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A Porto Alegre

de Erico Verissimo

Charles Monteiro*

Resumo:
Dentre as obras do chamado Ciclo de Porto Alegre, o romance O Resto é silêncio destaca-
se pela complexa estrutura narrativa baseada na técnica do contraponto. Na Sexta-Feira
Santa, sete personagens testemunham a morte de uma jovem que cai do alto de um
edifico no meio da praça central de Porto Alegre. O autor narra a repercussão daquela
morte na vida dos sete personagens. A proposta é refletir sobre a construção das repre-
sentações sociais de cidade nessa obra de Erico Verissimo, bem como refletir sobre as
formas como são representados na narrativa os diferentes tempos e espaços sociais
urbanos.

Palavras-chave: História e Literatura. Porto Alegre. Urbanização.

N
o âmbito da Nova História Cultural (Chartier, 1988), o historia-
dor passou a trabalhar com outros problemas, métodos de abor-
dagem e tipos de documentos. A história da leitura (Chartier,
1996), do livro e das representações sociais permitiu lançar um novo olhar
sobre os textos literários. Nesse âmbito, o conceito de representação de
Louis Marin retomado por Roger Chartier (1988) torna-se muito produti-
vo no sentido de refletir sobre a forma como a cidade é dada a ver e o que
fica de fora do quadro construído na narrativa literária.
As representações expressam códigos sociais que conferem sentido
e significado às práticas coletivas. Discutir as formas de representação da
cidade na obra de Erico Verissimo permite compreender as sensibilida-
des e o imaginário de cidade de seu grupo social: as camadas médias
brasileiras dos anos 1930 e 40. Permite, também, compreender como as
mudanças na paisagem urbana e na composição social estavam sendo
experienciadas por essas camadas e interpretadas pela intelectualidade
local. Mas, sobretudo, permitem discutir a forma como o escritor refigura
ficcionalmente a cidade e a História nos seus romances.
Erico Verissimo era um escritor visual, pois deixou desenhos colo-
ridos com planos e esboços de personagens que usava para ajudar na

* Doutor em História Social pela PUCSP/Lyon 2 e professor adjunto de História no PPGH


da PUCRS.
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composição de suas obras. Mas, principalmente, pela construção em seus
textos de paisagens, lugares e personagens, que utilizavam um vocabulá-
rio relativo a cores, tonalidades e efeitos de luminosidade e sombras. Erico
dizia-se um pintor frustrado que contava histórias com os pincéis da
ficção.
Para pensar as representações da cidade de Porto Alegre na obra
de Erico Verissimo, a partir dos romances agrupados por muitos críticos
no chamado “Ciclo de Porto Alegre”, esse pode ser um interessante ponto
de partida. A pintura como afirma Francastel, não é mimese da realidade,
ou seja, uma cópia do real, mas trabalho de criação e de expressão da
sensibilidade do artista, a partir de certos códigos e convenções reconhe-
cíveis pelas pessoas de certa cultura visual.
Nesse sentido, proponho pensar as representações da cidade na
obra de Erico, abordando alguns índices da modernidade e da tradição
na experiência social da metrópole em uma de suas obras: O Resto é Silên-
cio (1943).
A cidade é atravessada por uma série de escritas (cartazes, néons,
tabuletas, placas, outdoors), que exigem ser decifrada pelos habitantes
na suas experiências diárias e nas práticas de leitura dos romances urba-
nos. As vanguardas encontraram na cidade um espaço privilegiado para
a criação estética da modernidade, os artistas elaboraram em suas obras
as novas percepções de espaço e tempo no seu fluxo incessante dos signos
dos novos tempos. A partir dos anos 1910, através dos cronistas dos jor-
nais diários e dos anos 1920, nas obras dos modernistas, o cotidiano da
cidade torna-se tema recorrente na literatura brasileira.
A cidade e, mais propriamente, a elite e as camadas médias da soci-
edade urbana porto-alegrense foram abordadas nas obras de Erico
Verissimo. Desde Clarissa (1933) até Noite (1954), a transfiguração ficcional
da cidade e dos habitantes de Porto Alegre é matéria-prima para seus
livros. Escritor realista, ele pretendia através de um corte transversal
descrever os dramas e misérias da sociedade urbana, retomando o proje-
to do romance social do século XIX. Erico situa-se na corrente do romance
de 1930, que tem na cidade um lócus privilegiado para a discussão das
mudanças de identidade da sociedade brasileira. Para tanto, empregou a
técnica do contraponto de Aldous Huxley em Caminhos Cruzados (1935) e O
Resto é Silêncio (1943).
No contexto em que Erico Verissimo concebeu os seus romances, a
cidade de Porto Alegre passava por um processo de transformações ur-
banas decorrentes de mudanças na economia, na política e na composi-
ção da sociedade brasileira e sul-rio-grandense. A expansão da economia
capitalista no campo e da industrialização relacionada ao projeto políti-
co modernizador de Getulio Vargas projetou a mobilização política das
massas urbanas e seu ordenamento social através de um novo ideal de
cidade no contexto mais amplo da nação. Porto Alegre foi administrada,
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nos anos 1930 e 40, por políticos engajados nesse projeto modernizador:
Alberto Bins (1928-37) e Loureiro da Silva (1937-43).
Em 1920, a população da capital era de 179.263 habitantes. As elites
sociais e econômicas começam a deslocar as suas residências gradual-
mente para fora do centro, ocupando as áreas mais altas e sãs na extensão
da Rua Duque de Caxias em direção à Independência e ao futuro bairro
Moinhos de Vento. Nesse sentido, a Nova Hidráulica Municipal e a Praça
Júlio de Castilhos, além da expansão das linhas de bondes elétricos, foram
um forte incentivo da Intendência ao desenvolvimento desse bairro
ajardinado no modelo europeu. Por outro, o surgimento das primeiras
linhas de ônibus, em 1926, permitiram o surgimento de novos loteamentos
e a expansão da malha urbana para além das linhas dos bondes permi-
tindo comercializar lotes a prestação para as classes populares.
Foi na administração de Otávio Rocha (1924-1928), chamado de “o
remodelador da cidade” pelos jornais locais, que ocorreu um primeiro
processo concentrado de modernização urbana com abertura, para a cir-
culação de automóveis, bondes elétricos e pedestres, das primeiras ave-
nidas largas, pavimentadas, iluminadas, arborizadas e com calçadas, tais
como a Júlio de Castilhos, a Borges de Medeiros com seu viaduto e a Otá-
vio Rocha com a sua praça. Para tanto, Otávio Rocha contraiu emprésti-
mos no exterior, aumentou os impostos e reorganizou a administração
municipal, criando novos departamentos, visando ampliar os chamados
serviços industriais (água, limpeza urbana, recolhimento do lixo e esgo-
tos domiciliar), agora a cargo da Intendência.
Essas novas avenidas com mais de 30 metros de largura, pavimen-
tadas por um processo novo e iluminadas por combustores Nova Lux,
abriram o centro da cidade para a circulação de automóveis, das elites
em novos vestuários e para a construção de novos prédios. Em 1928, a
Usina Termoelétrica do Gasômetro foi inaugurada para resolver o pro-
blema da falta e da inconstância do fornecimento de energia para o trans-
porte e a iluminação pública, bem como para o comércio e as fábricas.
Esse processo foi acompanhado de uma campanha de “saneamento mo-
ral” do centro da cidade com o combate à prostituição, à mendicância, ao
jogo, ao alcoolismo, bem como às habitações populares (cortiços, porões e
pensões populares). Com efeito, a abertura das avenidas Borges de
Medeiros e 24 de Maio (Otávio Rocha) visava reurbanizar as áreas do
centro onde se concentravam tradicionalmente becos, cortiços e outras
formas de habitação popular.
Nos anos 1930, aprofundou-se o processo de expansão da malha
urbana na administração de Alberto Bins (1928-1937), que deu continui-
dade aos projetos de alargamento e pavimentação das principais ruas do
centro da cidade e das radiais que ligavam o centro aos bairros. Os auto-
móveis e os ônibus concorreram gradualmente para alterar a forma de
pensar a organização e os deslocamentos no espaço urbano.

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Em 1935, realizou-se a Exposição do Centenário da Revolução
Farroupilha com uma concentração de iniciativas políticas e culturais
que visavam projetar a cidade no contexto brasileiro. Os pavilhões
construídos em estuque para a exposição apresentavam novas formas de
arquitetura modernista que influenciariam, posteriormente, a constru-
ção de vários prédios neste estilo na cidade, como o Posto de Saúde Mode-
lo e o Hospital de Pronto Socorro. O eixo monumental da Exposição de
1935 terminava no imenso Pavilhão de Exposições da Indústria Gaúcha,
que deveria evidenciar, aos olhos da imprensa nacional e da população
local, o ímpeto de modernização e projeção do estado rumo ao futuro.
Nesse período, estende-se a rede de esgoto da cidade para além do
centro e concluem-se as obras do Viaduto Otávio Rocha. O processo de
verticalização do centro da cidade continuava com a edificação de prédi-
os comerciais e de apartamentos. Porto Alegre expandia-se na direção
Norte e Sul e prolongava-se, também, na direção Leste com o surgimento
de novos bairros residenciais para as elites como Petrópolis, Moinhos de
Vento, Monte Serrat, bem como de bairros mais populares como São João,
Navegantes e Partenon. O crescimento da cidade daria ensejo à elabora-
ção de um estudo urbanístico pelos engenheiros Edvaldo Paiva e Luiz
Arthur Ubatuba de Farias, entre 1935 e 1937, chamado As Linhas Gerais do
Plano Diretor, que visava compreender o crescimento da cidade ao longo
do tempo e projetar novas obras antevendo suas necessidades naquele
presente e no futuro.
Com o Estado Novo, assumiu a Intendência José Loureiro da Silva
(1937-1943), que contratou o urbanista Arnaldo Gladosch para elaborar
um Plano Diretor para a capital (1938), o qual, apesar de estabelecer um
zoneamento para a cidade, foi basicamente um plano viário, propondo a
abertura de radiais e perimetrais sem uma noção maior de conjunto.
Estes estudos foram influenciados pelos Planos Agache realizado para o
Rio de Janeiro e o Plano de Avenidas de Prestes Maia para São Paulo.
Loureira da Silva inclusive visitou São Paulo para conhecer o Plano de
Vias do prefeito Prestes Maia.
A partir desses estudos, o Prefeito formulou um plano de reformas
urbanas com a realização de grande obras viárias como a Avenida Farra-
pos e a Avenida 10 de Novembro (Salgado Filho), para as quais foi neces-
sário demolir toda uma parte do centro da cidade composta de antigos
casarões no estilo colonial, além de um conjunto de habitações populares.
Essas demolições terminaram por causar uma redução no número de
habitações disponíveis no centro da cidade, gerando inflação nos alugu-
éis e a migração de grupos de baixa renda para áreas mais distantes do
centro da cidade.
Loureiro da Silva também canalizou o Arroio Dilúvio e construiu a
Ponte da Azenha melhorando as comunicações com a zona Sul da cidade,
onde Praia de Belas, Menino Deus, Tristeza já eram arrabaldes populosos
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passando por um processo de urbanização e loteamento. Em 1940, a cida-
de de Porto Alegre concentrava uma população de 272.232 habitantes.
Em 1940, Loureiro da Silva promoveu as Comemorações do Bi-
centenário da Colonização de Porto Alegre com desfiles, apresentações de
música erudita, corridas de carro, bailes, discursos, congressos de Letras,
História e Geografia e inaugurações de obras públicas com a presença do
Presidente Getúlio Vargas. A administração municipal também auxiliou
a publicação da obra Porto Alegre: Biografia de uma cidade (1941), que deveria
abordar a história de Porto Alegre e os progressos que a cidade estava
atingindo no presente, bem como o futuro glorioso que se lhe afigurava.
Loureiro da Silva buscou de várias formas legitimar-se no poder e
à sua política autoritária de reformas urbanas, no contexto do Estado
Novo, através da cooptação de intelectuais, do financiamento à publica-
ção de obras de história e da realização do III Congresso de História e
Geografia. Loureiro da Silva pretendeu inscrever o seu nome nas páginas
da história da cidade através de grandes obras urbanas, das comemora-
ções do Bicentenário da Colonização e dos livros de história.
A enchente de 1941 inundou o centro, parte significativa da cidade
baixa e atingiu seriamente os bairros da zona Norte da cidade, marcando
o início de uma nova postura em relação ao Guaíba. A cidade através do
novo porto e de aterros na área central e na Praia de Belas passaria a
afastar gradualmente as águas do Guaíba. Em 1942, Loureiro da Silva
criou a Seção de Expediente Urbano e o engenheiro Ubatuba de Farias
apresentou o estudo intitulado Expediente Urbano de Porto Alegre. Em 1950, a
cidade atingia 394.151 habitantes.
Um contexto que exigia cortar certos laços com o passado e forjar
as bases para uma nova experiência social naquele presente em busca de
um novo horizonte de futuro, marcado pela vontade de ser potência.
Automóveis correndo em amplas avenidas, pessoas morando e traba-
lhando em altos edifícios, fábricas apitando e lançando rolos de fumaça
aos ares, homens e mulheres freqüentando cafés, bares, restaurantes, ci-
nemas, a publicidade de magazines de roupa e eletrodomésticos apelan-
do às novas práticas de consumo eram algumas das cenas modernas de
uma nova cultura urbana. Também, os dilemas éticos e a desigualdade
social eram índices desses novos tempos.
Porém, se um futuro cheio de possibilidades e desafios se abria
para as camadas médias urbanas em ascensão, não era possível romper
totalmente com a herança do passado e tornava-se necessário gerir essa
passagem e acomodar as contradições da experiência social do tempo
presente. Nesse sentido, o romance urbano, a partir dos anos 1930
tematizava e ajudava a elaborar essa nova modernidade urbana vivida
de maneira conflitual pelos contemporâneos como conquista de novas
possibilidades ao mesmo tempo em que a perda dos referenciais seguros
do passado.

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Nos romances de Erico Verissimo, as personagens estão envoltas
em um dilema. Por um lado, lutam para ascender socialmente, por outro,
são assoladas por problemas de consciência frente à desigualdade social,
à guerra na Europa, à violência e à reificação do indivíduo na sociedade
capitalista. Esse contexto de mudanças e contradições levava a
intelectualidade a questionar a herança cultural recebida, os valores e as
práticas sociais ligadas ao passado rural marcado por práticas
oligárquicas. O surgimento de uma nova moral e de uma nova ética liga-
das ao dinheiro e ao prestígio numa sociedade de consumo ameaçava
corroer o caráter desses personagens que se debatiam com esses grandes
dilemas.
A galeria de personagens criada pelo escritor permitiu-lhe traba-
lhar as diferentes gradações e formas como eram experienciadas essas
contradições pelas diferentes classes e grupos da sociedade local. Em um
primeiro momento, os problemas da sociedade urbana aparecem de pas-
sagem em Clarissa (1932). Nesse romance, a personagem principal vive
em uma pensão e observa o drama da família pobre com um filho doente
que mora na casa ao lado. Depois, de maneira explicita ao longo das obras
Caminhos Cruzados (1935), Olhai os lírios do campo (1938), Saga (1940) e O Resto
é Silêncio (1943), para, finalmente, aparecer de forma dramática no
desenraizamento da personagem central da novela Noite (1954). O tema
da cidade moderna percorre toda a trajetória da obra de Erico até ser
suplantada pela cidade ficcional de Incidentes em Antares (1971), onde é o
passado que vem assombrar os homens do presente.
Sem oferecer soluções prontas, Erico, através de um autor-modelo
e da personagem do escritor Tônio Santiago, dialoga com seus leitores,
através do romance O Resto é o Silêncio (1943), sobre a repercussão em suas
vidas desse processo de modernização social e da paisagem urbana no
contexto da guerra e da ditadura de Vargas.
No contexto do Estado Novo, o livro teve grande repercussão pela
polêmica que gerou devido às críticas à Igreja, representada pelo perso-
nagem Marcelo, e à moral hipócrita das chamadas “classes conservado-
ras”, representadas pelos personagens Aristides Barreiro e Norival Petra.
Um artigo escrito pelo Padre Fritzen na Revista Eco, atacando Erico e
desaconselhando a leitura de seu livro, dividiu a intelectualidade local
em vozes a favor e contra a liberdade de expressão do escritor no contexto
da ditadura do Estado Novo.
Tanto a questão da forma de representação do espaço quanto a da
passagem do tempo no romance permitem uma rica e plural interpreta-
ção dos dilemas com os quais se debatia a sociedade porto-alegrense na-
quele período. Erico criou uma oposição entre a moral pública e a privada
através da contraposição do espaço da casa, como lugar de expressão da
liberdade do indivíduo, ao espaço público, lugar de expressão das contra-
dições da sociedade urbana e industrial.
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As ações das personagens passam-se principalmente no centro da
cidade. A narrativa começa descrevendo sete personagens, o que faziam,
como viram a queda de uma mulher do 13º andar do Edifício Império, na
praça central da cidade, e o efeito do fato em suas trajetórias de vida.
Como uma pedra jogada no lago, como antecipa a epígrafe do livro retira-
da de um poema de Mario Quintana, a morte da jovem Joana Karewska
repercute na vida de cada um desses personagens que se encontravam na
Praça naquele mesmo instante. O narrador, no final, torna a reunir as
personagens no Teatro São Pedro para ver o concerto do Maestro Bernardo
Resende com a presença do próprio Interventor.
Baseada num caso real acontecido a Erico, em 1942, a morte da
jovem permite sustentar a unidade da trama narrativa até o desfecho no
Teatro. O autor serve-se da técnica do contraponto para cruzar as dife-
rentes ações das personagens e colocar em relevo as características soci-
ais, políticas, éticas e psicológicas de cada um deles como representantes
exemplares de sua classe social. O romance é narrado em terceira pessoa.
O narrador é onisciente da psicologia interna, dos estados de espírito e
dos pensamentos das personagens.
Observa-se um rol de personagens que vão criando um quadro da
sociedade local num corte de alto a baixo da hierarquia social.
As elites conservadoras, ligadas ao passado, estão representadas pelo
desembargador aposentado Ximeno Lustosa e pelo ex-chefe político do
PRR, o velho coronel Joaquim Barreiro; bem como por seu filho Aristides
Barreiro, que representa a adaptação daquele sistema de mandonismo ao
novo contexto urbano, através de alianças com as novas classes emer-
gentes.
Os arrivistas, ainda ligados à velha ordem, mas engajados no proces-
so de modernização, são representados por Aurélio Barreiro (filho de
Aristides Barreiro) o bon vivant; e por Norival Petra, que vive de investi-
mentos em ações.
As camadas médias são representadas pelos intelectuais: Bernardo
Resende, maestro hedonista famoso nacionalmente; Tônio Santiago, es-
critor humanista também de renome nacional; Roberto, jovem jornalista
de tendências socialistas; Marcelo Barreiro, jovem religioso conservador
e professor de filosofia.
As classes populares são representadas por Chicharro, tipógrafo apo-
sentado por causa da tuberculose, e por Sete (Angelírio), o vendedor de
jornais.
Temos, ainda, os personagens de ligação entre as classes, como os fi-
lhos do escritor Tônio Santiago (Gil que se apaixona por Tilda, sobrinha
de Aristides Barreiro, e Nora que se apaixona por Roberto jornalista ide-
alista).
Vários são os tipos de comprometimento das personagens com a
velha e a nova ordem. Desde os seus herdeiros diretos do passado rural e

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oligárquico, como a família Barreiro, até os que querem radicalmente
transformá-la, como o jovem idealista Roberto. Outros personagens pa-
recem alheios a esta tensão entre o passado em ruínas e o presente em
transformação, à guerra na Europa e à ditadura no Brasil, envolvidos
com seus próprios dramas individuais: Marina, Tilda, Norival Petra.
Pode-se vincular cada personagem a uma determinada forma de
focalizar o espaço urbano na trama.
A família Barreiro vive no Solar do Montanha, na Rua Duque de
Caxias, no centro da cidade, e representa o passado da cidade:

A sala de visitas do solar era ainda toda uma reminiscência da segun-


da metade do século dezenove. Falava da prosperidade dos Monta-
nha que graças à sua pertinácia e ao negócio dos cereais por atacado,
havia conseguido subir da cidade baixa para a alta, mudando também
de categoria social. O objeto mais novo naquele compartimento tinha
cinqüenta anos. (...) havia ali aquele silêncio parado, aquele aroma
antigo tão peculiar aos museus ... “(1960: p. 83).

Mais adiante a solenidade do Solar e da rua é relacionada com a


herança dos bravos açorianos. A velha cidade aparece nas fala de Marce-
lo, jovem religioso conservador:

Gostava de caminhar sozinho à noite pelas ruas desertas da parte


mais antiga da cidade. Elas ofereciam um clima propício ao mistério.
(...) Não tinham o orgulho das ruas centrais, todas cheias de anúncios
luminosos, vitirinas cintilantes e criaturas vaidosas – ruas que eram o
símbolo duma civilização materialista e mecânica, esquecida de Deus.
Jesus andava pelas ruas pobres da cidade baixa – achava Marcelo.
(1960: p. 93)
Aquela parte da cidade havia resistido à modernização; não tinha
arranha-céus, nem postes nova lux, nem anúncios de gás neônico.
Conservava um aspecto provinciano que chegava a ser enternecedor.
As casas eram acachapadas, de fachada lisa, com janelas de guilhoti-
na, algumas de caixilho meio desconjuntado. (1960: p. 96).

Outro que representa o luto da perda da velha cidade e sua memó-


ria que está desaparecendo é tipógrafo aposentado:

O Chicharro esqueceu-o. Ficou olhando com uma vaga hostilidade


para os altos edifícios do outro lado da rua. Não gostava deles. Consi-
derava-os intrusos. Arrivistas. Os prédios antigos tinham mais beleza,
mais dignidade, mais história. Ele vira aquela praça crescer. E o en-
graçado é que com o passar do tempo ela ia ficando cada vez mais
nova e ele cada vez mais velho. (...)
As luzes se ascenderam. O Chicharro lembrou-se do bom tempo dos
lampiões ... Foi nesse instante que ele viu uma coisa – uma mala,
manequim ou pessoa? – caindo do alto dum dos edifícios fronteiros.
(1960: p. 20)

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Um exemplo da nova pastoral moderna urbana surge logo no iní-
cio do livro nas palavras do narrador:

Logo depois que o sol desapareceu, aquela praça ali no centro teve
um minuto de esquisita beleza. As lâmpadas estavam ainda apaga-
das. Os anúncios de gás neônio riscavam de coriscos coloridos as
capotas dos automóveis parados junto da calçada. Quem olhasse
para o lado do poente veria – silhuetas casas, torreões, cúpulas, pos-
tes, cabos e amarrações de aço – uma escura massa arroxeada de
contra o gelo verde do horizonte”. (1960: p. 6)

Entre um e outro extremo, Tônio Santiago gostava de caminhar


pela Rua da Praia, de flanar pelo Mercado Público e na Praça Parobé (ver
1960: p. 333). A cidade é enfocada por ele como uma paisagem com seus
aspectos múltiplos e polifônicos, tanto antigos quanto modernos.
A nova experiência proporcionada pelas reformas urbanas de Lou-
reiro da Silva, que abre a Farrapos e a Avenida Salgado Filho aparece em
uma ação da personagem Aurélio Barreiro, o sports men , que permite enfocar
a modernidade urbana, vejamos um trecho:

Ao entrar na Avenida Farrapos, Aurélio recebera um desafio da limusine


cinzenta que desde a Rua Voluntários da Pátria lhe vinha barrando o
caminho de maneira irritante. A corrida começou e a limunsine levava
luz de mais ou menos 20 metros. Aurélio decidiu que não podia perder
aquela parada, nem se tivesse que espatifar o carro recém saído da
oficina de reparos. As mãos aferradas ao volante, os olhos ora na
faixa de cimento, ora no mostrador – 50..60..70..80.. Os pneumáticos
chiavam no cimento. O vento zunia... Para o inferno a luz vermelha!
Passam casas, muros, postes, praças, pessoas, como num cinema
doido. (1960: 106)

Modernidade e tradição podem ser encontradas na narrativa de


Erico através das falas, das ações e dos trajetos das personagens, mas
nem só de modernidade nutre-se o relato sobre a cidade. Ela tem o seu
lado arcaico com suas casas baixas e vetustas e ruas mal iluminadas a
nos lembrarem que essa metrópole em formação é também periférica e
provinciana.
Quanto à percepção do tempo, estão Chicharro,a olhar para trás,
para o passado perdido, com a nostalgia de uma cidade menor, idealmente
melhor e mais humana, e Aurélio a olhar para frente, com o pé no fundo
do acelerador em alta velocidade, sempre em frente. Ele só poderia termi-
nar atropelando os indesejados da modernidade que estivessem
desavisadamente no seu caminho: o jornaleiro Sete. A II Guerra Mundial
e o Estado Novo provocam reverberações na vida das personagens e nos
seus horizontes de expectativa, que são abordados de maneira indireta
através dos fluxos de consciência das personagens. Os grandes dilemas

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são aqueles herdados do passado, os desafios são aqueles colocados pelo
desenvolvimento do capitalismo e pela constituição de uma sociedade de
consumo.
É possível realizar um mapeamento dos espaços urbanos a partir
do enfoque das personagens. Há um predomínio de cenas que se passam
no centro da cidade, na Praça, na Rua dos Andradas (também aparece
com o velho nome Rua da Praia) a Rua Duque de Caxias (também aparece
como Rua da Igreja), a Rua da Ladeira (que já aparece com antiga denomi-
nação), bem como os espaços fechados como bares, confeitarias, cinemas
e restaurantes.
O Centro é o lugar de memória dos altos lugares da cidade do pas-
sado que servem para articular a ação entre as várias personagens. Ação
que começa na Praça (Antigo Largo da Quitanda) e termina no Teatro São
Pedro na Praça da Matriz (Alto da Praia). Ou seja, o romance começa na
ágora onde os homens se reúnem no sentido da polis antiga e termina na
acrópole onde se presta culto aos deuses que regem os destinos da cidade.
Os lugares esquecidos são os lugares onde mora a população negra como
a Ilhota (no antigo Areal da Baronesa) ou a Colônia Africana. Vagamente
fala-se das malocas à beira-rio, a mesma beira de rio que permitiu aos
míticos primeiros habitantes açorianos arrancharem-se à espera de rece-
berem a doação de terras da Coroa. Os becos, as ruas de má fama e os
cabarés populares da Cabo Rocha estão ausentes da narrativa. A idéia da
peregrinação às Igrejas, durante a Semana Santa, aponta para um aspec-
to místico da morte do passado (demolições), para o luto (elaboração da
perda de laços com o passado através da memória), para a renovação do
espaço urbano.
É interessante notar que no centro moram tanto as personagens da
elite tradicional – o solar dos Barreiro na Duque de Caxias, o Desem-
bargador Ximeno Lustosa que mora sozinho em seu apartamento do 14º
andar do Edifício Continental – quanto personagens pertencentes às ca-
madas médias, como o jovem jornalista Roberto, e, até, às classes popu-
lares, como o ex-tipógrafo Chicharro. Nos bairros mais distantes, obser-
va-se uma gradação social: a família do escritor Tônio Santiago mora no
alto, em Petrópolis, a família do jornaleiro Sete mora na beira do Guaíba,
num rancho situado no banhado entre São João e Navegantes. No tradici-
onal bairro do Menino Deus, mora a cafetina que apresenta a morena da
Glória a Norival Petra. Os sujeitos ausentes da narrativa de Erico são os
desviantes, os marginais que mereceriam espaço na narrativa sobre a
cidade, uma década depois, em Noite (1954).
Poder-se-ia dizer, em síntese, que na narrativa de Erico, sobretudo
em O Resto é Silêncio, a cidade é transformada em cenário. A imagem da
cidade corresponde à experiência das camadas médias urbanas em as-
censão, que seriam intermediárias culturais nesse processo de moderni-
zação. Engajadas e maravilhadas com as novidades e múltiplas possibi-
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lidades, mas percebendo que um mundo percebido como estável e seguro
estava mudando numa velocidade que não permitia prever e nem con-
trolar os desdobramentos. Contra essa tempestade avassaladora que
ameaça “tudo que é sólido demancha[r] no ar”, os indivíduos protegem-
se no espaço privado e vão buscar observar e pensar sobre as mudanças
de um lugar privilegiado e protegido do alto da torre. Embora, como o
início do livro previne, de lá se possa cair ou ser também atirado ao solo.
É interessante observar que a organização estelar do romance, que
parte do episódio da queda de Joana Karewska para contar várias outras
histórias em outros lugares da cidade, encontra paralelo no processo de
expansão da malha urbana, seguindo as novas avenidas radiais que esta-
vam sendo alargadas e pavimentadas em direção à periferia, no momen-
to em que está sendo escrito o romance.
A cidade está se transformando apresentando novos espaços mo-
dernos (avenidas, viadutos, novos bairros), sobretudo no centro, pelo
processo de verticalização que se iniciava lentamente. Mas também, era
provinciana, pois conservava aspectos tradicionais da velha cidade nos
bairros Cidade Baixa e Menino Deus. Observa-se também uma gradual
especialização e segregação dos espaços urbanos a partir da expansão de
novas áreas residenciais (como Petrópolis) e industriais (como
Navegantes). O autor situa-se entre a pastoral da cidade moderna e o luto
da velha cidade, que estava desaparecendo lentamente, e cuja moderni-
zação se aceleraria muito nas décadas de 1950 e 1970. O que levaria Porto
Alegre a uma crise urbana, à necessidade de elaborar Planos Diretores e a
realizar cirurgias urbanas, que fizeram aumentar a distância entre as
elites e as classes populares, gerando segregação e desigualdade sociais
na ocupação do espaço urbano.

Recebido em 12/09/2005
Aprovado em 30/09/2005

Title: Erico Veríssimo’s Porto Alegre

Abstract:
Among the works of the so-called Cycle of Porto Alegre, the novel O Resto é Silêncio
stands out for its complex narrative structure based on the counterargument technique. On
Good Friday, seven youngsters witness the death of a young woman who falls from a
building in the middle of the central square of Porto Alegre. The author narrates the effects
of this death on the seven characters’ lives. The proposal is to reflect upon the construction
of the social representation of town in this work by Erico Veríssimo, as well as upon the
ways in which the different social urban times and spaces are represented in the narrative.

Key words: History and Literature. Porto Alegre. Urbanization.

34 Ciênc. let., Porto Alegre, n.38, p.24-35, jul./dez. 2005


Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras/publicacao.htm>
Referências

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Porto Alegre, 2002. 180p. Dissertação (Mestrado em Letras) Faculdade de
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VERISSIMO, Erico. O Resto é silêncio. Porto Alegre: Globo, 1960.
ZILBERMAN, Regina. A Literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado
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Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras/publicacao.htm>

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