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Mídia e política
Alessandra Aldé
Entrevista
Cleonice Dias
Por mais que incomode, precisamos conduzir nosso olhar para além da leitura superfi-
cial, estendê-lo para que enxerguemos questões que teimam em ficar distantes – ou que são totalmente
distorcidas pelos filtros pouco democráticos de nossa mídia dominante. Um dos artigos, da professora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Alessandra Aldé, é sobre o tema, Mídia, pluralismo e atitude
política: os meios de comunicação de massa informam e formam, mas como garantir o direito de acesso
às diversas fontes? A crônica de Alcione Araújo nos mostra, em tom bastante irônico, onde se pode chegar
quando um único modo de ver se impõe.
Mas o tema mais recorrente na edição é o da favela. Não há como aceitar os parâmetros
do velho debate que ameaça se reinstalar entre nós e trazem de volta questões como a remoção das comu-
nidades ou até mesmo a construção de cercas que as isolem do resto do ambiente urbano. A favela faz parte
da cidade, é lugar onde pessoas vivem seus dramas pessoais e coletivos, é lugar de prática de liberdade,
cidadania e vida – muita vida, por sinal. Como nos mostra a líder comunitária da Cidade de Deus, no Rio
de Janeiro, Cleonice Dias, nossa entrevistada.
Nossa maneira de ver é uma construção, determinada por uma série de condicionantes
que, muitas vezes, nos escapam, e que acabam por fazer com que vários estereótipos venham à tona (como
expressado por Jailson de Souza e Silva, professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador ge-
ral do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, no artigo Favelas – além dos estereótipos). É preciso,
portanto, que reconstruamos nossos olhares com outras imagens. Este é o objetivo do projeto Olhares do
Morro, do qual fazem parte fotógrafos(as) oriundos(as) das comunidades que lutam contra a imagem he-
gemônica e estereotipada da favela como pátria do caos. No fundo, é o direito de cidadania de seus(suas)
moradores(as) que está em jogo. Afinal, vemos essas pessoas como aquelas que não têm direito à nossa
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
3 Artigo 20148-900 Rio de Janeiro/RJ
Mídia, pluralismo e atitude política Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852 3517
Alessandra Aldé <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
Distribuição
Maria Edileuza Matias
Projeto Gráfico
Mais Programação Visual
Diagramação
Imaginatto Design e Marketing
Fotos da Capa
Alex Basilio
Jorge Alexandre Firmino
Fotolitos
Rainer Rio
Impressão
J. Sholna
Tiragem
4.500 exemplares
democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Alessandra Aldé*
e atitude
Mais uma vez nos aproximamos do tempo da política, marcado no Brasil pela estação
eleitoral.1 Para grande parte de cidadãos e cidadãs, desinteressados de uma política vis-
até pelo voto obrigatório, a se posicionar e justificar politicamente. Ora, somos uma
pessoal de aquisição (ou manutenção) de bens e status. Faz parte do próprio dilema da
sário para participar, ativos e informados como reza a teoria, da deliberação pública dos
decepcionados, depois das grandes mobilizações cidadãs da década de 1980 pela demo-
cracia, com os resultados práticos da política para sua vida cotidiana. A política parece 1 O termo “tempo da política”
é popularmente empregado
para designar o período elei-
distante, uma coisa a ser deixada a especialistas e políticos. toral. Ver Palmeira e Goldman
(1996).
Apesar disso, toda eleição lembra a cidadãos e de leitura. A mídia de massa aparece como um
cidadãs que cada um vale um voto; a extensão quadro de referência particularmente acessível
progressiva do sufrágio, ao longo dos últimos para a maioria das pessoas, e os enquadra
dois séculos, incorporou à decisão sobre a mentos que oferece podem ser determinantes
escolha de governantes uma grande massa de nas interpretações correntes do mundo público,
pessoas para quem a política não é o assunto pois contribuem para a construção de esquemas
central, mas que, mesmo assim, busca justificar explicativos socialmente compartilhados. Nesse
de maneira minimamente coerente suas ações sentido, a maneira pela qual os meios organi-
e decisões. As pessoas estruturam seu conheci- zam e apresentam a informação tem efeitos
mento do mundo e sua opinião sobre a política importantes em sua interpretação.
procurando fugir do sentimento de aleatorieda- Nos últimos anos, minha reflexão como
de, construindo explicações plausíveis, aceitáveis, pesquisadora de comunicação e política tem
a partir dos quadros de referência a que têm focalizado, justamente, as implicações dessa
acesso. A necessidade de se justificarem discursi realidade para nossas possibilidades concretas
vamente, mesmo que para de democracia. Isso me levou a realizar, como
si mesmas, faz com que base para minha tese de doutorado, uma série
estejam atentas a dis- de entrevistas em profundidade com um grupo
cursos legitimadores que de pessoas comuns do Rio de Janeiro, de ida-
simplifiquem as complexi- des e condições sociais variadas.2 Sempre senti
dades do mundo público, falta, tanto no campo da comunicação como
orientando a tomada de no da ciência política, de uma preocupação
posições. mais empírica com a perspectiva do próprio
É dentro dessa cidadão/receptor, da presença em carne e osso
realidade que precisamos do sujeito, muitas vezes inferido nas teorias.3
entender o papel atual Minha pesquisa procurou encontrar padrões
da mídia, suas práticas e de comportamento e cultura a partir da análise
atores, como uma media- direta do discurso de pessoas comuns sobre sua
ção fundamental entre vivência em um mundo político marcado pela
sociedade e esfera públi- presença dos meios de massa. Foi possível ob-
ca. Os meios de comuni servar, ao longo da análise, a estruturação das
cação são centrais na atitudes políticas concretas da pessoa comum
elaboração e justificação e relacioná-la com o uso que faz dos meios de
das atitudes políticas. comunicação.
As explicações simplifi Acredito ser possível explicar as atitudes
cadas que os sujeitos políticas do cidadão e da cidadã comuns a partir
apresentam para susten- de duas tendências principais. Uma delas é sua
tar suas atitudes políticas intensidade forte ou fraca, ou seja, a relativa
não são reprocessadas a centralidade da política entre as preocupações
cada nova informação; as cotidianas, sua presença no discurso espontâ-
pessoas se baseiam em neo, o interesse que demonstra pelo noticiário
esquemas simplificados e sobre o tema. A outra é a valência, uma pers-
recorrentes, adaptáveis a pectiva individual positiva ou negativa quanto
vários contextos, em que às possibilidades e condições da política, que
procuram encaixar infor- divide as pessoas entre pessimistas e otimistas.
mações novas, de modo As diferentes combinações dessas duas dimen-
a economizar esforços. sões da atitude dão origem a perfis típicos, em
As atitudes políticas, por outro lado, que geralmente conseguimos situar a variedade
são dinâmicas, sujeitas a atualizações e mu- de cidadãos e cidadãs que conhecemos. Foi
danças; suas fontes – os quadros de referência possível identificar cinco atitudes típicas em
a que os indivíduos recorrem – são condiciona- relação à política: forte/positiva, forte/negativa,
das pelos mecanismos cognitivos usados pelo forte/tensa, fraca/positiva e fraca/negativa.
cidadão e pela cidadã comuns. As pessoas têm Trata-se de dimensões presentes, de
2 Ver Aldé (2004).
acesso a mensagens sobre o mundo político uma forma ou de outra, em todas as teorias
3 Sobre a dificuldade das
teorias da democracia de incor-
provenientes de uma complexa rede comuni- que envolvem a dicotomia alienação/integra-
porar o papel político concreto cativa, em que há emissores dominantes e al- ção. No entanto, separar analiticamente esses
desempenhado pela mídia, ver
Miguel (2000). ternativos, bem como múltiplas possibilidades eixos contribui para dar mais profundidade à
4 Democracia Viva Nº 22
Mídia, pluralismo e atitude política
6 Democracia Viva Nº 22
Mídia, pluralismo e atitude política
Informação política
Não há como negar o valor democrático e
a notável influência política dos meios de
público, os meios de comunicação de massa
comunicação em geral, e da televisão em
não só podem, como devem desempenhar um
particular. Por um lado, se pudéssemos desejar
papel importante na política, muito próximo ao
um cidadão ou uma cidadã ideal, entre os que
de esfera pública. Quando vista positivamente,
vimos que existem na democracia brasileira
e também em termos normativos, a mídia
concreta das ruas do Rio de Janeiro, escolhe-
cumpre o papel de intermediar relações com a
ríamos, sem dúvida, alguém de atitude forte e
política, promovendo o debate e a transparência.
positiva, de alto interesse, o consumidor ávido
Longe de desanimar o projeto democrático,
de informação política, ciente de seus direitos
faz-se necessária uma atenção redobrada à
e deveres, atualizado e participante. Quanto
esfera da comunicação de massa, que, afinal,
mais tipos variados de mídia ele procura, mais
depende em enorme medida da concessão,
próximo costuma estar desse ideal. Se, além
financiamento e aprovação públicos e pode ser
de meios de comunicação de massa, estamos
regida por normas e práticas que permitam uma
diante de alguém com vivência política em
abertura e uma pluralidade hoje insuficientes
primeira pessoa, por menor que tenha sido
para que possamos considerar atendida uma
sua esfera de influência, melhor ainda para
parte importante da população. As alternativas
esse exercício. No entanto, essa constatação,
programáticas para um sistema político em que
em si, não responde ao principal problema que
a mídia é tão central e que pretende, contudo,
enfrenta hoje a comunicação democrática no
estabelecer relações democráticas entre governo
Brasil: como criar condições para que o número
e sociedade, entre representantes e representa-
potencial desses cidadãos e cidadãs ideais se
dos, passam necessariamente pelo atendimento
aproxime do real?
a essa pluralidade de expectativas.
Para cidadãos e cidadãs da democracia de
Referências bibliográficas
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dimensões e condições da poliarquia. 2001. Comunicação
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MIGUEL, Luís Felipe. Um ponto cego nas teorias da democracia:
8 Democracia Viva Nº 22
nacio
nacional
Jailson de Souza e Silva*
Urbaniza-se?
Remove-se?
um formigueiro infinito?
10 Democracia Viva Nº 22
onal
Favelas
– além dos
1
“O que é uma favela?” A pergunta foi feita a pessoas de distintos grupos sociais e
2 As representações são, no
âmbito deste artigo, compre-
Outro elemento peculiar da representação usual das favelas é sua homogeneização. endidas como construções
mentais sintéticas, decorrentes
dos vínculos – em variados
Existente em terrenos elevados e planos, reunindo de algumas centenas a milhares de ha- graus – estabelecidos, no
cotidiano, por agentes em
múltiplos campos: profissional,
bitantes, possuindo diferentes equipamentos e mobiliários urbanos, sendo constituída por político, religioso, comunitário,
educacional e/ou outros. Para
um maior aprofundamento das
casas e/ou apartamentos, com diferentes níveis de violência e presença do poder público, diversas formas de se tratar a
temática, ver Sá, 1996.
12 Democracia Viva Nº 22
Favelas – além dos estereótipos
representação das favelas (e das pessoas que lá o significam, de forma particular. A represen-
moram) nos termos de sua representação nas tação conceitual foi sendo, portanto, de forma
décadas de 1940/1950. A percepção anacrônica progressiva, substituída por uma representação
dos espaços populares foi, ainda, ampliada, estereotipada.6 Nessa representação, os precon-
de forma que as ocupações continuaram a ser ceitos e juízos generalizantes, desprovidos da
percebidas como um espaço de ausências – relação direta com o núcleo do fenômeno, ca-
urbanas, sociais, legais e morais. Os grandes racterizam o processo de apreensão do objeto.
conjuntos habitacionais, construídos pelo A valorização de pretensas ausências e de
poder público no encaminhamento da política uma aparente homogeneidade, assim como a ên-
remocionista,4 apresentam-se, no imaginário fase na paisagem com elemento definidor daquele
de habitantes da cidade, como favelas, embora tipo de território popular, tem um pressuposto
tenham características, no plano da paisagem, fundamental, que, por sua vez, se desdobra em,
distintas das definições propostas. pelo menos, duas formas de percebimento de
O Complexo da Maré, por exemplo, moradores e moradoras das favelas e suas práticas
reúne 16 comunidades, sendo que nove delas sociais. No caso da premissa, são evidentes as
foram construídas pelo poder público. Embora referências sociocêntricas que sustentam o olhar
considerado oficialmente, desde o fim da déca- dirigido ao espaço favelado. O sociocentrismo se
da de 1980, como um bairro, ele é comumente materializa quando, a partir dos padrões de vida,
identificado como um dos maiores complexos de valores e crenças de um determinado grupo social,
favelas do Rio de Janeiro, seguido do Morro do se estabelece um conjunto de comparações com
Alemão, Rocinha e Jacarezinho, todos também outros grupos, colocados, em geral, em condições
denominados, oficialmente, como bairros. Na de inferioridade.
verdade, a definição desse tipo particular de ter- Os discursos estabelecidos em relação
ritório, nos termos propostos pelo Plano Diretor aos espaços populares seguem esse padrão. Eles 3 As favelas e os loteamentos
irregulares são identificados,
do Rio de Janeiro, é tão genérica que qualquer são definidos por suas ausências, em virtude do pelos órgãos públicos munici-
localidade pode ser considerada como tal. Nesse fato de não serem reconhecidos como espaços pais do Rio de Janeiro, como
espaços informais, em função
documento, eles são definidos como “porções legítimos. Nas definições propostas, o elemento da ausência do cumprimento de
determinadas normas urbanas
do território que reúnem pessoas que utilizam os paisagístico é a variável que, por excelência, expli- legais. Nesse caso, os bairros
mesmos equipamentos comunitários, dentro dos ca a favela. Ela é contraposta a um determinado seriam os espaços formais. A
generalização dos termos con-
limites reconhecidos pela mesma denominação” ideal de urbano, vivenciado por uma pequena tribui para ampliar a imprecisão
sobre as características desses
(Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de parcela de habitantes da cidade. Não é casual, territórios. O termo asfalto,
Janeiro, 1992, art. 42). então, que os espaços favelados sejam vistos utilizado historicamente pelas
pessoas que moram na favela
As pessoas que moram no Complexo da como um espaço externo à pólis, ao território para denominar os bairros, tem
caído em desuso. Atualmente,
Maré, entretanto, não reconhecem, em geral, reconhecido como o lugar, por excelência, de nas favelas cariocas, quando
o seu espaço de moradia como um bairro.5 exercício da cidadania. se fala a respeito da própria
localidade, utiliza-se, em geral,
Para elas, seriam necessárias a melhoria das No mês de dezembro de 2000, a revista comunidade; mas, quando se
fala de outros espaços análo-
condições urbanas e, principalmente, uma Veja expressou, na capa de uma edição, esse gos, é usual o termo favela.
maior consonância entre as regras da cidade e juízo marcado pelo temor. Acompanhada da
4 Intervenção efetivada por
as da favela, em particular no que diz respeito manchete “a periferia cerca a cidade”, apresen- sucessivos governos cariocas,
entre 1962 e 1973, que tinha
às formas de intervenção da polícia e ao modo ta-se uma imagem na qual as construções de como meta a erradicação
de funcionamento do comércio ilegal de dro- alvenaria, em cor escura – remetendo à visão das favelas da cidade, com a
transferência da sua população
gas. Nesse caso, o bairro se coloca como um de formigas saúvas em movimento –, devoram para conjuntos habitacionais
localizados em áreas periféricas
projeto, um vir a ser, que, para ser materiali- gradativamente prédios brancos e limpos. O da cidade. Cf. Parisse, 1969, e
zado, demanda um novo tipo de intervenção exemplo, recorrente nos meios de comunicação, Valladares, 1980.
do poder público, pelo menos. Assim, o tipo é ilustrativo do temor, que é atávico em amplos 5 Depoimentos de recensea-
dores do “Censo Maré 2000
de representação hegemônica afirmado em setores sociais do Rio de Janeiro e de outras – Quem somos, quantos somos
e o que fazemos”, levantamen-
relação aos espaços populares ignora a his- metrópoles, de que o morro desça, e a cidade to realizado pelo Centro de
toricidade e espacialidade do fenômeno que seja dominada pelo caos. Estudos e Ações Solidárias da
Maré e financiado pelo BNDES
busca apreender. O que caracteriza, de forma consciente (Banco Nacional de Desenvol-
vimento Econômico e Social),
Instala-se, portanto, uma contradição ou não, a percepção desses setores sociais é a em fase de análise dos dados
no processo de apreensão dos espaços favela- lógica de que o direito ao exercício da cidadania da segunda fase.
dos, expressa em uma crise de representação não é inerente ao nascimento do indivíduo no 6 Estereótipo quer dizer “idéia
ou convicção classificatória
no que diz respeito à correspondência entre o Estado-nação, conforme define a Constituição preconcebida sobre alguém ou
algo, resultantes de expectativa,
objeto representado e a imagem hegemônica brasileira. O reconhecimento da cidadania é hábitos de julgamento ou fal-
que dele se tem. A percepção que se tem do relativizado, de acordo com a cor da pele, o sas generalizações” (Houaiss,
2001).
objeto não traduz os elementos materiais que nível de escolaridade, a faixa salarial e/ou o
14 Democracia Viva Nº 22
Favelas – além dos estereótipos
as apropriações sejam identificadas, reconhe- visíveis – faz-se necessária. Ela deve pressupor
cidas e orientem as intervenções. Parodiando a que as pessoas que moram nos espaços popu-
linguagem acadêmica, moradores e moradoras lares desenvolvem formas ativas e contrastantes
permaneceram, em geral, na condição de obje para enfrentarem suas dificuldades do dia-a-
tos de quem era responsável pela intervenção. -dia, de acordo com suas trajetórias pessoais
O corolário desse quadro foi a (re)produção da e coletivas, as características socioculturais e
estigmatização das comunidades faveladas e geográficas da localidade, o peso do tráfico
das pessoas que lá habitam. Ela se manifesta via de drogas e a postura assumida por dirigen-
políticas macrossociais, mas também por meio tes das entidades comunitárias, entre outras
de distorções nos mecanismos de investigação variáveis. Quem mora em favela estabelece a
e de solidariedade que foram historicamente delimitação dos espaços e dos vínculos sociais
construídos para superar a marginalização na comunidade; busca canais alternativos para
desses setores sociais. o acesso a instituições culturais e educacionais;
No processo, tornou-se comum, em desenvolve formas sutis de enfrentamento da
amplos setores do espaço urbano, a presença violência criminosa e policial – buscando uma
de uma postura indulgente em relação a um eqüidistância em relação ao conflito estabe-
conjunto de práticas sociais existentes nas fa- lecido ou mesmo apelando, de acordo com a
velas. Como consideram impossível construir conveniência e compreensão de sua cidadania,
uma vida adequada a partir de um cotidiano para um dos pólos do poder armado; estabelece
marcado por dificuldades materiais, gestos ex- relações subservientes com órgãos estatais que
pressivos de alegria manifestos por pessoas dos oferecem serviços públicos nas localidades;
setores populares são interpretados, muitas firma relações clientelistas com políticos fisio-
vezes, como algo próximo da bestialização. A lógicos para garantir determinados benefícios
postura remete ao olhar que um senhor de- e/ou organiza iniciativas reivindicatórias com
veria ter ao observar seus escravos e escravas ênfase na participação e envolvimento da popu-
se divertindo com suas brincadeiras de negro. lação. Todas as ações são exemplos de práticas
A idéia de alienação, por seu lado, caracteriza desenvolvidas em diferentes localidades, a fim
alguns olhares dominados pelo intelectualismo, de melhorar a qualidade da vida cotidiana,
mesmo quando acompanhado do sentimento independentemente dos juízos que se possam
de solidariedade com os grupos sociais po- fazer sobre algumas delas. Afinal, as pessoas
pulares. Assim, as pessoas que moram em inventam múltiplos mecanismos para terem
favela, em especial, seriam caracterizadas por uma vida cotidiana mais feliz e intensa, em um
uma pretensa distância em relação ao padrão quadro de dificuldades que não é ignorado, mas
racional característico de cidadãos e cidadãs enfrentado de forma criativa e, sem dúvida,
urbanos e/ou pelo seu desconhecimento da muitas vezes sofrida.
realidade social. Naturalmente, a superação dos eviden-
O combate aos dois discursos deve ser tes limites presentes nas condições de vida dos
estabelecido, portanto, em função dos seus grupos sociais populares é uma necessidade,
pressupostos e efeitos práticos: neles, as pessoas que deve ser encarada pelos poderes públicos
que moram nas favelas são identificadas como e amplos setores sociais. Ela passa, porém,
marginais naturais ou pessoas intrinsecamen- pela quebra da hegemonia das referências
te passivas. Eles ignoram a multiplicidade e sociocêntricas. Isso pode ser feito via a criação
diversidade de ações objetivas encaminhadas de mecanismos de diagnóstico e definição de
por diferentes atores dos espaços populares no ações que levem em conta as estratégias so-
processo de enfrentamento dos limites sociais e ciais construídas pelos diversos grupos sociais
pessoais de suas existências. Moradores e mora- populares. Diagnósticos que busquem, como
doras de favelas, com efeito, não analisam suas um princípio metodológico, a articulação entre
vidas apenas a partir das noções de ausência e/ atores oriundos do espaço local, ou pelo menos
ou negação. Da mesma forma, não reconhe- social, e de outros territórios. O Observatório
cem a violência existente em seu cotidiano de de Favelas do Rio de Janeiro8 se coloca diante
modo semelhante à concebida pela maioria dos desse desafio e vem buscando se articular com
setores dominantes e médios. Levam em conta, diferentes grupos, institucionais ou não, que
também, os aspectos afirmativos, integrantes compartilhem essas referências. Ele vem formu-
de seu cotidiano. lando e/ou sistematizando uma série de con-
Logo, a construção de outra representa- ceitos que podem contribuir para a construção
ção das favelas – para além das ausências mais de novas formas de apreensão do fenômeno da
Redes da Maré
A Maré localiza-se na Zona da Leopoldina da cidade do Rio de
Janeiro. Ela fica entre a avenida Brasil e a Linha Vermelha e é
elemento constituinte da cidade, em sua contraditoriedade,
cortada pela Linha Amarela, as três principais vias da cidade.
e não como uma disfunção do processo de urbanização.
Maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, com cerca de
O Ceasm iniciou suas atividades em fevereiro de 1998, a
132 mil habitantes, distribuídos em 16 comunidades, a Maré
partir de um curso pré-vestibular comunitário dirigido para
se caracteriza pela diversidade. No entanto, por se localizar
as universidades públicas. A especificidade da iniciativa foi
perto do aeroporto internacional e ser vizinha da Universidade
o fato de seu corpo docente e discente ser formado, ini-
Federal do Rio de Janeiro, ela ocupa uma presença significativa
cialmente, apenas por habitantes das comunidades locais.
no imaginário carioca, sendo representada como um espaço
A alta taxa de aprovação de seus alunos e alunas mostrou
globalmente dominado pela miséria e pela violência.
as possibilidades do projeto e seu potencial impacto social.
Apesar das diferenças, uma das características mais
Atualmente, o Ceasm desenvolve 14 projetos diferenciados,
destacadas do espaço local é a proletarização de sua
com ênfase na educação, cultura e geração de renda, que
população, em geral negra ou oriunda de áreas rurais do
buscam funcionar de forma articulada.
Nordeste. Moradores e moradoras locais desenvolvem, em
Preocupada em atuar na Maré, mas em uma perspectiva
geral, ofícios que exigem pouca qualificação profissional,
global, a entidade percebe o conjunto de campos em que
possuem baixa escolaridade e uma reduzida renda familiar.
atua como mediações, instrumentos necessários para a
No contexto descrito anteriormente, nasceu a organização
construção do pertencimento identitário das pessoas que
não-governamental denominada Centro de Estudos e Ações
são integrantes dos projetos à rede sociopedagógica que
Solidárias da Maré (Ceasm).
vai, processualmente, sendo constituída. Essa rede busca
O Ceasm tem como elemento inovador o fato de ter
funcionar como um nó de outra rede que articule agentes,
sido fundado e ser coordenado por um conjunto de pessoas
locais e de outros territórios, comprometidos com a me-
que cresceram e/ou moraram em alguma das comunida-
lhoria da qualidade de vida de moradores e moradoras, de
des da Maré. Essas pessoas constituíram a entidade com
forma plena. Implantar essa rede, bem como expandi-la e
o objetivo de ampliar as possibilidades de exercício da
consolidá-la, tornou-se o objetivo maior da instituição.
cidadania por parte de moradores e moradoras locais, em
particular adolescentes e jovens. Outro objetivo central foi
www.ceasm.org.br
contribuir para a formulação de um pensamento sobre o
espaço urbano que reconheça o espaço favelado como um
Referências bibliográficas
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sistemático de estudos e pro- jugement. Paris: Minuit, 1979. Rio de Janeiro: Senpha, 1969. (Caderno do Senpha, 5).
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pulares do estado do Rio de ______. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. SÁ, Celso Pereira de. Núcleo central das representações sociais.
Janeiro. O eixo de sua interven- ______. Poder simbólico. Lisboa: Difel, 1994. Petrópolis: Vozes, 1996.
ção é a criação de uma rede de CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: VALLADARES, Lícia. Passa-se uma casa. 2. ed. Rio de Janeiro:
pesquisadores e pesquisadoras UFRJ, 1995. Zahar, 1980.
da academia e habitantes dos
espaços populares. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 5.
16 Democracia Viva Nº 22
O Balanço Social das Cooperativas, uma iniciativa do Ibase em parceria com diversas ins-
tituições, oferece às cooperativas um meio para que suas ações internas e externas sejam
transparentes e conhecidas pela sociedade em geral. Ao tornar públicas suas ações e seus
investimentos – que devem estar de acordo com os princípios cooperativistas definidos pela
Associação Cooperativa Internacional e pela Recomendação 193 da OIT (Organização Inter-
nacional do Trabalho) –, as cooperativas estarão ajudando a coibir práticas do setor que não
estejam de acordo com os princípios democráticos e distributivos
que o caracterizam.
www.balancosocial.org.br
www.ibase.br
v a r i e
v
Flávia Mattar
Colaborou Thais Zimbwe
a r i e
O reconhecimento civil das relações O Observatório de Favelas está De 5 a 15 de outubro, será realiza-
afetivas entre pessoas do mesmo envolvido com um novo projeto. do, no Rio de Janeiro, o IV Fórum
sexo é uma importante bandei- Foram iniciadas as atividades da Nacional Iniciativas Negras – Tro-
ra do movimento homossexual. Escola de Fotógrafos Populares cando Experiências. O objetivo dos
Em alguns estados, como Bahia Imagens do Povo, coordenada painéis, oficinas, grupos de estudos,
(Grupo Gay da Bahia), São Paulo pelos fotógrafos João Roberto Ri- mesas-redondas e vídeos que serão
(Associação do Orgulho de Gays, pper e Ricardo Funari. O objetivo apresentados é possibilitar a divulga-
Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros é investir na formação de jovens ção de iniciativas implementadas no
– GLBT), Rio de Janeiro (Grupo moradores(as) de favelas cariocas e campo das relações raciais no Brasil
Arco-íris) e Paraná (Grupo InPAR abrir-lhes caminho no mercado de e a reflexão sobre elas. Além disso,
28 de junho), pode ser encontrado trabalho. Ao longo de quatro meses, o evento visa promover a aproxima-
o Livro de Registro de Declaração participarão das oficinas cerca de 20 ção entre acadêmicos(as) e ativistas
Homoafetiva. moradores(as) de 15 comunidades, do movimento negro e de mulheres
Essa foi a estratégia encontrada entre elas Nova Holanda, Comple- negras nacionais, da América Latina
pela sociedade civil organizada xo do Alemão, Rocinha, Vidigal, e do Caribe.
para minimizar os prejuízos causa- Mangueira, Santa Marta e Baixa “Essa é uma das poucas oportu-
dos pela demora na aprovação do do Sapateiro. nidades no Brasil para a capacitação
projeto de parceria civil registrada, Serão quatro horas diárias de de ativistas em diversas áreas”, diz
parado na Câmara dos Deputados. aula. Os(as) jovens terão acesso a Joselina da Silva, pesquisadora do
E lá se vão dez anos desde a sua informações sobre direito autoral Centro de Estudos Afro-brasileiros
criação pela atual prefeita de São e teoria e prática fotográficas. da Universidade Candido Mendes,
Paulo, Marta Suplicy (PT). Também haverá capacitação em instituição carioca responsável pela
Segundo Reinaldo Pereira Da- documentação fotográfica. A idéia iniciativa. Entre os temas que esta-
mião, presidente da Associação é a inserção dos trabalhos dos(as) rão sendo abordados, destacam-se:
GLBT, com a realização da Parada novos(as) fotógrafos(as) em um redação de projetos, elaboração de
do Orgulho Gay, em junho, o número banco de imagens on-line, deno- orçamentos, captação de recursos,
de pessoas interessadas no livro, em minado Imagens do Povo. geopolítica internacional e movi-
São Paulo, duplicou. O único requisi- “A Escola de Fotógrafos Popu- mentos negros na América Latina
to para assinar o livro é a maioridade lares pretende trabalhar para que e no Caribe. O evento é gratuito
civil. A declaração não oficializa a fotografia seja um instrumento e aberto à participação de pessoas
ou legaliza a união. Sua intenção é de arte, informação e formação interessadas, sem a necessidade de
reconhecer e legitimar o relaciona- colocado a serviço do resgate da inscrição prévia.
mento estável, servindo como “prova dignidade das classes populares e da
www.ceab.ucam.edu.br
material” para fins jurídicos como ampliação dos direitos humanos”,
joselina@candidomendes.edu.br
INSS, herança, guarda de filhos(as) diz Ripper.
e partilha de bens.
www.observatoriodefavelas.
www.paradasp.org.br/paradaglbt org.br
www.ggb.org.br
www.inpar28dejunho.com
www.arco-iris.org.br
18 Democracia Viva Nº 22
d
d a d e a d e s
democracia e
Neste texto, apresentam-se comentários gerais, que pretendem apenas contribuir para
coletivas que visam reformar as cidades – que já são bastante antigas e muito variadas
questão da democratização nas áreas urbanas, vale a pena iniciar o raciocínio com uma
A vida social é sempre muito conflitante. Uma das bases mais gerais e mais
permanentes dos conflitos é o fato de que, por um lado, uma vez que fazem parte da
humanidade, os seres humanos são iguais; entretanto, ao mesmo tempo, são diferentes
uns dos outros. Essas diferenças não são apenas – nem principalmente – genéticas, mas
20 Democracia Viva Nº 22
justiça
1
A produção social da diferença não seria Isso tem duas conseqüências muito
problemática – muito pelo contrário, a variedade distintas, mas inseparáveis. Aliás, é interessante
enriqueceria o conjunto da humanidade – se comentar que, justamente por serem insepa-
as diferenças fossem apenas o que são e nada ráveis, a democracia tem sido amada e odiada
mais. Entretanto, o fato é que às diferenças pela esquerda, dependendo de qual das duas
sempre estão associadas relações de força que as se enfatiza. A primeira delas é que a regulação
transformam em hierarquias, isto é, conjuntos de das lutas sociais pelo Estado abre espaço para
pessoas se tornam superiores a outros conjuntos a aceitação de reivindicações dos inferiores,
de pessoas que, portanto, são inferiores. dependendo, evidentemente, da capacidade
Em regimes não-democráticos, que são de pressão, nível de organização etc. Com
muito variados e não nos interessam, essas hie- isso, certos aspectos das hierarquias podem
rarquias são mantidas pela força, e as diferenças ser eliminados (sem que seja necessário jogar
são fortemente reprimidas. Não há igualdade, fora a criança com a água do banho, isto é,
há homogeneização pelo silêncio e pela força. sem que também as diferenças desapareçam),
Já em regimes democráticos, há um reduzindo-se a desigualdade que estava asso-
esforço para reduzir as manifestações abertas ciada a eles. Ou seja, regimes democráticos não
de força. É óbvio que os conflitos derivados da garantem de antemão a igualdade, mas geram
transformação das diferenças em hierarquias a possibilidade de que ela venha a ser atingida
não desaparecem, mas eles são, de certa forma, aos poucos, por meio do próprio conflito social.
“pacificados”. De que modo? O Estado, que é Por outro lado, a segunda conseqüência é que,
a instituição social que concentra o monopólio por esse mesmo processo e ao mesmo tempo,
da força material (não se deve esquecer que o as hierarquias que permanecem tornam-se legi-
poder, em última instância, está baseado no uso timadas, isto é, aceitas por todos como lícitas.
real ou na ameaça da violência física), em vez de De qualquer maneira, pode-se afirmar
simplesmente usar a força para reprimir as dife- que regimes democráticos não resolvem tudo,
renças e controlar os grupos inferiores, passa a se mas abrem possibilidades de aprofundamento
responsabilizar pelo estabelecimento de regras de progressivo da igualdade entre os seres huma- 1 Texto apresentado no En-
contro Nacional do Fórum
negociação dos conflitos – isto é, de negociação nos, com a vantagem de, não sendo regimes Nacional de Reforma Urbana, rea-
das diferenças hierarquizadas – e garantir que de força, permitir que nesse movimento sejam lizado de 6 a 8 de junho de
2003, no Instituto dos Arqui-
essas regras serão cumpridas. preservadas as diferenças entre os indivíduos e tetos do Brasil, Rio de Janeiro.
os grupos, isto é, as características particulares popular, na prática a teoria não é outra, porque
que eles mesmos prezam. essa teoria não é acadêmica apenas. Ela não é
A negociação mencionada, característica neutra nem se situa fora da prática, pois, além
dos regimes democráticos, se desenvolve no que de teoria, é um ideal (e, como qualquer ideal,
se chama de espaço público. No espaço público, há quem a defenda e quem se opõe a ela). É,
superiores e inferiores expressam suas opiniões e ao mesmo tempo, definição e ideal, porque
reivindicam como se fossem iguais. Aliás, deve-se se trata de uma avaliação do que é e do que
lembrar que é exatamente isso que quer dizer precisa vir a ser. Ou seja, a própria definição da
cidadão e cidadania. Esse é o significado mais democracia já é crítica da situação que é capaz
básico e ao mesmo de identificar e propositiva sobre a intervenção
tempo mais geral das necessária. Por princípio, ela não pode se satis-
regras de convivência fazer com o que encontra na realidade.
que o Estado deve Portanto, vale a pena sublinhar: “demo-
manter. Assim, quan- cracia” não é um conceito estático, é dinâmico.
to melhor as agên- Não se refere a uma estrutura parada no tempo,
cias estatais fizerem congelada, cristalizada, mas a um processo.
isso, mais forte será Por isso, diz-se que a cidadania – termo que
o Estado, pois, por se refere ao conjunto dos atores no processo
causa da capacidade democrático – é uma conquista. Cidadãos(ãs)
de regular, controlar não nascem feitos(as), surgem na luta, no
e organizar as lutas conflito social que, dependendo de seu encami-
sociais, o monopólio nhamento, pode produzir uma democratização
que o Estado detém das relações sociais (a qual, como foi dito, passa
sobre o uso da força pela construção de um Estado forte em sua
é aceito e legitimado legitimidade). Nesse sentido, quando se fala em
por todas as pesso- democracia, o que está em questão são sempre
as (e, quando isso os problemas da democratização ou, para usar
ocorre, usar a força a expressão da moda, a “questão democrática”.
material monopoli- Se o cerne dos regimes democráticos é
zada para “resolver” a criação de um espaço público em que grupos
os conflitos torna-se superiores e inferiores negociem como iguais,
desnecessário). embora, na vida privada, decididamente não
Desses bre sejam iguais, a democracia requer a criação de
víssimos comentários um mínimo de condições de sustentação dos
que esboçam uma inferiores em seu enfrentamento com os supe-
definição de “demo- riores no espaço público. Para que os inferiores
cracia”, podem-se não sejam esmagados, não se revoltem e/ou não
tirar algumas con- abandonem a luta, é preciso alguma interferência
clusões: sobre a vida privada, de modo a impedir que os
a) regimes inferiores se enfraqueçam a ponto de que não
democráticos se as- possam exercer sua cidadania, isto é, negociar
sentam sobre dois pacificamente a redução das hierarquias sociais.
pilares: Estado forte, Isso se chama de política social, que não é uma
no sentido de aceito e legitimado, e dádiva gratuita do Estado, mas o resultado de
esfera pública ampla; pressões dos inferiores, até certo ponto aceitas
b) regimes democráticos têm uma voca- pelos superiores.
ção para aprofundar progressivamente Desse modo, vê-se que política social e
a igualdade social, sem impor uma regime democrático são termos indissociáveis, pois
homogeneização forçada; um é a condição prática e concreta do outro. Na
c) regimes democráticos “pacificam” a realidade, os conteúdos, as formas, as dimensões
luta dos inferiores pelo aprofund a da política social constituem a substância da ques-
mento da iguald ade social. Estim ulam tão democrática a cada momento.
o conflito sem transformá-lo em guer- Quero insistir na afirmativa de que a
ra. política social é, portanto, uma condição da
Tudo o que foi dito é apenas a definição, negociação democrática e da expansão da
a teoria. Mas, nesse caso, ao contrário do ditado cidadania (e não um simples apoio mais ou
22 Democracia Viva Nº 22
Cidadania, democracia e justiça social
* Luiz Antonio Ao mesmo tempo, outros avanços tam- legais em situações de fato.
Machado da Silva bém identificáveis, até mais abrangentes, têm Dessa forma, o Estado brasileiro, que,
Sociólogo, professor sido obtidos no que diz respeito à legislação ao contrário do que às vezes se diz, é fraco em
do Instituto de Filosofia sobre os terrenos urbanos, às condições de virtude de sua incapacidade secular de produzir
e Ciências Sociais da edificação imobiliária, entre outras coisas (basta uma política social que dê sustentação ao exer-
Universidade Federal pensar no Estatuto da Cidade). Porém, a prática cício da cidadania pelos inferiores, se fortalecerá,
do Rio de Janeiro apoiada nessa nova bateria de instrumentos le- recuperando sua legitimidade e, assim, sua capa-
(UFRJ) e do Instituto
gais ainda permanece muito rarefeita e continua cidade de intervenção.
Universitário de
dependendo de pressão social. Caso haja convergência entre a pressão
Pesquisas do Rio
Não existe bola de cristal, mas é possível dos inferiores e a disposição dos órgãos públicos
de Janeiro (Iuperj)
da Universidade
sentir um otimismo, ainda que cauteloso. Tudo federais de responder favoravelmente a ela, isso
Candido Mendes indica que existe forte disposição das agências es- gerará um círculo virtuoso de democratização da
tatais controladas pelo governo federal de apoiar sociedade brasileira, em particular das cidades
as disputas no espaço público que visam expandir brasileiras.
as condições de exercício da cidadania – o que
pode corresponder à transformação de situações
de direito, legalmente sustentadas, e, ao mesmo
tempo, à transformação de simples possibilidade
Questão semântica
Durante debates que se seguiram à apresen-
tação deste texto, fui questionado quanto ao
todos os dispositivos de exploração e domina-
uso do termo “inferiores”, que seria uma des-
ção. Preferi, e prefiro sempre, não tapar o sol
qualificação política e moral da população
com a peneira: ao contrário do que pensam
trabalhadora. Por uma questão de respeito
os(as) que me criticam, considero que o uso
aos(às) meus(minhas) interlocutores(as), que
de qualquer outro termo – foram-me suge-
só aumentou em virtude da crítica de tom
ridos “excluídos(as)” e “oprimidos(as)”, e eu
elevado, e porque, na aparência, ela é perti-
poderia acrescentar “grupos dominados”,
nente, gostaria de fazer algumas observações.
“setores subalternos”, que também são de uso
Talvez tenha passado despercebida a
corrente – que não “inferiores” para designar
minha insistência no fato de que o elemento
os grupos que estão embaixo seria um eufe-
de força sempre presente no convívio social
mismo que não tem nada de política ou mo-
acaba por transformar as diferenças geradas
ralmente neutro, pois sempre carregará uma
na interação em hierarquias. Ora, quem diz
conotação justificadora dessa posição. Insisto
hierarquia está dizendo que há posições
que “inferiores” é o termo que constata, da
superiores e inferiores. Por sua vez, posições
forma mais crua possível, essa iniqüidade que
não são simplesmente lugares vazios, já que
é tratar hierarquicamente as diferenças. Se os
estão sempre preenchidas por grupos, cate-
outros termos, evidentemente, não impedem
gorias sociais etc. Portanto, aqueles(as) que
a indignação – esse sentimento que está na
estão embaixo são inferiores. Isso não os(as)
raiz de qualquer mobilização contra o statu
desmerece, porque é uma constatação, e não
quo –, acho que uma descrição sem rodeios
um julgamento.
já é um passo na direção dela.
Palavras são terrivelmente traiçoeiras,
porque a linguagem é a fonte de sentido de
Referências bibliográficas
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Cidade escassa e violência RIBEIRO, Luiz Cesar de Q. Dos cortiços aos condomínios
urbana. Rio de Janeiro: Iuperj, 1995. (Série Estudos, n. 91). fechados: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de
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Não publicado. 1994.
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(Org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002. Janeiro: Campus, 1987.
24 Democracia Viva Nº 22
JUN 2004 / JUL 2004 25
MUNDO P ELO MUNDO PE
Jamile Chequer
A saga da União Européia (UE) Uma constante em países que pas- Nos dias 16 e 17 de junho, aconte-
em relação aos organismos gene- saram por muitos anos de guerra é a ceu o encontro da Organização para
ticamente modificados (OGMs) luta para reconstruir as escolas. Na Segurança e Cooperação na Europa
continua. No início de junho, foi Libéria, que conviveu até 2003 com (Osce), entidade da União Européia
imposta uma moratória na aprovação 14 anos de guerra civil, a situação (UE). A proposta foi verificar a
da entrada da soja GT-73 nos países- escolar é tão frágil quanto a paz relação entre propagandas de racis-
-membros. A justificativa é a preo- bélica instalada recentemente. Das mo, xenofobia e anti-semitismo na
cupação sobre o impacto ambiental 2.400 escolas no país, apenas 20% Internet com crimes de ódio. O foco
e a segurança que a comida deve conseguiram sobreviver aos anos de foi em leis, e discutiu-se a identifica-
apresentar. Ainda que a Comissão conflitos. Isso resultou em uma taxa ção de possíveis parceiros para lutar
Européia tenha baseado a sua apro- de alfabetização de apenas 28%. De contra esse tipo de acontecimento,
vação na “ciência”, depois que uma um total de 1,5 milhão de crianças além da promoção da tolerância pela
perícia em segurança alimentar da esperadas no ensino fundamental, Internet. “Devemos trabalhar juntos
UE declarou que o milho BT-11 é apenas 50% estão freqüentando as para identificar novas maneiras de
seguro para consumo humano, há aulas. No entanto, a estimativa de combater propagandas e sites de ódio.
quem discorde. É o caso da orga- crianças-soldados durante os 14 Devemos proteger nossas crianças
nização Amigos da Terra, que con- anos de guerra foi de 800 mil. e jovens das mensagens cruéis de
testa essa segurança alegando que Completando esse panorama, há ideologias racistas, anti-semitas e de
a Monsanto, empresa responsável salas de escolas públicas com cem intolerância”, defendeu o ministro
pela semente transgênica, falhou estudantes, falta de livros, salários de Estado Willie O’Dea, que repre-
em provar a segurança ambiental. medíocres ao corpo docente, entre sentou a UE no encontro.
Aliás, a organização foi mais outros problemas. A Libéria tem Relatórios da Comissão Nacional
longe. Em seu site, conta que um es- contado com apoio de instituições Consultiva dos Direitos Huma-
tudo “escondido do público” da soja e organizações internacionais, tais nos, divulgados em 17 de junho,
transgênica feito com ratos mostrou como o Fundo das Nações Unidas apresentaram as características dos
um aumento de 15% no peso do para a Infância (Unicef), que, no sites e das declarações racistas na
fígado dos roedores. Diz a organi- ano passado, começou a ajudar com Internet. Segundo o jornal Le Mon-
zação que “conselheiros do governo cerca de US$ 20 milhões em livros, de, o estudo estatístico mostra que
do Reino Unido, conhecidos por lápis etc. pessoas árabes e mulçumanas são
suas posições pró-OGM, pediram Os problemas não param por aí. mais citadas em mensagens de ódio.
uma explicação satisfatória sobre A última revisão do currículo escolar Pelos sites de busca, 6.210 mensa-
esse efeito colateral em potencial foi em 1996, incluindo o ensino de gens desse tipo foram encontradas
observado nos ratos...”. Também tópicos como HIV/Aids e educação usando termo pejorativo para se
alertam que a Comissão Francesa para a paz. Porém, alguns nunca referir às pessoas negras e àquelas
para Engenharia Genética criticou foram tratados como merecem. que fazem trabalho pesado. Termos
a maneira como a Monsanto fez os racistas para designar pessoas judias
Fonte: IPS
testes, observando que a duração foi e italianas ficaram em segundo e
de apenas 28 dias, em vez dos 90 terceiro lugares, respectivamente.
dias normalmente utilizados.
www.eu2004.ie
www.europa.eu.int
26 Democracia Viva Nº 22
LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO
Na sua 11 a edição, o Relatório Lançado às vésperas do Dia Mun- Uma em cada nove meninas morre
Mundial de Desastres 2003, lança- dial de Refugiados, em 20 de no período da gravidez ou durante
do na segunda quinzena de junho junho, o Relatório Mundial de o parto, mas apenas uma em cem
pela Federação Internacional Cruz Desastres 2003 traz à tona também consegue terminar a quarta série no
Vermelha e pela Red Crescent So- a discussão em torno do conceito sul do Sudão. Esse e outros números
cieties, alerta para os esforços contra de refugiado(a). Lembra que a alarmantes foram divulgados pelo
o terrorismo que estão trazendo Convenção das Nações Unidas para Fundo das Nações Unidas para a
dilemas éticos que tratam direta- Refugiados, datada de 1951, prote- Infância (Unicef) no Dia da Criança
mente da legitimidade das agências ge apenas as pessoas que cruzam Africana, em 16 de junho. Com uma
humanitárias. O documento destaca fronteiras internacionais e têm um população total de 7,5 milhões, pelo
que financiadores e agências têm medo bem fundamentado em serem menos 95 mil crianças com menos de
privilegiado o socorro aos confli- perseguidas se voltarem para casa. 5 anos morreram no ano passado na
tos de estratégia política, como a Milhões de pessoas, forçadas a região. O mais grave é que a maior
guerra no Iraque e no Afeganistão, deixar seus lares por encontrarem parte das causas de morte era de
e menos a emergências em países condições adversas em seu local de doenças que podem ser prevenidas.
como Angola, Somália e República origem, estão desprotegidas. “Am- O Sudão passou por 21 anos
Democrática do Congo. plamente desprotegidos pela lei e de guerra, e o resultado são taxas
A reconstrução do Iraque recebeu por instituições internacionais, sua terríveis de desnutrição, de não-
cerca de US$ 1,7 bilhão. No entanto, situação é um desastre esquecido”, -conclusão da quarta série, de
para reverter a fome de 40 milhões diz o documento. A estimativa é de pré-natal, entre outras. O Unicef
de pessoas em 22 países africanos, 16 milhões de refugiados(as). chama a atenção para o processo
conseguiu-se apenas o total de US$ Porém, muitas pessoas fogem de de paz no país que se aproxima
1 bilhão. Apesar dos apelos da Fe- desastres naturais, violência, entre do seu estágio final. Além disso,
deração Internacional em setembro outras situações, e não são consi- lembra que a necessidade de pro-
de 2002, por exemplo, para ajudar 4 deradas refugiadas. Estima-se que mover a sobrevivência infantil e
milhões de pessoas em Angola que as pessoas que não conseguiram melhoria no quadro de saúde devem
dependem de financiamento inter- sair do país, mas estão deslocadas ser prioridade da sociedade civil e
nacional para sobreviver, em quatro internamente, são em torno de 25 de governantes. “Sabemos que é
meses apenas 4% do necessário foi milhões. possível promover muitas melhoras
conseguido. Também há um aspecto in- nas vidas das crianças sudanesas se
“Estamos encarando uma de- teressante destacado. São os(as) o processo de paz for um sucesso.
sigualdade na prática humanitária “migrantes de ambiente”, ou seja, Essa geração pode ser uma geração
global e muitos conflitos e desastres são aquelas pessoas que fogem de de sorte”, declarou Bernt Aaesen,
têm sido esquecidos. As comunida- desastres naturais ou estão à margem chefe de operações do sul do Sudão
des de ajuda e doadores estão com- de projetos de desenvolvimento, do Unicef.
prometidos em providenciar ajuda como a construção de uma rodovia.
baseados na imparcialidade. Devem Das 25 milhões de pessoas nessa si-
agir onde é mais necessário”, alerta tuação, 4 milhões tornam-se vítimas
Juan Manuel Suárez, presidente da do tráfico humano.
Federação Internacional.
Haiti – uma
crise social
e
Às vésperas de 2004, o Haiti passava – e ainda passa – por uma crise sem precedentes
que ameaçava as próprias bases da nação. Após as malogradas eleições de 2000, dois
grupos políticos começaram a travar uma violenta e impiedosa batalha pelo controle dos
aparelhos de Estado, afastando-se da solução dos problemas de base dos quais todos,
28 Democracia Viva Nº 22
acional
Essa crise sociopolítica vivida pelo Haiti se ca- Vulnerabilidade de grupos sociais3
racteriza por:1
Essa situação de não-governabilidade, de
• um ambiente de terror onde os direitos violência institucionalizada e de insegurança
humanos, principalmente o direito à vida foi certamente um passo a mais para o agra-
e às mais elementares liberdades cidadãs, vamento das condições socioeconômicas, já
são desrespeitados; precárias, da população e para a deterioração
• a sistemática da repressão a passeatas pací- das condições macroeconômicas e macrosso-
ficas contra a política do governo no poder, ciais do país.
exercida por forças policiais e grupos civis De acordo com o Programa das Nações
armados contra a população civil; Unidas para o Desenvolvimento/Pnud (Relató-
• grandes dificuldades das vítimas de violên- rio sobre o desenvolvimento humano, 1998)
cia em apelar à justiça, dando lugar a uma e com o Banco Mundial (Haiti: the challenges
impunidade institucionalizada, que resultou of poverty reduction, 1998), ao menos 75% da
em crescimento de atos de intimidação, população total do país vive abaixo do limiar
assassinatos políticos, agressões e abuso de pobreza absoluta, com uma renda média
sexual de mulheres; per capita de US$ 250, muito inferior à média
regional (US$ 3.320) e oito vezes menor do que
• uma situação de insegurança generalizada,
a da República Dominicana (US$ 1.945). Essa si-
da qual são vítimas todas as camadas da
tuação de pobreza atinge particularmente 80%
sociedade haitiana.
da população rural, ou seja, aproximadamente
Os fatos ocorridos no cenário socio 800 mil pequenas propriedades agrícolas fami-
político haitiano são a expressão de uma liares, cuja renda anual de US$ 100 é bastante
dinâmica política que tende a converter o país inferior à média nacional. Outras vítimas são
naquilo que é conhecido, no atual jargão das as mulheres: elas são chefes de família de 36%
megapotências, como “entidade caótica ingo- dos lares haitianos (famílias monoparentais, das
vernável”, com o objetivo de reforçar a neces- quais 26% estão nos campos e 46% em meio
sidade de colocá-lo sob tutela. O crescimento urbano) 4 e garantem a sobrevivência diária
do banditismo e dos assassinatos, a “quime- de suas famílias com a renda gerada no setor
rização” da sociedade pela manipulação das informal e/ou nas indústrias de terceirização
camadas mais pobres e a ameaça de intervenção ou de montagem, nas quais elas representam
das forças armadas são algumas manifestações a maioria da mão-de-obra contratada e não-
dessa situação. A elas se juntam outras for- -qualificada, com um salário diário mínimo cin-
mas de violência geradas pela estrutura social co vezes menor que o dos homens empregados 1 Declaração das ONGs nacio-
interna injusta e pelas relações desiguais do no mesmo setor. nais e internacionais no Haiti
(“Haiti, no limiar de uma guerra
Haiti com outros países. Paralelamente à luta Nos últimos dez anos, assistimos a uma civil generalizada”), de 2004.
pela ocupação do aparelho de Estado, esse diminuição espetacular do poder de compra 2 Segundo o texto “O CSIL diz
projeto toma forma e seus diferentes atores se da maioria dos consumidores e consumidoras, não à violência”, do Collectif
Socialisme Identité et Liberté (CSIL
delineiam: uma elite política mais preocupada com erosão progressiva do salário mínimo real – Coletivo Socialismo, Identidade
com o poder do que com seu engajamento no e Liberdade), de 2001.
durante o período de 1990 a 1998 e redução
país, grupos sociais sedentos de lucro, potências do número de oportunidades de trabalho 3 Conforme o Country Strategic
Paper, de 2000, da ActionAid
estrangeiras que se apresentam como especta- (fechamento das empresas públicas e privadas Haiti.
doras e/ou mediadoras da “crise”, mas que, na em virtude da recessão econômica, das polí- 4 Como aponta Maria Correia
no texto “Gender and poverty
realidade, manipulam sub-repticiamente contra ticas de austeridade pública, da instabilidade in Haiti”, incluído na publicação
os interesses coletivos.2 política etc.). Essa conjuntura causa, em chefes Haiti: the challenges of poverty
reduction, do Banco Mundial,
de família, um sentimento de risco iminente, de 1998.
insegurança econômica e incapacidade de sa- tes somente cobrem 29% das necessidades da
tisfazer as obrigações familiares básicas, tanto população. A taxa de escolaridade no primário
em períodos de normalidade como em períodos é da ordem de 56%. O mais preocupante é o
de emergência, em decorrência da ausência de grande índice de evasão escolar. De cada cem
política nacional de segurança social. Uma outra crianças que ingressam no ensino fundamental,
manifestação evidente desse estado de coisas somente 67 concluirão o ciclo básico e apenas
é a pauperização acelerada de trabalhadores uma delas passará na segunda parte do exame
e trabalhadoras dos níveis inferiores da classe de conclusão do ensino médio.
média, originando rei- Em decorrência das turbulências socio
vindicações salariais de políticas desses últimos anos (2000–2004), os
vários setores (docentes indicadores de qualidade de vida regrediram
de escolas públicas, fun- mais uma vez de forma alarmante. A situação
cionários e funcionárias nutricional degenerou-se brutalmente atingindo
públicos de baixo escalão níveis críticos: 23% das crianças com menos
e outros). de 5 anos sofrem de má nutrição crônica, e os
Apesar das taxas relatórios das instituições locais mencionam um
positivas de crescimento aumento de 30% dos casos de má nutrição se-
da economia nacional no vera em algumas regiões do país. Os custos de
fim da década de 1990 produção no setor agrícola não cessam de evoluir
(3,1 e 2,2, em 1998 e em decorrência do aumento de mais de 100% do
1999, respectivamente),5 preço dos insumos agrícolas. O funcionamento,
as desigualdades sociais já precário, das atividades econômicas é algumas
permanecem fortes, com vezes perturbado, reduzindo a zero os esforços
45% da renda nacional de algumas poucas pessoas. As esperanças de
nas mãos de somente melhoria da segurança alimentar, assim como a
1% da população, ao consolidação da produção nacional, sofrem as
passo que 36% da renda conseqüências negativas desse fato.
nacional fica nas mãos Com índice de crescimento igual a
de 85% da população. zero durante o ano fiscal de 2002–2003, a
A precariedade da economia confirma uma tendência à regres-
situação econômica de são que perdura há várias décadas. Em 2003,
trabalhadores e trabalha- a Organização das Nações Unidas para a
doras gera, assim, uma Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em
maior vulnerabilidade so- inglês) estimou em 3,8 milhões (quase 50%
cial que se expressa nos da população) o número de pessoas que não
reduzidos indicadores so- conseguiam se alimentar apropriadamente.
ciais de desenvolvimento A situação tornou-se ainda mais difícil após
humano registrados no um aumento médio de 130% nos preços de
Haiti. Isso coloca o país venda dos derivados de petróleo em janeiro e
em situação desfavorável fevereiro de 2003. Isso provocou uma explosão
em relação a outros países dos preços das commodities e uma inflação que
da área de livre comércio se aproximou dos 40% nos primeiros meses
e evidencia suas grandes de 2003. O déficit fiscal, assim como o déficit
similaridades com países da balança comercial, atingiu níveis altamente
da África subsaariana. preocupantes. A desvalorização acelerada da
Aproximadamente, 63% moeda nacional, a gurde, que, em menos de um
da população total não ano, de 25 passou a valer 45 por US$ 1, afetou
tem água potável, e 40% brutalmente o desenvolvimento das atividades
estão privados de atendimento médico. Com um da microfinança, válvula de escape principal da
consumo calórico médio inferior à média regional, maioria de mulheres dos meios urbano e rural
a insegurança alimentar tornou-se endêmica e que lança mão das atividades informais, em um
recorrente, tanto no que diz respeito à sua dis- ambiente muitas vezes inseguro, para garantir
ponibilidade quanto à qualidade dos alimentos. a sobrevivência de suas famílias.
Apesar de ter ocorrido um aumento sensível dos
5 Segundo dados do Banco investimentos no setor da educação durante
Mundial em “Overview on
Haiti”, de 2000. esses últimos anos, as infra-estruturas existen-
30 Democracia Viva Nº 22
Haiti – uma crise social e existencial
Crise de sobrevivência
A situação atual do Haiti é crítica e an-
gustiante. A deterioração dos indicadores
comunidade urbana que está em jogo, que
econômicos e sociais, o declínio constante
está sendo ameaçada. Vivemos uma crise
da produção desde 1999, o caráter agudo
de sobrevivência porque atingimos o ponto
da crise do meio ambiente, a deterioração
crítico de desequilíbrio ecológico; porque até
da qualidade de vida das massas urbanas e
os mecanismos artificiais, elaborados durante
rurais, o aumento da insegurança e da vio-
décadas para subsistir ao desmoronamento
lência contra pobres e mulheres, a situação
de nosso biótipo, cedem sob os ataques
de pobreza da maioria da população e a
conjugados de uma modernização barata,
decadência das instituições, tudo faz pensar
da inconsciência de dirigentes políticos e da
em um país agonizante. A crise atual do Haiti
“quimerização” perigosa de algumas camadas
é mais do que política, é vital. Ela é mais do
da população.
que estrutural, é essencial. E, bem mais do
que econômica, é existencial. É nossa própria
existência, como povo, como nação, como
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Haiti – uma crise social e existencial
*Edele Thebaud
Diretora-execultiva da
Modo soberano de decidir ActionAid Haiti
Em 2004, ano do bicentenário da inde-
pendência do Haiti, o poder de decidir
deve ser exercida respeitando-se a soberania
sobre o futuro na nação ainda foge aos
nacional e os direitos dos povos à autode-
dirigentes políticos atuais. A ocupação do
terminação. Os princípios de soberania e
território nacional por forças estrangeiras
de dignidade nacionais, ainda na ordem
sob a direção da ONU (Organização das
do dia, devem ser promovidos por patrio-
Nações Unidas) é prova disso. A partir dessa
tas num esforço constante para provar ao
constatação, é necessário definir o que é
mundo inteiro que podemos nos governar,
verdadeiramente importante na luta demo-
que temos nosso projeto e pretendemos
crática, nacional e popular: a reconquista
protegê-lo, defendê-lo e reabilitar nosso
de nossa capacidade de decidir de modo
espaço próprio de vida.
soberano sobre os nossos destinos. Nessa
perspectiva, a solidariedade internacional
é essencial. Essa solidariedade, contudo,
VISTA
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22
A mineira Cleonice Dias está no olho do furação de um dos problemas
mais graves da cidade do Rio de Janeiro: a falta de cidadania a que
são expostos moradores e moradoras de favelas. Líder comunitária
da Cidade de Deus (bairro pobre da Zona Oeste), que se tornou
conhecido nacional e internacionalmente depois do sucesso do filme
homônimo de Fernando Meirelles e Kátia Lund, ela vivencia uma
nova esperança de inclusão social para a comunidade. Integrante
do Comitê Comunitário da Cidade de Deus e uma das diretoras da
ONG Centro de Estudos e Ações Culturais e de Cidadania (Ceacc),
Cleonice faz parte de um grupo que elaborou e vem tentando
executar o Programa de Desenvolvimento Comunitário Sustentável,
a ser implementado até 2009.
“Todas as nossas propostas são para enfrentar anos de
omissão e negligência do poder público quanto às nossas questões
estruturais. Mesmo contando com parceiros da iniciativa privada
– o que é ótimo –, o governo é o devedor principal”, afirma.
O projeto é inovador, pois se distancia dos modelos
assistencialistas e promove a discussão entre as pessoas que vivem
o problema. Além disso, ele tem tudo para se transformar em uma
bela experiência de participação cidadã. A decisão de reivindicar
para a comunidade a escolha sobre quais políticas públicas devem
ser implementadas e de que maneira é o primeiro – e grande –
resultado.
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Cleonice Dias
Como era sua relação com Clínica da Gávea. Naquela época, o tratamento
seu pai e sua mãe? era eletrochoque. Quando ela voltou do Rio,
Cleonice Dias – Meu pai sempre foi uma para casa, não sabia nossos nomes direito, não
figura muito decorativa. Ficava muito em se- sabia quantos filhos tinha. Voltou magrinha: de
gundo plano na nossa vida. Era um mineiro 120 quilos, ela voltou com 60 quilos.
quieto, com vários filhos fora do casamento, Acho que, até hoje, eu e meus irmãos não
de pouca fala e muitos amores. Quando já es- refletimos muito sobre tudo isso que passamos.
távamos adultos, ele tentou agredir minha mãe Sei que não quero sofrer como ela, mas reco-
fisicamente. Então, meus irmãos pediram para nheço que é dessa história que veio a minha
ele sair de casa. Se dependesse da mamãe, que personalidade. Admiro ter tido ela como espe-
era uma mineira muito tradicional e aceitava lho para eu ver fraquezas e virtudes. E, apesar
viver uma relação conflituosa e infeliz, enquanto de tudo isso parecer muito triste, hoje, quando
estivessem vivos ficariam juntos. os irmãos se encontram, há festa e gargalhadas.
Cresci vendo a minha mãe tirar goteira de Na verdade, também subvertíamos todas as or-
telhado, consertar fio de ferro, chuveiro, fazer dens, fazíamos tudo o que não podia ser feito.
arroz com bofe moído para termos um pou- Você assumiu a responsabilidade
quinho de proteína para comer. Ela costumava por seus irmãos
lavar roupa de madrugada e não a colocava e teve que
no varal para os vizinhos não perceberem trabalhar?
que estava lavando roupa para fora. Mineiro Cleonice Dias –
é assim: passa por tudo, mas ninguém pode Quando minha mãe foi
saber, guarda calado. No caso da minha mãe, internada, eu tinha 14
o somatório de tanta infelicidade foi um câncer anos, mas já trabalhava
e nove filhos criados praticamente só por ela. desde os 11 anos. Na
Então sua mãe era a chefe minha cidade, existia
de família? uma instituição chama-
Cleonice Dias – Era uma leoa, marcou da Amar – Associação
profundamente tanto de forma positiva como Municipal de Amparo e
negativa. Imagine uma mulher com tantos Recuperação – para tirar
filhos, com tanta responsabilidade na mão e os mendigos da rua, em
infeliz... O que ela faz? Bate em quem? E como geral pessoas que vinham
é o filho mais velho? Apanha pra caramba. E da zona rural. Essa insti-
apanhei tanto! Apanhava porque não cuida- tuição recolhia dinheiro
va dos irmãos, porque não fazia o trabalho entre os moradores, e eu
direito, porque um irmão quebrou o copo... trabalhava nesse recebi-
Apanhei tanto que poderia estar no lugar de mento. Eu era cobradora,
Nossa Senhora da Aparecida, poderia ter sido fazia essa cobrança à
santificada! Mamãe tinha 120 quilos, e eu, noite e ganhava 1% de
miudinha, me defendia usando a palavra. Acho tudo que recolhia. Nessa
que foi assim que aprendi oratória. Ela batia e época, eu já comprava
eu esculhambava, falava, gritava, reagia assim. sapatos para os meus
Talvez graças a isso não fiquei doente, e ela não irmãos.
ficou mais doente do que já estava. Ela tinha Foi em busca de
como descarregar, e eu também tinha como uma vida melhor
me defender. Eu protegia meus irmãos como a que
galinha protege os pintos. Quando ela ia bater você veio para
nos meus irmãos, eu os abraçava e gritava até o Rio
ela desistir. de Janeiro?
Ninguém se revoltou contra esse Cleonice Dias – Não, vim para o Rio em
procedimento da sua mãe? 1975, já com 21 anos. Foi por causa de uma
Cleonice Dias – Nossa revolta era extrava- história de amor. Eu me apaixonei por um ho-
sada no grito. Quando ela levantava o braço, mem 16 anos mais velho que eu, negro e que
nós já gritávamos. Os vizinhos chegaram a cha- morava no Rio. O Dirceu foi seminarista e não
mar meus avós e falaram: “Se vocês não derem pôde se ordenar porque seu pai e sua mãe não
um jeito nisso, a gente vai chamar a polícia”. eram oficialmente casados e também porque
Foi por causa disso que mamãe foi internada na ele sofria do coração. Ele fez até o terceiro
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até 4 anos. Temos enormes índices de gravidez uma participação maior da comunidade no
precoce e desemprego, além da desnutrição controle social, na questão da verba, na quali-
infantil, da evasão escolar etc. É uma demanda dade do atendimento e na discussão sobre as
que requer do poder público ações bem concre- propostas de saúde. Na questão da educação,
tas. Nada de paliativos; isso já temos. Queremos a luta é pela qualidade do ensino. Queremos
reverter esses esquemas que reproduzem as um projeto político-pedagógico que leve em
condições de pobreza. conta a nossa realidade. Uma reivindicação bem
Como é formado o comitê? específica de homens e mulheres da Cidade de
Cleonice Dias – Atualmente, somos 20 Deus é poder estudar mais, ter uma escola que
instituições, algumas flutuantes. Cada uma funcione à noite, mas que não seja supletivo. Na
abriu mão do seu mundinho e das disputas questão da comunicação, queremos dominar
pela hegemonia e entendeu que devemos ser todo o processo de comunicação, queremos ter
cúmplices nessa proposta de desenvolvimento. rádio, jornal e TV como forma de multiplicar
Nós nos reunimos há quase um ano e meio a capacitação. Acreditamos também que, com
para discutir questões de educação, cultura, comunicação de qualidade, vamos contrapor o
comunicação, meio ambiente, saneamento, modelo que está aí. Que negócio é esse de “A
habitação, emprego, trabalho e renda. Também gente se vê por aqui”, como diz a Globo? Que-
temos uma área de promoção social que en- remos nos ver a partir do local em que estamos.
quadra temas ligados a crianças, adolescentes, Na área da cultura, queremos formatar um
mulheres, raça, terceira idade e juventude. projeto que discuta a nossa identidade local.
Ele foi formado por causa da repercussão Que características nos fizeram resistir tanto?
negativa que o filme Cidade de Deus causou Viemos de seis grandes favelas, de 20 outras
na opinião pública. Na época em que o filme pequenas, fomos colocados em um conjunto
concorria à indicação do Oscar, o MV Bill [rapper habitacional horizontal, nos espalhamos e
da Cidade de Deus] tornou pública a indignação viramos uma refavela. Resistimos à luta do
da comunidade, iniciando toda essa discussão tráfico, resistimos às enchentes, resistimos à
sobre um comitê de intervenção da Linha Amarela, resistimos à
instituições locais. ameaça da especulação imobiliária, resistimos
O filme trouxe para à ação do monopólio do transporte... A Cidade
nós a chance de de- de Deus é riquíssima, como tantas outras favelas
bater e dizer que ou bairros, em produção artística. Mas o que
não aceitávamos temos de mais forte, o que é a nossa cara? A
ser estigmatizados primeira forma de resistência da população
como moradores pobre é sempre resistir com a felicidade, com
de um lugar que só a celebração, com processos de arte.
tem marginalida- Temos uma parceria com alguns setores da
de, vagabundagem iniciativa privada, como Fenaseg, Fetranspor,
e violência. Essa foi Cobra Tecnologia, Fecomércio, Sebrae e Linha
a história contada Amarela. Também contamos com o Unicef, a
no filme; nós esta- Caixa Econômica Federal e algumas universida-
mos fazendo outra des. Estamos procurando meios para promover
história. Tudo isso a capacitação das lideranças e das pessoas
acabou gerando um comprometidas com a transformação real.
momento de muita Sabemos o quanto é importante gerir projetos
riqueza na Cidade de com responsabilidade, ética e transparência. O
Deus e que pode ser- processo é todo participativo, o que possibilita
vir de estímulo para o protagonismo e o empoderamento. No fundo,
outras comunidades. todas as nossas propostas são para enfrentar
Quais são as anos de omissão e negligência do poder público
propostas do quanto às nossas questões estruturais. Mesmo
programa de que os parceiros da iniciativa nos ajudem – o
desenvolvimento que é ótimo –, o governo é o devedor principal.
comunitário? E o que já foi implementado?
Cleonice Dias Cleonice Dias – Já temos dez turmas de
– Na área de saúde, alfabetização de adultos funcionando, um
estamos propondo jornal em processo de organização, o CDD
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dia-a-dia da comunidade. Para fazer curso e acontece, e você quer ficar longe. Comigo foi Participaram desta entrevis-
ta: Cândido Grzybowski, Irace-
aplicar, para buscar soluções viáveis com uma assim. Um dia um menino na Cidade de Deus ma Dantas, Marcelo Carvalho,
Itamar Silva, Leonardo Mello e
conexão maior, de país, de mundo. O Ceacc foi metralhado. Ele foi destroçado com tiros Rosana Heringer.
trabalha hoje com 400 crianças. Esse trabalho no rosto e a mãe o reconheceu pelo tênis. Eu Fotos: Marcus Vini
é demonstrativo para provar à comunidade, às pensei: “Vou estar na luta, quando eu puder,
famílias, ao poder público e aos parceiros que, eu volto”. Fui para Xerém trabalhar com as
com projeto, com seriedade, com participação, plantas na Pastoral da Saúde. Eu também tinha
conseguimos transformar, atingir as famílias um problema de saúde que precisava enfrentar
e ampliar direitos de cidadania. Temos uma e fui buscar as plantas e lutar na defesa da
parceria com a ActionAid e estamos buscando nossa biodiversidade. Começava a me integrar
outras parcerias com universidades, movimento cada dia mais nessa luta, quando a ActionAid
negro, movimento de mulheres. O Ceacc é uma exigiu que, no Ceacc, houvesse mulheres em
instituição provocadora de processos. sua equipe. Fui convidada e aceitei o desafio.
O que você pensa sobre
a eleição municipal?
Cleonice Dias –Tenho muita esperança,
mas sei que está difícil. É provável que o César
Maia emplaque outra vez. Os Jogos Pan-
-americanos são um exemplo de como a atual
administração trata a cidade. A Vila do Pan é
bem perto da Cidade de Deus, e isso poderia
ajudar muito a desenvolver a área, mas estamos
totalmente fora. Nós e qualquer favela que não
tenha um candidato ou uma liderança ligados
ao César Maia. A revitalização do cais do porto
é outro exemplo. A discussão sobre o projeto
não tem nada de participativo. Existem proje-
tos habitacionais previstos, mas não há uma
discussão com a população.
Mas jamais perderemos a esperança de
dialogar com a prefeitura e chamá-la para
essa nova forma de gestão. Pode não ser
agora, os prefeitos passam e temos o espaço
para dialogar e negociar. Se não for agora,
acumularemos forças e tentaremos com o
próximo prefeito. Pode ser que seja alguém
que acredite em outra forma de fazer política.
Por que você não mora mais
na Cidade de Deus?
Cleonice Dias – Moro em Xerém. Como
boa mineira, fui atrás do cheiro da água caindo
do céu e da terra molhada. E lá tenho direito
de comer couve sem agrotóxicos. Hoje, tenho
um padrão de vida e de dignidade do qual não
abro mais mão. Viver em Xerém é meu direito,
meu conforto, meu limite de ser. Voltar a tra-
balhar na Cidade de Deus é meu compromisso
com este país. Voltar a estar na luta é construir
identidade de povo. Não estamos construindo
a Cidade de Deus, estamos reconstruindo o
diálogo entre comunidades.
Quando o trabalho no Ceacc foi iniciado,
eu já tinha saído da Cidade de Deus. Quan-
do moramos em uma comunidade onde há
morte todo dia, pode até parecer que nos
acostumamos a ela. Mas, um dia, alguma coisa
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c r ô n i c a
Como as patas
de um cavalo
Tomada pelo medo crescente, jurara nunca Colegas falavam em assaltos, ela
mais sair de casa à noite. E, mesmo duran- achava que eram no Centro da cidade ou na
te o dia, expor-se na rua apenas o tempo Zona Norte. Vizinhos falavam em drogas e
necessário para desincumbir-se das tarefas tráfico, achava que era na favela. Um dia, viu
domésticas. Com o prédio gradeado, telein- um arrastão na praia – gritos, correria, areia
terfone e câmeras nos elevadores, sentia-se no olho, dezenas de pivetes roubando tudo – e
mais protegida. Porém, a leitura do jornal assustou-se. Mas pensou: “Coisa do verão”.
e o noticiário da TV traziam de volta o Depois, bateram a carteira do marido: “Foi
medo. Nos seus 66 anos, nunca vira nada pouco dinheiro; e não teve arma”, consolou-
parecido com o que acontece hoje no Rio de -se. Mais um ano e roubaram o carro do
Janeiro. Professora do nível médio, até se filho. Por sorte, não estava ao volante. Pouco
aposentar transitou de ônibus pela cidade, depois, a filha achou maconha na mochila
da Copacabana onde sempre viveu à Tijuca do neto. Só quando o filho da vizinha foi
onde lecionou. Exuberante e comunicativa, assassinado ao reagir a assalto, deu-se conta
ia sempre à praia e ao cinema, às vezes, ao de que girava no olho do furacão.
teatro e, mais raro, ao Canecão, com esti- Lastimou a época sem fé nem valores
cada para jantar. Escriturário, o marido ia e deplorou a perdição do mundo. Amaldiçoou
para a repartição de paletó sobre os ombros, os políticos que querem o poder pelo poder
lendo o jornal e assoviando “Os pobres de ou o poder para roubar. Condoeu-se do Rio de
Paris”. Nunca foram assaltados, ameaçados Janeiro, infelicitado por péssimos governan-
nem constrangidos. A paz liberava o humor tes. Como se explica – indagou entre lágrimas
e a alegria de viver. – tal degradação da cidade que todos amam?
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Como deixaram que a Princesinha do Mar rua. No sinal, ele abre o porta-luvas – “Ai, AlcioneAraújo
chegasse a esse ponto? O que fazer para livrar Deus, a arma!” –, tira a flanela e limpa o painel. alcionaraujo@uol.com.br
a Cidade Maravilhosa do pesadelo? Com a Alivia-se com o camburão que pára ao lado.
barba de molho, o marido vive silencioso, lê Mas, ao ver metralhadoras saltando pela janela,
o jornal em casa, veste e abotoa o paletó e volta o pânico. Adiante, encontra no retrovisor
nunca mais assoviou “Os pobres de Paris”. os olhos dele sorrindo. O coração bate como as
Nos seus abismos, o medo pede de- patas de um cavalo: “É sádico. Vai me matar
talhes. Acompanhando tudo pela imprensa, sorrindo”. Mal o carro pára, salta, esquece o
ela aprendeu o nome das favelas e pontos de troco e, sem se virar, entra correndo na clínica.
venda em disputa, dos chefes de quadrilha e Respira sozinha na fila à espera do ele-
seus rivais, dos bandidos presos e procurados, vador. Logo, um homem posta-se atrás dela. É
dos delegados e comandantes. Sabe as siglas de negro. Ela pressente e estremece. O elevador
batalhões e delegacias, o apelido de viaturas, chega, sem ascensorista. Ele se antecipa e segura
gíria de bandidos e jargão da polícia. No seu a porta, sorrindo. Emoções em turbulência, ela
pânico bem informado, vaticinou: “Com a não sabe o que fazer. Cerra os olhos e entra
condicional, Dudu vai atacar Lulu e retomar rezando. Dentro, o homem pergunta: “O andar,
a Rocinha”. E concluiu ciosa: “O bicho vai senhora?”. “E agora, meu Cristo?” Murmura
pegar, tá ligado?”. O marido ouviu, perplexo. com lábios trêmulos: “Cinco”. Ele aperta o cin-
Assombrada, não dormiu mais. Com co, a porta se fecha. Cabisbaixa, ela mal respira.
80 homens armados, Dudu parte do Vidigal Intui cada gesto dele: “Maria Santíssima! Ele
para a Rocinha. 1.300 militares ocupam os vai me estuprar. Oh, Senhor, meu Jesus Cristo!
morros. Instala-se a barbárie. A cada hora, Ele vai me espancar, me torturar! Oh, clemente,
mais mortos. Entre eles, Lulu. Agora, a Ro- oh, piedosa, doce Virgem Maria! Vai puxar a
cinha espera o ataque de Dudu, assim que a arma, minha santa! Rogai por nós, Santa Mãe
polícia sair. Após dias de pânico, ela sucumbe: de Deus!”. O elevador pára no quarto andar.
palpitações, falta de ar, insônia e inapetência. O homem sai. Ela suspira fundo, persigna-se.
Sem ter quem a acompanhe, parte so- Agradece a Deus. Trêmula e suada, irrompe no
zinha para a clínica. No banco de trás do táxi, consultório e desabafa a uma perplexa sala de
atenta a cada movimento do motorista – um espera: “Quase fui assaltada!”.
mulato sorridente –, recusa a oferta do ar- Sentiu-se aliviada da ameaça que não
-condicionado e pensa: “Quer fechar tudo pra houve. É sempre assim. Onde o medo faz
sumir comigo”, certa de que numa emergência, morada, a lucidez bruxuleia, a intolerância se
com janelas abertas, seus gritos chegariam à insinua e o preconceito salta das entranhas.
48 Democracia Viva Nº 22
ordem do dia. É mais do que tempo, portan- 1926 e 1969.
to, para que o assunto, complexo e delicado Na segunda parte, vem exposta, com
entre todas as pessoas, seja examinado em precisão e clareza, a organização pioneira e
profundidade, fora da pressão perturbadora modelar da Guarda Civil Metropolitana da
do noticiário sensacionalista sobre crimes capital paulista, para a qual muito contribuiu
hediondos ou sobre a organização de verda- o próprio autor. Aponta-se para a criação de
deiros Estados paralelos do banditismo nos uma corregedoria geral como órgão indepen-
bairros periféricos de nossas metrópoles. dente de fiscalização e controle interno; de
Teoricamente, os serviços policiais um regulamento disciplinar, que estabelece
podem ser classificados e organizados em três um regime de deveres e responsabilidades
espécies distintas: a polícia judiciária, a polícia eminentemente civis; de um plano de cargos e
de vigilância e a polícia de defesa civil (resgate de carreira, objetivando a valorização profissio-
de vítimas de acidentes e catástrofes, extinção nal dos membros da guarda; da reestruturação
de incêndios, controle de tumultos ou motins). dos serviços policiais, de modo a aprimorar
Num Estado federal como o nosso, a atuação preventiva e democrática; de co-
põe-se a questão de saber se tais serviços missões civis comunitárias, para o exercício
podem ser repartidos entre todas as unidades de um controle externo popular; do Conselho
da Federação, ou se eles devem, ao contrário, Interdisciplinar de Segurança Urbana, para a
ser reservados a uma só unidade ou a algumas integração das ações policiais preventivas ao
delas. Segundo a experiência, por assim dizer, conjunto das políticas sociais do município; do
universal, fora do âmbito local nunca haverá Centro de Formação em Segurança, para a educa-
uma boa polícia de vigilância, que zele pela ção profissional de agentes de segurança popular
segurança das pessoas em sua vida diária, não com base no sistema de direitos humanos. Tudo
só contra a delinqüência, mas também em rela- isso sem prejuízo de várias outras iniciativas do
ção aos riscos variados de dano coletivo. É nos maior mérito.
municípios, portanto, que deveria concentrar- Finalmente, na terceira parte, é discuti-
-se a organização desse serviço policial. da, com grande proficiência, a questão basilar
A Constituição brasileira de 1988, do estabelecimento de uma verdadeira política
porém, assim não decidiu. Ela atribuiu aos nacional de segurança pública para o nosso país.
municípios, mesquinhamente, tão-só a com- Como se percebe, é uma obra de singu-
petência para “constituir guardas municipais lar importância, que merece ser lida e meditada
destinadas à proteção de seus bens, serviços e não só pelos nossos governantes, mas também
instalações” (art. 144, parágrafo 8). Aí está o – e, eu diria mesmo, sobretudo – por forma-
tema central desse livro. Acertou o constituinte dores de opinião pública e líderes que atuam
em reservar aos municípios unicamente essa no povo. Pois a salvação política deste país,
atribuição na Política Nacional de Segurança? na dramática crise de confiança na democracia
Qual a realidade atual a esse respeito, e quais que ora atravessamos, depende, mais do que
deveriam ser as linhas mestras de uma reforma nunca, de nossa capacidade de organizar um
constitucional nessa matéria? atuante contrapoder popular, para controlar em
Na primeira parte, o autor lembra a permanência a ação dos governantes.
nossa tradição de abuso oligárquico, milita-
rista e patrimonial na organização das forças Fábio Konder Comparato
policiais. Abre, no entanto, uma importante Doutor honoris causa pela Universidade
exceção para a experiência da Guarda Civil de Coimbra, doutor em Direito pela
do Estado de São Paulo, que existiu entre Universidade de Paris, professor titular
ao
desenvolvimento:
um campo
de
Os direitos humanos condensam em si mesmos uma importante parte da história da
leis e exigidos nos tribunais, os direitos humanos estão no centro das lutas sociais – nas
50 Democracia Viva Nº 22
Por surgirem em contextos específicos, no bojo dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
de processos necessariamente marcados pela ambos adotados pela ONU em 1966 – é reve-
diversidade política e cultural que caracteriza ladora da disputa e do que era possível naquele
o mundo, os direitos humanos algumas vezes momento. Somente na Declaração e Programa
são vistos como algo possível para algumas de Ação da Conferência de Viena sobre Direitos
sociedades, e não como conquistas de dimen- Humanos, em 1993, afirma-se categoricamente
sões universais. Para o resgate de sua dimensão a indivisibilidade dos direitos humanos. O di-
cosmopolita, algumas pessoas pensam que reito ao desenvolvimento, por sua vez, é mar-
os direitos humanos devem se inscrever e se cado pela divisão Norte/Sul e virou Declaração
reconceitualizar nos marcos do multiculturalis- sobre o Direito ao Desenvolvimento somente
mo (ver SANTOS, s.d.). Apesar disso, é preciso em 1986.1 Nesse campo, muita disputa ainda
reconhecer que, nas mais diversas culturas, está em curso.
mulheres e homens em luta por sua emancipa- Mas mesmo não tendo sido reconhecido
ção acabam por incorporá-los como referência de forma consensual, desde a Declaração sobre
para qualificar violações a que são submetidos o Direito ao Desenvolvimento, pela Assembléia
e buscar o que lhes é negado. O universalismo Geral das Nações Unidas de 1986, o direito ao
dos direitos humanos reside justamente na sua desenvolvimento passa a fazer parte integral do
capacidade catalisadora como expressão do rol de direitos humanos. Tal direito é reafirmado
humanismo que perpassa as diferentes cultu- de forma consensual na Conferência de Viena,
ras. Seu potencial questionador de estruturas, em 1993. O que falta então? Praticamente tudo.
relações e processos sociais será sempre motivo Mesmo não tendo ainda sido evidenciado em
de controvérsia. toda a sua radicalidade, o direito ao desenvol-
Tudo isso não deve impedir que os di- vimento põe em questão a (des)ordem interna-
reitos humanos sejam vistos como referência cional atual, na qual o desenvolvimento de uns
política e legal em permanente construção, países supõe o sub ou não-desenvolvimento de
fruto de tensões e contradições em ação. Para outros. A seguir, são abordados os limites e os
ficar apenas na história recente, vale lembrar enormes desafios para tornar possível o direito
que a declaração adotada pela ONU (Organi- humano ao desenvolvimento de todos os povos
zação das Nações Unidas) em 1948, no bojo do planeta.
dos traumas causados pela Segunda Guerra
Mundial, com todos os avanços que significou,
Na periferia da ordem dominante
surgiu como Declaração Universal dos Direitos
do Homem. Foi necessária muita luta por parte A questão do desenvolvimento como direito já
dos movimentos de mulheres na afirmação de carrega uma história complexa. No contexto
sua diversidade com igualdade de direitos para da Guerra Fria, o embate político, ideológico e
que o texto fosse renomeado como Declaração militar entre capitalismo e socialismo se impôs
Universal dos Direitos Humanos. Para além da como hegemônico e determinou uma visão de
forma da linguagem, está em jogo o sentido desenvolvimento mais próxima a crescimento
mais profundo e universal da conquista feita. econômico do que a mudança para maior jus-
No contexto da Guerra Fria, criou-se uma po- tiça social. Na periferia da ordem dominante se
larização entre direitos civis e políticos, de um estabelecem a teoria e o debate sobre desenvol-
lado, e direitos econômicos, sociais e culturais, vimento como estrutura e processo gerador de 1 Nota da editora: a Declaração
de outro (ALVES, 1996). A existência de dois desigualdade, até de dependência estrutural, em sobre o Direito ao Desenvol-
vimento está disponível no
pactos internacionais – Pacto Internacional dos que uns países são subdesenvolvidos para que endereço <www.ilanud.org.br/
doc20.htm>. Acesso em: 16
Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional outros possam ser desenvolvidos. Mais que um jun. 2004.
direito humano, o desenvolvimento era visto O sistema atual da globalização a serviço das
como um processo possível, desde que certas grandes corporações capitalistas produz abun-
condições econômicas e políticas fossem criadas. dância contra a própria humanidade.
No limite, até regimes autoritários, negadores Pior, defronta-se com uma economia
de direitos humanos fundamentais, foram legi- “cassino”, na qual a sorte de setores e povos
timados em vista da criação de condições para inteiros depende das meras possibilidades de
o desenvolvimento nos países da periferia da ganho imediato de alguns. Nessa economia
ordem bipolar existente. divorciada da sociedade, aumentam a concen-
A situação dominante hoje é outra. tração de renda e a própria exclusão social. O
Desde a década de 1980 – mas em particu- drama de migrantes é exemplar na revelação
lar na de 1990 –, após a queda do Muro de das contradições da globalização dominante e
Berlim, tornou-se hegemônica a globalização do empecilho que ela representa para se pensar
econômico-financeira conduzida pelas gran- em desenvolvimento, e muito mais em justiça
des corporações transnacionais, com base no social e democracia promotora de liberdade e
princípio do livre mercado. Como suporte e dignidade humanas. Num mundo que propaga a
legitimação ideológica da livre circulação de mercadorias, os seres humanos
globalização, alastrou-se enfrentam todo tipo de barreiras para circular
uma visão neoliberal na em busca da satisfação de suas necessidades e
qual o direito dos deten- afirmação de seus direitos.
tores de dinheiro e capital Talvez a expressão máxima dessa globa-
se sobrepõe aos direitos lização contra o direito ao desenvolvimento e,
humanos. Como conse- genericamente, contra os direitos humanos seja
qüência prática, flexibi a OMC (Organização Mundial do Comércio).
lizam-se direitos huma- Como organização multilateral, a OMC surgiu
nos, em particular tudo o para tudo submeter ao mercado, libertando-
que se refere ao trabalho, -o, por assim dizer, dos direitos humanos. Traz
desregula-se e se reduz dentro de si, por isso mesmo, a possibilidade de
o papel do Estado na um radical fracasso e de sua superação, pois a
economia, privatizam-se história humana é de fracassos com conquistas.
e abrem-se os mercados A lei da selva do mais forte, embutida na visão
nacionais. Como suporte e prática do livre mercado, tem vida curta. O
político e militar, o go- protecionismo, exatamente dos países desenvol-
verno estadunidense as- vidos, mostra os limites do livre mercado como
sume uma posição cada regra de convívio humano num planeta cada vez
vez mais unilateral e de mais interdependente. Além do mais, ele não
exercício de hegemonia passa de uma imposição, visando ao comple-
que não aceita contes- to domínio econômico de 90% da população
tação, de claras feições mundial condenada ao subdesenvolvimento.
imperialistas. Nunca é demais lembrar a destruição
Em relação ao di- provocada pelas políticas de ajuste estrutural
reito ao desenvolvimento, em termos da luta pelo direito ao desenvolvi-
cabe destacar o radical di- mento de muitas sociedades concretas. Impos-
vórcio que a globalização, tas num contexto de explosão da dívida externa
sob a égide do mercado, das nações mais pobres e fragilizadas e visando
provoca entre economia à adoção do conjunto de políticas do Consenso
e sociedade. Nunca a de Washington para viabilizar a globalização
humanidade produziu econômico-financeira, o ajuste estrutural do
tanto, mas não para satisfazer necessidades, Banco Mundial e, sobretudo, do FMI (Fundo
e sim para acumular. Passa-se fome não pela Monetário Internacional) levou a uma situação
falta, mas pela abundância gerida com vistas de perda da capacidade de formular políticas
ao ganho e à acumulação. Esse é um divisor de desenvolvimento na maioria dos países.
civilizatório, e não meramente histórico. Quando Trata-se de um atentado direto e explícito ao
direitos fundamentais à vida humana não são direito de desenvolvimento de diferentes povos
assegurados – é disso que se trata quando se no mundo. Essa é uma questão sobre a qual
fala em direito ao desenvolvimento –, não pela não é possível ser condescendente por parte de
escassez, mas pela forma de gerir a abundância, quem se move por uma visão ética humanista
surge um novo marco humano fundamental.
52 Democracia Viva Nº 22
Direito ao desenvolvimento: um campo de disputas
como base da vida. Num período curto de tempo, questão dos direitos em uma nova perspectiva.
passou-se de uma atitude meramente utilitarista O problema em relação a elas é o fosso entre as
dos recursos naturais, de extração pura e simples, instituições e as novas demandas da cidadania
sem limites, a uma atitude de uso sustentável e de planetária. Os governos e as próprias instituições
acesso compartido, conservando e renovando para multilaterais parecem distantes e imunes ao que
todas e todos, no presente e no futuro. Novamen- clamam cidadãs e cidadãos mobilizados nas
te, apenas se fala de compreensão e consciência ruas, em qualquer ocasião em que se reúnem,
do patrimônio comum ambiental, agora cada no G-8, nas assembléias do Banco Mundial e do
vez mais visto como um direito de todos os seres FMI, nas conferências da OMC ou nas próprias
humanos. Vale lembrar, porém, que grandes movi- conferências da ONU.
mentos de opinião precedem sempre grandes Nesse campo, florescem os novos movi-
mudanças históricas. mentos de cidadania, promotores dos direitos
Esses dois aspectos somados – e eles humanos. São múltiplas as iniciativas. Tem
necessariamente tendem a se integrar – consti- destaque o Fórum Social Mundial pela sua capa-
tuem as bases principais para a emergência da cidade catalisadora e por se organizar de forma
sociedade civil e de uma cidadania de dimen- autônoma, independentemente da agenda de
sões planetárias. Tanto um governos e organizações multilaterais. Trata-se
como outro obrigam a re- fundamentalmente de um espaço de encontro,
ver conceitos e práticas de de troca, de elaboração, visando potencializar a
desenvolvimento e até as ação de cada ator social, rede, coalizão ou cam-
próprias noções, culturas panha naquilo que já faz, não se substituindo
e estruturas políticas que nem se impondo a eles. Nesse sentido, o Fórum
lhes dão suporte. As idéias Social Mundial apenas alimenta a consciência de
de autodeterminação e humanidade e do patrimônio coletivo que cada
soberania, assim como consciência já traz. Ao facilitar isso, possibilita
de democracia, de bem ver que “um outro mundo é possível”, mundo
coletivo e espaço público, fundado nos direitos humanos, na democracia
não são aquelas legadas participativa e no desenvolvimento humano
pelo passado e que in- sustentável, de liberdade e dignidade para
fluíram muito no debate todas e todos. O Fórum resgata o sonho e a
sobre direitos humanos na utopia como forças transformadoras. E é isso
segunda metade do século que dá esperança, alimenta a emergência de
passado. novos direitos e requalifica os já conquistados.
Importa lembrar
ainda o esforço das Na-
ções Unidas, em particular
do Pnud (Programa das
Nações Unidas para o
Desenvolvimento), em
criar uma nova visão de
desenvolvimento por meio
da concepção de desen-
volvimento humano sus-
tentável. A integração dos
direitos humanos nessa
nova concepção põe a
ONU em sintonia com a
consciência emergente no
enfrentamento da globalização neoliberal (ver
PNUD, 1998). As próprias Cúpulas Mundiais
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio-92
e Johannesburgo-02, apontaram agendas fun-
damentais para se pensar o direito ao desenvol-
vimento em uma nova perspectiva. O Protocolo
de Kyoto e o Tribunal Penal Internacional são
outras iniciativas que devem estar presentes
como bases institucionais novas para tratar a
54 Democracia Viva Nº 22
Direito ao desenvolvimento: um campo de disputas
Direitos emergentes
Como seria uma declaração universal de direitos humanos emergente? Quais pontos poderiam assegurar à
humanidade que a globalização econômico-financeira não estaria jamais acima dos direitos fundamentais?
Como garantir que o direito ao desenvolvimento seja visto não como desenvolvimento econômico apenas, mas
como um direito humano que congrega em si a dimensão social e coletiva da condição humana – ela própria
vista também como um direito?
A seguir, um resumo das propostas apresentadas pelo autor como contribuição ao diálogo “Direitos huma-
nos, necessidades emergentes e novos compromissos”, no marco do Fórum Universal das Culturas – Barcelona
2004, com objetivo de fornecer subsídios para a elaboração de uma declaração universal de direitos humanos
emergentes.
1.2. Como direito humano coletivo, o direito ao desenvolvimento é de caráter universal, pois todos os povos
do planeta são igualmente seus detentores de forma inquestionável.
1.3. O direito ao desenvolvimento, para ser realizado como direito coletivo, implica o dever de solidariedade,
tanto a interna ao próprio povo, no sentido da eqüidade social, de gênero, etnia, geração e entre regiões,
como entre os diferentes povos do mundo.
1.4. O direito ao desenvolvimento deve ser entendido como a criação de espaço público, de estruturas, rela-
ções e processos econômicos, políticos e culturais, de leis e instituições, de projetos e políticas públicas
favoráveis à produção de bens e serviços, por órgãos públicos e agentes privados, que garantam o pleno
gozo da totalidade de direitos humanos, civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, por todas e
todos os membros da coletividade.
• o direito de não sofrer restrições econômicas, políticas e militares que obstaculizam o desenvolvimento.
2.1. Cada povo tem o direito de escolher, de forma coletiva e solidária, o modelo de desenvolvimento que
é mais adequado para o pleno gozo da totalidade de direitos humanos, desde que o exercício de seu
direito não interfira em direito igual de outros povos.
2.2. A liberdade de escolha do tipo de desenvolvimento implica tanto a garantia do direito de participação
democrática de toda a coletividade, buscando as formas legais e institucionais adequadas à identidade e
à cultura interna, como traz implícito o direito de definir políticas ativas e solidárias de desenvolvimento
segundo as situações, possibilidades e necessidades diferenciadas dos grupos e segmentos humanos que
compõem a coletividade.
2.4. Todo povo tem o direito inquestionável de realizar todos os esforços possíveis ao seu alcance para, de
forma prioritária, enfrentar as situações de miséria e pobreza e todas formas de exclusão social a que
certos setores de sua população são condenados. Do mesmo modo, cada povo tem o direito de buscar
um desenvolvimento que propicie os níveis de eqüidade social entre seus membros e regiões que melhor
atendam aos seus requisitos de democracia substantiva e solidária.
3.1. O direito ao desenvolvimento, como direito de todos os povos, implica um sistema multilateral de relações,
leis, normas, pactos e acordos, instituições e estruturas de governo com base na democracia e nos princípios
de subsidiariedade, solidariedade e cooperação.
3.2. A finalidade de um sistema multilateral é propiciar um ambiente internacional favorável e garantir relações
que permitam a cada povo exercer plenamente o seu direito ao desenvolvimento, respeitando integral-
mente todos os direitos humanos e preservando o patrimônio comum da humanidade.
3.3. Nos marcos do sistema multilateral como anteriormente definido, fica assegurado a cada povo o direito
de definir políticas de inserção internacional que julgar as mais adequadas para propiciar o seu próprio
desenvolvimento humano, democrático e sustentável, segundo suas identidades, necessidades e desejos.
3.4. As relações comerciais e financeiras internacionais, bem como os acordos e as instituições que regu-
lam as trocas de bens e serviços, transferência de tecnologia e os fluxos financeiros no mundo, devem
fundar-se na complementaridade e nas possibilidades de fortalecimento do desenvolvimento local,
respeitando as suas especificidades e potencialidades, o seu meio ambiente e a sua cultura.
3.5. No âmbito do direito ao desenvolvimento, cada povo e seu governo têm direito de definir as condições
sob as quais as empresas transnacionais de qualquer tipo podem participar do desenvolvimento local.
4.1. Em função do direito ao desenvolvimento, todos os povos têm direito de acesso à ciência, à tecnologia e
ao saber indispensáveis. O patenteamento e a propriedade das descobertas científicas e tecnológicas não
podem ficar acima do seu caráter de bens coletivos necessários ao desenvolvimento.
5.1. Segundo um princípio de justiça e eqüidade ambiental, todos os seres humanos, indistintamente, têm
direito de acesso e uso dos recursos do planeta indispensáveis à vida. O uso sustentável do patrimônio
coletivo natural, em qualquer parte do planeta, conservando-o para as atuais e futuras gerações, é o
dever de contrapartida desse direito de todos os seres humanos e de seu modo de organização coletiva
para o desenvolvimento.
5.2. A água é um bem coletivo fundamental para a vida e o desenvolvimento. O direito de todos os seres
humanos à água está no centro do direito ao desenvolvimento para o pleno gozo dos direitos humanos.
A água e os recursos de rios, mares e pólos são patrimônio coletivo da humanidade, e não podem ser
privatizados.
5.3. Todos os seres humanos, sem qualquer distinção, têm direito ao ar puro e a uma atmosfera que não
afete a qualidade de sua vida. O direito dos povos ao desenvolvimento implica uma gestão coletiva mul-
tilateral de emissões de gazes na atmosfera e de adoção de padrões de qualidade indispensáveis para a
preservação do clima natural, condição da vida no planeta.
6.1. A soberania e a segurança alimentar e nutricional são parte essencial do direito coletivo ao desenvolvi-
mento. Todo povo tem direito de definir o tipo e a forma de produção, comércio e consumo de alimentos
adequados às suas necessidades e cultura alimentar.
6.2. Em sua estratégia de desenvolvimento, cada povo e seu Estado podem adotar políticas ativas, indepen-
dentes de condicionalidades econômicas e financeiras internacionais, para adequar a sua estrutura agrária,
para fortalecer a produção e a industrialização de alimentos, para distribuir renda e recursos necessários
à sua própria soberania e segurança alimentar e nutricional.
7.1. A diversidade cultural é uma base essencial para que cada povo tenha assegurado o direito ao seu próprio
desenvolvimento. A identidade cultural é um direito em si mesmo e uma força promotora de busca das
condições coletivas de desenvolvimento para o pleno gozo de todos os direitos humanos por todos e
todas.
56 Democracia Viva Nº 22
Direito ao desenvolvimento: um campo de disputas
7.2. O direito à própria cultura, como parte intrínseca do direito ao desenvolvimento, se expressa, acima de * Cândido
tudo, no idioma usado por uma comunidade lingüística como principal meio de expressão e comunicação, Grzybowski
falado ou escrito, entre seus membros. Por meio de sua língua, cada povo cria signos de sua maneira
Sociólogo, diretor
de ver e expressar o que deseja e os valores que busca preservar em seu próprio desenvolvimento. Como
do Ibase
produção viva e relacional de significados, cada povo tem direito coletivo em usar a sua língua como
meio de identidade cultural e de definição dos caminhos do desenvolvimento democrático, solidário e
sustentável que persegue.
7.3. O direito ao desenvolvimento implica também o direito de adaptar o modo de produção de forma a tirar
partido da capacidade criativa de formas e estilos expressos no artesanato e na arte culinária de cada
povo, respeitando gostos e tradições que lhe são próprios.
7.4. A literatura, a poesia, a música, a dança e a pintura são formas fundamentais de criação do imaginário
de um povo, de força e presença de sua identidade cultural na comunidade de povos e nações, de sua
história e do seu saber acumulado ao longo de gerações. Preservar e fortalecer a própria literatura e a
produção poética e musical, os ritmos e estilos de dança, as formas e cores de suas artes plásticas, tudo
é uma maneira de afirmar e exercer o direito ao desenvolvimento.
7.5. As artes cênicas também contribuem, pelo gesto, pela palavra e pela representação, para organizar a
consciência coletiva, desvendar os valores e princípios éticos da cultura de um povo. Por isso, como direito
ao desenvolvimento, todo povo tem direito à sua própria forma de entretenimento e gozo cultural e de
buscar, de maneira autônoma, as formas de interação com outras culturas nesse campo, hoje transfor-
mado em indústria cultural.
Balanço social:
diversidade,
participação
e segurança
do trabalho
O balanço social está se tornando uma peça importante não só para prestar contas à so-
ciedade das ações das empresas no campo social, mas também para fornecer informações
relevantes sobre o respeito aos princípios éticos. Depois de sete anos de campanha, lançada
em junho de 1997, e com dados mais consistentes nos últimos três exercícios, pode-se
tecer considerações, ainda que preliminares, sobre algumas tendências. Acredita-se que
Nos últimos anos, a maioria das empresas que divulgou o balanço social passou
a utilizar o modelo sugerido pelo Ibase. Segundo levantamento realizado até junho de
2004, 231 empresas publicaram o balanço social no modelo Ibase. Hoje, pode-se dizer
que a adesão das empresas ao modelo proposto pela instituição é uma realidade.
58 Democracia Viva Nº 22
Para se ter uma idéia do peso econômico, balanços de 2001.
basta dizer que o faturamento dessas orga-
nizações, em 2002, correspondeu a cerca de
Negros(as) e mulheres
30% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro
daquele ano. Além de essas empresas consti- Várias empresas transnacionais possuem políti-
tuírem uma amostra representativa do mundo cas de promoção de igualdade racial, incluindo
dos negócios nos vários setores (indústria, ações afirmativas, nos países onde têm sede,
bancos, telecomunicações, agropecuária, pe- mas no Brasil não apresentam iniciativas no
tróleo etc.), foram responsáveis pelo emprego mesmo sentido. No Brasil, quase todo mundo
direto de 771 mil pessoas e ainda contrataram, conhece algum caso de discriminação racial
como prestadoras de serviço, mais 263 mil em ambiente de trabalho, embora dirigentes
trabalhadores e trabalhadoras. Muitas dessas de empresas sempre digam que não há pre-
empresas são conhecidas como referência no conceito em suas organizações. No entanto, o
tema da responsabilidade social empresarial e simples ato de informar a quantidade de negros
estão espalhadas por todo o país, apesar de e negras existentes na empresa virou um pesa-
estarem mais presentes no eixo Sul–Sudeste. delo. Desde a fase de escolha dos indicadores
Algumas são colecionadoras de prêmios nessa que deveriam compor o modelo do balanço
área, como as empresas Usiminas, Fersol e social, quando o Ibase reuniu empresários(as),
Petrobras. Portanto, se a quantidade de em- consultores(as) e acadêm icos(as), ficou evi-
presas ainda não é grande para uma análise denciada uma forte resistência à introdução
com o devido rigor estatístico, pode-se afir- do tema “diversidade racial”. Um empresário
mar que se trata daquelas mais sintonizadas chegou a dizer que, se fosse incluído o item
com o tema em foco. “número de trabalhadores negros”, ele não
Antes de se passar à análise dos dados, apoiaria a campanha pela divulgação do ba-
é importante explicar o porquê de referências lanço social.
a informações disponíveis ao período 2000– Essa realidade discriminatória está
2002. Em 2004, as empresas estão publicando refletida nos dados. Note-se que, em 2002,
balanços com dados comparativos de 2003 apesar da evolução positiva, 40% das empresas
e 2002. Portanto, a pesquisa relativa a 2002 publicaram seus balanços sociais sem declarar o
somente estará concluída no segundo semestre número de trabalhadores(as) negros(as) e 47%
deste ano e a que se refere a 2003, no segundo sem o percentual de cargos de chefia ocupados
semestre de 2005. Registre-se que, até 15 de por negros(as). A proporção de negros(as) no
junho, foram incluídos no banco de dados do total de pessoal aumentou, mas não chegou
Ibase 138 novos balanços, mas, como muitos a 15%. Ainda é muito baixa, caso se lembre
deles são obtidos em julho e agosto, época das que a população brasileira é constituída de
inscrições para o prêmio de melhor balanço 45% de negros(as), incluídos nessa classificação
social, é muito provável que o número de pretos(as) e pardos(as). O quadro de injustiça
balanços com dados de 2002 supere os 181 torna-se ainda mais dramático quando se observa
Tabela 1
Dados sobre empresas e trabalhadores(as) negros(as) (em %)
Trabalhadores(as) negros(as)
no total de pessoal efetivo 8,5 10,3 13,7
Tabela 2
Dados sobre empresas e mulheres (em%)
o percentual de cargos de chefia ocupados por tartaruga, nada condizente com o discurso da
negros(as): 4,3% (Tabela 1). preocupação com a igualdade apresentado nos
A situação das mulheres, ainda que seja textos que acompanham o quadro do balanço
melhor do que a de negros(as), está longe de ser social nos luxuosos documentos distribuídos
a ideal. A proporção de mulheres empregadas a acionistas e a pessoas que integram bancas
passou de 28%, em 2000, para 31%, em 2002, de concurso.
e o percentual de cargos de chefia ocupados
por elas chegou a 16,4%, o que mostra que
Indicadores de participação e
as empresas continuam preferindo os homens
abrangência
na hora de escolher quem vai comandar. Essa
realidade chama mais a atenção quando se O modelo Ibase de balanço social (disponível
leva em conta que o nível de escolaridade das em <www.balancosocial.org.br>) procura
mulheres já superou o dos homens e que as destacar, entre outros aspectos, a postura da
mulheres, segundo dados do IBGE (Instituto empresa em relação à participação (quem deci-
Brasileiro de Geografia e Estatística), represen- de) e à abrangência (quem se inclui). A empresa
tam 42% da população economicamente ativa ética é aquela que trata os(as) empregados(as)
(PEA) (Tabela 2). como colaboradores(as) de um projeto coletivo,
Os dados apresentados no Gráfico 1 em que todas as pessoas são importantes e
mostram que, se a disposição para informar responsáveis pelo sucesso da empresa, e não
(transparência) vem melhorando com rapidez, só quem a dirige.
a situação de fato – tanto para negros(as) A empresa, ao publicar seu balanço,
como para mulheres – melhorou a passos de informa quem decide sobre os projetos sociais
Gráfico 1
Cargos de chefia ocupados por mulheres e negros (em %)
mulheres
negros
60 Democracia Viva Nº 22
Balanço social: diversidade, participação e segurança do trabalho
Tabela 3
Dados sobre participação nas empresas
Tabela 4 Tabela 5
Tabela 6
mais graves e que levam a uma reflexão sobre
Investimentos em segurança e medicina do
o tema da responsabilidade social empresa-
trabalho (R$ por trabalhador/ano)
rial no país. Segundo dados do Ministério da
Previdência e Assistência Social, os acidentes
2000
de trabalho matam por dia cerca de dez pes-
1.951,65
soas e deixam, por ano, 15 mil trabalhadores
e trabalhadoras permanentemente inválidos.
Caso se leve em conta que boa parte dos 2001
acidentes de trabalho não é notificada, esses 2.600,23
dados são ainda mais alarmantes.
As causas disso são diversas e não Fonte: Banco de dados do Ibase.
62 Democracia Viva Nº 22
Balanço social: diversidade, participação e segurança do trabalho
* João Sucupira
Economista, professor
da Universidade Estácio
Belgo Mineira
de Sá e da PUC-Rio e
Número de acidentes de trabalho coordenador do Ibase
Fersol
Número de acidentes de trabalho
Qual é a
?
do homem negro
Neste artigo,1 estão registrados alguns pon- ou orientação sexual.
tos sobre identidades de homens negros que No projeto, são realizadas diversas
têm sido colocados tanto no horizonte das oficinas, sessões constantes de um grupo de
práticas políticas como na esfera da reflexão estudos sobre raça e gênero, além de outras
teórica crítica. Além de serem apresentados atividades. Há também o envolvimento em
em inúmeros debates, encontros, conversas, uma rede de debates e ações em torno da
leituras, atividades e lutas, dos quais pude questão das masculinidades. Desse ponto de
participar – ou presenciá-los apenas –, tais vista, é preciso ressaltar a importância de
pontos são reflexões mediadas pela minha instituições como Noos – Instituto de Pesqui-
própria experiência pessoal como homem sas Sistêmicas e Desenvolvimento de Redes
negro que tem atravessado algumas fronteiras Sociais, Promundo, Ecos – Comunicação em
sociais e simbólicas, entre a vivência cotidia- Sexualidade e Instituto Papai, com seu pionei-
na em nossa sociedade racista e sexista e a rismo na reflexão e intervenção nesse campo.
formação acadêmica em antropologia social, Por outro lado, meu conhecimento e
entre o Nordeste Patriarcal e o Sul Maravilha, participação, ainda que acessórios, na lista de
entre a intervenção politizada das ONGs e a discussão de homens negros na Internet, é um
investigação etnográfica relativista. marcador fundamental. A partir dessa trama
O corpo central da experiência, que dá de experiências, proponho a construção de
margem à costura dos pontos apresentados a uma plataforma emaranhada e sutil, um ponto
seguir, define-se basicamente pela atividade de partida ou de observação para interrogar
desempenhada como bolsista do programa a identidade dos homens negros brasileiros.
Gênero, Reprodução, Ação e Liderança (Gral) Quem somos? Podemos formar – ou estamos
da Fundação Carlos Chagas. Graças à bolsa, formando – um sujeito político novo e crítico?
pude desenvolver o projeto “Homem com H: É desejável que tal formação ocorra? Qual o
1 Parte das idéias desenvol-
vidas aqui tem sido discutida articulando subalternidades masculinas”, uma nosso programa? Quais as chances de arti-
na minicomunidade virtual
formada por Taciana Gouveia,
iniciativa experimental para colocar em diálo- culação entre as diferentes experiências de
Joana Plaza Pinto e Cláudio H. go experiências diferentes de masculinidades masculinidade afrodescendente?
Pedrosa, aos quais devo muito
mais que agradecimentos. subalternizadas em função da raça/cor, classe
64 Democracia Viva Nº 22
aberto
Posicionando a masculinidade foi produzida pela emergência de novos atores
sociais, mas foi insinuada externamente pelos
Convém uma breve recapitulação conceitual
interessados em amenizar o peso do machis-
antes de centrar fogo na produção dessa
mo. Não resta dúvida de que essa situação
interrogação, que é, ao fim e ao cabo, uma
guarda um impasse político e intelectual. Mas
desconstrução. Nunca é demais ressaltar o
será que esse impasse interessa aos homens?
papel que o movimento feminista teve na re-
De um jeito ou de outro, principalmen-
conceituação das identidades sociais em todo
te no campo da psicologia e da antropologia
o mundo. Esse movimento, abalo sísmico nas
social, começou a se apresentar uma rela-
identidades e nas políticas de representação
tivização histórica da figura masculina, até
– incluindo o espaço da mídia, a produção
então entronizada e vendida como monolítica,
acadêmica, a literatura, as humanidades e
imutável, essencial, eterna e, eventualmente,
artes etc. –, originou-se tanto de uma re-
divina ou metafísica. O homem foi recondu-
flexão baseada na universidade, que atacou
zido à sua diversidade e variação histórica.
os fundamentos masculinistas e sexistas da
Aprendeu a perceber que existem muitas
produção de conhecimento, como das lutas
formas diferentes de masculinidades que se
políticas que tomaram as ruas e os bairros
multiplicam pela história e pelas culturas.
populares, as praças e a esfera pública nas
Também aprendeu a perceber as dife-
últimas décadas.
rentes versões de masculinidades concorren-
Não é meu objetivo reconstituir essa
tes, ou ao menos coabitantes, no ambiente
história, com todas as suas nuanças, contra-
sociocultural das sociedades modernas. Algu-
dições e impasses. Quero apenas destacar que
mas dessas versões são identificadas com as
a crítica feminista – assim como a luta pelas
estruturas sociais dominantes, algumas apenas
liberdades sexuais e direitos humanos de gays
parcialmente e outras francamente subordina-
e lésbicas – provocou, lutando nas avenidas
das às estruturas e representações dominantes
ou nos departamentos universitários, uma
sobre o masculino ou delas marginalizadas.
desconstrução ou desnaturalização da mulher
Nesse caso, seria possível falar em masculi-
como entidade imóvel, ou melhor, imobiliza-
nidades hegemônicas ou hegemonizadas e em
da pelo peso do patriarcalismo, das conven-
subalternas ou subalternizadas.
ções e das estruturas sociais opressivas. No
Sobre esse aspecto, é preciso destacar
bojo dessas lutas, a categoria gênero emerge.
dois pontos. Em primeiro lugar, quando se
Em primeiro lugar, para favorecer um olhar
fala de hegemonia e subalternidade, fala-se
sobre a construção das diferenças sexuais
de processos dinâmicos de construção e re-
que as reconheça como produzidas histórica
construção de hegemonias ou de consensos
e culturalmente, ou seja, que as revela em
parciais sobre o sentido das relações sociais,
sua arbitrariedade. Em segundo lugar, para
seus significados e práticas instituintes. Ou
explicitar como a engenharia onipresente do
seja, hegemônicos e subalternos não estão
poder estruturou essas diferenças sob a forma
definidos essencialmente, mas sim como su-
de desigualdades.2
jeitos políticos engajados em jogos de poder e
Ora, o passo seguinte – e a conseqüên-
dominação que ocorrem em contextos sociais
cia lógica e política desse processo – seria
estruturados, porém abertos à inovação.
revelar que não apenas a mulher, esse ser
Isso implica, em segundo lugar, a
imaginário, foi desenhada na história pela
consideração de hegemonias regionais – por
pena do poder e da dominação masculina,
exemplo, ligadas à vida doméstica ou ao
mas o próprio homem descobriu-se surpreso
exercício da sexualidade – e um descolamento
quando percebeu que também era um artefato
entre sujeitos sociais de gênero e estruturas
das estruturas de gênero. É impossível não
de gênero. Em outros termos, um indivíduo
perceber uma curiosa inversão nesse caso. A
masculino pode apresentar uma posição
(auto)desconstrução da mulher foi obra de um
hegemônica em dada situação e, em outra,
ator político – composto, híbrido, fraturado,
estar colocado em situação subordinada. Isso
problemático, vá lá, mas aproximado pelas
é muito importante para entender como se
lutas discursivas ou não – a mulher como
produzem e sustentam identidades masculinas
sujeito do feminismo. Mas essa desconstrução
subalternas como um lugar da contradição 2 Ver Bruschini e Unbehaum,
crítica do lugar naturalizado do masculino não 2002; Scott, 1994; Nicholson,
entre sistemas de poder diferentes – a es- 1995; Butler, 2003.
trutura das classes, o sistema dimórfico dos cas a si mesmas nem mesmo nenhum tipo
gêneros, as práticas e discursos racializantes de taxonomia das identidades. É preferível
– que, ao se combinarem interseccionalmente, falar de posições de sujeito como lugares
produzem novas diferenças, desigualdades e marcados no mapa sociocultural para a fi-
vulnerabilidades. Se essa interseção é também xação de performances, práticas e discursos
capaz de produzir sujeitos para emancipação que justamente produzem esses sujeitos como
é outra questão. lugares de articulação dessas performances,
Tradicionalmente, e de um modo um práticas e discursos. Esses lugares são ocu-
tanto quanto esquemático, seria possível dizer pados e desocupados – ou encenados – coti-
que o modelo de masculinidade hegemônico dianamente por indivíduos concretos que se
nas sociedades ocidentais apresenta-se com relacionam com padrões culturais e estruturas
um conteúdo determinado: o homem, no pleno sociais. Nesse relacionamento, atualizam e
gozo de suas prerrogati- vivem esses padrões e estruturas. Quando
vas, seria adulto, branco, eles os vivem, interpretam-nos; quando os
de classe média e hete- interpretam, transformam-nos.3
rossexual. Outros modos
específicos e concretos,
Desrepresentando o homem negro
localizados e estrutu
rados de masculinidade Agora, deve-se discutir um pouco mais sobre
estariam subalternizados as posições de sujeito masculinas racializa-
ou seriam constituídos das, brancos e negros, no contexto brasileiro.
por formas contextuais As narrativas de fundação nacional instituem
de subalternização. Es- parte do contexto discursivo de longa dura-
sas formas são diferentes ção para a produção de identidades raciais
e se ligam a diferentes no Brasil e para sua articulação com as
sistemas de poder-saber, estruturas sociais e as formas hegemônicas
como os já citados, e se de representação sobre as raças, os gêneros,
combinam e articulam a sexualidade e o poder em suas múltiplas e
de modo diferenciado. cambiantes composições. Entre elas, citam-
É óbvio também -se a “fábula das três raças”, a miscigenação,
que, num país como o os estereótipos ligados à mulher negra, à
Brasil, muitos poucos mulata etc. O homem negro também tem sido
homens reais podem en- representado – na verdade, hiper-representa-
contrar identidade com do – e produzido racialmente com o concurso
esse modelo. Isso não agressivo dessas representações que funcio-
quer dizer que muitos nam, entre outras coisas, como estruturas
homens não tomem esse de sustentação para práticas concretas de
modelo, reposto conti- exclusão, marginalização e violência. Ora,
nuamente por diversas é preciso desrepresentá-lo como um modo
agências ou aparelhos prático de desalienação e de reconstrução de
ideológicos, como pa- possibilidades políticas e culturais.4
râmetro ou ideal a ser Antes de tudo, o homem negro é
alcançado ou contesta- representado como um corpo negro, o seu
do, ironizado ou ado- próprio corpo. Paradoxalmente, esse corpo
rado, sob as diversas é configurado de forma alienada, como se
situações sociológicas fosse separado da autoconsciência do negro.
possíveis e já descritas O corpo negro é outro corpo, lógica e his-
pela literatura. Contra o macho adulto bran- toricamente deslocado de seu centro. Como
Aberto
co, pode-se observar a existência social de suporte ativo para a identidade, é o lugar
outras posições de sujeito masculinas subal de uma batalha pela reapropriação de si do
3 Sobre masculinidades, ver,
por exemplo, Cornwall e Linds-
ternizadas, que seriam, em termos gerais, negro como uma reinvenção do self negro e
farne, 1994; Kimmel, 1998; No- aquelas identificadas com homens negros, de seu lugar na história. Uma reapropriação
lasco, 2001; Arilha, Unbehaum
e Medrado, 2001. pobres ou homossexuais. do corpo como plataforma ou base política
Convém ressaltar com ênfase que não revolucionária. Ora, essa base é contraditória
ESpaço
4 Sobre gênero e raça na
sociedade brasileira, ver, por se pressupõe, neste texto, uma cartografia porque tem sido definida pelas discursivida-
exemplo, Carneiro, 1995, 2002;
Bairros, 1995; Gonzáles, 1983. das identidades sociais estáveis ou idênti- des racializantes ou puramente racistas que
66 Democracia Viva Nº 22
Qual é a identidade do homem negro?
ESpaço
2001; Barbosa, 1998; Human
Rigths Watch, 2001 a, 2001 b;
é dessa confluência entre disposições culturais
Machado, Noronha e Cardoso, masculinas incorporadas subjetivamente e es-
1997; Oliveira, 1998; Waisel-
fisz, 2002; Silva, 1999. truturas sociais de reprodução social desigual
68 Democracia Viva Nº 22
Qual é a identidade do homem negro?
* Osmundo Pinho
Antropólogo, doutor
em Ciências Sociais
pela Unicamp, diretor
do Centro de Estudos
Afro-Brasileiros da
Universidade Candido
Mendes
opinho@
Transformação social
A verdadeira reforma do masculino não pode ser levada a efeito por ninguém senão pelos homens
e não passa apenas por uma solidariedade para com as mulheres. Implica uma solidariedade de
novo tipo – não mais baseada na glorificação das prerrogativas masculinistas – entre os homens.
A violência masculina contra a mulher é brutal e covarde. Mas a violência entre os homens tem as
proporções de um cataclismo mítico de sexo, gênero e raça. A homofobia, a sexualidade predató-
ria, o gosto pela violência e pelo risco não precisam marcar para sempre os mundos masculinos.
A reforma do masculino, que deveria se transformar num programa político de transformação
social, residiria, então, na exploração consciente das ligações entre estruturas de opressão inter-
nalizadas e incorporadas e as disposições para sua reprodução intersubjetiva como um modo de
reprodução desigual das estruturas de gênero. Somente a atividade consciente e reflexiva dos
homens engajados na transformação das relações de gênero – e que, muitas vezes, enxergam esse
engajamento apenas como uma adesão bem-intencionada ao feminismo – poderá interromper essa
cadeia infernal. Para isso, é preciso desapego, radicalidade, discernimento e experimentação.
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70 Democracia Viva Nº 22
ura
Todos
os
do morro
As imagens de violência praticamente constituem um monopólio na representação das
favelas realizada pela mídia. As pessoas que moram nesses locais são discriminadas e
sofrem da alienação de sua própria imagem. Para uma população à margem da socie-
dade, que, por vezes, não dispõe nem de existência civil, promover um projeto coletivo
de afirmação visual – como o Olhares do Morro – faz mais sentido do que alguém soli-
Quem produz essa nova iconografia são jovens que moram nas favelas e que se
apropriam da fotografia para conquistar um espaço visual pela vivência cotidiana, riqueza
movimento da favela. Para termos uma mídia representativa e legítima no país, precisa-
mos de mais jornalistas que venham das classes populares. Nosso núcleo é um viveiro
Vincent Rosenblatt
72 Democracia Viva Nº 22
Todos os olhos do morro
Passo além
Depois desse aprendizado, em função da moti-
vação individual, há os cursos de extensão “no
asfalto” ou estágios nas empresas parceiras, como
a Selulloid AG (empresa de comunicação, editora
da revista Oi), e em grandes laboratórios foto-
gráficos, como o Studio Oficina e a Speed Lab.
Outro grande parceiro é o Ateliê da Imagem,
conceituada escola de fotografia, na Urca, que
proporciona cursos de extensão como fotogra-
fia digital e gestão de acervo de imagens. O
projeto estreita, cada vez mais, o contato com o Quando uma imagem é vendida, 60% do valor
meio da moda. Está sendo preparado um curso vai para o autor ou a autora, e o restante vai
de estúdio com profissionais da área. para manutenção das atividades do projeto,
Após passar por essa cadeia de oficinas, compra de insumos de fotografia e pagamento
antigos alunos e alunas continuam benefi- dos cursos para jovens em instituições como o
ciados pelo projeto, tornando-se correspon- Ateliê da Imagem. Também incentivamos o mer-
dentes da Agência de Imagens das Favelas, cado interno das comunidades, com serviços de
que representa suas obras e as comercializa, qualidade e preços adequados à população de
além de indicá-los para eventuais trabalhos baixa renda, fazendo books e cobrindo festas,
que surjam. Além de profissionais da área de aniversários, batizados etc.
fotografia e de produção gráfica, podem surgir A emergência para a juventude das fa-
especialistas da arte digital e de restauração velas é conseguir renda. Nosso acervo está, aos
de fotografias, além de webmasters, designers poucos, sendo comercializado pela Agência de
e jornalistas. Imagens das Favelas, por meio de nosso site.
Longe de se restringir aos morros, há Com isso, queremos responder, pelo acesso
encomendas de fotos para variadas reportagens. virtual, exposições itinerantes e edição de
74 Democracia Viva Nº 22
Todos os olhos do morro
produtos, à demanda nacional e internacional com isso, receber jovens independentemente * Vincent
de fotografias que retratem esse tema. Comer- de sua comunidade de origem. Essa agência Rosenblatt
cializamos essas imagens para jornais, revistas, e escola, ou, como já a chamamos, Núcleo de Coordenador do projeto
grandes empresas (com linha editorial voltada Expressão Visual e Jornalismo (NEVJ), será um Olhares do Morro –
para responsabilidade social), agências de espaço de capacitação permanente, permitindo Fotografia & Cidadania
publicidade, ONGs, veículos de comunicação, a participação e o ensino para diferentes pro-
vincent@
coleções públicas e privadas e para quem mais fissionais e artistas, com acesso mais fácil que
olharesdomorro.org
se interessar. o atual núcleo no morro.
Foto da abertura:
O início do projeto foi assegurado pelo Nesse novo espaço, as aulas poderão
Serviço Cultural do Consulado da França, por também ser abertas para jovens de maior poder
meio do programa Residência de Artista, com aquisitivo, que ajudarão a manter a permanên-
o patrocínio da loja Fnac do BarraShopping. cia de alunos e alunas das comunidades. Por
A empresa Furnas Centrais Elétricas ofereceu isso, temos que lutar para alcançar a sustenta-
ao projeto a oportunidade de uma exposição, bilidade. O objetivo é ter uma visão ampla de
que irá para Paris, onde será exibida na sede toda essa cadeia de produção e distribuição
mundial da Unesco (Organização das Nações das imagens, desde o aprendizado no morro,
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). o aperfeiçoamento nas escolas e empresas
Com a exposição, irão a Paris dois de seus parceiras, até a comercialização via Internet,
jovens autores. Está sendo encaminhando tentando atender a clientela com o máximo de
pelo Comissariado Brasileiro, no Ministério da profissionalismo.
Cultura, um projeto de instalação multimídia
pelo Ano do Brasil na França (2005). www.olharesdomorro.org
O próximo passo será conseguir um
espaço “no asfalto”, ou seja, uma sede para a
Agência de Imagens das Favelas. Esperamos,
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