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DEMOCRACIA VIVA 22

jun 2004 / Jul 2004

Mídia e política
Alessandra Aldé

Haiti – uma crise social


e existencial
Edele Thebaud

Entrevista
Cleonice Dias

Todos os olhos do morro


Vincent Rosenblatt
e d i t o r i a l
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

O Ibase, como organização de cidadania ativa que é, atribuiu-se


por missão radicalizar a democracia. Uma dimensão prática do exercício de tal missão é contribuir para
que se desenvolva na sociedade civil uma cultura democrática que propicie todos os direitos humanos a
todos os seres humanos, sem discriminações ou exclusões. É estratégico para o Ibase a construção, no
imaginário coletivo, de visões e percepções que estejam fundadas no respeito à igualdade de direitos
no seio da diversidade humana.

Por mais que incomode, precisamos conduzir nosso olhar para além da leitura superfi-
cial, estendê-lo para que enxerguemos questões que teimam em ficar distantes – ou que são totalmente
distorcidas pelos filtros pouco democráticos de nossa mídia dominante. Um dos artigos, da professora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Alessandra Aldé, é sobre o tema, Mídia, pluralismo e atitude
política: os meios de comunicação de massa informam e formam, mas como garantir o direito de acesso
às diversas fontes? A crônica de Alcione Araújo nos mostra, em tom bastante irônico, onde se pode chegar
quando um único modo de ver se impõe.

Mas o tema mais recorrente na edição é o da favela. Não há como aceitar os parâmetros
do velho debate que ameaça se reinstalar entre nós e trazem de volta questões como a remoção das comu-
nidades ou até mesmo a construção de cercas que as isolem do resto do ambiente urbano. A favela faz parte
da cidade, é lugar onde pessoas vivem seus dramas pessoais e coletivos, é lugar de prática de liberdade,
cidadania e vida – muita vida, por sinal. Como nos mostra a líder comunitária da Cidade de Deus, no Rio
de Janeiro, Cleonice Dias, nossa entrevistada.

Nossa maneira de ver é uma construção, determinada por uma série de condicionantes
que, muitas vezes, nos escapam, e que acabam por fazer com que vários estereótipos venham à tona (como
expressado por Jailson de Souza e Silva, professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador ge-
ral do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, no artigo Favelas – além dos estereótipos). É preciso,
portanto, que reconstruamos nossos olhares com outras imagens. Este é o objetivo do projeto Olhares do
Morro, do qual fazem parte fotógrafos(as) oriundos(as) das comunidades que lutam contra a imagem he-
gemônica e estereotipada da favela como pátria do caos. No fundo, é o direito de cidadania de seus(suas)
moradores(as) que está em jogo. Afinal, vemos essas pessoas como aquelas que não têm direito à nossa
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
3 Artigo 20148-900 Rio de Janeiro/RJ
Mídia, pluralismo e atitude política Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852 3517
Alessandra Aldé <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>

10 Nacional Conselho Curador


Regina Novaes
Favelas – além dos estereótipos João Guerra
Jailson de Souza e Silva Carlos Alberto Afonso
Moacir Palmeira
18 Variedades Jane Souto de Oliveira

20 Artigo Direção Executiva


Cândido Grzybowski
Cidadania, democracia e justiça social Dulce Pandolfi
Luiz Antonio Machado da Silva
Francisco Menezes
Jaime Patalano
Entrevista 26 Pelo Mundo
Cleonice Dias Coordenadores(as)
28 Internacional Erica Rodrigues
Haiti – uma crise social e existencial Iracema Dantas
Edele Thebaud Itamar Silva
João Roberto Lopes Pinto
34 Entrevista João Sucupira
Leonardo Méllo
Cleonice Dias Moema Miranda
Núbia Gonçalves
46 Crônica
Como as patas de um cavalo DEMO C RA C IA VIVA
Alcione Araújo
ISSN: 1415149-9
48 Resenha Diretor Responsável
Cândido Grzybowski
50 Opinião Ibase Conselho Editorial
Direito ao desenvolvimento: Alcione Araújo
um campo de disputas Ari Roitman
cultura Cândido Grzybowski Eduardo Henrique Pereira de Oliveira
Todos os olhos do morro Jane Souto de Oliveira
58 Indicadores Regina Novaes
Balanço social: diversidade, Rosana Heringer

participação e segurança do trabalho Coordenação Editorial


João Sucupira Iracema Dantas

64 Espaço aberto Subeditor


Marcelo Carvalho
Qual é a identidade do homem
negro? Revisão
Osmundo Pinho AnaCris Bittencourt
Marcelo Bessa
70 Cultura Assistentes Editoriais
Todos os olhos do morro Flávia Mattar
Vincent Rosenblatt Jamile Chequer

76 Última página Produção


Geni Macedo

Distribuição
Maria Edileuza Matias

Projeto Gráfico
Mais Programação Visual

Diagramação
Imaginatto Design e Marketing

Fotos da Capa
Alex Basilio
Jorge Alexandre Firmino

Fotolitos
Rainer Rio

Impressão
J. Sholna

Tiragem
4.500 exemplares

democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Alessandra Aldé*

e atitude
Mais uma vez nos aproximamos do tempo da política, marcado no Brasil pela estação

eleitoral.1  Para grande parte de cidadãos e cidadãs, desinteressados de uma política vis-

ta como incompetente e corrupta, é o único momento em que se sentem mobilizados,

até pelo voto obrigatório, a se posicionar e justificar politicamente. Ora, somos uma

sociedade de pessoas voltadas predominantemente para a vida privada, para o projeto

pessoal de aquisição (ou manutenção) de bens e status. Faz parte do próprio dilema da

modernidade que o cidadão e a cidadã da democracia estejam por demais empenhados

na esfera privada do interesse econômico e pouco propensos a gastar o esforço neces-

sário para participar, ativos e informados como reza a teoria, da deliberação pública dos

interesses coletivos. Encontramos o brasileiro e a brasileira, ao contrário, muitas vezes

decepcionados, depois das grandes mobilizações cidadãs da década de 1980 pela demo-

cracia, com os resultados práticos da política para sua vida cotidiana. A política parece 1 O termo “tempo da política”
é popularmente empregado
para designar o período elei-
distante, uma coisa a ser deixada a especialistas e políticos. toral. Ver Palmeira e Goldman
(1996).

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Artigo

Apesar disso, toda eleição lembra a cidadãos e de leitura. A mídia de massa aparece como um
cidadãs que cada um vale um voto; a extensão quadro de referência particularmente acessível
progressiva do sufrágio, ao longo dos últimos para a maioria das pessoas, e os enquadra­
dois séculos, incorporou à decisão sobre a mentos que oferece podem ser determinantes
escolha de governantes uma grande massa de nas interpretações correntes do mundo público,
pessoas para quem a política não é o assunto pois contribuem para a construção de esquemas
central, mas que, mesmo assim, busca justificar explicativos socialmente compartilhados. Nesse
de maneira minimamente coerente suas ações sentido, a maneira pela qual os meios organi-
e decisões. As pessoas estruturam seu conheci- zam e apresentam a informação tem efeitos
mento do mundo e sua opinião sobre a política importantes em sua interpretação.
procurando fugir do sentimento de aleatorieda- Nos últimos anos, minha reflexão como
de, construindo explicações plausíveis, aceitáveis, pesquisadora de comunicação e política tem
a partir dos quadros de referência a que têm focalizado, justamente, as implicações dessa
acesso. A necessidade de se justificarem discursi­ realidade para nossas possibilidades concretas
vamente, mesmo que para de democracia. Isso me levou a realizar, como
si mesmas, faz com que base para minha tese de doutorado, uma série
estejam atentas a dis- de entrevistas em profundidade com um grupo
cursos legiti­madores que de pessoas comuns do Rio de Janeiro, de ida-
simplifiquem as complexi- des e condições sociais variadas.2 Sempre senti
dades do mundo público, falta, tanto no campo da comunicação como
orientando a tomada de no da ciência política, de uma preocupação
posições. mais empírica com a perspectiva do próprio
É dentro dessa cidadão/receptor, da presença em carne e osso
realidade que precisamos do sujeito, muitas vezes inferido nas teorias.3 
entender o papel atual Minha pesquisa procurou encontrar padrões
da mídia, suas práticas e de comportamento e cultura a partir da análise
atores, como uma media- direta do discurso de pessoas comuns sobre sua
ção fundamental entre vivência em um mundo político marcado pela
sociedade e esfera públi- presença dos meios de massa. Foi possível ob-
ca. Os meios de comuni­ servar, ao longo da análise, a estruturação das
cação são centrais na atitudes políticas concretas da pessoa comum
elaboração e justificação e relacioná-la com o uso que faz dos meios de
das atitudes políticas. comunicação.
As explicações simplifi­ Acredito ser possível explicar as atitudes
cadas que os sujeitos políticas do cidadão e da cidadã comuns a partir
apresen­tam para susten- de duas tendências principais. Uma delas é sua
tar suas atitudes políticas inten­si­da­de forte ou fraca, ou seja, a relativa
não são repro­cessa­das a centralidade da política entre as preocupações
cada nova informação; as cotidianas, sua presença no discurso espontâ-
pessoas se baseiam em neo, o interesse que demonstra pelo noticiário
esquemas simplificados e sobre o tema. A outra é a valência, uma pers-
recorrentes, adaptáveis a pectiva individual positiva ou negativa quanto
vários contextos, em que às possi­bi­li­­dades e condições da política, que
procuram encaixar infor- divide as pessoas entre pessimistas e otimistas.
mações novas, de modo As diferentes combinações dessas duas dimen-
a economizar esforços. sões da atitude dão origem a perfis típicos, em
As atitudes políticas, por outro lado, que geralmente conseguimos situar a variedade
são dinâmicas, sujeitas a atualizações e mu- de cidadãos e cidadãs que conhecemos. Foi
danças; suas fontes – os quadros de referência possível identificar cinco atitudes típicas em
a que os indivíduos recorrem – são condiciona- rela­ção à política: forte/positiva, forte/negativa,
das pelos mecanismos cognitivos usados pelo forte/tensa, fraca/posi­tiva e fraca/negativa.
cidadão e pela cidadã comuns. As pessoas têm Trata-se de dimensões presentes, de
2 Ver Aldé (2004).
acesso a mensagens sobre o mundo político uma forma ou de outra, em todas as teorias
3 Sobre a dificuldade das
teorias da democracia de incor-
provenientes de uma complexa rede comuni- que envolvem a dicotomia alienação/integra-
porar o papel político concreto cativa, em que há emissores dominantes e al- ção. No entanto, separar analiticamente esses
desempenhado pela mídia, ver
Miguel (2000). ternativos, bem como múltiplas possibilidades eixos contribui para dar mais profundidade à

4 Democracia Viva Nº 22
Mídia, pluralismo e atitude política

visão simplista que divide a sociedade entre considera informação suficiente.


pessoas alienadas e integradas, apáticas e O cidadão e a cidadã contemporâneos
engajadas, enfim, entre bons e maus cida- são receptores da comunicação de massa e usu-
dãos e cidadãs. Precisamos adaptar as altas ários de um sistema diferenciado de informação
expectativas do modelo democrático liberal e conhecimento político, a que recorrem de
às limitações concretas da cidadania contem- forma mais ou menos ativa. Sua inserção nesse
porânea, e não o contrário. É inútil concluir, universo permite observar diferenças entre os
como em certas análises ingênuas e mesmo tipos de receptor, em função da situação de co-
conservadoras, que a população brasileira não municação em que se encontram os indivíduos.
está preparada para a democracia ou que a Assim, pessoas comuns podem ser receptores
alienação política é típica da pós-modernidade ávidos, assíduos, consumidores de escândalos,
que nos envolve. Entre cidadãos e cidadãs frustrados ou desinformados.
concretos, como os que entrevistei durante Trafegamos por um universo vasto e va-
mais de um ano em diferentes bairros do Rio riado de informações, por vezes até excessivas,
de Janeiro, há espaço para atitudes políticas em nossa interação rotineira com diferentes
complexas, nem sempre contempladas pelos quadros de referência, disponíveis e elaborados
canais de representação existentes. O sujeito de acordo com o ambiente cognitivo de cada
de atitude forte e negativa, por exemplo, em- pessoa. Buscamos marcas, sinais, uma orienta-
bora interessado em política, sempre disposto ção que contextualize, enquadre cada elemento
a argumentar sobre os assuntos públicos, que particular numa moldura maior, dando-lhe
acha “importantes”, sempre atualizado em ter- sentido. Os meios de comunicação de massa se
mos de noticiário político, tem, por outro lado, oferecem, nesse contexto, como uma estrada
uma perspectiva negativa da prática política, sinalizada; propõem uma organização autoriza-
vista como perversa e corrupta, sem possibi- da dos eventos. Não é pouco. As explosões de
lidade de recuperação. O fraco e negativo, notícias que pontuam um cotidiano dedicado à
por sua vez, não tem o menor interesse em esfera privada, de equilíbrio às vezes precário,
política, preferindo a mídia de entretenimen- orientam e informam as atitudes políticas do
to, e só se mobiliza minimamente às vésperas cidadão e da cidadã comuns. A informação, sem
das eleições. Mas, embora distante, acha que dúvida, exerce um papel ativo na construção da
o sistema político funciona a contento, com cidadania, positiva ou negativamente.
políticos e cidadãos e cidadãs cumprindo Qual é, então, o papel que vem desem-
como podem o seu papel. A corrupção é hu- penhando a mídia para o cidadão e a cidadã
mana, e não somente política; portanto, “faz comuns deste país – dessas pessoas médias,
parte”. São tipos de atitude que nos forçam urbanas, como as que foram entrevistadas
a repensar a idéia de alienação, que precisa –, cujo voto é objeto de tanta indagação e
ser matizada pela variedade de relações que disputa? Podemos dizer, com segurança, que
o cidadão e a cidadã podem estabelecer com o consumo e, principalmente, a procura ativa
a política e valores como o da democracia. pela informação disponível nos meios de comu-
nicação de massa têm relação positiva com uma
cidadania mais próxima e otimista em relação
Conhecimento político
à esfera pública, embora sejam raros os arrou-
Para além das diferenças entre os tipos de bos participativos. Quanto maior o consumo
atitude, encontramos nos depoimentos uma regular de informação jornalística sobre a po-
convergência significativa: a atribuição de um lítica, e quanto mais diversificada ela for, mais
valor central à questão da informação, como próximos o cidadão e a cidadã estão da esfera
indispensável ao conhecimento político. Fica pública e maiores são as possibilidades de que
clara a importância do ambiente informacio- a encarem positivamente – como instrumento
nal dos cidadãos e cidadãs, contracenando viável para a solução dos problemas coletivos.
com quadros de referên­c ia que alimentam No entanto, uma vez que qualificamos
as explicações que eles constroem para a esse consumo, vemos que é preciso fazer al-
política. O acesso diferenciado à informação gumas retificações a essa primeira impressão,
é significativo para a recepção, mas seu efeito positiva, sobre a presença da mídia como
é modulado pelo interesse por assuntos po- principal quadro de referência sobre a política
líticos, ou seja, o grau de atividade com que do cidadão e da cidadã comuns. Recepto-
cada pessoa busca informar-se sobre a política, res assíduos, frustrados e consumidores de
e pela relativa satisfação que obtém do que escândalos, que assistem aproximadamente

JUN 2004 / JUL 2004 5


Artigo

à mesma quantidade de horas de televisão, enquadra­mentos disponíveis na esfera pública


dificilmente podem ser entendidos como um gera distorções no processo democrático.4 Dada
mesmo universo. Os receptores assíduos são a predominância da mídia como quadro de
passivos, informando-se de modo rotineiro pelos referência para interpretar a política, é preciso
canais habituais e raramente comparando os investigar a variedade de seus enqua­dramentos
enquadra­mentos com os de outros quadros de e a pluralida­d e, tanto de acesso como de
referência. Os receptores frustrados têm uma emissão, da informação política. A pluraliza-
forte demanda insatisfeita de informação via ção dos canais de emissão tem paralelo com a
mídia, pois vêem a oferta pública de comuni- proposta de Wanderley Guilherme dos Santos
cação como insuficiente e moralmente questio- de incorporar o critério da “elegibilidade” como
nável. A insistência dos telejornais e da mídia uma terceira dimensão da democracia (1998),
de entretenimento em enqua­dramentos nega para além da liberdade de opinião e oposição
tivos sobre política, por outro lado, tende a e da participação pelo voto. Da mesma forma
reforçar a tendência dessas pessoas que con- como é preciso considerar em que medida as
somem escândalos a atitudes negativas, des- pessoas que são eleitoras estão habilitadas para
crentes das instituições políticas e da sociedade também serem eleitas e exercer o poder, para
em geral. Essas diferenças evidenciam as várias a democratização da comunicação é preciso
condições e qualificações que são necessárias a garantir a disponibilidade pública das condições
um sistema informativo centrado em critérios de emitir comunicações.5
de audiência e mercado. Se entendemos a comunicação de
Os vários tipos de receptor situam-se, massa como elemento central, e não apenas
assim, numa complexa rede de referências em periférico, na construção de uma democracia
que a comunicação interpessoal e a midiática adequada às condições contemporâneas, é
se completam e modificam. O acesso a qua- preciso, então, incorporar à reflexão sobre as
dros de referência externos à própria mídia relações de comunicação as duas principais
também modula seus efeitos, mas não se deve demandas que a democracia faz à mídia: sua
subestimar a importância desse quadro de re- pluralização e sua desnaturalização.
ferência em particular. Verificamos que existe A pluralização dos padrões de produção
uma perturbadora homoge­nei­dade no uso dos implica abrir os canais de emissão de mensagens
mecanismos cognitivos mais comuns. Mesmo de massa para atores que não têm voz e investir
cidadãos e cidadãs mais ávidos de informação em comunicação com critérios outros que os
política, que comparam várias fontes, têm nas de audiência. A transformação dos meios em
explicações da televisão um repertório de fácil espaços efetiva­men­te pro­duto­res de democra-
acesso e grande credi­bilidade, responsável por cia passa pela possibilidade de ruptura com
muitas de suas explicações recorrentes. a homogenei­d ade do qua­d ro de referência
midiático, que aparece como um elemento
Meios plurais empobrecedor da democra­cia para o cidadão e
a cidadã comuns dispostos a buscar compara-
Podemos perceber que o papel da comunica- ções. Nesse sentido, o horário gra­tui­to de pro-
ção vai além do previsto pelo modelo clássico, paganda política e eleitoral, com seus critérios
em que se imagina a participação de um cida- representativos e partidários de distribuição do
dão ou uma cidadã racional na esfera pública, tempo, corresponde a um avanço.
por meio de represen­tantes, que se informe A idéia de pluralismo ou possibilidade
por meios plurais. Se nos próprios meios se de oposição, de pensa­mentos dis­sonantes e
constroem as representações dos sujeitos sobre contra-hegemônicos, envolve também a parti-
a política, a mídia torna-se, em importante cipação. Não basta que a oferta de emissão seja
medida, a própria arena de constituição – e variada para que seu consumo diferenciado dê
negociação – da legitimidade política. origem a um “livre mercado” de conhecimento
Mas a atribuição, por parte dos recep- político. É preciso não só ter acesso a uma
tores, de um papel central à mídia na vivência pluralidade de canais de informação, de modo
e conhecimento da política não tem como a basear as atitudes numa comparação que
4 A respeito da homoge­ contraponto, aparentemente, uma mídia que permita a elaboração de explicações mais au-
neidade e limitação dos en­
quadramentos da mídia de desempenhe esse papel demo­cratica­m ente. tônomas para a política, mas também garantir
massa, ver Porto (2001).
Enquadramentos restritos limitam as possibili- o acesso a canais de emissão.6
5 A analogia entre elegibilida-
de e emissão é sugerida por
dades de discurso de cidadãos e cidadãs sobre
Lattman-Weltman (2001). a política. A homogeneidade dos atalhos ou

6 Democracia Viva Nº 22
Mídia, pluralismo e atitude política

Múltiplos enquadramentos sujeitos e da pauta de assuntos. Essas metas,


em termos de agenda de uma comunicação de
A tarefa de pluralizar a comunicação de massa
massa democrática, são de primeira ordem e
desdobra-se, portanto, em duas dimensões prin-
incluem questões políticas que partem desde
cipais, que não parecem excludentes. O pluralis-
o mais básico, como a estrutura de proprie-
mo interno dos próprios meios está relacionado
dade e concessões dos meios de difusão. A
à existência de múltiplos enquadramentos por
con­cretização do pluralismo na comunicação de
parte dos principais emissores. Um sistema de
massa brasileira depende das políticas e idéias
comunicação com pluralismo externo, por sua
correntes no Estado e na sociedade, e é tarefa
vez, leva em conta a existência de uma plurali-
da pesquisa científica informar e estimular
dade de canais de comunicação alternativos aos
esse debate com sua insistente investigação e
próprios meios de massa, divulgando informa­
divulgação.
ção a partir de outros critérios políticos, mesmo
Se a pluralização
que para audiências mais restritas.
da informação é urgente
Nesse sentido, rejeito a idéia, equivo-
para a democracia brasi-
cada e elitista, de que o consumo de “me-
leira, não é aí, contudo,
nos” mídia seja saudável para a cidadania
que cabe a principal con-
– como se o cidadão e a cidadã apáticos e
tribuição de uma reflexão
desinformados fossem produto da televisão.
crítica sobre os meios, que
Mas também me afasto das teorias ingê-
precisa ser realizada tan-
nuas que aceitam o “mercado” da mídia
to na pesquisa científica
como algo natural, que funciona satisfato-
como entre os próprios
riamente, capaz de oferecer conhecimento
produtores da comunica-
suficiente para a escolha de um cidadão-
ção de massa. Com res-
-consumidor racional e consciente, indepen­­-
peito à desnaturalização
dentemente de desigual­dades políticas, eco-
da mídia, a pesquisa em
nômicas ou culturais.
comunicação e política
Ora, talvez o principal objetivo, no
pode desempenhar um
sentido de perseguir os ideais democráticos
papel crucial, revelando
de liberdade e participação também para a
o caráter de construção
comunicação, seja justamente “mais” mídia,
social de esquemas ex-
mais fontes, mais canais de expressão e diálo-
plicativos e conteúdos
go, mais informação sobre seu funcionamento
passados como naturais,
e características técnicas e industriais, mais
óbvios, únicos. Em relação
divulgação e transparência quanto a seus
à naturalização dos conte-
vínculos políticos e econômicos. Obedecer
údos noticiosos da mídia
mecanicamente aos critérios “de audiência”,
em geral, e da televisão
tendo em vista as dimensões demográficas
em particular, a democra­
deste ou daquele grupo na sociedade e seu
potencial aquisitivo, não é o mesmo que es- tização da comunicação
tabelecer critérios políticos democráticos para política exige o seu domí-
sua concessão, uso e normatização. nio por parte do público,
Existe uma “demanda latente”, que o conhecimento de suas
não é atendida, por informação e participação técnicas e possibilidades.
na vida pública. Nesse caso, não interessam É preciso, portanto, democratizar e discutir os
critérios de seleção e exclusão de notícias, a prá-
critérios de audiência, mas sim critérios polí-
tica de enqua­dramentos, os recursos tecnológicos
ticos, de coerência com a norma democrática
que conferem transparência e credibilidade aos
que se escolheu. Não se trata de deixar de
meios, para que sua recepção seja cada vez mais
fazer “espetáculo”, se assim é possível cha- 6 Iniciativas na pluralização da
informada e menos ingênua. emissão têm tido resultados
mar a linguagem e as características formais animadores em termos de mo-
À medida que fica clara a importân­cia bilização pública e construção
específicas do meio, mas sim de pensar alter- de identidades coletivas, como
dos enquadramentos de mídia para a formação
nativas de espetáculo para cidadãos e cidadãs mostram, entre outras, as expe-
das atitudes políticas de cidadãos e cidadãs riências da TV Maxambomba,
que têm demandas não-uniformes em termos programa televisivo comunitá-
comuns, justifica-se a preocupação com a in- rio levado ao ar nas praças da
de comunicação política, independentemente Baixada Fluminense pelo Centro
vestigação e avaliação dos próprios emissores.
de sua classe social ou nível educacional. Isso de Criação da Imagem Popular
Precisamos estudar cada vez mais as próprias (Cecip), e a Rádio Povo, de Belo
quer dizer abrir mais canais – e que sejam mais Horizonte (França, 2001).
mensa­gens políticas com que o público inte-
diversificados em termos do formato, dos

JUN 2004 / JUL 2004 7


Artigo

* Alessandra Aldé rage, seus conteúdos, personagens, estraté­gias


Professora do programa de produção e enqua­dramentos. A com­pa­ração
de pós-graduação entre os enqua­dramentos oferecidos, predomi­
da Faculdade de nantes e também ausentes dos meios, e o que
Comunicação Social da dizem os receptores sobre a política permitirá
Uerj e pesquisadora avançar na compreensão do intricado e pre-
associada do cioso quebra-cabeça das opiniões e desejos de
Doxa (Laboratório
homens e mulheres comuns.
de Pesquisas em
Comunicação Política
e Opinião Pública) do

Informação política
Não há como negar o valor democrático e
a notável influência política dos meios de
público, os meios de comunicação de massa
comunicação em geral, e da televisão em
não só podem, como devem desempenhar um
particular. Por um lado, se pudéssemos desejar
papel importante na política, muito próximo ao
um cidadão ou uma cidadã ideal, entre os que
de esfera pública. Quando vista positivamente,
vimos que existem na democracia brasileira
e também em termos normativos, a mídia
concreta das ruas do Rio de Janeiro, escolhe-
cumpre o papel de intermediar relações com a
ríamos, sem dúvida, alguém de atitude forte e
política, promovendo o debate e a transparência.
positiva, de alto interesse, o consumidor ávido
Longe de desanimar o projeto democrático,
de informação política, ciente de seus direitos
faz-se necessária uma atenção redobrada à
e deveres, atualizado e participante. Quanto
esfera da comunicação de massa, que, afinal,
mais tipos variados de mídia ele procura, mais
depende em enorme medida da concessão,
próximo costuma estar desse ideal. Se, além
financiamento e aprovação públicos e pode ser
de meios de comunicação de massa, estamos
regida por normas e práticas que permitam uma
diante de alguém com vivência política em
abertura e uma pluralidade hoje insuficientes
primeira pessoa, por menor que tenha sido
para que possamos considerar atendida uma
sua esfera de influência, melhor ainda para
parte importante da população. As alternativas
esse exercício. No entanto, essa constatação,
programáticas para um sistema político em que
em si, não responde ao principal problema que
a mídia é tão central e que pretende, contudo,
enfrenta hoje a comunicação democrática no
estabelecer relações democráticas entre governo
Brasil: como criar condições para que o número
e sociedade, entre representantes e representa-
potencial desses cidadãos e cidadãs ideais se
dos, passam necessariamente pelo atendimento
aproxime do real?
a essa pluralidade de expectativas.
Para cidadãos e cidadãs da democracia de

Referências bibliográficas
ALDÉ, Alessandra. A construção da política: democracia, os meios de comunicação. Revista BIB, n. 49, 2000.
cidadania e meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: FGV, PALMEIRA, Moacir; GOLDMAN, Márcio. Antropologia, voto e
2004. representação política. Rio de Janeiro: Contracapa, 1996.
FRANÇA, Vera R. V. Convivência urbana, lugar de fala e Porto, Mauro P. Media framing and citizen competence:
construção do sujeito. 2001. Comunicação apresentada no I television and audiences’ interpretations of politics in Brazil. 2001.
Seminário Internacional de Ciência Política, Porto Alegre, 2001. Não Tese (Doutorado). UCSD, Estados Unidos.
publicado. SANTOS, Wanderley Guilherme. Poliarquia em 3D. Revista
LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Mídia e accountability: Dados, vol. 41, n. 2, Iuperj, 1998.
dimensões e condições da poliarquia. 2001. Comunicação
apresentada na X Compós, Brasília, 2001. Não publicado.
MIGUEL, Luís Felipe. Um ponto cego nas teorias da democracia:

8 Democracia Viva Nº 22
nacio
nacional
Jailson de Souza e Silva*

São 200, são 300 as favelas cariocas?

O tempo gasto em contá-las é tempo de outras surgirem.

800 mil favelados ou já passa de 1 milhão?

Enquanto se contam, ama-se em barraco e a céu aberto,

novos seres se encomendam ou nascem à revelia.

Os que mudam, os que somem, os que são mortos a tiro

são logo substituídos.

Onde haja terreno vago onde ainda não se ergueu um caixotão

de cimento esguio (mas se vai erguer) surgem trapos e panelas,

surge fumaça de lenha em jantar improvisado.

Urbaniza-se?

Remove-se?

Extingue-se a pau e a fogo?

Que fazer com tanta gente brotando do chão, formigas de

um formigueiro infinito?

Ensinar-lhes paciência, conformidade, renúncia?

Cadastrá-los e fichá-los para fins eleitorais?

Prometer-lhes a sonhada, mirífica, rósea fortuna

distribuição (oh!) de renda?

Deixar tudo como está para ver como é que fica?

Em seminários, simpósios, comissões, congressos, cúpulas

de alta prosopopéia, elaborar a perfeita e divina decisão?

Um som de samba interrompe tão sérias indagações e a cada

favela extinta ou em bairro transformada com direito a paga-

mento de Comlurb, ISS, Renda, outra aparece, larvar, raste-

jante, insinuante, grimpante, desafiante, de gente qual gente:

amante, esperante, lancinante...

O mandamento da vida explode em riso e ferida.

Carlos Drummond de Andrade (1979)

10 Democracia Viva Nº 22
onal
Favelas
– além dos
1

“O que é uma favela?” A pergunta foi feita a pessoas de distintos grupos sociais e

categorias profissionais, em uma enquete informal. As respostas revelaram opiniões

surpreendentemente homogêneas. Com efeito, independentemente da posição política,


1 Adaptação do texto “Um
da condição educacional, da perspectiva ética e religiosa, há um razoável acordo sobre espaço em busca de seu
lugar: as favelas para além
dos estereótipos”, incluído
o que seria a favela. Nesse sentido, há, em relação a esse espaço social e geográfico, no livro Território, territórios,
publicado, em 2003, pelo
Programa de Pós-graduação
praticamente uma unanimidade na forma como ele é representado.2 em Geografia da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Este
artigo insere-se num processo
O eixo paradigmático da representação desse espaço popular é a noção de ausência. de formulação coletiva que
vem sendo desenvolvido em
um projeto institucional deno­
A favela é definida pelo que ela não é ou pelo que não tem. Nesse caso, é apreendida minado Observatório de Favelas
do Rio de Janeiro <www.
observatoriodefavelas.org.br>.
como um espaço destituído de infra-estrutura urbana: sem água, luz, esgoto e coleta de Nesse sentido, cabe ressaltar a
valiosa contribuição de Jorge
Luiz Barbosa, companheiro
lixo, sem arruamento, sem ordem, sem lei, sem regras, sem moral, globalmente miserável. de caminhada socioaca­dêmica
e interlocutor precioso, em
especial no desenvolvimento
É, enfim, a expressão do caos. deste artigo.

2 As representações são, no
âmbito deste artigo, compre-
Outro elemento peculiar da representação usual das favelas é sua homogeneização. endidas como construções
mentais sintéticas, decorrentes
dos vínculos – em variados
Existente em terrenos elevados e planos, reunindo de algumas centenas a milhares de ha- graus – estabelecidos, no
cotidiano, por agentes em
múltiplos campos: profissional,
bitantes, possuindo diferentes equipamentos e mobiliários urbanos, sendo constituída por político, religioso, comunitário,
educacional e/ou outros. Para
um maior aprofundamento das
casas e/ou apartamentos, com diferentes níveis de violência e presença do poder público, diversas formas de se tratar a
temática, ver Sá, 1996.

JUN 2004 / JUL 2004 11


nacional

com variadas características ambientais, as lotes de forma e tamanho irregular e


favelas constituem-se como territórios com construções não licenciadas em des-
paisagens razoavelmente diversificadas. A ho- conformidade com os padrões legais.
mogeneidade, no entanto, é a tônica quando se (Plano Diretor Decenal da Cidade do
trata de identificar esse tipo de espaço popular. Rio de Janeiro, 1992, art. 147)
A valorização da ausência e da homo­
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia
geneização como elementos definidores das e Estatística), por sua vez, manteve, no Censo de
favelas está presente desde as primeiras for- 2000, a essência da definição utilizada no Censo
mulações oficiais a respeito do fenômeno, de 1950. A diferenciação básica, na perspectiva
como expressa a caracterização feita no censo de ampliar o seu alcance, foi a identificação dos
realizado em 1950: espaços favelados como subconjunto de um
São consideradas favelas todos os aglomerado subnormal (sic):
aglomerados urbanos que possuam, conjunto constituído de, no mínimo, 51
total ou parcialmente, as seguintes unidades habitacionais (barracos, ca-
características: sas...), ocupando ou tendo ocupado, até
Proporções mínimas: agrupamentos período recente, terreno de propriedade
prediais ou residenciais formados com alheia (pública ou particular), dispostas,
unidades de número geralmente supe­ em geral, de forma desordenada e den-
rior a 50. sa, bem como carentes, em sua maioria,
de serviços públicos essenciais. (Censo
Tipo de habitação: predominância, no
Demográfico 2000, IBGE)
agrupamento, de casebres ou barra-
cões de aspecto rústico, construídos A definição centrada na paisagem faci-
principalmente de folhas de flandres, litou, por sua vez, o reconhecimento de reivin-
chapas zincadas, tábuas ou materiais dicações por obras de infra-estrutura presentes
semelhantes. em um grande número de ocupações. A orga-
nização popular, manifestada das mais variadas
Condição jurídica de ocupação: cons­
formas, permitiu uma significativa ampliação
truções sem licenciamento e sem fis­
do acesso regular a serviços e melhorias como
calização, em terrenos de terceiros ou
água, esgoto, coleta de lixo, asfaltamento e ilu-
de propriedade desconhecida.
minação. Além disso, difundiu-se a construção
Melhoramentos públicos: ausência, no de escolas, creches e postos de saúde, bandeiras
todo ou em parte, de rede sanitária, luz, centrais na busca de uma melhor qualidade de
telefone e água encanada. vida por parte das pessoas que moram nesses
Urbanização: área não urbanizada, com locais. O item que menos apresentou avanço foi
falta de arruamento, numeração ou justamente o que coloca em questão, de modo
emplacamento. mais incisivo, as formas de apropriação e uso
do espaço urbano, ou seja, o acesso à titulação
(Censo 1950 – Departamento de Ge­
da propriedade.
ografia e Estatística da Prefeitura do
Os diversos tipos de intervenções nas
Distrito Federal )
favelas, decorrentes de demandas e ações or-
Essa formulação expressa, de forma ganizadas pelas próprias pessoas que moram
plena, a representação de favela que se tornou nesses espaços ou fruto de projetos estatais
hegemônica no espaço urbano carioca. A de- voltados para a reordenação do espaço urbano,
finição apresentada no Plano Diretor Decenal geraram uma profunda alteração na paisagem
da Cidade do Rio de Janeiro, promulgado em do Rio de Janeiro. Com isso, a maior parte das
1992, não escapa da forma hegemônica de favelas deixou de se enquadrar na representação
representação da favela. Ela tem como novidade que se fez hegemônica no imaginário da cidade.
a inclusão de uma variável social, no caso, a Assim, pouco mais de meio século após o Censo
renda. Contudo, o plano também classifica a de 1950, a maioria daqueles territórios carac-
favela a partir de suas ausências: terizados como favelas adquiriu características
Favela – área predominantemente habi- profundamente distintas das presentes em sua
tacional, com ocupação por população definição original.
de baixa renda, precariedade da infra- Persiste, entretanto, no imaginário da
-estrutura e de serviços públicos, vias população da cidade – em particular de quem
estreitas e de alinhamento irregular, reside nos espaços formais3  – e, por conse-
qüência, entre as autoridades públicas, uma

12 Democracia Viva Nº 22
Favelas – além dos estereótipos

representação das favelas (e das pessoas que lá o significam, de forma particular. A represen-
moram) nos termos de sua representação nas tação conceitual foi sendo, portanto, de forma
décadas de 1940/1950. A percepção anacrônica progressiva, substituída por uma representação
dos espaços populares foi, ainda, ampliada, estereotipada.6  Nessa representação, os precon-
de forma que as ocupações continuaram a ser ceitos e juízos generalizantes, desprovidos da
percebidas como um espaço de ausências – relação direta com o núcleo do fenômeno, ca-
urbanas, sociais, legais e morais. Os grandes racterizam o processo de apreensão do objeto.
conjuntos habitacionais, construídos pelo A valorização de pretensas ausências e de
poder público no encaminhamento da política uma aparente homogeneidade, assim como a ên-
remocionista,4  apresentam-se, no imaginário fase na paisagem com elemento definidor daquele
de habitantes da cidade, como favelas, embora tipo de território popular, tem um pressuposto
tenham características, no plano da paisagem, fundamental, que, por sua vez, se desdobra em,
distintas das definições propostas. pelo menos, duas formas de percebimento de
O Complexo da Maré, por exemplo, moradores e moradoras das favelas e suas práticas
reúne 16 comunidades, sendo que nove delas sociais. No caso da premissa, são evidentes as
foram construídas pelo poder público. Embora referências socio­cêntricas que sustentam o olhar
considerado oficialmente, desde o fim da déca- dirigido ao espaço favelado. O sociocentrismo se
da de 1980, como um bairro, ele é comumente materializa quando, a partir dos padrões de vida,
identificado como um dos maiores complexos de valores e crenças de um determinado grupo social,
favelas do Rio de Janeiro, seguido do Morro do se estabelece um conjunto de comparações com
Alemão, Rocinha e Jacarezinho, todos também outros grupos, colocados, em geral, em condições
denominados, oficialmente, como bairros. Na de inferioridade.
verdade, a definição desse tipo particular de ter- Os discursos estabelecidos em relação
ritório, nos termos propostos pelo Plano Diretor aos espaços populares seguem esse padrão. Eles 3 As favelas e os loteamentos
irregulares são identificados,
do Rio de Janeiro, é tão genérica que qualquer são definidos por suas ausências, em virtude do pelos órgãos públicos munici-
localidade pode ser considerada como tal. Nesse fato de não serem reconhecidos como espaços pais do Rio de Janeiro, como
espaços informais, em função
documento, eles são definidos como “porções legítimos. Nas definições propostas, o elemento da ausência do cumprimento de
determinadas normas urbanas
do território que reúnem pessoas que utilizam os paisagístico é a variável que, por excelência, expli- legais. Nesse caso, os bairros
mesmos equipamentos comunitários, dentro dos ca a favela. Ela é contraposta a um determinado seriam os espaços formais. A
generalização dos termos con-
limites reconhecidos pela mesma denominação” ideal de urbano, vivenciado por uma pequena tribui para ampliar a imprecisão
sobre as características desses
(Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de parcela de habitantes da cidade. Não é casual, territórios. O termo asfalto,
Janeiro, 1992, art. 42). então, que os espaços favelados sejam vistos utilizado historicamente pelas
pessoas que moram na favela
As pessoas que moram no Complexo da como um espaço externo à pólis, ao território para denominar os bairros, tem
caído em desuso. Atualmente,
Maré, entretanto, não reconhecem, em geral, reconhecido como o lugar, por excelência, de nas favelas cariocas, quando
o seu espaço de moradia como um bairro.5  exercício da cidadania. se fala a respeito da própria
localidade, utiliza-se, em geral,
Para elas, seriam necessárias a melhoria das No mês de dezembro de 2000, a revista comunidade; mas, quando se
fala de outros espaços análo-
condições urbanas e, principalmente, uma Veja expressou, na capa de uma edição, esse gos, é usual o termo favela.
maior consonância entre as regras da cidade e juízo marcado pelo temor. Acompanhada da
4 Intervenção efetivada por
as da favela, em particular no que diz respeito manchete “a periferia cerca a cidade”, apresen- sucessivos governos cariocas,
entre 1962 e 1973, que tinha
às formas de intervenção da polícia e ao modo ta-se uma imagem na qual as construções de como meta a erradicação
de funcionamento do comércio ilegal de dro- alvenaria, em cor escura – remetendo à visão das favelas da cidade, com a
transferência da sua população
gas. Nesse caso, o bairro se coloca como um de formigas saúvas em movimento –, devoram para conjuntos habita­cionais
localizados em áreas periféricas
projeto, um vir a ser, que, para ser materiali- gradativamente prédios brancos e limpos. O da cidade. Cf. Parisse, 1969, e
zado, demanda um novo tipo de intervenção exemplo, recorrente nos meios de comunicação, Valladares, 1980.

do poder público, pelo menos. Assim, o tipo é ilustrativo do temor, que é atávico em amplos 5 Depoimentos de recensea-
dores do “Censo Maré 2000
de representação hegemônica afirmado em setores sociais do Rio de Janeiro e de outras – Quem somos, quantos somos
e o que fazemos”, levantamen-
relação aos espaços populares ignora a his- metrópoles, de que o morro desça, e a cidade to realizado pelo Centro de
toricidade e espacialidade do fenômeno que seja dominada pelo caos. Estudos e Ações Solidárias da
Maré e financiado pelo BNDES
busca apreender. O que caracteriza, de forma consciente (Banco Nacional de Desenvol-
vimento Econômico e Social),
Instala-se, portanto, uma contradição ou não, a percepção desses setores sociais é a em fase de análise dos dados
no processo de apreensão dos espaços favela- lógica de que o direito ao exercício da cidadania da segunda fase.

dos, expressa em uma crise de representação não é inerente ao nascimento do indivíduo no 6 Estereótipo quer dizer “idéia
ou convicção classifi­catória
no que diz respeito à correspondência entre o Estado-nação, conforme define a Constituição preconcebida sobre alguém ou
algo, resultantes de expectativa,
objeto representado e a imagem hegemônica brasileira. O reconhecimento da cidadania é hábitos de julgamento ou fal-
que dele se tem. A percepção que se tem do relativizado, de acordo com a cor da pele, o sas generalizações” (Houaiss,
2001).
objeto não traduz os elementos materiais que nível de escolaridade, a faixa salarial e/ou o

JUN 2004 / JUL 2004 13


nacional

espaço de moradia das pessoas residentes na indiscri­minada de espaços coletivos, a falta de


cidade. O juízo se expressa, de forma particular, pagamento de taxas e serviços – água, luz e im-
no menor ou maior grau de tolerância com as postos – e, no limite, a prática de roubos e assal-
diferentes manifestações de violência, de acordo tos. Esses atos são considerados, de certa forma,
com o alvo da agressão, e não com o ato em si. como meios de distribuição de renda, diante da
O pressuposto sociocêntrico, nessa sua vergonhosa concentração, e como forma de
perspectiva, vai se materializar, sobremaneira, denunciar a segregação espacial da cidade. O
de duas formas, que são, de certo modo, que essas práticas expressam, na verdade, é a
complementares. A primeira é bem expressa (re)afirmação de uma lógica individualizada no
pelo trecho de uma reportagem de um grande processo de resolução das demandas sociais,
jornal carioca: postura que dificulta a superação das dificulda-
Principal alvo da violência urbana, jo- des cotidianas presentes nos espaços populares.
vens de comunidades carentes começam A justificativa social de atos criminosos
a encontrar em escolas dos Estados do e/ou que violam os direitos da coletividade
Rio de Janeiro e Per­nambuco a oportu- revela-se, também, em uma visão monolítica
nidade de se afastar das drogas e do das práticas afirmadas nos espaços popu-
crime. (O Globo, 8 abr. 2001) lares, desconhecendo-se as múltiplas redes
sociais neles presentes. Assim, a estereotipia
Nessa citação, é subjacente o juízo de progressista revela-se incapaz de oferecer al-
que, em sua maioria, jovens da periferia são po- ternativas ao discurso conservador e mostra-se
tencialmente criminosos e, por isso, precisariam tão discriminatória quanto ele. Sustentadas
ter o seu tempo ocupado – sem importar muito nesses tipos de representação, as intervenções
como – a fim de não seguirem o caminho da institucionais encaminhadas nas favelas, em
criminalidade. O fato de existirem tão poucas sua maioria, tanto do poder público como as
pessoas, proporcionalmente falando, envol- acadêmicas, caracterizaram-se pela ignorân-
vidas com atos criminosos no Rio de Janeiro cia e/ou idealização das estratégias criativas,
– considerando-se, historicamente, as precárias complexas e heterogêneas que são efetivadas
condições de vida da população – não é levado pelos atores locais no sentido de melhoria de
em conta na afirmação do discurso. sua qualidade de vida. As intervenções, em
A estereotipia dos espaços favelados se geral, desconheceram – ou mitificaram – os
faz presente não só na forma conservadora an- mecanismos de sociabilidade, de circulação
teriormente apontada, como também em uma na sociedade formal, de intervenção na vida
forma pretensamente progressista. Na primeira pública, de compreensão das relações sociais,
forma, moradores e moradoras aparecem como nos seus mais variados níveis, e de interpretação
criminosos em potencial e/ou como colabora- das próprias situações de (sobre)vivência que
dores de forças criminosas. Na representação moradores e moradoras foram produzindo his-
progressista, as pessoas que residem em favelas, toricamente. E, quando o fizeram, terminaram
há algumas décadas, eram identificadas por por isolar esse lugar do espaço urbano que ele,
alguns setores sociais como bons favelados.7  também, constitui. Com isso, terminaram por se
O juízo estabelecia uma analogia com a visão apropriar e/ou apresentar essas vivências como
romântica do bom selvagem, símbolo antimo- se cidadãos e cidadãs locais e toda a vizinhança
derno de uma cidade racional e individualista. fossem nativos. A exotização foi, mais do que
Embora essa idealização ainda persista, tornou- uma prática metodológica, uma prática social.
-se mais comum, entre as pessoas que assumem Nesse quadro, as propostas de “participa-
a perspectiva identificada como progressista, a ção da população”, algumas vezes afirmadas nas
identificação de moradores e moradoras de fa- intervenções, não atingiram, em geral, os objeti-
velas como vítimas passivas – e intrinsecamente vos propostos. Esse fracasso contribuiu, de forma
infelizes – de uma estrutura social injusta. perversa, para reforçar a noção estigma­tizante de
Ora, essa visão contribui para a afirmação que moradores e moradoras das comunidades
de uma postura paternalista e empo­brecedora da populares seriam indolentes e/ou alheios às
cidadania: priorizando apenas os direitos sociais resoluções de seus problemas, os quais, aliás,
– e nunca os deveres coletivos correspondentes seriam mediados pelo olhar de quem propunha
–, aceitam-se, como algo natural, eventuais as ações. Na verdade, não basta ter acesso à
práticas ilegais efetivadas por algumas pessoas participação e/ou ao consumo de bens culturais
que moram no espaço da favela, tais como a valorizados socialmente para deles se apropriar.
7 Cf. Valladares, 1980. receptação de objetos roubados, a privatização É necessário que as disposições que permitam

14 Democracia Viva Nº 22
Favelas – além dos estereótipos

as apropriações sejam identificadas, reconhe- visíveis – faz-se necessária. Ela deve pressupor
cidas e orientem as intervenções. Parodiando a que as pessoas que moram nos espaços popu-
linguagem acadêmica, moradores e moradoras lares desenvolvem formas ativas e contrastantes
permaneceram, em geral, na condição de obje­ para enfrentarem suas dificuldades do dia-a-
tos de quem era responsável pela intervenção. -dia, de acordo com suas trajetórias pessoais
O corolário desse quadro foi a (re)produção da e coletivas, as características socioculturais e
estigmatização das comunidades faveladas e geográficas da localidade, o peso do tráfico
das pessoas que lá habitam. Ela se manifesta via de drogas e a postura assumida por dirigen-
políticas macrossociais, mas também por meio tes das entidades comunitárias, entre outras
de distorções nos mecanismos de investigação variáveis. Quem mora em favela estabelece a
e de solidariedade que foram historicamente delimitação dos espaços e dos vínculos sociais
construídos para superar a marginalização na comunidade; busca canais alternativos para
desses setores sociais. o acesso a instituições culturais e educacionais;
No processo, tornou-se comum, em desenvolve formas sutis de enfrentamento da
amplos setores do espaço urbano, a presença violência criminosa e policial – buscando uma
de uma postura indulgente em relação a um eqüidistância em relação ao conflito estabe-
conjunto de práticas sociais existentes nas fa- lecido ou mesmo apelando, de acordo com a
velas. Como consideram impossível construir conveniência e compreensão de sua cidadania,
uma vida adequada a partir de um cotidiano para um dos pólos do poder armado; estabelece
marcado por dificuldades materiais, gestos ex- relações subservientes com órgãos estatais que
pressivos de alegria manifestos por pessoas dos oferecem serviços públicos nas localidades;
setores populares são interpretados, muitas firma relações clientelistas com políticos fisio-
vezes, como algo próximo da bestialização. A lógicos para garantir determinados benefícios
postura remete ao olhar que um senhor de- e/ou organiza iniciativas reivindicatórias com
veria ter ao observar seus escravos e escravas ênfase na participação e envolvimento da popu-
se divertindo com suas brincadeiras de negro. lação. Todas as ações são exemplos de práticas
A idéia de alienação, por seu lado, caracteriza desenvolvidas em diferentes localidades, a fim
alguns olhares dominados pelo intelectualismo, de melhorar a qualidade da vida cotidiana,
mesmo quando acompanhado do sentimento independentemente dos juízos que se possam
de solidariedade com os grupos sociais po- fazer sobre algumas delas. Afinal, as pessoas
pulares. Assim, as pessoas que moram em inventam múltiplos mecanismos para terem
favela, em especial, seriam caracterizadas por uma vida cotidiana mais feliz e intensa, em um
uma pretensa distância em relação ao padrão quadro de dificuldades que não é ignorado, mas
racional característico de cidadãos e cidadãs enfrentado de forma criativa e, sem dúvida,
urbanos e/ou pelo seu desconhecimento da muitas vezes sofrida.
realidade social. Naturalmente, a superação dos eviden-
O combate aos dois discursos deve ser tes limites presentes nas condições de vida dos
estabelecido, portanto, em função dos seus grupos sociais populares é uma necessidade,
pressupostos e efeitos práticos: neles, as pessoas que deve ser encarada pelos poderes públicos
que moram nas favelas são identificadas como e amplos setores sociais. Ela passa, porém,
marginais naturais ou pessoas intrinsecamen- pela quebra da hegemonia das referências
te passivas. Eles ignoram a multipli­cidade e sociocêntricas. Isso pode ser feito via a criação
diversidade de ações objetivas encaminhadas de mecanismos de diagnóstico e definição de
por diferentes atores dos espaços populares no ações que levem em conta as estratégias so-
processo de enfrentamento dos limites sociais e ciais construídas pelos diversos grupos sociais
pessoais de suas existências. Moradores e mora- populares. Diagnósticos que busquem, como
doras de favelas, com efeito, não analisam suas um princípio metodológico, a articulação entre
vidas apenas a partir das noções de ausência e/ atores oriundos do espaço local, ou pelo menos
ou negação. Da mesma forma, não reconhe- social, e de outros territórios. O Observatório
cem a violência existente em seu cotidiano de de Favelas do Rio de Janeiro8  se coloca diante
modo semelhante à concebida pela maioria dos desse desafio e vem buscando se articular com
setores dominantes e médios. Levam em conta, diferentes grupos, institucionais ou não, que
também, os aspectos afirmativos, integrantes compartilhem essas referências. Ele vem formu-
de seu cotidiano. lando e/ou sistematizando uma série de con-
Logo, a construção de outra representa- ceitos que podem contribuir para a construção
ção das favelas – para além das ausências mais de novas formas de apreensão do fenômeno da

JUN 2004 / JUL 2004 15


nacional

*Jailson de Souza favelização. O Observatório de Favelas considera


e Silva que esse tipo de formulação, articulada com
Geógrafo, doutor em uma inserção ampliada no cotidiano popular,
Educação, professor pode contribuir para a difusão de formas de
da Universidade representação consonantes com a realidade
Federal Fluminense e atual dos espaços favelados.
coordenador geral do
Observatório de Favelas
do Rio de Janeiro

Redes da Maré
A Maré localiza-se na Zona da Leopoldina da cidade do Rio de
Janeiro. Ela fica entre a avenida Brasil e a Linha Vermelha e é
elemento constituinte da cidade, em sua contraditoriedade,
cortada pela Linha Amarela, as três principais vias da cidade.
e não como uma disfunção do processo de urbanização.
Maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, com cerca de
O Ceasm iniciou suas atividades em fevereiro de 1998, a
132 mil habitantes, distribuídos em 16 comunidades, a Maré
partir de um curso pré-vestibular comunitário dirigido para
se caracteriza pela diversidade. No entanto, por se localizar
as universidades públicas. A especificidade da iniciativa foi
perto do aeroporto internacional e ser vizinha da Universidade
o fato de seu corpo docente e discente ser formado, ini-
Federal do Rio de Janeiro, ela ocupa uma presença significativa
cialmente, apenas por habitantes das comunidades locais.
no imaginário carioca, sendo representada como um espaço
A alta taxa de aprovação de seus alunos e alunas mostrou
globalmente dominado pela miséria e pela violência.
as possibilidades do projeto e seu potencial impacto social.
Apesar das diferenças, uma das características mais
Atualmente, o Ceasm desenvolve 14 projetos diferenciados,
destacadas do espaço local é a proletarização de sua
com ênfase na educação, cultura e geração de renda, que
população, em geral negra ou oriunda de áreas rurais do
buscam funcionar de forma articulada.
Nordeste. Moradores e moradoras locais desenvolvem, em
Preocupada em atuar na Maré, mas em uma perspectiva
geral, ofícios que exigem pouca qualificação profissional,
global, a entidade percebe o conjunto de campos em que
possuem baixa escolaridade e uma reduzida renda familiar.
atua como mediações, instrumentos necessários para a
No contexto descrito anteriormente, nasceu a organização
construção do pertencimento identitário das pessoas que
não-governamental denominada Centro de Estudos e Ações
são integrantes dos projetos à rede sociopedagógica que
Solidárias da Maré (Ceasm).
vai, processualmente, sendo constituída. Essa rede busca
O Ceasm tem como elemento inovador o fato de ter
funcionar como um nó de outra rede que articule agentes,
sido fundado e ser coordenado por um conjunto de pessoas
locais e de outros territórios, comprometidos com a me-
que cresceram e/ou moraram em alguma das comunida-
lhoria da qualidade de vida de moradores e moradoras, de
des da Maré. Essas pessoas constituíram a entidade com
forma plena. Implantar essa rede, bem como expandi-la e
o objetivo de ampliar as possibilidades de exercício da
consolidá-la, tornou-se o objetivo maior da instituição.
cidadania por parte de moradores e moradoras locais, em
particular adolescentes e jovens. Outro objetivo central foi
www.ceasm.org.br
contribuir para a formulação de um pensamento sobre o
espaço urbano que reconheça o espaço favelado como um

Referências bibliográficas
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Bourdeaux: Le Mascaret, 1986. HAESBART, Rogério. Des-territorialização e identidade: a rede
ACCARDO, Alain. Initiation à la sociologie: une lecture de “gaúcha” no Nordeste. Niterói: Eduff, 1997.
Bourdieu. Bourdeaux: Le Mascaret, Bourdeaux, 1991. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
BERGER, Peter; LUCKMAM, Thomas. A construção social da Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
8 O objetivo do Observatório realidade. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1993. OLIVEIRA, Roberto C. Identidade, etnia e estrutura social. São
de Favelas do Rio de Janeiro BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo. São Paulo: Pioneira, 1976.
é desenvolver um conjunto Paulo: Perspectiva, 1979. ______. La distinction: critique sociale du PARISSE, Luciano. Favelas do Rio de Janeiro: evolução – sentido.
sistemático de estudos e pro- jugement. Paris: Minuit, 1979. Rio de Janeiro: Senpha, 1969. (Caderno do Senpha, 5).
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pulares do estado do Rio de ______. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. SÁ, Celso Pereira de. Núcleo central das representações sociais.
Janeiro. O eixo de sua interven- ______. Poder simbólico. Lisboa: Difel, 1994. Petrópolis: Vozes, 1996.
ção é a criação de uma rede de CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: VALLADARES, Lícia. Passa-se uma casa. 2. ed. Rio de Janeiro:
pesquisadores e pesquisadoras UFRJ, 1995. Zahar, 1980.
da academia e habitantes dos
espaços populares. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 5.

16 Democracia Viva Nº 22
O Balanço Social das Cooperativas, uma iniciativa do Ibase em parceria com diversas ins-
tituições, oferece às cooperativas um meio para que suas ações internas e externas sejam
transparentes e conhecidas pela sociedade em geral. Ao tornar públicas suas ações e seus
investimentos – que devem estar de acordo com os princípios cooperativistas definidos pela
Associação Cooperativa Internacional e pela Recomendação 193 da OIT (Organização Inter-
nacional do Trabalho) –, as cooperativas estarão ajudando a coibir práticas do setor que não
estejam de acordo com os princípios democráticos e distributivos
que o caracterizam.

www.balancosocial.org.br
www.ibase.br
v a r i e
v
Flávia Mattar
Colaborou Thais Zimbwe
a r i e

Preto no branco Imagens do povo Iniciativas negras

O reconhecimento civil das relações O Observatório de Favelas está De 5 a 15 de outubro, será realiza-
afetivas entre pessoas do mesmo envolvido com um novo projeto. do, no Rio de Janeiro, o IV Fórum
sexo é uma importante bandei- Foram iniciadas as atividades da Nacional Iniciativas Negras – Tro-
ra do movimento homossexual. Escola de Fotógrafos Populares cando Experiências. O objetivo dos
Em alguns estados, como Bahia Imagens do Povo, coordenada painéis, oficinas, grupos de estudos,
(Grupo Gay da Bahia), São Paulo pelos fotógrafos João Roberto Ri- mesas-redondas e vídeos que serão
(Associação do Orgulho de Gays, pper e Ricardo Funari. O objetivo apresentados é possibilitar a divulga-
Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros é investir na formação de jovens ção de iniciativas implementadas no
– GLBT), Rio de Janeiro (Grupo moradores(as) de favelas cariocas e campo das relações raciais no Brasil
Arco-íris) e Paraná (Grupo InPAR abrir-lhes caminho no mercado de e a reflexão sobre elas. Além disso,
28 de junho), pode ser encontrado trabalho. Ao longo de quatro meses, o evento visa promover a aproxima-
o Livro de Registro de Declaração participarão das oficinas cerca de 20 ção entre aca­dêmicos(as) e ativistas
Homoafetiva. mora­dores(as) de 15 comunidades, do movimento negro e de mulheres
Essa foi a estratégia encontrada entre elas Nova Holanda, Comple- negras nacionais, da América Latina
pela sociedade civil organizada xo do Alemão, Rocinha, Vidigal, e do Caribe.
para minimizar os prejuízos causa- Mangueira, Santa Marta e Baixa “Essa é uma das poucas oportu-
dos pela demora na aprovação do do Sapateiro. nidades no Brasil para a capacitação
projeto de parceria civil registrada, Serão quatro horas diárias de de ativistas em diversas áreas”, diz
parado na Câmara dos Deputados. aula. Os(as) jovens terão acesso a Joselina da Silva, pesquisadora do
E lá se vão dez anos desde a sua informações sobre direito autoral Centro de Estudos Afro-brasileiros
criação pela atual prefeita de São e teoria e prática fotográficas. da Universidade Candido Mendes,
Paulo, Marta Suplicy (PT). Também haverá capacitação em instituição carioca responsável pela
Segundo Reinaldo Pereira Da- documentação fotográfica. A idéia iniciativa. Entre os temas que esta-
mião, presidente da Associação é a inserção dos trabalhos dos(as) rão sendo abordados, destacam-se:
GLBT, com a realização da Parada novos(as) fotógrafos(as) em um redação de projetos, elaboração de
do Orgulho Gay, em junho, o número banco de imagens on-line, deno- orçamentos, captação de recursos,
de pessoas interessadas no livro, em minado Imagens do Povo. geo­política internacional e movi-
São Paulo, duplicou. O único requisi- “A Escola de Fotógrafos Popu- mentos negros na América Latina
to para assinar o livro é a maioridade lares pretende trabalhar para que e no Caribe. O evento é gratuito
civil. A declaração não oficializa a fotografia seja um instrumento e aberto à participação de pessoas
ou legaliza a união. Sua intenção é de arte, informação e formação interessadas, sem a necessidade de
reconhecer e legitimar o relaciona- colocado a serviço do resgate da inscrição prévia.
mento estável, servindo como “prova dignidade das classes populares e da
www.ceab.ucam.edu.br
material” para fins jurídicos como ampliação dos direitos humanos”,
joselina@candidomendes.edu.br
INSS, herança, guarda de filhos(as) diz Ripper.
e partilha de bens.
www.observatoriodefavelas.
www.paradasp.org.br/paradaglbt org.br
www.ggb.org.br
www.inpar28dejunho.com
www.arco-iris.org.br

18 Democracia Viva Nº 22
d
d a d e a d e s

Vida cultural Aids não escolhe idade Papos tecnológicos


nos alagadiços e sociais
O número de pessoas na terceira
Acaba de ser lançada a publicação idade infectadas pelo HIV, o vírus Há cerca de um ano, foi criado o Pro-
Contos e lendas da Maré, idealiza- da Aids, tem aumentado em várias jeto Software Livre Mulheres (PSL
da pelo Centro de Estudos e Ações cidades do país. De acordo com Mulheres), um movimento que reúne
Solidárias da Maré (Ceasm) e co- dados do Ministério da Saúde, 2% tecnologia, software livre e inclusão
ordenada por André Esteves. Nesse da população acima de 60 anos é digital, objetivando destacar e
livro, há construções narrativas portadora do vírus, o que totaliza apoiar projetos nessas áreas. O PSL
escritas por jovens, que são basea- cerca de 5 mil idosos(as). Esse Mulheres preocupa-se não só com
das em histórias contadas pelos(as) número pode ser ainda maior, já o desenvolvimento tec­n ológico,
primeiros(as) morado­res(as) de que ainda existe o não-diagnóstico mas também em exercer atividades
comunidades do Complexo da Maré. nesse grupo etário. sociais a partir desse foco.
“São histórias resgatadas do imagi- Os sintomas da doença podem “A inclusão digital surge da
nário de moradores mais antigos que levar até oito anos para aparecer necessidade da inclusão social,
migraram do meio rural. É um tipo nos(as) idosos(as). Muitas vezes, essas duas causas estão ligadas
de percepção de mundo que se per- as manifestações da Aids se con- numa espécie de simbiose. Acredito
deu entre os jovens”, conta André. que incluir digitalmente também
fundem com situações próprias da
Entre os sete contos publicados, significa criar, libertar”, explica
velhice, como cansaço e emagreci-
incluem-se “Porco com cara de Cristiane Camboim, pesquisadora
mento, dificultando o diagnóstico
gente”, “O lobisomem da Nova de softwares matemáticos e inte-
e, portanto, o tratamento dos(as)
Ho­landa” e “A figueira mal-assom- grante do PSL Mulheres.
pacientes.
brada”. O objetivo é revelar um novo O objetivo do projeto não é reunir
Uma das formas de enfrentar
momento cultural da região, rele­gada um grupo de usuárias, mas de mu-
o problema da infecção seria a in-
a segundo plano nos projetos habita- lheres com iniciativas para que esses
clusão de idosos(as) em campanhas
cionais, na linha das políticas públi- projetos aconteçam. Para Cristiane, a
de prevenção, o que não ocorre
cas ou das ações afirmativas. Além tecnologia sempre foi uma área his-
atualmente. Ainda existe muito
das histórias, o livro traz a foto e os toricamente dominada por homens,
preconceito em relação ao uso
depoimentos dos(as) moradores(as) e esse foi um ponto importante para
dos preservativos por parte desse
que deram origem aos textos li- a criação do grupo. “Se estamos tra-
público. Além disso, fatores como
terários e aborda o processo de balhando com a filosofia do software
dificuldade de adaptação fazem com
formação de comunidades da Maré, livre, não faz sentido a distinção de
que os(as) idosos(as) se distanciem
especialmente as três mais antigas: gêneros”, afirma a pesquisadora.
da eficácia dos métodos que evitam
Timbau, Baixa do Sapateiro e Nova Além de possuir integrantes em
Holanda. “Essa é a primeira de uma a infecção pelo HIV. todo o país e na América Latina, as
série de publicações que estaremos componentes do PSL Mulheres são
produzindo sob o selo editorial Maré necessariamente engajadas em algu-
das Letras”, conclui. ma atividade social ou tecnológica.

Contos e lendas da Maré www.mulheres.softwarelivre.org


80 páginas, R$ 10
Editora Maré das Letras
Tel.: (21) 2561-4965 • 2561-3946
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JUN 2004 / JUL 2004 19


artigo
Luiz Antonio Machado da Silva*

democracia e

Neste texto, apresentam-se comentários gerais, que pretendem apenas contribuir para

o enquadramento prático da relação entre cidade e democracia. Como todas as ações

coletivas que visam reformar as cidades – que já são bastante antigas e muito variadas

na forma e no conteúdo – têm tido em seu horizonte, explícita ou implicitamente, a

questão da democratização nas áreas urbanas, vale a pena iniciar o raciocínio com uma

definição, bem simples, de “democracia”.

A vida social é sempre muito conflitante. Uma das bases mais gerais e mais

permanentes dos conflitos é o fato de que, por um lado, uma vez que fazem parte da

humanidade, os seres humanos são iguais; entretanto, ao mesmo tempo, são diferentes

uns dos outros. Essas diferenças não são apenas – nem principalmente – genéticas, mas

produzidas no próprio convívio social.

20 Democracia Viva Nº 22
justiça
1

A produção social da diferença não seria Isso tem duas conseqüências muito
problemática – muito pelo contrário, a variedade distintas, mas inseparáveis. Aliás, é interessante
enriqueceria o conjunto da humanidade – se comentar que, justamente por serem insepa-
as diferenças fossem apenas o que são e nada ráveis, a democracia tem sido amada e odiada
mais. Entretanto, o fato é que às diferenças pela esquerda, dependendo de qual das duas
sempre estão associadas relações de força que as se enfatiza. A primeira delas é que a regulação
transformam em hierarquias, isto é, conjuntos de das lutas sociais pelo Estado abre espaço para
pessoas se tornam superiores a outros conjuntos a aceitação de reivindicações dos inferiores,
de pessoas que, portanto, são inferiores. dependendo, evidentemente, da capacidade
Em regimes não-democráticos, que são de pressão, nível de organização etc. Com
muito variados e não nos interessam, essas hie- isso, certos aspectos das hierarquias podem
rarquias são mantidas pela força, e as diferenças ser eliminados (sem que seja necessário jogar
são fortemente reprimidas. Não há igualdade, fora a criança com a água do banho, isto é,
há homogeneização pelo silêncio e pela força. sem que também as diferenças desapareçam),
Já em regimes democráticos, há um reduzindo-se a desigualdade que estava asso-
esforço para reduzir as manifestações abertas ciada a eles. Ou seja, regimes democráticos não
de força. É óbvio que os conflitos derivados da garantem de antemão a igualdade, mas geram
transformação das diferenças em hierarquias a possibilidade de que ela venha a ser atingida
não desaparecem, mas eles são, de certa forma, aos poucos, por meio do próprio conflito social.
“pacificados”. De que modo? O Estado, que é Por outro lado, a segunda conseqüência é que,
a instituição social que concentra o monopólio por esse mesmo processo e ao mesmo tempo,
da força material (não se deve esquecer que o as hierarquias que permanecem tornam-se legi-
poder, em última instância, está baseado no uso timadas, isto é, aceitas por todos como lícitas.
real ou na ameaça da violência física), em vez de De qualquer maneira, pode-se afirmar
simplesmente usar a força para reprimir as dife- que regimes democráticos não resolvem tudo,
renças e controlar os grupos inferiores, passa a se mas abrem possibilidades de aprofundamento
responsabilizar pelo estabelecimento de regras de progressivo da igualdade entre os seres huma- 1 Texto apresentado no En-
contro Nacional do Fórum
negociação dos conflitos – isto é, de negociação nos, com a vantagem de, não sendo regimes Nacional de Reforma Urbana, rea-
das diferenças hierarquizadas – e garantir que de força, permitir que nesse movimento sejam lizado de 6 a 8 de junho de
2003, no Instituto dos Arqui-
essas regras serão cumpridas. preservadas as diferenças entre os indivíduos e tetos do Brasil, Rio de Janeiro.

JUN 2004 / JUL 2004 21


Artigo

os grupos, isto é, as características particulares popular, na prática a teoria não é outra, porque
que eles mesmos prezam. essa teoria não é acadêmica apenas. Ela não é
A negociação mencionada, característica neutra nem se situa fora da prática, pois, além
dos regimes democráticos, se desenvolve no que de teoria, é um ideal (e, como qualquer i­deal,
se chama de espaço público. No espaço público, há quem a defenda e quem se opõe a ela). É,
superiores e inferiores expressam suas opiniões e ao mesmo tempo, definição e ideal, porque
reivindicam como se fossem i­guais. Aliás, deve-se se trata de uma avaliação do que é e do que
lembrar que é exatamente isso que quer dizer precisa vir a ser. Ou seja, a própria definição da
cidadão e cidadania. Esse é o significado mais democracia já é crítica da situação que é capaz
básico e ao mesmo de identificar e propositiva sobre a intervenção
tempo mais geral das necessária. Por princípio, ela não pode se satis-
regras de convivência fazer com o que encontra na realidade.
que o Estado deve Portanto, vale a pena sublinhar: “demo-
manter. Assim, quan- cracia” não é um conceito estático, é dinâmico.
to melhor as agên- Não se refere a uma estrutura parada no tempo,
cias estatais fizerem congelada, cristalizada, mas a um processo.
isso, mais forte será Por isso, diz-se que a cidadania – termo que
o Estado, pois, por se refere ao conjunto dos atores no processo
causa da capacidade democrático – é uma conquista. Cida­dãos(ãs)
de regular, controlar não nascem feitos(as), surgem na luta, no
e organizar as lutas conflito social que, dependendo de seu encami-
sociais, o monopólio nhamento, pode produzir uma democratização
que o Estado detém das relações sociais (a qual, como foi dito, passa
sobre o uso da força pela construção de um Estado forte em sua
é aceito e legitimado legitimidade). Nesse sentido, quando se fala em
por todas as pesso- democracia, o que está em questão são sempre
as (e, quando isso os problemas da democratização ou, para usar
ocorre, usar a força a expressão da moda, a “questão democrática”.
material monopoli- Se o cerne dos regimes democráticos é
zada para “resolver” a criação de um espaço público em que grupos
os conflitos torna-se superiores e inferiores negociem como iguais,
desnecessário). embora, na vida privada, decididamente não
Desses bre­ sejam iguais, a democracia requer a criação de
vís­simos comentários um mínimo de condições de sustentação dos
que esboçam uma inferiores em seu enfrentamento com os supe-
definição de “demo- riores no espaço público. Para que os inferiores
cracia”, podem-se não sejam esmagados, não se revoltem e/ou não
tirar algumas con- abandonem a luta, é preciso alguma interferência
clusões: sobre a vida privada, de modo a impedir que os
a) regimes inferiores se enfraqueçam a ponto de que não
democráticos se as- possam exercer sua cidadania, isto é, negociar
sentam sobre dois pacificamente a redução das hierarquias sociais.
pilares: Estado forte, Isso se chama de política social, que não é uma
no sentido de aceito e legitimado, e dádiva gratuita do Estado, mas o resultado de
esfera pública ampla; pressões dos inferiores, até certo ponto aceitas
b) regimes democráticos têm uma voca- pelos superiores.
ção para aprofundar progressivamente Desse modo, vê-se que política social e
a igualdade social, sem impor uma regime democrático são termos indissociáveis, pois
homogeneização forçada; um é a condição prática e concreta do outro. Na
c) regimes democráticos “pacificam” a realidade, os conteúdos, as formas, as dimensões
luta dos inferiores pelo aprofun­d a­ da política social constituem a substância da ques-
mento da igual­d ade social. Esti­m ulam tão democrática a cada momento.
o conflito sem transformá-lo em guer- Quero insistir na afirmativa de que a
ra. política social é, portanto, uma condição da
Tudo o que foi dito é apenas a definição, negociação democrática e da expansão da
a teoria. Mas, nesse caso, ao contrário do ditado cidadania (e não um simples apoio mais ou

22 Democracia Viva Nº 22
Cidadania, democracia e justiça social

menos assistencialista ao consumo; isso é um toda a discussão sobre a reforma urbana. Os


reducionismo que corresponde aos interesses inferiores precisam pressionar na direção de uma
dos superiores). Sendo uma intervenção sobre intervenção estatal que regule a apropriação e o
a vida privada, isto é, sobre as relações econô- uso do solo urbano de modo a lhes proporcionar
micas, nas quais se produzem as hierarquias o que se pode chamar de “acesso à cidade”, pois
e a desigualdade, é atribuição do Estado, por o que está em questão é justamente o acesso dos
meio de suas diferentes agências, e expressa a inferiores ao território urbano e a permanência
negociação no espaço público. nele. Essa é a primeira porta a ser aberta, pois se
Mas é preciso considerar que não se trata de enraizar os
pode falar em intervenção do Estado como se ela inferiores na cidade
fosse um bloco único, inteiramente consistente de uma forma razoa-
e seguindo uma única direção a partir de uma velmente estável, sem
meganegociação homogênea. Na realidade, a a qual o exercício da
política social cobre muitos aspectos, é multi- cidadania torna-se in-
facetada e nem sempre coerente. Nesse ponto, viável. E, ao mesmo
entra a questão urbana, isto é, o problema da tempo, uma vez que
organização econômica, social e política das ci- a moradia é um item
dades. Ela é uma parte da questão democrática crucial na sobrevivên-
e, portanto, especifica, particulariza, torna mais cia da população ur-
concreta toda a discussão que acabou de ser feita bana trabalhadora, o
sobre a definição de democracia. próprio fortalecimen-
Como uma dimensão da questão de- to da legitimidade do
mocrática, a questão urbana em última análise Estado depende de
também corresponde ao problema das condições uma intervenção nes-
de acesso ao exercício da cidadania por parte se sentido. Além do
dos inferiores. Pode-se crer que, na raiz das mais, por esse mesmo
especificidades da questão urbana, está o fato motivo, é preciso a
de que, nas cidades, “acesso” significa passar garantia de um mí-
por duas portas em seqüência, e não por uma nimo de segurança
apenas (embora, prosseguindo nessa brincadeira quanto ao “acesso à
das portas, talvez as da cidade sejam mais frágeis cidade”, para que as
que as do campo). disputas em torno da
De um modo geral, a intervenção do regu­lação pública do
Estado para regular as relações de força na vida mercado de trabalho
privada e sustentar o exercício da cidadania – a segunda porta do
pelos(as) mais fracos(as) ocorre diretamente nas acesso ao exercício da
relações produtivas. (É importante lembrar que, cidadania – possam
como já foi observado, os superiores se esforçam se desenrolar com al-
para reduzir o sentido da expressão “política so- guma consistência. (E
cial” – reduzindo, assim, os próprios conteúdos não é preciso lembrar
concretos da intervenção estatal que favorece os o quanto essa consis-
inferiores – a medidas orientadas para garantir tência é fundamental
patamares mínimos de consumo.) Isso é mais na atual conjuntura.)
visível no campo, onde a impossibilidade de Para terminar, vêem-se avanços nesse
estabelecer uma sepa­ração entre as relações de sentido, que correspondem aos desdobramen-
trabalho e da propriedade dos terrenos é imedia- tos presentes de lutas sociais muito antigas,
tamente perceptível, porque a terra bruta é um nas quais os movimentos coletivos dos(as) fa­
meio de produção. Já nas áreas urbanas a coisa velados(as), mais ou menos a partir do fim da
não é tão clara, porque o mercado de trabalho Segunda Guerra Mundial, desempenham papel
se separa em boa medida da produção material relevante. Não seria exagero sugerir que eles(as)
da cidade. Certamente, a terra continua sendo são uma espécie de sem-terra da cidade. Por
um meio de produção para as imobiliárias e os outro lado, apesar de todo o imenso esforço
2 O texto “Favelas e democra-
interesses de pro­prietários(as), mas para os(as) desenvolvido, eles(as) obtiveram apenas uma cia: temas e problemas da ação
não-pro­pri­e­tários(as) é apenas “moradia”, um estabilidade muito relativa, pois, salvo as poucas coletiva nas favelas cariocas” de
Luiz Antonio Machado da Silva
item necessário para a sobrevivência.2 exceções de praxe, conquistaram uma situação e Márcia Pereira Leite, incluído
nesta publicação, retoma esse
Exatamente nesse ponto se pode situar de fato, e não de direito. tema.

JUN 2004 / JUL 2004 23


Artigo

* Luiz Antonio Ao mesmo tempo, outros avanços tam- legais em situações de fato.
Machado da Silva bém identificáveis, até mais abrangentes, têm Dessa forma, o Estado brasileiro, que,
Sociólogo, professor sido obtidos no que diz respeito à legislação ao contrário do que às vezes se diz, é fraco em
do Instituto de Filosofia sobre os terrenos urbanos, às condições de virtude de sua incapacidade secular de produzir
e Ciências Sociais da edificação imobiliária, entre outras coisas (basta uma política social que dê sustentação ao exer-
Universidade Federal pensar no Estatuto da Cidade). Porém, a prática cício da cidadania pelos inferiores, se fortalecerá,
do Rio de Janeiro apoiada nessa nova bateria de instrumentos le- recuperando sua legitimidade e, assim, sua capa-
(UFRJ) e do Instituto
gais ainda permanece muito rarefeita e continua cidade de intervenção.
Universitário de
dependendo de pressão social. Caso haja convergência entre a pressão
Pesquisas do Rio
Não existe bola de cristal, mas é possível dos inferiores e a disposição dos órgãos públicos
de Janeiro (Iuperj)
da Universidade
sentir um otimismo, ainda que cauteloso. Tudo federais de responder favoravelmente a ela, isso
Candido Mendes indica que existe forte disposição das agências es- gerará um círculo virtuoso de democratização da
tatais controladas pelo governo federal de apoiar sociedade brasileira, em particular das cidades
as disputas no espaço público que visam expandir brasileiras.
as condições de exercício da cidadania – o que
pode corresponder à transformação de situações
de direito, legalmente sustentadas, e, ao mesmo
tempo, à transformação de simples possibilidade

Questão semântica
Durante debates que se seguiram à apresen-
tação deste texto, fui questionado quanto ao
todos os dispositivos de exploração e domina-
uso do termo “inferiores”, que seria uma des-
ção. Preferi, e prefiro sempre, não tapar o sol
qualificação política e moral da população
com a peneira: ao contrário do que pensam
trabalhadora. Por uma questão de respeito
os(as) que me criticam, considero que o uso
aos(às) meus(minhas) interlo­cu­tores(as), que
de qualquer outro termo – foram-me suge-
só aumentou em virtude da crítica de tom
ridos “excluídos(as)” e “oprimidos(as)”, e eu
elevado, e porque, na aparência, ela é perti-
poderia acrescentar “grupos dominados”,
nente, gostaria de fazer algumas observações.
“setores subalternos”, que também são de uso
Talvez tenha passado despercebida a
corrente – que não “inferiores” para designar
minha insistência no fato de que o elemento
os grupos que estão embaixo seria um eufe-
de força sempre presente no convívio social
mismo que não tem nada de política ou mo-
acaba por transformar as diferenças geradas
ralmente neutro, pois sempre carregará uma
na interação em hierarquias. Ora, quem diz
conotação justificadora dessa posição. Insisto
hierarquia está dizendo que há posições
que “inferiores” é o termo que constata, da
superiores e inferiores. Por sua vez, posições
forma mais crua possível, essa iniqüidade que
não são simplesmente lugares vazios, já que
é tratar hierarquicamente as diferenças. Se os
estão sempre preenchidas por grupos, cate-
outros termos, evidentemente, não impedem
gorias sociais etc. Portanto, aqueles(as) que
a indignação – esse sentimento que está na
estão embaixo são inferiores. Isso não os(as)
raiz de qualquer mobilização contra o statu
desmerece, porque é uma constatação, e não
quo –, acho que uma descrição sem rodeios
um julgamento.
já é um passo na direção dela.
Palavras são terrivelmente traiçoeiras,
porque a linguagem é a fonte de sentido de

Referências bibliográficas
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Cidade escassa e violência RIBEIRO, Luiz Cesar de Q. Dos cortiços aos condomínios
urbana. Rio de Janeiro: Iuperj, 1995. (Série Estudos, n. 91). fechados: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de
CASTEL, Robert. Les metamorphoses de la question sociale: une Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
chronique du salariat. Paris: Arthème Fayard, 1995. _____. Reforma urbana na cidade da crise: balanço teórico
MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Aspectos de la politica e desafios. In: RIBEIRO, L. C. de Q.; SANTOS Jr., O. A. dos
habitacional en Brasil. Texto apresentado na 2a reunião do Grupo (Orgs.). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro
Latinoamericano de Investigaciones Urbanas (ISA). México, 1981. das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
Não publicado. 1994.
_____. A continuidade do “problema da favela”. In: LIPPI, Lúcia. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. Rio de
(Org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002. Janeiro: Campus, 1987.

24 Democracia Viva Nº 22
JUN 2004 / JUL 2004 25
MUNDO P ELO MUNDO PE
Jamile Chequer

OGM para que te quero Realidade pós-guerra Rede sem racismo

A saga da União Européia (UE) Uma constante em países que pas- Nos dias 16 e 17 de junho, aconte-
em relação aos organismos gene- saram por muitos anos de guerra é a ceu o encontro da Organização para
ticamente modificados (OGMs) luta para reconstruir as escolas. Na Segurança e Cooperação na Europa
continua. No início de junho, foi Libéria, que conviveu até 2003 com (Osce), entidade da União Européia
imposta uma moratória na aprovação 14 anos de guerra civil, a situação (UE). A proposta foi verificar a
da entrada da soja GT-73 nos países- escolar é tão frágil quanto a paz relação entre propagandas de racis-
-membros. A justificativa é a preo- bélica instalada recentemente. Das mo, xenofobia e anti-semitismo na
cupação sobre o impacto ambiental 2.400 escolas no país, apenas 20% Internet com crimes de ódio. O foco
e a segurança que a comida deve conseguiram sobreviver aos anos de foi em leis, e discutiu-se a identifica-
apresentar. Ainda que a Comissão conflitos. Isso resultou em uma taxa ção de possíveis parceiros para lutar
Européia tenha baseado a sua apro- de alfabetização de apenas 28%. De contra esse tipo de acontecimento,
vação na “ciência”, depois que uma um total de 1,5 milhão de crianças além da promoção da tolerância pela
perícia em segurança alimentar da esperadas no ensino fundamental, Internet. “Devemos trabalhar juntos
UE declarou que o milho BT-11 é apenas 50% estão freqüentando as para identificar novas maneiras de
seguro para consumo humano, há aulas. No entanto, a estimativa de combater propagandas e sites de ódio.
quem discorde. É o caso da orga- crianças-soldados durante os 14 Devemos proteger nossas crianças
nização Amigos da Terra, que con- anos de guerra foi de 800 mil. e jovens das mensagens cruéis de
testa essa segurança alegando que Completando esse panorama, há ideologias racistas, anti-semitas e de
a Monsanto, empresa responsável salas de escolas públicas com cem intolerância”, defendeu o ministro
pela semente transgênica, falhou estudantes, falta de livros, salários de Estado Willie O’Dea, que repre-
em provar a segurança ambiental. medíocres ao corpo docente, entre sentou a UE no encontro.
Aliás, a organização foi mais outros problemas. A Libéria tem Relatórios da Comissão Nacional
longe. Em seu site, conta que um es- contado com apoio de instituições Consultiva dos Direitos Huma-
tudo “escondido do público” da soja e organizações internacionais, tais nos, divulgados em 17 de junho,
transgênica feito com ratos mostrou como o Fundo das Nações Unidas apresentaram as características dos
um aumento de 15% no peso do para a Infância (Unicef), que, no sites e das declarações racistas na
fígado dos roedores. Diz a organi- ano passado, começou a ajudar com Internet. Segundo o jornal Le Mon-
zação que “conselheiros do governo cerca de US$ 20 milhões em livros, de, o estudo estatístico mostra que
do Reino Unido, conhecidos por lápis etc. pessoas árabes e mulçumanas são
suas posições pró-OGM, pediram Os problemas não param por aí. mais citadas em mensagens de ódio.
uma explicação satis­fatória sobre A última revisão do currículo escolar Pelos sites de busca, 6.210 mensa-
esse efeito colateral em potencial foi em 1996, incluindo o ensino de gens desse tipo foram encontradas
observado nos ratos...”. Também tópicos como HIV/Aids e educação usando termo pejorativo para se
alertam que a Co­missão Francesa para a paz. Porém, alguns nunca referir às pessoas negras e àquelas
para Engenharia Genética criticou foram tratados como merecem. que fazem trabalho pesado. Termos
a maneira como a Monsanto fez os racistas para designar pessoas judias
Fonte: IPS
testes, observando que a duração foi e italianas ficaram em segundo e
de apenas 28 dias, em vez dos 90 terceiro lugares, respectivamente.
dias normalmente utilizados.
www.eu2004.ie
www.europa.eu.int

26 Democracia Viva Nº 22
LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO

Atenção direcionada Deslocados Falando em atenção...

Na sua 11 a edição, o Relatório Lançado às vésperas do Dia Mun- Uma em cada nove meninas morre
Mundial de Desastres 2003, lança- dial de Refugiados, em 20 de no período da gravidez ou durante
do na segunda quinzena de junho junho, o Relatório Mundial de o parto, mas apenas uma em cem
pela Federação Internacional Cruz Desastres 2003 traz à tona também consegue terminar a quarta série no
Vermelha e pela Red Crescent So- a discussão em torno do conceito sul do Sudão. Esse e outros números
cieties, alerta para os esforços contra de refugiado(a). Lembra que a alarmantes foram divulgados pelo
o terrorismo que estão trazendo Convenção das Nações Unidas para Fundo das Nações Unidas para a
dilemas éticos que tratam direta- Re­fugiados, datada de 1951, prote- Infância (Unicef) no Dia da Criança
mente da legitimidade das agências ge apenas as pessoas que cruzam Africana, em 16 de junho. Com uma
humanitárias. O documento destaca fronteiras internacionais e têm um população total de 7,5 milhões, pelo
que finan­ciadores e agências têm medo bem fundamentado em serem menos 95 mil crianças com menos de
privilegiado o socorro aos confli- perseguidas se voltarem para casa. 5 anos morreram no ano passado na
tos de estratégia política, como a Milhões de pessoas, forçadas a região. O mais grave é que a maior
guerra no Iraque e no Afeganistão, deixar seus lares por encontrarem parte das causas de morte era de
e menos a emergências em países condições adversas em seu local de doenças que podem ser prevenidas.
como Angola, Somália e República origem, estão despro­tegidas. “Am- O Sudão passou por 21 anos
Democrática do Congo. plamente desprote­gidos pela lei e de guerra, e o resultado são taxas
A reconstrução do Iraque recebeu por instituições internacionais, sua terríveis de desnutrição, de não-
cerca de US$ 1,7 bilhão. No entanto, situação é um desastre esquecido”, -conclusão da quarta série, de
para reverter a fome de 40 milhões diz o documento. A estimativa é de pré-natal, entre outras. O Unicef
de pessoas em 22 países africanos, 16 milhões de refugiados(as). chama a atenção para o processo
conseguiu-se apenas o total de US$ Porém, muitas pessoas fogem de de paz no país que se aproxima
1 bilhão. Apesar dos apelos da Fe- desastres naturais, violência, entre do seu estágio final. Além disso,
deração Internacional em setembro outras situações, e não são consi- lembra que a necessidade de pro-
de 2002, por exemplo, para ajudar 4 deradas refugiadas. Estima-se que mover a sobrevivência infantil e
milhões de pessoas em Angola que as pessoas que não conseguiram melhoria no quadro de saúde devem
dependem de financiamento inter- sair do país, mas estão deslocadas ser prioridade da sociedade civil e
nacional para sobreviver, em quatro internamente, são em torno de 25 de governantes. “Sabemos que é
meses apenas 4% do necessário foi milhões. possível promover muitas melhoras
conseguido. Também há um aspecto in- nas vidas das crianças sudanesas se
“Estamos encarando uma de- teressante destacado. São os(as) o processo de paz for um sucesso.
sigualdade na prática humanitária “migrantes de ambiente”, ou seja, Essa geração pode ser uma geração
global e muitos conflitos e desastres são aquelas pessoas que fogem de de sorte”, declarou Bernt Aaesen,
têm sido esquecidos. As comunida- desastres naturais ou estão à margem chefe de operações do sul do Sudão
des de ajuda e doadores estão com- de projetos de desenvolvimento, do Unicef.
prometidos em providenciar ajuda como a construção de uma rodovia.
baseados na imparcialidade. Devem Das 25 milhões de pessoas nessa si-
agir onde é mais necessário”, alerta tuação, 4 milhões tornam-se vítimas
Juan Manuel Suárez, presidente da do tráfico humano.
Federação Internacional.

JUN 2004 / JUL 2004 27


intern
internacional
Edele Thebaud*

Haiti – uma
crise social
e
Às vésperas de 2004, o Haiti passava – e ainda passa – por uma crise sem precedentes

que ameaçava as próprias bases da nação. Após as malogradas eleições de 2000, dois

grupos políticos começaram a travar uma violenta e impiedosa batalha pelo controle dos

aparelhos de Estado, afastando-se da solução dos problemas de base dos quais todos,

homens e mulheres, são responsáveis. Esse combate contribuiu para o agravamento da


[Traduzido do francês
crise estrutural do país e revelou o completo fracasso do processo de constituição de uma
por Patrick Charles
Wuillaume e Lucila
nova classe política e de novas regras de regulamentação do sistema político.
Wuillaume]

28 Democracia Viva Nº 22
acional
Essa crise sociopolítica vivida pelo Haiti se ca- Vulnerabilidade de grupos sociais3
racteriza por:1
Essa situação de não-governabilidade, de
• um ambiente de terror onde os direitos violência institucionalizada e de insegurança
humanos, principalmente o direito à vida foi certamente um passo a mais para o agra-
e às mais elementares liberdades cidadãs, vamento das condições socioeconômicas, já
são desrespeitados; precárias, da população e para a deterioração
• a sistemática da repressão a passeatas pací- das condições macroeconômicas e macrosso-
ficas contra a política do governo no poder, ciais do país.
exercida por forças policiais e grupos civis De acordo com o Programa das Nações
armados contra a população civil; Unidas para o Desenvolvimento/Pnud (Relató-
• grandes dificuldades das vítimas de violên- rio sobre o desenvolvimento humano, 1998)
cia em apelar à justiça, dando lugar a uma e com o Banco Mundial (Haiti: the challenges
impunidade institucionalizada, que resultou of poverty reduction, 1998), ao menos 75% da
em crescimento de atos de intimidação, população total do país vive abaixo do limiar
assassinatos políticos, agressões e abuso de pobreza absoluta, com uma renda média
sexual de mulheres; per capita de US$ 250, muito inferior à média
regional (US$ 3.320) e oito vezes menor do que
• uma situação de insegurança generalizada,
a da República Dominicana (US$ 1.945). Essa si-
da qual são vítimas todas as camadas da
tuação de pobreza atinge particularmente 80%
sociedade haitiana.
da população rural, ou seja, aproximadamente
Os fatos ocorridos no cenário socio­ 800 mil pequenas propriedades agrícolas fami-
político haitiano são a expressão de uma liares, cuja renda anual de US$ 100 é bastante
dinâmica política que tende a converter o país inferior à média nacional. Outras vítimas são
naquilo que é conhecido, no atual jargão das as mulheres: elas são chefes de família de 36%
megapotências, como “entidade caótica ingo- dos lares haitianos (famílias monoparentais, das
vernável”, com o objetivo de reforçar a neces- quais 26% estão nos campos e 46% em meio
sidade de colocá-lo sob tutela. O crescimento urbano) 4  e garantem a sobrevivência diária
do banditismo e dos assassinatos, a “quime- de suas famílias com a renda gerada no setor
rização” da sociedade pela manipulação das informal e/ou nas indústrias de terceirização
camadas mais pobres e a ameaça de intervenção ou de montagem, nas quais elas representam
das forças armadas são algumas manifestações a maioria da mão-de-obra contratada e não-
dessa situação. A elas se juntam outras for- -qualificada, com um salário diário mínimo cin-
mas de violência geradas pela estrutura social co vezes menor que o dos homens empregados 1 Declaração das ONGs nacio-
interna injusta e pelas relações desiguais do no mesmo setor. nais e internacionais no Haiti
(“Haiti, no limiar de uma guerra
Haiti com outros países. Paralelamente à luta Nos últimos dez anos, assistimos a uma civil generalizada”), de 2004.
pela ocupação do aparelho de Estado, esse diminuição espetacular do poder de compra 2 Segundo o texto “O CSIL diz
projeto toma forma e seus diferentes atores se da maioria dos consumidores e consumidoras, não à violência”, do Collectif
Socialisme Identité et Liberté (CSIL
delineiam: uma elite política mais preocupada com erosão progressiva do salário mínimo real – Coletivo Socialismo, Identidade
com o poder do que com seu engajamento no e Liberdade), de 2001.
durante o período de 1990 a 1998 e redução
país, grupos sociais sedentos de lucro, potências do número de oportunidades de trabalho 3 Conforme o Country Strategic
Paper, de 2000, da ActionAid
estrangeiras que se apresentam como especta- (fechamento das empresas públicas e privadas Haiti.
doras e/ou mediadoras da “crise”, mas que, na em virtude da recessão econômica, das polí- 4 Como aponta Maria Correia
no texto “Gender and poverty
realidade, manipulam sub-repticiamente contra ticas de austeridade pública, da instabilidade in Haiti”, incluído na publicação
os interesses coletivos.2 política etc.). Essa conjuntura causa, em chefes Haiti: the challenges of poverty
reduction, do Banco Mundial,
de família, um sentimento de risco iminente, de 1998.

JUN 2004 / JUL 2004 29


internacional

insegurança econômica e incapacidade de sa- tes somente cobrem 29% das necessidades da
tisfazer as obrigações familiares básicas, tanto população. A taxa de escolaridade no primário
em períodos de normalidade como em períodos é da ordem de 56%. O mais preocupante é o
de emergência, em decorrência da ausência de grande índice de evasão escolar. De cada cem
política nacional de segurança social. Uma outra crianças que ingressam no ensino fundamental,
manifestação evidente desse estado de coisas somente 67 concluirão o ciclo básico e apenas
é a pauperização acelerada de trabalhadores uma delas passará na segunda parte do exame
e trabalhadoras dos níveis inferiores da classe de conclusão do ensino médio.
média, originando rei- Em decorrência das turbulências socio­
vindicações salariais de políticas desses últimos anos (2000–2004), os
vários setores (docentes indicadores de qualidade de vida regrediram
de escolas públicas, fun- mais uma vez de forma alarmante. A situação
cionários e funcionárias nutricional degenerou-se brutalmente atingindo
públicos de baixo escalão níveis críticos: 23% das crianças com menos
e outros). de 5 anos sofrem de má nutrição crônica, e os
Apesar das taxas relatórios das instituições locais mencionam um
positivas de crescimento aumento de 30% dos casos de má nutrição se-
da economia nacional no vera em algumas regiões do país. Os custos de
fim da década de 1990 produção no setor agrícola não cessam de evoluir
(3,1 e 2,2, em 1998 e em decorrência do aumento de mais de 100% do
1999, respectivamente),5  preço dos insumos agrícolas. O funcionamento,
as desigualdades sociais já precário, das atividades econômicas é algumas
permanecem fortes, com vezes perturbado, reduzindo a zero os esforços
45% da renda nacional de algumas poucas pessoas. As esperanças de
nas mãos de somente melhoria da segurança alimentar, assim como a
1% da população, ao consolidação da produção nacional, sofrem as
passo que 36% da renda conseqüências negativas desse fato.
nacional fica nas mãos Com índice de crescimento igual a
de 85% da população. zero durante o ano fiscal de 2002–2003, a
A precariedade da economia confirma uma tendência à regres-
situação econômica de são que perdura há várias décadas. Em 2003,
trabalhadores e trabalha- a Organização das Nações Unidas para a
doras gera, assim, uma Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em
maior vulnerabilidade so- inglês) estimou em 3,8 milhões (quase 50%
cial que se expressa nos da população) o número de pessoas que não
reduzidos indicadores so- conseguiam se alimentar apropriadamente.
ciais de desenvolvimento A situação tornou-se ainda mais difícil após
humano registrados no um aumento médio de 130% nos preços de
Haiti. Isso coloca o país venda dos derivados de petróleo em janeiro e
em situação desfavorável fevereiro de 2003. Isso provocou uma explosão
em relação a outros países dos preços das commodities e uma inflação que
da área de livre comércio se aproximou dos 40% nos primeiros meses
e evidencia suas grandes de 2003. O déficit fiscal, assim como o déficit
similaridades com países da balança comercial, atingiu níveis altamente
da África subsaariana. preocupantes. A desvalorização acelerada da
Aproximadamente, 63% moeda nacional, a gurde, que, em menos de um
da população total não ano, de 25 passou a valer 45 por US$ 1, afetou
tem água potável, e 40% brutalmente o desenvolvimento das atividades
estão privados de atendimento médico. Com um da microfinança, válvula de escape principal da
consumo calórico médio inferior à média regional, maioria de mulheres dos meios urbano e rural
a insegurança alimentar tornou-se endêmica e que lança mão das atividades informais, em um
recorrente, tanto no que diz respeito à sua dis- ambiente muitas vezes inseguro, para garantir
ponibilidade quanto à qualidade dos alimentos. a sobrevivência de suas famílias.
Apesar de ter ocorrido um aumento sensível dos
5 Segundo dados do Banco investimentos no setor da educação durante
Mundial em “Overview on
Haiti”, de 2000. esses últimos anos, as infra-estruturas existen-

30 Democracia Viva Nº 22
Haiti – uma crise social e existencial

Crise de sobrevivência
A situação atual do Haiti é crítica e an-
gustiante. A deterioração dos indicadores
comunidade urbana que está em jogo, que
econômicos e sociais, o declínio constante
está sendo ameaçada. Vivemos uma crise
da produção desde 1999, o caráter agudo
de sobrevivência porque atingimos o ponto
da crise do meio ambiente, a deterioração
crítico de desequilíbrio ecológico; porque até
da qualidade de vida das massas urbanas e
os mecanismos artificiais, elaborados durante
rurais, o aumento da insegurança e da vio-
décadas para subsistir ao desmoronamento
lência contra pobres e mulheres, a situação
de nosso biótipo, cedem sob os ataques
de pobreza da maioria da população e a
conjugados de uma modernização barata,
decadência das instituições, tudo faz pensar
da inconsciência de dirigentes políticos e da
em um país agonizante. A crise atual do Haiti
“quimerização” perigosa de algumas camadas
é mais do que política, é vital. Ela é mais do
da população.
que estrutural, é essencial. E, bem mais do
que econômica, é existencial. É nossa própria
existência, como povo, como nação, como

Causas profundas prietários arrastados a um processo de


endividamen­to e de des­capitalização que
A vulnerabilidade socioeconômica dos grupos
limita suas possibilidades de reinvestimento
sociais majoritários e a recorrência das crises
ou até de modernização de suas unidades
políticas têm sua origem na crise econômica
de produção;
da economia camponesa, na liberalização
econômica iniciada no início da década de c) o pequeno acesso aos mercados de pro-
1980, na degradação do capital natural e na dutos, de capital e de mão-de-obra dos
crise de soberania e ausência de um projeto pequenos produtores e a total ausência
político democrático, nacional e popular, que de controle desses mercados por esses
são explicitadas a seguir. trabalhadores.

1. Na crise crônica da economia 2. A liberalização econômica iniciada


camponesa6 na década de 19807

O único modo de crescimento extensivo que As medidas de recuperação da economia, im-


conheceu a agricultura haitiana desde 1804 plementadas pelo Estado haitiano nas duas
conduziu-a, desde o fim do século XIX, a um últimas décadas, repousavam essencialmente
desequilíbrio entre as áreas cultiváveis e a sobre: uma política monetária restritiva, a
população, que cresce a uma velocidade de liberalização dos mercados financeiros, a
1,8%, por um lado, e por outro lado, a valo- eliminação das tarifas alfandegárias, medidas
rização anárquica das áreas montanhosas que de controle das importações 8  e a privatização
levaram à erosão dos solos (15 mil hectares das empresas públicas. Os resultados desses 20
perdidos anualmente) e à diminuição de renda anos de aplicação dessa política foram:
de quase 800 mil famílias camponesas. Como a) o aniquilamento do sistema de produção
causa determinante dessa crise, também é local a partir de 1986: desaparecimento
importante mencionar: de certas produções, como açúcar, artigos
a) o apoderamento das terras das grandes de alumínio e alguns produtos agroindus- 6 Conforme o Country Strategic
Paper, de 2000, da ActionAid
planícies cultiváveis e férteis por uma mi- triais; redução real de 58% da produção Haiti.
noria de grandes proprietários, relegando a das indústrias manufatureiras de 1988 a 7 Idem, ibidem.
maioria de pequenos camponeses às áreas 1998; fechamento da maioria das unida- 8 Fazendo com que a tarifa
montanhosas e pouco férteis; des de criação de frangos e porcos, pois alfandegária de 1989, que
incluía 13 índices que variavam
b) o sistema de renda fundiária (arrenda- eram pouco competitivas em comparação de 0% a 57%, passasse a quatro
índices variando de 0% a 15%,
mento e contrato de parceria) praticado aos produtos à base de carne de baixa as instituições internacionais e
por uma minoria de grandes proprietários qualidade provenientes dos Estados Uni- o Estado haitiano criaram um
país caracterizado na região por
ausentes, que induz uma considerável dos; oferecer índices baixos (a tarifa
máxima da Caricom é de 40%).
redução da renda dos pequenos pro- b) o aumento das atividades de comércio de

JUN 2004 / JUL 2004 31


internacional

produtos de primeira necessidade importa- das montanhas.


dos: as importações de arroz representaram O país está exposto, em razão de sua
8% do consumo nacional de arroz, em posição geográfica na Bacia das Caraíbas, a um
1985, 58%, em 1991, e 73%, em 1996; as vasto leque de fenômenos naturais que tiveram
importações de produtos à base de carne forte incidência sobre sua situação socioeco-
passaram de 300 TM/mês, em 1991, a 3 nômica e política. Os ciclones, as inundações
mil TM/mês, em 1998. setoriais e a seca foram os casos mais impor-
Infelizmente, as importações são domi- tantes de desastres naturais durante os 20
nadas pelos produtos de primeira necessidade; últimos anos. Os fenômenos de des­matamento
acelerado e de urbanização selvagem, combi-
os bens intermediários,
nados a outras ações humanas prejudiciais ao
importantes para a pro-
meio ambiente, constituem os fatores-chave da
dução local, só repre-
vulnerabilidade porque aumentam os riscos de
sentam 2,4% das impor­-
exposição aos desastres naturais ou agravam
tações totais (no entanto,
seu impacto. O des­nudamento dos solos, a
para a República Do-
forte densidade das populações que colonizam
minicana, esse tipo de
o leito das ravinas ou as gargantas escarpadas
bem representa 22% das
das montanhas tornam mais difíceis as inicia-
importações totais).
tivas de retomada da produção nacional e da
3. A degradação do organização do território.
capital natural (meio
4. A crise de soberania e a ausência
ambiente físico) 9
de um projeto político democrático,
O ambiente físico do nacional e popular11
país é caracterizado pela
A crise de soberania nacional foi vivida durante
degradação alarmante
toda a história da nação com a exclusão da
de seus recursos ecoló- maioria da população das decisões políticas e
gicos e pela urbanização com a submissão dos interesses dessa maioria à
selvagem. O desma­ta­ hegemonia de uma oligarquia ligada às potên-
mento já vem ocorrendo cias estrangeiras, particularmente aos Estados
há duas décadas a um Unidos. De 1804 a 1915, as decisões políticas
ritmo anual de 15 a 20 foram sempre dominadas pelos interesses dos
milhões de árvores, para militares no poder e da oligarquia, principal-
atender a uma demanda mente a de proprietários de terra daquele
de madeira e de car- período. De 1915 a 1986, os Estados Unidos,
vão que representa 71% após 15 anos de ocupação (de 1915 a 1934),
das fontes de energia deixaram no país um exército haitiano por eles
do país. Com efeito, o organizado, para fiscalizar o atendimento de
des­m atamento iniciado seus interesses e impedir qualquer tentativa
desde a época colonial, de construção de um projeto de sociedade
amplificado com o flores­ nacional que mobilize as energias e os recur-
cimento do comércio de sos nacionais em favor do desenvolvimento
madeira com a Europa econômico e social do país.
e intensificado durante todo o século XX pela A partir de 1986, a sociedade civil or-
população em busca de sobrevivência, causou ganizada como instrumento do poder não teve
danos quase irrepa­ráveis ao meio ambiente. condições de desempenhar seu papel de vetor
Mais de 97% da cobertura florestal do país já das reivindicações populares. Dominado por
foi des­t ruída; 10  foram des­matadas 25 das 30 algumas personalidades sem grandes articu-
principais bacias; estão sendo perdidos por ano lações com o conjunto da base organizada, o
15 mil hectares de terra em razão da erosão Movimento Popular Associativo desempenhou
9 Conforme o Country Strategic dos solos. O processo de favelização decorrente apenas o papel de trampolim para indivíduos à
Paper, de 2000, da ActionAid
Haiti. do empobrecimento das massas rurais traduz- cata de poder político para fins pessoais. Esse
10 A cobertura vegetal total do
-se na exploração irracional das minas e das grupo, agindo em nome do povo, conseguiu,
país passou de 60%, em 1923, jazidas de areia, e na construção anárquica das finalmente, criar o Poder Lavalas, baseado nas
a 18%, em 1952, e a 1,44%,
em 1989. casas com bastante proximidade do leito dos relações de um líder – Jean-Bertrand Aristide –
11 ActionAid Haiti, 2000: CSP. rios ou nas ravinas ou gargantas escarpadas com indivíduos de uma massa desorganizada

32 Democracia Viva Nº 22
Haiti – uma crise social e existencial

e incapaz de definir reivindicações e exigências uma estrutura social ex-


precisas. tremamente diferenciada
Essa crise de soberania reforçou a ex- e polarizada, a pau­peri­
clusão das massas e se agravou com a desarti- zação e a exclusão da
culação do movimento popular criado após a maioria da população
partida dos Duvalier, com a grande dependência das esferas do poder,
financeira do país (em 1999, 69% do orçamento além da ausência de
nacional provinha do exterior) e com a insta- um projeto sociopo­lítico
bilidade política causada pela longa transição democrático, nacional e
democrática (de 1986 a 2000, ou seja, 15 anos, popular.
houve nove governos). E qualquer so-
lução real para a crise
deverá levar em con-
Que futuro?
sideração as seguintes
O Haiti está vivendo momentos de emergên- opções: dar ênfase à luta
cia. A questão atualmente mais urgente é para a eliminação das
o restabelecimento da governança e de um desigualdades e da exclu-
ambiente sociopolítico estável, que não seja são social, das causas da
violento e dê segurança, condições necessá- pobreza, da polarização
rias e indispensáveis para que o processo de e da violência; tomada
desenvolvimento sustentável possa ser iniciado de consciência do grau
e para que o povo do Haiti possa progredir de esgotamento da po-
na sua incansável busca de uma constru- pulação e da degradação
ção nacional posta em perigo pelo com- acelerada dos recursos; e
portamento muitas vezes irresponsável das criação de condições que
elites dirigentes. permitam a implementa-
É imperativo o restabelecimento de um ção de uma dinâmica de
ambiente sociopolítico seguro e não-violento, construção nacional.
que somente uma governança democrática, res-
peitosa dos direitos humanos e preocupada com
o bem-estar do povo do Haiti, pode assegurar.
Qualquer solução para a crise atual só poderá
ser duradoura se forem atacadas as causas es-
truturais da decadência social do Haiti, que são:

*Edele Thebaud
Diretora-execultiva da
Modo soberano de decidir ActionAid Haiti
Em 2004, ano do bicentenário da inde-
pendência do Haiti, o poder de decidir
deve ser exercida respeitando-se a soberania
sobre o futuro na nação ainda foge aos
nacional e os direitos dos povos à autode-
dirigentes políticos atuais. A ocupação do
terminação. Os princípios de soberania e
território nacional por forças estrangeiras
de dignidade nacionais, ainda na ordem
sob a direção da ONU (Organização das
do dia, devem ser promovidos por patrio-
Nações Unidas) é prova disso. A partir dessa
tas num esforço constante para provar ao
cons­tatação, é necessário definir o que é
mundo inteiro que podemos nos governar,
verdadeiramente importante na luta demo-
que temos nosso projeto e pretendemos
crática, nacional e popular: a reconquista
protegê-lo, defendê-lo e reabilitar nosso
de nossa capacidade de decidir de modo
espaço próprio de vida.
soberano sobre os nossos destinos. Nessa
perspectiva, a solidariedade internacional
é essencial. Essa solidariedade, contudo,

JUN 2004 / JUL 2004 33


ENTRE Entrevista

VISTA

34 Democracia Viva Nº 9
22
A mineira Cleonice Dias está no olho do furação de um dos problemas
mais graves da cidade do Rio de Janeiro: a falta de cidadania a que
são expostos moradores e moradoras de favelas. Líder comunitária
da Cidade de Deus (bairro pobre da Zona Oeste), que se tornou
conhecido nacional e internacionalmente depois do sucesso do filme
homônimo de Fernando Meirelles e Kátia Lund, ela vivencia uma
nova esperança de inclusão social para a comunidade. Integrante
do Comitê Comunitário da Cidade de Deus e uma das diretoras da
ONG Centro de Estudos e Ações Culturais e de Cidadania (Ceacc),
Cleonice faz parte de um grupo que elaborou e vem tentando
executar o Programa de Desenvolvimento Comunitário Sustentável,
a ser implementado até 2009.
“Todas as nossas propostas são para enfrentar anos de
omissão e negligência do poder público quanto às nossas questões
estruturais. Mesmo contando com parceiros da iniciativa privada
– o que é ótimo –, o governo é o devedor principal”, afirma.
O projeto é inovador, pois se distancia dos modelos
assistencialistas e promove a discussão entre as pessoas que vivem
o problema. Além disso, ele tem tudo para se transformar em uma
bela experiência de participação cidadã. A decisão de reivindicar
para a comunidade a escolha sobre quais políticas públicas devem
ser implementadas e de que maneira é o primeiro – e grande –
resultado.

JUN 2004 / JUL 2004 35


entrevista

Onde você esse processo na minha lembrança: ver as pes-


nasceu? soas saindo do campo e vindo para a cidade,
Cleonice vendendo a roça para quem tinha o trator e
Dias – Nasci em podia fazer um roçado melhor.
São Jo­ão del Rei, Há muito afeto nessas lembranças,
Minas Gerais, em não?
21 de julho de Cleonice Dias – São todas experiências
1952. Vim de de infância que me marcaram para a vida
uma família po- toda. Mas também tenho guardadas comigo
bre e sou a mais lembranças de períodos em que passei fome
velha de nove e tive que ir morar na casa dos meus avós.
irmãos – minha Minha mãe e meu pai, em épocas diferentes,
experiência co- adoeceram e tiveram que vir para o Rio de
letiva veio de Janeiro.
dentro de casa. Papai, como funcionário público, se trata-
Tive uma infân- va no Hospital dos Servidores, no Rio. Minha
cia bem comum, mãe teve problemas de comprometimento
como toda crian- mental e foi internada na Clínica da Gávea
ça do interior de Minas. Lembro do cheiro da [Clínica Psiquiátrica da Gávea, fundada em
terra molhada da chuva, de andar descalça no 1963 e em funcionamento até hoje]. Em
barro, de jogar bolinha de gude, fazer papa- 1966, quando houve uma grande enchente
gaio, roubar manga do vizinho... no Rio de Janeiro, eu e meus irmãos sofremos
Fui criada para ser esposa, mas sempre vivi muito ao saber que parte da clínica havia
com mulheres de comando. Um comando à desabado. Só depois soubemos que, dois
mineira, é verdade, pois também existe uma dias antes daquela tragédia, mamãe tinha
submissão: a mulher tradicional mineira é edu- fugido do hospital. Eu era uma menina e
cada para ser boa dona de casa, boa cozinheira. acabei ficando responsável por muita coisa
Além disso, o estudo não era tão valorizado. dentro de casa.
Sou uma das primeiras mulheres da minha fa- Uma outra coisa marcante na minha vida
mília que tiveram a audácia de ter um projeto é o papel da fé, que ora reprime, ora liberta.
de estudar. Para a família, de um modo geral, Mesmo não tendo o que comer, minha mãe
o estudo cabia mais ao homem, que deveria ser nos obrigava a rezar e a agradecer a Deus.
contador e trabalhar no Banco do Brasil. Eram Lembro que, ainda criança, comecei a ques-
esses os valores que as famílias passavam no tionar toda essa submissão ao sofrimento.
período da minha infância em Minas. Comecei a questionar que Pai é esse, que
Sempre que posso volto a Minas, gosto amor é esse, que me faz estar de joelho para
de estar presente nos momentos fortes de agradecer porque naquele dia eu tive arroz e
encontro de família, Natal, Semana Santa, Dia tomate para comer? Fazendo catecismo, isso
das Mães. São ocasiões quando toda a família muito criança, comecei a entender que, ao ser
se encontra, todos os irmãos, que estão espa- co-responsável pelo projeto de criação, temos
lhados pelo Paraná, por Belo Horizonte e São que lutar para fazer a nossa parte. A primeira
Paulo. Moro no Rio de Janeiro há 29 anos e parceria que estabeleci na vida foi com Deus e
não abro mão da minha mineirice. Faz parte da foi para um projeto de mundo. A religião me
minha identidade ser mineira, ser desconfiada centrou dentro do Universo e, desde pequena,
quando precisa e me lançar toda quando é eu sabia que eu tinha que ser importante.
preciso transformar. Dizem que o mineiro ou E por que tiveram que deixar
é muito conservador ou abre geral. Acho que a casa?
consegui juntar tudo isso. Cleonice Dias – Além da doença de papai
Vocês moravam na área rural? e mamãe, meu pai se envolveu em dívidas e
Cleonice Dias – Não, na cidade. Alguns não teve como saldá-las, mesmo tendo um
parentes ainda viviam na roça, mas, aos poucos, emprego estável. Numa época, o salário dele
foram vendendo seus terreninhos. Em algumas ia direto para pagar dívida. Deixamos de morar
férias, cheguei a ficar na roça, mas, depois, já numa casa com conforto, com horta, comendo
não havia mais ninguém por lá. Não passei por frutas, legumes, tendo leite, goiabada, essas
isso no meu núcleo familiar – papai era carteiro, coisas todas, para viver como nômades, de
funcionário público federal –, mas tenho todo casa em casa.

36 Democracia Viva Nº 9
22
Cleonice Dias

Como era sua relação com Clínica da Gávea. Naquela época, o tratamento
seu pai e sua mãe? era eletrochoque. Quando ela voltou do Rio,
Cleonice Dias – Meu pai sempre foi uma para casa, não sabia nossos nomes direito, não
figura muito decorativa. Ficava muito em se- sabia quantos filhos tinha. Voltou magrinha: de
gundo plano na nossa vida. Era um mineiro 120 quilos, ela voltou com 60 quilos.
quieto, com vários filhos fora do casamento, Acho que, até hoje, eu e meus irmãos não
de pouca fala e muitos amores. Quando já es- refletimos muito sobre tudo isso que passamos.
távamos adultos, ele tentou agredir minha mãe Sei que não quero sofrer como ela, mas reco-
fisicamente. Então, meus irmãos pediram para nheço que é dessa história que veio a minha
ele sair de casa. Se dependesse da mamãe, que personalidade. Admiro ter tido ela como espe-
era uma mineira muito tradicional e aceitava lho para eu ver fraquezas e virtudes. E, apesar
viver uma relação conflituosa e infeliz, enquanto de tudo isso parecer muito triste, hoje, quando
estivessem vivos ficariam juntos. os irmãos se encontram, há festa e gargalhadas.
Cresci vendo a minha mãe tirar goteira de Na verdade, também subvertíamos todas as or-
telhado, consertar fio de ferro, chuveiro, fazer dens, fazíamos tudo o que não podia ser feito.
arroz com bofe moído para termos um pou- Você assumiu a responsabilidade
quinho de proteína para comer. Ela costumava por seus irmãos
lavar roupa de madrugada e não a colocava e teve que
no varal para os vizinhos não perceberem trabalhar?
que estava lavando roupa para fora. Mineiro Cleonice Dias –
é assim: passa por tudo, mas ninguém pode Quando minha mãe foi
saber, guarda calado. No caso da minha mãe, internada, eu tinha 14
o somatório de tanta infelicidade foi um câncer anos, mas já trabalhava
e nove filhos criados praticamente só por ela. desde os 11 anos. Na
Então sua mãe era a chefe minha cidade, existia
de família? uma instituição chama-
Cleonice Dias – Era uma leoa, marcou da Amar – Associação
profundamente tanto de forma positiva como Municipal de Amparo e
negativa. Imagine uma mulher com tantos Recuperação – para tirar
filhos, com tanta responsabilidade na mão e os mendigos da rua, em
infeliz... O que ela faz? Bate em quem? E como geral pessoas que vinham
é o filho mais velho? Apanha pra caramba. E da zona rural. Essa insti-
apanhei tanto! Apanhava porque não cuida- tuição recolhia dinheiro
va dos irmãos, porque não fazia o trabalho entre os moradores, e eu
direito, porque um irmão quebrou o copo... trabalhava nesse recebi-
Apanhei tanto que poderia estar no lugar de mento. Eu era cobradora,
Nossa Senhora da Aparecida, poderia ter sido fazia essa cobrança à
santificada! Mamãe tinha 120 quilos, e eu, noite e ganhava 1% de
miudinha, me defendia usando a palavra. Acho tudo que recolhia. Nessa
que foi assim que aprendi oratória. Ela batia e época, eu já comprava
eu esculhambava, falava, gritava, reagia assim. sapatos para os meus
Talvez graças a isso não fiquei doente, e ela não irmãos.
ficou mais doente do que já estava. Ela tinha Foi em busca de
como descarregar, e eu também tinha como uma vida melhor
me defender. Eu protegia meus irmãos como a que
galinha protege os pintos. Quando ela ia bater você veio para
nos meus irmãos, eu os abraçava e gritava até o Rio
ela desistir. de Janeiro?
Ninguém se revoltou contra esse Cleonice Dias – Não, vim para o Rio em
procedimento da sua mãe? 1975, já com 21 anos. Foi por causa de uma
Cleonice Dias – Nossa revolta era extrava- história de amor. Eu me apaixonei por um ho-
sada no grito. Quando ela levantava o braço, mem 16 anos mais velho que eu, negro e que
nós já gritávamos. Os vizinhos chegaram a cha- morava no Rio. O Dirceu foi seminarista e não
mar meus avós e falaram: “Se vocês não derem pôde se ordenar porque seu pai e sua mãe não
um jeito nisso, a gente vai chamar a polícia”. eram oficialmente casados e também porque
Foi por causa disso que mamãe foi internada na ele sofria do coração. Ele fez até o terceiro

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2004 / JUL 2004 37
entrevista

ano de teologia no de ensino religioso na própria faculdade.


Seminário São José Após ter conhecido o Dirceu, continuei a
e, quando soube trabalhar e a estudar na Faculdade Salesiana.
que não poderia Namoramos um ano por correspondência.
ser padre, resolveu Dirceu me deu tanto carinho e atenção que me
fazer revalidação convenceu a ir com ele para o Rio de Janeiro.
de filosofia e teolo- Deixei meus irmãos, saí de São João del Rei –
gia para poder dar onde eu trabalhava no Colégio Dom Bosco, de
aula. Ele morava na classe média, e já tinha alcançado um status
favela da Praia do melhor – e vim para o Rio de Janeiro, direta-
Pinto e ia para São mente para a Cidade de Deus.
João del Rei fazer a Então, você deixou seu emprego
revalidação na Fa- para casar?
culdade Salesiana, Cleonice Dias – Deixei o emprego em São
onde eu estudava. João del Rei, mas vim empregada para o Rio
Foi ele quem me de Janeiro. O Dirceu era professor do Colégio
trouxe para o Rio. Marista São José, no Rio, e conseguiu que eu
E como trabalhasse lá como professora. Mas isso não
vocês se quer dizer que não houve mesmo uma mudança
conheceram? radical. Deixar São João del Rei e vir morar na
Cleonice Dias Cidade de Deus foi impactante na minha vida.
– Eu o vi na rua, e Antes de me mudar para o Rio, tomei co-
ele me pediu uma nhecimento do preconceito que havia contra
informação qual- a Cidade de Deus. Um tio que morava no Rio,
quer. Acabamos quando soube que eu ia morar em Jacarepa-
nos encontrando guá, disse que o único lugar que eu deveria
de novo no mesmo evitar era a Cidade de Deus. Por causa disso,
dia. Ele perguntou: “Você mora por aqui?”. menti para a minha família e não disse onde
Respondi secamente: “Moro”. Ele perguntou: exatamente eu moraria. Para o convite de
“Onde você mora?”. Estávamos em frente ao nosso casamento, um amigo do Dirceu nos
cemitério do Carmo e respondi: “Sou uma alma emprestou seu endereço. Minha família só ficou
penada, moro aqui no cemitério”. Depois, nós sabendo onde eu realmente morava três meses
nos encontramos mais uma vez, na faculdade, depois, quando a minha mãe veio me visitar.
e ele disse: “Oi, alma penada”. Foi quando Outro preconceito que enfrentei, ainda em
prestei atenção nele pela primeira vez. Casa- São João, foi ter me casado com um homem
mos em São João del Rei, na Igreja Católica. negro. Mineiro tem muito preconceito. Na
Eu estava de vestido de noiva e era virgem. Foi minha infância, lembro de ter ido a uma igreja
tudo muito bonito e dissemos um para o outro onde havia lugares para brancos e lugares para
que a nossa vida seria uma causa aberta para negros; eu tinha 6 anos de idade e não esque-
as outras pessoas, que nosso amor teria que ço. Cresci ouvindo meu avô dizer que “preto,
refletir acolhimento e serviço. quando não suja na entrada, suja na saída” e
Como você ingressou “preto bom tem alma branca”. Quando casei
na faculdade? com um negro, estava desafiando a estrutura
Cleonice Dias – Fiz o curso normal e da minha família. Foi uma opção muito radical.
dava aula de ensino religioso. Para passar no Eu tinha muito essa coisa de ser subvertida,
vestibular, estudava em grupo – o processo de de ser do contra, de me afirmar contra o
aprendizado de estudo de grupo que nunca estabelecido.
mais abri mão na vida. E, para pagar a taxa de Houve oposição da sua família?
inscrição, pedi dinheiro emprestado ao diretor Cleonice Dias – Sim e não. Meu avô
da faculdade, padre João Bosco Teixeira. Nunca tinha o seu preconceito: só se relacionava
esquecerei. Disse para ele: “Vou fazer o vestibu- com negros que, segundo ele, tinham alma
lar e vou passar, quero que você me empreste o branca. Mas minha mãe e meus irmãos nunca
dinheiro. Se eu passar, venho lavar os banheiros demonstraram nenhum racismo. Mamãe tinha
do colégio para pagar o empréstimo”. Passei no amigas negras, e eu também, muito antes de
vestibular, ganhei meu primeiro emprego, pude conhecer o Dirceu.
pagar o empréstimo com o salário de professora Como era a Cidade de Deus

38 Democracia Viva Nº 9
22
Cleonice Dias

naquela época? foi um pulo. No início da década de 80, eu já


Cleonice Dias – A Cidade de Deus faz era presidente do Comocid. Minha casa virou
parte de um modelo habitacional adotado um lugar de aprendizado, de encontro. Sendo
pela ditadura que foi muito comum em certa viúva, não tinha homem para atrapalhar, não
época no Rio de Janeiro. Era um tabuleiro tinha hora de fazer comida. Eram mulheres,
todo quadriculado, projetado para ter 25 mil homossexuais, o pessoal do movimento negro,
habitantes, sem estrutura real para receber todos freqüentavam o grupo de estudos na
as famílias e com habitações minúsculas. Em minha casa.
1975, estava começando a guerra do tráfico e Havia, no Comocid, uma coisa interessante
já era difícil viver na Cidade de Deus. Diferentes e que possibilitou não só o meu crescimento
grupos dominavam a área e impediam que as como o de muita gente também: no estatuto,
pessoas transitassem livremente. Como éramos estava escrito que a idéia era construir o socia-
militantes da igreja, e a igreja costuma fazer lismo. A opção não era a política do gabinete.
procissão e círculos bíblicos, já enfrentávamos As outras associações faziam ofício, abaixo-
uma dificuldade de andar pelas ruas. -assinado e levavam aos políticos. O Comocid
Seu marido já morava na Cidade de queria mobilizar as pessoas.
Deus? Foi o momento de fundação
Cleonice Dias – Sim, ele era egresso da do PT também.
favela da Praia do Pinto, que tinha passado pelo Cleonice Dias – Sim. Do grupo do qual
processo de remoção depois de um incêndio eu participava, cerca de 30 pessoas se filiaram
criminoso. Como tinha mais estudo do que a ao PT em 1982. Fundamos o Núcleo do PT da
maioria das pessoas, foi contratado pela Cehab Cidade de Deus. Dentro do partido, tivemos
[Companhia Estadual de Habitação] para ajudar um primeiro momento de conflito, éramos
no processo de ocupação da Cidade de Deus. chamados de igrejeiros. Fiz uma trajetória par-
Ele participou ativamente de todo o processo. tidária interessante: coordenadora de núcleo,
Não havia nenhuma organização coordenadora da Zonal, diretório regional res-
comunitária? ponsável pela Secretaria de Movimentos Sociais.
Cleonice Dias – Já existia o Comocid A luta por habitação estava muito intensa na
[Conselho de Moradores da Cidade de Deus], Cidade de Deus, e estávamos construindo novas
a associação de moradores, a associação dos casas. Em 1986, fui candidata pela primeira vez
apartamentos e a associação do Conjunto da a deputada estadual e tive 3.700 votos.
PM. Eram quatro associações correspondendo Como foi a experiência
um pouco à divisão que o tráfico também fazia, da candidatura?
e cada uma tinha uma área de atuação. Meu Cleonice Dias – Minha convicção era a
marido tinha sido presidente do Comocid, mas, possibilidade de transformar todo aquele en-
quando o conheci, ele já tinha abandonado o tusiasmo do Núcleo de Habitação da Cidade de
cargo por causa dos problemas de saúde. Deus em uma causa maior, mas logo percebi
Você não participava que ainda havia muito a aprender. Além de não
de nenhuma organização? ter sido eleita, perdi o emprego como profes-
Cleonice Dias – Até então era só igreja, sora no Colégio Marista São José. Fui taxada
círculo bíblico. Fiquei viúva com um ano e de subversiva.
três meses de casada, logo depois que meu O Comocid não tinha articulação
filho Paulo César nasceu. Com a morte do
Dirceu, fui tentar resolver a documentação
da nossa casa e, como o inventário não dava
certo, fui procurar o Comocid. Foi assim que
tive meu primeiro contato com a organização
comunitária. Nesse caminho de ir à reunião, à
prefeitura, à Cehab, comecei a entender que
aquilo não era um problema só meu, eram
17 quadras na mesma situação. Comecei a
entender a dinâmica da luta, a injustiça que
era morar numa casa que não tinha escritura.
Passei a participar das reuniões da habitação.
Dali para a Famerj [Federação das Associações
de Moradores do Estado do Rio de Janeiro],

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2004 / JUL 2004 39
entrevista

com a Pastoral de Favelas? em 1988,


Cleonice Dias – As pastorais, em geral, com o Bittar?
tiveram um papel fundamental para a nossa Cleonice Dias – O PT vinha de uma vota-
ação. Alguns padres marcaram a alma da ção de 0,03%. Fui candidata porque o partido
Cidade de Deus, como padre Júlio, padre precisava de alguém da favela para contrapor
Valentim e padre Mário. Todos eram de uma à figura do Jorge Bittar, que tinha maior trân-
atuação comunitária intensa. Lembro que, nos sito na classe média. Conseguimos ter 18%
momentos mais fortes de luta, havia sempre dos votos! A experiência mais marcante de
um padre conosco. Quando havia um conflito campanha aconteceu na véspera. Depois do
muito grande com o pessoal do governo, logo último comício, quando soubemos que fica-
falávamos no nome do padre, e o tratamento ríamos em segundo lugar, ficamos dançando
era outro. Na época do primeiro governo Bri- na Cinelândia. Logo em seguida, veio a notícia
zola, isso era muito comum. de que haviam matado companheiros nossos
Como foi a relação com em Volta Redonda. Em plena euforia de estar
o governo Brizola? construindo um projeto do partido, sofri o cho-
Cleonice Dias – Aprendemos o que é que da realidade que ainda estávamos vivendo.
populismo sentindo na carne. Lembro até hoje Dessa vez, não fui demitida, mas vivi expe-
a dor de ter vivido uma experiência de levar riências do que é ser mulher e estar na política.
sete ônibus com mulheres, crianças, pais de Fui vítima de violência, tive que enfrentar situ-
famílias para discutir a luta de habitação, entrar ações muito difíceis. Um dia de madrugada,
no Palácio do Governo, sentar todo mundo chegando em casa, levei uma surra e ainda
naquele tapete verde e ficar esperando para ouvi “é pra deixar de ser metida”! Por ques-
ser atendida. Horas depois, o Brizola avisa que tões políticas, já quebraram meus dentes, tive
não podia atender. Mas logo ele também avisa revólver apontado para minha cabeça, a vida
que haveria arroz, farofa, bife, batata frita, do meu filho foi ameaçada. Apesar de tudo,
pão com mortadela e suco de caju para todo tenho orgulho e auto-estima de saber que sou
mundo! As pessoas entraram na fila duas, três parte desse processo de crescimento, que tenho
vezes... Quando voltávamos para casa, batiam contribuído. Sei que milhares de pessoas que
nas minhas costas e diziam: “Esse é o homem, também se sentem pressionadas jamais se sub-
Brizola na cabeça!”. Ele não nos atendeu, não meterão à opressão, jamais se curvarão, estarão
deu satisfação, não deu uma palavra sobre a sempre de pé. Em 1989, fui can­didata outra vez
luta de habitação! Depois disso, aprendi que a deputada e pensava: “Só me matando, eu não
o populismo trabalha com o coração e com vou me curvar”. Sabe quan­tos votos faltaram
o estômago, mas não tem meio de conectar para eu ser eleita? Apenas 24.
com a cabeça. Como você vê hoje o PT?
Como foi sua segunda candidatura, Cleonice Dias – Como qualquer militan-
te de base, tenho saudade do
tempo em que tinha trabalho
de base. Uma parte da militância
ficou adulta e teve que cuidar da
sua própria vida, não construí-
mos seguidores e nem consegui-
mos nos multiplicar. O partido
cresceu, foi para gabinete, para
a articulação e deixou de fazer
o trabalho de base e provocar
o crescimento das pessoas. É
outro partido. Não acredito
que a maioria das pessoas que
votaram no Lula tenha feito por
convicção. Na verdade, o voto no
Lula não espelhava uma vontade
de o povo governar e de ser pro-
tagonista. O país que eu quero
precisa do Lula conectado com
os outros países que estão na

40 Democracia Viva Nº 9
22
Cleonice Dias

mesma luta, mas precisa também que eu faça a política no sentido


a minha parte, precisa de uma luta em que eu amplo, a ampliar di-
possa reproduzir o sonho e a esperança de uma reito de cidadania,
nova sociedade, de um novo país, de um novo no dia-a-dia.
projeto de ser humano. Qual a
Esse distanciamento do PT em relação à herança
base criou um enorme vazio para quem quer de toda a
transformar a sociedade. Acho que vem daí ebulição por
o aparecimento de tantas ONGs que tentam que passou
ocupar esse espaço, e algumas acabam por a Cidade
reproduzir sem transformar nada. Existem ainda de Deus há
os INGs, os indivíduos não-governamentais, que 20 anos?
tentam articular em si mesmos um projeto e Cleonice Dias
comprometem a imagem das ONGs mais sérias. –Hoje, na Cidade
O movimento comunitário de base, que já foi de Deus, temos um
tão forte, ainda está acuado, mas já começa a projeto de futuro: o
dar sinais de que pode ser reativado. Programa de Desen-
Você acredita que podemos volvimento Comuni-
ter um reaquecimento do tário Sustentável. Ele
movimento comunitário? foi elaborado pelo
Cleonice Dias – Sim, mas bem diferente Comitê Comunitário
do que foi. Estamos nos apropriando de uma da Cidade de Deus
série de coisas, até mesmo do nosso próprio e reúne propostas
conhecimento. Antes, entregávamos para as de políticas públi-
universidades, para os intelectuais, nós éramos cas que devem ser
só objeto de estudo. Isso tudo está mudando. atingidas até 2009.
Antes não sistematizávamos, não tínhamos Procuramos apontar
objetivos relacionados. Hoje, percebo que o de quem é a compe-
caminho da conexão para fazer a transformação tência para as ações
é a possibilidade da rede, a possibilidade das e soluções estrutu-
parcerias e a discussão sobre que novo mundo rais, como também as parcerias necessárias:
queremos. Precisamos discutir a questão do universidades, ONGs, empresários. Entende-
individualismo e do consumismo, dentro de um mos que o poder público tem que assumir seu
projeto de ser humano, de nação e de relações papel, pois pagamos nossos impostos, contri-
internacionais. É um outro processo diferente buímos com nossa cota e não recebemos os
daquele que fazíamos, porque ele tem que aliar investimentos a que temos direito. Só estamos
conhecimento, forças e conteúdos diferentes, propondo o que é nosso direito.
mas conectados com uma discussão: que pes- Não queremos ser vistos como carentes,
soas queremos ser? A questão ambiental, a de pobres coitados. Somos conseqüência de po-
gênero e a de raça têm que estar conectadas. líticas que geram distribuição de renda injusta,
O Fórum Social Mundial que excluem. Por exemplo, temos 13 escolas
é um espaço que expressa públicas, mas apenas uma de ensino médio. A
essa articulação? maioria dos adultos tem um período de estudos
Cleonice Dias – Sim, tive a oportunidade entre três e sete anos. A Cidade de Deus foi pro-
de ir ao Fórum duas vezes e pretendo ir nova- jetada para 25 mil habitantes. O Censo afirma
mente. Foi um grande aprendizado. No Fórum que somos 38.016, mas sabemos que somos
de Porto Alegre, descobri que essas conexões 65 mil. Para o poder público, há mais de 26 mil
são necessárias. Lá, tive a noção do que é a luta pessoas invisíveis.
no mundo inteiro. Eu via as coisas a partir do Na pesquisa que o comitê realizou com o
lugar onde eu estava e lá aprendi a projetar para Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infân-
fora, a ver o mundo. Percebi, muito concreta- cia], descobrimos que 53% da nossa população
mente, que temos que pensar América Latina, é composta por mulheres e, dessas, 61% são
pensar projetos de mundo. Temos que entender analfabetas. Entre os homens, são 38,8% de
qual é a história do livre mercado, o que é analfabetos. De 946 crianças que iniciam os
Alca, como isso incide na vida das pessoas da estudos, apenas 181 chegaram à oitava série.
América Latina. É preciso aprender a trabalhar Não têm acesso a creches 87% das crianças

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2004 / JUL 2004 41
entrevista

até 4 anos. Temos enormes índices de gravidez uma participação maior da comunidade no
precoce e desemprego, além da desnutrição controle social, na questão da verba, na quali-
infantil, da evasão escolar etc. É uma demanda dade do atendimento e na discussão sobre as
que requer do poder público ações bem concre- propostas de saúde. Na questão da educação,
tas. Nada de paliativos; isso já temos. Queremos a luta é pela qualidade do ensino. Queremos
reverter esses esquemas que reproduzem as um projeto político-pedagógico que leve em
condições de pobreza. conta a nossa realidade. Uma reivindicação bem
Como é formado o comitê? específica de homens e mulheres da Cidade de
Cleonice Dias – Atualmente, somos 20 Deus é poder estudar mais, ter uma escola que
instituições, algumas flutuantes. Cada uma funcione à noite, mas que não seja supletivo. Na
abriu mão do seu mun­dinho e das disputas questão da comunicação, queremos dominar
pela hegemonia e entendeu que devemos ser todo o processo de comunicação, queremos ter
cúmplices nessa proposta de desenvolvimento. rádio, jornal e TV como forma de multiplicar
Nós nos reunimos há quase um ano e meio a capacitação. Acreditamos também que, com
para discutir questões de educação, cultura, comunicação de qualidade, vamos contrapor o
comunicação, meio ambiente, saneamento, modelo que está aí. Que negócio é esse de “A
habitação, emprego, trabalho e renda. Também gente se vê por aqui”, como diz a Globo? Que-
temos uma área de promoção social que en- remos nos ver a partir do local em que estamos.
quadra temas ligados a crianças, adolescentes, Na área da cultura, queremos formatar um
mulheres, raça, terceira idade e juventude. projeto que discuta a nossa identidade local.
Ele foi formado por causa da repercussão Que características nos fizeram resistir tanto?
negativa que o filme Cidade de Deus causou Viemos de seis grandes favelas, de 20 outras
na opinião pública. Na época em que o filme pequenas, fomos colocados em um conjunto
concorria à indicação do Oscar, o MV Bill [rapper habitacional horizontal, nos espalhamos e
da Cidade de Deus] tornou pública a indignação viramos uma refavela. Resistimos à luta do
da comunidade, iniciando toda essa discussão tráfico, resistimos às enchentes, resistimos à
sobre um comitê de intervenção da Linha Amarela, resistimos à
instituições locais. ameaça da especulação imobiliária, resistimos
O filme trouxe para à ação do monopólio do transporte... A Cidade
nós a chance de de- de Deus é riquíssima, como tantas outras favelas
bater e dizer que ou bairros, em produção artística. Mas o que
não aceitávamos temos de mais forte, o que é a nossa cara? A
ser estigmatizados primeira forma de resistência da população
como moradores pobre é sempre resistir com a felicidade, com
de um lugar que só a celebração, com processos de arte.
tem marginalida- Temos uma parceria com alguns setores da
de, vagabundagem iniciativa privada, como Fenaseg, Fetranspor,
e violência. Essa foi Cobra Tecnologia, Fecomércio, Sebrae e Linha
a história contada Amarela. Também contamos com o Unicef, a
no filme; nós esta- Caixa Econômica Federal e algumas universida-
mos fazendo outra des. Estamos procurando meios para promover
história. Tudo isso a capacitação das lideranças e das pessoas
acabou gerando um comprometidas com a transformação real.
momento de muita Sabemos o quanto é importante gerir projetos
riqueza na Cidade de com responsabilidade, ética e transparência. O
Deus e que pode ser- processo é todo participativo, o que possibilita
vir de estímulo para o protagonismo e o empoderamento. No fundo,
outras comunidades. todas as nossas propostas são para enfrentar
Quais são as anos de omissão e negligência do poder público
propostas do quanto às nossas questões estruturais. Mesmo
programa de que os parceiros da iniciativa nos ajudem – o
desenvolvimento que é ótimo –, o governo é o devedor principal.
comunitário? E o que já foi implementado?
Cleonice Dias Cleonice Dias – Já temos dez turmas de
– Na área de saúde, alfabetização de adultos funcionando, um
estamos propondo jornal em processo de organização, o CDD

42 Democracia Viva Nº 9
22
Cleonice Dias

Notícias, e uma rádio comunitária. São duas


propostas que pretendem, além da comuni-
cação mais eficaz para a nossa luta, capacitar
nossos jovens. Em parceria com o Ministério dos
Esportes, faremos o Projeto Segundo Tempo e
uma fábrica de bolas e material esportivo. Com
o Ministério das Cidades e a Caixa Econômica
Federal, negociamos a construção de mil uni-
dades habitacionais. Com a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção de Igualdade Racial
e com o Ministério de Ciência e Tecnologia,
vamos desenvolver um projeto que transforma
o óleo usado, de origem animal e vegetal,
em biodiesel. Esse projeto, além de emprego
e renda, aprofunda questões de preservação
ambiental. Com a Cobra Tecnologia e a Linha na prática do assistencialismo que é uma força
Amarela, um programa de inclusão digital está muito séria. Sabemos o quanto isso é difícil, mas
sendo planejado, não só para dar oportunida- esse é o verdadeiro avanço.
des de acesso a esse saber, mas também para O assistencialismo e as obras ainda
capacitação de mão-de-obra. são as maiores reivindicações de
Qual é a maior dificuldade? uma comunidade pobre?
Cleonice Dias – Nossa maior dificuldade Cleonice Dias – Ter um centro cultural,
tem sido o diálogo com o governo do estado por exemplo, é um ganho e uma conquista
e do município. Mas a maior ameaça é não da comunidade, mas não muda a estrutura. A
conseguirmos avançar, não conseguirmos trazer comunidade deve ocupá-lo e certamente alguns
algo de concreto para a Cidade de Deus que dê jovens se beneficiarão. Porém, melhor que dar o
uma perspectiva especialmente para os jovens. espaço para o jovem freqüentar é ter um centro
Ainda temos dificuldades de conectar os jovens cultural onde ele próprio faça a concepção de
com essa discussão, ainda está muito com os funcionamento, administre e aprenda a prestar
adultos. Temos que alcançar a concretude para contas. Quando se tornar realmente responsá-
o nosso sonho e traduzi-la em algo que fuja vel pela iniciativa, o jovem estará se formando
do padrão de reunião ou de cursos. Queremos como cidadão e ajudando a transformar a
enfrentar essa violência de uma política que sociedade. Ele saberá re­formular o conceito do
não inclui, que não leva em consideração o bem comum. O sentido de cidadania deixa de
direito e a cidadania das pessoas pobres, que ser cidadania local para ser maior, até chegar
não tem um projeto de educação que liberte, ao âmbito do global, que inclui todos e todas.
que, quando vai propor emprego e trabalho e O tráfico de drogas também não é
renda, oferece cursos de manicuro, pedicuro, um impedimento para um projeto
animador de festa e que não leva em considera- como esse?
ção que a maioria das mulheres não tem onde Cleonice Dias – Sem dúvida, o tráfico de
deixar seus filhos. drogas é uma força que oprime e tem muito
Outra questão a ser vencida é fazer com que poder. Mas não é o poder paralelo que a Rede
o poder público respeite a nossa vontade de Globo costuma divulgar nem se restringe aos
ser protagonistas. Não queremos ser tutelados. que são vistos como traficantes. Quem mora em
Também não vamos aceitar que uma ONG de comunidade sabe muito bem como a polícia nos
fora venha nos administrar. Queremos propor oprime também. Temos trabalhado para que o
as formas, e não aceitar simplesmente os mo- jovem tenha o direito de escolha. Queremos
delos que já existem. Queremos descentralizar motivá-lo e capacitá-lo para que tenha o mí-
projetos. Não queremos um modelo de casa de nimo de opção como cidadão e possa construir
cultura, não precisamos de um projeto Criança para si aquilo que projeta. Mas o desemprego
Esperança... é tão alto que os resultados são pouco ani-
Queremos módulos integrados nos quais a madores. No tráfico, quando morre um, logo
luta da terceira idade esteja conectada com a luta aparecem dez para o mesmo lugar. Não só na
da mulher, com a luta do adolescente. Temos Cidade de Deus, mas em comunidades pobres
saídas, temos propostas, sabemos o caminho. O em geral morrem jovens todos os dias. E morrem
que não nos permitem é protagonizar. Insistem de várias formas, não apenas perdendo a vida.

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2004 / JUL 2004 43
entrevista

Morrem perdendo fizeram acerto...


referência, perden- Sofremos diariamente o peso da violência
do sonho e direito no abandono e na indiferença com que so-
de optar. mos tratados. Debitar na conta da população
Mas o que é pobre a causa da violência é um grande equí-
fundamental é en- voco. Ouvir que querem construir um muro
tender que, para em torno da Rocinha ou que a remoção de
nós, a maior vio- favelas é solução para diminuir a violência
lência é a forma nos revolta. Temos o direito de viver onde
desigual como o estamos, temos direito de melhorar a forma,
poder público ad- temos propostas. Precisa de muita coragem,
ministra os recur- precisa de muita disponibilidade, precisa de
sos que deveriam muita garra, e isso na Cidade de Deus sempre
ser em benefício tivemos.
de todos. Como A descriminalização do uso de
entender que entre drogas poderia ser um caminho
a Barra e Jacarepa- para diminuir a violência?
guá, duas áreas na Cleonice Dias – Não acho que seja a saída.
cidade que recebem Até os anos 80, início dos 90, a playboyzada
um volume alto de ia à Cidade de Deus buscar drogas: víamos
investimentos da os carrões parando, entrando ou os meninos
prefeitura, a Cidade levando a droga até eles. Não havia tanto con-
de Deus esteja tão sumo interno. Hoje, é o próprio jovem pobre e
abandonada? So- desnutrido que está consumindo.
mos vistos apenas A droga sofreu um processo de popu­
como estoque de mão-de-obra barata e curral larização. Não existe cocaína pura para consu-
eleitoral. mo dentro da favela; cocaína pura é para fora,
Estou convencida de que o caminho é atuar onde o consumo continua grande. É tudo tão
na reconstrução do ser humano, na base do organizado que existem diferentes papéis, cada
que queremos como sociedade. Não podemos cor significa um preço e a pureza da droga.
mais aceitar medidas assistencialistas como as Por trás do uso de drogas, além da doença da
que são sugeridas por algumas instituições. A dependência, existe também a falta de pers-
comunidade tem que estar preparada para de- pectivas. As pessoas não têm projeto pessoal
bater grandes temas, ser ator social da mudança e estão muito mais consumistas, especialmente
que ela quer que aconteça. os jovens. Para o morador da Cidade de Deus
As campanhas antidrogas ou pelo o BarraShopping é o sonho, mas ele não pode
desarmamento causam algum passar de Madureira para comprar suas roupas.
impacto nas comunidades pobres? O sonho de consumo do jovem pobre, que o
Cleonice Dias – Campanhas desse tipo meio de comunicação traz, que a escola não
causam é mal-estar. Toda vez que um artista questiona, que a família não tem força, é o que
da Rede Globo que consome cocaína participa a classe média tem. Estamos querendo mudar
de uma campanha contra droga, pela paz ou essa referência. Até há pouco tempo, os joga-
pelo desarmamento, cria-se uma enorme e dores de futebol e os cantores de pagode eram
cínica desesperança. Olhamos e pensamos: os ideais de transformação. Hoje, é o tráfico de
“sacana”. Esse tipo de campanha ajuda a minar drogas. As meninas engravidam do pessoal do
a credibilidade das instituições, das pessoas, das tráfico porque isso dá status, dá poder e porque
lideranças locais. Quem tem menos informação é a certeza de uma casa para morar.
acaba transferindo esse sentimento para o po- Como funciona o Ceacc?
lítico, para as instituições em geral. Fica tudo Cleonice Dias – Começamos a nos reunir
muito cínico. em 2001. O Ceacc é um ONG onde aprende-
Nossos problemas são de outra ordem. A mos lições de protagonismo, metodologia,
luta pela sobrevivência é diária; a morte está empoderamento e prestação de contas. O Ceacc
muito presente. As pessoas morrem porque nasceu para a parceria e para a rede. Ele não
estavam dirigindo um caminhão e não acei- nasceu para não afirmar a identidade de um
taram ser assaltadas, porque estão devendo trabalho, nasceu para ser um centro de estudos,
na boca, porque falaram demais, porque não para provocar pesquisa e esse aprendizado do

44 Democracia Viva Nº 9
22
Cleonice Dias

dia-a-dia da comunidade. Para fazer curso e acontece, e você quer ficar longe. Comigo foi Participaram desta entrevis-
ta: Cândido Grzybowski, Irace-
aplicar, para buscar soluções viáveis com uma assim. Um dia um menino na Cidade de Deus ma Dantas, Marcelo Carvalho,
Itamar Silva, Leonardo Mello e
conexão maior, de país, de mundo. O Ceacc foi metralhado. Ele foi destroçado com tiros Rosana Heringer.
trabalha hoje com 400 crianças. Esse trabalho no rosto e a mãe o reconheceu pelo tênis. Eu Fotos: Marcus Vini
é demonstrativo para provar à comunidade, às pensei: “Vou estar na luta, quando eu puder,
famílias, ao poder público e aos parceiros que, eu volto”. Fui para Xerém trabalhar com as
com projeto, com seriedade, com participação, plantas na Pastoral da Saúde. Eu também tinha
conseguimos transformar, atingir as famílias um problema de saúde que precisava enfrentar
e ampliar direitos de cidadania. Temos uma e fui buscar as plantas e lutar na defesa da
parceria com a ActionAid e estamos buscando nossa biodiversidade. Começava a me integrar
outras parcerias com universidades, movimento cada dia mais nessa luta, quando a ActionAid
negro, movimento de mulheres. O Ceacc é uma exigiu que, no Ceacc, houvesse mulheres em
instituição provocadora de processos. sua equipe. Fui convidada e aceitei o desafio.
O que você pensa sobre
a eleição municipal?
Cleonice Dias –Tenho muita esperança,
mas sei que está difícil. É provável que o César
Maia emplaque outra vez. Os Jogos Pan-
-americanos são um exemplo de como a atual
administração trata a cidade. A Vila do Pan é
bem perto da Cidade de Deus, e isso poderia
ajudar muito a desenvolver a área, mas estamos
totalmente fora. Nós e qualquer favela que não
tenha um candidato ou uma liderança ligados
ao César Maia. A revitalização do cais do porto
é outro exemplo. A discussão sobre o projeto
não tem nada de participativo. Existem proje-
tos habitacionais previstos, mas não há uma
discussão com a população.
Mas jamais perderemos a esperança de
dialogar com a prefeitura e chamá-la para
essa nova forma de gestão. Pode não ser
agora, os prefeitos passam e temos o espaço
para dialogar e negociar. Se não for agora,
acumularemos forças e tentaremos com o
próximo prefeito. Pode ser que seja alguém
que acredite em outra forma de fazer política.
Por que você não mora mais
na Cidade de Deus?
Cleonice Dias – Moro em Xerém. Como
boa mineira, fui atrás do cheiro da água caindo
do céu e da terra molhada. E lá tenho direito
de comer couve sem agrotóxicos. Hoje, tenho
um padrão de vida e de dignidade do qual não
abro mais mão. Viver em Xerém é meu direito,
meu conforto, meu limite de ser. Voltar a tra-
balhar na Cidade de Deus é meu compromisso
com este país. Voltar a estar na luta é construir
identidade de povo. Não estamos construindo
a Cidade de Deus, estamos reconstruindo o
diálogo entre comunidades.
Quando o trabalho no Ceacc foi iniciado,
eu já tinha saído da Cidade de Deus. Quan-
do moramos em uma comunidade onde há
morte todo dia, pode até parecer que nos
acostumamos a ela. Mas, um dia, alguma coisa

JUNOUTUBRO/2000
2004 / JUL 2004 45
c r ô n i c a

Como as patas
de um cavalo
Tomada pelo medo crescente, jurara nunca Colegas falavam em assaltos, ela
mais sair de casa à noite. E, mesmo duran- achava que eram no Centro da cidade ou na
te o dia, expor-se na rua apenas o tempo Zona Norte. Vizinhos falavam em drogas e
necessário para desincumbir-se das tarefas tráfico, achava que era na favela. Um dia, viu
domésticas. Com o prédio gradeado, telein- um arrastão na praia – gritos, correria, areia
terfone e câmeras nos elevadores, sentia-se no olho, dezenas de pivetes roubando tudo – e
mais protegida. Porém, a leitura do jornal assustou-se. Mas pensou: “Coisa do verão”.
e o noticiário da TV traziam de volta o Depois, bateram a carteira do marido: “Foi
medo. Nos seus 66 anos, nunca vira nada pouco dinheiro; e não teve arma”, consolou-
parecido com o que acontece hoje no Rio de -se. Mais um ano e roubaram o carro do
Janeiro. Professora do nível médio, até se filho. Por sorte, não estava ao volante. Pouco
aposentar transitou de ônibus pela cidade, depois, a filha achou maconha na mochila
da Copacabana onde sempre viveu à Tijuca do neto. Só quando o filho da vizinha foi
onde lecionou. Exuberante e comunicativa, assassinado ao reagir a assalto, deu-se conta
ia sempre à praia e ao cinema, às vezes, ao de que girava no olho do furacão.
teatro e, mais raro, ao Canecão, com esti- Lastimou a época sem fé nem valores
cada para jantar. Escriturário, o marido ia e deplorou a perdição do mundo. Amaldiçoou
para a repartição de paletó sobre os ombros, os políticos que querem o poder pelo poder
lendo o jornal e assoviando “Os pobres de ou o poder para roubar. Condoeu-se do Rio de
Paris”. Nunca foram assaltados, ameaçados Janeiro, infelicitado por péssimos governan-
nem constrangidos. A paz liberava o humor tes. Como se explica – indagou entre lágrimas
e a alegria de viver. – tal degradação da cidade que todos amam?

46 Democracia Viva Nº 22
Como deixaram que a Princesinha do Mar rua. No sinal, ele abre o porta-luvas – “Ai, AlcioneAraújo
chegasse a esse ponto? O que fazer para livrar Deus, a arma!” –, tira a flanela e limpa o painel. alcionaraujo@uol.com.br
a Cidade Maravilhosa do pesadelo? Com a Alivia-se com o camburão que pára ao lado.
barba de molho, o marido vive silencioso, lê Mas, ao ver metralhadoras saltando pela janela,
o jornal em casa, veste e abotoa o paletó e volta o pânico. Adiante, encontra no retrovisor
nunca mais assoviou “Os pobres de Paris”. os olhos dele sorrindo. O coração bate como as
Nos seus abismos, o medo pede de- patas de um cavalo: “É sádico. Vai me matar
talhes. Acompanhando tudo pela imprensa, sorrindo”. Mal o carro pára, salta, esquece o
ela aprendeu o nome das favelas e pontos de troco e, sem se virar, entra correndo na clínica.
venda em disputa, dos chefes de quadrilha e Respira sozinha na fila à espera do ele-
seus rivais, dos bandidos presos e procurados, vador. Logo, um homem posta-se atrás dela. É
dos delegados e comandantes. Sabe as siglas de negro. Ela pressente e estremece. O elevador
batalhões e delegacias, o apelido de viaturas, chega, sem ascensorista. Ele se antecipa e segura
gíria de bandidos e jargão da polícia. No seu a porta, sorrindo. Emoções em turbulência, ela
pânico bem informado, vaticinou: “Com a não sabe o que fazer. Cerra os olhos e entra
condicional, Dudu vai atacar Lulu e retomar rezando. Dentro, o homem pergunta: “O andar,
a Rocinha”. E concluiu ciosa: “O bicho vai senhora?”. “E agora, meu Cristo?” Murmura
pegar, tá ligado?”. O marido ouviu, perplexo. com lábios trêmulos: “Cinco”. Ele aperta o cin-
Assombrada, não dormiu mais. Com co, a porta se fecha. Cabisbaixa, ela mal respira.
80 homens armados, Dudu parte do Vidigal Intui cada gesto dele: “Maria Santíssima! Ele
para a Rocinha. 1.300 militares ocupam os vai me estuprar. Oh, Senhor, meu Jesus Cristo!
morros. Instala-se a barbárie. A cada hora, Ele vai me espancar, me torturar! Oh, clemente,
mais mortos. Entre eles, Lulu. Agora, a Ro- oh, piedosa, doce Virgem Maria! Vai puxar a
cinha espera o ataque de Dudu, assim que a arma, minha santa! Rogai por nós, Santa Mãe
polícia sair. Após dias de pânico, ela sucumbe: de Deus!”. O elevador pára no quarto andar.
palpitações, falta de ar, insônia e inapetência. O homem sai. Ela suspira fundo, persigna-se.
Sem ter quem a acompanhe, parte so- Agradece a Deus. Trêmula e suada, irrompe no
zinha para a clínica. No banco de trás do táxi, consultório e desabafa a uma perplexa sala de
atenta a cada movimento do motorista – um espera: “Quase fui assaltada!”.
mulato sorridente –, recusa a oferta do ar- Sentiu-se aliviada da ameaça que não
-condicionado e pensa: “Quer fechar tudo pra houve. É sempre assim. Onde o medo faz
sumir comigo”, certa de que numa emergência, morada, a lucidez bruxuleia, a intolerância se
com janelas abertas, seus gritos chegariam à insinua e o preconceito salta das entranhas.

JUN 2004 / JUL 2004 47


r e s e n h a

a conservação de sua pessoa, de seus direitos


e de suas propriedades” (art. 8o). Note-se que,
nesse artigo, não se fala em proteção conce-
dida pelo Estado, mas sim pela “sociedade”.
Trata-se, obviamente, da aplicação da idéia
fundamental de Rousseau, cujo pensamento
exerceu notável influência sobre os próceres
da Revolução, de que a soberania popular não
se delega: ou o povo a exerce diretamente,
ou deixa de ser soberano. O reconhecimen-
to oficial, assim feito, de que o direito à
segurança é um dos atributos essenciais da
dignidade humana veio para ficar. Mais tarde,
150 anos depois, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos proclamou: “Todo homem
tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal” (art. 3o).
O problema, contudo, consiste em saber
Por um novo modelo como organizar a proteção a esse direito, agora
tecnicamente reconhecido em quase todos os
de polícia – A inclusão países como fundamental, por estar previsto
dos municípios no sistema expressamente nos textos constitucionais.
Segundo a tradição, que nos vem de muito
de segurança pública antes da Revolução Francesa, é ao Estado que
Benedito Domingos Mariano incumbe essa atribuição, a ser exercida por
Editora Fundação Perseu Abramo meio dos órgãos policiais. Trata-se, segundo
184 págs. a doutrina jurídica consagrada, de um serviço
público essencial, insuscetível de concessão
administrativa. Ainda aí, no entanto, o flagelo
A proclamação da segurança pessoal como capitalista neoliberal veio abalar o princípio até
objeto de um direito inerente à condição hu- então tido como inconcusso: já hoje se discute
mana foi feita, pela primeira vez na história, abertamente, quando não se institui oficialmen-
pela Declaração dos Direitos do Homem e do te, aquela que bem poderia ser considerada a
Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional “abominação da desolação”, para usarmos da
Francesa logo no início da Revolução. “A linguagem bíblica: a privatização dos serviços
finalidade de toda associação política”, reza policiais. Convenhamos, porém, que, em socie-
o artigo 2o desse texto famoso, “é a conser- dades como a nossa, em que sempre vigorou
vação dos direitos naturais e imprescritíveis o regime político oligárquico, tal solução não
do homem”. E explicita: “Tais direitos são deveria chocar: os opulentos jamais confiaram a
a liberdade, a propriedade, a segurança e a proteção de suas ricas pessoas e de seus pingues
resistência à opressão”. A definição do que patrimônios aos agentes do Estado; a instituição
se deveria entender por segurança veio com das polícias privadas tem sido a regra, desde
a Constituição Francesa de 1793, que aboliu 1500. Seja como for, só agora, passados 20
a realeza e instituiu a república: “A segu- anos do término do regime militar, a questão
rança consiste na proteção, concedida pela da reorganização dos serviços policiais vem à
sociedade a cada um de seus membros, para

48 Democracia Viva Nº 22
ordem do dia. É mais do que tempo, portan- 1926 e 1969.
to, para que o assunto, complexo e delicado Na segunda parte, vem exposta, com
entre todas as pessoas, seja examinado em precisão e clareza, a organização pioneira e
profundidade, fora da pressão perturbadora modelar da Guarda Civil Metropolitana da
do noticiário sensacionalista sobre crimes capital paulista, para a qual muito contribuiu
hediondos ou sobre a organização de verda- o próprio autor. Aponta-se para a criação de
deiros Estados paralelos do banditismo nos uma corregedoria geral como órgão indepen-
bairros periféricos de nossas metrópoles. dente de fiscalização e controle interno; de
Teoricamente, os serviços policiais um regulamento disciplinar, que estabelece
podem ser classificados e organizados em três um regime de deveres e responsabilidades
espécies distintas: a polícia judiciária, a polícia eminentemente civis; de um plano de cargos e
de vigilância e a polícia de defesa civil (resgate de carreira, objetivando a valorização profissio-
de vítimas de acidentes e catástrofes, extinção nal dos membros da guarda; da reestruturação
de incêndios, controle de tumultos ou motins). dos serviços policiais, de modo a aprimorar
Num Estado federal como o nosso, a atuação preventiva e democrática; de co-
põe-se a questão de saber se tais serviços missões civis comunitárias, para o exercício
podem ser repartidos entre todas as unidades de um controle externo popular; do Conselho
da Federação, ou se eles devem, ao contrário, Interdisciplinar de Segurança Urbana, para a
ser reservados a uma só unidade ou a algumas integração das ações policiais preventivas ao
delas. Segundo a experiência, por assim dizer, conjunto das políticas sociais do município; do
universal, fora do âmbito local nunca haverá Centro de Formação em Segurança, para a educa-
uma boa polícia de vigilância, que zele pela ção profissional de agentes de segurança popular
segurança das pessoas em sua vida diária, não com base no sistema de direitos humanos. Tudo
só contra a delinqüência, mas também em rela- isso sem prejuízo de várias outras iniciativas do
ção aos riscos variados de dano coletivo. É nos maior mérito.
municípios, portanto, que deveria concentrar- Finalmente, na terceira parte, é discuti-
-se a organização desse serviço policial. da, com grande proficiência, a questão basilar
A Constituição brasileira de 1988, do estabelecimento de uma verdadeira política
porém, assim não decidiu. Ela atribuiu aos nacional de segurança pública para o nosso país.
municípios, mesquinhamente, tão-só a com- Como se percebe, é uma obra de singu-
petência para “constituir guardas municipais lar importância, que merece ser lida e meditada
destinadas à proteção de seus bens, serviços e não só pelos nossos governantes, mas também
instalações” (art. 144, parágrafo 8). Aí está o – e, eu diria mesmo, sobretudo – por forma-
tema central desse livro. Acertou o constituinte dores de opinião pública e líderes que atuam
em reservar aos municípios unicamente essa no povo. Pois a salvação política deste país,
atribuição na Política Nacional de Segurança? na dramática crise de confiança na democracia
Qual a realidade atual a esse respeito, e quais que ora atravessamos, depende, mais do que
deveriam ser as linhas mestras de uma reforma nunca, de nossa capacidade de organizar um
constitucional nessa matéria? atuante contrapoder popular, para controlar em
Na primeira parte, o autor lembra a permanência a ação dos governantes.
nossa tradição de abuso oligárquico, milita-
rista e patrimonial na organização das forças Fábio Konder Comparato
policiais. Abre, no entanto, uma importante Doutor honoris causa pela Universidade
exceção para a experiência da Guarda Civil de Coimbra, doutor em Direito pela
do Estado de São Paulo, que existiu entre Universidade de Paris, professor titular

JUN 2004 / JUL 2004 49


Ibase
opinião
Cândido Grzybowski*

ao
desenvolvimento:
um campo
de
Os direitos humanos condensam em si mesmos uma importante parte da história da

humanidade: forjaram-se nas lutas de movimentos de inspiração emancipatória, porta-

dores de valores de liberdade, igualdade, diversidade e solidariedade para todos os seres

humanos. Do ponto de vista sociológico e político, antes de serem reconhecidos por

leis e exigidos nos tribunais, os direitos humanos estão no centro das lutas sociais – nas

quais consciência, desejos, vontade e circunstâncias reais de vida de cada agrupamento

humano também influenciam.

50 Democracia Viva Nº 22
Por surgirem em contextos específicos, no bojo dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
de processos necessariamente marcados pela ambos adotados pela ONU em 1966 – é reve-
diversidade política e cultural que caracteriza ladora da disputa e do que era possível naquele
o mundo, os direitos humanos algumas vezes momento. Somente na Declaração e Programa
são vistos como algo possível para algumas de Ação da Conferência de Viena sobre Direitos
sociedades, e não como conquistas de dimen- Humanos, em 1993, afirma-se categoricamente
sões universais. Para o resgate de sua dimensão a indivisibilidade dos direitos humanos. O di-
cosmopolita, algumas pessoas pensam que reito ao desenvolvimento, por sua vez, é mar-
os direitos humanos devem se inscrever e se cado pela divisão Norte/Sul e virou Declaração
reconceitualizar nos marcos do multiculturalis- sobre o Direito ao Desenvolvimento somente
mo (ver SANTOS, s.d.). Apesar disso, é preciso em 1986.1  Nesse campo, muita disputa ainda
reconhecer que, nas mais diversas culturas, está em curso.
mulheres e homens em luta por sua emancipa- Mas mesmo não tendo sido reconhecido
ção acabam por incorporá-los como referência de forma consensual, desde a Declaração sobre
para qualificar violações a que são submetidos o Direito ao Desenvolvimento, pela Assembléia
e buscar o que lhes é negado. O universalismo Geral das Nações Unidas de 1986, o direito ao
dos direitos humanos reside justamente na sua desenvolvimento passa a fazer parte integral do
capacidade catalisadora como expressão do rol de direitos humanos. Tal direito é reafirmado
humanismo que perpassa as diferentes cultu- de forma consensual na Conferência de Viena,
ras. Seu potencial questionador de estruturas, em 1993. O que falta então? Praticamente tudo.
relações e processos sociais será sempre motivo Mesmo não tendo ainda sido evidenciado em
de controvérsia. toda a sua radicalidade, o direito ao desenvol-
Tudo isso não deve impedir que os di- vimento põe em questão a (des)ordem interna-
reitos humanos sejam vistos como referência cional atual, na qual o desenvolvimento de uns
política e legal em permanente construção, países supõe o sub ou não-desenvolvimento de
fruto de tensões e contradições em ação. Para outros. A seguir, são abordados os limites e os
ficar apenas na história recente, vale lembrar enormes desafios para tornar possível o direito
que a declaração adotada pela ONU (Organi- humano ao desenvolvimento de todos os povos
zação das Nações Unidas) em 1948, no bojo do planeta.
dos traumas causados pela Segunda Guerra
Mundial, com todos os avanços que significou,
Na periferia da ordem dominante
surgiu como Declaração Universal dos Direitos
do Homem. Foi necessária muita luta por parte A questão do desenvolvimento como direito já
dos movimentos de mulheres na afirmação de carrega uma história complexa. No contexto
sua diversidade com igualdade de direitos para da Guerra Fria, o embate político, ideológico e
que o texto fosse renomeado como Declaração militar entre capitalismo e socialismo se impôs
Universal dos Direitos Humanos. Para além da como hegemônico e determinou uma visão de
forma da linguagem, está em jogo o sentido desenvolvimento mais próxima a crescimento
mais profundo e universal da conquista feita. econômico do que a mudança para maior jus-
No contexto da Guerra Fria, criou-se uma po- tiça social. Na periferia da ordem dominante se
larização entre direitos civis e políticos, de um estabelecem a teoria e o debate sobre desenvol-
lado, e direitos econômicos, sociais e culturais, vimento como estrutura e processo gerador de 1 Nota da editora: a Declaração
de outro (ALVES, 1996). A existência de dois desigualdade, até de dependência estrutural, em sobre o Direito ao Desenvol-
vimento está disponível no
pactos internacionais – Pacto Internacional dos que uns países são subdesenvolvidos para que endereço <www.ilanud.org.br/
doc20.htm>. Acesso em: 16
Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional outros possam ser desenvolvidos. Mais que um jun. 2004.

JUN 2004 / JUL 2004 51


opinião

direito humano, o desenvolvimento era visto O sistema atual da globalização a serviço das
como um processo possível, desde que certas grandes corporações capitalistas produz abun-
condições econômicas e políticas fossem criadas. dância contra a própria humanidade.
No limite, até regimes autoritários, negadores Pior, defronta-se com uma economia
de direitos humanos fundamentais, foram legi- “cassino”, na qual a sorte de setores e povos
timados em vista da criação de condições para inteiros depende das meras possibilidades de
o desenvolvimento nos países da periferia da ganho imediato de alguns. Nessa economia
ordem bipolar existente. divorciada da sociedade, aumentam a concen-
A situação dominante hoje é outra. tração de renda e a própria exclusão social. O
Desde a década de 1980 – mas em particu- drama de migrantes é exemplar na revelação
lar na de 1990 –, após a queda do Muro de das contradições da globalização dominante e
Berlim, tornou-se hege­­mônica a globalização do empecilho que ela representa para se pensar
econômico-financeira conduzida pelas gran- em desenvolvimento, e muito mais em justiça
des corpo­rações trans­nacionais, com base no social e democracia promotora de liberdade e
princípio do livre mercado. Como suporte e dignidade humanas. Num mundo que propaga a
legitimação ideológica da livre circulação de mercadorias, os seres humanos
globalização, alastrou-se enfrentam todo tipo de barreiras para circular
uma visão neoliberal na em busca da satisfação de suas necessidades e
qual o direito dos deten- afirmação de seus direitos.
tores de dinheiro e capital Talvez a expressão máxima dessa globa-
se sobrepõe aos direitos lização contra o direito ao desenvolvimento e,
humanos. Como con­se- genericamente, contra os direitos humanos seja
qüência prática, flexibi­ a OMC (Organização Mundial do Comércio).
lizam-se direitos huma- Como organização multilateral, a OMC surgiu
nos, em particular tudo o para tudo submeter ao mercado, libertando-
que se refere ao trabalho, -o, por assim dizer, dos direitos humanos. Traz
desre­gula-se e se reduz dentro de si, por isso mesmo, a possibilidade de
o papel do Estado na um radical fracasso e de sua superação, pois a
economia, priva­tizam-se história humana é de fracassos com conquistas.
e abrem-se os mercados A lei da selva do mais forte, embutida na visão
nacionais. Como suporte e prática do livre mercado, tem vida curta. O
político e militar, o go- protecionismo, exatamente dos países desenvol-
verno estadunidense as- vidos, mostra os limites do livre mercado como
sume uma posição cada regra de convívio humano num planeta cada vez
vez mais unilateral e de mais interdependente. Além do mais, ele não
exercício de hegemonia passa de uma imposição, visando ao comple-
que não aceita contes- to domínio econômico de 90% da população
tação, de claras feições mundial condenada ao subdesenvolvimento.
imperialistas. Nunca é demais lembrar a destruição
Em relação ao di- provocada pelas políticas de ajuste estrutural
reito ao desenvolvimento, em termos da luta pelo direito ao desenvolvi-
cabe destacar o radical di- mento de muitas sociedades concretas. Impos-
vórcio que a globalização, tas num contexto de explosão da dívida externa
sob a égide do mercado, das nações mais pobres e fragilizadas e visando
provoca entre economia à adoção do conjunto de políticas do Consenso
e sociedade. Nunca a de Washington para viabilizar a globalização
humanidade produziu econômico-financeira, o ajuste estrutural do
tanto, mas não para satisfazer necessidades, Banco Mundial e, sobretudo, do FMI (Fundo
e sim para acumular. Passa-se fome não pela Monetário Internacional) levou a uma situação
falta, mas pela abundância gerida com vistas de perda da capacidade de formular políticas
ao ganho e à acumulação. Esse é um divisor de desenvolvimento na maioria dos países.
civilizatório, e não meramente histórico. Quando Trata-se de um atentado direto e explícito ao
direitos fundamentais à vida humana não são direito de desenvolvimento de diferentes povos
assegurados – é disso que se trata quando se no mundo. Essa é uma questão sobre a qual
fala em direito ao desenvolvimento –, não pela não é possível ser condescendente por parte de
escassez, mas pela forma de gerir a abundância, quem se move por uma visão ética humanista
surge um novo marco humano fundamental.

52 Democracia Viva Nº 22
Direito ao desenvolvimento: um campo de disputas

e de defesa universal dos direitos humanos. movimentos e as bases em que se funda. A


Uma questão adicional limitadora, pro- globalização econômico-financeira e as ins-
vocada pelo capitalismo selvagem em escala tituições multilaterais, bem como os Estados
planetária sob o manto da globalização, é a nacionais e as instituições políticas internas,
instauração de uma lógica de terror e guerra, estão em crise evidente. Mas a mesma coisa
protagonizada por fundamen­talismos de dife- não se pode dizer da emergente cidadania de
rentes formas. A globalização leva aos limites dimensões planetárias.
extremos a desigualdade e a exclusão nas rela-
ções internacionais. Ao mesmo tempo, alimenta
Consciência coletiva
visões e práticas fundamen­talistas, de inspiração
de humanidade
religiosa e cultural, mas com claras dimensões
políticas, que erigem a intolerância como regra. Para examinar possibilidades que estão sendo
Nesse caldo, florescem terrorismos de todo geradas no âmbito da sociedade civil em relação
tipo. Quando fundamentalismos se aca­param aos direitos humanos e ao direito ao desenvolvi-
de Estados viram guerra. E, quando o Estado mento em particular, alguns aspectos merecem
em questão é a maior potência militar mundial, ser ressaltados. O primeiro deles seria a força da
vira imperialismo beligerante da “guerra preven- consciência de humanidade que se alastra em
tiva”. Nada poderia ser pior para a afirmação diferentes situações e culturas. Filosoficamente,
do direito ao desenvolvimento. Felizmente, o as diferentes tradições culturais já elaboraram
mundo não se resume a isso. visões de dignidade humana que, apesar das di-
ferenças, acabam se aproximando. A novidade,
neste início de século, é a apropriação coletiva
Arquitetura multilateral
do conceito de humanidade. Trata-se de uma
O mundo vive um enorme impasse neste início consciência difusa, certamente, mas forte para
de século. A globalização econômico-financeira tornar-se referência de amplos setores sociais
está sendo desmistificada como projeto de do- e mover vontades coletivas. Mesmo com o re-
mínio do mundo pelas grandes corporações. A crudescimento de fundamenta­lismos de todo
arrogância de seus promotores cede o lugar à tipo e na sua contramão, a consciência coletiva
perplexidade, em particular desde a interrupção de humanidade, que não conhece fronteiras
da Conferência da OMC em Seattle, no fim de e abarca o mundo, vem se transformando
1999, diante da pujança de um surpreendente em elemento de referência para a diversidade
movimento social novo, sem nacionalidade, bra- de sujeitos coletivos, de movimentos sociais
dando pelos direitos humanos contra o direito os mais diversos, de mulheres e homens, de
do capital. O fracasso das negociações da OMC pessoas jovens e velhas, de camponeses(as)
em Cancún, em setembro de 2003, só torna mais e indígenas, de moradores(as) de favelas e
evidente a falta de perspectivas de uma globali- de operários(as), de migrantes e de ativistas
zação feita contra gente, contra povos inteiros. globalizados(as). Essa consciência torna prático
A sucessão de crises nos países subdesenvolvidos o conceito filosófico de humanidade e lhe dá
revela claramente a incapacidade das políticas de uma clara dimensão política. Renovam-se as for-
ajuste postas em prática, que, como resultado, mas e as culturas do fazer política com base em
só produzem mais fragilidade e dependência. A tal consciência. A impressionante expansão de
própria arquitetura multilateral, em particular a novos movimentos de cidadania, que aglutinam
ONU, está sendo ameaçada pelo unilateralismo e articulam diferentes atores sociais, em redes e
dos Estados Unidos. O acirramento das contra- campanhas de dimensões planetárias, tem muito
dições e a multiplicação de guerras em nada a ver com o que se denomina nova consciência
contribuem para a superação do impasse. Talvez de humanidade. Afinal, a igualdade humana na
o mais preocupante de tudo seja o fosso que está diferença passou a ter sentido e a juntar em vez de
sendo criado entre as instituições políticas e as dividir. Isso impacta diretamente a luta por direitos
demandas da sociedade, expressas em um mo- humanos, sem dúvida. Não elimina racismos e
vimento de dimensões, ele também, planetárias. xenofobias nem preconceitos de superioridade,
Nessa perspectiva, importa ver as pos- mas os torna totalmente incompatíveis com a
sibilidades de superação do impasse atual e opinião pública dominante.
de conquista de um novo patamar em termos Um outro aspecto fundamental, de
de garantia de todos os direitos humanos especial importância para se pensar o direito
para todos os seres humanos – o que leva ao desenvolvimento, é a força da consciência
necessariamente a olhar a sociedade civil, seus sobre o bem comum maior que existe: o planeta

JUN 2004 / JUL 2004 53


opinião

como base da vida. Num período curto de tempo, questão dos direitos em uma nova perspectiva.
passou-se de uma atitude meramente utili­tarista O problema em relação a elas é o fosso entre as
dos recursos naturais, de extração pura e simples, instituições e as novas demandas da cidadania
sem limites, a uma atitude de uso sustentável e de planetária. Os governos e as próprias instituições
acesso compartido, conservando e renovando para multilaterais parecem distantes e imunes ao que
todas e todos, no presente e no futuro. Novamen- clamam cidadãs e cidadãos mobilizados nas
te, apenas se fala de compreensão e consciência ruas, em qualquer ocasião em que se reúnem,
do patrimônio comum ambiental, agora cada no G-8, nas assembléias do Banco Mundial e do
vez mais visto como um direito de todos os seres FMI, nas conferências da OMC ou nas próprias
humanos. Vale lembrar, porém, que grandes movi- conferências da ONU.
mentos de opinião precedem sempre grandes Nesse campo, florescem os novos movi-
mudanças históricas. mentos de cidadania, promotores dos direitos
Esses dois aspectos somados – e eles humanos. São múltiplas as iniciativas. Tem
necessariamente tendem a se integrar – consti- destaque o Fórum Social Mundial pela sua capa-
tuem as bases principais para a emergência da cidade catalisadora e por se organizar de forma
sociedade civil e de uma cidadania de dimen- autônoma, independentemente da agenda de
sões planetárias. Tanto um governos e organizações multilaterais. Trata-se
como outro obrigam a re- fundamentalmente de um espaço de encontro,
ver conceitos e práticas de de troca, de elaboração, visando potencializar a
desenvolvimento e até as ação de cada ator social, rede, coalizão ou cam-
próprias noções, culturas panha naquilo que já faz, não se substituindo
e estruturas políticas que nem se impondo a eles. Nesse sentido, o Fórum
lhes dão suporte. As idéias Social Mundial apenas alimenta a consciência de
de autodeterminação e humanidade e do patrimônio coletivo que cada
soberania, assim como consciência já traz. Ao facilitar isso, possibilita
de democracia, de bem ver que “um outro mundo é possível”, mundo
coletivo e espaço público, fundado nos direitos humanos, na democracia
não são aquelas legadas participativa e no desenvolvimento humano
pelo passado e que in- sustentável, de liberdade e dignidade para
fluíram muito no debate todas e todos. O Fórum resgata o sonho e a
sobre direitos humanos na utopia como forças transfor­madoras. E é isso
segunda metade do século que dá esperança, alimenta a emergência de
passado. novos direitos e requalifica os já conquistados.
Importa lembrar
ainda o esforço das Na-
ções Unidas, em particular
do Pnud (Programa das
Nações Unidas para o
Desenvolvimento), em
criar uma nova visão de
desenvolvimento por meio
da concepção de desen-
volvimento humano sus-
tentável. A integração dos
direitos humanos nessa
nova concepção põe a
ONU em sintonia com a
consciência emergente no
enfrentamento da globalização neoliberal (ver
PNUD, 1998). As próprias Cúpulas Mundiais
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio-92
e Johannesburgo-02, apontaram agendas fun-
damentais para se pensar o direito ao desenvol-
vimento em uma nova perspectiva. O Protocolo
de Kyoto e o Tribunal Penal Internacional são
outras iniciativas que devem estar presentes
como bases institucionais novas para tratar a

54 Democracia Viva Nº 22
Direito ao desenvolvimento: um campo de disputas

Direitos emergentes
Como seria uma declaração universal de direitos humanos emergente? Quais pontos poderiam assegurar à
humanidade que a globalização econômico-financeira não estaria jamais acima dos direitos fundamentais?
Como garantir que o direito ao desenvolvimento seja visto não como desenvolvimento econômico apenas, mas
como um direito humano que congrega em si a dimensão social e coletiva da condição humana – ela própria
vista também como um direito?
A seguir, um resumo das propostas apresentadas pelo autor como contribuição ao diálogo “Direitos huma-
nos, necessidades emergentes e novos compromissos”, no marco do Fórum Universal das Culturas – Barcelona
2004, com objetivo de fornecer subsídios para a elaboração de uma declaração universal de direitos humanos
emergentes.

1. Direito ao desenvolvimento como direito coletivo


1.1. O desenvolvimento é um direito coletivo de todo um povo, sendo ele titular diante do Esta-
do, diante da coletividade mundial e das instituições multilaterais, diante dos outros povos e
seus Estados.

1.2. Como direito humano coletivo, o direito ao desenvolvimento é de caráter universal, pois todos os povos
do planeta são igualmente seus detentores de forma inquestionável.

1.3. O direito ao desenvolvimento, para ser realizado como direito coletivo, implica o dever de solidariedade,
tanto a interna ao próprio povo, no sentido da eqüidade social, de gênero, etnia, geração e entre regiões,
como entre os diferentes povos do mundo.

1.4. O direito ao desenvolvimento deve ser entendido como a criação de espaço público, de estruturas, rela-
ções e processos econômicos, políticos e culturais, de leis e instituições, de projetos e políticas públicas
favoráveis à produção de bens e serviços, por órgãos públicos e agentes privados, que garantam o pleno
gozo da totalidade de direitos humanos, civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, por todas e
todos os membros da coletividade.

1.5. O direito coletivo ao desenvolvimento tem como princípios:

• os seres humanos como sujeitos centrais e razão de ser do próprio desenvolvimento;

• a igualdade, a não-discriminação e a justiça social;

• a participação ativa de todas e todos, que, segundo os princípios da subsidiaridade e autodeterminação,


vão moldando o desenvolvimento para atender as suas necessidades e desejos, a partir de seus locais
de vida e trabalho;

• a indivisibilidade e a interdependência de todos os direitos humanos;

• o direito de não sofrer restrições econômicas, políticas e militares que obstaculizam o desenvolvimento.

2. Direito ao desenvolvimento como direito à democracia substantiva solidária

2.1. Cada povo tem o direito de escolher, de forma coletiva e solidária, o modelo de desenvolvimento que
é mais adequado para o pleno gozo da totalidade de direitos humanos, desde que o exercício de seu
direito não interfira em direito igual de outros povos.

2.2. A liberdade de escolha do tipo de desenvolvimento implica tanto a garantia do direito de participação
democrática de toda a coletividade, buscando as formas legais e institucionais adequadas à identidade e
à cultura interna, como traz implícito o direito de definir políticas ativas e solidárias de desenvolvimento
segundo as situações, possibilidades e necessidades diferenciadas dos grupos e segmentos humanos que
compõem a coletividade.

2.3. A prática do princípio de subsidiariedade é condição de democracia substantiva em todas as relações


sociais, sejam econômicas, políticas ou culturais, que embasam o desenvolvimento de um povo e, por-
tanto, é condição do gozo do direito ao desenvolvimento.

2.4. Todo povo tem o direito inquestionável de realizar todos os esforços possíveis ao seu alcance para, de
forma prioritária, enfrentar as situações de miséria e pobreza e todas formas de exclusão social a que
certos setores de sua população são condenados. Do mesmo modo, cada povo tem o direito de buscar
um desenvolvimento que propicie os níveis de eqüidade social entre seus membros e regiões que melhor
atendam aos seus requisitos de democracia substantiva e solidária.

3. Direito ao desenvolvimento como direito a uma ordem internacional favorável

3.1. O direito ao desenvolvimento, como direito de todos os povos, implica um sistema multilateral de relações,

JUN 2004 / JUL 2004 55


opinião

leis, normas, pactos e acordos, instituições e estruturas de governo com base na democracia e nos princípios
de subsidiariedade, solidariedade e cooperação.

3.2. A finalidade de um sistema multilateral é propiciar um ambiente internacional favorável e garantir relações
que permitam a cada povo exercer plenamente o seu direito ao desenvolvimento, respeitando integral-
mente todos os direitos humanos e preservando o patrimônio comum da humanidade.

3.3. Nos marcos do sistema multilateral como anteriormente definido, fica assegurado a cada povo o direito
de definir políticas de inserção internacional que julgar as mais adequadas para propiciar o seu próprio
desenvolvimento humano, democrático e sustentável, segundo suas identidades, necessidades e desejos.

3.4. As relações comerciais e financeiras internacionais, bem como os acordos e as instituições que regu-
lam as trocas de bens e serviços, transferência de tecnologia e os fluxos financeiros no mundo, devem
fundar-se na complementaridade e nas possibilidades de fortalecimento do desenvolvimento local,
respeitando as suas especificidades e potencialidades, o seu meio ambiente e a sua cultura.

3.5. No âmbito do direito ao desenvolvimento, cada povo e seu governo têm direito de definir as condições
sob as quais as empresas transnacionais de qualquer tipo podem participar do desenvolvimento local.

4. Direito ao desenvolvimento como direito à ciência, à tecnologia e ao saber

4.1. Em função do direito ao desenvolvimento, todos os povos têm direito de acesso à ciência, à tecnologia e
ao saber indispensáveis. O patenteamento e a propriedade das descobertas científicas e tecnológicas não
podem ficar acima do seu caráter de bens coletivos necessários ao desenvolvimento.

5. Direito ao desenvolvimento como direito de acesso e uso democrático e sustentável do patrimônio


coletivo natural

5.1. Segundo um princípio de justiça e eqüidade ambiental, todos os seres humanos, indistintamente, têm
direito de acesso e uso dos recursos do planeta indispensáveis à vida. O uso sustentável do patrimônio
coletivo natural, em qualquer parte do planeta, conservando-o para as atuais e futuras gerações, é o
dever de contrapartida desse direito de todos os seres humanos e de seu modo de organização coletiva
para o desenvolvimento.

5.2. A água é um bem coletivo fundamental para a vida e o desenvolvimento. O direito de todos os seres
humanos à água está no centro do direito ao desenvolvimento para o pleno gozo dos direitos humanos.
A água e os recursos de rios, mares e pólos são patrimônio coletivo da humanidade, e não podem ser
privatizados.

5.3. Todos os seres humanos, sem qualquer distinção, têm direito ao ar puro e a uma atmosfera que não
afete a qualidade de sua vida. O direito dos povos ao desenvolvimento implica uma gestão coletiva mul-
tilateral de emissões de gazes na atmosfera e de adoção de padrões de qualidade indispensáveis para a
preservação do clima natural, condição da vida no planeta.

5.4. A biodiversidade é um patrimônio coletivo da humanidade. É parte constitutiva do direito ao desenvol-


vimento o acesso de cada povo aos recursos que oferece a biodiversidade de seu território, desde que
usados numa perspectiva de gestão responsável desse patrimônio coletivo da humanidade e preservados
para as futuras gerações. Como direito coletivo central ao desenvolvimento, a biodiversidade não pode
ser patenteada ou privatizada.

6. Direito ao desenvolvimento como direito à soberania e à segurança alimentar e nutricional

6.1. A soberania e a segurança alimentar e nutricional são parte essencial do direito coletivo ao desenvolvi-
mento. Todo povo tem direito de definir o tipo e a forma de produção, comércio e consumo de alimentos
adequados às suas necessidades e cultura alimentar.

6.2. Em sua estratégia de desenvolvimento, cada povo e seu Estado podem adotar políticas ativas, indepen-
dentes de condicionalidades econômicas e financeiras internacionais, para adequar a sua estrutura agrária,
para fortalecer a produção e a industrialização de alimentos, para distribuir renda e recursos necessários
à sua própria soberania e segurança alimentar e nutricional.

7. Direito ao desenvolvimento como direito à própria cultura

7.1. A diversidade cultural é uma base essencial para que cada povo tenha assegurado o direito ao seu próprio
desenvolvimento. A identidade cultural é um direito em si mesmo e uma força promotora de busca das
condições coletivas de desenvolvimento para o pleno gozo de todos os direitos humanos por todos e
todas.

56 Democracia Viva Nº 22
Direito ao desenvolvimento: um campo de disputas

7.2. O direito à própria cultura, como parte intrínseca do direito ao desenvolvimento, se expressa, acima de * Cândido
tudo, no idioma usado por uma comunidade lingüística como principal meio de expressão e comunicação, Grzybowski
falado ou escrito, entre seus membros. Por meio de sua língua, cada povo cria signos de sua maneira
Sociólogo, diretor
de ver e expressar o que deseja e os valores que busca preservar em seu próprio desenvolvimento. Como
do Ibase
produção viva e relacional de significados, cada povo tem direito coletivo em usar a sua língua como
meio de identidade cultural e de definição dos caminhos do desenvolvimento democrático, solidário e
sustentável que persegue.

7.3. O direito ao desenvolvimento implica também o direito de adaptar o modo de produção de forma a tirar
partido da capacidade criativa de formas e estilos expressos no artesanato e na arte culinária de cada
povo, respeitando gostos e tradições que lhe são próprios.

7.4. A literatura, a poesia, a música, a dança e a pintura são formas fundamentais de criação do imaginário
de um povo, de força e presença de sua identidade cultural na comunidade de povos e nações, de sua
história e do seu saber acumulado ao longo de gerações. Preservar e fortalecer a própria literatura e a
produção poética e musical, os ritmos e estilos de dança, as formas e cores de suas artes plásticas, tudo
é uma maneira de afirmar e exercer o direito ao desenvolvimento.

7.5. As artes cênicas também contribuem, pelo gesto, pela palavra e pela representação, para organizar a
consciência coletiva, desvendar os valores e princípios éticos da cultura de um povo. Por isso, como direito
ao desenvolvimento, todo povo tem direito à sua própria forma de entretenimento e gozo cultural e de
buscar, de maneira autônoma, as formas de interação com outras culturas nesse campo, hoje transfor-
mado em indústria cultural.

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JUN 2004 / JUL 2004 57


Indicadores
João Sucupira*

Balanço social:
diversidade,
participação
e segurança
do trabalho
O balanço social está se tornando uma peça importante não só para prestar contas à so-

ciedade das ações das empresas no campo social, mas também para fornecer informações

relevantes sobre o respeito aos princípios éticos. Depois de sete anos de campanha, lançada

em junho de 1997, e com dados mais consistentes nos últimos três exercícios, pode-se

tecer considerações, ainda que preliminares, sobre algumas tendências. Acredita-se que

os números obtidos do banco de dados do Ibase, apresentados a seguir, são reveladores

dos resultados alcançados após a efetivação da campanha no Brasil.

Nos últimos anos, a maioria das empresas que divulgou o balanço social passou

a utilizar o modelo sugerido pelo Ibase. Segundo levantamento realizado até junho de

2004, 231 empresas publicaram o balanço social no modelo Ibase. Hoje, pode-se dizer

que a adesão das empresas ao modelo proposto pela instituição é uma realidade.

58 Democracia Viva Nº 22
Para se ter uma idéia do peso econômico, balanços de 2001.
basta dizer que o faturamento dessas orga-
nizações, em 2002, correspondeu a cerca de
Negros(as) e mulheres
30% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro
daquele ano. Além de essas empresas consti- Várias empresas transnacionais possuem políti-
tuírem uma amostra representativa do mundo cas de promoção de igualdade racial, incluindo
dos negócios nos vários setores (indústria, ações afirmativas, nos países onde têm sede,
bancos, telecomunicações, agro­pecu­ária, pe- mas no Brasil não apresentam iniciativas no
tróleo etc.), foram responsáveis pelo emprego mesmo sentido. No Brasil, quase todo mundo
direto de 771 mil pessoas e ainda contrataram, conhece algum caso de discriminação racial
como prestadoras de serviço, mais 263 mil em ambiente de trabalho, embora dirigentes
trabalhadores e trabalhadoras. Muitas dessas de empresas sempre digam que não há pre-
empresas são conhecidas como referência no conceito em suas organizações. No entanto, o
tema da responsabilidade social empresarial e simples ato de informar a quantidade de negros
estão espa­lhadas por todo o país, apesar de e negras existentes na empresa virou um pesa-
estarem mais presentes no eixo Sul–Sudeste. delo. Desde a fase de escolha dos indicadores
Algumas são colecionadoras de prêmios nessa que deveriam compor o modelo do balanço
área, como as empresas Usiminas, Fersol e social, quando o Ibase reuniu empresários(as),
Petrobras. Portanto, se a quantidade de em- consultores(as) e acadê­m icos(as), ficou evi-
presas ainda não é grande para uma análise denciada uma forte resistência à introdução
com o devido rigor estatístico, pode-se afir- do tema “diversidade racial”. Um empresário
mar que se trata daquelas mais sintonizadas chegou a dizer que, se fosse incluído o item
com o tema em foco. “número de trabalhadores negros”, ele não
Antes de se passar à análise dos dados, apoiaria a campanha pela divulgação do ba-
é importante explicar o porquê de referências lanço social.
a informações disponíveis ao período 2000– Essa realidade discriminatória está
2002. Em 2004, as empresas estão publicando refletida nos dados. Note-se que, em 2002,
balanços com dados comparativos de 2003 apesar da evolução positiva, 40% das empresas
e 2002. Portanto, a pesquisa relativa a 2002 publicaram seus balanços sociais sem declarar o
somente estará concluída no segundo semestre número de trabalhadores(as) negros(as) e 47%
deste ano e a que se refere a 2003, no segundo sem o percentual de cargos de chefia ocupados
semestre de 2005. Registre-se que, até 15 de por negros(as). A proporção de negros(as) no
junho, foram incluídos no banco de dados do total de pessoal aumentou, mas não chegou
Ibase 138 novos balanços, mas, como muitos a 15%. Ainda é muito baixa, caso se lembre
deles são obtidos em julho e agosto, época das que a população brasileira é constituída de
inscrições para o prêmio de melhor balanço 45% de negros(as), incluídos nessa classificação
social, é muito provável que o número de pretos(as) e pardos(as). O quadro de injustiça
balanços com dados de 2002 supere os 181 torna-se ainda mais dramático quando se observa

Tabela 1
Dados sobre empresas e trabalhadores(as) negros(as) (em %)

2000 2001 2002

Empresas que declararam o número


de trabalhadores(as) negros(as) 34,3 49,2 60,1

Trabalhadores(as) negros(as)
no total de pessoal efetivo 8,5 10,3 13,7

Empresas que declararam negros


ocupando cargos de chefia 25,4 40,3 52,9

Cargos de chefia ocupados


por negros 3,7 3,0 4,3

Fonte: Banco de dados do Ibase.

JUN 2004 / JUL 2004 59


indicadores

Tabela 2
Dados sobre empresas e mulheres (em%)

2000 2001 2002

Empresas que declararam o


número de mulheres 78,4 79,6 85,5

Mulheres no total dos empregados 28,0 29,0 30,1

Empresas que declararam mulheres


ocupando cargos de chefia 70,1 74,0 79,7

Cargos de chefia ocupados


por mulheres 14,5 15,8 16,4

Fonte: Banco de dados do Ibase.

o percentual de cargos de chefia ocupados por tartaruga, nada condizente com o discurso da
negros(as): 4,3% (Tabela 1). preocupação com a igualdade apresentado nos
A situação das mulheres, ainda que seja textos que acompanham o quadro do balanço
melhor do que a de negros(as), está longe de ser social nos luxuosos documentos distribuídos
a ideal. A proporção de mulheres empregadas a acionistas e a pessoas que integram bancas
passou de 28%, em 2000, para 31%, em 2002, de concurso.
e o percentual de cargos de chefia ocupados
por elas chegou a 16,4%, o que mostra que
Indicadores de participação e
as empresas continuam preferindo os homens
abrangência
na hora de escolher quem vai comandar. Essa
realidade chama mais a atenção quando se O modelo Ibase de balanço social (disponível
leva em conta que o nível de escolaridade das em <www.balancosocial.org.br>) procura
mulheres já superou o dos homens e que as destacar, entre outros aspectos, a postura da
mulheres, segundo dados do IBGE (Instituto empresa em relação à participação (quem deci-
Brasileiro de Geografia e Estatística), represen- de) e à abrangência (quem se inclui). A empresa
tam 42% da população economicamente ativa ética é aquela que trata os(as) empregados(as)
(PEA) (Tabela 2). como colaboradores(as) de um projeto coletivo,
Os dados apresentados no Gráfico 1 em que todas as pessoas são importantes e
mostram que, se a disposição para informar responsáveis pelo sucesso da empresa, e não
(transparência) vem melhorando com rapidez, só quem a dirige.
a situação de fato – tanto para negros(as) A empresa, ao publicar seu balanço,
como para mulheres – melhorou a passos de informa quem decide sobre os projetos sociais

Gráfico 1
Cargos de chefia ocupados por mulheres e negros (em %)

mulheres

negros

Fonte: Banco de dados do Ibase.

60 Democracia Viva Nº 22
Balanço social: diversidade, participação e segurança do trabalho

Tabela 3
Dados sobre participação nas empresas

Direção Direção/ Empregados


gerência

Participação (%) na definição sobre os projetos


sociais e ambientais desenvolvidos pela empresa 9,6 76,6 13,8

Participação (%) na definição sobre os padrões


de segurança e salubridade no ambiente de trabalho – 44,7 55,3

A previdência privada contempla 9,1 5,5 85,5

A participação nos lucros contempla 3,6 – 96,4

Fonte: Banco de dados do Ibase.

e ambientais e sobre os padrões de segurança empregados(as) em sua totalidade decidem é


e salubridade no ambiente de trabalho. Os maior (55,3%), mas está aquém do que era de
dados revelam que há forte resistência por se esperar, já que são os trabalhadores e as tra-
parte da alta direção em partilhar a decisão balhadoras, e não a direção, aqueles que mais
com empregados(as) no que diz respeito aos sofrem os riscos de acidentes e danos à saúde
projetos sociais desenvolvidos pela empresa (Tabela 3). De qualquer forma, dois indicadores
em prol da comunidade que a cerca. Apenas apontam para uma melhora nessa questão:
13,8% das empresas declararam que todas 1. no período 2000–2002, pra-
as pessoas participam da definição. Portanto, ticamente dobrou o número de empresas que
na grande maioria, quem decide é a direção, informaram esse dado, alcançando um índice
que, certamente, não vive os problemas da razoável (68% dos 138 balanços disponíveis) e
comunidade. É evidente a perda em termos de sinalizando aumento do grau de transparência
efetividade dos projetos sociais, já que os(as) entre as empresas;
empre­gados(as) tendem a ser os(as) que mais 2. no período 2000–2002, o
têm condições de perceber as necessidades da percentual de empresas onde ocorre a partici-
comunidade, pois, em geral, são parte dela, pação de todos(as) os(as) emprega­dos(as) na
vivem os problemas e, melhor do que ninguém, definição dos padrões de segurança e salubri-
sabem o que deve ser feito para melhorar o dade pulou de 27,6% para 55,3%.
padrão de vida.
Quanto à definição dos padrões de se-
Segurança e medicina do trabalho
gurança e salubridade no ambiente de trabalho,
para 2002, o percentual de empresas em que Esse tópico tem a ver com um dos problemas

Tabela 4 Tabela 5

Empregados terceirizados sobre Número de acidentes de trabalho


o número de empregados (em %) (por 1.000 empregados)

2000 29,7 2000 21

2001 33,5 2001 21

2002 40,4 2002 30

Fonte: Banco de dados do Ibase. Fonte: Banco de dados do Ibase.

JUN 2004 / JUL 2004 61


indicadores

Tabela 6
mais graves e que levam a uma reflexão sobre
Investimentos em segurança e medicina do
o tema da responsabilidade social empresa-
trabalho (R$ por trabalhador/ano)
rial no país. Segundo dados do Ministério da
Previdência e Assistência Social, os acidentes
2000
de trabalho matam por dia cerca de dez pes-
1.951,65
soas e deixam, por ano, 15 mil trabalhadores
e trabalhadoras permanentemente inválidos.
Caso se leve em conta que boa parte dos 2001
acidentes de trabalho não é notificada, esses 2.600,23
dados são ainda mais alarmantes.
As causas disso são diversas e não Fonte: Banco de dados do Ibase.

caberiam no espaço deste artigo. Porém,


podem ser resumidas numa única frase: falta
com isso, eliminar encargos trabalhistas, reduzir
de cuidado das empresas com a saúde e a
custos operacionais e otimizar os lucros. É a
segurança dos(as) emprega­dos(as). O cuidado
terceirização como instrumento de flexibilização
se reflete não só nos gastos relativos a esse
do mercado de trabalho, de precarização do
item, mas também à política da empresa em
emprego, e não como forma de obter melhor
relação a tercei­r izados(as) (Tabela 4).
resultado em produtividade a partir da con-
É impressionante como o salto do
centração de sua atenção nas atividades-fins.
número verificado em 2002 (Tabela 5)
É claro que a probabilidade de acidentes de
se contrapõe ao aumento médio – R$ por
trabalho é maior entre trabalhadores(as) que
empregado(a) – dos gastos em segurança e
não têm vínculos com a empresa onde execu-
medicina do trabalho (Tabela 6).
tam suas tarefas. A terceirização só é aceitável
Note-se que o investimento em segu-
quando ela tem o objetivo de se determinar o
rança e medicina do trabalho dobrou no perí-
foco de atuação da empresa visando melhorar a
odo em análise. Os dados que evidenciam dois
administração da organização, no setor privado
vetores no mesmo sentido, quando o natural
ou público. Uma empresa socialmente respon-
seria a redução do número dos acidentes de
sável é aquela que trata terceirizados(as) com
trabalho com o aumento dos investimentos
os mesmos padrões éticos que trata seus(suas)
em segurança, levantam pelo menos duas
empregados(as).
hipóteses:
Para finalizar, é preciso ressaltar que,
1. os investimentos em equipamentos de
em várias empresas, a relação entre investi-
segurança, por exemplo, não estão sendo acom-
mentos em segurança no trabalho e número
panhados por uma preocupação em promover
de acidentes é inversa, ou seja, o aumento dos
uma cultura da segurança e saúde no ambiente
investimentos é acompanhado pela redução
de trabalho. As empresas precisam entender que
dos acidentes de trabalho, como é o caso das
o principal ativo delas é, de fato, seu pessoal. Por
siderúrgicas Belgo Mineira e CSN e da indústria
isso, além de investirem no material adequa-
química Fersol (gráficos a seguir).
do, conforme manda a lei, e de fiscalizar para
A responsabilidade social das empresas
que seja utilizado, deveriam se preocupar em
é entendida como uma atitude ética do em-
viabilizar programas de educação visando cons-
presariado consciente de seu papel na trans-
cientizar trabalhadores e trabalhadoras. Não
formação da sociedade. Essa responsabilidade
há sentido em dizer que o equipamento está
tenderá a melhorar a qualidade de vida dos(as)
disponível e que a culpa é do(a) empregado(a)
empregados(as) e suas famílias, da comunida-
que não quer utilizá-lo. A responsabilidade será
de local e da sociedade como um todo, quando
sempre de quem o(a) emprega;
o empresariado perceber a importância de criar
2. o número de trabalhadores(as)
em suas empresas uma cultura ética baseada
terceirizados(as) está crescendo absurdamen-
em valores como o respeito à diversidade, à
te. Sabe-se que os(as) terceirizados(as) quase
promoção da participação e o respeito à de
sempre não recebem das empresas onde
vida.
efetivamente desenvolvem suas atividades
produtivas a mesma atenção daqueles(as)
empregados(as) que fazem parte do quadro.
Muitas empresas, ao transferirem a terceiros a
execução de atividades de suporte, mediante
contratos de prestação de serviços, procuram,

62 Democracia Viva Nº 22
Balanço social: diversidade, participação e segurança do trabalho

* João Sucupira
Economista, professor
da Universidade Estácio
Belgo Mineira
de Sá e da PUC-Rio e
Número de acidentes de trabalho coordenador do Ibase

Investimentos em segurança e medicina de trabalho (em mil R$)

CNS - Cia. Siderúrgica Nacional


Número de acidentes de trabalho

Investimentos em segurança e medicina de trabalho (em mil R$)

Fersol
Número de acidentes de trabalho

Investimentos em segurança e medicina de trabalho (em mil R$)

Fonte: Banco de dados do Ibase.

JUN 2004 / JUL 2004 63


e s pa ç o a b e rt o
Osmundo Pinho*

Qual é a
?
do homem negro
Neste artigo,1  estão registrados alguns pon- ou orientação sexual.
tos sobre identidades de homens negros que No projeto, são realizadas diversas
têm sido colocados tanto no horizonte das oficinas, sessões constantes de um grupo de
práticas políticas como na esfera da reflexão estudos sobre raça e gênero, além de outras
teórica crítica. Além de serem apresentados atividades. Há também o envolvimento em
em inúmeros debates, encontros, conversas, uma rede de debates e ações em torno da
leituras, atividades e lutas, dos quais pude questão das masculinidades. Desse ponto de
participar – ou presenciá-los apenas –, tais vista, é preciso ressaltar a importância de
pontos são reflexões mediadas pela minha instituições como Noos – Instituto de Pesqui-
própria experiência pessoal como homem sas Sistêmicas e Desenvolvimento de Redes
negro que tem atravessado algumas fronteiras Sociais, Promundo, Ecos – Comunicação em
sociais e simbólicas, entre a vivência cotidia- Sexualidade e Instituto Papai, com seu pionei-
na em nossa sociedade racista e sexista e a rismo na reflexão e intervenção nesse campo.
formação acadêmica em antropologia social, Por outro lado, meu conhecimento e
entre o Nordeste Patriarcal e o Sul Maravilha, participação, ainda que acessórios, na lista de
entre a intervenção politizada das ONGs e a discussão de homens negros na Internet, é um
investigação etnográfica relativista. marcador fundamental. A partir dessa trama
O corpo central da experiência, que dá de experiências, proponho a construção de
margem à costura dos pontos apresentados a uma plataforma emaranhada e sutil, um ponto
seguir, define-se basicamente pela atividade de partida ou de observação para interrogar
desempenhada como bolsista do programa a identidade dos homens negros brasileiros.
Gênero, Reprodução, Ação e Liderança (Gral) Quem somos? Podemos formar – ou estamos
da Fundação Carlos Chagas. Graças à bolsa, formando – um sujeito político novo e crítico?
pude desenvolver o projeto “Homem com H: É desejável que tal formação ocorra? Qual o
1 Parte das idéias desenvol-
vidas aqui tem sido discutida articulando subalternidades masculinas”, uma nosso programa? Quais as chances de arti-
na minicomunidade virtual
formada por Taciana Gouveia,
iniciativa experimental para colocar em diálo- culação entre as diferentes experiências de
Joana Plaza Pinto e Cláudio H. go experiências diferentes de masculinidades masculinidade afrodescendente?
Pedrosa, aos quais devo muito
mais que agradecimentos. subalternizadas em função da raça/cor, classe

64 Democracia Viva Nº 22
aberto
Posicionando a masculinidade foi produzida pela emergência de novos atores
sociais, mas foi insinuada externamente pelos
Convém uma breve recapitulação conceitual
interessados em amenizar o peso do machis-
antes de centrar fogo na produção dessa
mo. Não resta dúvida de que essa situação
interrogação, que é, ao fim e ao cabo, uma
guarda um impasse político e intelectual. Mas
desconstrução. Nunca é demais ressaltar o
será que esse impasse interessa aos homens?
papel que o movimento feminista teve na re-
De um jeito ou de outro, principalmen-
conceituação das identidades sociais em todo
te no campo da psicologia e da antropologia
o mundo. Esse movimento, abalo sísmico nas
social, começou a se apresentar uma rela-
identidades e nas políticas de representação
tivização histórica da figura masculina, até
– incluindo o espaço da mídia, a produção
então entronizada e vendida como monolítica,
acadêmica, a literatura, as humanidades e
imutável, essencial, eterna e, eventualmente,
artes etc. –, originou-se tanto de uma re-
divina ou metafísica. O homem foi recondu-
flexão baseada na universidade, que atacou
zido à sua diversidade e variação histórica.
os fundamentos masculinistas e sexistas da
Aprendeu a perceber que existem muitas
produção de conhecimento, como das lutas
formas diferentes de masculinidades que se
políticas que tomaram as ruas e os bairros
multiplicam pela história e pelas culturas.
populares, as praças e a esfera pública nas
Também aprendeu a perceber as dife-
últimas décadas.
rentes versões de masculinidades concorren-
Não é meu objetivo reconstituir essa
tes, ou ao menos coabitantes, no ambiente
história, com todas as suas nuanças, contra-
sociocultural das sociedades modernas. Algu-
dições e impasses. Quero apenas destacar que
mas dessas versões são identificadas com as
a crítica feminista – assim como a luta pelas
estruturas sociais dominantes, algumas apenas
liberdades sexuais e direitos humanos de gays
parcialmente e outras francamente subordina-
e lésbicas – provocou, lutando nas avenidas
das às estruturas e representações dominantes
ou nos departamentos universitários, uma
sobre o masculino ou delas marginalizadas.
desconstrução ou desnaturalização da mulher
Nesse caso, seria possível falar em masculi-
como entidade imóvel, ou melhor, imobiliza-
nidades hegemônicas ou hegemonizadas e em
da pelo peso do patriarcalismo, das conven-
subalternas ou subalternizadas.
ções e das estruturas sociais opressivas. No
Sobre esse aspecto, é preciso destacar
bojo dessas lutas, a categoria gênero emerge.
dois pontos. Em primeiro lugar, quando se
Em primeiro lugar, para favorecer um olhar
fala de hegemonia e subalternidade, fala-se
sobre a construção das diferenças sexuais
de processos dinâmicos de construção e re-
que as reconheça como produzidas histórica
construção de hegemonias ou de consensos
e culturalmente, ou seja, que as revela em
parciais sobre o sentido das relações sociais,
sua arbitrariedade. Em segundo lugar, para
seus significados e práticas instituintes. Ou
explicitar como a engenharia onipresente do
seja, hegemônicos e subalternos não estão
poder estruturou essas diferenças sob a forma
definidos essencialmente, mas sim como su-
de desigualdades.2
jeitos políticos engajados em jogos de poder e
Ora, o passo seguinte – e a conseqüên-
dominação que ocorrem em contextos sociais
cia lógica e política desse processo – seria
estruturados, porém abertos à inovação.
revelar que não apenas a mulher, esse ser
Isso implica, em segundo lugar, a
imaginário, foi desenhada na história pela
consideração de hegemonias regionais – por
pena do poder e da dominação masculina,
exemplo, ligadas à vida doméstica ou ao
mas o próprio homem descobriu-se surpreso
exercício da sexualidade – e um descolamento
quando percebeu que também era um artefato
entre sujeitos sociais de gênero e estruturas
das estruturas de gênero. É impossível não
de gênero. Em outros termos, um indivíduo
perceber uma curiosa inversão nesse caso. A
masculino pode apresentar uma posição
(auto)desconstrução da mulher foi obra de um
hegemônica em dada situação e, em outra,
ator político – composto, híbrido, fraturado,
estar colocado em situação subordinada. Isso
problemático, vá lá, mas aproximado pelas
é muito importante para entender como se
lutas discursivas ou não – a mulher como
produzem e sustentam identidades masculinas
sujeito do feminismo. Mas essa desconstrução
subalternas como um lugar da contradição 2 Ver Bruschini e Unbehaum,
crítica do lugar naturalizado do masculino não 2002; Scott, 1994; Nicholson,
entre sistemas de poder diferentes – a es- 1995; Butler, 2003.

JUN 2004 / JUL 2004 65


e s pa ç o a b e rt o

trutura das classes, o sistema dimórfico dos cas a si mesmas nem mesmo nenhum tipo
gêneros, as práticas e discursos racializantes de taxonomia das identidades. É preferível
– que, ao se combinarem inter­seccionalmente, falar de posições de sujeito como lugares
produzem novas diferenças, desigualdades e marcados no mapa sociocultural para a fi-
vulnerabilidades. Se essa interseção é também xação de performances, práticas e discursos
capaz de produzir sujeitos para emancipação que justamente produzem esses sujeitos como
é outra questão. lugares de articulação dessas performances,
Tradicionalmente, e de um modo um práticas e discursos. Esses lugares são ocu-
tanto quanto esquemá­tico, seria possível dizer pados e desocupados – ou encenados – coti-
que o modelo de masculinidade hegemônico dianamente por indivíduos concretos que se
nas socie­dades ocidentais apresenta-se com relacionam com padrões culturais e estruturas
um conteúdo determinado: o homem, no pleno sociais. Nesse relacionamento, atualizam e
gozo de suas prerrogati- vivem esses padrões e estruturas. Quando
vas, seria adulto, branco, eles os vivem, interpretam-nos; quando os
de classe média e hete- interpretam, transformam-nos.3
rossexual. Outros modos
específicos e concretos,
Desrepresentando o homem negro
localizados e estrutu­
rados de masculinidade Agora, deve-se discutir um pouco mais sobre
estariam su­balter­niza­dos as posições de sujeito masculinas racializa-
ou seriam constituídos das, brancos e negros, no contexto brasileiro.
por formas contextuais As narrativas de fundação nacional instituem
de subalter­nização. Es- parte do contexto discursivo de longa dura-
sas formas são diferentes ção para a produção de identidades raciais
e se ligam a diferentes no Brasil e para sua articulação com as
sistemas de poder-saber, estruturas sociais e as formas hegemônicas
como os já citados, e se de representação sobre as raças, os gêneros,
combinam e articulam a sexualidade e o poder em suas múltiplas e
de modo diferenciado. cambiantes composições. Entre elas, citam-
É óbvio também -se a “fábula das três raças”, a miscigenação,
que, num país como o os estereótipos ligados à mulher negra, à
Brasil, muitos poucos mulata etc. O homem negro também tem sido
homens reais podem en- representado – na verdade, hiper-representa-
contrar identidade com do – e produzido racialmente com o concurso
esse modelo. Isso não agressivo dessas representações que funcio-
quer dizer que muitos nam, entre outras coisas, como estruturas
homens não tomem esse de sustentação para práticas concretas de
modelo, reposto conti- exclusão, marginalização e violência. Ora,
nuamente por diversas é preciso desrepre­sentá-lo como um modo
agências ou aparelhos prático de desa­lienação e de reconstrução de
ideológicos, como pa- possibilidades políticas e culturais.4
râmetro ou ideal a ser Antes de tudo, o homem negro é
alcançado ou contesta- representado como um corpo negro, o seu
do, ironizado ou ado- próprio corpo. Paradoxalmente, esse corpo
rado, sob as diversas é configurado de forma alienada, como se
situações sociológicas fosse separado da autoconsciência do negro.
possíveis e já descritas O corpo negro é outro corpo, lógica e his-
pela literatura. Contra o macho adulto bran- toricamente deslocado de seu centro. Como

Aberto
co, pode-se observar a existência social de suporte ativo para a identidade, é o lugar
outras posições de sujeito masculinas subal­ de uma batalha pela reapropriação de si do
3 Sobre masculinidades, ver,
por exemplo, Cornwall e Linds-
ternizadas, que seriam, em termos gerais, negro como uma reinvenção do self negro e
farne, 1994; Kimmel, 1998; No- aquelas identificadas com homens negros, de seu lugar na história. Uma reapropriação
lasco, 2001; Arilha, Unbehaum
e Medrado, 2001. pobres ou homossexuais. do corpo como plataforma ou base política
Convém ressaltar com ênfase que não revolucionária. Ora, essa base é contraditória

ESpaço
4 Sobre gênero e raça na
sociedade brasileira, ver, por se pressupõe, neste texto, uma cartografia porque tem sido definida pelas discursivida-
exemplo, Carneiro, 1995, 2002;
Bairros, 1995; Gonzáles, 1983. das identidades sociais estáveis ou idênti- des racializantes ou puramente racistas que

66 Democracia Viva Nº 22
Qual é a identidade do homem negro?

justamente aprisionam o negro na “geografia Um outro tema dominante para os


da pele e da cor”.5  Ser negro é ser o corpo debates sobre masculinidade – e que tem,
negro, que emergiu simbolicamente na his- ocasionalmente, ocupado espaço nos debates
tória como o corpo para o outro, o branco públicos da mídia – se refere a uma suposta
dominante. Assim, o corpo negro masculino crise do masculino, usualmente considerada
é fundamentalmente corpo-para-o-trabalho como uma inadequação dos modelos masculi-
e corpo sexuado. Está, desse modo, decom- nos às mudanças causadas pela emancipação
posto ou fragmentado em partes: a pele; as das mulheres. Ou seja, essa suposta crise,
marcas corporais da raça (cabelo, feições, que não existia antes, quando permanecia
odores); os músculos ou força física; o sexo, inquestionável a coincidência entre estruturas
genitalizado dimorficamente como o pênis, de dominação de gênero e identidades mas-
símbolo falocrático do plus de sensualidade culinas hegemônicas, deve-se à necessidade
que o negro representaria e que, ironicamente, de o homem, presumidamente heterossexual,
significa sua recondução ao reino dos fetiches adequar-se às mudanças, um tanto desagra-
animados pelo olhar branco. dáveis, mas inevitáveis, derivadas das con-
Mas o corpo negro também é um quistas femininas. Agora, o homem precisaria
campo de batalha que tem sido recomposto também compartilhar o cuidado das crianças,
e reunificado no âmbito das lutas raciais e lavar a louça e aceitar o trabalho feminino
das políticas de identidade. Os concursos de fora de casa. Por outro lado, essa crise se
beleza negra e todas as formas inventivas de refere também ao surgimento de um novo
manipulação corporal afrodescendente dão homem, ainda colado à norma heterossexual,
testemunho desses conflitos pulverizados em mas sensibilizado pelos valores femininos:
torno das pessoas negras e de sua represen- sensibilidade, vaidade e intuição.
tação corpórea, que é também uma forma Sem alargar os questionamentos sobre
de produção e de luta. Nesse caso, vê-se, essa suposta crise e todos os componentes
mais uma vez, como as mulheres negras têm normativos, heterossexistas e de classe que
acumulado uma experiência rica e carregada parecem constituir, deve-se ter em mente que,
de alto grau de reflexi­vidade. Uma vez que se existe uma crise do masculino, com essa
as mulheres de um modo em geral, e as mu- configuração classe média, um tanto psicolo-
lheres negras de um modo muito específico, gizante e, de modo claro, reativa às conquistas
tiveram que lidar com o entulho ideológico das mulheres, é necessária uma abordagem
que se depositou, constituindo os espaços que, em suma, desconecte o masculino de suas
para sua identidade corporal, elas têm de- amarras na estrutura das classes, do sistema de
senvolvido, com maior grau de consciência dominação de gênero, do racismo, da normati­
crítica, uma relação com o próprio corpo, vidade heterossexual. Se essa crise existe e
para resguardá-lo, reinventá-lo, dignificá- é real para homens – que hoje se questionam
-lo, apropriar-se dele, negar significados como fazer bronzeamento artificial sem
estereotipados, questionar os modelos de perder a virilidade –, é também verdade que
apresentação de si ocidentais etc. existe outra crise do masculino, que tem uma
E o homem negro? É claro que muitas duração mais longa e que está fundamente
formas vernáculas de políticas corporais têm definida pela relação das posições de gênero
sido levadas a efeito por homens negros, com a estrutura das classes, o racismo, a vio-
principalmente jovens das grandes cidades. lência e aspectos brutalizantes e alienadores
Mas em que medida esses investimentos do mercado. Essa crise do masculino atinge,
simbólicos-políticos incidem sobre os mode- desde muito tempo, homens negros, jovens
los estereotipados de masculinidade? Em que e pobres e está claramente definida pelo viés
medida se afastam das fantasias sexistas e de gênero presente nos números da violência
naturalizantes ligadas ao corpo, à sexualidade urbana e suas cifras apocalípticas.
e às prerrogativas de poder de homens negros? Os índices de violência e de abusos
Em que medida têm contribuído para novas físicos no Brasil são alarmantes e deveriam
alianças entre homens negros e mulheres ne- assombrar a consciência liberal das elites e
gras? Para o caso das políticas corporais, surge das classes médias – o que parece não ocorrer
a questão: o projeto político – e de reconstrução de fato. Recentes relatórios internacionais
de si – dos homens negros é um projeto para têm apontado a presença quase institucional
homens e mulheres afrodescendentes? Ou será da tortura como método in­vestigativo pelas
um projeto negro masculino (e heterossexual)? polícias brasileiras. Segundo a Anistia Inter- 5 Cardoso, 1986, p. 66.

JUN 2004 / JUL 2004 67


e s pa ç o a b e rt o

nacional e a Human Rigths Watch, execuções que essa crise descende.


sumárias e o uso da tortura como método
investigativo e punitivo são corriqueiros e
Politizando masculinidades
aceitáveis nas delegacias e nos presídios
afrodescendentes
brasileiros, sendo o pau-de-arara instru-
mento usual de suplício, além de choques Diante do exposto, é preciso encaminhar algu-
elétricos, afogamentos e mesmo exploração/ mas questões que possam ajudar a concluir o
abuso sexual. Do mesmo modo, as polícias quadro de interrogações sobre as identidades
brasileiras têm sustentado recordes mun- masculinas afrodescendentes – efetivamente
diais de assassinato de civis, até mesmo quais seriam as chances de politização das
menores, embora a maioria das vítimas identidades masculinas. Como os homens
não apresentasse antecedentes criminais. negros podem se tornar sujeitos de direitos
A violência, entretanto, não se restringe como homens, ou reconduzidos às suas
apenas à ação inadequada das polícias, e os particularidades, renunciando a pretensões
números de mortes por armas de fogo são universalistas e generalizantes. Os homens
impressionantes. Em 13 estados brasileiros, negros não representam todos os afrodes-
segundo pesquisa do Movimento Nacional cendentes brasileiros – essa é uma afirmação
de Direitos Humanos (MNDH), foram re- fácil de entender. Mas representam ao menos
gistrados 22.105 crimes de homicídio entre a si mesmos? Ou intentam representar uma
1998 e 1997. Desse total, 89,22% das víti- fantasia que, ao fim e ao cabo, é masculinis-
mas eram do sexo masculino; 95,84% dos ta, sexista, heteronormativa e que, no fundo,
acusados são homens; 56,08% das vítimas constitui uma armadilha para os homens ne-
tinham entre 18 e 35 anos. Na Bahia, a gros? Qual o grau e o sentido da politização
situação é particularmente perigosa para ne- dos homens negros brasileiros, como homens
gros. Entre 1996 e 1999, policiais mataram e como negros?
881 pessoas. Segundo o MNDH, a maioria É possível dizer que a politização das
das vítimas é jovem, do sexo masculino, identidades masculinas pode ser pensada
moradora de bairros periféricos e, supõe- como a desagregação da identidade mascu-
-se facilmente, negra. O aparato policial do lina monolítica. Reconhecer a diversidade
estado, segundo ainda o MNDH, mata três das experiências e dos lugares do masculino
vezes mais negros que brancos. Enquanto parece fundamental, e esse reconhecimento
as mortes por armas de fogo representavam passa longe dos multiculturalismos liberais,
2,8% dos óbitos entre brancos em 1995, que incorporam a diferença para normalizá-
entre negros esse percentual era de 7,5%. 6 -la. O que se propõe é uma incorporação da
Parece ser essa a verdadeira – e sinistra diferença que abale as fronteiras estáveis do
– face de uma crise do masculino que deveria mesmo, que dissolva os limites claros das
nos mobilizar intensamente. Essa crise não diz identidades masculinas (negras) hegemô­
respeito às reações ao avanço feminino nem nicas e que exploda em seu potencial crítico
pretende expressar o desconforto de homens e desconstrutivo na mesma medida de sua
brancos de classe média diante da sofisticação marginalização social. Em segundo lugar, é
do style e da mercadificação crescente da vida impossível considerar a crise do masculino,
cotidiana. Refere-se também à necessidade tal como foi qualificado anteriormente, sem
urgente de se comprometerem os homens, levar em conta a articulação dos modelos de
como homens, na reinvenção das identida- masculinidade com a estrutura das classes,
des masculinas, por um lado, e, por outro, o mercado, a divisão social do trabalho e a
na batalha política por políticas públicas de reprodução social desigual da sociedade. Em
inclusão para homens jovens, negros e pobres. terceiro lugar, é mais que urgente a promoção
A crise implica, assim, um desafio às nossas do homem como sujeito de direitos, prin-
consciências individuais como homens com- cipalmente direitos sexuais e reprodutivos,
prometidos ou interessados na emancipação associados à paternidade, ao exercício da
e também implica a consciência de que essa sexualidade, à prevenção de doenças sexu-
6 Números e análises sobre a transformação subjetiva necessita vir acompa- almente transmissíveis e Aids, entre outras.
violência podem ser encontra-
dos em Amnesty International, nhada de mudanças na estrutura social, porque

ESpaço
2001; Barbosa, 1998; Human
Rigths Watch, 2001 a, 2001 b;
é dessa confluência entre disposições culturais
Machado, Noronha e Cardoso, masculinas incorporadas subjetivamente e es-
1997; Oliveira, 1998; Waisel-
fisz, 2002; Silva, 1999. truturas sociais de reprodução social desigual

68 Democracia Viva Nº 22
Qual é a identidade do homem negro?

* Osmundo Pinho
Antropólogo, doutor
em Ciências Sociais
pela Unicamp, diretor
do Centro de Estudos
Afro-Brasileiros da
Universidade Candido
Mendes
opinho@

Transformação social
A verdadeira reforma do masculino não pode ser levada a efeito por ninguém senão pelos homens
e não passa apenas por uma solidariedade para com as mulheres. Implica uma solidariedade de
novo tipo – não mais baseada na glorificação das prerrogativas masculinistas – entre os homens.
A violência masculina contra a mulher é brutal e covarde. Mas a violência entre os homens tem as
proporções de um cataclismo mítico de sexo, gênero e raça. A homofobia, a sexualidade predató-
ria, o gosto pela violência e pelo risco não precisam marcar para sempre os mundos masculinos.
A reforma do masculino, que deveria se transformar num programa político de transformação
social, residiria, então, na exploração consciente das ligações entre estruturas de opressão inter-
nalizadas e incorporadas e as disposições para sua reprodução intersubjetiva como um modo de
reprodução desigual das estruturas de gênero. Somente a atividade consciente e reflexiva dos
homens engajados na transformação das relações de gênero – e que, muitas vezes, enxergam esse
engajamento apenas como uma adesão bem-intencionada ao feminismo – poderá interromper essa
cadeia infernal. Para isso, é preciso desapego, radicalidade, discernimento e experimentação.

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JUN 2004 / JUL 2004 69


cul c u lt u r a
Vincent Rosenblatt*

70 Democracia Viva Nº 22
ura
Todos
os
do morro
As imagens de violência praticamente constituem um monopólio na representação das

favelas realizada pela mídia. As pessoas que moram nesses locais são discriminadas e

sofrem da alienação de sua própria imagem. Para uma população à margem da socie-

dade, que, por vezes, não dispõe nem de existência civil, promover um projeto coletivo

de afirmação visual – como o Olhares do Morro – faz mais sentido do que alguém soli-

tariamente colher imagens no território sensível da favela.

Quem produz essa nova iconografia são jovens que moram nas favelas e que se

apropriam da fotografia para conquistar um espaço visual pela vivência cotidiana, riqueza

cultural, ginga, carinho – em uma invenção permanente que caracteriza o espaço em

movimento da favela. Para termos uma mídia representativa e legítima no país, precisa-

mos de mais jornalistas que venham das classes populares. Nosso núcleo é um viveiro

do qual podem surgir novos talentos.

JUN 2004 / JUL 2004 71


c u lt u r a

Vincent Rosenblatt

Desse desafio, surgem logo outros dois. O


que fazer com o acervo sempre crescente de
imagens? Quais oportunidades de formação
profissional e geração de renda podemos ofe-
recer a jovens autores e autoras?
As imagens da pobreza representam um
fluxo financeiro, um mercado. Nada mais justo
que as pessoas que habitam as áreas pobres
participem desse mercado e conquistem uma
parte do bolo. O fato de elas serem oriundas
da favela permite influenciar positivamente a
imagem, a forma de representar essa popula-
ção e os bairros. Cada autor e cada autora são
potenciais líderes comunitários, participando
da modificação da imagem, em geral negativa,
rotulada nas pessoas que moram nas favelas,
que atrapalha a obtenção de empregos e as
oportunidades de estudar.
O projeto procura ter uma abordagem
global da cadeia de produção e distribuição das
imagens. O núcleo da comunidade de Santa
Marta está aberto de quarta-feira a domingo,
das 14 às 18 horas, e recebe jovens daquela
comunidade e, também, do Vidigal, da Rocinha
e de Rio das Pedras. A maior parte tem idade
entre 15 e 29 anos. Atualmente, atendemos 15
jovens. No acervo da agência, há trabalhos de
40 pessoas que passaram pelas aulas do núcleo.
Ex-alunos e ex-alunas monitoram o

72 Democracia Viva Nº 22
Todos os olhos do morro

projeto e repassam o aprendizado a quem está


iniciando, que aprenderá o básico da fotografia,
manuseio de câmeras, revelação de filmes e
ampliação, além de iniciação à digitalização das
imagens e trabalho com editores de imagens em
computadores. O objetivo é saber controlar to-
das as etapas de produção das fotografias. Uma
vez por semana, há uma oficina de redação, com
apoio de jornalistas profissionais, que é impor-
tante para o desenvolvimento das matérias que
acompanham as imagens. Além de repórteres e
pessoas que atuam como voluntárias, o projeto
recebe, regularmente, artistas do Brasil e do
exterior, que ministram palestras variadas. Um
grande número de profissionais do mundo da
imagem se cadastra e entra em contato conosco
por meio do nosso site.

Passo além
Depois desse aprendizado, em função da moti-
vação individual, há os cursos de extensão “no
asfalto” ou estágios nas empresas parceiras, como
a Selulloid AG (empresa de comunicação, editora
da revista Oi), e em grandes laboratórios foto-
gráficos, como o Studio Oficina e a Speed Lab.
Outro grande parceiro é o Ateliê da Imagem,
conceituada escola de fotografia, na Urca, que
proporciona cursos de extensão como fotogra-
fia digital e gestão de acervo de imagens. O

Jorge Alexandre Firmino

JUN 2004 / JUL 2004 73


c u lt u r a

projeto estreita, cada vez mais, o contato com o Quando uma imagem é vendida, 60% do valor
meio da moda. Está sendo preparado um curso vai para o autor ou a autora, e o restante vai
de estúdio com profissionais da área. para manutenção das atividades do projeto,
Após passar por essa cadeia de oficinas, compra de insumos de fotografia e pagamento
antigos alunos e alunas continuam benefi- dos cursos para jovens em instituições como o
ciados pelo projeto, tornando-se correspon- Ateliê da Imagem. Também incentivamos o mer-
dentes da Agência de Imagens das Favelas, cado interno das comunidades, com serviços de
que representa suas obras e as comercializa, qualidade e preços adequados à população de
além de indicá-los para eventuais trabalhos baixa renda, fazendo books e cobrindo festas,
que surjam. Além de profissionais da área de aniversários, batizados etc.
fotografia e de produção gráfica, podem surgir A emergência para a juventude das fa-
especialistas da arte digital e de restauração velas é conseguir renda. Nosso acervo está, aos
de fotografias, além de webmasters, designers poucos, sendo comercializado pela Agência de
e jornalistas. Imagens das Favelas, por meio de nosso site.
Longe de se restringir aos morros, há Com isso, queremos responder, pelo acesso
encomendas de fotos para variadas reportagens. virtual, exposições itinerantes e edição de

Jorge Alexandre Firmino

74 Democracia Viva Nº 22
Todos os olhos do morro

Bernadeti Araujo de Mattos


Alex Basilio

produtos, à demanda nacional e internacional com isso, receber jovens independentemente * Vincent
de fotografias que retratem esse tema. Comer­- de sua comunidade de origem. Essa agência Rosenblatt
cializamos essas imagens para jornais, revistas, e escola, ou, como já a chamamos, Núcleo de Coordenador do projeto
grandes empresas (com linha editorial voltada Expressão Visual e Jornalismo (NEVJ), será um Olhares do Morro –
para responsabilidade social), agências de espaço de capacitação permanente, permitindo Fotografia & Cidadania
publicidade, ONGs, veículos de comunicação, a participação e o ensino para diferentes pro-
vincent@
coleções públicas e privadas e para quem mais fissionais e artistas, com acesso mais fácil que
olharesdomorro.org
se interessar. o atual núcleo no morro.
Foto da abertura:
O início do projeto foi assegurado pelo Nesse novo espaço, as aulas poderão
Serviço Cultural do Consulado da França, por também ser abertas para jovens de maior poder
meio do programa Residência de Artista, com aquisitivo, que ajudarão a manter a permanên-
o patrocínio da loja Fnac do BarraShopping. cia de alunos e alunas das comunidades. Por
A empresa Furnas Centrais Elétricas ofereceu isso, temos que lutar para alcançar a sustenta-
ao projeto a oportunidade de uma exposição, bilidade. O objetivo é ter uma visão ampla de
que irá para Paris, onde será exibida na sede toda essa cadeia de produção e distribuição
mundial da Unesco (Organização das Nações das imagens, desde o aprendizado no morro,
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). o aperfeiçoamento nas escolas e empresas
Com a exposição, irão a Paris dois de seus parceiras, até a comercialização via Internet,
jovens autores. Está sendo encaminhando tentando atender a clientela com o máximo de
pelo Comis­sariado Brasileiro, no Ministério da profissionalismo.
Cultura, um projeto de instalação multimídia
pelo Ano do Brasil na França (2005). www.olharesdomorro.org
O próximo passo será conseguir um
espaço “no asfalto”, ou seja, uma sede para a
Agência de Imagens das Favelas. Esperamos,

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76 Democracia Viva Nº 22

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