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A afinidade eletiva entre

Anísio Teixeira e John Dewey

Miriam Waidenfeld Chaves


Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Este artigo é parte integrante da tese de doutoramento da autora, em fase de pesquisa, sobre a
administração de Anísio Teixeira na Inspetoria Pública do antigo Distrito Federal nos anos 30.

É fato que os pressupostos teóricos de Anísio cerem a uma mesma raiz, atravessam tanto o tem-
Teixeira acerca da escola que desejava ver implan- po quanto o espaço, modificando-se e atualizando-
tada no Brasil depreendem-se das premissas elabo- se, tornando, nesse caso específico, o pensamento
radas por John Dewey na primeira metade do sé- de Anísio parte integrante de uma tradição que não
culo XX, nos Estados Unidos da América. Entre- se limita a Dewey, mas se estende até Francis Ba-
tanto, apesar de a relação entre esses dois educa- con e John Stuart Mill.
dores já ter sido bastante evidenciada por meio de Segundo Löwy, o significado do termo afini-
artigos, pesquisas e teses de doutorado, cabe, ain- dade eletiva sofreu várias alterações, indo da alqui-
da, discutir que tipo de influência Dewey exerceu mia à sociologia. Ainda na Idade Média, designa-
sobre Anísio, fazendo com que este último, inclu- va a combinação entre dois elementos químicos que
sive, se apropriasse de algumas de suas idéias sem, se uniam por causa de uma afinidade natural. Essa
no entanto, as ter tornado simples plágios. Nesse atração geraria, então, uma outra substância, com
sentido, o conceito de afinidade eletiva, descrito propriedades novas e distintas das composições an-
por Michael Löwy (1989), em muito contribui pa- teriores. Mais tarde, Goethe foi o responsável pela
ra o esclarecimento dessa questão, uma vez que, transposição do conceito químico para o plano so-
segundo essa definição, a apropriação deve ser vis- cial da espiritualidade e dos sentimentos humanos.
ta como uma escolha, um parentesco entre indiví- Para o romancista alemão, existiria afinidade eletiva
duos e idéias, que, mais do que se identificarem en- toda vez que um ser buscasse o outro, ligando-se um
tre si, identificam-se com uma escola de pensamen- ao outro em uma espécie de “vínculo entre as al-
to, que, no caso aqui descrito, são o liberalismo e mas”. Será, entretanto, com Max Weber, já no fim
o pragmatismo do século XIX e início do XX, que o termo irá ad-
Esta noção de filiação indica a existência de quirir o status de um conceito sociológico. Manten-
um fio condutor onde as idéias, apesar de perten- do a idéia de escolha recíproca e de atração, pro-

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curará por meio dessa noção estudar a relação tanto so educador, conteriam em si as alternativas pos-
dos interesses de classe com as visões de mundo síveis para tirar o Brasil do seu eterno sono colo-
quanto das doutrinas religiosas com as formas de nial. Com essa crença, Anísio se torna um dos divul-
ethos econômico. gadores desse mesmo ideário.
De acordo com esse itinerário do termo, Löwy Tentando, ainda, aprofundar a relação entre
(p. 17) enumera quatro níveis ou graus de afinida- esses dois autores, pode-se também entender esta
de eletiva: a) a combinação pura e simples, carac- vinculação a partir da noção de discurso proposta
terizada por uma correspondência ou reciprocida- por Eni Orlandi (1987, p. 26), quando afirma que
de, mas, ainda, estática entre seres; b) a eleição ou “todo discurso nasce de outro discurso e reenvia a
atração recíproca que, neste caso, já indica uma es- outro, por isso não se pode falar em discurso mas
colha ativa, uma convergência de idéias ou pensa- em estado de processo discursivo, e esse estado deve
mentos; c) a articulação entre parceiros ou autores, ser compreendido como resultado de processos dis-
gerando, inclusive, o que se poderia denominar de cursivos sedimentados, institucionalizados”.
“simbiose cultural”, em que os seres permanecem Segundo Orlandi, esse conceito de discurso se
independentes, mas organicamente ligados; d) a define como algo que se encontra enraizado no so-
criação de uma figura nova a partir da fusão de dois cial, o que pressupõe a configuração de “um efeito
elementos constitutivos. de sentidos entre interlocutores”. Ou seja, sempre
Em vista da variação conceitual do termo afi- que alguém diz alguma coisa, o diz de algum lugar
nidade eletiva, a apropriação do pensamento de da sociedade para um outro alguém que também se
Dewey por Anísio pode ser determinada pelo mo- encontra em algum lugar da sociedade e isso faz
do como Löwy define essa mesma expressão: “um parte da significação (p. 26). Desse modo, o pro-
tipo particular de relação dialética que se estabele- cesso discursivo só se constitui por meio de um eu
ce entre duas configurações sociais ou culturais, e de um outro que se articulam socialmente, crian-
não redutível à determinação causal direta ou à ‘in- do uma rede de significados que se estende para
fluência’ no sentido tradicional. Trata-se, a partir muito além do tempo e do espaço desses mesmos
de uma certa analogia estrutural, de um movimen- interlocutores.
to de convergência, de atração recíproca, de con- Desse ponto de vista, o pensamento de Anísio
fluência ativa, de combinação capaz de chegar até pode ser visto como um elo de uma corrente onde
a fusão” (p. 13). também se situam as idéias de Dewey; como se o
Löwy, além disso, ao afirmar que a afinidade primeiro, por meio de uma escolha, fosse em bus-
eletiva pode ser concretizada em função das condi- ca de um ancoradouro, ou melhor, daquilo com o
ções sociais semelhantes ou diferentes, permite que qual se identificasse, para, a partir desse ponto,
se pense a relação entre Anísio e Dewey como uma construir as suas próprias idéias.
tentativa do primeiro em buscar soluções para o Tendo em vista essas considerações, resta mos-
atraso educacional brasileiro dos anos 30 aos 60 nas trar, a partir dos vários graus de afinidade eletiva,
premissas liberais do filósofo americano. Anísio, o modo como se deu essa apropriação de Anísio,
neste caso, acreditaria que o liberalismo emanado que, em última instância, implica a sua própria op-
da sociedade americana poderia chegar até o Bra- ção pessoal e intelectual pelo liberalismo e o prag-
sil, penetrar em sua sociedade e, conseqüentemen- matismo. Nesse sentido, este artigo, primeiramen-
te, fazer com que a nação se tornasse menos pro- te, procurará detectar o momento em que Teixeira
vinciana e atrasada. Essa filiação ou escolha se da- se deixa encantar tanto pelas idéias de seu pai inte-
ria, então, em função de uma carência cultural, de lectual quanto pela ambiência americana. Em se-
uma falta, de um vazio que deveria ser preenchido guida, serão explicitadas algumas das noções que
pelas premissas liberais que, de acordo com o nos- ambos os educadores têm em comum para, logo

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após, poder ser identificado o solo comum a que estado. Sob esse aspecto, pode-se dizer que a mar-
pertencem. Por último, buscar-se-á apontar o que ca de sua primeira gestão foi um misto dessas va-
há de novo ou de diferente no pensamento de Aní- riadas influências.
sio, que o torna um continuador de Dewey e não a Apesar de naquele momento ter adotado como
sua cópia. diretriz educacional a concepção jesuítica e intelec-
tualista, é possível perceber nesta sua administra-
A escolha: a atração intelectual ção, na Bahia, a presença de alguns dos pressupos-
de Anísio por Dewey tos modernos que, desde o início de sua carreira, o
ligaram a Dewey. Entre eles, pode-se destacar a sua
Hermes Lima (1978), na biografia de Anísio, compreensão acerca da função social da escola, que
revela de forma bastante clara o modo como o edu- faz com que o sistema de ensino esteja a serviço da
cador, ao longo de sua vida, vai fazendo as suas reconstrução não apenas da instrução como tam-
escolhas intelectuais e profissionais, constituindo bém da sociedade. Outro aspecto importante que
afinidades e atrações recíprocas, o que ao mesmo o aproxima de Dewey é o fato de querer conhecer,
tempo supõe a não concretização de sua carreira por meio de pesquisas e diagnósticos, a realidade
política, tão almejada por seu pai, como, também, das escolas que administra. Não sabia trabalhar no
a não efetivação de uma vida religiosa junto aos vazio e no incerto, uma vez que, enquanto homem
jesuítas, por muito tempo acalentada pelo padre da ciência, o seu projeto educacional deveria ser
Cabral, seu professor e conselheiro por muitos anos. baseado em largo material científico, elaborado a
Marcado pelo ambiente tanto familiar quan- partir dos dados colhidos nas pesquisas que sua
to social, cursa a faculdade de direito, na qual se administração coordenava.
forma em 1922, no Rio de Janeiro. De volta à Cae- Um outro ponto que, de certa forma, também
tité, os Teixeiras esperavam que Anísio fosse no- revela a afinidade com as idéias de Dewey e seus
meado para a promotoria pública de sua cidade a antecessores é o fato de ter sido ao longo de sua vida
fim de que assim pudesse dar continuidade à in- profissional, enquanto administrador público, não
fluência política da família no sertão baiano. No um burocrata, mas um homem de ação, com enor-
entanto, o convite inesperado do recém-nomeado me capacidade para equacionar problemas. Essa
governador, dr. Goés Calmon, para assumir a Ins- característica pessoal, marcada pelo fazer e pela
petoria Geral de Ensino da Bahia, cuida de traçar realização, que abomina a esterilidade das leis e dos
o destino profissional e intelectual de Anísio, tor- decretos artificiais, com certeza o aproxima con-
nando-o para sempre um homem dedicado a ten- comitantemente da cultura americana e do pragma-
tar resolver os problemas educacionais de seu país. tismo, já que ambos, um enquanto ethos e outro
Como ele mesmo escreve em carta para seu irmão, enquanto método científico, têm em seu cerne os
em 1965, diz que fôra “catapultado” à direção da princípios do fazer e da realização.
instrução pública, ou melhor, lançado para um Essas afirmações podem ser evidenciadas mais
cargo que não esperava e para o qual não se sentia tarde, quando, em 1955, publica o artigo “Padrões
qualificado. brasileiros de educação e cultura”. Nele, chama a
Seu estudo básico com os jesuítas, de quem atenção para a necessidade de se pôr fim ao dua-
absorveu a disciplina intelectual, e seu gosto pela lismo da nossa educação, mostrando que o ensino
leitura e pela filosofia, quando Dewey e os ameri- brasileiro tem sido estruturado a partir de padrões
canos de vanguarda, em seus anos de estudante de preconcebidos, rígidos e uniformes, que não levam
direito, eram os autores mais lidos e discutidos nos em consideração as condições reais da cultura, a
quartos das pensões, deram-lhe os instrumentos ne- diversidade das regiões e a pluralidade dos meios
cessários para administrar a instrução pública de seu sociais brasileiros.

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Por esse motivo, critica a tradição centraliza- brasileira, tendo como guia o pensamento de De-
dora do nosso Estado defendendo, ao mesmo tem- wey e como referência sociocultural a sociedade
po, “uma educação para descobrir e para fazer” e americana. Em uma entrevista, em 1952, afirma:
uma ação descentralizada administrativamente,
“Por volta de 1927, senti haver superado essas
mas unificada no seu planejamento global (Teixei-
mortais contradições, reconciliando-me com a filosofia
ra, 1976, p. 75). Com essa postura demonstra que
que primeiro me influenciara, a do espírito naturalis-
o ensino não pode ficar entregue ao “esforço im-
ta e científico de que me tentara afastar o ultramon-
potente do governo e da lei”, mas deve ser pauta-
tanismo católico dos jesuítas. Trouxe de meus cursos
do pela participação de todos aqueles que se encon-
universitários na Europa e na América não somente
tram envolvidos por esse mesmo processo.
esta paz espiritual mas um programa de luta pela edu-
Esse tipo de argumento, em última instância,
cação no Brasil” (apud Lima, p. 60).
acaba demarcando as origens de seu pensamento:
a tradição anglo-saxã, na qual, a partir de Bacon, Em conseqüência dessas viagens, Anísio escre-
não se pode mais pensar sem agir, nem agir sem ve um relatório de 166 páginas que é publicado em
pensar (idem, p. 70) e onde a liberdade administra- 1928 sob o título de “Aspectos americanos da edu-
tiva e política conquistada pelas colônias da Nova cação”. Além de descrever o funcionamento do sis-
Inglaterra gera a fundação de um tipo de Estado que tema escolar americano, essa exposição também
se estrutura depois do condado, que, por sua vez, contém um resumo pioneiro das idéias de Dewey.
se institui depois da comuna, célula mater da na- Essa publicação e outras que viriam posteriomente
ção americana. Nesse caso, seria na soberania do implicam a concretização de uma afinidade que já
povo que se deveria começar a organizar um país existia em seu tempo de juventude, mas que ainda
(Tocqueville, 1998, p. 48), o que implica afirmar não era dominante em função da presença marcante
que é somente no seio da comuna que pode flores- da religião em sua vida. Isso demonstra que, com
cer uma vida política real, ativa e democrática, pos- o tempo, aquelas primeiras leituras sobre os ame-
sibilitando assim o fim de todo e qualquer tipo de ricanos de vanguarda, no período em que cursava
ação abstrata e artificial. a faculdade de direito, transformam-se na base de
Essas influências, que mostram a necessidade seu pensamento, que, mais tarde, irá divulgar como
da experiência no fazer intelectual e a importância se fosse uma missão.
da participação política e social dos indivíduos na Aprofundando um pouco mais a natureza des-
vida do país, já começam a ser evidenciadas em ta relação, percebe-se que o contato de Anísio com
1927, quando, ainda como inspetor da Educação sociedade americana e o seu alto grau de desenvol-
da Bahia, faz a sua primeira viagem aos Estados vimento industrial causou-lhe um forte impacto,
Unidos, com o objetivo de observar a organização aproximando-o ainda mais de Dewey. Essa vivên-
escolar desse país. Novamente, por dez meses, en- cia, além de fazê-lo experimentar as idéias que co-
tre o final de 1927 e meados de 1928, retorna à meça a defender, faz com que se aperceba que tra-
América do Norte para estudar administração, fi- balho e pensamento constituem duas faces de uma
losofia e educação e gradua-se em Master of Arts mesma moeda, uma vez que na filosofia norte-ame-
no Teachers College da Universidade de Columbia. ricana, que se constitui de acordo com a tradição
Liberto dos últimos laços com a igreja, volta des- anglo-saxã, pensar quer dizer trabalhar em busca
sas viagens “lapidado pela América”, conforme ex- de novas descobertas, que continuamente devem ser
pressão de Monteiro Lobato. Com fé na democracia reconstruídas.
e na ciência faz a sua definitiva reconversão exis- Dewey soube descrever tão bem em seus escri-
tencial e social, tornando-se um homem público que tos a função da escola segundo esse espírito ameri-
vai, durante toda a sua vida, lutar pela educação cano, que Anísio se transforma no seu mais fiel lei-

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tor e tradutor. É por meio da leitura do filósofo educação, nem educação sem diagnóstico das si-
americano que ele toma consciência do papel da tuações que está chamada a resolver; c) a realida-
educação nessa sociedade. Conclui que ela não tem de do sistema educacional é múltipla e variada, exi-
como objetivo conservar o estabelecido, mas diri- gindo uma intervenção que tenha como preocupa-
gir-se ao novo, uma vez que se encontra destinada ção manter essa mesma diferença; d) a sociedade
a se expandir e a mudar. Obedecendo a essa lógi- moderna encontra-se em permanente mudança, exi-
ca, Anísio tentará implantar no Brasil um novo sis- gindo, portanto, uma escola que se adeque a essa
tema educacional, mais condizente com o seu nível mesma sociedade; e) a importância dada à filoso-
de desenvolvimento. fia como um instrumento intelectual valioso para
Em 1930, traduz dois estudos de Dewey reu- ajudar a pensar as questões da escola e do mundo.
nidos em Vida e educação, em que na introdução Percebe-se que, da aproximação concomitan-
escreve uma síntese bastante clara sobre a sua teo- te de Anísio com a ambiência americana e com as
ria da experiência. Como inspetor da Instrução Pú- idéias de Dewey, que tão bem soube expressar os
blica do Distrito Federal, entre os anos 1931 a 1935, valores desse mesmo meio, emergiu um elo, um
procura, de forma mais madura e integral, colocar “vínculo entre almas”, que o filia a uma determi-
em prática as propostas de Dewey para a educação. nada tradição, tornando o seu pensamento amal-
Nessa época, escreve “Pequena introdução à filo- gamado para sempre ao do filósofo americano.
sofia da educação”, fruto de cursos sobre a teoria
do filósofo americano no Instituto de Educação; A simbiose: a fusão dos conceitos
Educação progressiva, em 1933, trazendo mais
idéias acerca da função da escola em uma civiliza- Anísio não escreveu nenhum livro que se te-
ção em mudança; “Marcha para a democracia”, em nha tornado um clássico. Sua obra é fruto basica-
1934, como mais uma reafirmação de sua escolha mente de uma compilação de conferências, artigos
existencial e filosófica, na qual repele os postulados dispersos em revistas e trechos de relatórios, o que
teológicos do catolicismo e demonstra a sua con- faz com que o seu texto não tenha praticamente
fiança no método experimental e na ciência; “Edu- nenhuma citação ou referência. Uma leitura mais
cação pública: administração e desenvolvimento”, atenta de seus livros, entretanto, indica que a sim-
em 1935, mostrando, em forma de relatório, os pro- biose entre ele e Dewey chega a tal ponto que al-
jetos para a sua gestão na administração pública gumas de suas passagens lembram em muito as mes-
no antigo Distrito Federal, a partir do modelo de mas palavras escritas pelo filósofo americano. É o
escola escola progressiva de Dewey. E, finalmente, que ocorre, por exemplo, com os conceitos de de-
traduz, em 1936, Democracia e educação, a obra mocracia, educação e experiência.
mais importante de Dewey. Refere-se ao livro na Algumas considerações podem ser feitas acer-
Apresentação, que também escreve, como um “tra- ca dessa atitude. A primeira delas é a de que a trans-
tado de educação” e uma “summa moderna” dos formação de conferências, discursos e relatórios em
conhecimentos pedagógicos, expressando com is- artigos torna o estilo da escrita menos formal, per-
so que ali estariam contidas as bases de sua teoria mitindo inclusive que alguns aspectos da oratória
educacional. sejam mantidos no texto e eximindo-o do compro-
Nesse período, Anísio confirma, por meio de misso em explicitar a todo momento a fonte do seu
um contato mais estreito com os escritos de Dewey, discurso. Uma outra explicação seria a opção cons-
alguns pressupostos educacionais em que já acre- ciente de Anísio, mas não revelada diretamente para
ditava, apesar da pouca experiência no assunto: a) o seu leitor, em preferir ser apenas um veículo das
a criança se educa diretamente com a vida por meio palavras de Dewey, já que concorda integralmen-
da experiência; b) não há educação sem teoria da te com elas. Uma última maneira de entender essa

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prática seria por meio de um processo não mais se sentido, em Educação progressiva, escreve: “Mas,
consciente, mas inconsciente: as idéias do filósofo democracia é acima de tudo um modo de vida, a
americano teriam sido tão bem internalizadas pelo expressão moral de vida humana, tudo levando a
educador brasileiro que este as torna suas, passan- crer que o homem a busca como a sua forma de vida
do-as adiante já como de sua propriedade. Essa ati- social, inerente à sua natureza” (1934, p. 37, grifo
tude pode ser ainda justificada caso se leve em con- do autor).
ta que Anísio foi um dos principais tradutores de Segundo Teixeira, nessa concepção cada in-
Dewey, tornando o mecanismo da apropriação até divíduo conta como pessoa e “o respeito pela per-
mais eficaz. Tal qual um posseiro, tem posse legal sonalidade humana é a idéia mais profunda dessa
sobre as idéias que defende e divulga, principalmen- grande corrente moderna” (p. 36).
te se se tem em mente a idéia de que “não se tem Preocupado com a liberdade do desenvolvi-
um discurso, mas um estado de processo discursivo” mento das capacidades individuais, que toda so-
(Orlandi, 1987, p. 26). ciedade democrática deveria estimular, ainda, no
A fusão entre as almas, neste caso, é de tal por- mesmo livro, afirma: “Em democracia não há se-
te que, com certeza, é possível encontrar na escrita não uma tendência fixa: a do buscar o maior bem
de Anísio esses três artifícios que, em última instân- do homem. Como tal, é essencialmente progressi-
cia, são a prova material da sua apropriação. Como va e livre, e para o exercício dessa forma social e
um fio de uma meada, o conceito de democracia de progressiva e livre precisa-se de homens conscien-
Dewey se estende até Anísio, fazendo com que o tes, informados e capazes de resolver os seus pró-
educador brasileiro o defina nos mesmos moldes. prios problemas” (p. 44).
Dewey, em Democracia e educação (1956, p. De forma enfática, em 1968, em Educação é
118), define a democracia como um tipo de vida um direito, reafirma: “A forma democrática de vida
associativa e, por isso, “é mais do que uma forma funda-se no pressuposto de que ninguém é tão des-
de governo, é principalmente uma forma de vida provido de inteligência que não tenha contribuição
social, de experiências conjuntas e mutuamente a fazer às instituições e a sociedade a que perten-
comunicadas”. ce” (p. 23).
Também a conceitua como uma forma de go- Na outra página, continua: “[...] a sociedade
verno que deve buscar a ampliação dos interesses terá de oferecer a todos os indivíduos acesso aos
compartilhados e a libertação de uma maior diver- meios de desenvolver suas capacidades, a fim de
sidade das capacidades pessoais exigidas pelo pró- habilitá-los à maior participação possível nos atos
prio desenvolvimento social, tecnológico e cultural e instituições em que transcorra sua vida, partici-
da sociedade moderna e democrática (p. 118). No pação que é essencial à sua dignidade de ser huma-
final deste mesmo capítulo, escreve: “Uma socie- no” (p. 23).
dade é democrática na proporção em que prepara De acordo com as afirmações acima, a demo-
todos os seus membros para com igualdade aqui- cracia, para ambos, não é algo institucional e ex-
nhoarem de seus benefícios e em que assegura o terno, mas alguma coisa que se baseia nas ações e
maleável reajustamento de suas instituições por atitudes das pessoas diante dos acontecimentos da
meio da interação das diversas formas de vida as- vida. É para ser vivenciada pessoalmente pelos in-
sociada” (p. 132). divíduos, que através de seus atos a expressam con-
Enquanto Dewey havia publicado essas suas cretamente, deixando de ser mera abstração ou con-
idéias acerca da democracia nos Estados Unidos, junto de idéias vazias. Não é algo que se acrescen-
aqui, no Brasil, Anísio tratava de assimilá-las pro- ta à vida, mas um modo próprio de viver, onde a
curando escrever sobre elas a fim de que assim pu- participação é a base de toda a atividade humana
desse ele mesmo trabalhá-las intelectualmente. Nes- (Dewey, 1960; Teixeira, 1977).

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Se a plena participação, entretanto, depende mos que uma certa tradição científica ocidental pro-
do pleno desenvolvimento das capacidades de cada curou consolidar, mas que o pragmatismo tratou de
um dos indivíduos e estas não se expandem natu- superar. Para ele, não há sentido em projetar uma
ralmente, será a escola, para esses dois educadores, escola que não tenha como método de aprendiza-
que cumprirá esta função, tornando a criança um gem a atividade, a experiência e a participação, já
socius mais do que simplesmente um indivíduo. Sob que somente assim se ligariam os fins e os meios em
esse aspecto, ambos concordam em que a instituição educação. Apenas desse modo se teria uma escola
escolar, na sociedade democrática, tem que existir democrática.
enquanto um ambiente especial que deve preparar Tendo em vista essa estreita afinidade com as
a criança para a vida, exercitando-a a partir de ex- idéias de Dewey, Anísio, ao longo de sua vida, foi
periências concretas nas mais variadas atividades. acusado de americanizar a educação de seu país,
Conseqüentemente, tanto para Dewey quanto para transpondo métodos e lições inadequadas à nossa
Teixeira, aprender significa adquirir um modo de situação. No entanto, tinha consciência de que as
agir a partir da prática, já que “não se aprende se- experiências não podiam ser transplantadas, mas
não aquilo que se pratica” (Teixeira, 1934, p. 48). reinventadas de acordo com as necessidades. É o
Significa um processo ativo, que implica reagir com próprio Anísio quem escreve sobre esse assunto, em
curiosidade aos estímulos externos. Nesse caso, a artigo publicado na Revista Brasileira de Estudos
educação escolar teria para os autores o papel de Pedagógicos: “A verdade é que a escola, como ins-
garantir o equilíbrio entre os vários elementos do tituição, não pode verdadeiramente ser transplan-
ambiente social e as aptidões individuais, adquirin- tada. Tem de ser recriada em cada cultura, mesmo
do, dessa forma, uma função mediadora entre o quando essa cultura seja politicamente o prolon-
indivíduo e a sociedade. gamento de uma cultura matriz (apud Lima, 1978,
Como ficou demonstrado acima, para esses p. 108).
autores os conceitos de democracia e de educação Dessa perspectiva, a fusão dos conceitos, nes-
só podem ser pensados a partir do de experiência. te caso, deve ser interpretada como uma ligação
Esta deve ser entendida como uma ação interativa, entre parceiros, que permanecem separados apesar
que reconstrói a relação indivíduo/meio, colocan- de estarem organicamente ligados.
do-a em um patamar diferente daquele em que se
encontrava antes da ação experenciada. Desse mo- O solo comum:
do, é papel da escola estimular as mais diversas ati- o pragmatismo e o liberalismo
vidades, a fim de que o ato de aprender seja com-
preendido como uma possibilidade de participação Sendo o pragmatismo e o liberalismo a base do
que reajuste o indivíduo ao meio, em função dos pensamento de Anísio e Dewey, os conceitos de de-
estímulos e desafios da própria atividade. A expe- mocracia e experiência encontram-se estruturalmen-
riência vivenciada na escola, enquanto uma ativida- te ligados a eles. Mas de onde vem esse vínculo?
de escolar, seria, então, a forma mais apropriada Ele pode ser detectado na tradição inglesa de
para desenvolver as capacidades individuais, uma John Stuart Mill e de Francis Bacon, uma vez que
vez que, ao estimular a participação, estaria, ao mes- a liberdade de pensamento, princípio básico dessa
mo tempo, incentivando o exercício da liberdade corrente, implica a atividade da mente na busca da
das forças do indivíduo na elaboração da experiên- verdade com base na experiência. Dessa perspecti-
cia, tornando-o agente ativo da construção de há- va, o liberalismo edificado por essa tradição entende
bitos e atitudes (Dewey, 1976). que a democracia é a única forma de governo ca-
Anísio Teixeira (1964) se dá conta de que essa paz de estimular o desenvolvimento intelectual por
concepção de experiência implica o fim dos dualis- meio da participação, não deixando a ética, a ciên-

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cia e a especulação social e política presas a um tipo No entanto, para Macpherson, Stuart Mill,
de pensamento puro e metafísico. Para essa escola, apesar de defender a liberdade de participação, ti-
marcada pelo método indutivo, experiência e demo- nha consciência de que essa mesma participação ne-
cracia seriam indissociáveis porque uma levaria à cessitava ser mais bem definida, a fim de que assim
outra, fazendo com que tanto pensamento e ação se evitassem erros futuros. Isto é, se o voto era con-
quanto política e participação fossem vistas como siderado a mais alta expressão da participação, se
partes de uma mesma moeda. Somente dessa ma- Stuart Mill aceitava a franquia universal e se a classe
neira se atingiria o progresso humano, que deveria trabalhadora, maioria numérica na sociedade, mas
ser pautado pelo debate livre das idéias sempre vi- até então sem capacidade para utilizar o poder po-
vas e em permanente mudança e não pela sua cris- lítico, sabiamente, votasse sempre em seus candi-
talização, que as tornaria algo morto e sem vida. datos, como se poderia evitar um governo classis-
Este caminho percorrido pelos ingleses, que se ta, caracterizado por determinadas noções ainda
fundamenta na discussão das condições de desen- “egoístas” e “rudimentares”?
volvimento da mente e nos argumentos políticos A solução estaria na revisão do princípio “cada
baseados em uma teoria do conhecimento de cunho pessoa um voto”, surgindo, a partir daí, o voto plu-
empírico, em muito difere da escola francesa, mar- ral: um trabalhador não qualificado teria um voto;
cada pela presença de Tocqueville e Montesquieu, um trabalhador qualificado deveria ter dois; um
que trataram as questões sociais a partir da distin- agricultor, fabricante ou comerciante, três ou qua-
ção entre as instituições políticas e a estrutura so- tro, e um profissional liberal, artista ou funcioná-
cial, buscando construir uma teoria política liberal rio público deveria ter cinco ou seis votos (Macpher-
com base em uma concepção de mudança social e son, 1978, p. 63). Essa matemática, ao revelar que
histórica. Conclui-se, então, que o liberalismo, por esse último grupo, que pode ser identificado como
ter vários patronos, pressupõe diferentes vertentes, a classe média e que por suas características, se en-
que indicam afinidades e divergências, tornando contra em uma posição política privilegiada em re-
uma leitura interpretativa das idéias de Stuart Mill, lação à do grupo anterior, que seria a dos proprie-
Dewey e Anísio mais complexa ainda. tários, indica um fio condutor que passa por Dewey
Celso Lafer (1991, p. 15), no prefácio de So- e chega até Anísio.
bre a liberdade de Mill, mostra como este pensador Com certeza, transpira da resposta encontra-
ou é qualificado como um defensor do valor da to- da por Mill uma idéia que os dois educadores aca-
lerância, ao defender a importância da liberdade de tam: o processo democrático deve ser dirigido pela
discussão, ou é visto como um adepto do dogma- classe média. Em Anísio, isso pode ser comprovado
tismo de uma razão calcada nas premissas univer- através de seu artigo “Educação e desenvolvimento”,
sais das ciências físicas. Entretanto, se se toma como publicado em 1961 na Revista Brasileira de Estudos
fundamento os argumentos de Macpherson (1978), Pedagógicos, em que, ao se deter sobre as diferen-
infere-se que as propostas do filósofo inglês vão tes formas de industrialização e os vários tipos de eli-
muito além da “democracia protetora” de Bentham tes dirigentes, chega à conclusão de que é a elite de
e de seu pai, James Stuart Mill, já que defende que classe média que melhor pode conduzir o processo
é por meio da participação — em relação ao voto, democrático, uma vez que a sua ideologia liberal per-
John S. Mill é a favor da franquia universal — que mite a existência de uma relação mais democrática
se desenvolveriam as capacidades individuais, indi- entre o processo de industrialização e a sociedade.
cando com essa opção que o liberalismo democrá- No caso específico de Dewey, a influência de
tico precisaria criar condições para o indivíduo se Stuart Mill a respeito do poder da classe média vin-
autodesenvolver, aperfeiçoando, conseqüentemen- cula-se à sua própria experiência existencial, social
te, a si próprio e à sociedade. e cultural, já que a Nova Inglaterra, região em que

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Miriam Waidenfeld Chaves

nasceu, floresce tomando como base um princípio Quando Dewey (1960) e Anísio (1976), res-
de igualdade que parte do pressuposto de que sua pectivamente, afirmam que “a democracia é a cren-
população deve ter as mesmas oportunidades e, por ça em que o processo da experiência é mais impor-
isso mesmo, deve ter mais ou menos a mesma fortu- tante do que qualquer resultado especial obtido, de
na e a mesma inteligência. Todos se fixariam, então, modo que os resultados especiais somente têm va-
em um padrão mediano, evitando assim as grandes lor fundamental quando são usados para enrique-
desigualdades sociais (Tocqueville, 1998, p. 62). É cer e organizar o processo em ação” (p. 333-4) e que
justamente dessa premissa liberal que Dewey deli- “temos de ‘ser’ um país civilizado. As instituições
neia toda a sua concepção de escola, que só pode- ‘transplantadas’ não se podem conservar como ins-
ria sobreviver em uma nação constituída segundo tituições simbólicas e aparentes, mas têm de se fa-
esse parâmetro de igualdade de oportunidades. zer efetivas, extensas e eficazes, sob pena de não
Desse ponto de vista, a raiz do pensamento de atenderem às imposições do real desenvolvimento
Anísio e Dewey fixa-se em uma tradição liberal de do país” (p. 39), ligam-se definitivamente à escola
cunho humanista, em que o homem é visto como inglesa. Trazem à tona a sua veia empiricista, mos-
mais do que um mero consumidor, já que se acre- trando que Bacon também foi, para eles, uma for-
dita que ele seja capaz de se autodesenvolver social te referência, já que sua filosofia busca de forma
e intelectualmente para assim poder participar do incessante vincular-se aos interesses da realidade.
jogo social. O indivíduo, neste caso, além de só pro- Esse elo entre os pensadores torna-se mais ex-
gredir exercitando as suas qualidades na socieda- plícito ainda quando se evidencia que Bacon, nos
de, somente as realizaria plenamente caso existisse séculos XVI e XVII, ao criticar o racionalismo, pro-
um incentivo para que participasse ativamente das cura construir um novo método científico, que te-
discussões sociais. Por conseguinte, de acordo com nha como referência os fatos concretos advindos da
Macpherson, os adeptos dessas idéias defendiam experiência. Essa sua postura faz com que a filoso-
que apenas a democracia conduziria “ao sustenta- fia definitivamente irrompa na modernidade, tor-
do e crescente progresso moral dos cidadãos, seu nando a experiência uma noção científica.
progresso intelectual e valor ativo, sendo que cada Ao diferenciar os conceitos de “experiência
parcela de participação daria capacidade e desejo vaga” e “experiência escriturada”, Bacon demons-
de mais participação” (1978, p. 56-7). tra que o verdadeiro conhecimento só pode ser ob-
Tanto para Dewey quanto para Anísio esta tido por meio da observação. Nesse caso, a ciência,
forma de participação exigiria a elaboração de uma para ele, nada mais é do que um trabalho de inves-
teoria educacional que, justamente, consistiria em tigação empírica sobre a natureza, que nasce das
estimular o desenvolvimento das capacidades indi- necessidades concretas da realidade. Dessa perspec-
viduais, cumprindo ela assim a sua função social de tiva, pode-se afirmar que o pensamento naturalis-
“direção”, “controle” e “guia” dos indivíduos aos ta de Dewey e Anísio deriva desse princípio que
“fins públicos e comuns”. Essa visão, no entanto, toma a natureza como o ponto de partida de toda
não significa uma imposição a esses mesmos indi- e qualquer análise científica, o que implica, em úl-
víduos de tarefas contrárias às suas tendências na- tima instância, uma luta sem fim contra todo o tipo
turais, já que se sustenta num conceito de liberda- de dualismo.
de que se fundamenta no direito à diferença indi- Dewey e, mais tarde, Anísio, ao trilhar o mes-
vidual e à diversidade social. O direito à educação mo caminho de seu antecessor, tomam para si a ta-
seria, então, um dever do Estado, que garantiria refa de tentar eliminar todas as espécies de dualis-
condições iguais para todos se desenvolverem, o que mos que o intelectualismo filosófico fomentou. Im-
supõe que essa teoria liberal seja atravessada por buídos por essa responsabilidade, apesar de reco-
uma consistente teoria social. nhecerem que é na filosofia grega que se encontra

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A afinidade eletiva entre Anísio Teixeira e John Dewey

o berço do pensamento ocidental, sabem que foi ela deixa de ser mera abstração e passa a ser compreen-
mesma quem instituiu a divisão entre teoria e prá- dida como um “fluxo de consciência”, ou melhor,
tica, saber e fazer, gozo do lazer e trabalho para um fluxo de idéias composto por elementos intelec-
ganhar a vida. Não só têm consciência de que, para tuais e perceptivos, que se relacionam entre si no
Platão e Aristóteles, a razão é a única fonte de co- momento de construção do conhecimento. Este, por
nhecimento capaz de atingir as verdades absolutas esse motivo, passa a ser visto como algo em perma-
como, igualmente, têm a certeza de que, para estes nente processo de elaboração, onde as idéias, para
mesmos filósofos da Antigüidade, o conhecimento se tornarem verdadeiras, têm que se relacionar de
obtido por meio da experiência reduz-se à simples modo satisfatório com as outras partes da experiên-
habilidade prática. cia (James, 1974, p. 14).
Através dessas constatações, nossos educado- Neste caráter instrumental de verdade estaria,
res, fundamentados em Bacon, partem do princípio justamente, implícita a própria definição do méto-
de que o racionalismo grego transformou o conhe- do pragmatista de Dewey, que Anísio soube tão
cimento em algo desvinculado da realidade, já que, bem assimilar e divulgar nos meios educacionais de
para eles, o saber não teria um valor em si mesmo. seu país. Para eles, uma idéia, para ser verdadeira,
A ciência, por esse motivo, deveria ter uma função teria que ter um poder de “trabalho” sobre as expe-
operativa, ligando-se muito mais à sua prática e aos riências que, desdobradas em experiências seguin-
seus resultados do que a simples abstrações; e o tes, tornariam o conhecimento um constante fluxo
conhecimento teria que partir dos fatos concretos, de atividades.
tal como se daria na experiência, para, somente as- Com esse percurso, nossos educadores conse-
sim, ascender às formas gerais, constituindo-se, pos- guem pôr fim à discussão em torno do intelectua-
teriormente, em leis e princípios. lismo divisionista, uma vez que tomam como prin-
Entretanto, como elo de uma corrente que cípio científico a idéia de que a fricção entre pen-
atravessa o tempo, o filósofo americano vai muito samento/experiência põe o conhecimento em per-
além de Bacon na sua luta contra o racionalismo, manente movimento, levando-o sempre em direção
pois afirma que o empirismo inglês acabou caindo ao futuro. Palavras tais como Deus, Matéria, Ra-
em um certo tipo de intelectualismo. Mostra como zão e Absoluto perderiam, assim, o seu caráter de-
essa corrente inverteu a doutrina clássica, fazendo finitivo e passariam a ser entendidas apenas a par-
não só com que a razão passasse a significar formas tir de seu senso prático. Somente após terem sido
vazias, que precisariam ser preenchidas pelas sen- trabalhadas dentro de uma corrente de experiência
sações, mas, também, com que a experiência pas- é que ganhariam sentido e significação. Desdobrar-
sasse a ser vista como puro conhecimento, não sen- se-iam, então, “menos como uma solução do que
do levados em conta seus aspectos ativos e emo- como um programa para mais trabalho, e mais par-
cionais, reduzindo-se assim à mera recepção passi- ticularmente como uma indicação dos caminhos pe-
va de sensações isoladas (Dewey, 1956, p. 341). los quais as realidades existentes podem ser modifi-
Procurando superar o empirismo, Dewey bus- cadas. As teorias, assim, tornam-se instrumentos, e
ca em uma nova geração de filósofos americanos, não respostas aos enigmas, sobre as quais podemos
entre eles Charles Peirce e William James, as respos- descansar” (James, 1974, p. 12, grifos do autor).
tas para as suas interrogações e encontra no prag- Estas são algumas das idéias nas quais o pen-
matismo, que ele próprio, inclusive, ajuda a elabo- samento, tanto de Dewey quanto de Anísio, encon-
rar, a forma de unir pensamento e ação. Resgata a tra-se assentado. Seu movimento e constante vir a
idéia dos gregos de que a experiência é eminente- ser indicam, entretanto, que esse pensamento deve
mente prática e a classifica como sendo experimen- estar sempre pronto para sofrer questionamentos e
tal e não mais empírica. Por conseguinte, a razão revisões.

Revista Brasileira de Educação 95


Miriam Waidenfeld Chaves

A diferença: o tempo e o espaço exercitadas em todas escolas, o que torna a parti-


cipação e o convívio social qualidades altamente va-
John Dewey nasceu em 1859, em Vermont, no lorizadas por essa instituição que idealizou.
nordeste dos Estados Unidos, região chamada de Em uma conferência (1960) de comemoração
Nova Inglaterra, no período colonial. Como o nome de seu octogésimo aniversário natalício, Dewey re-
sugere, esse pedaço do território norte-americano força a sua fé cega na democracia e na nobreza hu-
desenvolveu-se a partir dos valores anglo-saxões, mana. Essa fé utópica, enraizada em suas entranhas
que, ao penetrarem na nova nação, passaram a fa- e no próprio ambiente em que viveu, faz com que
zer parte da sua própria tradição. Entretanto, a essa ele, nessa festa comemorativa, se recorde da impor-
tradição incorporou-se a luta por mais liberdade e tância dos valores da vida pioneira americana para
igualdade, já que os que habitaram essa terra es- a construção da nação. Enfatiza a sua relevância,
tavam sendo perseguidos política e religiosamente mostrando o quanto o seu espírito desbravador con-
na Inglaterra. tribuiu para a formação de uma cultura empreen-
Distante da metrópole, a Nova Inglaterra ca- dedora, marcada pelo fazer e pela realização. Esta
racterizou-se, em termos políticos, por implementar sua generosa confiança, por isso, significa, em úl-
o sistema de self government, no qual cada colônia tima instância, uma crença nos Estados Unidos, que,
gozava de total autonomia em relação às outras, através de sua história, fez com que os seus cida-
não existindo qualquer órgão que as unisse, para dãos tivessem a oportunidade de vivenciar os mais
se fazerem representar em conjunto ante o poder altos princípios democráticos.
real inglês. Economicamente, a região organizou- Enquanto Dewey, nos Estados Unidos, pôde
se a partir da agricultura de subsistência, da peque- viver sob o signo da democracia, Anísio, ao nascer
na propriedade e da mão-de-obra livre com base em 1900, em Caetité, no sertão baiano, foi obriga-
familiar. A pesca, o comércio interno e externo e a do a conviver com uma sociedade fixada pela co-
indústria também foram desenvolvidos. Esta situa- lonização portuguesa, que, diferentemente da ingle-
ção fez com que surgisse nessa parte dos Estados sa, foi organizada a partir do grande latifúndio, da
Unidos uma sociedade onde as diferenças sociais monocultura e da mão-de-obra escrava. Além dis-
eram muito pouco acentuadas e onde era grande a so, essa característica da colônia permanece na re-
participação de amplos setores da população na pública através do mandonismo e da força política
vida política. dos coronéis, fazendo com que os anos de sua for-
Tendo sido criado e educado nesta “ilha in- mação sejam emoldurados por essas referências,
glesa”, nos Estados Unidos, Dewey, desde criança, que, ao longo de sua vida, vai procurar negar.
conviveu com a liberdade e a igualdade como se A educação jesuítica, ao desenvolver-lhe o gos-
fossem o ar que respirava, o alimento que o susten- to pela filosofia e pela reflexão, é a responsável pela
tava e o brinquedo que jogava. Experimentou, ain- constituição em seu interior de um universo bastan-
da, esses sentimentos durante a sua carreira univer- te peculiar, que é muito pouco identificado com o
sitária, uma vez que a universidade americana era universo do interior do sertão baiano. Mais tarde,
a instituição que, por excelência, primava por existir a estada no Rio de Janeiro, para completar o curso
a partir desses princípios. Nessas circunstâncias, de direito, e as viagens para o exterior levam-no,
teve a chance de exercitar esses valores, tanto como definitivamente, para bem longe de Caetité. Por isso,
cidadão quanto como estudante ou professor, o que apesar da família tradicional, Anísio foge de seu
possibilitou, inclusive, que esses mesmos valores destino e trilha uma vida identificada com os pro-
fossem incorporados à sua teoria educacional. A blemas do mundo e de seu país. Sua visão vai além
democracia, a liberdade e o self government, por- do latifúndio dos Teixeiras e, profissionalmente,
tanto, passam a ser idéias que, para ele, devem ser concentra todas as suas energias em uma reflexão

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A afinidade eletiva entre Anísio Teixeira e John Dewey

sobre a educação no Brasil. Entretanto, essa sua luta As idéias dos dois intelectuais, quando con-
vai estar para sempre almagamada à sua raiz cae- frontadas a partir das diferenças espaciais e tempo-
titense, o que o tornará marcado tanto pelo passa- rais acima colocadas, distanciam-se, ganhando ca-
do que povoa a sua mente quanto pelo futuro que da uma delas a peculiaridade e a marca de seu au-
vislumbra nas paisagens dos países que visita. tor. Entretanto, ainda se faz necessário um estudo
Esta mistura entre tradição e modernidade, que detecte de modo pormenorizado diferenças si-
Caetité e Estados Unidos, é que faz com que Aní- tuadas mais no nível da conceituação, como, por
sio, diferentemente de Dewey — que possui uma exemplo, a que diz respeito à relação família/esco-
crença quase cega no homem — tenha apenas uma la/sociedade.
confiança tática (Lovisolo, 1990) na natureza hu-
mana, o que pressupõe um distanciamento crítico Algumas considerações finais
sobre essa questão, que o filósofo americano não
possuía. Essa dissimilitude entre a confiança de De- Este texto, ao identificar o parentesco intelec-
wey e a confiança tática de Anísio é que pode ser tual entre Anísio e Dewey por meio do conceito de
considerada como um dos pontos que separam es- afinidade eletiva, teve como objetivo mostrar que
ses dois intelectuais. Enquanto um vivenciou e exer- as apropriações feitas pelo educador brasileiro an-
citou amplamente a democracia, possibilitando o coram-se na sua própria experiência existencial,
desenvolvimento dentro de si de uma crença na hu- social e cultural, que, por excelência, é tecida no
manidade, que se refletiu em sua obra, o outro, por interior da realidade brasileira. No entanto, esse
ter tido apenas condições de sonhar com ela, foi movimento intelectual também indica que o nosso
mais cético do que crédulo em relação à natureza educador igualmente lutou para que os seus pensa-
humana, o que fez com que os seus escritos estives- mentos voassem para além dessa realidade sertane-
sem impregnados por esse mesmo espírito tático. ja, possibilitando, assim, que essa apropriação seja
Do ponto de vista temporal, apesar de Dewey compreendida como um fato que vai além de uma
ter vivido por mais de noventa anos, não teve a simples opção intelectual.
oportunidade de presenciar a crise capitalista dos Dessa perspectiva, esse parentesco pode ser
anos 60 e 70 quando os Estados Unidos, especial- interpretado como tendo um significado muito mais
mente após a morte de Kennedy, sucumbiam a uma abrangente, uma vez que essa ligação interfere na
intensa onda conservadora. Anísio, por outro lado, constituição da própria identidade social de Anísio.
além de ter testemunhado essa mudança na conjun- É como se pudesse afirmar que, se sua alma vincu-
tura internacional, viveu os últimos anos de sua vida la-se às suas experiências em solo americano, seu
sob mais uma ditadura, que o impediu de contri- sangue e coração são brasileiros, o que torna a sua
buir, mais uma vez, para a implementação de uma escrita igualmente marcada ao menos por essas duas
escola pública e democrática no Brasil. grandes referências, cabendo a nós, seus leitores,
De acordo com essa análise, percebe-se que as verificar onde se encontram uma e outra.
idéias de Anísio são profundamente marcadas pela
história do Brasil. Seus textos encontram-se rechea-
dos por um enorme senso histórico, que aponta a MIRIAM WAIDENFELD CHAVES é professora de
todo momento para o fato de que o passado colo- Sociologia da Educação na Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Doutoranda na Pontifícia Universidade Católica do
nial brasileiro necessita ser superado no futuro. Um
Rio de Janeiro na área de História da Educação, participa
futuro utópico, que deveria varrer para sempre as
da pesquisa “A formação dos mestres: a contribuição de
ideologias do solo nacional, permitindo o flores- Anísio Teixeira para a institucionalização da pós-graduação
cimento definitivo de uma sociedade amplamente no Brasil”, coordenada pela professora Ana Waleska P.C.
democrática (Teixeira, 1958). Mendonça.

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Miriam Waidenfeld Chaves

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