Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
∗
GLOBALIZAÇÃO, EFICIÊNCIA E DEMOCRACIA
Comunicação apresentada ao II FORUM GLOBAL, sobre o tema “Estado democrático e
governança no século 21”, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Brasília, 29 a 31 de
maio de 2000
2
2
Do ponto de vista da democracia, tais sugestões podem ser traduzidas
na aplicação ao estado da teoria que se tornou conhecida como a teoria das
relações “mandante-mandatário” ou “mandante-agente” (principal-agent). O
estado surge então como o agente de um mandante que, idealmente,
corresponde ao “povo”, visto como um público homogêneo passível de ser
tomado como entidade singular. Na prática democrática, contudo, essa
idealização se converte num jogo em que múltiplos focos de interesses e
corpos coletivos, incluídos aqueles que compõem a aparelhagem
governamental de maior ou menor complexidade, procuram se afirmar e obter
que o estado aja em seu benefício. Temos, assim, uma situação em que o
estado, ele próprio uma entidade plural, emerge como o agente de muitos
mandantes.
4
Isso torna mais difícil que a ação do estado seja democrática no sentido
de ser para o povo, ou de se orientar em cada momento por considerações
referidas ao interesse geral ou público. Tendo de responder a demandas
específicas que provêm de diferentes setores, o estado estará exposto seja ao
risco de fragmentação e “balcanização” (numa espécie de caricatura da
sensibilidade democrática aos interesses variados), seja ao de se ver
controlado de vez por certos interesses e de cair no autoritarismo. Mesmo no
caso de regimes democráticos, contudo, já que o poder dos diferentes
interesses é na verdade desigual, a operação dos governos tenderá sempre a
envolver certo grau de assimetria ou viés em favor dos interesses poderosos.
Nas sociedades capitalistas, isso leva à sensibilidade especial para com os
interesses empresariais, cuja capacidade de influenciar o estado se liga ao fato
de que a dinâmica da economia se acha em boa medida sob o controle dos
empresários, que tendem assim a condicionar amplamente a própria
possibilidade de que os interesses dos demais setores possam ser promovidos.
Na mesma medida, portanto, cabe dizer que os interesses empresariais vêm de
fato, muitas vezes, a equivaler ao interesse público.
A lógica geral assim observadas contém forte incentivo a que os
interesses com acesso menos “natural” ao estado, por estarem de partida
providos de menores recursos de poder, se organizem de modo a compensar
essa deficiência e ganhar influência política. A história das sociedades
capitalistas mais avançadas ao longo dos séculos 19 e 20 pode ser lida como
um processo em que o confronto entre a fórmula ideal do governo
democrático para “o povo” e as realidade do poder e do estado como agente de
mandantes múltiplos e conflitantes vem a adquirir um conteúdo de
democratização efetiva. Como consequência dos esforços organizacionais e
institucionais que resultaram na socialdemocracia (em que o keynesianismo, o
5
3
Nos processos que se desenvolvem na atualidade, com a dinâmica da
globalização e o vigor renovado dos mecanismos de mercado, temos, para
começar, o enfraquecimento dos estados nacionais como “sujeitos” e como
focos de governança efetiva tanto com respeito à administração da economia
(integração sistêmica) quanto com respeito à capacidade de ação social e de
acomodação dos conflitos internos (integração social). Mas, à medida que
favorece a intensificação da competição e aumenta o número daqueles que a
competição intensificada empurra para a marginalidade ou para formas
precárias de integração econômica e social à coletividade, a globalização
(ajudada pela colapso do socialismo que ela concorre para produzir) acarreta
também o enfraquecimento e a desorientação dos setores organizados da
sociedade que contribuíram anteriormente para a obtenção da integração
social, particularmente os sindicatos e os partidos de orientação trabalhista – a
esquerda socialdemocrática, para não falar da esquerda radical. No nível
nacional, assim, o estado é trazido de novo à situação em que se relaciona com
um substrato sociopolítico cujas desigualdades e assimetrias são maiores. Ele
próprio se estreita, em consequência, como “arena” que deveria ser capaz de
acolher interesses múltiplos e diferentes. A despeito dos traços de imediatos
efeitos “pacificadores” que derivam do enfraquecimento ou da
“domesticação” de atores politicamente organizados que antes se mostravam
importantes, o resultado geral (dramatizado pela deterioração social, a “nova
6
4
Tal desafio se torna mais claro diante do fato de que há também,
naturalmente, consequências relevantes do processo de globalização a se
manifestarem diretamente no nível internacional. A observação mais crucial se
vem tornando trivial com as crises sistêmicas que atingiram o mundo em anos
recentes e que seguem conosco como ameaça assustadora: o vigor adquirido
pelos mecanismos de mercado no plano transnacional não tem
correspondência em qualquer poder coordenador apropriado, em contraste
com o equilíbrio entre mercado e estado que, grosso modo, costumávamos ter
no plano nacional. Há, assim, a falta de um agente efetivo de muitos
mandantes, que se mostrasse capaz de conciliar os fins múltiplos e com
frequência conflitantes em jogo e de transformá-los, em alguma medida, em
fins solidários ou convergentes: no nível transnacional, não obstante as
iniciativas bem intencionadas de certas organizações não-governamentais, a
cena é desproporcionalmente marcada pelas ações guiadas pela busca do
interesse próprio no âmbito do mercado executadas por aqueles que detém
algum poder para agir de maneira de fato relevante. Na verdade, a
globalização pode mesmo definir-se (como propõe especialmente Wolfgang
Reinicke em Global Public Policy) como um processo microeconômico, cujo
8
5
Temos, portanto, uma face totalmente nova do problema de “reinventar
o governo”. Em vez da busca banal pela eficiência por meio de governos
nacionais “enxutos”, na perspectiva do novo século o desafio verdadeiro é
antes o de como criar governo no nível transnacional e eventualmente
planetário. Estaríamos, assim, perseguindo dois objetivos articulados em
correspondência com o problema de dupla face proposto no título de nossa
sessão: o de produzir poder transnacional efetivo, assegurando a capacidade
de governança e eficiência na escala em que o mercado tende cada vez mais a
operar; e o de mudar de forma apropriada as feições exibidas atualmente pelos
9