 1 m de altura.
Quando o projeto estiver em funciona- Na transposição, cada metro cúbico
mento, teremos dois custos a serem analisados. transposto deverá ser recalcado (erguido) 96 m
O primeiro grupo é dos variáveis, basicamente for- de altura, ou seja, teoricamente consumirá 0,27

86 Democracia Viva Nº 27
perpetuação do assistencialismo

kWh (96 m/360 m). No entanto há de se aplicar do horário de pico). O padrão internacional do
um fator de eficiência da conversão, uma vez custo de kWh (sem diferenciação) é da ordem
que no bombeamento há perdas por meio de de US$ 0,10 por kWh. Portanto, para nosso
calor e atrito, devendo ser aplicada mais ener- raciocínio, utilizaremos doravante o menor
gia que o cálculo teórico, sendo que o índice custo (US$ 0,05/kWh).
normal das bombas de mercado apresenta 70% Resta agora apurar o custo do metro
de eficiência (índice para calcular a potência cúbico transposto, multiplicando-se o consumo
real de saída usando a potência nominal de de kWh/m3 pelo custo. O resultado é igual ao
consumo motor). De outra forma, o índice produto de 0,38 kWh/m3 por 0,05 US$/kWh,
pode ser de 142% quando se calcula a entrada dando custo de 0,019 US$/m3.
(motor) a partir da saída (água transportada). Quando se faz bombeamento em pe-
Assim, cada metro cúbico transportado com quenos projetos, quase a totalidade da água
consumo teórico de 0,27 kWh exigirá uma bombeada é utilizada na irrigação, mas em
demanda real de energia de 0,38 kWh (0,27 x projetos desse porte, que utilizam canais
1,42 ou 0,27 / 0,70). construídos e naturais por longas distâncias, é
Conhecido o consumo de kWh para preciso considerar as perdas por evaporação,
cada metro cúbico transportado, precisa- vazamento e infiltração. No caso, para faci-
mos transformar esse consumo de energia litar os cálculos, mas não sendo muito fora
em custo monetário. A discussão será a das perspectivas reais, consideramos que as
determinação do valor do kWh, podendo perdas serão de 50%, ou seja, de cada 100
seguir diversos caminhos: um deles é apurar m 3 bombeados apenas 50 m3 serão utilizados
o custo real da concessionária geradora e em agricultura irrigada comercial. Assim, para
distribuidora; outro é adotar o valor aplicado se cobrar a energia gasta no sistema, o custo de
a outros consumidores de mesma atividade energia da água utilizada será de 0,038 US$/m3.
(tarifa diferenciada da agricultura de outras Agora devemos apurar o impacto desse
regiões) ou também usar o valor-padrão de custo na atividade agrícola, para uma unidade
custo internacional. de área-padrão de 1 ha, ou seja, comparar a
A primeira alternativa, cálculo do custo receita bruta de 1 ha de milho com a despesa
da concessionária, é difícil e complexa, não de água gasta nessa mesma área.
cabendo seu uso aqui. As atividades que rece Para facilitar os cálculos, admitimos os
bem energia elétrica com custo diferenciado, seguintes parâmetros da lavoura de milho em es-
tais como indústria e irrigação, pagam uma tudo: cem dias de irrigação, produtividade 150 sc/
média de US$ 0,05 por kWh consumido (fora ha (saca por hectare), consumo de água de 50 m3/

Figura

JUN / JUL 2005 87


transposição das águas do rio são francisco

dia. A receita bruta de 1 ha será o produto de mais 0,24 kWh (a altura útil da usina de Paulo
150 sc (alta produtividade, 9.000 kg/ha) vezes Afonso é de 85 m), totalizando uma perda de
preço de 8,52 US$/sc, totalizando US$ 1.278. 0,62 kWh/m3. Se o sistema de transposição
A despesa de água será calculada pelo operar um mês a plena carga, representará um
produto do consumo de 50 m3/dia (média da “aumento” de consumo de energia do sistema
região do São Francisco) por cem dias e pelo da ordem de 95 milhões de kWh.
preço de custo de 0,038 US$/m3, totalizando
190 US$/ha, equivalente a 14,9% da receita
Análise dos custos fixos
bruta.
Esse custo é aparentemente suportável, Nesse projeto, identificamos três grandes grupos
mas implica uma de custos fixos: os operacionais administrativos, a
perda de competiti- depreciação da obra e os juros do capital investi-
vidade permanente do. Os custos fixos são, por natureza, proporcio-
da atividade perante nais ao tempo, e não à produção, isso implicando
as demais áreas agrí- que existirão se o sistema operar em plena carga
colas que tenham ou não funcionar. Nesta análise, utilizaremos
alta produtividade e como unidade de tempo o ano, apurando-se as
não utilizem irriga- despesas anuais, e depois dividiremos pelo volume
ção. Também é rele- de água transportada.
vante constatar que O custo operacional administrativo
esse custo é apenas anual deverá ser da ordem de R$ 30 milhões,
da energia e que pro- sendo suas premissas calculadas seguindo este
jetos normais de irri- raciocínio: haverá de ser constituída uma em-
gação trabalham com presa pública para gerir as atividades, com os
recalques hidráulicos devidos cargos de confiança políticos, os cargos
muito menores, da técnicos gerenciais e os cargos operacionais
ordem de algumas de administração e manutenção. Em virtude
dezenas de metros, do caráter público e do tamanho da obra,
e trabalham próximo além das pressões políticas, estimamos que a
da eficiência máxima atividade terá 500 funcionários(as) diretos(as)
de utilização da água, a um custo médio de R$ 3.000 (lembramos
ou seja, apenas uma que englobam os custos indiretos), totalizando
fração do custo ener- despesa anual de R$ 18 milhões. Acreditamos
gético desse projeto. que haverá uma despesa adicional de R$ 12
Essa energia milhões para manutenção das bombas, frota de
está sendo dispen- veículos, maquinários, despesas administrativas,
sada apenas para viagens, refeições etc.
dis­ponibilizar a água A cobrança do custo de depreciação no
para as propriedades preço do produto entregue representa a recu-
ribeirinhas da bacia peração do capital investido ao longo da vida
recebedora. Para que útil estimada do projeto. Nesse sentido, seria a
essas propriedades forma de o governo recuperar os impostos que
se utilizem dessa investiu no projeto sem subsidiar consumidores
água para irrigação, e consumidoras finais do produto ou serviço
ainda haverá a ne- oferecido. No caso desse projeto, em que a
cessidade de recal- maior parte do investimento é para a constru-
ques adicionais até a área de cultivo. ção de canais, aquisição das bombas e linha de
Dos cálculos energéticos podemos retirar transmissão, a vida útil média foi estimada em
uma crítica secundária, mais relativa ao efeito 30 anos e o investimento total apontado pelo
dessa obra no sistema elétrico regional, que se- governo é de R$ 4,5 bilhões. Assim, calculamos
guiria o seguinte raciocínio: cada metro cúbico que a despesa anual de depreciação seria de
bombeado consumirá diretamente 0,38 kWh do R$ 150 milhões.
sistema regional de geração mais a perda da O cálculo dos juros pressupõe que o
energia que o mesmo metro cúbico produziria governo recuperará a depreciação, cobrando na
se fosse utilizado na geração, calculado em tarifa de usuários e usuárias, e assim o saldo médio

88 Democracia Viva Nº 27
perpetuação do assistencialismo

devedor nos 30 anos é estimado pela média do Quando somamos os custos variáveis
saldo devedor inicial e final, R$ 4,5 bilhões e zero, aos custos fixos, a situação fica pior, o custo do
ou seja, R$ 2,25 bilhões. Aplicamos juros anuais m3 sobe para 0,338 US$/m3, fazendo com que
de 12% sobre esse saldo, resultando em uma as despesas de água atinjam a cifra de 976 a
despesa de R$ 270 milhões. Lembramos que a 1.353 US$/ha. Isso corresponde somente o cus-
taxa de 12% ao ano é inferior à taxa básica de to água, sem com­putar os custos de semente,
financiamento da dívida pública, mas entendemos adubo, ma­quinário, mão-de-obra, diesel, ma-
que 12% são uma boa estimativa para prever a nutenção, administrativa, juros, defensivos etc.
média dos próximos 30 anos. Assim, na vi­da real, a cobrança do custo da
Somando os três grupos de despesas transposição a usuários e usuárias finais inviabili-
fixas, chegamos ao valor de R$ 450 milhões zará a atividade agrí-
ou US$ 167 milhões anuais, que deveremos cola, atividade que
apropriar ao volume de água transportado para justificaria o projeto
apurar o custo na unidade US$/m3. por propiciar a redu-
Caso o projeto opere o ano inteiro na ção da miséria e faria
capacidade plena, teremos um volume de água a inserção da área na
transposto de 1.892 milhões de metros cúbicos, economia competiti-
resultando em um custo fixo por metro cúbico va, criando empregos
de US$ 0,09. e melhorando a renda
No entanto, sabemos que o bombea- do(a) trabalhador(a).
mento não poderá operar o ano inteiro, devendo Críticos desta
haver um período em que não se poderá retirar análise poderão ques­
água do Rio São Francisco, digamos quatro tionar afirmando que
meses por ano, e também, mesmo no período a cultura do milho
normal de operação, nos horários de pico (3 h/ é uma atividade de
dia), as máquinas deverão ser desligadas para não baixa rentabilidade
sacrificar o sistema de geração de energia com e que fruticultura e
sua demanda extra. Aplicando-se a capacidade outras culturas po-
nominal de 60 m3/s sobre as horas efetivamente deriam proporcionar
operadas, o volume a ser transportado será de maior rendimento
1.088 milhões de metros cúbicos, resultando por área e, assim,
em um custo fixo de 0,15 US$/m3. serem mais viáveis
Apurados os prováveis custos fixos por mes­mo com o custo
metro cúbico, podemos avaliar o impacto no de irrigação. Real-
custo de produção do milho, que tem um mente, a participação
consumo estimado de 5.000 m3/ha, ou seja, do custo da água so-
o custo fixo, se cobrado na água transportada, bre o rendimento da
representará uma despesa de 440 a 765 US$/ha, cultura pode ser me-
comprometendo de 34,5% a 59,9% da renda lhor na fruticultura,
bruta do hectare de milho. mas afirmamos, sem
Esses cálculos estimam que toda água precisar fazer conta,
transportada será utilizada em atividade pro- que o custo não será
dutiva, sem haver qualquer perda, fato que inexpressivo e será
na vida real será impraticável. Acreditamos sempre uma fonte
que, dificilmente, 50% da água transportada de risco e perda de
será utilizada na agricultura, pois o transpor- competitividade da
te na porção posterior ao bombeamento se atividade.
utilizará em grande parte de canais naturais e
percorrerá longas distâncias, com perdas por
Subsídio da sociedade
evaporação e infiltração. Assim, considerando
a perda estimada, o custo fixo subiria para Mas o que significa a não-cobrança dos custos
US$ 0,30/m 3, implicando que a água utilizada ao(à) usuário(a) final? Significa subsídio que
na lavoura de milho consumiria 880 a 1.530 o restante da sociedade pagará por meio de
US$/ha ou 69% a 119,8% da renda bruta da impostos para cobrir o déficit público. No caso
cultura. dessa obra, se a população economicamente

JUN / JUL 2005 89


transposição das águas do rio são francisco

ativa for de 60 milhões de brasileiros e brasilei- dem bancar qualquer capricho de governan-
ras, cada um(a) terá de recolher US$ 2,70 anuais, tes. O erro, nesse caso, é gerado pela falta de
apenas para custear esse projeto de irrigação, consulta ao seu corpo técnico, seguindo uma
pelos próximos 30 anos. orientação com isenção política e financeira.
Quem se beneficiará, primeiramente, A eficiência do investimento, pro-
serão proprietários de terra: calculamos que, porcionando retorno positivo para a so-
se 60% da água transportada for utilizada em ciedade, deve ser o parâmetro que norteie
irrigação (653 milhões m 3) e que sejam feitos os investimentos públicos. Deve-se procurar
dois ciclos culturais na mesma área ao ano, identificar um ganho de longo prazo maior
esse projeto proporcionaria uma expansão da que o custo de desenvolvimento. Podem-se
área agrícola de 65 mil ha. Proprietários dessas enumerar diversos projetos, das mais diver-
terras ganharão a valorização imobiliária, pois sas naturezas, que poderiam melhorar essa
suas terras passarão a ser “competitivas” com mesma região, com custo menor e retorno
as melhores terras do país, proporcionando um que proporcione a independência da região
ganho de US$ 1 mil a US$ 5 mil /ha. das tetas federais, tais como: investimento
Além disso, políticos da região ganha- em turismo temático do interior nordestino,
rão mais cargos políticos para preencher, e pesquisa agropecuária para desenvolver
as construtoras ganharão grandes obras para técnicas ou culturas próprias para o clima,
executar. Não cabe discutir a lisura dos ganhos melhoria da infra-estrutura de transporte
desses agentes ou das possibilidades de ganhos para baratear o custo de insumos e de
fraudulentos nas obras, pois muitos deles são escoamento da produção das atuais áreas
passivos na história, tais como fazendeiros que irrigadas ribeirinhas do São Francisco.
serão subsidiados e construtoras que terão o A obra de transposição nesse aspecto
ganho com essa ou outra obra mais “eficien- está condenada ao fracasso: ou se tornará
te”. O que é pertinente é a responsabilidade um grande elefante branco ou se tornará um
de se decidir por uma obra que perpetua o mecanismo de transferência de riqueza que
assistencialismo, cria e pereniza uma atividade beneficiará poucas pessoas.
deficitária para ser custeada pela sociedade
brasileira como um todo.
A decisão de fazer uma obra inviável
economicamente é o mesmo que construir
uma pirâmide, acreditar que contribuintes po-

Lógica do absurdo
Os projetos de irrigação viáveis são aqueles
que, por atribuição, conseguem transportar
dividimos o investimento de R$ 4,5 bilhões por
água pelo menor custo. Os parâmetros que
65 mil ha, que chega a um custo de R$ 69.230/
condicionam são distâncias e alturas de re-
ha (25.641 US$/ha), custo superior às melhores
calque. Áreas próximas ao rio e de topografia
terras do Brasil e equiparando-se ao custo de
plana são as áreas ideais em termos de custo/
terras agrícolas nos Estados Unidos. Não ficaria
benefício, constituindo a já parcialmente ex-
mais barato comprar terras no Paraguai ou no
plorada margem ribeirinha do São Francisco.
Centro-Oeste, transportar os nordestinos que
Existem vários pequenos projetos (em relação
seriam beneficiados pela irrigação para lá cons-
à transposição) nas margens do São Francisco
tituírem suas atividades agrícolas de subsistência
paralisados por falta de recursos, mas que re-
e transformar parte do polígono das secas em
únem ótimas condições para projetos agrícolas
um imenso parque nacional? Se a eficiência do
competitivos que, somados, suplantam em área
uso da água transposta for de 100%, a área
irrigável o projeto de transposição, gastando-
irrigável será de 130 mil ha, passando a relação
-se uma fração do investimento. O excedente
investimento por hectare a valores de R$ 34.615
de recursos poderia ser utilizado na melhoria
ou US$ 12.820, valores ainda muito expressivos
das demais infra-estruturas de transporte e
e maior que muitas terras agricultáveis do sul
escoamento da safra com fins de aumentar
do Brasil.
a competitividade dos produtos dessa região.
Outro aspecto estranho do projeto é o custo
do hectare irrigado criado, encontrado quando

90 Democracia Viva Nº 27
água não é mercadoria, é um direito

Água não é mercadoria, é um direito


Carmen Silvia Maria da Silva
Educadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, organização
que atualmente assume a secretaria executiva da Articulação das Mulheres Brasi-
leiras (AMB).

De dentro do casebre, sob a luz do candeeiro, assim que o rio baixa, vê-se a torre
da igreja apontando no espelho d’água, ela é tudo que restou do povoado, aqui
onde esta comunidade viveu de plantar, onde aquela mulher aprendeu a dançar o
coco e aquele menino enterrou o avô...
Essa desolação que toma conta do espírito das pessoas dos povoados cobertos pelas águas, em
função das barragens que sustentam o setor elétrico brasileiro, também poderá ser sentida por quem

vive nas terras por onde poderão passar os luta contínua pelos direitos das mulheres, há
canais da transposição do Rio São Francisco, muito denunciou que a estrutura econômica à
que o governo insiste em chamar de “integra- qual estamos submetidos(as) inviabiliza a au-
ção de bacias”. E o que é pior: o projeto não tonomia das mulheres. A situação de pobreza
foi montado nem para fins energéticos, nem mantém a falta de acesso a bens e serviços, a
para viabilizar água encanada para as casas quase total ausência de renda, o confinamento
do povo do semi-árido nordestino. As mulhe- às suas casas e a trabalhos precários em áreas
res continuarão a carregar as latas d’água na próximas e inviabiliza até o inalienável direito
cabeça para abastecer precariamente as suas de ir e vir, de ter contato com a vida para além
casas, os políticos tradicionais continuarão a da esfera privada.
fazer circular os carros-pipas, a produção da É também o movimento feminista que
agricultura familiar continuará definhando, e traz à tona a problematização sobre o tra-
as crianças do Nordeste seguirão subnutridas balho doméstico. Infelizmente, às mulheres
e sem perspectivas. ainda é imputado todo o trabalho doméstico,
As mulheres não querem esse futuro. os cuidados com as crianças e com aquelas
“Não queremos a transposição do Rio São pessoas que não têm condições de cuidarem
Francisco! Queremos, sim, que o governo de si mesmas, mesmo que essas mulheres
fortaleça a pequena agricultura, que invista realizem uma extensa jornada de trabalho
nas alternativas de convivência com o semi- fora da residência. Isso também ocorre na
-árido e que escute os movimentos sociais do zona rural, com a agravante de que, além
Nordeste sobre os projetos com os quais diz do trabalho doméstico e de sua participação
querer enfrentar os problemas da região!” no roçado, as mulheres assumem as tare-
Esse foi o grito que ecoou no Fórum Social fas do entorno da casa, como cuidados e
Nordestino (FSNE), em novembro de 2004, alimentação de pequenos animais, hortas
e que se manteve na reunião regional da ou canteiros, beneficiamento de produtos,
Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), entre outros. 1 E todos esses trabalhos reque-
que congregou todos os fóruns de mulheres rem água, bem escasso que, no semi-árido
dos estados do Nordeste, em abril de 2005. nordestino, não chega às suas casas por
Mas, enfim, por que a transposição do Rio meio de adutoras e canos, mesmo que elas
São Francisco interessa tanto ao movimento morem próximo de um açude. Quando a
de mulheres? família não tem um lombo de animal para
Em primeiro lugar, porque as mulheres – transportar água, na maioria das vezes são
e em especial as mulheres negras – são a parte as mulheres – e também as crianças – que
mais pobre da população brasileira. Portanto, fazem o serviço, andando longas distân-
todos os projetos de desenvolvimento que se cias, desde o açude mais próximo até os
proclamam como mecanismo de ‘combate à seus quintais, transportando pesadas latas
pobreza’ ou para sanear graves problemas so- d’água ou trouxas de roupas.
ciais, que atingem as pessoas submetidas a essa 1 “Mulher e trabalho na agri-
cultura familiar”, de Ana Paula
abissal desigualdade econômica, interessam ao Portella, Carmen Silvia Maria da
Legado imperial Silva e Simone Ferreira. Recife:
movimento de mulheres. O feminismo, em sua SOS Corpo, 2004.
O governo diz que a transposição do Rio

JUN / JUL 2005 91


transposição das águas do rio são francisco

São Francisco tem como objetivo enfrentar tom da fala de Pretinha Truká durante a
o problema da seca no Nordeste, favorecer videoconferência sobre a controvérsia da
a produção agrícola e mudar o cotidiano transposição do Rio São Francisco, promo-
de sofrimento das famílias do semi-árido. vida pela coordenação do FSNE, no dia 2 de
Com isso, a elite nordestina se dividiu entre maio, em todas as capitais nordestinas. Reu­
“estados doadores” e “estados receptores”, nidos(as) no 1º Encontro dos Povos Indígenas
para serem respectivamente contra e a favor Ribeirinhos da Bacia do São Francisco, em mar-
da transposição. 2 A Organização das Nações ço, na Bahia, indígenas de Sergipe, Alagoas,
Unidas (ONU) considera que há es­tresse de Bahia e Pernambuco manifestaram-se contra
água quan­do a oferta é abaixo de 1.000 m3 a transposição, pois acreditam que o mega-
anuais por pessoa. projeto, assim como outros semelhantes, só
Pernambuco, o esta- trazem desmatamento, desvio de águas para
do mais carente, tem irrigação de grandes fazendas e o despejo
uma disponibilidade de dejetos, esgotos e agrotóxicos. 4
média de 1.270 m3 O movimento ambientalista e as or-
anuais por pessoa. ganizações da sociedade civil que trabalham
Tem, portanto, 270 com agroecologia informam que o Rio São
m 3 acima do míni- Francisco não tem condições de fornecer
mo. Como afirma água até que seja completamente revitali-
Malvezzi,3 “média é zado, tenha suas matas ciliares recompostas
uma abstração, não e as cidades ribeirinhas tenham esgotamento
significa o a c e s s o sanitário. Hoje, muitas das populações do
efetivo das po- entorno do Rio São Francisco já não se be-
pulações à água, neficiam de suas águas, em parte porque
mas significa que a não há tratamento e distribuição; em parte
disponibilidade de porque as condições de assoreamento já não
água existe”. permitem navegação e a pesca fica cada vez
Os movi- mais difícil. Significa que a revitalização do
mentos sociais não Rio São Francisco é indispensável e deve ser
funcionam na mes- realizada a partir de um projeto construído
ma lógica do go- com participação popular, o que poderá
verno. Eles vêem o gerar empregos e impulsionar a economia
Nordeste como um das pequenas cidades da região.
todo e como re- Em encontro nacional, em novembro
gião inserida den- de 2004, a Articulação do Semi-Árido (ASA)
tro de um projeto reuniu representantes de 11 estados, que
de nação, por isso também manifestaram sua posição contrária
questionam o mo- à transposição. A ASA chama a atenção para
delo de desenvolvi- o fato de que a população do semi-árido é
mento que está em dispersa no território e que as experiências
curso e estranham demonstram que é possível alcançar a des-
profundamente centralização do acesso à água. Um exemplo
que seja exatamen- é a realização de pequenas obras de baixo
te Lula, que emer- custo para captação e armazenamento,
giu de um vínculo construídas a partir da participação ativa
estreito com a luta das comunidades e com uso de tecnologias
2 Estados doadores: Minas Ge-
rais, Bahia, Alagoas e Sergipe. social, o presidente da República a retomar apropriadas.
Estados receptores: Ceará, Rio
Grande do Norte e Paraíba. Per- a idéia que foi um legado do Império. As experiências a que a ASA se refere
nambuco é ao mesmo tempo O povo Truká, comunidade indígena são as cisternas de placa, barragens sub-
doador e receptor.
que tem suas terras próximas a um dos terrâneas, bombas d’água manuais, entre
3 “Geografia da sede e hidro-
negócio”, artigo de Roberto trechos fundamentais para o projeto da outras. Pelos dados do projeto de transposi-
Malvezzi, Gogó, da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), publicado
transposição, acredita que a retirada das ção, as águas do São Francisco só atingirão
no site da Inter-redes. águas do rio pode vulnerabilizar ainda mais 5% da população do semi-árido, e, além
4 Divulgado no boletim Ações o seu território e, com isso, a sua cultura disso, os cem municípios mais pobres, isto é,
(ano 4, n. 21, jan./mar. 2005),
do Centro de Cultura Luís Freire. e a saúde de toda a população. Esse foi o com menor índice de desenvolvimento humano

92 Democracia Viva Nº 27
água não é mercadoria, é um direito

(IDH), não constam entre os beneficiados. agronegócio, para alavancar a produção da


A população brasileira ainda lembra fruticultura irrigada, a monocultura da soja,
que, no primeiro semestre de 2004, choveu entre outras, além de favorecer os novos pólos
bastante no Nordeste, mas para onde fo- industriais, como o vinculado ao Porto de Pecém
ram essas águas? As mulheres que vão aos e à crescente produção de camarões nos es-
açudes buscar água ou lavar roupas sabem tados do Ceará e Rio Grande do Norte, o que
exatamente como funciona o sistema de tem se mostrado como uma atividade altamente
armazenamento na região. Grande número predatória para o meio ambiente. Essas perspec-
de açudes vazou porque a qualidade da tivas econômicas, aliadas ao turismo de litoral
obra não comporta a quantidade de água (baseado em grandes empreendimentos) e a
com a qual o Nordeste foi brindado nesse retomada da mono-
ano. Outros, que se mantiveram firmes nas cultura de cana-de-
bordas, deixaram a água evaporar porque -açúcar, fazem parte
não possuem nenhum sistema de proteção do que os governos
sob o sol escaldante. Problemas semelhantes atuais entendem
já foram resolvidos com tecnologia simples como sendo uma
em várias partes do mundo que enfrentam proposta de desen-
condições semelhantes. volvimento para o
Nordeste.
Especialistas
Interesses camuflados
em política ener-
O projeto visa captar água do São Francis- gética dizem que
co e deslocá-la para os rios Jaguaribe (CE), o projeto de trans-
Apodi (RN), Piranhas-Açu (PB e RN), Moxo- posição não traz
tó e Brígida (PE), por meio da construção também nenhum
de dois canais: o Leste, que levará água benefício para o
para Pernambuco e Paraíba, e o Norte, que enfrentamento da
chegará ao Ceará, Rio Grande do Norte e crise no setor, o
também Paraíba. Segundo o Fórum de Mu- que, de an­temão, já
lheres do Ceará, “para a sociedade cearense, compromete mes-
passa-se a idéia de que esta será a grande mo a perspectiva
beneficiada, principalmente as populações governamental de
que vivem no sertão, mas não se diz que as desenvolvimen-
águas do São Francisco serão transportadas to. O pesquisador
para o Rio Jaguaribe para alimentar o Canal João Suassuna, da
do Trabalhador (já privatizado) e o Açude Fundação Joaquim
Castanhão, que servirá aos interesses das Nabuco (Fundaj),
megaempresas que se instalarão no Porto de lembrou, na vide-
Pecém”. 5 O próprio governo afirma que levará oconferência pro-
água aos grandes centros urbanos do Ceará e movida pelo FSNE,
Rio Grande do Norte, o que é realmente “chover a crise de forneci-
no molhado”, já que nesses estados estão as mento de energia
duas maiores represas do Nordeste, Castanhão de 2001, provocada
(CE) e Armando Ribeiro Gonçalves (RN). pela estiagem, e a
A AMB considera que a transposição solução apresen-
do Rio São Francisco faz parte de um proje- tada pelos setores
to para o país, um projeto que não rompe governamentais, as termelétricas, que são
com o lugar estabelecido para o Brasil pelos quatro ou cinco vezes mais caras que as
países centrais: o de exportador de produ- hidrelétricas.
tos agrícolas. Em função do equilíbrio de Cálculos do próprio governo federal
contas, o país investe muito mais na agri- dão conta de que só poderão ser captados
cultura de exportação do que na produção 25 m3 de água, e que o restante a ser atin-
para consumo interno, que é garantida pela gido só será possível quando a Barragem de 5 Manifesto contra a trans-
agricultura familiar. A transposição do rio Sobradinho estiver vertendo, o que infelizmen- posição das águas do Rio São
Francisco. Fórum de Mulheres
visa também levar água para beneficiar o te não ocorre todo ano. O governo calcula Cearenses, maio de 2005.

JUN / JUL 2005 93


transposição das águas do rio são francisco

também que a água deve chegar aos estados Como se pode concluir, o problema do Nor-
a R$ 0,11.6 Hoje, a água chega no lote de um deste não é apenas de falta de água, e sim
irrigante ao custo de R$ 0,023 o metro cúbico, do risco, cada vez maior, de privatização
cerca de quatro vezes menos. Diante dessa do uso e da dificuldade de acesso à água
situação, as políticas de incentivos e subsídios de qualidade. O movimento de mulheres
à agricultura irrigada adotadas pelo governo considera que a água é um direito humano
federal podem transferir os custos da água para fundamental, sem o qual não podemos ter
as áreas urbanas, ou seja, o aumento do custo a garantia da vida, da saúde e da produção
da água pode atingir sobremaneira as popu- de alimentos. Entretanto, parece que o
lações pobres e, em especial, as mulheres – governo federal está prenhe das idéias da
que, além de serem política tradicional brasileira, que foram
o contingente mais chamadas de “indústria da seca”, ou seja,
pobre, ainda são a manutenção da velha po­l ítica de grandes
responsabilizadas obras hídricas que favorecem empreiteiras e
por gerir a escassez grandes latifundiários. Tratar a água como
de água nas resi- moeda de barganha política é um risco
dências. não apenas para a vida das populações do
Ao reto- semi-árido nordestino, mas também para o
mar o projeto de próprio sentido da construção da democra-
transposição do Rio cia e da justiça social no nosso país.
São Francisco, o Neste momento em que estão em
governo brasileiro curso as negociações na Organização
agudizou uma das Mundial do Comércio (OMC), em especial
principais polêmi- as discussões sobre agricultura e as possi-
cas nacionais, mas bilidades de abertura do setor de serviços,
essa situação nos causa-nos profunda preocupação que o
possibilita colocar governo possa pôr a privatização do trata-
na agenda política mento e distribuição de águas no território
o debate sobre a nacional, a serviço do capital estrangeiro,
gestão das águas e na mesa de negociações. A privatização, na
o caráter do projeto verdade, já está em curso, porém perder o
de desenvolvimento controle nacional sobre as águas pode vul-
para o país. A trans- nerabilizar sobremaneira o país na disputa
posição é polêmica política internacional, além de aprofundar
e realmente divide ainda mais as precárias condições de vida
até os próprios mo- das pessoas que não tenham renda sufi-
vimentos sociais, ciente para garantir o acesso.
mas a revitalização A água é um bem escasso no mun-
do Velho Chico é do. Todos os estrategistas dos países ricos
consenso, unifica sabem disso e, por esse motivo, têm feito
todos os movimen- manobras políticas e militares para pode-
tos e até o governo. rem usufruir de territórios com aqüíferos.
Por que, então, o Se a água for compreendida mundialmente
debate é todo sobre como um bem comum, ao qual homens e
a transposição, ou mulheres do mundo devem ter direito, a
integração de ba- forma de desenvolver a política de águas
cias, e não sobre os procedimentos e recursos será uma; já se for entendida como uma
para revitalizar o rio? A dotação orçamentária mercadoria, a ser controlada pelo mercado,
mostra a diferença entre a transposição e a no futuro a humanidade verá as pessoas
6 Dados fornecidos por Egídio revitalização na agenda de prioridades go- no semi-árido nordestino e também nas
Serpa, assessor especial de
imprensa do Ministério da Inte- vernamentais: estão sendo destinados cerca periferias das grandes cidades morrendo à
gração Nacional, em entrevista
concedida ao boletim Ações
de R$ 100 milhões para revitalização e R$ 1 mingua, muito mais do que nas épocas de
(ano 4, n. 21, jan./mar. 2005). bilhão para a transposição em 2005. 7 estiagem no sertão.
7 Palavras de João Suassuna,
no boletim Ações, (ano 4, n.
Nos debates ocorridos entre governo
21, jan./mar. 2005).
Questão de seca ou de cerca? e sociedade civil, como a recente videocon-

94 Democracia Viva Nº 27
água não é mercadoria, é um direito

ferência do FSNE, a posição oficial tem sido tentável do Nordeste é preciso democratizar a
a de desdenhar das preocupações apontadas gestão da política de recursos hí­dri­cos, dentro
pelos movimentos sociais, colocar a questão da com­preensão de que a água é um direito
no âmbito do debate técnico e argumentar humano, e não mercadoria. Para mudar o co-
no sentido de que as críticas estariam vindo tidiano das pessoas que vivem no semi-árido, é
de quem nunca passou sede, uma vez que necessário democratizar o acesso à água, o que
o projeto visa resolver o problema da água não será feito com os canais de transposição do
no semi-árido. São Francisco, que não chegam às populações
Essa forma de o governo conduzir dispersas nos territórios, mas sim com peque-
a discussão, por um lado, parece buscar nas obras próximas às comunidades como as
desqualificar a crítica elaborada por diver- cisternas, ao lado
sas pessoas especializadas e também de das casas, que po-
várias experiências de convivência com o dem possibilitar um
semi-árido que têm sido estimuladas pelas trabalho planejado
organizações. Por outro lado, tenta tirar da e distribuído entre
área da política – e, portanto, do espaço pú- as pessoas adultas
blico de negociação de interesses – um projeto da família para uso
bastante controverso, não enfrenta o problema e gestão domiciliar
a que se propõe e aponta possibilidades de da água.
inúmeros impactos sociais negativos sobre
vários setores da população. Como disse
Roberto Malvezzi,
é preciso politizar a sede como Josué
de Castro politizou a fome e Paulo
Freire a educação. Sem a politização
da sede é impossível entender uma
obra como a transposição do Rio São
Francisco com todos os interesses
subjacentes à sua insana implantação.
A crise planetária da água, a sua pri-
vatização, a sua mercantilização, seu
uso intenso na irrigação, indústria e
carcinicultura também estão incluídas
na busca alucinante por seu controle. 8
O projeto de transposição do Rio São
Francisco e o discurso sobre ele, oriundo do
governo, reforça um imaginário sobre o Nordes-
te calcado na idéia de seca e pobreza, o que o
mantém como uma região a ser “ajudada” por
grandes obras negociadas em Brasília. O debate
que os movimentos sociais vêm construindo
segue outra direção. É muito cara aos trabalha-
dores e às trabalhadoras rurais a idéia de que
“o problema não é a seca, é a cerca”, e que
a solução para isso é um processo de reforma
agrária capaz de garantir terra, condições de
produção e de comercialização de alimentos
de qualidade. Os movimentos já apontaram
também uma outra perspectiva para o problema
da água com as inúmeras experiências de convi-
vência com o semi-árido que têm enfrentado o
problema do consumo humano e podem aportar 8 “Geografia da sede e hidro-
con­dições para a produção agrícola. negócio”, artigo de Roberto
Malvezzi, Gogó, disponível no
Para promover o desenvolvimento sus- site Inter-Redes.

JUN / JUL 2005 95


Ibase
opinião
Carlos Tautz*

Uma janela
histórica
está aberta
Há uma janela histórica aberta para o povo brasileiro elaborar estratégias de desen-

volvimento nacional e democrático que resgatem dívidas de centenas de anos com

diversos setores da sociedade. O momento é especial: estão dadas as condições, interna

e externamente ao Brasil, para que essas estratégias sejam elaboradas sob os valores

que expressam o tremendo avanço político que a sociedade brasileira conseguiu nos

últimos 40 anos. Entre esses valores estão a eqüidade de gênero e de etnia, e a justiça

em suas vertentes social e ambiental.

Ter claro quais são alguns desses valores sociais já significa um passo importante

na definição de prioridades das estratégias, que devem atender a carências históricas

e, por isso mesmo, urgentes da maioria do povo brasileiro. A opção pelo pagamento

das dívidas históricas também confere a essa ação alguma qualidade perto de um

projeto ou de uma estratégia.

96 Democracia Viva Nº 27
Ser democrático e republicano na aplicação momento histórico em que vivemos sob o ponto
dos novos valores é um bom primeiro passo da de vista da conjuntura interna. Mais de 30 anos
caminhada. Ela, entretanto, só irá se materia- após o Brasil ter tomado a decisão política de
lizar à medida que forem sendo colocadas em tornar viável econômica e tecnologicamente o
prática políticas públicas para a distribuição do aproveitamento do álcool combustível, naquele
saber, da renda, do conhecimento, do acesso instante histórico em um contexto de ditadura,
à justiça e, também, de uma relação em novos sem que a sociedade fosse consultada, outra vez
patamares com os recursos naturais do país, em o governo federal resolve colocar a biomassa no
especial com os recursos naturais cujo acesso centro de um projeto energético. Deveria, por-
e uso expressam mais fortemente os tipos das tanto, aproveitar a oportunidade para fazê-lo
estratégias que se pretenda realizar. E, mais no bojo de uma estratégia de desenvolvimento
particularmente, no tocante às fontes de gera- democrático, nacional e renovável. Dessa forma,
ção de energia. Elas são capazes de sintetizar ele contribuiria para estabelecer uma relação de
os paradigmas escolhidos para se realizar o aproveitamento dos recursos naturais em níveis
desenvolvimento. renováveis – distantes, portanto, da escala e
A conjuntura internacional nos favore- dos objetivos de mera predação que vigoram
ce. Desde 16 de fevereiro de 2005, começou no Brasil há 505 anos.
a vigorar o Protocolo de Quioto, o acordo É bom estabelecer uma diferença do
internacional para diminuir as emissões dos que aqui é proposto – projetos ou estratégias,
gases que causam as mudanças do clima no como se queira chamar – de desenvolvimento
planeta. Sem se propor a resolver por inteiro dos potenciais desta quase-nação. Um linguajar
o problema das emissões, o Protocolo, ao semelhante a esse já foi assumido em outros
menos, cria um ambiente favorável para se momentos da nossa história por forças rea-
pensarem formas de superar os paradigmas cionárias, ditatoriais até, em sua marcha pela
tecnológicos, políticos e econômicos que introdução do Brasil no cenário internacional,
orientaram as opções, vigentes até aqui, por sob a condição de um desenvolvimento cujas
modelos de desenvolvimento com base no benesses fossem canalizadas quase exclusiva-
uso intensivo de combustíveis fósseis (grandes mente para uma elite.
emissores daqueles gases) em modelos de gera- Não podemos cair na armadilha de
ção de energia extremamente desperdiçadores. efeito retardado que essas forças nos deixa-
Neste contexto, além da oportunidade, temos ram. Elas se apoderaram desse discurso do
também uma grande responsabilidade. Foi o projeto e da estratégia de maneira tão forte
nosso país quem mais contribuiu na elaboração que muitas pessoas ainda hoje confundem a
do principal instrumento de implementação do idéia em si com quem, em determinado mo-
Protocolo, o Mecanismo de Desenvolvimento mento histórico, se apoderou dela. E erram ao
Limpo (MDL). rejeitá-la a priori.
Ao definir sua política energética, o Bra- O que se propõe é, em primeiro lugar,
sil precisa ter um olho nas opções tecnológicas observar que esse discurso deve ser retomado
que adotará, para evitar as emissões causadas agora na perspectiva da conclusão de projetos
pelos combustíveis fósseis e, também, para de nação – ela só está ainda apontada, uma
fazer com que essa política seja consoante com vez que não se completou para a maioria do
uma estratégia de desenvolvimento econômico povo. E, em segundo, sugerir a reapropriação
dirigida ao pagamento das dívidas históricas. dessa necessidade de ter estratégias de desen-
Também pode se olhar a importância do volvimento para elaborá-las sob o império dos

JUN / JUL 2005 97


opinião

novos valores sociais que criamos e também que pense a atividade agrícola de forma mais
dos quais somos produto. sistêmica em suas relações com o espaço, os
Como já foi dito, o mundo, e em especial recursos naturais e a economia em suas di-
a América Latina, nos proporciona condições para mensões locais, regionais, nacionais e globais.
realizar um debate público sobre quais seriam A elaboração de um, por assim dizer,
essas estratégias. Em boa medida, o impulso projeto energético nacional e democrático
para a eleição de governos comprometidos afastaria o perigo de dependência tecnológica
com plataformas originalmente antineoliberais e econômica. O Brasil ainda serve apenas de
na Argentina, Brasil, Equador, Peru, Venezuela, mercado – e não de produtor – para manter
Uruguai – e aqui sem entrar no mérito de even- em atividade industrial mínima a capacidade
tuais apagamentos dessa plataforma eleitoral produtora de tecnologias “limpas” em países
por parte dos(as) elei­ frios do Atlântico Norte. Elas continuam pes-
tos(as) – demonstra quisando – e investindo rios de dinheiro público
a viabilidade de re- e privado – na tentativa de barateamento de
patriar para dentro equipamentos para as fontes solar e eólica, que
das fronteiras desses por aqui poderiam ser amplamente exploradas.
paí­­ses a capacidade Essas fontes já estão próximas da viabilidade
de definição de prio- econômica para mercados de massa, mas ainda
ridades nacionais, não alcançaram a rentabilidade que a grande
al­g o inviável sob o indústria de energia exige. Por enquanto.
neo­­liberalismo triun­­ Por essa razão, países doadores de caixas-
fante nas décadas -pretas tecnológicas incentivam o fornecimento
1980 e 1990. de pacotes a países em desenvolvimento, como
Quioto igual­ o Brasil, com doações, aqui e ali, de sistemas
mente fortificou o energéticos para o atendimento a comunidades
caldo de cultura em isoladas dos sistemas de distribuição de energia
que se devem valo- implantados até hoje no país.
rizar opções menos Alternativas como o programa brasileiro
impactantes de fontes do biodiesel são um bom avanço na direção
geradoras de energia contrária, mas esse programa talvez ainda não
e que revelem novos tenha sido observado sob a lógica mais sistê-
paradigmas civiliza- mica, de uma nova ocupação territorial para o
tórios diferentes da- desenvolvimento agrícola do país.
queles que orientam Há entraves legais, institucionais, merca-
a civilização do petró- dológicos e políticos que precisam ser remo-
leo – com todas as vidos para fazer avançar a adoção das fontes
suas conseqüências de energia renovável, que não apenas geram
nos campos militar, conhecimento tecnológico novo, mas também
diplomático, tecno­ representam um passo do país à frente na
ló­g ico, econômico elaboração de novos paradigmas, algo que
e ambiental. só pode ser feito em um país como o Brasil,
Nesse con- e não nos enriquecidos e relativamente frios
texto, o Brasil sur- países do Atlântico Norte, que recebem pro-
ge com vantagens porcionalmente muito menos insolação sobre
comparativas, por seus territórios.
exemplo, o de pos- Também o aproveitamento das con-
suir amplo território dições favoráveis para a geração de energia
agricultável, o que lhe confere possibilidade a partir do vento, em especial no litoral do
de aproveitar a enorme insolação que recebe Nordeste, indicam potencialidades extraor-
(é uma das cinco maiores do planeta) para dinárias. Estudos da Universidade Federal de
transformá-la em biomassa, fonte de energia Pernambuco mostram que os ventos nordes-
incomparavelmente menos poluidora do que a tinos estão entre os de melhor qualidade e
da queima do carbono fóssil. Em associação, quantidade no mundo e que estão em maior
deve-se pensar em uma ocupação do território potencial justamente naquelas épocas em que
para a produção dessa biomassa sob a pers- o Rio São Francisco, cujas águas movimentam
pectiva de um novo desenvolvimento rural, as hidrelétricas que energizam quase toda a

98 Democracia Viva Nº 27
Uma janela histórica está aberta

região, tem suas menores baixas de volume, medidas necessárias.


em um sistema complementar. É importante também aproveitar a
O desenvolvimento de modernos siste- janela histórica que se abriu para descartar
mas eólicos na região, descentralizando o cres- algumas opções energéticas que recentemente
cimento econômico e a geração de capacidade o governo brasileiro pensou em adotar. Entre
científica local, aumentaria o nível de utilização elas, que não foram definitivamente descar-
de empresas instaladas na região de São José tadas, estão as usinas termelétricas movidas
dos Campos (SP), nascidas em torno da Empresa a gás natural.
Brasileira de Aeronáutica S. A. (Embraer). Afi- As termelétricas a gás natural, por
nal, a geração eólica exige o aproveitamento exemplo, são inadequadas para um novo de-
de muita tecnologia aeronáutica, campo em senvolvimento democrático da nação por vários
que o Brasil está entre os cinco ou seis países motivos. Elas perpetuam o sistema de geração
que dominam o ciclo completo desse tipo de de grandes blocos de
conhecimento. energia para gran-
Em paralelo a uma política pública que des concentrações
incentive o atingimento da viabilidade econô- humanas e econô-
mica dessas fontes de energia, temos ainda micas, dificultando o
dois aspectos importantes. O primeiro é a dis- enraizamento do de-
tribuição do desenvolvimento para o Nordeste, senvolvimento eco-
uma região que ainda carece crescer para fugir nômico e social nas
à caricaturização de região atrasada. regiões mais distan-
Porém, exercer essa espécie de vocação tes do centro do sis-
natural e tirar da biomassa e do aproveitamento tema. Contribuem,
eólico a energia de que o país necessita importa dessa maneira, para
aproveitar as vantagens proporcionadas pelo concentrar renda, o
Protocolo de Quioto. A adoção das políticas que não favorece re-
públicas que viabilizassem as opções descritas gimes de justiça étnica
anteriormente dá ao Brasil e ao seu povo a e de gênero, uma vez
possibilidade de se alavancar economicamente. que reproduzem os
Cada tonelada de carbono que se evita jogar ultrapassados modelos
na atmosfera, por meio da adoção de fontes de desenvolvimento
não-poluentes, transforma-se em um crédito que herdamos.
cujo preço pode ser negociado em mercados Como uma
internacionais. espécie de estudo
Não se sabe quanto esse mercado vai de caso, tem-se que
gerar, mas é certo que um grande emissor de a alternativa das usi-
títulos de não-emissão de carbono, como o nas termelétricas não
Brasil, pode se beneficiar da condição de expor- se justifica para o
tador desse papel. Mais uma vez, evito entrar na Brasil dos pontos de
discussão que daí advém – a de que os compra- vista ambiental, eco-
dores dos créditos estariam adquirindo o direito nômico-financeiro,
de poluir. Mas insisto em chamar a atenção para energético, nem da
a urgência de se desenvolverem maneiras de segurança energéti-
a maioria da população se beneficiar dessas ca, porque:
condições naturais do nosso país. 1. elas emitem mui-
O desenvolvimento em larguíssima es- to menos gases
cala de tecnologias associadas a essas e outras com carbono,
opções hoje chamadas pejorativamente de nitrogênio e outros elementos químicos.
“alternativas” abre a chance de o Brasil pagar Mas elas os emitem, e isso nos tiraria
dívidas com aqueles extratos do seu povo que aquela vantagem de o Brasil ser um dos
foram colocados para fora da festa do de- grandes países que proporcionalmente
senvolvimento. E que, agora, no início de um emitem poucos gases por habitante. Essa
século novo, têm a chance de entrar no baile característica nos facilita acesso às linhas
da história pela porta da frente, de mãos dadas financeiras internacionais que serão cria-
com políticas distributivistas – se assim for da das no âmbito do Protocolo de Quioto.
coragem dos(as) governantes para tomar as Termelétricas também gastam quantidades

JUN / JUL 2005 99


opinião

*Carlos Tautz enormes de água, que é utilizada para a antipatia do povo boliviano, o que pode
Jornalista, pesquisador refrigerar o sistema das usinas. Parte dessa resultar no corte repentino do fornecimento.
do Ibase água evapora, outra parte retorna ao meio Outra opção energética que se deve
ambiente alguns graus acima de quando rejeitar é a nuclear. Mesmo após mais de
é captada. Quase 50 termelétricas foram 30 anos do Acordo Nuclear Brasil–Alema-
planejadas para serem instaladas perto de nha, que viabilizou a construção das usinas
grandes centros urbanos onde entrariam na nucleares Angra 1 e 2, instaladas em Angra
disputa pela água destinada ao consumo dos Reis (RJ), esse debate propositadamente
humano, à agricultura e a outros tipos de ainda não foi tornado público porque carre-
uso; ga a marca do pecado original. Ele atenderia,
2. no campo econômico-financeiro, a difi- mesmo três décadas após a sua concepção,
culdade maior resi- de acordo com aqueles(as) que pretendem
de no uso do dólar mantê-lo secreto, a “razões estratégicas”
como moeda para não reveladas.
compra dos equi- Ele foi imaginado em um contexto de
pamentos (que não ditadura pelos militares brasileiros que sonha-
são fabricados no vam em dominar localmente o ciclo de enri-
Brasil) e pagamento quecimento de urânio para fabricar a bomba
do combustível, em atômica. Pois, em pleno século XXI, essa lógica
sua maioria importa- persiste, eclipsando os demais usos pacíficos
do. Gastos externos da tecnologia atômica na pesquisa ambiental
em dólares apenas aplicada aos recursos hídricos, na medicina e
beneficiam os atra- na agricultura.
vessadores de finan- Agora mesmo o governo – especifica-
ciamentos interna- mente a Casa Civil da Presidência da Repúbli-
cionais. O modelo ca – estimula o reaparecimento do tema da
de contrato do gás construção da terceira usina, Angra 3, que
natural take or pay acabou de ser rejeitada, em abril, no âmbito
(pegue ou pague), do Conselho Nacional de Política Energética,
como o empregado pelos Ministérios de Minas e Energia e do Meio
no Gasoduto Bolí- Ambiente. O Ministério de Ciência e Tecnologia,
via–Brasil, incorpora tradicionalmente mais sensível aos apelos dos
variantes como a in- centros militares de pesquisa, apoiou a cons-
flação dos Estados trução, desconsiderando o fato de que Angra
Unidos e o preço do 3 igualmente mantém a lógica da produção de
barril de petróleo em grandes blocos de energia para suprir um mo-
âmbito internacio- delo de consumo energético que tolera amplas
nal. Dispara na pri- faixas de desperdício.
meira crise interna- Além disso, como lembra o físico e ex-
cional e termina por -reitor da Universidade Estadual de Campinas
aumentar a tarifa (Unicamp) José Goldemberg, que é secretário
para consumidores e estadual de Meio Ambiente de São Paulo, há
consumidoras finais; toda sorte de incertezas sobre o que fazer com
3. no campo o “lixo nuclear”, para o qual não existem repo-
da segurança ener- sitórios adequados em nenhum país.
gética, é uma opção Esses são indicativos fortes da existência
inadequada porque o combustível é impor- de uma janela de oportunidade para o Brasil se
tado. Por ora, a Bolívia é o maior fornecedor, concluir como nação. Indicativos de que chegou
principalmente para indústrias localizadas a hora de recolocarmos – como algumas pesso-
em São Paulo. Ocorre que, no país vizinho, as já fizeram no passado – em debate público
há ampla (e justa, diga-se de passagem) as estratégias que queremos para alcançar esse
rejeição aos contratos firmados pelos go- objetivo.
vernos nacionais e empresas multinacionais,
como se configura com a Petrobras Bolívia,
que lá desempenha papel igual ao das de-
mais multinacionais petrolíferas. Angaria

100 Democracia Viva Nº 27


JUN / JUL 2005 101
Indicadores
Claudia Pato*

O interesse por estudos sobre a temática ambiental é relativamente recente e não é

objeto exclusivo de uma área do conhecimento. Ao contrário, constitui-se num campo

multi, inter e transdisciplinar que desafia pesquisadores e pesquisadoras à compreensão

de sua complexidade a partir de um enfoque múltiplo.

Na Psicologia, os estudos sobre as relações entre o ser humano e o meio ambiente

vêm aumentando, especialmente nas últimas décadas. Neste texto, pretendo trazer con-

tribuições da psicologia ambiental para enriquecer as discussões acerca dessa temática.

Os problemas ambientais têm sido objeto de preocupação e de investigação, transforman-

do a questão ambiental num foco crescente de interesse. Desse modo, a preocupação com a

degradação ambiental se converteu num problema central para quem investiga essa temática.

Embora degradação ambiental não seja um tema desconhecido da civilização

ocidental (Ferreira, 2004), estamos expostos diariamente a situações e informações

que podem provocar sensação negativa e catastrófica sobre o momento presente. Essa

sensação pode concorrer para a percepção de que esses problemas são atuais, exigindo

soluções imediatas que visem à continuidade da vida no e do planeta.


O crescimento urbano acelerado e desordenado, assim como o modelo de desenvolvi-

102 Democracia Viva Nº 27


mento econômico vigente, que proporciona situação ambiental e sugerindo que a chave
a expansão das riquezas e incentiva o consu- para a compreensão dessa problemática
mismo nas pessoas, tem contribuído para um está no comportamento dos seres humanos
conflito que exacerba a problemática ambiental. em relação ao meio ambiente – o compor-
A busca da qualidade de vida e a aqui- tamento ecológico.
sição de bens de consumo muitas vezes se Zelezny e Schultz (2000), por exemplo,
dão à custa do uso insustentável dos recursos afirmam que os problemas ambientais são
naturais. Isso contribui para a degradação indiscutivelmente questões sociais, causados
ambiental, deteriorando, conseqüentemente, pelo comportamento humano, e que sua re-
a qualidade de vida nas cidades e ameaçando solução exigirá mudança no comportamento
a sustentação da vida no planeta. em grande escala, envolvendo mudanças no
Por outro lado, a falta de acesso aos bens comportamento individual.
de consumo e de serviços de infra-estrutura, Oskamp (2000) compartilha desse pen-
característicos dos países mais pobres, também samento, reforçando o argumento de que os
contribuem para um conflito socioambiental problemas ambientais poderiam ser potencial-
e para a degradação ambiental. mente revertidos pelo comportamento humano.
Mesmo analisando-se a realidade atual Esse autor entende o comportamento humano
sob perspectiva histórica, em que podemos não só como aquele que é emitido por pessoas
reconhecer a melhoria na qualidade de vida da individualmente, mas também como os que
população mundial como um todo, é inegável são manifestados por grupos, organizações
que a situação esteja longe da ideal. A distri- e nações.
buição dos recursos é desigual, e sua utilização A problemática ambiental é com-
precisa ser otimizada, muito embora não se corra plexa e envolve aspectos sociais, econômi-
o risco de esgotar os recursos naturais em curto cos, políticos, entre outros. Compreender
prazo, segundo afirma Lomborg (2001). essa complexidade é fundamental para que se
A literatura específica sobre o assun- possam identificar os fatores que influenciam
to, especialmente na psicologia ambiental, as diferentes manifestações do comportamento
vem apontando o ser humano como o em relação ao meio ambiente.
grande responsável pelo agravamento da

JUN / JUL 2005 103


indicadores

Consciência e exploração pareçam estar em condições tão alarmantes


quanto, por exemplo, as condições enfrentadas
Apesar do interesse internacional crescente
por países europeus (Barbosa, 1992; Torres,
por estudos dessa natureza, existem muitos
1992; Costa, Alonso & Tomioka, 2002).
aspectos a serem investigados. Um desses
Grande parte da população brasileira,
aspectos refere-se à incongruência entre o
especificamente a das periferias dos grandes
interesse geral cada vez maior por questões
centros urbanos, das cidades do interior e do
socioambientais e pela consciência ambiental,
meio rural, ainda carece das condições mais
de um lado, e os comportamentos claramente
básicas para a sobrevivência, como o sanea-
prejudiciais ao meio ambiente e a exploração
mento básico e a coleta de lixo. Essa situação
indiscriminada dos recursos naturais, por outro
sugere um problema ambiental mais grave: a
lado.
falta de acesso aos recursos.
Além disso,
O Brasil possui uma das maiores reser-
pesquisas teóricas
vas mundiais de biodiversidade. Entretanto,
e empíricas sobre a
enfrenta diariamente uma série de agressões
temática ambiental
que, gradativamente, vêm esgotando seus
e participação ativa
recursos e ameaçando essa biodiversidade,
de grupos ambienta-
colocando-a em risco. Alguns exemplos são
listas e da sociedade
o desmatamento descontrolado, o assore-
civil em campanhas
amento de rios e nascentes, o crescimento
de conscientização
desordenado das cidades, entre outros (Brasil,
da população e de
1998).
proteção ao meio
Talvez nossa preocupação com o meio
ambiente não têm
ambiente ainda não tenha aflorado ou se
l e v a d o à mudan-
manifeste diferentemente dos países conside-
ça significativa de
rados mais desenvolvidos e mais ricos, que já
comportamento da
enfrentam o esgotamento de seus recursos e,
população em geral
por outro lado, mantêm programas e políticas
em favor do meio
ambientais para solucioná-los.
ambiente.
Aparentemente, poderíamos inferir
Essa incon-
que há pouca evidência de comportamentos
gruência percebida
ecológicos na população brasileira. Entretan-
– entre o despertar
to, é possível supor que sentimentos, valores
da consciência am-
e atitudes envolvidos nesse tipo de comporta-
biental, o acúmulo
mento possam ocorrer. Um estudo recente do
de conhecimentos e
Ministério do Meio Ambiente (MMA) revelou
de informações es-
que a consciência ambiental da população
pecíficos e técnicos,
brasileira cresceu na última década e que a
e a manifestação
população tem algum conhecimento sobre as
de comportamen-
questões ambientais globais. No entanto, as
tos que degradam
pessoas que participaram desse estudo não
o meio ambiente –
foram capazes de citar problemas ambien-
pode estar relacio-
tais locais, quando solicitadas a considerar
nada à existência de
a sua comunidade de vizinhança (Brasil &
valores e de crenças
Iser, 2001).
distintos que esta-
A compreensão dos aspectos cultu-
riam na base desses
rais e pessoais relacionados à negligência
comportamentos, influenciando-os diferente-
ambiental e às ações prejudiciais ao meio
mente.
ambiente, bem como daqueles que promo-
No Brasil, as questões ambientais ainda
vem a qualidade de vida e contribuem para
parecem receber pouca atenção da sociedade,
a recuperação e a manutenção dos recursos
e os problemas ambientais se agravam a cada
naturais renováveis ou não, pode ajudar no
dia. As condições socioambientais brasileiras
esclarecimento dessa problemática. Desse
são assustadoras, acentuadas pela pobreza e
modo, poderá favorecer o estabelecimento
pela injustiça social, entre outros, muito em-
de estratégias de intervenção mais eficazes,
bora os recursos naturais brasileiros ainda não
assim como a elaboração de políticas am-
bientais mais compatíveis com a realidade

104 Democracia Viva Nº 27


Comportamento ecológico: chave para compreensão e resolução da degradação ambiental?

brasileira. Utilizando-se uma amostra de jovens e


O debate sobre a questão ambiental adultos(as) das cidades do Rio de Janeiro e de
deverá considerar, portanto, o comportamento Brasília (Tabela 1), foram identificados quatro
ecológico, uma vez que ações humanas, direta tipos específicos de comportamento ecológico,
ou indiretamente, vêm contribuindo para a chamados de limpeza urbana, economia de
degradação ambiental acelerada e provocando água e de energia, ativismo-consumo e reci-
conflitos socioambientais que resultam muitas clagem (Tabela 2). Limpeza urbana descreve
vezes em dilemas de difícil resolução, especial- comportamentos relacionados à manutenção
mente a curto prazo. dos espaços públicos limpos, associados ao
tema do lixo urbano. Um exemplo desse tipo
de comportamento seria não jogar papel na
Fenômeno
rua. Economia de água e de energia está as-
A negligência das pessoas com relação ao sociada ao uso racional dos recursos naturais,
meio ambiente, observável, por exemplo, apresentando comportamentos relacionados
em uma rápida caminhada pelas ruas de ao não-desperdício de água e de energia.
qualquer cidade brasileira, assim como a Fechar a torneira enquanto escova os dentes
observação de cidadãos e cidadãs comuns seria um exemplo desse tipo de comporta-
participando de atividades como mutirões mento. Ativismo-consumo representa ações
para a limpeza de nascentes, rios e lagos, relacionadas à preservação e à conservação
demonstra a necessidade de se conhecer do meio ambiente, por meio de participa-
melhor o fenômeno do comportamento ção ativa que envolva outras pessoas ou
ecológico. O que leva essas pessoas a agirem por meio de decisão de compra e de uso de
de uma ou de outra maneira? produtos considerados inofensivos ao meio
Nesse sentido, tornou-se premente ambiente. Ser voluntário(a) em um grupo
conhecer as características que o comporta- que preserve ativamente o meio ambiente ou
mento ecológico assume na realidade brasileira evitar a compra de produtos poluentes são
e identificar aspectos que o influenciam em exemplos desse tipo de comportamento. E,
nosso contexto socioambiental. Os estudos por fim, reciclagem representa a separação
realizados até o momento têm revelado resul- do lixo doméstico conforme o tipo, visando ao
tados encorajadores, que serão apresentados reaproveitamento, reutilização ou reciclagem.
de maneira breve a seguir, na tentativa de Separar os diversos tipos de lixo e ter uma
alimentar esse debate. lixeira para cada tipo de lixo são exemplos

Tabela 1
Caracterização das amostras
Idade Gênero Total
Média (M) Desvio-padrão (DP) Mulheres % Homens %
Participantes
20,5 6,33 61,2 37,1 234
22,75 6,1 54,2 45,4 443

Tabela 2
Média e desvio padrão por fatores de comportamento ecológico e de crenças ambientais
Fatores Média (M) Desvio Padrão (DP)
Limpeza urbana 4,92 0,88
Comportamentos Economia de água e de energia 3,98 0,87
ecológicos* Ativismo-consumo 2,27 0,76
Reciclagem 2,16 1,54
Crenças Crenças ecocêntricas 4,31 0,45
ambientais** Crenças antropocêntricas 2,19 0,63
* Escala de 6 pontos que mede freqüência de comportamento (1 = nunca e 6 = sempre).
** Escala de 5 pontos que avalia grau de concordância (1 = discordo totalmente e 5 = concordo totalmente).

JUN / JUL 2005 105


indicadores

desse tipo de comportamento. Crenças e valores


Os dois primeiros tipos de compor-
As chamadas crenças ambientais foram identifi-
tamentos – limpeza urbana e economia de
cadas como sendo de dois tipos: as ecocêntricas
água e de energia – são considerados mais
e as antropocêntricas (Tabela 2). As primeiras
simples de serem executados, porque en-
referem-se à visão sistêmica, na qual o ser
volvem esforço menor para sua realização e
humano se percebe como parte integrante da
dependem basicamente do próprio indivíduo.
natureza, ao passo que as últimas refletem visão
Estão presentes no cotidiano da maioria do
utilitarista e instrumental da natureza.
povo brasileiro e, em particular, da amostra
Os resultados indicaram que as pes-
participante da pesquisa.
soas que possuem valores mais ecológicos
Já os comportamentos de ativismo-
manifestaram mais comportamentos de
-consumo e reciclagem envolvem um esforço
“limpeza urbana” e de “ativismo-consumo”;
maior para sua realização, além de nível de
já as que possuem valores considerados como
informação e de consciência mais elevados. Esses
antiecológicos revelaram menos economia de
comportamentos dependem de outras pessoas,
água e de energia.
de estrutura e, muitas vezes, de organizações
Os valores ecológicos relacionam-se aos
para que possam se manifestar. Assim, são
interesses mais coletivistas, envolvendo recipro-
considerados mais complexos, de maior dificul-
cidade nas relações, como respeito e igualdade.
dade e mais raros de se observar. O surgimento
Contribuir para que a cidade se mantenha limpa
desses comportamentos na amostra estudada
e participar de atividades em defesa do meio
sugere um “salto de consciência ambiental”
Figura 1 ambiente são ações voltadas para o interesse da
coletividade mais ampla, que revelam respeito
Representação gráfica das relações entre valores e
crenças ambientais com comportamentos ecológicos ao outro e cooperação. Desse modo, esses
valores são perfeitamente compatíveis com
esses tipos de comportamentos ecológicos, que
Valores implicam ação individual visando ao bem-estar
ecológicos da coletividade.
Limpeza urbana Por sua vez, os valores antiecológicos
atendem a interesses individuais e egoísticos,
Crenças ecocên- como poder e realização pessoal, podendo ser
tricas incompatíveis com comportamentos ecológicos.
Ativismo-consumo Pessoas que priorizam esses valores dificilmente
reduzirão o consumo de água e de energia
Valores anti­ em seu cotidiano, a menos que possam obter
ecológicos alguma vantagem pessoal. O desperdício desses
Economia de água recursos poderá ser justificado pelo conforto
de energia que eles podem proporcionar a essas pessoas.
Crenças Com relação às crenças ambientais, o
antropocêntricas comportamento de economia de água e de
Relações positivas energia foi influenciado pelos dois tipos de
Relações negativas crenças, e o de ativismo-consumo teve influência
apenas das ecocêntricas, e o de limpeza urbana
apenas das antropocêntricas.
Os resultados revelaram que as pessoas
nessas pessoas, que vai ao encontro do estudo
que acreditam na exploração da natureza para
do MMA (Brasil & Iser, 2001).
o benefício do ser humano e na capacidade
Em seguida, procurou-se identificar
inesgotável da natureza de se recuperar das
se os valores pessoais e as crenças que as
inúmeras agressões sofridas pelas intervenções
pessoas tinham sobre o meio ambiente exer-
humanas não se preocupavam com a limpeza da
ciam influência sobre cada um desses tipos
cidade onde viviam e não se sentiam responsáveis
de comportamento ecológico. Desse estudo
por ela. Tampouco estavam atentas ou dispostas
participaram jovens e adul­tos(as) de Brasí-
a evitar desperdício ou consumo exagerado de
lia, e os valores e as crenças influenciaram
água e de energia.
diferentemente a maneira como as pessoas
Por sua vez, as pessoas que se sentem
se comportam em relação ao meio ambiente
parte de um sistema mais amplo, que integra
(Figura 1).

106 Democracia Viva Nº 27


Comportamento ecológico: chave para compreensão e resolução da degradação ambiental?

a natureza, se mostraram mais ecológicas, crenças não o influenciaram. Dada a inexistência *Claudia Pato
usando a água e a energia de forma racional, de programas oficiais de reciclagem na quase Doutora em Psicologia,
de maneira a evitar sua escassez. Além disso, totalidade das cidades brasileiras e, em parti- professora da
participavam ativamente de ações que preten- cular, em Brasília, esse tipo de comportamento Universidade de Brasília
diam proteger o meio ambiente, contribuindo pode ter outras influências ou características (UnB), coordenadora
para a conservação da natureza. que precisam ser conhecidas. da área de Educação

Quanto à reciclagem, os valores e as Além disso, é possível que existam outros Ambiental da Faculdade
de Educação/UnB
crenças não exerceram influência. No geral, os tipos de comportamentos ecológicos que até o
e pesquisadora
resultados indicaram que as pessoas que aceita- momento não foram identificados. Do mesmo
do Laboratório de
vam os outros como iguais, estavam sensíveis modo, os estudos internacionais têm aponta-
Psicologia Ambiental do
aos interesses de todas as pessoas e tinham do outras influências sobre o comportamento Instituto de Psicologia /
uma visão de integração com a natureza mani- ecológico que ainda não foram pesquisadas na
festaram mais comportamentos ecológicos. Já realidade brasileira, tais como as normas pesso-
as que estavam voltadas para os seus próprios ais e as características situacionais, que tanto
interesses e viam a relação ser humano–meio podem favorecer como inibir a manifestação
ambiente de forma dicotômica manifestaram desse comportamento (Nordlund & Garvill,
menos esse tipo de comportamento. 2003; Corraliza & Berenguer, 2000).
Considerando-se a inexistência de es-
tudos empíricos que tenham identificado as
Desafios e participação
características do comportamento ecológico
A realização de novos estudos, com amostras na realidade brasileira e testado a influência
representativas da população brasileira, que dos valores e das crenças ambientais sobre
esclareçam e confirmem as características es- esse comportamento, nossos achados se
pecíficas aqui levantadas, torna-se fundamental constituem relevantes para cercar o fenômeno e
para a compreensão do comportamento ecoló- desencadear pesquisas que procurem aprofundar
gico em nossa cultura. sua compreensão, além de fomentar a discussão
O ativismo-consumo, por exemplo, pre- sobre essa temática. Os desafios estão lançados,
cisa ser aprofundado para identificarmos sua e o convite à participação está feito.
especificidade em nosso contexto. Será que,
no Brasil, o ativismo pode refletir tanto a par-
ticipação coletiva em defesa do meio ambiente
como a ação individual de compra de produtos
mais “ecológicos”? Ou essas características se
aglutinaram apenas nessa amostra, envolvendo
um comportamento complexo com dimensões
tanto de ativismo como de consumo?
Com relação à reciclagem, embora te-
nha emergido nesses estudos, os valores e as

Referências bibliográficas
BARBOSA, S. R. C. S. Ambiente, qualidade de vida e cidadania: a psicologia. In: GÜNTHER, H.; PINHEIRO, J.; GUZZO, R. (Orgs.).
algumas reflexões sobre regiões urbano-industriais. In: HOGAN, D. Psicologia ambiental: entendendo as relações do homem com o
J.; VIEIRA, P. F. (Orgs.). Dilemas socioambientais e desenvolvimento meio. Campinas: Alínea, 2004, p. 17-30.
sustentável. Campinas: Unicamp, 1992, p. 193-210. LOMBORG, B. The skeptical environmentalist: measuring the
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos Real State of the world. Reino Unido: Cambridge University Press,
e da Amazônia Legal (MMA). Primeiro relatório nacional para a 2001.
Convenção sobre Diversidade Biológica. Brasília: MMA, 1998. NORDLUND, A. M.; GARVILL, J. Effects of values, problem
BRASIL. MMA; INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIÃO (Iser). O awareness, and personal norm on willingness to reduce personal car
que o brasileiro pensa sobre o meio ambiente, desenvolvimento e use. Journal of Environmental Psychology, 23, 339-347, 2003.
sustentabilidade. Pesquisa de Opinião. Brasília: MMA, 2001. OSKAMP, S. A sustainable future for humanity? How can
CORRALIZA, J. A.; BERENGUER, J. Environmental values, beliefs, Psychology help?. American Psychologist, 55 (5), 496-508, 2000.
and actions: a situational approach. Environment and Behavior, 32 TORRES, H. G. O Nordeste urbano: grave crise ambiental.
(6), 832-848, 2000. In: HOGAN, D. J.; VIEIRA, P. F. (Orgs.). Dilemas socioambientais e
COSTA, S.; ALONSO, A.; TOMIOKA, S. Modernização negociada: desenvolvimento sustentável. Campinas: Unicamp, 1992, p. 171-
expansão viária e riscos ambientais no Brasil. Brasília: Ibama, 2002. 192.
(Série Publicações Avulsas). ZELEZNY, L. C.; SCHULTZ, P. W. Promoting environmentalism.
FERREIRA, M. R. Problemas ambientais como desafio para

JUN / JUL 2005 107


cul c u lt u r a
Luigi Zampetti*

Arte,
cidadania
e samba

108 Democracia Viva Nº 27


ura

JUN / JUL 2005 109


c u lt u r a

entre outros, para a coleta de recicláveis. O


material reciclado produzido pelos parceiros
é doado à associação, que, desse modo, pode
gerar e sustentar postos de trabalho para
pessoas catadoras e ex-moradoras de rua.
A organização da produção é acompanhada
pelo processo de resgate da auto-estima e da
cidadania de uma população historicamente
excluída.
A Asmare recolhe por mês cerca de
450 toneladas de lixo contendo papel, pa-
pelão, revistas, jornais, latas de alumínio,
garrafas PET e plásticos. Com exceção do
vidro e da borracha, recebe quase todos os
outros tipos de material. Tudo é separado,
prensado e estocado, antes de seguir para
Em Belo Horizonte, há 15 anos, surgiu um exem- a reciclagem. Nos galpões, parte desse ma-
plo de luta. A vontade de 20 pessoas catadoras terial é utilizada nas oficinas de reciclagem,
de papel se tornou realidade: hoje, o que elas que geram postos de trabalho para cerca
construíram superou em muito qualquer sonho de 30 pessoas.
considerado antes impossível. A Associação dos
Catadores de Papel, Papelão e Material Reapro- Shows e debates
veitável de Belo Horizonte (Asmare) tem cerca
de 380 associados e associadas e beneficia, Uma parceria entre a Asmare e sete organi-
indiretamente, mais de 1.500 pessoas. zações de catadores e catadoras vai fazer a
Além do trabalho de coleta realizado diferença em Belo Horizonte. Eles inaugurarão
por catadores e catadoras, a associação de- a primeira fábrica de reciclagem do mundo
senvolve um trabalho de parceria com empre- dirigida por pessoas catadoras de materiais
sas, escolas, condomínios, órgãos públicos, recicláveis.

Exemplo de luta
Logo no início, o pequeno grupo reuniu materiais recolhidos durante seis
meses e trocou pelo dinheiro necessário para a associação funcionar. “Era
o tal de capital de giro que a gente não sabia o que era, achava que era
palavrão”, conta d. Geralda, uma das fundadoras. Até então, catadores e
catadoras tinham que driblar a fiscalização, que não permitia a coleta. “O
jeito era trabalhar durante a noite, sem nenhuma garantia de segurança,
mas a gente já tinha botado na cabeça que ia conseguir exercer a nossa
cidadania e fortalecer os direitos da classe. O lema era não desistir”, conclui.
Depois de 15 anos de trabalho, vieram a credibilidade e o reconhecimento,
e as palavras, que antes eram sofridas, hoje saem fáceis e cheias de alegria,
sensação de dever cumprido.
Maria das Graças Marçal – rebatizada como d. Geralda, em homenagem ao santo de devoção
de sua mãe – começou a catar papel aos 8 anos. Como catadora, sofria discriminação e era
desprezada. Em 1990, d. Geralda reuniu-se com mais 19 pessoas, e, com a ajuda da Pastoral de
Rua, fundaram a Asmare. Esse grupo inicial ocupou um terreno vazio e, com passeatas e contatos,
acabou conquistando reconhecimento e apoio de parte da comunidade.
Em 1997, d. Geralda representou o Brasil num seminário sobre desenvolvimento sustentável
na Organização das Nações Unidas (ONU) e, em 1999, foi agraciada como representante dos
catadores e das catadoras pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e
Cultura (Unesco), com menção honrosa pelo trabalho desenvolvido. No mesmo ano, recebeu
da revista Cláudia o prêmio Mulher do Ano. Ela é casada, mãe de nove filhos, criados e educados
com o dinheiro de catadora de papel. No ano passado, foi homenageada em uma reunião do
Banco Mundial, em Washington, nos Estados Unidos. Atualmente, responde pela coordenação-
-geral da Asmare.

110 Democracia Viva Nº 27


arte, cidadania e samba no pé

Desperdício em números
O costume faz acreditar que o lixo deixa de ser problema quando é deixado na porta de casa. A
maioria das pessoas não sabe para onde os resíduos vão e o que poderia ser feito com eles. Por
isso, ocorre o desperdício. Ao misturar os produtos na hora de descartá-los, as pessoas diminuem
o potencial de reciclagem do material. Segundo o Programa Ambiental da ONU, uma tonelada
de papel reciclado poupa cerca de 22 árvores, economiza 71% de energia elétrica e polui o ar
menos 74%. Reciclando, a humanidade extrai menos recursos naturais, economiza energia, reduz
a poluição, gera empregos e deixa as cidades mais limpas e bonitas. Então, por que as pessoas
não “cuidam do lixo”? Segundo os(as) catadores(as), falta consciência e informação, o que eles(as)
também demoraram a aprender. No Brasil, os resultados dos censos do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) de 1989 e 2000 mostram que, enquanto a população aumentou
16%, a quantidade de lixo coletada no mesmo período aumentou 56%.
• Em 20% dos domicílios brasileiros, o lixo não é sequer coletado (fonte: Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios/Pnad – IBGE).
• Dos municípios brasileiros, 64% destinam seus resíduos sem tratamento em lixões ou
curso de água.
• No Brasil, já são mais de 500 mil pessoas catadoras, espalhadas por 3.800 municípios, segundo
dados coletados em 2000 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
• Estima-se que as pessoas catadoras sejam responsáveis por 90% dos materiais que alimentam
as indústrias recicladoras.
• A cidade de São Paulo produz, diariamente, 15 mil toneladas de lixo e perde R$ 300 milhões
ao ano por causa de materiais recicláveis que vão para as lixeiras.
• O estado do Rio de Janeiro produz 42 mil toneladas de garrafas. Desse total, apenas
1% é reciclado.
• Brasília é a capital do desperdício. Cada pessoa produz, em média, 1,2 quilo de lixo por dia.
Isso é 30% a mais do que o restante do país.
• Em Belo Horizonte, são 700 gramas de lixo diários por habitante. A Superintendência de
Limpeza Urbana (SLU) recolhe diariamente 4,5 mil toneladas, o que equivale ao peso de mil
elefantes. O aterro sanitário da cidade tem sobrevida apenas de um ano e meio.

A fábrica está sendo construída no


bairro Juliana, regional norte da capital
mineira gerará 62 empregos e aumentará
a renda de 550 famílias. Por ano, serão
recicladas 3,6 mil toneladas de plástico que
iriam para aterros sanitários. A indústria será
inaugurada em agosto, durante o 4º Festival
Lixo e Cidadania.
O Festival Lixo e Cidadania nasceu com
a proposta de discutir, por várias perspectivas
e olhares, a questão dos resíduos sólidos no
Brasil. Aliando uma programação temática de
debates e conferências com uma programação
cultural de lançamentos de livros, exposições,
feiras de produtos reciclados, desfile de moda
com roupas feitas a partir de materiais reapro-
veitáveis e shows culturais, o festival convoca a
comunidade a participar da discussão. O festival
já se tornou uma referência na capital mineira.
Nestes três anos, um público de mais de 25 mil
pessoas esteve presente ao evento.
O 1º Festival Lixo e Cidadania foi re-

JUN / JUL 2005 111


c u lt u r a

alizado de 13 a 17 de novembro de 2002. 2003. Durante o evento, a ministra do Meio


Contou com mais de 5 mil participantes, entre Ambiente Marina Silva anunciou a liberação
técnicos(as), agentes sociais, catadores(as) e de R$ 4 milhões para formação e capacitação
público em geral. O sucesso desse evento, que de catadores e catadoras de materiais reci-
foi amplamente divulgado na mídia, evidenciou cláveis. Artistas que têm envolvimento com a
que é possível gerar trabalho por meio do re- reciclagem apresentaram shows alternativos:
aproveitamento e da reciclagem. Entretanto, Trio Mocotó, Mundo Livre S/A e, mais uma vez,
também se constatou a necessidade de ampliar Hermeto Pascoal animaram as mais de 12 mil
o debate e estimular participação social, com- pessoas que passaram pelo evento.
prometendo os governos a adotarem políticas Em 2004, o 3º Festival Lixo e Cida-
públicas que inovem o tratamento do lixo e da dania foi realizado de 31 de agosto a 5 de
miséria. Na parte cultural, houve shows com setembro. O ministro de Desenvolvimento
o multiinstrumentista Hermeto Pascoal, Elza Social e Combate à Fome Patrus Ananias
Soares, DJ Dolores, entre outros. de Sousa abriu o festival, alertando sobre a
O 2° Festival Lixo e Cidadania foi reali- questão dos assassinatos de mora­dores(as)
zado de 27 de outubro a 1º de novembro de de rua nas cidades de São Paulo e Belo Hori-
zonte, e se comprometeu a lutar por políticas
públicas rigorosas contra tais atrocidades
e de incentivo para o trabalho da catego-
ria. Cerca de 7 mil pessoas passaram pelo
evento, que teve shows de diversos artistas,
como Amaranto, Vander Lee, Sandra de Sá, Zé
da Guiomar, Uakti e Velha Guarda da Portela.
Há dez anos, foi criada também a
Estação Primeira dos Catadores, que, desde
então, vem se apresentado nas festividades
do carnaval em Belo Horizonte. É uma opor-
tunidade de mostrar as possibilidades da
reciclagem, com fantasias feitas a partir
de materiais encontrados no lixo. Com
papel, plástico, vidro e metal, mais de 300

112 Democracia Viva Nº 27


arte, cidadania e samba no pé

componentes retratam sambas-enredo que da reciclagem. As pessoas podem, através


* Luigi Zampetti
têm a ver com a realidade e o dia-a-dia das desses produtos, transformar a noção de
pessoas catadoras. Em 2004, a homenagea- ambiente que têm”, diz. Assessor de
comunicação da
da na avenida foi a imprensa com o samba Produtos do vestuário, como calças
Asmare e diretor da
“Quem não se comunica se estrumbica”. Este e camisas, e até artigos decorativos, como
LZ Comunicação –
ano, Ary Barroso serviu de inspiração para o luminárias e tapetes, são comercializados. A
empresa especializada
tema do carnaval. Ele teria sido o primeiro maioria dos mais de 50 produtos é feita nas em comunicação para
radialista a defender a coleta seletiva no Brasil. oficinas da Asmare, por ex-moradores(as) de o Terceiro Setor
Fundado em 2001, o Espaço Cultural rua e catadores(as) de papel. A loja funciona
Espaço Reciclo
Reciclo foi outra alternativa que a Asmare de segunda a sábado, das 9 às 18 horas. De
Asmare Cultural:
encontrou para mostrar, de maneira lúdica e quinta a sábado, a loja fica aberta até 2 horas
Av. Contorno, 10.564,
prazerosa, as possibilidades de reaproveita- da manhã, por conta do funcionamento do
Barro Preto, Belo
mento do lixo. bar Reciclo. Horizonte – MG
O Reciclo conta com uma lojinha para
Tel.: (31) 3295-3378 /
venda de produtos, espaço de shows com
3295-6320
capacidade para 300 pessoas, além de ofici-
nas de cozinha, confecção de instrumentos Fotos: Elias Henrique
musicais, corte e costura, papelaria, metal,
teatro e carnaval.
Há quatro anos, na noite de Belo
Horizonte, o Reciclo Asmare Cultural come-
çou a sua programação musical com ritmos
ecléticos, inovadores e autorais, mas foram
os shows de samba e bossa nova que se des-
tacaram. Clientes do bar identificam o Reciclo Quem não se comunica se estrumbica
com o ritmo do samba. Segundo o público, é
o espaço ideal para dançar, beber uma cerveja, (Mandruvá, Léo Piló, Dimir Viana)
conhecer pessoas e paquerar.
Por isso, fica cada vez mais forte a Catador, catador, catador
ligação entre os dois, transformando, hoje, o
Reciclo na casa de samba de Belo Horizonte.
É a Asmare na avenida
Mais de 100 mil pessoas e 2.500 artistas já Praças e avenidas vou rodar
passaram pela casa.
Em um projeto inovador, a Asmare,
Reciclando a sua vida. (BIS)
até o fim deste ano, inaugurará, na Zona Sul
da capital mineira, o Reciclo 2. Com o novo Quem não se comunica
espaço, será possível diversificar as atividades
Se estrumbica.
culturais, criando oportunidades para deba-
tes temáticos, seminários, mostra de vídeos Estou aqui para mostrar
e mais apresentações culturais. Além disso,
A nossa arte que recicla
funcionarão no Reciclo 2 um restaurante e
um café, que serão abastecidos de ervas e A consciência para um futuro de verdade
temperos por uma horta orgânica, em par-
Que anuncia que a felicidade,
ceria com a rede de agricultura alternativa.


A lojinha do Reciclo é um espaço que É a boa-nova para o mundo renovar.
permite que as pessoas que o visitam façam
compras diferentes e encontrem produtos de
Alô, Alô, você!
qualidade, com design arrojado e um ponto
em comum: todos são feitos a partir do que A manchete está no ar!
é encontrado no lixo. Para o coordenador
Sou rio sem poluição
técnico da Asmare, José Aparecido Gon-
çalves, a loja não foi criada apenas pelo Com água limpa vou lavar seu coração! (BIS)
aspecto comercial. Segundo ele, esse tipo
de empreendimento é fundamental para a
Tô aqui pra mostrar!
comunidade de Belo Horizonte. “Com isso,
trazemos o conceito de beleza em torno

JUN / JUL 2005 113


e s pa ç o a b e rt o
Weber A. N. Amaral, Silvio Ferraz e Roberto Smeraldi*

Dinâmica da
soja,
o desmatamento

A expansão da soja no país nos últimos anos tem sido alvo de intensos debates entre go-

vernos, organizações civis e iniciativa privada, principalmente quanto às mudanças no uso

do solo e a sustentabilidade do processo de crescimento da produção da soja. Ao mesmo

tempo que propicia grandes divisas e desenvolvimento ao país, essa produção avança ra-

pidamente, de forma direta e indireta, sobre o cerrado e a Amazônia, funcionando como

um dos vetores importantes do desmatamento, de concentração fundiária e de geração de

conflitos sociais.

Este artigo aborda algumas questões fundamentais relacionadas ao entendimento

desses processos complexos e suas dinâmicas, e especialmente sobre os principais fatores

condicionantes da expansão da soja na região amazônica. Além disso, são apresentados

os resultados de simulações sobre cenários de expansão dessa cultura a partir de diversas

estatísticas oficiais disponíveis. É baseado nos resultados do trabalho realizado, em 2005,

114 Democracia Viva Nº 27


aberto

pelo Grupo de Trabalho de Florestas do legais da Amazônia brasileira.


Fórum Brasileiro de Organizações Não- Inicialmente, o principal interesse na
-governamentais e Movimentos Sociais Amazônia, por parte das pessoas envolvidas
para o Meio Ambiente e o Desenvolvi- na produção e comercialização da soja no
mento (FBOMS) sobre a relação entre Centro-Oeste, especialmente no norte de
cultivo de soja e desmatamento. Mato Grosso, era baratear o escoamento da
O primeiro registro de cultivo de produção destinada à exportação, em função
soja no Brasil data de 1914, no município de hidrovias como a do Rio Madeira, com
de Santa Rosa, Rio Grande do Sul. A partir seus portos graneleiros nas cidades de Porto
da década de 1960, a soja expandiu-se para Velho (RO) e Itacoatiara (AM). No entanto,
o norte do Paraná e se estabeleceu como de forma crescente, a Amazônia está sendo
cultura economicamente importante no vista como a “nova” fronteira de produção
país, sendo que 98% da produção nacional de soja e de outros grãos, dentro de uma lógica
de soja nesse período era originária da do agronegócio globalizado.
região Sul. Nas décadas de 1980 e 1990, Na Amazônia Legal, o cultivo da
a cultura se expandiu rapidamente para soja se expandiu, inicialmente, a partir do
áreas de cerrado no Brasil Central. Em fim da década de 1990, em áreas de cerrado
1980, o Centro-Oeste era responsável por e florestas de transição, principalmente no
20% da produção nacional; em 1990, esse norte de Mato Grosso, sudoeste de Mara-
percentual era superior a 40% e, em 2003, nhão, norte de Tocantins, sul de Rondônia
chegou próximo a 60%. e lavrados de Roraima. Mais recentemente,
Diversos fatores contribuíram para a o cultivo da soja tem avançado em áreas
expansão da soja no cerrado ao longo dos inseridas no bioma da floresta tropical, a
últimos anos, entre os quais se destacam: exemplo das regiões de Humaitá-Lábrea
o aumento da demanda e cotação da soja (AM) e Santarém (PA).
no mercado internacional de commodities; Especialistas consideram as difi-
baixo valor das terras em relação à região culdades logísticas de escoamento como
Sul; ganhos de produtividade associados ao o maior obstáculo à expansão da soja
desenvolvimento de novos cultivares adap- na Amazônia. Nesse sentido, destaca-se a
tados aos solos e clima da região;1 extensas formação recente de coalizões de produto-
áreas com topografia plana, propícia à me- res de soja, as tradings (ou compradoras)
canização; condições ambientais favoráveis e articulações políticas que buscam a
em termos de chuvas e insolação, melhorias viabilização de investimentos de grande
na infra-estrutura de transportes; e o perfil de porte em infra-estrutura de transportes,
produtores e produtoras rurais oriundos, em a exemplo da pavimentação da rodovia
sua maioria, da região Sul. Cuiabá–Santarém (BR-163). 2 Um indicador
Não obstante a sua importância para da importância dessa rota para o escoamento 1 Hoje, as lavouras de soja mais
produtivas do Brasil estão em
o crescimento do agronegócio e contribuição da soja do Centro-Oeste e a expansão de seu Mato Grosso, com rendimentos
médios acima de 3 toneladas
para a balança comercial brasileira, a expan- cultivo em direção à floresta amazônica é a por hectare/ano.
são acelerada da soja no cerrado tem provo- construção do terminal graneleiro da Car- 2 Segundo o governo de Mato
cado grandes impactos sociais e ambientais, gill em Santarém (PA), com capacidade Grosso, o asfaltamento da BR-
163 deve permitir uma redução
incluindo a expansão dessa cultura para áreas para escoamento de cerca de 1 milhão de dos custos de transporte da
soja em aproximadamente 30%
de rica biodiversidade, já dentro dos limites toneladas de grãos/ano. ou US$ 38 por tonelada.

JUN / JUL 2005 115


e s pa ç o a b e rt o

Não obstante os seus benefícios sustentáveis de uso do solo e a reduzir as


potenciais, principalmente em termos de taxas de desmatamento. Entre os principais
crescimento econômico no curto prazo, a impactos potenciais da expansão da soja na
expansão acelerada da soja na Amazônia Amazônia, destacam-se o aumento das taxas
Legal traz uma série de riscos e impactos de desmatamento (associado a perdas de
sociais e ambientais. Tais impactos têm biodiversidade, aumento da erosão do solo,
chamado a atenção de órgãos governa- comprometimento de regimes hidrológicos
mentais, organizações da sociedade civil, e alterações climáticas), o deslocamento
instituições de pesquisa e até mesmo dos de pequenos produtores rurais (populações
grandes produtores de soja, que atualmente tradicionais, agricultores e agricultoras mi-
se sentem pressionados a adotar práticas grantes etc.), a migração de outras atividades

Para ser viável


O fenômeno da expansão da soja na Amazônia traz grandes desafios para o poder público,
que tem como função desenhar e viabilizar instrumentos e políticas públicas que estimulem a
incorporação de princípios de sustentabilidade (econômica, social e ambiental) na lógica dessa
importante atividade produtiva, bem como a sua inserção, de forma mais ampla, em estratégias
de desenvolvimento regional sustentável. Nesse sentido, a formulação e a implementação de po-
líticas eficazes pressupõem:
• a compreensão das dinâmicas da expansão da soja na região amazônica, especialmente os fatores
que condicionam e determinam o comportamento dos agentes econômicos;
• uma avaliação objetiva dos custos e benefícios totais (para interesses privados e de forma mais
ampla para todos os segmentos da sociedade em geral) da atividade econômica em questão e,
portanto, das necessidades de intervenção pública para planejamento do uso do solo;
• conhecimento da eficiência e eficácia dos vários instrumentos de políticas que poderiam ser apli-
cados, bem como dos seus custos associados.

econômicas e dos outros usos do solo que lizadas na terra firme. Entretanto, existem
empurram a fronteira do desmatamento para indícios de que a expansão da soja esteja
o interior da Amazônia, como a pecuária, e a deslocando a frente da pecuária para áreas
geração de conflitos sociais. vizinhas de floresta primária, gerando um
expressivo impacto indireto sobre o des-
matamento.
Impactos desconhecidos
Os impactos socioambientais da
Atualmente, as dinâmicas de expansão da expansão da soja em áreas já ocupa-
soja e seus impactos socioambientais em das por pequenos produtores rurais na
diferentes sub-regiões da Amazônia ainda Amazônia, detentores ou não de títulos
são pouco conhecidos. Em particular, há uma de propriedade, também são pouco co-
carência de estudos sobre as tendências de nhecidos. A predominância de pastagens
expansão da soja no contexto da heterogenei- como uso da terra em áreas ocupadas
dade de paisagens amazônicas, em termos de por produtores familiares, mesmo em
características dos recursos naturais (solos, projetos de assentamento, pode estar favore-
topografia, hidrologia e vegetação) e de cendo esse fenômeno. Visto que a soja está

Aberto
ocupação humana (situação fundiária, po- ocupando propriedades e posses de produ-
pulações locais, atividades produtivas etc.). tores familiares, cabe analisar os impactos
Por exemplo, argumenta-se que a soja desse fenômeno em termos de geração de

ESpaço
não provoca desmatamento na Amazônia, emprego e renda, concentração fundiária
uma vez que seu cultivo mecanizado está e deslocamento dessas populações para
ocupando pastagens antigas, principalmente áreas urbanas, novas frentes de ocupação
em fazendas de médio e grande porte, loca-

116 Democracia Viva Nº 27


Dinâmica da soja, o desmatamento na fronteira da Amazônia

Figura 1

Fatores condicionantes da dinâmica da expansão da soja e seus processos


associados: as dimensões espaciais, temporais e impactos

na floresta primária etc. Outra questão micos, zoneamento etc.) diante das dinâmi-
que merece uma análise mais aprofundada cas de expansão da soja na Amazônia. Tais
é o impacto da valorização de terras em análises são particularmente relevantes,
áreas de expansão da soja sobre práticas sob a ótica da identificação das mudanças
de grilagem em terras públicas, freqüen- necessárias no intuito de estimular uma
temente associada à exploração madeireira maior aproximação entre o desenvolvi-
ilegal, num contexto de frágil atuação dos mento agroindustrial e a conservação e o
órgãos públicos responsáveis pelas políticas uso sustentado dos recursos naturais da
fundiária e ambiental. Amazônia brasileira.
De modo geral, existe uma carên-
cia de estudos que integrem as principais
Expansão da soja e concentração
escalas temporais e espaciais dos fatores
que condicionam a expansão da soja e suas fundiária
relações com as atuais políticas públicas Uma das conseqüências do processo
(fundiária, ambiental, instrumentos econô- de expansão da fronteira agrícola nas

JUN / JUL 2005 117


e s pa ç o a b e rt o

regiões Centro-Oeste e Norte é a concen- rentável. Se não existissem esses lucros, não
tração fundiária, de renda e dos sistemas haveria interesse pela apropriação ou compra
produtivos – grandes fazendas de gado e das terras convertidas, e os desmatamentos
monoculturas mecanizadas (caso da soja) certamente teriam ritmo muito menos intenso.
– com a subordinação dos padrões cultu- Em todas as etapas do processo de
rais e produtivos das comunidades locais e desmatamento, os direitos de propriedade
regionais ao padrão conduzido pelos novos são assegurados com a ocupação física da
atores sociais, de modo geral imigrantes terra, presença que é muito mais importante
de outras regiões, com acesso a capital e do que qualquer documento de posse, incen-
tecnologia. Esse processo causa o desloca- tivando a ação de grileiros ou posseiros a
mento de pequenos agricultores, resultando ocupar terras e garantir sua transferência a
em novas fronteiras locais de desmatamento. novos atores com aversão ao risco relativa-
Nas áreas de expansão da cultura da mente maior, embora ainda baixa.
soja, é a lucratividade da pecuária, e poste- Existe uma tendência de tecnificação
rior transformação ou venda da terra para e profissionalização da produção pecuária,
agricultura intensiva, que sinaliza, tanto para gerando perspectivas reais de lucro que in-
os agentes iniciais como para os próprios pe- centivam agentes com diferentes funções.
cuaristas, que o desmatamento e a conversão Alguns tendem a ser especuladores, sem in-
das florestas em pastagens são uma atividade teresse de longo prazo ou compromisso com

Tabela 1
Análise de correlação entre as variáveis: área de soja em 2002, incremento da soja entre 2000 e
2002, desmatamento médio, desmatamento total e taxa de aumento do rebanho bovino. Entre
parênteses, os níveis de significâncias obtidos.
A_Soja_2000 Inc_Soja01/02 Desm_Tot03 Tx_desm01/02
Inc_Soja01/02 0.511(0.000)
Desm_Tot03 0.067(0.653) 0.430(0.003)
Tx_desm01/02 0.034(0.823) 0.501(0.000) 0.780(0.000)
Tx_inc_Reb00/03 - 0.271(0.066) - 0.078(0.602) 0.180(0.225) 0.188(0.205)

a produção em si (no máximo se capitalizam a sua expansão direcione o desmatamento em


temporariamente com a retirada de madeira), novas áreas, empurrando outras atividades,
enquanto outros são empresários capitaliza- como a pecuária, para o interior da Amazô-
dos e profissionais da fronteira consolidada, nia. Além disso, cenários futuros apontam
em relação direta com a economia formal. Já para um aumento da expansão da cultura em
os atores sem capital não só ficaram, até o função da disponibilidade de terra e presença
momento, excluídos desses processos, mas de infra-estrutura já disponível.
também tendem a ser deslocados para áreas Há elementos que apontam niti-
marginais, onde contribuem para a abertura damente para o fato de que a soja desloca
de novas fronteiras móveis ou expandem o a pecuária para novas áreas, com provável
alcance daquelas existentes. efeito de desmatamento indireto. Isso pode
ser observado pelo fenômeno da redução do
rebanho bovino nos principais municípios
Soja deslocando a pecuária
produtores de soja, porém com o aumento do
A análise da relação entre expansão da soja rebanho nas regiões limítrofes, com destaque
e taxa de desmatamento em escala municipal (no caso de Mato Grosso) para os municípios
mostra que existe uma relação indireta entre das regiões de fronteira móvel.

ESpaço
os dois fenômenos. A soja se apresenta, por- Particularmente para o estado de
tanto, como um dos fatores do desmatamento, Mato Grosso, foram analisadas diversas
mas não o único. Há, porém indicações de que variáveis para quantificação desse pro-

118 Democracia Viva Nº 27


Dinâmica da soja, o desmatamento na fronteira da Amazônia

cesso. Foram estudadas a


área plantada no ano 2000
(A_Soja_2000), o incre-
mento da área plantada da
cultura para os municípios
(Inc_Soja01/02) e as taxas
de desmatamento observa-
do para o mesmo período
(Taxa_desm01/02). As aná-
l is e s e n v o l v e r a m e s t u d o s
de correlação entre tais va-
riáveis, com o objetivo de
identificar a relação entre a
expansão da soja e o processo
de desmatamento.
Os resultados indicam
que as taxas de desmatamento
são positivamente correlacio-
nadas (50%) com o incremen-
to do cultivo de soja, e essa
correlação é extremamente
significativa do ponto de
vista estatístico (> 99% de
probabilidade). Outro elemento
importante observado é que o
aumento da área plantada com
soja no estado vem ocorrendo
em municípios já produtores,
com extensas áreas já desma-
tadas, mas à custa de novos
desmatamentos. Analisando a
relação entre as taxas de aumen-
to do rebanho bovino no período
e demais variáveis estudadas,
verifica-se que existe correlação
negativa entre a área plantada
de soja e a taxa de aumento do
rebanho, o que significa que o
número de cabeças de bovinos
tem diminuído nos municípios
com grandes extensões de soja.

Cenários da expansão
A análise da produtividade da soja nos princi- obtidos na região Sul do país. Além disso,
pais estados produtores mostra que os estados a curva de crescimento da produtividade no
de Rondônia e Mato Grosso apresentam as Centro-Oeste apresenta menor variação anual,
maiores produtividades no período de 1990 a quando comparada à de outras regiões. Esses
2004, variando em média entre 2,8 e 2,7 ton/ são indicativos de que, em Mato Grosso, a
ha, respectivamente. Nesse mesmo período, cultura encontrou melhores condições de
a produtividade média para as regiões Norte, adaptação.
Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul foi A soja em Mato Grosso esteve concen-
respectivamente de: 2,1, 2,0, 2,5, 2,3 e 2,1 trada durante anos na porção sul do estado
ton/ha. (regiões de cerrado), com escoamento realiza-
Nota-se que a produtividade da soja do principalmente pelos corredores da região
em Mato Grosso ultrapassou os índices Sudeste. A expansão da soja para regiões de

JUN / JUL 2005 119


ESpaço
e s pa ç o a b e rt o

transição cerrado–floresta no estado se deve


Aberto Desse modo, o deslocamento da soja
provavelmente ao desenvolvimento de varie- depende de uma combinação de elementos
dades adaptadas, disponibilidade de grandes naturais (solos, topografia), tecnológicos
extensões de terra já desmatadas a preços (variedades, técnicas de cultivo), estruturais
competitivos e altos índices de produtividade (infra-estrutura) e de oportunidade (disponibi-
obtidos. No entanto, a viabilização dos corre- lidade e custos da terra e logística), sendo que
dores de escoamento noroeste e norte foram parte desses elementos pode ser controlada
responsáveis pela grande expansão da cultura ou condicionada por incentivos e políticas
no estado e avanço sobre a região amazônica. de direcionamento.
A análise parcial de fatores limitantes As estimativas mostraram que o Bra-
e estímulos para a futura definição de cená- sil deverá atingir produção acima de 140
rios de expansão da soja na região mostraram milhões de toneladas até 2020, caso sejam
que os principais corredores disponíveis para mantidos o ritmo de crescimento médio da
escoamento – Porto Velho–Itacoatiara e Por- área colhida e da produtividade dos últimos
to de Itaqui – devem tornar grandes áreas, 13 anos (respectivamente, 6,52% e 4,59%)
em torno de rodovias e vicinais, suscetíveis e o patamar médio dos preços internacionais
à conversão para cultura da soja. A zona dos últimos anos (US$ 192/t) (Figura 4).
de influência da infra-estrutura é definida A área deverá se expandir atingindo pouco
em função da relação custo/dificuldade de menos de 60 milhões de hectares, sendo que a
acesso e o retorno econômico da atividade. produtividade deverá dobrar (BNDES, 2003).
A zona de 100 quilômetros em torno
de estradas existentes apresenta as maiores
extensões de áreas já desmatadas, porém
sem uso atual para soja, no norte de Mato
Grosso, região central de Rondônia, leste do
Pará, norte de Tocantins e sul do Maranhão.
Na mesma zona de influência, as áreas de
floresta mais suscetíveis ao desmatamento
são as de transição cerrado–floresta, loca-
lizadas principalmente no sul de Rondônia,
centro-oeste de Mato Grosso e leste de Mato
Grosso (Tabela 2). A tabela a seguir aponta
para algumas estimativas preliminares de
expansão da cultura, a serem validadas pela
inclusão de outros estados potencialmente
importantes (como Amazonas e Roraima) e
pelo uso de diferentes variáveis nos cenários
de disponibilidade de infra-estrutura.

Tabela 2
Extensão das áreas com cultivo de soja e com outros usos, área potencial para cultura e estimativas
de alocação de novas áreas de cultivo em cinco estados (valores em km2)

UF Área Área Outros Potencial Estimativa Aumento


desmatada1 de soja2 usos estado3 área (2014) projetado
RO 57.157 595 56.562 100.000 37.708 37.113
PA 91.210 268 90.942 10.000 10.000 9.732
TO 29.841 2.436 27.405 8.000 8.000 5.564
MA 39.293 3.425 35.868 10.000 10.000 6.575
MT 156.720 51.488 105.232 400.000 105.000 53512
Total 374.221 58.212 316.009 528.000 170.708 112.496
Fonte: 1 – Inpe/Prodes (2004); 2 – IBGE (2004), 3 – Adaptado de Bickel, U.; Dros, J. M. (2003).

120 Democracia Viva Nº 27


Dinâmica da soja, o desmatamento na fronteira da Amazônia

Figura 3

Evolução da produção e produtividade, no Brasil, e nas duas principais regiões do complexo soja –
Centro-Oeste e Sul (Conab, 2004)

Figura 4

Tendência da produção, área colhida e produtividade da soja no Brasil, no


período de 1961 a 2020 (Fonte: BNDES, 2003)

JUN / JUL 2005 121


e s pa ç o a b e rt o

* Weber A. N.
Amaral e Silvio
Ferraz Pontos para debate
São da Escola Superior I. Processos de desmatamento são complexos e envolvem múltiplos fatores, em diferentes
de Agricultura Luiz de escalas de tempo e espaço. As dimensões espacial e temporal da fronteira móvel do des-
Queiroz, Universidade matamento foram muito estudadas no fim da década de 1980 e no início da década de
de São Paulo, Piracicaba,
1990. Porém, atualmente, a soja adiciona outros fatores de complexidade, potencializando
as escalas espacial e temporal do processo de desmatamento, já que aumenta a velocidade
SP, e integram a
das mudanças no uso do solo de uma cultura para outra e empurra a fronteira da pecuária
ONG Amigos da Terra
para o interior da Amazônia, mantendo uma relação algumas vezes direta e em outras
Amazônia Brasileira, São indireta com o desmatamento.
Paulo, SP. II. Há uma clara correlação entre as taxas de desmatamento e a expansão da cultura da
soja nas áreas analisadas dentro da região amazônica. Porém, os fatores que afetam essa
Roberto Smeraldi
correlação devem ser mais bem investigados, no que diz respeito à velocidade (dimensão
também integra a temporal) e ao direcionamento do desmatamento (dimensão espacial).
ONG Amigos da Terra III. A previsão para 2014 é de que a área plantada de soja nos estados de Mato Grosso,
Amazônia Brasileira Rondônia, Pará, Maranhão e Tocantins possa vir a ser triplicada em função das tendências
observadas, mesmo que sujeitas às influências de outros fatores externos, como os de mer-
cado. Grande parte das novas áreas deverá estar provavelmente concentrada nos estados
de Mato Grosso e Rondônia. No entanto, tais previsões podem também ser alteradas em
função da expansão de áreas plantadas em outros estados da Amazônia (como Amazonas
e Roraima) ou do Nordeste. É também necessário observar que os impactos ambientais e
sociais podem variar muito de acordo com a situação de cada estado ou sub-região.
IV. A falta, até o momento, de dados, levantamentos e pesquisas de longo prazo sobre o
tema leva à conclusão de que é necessário e urgente aprofundar e ampliar o trabalho
inicial realizado pelo GT Florestas do FBOMS (Grupo de Trabalho de Florestas, 2005), que
serviu de base para este artigo, com levantamentos primários em diferentes situações e
contextos dentro da Amazônia. Tais trabalhos devem, pela complexidade do tema, ser
realizados em parceria com os diferentes atores envolvidos e interessados no assunto, tais
como organizações civis, universidades, instituições de pesquisa, órgãos do governo, como
a Embrapa, ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), do Meio Ambiente
(MMA) e Ciência e Tecnologia (MCT), e a iniciativa privada.

Referências bibliográficas
ABIOVE. Empresas processadoras de soja no Brasil – empresas Costa, F. G. Avaliação do potencial de expansão
associadas. 2004. Disponível em: <http:// www.abiove.com.br>. da soja na Amazônia Legal: uma aplicação do modelo
———. Soja verde para um mercado maduro. Informativo de von Thünen. 2000. (Dissertação de mestrado).
Abiove, out. 2004. ESALQ/USP, Piracicaba.
AGRIANUAL. Principais rotas de escoamento da produção de EMBRAPA. Recomendação de cultivares de soja para a
soja – Anuário Estatístico da Agricultura Brasileira. São Paulo: FNP microrregião de Paragominas, Pará. Belém: Embrapa, 2003.
Consultoria & Comércio, 2003. (Comunicado Técnico 82).
AMIGOS DA TERRA AMAZÔNIA BRASILEIRA. Tendências da soja ————. Tecnologias para produção de soja na região central
na Amazônia Brasileira – Dados e estado da discussão. 3. ed., jun. do Brasil. Sistemas de produção, v. 6. Londrina, out. 2004.
2004. FBOMS. Relação entre cultivo de soja e desmatamento:
BICKEL, U.; DROS, J. M. The impacts of soy bean cultivation compreendendo a dinâmica. São Paulo: Amigos da Terra Amazônia
on Brazilian ecosystems. Zurique: WWF Forest Conversion Initiative, Brasileira, 2005.
2003. GEIPOT. Corredores Estratégicos de Desenvolvimento/
BNDES. Perspectivas para o cultiva da soja:2004/20. BNDES

Aberto
Alternativas de Escoamento de Soja para Exportação. 2004.
setorial, Rio de Janeiro, n. 20, p.127-222, 2003. Disponível em: <http://www.geipot.gov.br/estudos_realizados/soja/
BRASIL. Programa Brasil em ação. 2004. Disponível em: <http:// capitulo_16.htm>.
www.presidencia.gov.br/publi_04/colecao/2acao11.htm>. Acesso IBGE. Censo agrícola municipal – Sidra: banco de dados
em: 2 jun. 2005. agregados. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em:

ESpaço
CASTRO, A. C. Localização e identificação das empresas 2 jun. 2004.
processadoras de soja, suas áreas de influência, preços e custos de INPE. O monitoramento da Amazônia brasileira por satélite –
transporte relacionados. WWF-Brasil, 2002. projeto Prodes. Disponível em: <http://www.obt.inpe.br/prodes>.
CONAB. Levantamento de safras 2004/05. 2004. Disponível em: Acesso em: 18 maio 2004.
<http://www.conab.gov.br>. Acesso em: 2 jun. 2005.

122 Democracia Viva Nº 27


sua opinião

Caro(a) leitor(a)

Estamos inaugurando, nesta edição da Democracia Viva, um espaço para sua opinião.
Queremos manter um canal de diálogo com nosso público e verificar a utilização
da nossa revista por diferentes setores da sociedade. Para isso, contamos com sua
colaboração por correio eletrônico <democraciaviva@cidadania.org.br> ou pelo
endereço postal – Avenida Rio Branco, 124, 8º andar, Centro, Rio de Janeiro – RJ,
CEP 20040-916.
A seguir, algumas opiniões enviadas recentemente à Democracia Viva e que
nos inspiraram a abrir este novo espaço. As remetentes dessas mensagens – uma
educadora, uma comunicadora e uma bibliotecária de universidade pública – ilustram
com seus comentários nosso esforço em transformar um meio de comunicação em
instrumento de mudança social. Agradecemos a Célia Varela, Andréa Rodrigues e
Aparecida Caitar pelo reconhecimento ao trabalho do Ibase.

Aguardamos seu contato também.


Equipe da Democracia Viva/Ibase

Educação popular que tentamos resgatar social e culturalmente


nossa boa imagem nos sentimos fortes quando
Receber um exemplar da revista Democracia Viva encontramos iniciativas como as que V.Sas.
é sempre uma maneira de ficar mais sábia, de tiveram com a nossa causa. Forte abraço a
refletir a minha prática de educadora popular, todos da equipe desta grande revista. Digo
conectando-me com o movimento do mundo, tranquilamente que Vocabulário Feminino tem
do Brasil e das comunidades locais. É uma hoje uma informação muito mais enriquecedora
revista bonita e de muito conteúdo inspirador graças à doação de exemplares da Democracia
para consolidar e inovar práticas sociais que Viva. Atenciosamente agradeço em meu nome,
transformem a nossa utopia em projeto político, em nome da Rádio e de toda a comunidade que
comprometido com a felicidade da maioria da passou a conhecer o trabalho do Ibase.
população. No mais, parabéns pela força e pelo
trabalho de produção e democratização do Aplausos!
conhecimento comprometido com a afirmação Andréa Rodrigues
da cidadania e da democracia no Brasil e no Vocabulário Feminino
mundo. Para a democracia SER e estar VIVA, Rádio Baixada FM (93,7)
dá um trabalho... Valeu por estarem fazendo
a parte de vocês.
Acervo
Com admiração,
Célia Varela A Biblioteca Central da Universidade Estadual
Assessora da Fian Brasil (FoodFirst Informa- de Londrina agradece o recebimento da revista
tion & Action Network / Rede de Informação Democracia Viva (jun./jul. 2004). Gostaríamos
e Ação pelo Direito a se Alimentar) também de receber, através de doação, os
números seguintes que forem publicados da
revista Democracia Viva, editada por essa con-
Comunicação ceituada entidade.

Perdoe-me pelo atraso em agradecer pela doação Aparecida J. P. Caitar


entregue em minha casa. Confesso que chorei Universidade Estadual de Londrina
muito... Aqui na Baixada Fluminense, onde Biblioteca Central
todas as formas de misérias são evidentes, nós

JUN / JUL 2005 123


última página

124 Democracia Viva Nº 27

Vous aimerez peut-être aussi