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Luciano Mattuella
Resumo: O propósito central deste breve texto é colocar em discussão o potencial efeito
traumático de toda relação amorosa, efeito que pode vir a operar tanto no laço entre
pares (o casal), quanto no âmbito do trabalho clínico em análise, ou seja, na relação
transferencial. Parte-se da idéia de que os vínculos amorosos encontram sustentação na
dimensão das representações inconscientes que tecem a estrutura fantasística, uma
dimensão do recalcado, daquilo que permanece “nos bastidores”, o obsceno. Coloca-se,
então, uma pergunta que permeia o texto: Que consequências podemos esperar quando
o núcleo fantasístico surge na cena do mundo? Pode-se falar aí de algo da ordem do
traumático? Partimos, para melhor ilustrar os aspectos estudados, do conto O Jogo da
Carona, uma das narrativas da coletânea Risíveis Amores, escrito por Milan Kundera.
Palavras-Chave: Amor. Fantasia. Milan Kundera. Trauma.
A frase com que inicio este texto foi extraída do livro Diary of a Bad Year,
escrito pelo sul-africano J.M. Coetzee, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em
2003. Há muito mais profundidade na fala desta personagem criada por Coetzee, uma
sedutora mulher de 29 anos chamada Anya, do que aparenta uma leitura apressada.
Utilizando uma linguagem corrente, usual, Anya propõe uma questão essencial a todos
nós que, cada um a seu modo, estamos transferenciados à herança psicanalítica, a saber:
qual a relação entre aquilo que aparece - a maquiagem - e aquilo que resta oculto em um
discurso? Ou, ainda em outros termos, mais caros ao nosso léxico compartilhado: há
realmente uma fronteira entre o mundo vivido e a fantasia? Acredito que, em algum
momento, todos nós, leitores de Freud e de Jaques Lacan, tenhamos nos colocado esta
pergunta, especialmente aqueles entre nós que, como eu, sentem-se interrogados pelos
desafios da clínica do dia-a-dia.
1 COETZEE, J.M. Diary of a bad year. London: Vintage Books, 2008, pág. 86.
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Ora, esta temática teve seus primeiros esboços desenhados quando Freud, ao se
inquietar com a freqüência com que suas pacientes relatavam abusos sexuais na
infância, perguntou-se pela realidade por assim dizer concreta, factual, destes eventos.
Ousado, especialmente se levarmos em conta a posição persecutória da dimensão do
sexual no início dos anos 1900, Freud propôs a tese de quê, a bem da verdade, estas
cenas de violação estariam registradas no plano fantasístico de suas pacientes, sendo
algo relacionado intimamente com a posição feminina. Teriam a ver, portanto, com a
ordem do recalcado, com esta história estranhamente familiar que contamos a nós
mesmos através de nossos lapsos, sonhos e chistes.
Entretanto, é somente em 1937, em um texto que podemos encarar como um
testamento aberto da psicanálise, o artigo Construções em Análise, que Freud sedimenta
o processo de construção como estruturante da memória: não há lembrança que não seja
narrativa, logo, não há lembrança que não seja ficcional. Esta idéia está presente na
sabedoria cotidiana de Anya, a personagem de Coetzee: a mesma palavra inglesa para
maquiagem - make up - também designa o verbo utilizado para traduzir a expressão
“criar uma história”: to make up a story. Assim como Freud, Anya deu-se conta desta
característica tão paradoxal da ficção: ela é mais real do que a própria realidade.
Algumas décadas depois, em 1959 para ser mais preciso, o psicanalista francês
Jacques Lacan traduz esta intuição em uma frase já clássica, à época de seu seminário
sobre a Ética; diz ele: “toda verdade tem uma estrutura de ficção” 2. Ou seja: realidade e
fantasia relacionam-se como uma estrutura möebiana, a famosa figura topológica com
dois lados, mas apenas uma face. Uma vez que aquilo que opera no mundo é a própria
fantasia, em outros termos, uma vez que a fantasia é efetiva apesar de sua
inconsistência, não podemos mais falar da dimensão da realidade e da irrealidade.
Seguindo ainda a pista deixada por Coetzee, proponho que pensemos na idéia de cena
do mundo - a maquiagem que todos usam - e de obscenidade do mundo, ou seja, aquilo
que está para-além da cena, que insiste no mundo justamente por ainda não ter
contornos, que faz, sim, parte deste mundo ao não cessar de não se inscrever. A fantasia,
deste modo, é imaginarização do obsceno, do indizível que aponta para a relação do
sujeito com o Outro, uma relação absolutamente única e praticamente incomunicável.
2 LACAN, Jacques. O Seminário - Livro VII (A Ética da Psicanálise). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997, pág. 22.
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E é esta noção de obscenidade que me permite convidar a fazer parte deste texto
um outro escritor que me é muito caro, o tcheco Milan Kundera, famoso pela sua obra
mais difundida, o romance A Insustentável Leveza do Ser. Quero trabalhar, entretanto,
um de seus contos, uma narrativa breve intitulada O Jogo da Carona, parte da coletânea
Risíveis Amores, publicada em 1968.
Neste conto, Kundera narra a história de um rapaz e uma jovem que, entediados
com seu relacionamento, fazem uma viagem de carro para aproveitar as férias. Em certo
momento, a moça precisa ir a banheiro e o casal pára em um posto de gasolina. Quando
ela retorna, o rapaz, que havia esperado no carro, pergunta, em tom convidativo: “Para
onde a senhorita está indo?”3. Começa, então, um jogo em que fingem serem
desconhecidos que se encontram por casualidade. Dado não ser meu intuito fazer uma
análise literária do conto, mas antes ilustrar uma linha de raciocínio, permito-me fazer o
recorte de uma passagem em especial em que Kundera apresenta ao leitor um traço da
personalidade da moça, o seu recato:
A moça detestava ser obrigada a lhe pedir (em geral ele dirigia por
horas seguidas) que parasse diante de um bosque. Sempre se irritava
com a surpresa fingida com que ele lhe perguntava por quê. Ela sabia
que seu pudor era ridículo e fora de moda. No trabalho, constatara
muitas vezes que zombavam dela e a provocavam deliberadamente
por causa de seu recato. Sempre enrubescia por antecipação perante a
idéia de que iria enrubescer.4
3 KUNDERA, Milan. Risíveis Amores. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pág. 74.
4 Ibid., pág. 72.
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despudor seria o traço em comum de suas antigas escolhas de objeto amoroso. Como
bem nos lembra Freud, uma das formas de relação com o objeto é justamente o
apaixonamento por um traço (como a fumaça do cachimbo, no caso Dora, por
exemplo): um modo de modular a voz, uma coloração específica de pele, um gosto por
determinado estilo de vestir, qualquer detalhe pode ocupar este lugar, do mesmo que,
como nos ensina Lacan, qualquer significante pode ocupar o lugar de outro. No caso do
rapaz do conto, trata-se desta relação específica da mulher com seu corpo e com o outro
(o semelhante), a relação de despudor.
A moça detinha um saber muito refinado a respeito desta preferência de seu
namorado, pois, como escreve Kundera, ela “muitas vezes pensava que havia outras
mulheres mais sedutoras (...) e que seu namorado, que conhecia esse tipo de mulher e
não escondia isso, um dia a deixaria por uma delas”5. Entretanto, era justamente a sua
atitude de recato e pudor que permitia que a relação se sustentasse: o despudor e a
desinibição, este traço que tanto fazia questão ao seu namorado, precisava manter-se
fora da cena do mundo, na outra cena, no plano obsceno do mundo. Ao não representar
para o seu namorado a perfeita imagem que nomeia o seu desejo, a mulher relançava o
rapaz à sua posição desejante, entregando-se como objeto causa de desejo, não como o
objeto de desejo.
Ora, o jogo do qual tacitamente haviam concordado participar coloca em xeque
justamente esta suposta fronteira entre a fantasia e o mundo concreto. Podemos entender
que o jogo faz irromper na cena do mundo uma dimensão onírica, uma dimensão em
que a potência do recalque se encontra levemente enfraquecida, como nas brincadeiras
infantis em que as crianças, ao fingirem ser outro, encenam justamente a dimensão do
recalcado. Que a maquiagem seja compartilhada mantêm tudo em ordem - o que faz
irromper a dimensão do obsceno é a constatação da artificialidade da maquiagem.
A regra deste jogo, por assim dizer, poderia ser enunciada do seguinte modo: a
partir de um momento em que concordamos que isso é um jogo, nada do que acontecer
vale como algo intencional, como algo concreto. Tudo se apagará quando o jogo acabar.
Entretanto, como Kundera nos mostra ao longo do texto, não é exatamente assim que as
coisas acontecem. Assim como é a demarcação da Lei que funda o desejo, também é a
explicitação do jogo - no qual eles, como todos nós, já desde sempre estamos inseridos -
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que aponta o mais-além, a existência de um obsceno, uma dimensão que, pouco a
pouco, ganha materialidade na cena do mundo. Nas palavra do próprio Kundera: “A
existência representada invadia a existência real”6.
Pouco a pouco a moça torna-se estranha ao seu namorado, mas não totalmente
estranha, antes sim estranhamente familiar - desloca-se da posição de objeto causa de
desejo para objeto de desejo: flerta com homens nos bares em que param, demonstra-se
vulgar, despindo-se daquela imagem - defensiva - de recato e pudor. Creio que uma
passagem do conto ajude a entender esta mudança de papel da moça:
inteiramente.7
Ela se faz tudo aquilo que satisfaria o seu namorado: ela se torna o próprio
despudor encarnado. Lembrando uma conhecida passagem de Lacan, podemos dizer
que a moça passa a dar aquilo que ela não tem àquele que justamente não o quer. Não o
quer porque, uma vez que o tenha, cessa seu desejo. É também a partir deste trecho do
conto podemos aludir a uma possível dupla significação do título, O Jogo da Carona.
Estar na carona, ir de carona, ser guiado por outro - será que não podemos entender isso
como uma espécie de passividade, como um modo de estar sustentado no desejo de um
outro?
Lembro de um sonho que me foi narrado por um paciente, pouco antes que este
tomasse a iniciativa de encerrar um namoro que já durava algum tempo. Conta ele que
sonhara na noite anterior que estava em uma Igreja e que, de uma hora para outra,
aparecia, vinda de um dos aposentos que até então ele não tinha visto, a sua então
namorada; ela perguntava-lhe, em um misto de pesar e de surpresa, se ele realmente não
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iria participar do teatro. Meu paciente já há algum tempo vinha se inquietando com o
fato de que a sua namorada cobrava que ele seguisse os preceitos da religião familiar,
que, caso o fizesse, aí sim ele seria o homem com quem ela havia imaginado casar.
Acredito que o sonho de meu paciente seja eloqüente por si só, não sendo necessária
alguma explicação minha.
Meu paciente me ajudou a pensar que este jogo, então, da carona, da sustentação
no desejo do outro, do make-up, é algo próprio ao relacionamento amoroso. Por sua
vez, trata-se de um jogo que precisa manter-se velado, que sustenta-se justamente na
medida em que os parceiros desconhecem o seu fundo obsceno. Mas o que acontece
quando não resta na relação com o outro esta margem de mistério, quando o outro acaba
por ocupar o lugar mesmo do objeto de desejo? Para me ajudar a pensar sobre esta
pergunta, cito pela última vez o conto de Kundera, um trecho longo, pelo qual desde já
me desculpo pela extensão, que marca justamente um ponto de virada na narrativa:
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uma vez que explicita a ficcionalidade da realidade, diluindo o anteparo imagético com
o qual nos relacionamos com os objetos - e mesmo o objeto privilegiado que é o eu -,
um anteparo que nós, psicanalistas, costumamos chamar de fantasia.
Referências Bibliográficas
KUNDERA, Milan. Risíveis Amores. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.