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Livros didáticos em dimensões materiais e

simbólicas

Antonia Terra de Calazans Fernandes


UNIFIEO - Centro Universitário FIEO

Resumo

O texto apresenta o relato de uma pesquisa em andamento sobre


a memória de usuários de livros didáticos. As reflexões estão
baseadas no trabalho de história oral, de coleta e análise de en-
trevistas com alunos e professores, que interagiram com esses
materiais no espaço escolar, entre os anos de 1940 e 1970, e
que são procedentes de diferentes localidades brasileiras. A pro-
posta tem sido investigar as reminiscências do livro didático;
quais têm sido aquelas que sinalizam suas interferências na for-
mação social e cultural das pessoas e no seu imaginário; os pa-
péis sociais, educacionais e culturais que o livro didático alcança
na formação de gerações ou em localidades; e os valores atribu-
ídos a esses objetos, que orientam, por exemplo, atitudes em
prol de sua guarda ou preservação.
A pesquisa faz parte de um projeto maior, “Educação e memória:
organização de acervo de livro didático”, coordenado pela profes-
sora Circe Bittencourt, na Faculdade de Educação da USP, do qual
fazem parte pesquisadores que trabalham com diferentes proble-
máticas, variadas áreas de conhecimento e que utilizam fontes dis-
tintas. E, nesse sentido, o trabalho procura contribuir também
para a identificação de dados que colaboram para ampliar o núme-
ro de informações gerais que instiguem ou com-plementem outras
pesquisas possíveis relativas a esse objeto de estudo.

Palavras-chave

Educação — Livro didático — Memória — História oral.

Correspondência:
Antonia Terra de Calazans Fernandes
Rua João Miguel Jarra, 135 - ap. 15
05417-040 - São Paulo - SP
e-mail: antoniaterra@uol.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 531-545, set./dez. 2004 531
Schoolbooks in their material and symbolic
dimensions

Antonia Terra de Calazans Fernandes


UNIFIEO - Centro Universitário FIEO

Abstract

The text reports on an ongoing study about people’s memories


of schoolbooks. The reflections are based on oral histories and
on the conduction and analysis of interviews with pupils and
teachers from various places in Brazil, and which interacted with
schoolbooks within the school environment between the 1940s
and 1970s. The proposal has been to investigate the
reminiscences of the schoolbook, which of them point to their
influence in the social and cultural education of the users, as
well as in the constitution of their imaginaries; the social,
educational and cultural roles achieved by the schoolbook in the
education of generations and/or localities; and finally the values
attributed to those objects, which guide, for instance, attitudes
towards their guard and preservation.
The present study is part of a larger project entitled “Education
and memory: organization of collections of schoolbooks”
coordinated by Dr Circe Bittencourt from the Faculty of
Education, USP. That project has researchers working on
different problems, from various fields of knowledge, and
utilizing distinct sources in their work. In that sense, the present
study seeks to contribute also to the identification of sources
that may be of use in increasing the overall information available
to foster or supplement other possible researches about this
object of study.

Keywords

Education — Schoolbook — Memory — Oral history.

Contact:
Antonia Terra de Calazans Fernandes
Rua João Miguel Jarra, 135 – ap. 15
05417-040 - São Paulo - SP
e-mail: antoniaterra@uol.com.br

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Dada a sua importância, o livro didáti- Quais têm sido os valores atribuídos
co é um amplo campo de pesquisa. Para en- aos livros didáticos em diferentes épocas? O
tendê-lo, na sua função educacional, sua his- que os usuários lembram desses materiais esco-
tória e sua presença entrelaçada na vida social lares? Quais imagens desses livros têm sido
brasileira, é necessário considerar diferentes preservadas? Quais conteúdos? Quais identida-
campos de estudo e privilegiar uma diversida- des sociais eles têm contribuído para consoli-
de de fontes. Entre as produções existentes, a dar? Quais disciplinas estão a eles associadas?
maioria tem como base a análise do próprio Quais vivências e experiências foram guardadas
livro e de seus conteúdos. Os estudos analisam, envolvendo seu uso na escola ou fora dela? O
fundamentalmente, seus discursos textuais e que os usuários lembram de como os livros
iconográficos, e de que forma difundem conhe- eram utilizados? Os livros didáticos têm sido
cimentos científicos atualizados ou ultrapassa- preservados por seus usuários? Por quê? Há
dos. Produções recentes, porém, têm diversifi- padrões nacionais de livros, autores ou de uso
cado temas e documentos, dando conta desde desses materiais que a análise das memórias
sua concepção, produção, difusão e uso, quan- permite identificar?
to de suas relações com as políticas públicas, Para responder a essas e outras per-
os currículos escolares e a indústria editorial. guntas temos entrevistado alunos e professo-
Nessa linha, pesquisas a partir de fontes orais res, a partir de fundamentos teóricos da histó-
começam a contribuir também para ampliar a ria oral, que interagiram com esses materiais no
compreensão do papel histórico e social dos espaço escolar entre os anos 1940 e 1970.
manuais escolares. Assim, inicialmente, estão sendo entrevistadas
O trabalho com depoimentos orais abre pessoas que viveram sua escolaridade ou le-
a perspectiva para aproximações com diferentes cionaram em diferentes épocas, com o objeti-
sujeitos históricos, de várias classes e vivências vo de fazer um levantamento que possibilite,
sociais, valorizando a diversidade e a subjetivi- por exemplo, entrever indícios de fatores que
dade (Ferreira; Amado, 2002); e, ao mesmo tem- interferem, em parte, na quantidade ou quali-
po, na análise comparativa, indica pistas para dade das memórias, ou seja, se a idade, se a
padrões sociais e culturais comuns entre gera- geração, se o grau de escolaridade ou se o
ções, ao longo do tempo e por localidade. É por contexto da escolaridade interferem ou não nos
essas razões que para pesquisar a memória dos depoimentos e nas lembranças sobre os livros.
manuais escolares optamos por um trabalho Inicialmente, a baliza de tempo da pes-
com história oral, como orientam historiadores quisa abarcava as décadas de 1930 e 1960. Mas,
como Paul Thompson (1992) e Alessandro à medida que as entrevistas foram sendo feitas,
Portelli (1993). Se a pesquisa se detivesse nos o recorte temporal foi sendo ampliado porque
materiais impressos, as memórias em estudo fi- constatamos que uma das pessoas entrevistadas,
cariam restritas às dos literatos e memorialistas, nascida na década de 1930, tinha poucas lem-
já analisados no caso do Brasil, por exemplo, por branças do livro didático. Passamos a entrevis-
Circe Bittencourt (1993). tar, então, pessoas nascidas também nas déca-
O que se constata é que socialmente, das de 1950 e 1960 (com escolaridade poste-
do ponto de vista do usuário (alunos e profes- rior) com a intenção de avaliar, por exemplo, a
sores), depois que deixa de ser utilizado como interferência da idade nas lembranças.
material na sala de aula, o livro didático, só em Até o momento, na medida em que
casos específicos, foi guardado, revisitado ou privilegiamos a diversidade de idade, o que
reencontrado com o passar do tempo. E, nes- constatamos é que o que menos interfere na
sas situações, também cabe questionar sua memória do livro didático é o fator idade. A
mudança de valor com o tempo. análise das entrevistas tem indicado, até o

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momento, que quanto maior a escolaridade Senac – Técnico de vendas, 1955; Faculdade
maior o número de lembranças sobre o tema, de Administração de Empresa, Colégio Brasil,
mesmo sendo o depoente mais velho. A pessoa de 1960 a 1964 (o colégio já foi fechado).
entrevistada com menor escolaridade e, ao Trabalhou desde a década de 1950, como
mesmo tempo, a de menor idade, é a que re- faxineiro, vendedor, gerente de loja, vendedor
cordou menos dos livros, contou menos deta- farmacêutico. Hoje, aposentado, é síndico.
lhes, levantou menos dados. c) Entrevistado 3: nascida em São José do Rio
Além da baliza de tempo, outra variá- Preto, em 1944. Estudou lá até os vinte anos,
vel na seleção dos entrevistados tem sido o até ir completar seu curso de pedagogia em
local onde o depoente estudou ou lecionou, São Paulo. Hoje é professora universitária.
com o objetivo de identificar a presença de d) Entrevistado 4: nascida em 1955, em
diferentes materiais e culturas escolares de Osasco, São Paulo, onde mora até hoje. Estu-
acordo com a região do Brasil: se há padrões dou no primário em uma escola estadual, no
nacionais e se há produções e estudos especi- Jardim das Flores, Escola La Torre (1965). No
ficamente locais. Ginásio, estudou na escola estadual Prof.
Entre as entrevistas, para este artigo, João Larizatte, entre 1971 e 1973. Saiu da
salientamos depoimentos coletados com as escola para casar, em 1974. Voltou a estudar
seguintes pessoas e seus contextos escolares, depois dos filhos crescidos. Fez supletivo,
sem contudo identificá-las nominalmente: depois a faculdade de Artes e agora está ter-
minando a faculdade de História. Ela deu seu
a) Entrevistado 1: ex-seminarista, nasceu em depoimento depois de ter encontrado seus
1929, no sertão do Rio Grande do Norte, e antigos livros didáticos. Recorreu, então, aos
mora hoje em São Paulo. Freqüentou durante livros para lembrar quando estudou e para
dois anos o Grupo Escolar José Marcelino, na contar outras histórias.
Vila de Vitória, que hoje é a cidade de e) Entrevistado 5: nasceu em 1957, em Porto
Marcelino Vieira, no interior do Rio Grande do Alegre. Mudou-se para São Paulo em 1969.
Norte. Freqüentou, na seqüência, como interno, De 1964 a 1966, freqüentou, no primeiro
o Seminário Santa Terezinha, de padres alemães ano, uma escola estadual, no primário. Quan-
e italianos, na cidade de Mossoró, entre os anos do foi morar com a tia, no bairro de Santana,
de 1939 e 1948. No seminário, viveu um ano em Porto Alegre, em 1967, passou a estudar
de adaptação e fez dois anos de curso prelimi- no colégio estadual Ildefonso Gomes, e aí fez
nar; cinco anos que corresponderiam ao ginásio o 1º e o 2º ano de uma só vez. Foi para São
e colégio, e dois anos de filosofia. Paulo em 1969. Estudou no Colégio Estadual
b) Entrevistado 2: nascido em 1930, em São D. Pedro II, na Barra Funda. Em 1970, estu-
Sebastião do Paraíso, Minas Gerais, mas que dou no Ginásio Manoel Bandeira. Fez o cole-
morou quando criança em Ribeirão Preto, São gial – 1973 e 1974 – na Escola Estadual
Paulo, e quando adolescente em Barretos, Maximiliano, na Vila Madalena. De 1975 a
nesse mesmo estado, e em 1956 mudou-se 1977, estudou no Colégio Pinheiros (particu-
para a capital. Em São Sebastião do Paraíso, lar). E fez cursinho no Equipe, em 1978. Em
na Escola Municipal Coronel Cândido (Grupo 1979, estudou Ciências Contábeis e depois
Escolar – primário); em Ribeirão Preto, fre- Economia na PUC, até 1981.
qüentou dois anos do ginásio na escola par- f) Entrevistado 6: nascida em 1963, em
ticular Lacerda Franco, e um ano no Colégio Itambé, interior da Bahia. Residente hoje em
Estadual – artigo 91, e mais um ano de Madu- São Paulo. Estudou em escolas de fazendas,
reza do ginásio, em 1952; depois, em 1953, até a 5ª série (Escola Municipal de Itambé).
colégio estadual; três anos na escola do Depois mudou para Vitória da Conquista/ BA.

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Da perspectiva do procedimento de para se obter uma lembrança. É necessário
coleta de entrevistas, lembramos, como em que esta reconstrução se opere a partir de da-
outros trabalhos que utilizam a metodologia de dos ou de noções comuns que se encontram
história oral, que “os depoimentos coletados tanto no nosso espírito como no dos outros,
poderiam ter sido outros, se tivessem aconteci- porque elas passam incessantemente desses
do em outros contextos” (Fernandes, 1997). O para aquele e reciprocamente, o que só é pos-
fato de informar ao depoente, antes de cada sível se fizeram e continuam a fazer parte de
entrevista, as intenções da pesquisa, ele acaba uma mesma sociedade. Somente assim pode-
se orientando, de certo modo, a escolher o que mos compreender que uma lembrança possa
falar e como falar. ser ao mesmo tempo reconhecida e recons-
Como já pontuamos em outro artigo, truída. (Halbawachs, 1990, p. 34)
entendemos livro didático numa perspectiva
ampla, isto é, Valores e experiências comuns a gru-
pos e sociedades estão presentes, por exemplo,
como publicações diversas, utilizadas em si- nos significados atribuídos aos indivíduos, aos
tuações escolares por professores e/ou alu- acontecimentos e aos objetos que emergem nas
nos para orientação, estudo, leitura e exercí- memórias ou que são preservados como supor-
cios: compêndios, cartilhas, livros literários, tes de lembranças. Assim, cabe perguntar: por
paradidáticos, manuais de orientação para o que alunos e professores preservam seus livros
docente, cadernos de desenho, tabuadas e didáticos? Há valores sociais costurando suas
coletânea de mapas. (Fernandes, 2002) memórias e orientando suas atitudes?
Coletamos o depoimento de uma pro-
E entendemos memória como a fessora que estudou nas décadas de 1950 e
1960, e que guardou seus manuais escolares
organização e o relato de lembranças acerca como símbolo da importância da escola em sua
de informações, imagens, idéias, experiências, vida e de sua família, e como elementos cons-
vivências, emoções e valores que foram sele- tituintes de uma identidade com determinado
cionados, recriados, ressignificados e preser- grupo social, de baixo poder aquisitivo e de
vados por indivíduos ao longo do tempo. pouca escolaridade, cujo acesso ao mundo le-
(Fernandes, 2002) trado e literário foi por meio desses corriquei-
ros, mas antigamente tão preciosos, materiais
Significados dos livros didáticos:
didáticos
“(...) e aí conforme os irmãos iam estudan-
O trabalho com história oral impõe ao do também, se o livro era o mesmo usava o
historiador a coleta de depoimentos que susci- mesmo. Mas, às vezes, na outra escola um
tam memórias, as quais são narradas e organi- outro professor indicava outro livro e com-
zadas em função de diferentes características prava outro livro e aí a gente foi formando
que lhe são próprias. Uma das características da uma pequena biblioteca na casa. Mas nun-
memória, que é essencial ao historiador, é o ca era uma coisa assim, por exemplo, ter
fato de, apesar de resguardar sua dimensão sub- livros de literatura, por exemplo, a gente
jetiva, também expressar na sua constituição não tinha. Eu sempre tive muitos livros de...
bases coletivas. as Edições Maravilhosas, e livros didáticos...
Porque o livro didático realmente pro pes-
Não é suficiente reconstituir peça por peça a soal que tinha, por exemplo, a condição
imagem de um acontecimento do passado social que eu tinha, era o contato com o

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 531-545, set./dez. 2004 535
mundo mesmo da literatura, da produção, ria (...) e eu não vi. Eu não... não sabia dessa
porque não tinha essa facilidade, que nem dedicatória. Aí folheando o livro [L.G. Motta
hoje você vai dar um presente e escolhe Carvalho, Ensino moderno de História do Bra-
um livro de poesia, vai escolher um roman- sil. Editora do Brasil S. A., 2º. volume] em casa,
ce bom, não tinha, não era assim. Era uma eu achei. Aí mostrei pra ele. E falou: não acre-
coisa bem mais restrita.” (Entrevistado 3) dito, você não viu isso? Falei: não vi! Fiquei
emocionada, até chorei de verdade. Falando
E hoje? E para outros grupos sociais? sinceramente... sinceramente agora para você.
Cabe perguntar se atualmente e para quais gru- Falei ‘nossa bem...’ a gente se trata por bem,
pos o livro didático tem tido semelhante valor? né... moda antiga ainda... Ele falou: ‘pois é, fui
Será que as políticas públicas interferem no eu que fiz, na sala de sua casa e se você qui-
valor dado ao livro, já que nem sempre ele ser eu faço a mesma dedicatória na outra pági-
permanece com seus usuários além do período na’. Eu fiquei mais feliz ainda.... E isso me in-
do ano letivo, considerando a prática de ado- comodou bastante porque... pra mim o livro
tar livros não-consumíveis? passou a ser valioso duas vezes: uma porque
A história oral é um caminho potencial passou a ser um livro que eu estava precisan-
para suscitar e alimentar a memória do livro do... tem coisa nele que eu precisava... três
didático, indicando representações construídas vezes até...; outra, lembrou bastante minha
pelos usuários no contexto de suas vivências; adolescência; e a terceira, mais importante, a
e fornecendo pistas de quais eram esses mate- dedicatória do meu marido, que eu fiquei bas-
riais, quais seus usos na escola e qual seu va- tante feliz com isso.” (Entrevistado 4 )
lor para indivíduos nas suas trajetórias sociais
e para alunos e professores nas suas vivências O fato de ter recentemente recuperado
educacionais. seus livros didáticos contribuiu para valorizar
No caso do trabalho de coleta de de- esses objetos em seu depoimento e para des-
poimentos referente à pesquisa em curso, uma cobrir um outro sentido, agora emocional, para
outra entrevista exemplifica o processo de preservá-los. Além disso, ter em mãos os livros
construção do valor atribuído ao livro. A depo- mudou também o tipo de lembranças descritas.
ente foi entrevistada na seguinte situação: o A depoente recordou com segurança os títulos,
livro didático estava sendo estudado em sua fa- os autores, formatos, conteúdos e como era
culdade e por isso ela foi solicitada a procurar utilizado para estudo.
seus antigos manuais para analisá-los em sala
de aula. Por essa razão, vasculhou sótãos e “No primário também, no primário você vendo
encontrou livros do tempo em que freqüentou o livro Alvorada [Antonio D´Ávila, Companhia
o antigo primário e o ginásio. Com os livros na Editora Nacional, 1965], você vê os conteúdos
mão, passou a lê-los e a recordar as vivências do livro. Lógico que tinha umas bobagenzinhas
da escola. Passou, então, a avaliar a sua esco- assim tipo da abelha, do macaco, a historinha
laridade e a recordar sua trajetória. Simulta- meio que infantil. Mas tem um belo conteúdo,
neamente, descobriu em um livro do ginásio ensinando bastante coisa de português, coleti-
uma dedicatória do atual marido, que até en- vo... Estava vendo o livro, relendo o livro, e per-
tão não tinha notado: guntava pro meu marido: você lembra do cole-
tivo de...? Eu lembro, naquela época ficou bem
“(...) trouxe para casa, folheando ele, achei a marcado, a gente aprendeu muito bem. Os pro-
dedicatória que meu marido havia feito para fessores faziam questão da gente aprender e
mim em 1973. Que eu tinha terminado o giná- bem. Tanto é que nas férias não tinha folga
sio e ele vendo meus livros fez essa dedicató- não.” (Entrevistado 4 )

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fessora aqui em Osasco, na rede estadual,
Um depoimento como esse revela a par- já tinha terminado a faculdade, fui encon-
ticularidade da história oral em lidar com ques- trar muitos colegas se ‘amuletando’ mesmo
tões específicas da memória. Como se tem estu- nesse livro (...) se dispensando de preparar
dado, a memória é sempre uma construção e as coisas tal e aí lição tal, lição tal para
depende de uma seleção dos acontecimentos do casa, corrigir lá no próprio livro, então uma
passado e da criação de significados em função coisa assim que me dava arrepios, de ver
do contexto do presente. Assim, nos depoimen- assim como não deve ser usado mesmo,
tos podemos identificar valores atribuídos ao li- como uma muleta.” (Entrevistado 3)
vro didático que marcaram a memória dos indi-
víduos no passado, como também valores que são De modo geral, o livro didático tem
impingidos a esses materiais no presente. Um e sido desvalorizado depois de seu uso imediato
outro interferem nos acontecimentos narrados. por cumprir uma função específica na vida dos
indivíduos, ou seja, por ser intrínseco ao contex-
a lembrança é em larga medida uma re- to escolar, tornando-se descartável e sem valor
construção do passado com a ajuda de da- fora de seu contexto original. Todavia, para uma
dos emprestados do presente, e, além disso, pessoa que valoriza a educação, que tem sua
preparada por outras recordações feitas em vida profissional ligada ao magistério, o livro di-
épocas anteriores e de onde a imagem de dático ganha em sua memória outra coloração.
outrora manifestou-se já bem alterada. O valor atribuído ao livro e à leitura em geral
(Halbwachs, 1990, p. 71) estende-se também aos materiais didáticos:

Um outro exemplo dessa reconstrução “ Eles são um símbolo assim. Eu espero que
da memória está nas lembranças de uma outra você receba com muito carinho os que eu
depoente. Para uma professora, que teve sua te dei, porque eu não consegui me desfa-
vida profissional organizada em função da es- zer deles. E eu sempre fui muito mais ge-
cola, suas vivências como aluna, no tempo em nerosa pra emprestar livro. Perdi mais de
que freqüentou o primário e o ginásio, ganha- duzentos volumes só emprestando tudo.
ram aos poucos outros significados. Os mesmos Mas aqueles que foram meus, lá do come-
livros da infância permaneceram em sua vida ço, já não têm serventia, ninguém dá valor
quando começou a lecionar, só que com outro pra eles e eu nunca quis pôr num sebo,
uso, inseridos em outros contextos, avaliados a nunca quis me desfazer deles assim... e...
partir de outras perspectivas e narrados pela então é simbólico pra mim aquilo. Eu acho
memória com sentidos e valores incorporados que foram um símbolo pra mim da escola
a eles com o tempo: que pra mim era tão importante, e o pri-
meiro contato mesmo com as coisas escritas
“Quando eu já estava na 3 a ou 4 a série, eu assim. E até hoje eu acho livro uma coisa,
me lembro que algumas professoras da es- uma coisa muito importante mesmo, muito
cola o utilizavam. Uma professora minha só, importante, porque é você jogar semente
que acho que foi da 4 a série, utilizou esse no vento, porque não sabe onde que ele
livro. Ele tinha lições e exercícios de todas vai parar. ” (Entrevistado 3)
as matérias. (...) Era um brochurão assim e
tinha todas as matérias em seqüência e ti- Sem ter o objeto (livro) como suporte
nha o texto da questão, pergunta, e espaço para recordar ou sem tê-lo reencontrado ou
para você responder. E depois eu fui reen- relembrado em outros momentos da vida, foram
contrar como professora isso. (...) eu pro- mais raras as lembranças dos depoentes em rela-

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ção a autores e títulos das obras didáticas. Alguns princípios para uma escola ideal (já que se
entrevistados lembraram apenas de fragmentos: estava falando de um objeto escolar), e como
ela estava atrelada a uma política educacional.
“ Eu me lembro muito bem. O livro didático Discorreu, assim, sobre outro assunto, fugindo
que eu lembro era Violeta. Era o nome do do tema central que lhe foi solicitado lembrar,
livro. Era de Português. Tinha mais sobre sem contudo deixar de apresentar um quadro
textos. De Língua Portuguesa, histórias. mais amplo de valores onde pode ser identifi-
Agora, depois, geralmente o grupo escolar cado também o papel do livro didático no con-
já oferecia apostilas. Não tinha nome as- junto da vivência educacional.
sim. Eles editavam naquela época.
Era isso, eu me lembro de um livrozinho, “Uma coisa que eu lembro também da esco-
pequenino, que era sobre frações . ” (Entre- la, posso falar também do dentista? Que ti-
vistado 2) nha dentista? Então, essa escola Ildefonso, a
gente... tinha dentista, só que em vez de fi-
O que se evidencia, como também apon- car nessa escola, ficava em outra escola, Rui
tam outros estudos, é o fato de as recordações Barbosa, que era uma escola de material...
não poderem ser confundidas com fatos do pas- porque a escola Ildefonso eram galpões
sado. São representações ressignificadas no trans- imensos compridos, cheios de salas, de ma-
correr do diálogo presente/passado, a partir de deira, que é do tempo do Brizola. Eram to-
um conjunto de lembranças selecionadas ao lon- das as escolas assim, compridas, as escolas
go do tempo, que se tornaram significativas em primárias eram todas compridas, de galpões.
um contexto mais amplo da vida do depoente. E as escolas antigas, que tinham primário,
São, principalmente, memórias recortadas e reor- ginásio e científico, eram de material, tipo
ganizadas para o interlocutor. Assim, por suas Júlio de Castilho, Rui Barbosa. Então, o den-
especificidades, as fontes orais precisam ser tista ficava na escola Rui Barbosa. Era per-
problematizadas a partir de valores e significações tinho, umas duzentas... uns duzentos metros
que estruturam as narrativas, os temas debatidos dessa escola. Então ficava aqui, Ildefonso
e as histórias de vida: no meio, que era uma escola nova do
Brizola da década de 1960, que era só os
o realmente importante é não ser a memória galpões de madeira. Do lado dessa escola
apenas um depositário passivo de fatos, mas primária ficava o Júlio de Castilho, que era
também um processo ativo de criação de uma escola grande, imensa, que só tinha
significações. Assim, a utilidade específica ginásio e científico. E a duzentos metros
das fontes orais para o historiador repousa dessa escola ficava o Rui Barbosa, que tam-
não tanto em suas habilidades de preservar bém era uma escola grande que tinha giná-
o passado quanto nas mudanças forjadas sio, científico e primário. E aí a gente ia, os
pela memória. Estas modificações revelam o alunos dessa escola, do Ildefonso, eram.. o
esforço dos narradores em buscar sentido dentista, médico, ia direto. Se estava com
no passado e dar forma às suas vidas, e co- dor de dente ia no dentista... (...) Tinha mé-
letar a entrevista e a narração em seu con- dico o dia inteiro, plantão. Não precisava ir ao
texto histórico. (Portelli, 1997, p. 33.) posto de saúde. A própria escola tinha tudo. Ela
dava merenda, médio, dentista, uniforme, se você
Por exemplo, um dos depoentes, com a fosse pobre. Quando eu fui morar com minha
seleção de acontecimentos, lugares e persona- tia, já não era pobre.” (Entrevistado 5)
gens, ampliando o tema de sua fala para abar- No contexto de um depoimento como
car o cotidiano da escola, tenta explicar seus esse, vale questionar como a construção da nar-

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rativa oral interfere no sentido atribuído ao li- sentimentos e acontecimentos associados ao
vro didático? E como o sentido para a escola tema central. Analisados de modo amplo, po-
interfere no significado organizado para esses rém, as recordações diversas fazem parte de um
materiais e na seleção de memórias? Se a me- conjunto de valores e sentidos (individuais e
mória valoriza a escola, o livro didático tam- coletivos), dos quais não escapam os que são
bém é valorizado? atribuídos, por exemplo, ao livro didático.
A resposta pode ser identificada neste Muito do que os depoentes recordam
outro trecho do mesmo depoimento. Nele, o extrapola o foco da pesquisa. Lembram da meren-
entrevistado ressalta novamente o valor da es- da, das dificuldades enfrentadas, da professora, do
cola, apresentada como uma instituição que recreio, dos castigos, do espaço físico da escola,
atendia às necessidades de crianças sem recur- dos textos literários, dos desfiles e festas cívicas, da
sos para obter material e que precisavam de as- distribuição de materiais e livros aos mais pobres,
sistência, em geral, para estudar. E, na seqüên- das repetências e prêmios, e dos modelos de es-
cia, quando solicitado, descreve um livro sobre cola (regular, multisseriada, supletiva...).
a história do Rio Grande do Sul como uma boa Há em alguns depoimentos a presença
lembrança: da escola como um espaço que atendia popula-
ções mais pobres, cedendo materiais escolares
“Da escola primária eu lembro o seguinte: para quem não podia comprar, fornecendo sopas
quando eu fui começar estudar no primário, e merendas para crianças que lembram da fome...
você era pobre, eles davam uniforme, davam Isso coincide com o fato de os entrevistados, que
caderno, todo o material era gratuito, para assim relatam, terem estudado em escolas públi-
pessoas pobres. E como você era estudante, cas. Divergem, por exemplo, do entrevistado que
você não precisava de passe. Você com uniforme estudou em um seminário de padres, pago pela
de estudante não pagava condução. Eu me lem- família. E diverge do depoimento de uma das de-
bro que eu pegava ônibus. (e material didáti- poentes que estudou em escola pública, mas sua
co?) Eu fui só ler livro didático, eu me lembro família teve sempre que se encarregar da compra
no terceiro ano que era livro... era mais livro de seus livros escolares.
do Rio Grande do Sul. Era de uma família che- Entre outros temas rememorados espon-
gando de navio em Porto Alegre, atravessando a taneamente, há nos depoimentos lembranças das
ponte do Guaíba. Depois eles iam contando a repetências, sem consciência plena do que
história dessa família, e aí misturam muito saci- acontecia para permanecer na mesma série; ou
pererê, com o negrinho do pastoreio. Negrinho a permanência por falta de escolas para conti-
do pastoreio, a história é de lá, né? Tem a bru- nuidade dos estudos, como no interior da Bahia,
xa..., como é a bruxa? É a lenda de uma bru- multisseriada, na qual a criança, mesmo tendo
xa, da serra, uma história do sul. Ensinaram terminado as quatro séries, permanecia na escola
muito... A maior parte é história do Rio Grande primária só para continuar estudando.
do Sul.” (Entrevistado 5)
Materialidades e usos dos
Como em outros estudos, confronta- livros didáticos
mos com uma outra particularidade da história
oral quando os depoimentos extrapolam o tema Especificamente sobre livros didáticos, as
pesquisado, mesmo que exista um grande es- entrevistas possibilitam, de modo geral, reflexões
forço do pesquisador em orientar as questões. sobre a história da literatura didática no Brasil. A
A memória por ser associativa e relacional faz partir delas é possível dizer, por exemplo, que,
com que surjam lembranças variadas, de con- apesar de fragmentadas as memórias, o livro es-
textos amplos, ambientes e espaços, objetos, teve presente efetivamente no coti-diano da es-
cola e há indicações de como era utilizado por

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professores e alunos. Além disso, nas recordações
há relatos que identificam o que tem marcado o “Era isso, eu me lembro de um livrozinho,
imaginário dos indivíduos sobre o tema, quais pequenino, que era sobre frações. Hoje a
livros ficaram na memória de gerações, a relação molecada na boca, na memória não faz.
entre livros e currículos (o que era estudado), a Somar, multiplicar, dividir. Só sobre fra-
disciplina imposta no ato de ler, a presença de ções. A vantagem que tinha na época é
livros com história regional e local, os formatos e que esse livrinho era usado três anos. Ma-
modelos de livros didáticos (capa dura, peque- temática, não era matemática. Era aritmé-
nos, com gravuras...), seus aspectos físicos (cor, tica.” (Entrevistado 2)
grossura, capa...), ilustrações, mapas, quadros e
atividades marcantes, etc. Alguns entrevistados lembram de livros
Apesar de mais raras, algumas lembran- adotados que permaneciam ao longo das séries
ças incluem a recordação dos autores por dis- e outros que continham, numa só publicação,
ciplinas, indicando, por exemplo, um mesmo muitas disciplinas. As duas lembranças coletadas
autor – Aroldo de Azevedo – presente em es- referem-se ao ensino primário.
colas, locais e tempos diferentes. No caso, os
depoimentos referem-se ao sertão do Rio Gran- “Esse livro tinha tudo. Era um livro para
de do Norte na década de 1940; e ao interior tudo. Dentro desse livro tinha geografia do
de São Paulo, na década de 1950: Rio Grande do Sul, história do Rio Grande
do Sul, e português. Matemática não tinha,
“Eram três ou quatro livros básicos. O livro era separado. Na 4a série, eu tinha um livro
de Geografia era Aroldo de Azevedo; Histó- de religião. Isso eu lembro, eu tinha um li-
ria era Rocha Pombo; Aritmética era de um vro só de aula de religião, que era no sába-
professor de Mossoró, Sollon; o resto era do.” (Entrevistado 5)
editora Vozes, de Petrópolis. Latim era um
livro de gramática. Basicamente era gramá- “Ele tinha lições e exercícios de todas as
tica. A língua era o mais fácil de aprender matérias. Ele era quadradão assim, horizon-
no seminário. Aprendia Latim e aí falava tal, tinha tamanho de um caderno universi-
Francês e Italiano.” (Entrevistado 1) tário, mas na horizontal. Era como os ca-
dernos de desenho de cartografia que ti-
“Os meus livros de Matemática eram do Os- nha aquele formato. Era um brochurão as-
valdo Sangiorgi. (...) Aroldo de Azevedo, de sim e tinha todas as matérias em seqüência
Geografia, Joaquim Silva, de História; de e tinha o texto da questão, pergunta, e es-
Português eu acho que não tinha livro, ti- paço para você responder.” (Entrevistado 3)
nha gramática e a gente fazia redação toda
semana, isso me lembro muito bem. Mas Há também referências aos modos de
isso foi um só professor, não tive um profes- aquisição dos livros, que variavam em função
sor só de português. Livro de Português? É da condição social do aluno, do contexto da
acho que não tive livro de Português. Acho época e das políticas educacionais:
que tive gramática.” (Entrevistado 3)
“O livro durava três ou quatro séries. Livro nem
Através da solicitação de recordações comprei, ganhei. Minha tia pegou emprestado
sobre os livros, têm sido identificados, nas memó- de quem já tinha cursado.” (Entrevistado 5)
rias dos alunos, os nomes das disciplinas e as “O livro não pertencia a gente. O que eu tirava
mudanças que elas sofreram com o tempo. É o para estudar, tinha que tomar conta dele. Um
caso da matemática que aparece como aritméti- livro durava dois, três anos. Livro era uma coisa
ca. O livro estudado era o livro de Aritmética. rara, não era fácil não.” (Entrevistado 1)

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“É... a escola dava a lista e a gente ia na li- “Essa era preto-e-branco... a história de uma
vraria, comprava e passava de irmão para família chegando em Porto Alegre, num na-
irmão.” (Entrevistado 3) vio, pelo Guaíba. Então era a família, você
via o navio, a família no convés do navio,
Como explica Pierre Nora, entre as inú- Porto Alegre e a ponte.” (Entrevistado 5)
meras especificidades da memória, ela “se enra-
íza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, Alguns depoentes lembram das editoras
no objeto” (1993, p. 9). Dessa forma, os livros responsáveis por produzir os livros, distinguin-
também são lembrados por suas materialidades do por sua produção editorial:
(como seus aspectos físicos cor, grossura, capa
dura, etc.), pelas disciplinas a que se referem “Os livros da Vozes, de Petrópolis, eram dife-
(português, história, admissão, etc.) e por terem rentes. Eram compridos, com papel bom. O
formatos distintos de acordo com a série: de aritmética era feito muito artesanalmente.”
(Entrevistado 1)
“O livro de geografia era um livro pequeno,
capa dura. Os mapas eram todos de bico de “(...) de francês era Le Français par méthode
pena, preto-e-branco.” (Entrevistado 1) directe [C. Robin, Libraire Hachette]. Deixa eu
ver se eu lembro qual era o autor. Eu tenho os
“E eu me lembro muito bem da escola, da livros até hoje (...) Esses livros eram os únicos
cartilha tinha uma menina de trança dese- que eram coloridos, esses de francês, os úni-
nhada na capa, não era foto (...) E aí em ou- cos. Eram livros importados, deviam ser caros
tubro a gente recebia o primeiro livro de lei- mesmo, a editora Hachette, eles tinham situa-
tura. Desse eu tenho uma vaga lembrança ções desenhadas e pintadas e fotografadas em
dele... não sei se era da mesma autora ou colorido. (...) Eu não me lembro direito das
não. As gravuras eram geralmente bico de editoras dos outros, das editoras não. Esse eu
pena, não eram fotografias e não eram colo- acho que era uma coisa que você tinha que
ridas. Mesmo os do ginásio, que depois procurar mais pra achar, que era um nome
você me perguntou, das gravuras. O livro de muito diferente dos livros das outras matérias.
ciências era bastante ilustrado, mas geral- O de inglês eu estou até vendo a capinha dele
mente com desenhos mesmo, que eram fei- na minha frente. Ele era todo ilustrado, talvez
tos com nanquim e depois para editar e ele fosse importado também, mas ele era tudo
tudo. E a gente não tinha essa coisa de livro com bico de pena também. Tinha poucas ilus-
colorido de fotografia, nada assim. trações e com bico de pena, como o de fran-
(...) Então do primário para o ginásio notei essa cês. E o volume era bem menor, o tamanho
diferença dos livros. Um é capa dura, parecia também menor.” (Entrevistado 3)
livro de adulto e a gente tinha uma certa ve-
neração com os livros.” (Entrevistado 3) Nas lembranças, são freqüentes as re-
cordações de como os livros eram utilizados e
Há lembranças de imagens específicas e quais eram os métodos de ensino:
do estilo das ilustrações:
“A alfabetização foi com uma cartilha. Pos-
“O livro de História Sagrada trazia sugestões. so descrever: cinqüenta, sessenta páginas,
Por exemplo: uma figura que ocupava uma tamanho Almanaque Capivarol. Começava
página inteira, em bico de pena, era a fuga com o abecedário, seguia a separação de
de José, do Egito. As imagens sagradas dos vogais e consoantes. Em seguida, entrava
livros didáticos se transformavam em painéis na formação de fonemas. Era decorativo e
do artesanato popular.“ (Entrevistado 1)

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muito exercício de assinar o nome, ferrar o vam, usavam também o... Não trabalhavam
nome. (...) o livro... com a gente na classe nunca tra-
No final da aula, a classe inteira ficava de pé balhavam. Eu não me lembro de nenhum
diante da professora. Ela ficava lá no lugar que trabalhasse com a gente, por exemplo,
dela, como se fosse um maestro, segurando lendo, discutindo um texto, nunca. As au-
na mão direita um instrumento para reger o las eles expunham, punham coisas na lousa,
grupo. Normalmente, era uma palmatória. Aí, a gente anotava, e eles marcavam capítulos
a classe inteira, quando ela dava o sinal, do livro pra gente estudar, responder ques-
cantava: B e um A, BA; B e um E, BE... As tionários e... ou para estudar pra prova.
mães ouviam da rua e sabiam que a aula Então você utilizava o livro sempre fora da
estava acabando.” (Entrevistado 1) escola, não é. Utilizava o livro mais em
casa mesmo, pra fazer as tarefas, que eram
“Tinha a professora de português... não, essa muitas, a gente tinha muita tarefa, de todas
era a área geral. Quando faltava as outras, as matérias.” (Entrevistado 3)
ela substituía. Maria Luíza Fernandes. Era
muito dedicada, muito educada. Ela tinha Entre os livros que emergem da memória
um carisma diferente para cativar os alunos. dos depoentes há livros de literatura, lidos, segundo
Era diferente também porque ela fazia eles, por solicitação da escola. A partir dessas in-
grupinhos para estudar, entende. Separava dicações é possível investigar se alguns dos auto-
em grupinho para estudar. Ela ensinava res e títulos foram consagrados como literatura es-
mesmo. E depois tomava as lições. Ensinava colar entre gerações, presentes em diferentes regi-
tudo. Era geral. Era substituta. Quando fal- ões do país, ou apenas em certas escolas. Além
tava qualquer professora, de qualquer ma- disso, como as lembranças misturam as épocas, há
téria, ela dava.... A gente captava melhor o sempre a possibilidade de essa literatura ter sido
ensino dela do que das outras. Como o lida, mas não para trabalhos escolares:
método de ensino, né, cada uma tem dife-
rente uma das outras. O método das outras, “Isso aí, eu li um livro chamado..., gostei
era rápido e rasteiro, como dizia antes. Rá- muito, só não sei quem escreveu, eu lembro
pido.... E após... ela largava o estudo e de- que era Pérolas esparsas, só não sei quem es-
pois tomava a lição em separado. Se o alu- creveu. Era dessa grossura.” (Entrevistado 2)
no tivesse algum problema, então ela vol-
tava ensinava outra vez, voltava até ensi- “Foi no seminário onde eu li mais livro de
nar... É só o que eu sei.” (Entrevistado 2) aventura. Um escritor alemão, Karl May, ti-
nha livros de aventuras no Oriente e entre
Uma entrevistada distingue em suas os índios na América. Era leitura recomen-
memórias, por exemplo, o primário e o ginásio, dada, que se ajustava ao contexto de estu-
através do método de estudo proposto pelo do da gente.” (Entrevistado 1)
professor e do uso do livro ao longo das séries:
Até algumas décadas atrás havia o que
“Ah!, sim, cada professor de uma matéria, se chamava de livros de leitura. Eram livros de
que era a grande diferença. Você tinha um histórias, de moral ou de literatura, lidos em
professor só pra tudo e de repente... e aca- voz alta, que tinham depois seu texto explora-
bava dando tudo com o mesmo jeitão... e do pelo professor. Na memória de uma das
aí de repente você ia pro ginásio e tinha depoentes, o livro de leitura é recordado como
cada professor com seu jeito, suas manias, sendo material que solicitava – e, ao mesmo
suas exigências e também com seu material tempo, disciplinava – uma postura física correta
didático diferenciado. E então eles passa- do corpo para se ler:

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vocabulário porque até as professoras pre-
“Lembro... a gente fazia leitura silenciosa, cisavam entrar com outra coisa de vocabu-
depois procurava a palavra no vocabulário se lário porque às vezes tinham muitas pala-
não soubesse, aí ela fazia... uma leitura oral de vras que não eram do universo da gente e
modelo e aí fazia uma leitura oral que ela tal. E... mas eles não tinham aquele negócio
mandava alguém ler e depois mandava outro de questionário, nada. Então era diferente
continuar, mandava outro continuar... porque a única ajudinha que tinha didática
[fazendo os gestos] A gente tinha que ficar era aquele vocabulário ali.” (Entrevistado 3)
de pé, segurar o livro com a mão esquerda,
folhear com a mão direita. Segurar o livro O contato com o livro podia não ser
com a mão esquerda assim, com os quatro direto. Uma depoente recorda, por exemplo,
dedos você apoiava o livro assim, e com o que uma professora costumava ler e desenvol-
polegar você sustentava assim. E quando ver atividades a partir de um livro que era seu:
você tinha que virar a página, você tinha que Fábulas , de Monteiro Lobato utilizadas como
pegar a página aqui do alto com a mão di- material didático. Os alunos ouviam as leituras,
reita e virar o livro. Então era essa coisa de recriavam os textos, mas o livro pertencia ao
você ficar prestando muita atenção, porque professor:
ela falava fulano continua. E aí ela corrigia e
esse negócio das vírgulas, assim você lê com “E quando a gente, às vezes, não tinha o
pontuação. E isso era trabalhado mesmo, e livro texto, teve série que não teve livro
era com o texto de livro de leitura. Eu não texto, mas ela trabalhava com reprodução.
me lembro muito de ela ficar explorando Aí ela tinha um livro, por exemplo, Fábu-
muito o conteúdo, de problematizar o que a las, do Monteiro Lobato. Aí ela lia a fábula,
gente... isso não me lembro.” (Entrevistado 3) a gente fazia reprodução... [copiava?] Co-
piava não, a gente escrevia o que ela tinha
O livro de leitura geralmente era dife- lido a história [Ditava?] Não, a gente lem-
rente das cartilhas e dos demais livros didáti- brava da história. Ela lia a história, conver-
cos. Tinha outra organização interna e outras sava com a gente sobre a história, sobre a
proposições. Uma das depoentes lembra que moral da história, trabalhava um vocabulá-
era diferente por não conter exercícios, mas rio, uma palavra mais difícil de escrever e
apenas textos e vocabulário. Nesse caso espe- tal e aí a gente fazia a reprodução. A gente
cífico, isso tornava o livro de leitura dependen- de memória, pela exploração que tinha
te do trabalho e da proposição do professor. sido feita, você recontava a história que
Todavia, isso podia não ocorrer com outros você tinha ouvido. Aí você ficava com um
livros do gênero, que podiam ter outras pro- texto no caderno e às vezes ela corrigia,
postas de atividades escolares: recolhia, corrigia... então um outro contato
com o texto era assim. Um livro que era da
“Era diferente da cartilha. Não tinha mais professora, que a gente via na mão dela,
aquela coisa da silabação. Ele tinha assim que via ela lendo (...).” (Entrevistado 3)
uma gravurinha, mesmo que em branco-e-
preto, tinha um texto assim que a gente Nas lembranças, há indicações de usos
gostava de ler. Geralmente, era com algu- de livros com conteúdos ligados à história re-
ma fábula, algum conto assim, muitos ti- gional:
nham uma moral da história, e aí tinha um “A gente estava no primário inteiro só o Rio
vocabulário com as palavras mais difíceis, Grande do Sul. Geografia era só Rio Grande
que eles já previam que não eram usuais, e do Sul. A esse livro... era até a 4a, porque ti-
geralmente a gente precisava mesmo do nha geografia do Rio Grande do Sul, história

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do Rio Grande do Sul, que era a revolução porque você trabalha com artigos que apro-
Farroupilha, só essas coisas. Aí tinha língua fundam coisas, que é difícil um autor, por
portuguesa, que trabalhava com aqueles textos exemplo, dominar com a mesma profundida-
lá. E matemática não tinha. Lembro que a pro- de tudo. E então eu gostava de indicar pros
fessora de matemática de primário, ela dava alunos coletâneas ou então trabalhar tam-
matemática sem o livro.” (Entrevistado 5) bém assim diversos livros e a gente provi-
denciar que uma turma comprasse um, ou-
Há recordações antigas, referentes à tra turma comprasse outro, depois rodava,
década de 1950, de situações em que o livro que nem história da educação eu fiz um
era substituído por apostilas, provavelmente pouco isso. Eu fazia também alguns resu-
criadas ou organizadas pelo professor. E fica- mos pra eles, pra reproduzir alguns trechos,
ram marcadas as situações em que professores, ia quebrando o galho. E também isso foi
na década de 1970, não utilizavam livros didá- década de 1960, e como eu fui efetivada
ticos e nem apostilas. Preferiam propor para os em 1970, começo de 1970 que eu trabalhei
alunos perguntas que deveriam ser pesquisadas: na escola normal, também não tinha tanta
facilidade pra livro também. Acho que de
“Ela fazia um questionário de cem perguntas e 1980 pra cá é que melhorou bastante o pre-
mandava todo mundo copiar. Ai você copiava ço e a variedade dos livros.” (Entrevistado 3)
aquele questionário de cem perguntas. E aí
você tinha que responder aquele questionário. Nas últimas décadas, como apontam al-
Aí ela indicava onde estavam os livros e como guns autores como Marisa Bonazzi e Umberto
achar, tal, e você tinha que pesquisar e respon- Eco (1980), Kazumi Munakata (1998) e Eduardo
der as cem perguntas.” (Entrevistado 5) Portela (2003), os livros didáticos têm sido mui-
to criticados por educadores. E isso pode, de al-
Mudando de perspectiva, uma depoen- gum modo, interferir nos depoimentos, indepen-
te relembrou o uso do livro como professora. dentemente do uso que dele tem sido feito em
Seu depoimento aponta, por exemplo, a impor- outras épocas. O presente acomoda o passado e
tância de investigar como, ao longo do tempo, o transforma. Assim, esperamos avaliar até que
e, dependendo das concepções pedagógicas, ponto os relatos de professores podem nos apro-
esse uso torna-se variável, com justificativas e ximar do cotidiano escolar de tempos atrás e re-
sentidos de trabalhos pedagógicos distintos. Ou, fletir sobre como os valores atuais podem remode-
ainda, se há permanências ao longo do tempo: lar a memória. Como analisa Maurice Halbwachs,
há um exercício de análise importante para dis-
“ Eu sempre tive dificuldade de usar um só, cernir as camadas das lembranças, sobrepostas
usar um só. Mas eu sempre achei muito im- pelas vivências sociais e pelo tempo.
portante recorrer a livro didático. Geralmente
utilizava pra uma coisa, introduzia outras. A imagem que fiz de meu pai, desde que eu
No primário, por exemplo, minha experiên- o conheci, não parou de evoluir, não so-
cia foi mais de pegar o que o MEC mandava mente porque, durante sua vida, as lem-
pra escola, porque as crianças não podiam branças se juntaram às lembranças: mas eu
comprar. E de lá eu selecionava, o que eu mesmo mudei, isto é, meu ponto de vista
queria usar de um, do outro, e completava se deslocou, porque eu ocupava dentro de
com coisas que eu pegava de outros livros e minha família um lugar diferente e sobretu-
reproduzia.... Agora, na escola normal, eu... do porque fazia parte de outros meios.
gostava de adotar coletânea, justamente (Halbawachs, 1990, p. 74)

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Recebido em 05.10.04
Aprovado em 18.11.04

Antonia Terra de Calazans Fernandes é doutora em História Social pela FFLCH da USP, professora do Departamento de
História do UNIFIEO, de Osasco, e professora eventual do Departamento de História da PUC-SP.

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