Como o senhor descobriu a Grécia? O surgimento e a afirmação do discurso
lógico não deveriam levar ao desapare- Jean-Pierre Vernant – Em primeiro lugar, cimento do mito? fisicamente, por causa de uma viagem em 1935. Imaginem um país muito diferente Vernant – Mythos significa apenas relato, do de hoje, sem turistas, que era percor- narração, embora, entre os gregos, os rido a pé, um país de camponeses e de termos mythos e logos não se oponham marinheiros muito hospitaleiros, que entre si. Essa palavra serve hoje para davam ao estrangeiro a sensação de que designar, na história do pensamento sua visita era uma honra para eles. grego, uma tradição transmitida oralmen- O francês Jean-Pierre Ve rnant, te e que não se insere na ordem do racio- nome familiar aos estudantes de A civilização da Grécia antiga é comu- nal. Observe que os mythoi (mitos) não filosofia, tem vários livros mente sintetizada entre nós numa fórmu- são um apanágio dos gregos. Nossa ciên- publicados em português, entre la: o milagre grego. O sr. aceita isso? cia atual está repleta de mythos: por acaso eles Universo, os Deuses, os Vernant – Absolutamente não! Essa idéia, o big-bang original de nossos cientistas Homens (Cia. das Letras), As expressa por Renan e amplamente reto- seria muito diferente do chaos (caos) Origens do Pens amento Grego mada depois dele, segundo a qual a Gré- evocado por Hesíodo, esse camponês da (Bertrand Brasil), A Morte nos cia, e somente a Grécia, teria inventado a Beócia do século 8.º antes de Cristo? As Olhos (Zahar), Mito e Sociedade razão, o pensamento científico, a filosofia narrativas da origem transmitidas pelos na Grécia Ant iga (José Olympio), e todos os grandes valores universais, mitos continuam inteiramente atuais na Mito e Tragédia na Grécia Antiga parece-me inaceitável. É verdade que, por Grécia clássica, porque respondem a (Per spectiva). Sai agora no Brasil volta do século 7.º antes de nossa era, desafios relacionados com a identidade: o outro volume fundamental, Entre houve um conjunto de fenômenos com- grego sabe de onde é porque conhece de Mito & Política , antologia de plexos. Em primeiro lugar, a passagem de cor todas essas histórias. Além disso, essas textos, uma espécie de "suma" de uma civilização oral para uma cultura narrativas transmitem modos de ser e de toda uma vida de pesquis ador. escrita e de uma palavra poética e proféti- comportar-se. Em Homero, aprende-se a Nascido em 1914, Vernant ca - a de Homero e Hesíodo - para um trabalhar, a navegar, a fazer a guerra e a participou ativamente da discurso lógico e demonstrativo - o de morrer - afirmava Platão. A tradição mito- Resistência francesa e nunca Platão e Aristóteles. Ao mesmo tempo, o lógica define assim um estilo exemplar de abandonou sua vocação de antigo sistema de governo, mantido por existência, nos planos moral e estético, militante. Fato que contrasta, em um rei ou por um grupo aristocrático, dá que para os gregos se confundem. aparência, com o clichê do lugar à organização da cidade (polis), na A mitologia assim descrita exprime o intele ctual isolado em sua torre qual todos os cidadãos podem discutir essencial da religião grega? de marfim. Ao contr ário, Ve rnant, igualmente e concorrer à decisão coletiva. que carrega a justa fama de ter No seio desse duplo processo cultural e Vernant – Não. Apenas em parte. Natu- colocado os estudos helênicos em político, é impossível discernir onde está a ralmente, ela se refere a deuses aos quais outro nível, poderia le mbrar que causa e o efeito. Entretanto, o triunfo do devem ser rendidas honras, junto aos foi na Grécia antiga que o ser logos na era clássica foi desfavorável aos quais os humanos se sentem inferiores ao humano foi def inido como animal gregos, cuja civilização não tem, portanto, nada e cujo brilho divino não chega até os político. No novo livro, ele trafega nada de miraculosa: na realidade, não mortais porque estes não são dignos. Mas entre mito e polít ica com dupla tentavam compreender o que contradiz a a religião está relacionada também com a mão de dir eção: inve stigando o esse princípio lógico de identidade, parti- prática, com rituais que acompanham e que há de político no mito e o que cularmente os fenômenos exteriores, que ordenam todos os gestos da existência. De há de mítico na política. Tudo não se prestam a demonstrações nem ao fato, a religião está em toda a parte, no muito atual, e mbora às vezes ele cálculo. É por isso que não existiu na modo de comer, de entrar e sair, de se fale de fatos e gente de 2.500 realidade uma física grega, por causa da reunir na ágora. Nada separa a esfera anos atrás. Na verdade, Vernant ausência da experimentação e da aplica- religiosa da esfera civil: o religioso é políti- olha o passado para melhor ção do cálculo à realidade. co, o político é religioso. Na vida coletiva, entender o prese nte. a irreligião é inconcebível.