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XX1
Henrique Carneiro
A política internacional tem hoje como um dos seus aspectos mais importantes a
política e militar sob o pretexto da luta contra as drogas alcança com o Plano Colômbia as
características de uma guerra neo-colonial. Tal situação que acentuou-se a partir dos anos
70, quando Nixon lançou a guerra contra as drogas, atingiu graus extremos nos anos 80 e
90, na entrada ao terceiro milênio parece tornar-se ainda mais grave. Diversos aspectos da
mundial é o das drogas, se incluirmos aí os cerca de 500 bilhões de dólares do tráfico ilícito,
e acrescentarmos os capitais das drogas legais, como o álcool e o tabaco, mas também o
1
Publicado na revista Outubro, IES, São Paulo, vol. 6, 2002, pp.115-128.
2
O informe da ONU sobre drogas estimava, em 1997, que o tráfico de drogas ilícitas de cerca de 400 bilhões
de dólares eqüivalia a 8% do comércio mundial (Le Monde, 27/6/97). No Brasil, os 4 maiores mercados (FSP,
3/8/98) são, em bilhões de reais anuais: cerveja, 8,8; refrigerante 7,4; cigarro 5,3; e aguardente 2,1. A Ambev,
fusão da Brahma e Antartica, tornou-se a maior empresa privada do país. O nosso país é o quarto produtor
2
que esse consumo alcançou a sua maior extensão mercantil, por um lado, e o maior
proibicionismo oficial por outro. Embora sempre tenham existido, em todas as sociedades,
atualidade que aparentemente os diferenciam facilmente dos alimentos. Tal certeza começa
difusão comercial e cultural realizou-se por meio do tráfico especializado de certos gêneros.
A difusão massiva de produtos que antes eram de luxo e de circulação restrita, como o
das plantas. O tabaco, traficado pelos jesuítas, após uma resistência inicial dos protestantes e
dos orientais, foi aceito e valorizado, juntando-se ao álcool, ao açúcar, ao café, ao chá e ao
chocolate para constituírem o universo das drogas oficiais da vida cotidiana moderna,
pela Igreja no período colonial, assim como os derivados do ópio, da coca e da maconha, a
proibicionismo.
tabaco, a indústria do álcool, entre outras, da indústria clandestina das drogas proibidas,
num mecanismo que resultou na hipertrofia do lucro no ramo das substâncias interditas. No
início do século a experiência da Lei Seca, de 1920 a 1934, nos Estados Unidos, fez surgir
as poderosas máfias e o imenso aparelho policial unidos na mesma exploração comum dos
lucros aumentados de um comércio proibido, que fez nascerem muitas fortunas norte-
americanas, como a da família Kennedy, por exemplo. O fenômeno da Lei Seca se repete no
final do século XX, numa escala global, com uma dimensão muito mais gigantesca de um
comércio de altos lucros gerador de uma violência crescente. O consumo de drogas ilícitas
O objetivo deste artigo é discutir o nexo indispensável que existe entre o regime do
argumentos que querem julgar as necessidades humanas para poder administrá-las através
religiosas e gregárias. Não apenas o álcool, como quase todas as drogas são parte
econômicas. Embora o álcool tenha sido vítima da primeira lei seca norte-americana, ele em
geral é tolerado nas sociedades ocidentais, assim como o tabaco, enquanto substâncias
uso de uma justificativa médica e de saúde pública para se proibir certas drogas é
contraditório com o fato de que algumas das substâncias mais perigosas são permitidas
devido ao seu uso ser tradicional no Ocidente cristão. O cigarro, por exemplo, desde a
guerra da Criméia incorporou-se à ração dos exércitos e aos hábitos populares, o chá e o
ópio à dieta da Inglaterra vitoriana, e o álcool na forma do vinho, da cerveja e dos destilados
tipos: as que são básicas, de sobrevivência física, e as derivadas. Tal concepção - que
3
Nos Estados Unidos, ocorrem anualmente 430 mil mortes associadas ao tabaco, mais de cem mil decorrentes
do uso de álcool, 16 mil devido às drogas ilegais (FSP, 8/4/2001), e cerca de 106 mil pessoas morrem por uso
de remédios (intoxicação medicamentosa) (Superinterssante, maio 2001, p.49). A revista Pesquisa, da Fapesp,
no n.52, de abril de 2000, publicou o artigo “Drogas, mitos desfeitos”, sobre uma pesquisa que mostrou que as
drogas mais consumidas no estado de São Paulo e que mais são nocivas à saúde pública continuam sendo o
tabaco e o álcool.
5
A busca da satisfação das necessidades é o que leva à produção dos meios para
satisfaze-las, criando o que Marx designa como “primeiro ato histórico”. Primeiro é preciso
viver, ou seja, “comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais”, mas logo em
“hábito” e não somente por uma suposta “necessidade fisiológica” e o exemplo apresentado
classe trabalhadora e - à medida que são meios de subsistência necessários, embora muitas
subdepartamento, para nosso propósito, sob a rubrica: meios de consumo necessários, sendo
totalmente indiferente, nesse caso, que determinado produto, o fumo, por exemplo, seja ou
não, do ponto de vista fisiológico, um meio de consumo necessário; basta que habitualmente
o seja.”5.
capítulo III, do Livro I), que representam a satisfação de necessidades, cuja natureza, sendo
originária do “estômago ou da fantasia” não “altera nada na coisa”, repetindo, numa nota de
rodapé, uma frase de Nicholas Barbon: “Desejo inclui necessidade, é o apetite do espírito e
4
Karl Marx, A Ideologia Alemã, 2. Ed., SP, Ciências Humanas, 1979, p.40.
6
tão natural como a fome para o corpo (...) a maioria (das coisas) tem seu valor derivado da
na qual o trabalho social se praticaria “de cada um segundo suas capacidades”, e o produto
social se distribuiria “a cada um de acordo com as suas necessidades”. Antes dessa etapa
superior, haveria, no entanto, uma fase transitória, na qual de cada um se exigiria o trabalho
necessidades. A partir deste momento, o trabalho não será mais a alienação compulsória
imposta pela necessidade, mas uma forma de livre exercício da criatividade humana, quando
transporte, educação, saúde, etc., deveriam ser fornecidas como bens e serviços gratuitos
numa sociedade socialista, onde a abundância relativa permitiria tal subsídio público7. As
disposição de trabalho de cada indivíduo se mediariam para uma obtenção seletiva dos bens
5
Karl Marx, O Capital, Livro II, SP, Nova Cultural, 1985, p.382.
6
Karl Marx, O Capital, Livro I, SP, Nova Cultural, 1985, p.45.
7
Alex Callinicos, A Vingança da História, RJ, Zahar, 1992, p.137.
7
e serviços mais escassos, num intercâmbio social que incluiria uma esfera de troca. O
II (bens de produção). Os conflitos sobre a alocação dos recursos sociais na fase transitória
carências o único meio de aferição seria o mercado e a flutuação dos preços relativos dos
produtos, é refutado pelo marxismo, que pressupõe a planificação como única via racional
carências subjetivas.
do que seja o conceito de necessidade, e no caso do problema que quero enfocar neste texto,
que as necessidades ampliaram-se numa escala global. O que são as necessidades ? Sob esta
definição dividiram-se aqueles que viram um limite aos desejos humanos, que deveriam se
saciar austeramente apenas com o necessário, ou seja, sem desejos outros que não os que
8
permitam a vida sóbria, e aqueles que conceberam o desejo como uma espiral incessante
capitalismo histórico que realizou a sua extensão como expansão das necessidades. Como
declara o Manifesto Comunista: “Em lugar das velhas necessidades, satisfeitas pelos
produtos do país, surgem necessidades novas que exigem para a sua satisfação os produtos
dos países e dos climas mais longínquos”, e um pouco mais adiante, “A burguesia arrasta
visões em torno desse fenômeno e um decisivo debate se instaurou desde o século XVI na
escrevem Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei Mendes: “Nos séculos XV, XVI e XVII
tragédia imensa que os assaltava quando viram subvertidas as relações entre os homens e as
coisas. Das trocas de necessidades realizadas à margem das relações entre os indivíduos, a
época moderna passara às trocas como relação dominante entre os homens. Às trocas
subordinadas ao uso sucede uma era nova em que as mercadorias são as únicas coisas
9
realmente estimadas. No dizer de João de Barros está impresso o real sentido de toda uma
causava já estava presente desde o século XVI, por exemplo em Montaigne (1588): “Quem
jamais pôs a tal preço o serviço da mercancia e do tráfico ? Tantas cidades arrasadas, tantas
nações exterminadas, tantos milhões de homens passados a fio de espada, e a mais rica e
bela parte do mundo conturbada pelo negócio das pérolas e da pimenta: mecânicas vitórias.
Não só “pérolas e pimenta”, como também seda e açúcar, chocolate e tabaco, chá e
café, ópio e sândalo, cravo e canela. São tantos os luxos modernos ! Esta expansão das
chamar de “progresso”10.
8
Na introdução ao Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, do jesuíta Jorge Benci, (1705), SP,
Grijalbo, 1977, p.21.
9
Apud Alfredo Bosi, A Dialética da Colonização, SP, Companhia das Letras, 1992, p.22.
10
Alguns autores questionam o aspecto do progresso social que caracterizaria a época moderna. Immanuel
Walerstein, por exemplo, de quem discordo, é um dos que questionam a avaliação de Marx sobre o progresso
histórico constituído pelo capitalismo, afirmando que: “é simplesmente falso que o capitalismo como sistema
histórico tenha representado um progresso sobre os vários sistemas históricos anteriores, por ele destruídos
ou transformados (...) não creio que a vasta maioria das populações mundiais é, objetiva e subjetivamente,
menos próspera materialmente do que nos sistemas históricos anteriores, como penso que se pode argumentar
que politicamente estão em piores condições do que anteriormente”, Immanuel Walerstein, O Capitalismo
Histórico, SP, Brasiliense, pp. 82 e 34.
10
dinheiro tornam-se os controladores dos circuitos principais das finanças capitalistas, cada
considerados como produtos de luxo eram aqueles cuja produção decorria da ampliação da
parcela excedente do produto social que não era realocada para a reprodução das condições
cada vez mais ampliados. Tal foi o caso, por exemplo, do consumo do açúcar, em sua
cumpriram esse roteiro durante a fase da acumulação primitiva do capital, ampliando sua
necessidades básicas.
açúcar, que foi um artigo de luxo, hoje é uma necessidade; o tabaco, que foi necessidade
religiosa e médica, passou a ser, se assim se pode dizer ainda que paradoxalmente, ‘um luxo
11
Fernando Ortiz, Contrapunteo del tabaco y el azúcar (1940), Havana, Editorial de Ciencias Sociales, 1991,
11
mundial na época moderna e a América foi uma das fontes de novos hábitos e de novos
produtos que, desde uma origem restrita e de consumo suntuário, alcançaram o estatuto de
“fabricava-se luxo para exportar para a Europa. Mas não sem uma fase de experimentação
local. Muito do luxo que o Ocidente conheceu então, chegou das Índias (...) Os portugueses
seda. Aparelhos de chá. Vasos de porcelana. Perfumes, etc. Inclusive o hábito do banho
diário”12.
humanas seriam fixas. De Catão e Sêneca à Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino,
luxúria carnal. Tudo mudou na época moderna, quando ao mesmo tempo que a
defensora de que os “desejos são infinitos e que a proliferação dos desejos não são a causa
da corrupção mas, pelo contrário, o caminho ‘natural’ das coisas”13, representada, entre
outros, por Thomas Hobbes e Nicholas Barbon, e que inspirou toda a teoria econômica
mercadorias.
p.57.
12
Eduardo d’Oliveira França, Portugal na época da restauração, SP, Hucitec, 1997, p.171.
13
Segundo Christopher J. Berry, American Historical Review voll.101, n.2, April 1996, p.449.
12
isso, mal um desejo é satisfeito e formamo-nos um outro (...) Assim nossas paixões se
desejamos”14. Tal teoria antecipa Freud, ao levar em conta os desejos como nosso núcleo
Uma justificativa calvinista para o comércio do luxo pode ser encontrada num
historiador holandês do século XVII, Gaspar Barléu, quando teorizava sobre o papel dos
mantêm o Estado, mas ainda participa do governo”, mas reconhecia em seguida que o que
fibra moral dos povos, com a exceção dos holandeses que possuíam “doutrina e hábitos de
afrouxassem as virtudes. Nós, talvez por sermos mais firmes contra os vícios, pela nossa
A querela do luxo foi o centro de uma disputa filosófica e moral onde alguns como
Fénelon, arcebispo de Cambray, numa crítica velada a Luís XIV e suas extravagâncias,
14
Apud Luiz Roberto Monzani, Desejo e prazer na Idade Moderna, Campinas, Edunicamp, 1995, p.213.
13
“escravidão às falsas necessidades”. Além da Igreja, filósofos como Rousseau ecoaram esse
repúdio moral à ampliação dos gozos e dos prazeres, pois, segundo ele, somente até os 12
ou 13 anos “se pode mais do que se deseja”, e mais tarde, quando desperta a sexualidade, “a
mais violenta e a mais terrível necessidade”, o homem se torna escravo de suas necessidades
nunca saciáveis, e assim sendo, o que torna o homem essencialmente bom é ter poucas
necessidades e o que o torna essencialmente mau é ter muitas16. Pierre Bayle, Bernard de
Mandeville e Voltaire são alguns dos que despontaram, na vertente contrária, na apologia do
luxo. O último ficou célebre com o argumento de que todos os excessos são ruins, inclusive
os da abstinência.
para o consumo de massas. O antropólogo Sidney Mintz17 escreveu sobre as relações entre o
centrais o açúcar. Num artigo na revista Annales, em 1961, Fernand Braudel escrevia:
de forma semelhante a China antiga) durante séculos. No Ocidente, este luxo explica as
ânsia pela pimenta, pelo açúcar e pelo chá, para referirmo-nos apenas aos produtos mais
importantes ao longo dos séculos XVI e XVII, produziram a expansão colonial européia, a
15
Gaspar Barléu, História dos feitos..., BH/SP, Itatiaia/Edusp, 1974, p.9.
16
Rousseau, Emílio, p.171.
17
Sidney Mintz, Sweetness and Power: the place of sugar in modern history, New York, Elizabeth Sifton
Books/Penguin Books, 1986.
18
Fernand Braudel, “Alimentation et catégories de l’histoire” in Annales ESC 16 (4), 1961, p.725.
14
açúcar foi, segundo Mintz, “uma das forças demográficas massivas da história mundial”19.
Uma parte dos produtos coloniais é “luxo sensorial”, que podem ser desde
perfumes e bálsamos, até alimentos exóticos, passando pelas substâncias que chamamos de
antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz
tais produtos são buscados pela humanidade para saciarem sedes, fomes, gostos ou vontades
“desejo”. Marx expressou em sua obra a idéia de uma oposição entre um “reino da
homem enfim ser livre para desejar tudo o que quisesse. Nesse sentido poderíamos
patamar histórico para um gozo criativo dos desejos, ou seja, após a superação da “fome do
espírito.
19
Sidney Mintz, op. cit., p.71.
15
distributiva que rouba aos produtores o seu produto impondo uma dialética inexorável de
fome para muitos e propriedade para poucos indica níveis e padrões de consumo
socialmente estratificados.
partir do século XIX, quando houve uma verdadeira revolução na dieta européia21. Ao lado
dos níveis nutricionais do consumo, que caem na Europa na época moderna, verifica-se o
fenômeno de uma inclusão na dieta popular de uma série de produtos exóticos de consumo
anteriormente restrito, como especiarias, bebidas e comidas de luxo. Um dos exemplos mais
se numa virtual necessidade em 1850”22, e em qualquer composição de uma cesta básica nos
de sua obra de juventude para os textos maduros. Na primeira fase há uma condenação da
humanas, que a grande indústria moderna já preparou e que o comunismo deve realizar”.
20
Karl Marx, O Capital, Vol. I, p.45.
21
Flandrin/Montanari, História da Alimentação, SP, Companhia das Letras, 1998.
22
Sidney Mintz, op. cit., p.148.
16
ascetismo (...) Por isso, a economia política, apesar de sua aparência mundana e prazerosa, é
uma verdadeira ciência moral, a mais moral das ciências. A auto-renúncia, a renúncia à vida
A definição das “necessidades” ou, no outro termo usado por Marx, dos
em distintos momentos de sua obra, e que ainda hoje se coloca, é a de avaliar se as novas
corriqueiro e, muitas vezes, excessivo, substâncias cuja predileção no gosto moderno não é
nem “natural”, nem necessariamente positiva, do ponto de vista da dieta e da saúde pública.
Para não nos referirmos ao exemplo mais óbvio do tabaco, citemos o açúcar, que é uma
23
Ernst Mandel, A formação do pensamento econômico de Karl Marx, 2. Ed., RJ, Zahar, 1980, p.36.
17
destas banalidades, cujo uso indiscriminado tem sido responsável por graves danos e
doenças. Dentre estas novas “necessidades” propagadas neste século, encontramos a difusão
de determinadas drogas sob o manto da legalidade, como é o caso do tabaco, do álcool e dos
comércio dos derivados da papoula. De 1919 a 1933, o proibicionismo atingiu o álcool, nos
Estados Unidos. Logo após o fim da “Lei Seca”, foi proibido o consumo da maconha nos
destrutivas.
A “guerra contra as drogas”, nascida do ventre da Lei Seca, além de servir para o
enriquecimento direto das máfias, das polícias e dos bancos, serve para o controle dos
cidadãos até mesmo no íntimo de seus corpos vigiados com testes de urina e batidas
pelo Estado das fronteiras da pele, torna-se uma dimensão de intervenção e vigilância
24
Karl Marx, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, 2. Ed., SP, Abril Cultural, 1978, p.18.
25
O melhor trabalho de análise histórica do advento do proibicionismo é o Historia de las Drogas, de Antonio
Escohotado, 3 vol., Madri, Alianza, 1989.
18
O proibicionismo nos Estados Unidos foi analisado por Antonio Gramsci como
com que os industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas relações sexuais dos seus
este interesse (como no caso do proibicionismo) não deve levar a avaliações erradas; a
verdade é que não é possível desenvolver o novo tipo de homem solicitado pela
modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível obter êxito num campo sem obter
estão indubitavelmente ligados; os inquéritos dos industriais sobre a vida íntima dos
26
Antonio Gramsci, Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, RJ, Civilização Brasileira, 2.ed., 1976, p.392.
19
O proibicionismo do início do século XXI dirige-se não contra o álcool, mas contra
outras drogas (os derivados de coca, ópio e canábis e substâncias sintéticas). Seu efeito é
alimentos ou as bebidas, podendo ter um bom ou um mau uso, assim como ocorre com os
alimentos. A diferença é que um viciado em açúcar não corre o risco de ir preso mas apenas
substâncias é uma concepção fascista que pressupõe um papel inquisitorial extirpador para o
Estado na administração das drogas, assim como de outras necessidades humanas. Tal
punindo sobre os meios botânicos e químicos que os cidadãos utilizam para interferir em
lucro obtido no tráfico. Em outras palavras, a proibição gera o superlucro. Tais razões levam
a que a reivindicação da descriminação das drogas se choque tanto com os interesses dos
As drogas são parte dos produtos coloniais que se difundiram inicialmente como
livre comércio que levara à guerra do ópio da Inglaterra contra a China, aumentou o fluxo
27
Idem, p.396.
20
aparato de segurança em esferas da vida cotidiana. A proibição mundial das drogas foi uma
Nos últimos 30 anos, inúmeros esforços foram feitos para deter o crescimento das drogas como
poder econômico e fator degradante da sociedade. Uma postura radical, com a repressão severa e o
encarceramento, já demonstraram ter pouca eficácia, gerando efeitos colaterais como o aumento da
população carcerária e dos custos para mantê-la. Novas diretrizes, adotadas por países como os
Estados Unidos, indicam que campanhas de informação, o incentivo à cooperação entre a população
e a polícia e o investimento em programas de tratamento de dependentes graves podem diminuir a
criminalidade, sendo um caminho para lidar melhor com um problema que já faz parte da cultura
mundial. À frente da war on drugs (guerra às drogas) desde o final dos anos 70, os Estados Unidos
vêm adotando uma política repressiva, violenta e inútil, na tentativa de conter a produção e a
comercialização de drogas. O objetivo é diminuir o consumo interno, que em vários estados também
é reprimido por lei. Na década de 90, em apenas quatro anos foram gastos US$ 45 bilhões, pagos
pelos contribuintes norte-americanos para financiar campanhas internacionais. Apesar desses
esforços, os Estados Unidos continuam aparecendo nas estatísticas como o país com maior
diversidade de drogas em circulação. Em Baltimore, cidade norte-americana com 740 mil habitantes,
população predominantemente negra e renda média de US$ 19 mil anuais, estima-se que 60% de
todos os crimes envolvam drogas. Entre 1986 e 1991, a polícia dessa cidade prendeu 82 mil pessoas
por crimes e contravenções relativas a drogas. Em 1991, 46% dos homicídios nessa cidade tinham a
ver com os entorpecentes. Com a adoção da política de tolerância zero em várias cidades norte-
americanas, em meados dos anos 90 o número de prisões feitas por pequenos delitos, entre os quais
o uso e o comércio de drogas, ajudou a elevar drasticamente a população carcerária, aumentando
ainda mais os custos da repressão interna. Os Estados Unidos tornaram-se campeões do mundo
nesse item (um milhão e meio de pessoas presas). Os índices de criminalidade baixaram em várias
cidades, ao mesmo tempo em que novas medidas foram aplicadas. Por exemplo, projetos de
cooperação entre a população e a polícia, patrulhamento a pé, planejamento, treinamento e
recrutamento de policiais de serviços e de civis. Todas essas medidas visavam conquistar a confiança
dos moradores, ao mesmo tempo em que os policiais abandonavam a postura de caçadores dentro
de viaturas, de onde não interagiam com as pessoas e que inspiravam nelas medo e hostilidade.
Hoje a sociedade norte-americana divide-se em torno do acirrado debate sobre a legalização do uso
de drogas. Representantes do próprio governo expressam preocupação com a superpopulação
carcerária; agentes penitenciários denunciam que a maioria dos presos é de usuários de drogas e
não de perigosos criminosos. Nos organismos internacionais, o debate e a preocupação não são
menores. Segundo o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas (dados de 1994), o crime
organizado transnacional, com capacidade de expandir suas atividades ao ponto de ameaçar a
segurança e a economia dos países, particularmente aqueles em transição e desenvolvimento,
representa atualmente o maior perigo que os governos precisam enfrentar para assegurar sua
estabilidade e segurança.
Razões do uso de drogas
Usuários e traficantes
No Brasil, o governo sempre adotou medidas repressivas no combate às drogas, e a polícia tem um
enorme poder em determinar quem será ou não processado e preso como traficante, crime
considerado hediondo. No que se refere à administração da justiça, jovens pobres, negros ou
mulatos são presos como traficantes, o que ajuda a criar uma superpopulação carcerária, além de
tornar ilegítimo e injusto o funcionamento do sistema jurídico no país. Policiais costumam prender
meros fregueses ou pequenos repassadores de drogas (aviões) para mostrar eficiência no trabalho.
A quantidade apreendida não é o critério diferenciador. Essa indefinição, que está na legislação,
favorece o abuso do poder policial que, por sua vez, inflaciona a corrupção. No Rio de Janeiro, onde
coordenei trabalho de campo realizado entre 1998 e 2000 em três bairros - Copacabana, Tijuca e
Madureira - e em que entrevistamos cerca de 120 policiais, moradores, usuários e alguns
repassadores, concluímos que os usuários eram, em sua maioria, usuários sociais. Em comum,
tinham a busca da privacidade e de um uso discreto para não dar na vista, nem assustar os demais
freqüentadores dos locais de boemia. Isso não quer dizer que não existam usuários pesados. Estes
têm dificuldades no relacionamento com os usuários sociais e mesmo com os traficantes, que não os
respeitam, nem gostam deles por chamarem a atenção da polícia e não conseguirem pagar as
dívidas. Usuários de Copacabana, Tijuca e Madureira, de modo geral, evitaram classificar-se como
dominados pela droga ou capazes de qualquer coisa para obtê-la, escapando dos estereótipos do
marginal. Só aqueles que foram entrevistados quando já estavam sob tratamento admitiram a
dependência e a associação com outras práticas criminais. Traficantes de favelas na Tijuca e em
Madureira controlam mais facilmente as ruas do bairro, seja para impedir que vendedores
independentes comercializem drogas por ali, seja para demonstrar o seu poder de fogo. Não é
incomum vê-los andando armados. Quando um vendedor não autorizado é identificado pelos donos
das bocas de fumo (por extensão, das favelas), ele é ameaçado de morte. Nesses dois bairros, é
preciso ter a permissão dos donos para vender drogas. Na Tijuca, a proximidade dos morros tira a
paz e a tranqüilidade do bairro residencial e conservador: tiros atingem as casas, matando gente que
assiste à televisão ou dorme. O estilo do tráfico na Tijuca e em Madureira, poderia ser resumido
como diretamente controlado pelos traficantes de favela, caracterizado pelo uso corriqueiro da
arma de fogo para assegurar o território, cobrar dívidas, afastar concorrentes e amedrontar
possíveis testemunhas. Isso marca uma diferença crucial em relação à Copacabana, cujo estilo
discreto dos traficantes se caracteriza pela clandestinidade e ausência de controle de territórios.
O prazer da transgressão
Não falta, no Brasil, o que o antropólogo norte-americano Howard Becker chamou de motivação de
um ato desviante. Esta deriva de uma situação na qual o sujeito não aceita o jogo social e político
vigente, e se revolta contra ele. A pobreza não explica o ato desviante mas, em conjugação com as
falhas do Estado, pode facilitar a escolha ou a adesão às subculturas marginais de uso de drogas
ilícitas. Tais subculturas se formam a partir do próprio preconceito dos agentes governamentais e da
sociedade em relação aos usuários de drogas. A imagem negativa, a discriminação, o medo, a
satanização do viciado contribuem decisivamente para a cristalização desses grupos, assim como dos
tons agressivos e anti-sociais que algumas vezes adquirem. Já o ato desviante ou sua repetição
decorrem do aprendizado do jovem junto ao grupo social de desviantes, ao qual ele vem a fazer
parte. Este pertencimento gera uma série de atitudes, valores e identidades que podem se
cristalizar, assim como gerar laços reais de amizade, domínio ou dívida, dificultando o rompimento
com o grupo e, conseqüentemente, com o próprio desvio. Porém, não se pode concluir que todos os
usuários de drogas são iguais ou que professam o mesmo credo cultural. Pesquisas feitas em todo o
mundo sugerem diferentes graus de envolvimento com a droga e com o grupo: se a tomam nas
horas de lazer, se ela define um estilo de vida alternativo compartilhado com outras pessoas e que
estilo é esse, se ela é o eixo da identidade do usuário compulsivo. Não seria exagero afirmar que,
entre os jovens pobres, existe maior pressão para o envolvimento com grupos de criminosos
comuns, por conta da facilidade de entrar em dívida com traficantes, da repressão policial e da
dificuldade em encontrar atendimento médico e psicológico quando vêm a ter problemas reais com
o uso e controle das drogas. No Brasil, o atendimento nos hospitais públicos, onde há programas de
tratamento de viciados, todos os problemas apontados se unem de forma trágica: normas internas
rígidas, atendimento precário por falta de equipamentos e de pessoal tecnicamente qualificado,
atraso nos calendários. Burocratas sem compromisso com os objetivos humanos e políticos desses
programas prejudicam a ação dos poucos médicos realmente interessados neles. Por outro lado, os
efeitos negativos dos internatos que criam outras formas de exclusão dos viciados já foram bastante
apontados na literatura.
A busca de soluções
Enquanto isso, em países como os Estados Unidos, o entendimento da questão das drogas em novos
termos provocou uma verdadeira revolução no atendimento e proteção ao usuário pesado. Nos
Estados Unidos, líder da política proibitiva, numerosos estudos encomendados pelo governo
mostraram que os custos de programas de prevenção do uso de drogas e de tratamento de
dependentes é muito mais barato (entre 20 e 10 vezes) e eficaz do que a repressão externa e interna
respectivamente. Relatório recente da ONU (1997) e pesquisa realizada em Miami demonstram, por
exemplo, que dependentes de drogas em tratamento tendem a cometer muito menos crimes (entre
4 e 10 vezes menos) contra a propriedade e contra pessoas, do que os que não estão sob
tratamento. Com base em dados de fontes variadas, é possível montar-se políticas de tratamento e
de prevenção que façam declinar a violência nas regiões metropolitanas brasileiras. Tais políticas
deveriam se desenvolver com a participação da própria população - tanto as vítimas quanto os
agentes da violência -, para a mudança de práticas e concepções em associações, comitês de
moradores ou grupos de discussão. A proposta inicialmente apresentada ao Congresso Nacional era
que a apreensão da droga e a punição aplicada ao reincidente (quando caracterizado como usuário)
deixassem de ser julgadas pelo Código penal, passando a ser problema de ordem sanitária ou
administrativa. Isto porque o consumo é próprio do direito privado (ou civil) e o direito penal não
pode ter por objeto condutas estritamente privadas. Tal proposta defendia, ainda, uma estratégia
preventiva extensa a todas as substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. O alvo é a pessoa humana e
não a substância psicoativa em si. O projeto aprovado substitui a pena de privação de liberdade pela
pena de tratamento forçado em clínicas especializadas, o que mantém na prática a criminalização.
ZALUAR, A. Para não dizer que não falei de samba -- os enigmas da violência no Brasil, in L. M.
Schwarcz, História da Vida Privada no Brasil vol. 4 - Contrastes da intimidade contemporânea, São
Paulo, Companhia das Letras, 1998.
portar determinada quantidade de morfina e, no Ela não pode interferir na soberania de cada na-
ano seguinte, solicita mais que o dobro, por exem- ção, mas tem uma força moral muito grande. Quan-
plo. Vou atuar na área de substâncias psicoativas. do o órgão envia um relatório [publicado anual-
Terei de ir duas vezes por ano à sede da Junta, em mente em fevereiro] sobre a situação dos diferen-
Viena, pelo prazo de cerca de um mês e deverei tes países, nele estão apontados quais não cum-
ainda estar disponível para fazer auditorias nos prem a lei ou não fornecem os dados para o rela-
diferentes países. tório. É o caso do Brasil, que no último relatório
O controle, mais ou menos eficiente, que mo- não respondeu várias questões. Essa situação ocor-
nitora a produção da papoula – planta da qual é ex- re com freqüência. Se um país desobedece às re-
traído o ópio, usado na produção de morfina –, gras, a Junta pode pedir aos demais que não expor-
consegue diminuir o tráfico, mas cria um problema tem para ele medicamentos ou drogas importan-
sério que é a pouca disponibilidade desses produtos tes. É uma espécie de ‘embargo’, porque os outros
para doentes terminais. O Brasil é um país com um países geralmente acatam a posição do órgão.
consumo de morfina 20 vezes menor que o neces-
sário para minorar a dor dos pacientes terminais. Como o Brasil aparece nos relatórios?
Controla-se de tal maneira o abuso que o uso mé- O relatório de 2000 faz críticas à capacidade
dico acaba sofrendo restrição. É um dos pontos operacional das autoridades brasileiras responsá-
básicos a serem resolvidos pela Junta em 2002. veis pelo registro, controle e inspeção de drogas
psicotrópicas. Em relação a essas substâncias, há
A Junta controla a produção e o comércio outro ponto no documento que preocupa a Junta: o
de entorpecentes e faz os países seguirem abuso do consumo de drogas para emagrecer na
três convenções internacionais. América do Sul. Os três países mais atingidos pelo
O que elas determinam? problema – Argentina, Brasil e Chile – têm, por
A Convenção Única sobre Drogas Narcóticas, recomendação do INCB, tomado medidas adminis- !
não é criminoso. A abordagem muda. Continua- para estabelecer a política nacional antidrogas.
mos a afirmar que droga faz mal, mas o indivíduo Pelo menos quatro editaram um programa que
não vai para a cadeia por isso. Posso me aproximar deveria ser implementado. Nenhum deles foi colo-
de uma pessoa que está sofrendo e tem problemas cado em prática. Mudava o governo e tudo era
de dependência, sem que ela tenha medo de ser ‘enterrado’. No Brasil, o poder público tem uma
punida. Sou a favor da descriminalização de todas característica única: os chefes do momento tentam
as drogas. Estamos lidando com indivíduos doen- destruir o que foi criado pelo antecessor. Consi-
tes. Para funcionar, o governo precisa simultanea- dero importante também dizer que qualquer pro-
mente esclarecer sobre os benefícios e prejuízos grama baseado exclusivamente em repressão não
do uso dessas substâncias. Por meio de uma propa- vai funcionar. O governo norte-americano, quan-
ganda séria, honesta e insistente, devemos dar ao do criminalizava as drogas – atualmente, muitos
cidadão o direito de fazer sua própria opção. estados têm uma política menos severa –, chegou
1 0 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 1 • n º 1 81
a prender em um ano 500 mil jovens por uso de ção vive e quais os problemas que agravam a saú-
maconha. de dela. A única atitude que resolveria a questão
é a menos prestigiada pelo governo brasileiro:
A taxa de prisão por porte de drogas quase nenhuma verba pública é destinada à pre-
nos Estados Unidos é maior que o número venção.
de detenções por todos os tipos de crimes
em alguns países da Europa. O senhor foi secretário da Vigilância Sanitária
Já países como a Holanda, onde a maconha de 1995 a 1997 e, ao sair, fez algumas
é vendida em quantidades controladas críticas ao órgão. Quais foram as dificuldades
nos coffee shops, adotam uma política mais liberal. enfrentadas e como define
Qual é o modelo mais adequado? sua passagem pela Vigilância?
Prefiro o da Holanda, pois a repressão não resolve Uma desgraça, devido à inutilidade do esforço de-
a situação e acaba criando o submundo das drogas. dicado. Propus reformular a classificação dos me-
Amsterdã tem algumas experiências interessan- dicamentos e instaurar o programa de farmacovi-
tes. Nos coffee shops, os próprios freqüentadores gilância. Tive total apoio do ministro [da Saúde]
condicionam o uso da droga. Ninguém injeta ou- Adib Jatene, que me convidou para o cargo. Cria-
tras mais pesadas nesses lugares. A maconha é mos nesse período um programa de inspeção da
para uso pessoal. Outro aspecto que vale a pena indústria farmacêutica brasileira. As dificuldades
ressaltar é a implantação de programa de redução foram as mais diversas. Durante os dois anos, não
de danos. Uma equipe médica vai até os locais de consegui gastar nem 20% do orçamento que di-
uso e aplica drogas, como heroína, nos dependen- ziam que a Vigilância Sanitária tinha mas não
tes, desde que eles devolvam a seringa anterior. Os estava disponível. A Vigilância não tinha sequer
casos de Aids nessas áreas não chegam a 10% um livro técnico. Em 1996, chegamos inclusive a
entre os usuários, enquanto em cidades como Bar- marcar a data de inauguração da Agência Nacio-
celona e Milão atingem até 30%. nal de Vigilância Sanitária, mas, com a saída de
Jatene, todos os programas foram abandonados. O
Qual a sua avaliação dos serviços de tratamento? ministro incompatibilizou-se com o governo por-
Acho que poderíamos ter centros de tratamento que ele quis realmente resolver os problemas de
mais eficientes. Qualquer modelo terapêutico no saúde do país. No período em que estive na secre-
mundo consegue recuperar, em um período de dois taria, muitos interesses foram contrariados. Cassa-
anos, 30% dos pacientes. Sem tratá-los, a taxa de mos a licença de funcionamento de mais de 200
recuperação é a mesma: entre 25% e 30%. Para a laboratórios. Em alguns lugares ditos laboratórios
medicina, melhorar a vida de 25 pessoas já é sig- funcionavam padarias. Nos dois anos anteriores a
nificativo, mas, do ponto de vista de saúde pública, minha entrada (1993 e 1994), haviam sido feitas
tratamento – assim como a repressão – não é a 25 inspeções. Nós fizemos mais de mil. A falsifi-
melhor solução. Acho que a única maneira eficaz cação de medicamentos em 1997 e em 1998 ocor-
de lidar com as drogas é evitar o uso através da reu em conseqüência da interrupção do programa
prevenção. Isso tem de ser feito com os jovens. A de inspeção. Agora, felizmente, esses projetos es-
vida miserável acaba, porém, levando ao abuso tão voltando. Se a Vigilância Sanitária não tiver
dessas substâncias. Para discutir prevenção, o go- certeza da continuidade de programação, é melhor
verno precisa pensar claramente como a popula- não implantar nenhuma proposta. "
A elite e os traficantes
Uma pesquisa afirma que são os jovens ricos os que mais usam drogas. Eles são
culpados pela violência do tráfico?
NELITO FERNANDES, RAFAEL PEREIRA E MARTHA MENDONÇA
Não é à toa que essa cena, do filme Tropa de Elite, é uma das que mais chocam os
espectadores. Ela toca numa questão crucial do tráfico: a taxa de responsabilidade
dos consumidores. Uma pesquisa divulgada na semana passada pela Fundação
Getúlio Vargas aponta o dedo para uma parcela da elite. Maconha e cocaína no Brasil
são bens de luxo, para a população com maior poder aquisitivo. De acordo com o
levantamento, o consumidor-padrão de drogas no Brasil é homem, tem entre 20 e 29
anos, é da classe média alta e mora com os pais. Gasta, em média, R$ 45 por mês
com drogas. “Estatisticamente, a visão de Tropa de Elite é correta: quem financia o
tráfico é a classe média”, diz o economista Marcelo Neri, coordenador da pesquisa.
O CULTIVADOR
Usuário que planta maconha em casa mostra o que colheu. Ele diz não apoiar o tráfico
Embora ilegal, o tráfico de drogas não infringe outro tipo de lei – a do mercado. Se
não houvesse comprador, não haveria venda. O consumidor garante o comércio, mas
não é ele quem produz a violência. Drogas são vendidas no mundo todo. Nas ruas de
Berlim ou Lisboa traficantes oferecem suas mercadorias para moradores e turistas.
Mas vender a droga não implica dominar comunidades inteiras, como os chefões
fazem no Rio de Janeiro. “Chegamos a esta situação devido à ausência do Estado
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Culpar o consumidor está em desuso no Brasil. Pela legislação em vigor desde 2006,
quem for apanhado consumindo será julgado num juizado especial, não mais
criminal. A pena, que antes podia chegar a seis anos de prisão, agora é de prestação
de serviços comunitários. O Brasil segue, assim, o pensamento predominante em
vários países europeus, como Espanha, Portugal, Bélgica e Alemanha.
Isso não quer dizer que estejamos no caminho certo. Tanto a leniência quanto a linha
dura em relação aos consumidores têm resultados contraditórios no mundo. A
Holanda liberou o uso de 5 gramas de maconha, que é vendida legalmente em cafés.
O consumo de maconha dobrou, mas o de heroína e de outras drogas pesadas caiu.
A Holanda tem uma legislação confusa: os coffee shops podem vender a droga, mas
não podem comprá-la. “Isso é uma hipocrisia. Existe tráfico de drogas pesadas perto
das lojas, então o problema não foi resolvido”, diz o secretário nacional Antidrogas,
Paulo Roberto Uchôa.
Dentro da lei
A Suécia foi pelo caminho inverso: levou para a cadeia vendedores e consumidores,
e hoje o número de drogados do país é um terço menor que no restante da Europa.
Os Estados Unidos também optaram pela linha dura, mas tiveram resultado oposto:
11% dos americanos admitem consumir maconha e haxixe – e o número cresce 2%
ao ano. O total de presos por porte de drogas cresceu dez vezes em 30 anos. No
Brasil, segundo uma pesquisa do Cebrid, 22,8% dos entrevistados declararam já ter
usado alguma droga pelo menos uma vez na vida. Esse índice coloca o país na média
da América Latina (no Chile é de 23%).
Defendida por usuários e por uma corrente de especialistas, a liberação das drogas
no Brasil exigiria um investimento em saúde pública que o país é incapaz de fazer.
“Não existe hoje, no Rio de Janeiro, sequer cem leitos para atender dependentes
químicos menores de idade. Não temos também nenhuma clínica, nem particular,
com leitos específicos para menores dependentes de drogas”, diz Jorge Jabes,
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Além da favela
1. PRODUTOR 5. VAPOR
Plantadores de coca, em países como Bolívia e Quem vende a droga nas “bocas de fumo”
Colômbia, e de maconha, na Região Nordeste
do Brasil, são os principais fornecedores de 6. ESTICAS
drogas Locais de venda de drogas fora da favela, mas com
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4. AVIÃO
Quem faz o transporte, normalmente mulheres
e estudantes
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drogas está, passivamente, dando apoio à violência urbana, aos tiroteios entre polícia
e traficantes, aos grupos armados que dominam as favelas.”
Para João Guilherme Estrella, que inspirou o livro Meu Nome não é Johnny, que conta
sua história de garoto de classe média que se transformou no maior fornecedor de
cocaína para a alta sociedade carioca, legalizar não vai resolver. “As drogas seriam
vendidas em farmácias e dariam receita ao Estado. Mas os que ficariam sem essa
renda acabariam por buscar outras formas de sobrevivência. As facções que
dominam o tráfico de drogas funcionam como empresas. Elas vão precisar encontrar
outra fonte de receita.” Provavelmente no crime.
A pesquisa da FGV mostra que 64% dos usuários declarados, apesar de serem de
classe média, são vizinhos de áreas dominadas pelo tráfico. “Esse é um dado para o
qual os pais deveriam estar atentos”, diz Marcelo Neri. Embora a visão do Capitão
Nascimento, de Tropa de Elite, seja limitada e simplista a ponto de pôr no usuário de
drogas toda a culpa pela violência, colocou o assunto em pauta. Gerou pesquisas
como a da FGV, feita depois que o presidente da entidade, Carlos Ivan Simonsen
Leal, viu o filme. O debate é uma forma de buscar saídas para o problema. Como
lembra Ana, a mãe de um consumidor, usuários de drogas sempre existirão. Quanto
devem ser reprimidos, e quanto devem ser tratados, é uma decisão de cada
sociedade.
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