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RASCUNHO de possível capítulo da tese sobre o Rock Brasileiro

Hermano Vianna
novembro de 1990

No dia 24 de outubro de 1955, Nora Ney gravou Ronda das Horas, o primeiro rock lançado no
Brasil com letra em português. Essa música era uma versão de Rock Around the Clock, do grupo
Bill Halley and His Comets, que naquele ano tinha feito sucesso em todo mundo por ser o tema de
abertura do filme Blackboard Jungle, uma das primeiras tentativas hollywoodianas (o filme foi
produzido pela MGM) de criar ficções destinadas a um público "teenager".

A combinação pode parecer estranha: Nora Ney já era uma cantora consagrada, tendo sido eleita a
Rainha do Rádio (o prêmio máximo que uma cantora brasileira da época podia receber) em 1953.
No mesmo ano que gravou Ronda das Horas, Nora Ney já tinha lançado sucessos como o samba
Meu Lamento (de Ataulfo Alves e Jacó do Bandolim) e o samba-canção Se Eu Morresse Amanhã
(de Antônio Maria). Não se tratava, portanto, de nenhuma principiante usando um novo modismo
para se projetar. E o rock, em 1955, ainda não podia ser chamado de um modismo: era apenas uma
novidade interessante, como o cha-cha-cha ou o twist.

O ecletismo fazia parte do repertório dos cantores e compositores brasileiros dos anos 50 e de toda a
primeira metade do século XX. O compositor Ernesto Nazaré (1863-1934), por exemplo, tocava
polcas, valsas, tangos e valsas de sua autoria. Mais adiante, a Rádio Nacional (a principal rádio
brasileira nos anos 40/50, com programação transmitida para todo o país), apesar de não usar discos
e sim música ao vivo, não divulgava apenas ritmos "nacionais". O jornalista Ruy Castro, em seu
livro Chega de Saudade (que conta a história da Bossa Nova), comenta: "Nem toda essa música era
brasileira na Rádio Nacional. Ao contrário: em quantidade de minutos no ar, a música internacional
batia os sambas, choros e baiões (e mais Jararaca e Ratinho) por quase 3 a 1 - e olhe que as versões
dos sucessos internacionais entravam na conta da música brasileira. Só Haroldo Barbosa fez mais
de seiscentas versões entre 1937 e 1948 [...] Com todos seus músicos especialistas em foxes,
mambos, rumbas, tangos, valsas e boleros (tinha até um cowboy de araque, Bob Nelson, para cantar
au-la-rê-is), é provável que a Rádio Nacional fosse a maior democracia rítmica do mundo." (Castro,
1990: 61)

No meio de tantos exotismos musicais, não foi nenhuma surpresa ouvir Nora Ney cantando um
rock. Não havia o desejo de chocar o público com uma "rebeldia" (o rock, na época, ainda não
havia ganhado o apelido de música rebelde), nem havia a preocupação de inventar uma música
juvenil brasileira. O rock era um ritmo de sucesso a mais. Ronda das Horas freqüentou as paradas
de discos mais vendidos no Brasil (havia uma outra versão brasileira dessa música, gravada pela
cantora Heleninha Silveira), mas não gerou nenhuma "febre de rock". Nada indicava que o rock ia
ter uma influência tão duradoura no panorama musical brasileiro a ponto de, nos anos 80, se
transformar numa das principais fontes de lucro da indústria de discos do país.

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Neste capítulo vou analisar alguns aspectos da história do rock brasileiro (ou melhor, do rock
cantado em português e produzido no Brasil; já que o rótulo "rock brasileiro" é usado com mais
freqüência - por músicos, críticos e consumidores - para se referir à produção dos anos 80), das
primeiras gravações à explosão comercial dos anos 80, passando pela Jovem Guarda, pelo
Tropicalismo e pelo rock "progressivo" e "underground" dos anos 70. A partir dessa história quero
entender também como a idéia de "juventude" penetra no Brasil, exigindo a formação de um
mercado de bens culturais destinados a um "público jovem". Penso que essa é uma faceta
importante e inexplorada da recente história brasileira.

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O rock passou a ser realmente conhecido no Brasil em 1956, com o sucesso do cantor Elvis Presley
e do filme Rock Around the Clock. Nesse ano, Elvis Presley lançou seus primeiros discos para uma
grande gravadora, a RCA, e também teve a sua primeira experiência cinematográfica atuando no
filme Love Me Tender (lançado em novembro). A repercussão do fenômeno Elvis no Brasil foi
imediata. Na revista Cinelândia de outubro de 1956 (nº 96) já está publicada uma matéria (a maioria
das matérias dessa revista parece ser traduzida de publicações norte-americanas) que pergunta:
"Elvis Presley, quem é ele? Por que faz as garotas desmaiar?" Mais informações da matéria: "canta
uma mistura de rock and roll com a música do oeste"; "já assinou contrato com o cinema";
"alcançará o mesmo sucesso que o falecido James Dean."

Em março de 1957 a RCA brasileira lança "a versão brasileira do amado e odiado Elvis Presley"
(como escreve a Revista do Disco daquele mês): tratava-se, nada mais nada menos, do cantor Caubi
Peixoto - então com 22 anos - em fase roqueira. Caubi já era sucesso cantando outros estilos
musicais. Na Revista do Disco (mesma data acima) aparece o seguinte diálogo: "'Você vai deixar de
cantar sambas?' Caubi soltou uma gostosa gargalhada e respondeu: 'Como diria um político
situacionista, isto é intriga da oposição. Não deixarei de cantar os nossos bonitos sambas, como
também não abandonarei o baião ou a marchinha.'"

Como dá para perceber nessa declaração, na época já parecia haver uma oposição "nacionalista" .
Mas, para Caubi Peixoto (como para Nora Ney), tanto fazia gravar um rock ou um samba ("desde
que sejam composições que mereçam que eu as grave" - diz Caubi na matéria citada acima) -
canções de qualquer estilo musical, não importa se norte-americano, cubano ou brasileiro, poderiam
fazer parte de seus repertórios. Por isso Caubi aceitou logo ("o rock and roll, como todos sabem, é a
música do momento") a sugestão da RCA de gravar a música Rock'n'Roll em Copacabana (lançada
- grande ironia? - no carnaval de 1957). Alguns versos da letra dessa música merecem ser citados:
"Sol, sol, sol, sol, sol/ Rock'n'Roll, roll, roll, roll (bis)/ Foi lá na porta do cinema começou dançando
Rock'n'Roll/ Era de dia, ninguém via, mas fazia alucinado sol/ Foi lá na porta..."

Talvez o cinema citado nessa letra seja o Roxy, de Copacabana, onde passou no Rio de Janeiro o
filme Rock around the clock, que foi o primeiro "rock'n'roll musical", lançado pela produtora norte-
americana Columbia em março de 1956. O filme correu todo o mundo despertando polêmicas onde
era exibido. Jovens de várias nacionalidades tinham a mesma reação nas platéias dos cinemas:
dançavam, gritavam, quebravam as cadeiras. Ou pelo menos era isso que os jornais da época
falavam. No Brasil não foi diferente. Caetano Veloso, em depoimento para a revista Rock (nº 10, p.
20), fala sobre a sua experiência de assistir o filme em Salvador: "Aí quando eu fui ver o filme, ele
me impressionou de cara por que era tão malfeito quanto as chançadas brasileiras [...] E de repente,
eu comecei a ficar com medo de ser possuído por aquela coisa do rock tal como a gente tem medo
de ser possuído por um orixá em terreiro de candomblé. Tive medo mesmo. Eu dizia a mim mesmo
que era um absurdo, que eu estava ali e aquilo não tinha graça nenhuma, pobre, malfeito, essa
música não tá me tomando. Inclusive tinha umas pessoas que eu notei que eram bem inautênticas,
que queriam reproduzir o que tinham lido nas revistas, e subiam nas cadeiras. Não era uma coisa
que tomasse a platéia, eram só três ou quatro pessoas, e bem de propósito mesmo, mas ainda assim
eu continuava com medo irracional."

Três ou quatro pessoas, não importa: os jornais e revistas já tinham começado a propagandear o
nascimento de uma "juventude transviada" (não por acaso o título com que foi batizado o filme
Rebel Without a Cause, protagonizado por James Dean, nos cinemas brasileiros). O fenômeno era
considerado sério, amoral e perigoso. De certa forma, essa preocupação com a moralidade frágil dos
jovens não era recente. Em 1928, por exemplo, o Padre J. Cabral lançou o livro As lutas da
Mocidade, onde encontramos a seguinte condenação de "danças modernas" como o fox-trot, o one-
step, o black-bottom: "desordenada aproximação dos sexos, fomentos de sentimentos indignos [...]
quer pela origem degradante, quer pela perversão que encerra." (Cabral, 1928:31) O rock foi muitas
vezes descrito com palavras semelhantes: "praga" (Revista do Disco, fevereiro de 1957);
"contribuindo para delinqüência juvenil" (Cinelândia, maio de 1956); etc. Talvez a comparação que
Caetano Veloso faz do rock com o candomblé seja justa em vários outros sentidos: o rock também
tem origem negra, pobre ou "degradante" (como quer o Padre J. Cabral). Não é coisa para um
adolescente brancos de boa família consumir...

Mesmo com todo o tom alarmista da imprensa, e com o sucesso surpreendente de Elvis Presley e de
Rock Around the Clock, ninguém no Brasil parecia ainda levar o rock a sério. Tudo parecia ser uma
novidade passageira, mais um signo de "um tempo que se acelerava" em ritmo desenvolvimentista.
Tanto que Caubi Peixoto, voltando de uma excursão pelos Estados Unidos em maio de 1957 (dois
meses depois de Rock'n'Roll em Copacabana), decreta que "o calipso pode desbancar o rock"
(Revista do Disco, maio de 1957). Caubi, como o "Brasil" do presidente Juscelino Kubitschek,
estava sedento por mais novidades.

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O Brasil dos anos 50 estava passando por grandes transformações. No início da década, a indústria
já tinha ultrapassado a agricultura como setor mais dinâmico da economia, apesar de ainda não ser o
dominante (a agricultura ainda era responsável por 66% do produto total gerado pela indústria e
agricultura - ver Cohn, 1975). Mas isso por pouco tempo: entre 1956 e 1961, o período do governo
Kubitschek, a expansão do setor industrial foi algo em torno de 80%. O "desenvolvimentismo"
desse governo era essencialmente industrial e internacionalizante (ao contrário do período "mais
nacionalista" anterior, marcado pela campanha do "petróleo é nosso", que resultou na criação da
Petrobrás em 1953). Juscelino Kubitschek (era o tempo dos 50 anos de desenvolvimento em cinco
anos de administração pública) criou condições favoráveis para as indústrias estrangeiras se
implantarem no país.

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A crescente importância do setor industrial ocorria em paralelo ao crescimento da população urbana


(que inicia a década com uma taxa de crescimento que era o dobro daquela da população rural).
Apesar de ser só na virada da década de 70 que a população brasileira passa a ser majoritáriamente
urbana (em 1970 a população urbana representa 55,98% da população total, enquanto que em 1950
esse número era bem menor: 31,16%), já era possível dizer que nos anos 50 o Brasil vivia um
processo de acelerada urbanização.

É nesse contexto industrializante (multinacionalizante), urbanizante e desenvolvimentista que o


rock chega ao Brasil. Um contexto sem dúvida nenhuma propício para a boa recepeção do novo
estilo musical: o rock era uma música essencialmente urbana e industrializada. Além de ser produto
da eletrificação do blues (feita, como comentei no capítulo x, pelos negros que deixavam as
fazendas e iam trabalhar nas novas metrópoles industriais dos Estados Unidos) e de sua apropriação
via rádio, televisão e cinema pelos adolescentes brancos, o rock também lucra com a consolidação
da indústria norte-americana em escala mundial (incluindo, é claro, o Brasil), um fenômeno típico
dos anos 50.

Os Estados Unidos saem da Segunda Guerra Mundial como a maior potência econômica do mundo
capitalista (o Brasil saia da guerra com crédito na Europa mas em déficit com os Estados Unidos).
Tal fato só podia contribuir para a venda internacional dos produtos da cada vez mais organizada
indústria cultural norte-americana. Em 1946, por exemplo, cerca de 60% do tempo de projeção
cinematográfica fora dos Estados Unidos é ocupado por filmes norte-americanos (dado citado por
Hennenbelle, 1978: 32). O crescimento de Hollywood foi extramente veloz: em 1914 apenas 1/10
do mercado cinematográfico internacional era dominado pelos filmes norte-americanos. Os anos
que se seguem ao final da Segunda Guerra são tidos como o tempo da "consolidação definitiva"
(para mais dados, ver Hennenbelle, 1978, capítulo 1) do cinema dos EUA.

No campo da indústria fonográfica, as gravadoras norte-americanas também passam a ter, depois da


Segunda Guerra, uma penetração mundial antes inimaginável. Hollywood ajudava a divulgação dos
novos estilos musicais e das novas danças, mas isso não era tudo. Talvez o fator mais importante
para a reorganização do mercado de discos internacional (e do posterior predomínio norte-
americano) tenha sido uma inovação técnica: a invenção do microssulco (micro-groove) nos
laboratórios da CBS, nos Estados Unidos, com a utilização do vinil como material para a fabricação
dos discos (que passam a girar em 33 1/3 rotações por minuto ou rpm). O disco anterior, de 78 rpm,
era feito de resina e exigia um processo técnico menos elaborado em sua fabricação. Isso
possibilitou o surgimento de pequenas gravadoras em todo o mundo dedicadas a lançar artistas
locais. Com a chegada do microssulco (e, já que o vinil permitia maior qualidade de reprodução
sonora, de outras novidades como o Hi-Fi - ou alta-fidelidade - e o estéreo), os custos de produção
dos discos aumentaram vertiginosamente e as gravadoras de países como o Brasil não tinham mais
condição de competir com o produto norte-americano (ou inglês - a Inglaterra possui a única outra
indústria fonográfica capaz de competir com aquela dos Estados Unidos; porém, desde os anos 50, a
maioria quase absoluta de seus lançamentos são de músicos que imitam os estilos norte-
americanos). Resultado: uma queda brutal na venda de discos naquele território que veio a ser
chamado de Terceiro Mundo. No Brasil, por exemplo, a quantidade de discos vendida nos anos 50
foi 50% menor do que aquela da década de 40. Um bom ano para discos de 78rpm no Brasil
significava vendas em torno de 18 milhões de discos. Em 1961, o mercado fonográfico brasileiro
pós-vinil vendeu a quantia bem inferior de 10 milhões de discos .

Houve então no Brasil uma elitização do mercado fonográfico. Só uma faixa restrita da população
podia comprar os novos toca-discos e mesmo os novos discos (mais caros que os 78 rpm). As
rádios, que antes se dedicavam principalmente à música ao vivo, passam a ter cada vez mais
programas comandados por disk-jockeys que, como o nome indica, tocam apenas discos,
principalmente norte-americanos. Essa nova oferta radiofônica e discográfica encontra uma
demanda também recém-criada: jovens brasileiros que vivem numa sociedade cada vez mais urbana
e industrial (como discuti no capítulo x, talvez só existam jovens desse tipo em sociedades urbanas
e industriais) e que, não se identificando mais com a música tradicional brasileira, procuram uma
nova linguagem artística para exprimir seus sentimentos e visões de mundo. No final dos anos 50
alguns desses jovens inventaram a bossa nova. Outros adotaram o rock'n'roll.

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A partir de 1957 começaram a ser formadas, em várias cidades, as primeiras bandas do rock
brasileiro. Os integrantes dessas bandas não eram mais ídolos consagrados como Nora Ney ou
Caubi Peixoto, para quem o rock era apenas mais um estilo musical no seu repertório. Para pessoas
como Erasmo Carlos, no Rio de Janeiro, Raul Seixas, em Salvador, ou Rita Lee, em São Paulo (os
três já eram roqueiros nos anos 50), o rock era o único estilo musical admissível e até um estilo de
vida.

Erasmo Carlos era um dos integrantes da Turma do Matoso, um grupo de jovens fanáticos por rock
da Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Foi nos anos 50 que a divisão do Rio em Zona
Sul e Zona Norte ganhou um maior peso no cotidiano da cidade, já começando mesmo a existir o
preconceito contra os suburbanos (um nome genérico dado aos moradores da Zona Norte ). Essa
divisão também influia na vida musical da cidade: enquanto a turma tijucana escutava rock, a
garotada mais rica da Zona Sul (principalmente Copacabana, bairro de muitas boates, e Ipanema)
criava a bossa nova, um estilo musical que pode ser descrito como uma releitura do samba a partir
dos critérios sofisticados do "cool jazz".

Mas é preciso tomar cuidado com essas generalizações apressadas. Como mostra Ruy Castro na sua
já citada história da bossa nova, muitos dos criadores desse movimento zona-sulista se conheceram
no Sinatra/Farney Fan Club (o primeiro fã-clube brasileiro) que foi fundado na Tijuca em 1949 por
três garotas que tinham entre 15 e 17 anos (ver Castro, 1990, capítulo 1). Os membros desse fã-
clube se reuniam para escutar os discos Frank Sinatra e Dick Farney, mas também de Stan Kenton,
Lennie Tristano, Lee Konitz etc. É interessante descobrir na Tijuca um centro divulgador de
músicas importadas.

Do outro lado, na Zona Sul, também existiam roqueiros. Aliás, o ponto principal da reunião dos
roqueiros e lambreteiros da cidade era o bar Snack, em Copacabana, também frequentado pelos
integrantes da Turma do Matoso. Ruy Castro conta uma história curiosa sobre esse bar: "Quando o
78 com Chega de Saudade saiu da prensa, pretinho e lustroso, João Gilberto [o criador da bossa
nova] foi levá-lo pessoalmente a Lúcio Alves [...] Chega de Saudade começou a rodar, mas, em vez
das delicadas flautas e cordas, o que eles ouviram foi um tenebroso ronco de motores, cinco andares
abaixo, com vrummms de fazer tremer o edifício. O apartamento de Lúcio, na esquina das ruas Raul
Pompéia e Francisco Sá, no Posto 6, ficava em cima do Snack Bar - um botequim que servia de
ponto de encontro entre os roqueiros do bairro, como Carlos Imperial, e os ferozes lambreteiros da
Tijuca, comandados pelos jovens Erasmo Carlos e Tim Maia." (Castro, 1990: 191) O rock como
inimigo da delicadeza da bossa nova? A imagem pode ser sugestiva, mas não chega a ser totalmente
verdadeira, como demostram as análises estéticas sobre a Jovem Guarda feitas por Augusto de
Campos em O Balanço da Bossa (que aproximam o cantar de Roberto Carlos com o de João
Gilberto, distanciando-os da tendência melodramática que predominava na música popular
brasileira de até então - ver Campos, 1974, principalmente pp. 51-57).

Mesmo com esse embaralhamento de Zonas, ainda é possível falar de uma bossa nova mais Zona
Sul e de um rock (que vai desembocar no movimento da Jovem Guarda - ver adiante) mais Zona
Norte. Pelo menos foi essa a visão transmitida por Lilian (integrante da dupla Leno e Lilian, que fez
sucesso durante a explosão da Jovem Guarda na segunda metade dos anos 60) no seu depoimento
dado durante uma série de debates sobre a história do rock brasileiro realizada na Funarte (chamada
As Tribos do Rock Tropical na Taba Funarte), Rio de Janeiro, em janeiro de 1990 (na qual eu fui
um dos debatedores). Lilian disse que por ser uma garota de Copacabana "eu deveria cantar bossa
nova", mas por causa de um namoro com Renato Barros, líder do Renato e Seus Blue Caps (uma
banda de rock formada em 1960 no bairro de Piedade, Zona Norte profunda), "eu começei a me
envolver cada vez mais com o rock." No início do romance, contou Lilian, Renato chegou a fingir
por meses que morava na Zona Sul com medo de Lilian terminar o namoro se descobrisse sua
condição de suburbano. Esse depoimento mostra como, mesmo no imaginário dos primeiros ídolos
do rock carioca, a divisão entre Zona Sul e Zona Norte tinha um grande peso, a ponto de definir
territórios musicais e padrões ideais de comportamento ("garota da Zona Sul não deve cantar rock"
etc.)

Não consegui ainda encontrar um motivo para o rock no Rio de Janeiro ter tido uma repercussão
inicial maior entre a juventude de classe média baixa da Zona Norte (o que se assemelha, em linhas
gerais, ao caso norte-americano, onde o rock foi adotado primeiro por jovens brancos mas pobres,
vide o caso Elvis Presley e outros exemplos analisados no capítulo x), um fenômeno que
praticamente se inverte nos anos 80, quando a maioria dos grupos de rock foi formada pela
juventude da classe média alta da Zona Sul. Mesmo se pensarmos em termos nacionais (os casos
Rita Lee e Raul Seixas são exceções - ver adiante - que talvez confirmem a regra) podemos
indentificar, entre os precursores do rock brasileiro uma maioria de jovens das camadas populares
que morarava nos subúrbios das grandes capitais ou em cidades do interior . O rock brasileiro, em
seus primeiros anos, não foi (definitivamente) um movimento musical criado pelos filhos da elite
(cultural, política ou econômica) do país, apesar da maior facilidade que esses jovens teriam de ter
acesso a informações estrangeiras (viagens, discos importados etc.). Os artistas jovens de classe
média brasileira, no final dos anos 50, pareciam estar mais atentos a outras informações. Por
exemplo: a bossa nova, o concretismo, o neo-concretismo e (por que não?) o nacional-populismo
da UNE .

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No início de 1957, o tijucano Erasmo Carlos tinha apenas 16 anos. Ele dividia seu tempo entre as
aulas no colégio Lafayette, um emprego de escriturário (sua mãe era doméstica, separada do pai) e
as reuniões, passeios e festas da Turma do Matoso. Foi numa dessas festas que Erasmo (seu
sobrenome verdadeiro é Esteves) ouviu rock pela primeira vez: "Eu era adolescente [...]. Num
sábado, era uma dessas festinhas que sempre ia com a minha turma [...] e estava tocando uma
música a todo volume: Rock Around the Clock, com o Bill Halley. Aquela música me arrepiou
inteiro, mexeu com os meus órgãos. Fiquei maluco. [...] Depois descobri um programa semanal,
Hora da Broadway, com o hit-parade americano: Chuck Berry, Fats Domino, Little Richard. [...]
Comecei a recortar tudo sobre Elvis Presley, economizava dinheiro do lanche para comprar revistas
americanas e imitar o meu ídolo." (Depoimento para a revista Rock, nº 2)

Em 1958, Erasmo é apresentado a um outro adolescente (de 15 anos) que também era fanático por
rock: Roberto Carlos. Os dois logo ficam amigos e formam a banda The Sputiniks (que também
contava com Tim Maia), que logo foi rebatizada de The Snacks em homenagem ao ponto de
encontro dos roqueiros cariocas em Copacabana.

Roberto nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Sua mãe era costureira e seu pai
era relojoeiro. Desde criança ele já cantava em rádio, interpretando boleros, baladas country e
sucessos de Nelson Gonçalves. Em 1957, sua família se mudou para o Rio e passou a morar no
bairro suburbano de Lins de Vasconcelos. Nessa época, Roberto Carlos continuava a se apresentar
em programas para calouros no rádio e a estudar. Foi na escola que conheceu a pessoa que iria
apresentá-lo a Erasmo: "Entrei na escola Ultra, na Praça da Bandeira, onde fiz o artigo 91. Lá
conheci o Arlênio Lírio, que era de rádio e chegou a ser diretor da rádio Nacional. Ele conhecia o
pessoal da rua Matoso na Tijuca. E esta rua dava na Barão de Itapagipe, em frente à casa do Tim
Maia. O Erasmo morava por ali e a gente se encontrava, ficava tocando violão. Aí já estava rolando
rock [...]. No cine Roxy tinha passado o filme Juventude Tranviada, com o James Dean. Eu tinha
um blusão como o dele, vermelho, usava botas [...]. Um cara chamado Olavo Terceiro, que era
assistente do Cianca de Garcia, apresentador de um programa de televisão, me levou para o
Teletour. Cantei Tutti frutti e já comecei a ficar conhecidinho na escola." (Entrevista para a revista
Bizz, Agosto/88, p. 44)

The Snacks também se apresentaram na televisão, no programa Clube do Rock e no programa Os


Brotos Comandam, ambos na TV Continental e apresentados por Carlos Imperial. A banda ainda
não tinha composições próprias e tocava músicas de Elvis Presley, Gene Vicent, Budy Holly etc. Os
Snacks foram ao programa pela primeira vez para fazer um teste e logo ficaram amigos de seu
apresentador.

Carlos Imperial foi uma pessoa muito importante para a divulgação do rock no Brasil. Ele morava
em Copacabana, tinha sido fã de jazz (tendo inclusive tido contato com o Sinatra/Farney Fan Club,
porque era amigo de Johnny Alf), tinha formado um grupo de rock com Carlinhos Lyra (futuro
compositor de bossa nova e membro do CPC) na guitarra, e apresentava programas no rádio e na
televisão: "eu fazia, no rádio, um programa diário chamado Os Brotos Comandam [na Rádio
Guanabara]. Foi depois e junto com o Jair de Taumaturgo [...]. O Jair tinha grande sucesso com seu
programa diário. Mas ele só fazia rock um dia na semana: Hoje É Dia de Rock - ele anunciava. E,
nos outros dias, fazia outros ritmos: hoje é dia de tango, hoje é dia de rumba - apresentava. Ele se
fixou no rock e acabou com os programas de outros ritmos quando eu apareci com meu programa e
comecei a acabar com a audiência dele." (depoimento para a revista Rock, nº 17, p.22)

Foi também Carlos Imperial que levou Roberto Carlos para gravar seus primeiros discos na
gravadora Philips. Mais do que isso: as músicas gravadas por Roberto Carlos eram todas bossas-
novas compostas por Imperial (Brotinho sem Juízo, Fora de Tom). Roberto Carlos explica assim o
temporário abandono do rock: "Mas de repente o Clube do Rock saiu do ar, não pintava mais
showzinhos, a grana encurtou [...]. Foi aí que começou a pintar a bossa nova. Tinha uma prima
minha casada com um cara chamado Amaral que era gerente da boate Plaza. [...] Fiquei lá nove
meses. Eu era crooner [...] Foi no Plaza que um dia o Imperial vinha passando, viu minha foto na
porta e entrou: 'ô, meu filho, você por aqui? O que você está fazendo?' 'Estou cantando bossa
nova?''O quê? Bossa Nova??? Quá, quá, quá. Eu vou levar você aí em uns lugares.' Me levou.
Conheci o Carlos Lyra e uma vez tivemos uma grande noite, na casa de Nara Leão, eu e o Erasmo.
Foi assunto para um mês inteiro. Imperial me apresentou ao Chacrinha. O Chacrinha me apresentou
o Rafael de Almeida da Polydor, onde eu fiz meu primeiro disco. Não vendeu nada. Foi aí que
arrumei um emprego no Ministério da Fazenda." (entrevista para a revista Bizz, Agosto de 1988,
pp.45/47)

Para Roberto Carlos, o sucesso só chegou com Splish Splash, versão de rock norte-americano feita
por Roberto e Erasmo e gravada em 1962. As versões eram prática comum no mundo do rock
brasileiro. Foi com as versões Estúpido Cupido e Banho de Lua que Celly Campelo, uma
adolescente paulista criada na cidade interiorana de Taubaté, alcançou o estrelato nacional. O
sucesso foi tanto que Celly foi contratada em 1958 pela TV Record de São Paulo para apresentar o
programa Celly e Tony [irmão de Celly, também cantor de rock] em Hi-Fi, que depois passou a se
chamar Crush em Hi-Fi, atingindo seu auge de popularidade em 1961. Em São Paulo, o rock já
tinha produzido ou estava produzindo inúmeros cantores e bandas, como Sérgio Murilo, Ed Wilson,
Ronnie Cord, The Jordans, The Jet Blacks e The Clevers , Jerry Adriani, a maioria deles (como a
maioria dos roqueiros cariocas) vinda dos subúrbios e das camadas pobres (ou da classe média
baixa) da população de suas cidades.

Mas foi o sucesso nacional, em 1963, de Rua Augusta ("passei na rua Augusta a 120 por hora"), um
rock (que não era versão) gravado pelo cantor Ronnie Cord, que fez com que as gravadoras
brasileiras prestassem mais atenção e divulgassem melhor o rock produzido no Brasil. Os grandes
sucessos se tornaram freqüentes, a maioria deles assinados pela dupla de compositores Roberto e
Erasmo Carlos e interpretados pelo próprio Roberto: Parei na Contramão, É Proibido Fumar, Festa
de Arromba, Quero que Vá Tudo Pro Inferno. Músicas como essas, que flertavam com a idéia do
hedonismo/rebeldia juvenil, fizeram de Roberto Carlos o cantor brasileiro mais popular, fato que
logo fez a TV Record de São Paulo convidá-lo (junto com Erasmo Carlos e a cantora Wanderléia)
para apresentar o programa Jovem Guarda , que estreou em setembro de 1965 e saiu do ar em 1969
.
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O jornalista e produtor musical Zuza Homem de Mello disse, em depoimento durante a série de
debates As Tribos do Rock Tropical na Taba Funarte, que o programa Jovem Guarda só foi criado
por causa de um conflito entre a Record e o futebol paulista (que tinha medo que a transmissão ao
vivo, já possível na época, afastasse o público dos estádios e por isso proibiu a presença da televisão
nos jogos), tanto que era transmitido justamente aos domingos, no horário dos mais importantes
jogos de futebol. Se essa explicação é correta, a Record não podia ter se dado melhor. Jovem
Guarda virou mania nacional e desencadeou um fenômeno de massas poucas vezes repetido durante
a história da mídia brasileira. O programa não lançava apenas música, mas também gírias, gestos e
até uma grife de moda chamada Calhambeque (nome de uma das músicas lançadas por Roberto
Carlos), que foi adotada por um número enorme de crianças e jovens brasileiros. Penso que a
Calhambeque foi a grife de moda jovem com nome brasileiro mais bem sucedida no Brasil. Hoje,
por exemplo, a moda jovem fabricada no Brasil é dominada por nomes como Company, Ocean
Pacific, Benetton, Levi's etc. - nenhum deles com ligações claras com o mundo do rock (o surf
parece ser a referência básica para a moda jovem brasileira da atualidade).

No programa Jovem Guarda, Roberto Carlos recebeu o título de Rei da Juventude (na sua fase
romântica pós-1970, desse título Roberto Carlos apenas guardou a palavra Rei), Erasmo Carlos
passou a ser conhecido como Tremendão e Wanderléia (mineira de Lavras, mas que morou desde os
nove anos em subúrbios cariocas como a Ilha do Governador e Cordovil, e começou cantanto
sambas e boleros nos bailes do Social Ramos Clube e em programas de calouro) recebeu o apelido
carinhoso de Ternurinha. Foi assim que ficaram conhecidos os primeiros grandes ídolos jovens
brasileiros. E não eram ídolos totalmente bem comportados. Em 1975, Erasmo Carlos avaliou assim
seu tempo de Jovem Guarda: "Foi a época de quebrar tabus, de usar cabelo grande, roupas
louquíssimas... eu me orgulho de ter sido um dos primeiros a ser chamado de bicha por essas coisas.
Agüentei muitas barras pesadas. Mas a moçada se ouriçou e a Jovem Guarda foi, aqui, guardadas as
proporções, o mesmo que os Beatles foram para o mundo." (entrevista para o jornal Hit Pop, encarte
da revista Pop, janeiro de 1975, p. 4) Jerry Adriani respondeu assim à minha pergunta de se ele se
achava rebelde no tempo da Jovem Guarda (pergunta feita durante a série de debates As Tribos do
Rock Tropical na Taba Funarte): "Uma vez, eu e Roberto Carlos fomos de carro para São Paulo e
uns caminhoneiros nos pararam na estrada e queriam brigar conosco só porque éramos cabeludos.
Nós usávamos roupas que eram consideradas de bicha. Na Bahia, eu e o Wanderley Cardoso fomos
apedrejados durante nosso primeiro show em Salvador. Mas no ano seguinte, lotamos um ginásio
baiano duas vezes numa só noite. Foi uma loucura."

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Em 1957, a família de Raul Seixas (seu pai era engenheiro) se muda para a casa vizinha ao
consulado norte-americano de Salvador. Raul logo fica amigo dos filhos do cônsul e é através deles
que escuta rock pela primeira vez na vida, e antes da maioria dos jovens baianos: "Lá na Bahia eu
estava na frente de todos em matéria do que estava acontecendo no mundo, com relação à música.
Claro que eu não tinha consciência da mudança toda que o rock implicava. Eu achava que os jovens
iam dominar o mundo, mas era mais a canalização de uma revolta." (depoimento para a revista
Rock, nº 3, p.22)

Raul tinha todos os traços de um adolescente transviado (de classe média): "vivia matando aula no
São Bento pra ouvir disco. Passei 5 anos na 2ª série do ginásio. Os padres ficavam loucos comigo.
Eu freqüentava o psiquiatra dentro do colégio, minha mãe me achava esquisito porque não
namorava. Não namorava mesmo. Sei lá... eu acho que eu era tímido." (ibid.) Em 1959 ele não
ficou apaixonado pela bossa nova como seu conterrâneo Caetano Veloso (Caetano - filho de um
funcionário público - tinha 17 anos, Raul tinha 14), muito pelo contrário: "Eu odiava bossa nova. Eu
não conseguia tocar, era muito complicado e aquelas letras não me diziam nada." (ibid.) Nesse ano
ele já tocava com Os Panteras, "o primeiro conjunto de rock da Bahia", copiando o estilo de Chuck
Berry e Little Richard.

Os Panteras logo se tornaram uma banda conhecida, mas principalmente nos bairros da periferia de
Salvador. No início dos anos 60 a popularidade aumentou: "a gente tinha prestígio paca. Tínhamos
aparelhagem e sabíamos o repertório dos Beatles todinho. Éramos o conjunto mais caro de
Salvador." (ibid.) Em 67, a convite de Jerry Adriani, a banda resolve se mudar para o Rio de Janeiro
e tentar o sucesso nacional. A mudança de cidade foi um erro. A Jovem Guarda já estava em
decadência e a recém-criada juventude brasileira descobria seus novos ídolos em outros baianos,
Caetano Veloso e Gilberto Gil, justamente aqueles que gostavam da bossa nova e que agora
estavam se utilizando do rock para criar o tropicalismo. A música de Raul Seixas não tinha nada de
tropical, poderia ter sido produzida em qualquer outro lugar do mundo. E, de certa forma, sua banda
escolheu os padrinhos errados para a vida carioca: sua banda andava com Jerry Adriani e Renato e
Seus Blue Caps, pessoas de baixa credibilidade no meio intelectual brasileiro (como a totalidade da
Jovem Guarda permaneceu, mesmo com os elogios de Caetano Veloso e de Augusto de Campos).
Do outro lado, Caetano e Gil, trabalhavam com o Teatro de Arena, faziam trilha sonora para
cinema, inscreviam músicas nos festivais da televisão. Os tropicalistas pouco a pouco (apesar do
escândalo incial provocado pela sua aliança com as guitarras elétricas) adquirem respeitabilidade
crtica e, quase ao mesmo tempo, ajudam o rock na sua busca (característica do final dos anos 60)
dessa mesma respeitabilidade, incluindo sua aceitação pelo grosso da juventude da classe média/alta
brasileira. Raul Seixas ainda teria que esperar algum tempo para ser levado à sério.

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Talvez o caso menos típico dentro dessa divisão Zona Sul/Zona Norte no processo de absorção do
rock no Brasil seja o da banda paulista Os Mutantes, cujo núcleo era formado pelos irmãos Arnaldo
e Sérgio Batista e por Rita Lee. Arnaldo (nasceu em 1948) e Sérgio (1951) eram filhos de pai
jornalista, "quatrocentão", ex-secretário do político Ademar de Barros, e de mãe pianista,
concertista clássica. O pai de Rita Lee (1947) era americano e dentista, sua mãe era italiana. Ela fala
assim de sua aproximação com o rock: "Na nossa casa na Vila Mariana, em São Paulo, não tinha
vitrola. Eu tinha era de estudar. Me informava na escola com a gurizada da minha idade. Foi lá que
fiquei sabendo de Elvis Presley, e eu jurava que eu ia casar com ele." (depoimento para a revista
Rock, nº 3, p. 22) No início dos anos 60, Rita e mais duas colegas formaram o grupo Teen Age
Singers, que chegou (convidadas por Tony Campelo) a fazer backing vocals em gravações de
grupos como os Jet Blacks e cantores como Demetrius e Prini Lopes. O encontro com os irmãos
Batista aconteceu quando Rita foi ter aula de baixo com Arnaldo, que já tinha um grupo chamado
Wooden Faces. Com a entrada de Rita Lee o nome do grupo logo passou a ser Sixsided Rockers
(era formado por três meninas e três meninos), que vira O Conjunto e, em 1966, é rebatizado de Os
Mutantes ("a gente lia muita ficção científica", justifica Rita Lee – ibid.)

Mesmo sendo filhos da classe média/alta paulista (e moradores da "Zona Sul" local), os integrantes
de Os Mutantes, por tocarem rock, conviviam diáriamente com jovens de origem muito mais pobre
que a deles (e também não tão informados sobre a "alta cultura" como eles). Mas esse período
"híbrido" iria durar pouco. Em 1967, Gilberto Gil (que conheceu Os Mutantes quando eles
gravaram backing vocals num disco da cantora Nana Caymmi) os convida para se apresentar com
ele cantando e tocando instrumentos elétricos no Festival da TV Record, com a música Domingo no
Parque. No ano seguinte, Os Mutantes participam da gravação de Tropicália ou Panis et circensis, o
disco que detonou o movimento tropicalista, e acompanham Caetano Veloso durante a apresentação
de É proibido Proibir, a música mais polêmica do Festival Internacional da Canção da TV Globo,
na época um dos mais importantes veículos para a renovação da música popular brasileira, um
espetáculo que mobilizava platéias em todo o país.

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Quem vê as gravações ou fotos desses festivais pode perceber que a apresentação visual (roupas,
cortes de cabelo) dos Mutantes já é bem diferente dos terninhos bem mais comportados dos grupos
de Jovem Guarda (que já despertavam escândalos, vide depoimentos de Erasmo Carlos e Jerry
Adriani citados acima). Rita, Arnaldo e Sérgio pareciam proto-hippies, anunciando o estilo
indumentário que uma parcela influente (em termos artísticos) da juventude brasileira de classe
média iria adotar nos próximos anos. Não foi à toa que os tropicalistas escolheram Os Mutantes
para participar de seu disco. Este era o grupo que mais se adequava aos moldes de um rock que, do
final dos anos 60 em diante, começava a lutar para ser considerado grande arte e não só uma música
para diversão de adolescentes. O tropicalismo, quase como um "agente externo", dava início a um
novo capítulo na história do rock brasileiro.

No seu primeiro momento, a aliança tropicalismo/jovem guarda não foi bem recebida pela
juventude brasileira de classe média que lotava a platéia dos festivais de música da época. Essa era
uma juventude que em sua maioria organizava torcidas a favor de "canções de protesto" (por
exemplo, Pra não Dizer que não Falei de Flores de Geraldo Vandré, que se tornou uma espécie de
hino da esquerda estudantil do final dos anos 60) e de ritmos "nacionais". Foi para essas torcidas,
que vaiavam histericamente sua música É Proibido Proibir não o deixando cantar, que Caetano
dirigiu o um famoso discurso: "Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder? Vocês não
estão entendendo nada, nada. Vocês querem policiar a música brasileira. Se vocês forem em política
como são em estética, estamos feitos!"

1968 foi um ano decisivo para a política brasileira, consolidando de uma vez por todas as
tendências ditatoriais, principalmente com a publicação do Ato Institucional nº 5 ou AI5 (pelo qual
o Executivo ganhava poderes de censura, cassação de mandatos parlamentares e até mesmo de
fechamento do Congresso), do regime militar implantado no país com o golpe de 1964. A repressão
ao movimentos de esquerda (incluindo o estudantil) se intensificava com prisões, torturas e
assassinatos. Em março de 68, quatro dias depois de assassinato do estudante Edson Luís, é
realizada a "Passeata dos 100 mil", em protesto contra o regime militar, que tomou conta das ruas
do centro do Rio de Janeiro. É neste clima político conturbado (onde o regime militar é muitas
vezes identificado como um "agente do imperialismo norte-americano" em busca da aniquilação
dos "verdadeiros valores nacionais") que o tropicalismo usa o rock (que muitas vezes foi criticado
por por nacionalistas de todo o mundo como "arma cultural do imperialismo") e que Caetano faz o
seu famoso discurso.

O tropicalismo, com sua utilização da jovem guarda, instaurava a ambiguidade e a complexidade no


território da música popular brasileira feita por artistas da classe média e de formação universitária:
rock é de direita ou de esquerda? Qual a fronteira entre o bom gosto e o cafona? Qual é a fronteira
entre o autêntico e o importado ? É possivel ser, ao mesmo tempo, vanguardista e popular? Gilberto
Gil disse, em entrevista por mim realizada, que "o tropicalismo é o grande decoficador dessas
linguagens todas; o que o tropicalismo propicia na verdade é a grande síntese que vai acabar dando
a dimensão pop à música brasileira. Não é que ele fosse pop. Hoje ele é, ele é um ingrediente do
mundo pop. Mas ele foi naquele momento um alerta, a tomada de consciência dessa necessidade de
colocar a música brasileira na vertente pop." O pop, para Gil, "é a coca-cola, a IBM, o FBI, a
glasnost, tudo isso é o mundo pop, um mundo de simultaneidade, internacionalista."

No final dos anos 60, o rock era um dos elementos principais para a construção desse mundo pop e
para a divulgação dessa atitude pop diante da vida contemporânea. Esse mundo pop não foi
imediatamente aceito pelos futuros tropicalistas e muito menos pelo público universitário de
esquerda. Caetano Veloso é explícito quanto a esse ponto: "[Eu] vinha de uma formação de bossa
nova, influenciado pelo pessoal que fazia música naquele tempo, e todo mundo tinha uma posição
defensiva com relação ao rock, porque era alienação, influência americana. Uma porção de
palavras. Havia uma antipatia brutal contra o rock brasileiro, contra as pessoas que faziam uma
música vital, comercial, ingênua." (depoimento para a revista Rock, nº 10, p.22)

No caso dos tropicalistas a aceitação do rock foi possível por dois motivos principais: de um lado
um fascínio pela arte comercial ingênua (fascínio que era uma estratégia Grande Arte internacional,
como já discuti no capítulo x citando o exemplo de Andy Warhol) e, de outro, uma sofisticação do
rock a partir da absorção tanto de idéias "contraculturais" quanto de posturas artísticas consideradas
vanguardistas. Caetano Veloso diz: "Eu fui alertado para o rock e para Roberto [Carlos] por
Bethânia [Maria Bethânia, cantora, irmã de Caetano]. Ela me dizia: 'Vocês ficam com esse papo
furado aí e o que interessa mesmo é o Roberto Carlos. Vocês já viram o programa Jovem Guarda na
televisão? É genial, Roberto Carlos é que tá com tudo. Tem força não é essa coisa furada aí.'[...]
quando eu fui olhar, desbundei." (ibid.) Gilberto Gil fala que descobriu, ao mesmo tempo, o rock e
a música do nordeste brasileiro. No rock ("Eu não faço rock. Raulzito Seixas sim, faz rock, é um
rocker. Mas existe muita coisa rock em mim"), Gil ficou interessado pelo "universo musical
misturado" dos Beatles, pela "alma" de Jimi Hendrix, pelo "arrojo poético" de Bob Dylan (ver
depoimento para a revista Rock, nº 11, p. 21). É uma atração bastante intelectualizada que pouco
tem a ver com a paixão adolescente de um Erasmo Carlos ou de uma Rita Lee. O rock, na segunda
metade dos anos 60, já podia atrair um público "sério".

O público que levava o rock "a sério" estava se formando em todo mundo (ver capítulo x) e a maior
parte dele se deixava seduzir pelas idéias contraculturais ou hippies. Os tropicalistas não escaparam
dessa sedução e se tornaram ídolos dos primeiros hippies brasileiros. A contracultura chegava ao
Brasil no conturbado momento político do AI5 e muitas vezes (como comprovam as prisões, no
Natal de 1968, de Caetano e Gil) foi tratada como um movimento subversivo pela polícia política
do regime militar. Mas o estranho "comportamento dos jovens" atraía, como nunca antes, a atenção
dos jornalistas brasileiros e da indústria de bens de consumo instalada no Brasil. Os hippies
escandalizavam e o escândalo era bom para vender qualquer tipo de produto. Tanto que ao mesmo
tempo que são vaiados nos festivais de música, Os Mutantes são contratados pela Shell como
garotos-propaganda.

Um pouco antes, em setembro de 1967, a revista Realidade (publicação da editora Abril, muito
popular na época) lança uma edição especial intitulada A Juventude Brasileira, Hoje. Os jovens são
descritos assim: "Camisas de cores berrantes, calças apertadas, jóias estravagantes, bonés esquisitos,
cabelos compridos, saias curtas, um ar displicente diante de tudo: nossas grandes cidades vêem
aumentar a cada dia esse tipo de jovem." (Realidade, setembro de 1967, p. 31) Sociólogos e
psicólogos são convidados para desvendar o que está acontecendo com a juventude. Matérias
especiais são dedicadas ao "jovem operário", ao "jovem empresário", ao "jovem estudante"
(título:"Eu Vivi numa República de Estudantes"), ao "jovem do interior", ao "jovem bancário", ao
"jovem camponês". Na contracapa, uma publicidade da Shell (que ainda iria contratar os Mutantes)
tem o seguinte texto: "Quadrado não tem vez, turma! Jovem super na direção." O mundo se dividia
entre quadrados (mais tarde chamados de caretas) e jovens. Ser jovem é não ser quadrado.

Contra a caretice, a contracultura construiu um mundo "underground". A contestação política dos


hippies não se enquadra mais nas formas tradicionais de contestação política (militância em partidos
ou mesmo grupos terroristas). O mundo "underground" é um mundo "alternativo", que tenta manter
distância da "sociedade estabelecida" e por isso mesmo é chamado de "alienante" pela esquerda
tradicional. É nessa "sociedade alternativa" que o rock brasileiro vai viver durante a maior parte da
década de 70.

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O tropicalismo, apesar e por causa do escândalo inicial (e de sua vida curta, e da força das idéias
que propõe para debate), foi um movimento artístico de grande influência no panorama da música
popular brasileira universitária (que no final dos anos 60 passa a ser chamada pela sigla MPB). Essa
música deixa, pouco a pouco, de ter preconceito contra o rock (que passa a ser misturado a ritmos
tão variados como o baião ou o samba ) - as guitarras elétricas e os sintetizadores passam a ser um
lugar comum em todos os discos. Mas os músicos que faziam apenas rock (sem misturar sua música
com ritmos "nacionais") continuaram à margem do mercado e da mídia, vivendo (como já disse) em
seu querido "underground", raramente atingindo um grande sucesso.

A história dos Mutantes pode ser um bom exemplo dessa trajetória. Depois da saída de Rita Lee
(que, seguindo carreira solo, lançou um dos poucos discos de sucesso não-underground do rock
brasileiro dos anos 70, chamado Atrás do Porto Tem uma Cidade ) e de Arnaldo Batista em
1972/73, o grupo adota o estilo progressivo (ver capítulo x) que tanto encantou os roqueiros
brasileiros daquela década. Sérgio Batista explica essa opção: "Emerson, Lake and Palmer, Yes e
King Crimson [grupos progressivos ingleses] me mostraram [...] o espaço e o tempo, a quarta
dimensão da música. Que quer dizer isso? Quando você vê um triângulo, torcendo-o, você pode
entrar nele, saca? Hoje música pra mim é a minha religião, minha iluminação espiritual, minha
própria vida." (depoimento para a revista Rock, nº 9, p.17)

Os novos integrantes de Os Mutantes em nada se parecem com o pessoal da Turma do Matoso. O


tecladista Túlio Morão estudou piano desde os sete anos e freqüentou a faculdade de arquitetura. O
baterista Rui Motta ganhou uma bateria do pai aos quinze anos e escutava Beatles desde criança. O
baixista Pedro Medeiros é filho de engenheiro agrônomo, morou em Londres e estudou no Instituto
Villa-Lobos. Não resta dúvida: para a juventude de classe média mais ou menos intelectualizada o
rock (graças não só ao tropicalismo, mas a todas as mudanças pelas quais essa música e a juventude
passava em todo o mundo) se transforma numa forma de "expressão artística" tão legítima quanto
qualquer outra.

Os grupos progressivos brasileiros se multiplicaram . Em agosto de 1974, o Vímana estreou no


teatro João Caetano do Rio de Janeiro. Durante os anos em que a banda existiu passaram por ela
músicos (de classe média) como o guitarrista Lulu Santos, o baterista Lobão e o cantor e flautista
(inglês) Ritchie, todos eles nomes importantes para a explosão comercial do rock brasileiro nos
anos 80. A música do Vímana não tinha nada a ver com as canções que deram sucesso radiofônico
para estes três "roqueiros" na década seguinte. O importante era o virtuosismo instrumental dos
músicos e a aparência "erudita" que eles queriam dar a suas composições. Lobão comenta
(entrevista que realizei em 1985): "as músicas tinham vinte minutos, os compassos eram os mais
complicados possíveis, eram "private jokes" [...]. A atitude quando a gente ia tocar era a gente é
bom à pampa, ninguém entende nada."

Por volta de 1976/77 (vide capítulo x), o rock progressivo, a atitude anti-comercial (descrita por
Lobão no parágrafo anterior) e as idéias contraculturais entram em decadência. Rita Lee cai na onda
da discoteca e grava, em 1980, a música Lança-Perfume, seu maior sucesso. O rock brasileiro
parece ter acabado. Isso até 1982, quando um grupo chamado Blitz (onde Lobão foi baterista)
obteve enorme sucesso nacional com uma música que falava em chope e batata frita. Analisarei esta
história e este sucesso, do rock brasileiro dos anos 80, no próximo capítulo.

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